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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CÍRCULO RUBI / Richelle Mead
CÍRCULO RUBI / Richelle Mead

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A vida de casado não era como eu imaginava.
Não me entenda mal: não me arrependia de ter casado com Sydney. Na verdade, a amava mais do que imaginava ser possível amar alguém. Mas o modo como estávamos vivendo... Bom, vamos apenas dizer que também nunca tinha imaginado nada do tipo. Em todas as nossas antigas fantasias, tínhamos sonhado com lugares exóticos e, acima de tudo, com a liberdade. Ficar confinado num pequeno flat nunca tinha sido um dos nossos planos de fuga, nem mesmo de uma escapada romântica.
Mas nunca fui do tipo que foge dos desafios.
— O que é isso? — Sydney perguntou, surpresa.
— Feliz aniversário de casamento — respondi.
Ela tinha acabado de tomar banho e se vestir, e estava parada na porta do banheiro, admirando a transformação que eu tinha feito no nosso quarto. Não tinha sido fácil arrumar tanta coisa em tão pouco tempo. Sydney era uma pessoa rápida e eficiente, o que também se aplicava a seus banhos. Se fosse ao contrário, daria tempo de demolir e refazer o quarto inteiro enquanto eu estava no chuveiro. No caso de Sydney, mal tive tempo de decorar o lugar com velas e flores. Mas consegui.
Um leve sorriso apareceu em seu rosto.
— Faz só um mês.
— Ei, como assim “só”? — adverti. — É muita coisa. E fique sabendo que planejo comemorar todos os meses pelo resto das nossas vidas.
Seu sorriso foi de orelha a orelha enquanto ela passava os dedos pelas pétalas das flores em um vaso. Senti uma dor no coração. Não conseguia lembrar a última vez em que a vira com um sorriso tão sincero.
— Você até comprou peônias — ela disse. — Onde encontrou?
— Tenho meus meios — falei, com grandiosidade.
Embora seja melhor que ela não saiba quais meios são esses, avisou uma voz na minha cabeça.

 


 


Sydney deu uma volta pelo quarto e avaliou o resto da minha obra de arte, que incluía uma garrafa de vinho tinto e uma caixa de trufas de chocolate sobre a mesa meticulosamente posta na cozinha.

— Não está um pouco cedo? — ela brincou.

— Depende para quem você está perguntando — respondi, indicando a janela escura com a cabeça. — Pra você, já é tecnicamente noite.

Seu sorriso diminuiu um pouco.

— Sinceramente, nos últimos tempos nunca sei que horas são.

Essa vida está fazendo mal pra Sydney, avisou minha voz interior. Olha só pra ela.

Mesmo sob a luz oscilante das velas, dava para ver os sinais do estresse que Sydney vinha passando. Olheiras escuras. Uma aparência exausta, mais por falta de esperança do que por cansaço. Ela era a única humana na Corte Moroi sem a missão de nos fornecer sangue. Ela também era a única humana em qualquer ambiente Moroi civilizado casada com um de nós. Com isso, despertou a fúria de seu próprio povo e foi isolada dos amigos e parentes (pelo menos dos que ainda falavam com ela), que estavam fora da Corte. E, graças ao desprezo e aos olhares curiosos que recebíamos, Sydney se isolara quase que completamente das pessoas dali também, reduzindo seu mundo ao nosso flat.

— E não é só isso — eu disse rápido, tentando distraí-la. Apertei um botão e uma música clássica começou a tocar no sistema de som. Ofereci a mão para ela. — Já que não tivemos a chance de dançar no nosso casamento.

Isso fez seu sorriso voltar. Ela segurou minha mão e deixou que eu a puxasse para perto. Giramos pela sala, tomando cuidado para não derrubar nenhuma das velas. Sydney me encarou, rindo.

— O que você está fazendo? É uma valsa. Tem três batidas. Não está ouvindo? Um, dois, três... um, dois, três...

— Jura? Isso é uma valsa? Hum, escolhi qualquer coisa que parecesse chique. Já que não temos uma música nossa nem nada. — Refleti sobre isso por um segundo. — Acho que a gente falhou como casal nesse sentido.

Ela zombou:

— Se essa é nossa maior falha, então acho que estamos bem.

Dançamos pela sala por mais um tempo até eu dizer de repente:

— “She Blinded Me with Science”.

— Quê? — Sydney perguntou.

— Pode ser a nossa música.

Ela riu e percebi que fazia muito tempo que eu não ouvia o som de sua risada. Fez meu coração doer e bater mais forte ao mesmo tempo.

— Bom, acho que é melhor do que “Tainted Love” — ela respondeu.

Nós dois demos risada e ela encostou o rosto no meu. Dei um beijo no seu cabelo dourado, sentindo o perfume do sabonete na sua pele.

— Parece errado — ela murmurou. — Ficar feliz, quero dizer. Enquanto Jill está lá fora...

Ao ouvir esse nome, meu coração se apertou e uma grande escuridão ameaçou tomar conta de mim e destruir esse pequeno momento de alegria que eu havia criado. Estava me obrigando a afastar a tristeza, me forçando a recuar da beira de um precipício perigoso tão familiar nos últimos tempos.

— Vamos encontrá-la — sussurrei, abraçando Sydney mais forte. — Onde quer que ela esteja, vamos encontrá-la.

Se ainda estiver viva, disse aquela voz interior maldosa.

A voz que ficava falando na minha cabeça não era parte de um exercício mental. Era, na verdade, uma voz bem específica: a da minha falecida tia Tatiana, ex-rainha dos Moroi. Mas ela não aparecia para mim como um fantasma. Sua voz era uma ilusão criada pela insanidade que cada vez mais tomava conta de mim, graças ao raro tipo de magia que eu usava. Um simples remédio poderia calar a boca dela, mas também tiraria minha magia e, naquele momento, nossa vida estava imprevisível demais para isso. Então, eu e a voz de tia Tatiana passamos a conversar na minha mente. Às vezes, essa presença ilusória me aterrorizava, e eu me perguntava quanto tempo levaria até enlouquecer de vez. Às vezes eu levava na boa, e a ideia de que estava passando a ver isso como normal me assustava ainda mais.

Consegui ignorar minha tia quando voltei a beijar Sydney.

— Vamos encontrar Jill — eu disse, mais firme. — Enquanto isso, precisamos continuar levando a vida.

— Acho que sim — Sydney disse com um suspiro. Dava para ver que ela estava tentando recuperar o ânimo de antes. — Se é para compensar o fato de a gente não ter dançado no casamento, sinto que estou pouco vestida para isso. Talvez devesse procurar o vestido.

— De jeito nenhum — respondi. — Não que aquele vestido não fosse lindo. Mas gosto de você com pouca roupa. Na verdade, preferiria até que você estivesse menos vestida ainda...

Parei de valsar (ou qualquer que fosse o passo de dança que estava tentando fazer) e levei minha boca à dela num beijo muito diferente do que tinha dado havia pouco. Meu corpo se encheu de calor enquanto eu sentia a suavidade do seu lábio e fiquei surpreso ao perceber que ela correspondia minha paixão. Diante dos últimos acontecimentos, Sydney não se sentia muito no clima, o que era compreensível. Eu tinha respeitado seus desejos e mantido distância, sem me dar conta até o momento do quanto sentia falta dessa chama nela.

Deitamos no sofá, agarrados um no outro e nos beijando com vontade. Parei para observá-la, admirando como a luz das velas iluminava seu cabelo loiro e seus olhos castanhos. Poderia me afundar naquela beleza e no amor que irradiava dela. Era o momento perfeito e romântico de que a gente tanto precisava... pelo menos, até alguém abrir a porta.

— Mãe? — exclamei, saindo de cima de Sydney como se fosse um adolescente, e não um homem casado de vinte e dois anos.

— Ah, oi, querido — disse minha mãe, entrando na sala. — Por que todas as luzes estão apagadas? Parece um mausoléu aqui. Acabou a energia? — Ela apertou o interruptor, fazendo Sydney e eu estreitarmos os olhos. — Parece que já voltou. Mas vocês não deviam ter acendido tantas velas. É perigoso. — Para ajudar, ela apagou algumas.

— Obrigada — Sydney disse, inexpressiva. — É bom saber que você se preocupa com a nossa segurança. — A cara dela me lembrou da vez em que, “para ajudar”, minha mãe tinha arrancado um monte de bilhetinhos “amontoados” em um livro. Sydney tinha passado horas anotando cada um deles com cuidado.

— Mãe, achei que você ficaria fora mais tempo — disse, jogando uma indireta.

— Queria ficar, mas estava muito constrangedor no salão de fornecedores. Pensei que todos estariam ocupados na reunião do conselho, mas não. Todo mundo ficou me encarando. Não consegui relaxar. Então me deixaram trazer um pra casa. — Ela observou ao redor. — Aonde ele foi? Ah, ali. — Ela voltou para o corredor e trouxe um humano um pouco mais velho do que eu com o olhar perdido. — Senta ali naquela cadeira que já cuido de você.

Levantei em um pulo.

— Você trouxe um fornecedor pra cá? Mãe, você sabe como Sydney se sente em relação a isso.

Sydney não disse nada, mas ficou pálida ao ver o humano sentado do outro lado da sala. Os olhos dele encaravam o nada, perdidos e alegres pelas doses de endorfina que recebia ao deixar os vampiros se alimentarem dele.

Minha mãe suspirou, irritada.

— Você esperava que eu fizesse o quê, querido? Jamais conseguiria me alimentar com Maureen Tarus e Gladys Dashkov cochichando bem ao meu lado.

— Esperava que você tivesse um pouquinho de consideração pela minha esposa! — exclamei. Desde que Sydney e eu havíamos nos casado e buscado refúgio na Corte, a maioria das pessoas (incluindo meu próprio pai) tinha dado as costas para nós. Minha mãe ficara ao nosso lado, e foi até morar conosco, o que, entretanto, tinha lá suas complicações.

— Tenho certeza que ela pode esperar no quarto — minha mãe disse, abaixando-se para apagar outras velas. Quando viu as trufas na mesa, pegou uma e colocou na boca.

— Sydney não tem que se esconder na própria casa — argumentei.

— Bom, eu também não. A casa também é minha — minha mãe argumentou.

— Não me importo — Sydney disse ao levantar. — Eu espero.

Fiquei tão frustrado que minha vontade era arrancar os cabelos. A paixão não era mais o problema. Todos os traços da felicidade que tinha visto em Sydney desapareceram. Ela estava voltando a se refugiar em si mesma, na falta de esperança por ser uma humana presa num mundo de vampiros. Então, por incrível que pareça, as coisas ficaram piores. Minha mãe notou um dos vasos de peônia.

— Que lindas! — exclamou. — Melinda deve ter ficado muito agradecida por aquela cura.

Sydney parou no meio do passo.

— Que cura?

— Não importa — eu disse, torcendo para que minha mãe sacasse a indireta. Em outros momentos, Daniella Ivashkov era uma mulher extremamente astuta. Naquela hora, porém, estava completamente distraída.

— Melinda Rowe, a florista da Corte — explicou minha mãe. — Adrian e eu encontramos com ela por acaso no último fornecimento. Ela estava com uma crise de acne terrível e Adrian fez a gentileza de acelerar a cura. Ela prometeu que daria um jeito de arranjar peônias para recompensar.

Sydney me encarou furiosa. Precisava acalmar a situação imediatamente, então a tomei pelo braço e a levei para nosso quarto.

— Vê se acaba logo — gritei para minha mãe antes de fechar a porta.

Sydney me atacou na hora:

— Adrian, como você pôde? Você prometeu! Prometeu que não usaria mais o espírito a menos que fosse para ajudar a encontrar Jill!

— Não foi nada — insisti. — Mal precisou de magia.

— Mas é acumulativo! — Sydney gritou. — Você sabe disso. Qualquer coisinha. Não pode ficar desperdiçando em coisas assim... nas espinhas de alguém!

Mesmo entendendo por que ela estava nervosa, não pude evitar me magoar um pouco.

— Fiz isso por nós, pelo nosso aniversário. Pensei que você fosse gostar.

— O que eu quero é que meu marido continue são — ela retrucou.

— Bom, quanto a isso, é melhor desistir — respondi.

Ela não sabe da missa a metade, comentou tia Tatiana.

Sydney cruzou os braços.

— Está vendo? Lá vai você, fazendo piada com tudo. Isso é sério, Adrian.

— E estou falando sério. Sei o quanto consigo aguentar.

Ela me encarou.

— Sabe mesmo? Ainda acho que seria melhor você largar o espírito por completo, voltar para os remédios. É o jeito mais seguro.

— Mas e quanto a Jill? — a lembrei. — E se a gente precisar da magia do espírito para encontrá-la?

Sydney desviou o olhar.

— Bom, até agora não ajudou muito. Nem a sua magia nem a de ninguém.

A última frase foi uma crítica tanto a mim quanto a si mesma. Nossa amiga Jill Mastrano Dragomir tinha sido sequestrada no mês anterior e, até então, nossos esforços para encontrá-la haviam sido em vão. Eu não tinha conseguido chegar a Jill em sonhos de espírito e Sydney, uma talentosa aprendiz de magia humana, não pôde localizá-la usando os feitiços à sua disposição. A única coisa que Sydney tinha descoberto era que Jill ainda estava viva. Acreditávamos que, onde quer que estivesse, Jill estava sendo drogada, o que criava uma barreira tanto para a magia humana como para a Moroi. Mas isso não impedia que nos sentíssemos inúteis. Nós dois gostávamos muito de Jill, e minha amizade com ela era especialmente intensa, visto que tinha usado o espírito para trazê-la de volta da beira da morte. Não saber o que havia acontecido com ela lançara uma nuvem negra constante sobre mim e Sydney, acabando com todas as nossas tentativas de felicidade naquela prisão domiciliar autoimposta.

— Não importa — eu disse. — Quando a gente encontrar Jill, vou precisar da magia. Não tem como saber o que vamos encarar.

— Tipo curar uma espinha dela? — Sydney perguntou.

Fechei a cara.

— Falei pra você: não foi nada! Deixa que eu me preocupo comigo e com a quantidade de espírito que posso usar. Essa não é sua função.

Ela ficou incrédula.

— Claro que é! Sou sua esposa, Adrian. Se não me preocupar com você, quem vai? Você precisa controlar o espírito.

— Eu sei lidar com ele — eu disse, entredentes.

— Sua tia ainda fala com você? — ela perguntou.

Virei a cara, me recusando a encará-la. Na minha cabeça, tia Tatiana suspirou: Você nunca deveria ter contado sobre mim.

Diante do meu silêncio, Sydney disse:

— Fala, não fala? Adrian, não é saudável! Você sabe disso!

Virei para ela, furioso.

— Sei me cuidar, tá? Sei lidar com o espírito e com ela! — berrei. — Então para de me dizer o que fazer! Você não sabe de nada, por mais que queira que todo mundo pense que sabe.

Assustada, Sydney deu um passo para trás. A dor em seu olhar me magoou muito mais do que suas palavras. Me senti péssimo. Como esse dia pôde dar tão errado? Tinha tudo para ser perfeito. De repente, senti uma necessidade urgente de sair. Não suportava mais o confinamento entre aquelas paredes, o controle da minha mãe, os fracassos com Sydney e Jill. Eu e Sydney tínhamos ido à Corte em busca de proteção contra nossos inimigos e nos escondemos ali para permanecermos juntos. Ultimamente parecia que estávamos prestes a nos separar justamente por essa situação.

— Preciso sair — falei.

Sydney arregalou os olhos.

— Pra onde?

Passei a mão no cabelo.

— Pra qualquer lugar. Qualquer lugar pra tomar um ar. Qualquer lugar que não seja aqui.

Virei antes que ela pudesse dizer alguma coisa e saí pisando firme pela sala, passando pela minha mãe, que bebia do fornecedor. Ela me lançou um olhar intrigado, mas a ignorei e continuei andando até sair pela porta e atravessar o saguão do prédio de hóspedes. Foi só quando cheguei lá fora e o ar agradável do verão tocou minha pele que parei para avaliar meus atos. Coloquei um chiclete na boca, que era minha estratégia atual para não fumar quando ficava estressado. Observei o prédio atrás de mim, me sentindo culpado e covarde por fugir da briga daquela maneira.

Não se sinta mal, disse tia Tatiana. Casamento é difícil. Foi por isso que nunca casei.

É difícil, concordei. Mas isso não é desculpa para fugir. Preciso voltar. Preciso pedir desculpas. Preciso resolver essa situação.

Você nunca vai resolver essa situação trancado no quarto enquanto Jill está desaparecida, tia Tatiana me avisou.

Dois guardiões passaram por mim bem nessa hora e ouvi um trecho da conversa deles. Mencionavam patrulhas extras para a reunião do conselho que estava acontecendo. Lembrei do comentário da minha mãe mais cedo e tive uma ideia. Comecei a correr na direção contrária do prédio, rumo ao palácio real, torcendo para conseguir chegar a tempo na reunião.

Sei o que fazer, falei para tia Tatiana. Sei como tirar a gente daqui e dar um jeito na minha relação com Sydney. Precisamos de um propósito, de um objetivo. E vou conseguir isso para nós. Preciso conversar com Lissa. Se conseguir fazer com que ela entenda, posso dar um jeito em tudo.

A voz fantasma não respondeu. Ao meu redor, a meia-noite cobriu o mundo com escuridão. Era hora de dormir para os humanos, mas o auge do dia para nós, que seguíamos um horário invertido. A Corte Moroi tinha instalações parecidas com as de uma universidade: cerca de quarenta prédios respeitáveis de tijolinhos, construídos em torno de lindos campos e pátios paisagísticos. Estávamos no ápice de um verão quente e úmido, e tinha muita gente na rua. A maioria estava ocupada demais com as suas coisas para me notar ou se dar conta de quem eu era. Aqueles que notavam me lançavam os mesmos olhares curiosos de sempre.

Eles têm inveja, tia Tatiana declarou.

Não acho que seja isso, disse para ela. Mesmo sabendo que ela não passava de uma ilusão, às vezes era difícil não responder.

Claro que é. O nome Ivashkov sempre inspirou medo e inveja. Eles são todos inferiores e sabem disso. No meu tempo isso nunca teria sido tolerado. Essa rainhazinha de vocês está perdendo o controle das coisas.

Mesmo com os olhares invasivos, gostei do passeio. Realmente não era saudável ficar trancado dentro de casa por tanto tempo, e nunca pensei que admitiria isso. Apesar de o ar estar denso por causa da umidade, me pareceu leve e refrescante, e me peguei desejando que Sydney estivesse ali comigo. Um momento depois, concluí que não seria o ideal. Ela precisava sair depois, quando o sol já tivesse nascido. Essa sim era a hora de os humanos saírem. Seguir nosso horário devia ser tão difícil para ela quanto o isolamento. Fiz uma nota mental para caminhar com ela mais tarde. O sol não era fatal para nós Moroi como era para os Strigoi — os vampiros mortos-vivos do mal —, mas nem sempre era confortável. A maioria dormia ou ficava em casa durante o dia, e Sydney teria menos chances de encontrar alguém se programássemos bem nossa saída.

A ideia me animou e coloquei outro chiclete na boca ao chegar ao palácio real. Por fora parecia igual aos outros prédios, mas, por dentro, era decorado com toda a grandiosidade e opulência que se esperaria da realeza de uma civilização antiga. Os Moroi elegiam seus monarcas dentre doze famílias reais, e retratos enormes dessas figuras ilustres tomavam os corredores, iluminados pela luz dos candelabros resplandecentes. Muita gente andava por lá e, quando cheguei à câmara do conselho, vi que a reunião tinha acabado. As pessoas estavam saindo e, quando entrei, muitos deles também pararam para me encarar. Ouvi murmúrios de “abominação” e “esposa humana”.

Ignorei e mantive o foco no meu verdadeiro objetivo: a frente do salão, onde, diante da plataforma do conselho, estava Vasilisa Dragomir — a “rainhazinha” a que tia Tatiana tinha se referido. Lissa, como eu a chamava, estava em pé, rodeada por guardiões dampiros com terno escuro: guerreiros metade humanos e metade Moroi, cuja raça tinha se originado muito tempo atrás, quando casamentos entre Moroi e humanos não eram motivo de escândalo. Os dampiros não podiam ter filhos entre si, mas, por algum capricho genético, podem gerar descendentes com os Moroi.

Diante dos guarda-costas de Lissa, a imprensa Moroi gritava perguntas que ela respondia do seu jeito calmo. Invoquei um pouco da magia de espírito para checar sua aura. Seu brilho era dourado, indicando que Lissa era uma usuária de espírito assim como eu; mas suas outras cores estavam mais fracas e trêmulas, mostrando que estava incomodada. Liberei a magia enquanto corri até o amontoado de gente e acenei para ela, esperando ser ouvido apesar do barulho.

— Vossa Majestade! Vossa Majestade!

Não sei como, mas ela ouviu minha voz por entre as outras e me chamou adiante quando terminou de responder uma pergunta. Seus guardiões abriram espaço para me deixar passar. Isso atraiu a curiosidade de todos, ainda mais quando viram quem tinha recebido permissão para entrar no espaço pessoal dela. Dava para ver que estavam loucos para saber sobre o que conversávamos, mas os guardiões os mantiveram à distância. De qualquer forma, o salão estava barulhento demais para conseguirem nos ouvir.

— Ora, que surpresa inesperada. Você não poderia ter marcado um horário? — ela me falou com a voz baixa, ainda com o sorriso cênico no rosto. — Teria chamado muito menos atenção.

Dei de ombros.

— Tudo que faço chama atenção ultimamente. Nem percebo mais.

Uma faísca de diversão sincera brilhou em seus olhos. Me senti bem por proporcionar pelo menos isso.

— O que posso fazer por você, Adrian?

— O que eu posso fazer por você? — perguntei, ainda eufórico pela ideia que havia tido. — Eu e Sydney precisamos sair para procurar Jill.

Ela arregalou os olhos e seu sorriso vacilou.

— Deixar vocês saírem? Faz um mês que me imploraram para deixá-los ficar!

— Eu sei, eu sei. E agradeço muito por isso. Mas seus guardiões ainda não encontraram Jill. Você precisa de uma ajuda com habilidades especiais.

— Se me lembro bem — ela disse —, você e Sydney já tentaram usar essas habilidades especiais e não conseguiram nada.

— É exatamente por isso que precisa deixar a gente sair daqui! — exclamei. — Voltar para Palm Springs e...

— Adrian — Lissa me interrompeu —, você está ouvindo o que está falando? Vocês vieram pra cá porque os alquimistas estavam perseguindo vocês. E agora querem voltar pras garras deles?

— Bom, quando você põe nesses termos, não. Pensei que a gente poderia sair disfarçadamente sem que eles notassem e...

— Não — ela voltou a me interromper. — De jeito nenhum. Já tenho coisas demais pra me preocupar sem que vocês sejam capturados pelos alquimistas. Vocês queriam proteção e é o que vou dar. Então não me venha com ideias de sair disfarçadamente que vou mandar vigiar os portões. Vocês dois vão ficar aqui, em segurança.

Em segurança e prestes a enlouquecer, pensei, lembrando do olhar magoado de Sydney.

Querido, tia Tatiana murmurou para mim, você já estava prestes a enlouquecer muito antes disso.

— Tenho bons profissionais à procura de Jill — Lissa continuou quando não respondi. — Rose e Dimitri, por exemplo.

— Por que ainda não a encontraram? E, se alguém quer depor você, por quê...

Não consegui terminar, mas a tristeza nos olhos cor de jade de Lissa me mostrou que ela tinha entendido. Graças a uma lei que ela estava tentando mudar, Lissa precisava ter pelo menos um parente vivo para continuar seu reinado. Para depor a rainha, bastaria simplesmente matar Jill e provar. O fato de nada ter aparecido ainda era uma bênção, mas aumentava o mistério da situação. Por que mais teriam levado Jill?

— Vai pra casa, Adrian — Lissa disse com doçura. — Depois a gente conversa mais, em particular, se você quiser. Quem sabe a gente encontra outras opções?

— Quem sabe... — concordei. Mas não conseguia acreditar de verdade.

Deixei Lissa com seus admiradores e saí em meio à multidão embasbacada, enquanto um humor sombrio e familiar começava a tomar conta de mim. A ideia de falar com Lissa me dera uma esperança momentânea. Quando Sydney e eu tínhamos buscado refúgio, não fazíamos ideia do que estava prestes a acontecer com Jill. Era verdade que Lissa tinha bons profissionais à procura da irmã, além da ajuda relutante da antiga organização da qual Sydney fazia parte, os alquimistas. No entanto, não conseguia evitar a sensação de culpa e a certeza de que, se Sydney e eu estivéssemos lá fora em vez de escondidos, encontraríamos Jill. Alguma coisa que ainda não entendíamos estava acontecendo. Senão os sequestradores de Jill já teriam...

— Ora, ora, ora. Olha só quem decidiu mostrar a carinha covarde.

Parei e pisquei algumas vezes, quase sem saber onde estava. Meus pensamentos giravam tão rápido que já estava no meio do caminho para casa, numa trilha de pedras que cortava caminho entre dois prédios. Um atalho silencioso e fora de mão, perfeito para uma emboscada. Wesley Drozdov, um nobre Moroi que recentemente tinha virado meu arqui-inimigo, bloqueava meu caminho, com vários de seus amigos atrás dele.

— São mais capangas do que de costume, Wes — eu disse, calmamente. — Arranje mais alguns e talvez tenha uma luta justa para...

Um soco atingiu minhas costas, me deixando sem ar e me fazendo cambalear para a frente. Wesley correu na minha direção e me acertou com um gancho de direita antes que eu pudesse reagir. Entendi vagamente, apesar da dor, que o comentário que estava prestes a fazer era verdade: Wesley estava com um grupo porque esse era o único jeito de combater minha magia de espírito. Quando o pé de alguém me atingiu no joelho, fazendo-me cair no chão, percebi que tinha sido mesmo um idiota ao aparecer publicamente. Wesley estava esperando uma oportunidade de se vingar por mágoas antigas, e sua chance havia chegado.

— Qual é o problema? — Wesley perguntou, me dando um chute forte na barriga enquanto eu jazia no chão, tentando levantar. — Sua esposa fornecedora não está aqui pra te salvar?

— É — outra pessoa gritou. — Cadê sua vadia humana?

Não consegui responder por causa da dor. Vieram outros chutes, de mais gente do que consegui contar. Seus rostos alternavam sobre mim, e fiquei espantado ao reconhecer vários deles. Nem todos eram os parceiros habituais de Wesley. Alguns eram pessoas que conhecia, com quem já tinha bebido no passado... pessoas que poderia ter considerado amigas.

Um golpe na minha cabeça fez estrelas dançarem diante dos meus olhos, embaralhando minha visão por um momento. Seus xingamentos se misturaram numa cacofonia ininteligível enquanto eu levava um golpe atrás do outro. Me encolhi de dor, com dificuldade para respirar. De repente, em meio à bagunça, uma voz clara perguntou:

— Que diabos está acontecendo aqui?

Piscando para tentar recuperar o foco, consegui distinguir mãos fortes puxando Wesley e jogando-o contra a parede de um dos prédios ao lado. Foi necessário que mais dois do grupo sofressem o mesmo para que todos percebessem que algo tinha dado muito errado. Começaram a recuar feito o rebanho assustado que eram e o rosto familiar de Eddie Castile surgiu diante de mim.

— Ninguém mais quer ficar? — perguntei com a voz fraca. — Vocês ainda estão em maior número.

O número deles não importava diante de um guardião como Eddie, e eles sabiam disso. Não consegui ver todos fugindo, mas imaginei que tinha sido maravilhoso. Caiu um silêncio e, um momento depois, outra pessoa me ajudou a levantar. Virei para trás e encontrei outro conhecido: Neil Raymond, me apoiando com o braço.

— Consegue andar? — Neil perguntou com um leve sotaque britânico na voz.

Fiz uma careta ao ficar de pé, mas assenti.

— Sim. Primeiro vamos pra casa e depois a gente vê se quebrei alguma coisa. Aliás, obrigado — acrescentei, enquanto Eddie me segurava pelo outro braço e começávamos a andar. — É bom saber que este Moroi em perigo aqui pode contar com cavaleiros tão charmosos para protegê-lo por aí.

Eddie sacudiu a cabeça.

— Coincidência total, na verdade. Por acaso, a gente estava a caminho da sua casa com uma notícia.

Um calafrio percorreu meu corpo e interrompi meus passos mancos.

— Que notícia? — perguntei.

Um sorriso apareceu no rosto de Eddie.

— Relaxa, é uma notícia boa. Eu acho. Só surpreendente. Você e Sydney têm uma visita esperando no portão de entrada. Uma visita humana.

Se não estivesse sentindo tanta dor, meu queixo teria caído. Era mesmo uma visita inesperada. Ao casar comigo e buscar refúgio entre os Moroi, Sydney tinha se isolado de quase todos os seus contatos humanos. Era estranho um deles aparecer, e não poderia ser um alquimista. Um alquimista teria sido mandado embora na mesma hora.

— Quem é? — perguntei.

O sorriso de Eddie se abriu de orelha a orelha.

— Jackie Terwilliger.


2

Sydney

— Ai, Adrian.

Não havia mais nada que pudesse dizer enquanto limpava o sangue e a terra do rosto de Adrian com um pano úmido, afastando os fios rebeldes de seu cabelo castanho. Ele abriu seu sorriso despreocupado e, sabe-se lá como, ainda parecia cheio de energia, apesar de destruído.

— Ei, não fica chateada, Sage. Apanhei mas também bati. — Ele se virou para Neil e disse, num murmúrio fingido: — Certo? Conta pra ela que também bati. Conta que soube me defender.

Neil abriu um sorriso suave, mas a mãe de Adrian falou antes dele.

— Adrian, meu filho, agora não é hora de fazer piadas.

Eu e minha sogra vampira discordávamos muito, mas estávamos de pleno acordo no momento. A nuvem negra da nossa briga de antes ainda pairava sobre nós, e não pude deixar de me sentir um pouco culpada por não ter insistido que ele ficasse. Deveria pelo menos ter falado para ele levar um guardião, já que esse não foi seu primeiro encontro com aqueles encrenqueiros. Normalmente os guardiões só acompanhavam os Moroi no mundo lá fora, onde os Strigoi eram um perigo real. Mas como o resto do povo de Adrian pensava que éramos aberrações da natureza por termos casado, as pessoas estavam se revelando bem agressivas. Tínhamos sofrido muitas ameaças e chacotas, embora nunca violência física. Foi estranho, mas ainda assim um grande golpe de sorte Eddie e Neil o encontrarem.

Eddie correra para o portão de entrada para escoltar a sra. Terwilliger à nossa casa. Estava tão perturbada com o estado de Adrian que mal tinha parado para pensar que motivo teria trazido minha ex-professora de história e mentora mágica à fortaleza real de uma raça secreta de vampiros. Por mais que uma parte de mim temesse que a visita dela não fosse por um bom motivo, não pude deixar de ficar animada com a perspectiva de vê-la. Fazia meses que a gente não se encontrava pessoalmente. Eu amava Adrian e não me importava com Daniella, mas a verdade era que estava louca para interagir com outras pessoas.

— Não quebrei nada — Adrian insistiu. — Acho que nem vou ficar com cicatriz. É uma pena. Acho que uma cicatriz aqui no rosto poderia acentuar muito meus maxilares já perfeitos, além de dar um toque rústico de masculinidade aos meus traços. Não que precise de mais masculinidade...

— Adrian, chega — eu disse, cansada. — Estou feliz que esteja bem. Poderia ter sido muito pior. E você deveria ir ao médico depois disso, só pra garantir.

Pela cara dele, deu para ver que estava prestes a soltar outro comentário sarcástico, mas teve a sensatez de apenas responder:

— Sim, amor.

Ele tentou fazer uma expressão angelical que só fortaleceu minha suspeita de que não seguiria meu conselho. Balancei a cabeça, sorrindo contra a vontade, e dei um beijo na bochecha dele. Adrian. Meu marido. Se um ano atrás alguém me dissesse que estaria casada, teria achado que era piada. Se me dissessem que estaria casada com um vampiro, teria achado loucura. Observando Adrian agora, senti o amor crescer repentinamente dentro de mim, apesar da tensão. Não conseguia mais imaginar minha vida sem ele. Era impossível. Se eu conseguia imaginar uma vida com ele que não envolvesse ficarmos presos num flat com minha sogra enquanto minha antiga organização e o povo dele nos insultavam e tramavam contra nós? Definitivamente. Havia diversos futuros que eu adoraria que tivéssemos, mas essa era a nossa situação até que alguma coisa espetacular acontecesse. Fora dos portões da Corte, minha organização queria me prender. Dentro, o povo de Adrian queria atacá-lo. Pelo menos estávamos seguros no flat. E o mais importante: estávamos juntos.

Uma batida na porta poupou Adrian de qualquer outra repreensão. Daniella abriu e Eddie surgiu diante de nós. Vê-lo me fazia sorrir quase sempre. Em Palm Springs fingíamos ser gêmeos, porque tínhamos o mesmo cabelo loiro-escuro e olhos castanhos. Mas, com o tempo, ele se tornou um verdadeiro irmão para mim. Eu conhecia poucas pessoas com a mesma coragem e lealdade dele. Tinha muito orgulho em chamá-lo de amigo e, por isso, ficava triste ao ver toda a dor que ele sentia por causa do desaparecimento de Jill. Ultimamente ele vivia com um ar atormentado constante e, às vezes, eu tinha medo de que não estivesse se cuidando. Ele quase não se barbeava mais e eu tinha a impressão de que o único motivo por que ainda comia era para manter o treinamento e continuar em forma para quando localizassem os sequestradores de Jill.

Mas minha preocupação com Eddie ficou em segundo plano quando quem o acompanhava entrou no flat. Atravessei a sala correndo e dei um grande abraço nela, que ficou surpresa. A sra. Terwilliger — nunca conseguiria chamá-la de Jackie, mesmo não sendo mais aluna dela — tinha mudado a minha vida em muitos sentidos. Ela havia assumido o papel de me ensinar os segredos de uma arte antiga, substituindo meu pai. Ao contrário dele, nunca me fez sentir mal em relação a mim mesma. Ela me encorajava e me apoiava, me fazendo sentir capaz mesmo que não fosse sempre perfeita. Falávamos por telefone desde que eu me estabelecera na Corte, mas só nesse momento percebi o quanto sentia falta dela.

— Puxa vida — ela disse com uma risadinha, tentando retribuir o abraço. — Não estava esperando essa recepção. — Sua tentativa de abraço ficou meio desengonçada por estar segurando uma sacola numa mão e o que parecia uma pequena caixa para transporte de animais na outra.

— Agora vai me deixar segurar isso? — Eddie insistiu, tirando a caixa da mão dela. Ela cedeu e me deu um abraço de verdade. Ela tinha cheiro de patchuli e incenso, que me lembravam dos antigos dias felizes quando nos encontrávamos para treinar feitiços. Senti lágrimas brotarem nos olhos e logo dei um passo para trás para secá-las.

— Estou feliz que esteja aqui — eu disse, tentando ficar séria de novo. — Surpresa, mas feliz. Não deve ter sido uma viagem fácil.

— O que tenho para contar só poderia ser dito pessoalmente. — Ela ajeitou os óculos e encarou os outros na sala. — Neil, é um prazer vê-lo de novo. E, Adrian, que bom que Sydney finalmente transformou você num homem sério.

Ele sorriu com a brincadeira e apresentou Daniella, que foi educada mas manteve um pouco de distância. Os Moroi como ela, que costumavam viver reclusos na Corte, não tinham muitos amigos humanos. O conceito de humanos usuários de magia era tão esquisito para os Moroi quanto para os alquimistas, mas precisava admitir que Daniella se esforçava para entender tudo isso. Ela podia sempre chegar na hora errada e não entender uma indireta durante tentativas de momentos românticos, mas não tinha como negar que a vida dela também passara por muitas mudanças drásticas no último ano.

— Entra, entra — eu disse, fazendo sinal para a sra. Terwilliger. Recebíamos tão poucas visitas que quase tinha esquecido da hospitalidade básica. — Senta que vou pegar alguma coisa para você beber. Ou comer.

Ela fez que não enquanto me acompanhava até a cozinha. Os outros vieram atrás, exceto Eddie, que ainda estava segurando a caixa de transporte sem saber o que fazer com ela.

— Não preciso de nada — ela disse. — Talvez a gente nem tenha tempo. Na verdade, espero que não seja tarde demais.

As palavras dela me causaram um arrepio, mas, antes que pudesse responder, Eddie pigarreou e levantou a caixa, que, como pude ver, abrigava um gato.

— Hum, a senhora quer que eu faça alguma coisa em especial com a gata?

— Gato — a sra. Terwilliger corrigiu. — E o sr. Bojangles pode ficar esperando aí dentro enquanto conversamos. Além disso, se estiver certa, vamos precisar dele.

Adrian me lançou um olhar confuso ao ouvir isso e dei de ombros, também sem entender.

Nos reunimos em volta da mesa da cozinha. Sentei e Adrian ficou em pé ao meu lado, apoiando as mãos no meu ombro. Pela minha visão periférica enxergava os rubis e o ouro branco de sua aliança cintilando. A sra. Terwilliger sentou à minha frente e tirou uma caixa de madeira decorada da sacola. Era envolta por um desenho floral que parecia talhado à mão. Ela colocou a caixa na mesa e a empurrou na minha direção.

— O que é isso? — perguntei.

— Minha esperança era que você soubesse me dizer — ela falou. — Chegou para mim há algumas semanas. Deixaram na minha porta. No começo pensei que fosse algum presente do Malachi, embora não faça muito o estilo dele.

— Claro — Adrian concordou. — Granadas, coletes militares... esses são os presentes que ele costuma dar. — Malachi Wolfe era um professor de defesa pessoal de sanidade questionável com quem eu e Adrian fizemos um curso e que, inexplicavelmente, tinha conquistado o coração da sra. Terwilliger.

Ela abriu um sorriso rápido com o comentário de Adrian mas não tirou os olhos da caixa ao retomar a fala.

— Logo descobri que a caixa é fechada magicamente. Tentei todo tipo de feitiço de abertura, raros e comuns, sem sorte. Quem quer que tenha feito isso lançou um feitiço extremamente poderoso. Passei as últimas semanas esgotando meus recursos e, no fim, levei para Inez. Lembra dela, não?

— Ela é uma pessoa difícil de esquecer — eu disse, lembrando da respeitável e excêntrica velha feiticeira da Califórnia, que tinha todos os itens da casa decorados com rosas.

— É mesmo. Ela me falou que tinha um encantamento poderoso que poderia funcionar, mas ele falhou porque o feitiço na caixa é direcionado a uma pessoa específica. — A sra. Terwilliger parecia desapontada. — Não tinha me tocado disso. Obviamente, essa pessoa não sou eu. Inez considerou que a pessoa a quem a caixa se destina conseguiria abri-la com relativa facilidade, então concluí que você é a destinatária.

Isso me surpreendeu.

— Mas por que mandariam a caixa para você?

A sra. Terwilliger lançou um olhar irônico.

— Este não é exatamente um endereço fácil para entregar correspondências. Só queria ter descoberto antes. Tomara que o que tenha aí dentro não seja urgente.

Encarei a caixa sob uma nova perspectiva, sentindo ansiedade e medo crescentes.

— O que preciso fazer?

— Abrir — a sra. Terwilliger disse, simplesmente. — Embora aconselharia que os outros dessem um passo para trás.

Daniella obedeceu na hora, mas Adrian e os dampiros continuaram no mesmo lugar.

— Façam o que ela pediu — eu disse.

— E se for uma bomba? — Eddie perguntou.

— Devo conseguir minimizar qualquer dano a Sydney, mas não garanto nada ao resto de vocês — disse a sra. Terwilliger.

— “Devo conseguir”? — Adrian perguntou. — Pode ser o jeito dos alquimistas finalmente chegarem até você.

— Talvez, mas eles não gostam de magia humana. Não acho que recorreriam a isso. — Suspirei. — Por favor, só se afastem. Vou ficar bem.

Não tinha tanta certeza assim, mas, depois de um pouco mais de insistência, os meninos cederam. A sra. Terwilliger pegou uma bolsinha e espalhou um pó amarelo de cheiro forte na mesa. Ela murmurou um feitiço em grego e senti a magia — o meu tipo de magia — arder ao nosso redor. Fazia muito tempo que não sentia isso e fiquei surpresa com a emoção que me causou. Lançado o feitiço de proteção, ela apontou com a cabeça para mim, para me dar coragem.

— Abra, Sydney. Se apenas levantar a tampa não funcionar, tente um feitiço básico de abertura.

Pus a mão na tampa e respirei fundo. Nada aconteceu quando a puxei, mas isso era de se esperar. Mesmo se a sra. Terwilliger estivesse certa sobre o objeto ser direcionado a mim, não significava que seria completamente fácil. Enquanto tentava lembrar as palavras de um feitiço de abertura, perguntas óbvias se repetiam na minha mente: será mesmo para mim? Se sim, de quem? E, mais importante: por quê?

Proferi o feitiço e, embora a caixa tenha continuado igual, ouvimos claramente um estalido. Tentei erguer a tampa de novo e, dessa vez, ela saiu facilmente. Para melhorar, nenhuma bomba explodiu de dentro dela. Depois de um momento de hesitação, os meninos me rodearam para ver o que havia na caixa. Ao observar o interior, vi papéis dobrados e um único fio de cabelo em cima. O peguei com cuidado, trazendo-o para a luz. Era loiro.

— Deve ser seu — disse a sra. Terwilliger. — Para selar um feitiço a uma pessoa específica, precisa de algo que seja parte do destinatário. Cabelo, unha, pele...

Fiz uma careta ao pensar nisso enquanto abria o primeiro papel e tentava não imaginar como alguém teria conseguido um fio de cabelo meu. Era um panfleto de um museu de robôs em Pittsburgh. Teria sido cômico se não fosse pelas palavras arrepiantes escritas na foto de um dos itens expostos no museu, o Raptorbot 2000: VEM BRINCAR, SYDNEY. Perdi o fôlego e ergui os olhos abruptamente. Todos pareciam tão perplexos quanto eu. Não reconheci a letra.

— O que tem no outro papel? — Neil perguntou.

Ele também estava dobrado e era brilhante, como se tivesse sido arrancado de uma revista. À primeira vista, parecia algum tipo de anúncio de viagem. Eu o abri e observei uma foto de uma pousada em Palo Alto.

— O que isso tem a ver com um museu de robôs em Pittsburgh?

A sra. Terwilliger ficou tensa.

— Acho que não é esse lado que você tem que ver.

Virei a folha e fiquei sem ar com o que, ou melhor, com quem eu vi.

Jill.

Tinha quase esquecido desse anúncio. Séculos atrás — pelo menos era o que parecia —, Jill tinha feito alguns poucos trabalhos como modelo para uma estilista de Palm Springs. Eu nunca deveria ter permitido aquilo, sabendo que era uma falha de segurança enorme. A foto que estava encarando tinha sido feita em segredo, contra a minha vontade. Jill estava usando óculos escuros grandes e dourados, e um lenço azul-turquesa amarrado no longo cabelo cacheado. Ela estava com o olhar distante, voltado para um conjunto de palmeiras, e, a menos que a conhecessem bem, seria difícil saber quem era ela. Na verdade, seria difícil para a maioria das pessoas sequer reconhecer que ela era Moroi.

— Que droga é essa? — Eddie perguntou. Ele parecia prestes a arrancar a folha da minha mão. Poucas coisas o faziam perder a calma e a serenidade, mas a segurança de Jill era uma delas.

Balancei a cabeça, incrédula.

— Sei tanto quanto você.

Adrian se debruçou sobre a mesa e pegou a primeira folha.

— Não significa que Jill está sendo mantida em cativeiro num museu de robôs, né? Em Pittsburgh?

— A gente precisa ir — Eddie disse, furioso. Ele virou como se estivesse prestes a sair pela porta naquela mesma hora.

— Eu preciso ir — eu disse, apontando para o panfleto na mão de Adrian. — A caixa era pra mim. Tem até meu nome no bilhete.

— Você não vai sozinha — Eddie retrucou.

— Você não vai a lugar nenhum — Adrian disse. Ele colocou o papel de volta na mesa. — Antes da minha, hum, desavença com Wesley, tive uma conversa com Sua Majestade, que deixou bem claro que não temos permissão para sair da Corte.

Me senti cheia de tristeza e culpa ao encarar a foto de Jill. Jill... Desaparecida havia quase um mês. Esperamos desesperadamente por alguma pista e agora ela tinha vindo até nós. Mas, como a sra. Terwilliger tinha se perguntado: seria tarde demais? O que tinha acontecido enquanto essa caixa esperava por mim?

— Preciso ir — falei. — Não posso ignorar essa caixa. Adrian, você sabe disso.

Nossos olhares se cruzaram. Muitos sentimentos ardiam entre nós. Ele finalmente disse:

— Eu sei.

— Você não acha que Lissa realmente mandaria os seguranças me impedirem à força de sair, acha?

Ele suspirou.

— Não sei. Mas ela argumentou, com razão, que depois de todos os problemas que demos para ela ao ficar aqui seria muito pior se você saísse e fosse capturada pelos alquimistas. A gente poderia tentar sair escondido... mas não ficaria surpreso se estivessem fiscalizando os carros nos portões.

— Pensei que alguma coisa assim poderia acontecer — a sra. Terwilliger disse. Ela já tinha se recuperado do choque e estava retomando sua postura prática, o que eu achava extremamente reconfortante. — E foi por isso que vim preparada. Tenho um jeito de tirar você daqui sem que ninguém perceba, Sydney, se você estiver disposta. — Seu olhar se voltou para Adrian. — Mas receio que só possa ajudar Sydney.

— De jeito nenhum — ele disse, prontamente. — Se ela for, vou também.

— Não — falei devagar. — Ela tem razão.

Ele ergueu a sobrancelha.

— Olha, você corre muito mais riscos do que eu saindo daqui. Não vou deixar você se arriscar enquanto fico aqui em segurança, então não...

— Não é isso — interrompi. Um momento depois, me corrigi. — Quer dizer, quero você em segurança, mas escuta só o que você acabou de dizer. Se eu sair daqui, corro mais riscos porque os alquimistas estão me procurando. Mas eles não estão procurando agora porque acham que estou escondida com você em segurança. E, enquanto continuarem pensando isso, não vão se esforçar muito para me encontrar. Ninguém me vê andando pela Corte, mas veem você quando vai para o fornecimento. Se nós dois desaparecêssemos de repente, os alquimistas poderiam desconfiar que a gente saiu. Mas se as pessoas continuarem vendo você...

Adrian fez uma careta.

— Então vão pensar que você também continua aqui, escondida dos vampiros maus.

— Você me daria cobertura — eu disse, colocando a mão sobre a dele. — Sei que não gosta da ideia, mas ajudaria muito. Vai permitir que eu circule mais livremente por aí e tente entender qual é a relação entre isso e Jill — expliquei, apontando com a cabeça para o panfleto do robô.

Ele levou alguns momentos para responder. Dava para ver que sabia que meu argumento estava certo, mas continuava não gostando da ideia.

— É só que me incomoda pensar em você sozinha lá fora enquanto fico aqui sem fazer nada.

— Ela não vai estar sozinha — Eddie disse. — Não tenho nenhuma missão e não tem ninguém atrás de mim. Posso entrar e sair livremente da Corte.

— Eu também — disse Neil.

— Um de vocês precisa ficar com Adrian — discordei. — Para evitar que o que aconteceu hoje se repita. Neil, pode ser você? Eddie, você vem comigo para dar uma olhada nisso?

Falei como se fosse um pedido, um favor até, mas sabia que não havia nada no mundo que Eddie preferisse fazer agora do que procurar por Jill.

— O negócio é o seguinte — Adrian começou a dizer, depois que os dampiros concordaram —, vou ficar aqui e dar cobertura para você, mas assim que houver um jeito de encontrar vocês sem estragar nosso disfarce, eu vou, hein.

Encarei seus olhos de novo, desejando poder dizer várias coisas para ele. Por exemplo, que sentia muito pela nossa briga de antes, que não estava tentando controlá-lo... Que estava preocupada. Que o amava tanto que só queria o bem dele. Minha esperança era que ele soubesse disso tudo. Naquele momento, tudo que pude fazer com tantas testemunhas foi concordar com a cabeça.

A sra. Terwilliger encarou todos nós.

— Todo mundo já decidiu o papel corajoso que vai assumir? — ela perguntou, brincalhona. Então abriu um sorriso para mim. — Sydney, você não parece muito preocupada em relação a como pretendo tirar você daqui.

Dei de ombros.

— Confio na senhora. Se me diz que tem um jeito, acredito. Qual é o plano?

Depois que ela me falou, um silêncio caiu sobre a sala. Todos a encaramos estupefatos, até Adrian dizer finalmente:

— Puxa. Por essa eu não esperava.

— Acho que ninguém esperava por essa — Eddie admitiu.

A atenção da sra. Terwilliger estava voltada para mim.

— Você topa, Sydney?

Engoli em seco.

— Acho que não existe outra opção. E é melhor a gente não perder tempo.

— Espera — Adrian disse —, posso trocar uma palavrinha a sós com a minha esposa antes da brincadeira começar?

— Claro — disse a sra. Terwilliger, com um gesto teatral.

Adrian me puxou para longe e gritou para os outros:

— Conversem entre si. — Ele me levou até nosso quarto sem dizer nada até fechar a porta. — Sydney, você sabe que isso é loucura, né? E eu não costumo ter essa opinião sobre as coisas.

Abri um sorriso e o puxei para perto de mim.

— Eu sei. Mas nós dois sabemos que não posso deixar de seguir uma pista que pode nos levar até Jill.

Sua expressão ficou mais melancólica.

— Queria poder fazer mais do que só dar cobertura para você — ele disse. — Mas, se é o que precisa ser feito... — Ele suspirou. — O que também parece loucura é você sair daqui depois de passarmos tanto tempo lutando para ficar juntos.

— Sim, mas... — Hesitei, odiando dizer o que veio em seguida: — Não dá pra dizer que era isso que a gente imaginava.

— Como assim? — ele perguntou, mas dava para ver que sabia a resposta.

— Adrian, não tenho dúvidas que amo você e que quero uma vida com você. Mas esta vida em particular... escondidos dos nossos povos, com a sua mãe em cima da gente... Sei lá. Talvez um pouco de espaço seja bom pra nós. Seus olhos verdes se arregalaram.

— Você quer ficar longe de mim?

— Não, claro que não! Mas quero reavaliar as coisas, descobrir como a gente pode conseguir aquela vida que queríamos. — Suspirei. — E, claro, ainda mais que isso...

— Precisamos encontrar Jill — ele completou.

Assenti e encostei a cabeça no peito dele, ouvindo as batidas ritmadas do seu coração. Aquela emoção de antes voltou ao pensar no último ano e em tudo que passamos juntos. Precisáramos manter nossa relação em segredo e, depois que ela foi descoberta, os alquimistas me mantiveram prisioneira e tentaram fazer uma lavagem cerebral em mim para me trazer de volta ao rebanho deles. Todo momento que tinha com Adrian era uma dádiva valiosa, mas desfrutar disso, virar as costas para Jill... bom, isso seria egoísta.

— Encontrar Jill é mais importante do que a nossa relação agora — eu disse.

— Eu sei — ele concordou, me dando um beijo na testa. — E um dos motivos por que te amo é que você não tem dúvida de que precisa fazer isso. E me deixaria fazer o mesmo se fosse ao contrário.

— A gente é assim — eu disse simplesmente.

— Juro que, assim que encontrar uma maneira de sair em segurança sem que ninguém perceba, vou atrás de você. Você não vai estar sozinha.

Toquei meu coração.

— Nunca estou. Sempre sinto você aqui.

Ele encostou os lábios nos meus num longo e maravilhoso beijo, do tipo que mandava ondas de calor até meus dedos do pé e me fez lembrar que havia uma cama logo atrás de nós. Interrompi o beijo antes que nos distraíssemos sem querer.

— Volto logo — eu disse, dando mais um abraço nele. — E, se tudo correr como o planejado, vou trazer Jill.

— Se tudo correr como o planejado — ele rebateu —, vamos receber uma ligação a qualquer minuto dizendo que quem quer que estivesse com Jill a soltou depois que a lei foi alterada e ela está a caminho de casa agora.

Sorri ao ouvir isso, mas era um sorriso triste.

— Seria bom.

Nos beijamos de novo e voltamos para a cozinha. Percebi então que, embora eu e Adrian estivéssemos bem, não tínhamos exatamente esclarecido a briga de antes. Ainda havia muitos problemas a resolver, e o maior deles era seu uso constante da magia de espírito. Tinha perdido a chance e agora só me restava esperar o melhor dele.

Enquanto isso, a sra. Terwilliger já tinha transformado nossa cozinha numa oficina de feitiços. Frascos e sacos de ingredientes estavam sobre a mesa e ela fervia água no fogão. Ela polvilhou alguma coisa na água e o vapor logo assumiu a fragrância de anis-estrelado.

— Ótimo, ótimo — ela disse, quase sem tirar os olhos do recipiente. — Você voltou. Mede duas colheres de chá daquele pó de beterraba pra mim, por favor?

Parei ao lado dela e tive uma breve sensação de déjà-vu. Era fácil sentir que tinha voltado àqueles tempos que praticávamos juntas. Não que fossem tempos muito tranquilos. Aprender magia com ela tinha sido uma tarefa árdua, tanto do ponto de vista físico como mental, e eu sempre tinha outras pressões, como meus problemas com Adrian e com os outros. No entanto, essa lembrança era boa, ainda mais porque eu sentia falta desse tipo de trabalho mágico. Eu ainda praticava, mas raramente lançava algo dessa magnitude aqui na Corte. O feitiço que, segundo ela, faria minha fuga dar certo exigia que trabalhássemos por algumas horas. Adrian e os outros tentaram se distrair da melhor maneira possível. Eddie saiu para buscar uma muda de roupa, já que ninguém sabia exatamente o que iria acontecer em Pittsburgh.

Jill, pensei em silêncio. Por favor, que a gente chegue a esse museu de robôs e encontre Jill lá, vendendo bilhetes de entrada.

Por algum motivo, eu duvidava que seria tão fácil.

Lá pelas quatro da madrugada, eu e a sra. Terwilliger terminamos nosso trabalho. Ainda faltava praticamente metade do dia no horário vampírico, ao qual tinha me acostumado, mas ela estava exibindo sinais de cansaço. Sabia que ela estava louca por um café, mas a cafeína reduzia a eficácia da magia, e ela precisara lançar pequenos feitiços ao longo do trabalho. O último, porém, era meu e, com a aproximação do fim, comecei a questionar o que exatamente estava prestes a fazer.

— Talvez seja mais fácil simplesmente me enfiar no porta-malas — eu disse, segurando uma xícara com a bebida que tínhamos preparado.

— É bem provável que revistem os carros quando vocês saírem — Adrian falou. — Ainda mais o dela. Lissa deixou bem claro que não quer que a gente saia.

Comecei a levar a poção até o lugar onde a sra. Terwilliger estava erguendo um espelho. Uma nova preocupação caiu sobre mim.

— Você acha que ela vai me deixar voltar quando descobrir que saí?

Ninguém tinha uma resposta para isso até a sra. Terwilliger dizer, pragmática:

— A gente sempre pode trazer você de volta do mesmo jeito que estamos tirando você daqui.

Fiz uma careta e encarei a xícara na minha mão, pensando em como me sentiria em relação a isso depois. Na sala, a sra. Terwilliger tinha se adiantado posicionando o espelho grande do quarto de Daniella. Depois ela levou a caixa de transporte de animal de estimação até perto dele e abriu a portinha. Um gato branco com manchas malhadas, o sr. Bojangles, saiu e sentou calmamente em frente ao espelho. Talvez estivesse se admirando.

— Você sabe as palavras? — a sra. Terwilliger perguntou.

Assenti e ajoelhei ao lado do gato. Tinha memorizado o feitiço ao longo da nossa jornada de trabalho.

— Mais alguma coisa que precise saber antes disso acontecer?

— Só lembra de encarar o gato depois de lançar o feitiço — a sra. Terwilliger falou.

Me virei para os outros uma última vez.

— Vejo vocês em breve, acho.

— Boa sorte — disse Neil.

Adrian me encarou por um longo momento, transmitindo um milhão de mensagens sem dizer nada. Senti um nó na garganta quando a sensação de antes retornou. Nós tínhamos lutado tanto para chegar até ali e lá estava eu indo embora. Não indo embora, disse a mim mesma. Indo salvar Jill. O que eu e Adrian tínhamos conversado antes era verdade. Nós nos amávamos, mas não éramos egoístas a ponto de simplesmente virar as costas para uma amiga.

Abri um pequeno sorriso para ele e então bebi a poção. Tinha um gosto levemente apimentado, não exatamente desagradável, mas também não seria algo que beberia por prazer. Quando esvaziei a xícara, a deixei de lado e me concentrei no espelho, particularmente no reflexo do gato. O sr. Bojangles ainda estava sentado calmamente e imaginei que a sra. Terwilliger havia escolhido esse gato em particular por causa da personalidade tranquila. Invoquei a magia dentro de mim, ignorando o resto do mundo e me concentrando apenas no feitiço. Murmurei as palavras em latim, ainda encarando o gato. Além de esforço físico, o feitiço exigia muito do meu emocional e, quando terminei de falar e a magia começou a fazer efeito, me senti exausta.

Meus olhos estavam no gato, mas, aos poucos, minha percepção dele foi mudando. Na verdade, minha percepção mudou completamente. Não enxergava mais o tom laranja do gato, ele estava cinza. O desenho de sua pelagem se acentuou de repente. Notei mais nuances e detalhes nas manchas malhadas. Além disso, o ambiente parecia incrivelmente claro, como se as luzes tivessem sido acesas. Pisquei algumas vezes para tentar acalmar essa sensação e notei que estava ficando cada vez mais perto do chão. Alguma coisa caiu sobre minha cabeça, ocultando minha visão, e me sacudi para sair de debaixo dela. Era minha camisa. Ao encarar o espelho de novo, me vi de frente ao reflexo de dois gatos.

Um deles era eu.

— Caramba.

Não reconheci a voz de Adrian na hora. Ainda era humana o bastante para entender a linguagem, mas minhas novas orelhas processavam os sons de uma maneira completamente diferente. Ouvia melhor com elas, e os barulhos comuns de antes ficaram mais altos. Tive pouco tempo para ponderar sobre isso pois duas mãos de repente me ergueram do chão e me enfiaram na caixa de transporte. A porta se fechou.

— Melhor não arriscar confundir os dois — a sra. Terwilliger disse.

— Onde você vai botar o outro? — perguntou Daniella.

— Onde você quiser — disse a sra. Terwilliger. — Não posso levá-lo comigo. Os guardas me viram entrar com um gato. Precisam me ver sair com um só.

— O quê? — A voz da minha sogra soou ainda mais aguda nos meus ouvidos. — Essa criatura vai ficar? — Fazia sentido. Sua nora se transformar num bicho? Sem problema. Ter que cuidar de um gato? Ataque histérico.

— Vou buscar uma caixa de areia e ração de gato para vocês — Neil disse, prestativo.

Do outro lado da grade de metal da minha caixa, surgiu a cara de Adrian de repente, me encarando.

— E aí, gatinha? Tudo bem aí dentro?

Por força do hábito, tentei responder, mas tudo que saiu foi um meio miado.

O mundo começou a girar quando levantaram a caixa no ar, me obrigando a tentar ficar de pé ainda sem estar acostumada com meus novos sentidos.

— Não temos tempo pra papo furado — disse a sra. Terwilliger. — Precisamos ir.

Adrian deve tê-la seguido, porque seu rosto apareceu de novo na portinha.

— Toma cuidado, Sage. Te amo.

A sra. Terwilliger e Eddie se despediram e seguiram para a porta. Atravessamos o prédio e saímos. Sabia que ainda era noite por ter olhado no relógio antes, mas o mundo que enxergava pelas aberturas na caixa parecia bem diferente daquele com que estava acostumada. Os postes de luz espalhados iluminavam ainda mais a escuridão para minha visão aperfeiçoada e, mesmo não reconhecendo todo o espectro de cores, conseguia enxergar muito além do que meus olhos humanos permitiriam. O feitiço ia durar por volta de uma hora, mas meus acompanhantes mantiveram um ritmo bom, atravessando rapidamente os terrenos da Corte até o estacionamento de visitantes.

Lá, a sra. Terwilliger pediu o carro alugado com que tinha entrado e colocou minha caixa de transporte no banco de trás. Não conseguia ver muito bem o que havia ao nosso redor, mas ainda podia ouvir tudo. No portão principal, guardiões questionaram a sra. Terwilliger sobre sua visita, querendo saber por que Eddie estava com ela.

— Estou de licença agora — ele respondeu em um tom enérgico, mas não na defensiva. — Tenho assuntos pessoais para tratar fora da Corte e ela me ofereceu uma carona.

— Sei que as estradas por aqui são meio perigosas à noite — acrescentou a sra. Terwilliger. — Então é bom ter companhia.

— É só esperar que o sol vai nascer em menos de uma hora — disse o guardião.

— Não tenho tempo — ela respondeu. — Tenho que pegar um voo.

Como Adrian tinha previsto, os guardiões revistaram o carro minuciosamente, e ouvi um deles murmurar para o outro:

— Verifique se não há nenhum passageiro clandestino.

Minha ansiedade aumentou e tive uma sensação estranha de bater o rabo de um lado para o outro.

Um rosto dampiro apareceu na minha frente e fez uns estalos com a língua.

— Oi, gatinho.

Não respondi, com medo de soltar um miado agressivo.

Os guardiões finalmente nos liberaram e, logo depois, estávamos na estrada, livres do lugar que, ao mesmo tempo, tinha sido meu refúgio e minha prisão no último mês. A sra. Terwilliger dirigiu por mais meia hora para ficarmos longe o suficiente da Corte, e então parou o carro no acostamento de uma rodovia rural. Depois de estacionar, abriu a caixa no banco traseiro e colocou uma pilha de roupas ao meu lado. Atrás dela, pude discernir vagamente o céu se iluminando.

— Prontinho — ela disse, voltando para o banco da frente. — Acho que devia ter dito antes... mas é muito mais fácil entrar no feitiço do que sair.


3

Adrian

Depois da partida de Sydney, os minutos pareciam levar horas para passar. Fiquei andando no nosso pequeno flat de um lado para o outro, com o coração apertado, me preparando para o pior. Temia que a qualquer segundo receberia a notícia de que o plano tinha dado errado e que os guardiões tinham interceptado Sydney tentando fugir da Corte.

— Meu filho, você precisa fazer isso? — minha mãe perguntou finalmente. — Está deixando os bichos agitados.

Parei e me virei para o chão, onde o sr. Bojangles encarava desconfiado Pulinho, o dragão encantado que Sydney tinha invocado no começo daquele ano. Pulinho havia se tornado uma espécie de animal de estimação e observava o gato com uma empolgação que obviamente não era recíproca.

— Acho que não sou eu, mãe. Eles só estão...

O toque do meu celular me interrompeu e corri para pegá-lo, assustando tanto o gato como o dragão. Na tela do aparelho, uma mensagem de texto de Eddie clara e sucinta: Saímos da Corte. Está tudo bem.

Mandei de volta: Continuo casado com uma gata?

Sim, veio a resposta, seguida um momento depois por: Mas a sra. T jura que é temporário.

Parte da minha ansiedade diminuiu, mas não completamente. Escrevi: Me avisa quando ela voltar.

Vinte minutos depois, chegou uma nova mensagem, da própria Sydney: De volta à forma humana. Tudo parece normal.

Parece?, perguntei.

Bom, tirando uma vontade estranha de perseguir luzes em movimento, ela respondeu.

Se esse é o pior efeito colateral, por mim tudo bem. Me mantenha informado. Te amo.

Também te miau, ela respondeu. Logo se corrigiu em outra mensagem: Quer dizer, também te amo.

Sorri e guardei o celular, mas ainda não estava nem perto de sentir que tudo corria bem. Não conseguia deixar de lado a sensação de que as coisas não estavam inteiramente bem resolvidas entre mim e Sydney. Isso sem contar os riscos que ela enfrentava. Havia conseguido sair da Corte, mas talvez tivesse de enfrentar todos os perigos que nos levaram a buscar refúgio ali não fazia muito tempo.

Só se eles descobrirem que ela saiu, disse a voz da tia Tatiana num raro momento de ajuda genuína. Enquanto ninguém estiver procurando por ela e ela não for descoberta, vai estar segura. Então não faça besteira.

Certo, concordei. E ninguém vai ter motivos para pensar que ela não está aqui. Ela nunca sai do nosso flat e não recebemos muitas visitas mesmo.

 

 

Naquele mesmo dia, é óbvio que recebemos uma visita.

Felizmente, não era um regimento de guardiões exigindo saber o paradeiro de Sydney. Em vez disso, encontrei Sonya Karp Tanner ao abrir a porta, sorrindo ao me ver. Qualquer alívio que senti ao vê-la foi exterminado pela voz nervosa de tia Tatiana:

Não baixa a guarda de jeito nenhum!, ela exclamou.

Sonya é nossa amiga, respondi em silêncio.

Tia Tatiana discordou. Não importa. Ninguém pode saber que Sydney saiu, por mais que você pense que Sonya seja sua amiga. Basta um escorregão, não importam as boas intenções. Quanto menos gente souber um segredo, melhor.

Com uma pontada de tristeza, percebi que ela tinha razão. Enquanto conversava mentalmente com o fantasma, a expressão simpática de Sonya deu lugar a outra de estranheza.

— Você está bem, Adrian? — Sonya perguntou.

— Sim, sim — respondi, convidando-a para entrar. — Só estou cansado. Tive uma manhã meio difícil. — Apontei vagamente para o meu rosto, que ainda carregava os sinais da briga com Wesley e seu bando.

Como esperava, consegui desviar a atenção de Sonya. Seu rosto se encheu de preocupação.

— O que aconteceu?

— Ah, o de sempre. Alguns idiotas com inveja por eu ter casado com a humana mais bonita do pedaço.

— Onde ela está? — Sonya perguntou, observando o flat vazio. — E a sua mãe?

— Minha mãe foi dormir — respondi. — E Sydney... saiu pra dar uma volta.

O olhar penetrante de Sonya se voltou para mim.

— Ela saiu depois de você ter sido atacado hoje de manhã?

— Bom, já é de dia, então não tem tanto risco. E... Neil foi com ela. — Quase falei Eddie, mas não tinha certeza se Sonya sabia que ele saíra da Corte. Conhecendo minha sorte, Neil poderia aparecer sem avisar a qualquer instante e acabar com a minha mentira. — Ela precisava tomar um pouco de ar — acrescentei, notando a expressão cética de Sonya. — Ficar enfurnada aqui dentro tem feito mal pra ela. — Pelo menos isso não era mentira.

Sonya continuou me encarando por mais um tempo antes de finalmente mudar de assunto. Ela provavelmente conseguia ver pela minha aura e pela minha linguagem corporal que não estava sendo inteiramente honesto, mas era improvável que pudesse adivinhar a verdade.

— De qualquer forma, foi você que vim ver — Sonya disse. — Preciso conversar sobre um assunto com você. Ou melhor, sobre uma pessoa.

Sentei à mesa da cozinha e fiz sinal para ela sentar também. Conversar sobre alguém? Por mim tudo bem, desde que não fosse sobre Sydney.

— Sobre quem? — perguntei.

Sonya entrelaçou os dedos e respirou fundo.

— Charlotte Sinclair.

Fechei a cara. Charlotte podia não ser um assunto tão problemático quanto a situação de Sydney no momento, mas definitivamente não seria uma conversa agradável. Ela era uma usuária de espírito assim como eu. Fiquei bem amigo dela quando Sydney estava em cativeiro. Infelizmente, Charlotte queria ser uma amiga muito mais íntima e estava interpretando as coisas errado. Ela reagira mal à minha rejeição e pior ainda quando descobriu que eu tinha casado com uma humana. Nas raras ocasiões em que cruzara com ela desde meu retorno à Corte, sempre me lembrava da expressão “se um olhar matasse...”.

— O que tem a Charlotte? — perguntei, desconfiado. — Ela ainda está trabalhando pra você?

Sonya era a líder de um projeto que tinha como objetivo usar o espírito para impedir que as pessoas fossem transformadas em Strigoi. Charlotte tinha ajudado por acidente no início do projeto quando restaurou a irmã, Olive, que havia sido transformada em Strigoi. Com vários de nós trabalhando juntos, tínhamos conseguido transferir essa magia de espírito para o sangue de Neil, criando uma vacina eficaz capaz de protegê-lo contra uma transformação forçada. O triunfo de Sonya, porém, teve vida curta, pois ela não conseguiu repetir o efeito em mais ninguém. Mas ainda trabalhava incansavelmente para atingir sua meta.

— Tecnicamente sim, mas faz tempo que não faz nada de significativo. — A expressão de Sonya se agravou. — Charlotte anda meio... desligada ultimamente.

Não consegui conter uma risadinha com isso.

— Somos usuários de espírito. Somos todos meios desligados.

Sonya não retribuiu o sorriso.

— Não desse jeito. Se você a visse... bom, você entenderia. Ontem falei para ela voltar pra casa porque não estava falando coisa com coisa. Parecia que não dormia havia semanas. A única usuária de espírito que já vi num estado tão ruim foi... bom, Avery Lazar.

Isso me pegou de surpresa. Avery estava internada na unidade psiquiátrica de uma prisão Moroi.

— Avery usava quantidades absurdas de espírito — falei para ela. — Tipo, absurdas. E o tempo todo. — Trazer Jill de volta à vida tinha me afetado profundamente, drenando meu espírito por um tempo, mas aquilo só aconteceu uma vez. Avery havia tentado diversas façanhas altamente poderosas várias vezes. Quando sua mente não aguentou mais, acabou naquele estado. — Charlotte teria que fazer magias muito poderosas para acabar daquele jeito.

— É exatamente disso que tenho medo — Sonya falou, com a expressão carregada.

Levei um susto, recordando de Avery.

— Que ela esteja tentando forjar parceiros de laço com beijos das sombras?

— Não, não isso... mas algo que exija tanto poder quanto e esteja sendo feito regularmente. Sempre que tento tirar uma explicação, ela foge do assunto ou começa a falar coisas sem sentido. — Sonya suspirou. — Estou preocupada, Adrian. Ela precisa de ajuda, mas se recusa a falar comigo.

O silêncio incisivo cresceu, e finalmente entendi aonde ela queria chegar.

— Quê? Você acha que ela falaria comigo?

Sonya deu de ombros.

— Não sei pra quem mais pedir.

— Bom, pra mim é que não! — exclamei. — Ela ficou furiosa quando dei um fora nela. Se tem um problema e precisa de ajuda, não é a mim que ela vai recorrer. Você precisa pedir pra outra pessoa.

— Não existe outra pessoa! A irmã dela continua desaparecida. E você ficou sabendo que Charlotte largou o emprego no escritório? Quer dizer... na verdade, acho que foi demitida, mas é difícil tirar uma resposta dela. Até onde sei, eu e você somos as únicas pessoas que se importam com o que ela está fazendo consigo mesma... e a gente precisa ajudar de alguma forma.

— Ela não vai falar comigo — insisti.

Sonya passou a mão no cabelo ruivo-escuro.

— Você pode se surpreender. Mesmo que as coisas tenham... dado errado entre vocês, estava na cara que ela ainda sentia uma conexão. Por favor, Adrian. Por favor, só tenta. Se ela mandar você embora, tudo bem, que seja. Não vou pedir de novo.

Fiz menção de recusar mais uma vez, mas me contive ao observar Sonya com mais atenção. Ela estava realmente perturbada por essa história. Dava para notar na sua voz e nos seus olhos... até nas cores da sua aura. Sabia que Sonya não fazia o tipo que exagerava. Também sabia que não pediria isso pra mim se não estivesse preocupada de verdade, ainda mais porque foi ela quem me aconselhou a ficar longe de Charlotte para protegê-la.

Vi que horas eram. Estava ficando tarde para os nossos horários. A maioria dos Moroi estava indo dormir.

— Tudo bem se esperar pra ir à casa dela amanhã?

Sonya pensou e fez que sim.

— Acho que não tem problema. Não acho que ela vá dormir tão cedo, mas é melhor você esperar Sydney voltar para Neil ir com você.

Quase falei que era Eddie que estava com Sydney, não Neil, mas logo lembrei da história que tinha inventado. Precisaria entrar em contato com Neil para garantir que ele confirmasse o que falei. Se não tomasse cuidado, as coisas poderiam sair do controle muito rápido. Era por isso que eu odiava mentir: raramente a história continuava simples.

— Por mim tudo bem — falei, levantando junto com Sonya. — Depois te conto como foi.

— Obrigada. Sei que não é... — Ela se interrompeu quando o sr. Bojangles passou correndo pela cozinha enquanto Pulinho corria atrás. Sonya virou para mim, espantada. — Quando vocês arrumaram um gato?

— Hum, hoje, na verdade. Jackie Terwilliger, a antiga professora de Sydney, sabe? Deixou aqui quando veio nos visitar.

Essa era obviamente uma novidade para Sonya.

— Ela veio aqui? Na Corte? Quanto tempo ela ficou?

— Não muito — disse, já arrependido de ter mencionado o nome dela. — Só veio saber como Sydney estava.

— É um esforço e tanto só para saber como alguém está. Um telefonema seria mais simples.

Rezei para que estivesse parecendo inocente.

— É, mas aí ela não poderia ter dado o gato pra gente. Presente de casamento atrasado.

— Adrian — Sonya começou, usando o tom que devia usar para repreender os alunos quando era professora de biologia do ensino médio —, o que você não está me contando?

— Nada, nada — eu disse, levando-a até a porta. — Relaxa, está tudo bem com a gente. A única coisa com a qual você precisa se preocupar é quão rápido Charlotte vai me mandar catar coquinho.

— Adrian...

— Está tudo bem — eu disse, alegremente. Abri a porta para ela. — Obrigado pela visita. Manda um oi pro Mikhail por mim.

Ficou claro pela expressão dela que eu não tinha conseguido convencê-la da minha inocência nem um pouquinho, mas ela não parecia querer me compelir para contar o que realmente estava acontecendo... pelo menos não agora. Nos despedimos e soltei um suspiro aliviado quando ela foi embora, torcendo para que mais ninguém chegasse e me obrigasse a inventar outra desculpa sobre por que Sydney não estava em casa.

Fui dormir logo depois. Uma mensagem de Sydney me acordou ao meio-dia, informando que ela, Eddie e Jackie tinham chegado a Pittsburgh, mas só iriam investigar o museu depois que a noite caísse. Ela me tranquilizou dizendo que estava tudo bem e fiz o mesmo. Achei que seria melhor se ela não soubesse que eu havia aceitado conversar com uma garota possivelmente maluca que ou ainda estava apaixonada por mim ou me desprezava completamente. Sydney já tinha preocupações demais.

Quando a Corte Moroi começou a despertar naquele dia, dei um jeito de chamar Neil para me levar até a casa de Charlotte. Ainda era cedo, então não tinha muita gente na rua, mas achei melhor me precaver. Neil, movido pelo dever, ficou feliz em me ajudar, mas eu sabia que ele tinha segundas intenções ao ir ver Charlotte comigo. Meses antes, ele e a irmã dela, Olive, tinham começado um relacionamento. Ninguém sabia direito até que ponto haviam chegado, mas as coisas terminaram de repente quando Olive sumiu. Desde então, ela fez pouco contato com Charlotte e não falou mais com Neil. Eu duvidava que Charlotte tivesse alguma informação nova sobre o paradeiro da irmã, mas Neil devia ter esperanças.

O sol do fim de verão estava bem acima da linha do horizonte, mesmo que ainda fosse por volta das seis quando chegamos à porta de Charlotte. Ela morava numa região de prédios habitados por empregados (ou ex-empregados, no caso) da Corte, longe das moradias muito mais luxuosas onde nobres como meu pai moravam. Respirei fundo enquanto encarava a porta, criando coragem.

— Não vai ficar mais fácil se você deixar pra depois — Neil falou, nada prestativo.

— Eu sei — respondi.

Decidido, dei duas batidinhas na porta, torcendo em segredo para que Charlotte estivesse dormindo ou fora de casa. Assim estaria sendo sincero se contasse para Sonya que havia tentado e poderia deixar por isso mesmo. Infelizmente, Charlotte abriu a porta quase imediatamente, como se estivesse esperando logo atrás dela.

— Oi, Adrian — ela disse, desconfiada. Voltou os olhos cinza para trás de mim. — Neil.

Ele cumprimentou com um aceno curto de cabeça, mas fiquei boquiaberto por um momento. Charlotte não era de uma família rica ou nobre, mas sua beleza era incrível e sempre se vestia de forma impecável.

Pelo menos antigamente era assim.

Não dava para reconhecer a Charlotte de sempre em nenhum aspecto. Seu cabelo castanho-escuro e encaracolado parecia não ver uma escova havia séculos. Na verdade, também parecia não ser lavado havia um tempo. Uma saia azul amarrotada destoava da camiseta laranja, sobre a qual estava um cardigã cinza do avesso. Um dos pés estava coberto por uma meia branca até o tornozelo. A meia do outro era estampada com listras vermelhas e brancas e chegava até o joelho.

No entanto, não foram as estranhas escolhas de vestuário o que mais me alarmou, mas seu olhar, que comprovou que Sonya não estava exagerando. Olheiras escuras marcavam o rosto de Charlotte, embora houvesse um brilho nos olhos, quase alertas demais, cintilando febris. Era um olhar que tinha visto em usuários de espírito levados ao limite. Era o olhar que tinha visto em Avery Lazar.

Engoli em seco.

— Oi, Charlotte. A gente pode entrar?

Ela cerrou os olhos.

— Pra quê? Pra repetir que a gente não tem nada a ver? Pra falar que a gente nunca tem como dar certo porque não sou humana e, pelo jeito, você só fica com pessoas que podem ser seu jantar?

Comecei a perder a calma ao ouvir o sarcasmo, mas então lembrei que ela não estava bem.

— Desculpa pelo que falei na nossa última conversa. Mesmo. Conheci Sydney muito antes de conhecer você. Mas não é sobre isso que vim conversar. Por favor, a gente pode entrar?

Charlotte me encarou em silêncio por um longo tempo, e aproveitei a oportunidade para invocar o espírito e dar uma olhada na aura dela. Assim como vira na de Lissa no dia anterior, a aura de Charlotte era dourada por ser uma usuária de espírito. Ao contrário do dourado de Lissa, porém, o dourado de Charlotte tinha um brilho fraco, quase pálido. Não ardia como uma chama. As outras cores eram igualmente frágeis, acendendo e apagando.

— Está bem — Charlotte disse, finalmente.

Ela deu um passo para o lado e deixou a gente entrar. O que encontrei lá dentro era quase tão desconcertante quanto a sua aparência. Já tinha ido à casa dela antes, nos tempos em que frequentávamos muitas festas juntos. O apartamento minúsculo parecia mais uma quitinete: tinha um único cômodo que servia de sala e quarto. Apesar de o lugar ser pequeno, Charlotte sempre se esforçava para mantê-lo arrumado e bem decorado. No entanto, assim como o cuidado que ela dedicava à aparência física, essa preocupação parecia coisa do passado.

Pratos com crostas de sujeira cheirando mal estavam empilhados na pia da cozinha, onde algumas moscas zanzavam. Roupas sujas, livros e latas de energético estavam jogados por todo canto: nas mesas, no chão, até em cima da cama. O mais estranho de tudo era uma pilha de revistas no chão ao lado de um monte de papel rasgado.

— Onde você dorme? — perguntei, sem conseguir me conter.

— Não durmo — ela falou, juntando as mãos atrás das costas. — Não durmo. Não tenho tempo. Não posso correr esse risco.

— Você precisa dormir em algum momento — Neil disse, pragmático.

Ela balançou a cabeça, agitada.

— Não posso! Preciso continuar tentando encontrar Olive. Quer dizer, já encontrei. Mais ou menos. Depende de como você vê. Mas ainda não cheguei até ela, sabe? Esse é o problema. Por isso preciso continuar tentando. Por isso não posso dormir. Entendeu?

Não entendi nada, mas Neil perdeu o ar com a menção ao nome de Olive.

— Você a encontrou? Sabe onde ela está?

— Não — Charlotte disse, um pouco irritada. — Acabei de falar isso pra vocês.

Do nada, ela se jogou no chão ao lado da pilha de revistas. Pegou uma revista ao acaso e começou a rasgá-la em pedacinhos, página por página, aumentando o monte de papel rasgado.

— O que está fazendo? — perguntei.

— Pensando — ela respondeu.

— Não, estou falando das revistas.

— Elas me ajudam a pensar — ela explicou.

Eu e Neil nos entreolhamos.

— Charlotte — eu disse, com cuidado —, acho que talvez seria bom você ir ao médico. Eu e Neil podemos levar você, se quiser.

— Não posso — ela declarou, ainda rasgando a revista metodicamente. — Não até entrar em contato com Olive.

Agachei ao lado dela, desejando saber melhor como conversar com uma pessoa tão fora de si. Era de se esperar que eu fosse um especialista nisso.

— Como você está tentando entrar em contato com ela? Por telefone?

— Por sonho — Charlotte disse. — Eu consegui. Algumas vezes. Mas depois ela me bloqueou. Virou o sonho contra mim. Estou tentando ultrapassar o bloqueio, mas não consigo.

Pela cara de Neil, dava para ver que ele estava torcendo para que aquilo fizesse sentido para mim, mas eu estava mais confuso do que nunca. Uma pessoa especialmente resistente poderia dificultar que um usuário de espírito estabelecesse uma conexão via sonho, mas o resto não fazia sentido.

— Olive não é uma usuária de espírito — falei para ela. — Ela não pode fazer nada com o sonho sem a sua permissão. Você tem o controle total.

— Ela pode, ela pode, ela pode. — Charlotte começou a rasgar a revista energicamente. — Toda vez que tento falar com ela, ela coloca algum obstáculo! Coisas que nunca nem pensei. Os pesadelos dela, os meus. Os de outra pessoa. Luto contra eles. Luto. Luto mesmo. Mas isso consome muito espírito. — Ela parou abruptamente de rasgar e encarou o vazio, desolada. — É exaustivo. E, quando consigo passar pelo desafio, ela vai embora. Ela dá um jeito de acordar e não consigo falar com ela. Não consigo perguntar por que foi embora. Você sabe? — Os olhos de Charlotte passaram de mim para Neil. — Vocês sabem por que ela foi embora?

— Não — eu disse, com carinho. — Só sei que você precisa descansar de verdade. — Fiz menção de colocar a mão no seu ombro, mas ela se afastou de repente, com os olhos cheios de fúria.

— Não me atormente — ela falou em voz baixa. — Não venha aqui fingir que é meu amigo.

— Eu sou seu amigo, Charlotte. Independente do que aconteceu entre nós, ou deixou de acontecer, sou seu amigo. Quero ajudar.

Num instante, sua raiva se transformou em desespero.

— Ninguém pode me ajudar. Ninguém... Espera. — De repente, ela agarrou meu braço com uma força surpreendente e incômoda. — Talvez você possa me ajudar. Você é o melhor usuário de espírito para visitar sonhos. Vem comigo da próxima vez que eu for visitar Olive. Assim você vai ver... vai ver como ela está controlando o sonho! Se juntarmos nossos poderes vamos ter força suficiente para impedi-la! Daí a gente fala com ela!

Balancei a cabeça.

— Charlotte, ela não tem como...

Seus dedos apertaram meu braço com mais força.

— Ela consegue, Adrian! Vem comigo que você vai ver.

Pensei bastante antes de responder. Charlotte tinha razão — eu era o usuário de espírito mais habilidoso para visitar sonhos que conhecíamos — e nunca tinha visto um não usuário ser capaz de controlar um sonho. Estava na cara que Charlotte acreditava que era isso que a impedia de entrar em contato com Olive. Não ousei dizer, mas fiquei me perguntando se Charlotte não estava consumindo tanto espírito que seu controle estava fraquejando. Isso explicaria por que ela teria dificuldades de criar uma conexão onírica e, em seu estado alterado, tinha passado a acreditar que Olive estava interferindo.

Sim, mas em que ela está usando tanto espírito, então?, perguntou tia Tatiana.

Era uma boa pergunta. Observando Charlotte e seu estado desalinhado, não fazia a menor ideia. Mesmo se ela tentasse formar uma conexão de sonho de espírito com Olive todo dia, não seria o suficiente para deixar Charlotte naquele estado. Em que mais ela estava usando magia? Ou será que a deterioração mental dela estava sendo acelerada por algo além da magia? Seria o ápice do estresse devido ao desaparecimento de Olive e à minha rejeição?

— Adrian — Neil arriscou —, teria algum jeito de você considerar ajudar?

Sem saber o que eu estava pensando, ele tomou minha demora para responder como uma recusa a oferecer assistência. A verdade era que eu simplesmente não sabia como. E, para falar a verdade, Charlotte precisava de muita ajuda, muito mais do que em sonhos de espírito. Ela precisava de ajuda com a vida dela.

— Certo — eu disse, finalmente. — Vou ajudar você a se conectar com ela num sonho, mas só se você dormir um pouco.

Charlotte começou a fazer que não na hora.

— Não consigo. Estou agitada demais. Preciso continuar procurando. Preciso...

— Você vai dormir um pouco — mandei. — Vou chamar Sonya e ela vai trazer um calmante pra você. Você vai tomar. E vai dormir.

— Depois eu tomo. Agora a gente precisa entrar em contato com Olive. Ela está num horário humano. Vai pra cama daqui a pouco e não posso dormir. Primeiro a gente entra em contato com ela e...

— Não. De jeito nenhum. — Falei usando o tom mais firme e inflexível que consegui. — Se ela esperou tanto, pode continuar esperando. Dorme primeiro. Pelo amor de Deus, Charlotte! Olha só pra você! Você está...

— O quê? O quê? — ela perguntou, com aquele olhar febril de antes. — Uma bagunça? Feia? Não sou boa o bastante pra você?

— Você está exausta. — Suspirei. — Agora, por favor. Me deixa ligar pra Sonya. Você vai dormir hoje e amanhã a gente procura Olive. Quando você estiver descansada vai ter mais chance de, hum, lutar contra o controle dela. — Eu ainda não acreditava nessa história, mas Charlotte sim; e ela finalmente aceitou.

— Está bem — ela disse. — Pode ligar pra Sonya.

Liguei e ela ficou aliviada ao ouvir que eu tinha feito algum progresso, ainda que pequeno. Ela prometeu passar lá para ajudar Charlotte a dormir e prometi que ficaria até ela chegar. Quando desliguei, Charlotte voltou a rasgar papel e começou a cantarolar uma música que parecia “Sweet Caroline”.

— É muito legal da sua parte ajudar Charlotte — Neil murmurou, aproximando-se quando estávamos do outro lado da sala. — Dormir vai ser bom pra ela. E, por motivos egoístas... bom, admito que estou ansioso para que você entre em contato com Olive também. Não que esse seja o principal motivo para fazer isto.

— Ei, já é um bom motivo. Todos são válidos. — Falei com um sorriso, sem querer demonstrar como estava perturbado pelo estado de Charlotte. Porque, para ser sincero, não estava fazendo isso por Neil, Sonya ou mesmo por Charlotte. Ver Charlotte sentada cantarolando no chão, tão visivelmente fora de si... A verdade era que não era tão impossível eu chegar àquele estado um dia. E, se esse dia chegasse, torcia desesperadamente para que alguém também me ajudasse.


4

Sydney

Não recomendo se transformar num gato.

A experiência de ser um felino propriamente dita não é ruim. Mas sair dela? É terrível. Sentia como se estivesse sendo rasgada em duas. Meus ossos e pele se esticaram e contorceram de maneiras estranhas e, quando acabou, me senti quebrada e destruída, como na vez em que tinha caído de uma escada na infância. Uma náusea se instalou no fundo do meu estômago e, em um momento de pânico, achei que ia vomitar. Vômitos forçados tinham sido uma das muitas punições que os alquimistas me impuseram quando estava na reeducação, e só de pensar nisso me vinha uma avalanche de lembranças desagradáveis. Felizmente a sensação passou rápido e voltei a me sentir mais ou menos como eu mesma.

— Tem um lugar ótimo para tomar café a uns trinta quilômetros daqui — disse a sra. Terwilliger depois que eu me vesti e coloquei o cinto de segurança. — Vamos dar uma passadinha lá e comprar gasolina antes de continuar para Pittsburgh.

Concordei, enviei uma mensagem para Adrian e estiquei as pernas, ainda me reacostumando ao meu corpo humano. Ao meu lado estava a caixa de madeira que a sra. Terwilliger havia trazido e a peguei para dar uma olhada mais de perto. Sem o feitiço de trancamento, ela não tinha nada de extraordinário. Desde o desaparecimento de Jill, houve muita especulação sobre quem a teria sequestrado. Quase sempre colocávamos a culpa em algum dissidente Moroi contrário a Lissa. No entanto, isso era uma evidência clara de magia humana, o que meio que virava do avesso todas as nossas hipóteses. Além de mim, não conhecíamos nenhum usuário de magia humana trabalhando com Moroi.

Eu só podia torcer para que esse museu nos desse alguma resposta, por mais improvável que fosse. Dentro da caixa, as palavras no panfleto me encaravam: VEM BRINCAR, SYDNEY.

Depois que tomamos café, seguimos tranquilamente. Só tivemos de diminuir a velocidade numa parte da rodovia em obras. Para falar a verdade, teria sido uma viagem agradável se não estivéssemos tão preocupados e tensos. Estava com receio de que Adrian tomasse alguma atitude irresponsável na Corte. E, claro, estava preocupada com Jill. Eddie também, visivelmente. Em vez de fazer com que se sentisse melhor, essa nova pista só tinha aumentado sua agitação. Ele mal falou com a gente durante o percurso. Chegamos rápido até, e fomos ao Museu de Robôs de Pittsburgh no final da tarde. Uma placa escrita à mão declarava que ele era “mundialmente famoso”, mas nenhum de nós nunca tinha ouvido falar daquele lugar. A julgar pelo estacionamento vazio, muita gente também não.

— Normalmente enche mais nos fins de semana — explicou o atendente na bilheteria. Compramos três ingressos e entramos.

— Entrem, por favor. Entrem, por favor — ressoou um robô parado perto da entrada. Ele não se mexia e estava remendado com fita adesiva em vários lugares. Segurava uma placa longa e retangular que dizia “bem-vindo”.

A maior parte do museu era uma grande galeria que expunha uma seleção variada de robôs, usados tanto nas áreas de entretenimento como em práticas profissionais. A maioria dos itens expostos não se mexia, mas alguns eram animados, como uma pequena linha de montagem mostrando um robô responsável pelo controle de qualidade industrial. Uma esteira transportadora movia canecas de cerâmica por um aparelho que lembrava uma caixa. Ele parava a esteira e examinava cada uma das canecas, acendendo uma luz vermelha ou verde, dependendo se tinha ou não encontrado um defeito.

Uma sala ao lado expunha a história da robótica nas paredes. Incluía origens mitológicas, como autômatos que trabalhavam para o deus grego Hefesto, o que achei um bom toque especial. A maior parte da linha do tempo focava em avanços nos séculos XX e XXI, e terminava com O FUTURO: ???

Encarei os pontos de interrogação por um momento, pensando que eles bem que poderiam simbolizar o meu futuro. O que aconteceria na minha vida? Será que algum dia realizaria meus sonhos antigos de ir à faculdade e viajar pelo mundo? Ou minha vida seria limitada a um flat cercado de vampiros para sempre? Ficar foragida era a minha melhor esperança?

— Sydney?

Ao ouvir a voz da sra. Terwilliger, saí da sala da linha do tempo e voltei à galeria principal. Ela e Eddie estavam parados diante de uma vitrine enorme atrás da qual estava o que parecia ser um dinossauro metálico duas vezes mais alto que eu. Eu o reconheci do panfleto: era ao lado dele que estava escrito meu nome. A sra. Terwilliger encostou a mão no vidro.

— Você sente isso? — ela me perguntou.

Encostei a mão ao lado da dela e esperei. Depois de alguns segundos, senti uma espécie de zumbido de energia. Eddie nos imitou, mas logo sacudiu a cabeça.

— Não sinto nada — ele falou.

— Tem um feitiço no robô — explicou a sra. Terwilliger, dando um passo para trás.

— Você consegue saber alguma coisa sobre ele? — perguntei. Ela era mais sensível do que eu a esse tipo de coisa. Era uma habilidade que exigia prática.

— Não. Preciso abrir a vitrine.

Havia uma pequena fechadura metálica no vidro que provavelmente qualquer uma de nós poderia abrir com um feitiço. Pelo que tinha visto, não havia nenhum outro dispositivo de segurança ou alarme eletrônico nesse ou nos outros itens expostos e, para ser sincera, não era nenhuma surpresa. Tinha a sensação de que aquele lugar não possuía orçamento para nada muito tecnológico, o que era irônico. Nem ar-condicionado, o que tornava o lugar quente e abafado, já que havia apenas algumas poucas janelas teladas para ventilação.

— Ah — disse o atendente. Ele deve ter ficado entediado na bilheteria. — Vi que estão admirando o Raptorbot.

Encarei os dentes metálicos e os olhos vermelhos do robô.

— Não é todo dia que a gente vê um desses — eu disse, sincera.

— Vocês são fãs do filme? — ele perguntou.

— Que filme? — indaguei.

— A vingança do Raptorbot — o atendente respondeu.

— Sim — Eddie disse, quase relutante. Eu e a sra. Terwilliger viramos para ele, surpresas. Ele ficou vermelho. — O que é que tem? É... enfim, é bem incrível. Vi com Micah e Trey.

O atendente concordou, entusiasmado.

— É sobre um cientista cuja mulher está morrendo de uma doença incurável. Pouco antes de ela morrer, ele constrói esse velociraptor robô e consegue transferir a alma dela pra ele. Só que algumas coisas dão errado quando ela inesperadamente sai matando todo mundo.

— Não é tão inesperado assim — discordei. — Quer dizer, por que ele construiu um corpo de dinossauro pra ela? Por que não alguma coisa mais humana? Ou pelo menos um bichinho mais simpático?

— Porque aí o filme não seria tão legal — Eddie disse.

— Mesmo assim, precisa ter uma história plausível... — eu falei.

Um sorriso sarcástico apareceu no rosto de Eddie e, embora o assunto fosse absurdo, me toquei que poucas vezes o vira com uma expressão que não fosse de tristeza desde o sequestro de Jill.

— Acho que não dá pra assistir a um filme chamado A vingança do Raptorbot e esperar uma história plausível — ele falou.

O atendente pareceu ofendido.

— O que você está querendo dizer? É um filme primoroso. Quando sair o segundo, as pessoas vão fazer fila na porta pra ver esta exposição!

— O segundo? — eu e Eddie perguntamos em uníssono.

A sra. Terwilliger limpou a garganta.

— Desculpa interromper, mas até que horas vocês vão ficar abertos hoje?

— Até as cinco — respondeu o atendente, ainda parecendo incomodado porque eu não estava demonstrando o devido respeito ao Raptorbot.

— Obrigada — ela disse. — Acho que já vimos tudo que precisávamos. Foi uma visita adorável. Vamos, Sydney. Eddie.

Sem entender, nós a seguimos até a saída, mas só falamos quando entramos no carro.

— O que está acontecendo? — perguntei.

— Precisamos voltar hoje à noite, depois que tiverem fechado, e abrir aquela vitrine. — Ela falou com um tom formal e controlado; nem parecia que estava sugerindo uma invasão e um arrombamento. — Imaginei que não tinha por que continuar lá dentro e fazer com que ele lembrasse da gente.

— Devemos ter sido os únicos visitantes hoje — comentei. — Ele vai lembrar da gente... Até porque um de nós viu e gostou de A vingança do Raptorbot.

— Ei! — Eddie avisou. — Não julgue o filme sem ter visto.

Fomos até o centro de Pittsburgh e reservamos um hotel, já que era provável que passaríamos a noite na cidade. Tinha vários restaurantes perto dali e encontramos um lugar legal para jantar. Quase dava para fingir que levávamos uma vida normal. Mesmo assim, Eddie estava inquieto. Depois de comer, ele me chamou para dar uma volta e fiquei tentada por um momento. O centro histórico parecia divertido de explorar e era um fim de tarde de verão perfeito, quente e com uma brisa gostosa. Mas pensei nos alquimistas me encontrando e me aprisionando de novo, forçando-me a repetir a retórica deles e sofrer suas torturas. Meu coração ficou apertado e fiz que não com a cabeça.

— Vou esperar no quarto até a gente voltar para o museu.

— Eles não sabem que você está aqui — ele disse, com a voz suave e o olhar atencioso. — E não vou deixar que nenhum deles se aproxime.

— É melhor evitar — insisti, balançando a cabeça.

Quando ficou completamente escuro, voltamos de carro para o museu de robôs. Estacionamos a alguns quarteirões de distância e caminhamos pelo resto do caminho. Grades de metal trancavam todas as portas e janelas, e uma placa avisava que tinha um alarme eletrônico na porta.

— Nenhum sinal de que as janelas tenham alarme também — Eddie disse, depois de inspecionar de perto. — Dá até pra ver que uma delas ainda está aberta atrás da grade de metal, talvez para arejar o lugar. — Mesmo já sendo bem tarde, o calor e a umidade do verão continuavam fortes.

— Não tem câmeras lá dentro e não estou vendo nenhuma aqui fora — a sra. Terwilliger acrescentou.

— Acho que gastaram todo o orçamento com o Raptorbot — falei. — Não que esteja trazendo muitos visitantes.

A descontração de Eddie já tinha passado e ele não respondeu ao meu comentário. Em vez disso, examinou o fecho da grade de metal da janela aberta, com uma expressão séria.

— Se eu puxar com força, talvez consiga arrombar o cadeado.

— Não tem por que desperdiçar sua força — disse a sra. Terwilliger. — Tenho certeza de que tenho um feitiço para abrir isso.

— E não tem por que desperdiçar sua magia — eu disse, dando um passo à frente. Tirei um pequeno frasco do fundo da minha bolsa grande. Minha temporada enfurnada naquele flat na Corte não tinha sido inteiramente desperdiçada. Graças a Abe, nosso amigo de moral duvidosa, eu conseguira acesso a vários ingredientes que iam nos compostos químicos alquimistas mais comuns. Havia passado meu longo confinamento montando um estoque de compostos úteis, incluindo aquele, que dissolvia metal com muita facilidade.

A grade de metal parecia um portãozinho, com um trinco de um dos lados da janela. Na verdade, poderia ser difícil para Eddie arrombar, mas algumas gotas da solução derreteram o trinco com facilidade, destrancando o portão. O vidro da janela estava aberto, e apenas uma tela nos separava do interior do museu. Eddie tirou um canivete do bolso e cortou a tela de forma rápida e eficiente. Franzi a testa involuntariamente.

— Me sinto meio mal por isso — admiti. — Este lugar não está indo muito bem e agora estamos danificando a propriedade deles.

— É pra isso que serve o seguro — disse a sra. Terwilliger. — Além disso, se nos ajudar a encontrar Jill, tenho certeza de que a rainha pode fazer uma doação anônima para o museu.

Com a ajuda de Eddie, nós duas subimos e passamos pela janela, e ele veio logo atrás. Lá dentro, a galeria estava vazia e silenciosa, exatamente como durante o horário comercial. Depois que nossos olhos se acostumaram, o brilho fraco da placa de saída de emergência somado à luz dos postes lá fora iluminavam o suficiente o caminho. Fomos direto até a vitrine do Raptorbot e, dessa vez, a sra. Terwilliger lançou um feitiço de abertura na porta de vidro. Imaginei que poderia haver algum tipo de feitiço que ligasse a fechadura a mim, mas então, ouvimos um estalo claro e a porta se abriu. Dentro da vitrine, o Raptorbot ficava em cima de um grande suporte que também tinha uma porta que dava acesso a um compartimento interno.

— Sem fechadura — eu disse, estendendo o braço para abrir a portinha.

— Sydney, espera... — a sra. Terwilliger começou, mas já era tarde demais. Eu já tinha aberto. Fiquei paralisada, esperando que a coisa toda explodisse. Mas, depois de alguns segundos de tensão, nada aconteceu. Soltei o ar aliviada.

— Desculpa, não pensei direito.

Ela assentiu, ainda incomodada.

— Continuo sentindo que tem algum tipo de magia aqui.

— Talvez seja o objeto aqui dentro — eu disse. Não consegui ver o que havia no compartimento interno e, hesitante, enfiei a mão no espaço escuro, à espera de que um escorpião me picasse. Em vez disso, meus dedos tocaram um grande envelope pardo que puxei devagar. Nele estava escrito meu nome.

— É a mesma letra — observou Eddie.

Assenti.

— Sim, pena que não tem um jeito fácil de rastrear... Vocês estão ouvindo isso?

Deu para ver pela cara de Eddie que ele já tinha identificado o barulho. A sra. Terwilliger demorou um pouco mais para perceber.

— Parece um zumbido... — Ela ergueu os olhos para a cara metálica do Raptorbot. — Daquela coisa.

O zumbido ficou mais e mais alto, e Eddie avançou rápido para se colocar entre nós e a vitrine.

— Afastem-se! — ele gritou bem na hora que a boca do Raptorbot abriu e dezenas de objetos cintilantes saíram voando. Eles vieram na nossa direção com uma velocidade inacreditável, e caí desajeitadamente no chão. Ergui as mãos para me proteger do enxame reluzente, mas alguns tocaram meu rosto ao passar. Gritei ao sentir o toque, que ardeu feito um milhão de cortes de papel.

— O que são essas coisas? — consegui exclamar.

— Fotianas — a sra. Terwilliger respondeu. Ela também tinha caído no chão e cobriu o rosto quando o enxame voltou.

— Foti... o quê? — perguntou Eddie.

— São da mesma dimensão de onde o Pulinho veio, mas bem menos amigáveis. — Ela tirou as mãos da frente do rosto devagar para poder ver as criaturas. — Pense nelas como vaga-lumes mutantes.

Eddie, sempre pronto para improvisar, pegou a placa de boas-vindas do robô da entrada. Empunhando-a como um taco de beisebol, ele a balançou na direção das fotianas que vinham pra cima dele. Como se pensassem juntas, as fotianas se separaram para que a placa atingisse só o ar. Algumas poucas criaturas foram lentas demais e se desintegraram em faíscas ao serem atingidas. Isso nos animou, mas tínhamos muitas outras para derrotar. As coisas ficaram ainda mais complicadas quando o enxame se dividiu em três e partiu contra cada um de nós.

Tinha acabado de levantar, mas, ao ver o grupo vindo até mim em formação de seta, atravessei a sala correndo e consegui me esconder bem a tempo embaixo da esteira transportadora.

— Qual é o melhor jeito de se livrar delas? — gritei para a sra. Terwilliger. — Fogo? — Do outro lado da sala, pude ver Eddie atacando-as, mas a velocidade e a agilidade delas impediam que fizesse algum progresso significativo.

— Não quero incendiar o lugar — ela gritou, tentando desviar quando o enxame que a perseguia passou bem perto. Elas acertaram seu braço, deixando rasgos na manga da blusa e pequenos cortes sangrentos visíveis na pele embaixo do tecido. Assim que conseguiu se distanciar um pouco das fotianas, ergueu as mãos e entoou um feitiço em latim que nunca tinha ouvido antes. Uma centena de cristais cintilantes apareceu no ar diante dela e, com outro comando, ela os mandou voando na direção das fotianas. Onde os cristais encostavam, os “vaga-lumes mutantes” viravam faíscas.

O enxame que me perseguia voou baixo, tentando me expulsar de debaixo da mesa. Enquanto analisava o feitiço da sra. Terwilliger, os afugentei com a mão, que foi atingida no processo. As palavras e a sensação eram muito parecidas com o feitiço de bola de fogo, meu velho amigo, com algumas poucas diferenças. Me dei conta de que era um feitiço de gelo. Lançadas com força suficiente, lascas de gelo poderiam ter o impacto de pequenas lâminas.

Saí de baixo da mesa correndo e tentei me distanciar um pouco do enxame. Atrás de mim, ouvi a sra. Terwilliger recitar o feitiço mais uma vez. Torcendo para ter decorado as palavras certas, tentei a mesma tática, usando movimentos e gestos iguais aos que usaria para o feitiço de bola de fogo. O poder perpassou meu corpo e cristais de gelo foram disparados ao meu comando. Mas minha mira não era tão boa quanto a da sra. Terwilliger. Embora a estrutura do feitiço fosse parecida com a do feitiço de bola de fogo, a sensação dele era diferente e exigia prática. Só consegui derrubar algumas fotianas na primeira vez, mas tive mais sucesso nas tentativas seguintes. Sempre que parava para lançar mais, elas não perdiam a chance de me atacar, causando mais dor e irritação. Eu as afugentava e lançava o feitiço novamente, reduzindo a quantidade aos pouquinhos.

Perdi a noção do tempo até avistar um segundo amontoado de cristais de gelo se juntando ao meu enquanto os atirava contra a revoada de fotianas, já muito menor. Pelo canto do olho vi a sra. Terwilliger fazendo os gestos. Um momento depois, Eddie também avançou a passos largos, ainda empunhando a placa. Os dois haviam derrotado seus respectivos enxames. O meu era o único que faltava e meus amigos me ajudaram a acabar com as restantes em alguns minutos.

Sem o zumbido, caiu um silêncio sinistro no museu. Ficamos parados, respirando com dificuldade e procurando outros sinais de perigo pela penumbra. Os rostos de Eddie e da sra. Terwilliger exibiam cortes e arranhões onde as fotianas haviam encostado e, pela ardência na minha pele, imaginei que estava igual. Mas estávamos vivos e a ameaça parecia derrotada por enquanto.

— Cadê o envelope? — Eddie perguntou por fim.

Corri até onde o tinha deixado cair, perto do Raptorbot, que assistira à batalha de sua vitrine imponente. Os cristais de gelo estavam derretidos em poças no chão e um dos cantos do envelope estava encharcado. Fora isso, não parecia ter outros danos. Eu o levei até meus amigos e mostrei para a sra. Terwilliger antes de abrir.

— Você sente alguma coisa? — perguntei.

— Se tem algum feitiço, está muito bem escondido. — Ela ergueu a mão e uma chama pequena surgiu na sua palma. — Vou estar preparada, por via das dúvidas.

O envelope era grosso e pesado, então não foi uma surpresa tão grande quando encontrei um tijolo dentro dele, embora não fizesse ideia do propósito daquilo. Parecia feito de algum tipo de arenito. Encarei meus companheiros para ver se aquilo fazia sentido para eles, mas os dois pareciam tão desnorteados quanto eu. Coloquei a mão novamente dentro do envelope e tirei um mapa dos montes Ozark.

— Por essa eu não esperava mesmo — comentei, examinando o mapa em busca de alguma pista ou coisa escrita. Não tinha nada.

O rosto de Eddie se encheu de raiva, somada a outro sentimento que eu também estava sentindo: decepção. Não sabia o que descobriríamos ali, mas havia uma parte de mim que esperava um milagre, torcendo para que encontrássemos Jill. Em vez disso, nossa única recompensa por essa viagem eram alguns cortes e mais pistas misteriosas. Chacoalhei o envelope. Parecia vazio.

— O que diabos isso pode significar? — refletiu a sra. Terwilliger, pegando o mapa da minha mão.

— Significa que tem alguém tirando uma com a nossa cara — Eddie resmungou. Ele passou a mão na testa suada, manchando-a de sangue. — Nem sabemos se esta história está mesmo relacionada a Jill. Alguém pode estar só fazendo a gente acreditar que está com ela.

Olhei dentro do envelope e senti um aperto no peito ao ver que ele não estava realmente vazio.

— Acho que não é o caso. — Enfiei a mão e tirei o último item do envelope. Mesmo sob pouca luz, não havia dúvida do que era aquilo: uma mecha de cabelo longo, cacheado e castanho-claro. E também não havia dúvida de a quem ela pertencia. — Quem quer que esteja fazendo isso com certeza está com Jill.


5

Adrian

Precisei de todo o meu autocontrole para não ligar ou mandar mensagens para Sydney pedindo novidades a todo momento. Não fazia ideia do quanto a ausência dela me afetaria. Não era só a saudade, embora isso também fizesse parte da sensação. Tinha me acostumado a acordar com ela toda manhã, vê-la em casa nas refeições e em outros momentos cotidianos. Agora, não só tinha que passar o tempo sem ela, como também precisava me tranquilizar dizendo a mim mesmo que ela não estava nas garras dos alquimistas.

— Não devia ter deixado ela ir sozinha — falei para minha mãe no dia seguinte.

Ela tirou os olhos do ponto-cruz. Era um novo hobby um pouco menos impressionante do que tudo que acontecera nas nossas vidas nos últimos tempos.

— Você se preocupa demais, filho. Se tem alguma coisa que sei sobre minha nora humana é que ela sabe se virar muito bem sozinha.

Parei de andar de um lado para o outro.

— Você acha mesmo?

Um sorriso irônico perpassou os lábios da minha mãe.

— Você está surpreso porque tenho alguma coisa boa para falar sobre ela?

— Sim, um pouco — admiti. Minha mãe nunca falara mal da minha relação com Sydney abertamente. Na verdade, não houvera nenhuma oportunidade. Eu simplesmente aparecera na Corte com uma noiva a tiracolo e ninguém fora capaz de separar o que o estado de Nevada havia unido. Minha mãe não tinha recebido Sydney de braços abertos exatamente, mas foi uma das únicas a ficar do nosso lado. Imaginava que ela não aprovava, só estava fazendo o melhor possível numa situação ruim.

— Estaria mentindo se dissesse que, em algum momento da minha vida, desejei que você casasse com uma humana — ela disse depois de refletir. — Mas sei que o fardo que você carrega não é dos mais leves. Nunca foi. Nunca vai ser. Notei isso quando você era criança. E sempre soube que quem quer que você escolhesse seria alguém especial, capaz de enfrentar essas dificuldades com você. Essa menina, Sydney, ela é assim. Percebi ao longo do último mês. E prefiro que você tenha uma companheira digna e humana a uma Moroi incapaz de aguentar seus fardos.

Meu queixo quase caiu no chão.

— Mãe, acho que essa é a coisa mais sentimental que já ouvi você falar.

— Quieto — ela disse. — E pare de se preocupar. Ela é competente e talentosa. E não está sozinha. Está com um guardião e com aquela humana esquisita.

Abri um pequeno sorriso, mas não tive coragem de dizer à minha mãe que, apesar de todo o talento e competência de Sydney, ela não tinha conseguido fugir dos alquimistas antes. Inclusive, quando foi capturada, Eddie estava com ela. Ele tinha lutado de maneira implacável, como sempre... mas não fora suficiente.

Uma batida na porta me salvou de continuar ruminando essas ideias, mas trouxe novos problemas. Tinha prometido a Charlotte que poderíamos procurar Olive mais tarde, mas ainda faltavam horas para isso. Sonya tinha dito que o calmante que dera à garota duraria um tempo, mas o efeito poderia ter passado e eu encontraria Charlotte à minha porta com aqueles olhos malucos, exigindo que a gente sonhasse naquele instante.

Mas, quando abri a porta, encontrei Rose. Não sabia direito se me sentia aliviado ou desconfiado. Pelo o que soube da última vez, ela estava fora da Corte.

— Ei — eu disse —, tudo certo?

Ela obviamente estava à paisana, vestindo um jeans e uma camiseta casual bem diferentes do terno preto e branco que os guardiões usavam em ocasiões formais. Ela jogou o cabelo castanho-escuro sobre um dos ombros e sorriu.

— Fiquei sabendo que vocês estavam enfurnados aqui, então pensei em dar uma passadinha para dar um oi.

Tentei não fazer careta quando ouvi o “vocês”.

— Pensei que você e Dimitri estivessem procurando Jill — eu disse, torcendo para desviar a atenção de nós.

Parte da animação dela diminuiu.

— A gente estava... mas sem muita sorte. Por isso Lissa mandou a gente voltar para investigar alguns nobres que sempre foram contra ela, caso algum deles tenha sequestrado Jill.

Isso era novidade.

— Você acha provável?

— Acho que não — Rose disse. — E Lissa também sabe que é quase impossível. Mas ela quer esgotar todas as pistas.

Dei um passo para trás.

— Bom, não quero atrasar você...

Seu sorriso voltou.

— Não está atrasando. A gente já trabalhou algumas horas hoje e não tem muito o que fazer até um dos lordes voltar amanhã. Então estamos trabalhando numa coisa mais produtiva. Chama Sydney que mostro pra vocês.

— Ela está, hum... dormindo agora — menti.

— Dormindo? A gente está no meio do dia!

— Nosso dia — corrigi. — Ela ainda está no horário humano.

Como era de se esperar, Rose ficou surpresa.

— Jura? Da última vez que vim, achei que ela estava tão bem-adaptada.

— Ela sente falta do sol — expliquei.

— Ela sai?

— Bom, não... mas é uma necessidade. É um lance humano. — A julgar pela expressão cada vez mais perplexa de Rose, eu realmente não estava fazendo um bom trabalho dando cobertura, então decidi minimizar o estrago. — Escuta, por que não deixo um bilhete pra Sydney e você me leva pra ver? — Imaginei que seria melhor do que Rose se oferecer para esperar Sydney acordar.

— Claro — Rose disse. — Depois a gente mostra pra ela.

Apontei para o corredor.

— Depois de você.

— Você não precisa deixar o bilhete? — ela perguntou, incisiva.

— Ah, verdade. Espera um pouco. — Entrei e deixei Rose esperando no corredor. Depois de ficar parado por mais ou menos meio minuto, abri a porta e saí. — Prontinho.

Rose me levou para uma área da Corte que costumava ser reservada aos guardiões. Era perto do quartel-general deles e de alguns dos seus alojamentos. Mais importante, era onde ficavam os campos de treinamento. Era para um deles que ela estava me levando. Só que, quando chegamos, não foi um grupo de dampiros que encontramos. Foi um grupo de guerreiros Moroi.

— Caramba! — exclamei. Era para ser um elogio.

Séculos atrás, na época em que humanos e Moroi podiam se casar, os Moroi também lutavam muito para se defender. Eles utilizavam a magia elemental como arma e enfrentavam os Strigoi pessoalmente. Ao longo do tempo, os dampiros assumiram as funções de proteção, e usar magia para alguma coisa além de truques virou tabu entre os Moroi. Entre muitas das mudanças sugeridas recentemente na política Moroi, reassumir a tarefa de defesa com recursos mágicos sempre vinha à tona nas discussões. Agora estava vendo isso colocado em prática.

Havia cerca de vinte Moroi divididos em quatro grupos, cada um representado por uma cor diferente. Eles estavam fazendo séries de exercícios com manobras defensivas e combate corpo a corpo que poderiam ter saído diretamente do curso de Malachi Wolfe. Eram auxiliados por alguns guardiões. Um deles reconheci na hora, mesmo de costas para mim, graças à altura e ao sobretudo de couro. Dimitri Belikov se aproximou a passos largos, estendendo a mão para me cumprimentar.

— Adrian — ele disse, simpático. — Não temos um núcleo de espírito ainda. Você gostaria de liderar um? Encontrar alguns recrutas?

A primeira pessoa que me veio à mente foi Charlotte, que já estava correndo o risco de perder a cabeça graças ao uso do espírito. A ideia de levá-la para o combate era preocupante.

Finalmente um papel de liderança para você, comentou tia Tatiana.

Balancei a cabeça.

— Obrigado, mas não. Já estou com muita coisa na cabeça.

— Cadê a Sydney? — ele perguntou. — Achei que ela ia gostar de ver isso.

— Está dormindo — Rose respondeu, prestativa.

Ao perceber a surpresa de Dimitri, expliquei:

— Ela está no horário humano. Mas você tem razão, ela adoraria ver isso. Em outra oportunidade.

— Outra oportunidade — Dimitri concordou. — Olha, estão prestes a começar.

— Começar o quê?

Um guardião que não conhecia tinha acabado de posicionar bonecos de treinamento numa extremidade do campo. Ele foi chamando os grupos e observei admirado enquanto cada um demonstrava como seus elementos poderiam ser fatais. Os usuários de água lançavam jatos potentes nos bonecos, derrubando-os com um só golpe. Usuários de terra faziam o chão tremer e também invocam pedras e o solo. Os usuários de ar lançavam rajadas de vento que teriam acabado logo com um oponente vivo. Alguns conseguiam até erguer objetos com o ar para usar como armas. E os usuários de fogo... bom, sua capacidade destrutiva ficou bem clara quando um dos bonecos foi consumido inteiramente pelas chamas.

— Por favor, só uma demonstração — gritou o guardião, com a voz cansada. — A gente não precisa exterminar nosso estoque de bonecos ainda.

— Foi mal — respondeu uma voz empolgada que reconheci. Christian Ozera estava vestido de vermelho entre os usuários de fogo, e apagou as chamas com um só olhar.

Depois das demonstrações de cada poder elemental, os guerreiros mostraram como poderiam combinar seus elementos. Os usuários de ar ajudaram a congelar a água. Os usuários de terra prendiam os bonecos no chão, permitindo que os de fogo acabassem com tudo. Isso resultou em outro boneco quase destruído quando Christian mais uma vez se empolgou demais com suas chamas. Ele pediu desculpas mais uma vez, sem parecer nem um pouco arrependido.

Finalmente, concluíram a demonstração com um combate corpo a corpo. Eu os vira treinar quando cheguei. Os Moroi não tinham a mesma força física dos dampiros, mas ficou claro que esse grupo tinha treinado muito. Eu é que não gostaria de enfrentar nenhum deles numa briga. Demonstravam golpes que qualquer guardião teria orgulho de realizar, e até mostraram o que fazer durante ataques elementais. Foi uma demonstração impressionante.

— E então? — Christian perguntou em seguida, ao caminhar até nós quando a demonstração terminou. — Acha que podemos convencê-los?

Uma moça loira com roupa azul caminhava ao lado dele e fiquei contente ao ver que Mia Rinaldi era uma líder entre os usuários de água, embora não fosse surpreendente.

— Foi impecável — ela concordou. — Eles não têm como não aprovar o programa agora.

— Do que vocês estão falando? — perguntei.

— Isso foi só um aquecimento — Christian explicou. — Com o perdão do trocadilho. Vamos fazer essa demonstração para o Conselho Moroi na esperança de que eles aprovem um programa para todas as escolas Moroi. Queremos recrutar e treinar mais gente pra causa.

Os olhos de Mia brilhavam.

— A gente também quer aprovação para realizar algumas caçadas independentes a Strigoi.

— Bom, vocês têm meu voto — eu disse, sincero. — Vocês parecem capazes de tirar os guardiões do mercado.

— Sem exagerar — Rose brincou. — Mas você tem razão, eles já avançaram muito. Agora só precisamos convencer o conselho. Lissa já aprovou.

— Claro, né — eu disse. — Porque ela é jovem e progressista. Mas os outros... podem ser mais resistentes a mudanças. Mesmo com uma demonstração tão impressionante.

Rose assentiu, entendendo perfeitamente como até mesmo os Moroi mais bem-intencionados eram apegados à tradição.

— Estava torcendo para que Sydney nos desse alguns argumentos lógicos para usarmos na defesa da causa.

Dei uma risadinha.

— Aposto que ela teria.

— Onde está Sydney, aliás? — Christian perguntou.

— Dormindo — eu e Rose respondemos em uníssono.

Por mais fascinantes que fossem os guerreiros Moroi, fiquei com medo de que surgissem outras perguntas sobre Sydney. Isso e uma olhada no relógio me avisaram que era hora de ir embora para ajudar Charlotte nos sonhos.

— Tenho que voltar — falei. — Valeu por me deixarem ver isso.

— O prazer foi meu — Rose disse, acompanhando-me de volta até a região central da Corte. — A gente marca de novo quando for um bom dia pra Sydney, num horário mais aceitável para os humanos.

Rangi os dentes, odiando as mentiras que tive que contar.

— Vou falar com ela e te aviso.

Percebi que Rose achou estranho eu não convidá-la para entrar no flat. Dei a desculpa de que Sydney tinha o sono leve, e Rose pareceu aceitar. Quando ela finalmente foi embora, notei que a euforia da demonstração e as novas mentiras tinham me deixado agitado, dificultando meu sono quando deitei na cama. Além disso, estávamos no meio do dia vampírico, o que atrapalhava ainda mais. Mas Charlotte dissera que Olive estava num horário humano, então devia estar dormindo agora. Depois de trinta minutos me revirando na cama, recebi uma mensagem de Charlotte dizendo que não estava conseguindo me encontrar nos sonhos.

Estou com dificuldade para dormir, respondi.

Tenho um monte de calmantes da Sonya se precisar, ela respondeu brincando. É só pegar.

Sorri, contente pelo momento de amizade tranquila como eu e Charlotte costumávamos ter. Não, obrigado. Só me dá mais um tempinho.

No fim, consegui relaxar e dormir sem ajuda. Fazia um tempo desde a última vez em que um usuário de espírito me levara a um sonho. Normalmente eu era o criador do sonho, quem dava as coordenadas e convidava os outros a se juntar a mim. O ambiente se materializou ao meu redor, solidificando-se numa paisagem rural. Estava em frente a uma linda casinha branca. Atrás dela, uma cerca circundava um pasto onde cavalos pastavam tranquilamente sob a luz laranja e púrpura do poente. Pássaros cantavam em meio ao crepúsculo e uma brisa quente tocava minha pele.

— A casa do meu pai em Wisconsin — disse uma voz atrás de mim.

Virei e me deparei com Charlotte se aproximando pelo longo gramado do jardim da frente. Ela parecia mil vezes melhor do que a última vez em que a vi, com o cabelo encaracolado preso num coque e um vestido lavanda no corpo esguio. Torci para que isso refletisse uma melhora no mundo real e não fosse simplesmente uma ilusão do sonho.

— É bonita — eu disse, sinceramente. — O tipo de lugar onde as crianças sonham em crescer.

Ela sorriu.

— A gente só podia vir no verão. Uns amigos da família eram nobres, não muito importantes, mas nobres, e eles vinham também com seus guardiões. Senão podia ser muito perigoso ficar aqui. É bem afastado... mas nunca se sabe.

Ela não terminou o raciocínio. Charlotte e Olive eram meias-irmãs por parte de pai, um Moroi. Como ele não era nobre, não recebia a proteção de nenhum guardião. Olive, sendo dampira, tinha se incumbido de protegê-lo, mas fora transformada em Strigoi durante um ataque. A magia de espírito de Charlotte a trouxera de volta. Era uma distinção rara que Olive dividia com poucos outros — Dimitri e Sonya, para ser exato.

— Vamos trazer Olive aqui? — perguntei, sem querer que Charlotte continuasse nos temas desagradáveis do passado. Porém, sua testa franziu ainda mais com a minha pergunta.

— Não é tão simples assim, você vai ver. Quer dizer, talvez seja diferente com você aqui. Tomara.

Ainda não entendia direito qual era o problema, mas achei melhor esperar para ver o que aconteceria. Se Olive estivesse dormindo, seria fácil. Charlotte conseguiria usar o espírito para trazer a dampira a essa casa de campo assim como tinha me trazido. Charlotte ficou parada, encarando o pasto de cavalos, e senti a magia de espírito crescer dentro dela conforme tentava estabelecer um contato onírico com a irmã. Até aí, tudo certo.

Alguns momentos depois, uma forma translúcida começou a se materializar perto de nós. Reconheci a altura mais baixa de Olive, seu cabelo escuro e sua pele morena. Um grande manto ondulava em volta dela, ocultando o corpo mais musculoso que o da irmã. Os olhos de Olive se arregalaram quando se deu conta do que estava acontecendo.

— Não, Charlotte. Por favor. De novo não.

Normalmente, Olive deveria ter se solidificado por completo a essa altura, e estaria ali com a gente. No entanto, o cenário rural começou a se desfazer, perdendo cada vez mais substância. Me virei para Charlotte.

— O que você está fazendo?

Ela suspirou.

— Não estou fazendo nada. É isso que estou tentando falar pra você.

A linda paisagem verde desapareceu, substituída por um terreno cinzento e sombrio, pontilhado por rochas. Uma encosta de montanha se erguia íngreme até um céu cinza com nuvens de tempestade. Clarões de raios ocasionais dançavam entre as nuvens. Não havia sinal de Olive.

— O que é isso? — exclamei. — A gente foi transportado para um filme distópico?

A expressão de Charlotte ficou sinistra.

— A gente está no Havaí.

Observei ao redor.

— Odeio discordar, mas quando penso em Havaí, imagino palmeiras e biquínis.

Charlotte encarou os pés. Suas sandálias se transformaram em tênis. Ela começou a escalar a encosta.

— É um vulcão que a gente visitava nas férias da escola quando criança.

— Não parece tão ruim — eu disse, seguindo-a cauteloso. — Mas por que você mudou? A fazenda era agradável.

— Eu não mudei — ela disse, claramente frustrada. — Foi Olive quem mudou.

— Olive não é uma usuária de espírito — argumentei. — Ela até pode mudar a roupa dela, mas não algo dessa magnitude.

— Não sei como, mas ela tirou o controle de mim. Ela faz isso toda vez. Consigo fazer coisas pequenas. — Ela apontou para os sapatos. — Mas não consigo mandar a gente de volta ou trazer Olive.

— Onde ela está?

— Escondida em algum lugar. — Charlotte observou ao redor e apontou para uma caverna escura na encosta do vulcão. — Provavelmente lá. Isso não existia no vulcão que a gente viu de verdade. Ela deve ter criado.

Minha mente estava a mil enquanto eu caminhava até a caverna com ela. O que ela estava dizendo era impossível. Olive não teria como possuir esse poder no sonho, a menos que Charlotte o concedesse.

— Como? — perguntei. — Como ela está fazendo isso? Você acha que tem alguma coisa a ver com ela ter sido uma Strigoi restaurada com a magia de espírito?

— Acho que não — Charlotte respondeu. — Não a sinto usando o espírito. É quase como se ela estivesse controlando o sonho pela... pela força de vontade.

Estava tentando entender isso quando paramos diante da entrada da caverna.

— E agora?

— Agora — Charlotte respondeu —, ela deve estar escondida lá dentro. Mas, se for como os outros lugares para onde me levou em sonhos, a gente não vai poder simplesmente entrar e...

Um rugido vindo das profundezas da caverna interrompeu suas palavras. Instintivamente, dei um passo para trás.

— Que droga é essa?

Charlotte parecia mais cansada do que amedrontada.

— Não sei. Alguma coisa terrível. Alguma coisa para nos afugentar.

Suas palavras se concretizaram e um enorme monstro humanoide feito de rochas negras saiu desajeitado da caverna, com olhos vermelhos incandescentes. Era uns vinte centímetros mais alto que eu e duas vezes mais largo. Ele parou à nossa frente, bateu no peito e soltou outro rugido.

— Você já viu isso antes? — exclamei.

— Não exatamente — Charlotte respondeu. — Da última vez ela mandou um bando de morcegos. Antes, foi uma criatura parecida com um lobisomem.

— Você que fez esse sonho — insisti, recuando mais quando o monstro rochoso se aproximou. — Se livra dele.

— Não consigo. Pelo menos não com meus pensamentos. A gente precisa fazer do jeito tradicional.

Senti uma onda de magia de espírito surgir nela mais uma vez e um porrete apareceu na sua mão. Ela avançou e atacou o monstro de repente. Nisso, senti mais espírito acender dentro dela. Na verdade, pareceu que a magia de espírito atingira o monstro, não o porrete em si. A criatura urrou de dor, e rachaduras apareceram onde o porrete havia golpeado.

— Você falou que iria me ajudar! — ela gritou, visivelmente incomodada.

Eu tinha falado isso, mas definitivamente não estava esperando que fosse desse jeito. Antes de entrar na briga, porém, invoquei a minha própria magia e tentei mudar o ambiente para algo mais agradável. Mas, ao fazer isso, encontrei uma resistência firme e entendi melhor o que Charlotte queria dizer. Não era exatamente o espírito que estava mantendo o sonho daquele jeito... mas alguma coisa como intenção ou força de vontade, como ela dissera.

Sem conseguir alterar o contexto do sonho, fiz o mesmo que ela e criei um porrete para mim. Eu não era muito violento, e, enquanto atacava o monstro, lembrei a mim mesmo que ele era uma criação onírica, não um ser real. Charlotte já tinha feito bastante progresso e, quando o porrete atingiu o corpo rochoso da criatura, quase caí para trás com o impacto. Meus ossos e dentes tremeram... e não pareceu fazer diferença nenhuma no monstro. Charlotte parou para me encarar.

— Você precisa se encher de espírito na hora de acertar — ela explicou, frustrada. — É assim que se luta.

Ela definitivamente estava colocando isso em prática. Transbordando de magia, ela parecia uma tocha de espírito. Fiquei um tanto espantado com a quantidade que ela estava usando. Não era exatamente tão intensa quanto a explosão necessária para se restaurar um Strigoi ou trazer alguém dos mortos, mas era uma quantidade significativa para portar por um longo período. Relutante, invoquei um pouco do meu — nem de perto tanto quanto o dela — e o usei ao atingir a criatura com meu bastão. Dessa vez também rachei a superfície.

— Mais, mais! — Charlotte gritou.

— Não precisa — eu disse. — Já causa impacto sem tanta magia. Só demora um pouco mais.

— Não temos tempo!

Só entendi o que ela quis dizer depois que nossos esforços coletivos finalmente derrotaram o monstro rochoso, que se desintegrou em pó diante de nós. Charlotte correu caverna adentro. Com a criatura derrotada, ela parecia ter recuperado o controle do sonho. O cenário ao nosso redor mudou e, de repente, estávamos correndo na casa de campo branca em Wisconsin. Mal deu para entrever Olive no canto escuro da sala de estar, com o corpo envolto pelo mesmo manto ondulante de antes.

— Olive! — Charlotte gritou. — Mostra pra mim onde você está! — Mais poder surgiu de dentro dela e a sala começou a tremular. Eu podia sentir um pouco do que ela estava fazendo e fiquei admirado. Ela estava tentando fazer o sonho refletir o que havia em volta de Olive no mundo real, algo que eu nem sabia que era possível.

Mas Olive estava desaparecendo.

— Desculpa, Charlotte. Por favor... por favor, pare de tentar me encontrar. É melhor assim.

— Olive!

Era tarde demais. Olive desapareceu e a sala parou de tremer. O cenário se estabilizou e voltou a parecer apenas uma pequena sala rural, sem nenhuma pista de onde Olive estava. Derrotada, Charlotte se deixou cair numa cadeira de vime, com lágrimas nos olhos.

— Ela deu um jeito de acordar. É o que acontece toda vez. Ela lança algum obstáculo para eu enfrentar e isso me distrai de fazer o sonho mostrar onde ela está. Quando consigo encontrá-la, ela acorda e foge do sonho. — Charlotte voltou o olhar acusador contra mim. — Se a gente tivesse derrotado o monstro mais rápido, ela não teria tempo de acordar! Você deveria ter usado mais espírito!

Por mais que estivesse angustiada, Charlotte parecia relativamente sã no mundo onírico. Como vira no outro dia, porém, sabia que no mundo real era outra história.

— Não acho que seria uma boa ideia — eu disse, devagar. — Acho que usar todo esse espírito tem causado, hum, efeitos negativos em você.

— Se você me ajudasse, me ajudasse de verdade, a gente só precisaria fazer isso uma vez. Se encurralássemos Olive, poderíamos fazer o sonho nos mostrar onde ela está.

— É, em relação a isso... — eu disse, sentando ao lado dela. — Onde você aprendeu a fazer? Levar o sonho a mostrar onde ela está no mundo real? — Isso teria sido incrivelmente útil quando eu estava tentando encontrar Sydney.

Charlotte deu de ombros.

— Dá pra fazer uma pessoa aparecer como ela está na vida real, certo? Estava tentando um dia e canalizei o espírito através dela para fazer com que o sonho simplesmente refletisse o lugar onde ela está.

— Não sei se usaria a palavra “simplesmente” — comentei. — Isso envolveu muito espírito. Será que... foi depois disso que ela começou a controlar o sonho? Você não deu controle a ela sem querer?

Ficou claro que Charlotte nunca tinha pensado nisso antes.

— Eu... eu não sei. Talvez... mas de que outro jeito vou descobrir onde ela está?

— Conversando com ela? — sugeri.

Ela socou o braço da cadeira de vime.

— Eu tentei! Ela não quer conversar. Esse é o único jeito. Tem alguma coisa errada e a gente precisa descobrir o que é. A gente precisa tentar de novo. Só que da próxima vez...

— Epa, epa! Não pode ter próxima vez — avisei. — Você vai se esgotar. Está fazendo isso todo dia há quanto tempo?

Seu olhar ficou distante.

— Sei lá. Meses.

Pestanejei. Não era surpresa que ela estivesse enlouquecendo.

— Chega de espírito.

Ela ergueu o olhar suplicante para mim.

— Eu preciso. Você não entende? Sabe como é não saber o que aconteceu com alguém que você ama?

Jill, pensei e senti uma pontada de dor. Charlotte deve ter visto isso na minha expressão, porque seu rosto se iluminou de repente.

— Me ajuda! Me ajuda, Adrian, e juntos teremos espírito suficiente pra vencer a força dela. Poderei parar de fazer isso todo dia. Vou descobrir o que aconteceu com ela. Por favor.

Pensei nas preocupações de Sonya em relação a Charlotte. Então pensei em Sydney me pedindo para tomar cuidado com o espírito. Já teria problemas suficientes se ela descobrisse essa explosão de uso de espírito. Balancei a cabeça devagar.

— Não posso. Não devia nem ter ajudado hoje.

— Se a gente trabalhar junto, não vai exigir muito de nenhum de nós — Charlotte implorou. — Por favor, me ajuda. Te ajudo em troca. Tem alguma coisa de que você precisa? Me ajuda a encontrar Olive que te ajudo no que for.

Comecei a fazer que não de novo, então parei ao ter uma ideia súbita.

— Não — eu disse, mais para mim mesmo do que para ela. — Não.

Ela levantou em um salto.

— Tem alguma coisa, não tem? Me fala!

Hesitei, sabendo que não devia seguir esse caminho. Mas a oferta de ajuda me fez pensar em uma coisa que queria muito: voltar para perto de Sydney.

— Preciso sair da Corte sem que ninguém fique sabendo. E preciso fazer as pessoas pensarem que ainda estou aqui com a minha mãe.

— Fechado — Charlotte disse. — Posso fazer isso. Tranquilo.

— Charlotte...

— Escuta — Charlotte disse —, posso ajudar você a sair da Corte agora, neste exato minuto. Seria um simples feitiço de compulsão. Depois, onde quer que você estiver, poderá me encontrar num sonho para achar Olive.

— É legal da sua parte querer ajudar — eu disse, cansado —, mas isso não vai convencer as pessoas de que ainda estou aqui.

Um sorriso travesso apareceu em seus lábios.

— Posso fazer isso também. Se sua mãe me deixar ficar com ela. Vou compelir todos que forem te procurar a acreditar que te viram. Vou fazer os funcionários no prédio de hóspedes pensarem que viram você entrando e saindo. Ninguém vai desconfiar de nada. Por favor, Adrian. — Ela apertou minha mão. — Vamos nos ajudar.

Puxei a mão sem querer admitir que estava tentado. Ela estava oferecendo minha única chance de ficar com Sydney, o que eu queria tanto a ponto de considerar ignorar todos os perigos do uso de espírito. Mas como poderia sujeitar qualquer um de nós a mais magia? Ainda mais ela. Seria egoísmo.

— É muito perigoso — falei para ela.

— Não ligo — ela disse, obstinada. — Vou continuar tentando com ou sem a sua ajuda. Olive é tudo pra mim.

E Sydney é tudo pra mim, pensei. Desesperadamente, tentei encontrar um jeito de apaziguar a culpa que sentia por aceitar a ajuda de Charlotte. Ela tinha dito que continuaria procurando por Olive, certo? Bom... se eu a ajudasse a encontrar a irmã, Charlotte usaria menos espírito no fim das contas. Isso era uma coisa boa, certo?

Respirei fundo e a encarei no fundo dos olhos.

— Se a gente tentar isso de novo... eu carrego a maior parte do espírito.

— Mas nós dois...

— Nós dois vamos carregar — eu disse. — E a gente só vai fazer isso mais uma vez, não todo dia. Se eu fizer o trabalho pesado uma única vez, não vai me afetar tanto. Você acrescenta... um pouco. Mas só. Você não pode continuar fazendo mal a si mesma.

Ela fez menção de pegar minha mão de novo, mas desistiu, embora parecesse mais calma.

— Você gosta de mim, não é? Eu sabia. Mesmo estando casado...

— Charlotte — eu disse, com firmeza. — Não é por aí. Gosto de você, mas é Sydney que eu amo. E, se for pra fazermos isso de novo, vamos fazer do meu jeito.

Seus olhos continuaram sonhadores por mais um tempo e então ela assentiu, relutante.

— Do seu jeito — concordou. — E vou ajudar você.

— Estou contando com isso — admiti. — Mas tomara que consiga fazer o que a gente precisa usando o mínimo de espírito possível.

Ela concordou docilmente e então pareceu curiosa.

— Certo... mas você tem certeza que não está preocupado com a sua sanidade durante tudo isso?

Hesitei. Se Sydney estivesse ali, tenho certeza que me falaria que isso tudo era loucura, que estava usando espírito à toa e correndo o risco de fazer mal a mim mesmo. Mas não podia abandonar Charlotte à insanidade, muito menos se realmente houvesse algo de errado com Olive. E definitivamente precisava aproveitar a chance de sair para ajudar Sydney e Jill. Só torcia para estar certo quando disse a Charlotte que um uso único não me faria mal. Abri um sorriso tenso.

— Ei, ainda não estou mostrando nenhum sintoma de insanidade — falei para ela. — Tenho certeza que vou ficar bem.

Eu também, sussurrou tia Tatiana. Tenho certeza que você vai ficar bem.


6

Sydney

Não fazíamos ideia do significado do tijolo de arenito. Não conseguimos encontrar nenhum feitiço nele e não havia nenhum indício do seu papel nesse mistério. A única coisa de que tínhamos certeza era que precisávamos chegar aos montes Ozark, ou pelo menos ao Missouri. Depois que a sra. Terwilliger combinou com a empresa de aluguel de carro para prolongar o contrato, sugeriu que viajássemos até St. Louis e planejássemos um ataque de lá. Senti um frio na barriga na hora.

— Lá não — eu disse rápido. — Tem um centro alquimista em St. Louis. Não me esforcei tanto para voltar direto para as garras deles.

Eddie arqueou a sobrancelha, refletindo.

— Será que isso não faz parte do plano? E se essa caça ao tesouro faz parte de um plano alquimista para fazer você sair e não tem absolutamente nada a ver com Jill?

Fazia sentido. A especulação ficou ainda mais preocupante quando a sra. Terwilliger sugeriu:

— E se tiver a ver com Jill? Afinal, tem a mecha de cabelo que definitivamente parece ser dela. Será que os alquimistas não a capturaram como uma forma de pegar você?

Por um momento, a ideia me pareceu plausível. Jill realmente foi raptada assim que eu e Adrian conseguimos fugir e nos esconder na Corte. Os alquimistas estavam entre as poucas pessoas que sabiam da localização de Jill, então poderiam facilmente ter enviado alguém atrás dela. Considerei a possibilidade e a analisei com o que me restava da lógica alquimista de todos os jeitos possíveis. No fim, balancei a cabeça.

— Acho que não — eu disse. — Eles podiam ter os meios, mas não a motivação. Os alquimistas são culpados de muitas coisas, mas não querem que os Moroi se voltem uns contra os outros, o que aconteceria com a morte de uma princesa real. Também não imagino os alquimistas recorrendo à magia humana, nem mesmo para me capturar. A doutrina deles é completamente contra.

Mesmo não sendo uma armadilha elaborada pelos alquimistas, não queria correr o risco de dar de cara com um deles na hora do almoço em St. Louis. Pensando nisso, decidimos um novo destino. O caminho levou um dia inteiro, mas finalmente paramos em Jefferson City, Missouri, na noite seguinte, deixando St. Louis bem para trás. Ficamos também ligeiramente fora de mão dos Ozark, o que poderia nos proteger de alguém que estivesse esperando nossa chegada. Claro, ainda não sabíamos exatamente aonde estávamos indo. Os Ozark abarcavam uma enorme extensão de terra, e até agora nosso tijolo não tinha dado nenhuma pista.

Saímos para jantar depois de fazer o check-in num hotel, exaustos por passar o dia todo no carro. Era quase meia-noite, mas tínhamos deixado de jantar para chegar mais rápido. Estava mais cansada do que qualquer coisa; a comida não passava de uma formalidade. Do outro lado da mesa, a sra. Terwilliger conteve um bocejo e até mesmo Eddie, apesar de sua eterna vigilância, parecia não ver a hora de dormir. Enquanto esperávamos pela comida, deixamos o tijolo em cima da mesa, encarando-o como se pudéssemos fazer com que nos contasse alguma coisa.

Por fim, tirei os olhos dele e peguei o celular, torcendo para que tivesse alguma resposta de Adrian à mensagem que eu tinha mandado antes. Ao longo do dia, ele tinha se comunicado pouco, o que era estranho, visto que no dia anterior ele mandara atualizações constantes. Sabia que era injusto esperar que ele não fizesse nada além de ficar parado com o celular na mão para falar comigo, mas não conseguia entender a mudança de comportamento. Depois de todos os problemas que enfrentamos no último mês, me pegava em estranhos acessos de paranoia, achando que, depois do choque da minha partida, Adrian tinha descoberto que gostava da liberdade.

A garçonete chegou com nossa comida e enfiei o celular de volta na bolsa. Enquanto servia nossos pratos, ela perdeu o fôlego ao ver o tijolo de arenito.

— Vocês roubaram isso do Ha Ha Tonka?

Nós a encaramos fixamente como se estivesse falando outra língua.

— Quer dizer, é legal se roubaram — ela acrescentou rápido, sem graça pelo nosso silêncio. — É um lugar incrível. Vejo muita gente aqui indo e vindo de lá. Também gostaria de uma lembrancinha.

A sra. Terwilliger foi a primeira a se recuperar.

— Pode repetir esse nome? Ha Ha Wonka?

— Ha Ha Tonka — a menina corrigiu. Ela encarou cada um de nós. — Vocês não foram lá? Esse tijolo é igual aos que compõem as ruínas. Vocês deviam dar uma olhada se estiverem indo para os Ozark.

No instante em que ela foi embora, pesquisei Ha Ha Tonka no celular.

— Não acredito — eu disse. — Tem um castelo em Missouri!

— Você acha que Jill pode estar lá? — Eddie perguntou, com um brilho nos olhos. Já dava para ver que ele estava se imaginando resgatando Jill de uma torre alta, talvez até lutando com um dragão ou dinossauro robô no processo.

— Improvável. A garçonete estava certa quando disse “ruínas”. — Mostrei a foto do Ha Ha Tonka para eles, que possuía uma estrutura impressionante, embora já tivesse vivido dias melhores. Não havia teto e algumas partes das paredes tinham se desfeito, deixando-o todo aberto e fácil de atravessar a pé. A construção era tecnicamente uma mansão, não um castelo, e todo o terreno fora transformado num parque estadual cheio de trilhas e outras atrações naturais. Se Jill estivesse lá, seu cativeiro não seria óbvio... mas, pelo menos, agora tínhamos um destino, porque a garçonete estava certa em relação a uma coisa: nosso tijolo era exatamente igual aos das ruínas.

A nova informação nos animou e quase esquecemos da comida enquanto começávamos a fazer os planos. Segundo o site do parque, ele abria às sete da manhã. Decidimos ir para lá assim que a entrada fosse liberada para fazer um reconhecimento prévio. Se houvesse a chance de ter algum confronto como o que tínhamos enfrentado no museu de robôs, aí sim nos daríamos ao trabalho de entrar escondidos depois que o parque estivesse fechado. Do jeito como essa estranha caça ao tesouro estava se revelando, realmente não havia como saber o que enfrentaríamos ou o que a pessoa misteriosa que ditava as pistas estava esperando de nós.

Na manhã seguinte, acordamos energizados, mesmo depois de apenas cinco horas de sono. Estávamos ansiosos para voltar à estrada e ver que segredos Ha Ha Tonka guardava. O parque ficava a apenas uma hora de distância, mas paramos num posto de gasolina para abastecer antes de voltar à rodovia. Enquanto Eddie tomava conta do abastecimento, segui para a loja de conveniência para garantir que eu e a sra. Terwilliger teríamos mais café para a viagem. Enquanto me aproximava da porta, parei abruptamente ao ver um rosto conhecido lá dentro.

Meu pai.

Ele estava na frente do caixa, tirando dinheiro da carteira. Não podia me ver porque estava de costas para a porta de vidro. Lembrei da ideia do dia anterior e cogitei se esse realmente não era um plano alquimista para me capturar.

Por um momento, fiquei tão paralisada de medo que não consegui reagir. Apesar das dificuldades da minha vida na Corte Moroi no último mês, não havia dúvidas de que ela era milhões de vezes melhor do que o que eu tinha enfrentado na reeducação. Pensava ter conseguido deixar aquela experiência terrível para trás, mas, parada ali, olhando fixamente para as costas do meu pai, senti uma súbita falta de ar. Talvez houvesse cinquenta alquimistas prestes a surgir de todas as direções, arrastando-me de volta a um quarto escuro minúsculo e me sentenciando a uma vida de tortura física e psicológica.

Corre, Sydney, corre!, gritou uma parte do meu cérebro.

Mas não conseguia me mover. Ficava pensando apenas em como os alquimistas tinham me capturado antes, mesmo com Eddie ao meu lado. Que chance eu teria ali, completamente sozinha?

CORRE, falei para mim mesma novamente. Para de se sentir desamparada!

Isso me colocou em movimento. Voltei a respirar e, devagar, fui andando para trás, sem querer que nada chamasse a atenção dele pela visão periférica. Quando não conseguia mais vê-lo, dei meia-volta e me preparei para uma corrida desvairada até o carro.

Em vez disso, dei de cara com minha irmã Zoe.

Ela estava andando na direção da loja de conveniência e meu pânico voltou a disparar quando a encarei. Então, ao examinar sua expressão de espanto, percebi uma coisa: eu era a última pessoa que ela esperava ver ali. Essa não era uma emboscada elaborada. Pelo menos não até eu aparecer ali.

— Zoe — exclamei. — O que você está fazendo aqui?

Seus olhos estavam absurdamente arregalados enquanto tentava se recuperar.

— A gente estava a caminho da sede de St. Louis. Vou começar um estágio lá.

Da última vez que soube, ela estava em Salt Lake City com meu pai. Lembrei do mapa de rodovias da região e percebi que essa não era uma rota direta entre os dois lugares.

— Por que vocês não pegaram a I-70? — perguntei, desconfiada.

— Estava em obras e... — Ela balançou a cabeça, quase com raiva. — O que você está fazendo aqui? Era pra você estar escondida com os Moroi! — Aumentando meu espanto, ela agarrou a manga da minha blusa e começou a me puxar no sentido contrário ao posto. — Você precisa sair daqui!

Ainda mais espanto.

— Você... está me ajudando?

Antes que ela pudesse responder, ouvi a voz de Eddie.

— Sydney?

Foi tudo o que disse, mas quando eu e Zoe nos viramos, pude ver a tensão em seu corpo, pronto para a luta. Ele continuou parado, mas parecia prestes a pular a qualquer instante e jogar Zoe contra a loja se ela tentasse me machucar. Eu realmente esperava que isso não fosse necessário, porque, independentemente do que havia acontecido entre nós, por mais que ela tivesse me traído, ainda era minha irmã. Meu amor por ela continuava igual.

— É verdade? — ela murmurou. — Eles realmente te torturaram na reeducação?

Assenti e lancei outro olhar nervoso para o posto de gasolina.

— De mais formas do que você pode imaginar.

Ela ficou pálida, mas respirou fundo, decidida.

— Então dá o fora daqui. Rápido. Antes que ele saia. Vocês dois.

Fiquei chocada com essa reviravolta no comportamento dela, mas Eddie não precisou ouvir duas vezes. Me pegou pelo braço e quase me arrastou até o carro.

— A gente vai. Agora — ele mandou.

Lancei um último olhar para Zoe antes de Eddie me empurrar para dentro do carro, onde a sra. Terwilliger esperava por nós. Mil emoções passaram pelo rosto de Zoe enquanto saíamos, mas poucas foram as que consegui interpretar. Tristeza. Saudade. Assim que estávamos de volta na estrada, percebi que estava tremendo. Eddie dirigia e checava o retrovisor, apreensivo.

— Nenhum sinal de perseguição — ele disse. — Ela não deve ter visto em que direção fomos para contar pra ele.

— Não... — respondi devagar. — Ela não contou nada pra ele. Ela nos ajudou.

— Sydney — Eddie disse com a voz firme, mas tentando ser gentil —, foi ela que entregou você na primeira vez! Foi ela que começou todo esse pesadelo de reeducação.

— Eu sei, mas...

Lembrei do rosto de Zoe pouco antes, tão sério e conturbado com a ideia de que eu havia sido torturada. Lembrei também do dia em que eu e Adrian chegamos à Corte, quando tínhamos sido arrastados para a sala da rainha e encontrado um grupo de alquimistas que queria me levar de volta. Meu pai e Ian, outro alquimista que conhecíamos, falaram muito sobre os erros que eu cometera e como precisava me afastar dos Moroi. Zoe ficara em silêncio, com uma expressão estarrecida, e eu estava com coisas demais na cabeça para pensar no que ela poderia estar sentindo. Imaginara que ela estava indignada demais com meu casamento para falar, sem mencionar o fato de que meu pai não deixava mais ninguém abrir a boca.

De repente me dei conta que poderia haver um sentimento que não tinha percebido: arrependimento.

— Realmente acho que ela estava tentando ajudar — insisti, sabendo que essas palavras poderiam parecer loucura, ainda mais para Eddie. Ele estava lá na noite em que fui levada, quando fui traída por ela. — Alguma coisa mudou.

Ele não me contradisse mas continuou agitado.

— Será que dá pra gente mudar os planos? Vai que eles resolvem patrulhar a área atrás de nós...

— Não — eu disse, firme, sentindo-me cada vez mais segura das minhas suspeitas. — Ela não vai nos denunciar. Vamos seguir por este caminho até Ha Ha Tonka, a menos que você veja sinais de alguém nos seguindo.

Passei o resto do trajeto em choque, ainda surpresa com a ideia de que Zoe poderia estar tendo dúvidas, se não em relação aos alquimistas, pelo menos em relação ao que fizeram comigo. Quando me recuperei do susto inicial, me peguei com uma emoção que não sentia desde muito tempo: esperança.

As nuvens começaram a ficar mais esparsas quando chegamos ao parque estadual Ha Ha Tonka, e a temperatura do começo da manhã prometia um dia escaldante. Estacionamos perto do centro de visitantes e nos reunimos em volta de um mapa do parque. Embora houvesse grandes gramados e trilhas, decidimos que as ruínas, a que até o parque se referia como “castelo”, deveriam ser nosso ponto de partida, já que nossa pista tinha relação direta com elas.

Não havia ninguém no parque àquela hora da manhã, tirando os funcionários do centro de visitantes. Eu e a sra. Terwilliger demos uma volta pelas ruínas em busca de sinais de magia, lançando alguns feitiços de desvendamento. Eddie ficou perto de nós para nos proteger e explorar, mas confiava que encontraríamos o que quer que estivéssemos à procura. A parte de mim que sempre adorou arte e arquitetura não conseguia deixar de ficar impressionada com o esplendor das ruínas e desejei que Adrian estivesse ali comigo. Não tivemos uma lua de mel oficial depois do casamento, mas sempre falávamos sobre lugares que poderíamos visitar se tivéssemos liberdade. A Itália estava no topo da minha lista, assim como a Grécia. Mas, sinceramente, me contentaria com Missouri se pudéssemos estar juntos, sem nenhuma perseguição.

Depois de algumas horas de busca, estávamos suados e com calor, mas sem resultados. Eddie ainda não se convencera das boas intenções de Zoe e ficou nervoso com a ideia de demorarmos mais; queria voltar para a estrada logo. Quando a hora do almoço se aproximou e consideramos uma pausa, alguma coisa brilhou na minha visão periférica. Virei e ergui os olhos para uma das torres dilapidadas do castelo. Havia algo pequeno e dourado resplandecendo sob o sol. Segurei o braço de Eddie e apontei.

— O que é aquela coisa dourada?

Ele colocou a mão na testa e estreitou os olhos.

— Que coisa dourada?

— Na torre, ali. Logo embaixo da abertura da janela de cima.

Eddie observou de novo e depois baixou a mão.

— Não estou vendo nada.

Chamei a sra. Terwilliger e mostrei para ela.

— Você está vendo aquilo? Embaixo daquela janela na torre mais alta?

— Parece dourado — ela disse prontamente.

Eddie ficou incrédulo e voltou a observar onde indicamos.

— Do que vocês estão falando? Não tem nada lá. — Sua descrença era compreensível: a visão dampírica era superior à humana.

A sra. Terwilliger o estudou por um momento antes de voltar a fixar o olhar na torre.

— É possível que a gente esteja observando alguma coisa que só pode ser vista por pessoas com conhecimentos mágicos. Pode ser o que buscamos.

— Então como chegamos lá? — pensei em voz alta. A torre em si era um pouco mais alta do que um muro de pedra e eu não estava confiante que ela ofereceria bons apoios para escalar. Também ficava numa parte cercada do castelo, à qual os visitantes não deveriam ter acesso. Com mais alguns turistas passeando, além do guarda do parque que passava de vez em quando, sabia que não teria como pular a cerca discretamente.

Eddie nos surpreendeu com uma sugestão que envolvia magia.

— Eu poderia escalar. Vocês têm como fazer um feitiço de invisibilidade?

— Sim — comecei —, mas não vai adiantar muito se você não souber o que está procurando. Queria poder escalar, mas acho que está um pouco acima das minhas capacidades.

— Dá pra nós dois ficarmos invisíveis? — ele perguntou. — Você fica embaixo me falando para onde ir.

A sra. Terwilliger deixou Eddie invisível e lancei o mesmo feitiço sobre mim. Não era um feitiço de invisibilidade muito forte, e qualquer pessoa que estivesse à nossa procura conseguiria nos descobrir. Não lançamos um feitiço mais forte por causa da possibilidade de termos que nos defender depois e porque acreditávamos que nenhum turista ou guarda esperaria que alguém escalasse as paredes da ruína.

Eddie e eu pulamos a cerca com facilidade e nos aproximamos da torre em questão. De perto, tive uma noção melhor do que era o objeto dourado.

— Parece um tijolo — falei para ele.

Ele seguiu meu olhar, ainda sem conseguir enxergar o que eu via.

— Vou acreditar na sua palavra.

A superfície da torre era acidentada e irregular, com poucos pontos para apoiar as mãos além de aberturas deixadas por janelas havia muito desmanchadas. Não teria conseguido escalar, mas Eddie conseguiu habilmente. Os fortes músculos de seu corpo o sustentavam enquanto buscava lugares para apoiar as mãos e os pés durante a subida lenta. Quando chegou à janela, finalmente encontrou um lugar para descansar, apoiando-se no parapeito. Ergueu o braço e colocou a mão num tijolo aleatório.

— E agora?

— Está três tijolos à sua esquerda e dois para cima — gritei.

Ele contou e encostou no tijolo que eu enxergava dourado.

— É este? Está frouxo. Dá pra tirar.

— Esse mesmo.

Fiquei tensa quando ele puxou o tijolo da parede. Não sentia nenhuma armadilha daquela distância, mas era bem possível que toda a estrutura ruísse ao nosso redor quando ele o tirasse. Depois de certo esforço, o tijolo saiu. Eddie e eu congelamos à espera de um enxame de fotianas mortais ou algum outro desastre. Como nada aconteceu, ele lançou o tijolo ao meu lado e começou a descer. Quando chegou ao chão em segurança, saímos correndo da área cercada e levamos o tijolo para a sra. Terwilliger.

Nos amontoamos em volta dele, esperando alguma revelação, mas não conseguimos nada. Lançamos feitiços e tentamos compará-lo ao tijolo que tínhamos trazido de Pittsburgh. Nada ainda. Considerando que talvez houvesse outros tijolos dourados por ali, vasculhamos mais a propriedade, mas não encontramos nada. Com calor e com fome, decidimos fazer uma pausa para o almoço. Fomos a um restaurante alemão e ficamos surpresos ao ver como aquele e os demais estavam lotados.

— Tem uma convenção de pesca na cidade — nosso garçom explicou. — Tomara que consigam um hotel, se estiverem planejando ficar.

Não tínhamos reservado nenhum, na verdade, embora estivéssemos considerando passar a noite para fazer outra busca pelo parque no dia seguinte.

— Talvez a gente possa encontrar algum lugar em uma cidade nas redondezas — pensei em voz alta.

O garçom sorriu.

— Meu tio é dono de um camping que tem vagas. Vocês podem alugar barracas e tudo mais. Sai mais barato que um hotel.

Dinheiro não era um problema, mas, depois de uma conversa rápida, decidimos aceitar a oferta e partir para o camping, já que era perto do parque. Conseguimos alugar o que precisávamos, montar tudo e fazer mais uma viagem a Ha Ha Tonka antes que o parque fechasse. De novo não encontramos nenhuma resposta nem no parque nem no tijolo. Tentamos dizer a nós mesmos que a manhã seguinte traria uma nova perspectiva, mas ninguém teve coragem de expressar a dúvida que pairava entre nós: o que faríamos se não conseguíssemos descobrir o segredo do tijolo dourado?

Queria muito conversar sobre isso com Adrian, mas ele ainda não tinha respondido minha última mensagem. Diligente, mandei outro relatório sobre o que estava acontecendo e preparei a cama, sem querer admitir como o silêncio dele me incomodava. Exausta pelo dia longo, caí no sono rápido na barraca alugada...

... e fui despertada algumas horas depois pela voz aterrorizada de Eddie.

— Sydney! Jackie! Acordem!

Abri os olhos e sentei num instante.

— Quê? Que foi?

Ele estava parado na abertura da barraca, apontando para fora. Eu e a sra. Terwilliger fomos até o lado dele e olhamos para onde ele apontava. Lá, sob a luz do luar, uma poça reluzente de algo que parecia ouro derretido escoava lentamente pelo chão, vindo na nossa direção. Deixava tudo o que tocava chamuscado.

— O que é aquilo? — exclamei.

— O tijolo — Eddie disse. — Estava de vigia e notei que começou a brilhar. Peguei e quase queimei a mão. Joguei para fora e ele derreteu, se transformando naquela coisa.

A sra. Terwilliger murmurou um rápido feitiço quando a gosma dourada se aproximou da nossa barraca. Uma onda invisível de poder foi lançada e jogou a gosma alguns metros para trás. Então ela voltou a vir na nossa direção.

— Que maravilha — murmurei. Ela repetiu o feitiço, que, obviamente, não passava de uma solução temporária.

— Dá pra gente aprisionar essa coisa? — perguntei. — Tem muitas pedras aqui. A gente poderia fazer um tipo de cercado?

— Ela queima as pedras para abrir caminho — Eddie disse, desolado.

A sra. Terwilliger desistiu daqueles feitiços e usou um de congelamento parecido com o que tinha usado no museu de robôs. Lançou uma rajada de frio intenso na direção da poça derretida, que parou no meio do caminho. Metade da gosma começou a se solidificar, mas o resto ainda estava líquido e em movimento, serpenteando e arrastando a parte congelada consigo.

— Sydney, vai pro outro lado! — exclamou a sra. Terwilliger.

Obedeci correndo. Saí da barraca e parei do outro lado da gosma, que estava liquefeita de novo já que a minha professora interrompeu o feitiço. A massa líquida voltou a avançar na direção da barraca, e a sra. Terwilliger ergueu as mãos para lançar o feitiço novamente.

— No três — ela ordenou. — Um... dois... três!

Ao mesmo tempo, lançamos feitiços de congelamento, atacando a gosma de ambos os lados. A massa torceu e retorceu sob a magia, mas, aos poucos, começou a se solidificar. Nunca tinha sustentado este feitiço por tanto tempo, mas a sra. Terwilliger parou de liberar a magia. Segui o exemplo dela até que, finalmente, o ouro ficou imóvel, completamente solidificado num formato irregular. Com cuidado, caminhamos até ele, que continuou parado.

— Que esquisito — eu disse. — Não foi tão ruim quanto o último ataque. — Eu ainda tinha alguns cortes dos vaga-lumes mágicos que nos atacaram em Pittsburgh.

— Só porque não alcançou a gente — a sra. Terwilliger apontou. — Odeio pensar no que teria acontecido se estivéssemos todos dormindo na barraca quando nos alcançasse.

Tive um calafrio, sabendo que ela tinha razão.

— Mas o que isso significa?

Ninguém tinha uma resposta imediata, mas Eddie nos surpreendeu ao falar alguns segundos depois:

— Já vi isso antes.

— Um tijolo dourado que se transforma numa poça assassina de metal derretido? — perguntei.

Ele abriu um sorriso fraco.

— Não. Olha esse formato. Não parece familiar?

Inclinei a cabeça para examinar o objeto dourado diante de nós. Não parecia ter nenhum formato específico. Era uma forma amorfa e vagamente oval, que parecia ter endurecido daquele jeito por acaso. O intenso olhar de concentração de Eddie mostrou que ele não pensava assim. Depois de mais um tempo concentrado, pareceu entender. Tirou o celular do bolso e digitou alguma coisa. Com o péssimo sinal no parque, demorou um tempo para Eddie encontrar o que precisava, mas, quando achou, ficou triunfante.

— Aqui, dá uma olhada.

Eu e a sra. Terwilliger encaramos a tela e encontramos um mapa da região metropolitana de Palm Springs. Instantaneamente percebi qual era a questão.

— É o Salton Sea — exclamei. — Boa memória, Eddie.

O Salton Sea era um lago salgado nas redondezas de Palm Springs, e a poça de metal à nossa frente tinha exatamente a mesma forma que ele. A sra. Terwilliger balançou a cabeça e bufou, consternada.

— Que ótimo. Saí de Palm Springs para avisar você, fui parar numa caça ao tesouro mágica e aqui estou eu, depois de todo esse trabalho, simplesmente levando-os pra casa.

— Mas por quê? — Eddie perguntou. — Será que Jill ficou lá esse tempo todo? E quem está controlando toda...

— Pra trás! — a sra. Terwilliger gritou, erguendo as mãos numa postura defensiva.

Nem Eddie conseguiu se afastar rápido o bastante. A gosma dourada tinha começado a tremer, como se estivesse subitamente cheia de uma energia que precisava sair. Tentei lançar um feitiço de escudo, mas, enquanto as palavras se formavam nos meus lábios, percebi que não conseguiria me mover com velocidade suficiente. A gosma explodiu em centenas de cacos dourados e afiados que voaram na nossa direção. Pararam ao acertar uma barreira invisível e caíram inofensivos no chão.

Observei onde eles caíram com o coração acelerado ao pensar nos ferimentos terríveis que teriam causado se a sra. Terwilliger não tivesse sido tão rápida. Por isso, foi uma surpresa quando ela falou:

— Ótimos reflexos, Sydney. Não consegui a tempo.

Voltei o olhar para ela.

— Não foi você quem lançou?

Ela franziu a testa.

— Não. Pensei que você tinha lançado.

— Fui eu — disse uma voz atrás de nós.

Virei e fiquei boquiaberta quando, surpreendentemente, Adrian surgiu dentre as árvores. Esquecendo a tragédia que quase tinha acontecido, corri para os braços dele, deixando que me levantasse do chão.

— O que você está fazendo aqui? — exclamei. — Deixa pra lá. — Eu o beijei com força, tão emocionada que nem liguei que Eddie e a sra. Terwilliger estivessem perto. Ficar longe dele nesses últimos dias tinha feito meu coração doer mais do que esperava, e acho que foi uma surpresa para nós dois quando ele finalmente interrompeu o beijo.

— Não falei que daria um jeito de vir pra cá? — ele disse, sorrindo. Seu olhar recaiu sobre os cacos e seu sorriso se desfez. — Bem na hora, pelo jeito.

Ainda envolta por ele, virei na direção dos pedaços, que cintilavam sinistros na grama. Uma lembrança surgiu dentro de mim.

— Já vi isso antes — eu disse, assim como Eddie.

A sra. Terwilliger soltou o fôlego trêmula.

— É um feitiço terrível. Não é um que se lança à toa.

— Eu sei — eu disse baixo. — Já o lancei uma vez.

Todos se voltaram para mim, espantados.

— Quando? — ela perguntou. — Onde?

— Na sua casa... sua antiga casa, antes de ela pegar fogo — corrigi. Centenas de lembranças voltaram com tudo e senti o mundo tremer um pouco quando, de repente, fiz uma conexão após a outra. Achava que não conhecia ninguém capaz de usar esse tipo de magia humana, ninguém que iria querer vir atrás de mim, pelo menos. Estava errada. Encarei os olhares ansiosos dos meus amigos. — Foi o feitiço que usei para matar Alicia — expliquei.


7

Adrian

Alicia DeGraw estava viva.

Se já era um choque para mim, mal conseguia imaginar como Sydney estava se sentindo. Ela achava que tinha matado Alicia. Antigamente, Alicia era aprendiz da irmã de Jackie, Veronica, mas tinha optado pelo mal. O que não era pouco, considerando que a própria Veronica não era nenhum exemplo a seguir: ela era obcecada por roubar a juventude e o poder de outras bruxas, deixando-as em coma para o resto da vida. Alicia tinha se voltado contra a mentora, roubado seu poder e ido atrás de Jackie. Eu e Sydney tínhamos entrado em confronto com Alicia na casa de Jackie no final do ano anterior — confronto responsável por botar fogo na casa. Ficamos sem saber se Alicia tinha conseguido fugir, mas agora tínhamos nossa resposta.

— Estou dividida — Sydney admitiu, mexendo o café em que ainda não havia tocado. Tínhamos saído do camping para conversar sobre a situação num restaurante vinte e quatro horas, e o fato de ela não ter encostado no café era um sinal de como estava preocupada. Eu tinha quase certeza de que nunca a vira recusar cafeína em todo o nosso tempo juntos. — Parte de mim está aliviada por não ter matado ninguém de verdade. Por outro lado... enfim, isso meio que complica as coisas.

— Você tem certeza? — Jackie perguntou do outro lado da mesa. — Eram os mesmos cacos?

Sydney ergueu a única lâmina dourada que tinha pegado do camping. As outras foram destruídas.

— Absoluta. É difícil esquecer uma coisa dessas. Na noite em que lutamos, transformei as bolinhas de um pêndulo de Newton em lâminas exatamente iguais a essa.

— Lembro desse pêndulo — Jackie murmurou, quase saudosa. — Foi um presente de fim de ano de um ex-aluno. Acho que ele tinha esperança de que aumentasse a nota dele.

Sydney parecia não estar ouvindo. Seu olhar estava assustado.

— Mandei os cacos na direção de Alicia. Foi por puro instinto. Ela caiu pela escada do porão e não pude ficar para ver o que havia acontecido enquanto tudo pegava fogo ao nosso redor.

Coloquei a mão sobre a dela.

— Você fez o que precisava fazer. Era a coisa certa. Ela era... é uma pessoa má.

— Acho que sim — Sydney disse, com um suspiro. — E também acho que isso responde nossas dúvidas. A gente estava tentando descobrir quem poderia querer se vingar de mim e usar magia humana. Ela é a resposta perfeita.

— Agora que sabemos quem está por trás disso, vamos atrás dela e de Jill — Eddie disse, com a voz ameaçadora. Essa vida de estrada tinha feito com que ele se barbeasse ainda menos e já estava com a barba quase cheia. — Ela deixou a pista de que está em Palm Springs. Precisa ser impedida de uma vez por todas.

— Tem razão — disse Sydney, recuperando o ânimo. — Precisamos acabar com isso e salvar Jill. Nenhum de nós vai dormir tão cedo mesmo, então bem que podemos pegar a estrada agora e ir para Palm Springs.

— Não você — Jackie disse. — Não quero você nem perto de Palm Springs.

— Como assim? — Sydney exclamou. A intensidade dela era igual à de Eddie. — A próxima peça está lá! Foi o que Alicia nos indicou.

— E é por isso que não vamos nos apressar... pelo menos não agora.

— Mas Jill... — Eddie começou.

Jackie balançou a cabeça.

— Ainda não sabemos a extensão do envolvimento de Jill nessa história. O que sabemos é que Alicia está atraindo Sydney para Palm Springs, onde deve ter alguma armadilha muito bem montada. Alicia está seguindo a velha tática de esgotar o inimigo primeiro. Essa “caça ao tesouro” não foi só para ela se divertir. Foi para enfraquecer a magia de Sydney. Se você for correndo para Palm Springs, depois da quantidade de magia que usou nesses últimos dias, é bem possível que não resista ao que ela está planejando. Perderíamos você e nunca descobriríamos o que aconteceu com Jill.

Me senti dividido e apertei a mão de Sydney. Conseguia entender por que Jackie queria manter Sydney longe do perigo. Era o que eu queria também. Mas por outro lado sentia a pressão que todos os outros sentiam. Jill estava cada dia mais em perigo. Como poderíamos não agir se tínhamos uma pista?

— Mas — continuou Jackie, como se estivesse lendo minha mente — isso não quer dizer que eu pretenda simplesmente abandonar Jill. Quero conduzir uma busca em Palm Springs, especificamente na área do Salton Sea. Meu plano é fazer isso com os reforços apropriados.

Eu e Eddie ficamos confusos, mas Sydney, como sempre, foi a primeira a entender.

— As bruxas do Stelle — ela disse, referindo-se ao clã em que tinha entrado.

— Sim — Jackie respondeu. — Elas e mais outras. Alicia não é só problema seu; ela representa um risco a toda a comunidade mágica. Então toda a comunidade deve cuidar dela. Vou reuni-las e vamos conduzir uma busca usando recursos mágicos e tradicionais. Enquanto isso, você vai ficar em algum lugar seguro e bem afastado.

— E vou ficar com você — eu disse, sentindo-me um pouco melhor sabendo que Jill não seria abandonada. Era difícil, quase como se tivesse de escolher entre Sydney e Jill, mas, pelo jeito, Jackie não ficaria parada sem fazer nada.

— Vou com você — Eddie disse a Jackie. Depois se virou para mim e Sydney. — Quer dizer... — O conflito em seu rosto refletia o que eu sentia por dentro.

— Pode ir — eu falei. — Nós vamos ficar bem. Ninguém sabe que a gente saiu ainda. Vamos desaparecer em algum lugar e tudo vai dar certo.

Eddie hesitou de novo. Ele odiava ter que dividir sua lealdade, mas no fim concordou.

— Se vocês acham que vão ficar bem... Como conseguiu sair sem ninguém ficar sabendo, aliás?

— Depois eu conto — falei.

Pude ver pela expressão de Sydney que ela também estava curiosa. Em vez de perguntar, ela se virou para Jackie.

— Mas quero que me ligue assim que você e as outras bruxas tiverem verificado a situação. Quando estiver tudo seguro, quero participar da busca por Jill.

— A menos que a encontremos antes e derrotemos Alicia — Eddie insistiu.

Sydney entreabriu um sorriso que sugeria que ela não achava que seria assim tão fácil.

— Seria ótimo.

Nós quatro ficamos revendo mais alguns detalhes antes de finalmente nos separarmos. Dava para ver que Eddie ainda estava perturbado por nos deixar e nos encheu de conselhos para mantermos a discrição e não chamarmos atenção. Ele também queria pedir para Neil vir nos proteger, mas Sydney descartou a ideia, dizendo que seria mais fácil se só nós dois simplesmente sumíssemos. Todos concordamos que Neil poderia ser útil em Palm Springs quando fechássemos o cerco em volta de Alicia, então Eddie prometeu fazer isso acontecer.

— Não se preocupe — falei para Eddie, dando um tapinha nas suas costas depois de ouvir mais alguns conselhos bem-intencionados sobre precauções de segurança. — Não pretendo fazer nada que leve os alquimistas ou os Moroi a descobrir que saímos da Corte. Faça a sua parte que cuidamos da nossa. Depois você nos avisa quando for seguro pra irmos também.

Jackie e Eddie concordaram que não queriam saber aonde eu e Sydney estávamos indo. Quanto menos soubessem, menos poderiam revelar acidentalmente para outras pessoas. No entanto, eles nos encheram de recomendações de lugares aonde poderíamos ir e, no fim, tivemos que mandar os dois embora, reafirmando que tudo daria certo.

Sydney e eu ficamos no carro alugado pensando nas infinitas possibilidades. Também seria a primeira vez que estaríamos realmente sozinhos em muito tempo.

— É desnorteante — ela admitiu enquanto estávamos parados no estacionamento do restaurante. — É como se de repente pudéssemos colocar em prática qualquer um dos nossos planos de fuga.

— Bom, não qualquer um — discordei. — Estamos no meio dos Estados Unidos e precisamos arranjar um lugar seguro em até cinco horas para eu poder, hum, encontrar Charlotte num sonho.

Os olhos de Sydney se arregalaram.

— Como assim?

Suspirei e dei partida do carro.

— Posso explicar.

Sabia que teria de contar tudo em algum momento... só não imaginava que fosse tão cedo. Enquanto entrávamos numa rodovia rumo ao norte, resumi para Sydney o que havia acontecido nos dias em que ficamos separados. Charlotte tinha sido fiel à promessa de me acobertar. Ela me levara para fora da Corte em seu carro, usando compulsão no guarda do portão para que ele não lembrasse de ter me visto. Depois de me deixar num pequeno aeroporto regional, prometera ir ao flat e ficar com a minha mãe. Nas vinte e quatro horas que eu tinha levado para pegar os voos de conexão e dirigir até os Ozark, recebera novidades tanto da minha mãe como de Charlotte. Ninguém viera me procurar, e Charlotte havia descido ao saguão e tido uma conversa repleta de compulsão para convencer a recepcionista de que me vira sair e voltar de um fornecimento.

— E agora preciso cumprir minha parte do acordo — expliquei para Sydney, depois de resumir a história.

— Usando um monte de espírito que está esgotando a menina? — Sydney gritou. — Adrian, você me falou que ia parar!

Ela não entende, tia Tatiana vociferou. Você fez isso por ela!

Senti minha raiva crescer.

— Era o único jeito de conseguir sair da Corte!

— Você não precisava sair da Corte — Sydney argumentou. — A gente estava bem. Você só precisava ficar são e salvo e me dar cobertura.

— Bem?! Eu impedi que vocês fossem cortados em pedacinhos por aqueles cacos!

Sydney cruzou os braços e encarou a janela do passageiro fixa e obstinadamente.

— Não dá para saber quais seriam os danos, e eu e a sra. Terwilliger poderíamos ter conseguido lançar um feitiço no último segundo. Mas isso... isso de usar o espírito com Charlotte? Nós sabemos muito bem o dano que pode causar! Você acabou de me contar como ela está mal.

— A minha ajuda vai impedir que ela piore — retorqui. — Uma vez só não vai me prejudicar.

Sydney se voltou para mim, incrédula.

— Não! Nenhuma vez! Nenhuma vez mesmo! Você não pode fazer isso! Não vou deixar!

Desde quando ela manda em você?, perguntou tia Tatiana, furiosa. Mal faz um mês que estão casados e ela já está ditando a sua vida! Você não pode suportar isso. Fala pra ela. Fala que ela não pode controlar você!

Estava tão nervoso quanto o fantasma na minha cabeça e abri a boca pronto para dar uma resposta ríspida a Sydney. Mas, ao virar para o lado, entrevi a expressão dela na luz do farol de um carro que passava. A preocupação e o amor que tomavam seu rosto partiram meu coração e, de repente, a raiva se foi.

Ela está te enganando, insistiu tia Tatiana.

Não, respondi. Ela só se importa comigo. Quer ajudar.

Para Sydney, eu disse:

— Certo, você tem razão. Não é uma boa ideia. Não vou participar do sonho. Só preciso achar... um jeito... de explicar a situação para Charlotte. — Me senti culpado por quebrar minha promessa com Charlotte, mas tinha laços maiores com Sydney. Quando vi o alívio que essas palavras lhe causaram, soube que tinha tomado a decisão certa.

Charlotte não vai gostar nada disso, sussurrou tia Tatiana.

Não é com ela que sou casado, retruquei.

Sydney colocou a mão sobre a minha.

— Obrigada, Adrian. Sei que não é fácil. Sei que você só quer ajudar.

— Sim — admiti, ainda em conflito com a minha decisão. A vontade de ajudar Charlotte era muito, muito forte. — Mas tem um preço. Não vale a pena perder a minha sanidade. — Apertei a mão de Sydney. — Não vale a pena perder o nosso relacionamento.

Falei pra você, Charlotte não vai gostar nada disso, tia Tatiana avisou de novo. Você pode se parabenizar por proteger sua sanidade, mas a dela já se foi faz tempo. Ela não vai deixar barato.

Vou conversar com Charlotte. Por enquanto, já valeu a pena ficar sozinho com Sydney e não brigar pra variar um pouco.

Era verdade. Fazia muito tempo que eu e Sydney não chegávamos nem perto desse tipo de liberdade e, mesmo presos no meio dos Estados Unidos e não numa ilha tropical, as opções diante de nós pareciam infinitas. Depois de dar uma olhada em alguns mapas da internet, finalmente seguimos para Council Bluffs, em Iowa. Não era exatamente um destino incrível, mas esse foi meio que o motivo. O mais importante: ficava bem longe dos alquimistas de St. Louis e mais ainda de Palm Springs, onde Alicia esperava que Sydney fosse aparecer. Consideramos ficar num hotel de uma grande rede, mas preferimos ir a uma pequena estalagem campestre nas redondezas da cidade. Só chegamos pela manhã, e fomos recebidos por uma placa: BEM-VINDOS AO CHALÉ DO ESQUILO PRETO.

— Ah, não — Sydney resmungou. — Tomara que não seja como aquela pousada em Los Angeles. Não sei se aguentaria um quarto todo decorado com esquilos.

Sorri ao lembrar da vez em que eu e Sydney tínhamos investigado uma pousada que transformara os coelhos da decoração numa cafonice sem precedentes.

— Poxa vida, depois de tudo que a gente passou, esse seria o menor dos problemas.

Quando entramos, tivemos a agradável surpresa de encontrar uma decoração de muito bom gosto, com cores neutras e móveis modernos. Não dava para ver nenhuma colcha com esquilos bordados nem esculturas de vime em formato de esquilo. A dona da estalagem era uma mulher amável de meia-idade e, embora surpresa ao ver hóspedes tão cedo, ficou feliz em nos receber e oferecer um quarto.

— Por que a estalagem tem esse nome? — perguntei, enquanto pagava pelo quarto.

A proprietária abriu um sorriso radiante.

— Ah, é em homenagem ao Caju.

— Caju? — Sydney perguntou.

— Sim — respondeu a mulher. — O esquilo preto que mora aqui. Eu diria que ele é nosso bichinho de estimação... mas, enfim, ele é muito mais do que isso.

Dei uma olhada pelo saguão.

— A gaiola dele fica por aqui?

— Ah, não — ela respondeu. — Seria cruel. Além de ilegal. Ele... — Ela deu de ombros e apontou vagamente para o saguão. — Enfim, ele está por aí em algum lugar.

— Como assim “por aí”? — Sydney perguntou, pouco à vontade. — Lá fora, você quer dizer?

— Ah, não — a estalajadeira disse. — O coitadinho não saberia viver lá fora.

Sydney arregalou os olhos.

— Espera. Se ele não está lá fora, quer dizer que...

— Vou acompanhar vocês até o quarto — a proprietária falou, sorridente. — Estou com as chaves bem aqui.

O quarto tinha uma aconchegante área de convivência e acesso a uma sacada particular, além de uma grande cama macia. Depois de um dia cansativo de viagem, eu mal podia esperar para finalmente dormir de verdade e recuperar o sono. Antes de me jogar na cama, porém, sabia que precisava entrar em contato com Charlotte e contar que o combinado estava suspenso. Quando Sydney falou que ia tomar banho, encontrei a oportunidade perfeita. Era mais ou menos a hora em que Charlotte estaria dormindo, esperando que a contatasse por um sonho de espírito. Eu não precisava estar dormindo para isso, mas simplesmente entrar num estado meditativo.

Sentei na cama, me acalmei e fechei os olhos, invocando uma quantidade de espírito suficiente para atravessar o mundo onírico até encontrar Charlotte. No entanto, meu estado de tranquilidade foi abalado quando ouvi um grito vindo do banheiro. Abri os olhos e atravessei o quarto correndo, escancarando a porta.

— Adrian, cuidado! — Sydney gritou.

Um bichinho preto e felpudo pulou da pia e pousou bem no meu peito. Por instinto, o afugentei. Ele caiu no chão e atravessou o quarto correndo. Sydney saiu enrolada numa toalha e parou ao meu lado.

— Acho que ele foi pra baixo da cama — ela disse.

— É melhor esse bicho não subir em mim de novo — murmurei, caminhando devagar até a beira da cama.

Você já enfrentou coisas muito piores do que isso, disse tia Tatiana com desprezo. Larga a mão de ser besta.

Sydney me seguiu e, quando me abaixei para verificar embaixo da cama, ela fez um gesto que reconheci ser de algum feitiço. Segundos depois, senti uma brisa se agitar e soprar embaixo da cama. O esquilo — Caju, imaginei — saiu em disparada e começou a correr freneticamente pelo quarto. Sydney, depois de criar coragem para vencer o choque inicial, correu até a porta que dava para a sacada e a abriu. Depois de algumas voltas pelo quarto, o esquilo percebeu e saiu. Sydney trancou a porta e, por alguns segundos, ficamos parados ali.

— Por que nada pode ser simples para nós? — ela perguntou finalmente.

— Olha só você — brinquei, andando até ela —, enfrentando destemidamente Caju, o Esquilo Ensandecido.

— Não fui tão destemida assim no começo — ela admitiu. — Não na hora em que ele pulou em cima de mim quando estava prestes a entrar no banho.

Eu a puxei para perto, notando subitamente que estava só de toalha e maravilhosa mesmo depois de um confronto feroz com um esquilo.

— Ei, você foi mais corajosa do que eu. E fez tudo isso sem perder a toalha.

Sydney abriu um sorriso. Ela mostrou a parte de cima da toalha amarrada em volta dos seios.

— O segredo é como você dobra — ela disse, em tom prático. — Se fizer do jeito certo, nunca vai cair.

— Aceito o desafio — murmurei, levando os lábios até os dela.

Sydney se apertou contra mim, quente e cheia de energia, com o aroma maravilhoso que só ela tinha. Encostei-a na parede, unindo nossos corpos, e ela envolveu meu quadril com a perna. Passei a mão pela pele macia e perfeita de sua coxa e percebi que era a primeira vez que ficávamos realmente sozinhos em muito tempo. Minha mãe não estava atrás da porta esperando que saíssemos, tampouco havia uma equipe de alquimistas nos caçando do outro lado das paredes. Nós tínhamos sumido, seguido um plano de fuga. Ninguém sabia onde estávamos. Se quiséssemos, a possibilidade de simplesmente desaparecer estava bem diante de nós.

Acho que essa noção de que estávamos verdadeiramente livres pela primeira vez despertou uma intensidade ainda maior entre nós. Havia um calor em Sydney enquanto retribuía meu beijo e enlaçava os dedos no meu cabelo que me lembrou nossos primeiros dias juntos. Eu a ergui com facilidade e a levei para cama, admirado por como parecia tão leve em meus braços se era uma mulher tão forte.

Também fiquei admirado com a dificuldade de tirar aquela toalha.

Sydney ria baixinho, passando os dedos pela minha bochecha. A luz do sol que entrava por entre as persianas fazia ela parecer feita de ouro.

— Opa — ela disse. — Vai perder o desafio?

Finalmente desamarrei o nó e tirei a toalha, jogando-a o mais longe possível.

— De jeito nenhum — falei, maravilhado com o corpo dela, como sempre. — Precisa de muito mais para me manter longe. Você vai ter que se esforçar da próxima vez.

Ela me ajudou a tirar a camiseta.

— Por que iria querer uma coisa dessas?

Nós nos beijamos de novo e, enquanto nos emaranhávamos, senti que todas as preocupações que vinham me perseguindo desapareciam. Charlotte, os alquimistas, Alicia... até mesmo tia Tatiana. Naquele momento, não havia nada além de mim e Sydney no universo, e as únicas coisas que importavam eram nosso amor e como me sentia nos seus braços. Era uma felicidade que ultrapassava o simples prazer físico, embora eu estaria mentindo se dissesse que não havia prazer de sobra.

Depois, suados e exaustos, deitamos juntos, mais calmos. Ela pousou a cabeça no meu peito e beijei sua testa, contente. Naquele momento, concluí que a melhor coisa que poderia acontecer seria Jackie ligar falando que Alicia tinha sido derrotada, Jill estava livre e Sydney e eu poderíamos viver felizes para sempre em Council Bluffs. Peguei no sono, sonhando com essa fantasia.

Isso, porém, durou pouco. Logo fui levado para um tipo muito diferente de sonho. Lembrei do aviso de tia Tatiana sobre como Charlotte não me deixaria simplesmente esquecer do trato.

— Onde você esteve? — Charlotte exclamou. A casa de campo em Wisconsin se materializou diante de nós. — Era pra você ter vindo me encontrar.

Observei ao redor, tentando me ajustar à mudança súbita de ambiente.

— Eu, hum, desculpa. Me distraí no mundo real e peguei no sono.

— Tudo bem — ela falou rapidamente. — Vou liderar o sonho. Lembra que você precisa portar mais espírito desta vez.

Meus olhos arregalaram.

— Não, Charlotte... espera...

Mas Charlotte não me deu ouvidos. Estava concentrada demais em sua obsessão de encontrar Olive. Senti Charlotte invocar o espírito e trazer outra pessoa para se juntar a nós. Momentos depois, Olive começou a se materializar à nossa frente, indistinta e coberta por um manto como antes. E, como da outra vez, Olive entrou em pânico e começou a arrancar o controle do sonho das mãos de Charlotte. Dessa vez, sabendo o que esperar, senti melhor o que estava acontecendo.

Desde a última tentativa, tinha pesquisado o máximo possível sobre visitar sonhos, embora não houvesse muitas fontes a que recorrer. Tinha até conversado com Sonya, e juntos chegamos à conclusão de que tudo dependia da força de vontade de Olive. Se a motivação dela fosse grande o bastante, ela poderia vencer o usuário de espírito que controlava o sonho. Claramente era o que estava acontecendo agora.

Você caminha entre sonhos melhor que Charlotte, tia Tatiana me lembrou. Melhor que ninguém.

Eu sei, disse a ela. E, enquanto via o ambiente se dissolver, tomei uma decisão impulsiva, contrária ao que tinha prometido a Sydney.

— Pode liberar o sonho — falei para Charlotte.

Entendendo minha intenção, ela obedeceu. Eu estava pronto, canalizando o espírito, e logo me tornei o novo controlador do sonho. A casa de campo, que tinha começado a ruir, começou a se rematerializar. Da mesma forma, Olive também começou a se solidificar.

— Não! — ela gritou.

Charlotte correu até ela.

— Olive! Senti tanto a sua falta.

O rosto de Olive estava tomado de medo e ela recuou rapidamente, apertando o manto em volta do corpo.

— Não... não. Por favor, me deixa em paz!

De repente comecei a sentir o sonho escapar das minhas mãos. Apesar do meu controle, a força de Olive continuava vencendo. Fendas surgiram nas paredes de madeira. Os móveis de vime viraram pó. As janelas banhadas pela luz do sol ficaram escuras. Invoquei mais poder do espírito, passando mais magia pelo meu corpo para impedir que Olive controlasse o sonho. O espírito ardeu dentro de mim, mas ela já tinha mudado o cenário. A casa desaparecera, substituída pelo que parecia um estacionamento de hotel. Um poste emitia uma luz fraca e trêmula sobre nós, aliada ao brilho vermelho fantasmagórico de uma placa de neon pendurada na janela do saguão do hotel. Estávamos cercados por ruas que normalmente estariam movimentadas, mas não havia trânsito no sonho. Um silêncio perturbador dominava até eu falar:

— Desculpa, ela foi muito rápida — disse para Charlotte. — Onde estamos?

Ela se aproximou de mim, com o rosto tomado de medo.

— É o lugar onde fomos atacadas com o nosso pai. Quando Olive foi transformada. Tinha Strigoi...

Antes que pudesse terminar, duas figuras ameaçadoras surgiram de trás da sombra de um carro antigo estacionado. A pouca luz deixava sua pele pálida ainda mais horripilante. Não conseguia ver o vermelho de seus olhos, mas a perversidade transparecia claramente mesmo na penumbra. Eles rosnaram, revelando presas parecidas com as minhas, exceto que a única intenção delas era matar.

Apertei a mão de Charlotte e recuei devagar.

— Eles não podem matar a gente num sonho — eu disse, com a boca subitamente seca. — Não de verdade.

— Não, mas a gente vai acordar — ela falou. — E Olive vai sumir de novo.

— Não se a gente acabar com eles antes.

Meu corpo se encheu de terror, embora soubesse que os Strigoi eram apenas parte do sonho. Toda a minha vida, tinha sido condicionado a odiá-los, então deveria sentir algo além de medo. Mas o que eu dissera era verdade. Não dava para morrer num sonho de espírito. A gente simplesmente acordaria. Antes disso, sentiríamos uma dor profunda e excruciante. Eles não são reais, disse a mim mesmo. Isso é um sonho e ainda tenho algum controle.

Olive tinha assumido o controle de coisas grandes, como o cenário, mas ainda havia coisas pequenas sob o meu comando. No sonho eu poderia controlar o fogo com a mesma habilidade de Christian ou Sydney. Uma bola de chamas surgiu na minha mão, alimentada pela magia de espírito. Sentia a magia crescer em Charlotte também e fui rápido em repreendê-la.

— Não, deixa que eu cuido disso. — Já que tinha me metido naquilo, pelo menos deveria cumprir o objetivo inicial de mantê-la longe de uma crise de espírito. — Só ajuda. Não usa demais.

Lancei a bola de fogo na direção de um dos Strigoi e ela passou longe, pelo menos a um bom meio metro de distância. Certo, talvez eu não conseguisse controlar o fogo com a mesma habilidade de Christian ou Sydney. Sempre parecia tão fácil quando Sydney fazia, e entendi que estava imitando o lançamento dela. No entanto, o certo não era confiar nas minhas habilidades físicas. Precisava usar mais a intenção. Invoquei outra bola de fogo e, dessa vez, usei o espírito para guiá-la especificamente contra o Strigoi. Minha mira foi boa, mas o Strigoi, mesmo num sonho, se moveu rápido. Ele desviou do ataque, que acabou só chamuscando seu braço. Mas isso foi o suficiente para me estimular. Voltei a invocar o espírito, criando mais duas bolas de fogo, uma para cada Strigoi.

Também consegui prever como o Strigoi desviaria dessa vez, então me adaptei, enviando a bola de fogo bem contra seu peito. Ele foi engolido pelas chamas e usei o espírito para invocar uma estaca de prata. Avancei para onde ele se contorcia no chão, invoquei o espírito para me proteger do fogo e enfiei a estaca onde imaginava que ficava seu coração. Ou estava certo ou o fogo já tinha cumprido seu trabalho, porque a criatura parou de se mexer instantaneamente e desapareceu.

O outro Strigoi tinha ameaçado avançar na direção de Charlotte enquanto eu estava distraído. Ela também lançou uma bola de fogo e, assim como eu, estava demorando para aprender, errando na primeira tentativa. Mas foi o suficiente para distrair o Strigoi até eu poder entrar em ação.

— Espera — falei para Charlotte.

Acertei o segundo Strigoi bem no peito e, mais uma vez, terminei o serviço com a estaca de prata. Mas a animação com meu triunfo vacilou quando outros quatro surgiram de repente. Dei um passo rápido para trás, me aproximando de Charlotte.

— Sem problema — falei para ela. — A gente vai se livrar deles também. — Ver quatro deles era perturbador, mas meu método parecia estar funcionando. Pelo menos num sonho, poderia lutar tão bem quanto qualquer guardião.

— Não temos tempo! — Charlotte exclamou. O espírito se agitou dentro dela... muito espírito. Me voltei para ela, em choque.

— O que você está fazendo? Isso é demais!

Ela me ignorou e fez o impossível, invocando ainda mais espírito. Parecia um balão prestes a explodir.

— Precisamos deles mortos, agora!

— Para! — gritei. Chacoalhei seu braço na esperança de fazer com que ela perdesse a concentração. Ela se soltou e continuou a acumular espírito a níveis gigantescos e vertiginosos.

— Não vou deixar Olive escapar de novo! — Charlotte disse.

Chamas dispararam da ponta dos seus dedos. Não eram bolas compactas como as que eu tinha formado. Charlotte estava comandando paredes de fogo. Em quantidades enormes. As chamas iluminaram a noite, envolvendo os quatro Strigoi. Não foi preciso usar a estaca em nenhum deles. Acho que morreram quase instantaneamente.

— Chega! Libere a magia! — esbravejei com ela de novo.

O que ela fizera ao criar aquela quantidade absurda de fogo não tinha sido uma pequena mudança no sonho. Ela não só precisara vencer o controle de Olive como o meu controle sobre o fundamento do sonho. A quantidade de espírito necessária para destruir todos aqueles Strigoi num só golpe era inacreditável. Era pelo menos duas vezes maior do que a vira portar no último sonho em que estivemos juntos.

O fogo desapareceu como os Strigoi, e Charlotte caiu de joelhos. Ela levou as mãos à cabeça e começou a gritar. E gritar. Ao nosso redor, o estacionamento escuro se transformou na Getty Villa ensolarada. O controle do sonho tinha voltado a mim por conta do esforço dela. Ajoelhei ao seu lado e apoiei de leve a mão no seu ombro. Com o olhar perdido, ela não parava de gritar.

— Charlotte. Charlotte, está tudo bem. Está tudo bem.

Mas não sabia se estava mesmo. Ela não estava gritando por causa dos Strigoi. Tinha outra coisa, as consequências terríveis do uso de todo aquele espírito. Semana após semana de tanto uso e depois aquilo... Era demais. A gota d’água. Eu não fazia ideia de quanto mal tinha sido causado, mas algo estava gravemente errado. Precisava nos despertar para descobrir como ela estava no mundo real. Com um pensamento, deixei que o sonho começasse a se desintegrar.

— Charlotte...

A voz suave me fez erguer os olhos de repente. Não tinha notado que Olive estava conosco de novo na Getty Villa. Quando Charlotte havia explodido os Strigoi, ela arrancara o controle das mãos de Olive e, temporariamente, de mim. Olive tinha ficado sem nada, nenhum controle, sem poder escapar. Mas ela estava se apagando, assim como Charlotte e eu enquanto voltávamos ao mundo real.

Antes que todos desaparecêssemos, porém, vi algumas coisas com muita clareza. Uma foi a preocupação no rosto de Olive enquanto encarava Charlotte. Apesar de tudo que havia se passado entre elas, Olive amava a irmã e não estava tentando machucá-la de propósito com aqueles obstáculos.

A outra coisa que notei foi que o manto de Olive tinha sumido. Sem nenhum controle do sonho, Olive aparecia agora como estava no mundo real. As roupas que usava eram velhas e gastas. Ela usava também um pingente pequeno e circular de madeira, com a borda verde. Nunca tinha visto aquele símbolo antes e não fazia ideia do que significava.

Mas, quando a observei pela última vez antes de acordar, notei outra coisa que reconheci imediatamente.

O sonho se desfez por completo e acordei alerta, sentando na cama da estalagem. Enquanto piscava para recuperar o foco, Sydney segurou meu braço para tentar me acalmar.

— Adrian — ela exclamou, e percebi que já estava me chamando havia um tempo. — O que foi?

— Olive está grávida — exclamei.


8

Sydney

— Olive? — repeti, sem entender. Também estava um pouco confusa depois de ter sido acordada de um sono profundo pelos gritos de Adrian. — Do que você está falando?

Ele balançou a cabeça.

— Desculpa, Sydney. Não era minha intenção. Charlotte me encontrou num sonho de espírito e me levou para procurar Olive. E dessa vez nós a encontramos. Ela está grávida.

Fiquei tão chocada por ele ter levado o sonho adiante que não consegui processar na hora o resto do que estava falando. Mas o arrependimento em seu rosto parecia tão sincero que acreditei que tinha sido contra sua vontade.

— Ela não tem como estar grávida — eu disse por fim. — Quer dizer... acho que tem. Mas pensei que estivesse envolvida com Neil. Se ela está grávida, então...

Adrian engoliu em seco e, aos poucos, pareceu se recuperar também.

— Eu sei, eu sei. Se ela está grávida, não pode ser do Neil.

O drama de Olive não parecia tão grave na situação atual, ainda mais se considerássemos o que estava acontecendo com Jill, mas mesmo assim era surpreendente. Olive e Neil pareciam muito próximos.

— Você tem certeza de que ela está grávida?

Ele assentiu, trêmulo.

— Nós conseguimos. Eu e Charlotte vencemos as defesas de Olive e vimos como ela realmente estava no mundo real. Ela definitivamente está grávida. Acho que era por isso que estava tentando se esconder no sonho. — Ele parou para considerar. — Acho que é por isso que está se escondendo na vida real também.

— Dá pra entender a vontade de se esconder do Neil... — comecei, com a mente acelerada. Como ela era dampira, somente um Moroi poderia tê-la engravidado. Quer dizer, um humano também poderia, mas a maioria das pessoas na sociedade Moroi não pensava como Adrian e eu. — Mas por que se esconder de Charlotte? Ainda mais se são tão próximas? A menos que... ah. — Meu coração se apertou. — Talvez... talvez o que aconteceu não tenha sido consensual.

Adrian demorou um pouco para sacar, e seu rosto se encheu de raiva.

— Se algum Moroi estuprou Olive, por que ela não contaria pra Charlotte? E pra todo mundo?

Entrelacei os dedos nos dele.

— Porque, infelizmente, nem todas as mulheres são assim. Pense na minha irmã Carly, quando foi estuprada pelo Keith. Ela achou que a culpa era dela. Morria de vergonha de que alguém descobrisse e a julgasse.

— Charlotte não julgaria a própria irmã — Adrian disse, obstinado. — Olive deveria saber disso. Charlotte pode ser louca, mas...

Notei o medo que subitamente tomou o rosto dele.

— Que foi?

— Charlotte.

Ele estendeu o braço e pegou o celular. Ligou para alguém com pressa. Ao longe, pude ouvir o som dos toques. No fim, a caixa postal atendeu.

— Charlotte, sou eu. Liga pra mim. Agora. — Depois que desligou, ele virou para mim com um suspiro. — O que a gente fez... o que aconteceu para chegarmos até Olive não fez muito bem pra Charlotte. Ela tirou o controle de mim e acabou segurando a maior parte do espírito. Não sei direito o que aconteceu com ela... Foi só uma impressão que tive antes do sonho se desfazer, mas acho que alguma coisa deu muito errado. Acho que ela está machucada. — Ele encarou o celular como se isso pudesse fazer com que ela retornasse a ligação.

— Ela pode estar dormindo ainda — falei. Não disse em voz alta e torcia para que Charlotte não tivesse se machucado, mas parte de mim estava aliviada por Adrian não ter portado todo o espírito que planejava. — Ela vai ficar bem quando acordar. E você tem muito a contar para ela.

Adrian suspirou.

— Não sei, não. Quer dizer, acho que posso contar sobre a gravidez. Mas e o resto? Ainda não sei ao certo onde ela está. Ela estava vestida de um jeito estranho... — Ele levantou para procurar uma caneta na mesinha da estalagem. Fez um desenho rápido de um círculo cheio de símbolos abstratos. — Isso significa alguma coisa pra você?

Olhei para o desenho, franzindo a testa.

— Não. Deveria significar?

— Olive estava usando um pingente assim. Pensei que poderia ter algum significado. — Ele voltou a sentar do meu lado e conteve um bocejo. — Espero que eu e Charlotte não tenhamos passado por tudo isso em vão, sem encontrar um jeito de ajudar Olive. Ou pior: se não conseguirmos nenhuma resposta, tenho medo que Charlotte continue fazendo isso. — Ele voltou a encarar o celular preocupado, mas Charlotte ainda não havia respondido.

Coloquei o braço em volta dele e o puxei para perto.

— Vamos ter esperança. Esse símbolo pode significar alguma coisa para Charlotte. Tenha paciência até ela responder.

Tentei soar despreocupada e esconder o medo que sentia. Não por Charlotte. Estava preocupada que Adrian a ajudasse de novo, ignorando os perigos ao colocar as necessidades dela acima das dele. Meu coração se apertou com a ideia e sentimentos conflitantes se agitaram no meu peito. Admirava Adrian por querer ajudar. Mas também o amava e, por egoísmo, queria protegê-lo.

Ele tentou ligar para Charlotte mais uma vez, e depois seguiu meu conselho de que deveríamos dormir mais um pouco enquanto podíamos. Odiava vê-lo tão preocupado e agitado, mas por fim ele conseguiu deixar suas preocupações de lado e relaxar. Caímos no sono nos braços um do outro e fomos acordados algumas horas depois com o toque de um celular. Adrian quase caiu da cama para pegar o aparelho, e encarou a tela, desconsolado.

— Droga. Minha bateria acabou. Esqueci de carregar.

— É o meu — eu disse, andando cambaleante até a bolsa.

Uma onda de pânico me fez acordar e me preparar para uma notícia da sra. Terwilliger. Mas, quando peguei o celular, fiquei surpresa ao ver o nome de Sonya na tela.

— Alô?

— Oi, Sydney — veio a voz conhecida. — Espero que esteja bem.

— Sim — eu disse, desconfiada, sem entender por que ela estaria ligando para mim. Nós nos dávamos bem, mas normalmente ela falava com Adrian. — Como você está?

— Estou bem. Mas não posso falar o mesmo de Charlotte Sinclair — ela respondeu, fazendo meu coração parar. — Tentei ligar para Adrian, mas foi para a caixa postal.

— A bateria dele acabou — expliquei. — Algum problema com Charlotte? — Adrian ergueu a cabeça ao ouvir isso.

— Pensei que vocês já soubessem, já que ela foi encontrada no flat de vocês.

— A gente deu uma saidinha — eu disse, tensa. — Como assim “encontrada”? — Era o tipo de termo que se usava para falar de alguém que tinha morrido.

— Ela está viva — Sonya disse, adivinhando meus pensamentos. — Foi levada para o centro médico, mas está praticamente em coma. Acordou por um momento e balbuciou algumas coisas sem sentido antes de perder a consciência de novo. Os médicos ainda não conseguiram acordá-la depois disso. Pensei que vocês iam querer passar para ver como ela está.

— Hum, vou conversar com Adrian e ver quando a gente vai ter a chance de...

— Me poupe, Sydney. — Havia um tom ao mesmo tempo cansado e irritado em sua voz. — A gente sabe que vocês não estão aqui.

— Então, pois é, como eu falei, a gente deu uma saidinha...

— A gente sabe que vocês não estão na Corte — ela me interrompeu. — Depois da crise de Charlotte fizeram uma busca em toda a Corte até que Daniella Ivashkov finalmente cedeu e admitiu que vocês tinham ido embora. Mas ela não falou para onde, e acho que estava tentando nos confundir contando uma história mirabolante sobre você se transformar num gato.

Realmente não sabia como responder a nada daquilo.

— Um monte de gente gostaria de falar com você — Sonya continuou. — Com vocês dois. Vocês têm como fazer uma chamada por vídeo?

Meu olhar pousou na bolsa do laptop que Adrian tinha trazido.

— Temos... — Para falar a verdade, estava com um pouco de medo do que essa teleconferência poderia incluir, mas percebi que Adrian estava se contendo para não arrancar o celular da minha mão e descobrir o que tinha acontecido com Charlotte. Uma ligação em grupo poderia ser a melhor solução, já que nosso disfarce já era. Havia também uma grande possibilidade de que pudéssemos ser rastreados, mas não tinha tanto medo de que os Moroi nos encontrassem como teria no caso dos alquimistas.

Quando desliguei a ligação com Sonya, Adrian concordou comigo. Ele estava louco para saber mais sobre Charlotte e decidimos que o risco valia a pena. Nós dois ainda estávamos pelados, então a primeira tarefa do dia era colocar algumas roupas rápido para não ficar inteiramente óbvio o que tínhamos feito.

Adrian me encarou com tristeza enquanto eu procurava minha camisa.

— Se a gente tomasse o cuidado de só deixar a cabeça no enquadramento, acho que ninguém notaria.

Lancei um olhar de advertência para ele e, depois de muitos suspiros dramáticos, Adrian se vestiu, relutante.

No entanto, continuamos na cama e abrimos o laptop ali. Depois de conectar tudo, nos debruçamos sobre o computador e encontramos o rosto preocupado de Sonya na tela. Antes que Adrian pudesse perguntar sobre Charlotte, ela se afastou e outro rosto se juntou ao dela.

— Sério, Adrian? — Lissa exclamou, cheia de indignação. — Como vocês puderam fazer isso comigo? Vocês imploraram para que eu os protegesse! Me expus à fúria do meu povo e dos alquimistas para aceitar vocês e é assim que me recompensam?

Ela parecia realmente frustrada. Constrangida, pensei na quantidade de problemas que poderíamos ter causado a ela. Às vezes eu esquecia a fragilidade da posição em que Lissa se encontrava, sendo pressionada constantemente de todos os lados enquanto se esforçava para fazer o impossível e agradar todo mundo. Eu e Adrian tínhamos feito o que era necessário para nós, mas não havíamos considerado as consequências disso para os outros.

— Foi tudo por Jill — Adrian disse, resoluto. — A gente precisou ir atrás dela.

Lissa balançou a cabeça, furiosa.

— E falei pra você que ficamos gratos mas não precisamos de você à procura de Jill. Já temos gente cuidando disso.

— Não, não é bem assim — Adrian discordou. — Não foi só uma viagem impulsiva. Sydney tinha uma pista de verdade.

Os olhos de Lissa se focaram em mim com expectativa. Comecei a contar o que sabia até então, sobre como Alicia estava por trás do desaparecimento de Jill e como meus contatos em Palm Springs estavam procurando mais pistas naquele exato momento. Enquanto falava, vi a expressão de Lissa ficar cada vez mais incrédula.

— Como só fiquei sabendo disso agora? Vocês deviam ter me falado na hora!

— Não sabíamos muitas coisas naquela hora. — Apesar da confiança ao falar, dava para ver que Adrian também estava um pouco arrependido dos nossos atos. — Ainda não sabemos, na verdade. Mas Jackie Terwilliger é boa. Ela vai descobrir alguma coisa. — Ele hesitou. — Quem mais sabe que a gente saiu?

— Os alquimistas não sabem, se é esse o seu medo — Lissa disse. — Até agora poucas pessoas aqui na Corte sabem, e é melhor vocês torcerem para que continue assim. Os alquimistas deixaram bem claro que Sydney não nos seria entregue caso a pegassem. — Recuei diante dessas palavras.

— Chega, Liss. — Rose entrou de repente na imagem, empurrando Lissa para o lado como se a amiga não fosse a rainha de todos os Moroi. — Eles já entenderam que fizeram besteira.

— Nós não fizemos besteira — Adrian insistiu. — Encontrar Jill é a coisa mais importante que podemos fazer agora.

A raiva de Lissa diminuiu um pouco.

— É. E também quero encontrá-la. Por que vocês não vieram falar comigo assim que receberam a tal caixa?

Adrian deu de ombros.

— Só ficamos sabendo da relação entre Jill e Alicia agora, depois de passar por todas essas aventuras. Não tínhamos certeza e, pra falar a verdade, não sabíamos se você nos deixaria ir. Achamos que o mais importante era tirar Sydney da Corte para ir atrás dessa pista. Só vim atrás depois.

Surpreendentemente, Lissa assentiu, aceitando o argumento.

— Você tem razão. Eu ia querer mais provas se você só tivesse a caixa com a foto de Jill. E ninguém que eu mandasse descobriria o que você descobriu, Sydney.

Não era exatamente um pedido de desculpas, mas Adrian tomou como tal.

— Obrigado.

— Mesmo assim, deveriam ter contado pra mim depois — ela alertou.

— Ou pra mim — Rose disse.

— Agora a bronca acabou — Adrian disse —, alguém pode, por favor, me falar mais sobre Charlotte?

— Eles podem atualizar vocês — Lissa disse, apontando para o lado. — Preciso dar um jeito para que a fuga secreta de vocês continue em segredo. A menos que pretendam retornar e deixar Eddie e sua amiga humana cuidando das coisas por aí. Ainda dá tempo de voltar a como estavam antes.

Eu e Adrian trocamos olhares por um momento antes de voltar para Lissa. Nós dois fizemos que não.

— Imaginei — Lissa disse, com uma risadinha melancólica. — Vou ver se consigo manter o segredo. Enquanto isso, por favor, não sejam pegos.

Ela saiu da tela e logo depois Sonya se juntou a Rose.

— Não tem muito mais para falar além do que já falei. Talvez você possa ajudar contando o que aconteceu.

— Foi pelo uso de espírito — Adrian disse, lançando um olhar arrependido para mim. — Fui com ela num sonho e ajudei a derrubar as barreiras que Olive tinha montado.

— Imaginei — Sonya disse, pesarosa.

— Você sabe quando Charlotte vai acordar? — Adrian perguntou. — Se ela vai ficar bem?

— Depende do que você entende por “bem” — Sonya respondeu. — O médico acha que a dificuldade dela para acordar é por causa da exaustão. Se tudo der certo, vai recuperar a consciência depois de um pouco de repouso. Mas, em que estado vai acordar...

— Se ela está tão exausta, dá pra entender por que não fala coisa com coisa — Adrian disse rápido. Era perceptível o quanto ele queria acreditar nisso. — Poxa, você devia me ver depois de uma noitada! Perto de mim com sono, ela deve parecer superlúcida e articulada.

Sonya não riu da brincadeira.

— É possível... mas não acho que seja assim tão simples. Vi a aura dela. Ela conta outra história, e não é das melhores. Além disso, Adrian, passei muito tempo com Avery Lazar. Vi o que o espírito fez com ela... e esse caso é muito parecido.

— Então o que você quer dizer? — perguntei, surpresa ao notar o nó na minha garganta. Nem conhecia Charlotte muito bem, mas aquele prognóstico pessimista era assustador, talvez porque eu temesse que um dia falássemos assim sobre Adrian.

Sonya pareceu subitamente cansada, como se fosse ela quem tivesse usado tanto poder e energia e precisasse dormir.

— Estou dizendo que, quando Charlotte recuperar a consciência, ela pode não ser a mesma de antes. O que aconteceu? Achei que você fosse impedir que ela usasse tanto espírito...

— Eu tentei. Tentei mesmo. — Adrian se recostou em mim e coloquei o braço nas suas costas. — Liderei o sonho. Fiz a maior parte do trabalho quando Olive tomou o controle, mas Charlotte perdeu a paciência e assumiu o comando. Ela explodiu tudo antes que pudesse impedir.

Sonya assentiu, exausta.

— Pelo menos conseguiram falar com Olive?

— Não exatamente — ele disse, cauteloso. Mantive uma expressão neutra para não denunciar que ele não estava contando toda a história. Ele ergueu o papel com o desenho. — Esse símbolo significa alguma coisa pra você?

— Não, desculpa. — Sonya olhou para baixo e fechou a cara. — Recebi uma mensagem do médico que está monitorando Charlotte. Eles têm algumas perguntas para mim. Entro em contato se descobrir mais alguma coisa.

Adrian assentiu e apertei a mão dele. Sabia que ele se sentia péssimo, como se fosse responsável pelo estado de Charlotte. Depois que Sonya saiu, sobrou apenas Rose, que parecia abalada pela notícia.

— Bom, fico contente que temos uma pista sobre Jill — ela falou. — Mas vocês realmente deviam ter tomado mais cuidado...

— O que foi que você mostrou pra Sonya? — Dimitri surgiu de repente na tela. Rose virou para ele, rindo.

— Calma, camarada. Você também vai ter sua chance de dar bronca neles.

— Nossa — Adrian disse. — Quantas pessoas tem aí?

— O que foi que você mostrou pra ela? — Dimitri repetiu, sério, enquanto nos encarava. Mesmo na tela ele era intimidador.

Adrian voltou a erguer o papel.

— Isso. — Ele se debruçou, ansioso. — Você sabe o que é?

— Sim, é... — Dimitri conteve o que ia dizer e encarou Rose de relance antes de voltar para o desenho. — É uma marca usada por mulheres em, hum, comunidades dampiras.

Rose não teve problemas em dizer o que a delicadeza dele impediu.

— Um puteiro de sangue? — Os olhos dela se arregalaram. De repente ela ficou tão furiosa quanto Lissa estava antes. — Adrian Ivashkov! Você deveria ter vergonha de frequentar um lugar desses! Ainda mais agora que está casado...

Adrian riu.

— Fiquem calmos, vocês dois! Nunca pus os pés num lugar desses, nem pretendo. — Ele voltou a encarar Dimitri. — O que você quer dizer com “marca”?

Pela expressão de Dimitri, aquele não era um assunto sobre o qual ele gostaria de conversar e, sinceramente, dava para entender. A sociedade Moroi nem sempre tratou dampiras bem. Elas só podiam ter filhos com Moroi, que muitas vezes só viam essas mulheres como objetos. A prática comum das dampiras que tinham filhos era entregar as crianças muito cedo para escolas como a St. Vladimir, assim podiam voltar ao serviço como guardiãs. No entanto, muitas dampiras não gostavam disso. Elas desejavam criar os próprios filhos. Algumas partiam e se escondiam na sociedade humana, mas isso era desaconselhado. Por mais que os dampiros tivessem uma aparência idêntica aos humanos, eles normalmente exibiam habilidades físicas que chamavam muita atenção. Sem outras opções, essas dampiras muitas vezes se juntavam em comunidades, umas mais civilizadas do que outras. Algumas dampiras faziam trabalhos usuais para sobreviver... outras recorriam a profissões mais controversas, como Dimitri confirmou.

— As integrantes dessas comunidades carregam símbolos que mostram sua função — ele explicou. — Algumas são residentes, outras hóspedes. Algumas se mostram disponíveis aos homens interessados... vendendo seus corpos.

— Que nojo — Rose disse.

Observei o desenho de Adrian e um pensamento horrível me ocorreu sobre Olive. Será que o desespero dela tinha chegado a esse nível?

— Você sabe de que função é esse? — perguntei.

Dimitri balançou a cabeça.

— Não sem a cor. Essas marcas identificam qual é a comunidade. Normalmente tem uma cor para simbolizar a situação da pessoa.

— Era verde — Adrian disse.

— Verde indica uma hóspede — Dimitri disse. Adrian e eu suspiramos aliviados. — Alguém morando lá temporariamente. Pode ser visitando uma parente, buscando refúgio...

— Mas não vendendo o corpo? — insisti. Não conseguia suportar a ideia da coitada da Olive fazendo isso.

— Não — Dimitri disse, intrigado. Rose também parecia não entender.

— Por que a pergunta? — ela questionou.

Adrian não respondeu na hora. Em vez disso, voltou a erguer o papel para eles.

— Você sabe que comunidade esse desenho representa? Onde fica?

Dimitri examinou por um momento antes de responder.

— Não... mas acho que posso descobrir. Por quê?

Adrian hesitou de novo.

— Lissa está aí em algum lugar? Ou mais alguém?

— Não — Rose disse. — Somos só nós dois. O que foi?

Adrian se virou para mim e bastou isso para eu entender em que estava pensando.

— É pra gente ficar escondido — eu o lembrei. — Longe de confusão.

— Olive pode estar com problemas. E se ela não quer falar num sonho, talvez nossa única opção seja conversar com ela pessoalmente — Adrian disse. — E também, poxa, se não podemos ajudar Jackie, pelo menos devíamos ajudar alguém...

Fiquei dividida de novo. Meu lado racional dizia para ficarmos em segurança. Mas meu coração queria ajudar, especialmente porque temia que Olive tivesse sido estuprada como Carly.

— Não dá pra saber onde a gente vai se meter — falei. — Pelo que ouvi dizer, algumas dessas comunidades dampiras parecem o Velho Oeste.

Adrian sorriu.

— Que bom que temos um caubói disponível.

— Hum, ei — Rose chamou do outro lado da tela, irritada por ter sido deixada de fora da conversa. — Vocês podem contar pra gente do que estão falando?

Adrian ergueu os olhos, encarando ela e Dimitri.

— O que vocês acham de fazer uma viagem com a gente?


9

Adrian

— Então aqui é o Canadá — eu disse, observando pela janela do carro.

— Pela última vez, aqui não é o Canadá — Sydney respondeu, revirando os olhos. — É o norte de Michigan.

Não via nada ao redor além de árvores enormes em todas as direções. Apesar de ser uma tarde de fim de agosto, a temperatura parecia de outono. Esticando o pescoço dava para ver de relance águas cinzentas atrás das árvores à minha direita: o lago Superior, segundo o mapa que tínhamos visto.

— Pode não ser o Canadá — aceitei —, mas é exatamente como eu imagino que o Canadá seja. Só que lá deve ter mais hóquei.

Sydney abriu um sorriso complacente ao escorregar para mais perto no banco traseiro.

— É muito diferente de Iowa.

— Com certeza — concordei, colocando o braço em volta dela enquanto admirávamos a paisagem.

Era loucura pensar na distância que havíamos percorrido em menos de vinte e quatro horas. Depois de convencer Rose e Dimitri a irem conosco à comunidade dampírica, tivemos que esperar Dimitri descobrir a qual delas pertencia o medalhão de Olive. Ele tinha retornado bem rápido, revelando que o símbolo no colar era usado por uma comunidade na península superior de Michigan. Dimitri e Rose pegaram uma série de voos para chegar da Corte até lá. Sydney e eu havíamos escolhido a rota mais direta, voltando para o carro e dirigindo por doze horas. Tinha sido exaustivo, ainda mais considerando como havíamos dormido pouco, mas dividimos a direção para poder cochilar. Isso também nos dera pouca oportunidade de conversar sobre os problemas maiores que continuavam pairando sobre nós. Não sei se era uma coisa boa ou ruim.

— Vamos — Rose disse, saindo do banco do passageiro da SUV. — Acho que a entrada é por ali.

Tínhamos encontrado com ela e Dimitri em Houghton. Então alugamos o carro mais robusto que encontramos e seguimos até o estacionamento de terra batida onde estávamos. Vários outros carros com placas de Michigan estavam parados ao lado do nosso, a maioria de modelos resistentes para se embrenhar na mata. Por mais que estivéssemos a apenas uma hora de Houghton, aquela dificilmente poderia ser considerada uma região metropolitana. A cidade tinha o básico: mercados, um hospital, cafés e até uma universidade; mas nada além disso. Depois que você saía da cidade, estava praticamente de volta à floresta. Era tudo que eu conseguia ver agora, e levei um momento para identificar a trilha que Rose indicou.

— Estreita — comentei enquanto eu e Sydney seguíamos Rose e Dimitri. A trilha em si era aberta, mas ao redor dela a floresta era densa e difícil de atravessar.

— De propósito — Dimitri comentou, caminhando como se fizesse esse tipo de trilha o tempo inteiro. Provavelmente o caminho que enfrentava todo dia para ir à escola na Sibéria era assim. — Para dificultar a passagem dos Strigoi.

— Aposto que é um saco passar por aqui no inverno — acrescentei. Praguejei quando um galho baixo enroscou na minha jaqueta.

Cuidado, avisou tia Tatiana. É couro italiano.

— Não seria uma surpresa se muitos saíssem no inverno — Dimitri comentou. — É uma localização ideal para o calor, com uma latitude mais ou menos alta. No auge do verão deve ter só umas cinco horas sem sol. Com isso e algumas defesas sólidas, dá pra conter ataques relativamente bem... ainda mais quando estamos falando de um grupo de dampiras. Elas sabem lutar.

Disso eu não duvidava. Continuei em silêncio enquanto me concentrava na caminhada e em não engolir nenhum mosquito. Meus músculos estavam duros por passar tanto tempo no carro, então até que era bom me mexer um pouco. Quando Dimitri tinha dito que o símbolo do medalhão era de um lugar chamado Comunidade Intencional do Pinheiro-Bravo, não fazia ideia de onde estaríamos nos metendo. Pelo jeito, “comunidade intencional” era o nome moderno das comunidades, uma expressão que os humanos ainda usavam. Graças ao conhecimento infinito de Sydney, também aprendi ao longo do trajeto que muitas das comunidades não eram mais compostas por um bando de hippies defensores do amor livre, estilo anos 1960. Algumas eram muito modernas, mas adotavam estilos de vida sustentáveis. Outras eram pouco maiores do que acampamentos. Dimitri nos dissera em Houghton que tudo indicava que essa comunidade dampírica em particular tinha um tamanho intermediário. Eu estava cruzando os dedos para que fosse algo mais moderno, talvez um tipo de resort secreto arborizado. Imagens da vila Ewok do Start Wars VI: O retorno de Jedi me vieram à mente.

— Tomara que tenha encanamento — Rose disse. — Essa era a pior parte de ficar com os Conservadores.

— Isso eu não achava tão ruim — Sydney comentou, surpreendentemente. — Foi com a qualidade da carne que tive problemas.

— Espera, sem encanamento?! — exclamei. Meu cérebro teve dificuldade para entender como daria para viver num lugar assim.

— Melhor se acostumar com a ideia — brincou Rose, me observando de soslaio. — Talvez Liss não deixe vocês voltarem. Quando tudo isso acabar, vocês dois podem ter que morar com os Conservadores.

— Tenho certeza que a gente consegue encontrar uma alternativa melhor antes de recorrer a isso — eu disse, com ar superior, sem querer admitir minhas inseguranças em relação ao nosso futuro.

Dimitri não compartilhava da ironia de Rose.

— Se os alquimistas ainda estiverem atrás dela, tenho certeza que Lissa vai deixar vocês voltarem para o flat na Corte.

Não vai ser divertido?, tia Tatiana disse. Voltar a ficar pertinho da sua mãe, sem que nunca mais nenhum de vocês queira sair para ver a cara dos outros Moroi.

— Aquilo não é vida — murmurei, pensando em como eu e Sydney nos sentíamos aprisionados lá. Mesmo quando brigávamos, nossa relação era mais vibrante quando tínhamos nossa liberdade. Ao encarar Sydney nos olhos soube que ela estava pensando o mesmo e tinha as mesmas dúvidas que eu sobre nosso futuro. Infelizmente, era improvável que conseguíssemos respostas tão cedo. Precisávamos nos concentrar nas preocupações imediatas. Jill. Olive.

Dimitri parou e apontou na direção da mata.

— Olhem. O começo das defesas.

Me virei para onde ele apontava e vi um brilho prateado na vegetação rasteira. Uma estaca de prata enfeitiçada. As dampiras dessa comunidade deviam tê-las colocado em lugares estratégicos em volta do assentamento, criando uma barreira mágica para manter os Strigoi longe. Os mortos-vivos não conseguiriam ultrapassar esse tipo de poder, mas exigia manutenção constante. Se os laços se enfraquecessem ou alguém mudasse uma estaca de lugar, um Strigoi poderia passar. Era uma preocupação que todas as comunidades de Moroi e dampiros tinham. As defesas na Corte eram checadas várias vezes por dia.

Tínhamos acabado de passar a estaca quando uma silhueta surgiu na mata de repente, entrando na frente de Dimitri. Ele assumiu uma posição defensiva ao ver a recém-chegada e relaxou ao notar que era uma dampira. Ela também estava com uma expressão firme e pronta para o ataque, além de carregar uma arma e uma estaca de prata no cinto. O medalhão no seu pescoço era exatamente igual ao de Olive, exceto pela cor, que era azul. O rosto da mulher suavizou ao ver Rose e Dimitri, mas voltou a ficar sério ao me encarar.

— Saudações — ela disse. — Vocês estão procurando a Pinheiro-Bravo?

Rose se apertou para ficar ao lado de Dimitri, o que não era fácil na trilha estreita.

— Estamos procurando uma amiga — ela disse. — Achamos que ela está aqui com vocês.

Depois de examinar Rose e Dimitri, a dampira cumprimentou Sydney com a cabeça e então ficou imediatamente hostil ao me encarar.

— E ele? O que ele está procurando?

— A menina que estamos procurando também é minha amiga — falei, surpreso com a reação dela. — Prometi pra irmã dela que a encontraria.

Nossa anfitriã pareceu cética e não entendi por quê. Eu pensaria que era solidariedade entre dampiros, não fosse o fato de ela não ver problema na presença de Sydney. A mulher devia ter visto a tatuagem de lírio de Sydney e imaginado que estava fazendo alguma visita alquimista de rotina. Isso ainda não explicava a frieza da minha recepção.

— Qual é o nome da sua amiga? — a mulher perguntou.

— Olive Sinclair — respondi.

Seu rosto se encheu de desprezo na hora, mas ficou claro que o desprezo era contra mim, não Olive.

— Então foi você que a colocou em encrenca?

— Eu que... — Entendi o que ela queria dizer e fiquei vermelho, o que só devia ter acontecido umas duas vezes na minha vida. — Quê? Não! Claro que não! Quer dizer, se fosse eu, nunca... quer dizer... não sou o tipo de cara que...

— Não — Dimitri disse, categórico. — Adrian não é o responsável. Suas intenções aqui são honráveis. Sou testemunha do caráter dele. Sou Dimitri Belikov. Estas são Rose Hathaway e Sydney Ivashkov.

Normalmente, uma humana apresentada com um sobrenome da realeza Moroi causaria um susto. Mas ficou claro que essa mulher não ouviu nada depois dos nomes de Dimitri e Rose. Vi claramente em seus olhos a mesma admiração e veneração que já tinha visto em tantos rostos sempre que essa dupla dinâmica se apresentava. E, com isso, a mulher se transformou de uma leoa feroz em uma fã empolgada.

— Ai, meu Deus! — ela exclamou, efusiva. — Sabia que conhecia vocês de algum lugar! Já vi suas fotos! Devia ter reconhecido na hora! Que vergonha! Entrem, entrem. Meu nome é Mallory, aliás. Não vamos ficar aqui parados no meio do mato. Vocês devem ter viajado muito para chegar aqui. Descansem um pouco. Comam alguma coisinha. Ai, meu Deus!

Nós a seguimos pela trilha estreita que, no fim, se abria numa enorme clareira. O Pinheiro-Bravo se revelou um misto entre um acampamento e um resort. Na verdade, me lembrou um pouco uma cidade do Velho Oeste mesmo. Era completamente possível imaginar um tiroteio acontecendo ali. Cabanas bonitas eram dispostas em fileiras ordenadas que pareciam divididas entre uma área comercial e uma residencial. Os dampiros, quase todos mulheres e crianças, circulavam por ali. Alguns paravam para nos lançar olhares curiosos. Mallory nos guiou até uma grande cabana situada entre as áreas comercial e residencial, saltitando a cada passo que dava.

Entramos no que parecia um escritório, e a primeira coisa que notamos foi que havia eletricidade. Achei que era um bom indicativo de que haveria água encanada. Uma dampira mais velha, com o cabelo loiro grisalho, estava sentada a uma mesa, mexendo no computador. Ela também usava um medalhão azul. Ao nos ver, ela levantou e enfiou os dedos no passante do cinto da calça jeans enquanto recostava na parede, exibindo as botas de couro ornamentadas que reforçaram ainda mais minhas ideias estereotipadas de Velho Oeste.

— Ora essa, quem você encontrou, Mallory? — ela perguntou, com um sorriso.

— Lana, você não vai acreditar em quem eles são — Mallory exclamou. — São...

— Rose Hathaway e Dimitri Belikov — Lana completou. Seus olhos então recaíram em mim e Sydney, e ela arqueou a sobrancelha. — E Adrian Ivashkov e sua famosa esposa humana. Já fui à Corte. Sei quem são as celebridades.

— Não somos celebridades — assegurei, colocando o braço em volta de Sydney e apontando com a cabeça para Rose e Dimitri. — Não como esses dois.

Os cantos dos olhos de Lana se enrugaram quando sorriu para nós.

— Não? Seu casamento é fonte de muita especulação.

— Acho que isso nos torna mais um motivo de fofoca do que celebridades. — Mas, quando as palavras saíram da minha boca, me perguntei qual era a diferença entre as duas categorias.

— Bom, é um prazer conhecer vocês. Todos vocês. — Lana deu alguns passos à frente e apertou nossas mãos. — Olive me contou sobre seu excelente trabalho para criar uma vacina Strigoi, lorde Ivashkov.

Ia começar a dizer que não estávamos tendo tanta sorte na vacina, mas algo mais importante chamou minha atenção nas suas palavras.

— Você conhece Olive.

— Claro — disse Lana. — Conheço todo mundo aqui.

— Lana é nossa líder — Mallory explicou.

Lana soltou uma gargalhada.

— Sou mais uma administradora. Vocês estão aqui para ver Olive, imagino.

— Se a senhora permitir — Dimitri disse, com educação. — Ficaríamos gratos por qualquer assistência que puder nos oferecer.

— A decisão não é minha. É de Olive. — Lana nos encarou por um instante, como se estivesse tomando uma decisão. Por fim, assentiu. — Eu mesma levo vocês até lá. Mas primeiro comam um pouco e relaxem. Sei que não é fácil chegar aqui.

Nós a agradecemos pela hospitalidade, mas foi difícil relaxar sabendo que estávamos tão perto de Olive. Quando nos encontramos em Houghton, eu tinha feito todo o relatório da parte que sabia da história para Rose e Dimitri. Eles ficaram tão preocupados quanto eu e também concordaram que devia haver alguma coisa sinistra acontecendo se ela achava tão necessário esconder a gravidez. Tive a impressão de que, se alguém havia se aproveitado dela e Dimitri descobrisse o responsável, as consequências seriam graves.

O jantar foi alguns sanduíches naturais de frango, uma refeição surpreendentemente normal para um resort de meio-vampiros no meio da floresta. Sydney não hesitou antes de comer o dela, o que dizia muito sobre como ela havia avançado na sua relação com não humanos. Enquanto isso, Lana deixou claro que não havia nenhum fornecedor oficial por ali e que eu não deveria nem pensar em pedir sangue de alguma dampira de Pinheiro-Bravo. No entanto, seu tom de voz e meu conhecimento sobre essas comunidades me fizeram desconfiar que havia dampiras ali que vendiam seu sangue a Moroi com a mesma liberdade que vendiam seus corpos. Era o lado negro daqueles acampamentos, o que havia lhes dado uma reputação tão negativa. Obviamente não eram todas que praticavam, mas acontecia com frequência.

Depois do jantar, Lana foi fiel à sua palavra e nos levou pessoalmente, fazendo um breve tour pela comunidade. Como tinha desconfiado, algumas das cabanas serviam como lojas.

— Fazemos viagens regulares a Houghton para comprar suprimentos — ela explicou. — Mas também tentamos ser o mais autossustentáveis possível. Cultivamos boa parte da nossa comida e até costuramos algumas roupas. — Ela apontou para uma cabana onde duas dampiras costuravam na entrada sob a luz de um lampião, já que o crepúsculo avançava. Elas acenaram para nos cumprimentar. Ela apontou para outras cabanas conforme passávamos. — Aquela é a loja da Jody, que sabe consertar tudo. E aquele ali é nosso centro médico, por assim dizer. April é quem comanda o lugar, mas ela está fora para comprar suprimentos. As coisas de que precisa são as mais difíceis de produzir. Ali é a escola comandada por Briana.

— Vocês têm painéis solares lá — comentou Sydney. — Que ideia inteligente.

Lana sorriu, visivelmente orgulhosa.

— Foi ideia da Talia. A eletricidade chega até aqui, mas ela achou que a gente devia ter uma fonte renovável à disposição.

Notei que todos os nomes eram femininos e que, tirando algumas crianças, a comunidade era composta exclusivamente por mulheres. Por isso, foi um choque quando avistei um Moroi andando perto de algumas cabanas separadas das outras. Ao notar meu olhar, Lana fechou a cara e soltou um suspiro resignado.

— Sim. É lá que as meninas que querem “passar um tempo” com os hóspedes vivem.

— Por que você não as expulsa? — Dimitri perguntou, com a expressão sombria.

— Porque algumas dessas meninas continuariam a fazer isso de qualquer jeito. Fugiriam para morar em algum lugar menos seguro. Prefiro manter tudo sob meu controle. Alguns homens só querem se divertir e há meninas que aceitam isso e não esperam nada em troca... — Enquanto falava, Lana observava o Moroi que eu tinha visto. Uma dampira segurava seu braço e eles riam ao passar por nós, entretidos em alguma conversa particular. Ela parecia acompanhá-lo até a saída da comunidade e notei que o seu medalhão era vermelho. Lana se virou para nós depois que eles passaram. — Outros homens são pura confusão. É neles que precisamos ficar de olho... e, às vezes, são eles que precisamos tirar à força.

— Alguma ideia sobre o tipo de homem com que Olive esteve envolvida? — perguntei.

Lana voltou a caminhar, levando-nos para uma área de cabanas residenciais afastada de onde o Moroi tinha vindo.

— Não. É assunto dela, por isso não insisti. Ela não recebeu nenhuma visita masculina, isso eu posso dizer. Não parece ter nenhum interesse romântico.

— Tem um dampiro muito digno interessado nela — falei. — Mas ela cortou relações com ele. E com todo mundo.

— É uma pena — Lana disse. Paramos diante de uma cabana bonitinha com cortinas verdes. — Mas quem sou eu para julgar? Estamos todos lutando nossas próprias batalhas da melhor maneira possível.

Muita sabedoria para uma aspirante a xerife da floresta, disse tia Tatiana.

Refleti sobre as palavras de Lana enquanto ela batia na porta da cabana. Uma dampira com cachos rebeldes atendeu, sorrindo ao vê-la.

— Oi, mãe.

— Oi, Diana. — Lana deu um beijo na bochecha dela. — Olive está aí?

Diana examinou nosso grupo, fixando o olhar em mim por mais tempo. Odiava que todo mundo ali esperasse o pior de mim. Era triste saber que, naquele lugar, a presença de um homem Moroi gerava mais insegurança do que a de uma alquimista.

— Claro — ela disse. — Vou chamar.

Diana desapareceu dentro da cabana. Percebi que estava tenso enquanto esperávamos. Ao perceber, Sydney apertou minha mão.

— Não acredito que estamos prestes a vê-la depois de tudo que aconteceu. Sem monstros rochosos. Sem batalhas de espírito. — Precisei parar porque minha voz estava embargada. — Acho que posso acertar a situação com Olive aqui, ser útil pra ela. Assim não vou ter falhado com Charlotte...

Sydney apertou minha mão com mais força.

— Você não falhou, Adrian. Ela fez as próprias escolhas.

Talvez, se você tivesse sido mais forte, se tivesse usado mais espírito no sonho... A voz da tia Tatiana fez uma pausa para me deixar refletir sobre a ideia. Enfim, talvez Charlotte não estivesse do jeito que está.

Fica quieta, retruquei para a voz fantasma. Sydney tem razão. Não é culpa minha. Charlotte fez as próprias escolhas.

Se é o que você diz..., disse tia Tatiana.

Olive saiu bem nessa hora, usando as mesmas roupas que tinha visto no sonho. E, assim como no sonho, estava visivelmente grávida. Começou a sorrir ao ver Lana, então ficou paralisada ao notar nossa presença.

— Não — ela disse, andando para trás. — Não, não, não.

Rose deu um passo à frente.

— Olive, espera. Por favor. Queremos conversar com você. Queremos ajudar.

Olive balançou a cabeça, transtornada, e Lana colocou o braço em volta dela.

— Querida, faria bem falar com eles.

— Eu não quero! — Olive exclamou. Quando a cercamos, ela encarou cada rosto como um bicho encurralado, e senti meu coração doer por ela. Seu olhar recaiu sobre Sydney, e ela pareceu incrédula. — Uma alquimista!

— Não estou mais com eles — Sydney disse. — Estou aqui para te ajudar, assim como todo mundo.

— Você conhece Sydney — lembrei Olive. — Pode confiar nela.

Olive ainda parecia assustada, mas pelo menos tirou os olhos de Sydney.

— Não tenho nada a dizer pra vocês!

— Então não diga nada — falei. — Só ouça. Dê uma volta comigo. Só comigo. Me deixa contar o que está acontecendo com Charlotte. Você não precisa falar nada.

O nome da sua irmã fez com que Olive parasse de recuar. Ela tirou as longas mechas de cabelo preto do rosto, indagando com os olhos cheios de lágrimas.

— Charlotte? Ela está bem? Naquele sonho...

Apontei para trás de mim.

— Vamos dar uma volta. Te conto tudo.

Depois de certa hesitação, Olive assentiu e saiu da cabana. Sydney entendeu minha abordagem delicada e se manteve à distância e em silêncio. Rose, por outro lado, queria claramente vir conosco, mas fiz um não rápido com a cabeça. Dimitri colocou a mão no braço dela para enfatizar. Eu sabia que Olive gostava de Rose e Dimitri e que eles tinham boas intenções, mas no momento havia gente demais. O medo de ser interrogada por um grupo devia ser o motivo para ela ter buscado refúgio na floresta. Abri um sorriso tranquilizador e quase usei um pouco de compulsão para acalmá-la, mas achei melhor não. Como ela tinha crescido com uma irmã usuária de espírito, poderia reconhecer os sinais e achar que eu estava tentando me aproveitar dela.

— Belo lugar — comentei quando entramos numa trilha entre as cabanas. As árvores sobre nós eram altas e passarinhos cantavam nos galhos.

— Me fala sobre Charlotte — Olive disse, sem perder tempo com conversa fiada. — Ela está bem?

Hesitei.

— Mais ou menos. O que ela fez naquele último sonho... enfim, envolveu muito espírito. Muito. — Tentei encontrar um jeito delicado de falar sobre isso sem mencionar que Charlotte havia tido um ataque ou que podia ter perdido a sanidade. — Essa quantidade de espírito tem um preço. Agora ela está, hum, dormindo muito e falando coisas sem sentido. Mas isso pode mudar. Talvez ela fique bem depois que tiver tempo para se recuperar.

Olive olhava fixo para o nada.

— Por que ela não podia simplesmente me deixar em paz? Por que insistiu em me encontrar? Ela nunca deveria ter se arriscado daquele jeito!

— Ela te ama — eu disse. — E acho que Neil também.

Os olhos de Olive se encheram de lágrimas de novo.

— Ah, Neil. Como vou conseguir explicar para ele o que aconteceu?

Parei e a encarei.

— Escuta, o que quer que tenha acontecido, ele vai entender. Ele não vai se importar com o que outro cara tenha feito com você... quer dizer, ele vai querer acabar com a raça dele, mas não vai julgar ou usar isso contra você. Ele te ama. Vai te ajudar e te apoiar. Todos nós vamos.

O desespero dela deu lugar à confusão.

— “Outro cara”?

— É... enfim. — Abaixei os olhos para a barriga crescida dela. — Quer dizer, é óbvio que teve algum Moroi envolvido. E se ele fez isso contra sua vontade, você precisa contar pra gente. Ele precisa ser levado à justiça.

Me senti ridículo por usar a expressão “ser levado à justiça” numa cidade com ar de Velho Oeste, mas o olhar desorientado de Olive dizia que ela não ligava.

— Não, não. Você... você não entendeu. Você não entendeu nada.

— Então me ajuda — eu disse, segurando suas mãos. — Me ajuda a entender pra ajudar você. Prometi para Charlotte que ajudaria.

— Adrian? É você?

Não reconheci a voz imediatamente e virei para ver quem era. Tínhamos andado ao acaso e o lugar onde paramos nos dava uma boa visão das “cabanas do distrito da luz vermelha”. Outro Moroi estava saindo e, pelos seus passos cambaleantes, tinha bebido na floresta.

— É você mesmo! — exclamou o homem, triunfante. — Eu sabia!

Depois de mais alguns segundos, o reconheci.

— Tio Rand? — perguntei, incrédulo.

Ele caminhou até nós e sorriu.

— Em pessoa.

Mal conseguia acreditar. Tinha passado a achar normal todo tipo de acontecimento fantástico e extraordinário. Batalhas de espírito? Sem problema. Minha mulher se transformando num gato? Claro, vamos lá. Encontrar um familiar em que eu não pensava havia anos não deveria me deixar tão espantado. Rand Ivashkov era o irmão mais velho do meu pai, alguém que não via desde a infância. Rand não havia sido deserdado — não oficialmente, pelo menos —, mas desde cedo tinha ficado claro para mim que todo mundo preferia que ele não estivesse por perto. Meu pai assumira as responsabilidades dele na Corte e enviara Rand para fora do país em missões simples apenas para mantê-lo afastado. Uma vez, quando me meti em encrenca numa festa ilícita na adolescência, minha mãe insistira para que meu pai pegasse leve no castigo. “Afinal”, ela tinha dito, “ele não é tão ruim quanto o seu irmão.”

Ele só traz problema, tia Tatiana murmurou. Uma desgraça. Se preocupa mais com mulheres e vinho do que com a honra da família.

Não parece muito diferente de mim, admiti.

Ela riu com escárnio. Até parece. Sua família nunca te mandou pra longe para te manter fora do caminho.

Da última vez que soube, Rand estava em algum lugar na Europa. Definitivamente não esperava encontrar meu tio no norte de Michigan.

— O que você está fazendo aqui? — perguntei.

— O mesmo que você — ele disse, dando uma piscadinha.

Ele tinha os mesmos olhos verde-escuros que eu e seu cabelo castanho trazia alguns fios brancos, embora não fossem nada perto dos que meu pai tinha. Talvez uma vida de vinho e mulheres fosse menos estressante do que uma vida respeitável no Conselho Moroi. Rand era alto, mesmo para os nossos padrões, e precisou se abaixar para encarar Olive, fazendo-a recuar para perto de mim.

— Ela é linda — ele disse. — Estou vendo que você também está fazendo sua família paralela, hein? Também tenho alguns. Essas dampiras procriam feito...

— Não é nada disso que você está pensando — interrompi, já cansado de explicar. — Eu não... quer dizer, Olive é só uma amiga que vim visitar.

Tio Rand se empertigou.

— Então ela está disponível? Não a tinha visto por aí...

— Não — eu disse, entredentes. — Ela não está disponível. Escuta, é bom ver você e tudo mais, mas essa realmente não é a hora nem o lugar. Tenho coisas a fazer.

Comecei a me virar, indicando para Olive que devíamos voltar para a cabana de Diana. Para o meu espanto, Rand segurou meu braço e me fez dar meia-volta. De perto, o cheiro de vodca vindo dele quase me derrubou.

— Deixa disso! — ele disse, inflamado. — Você parece um esnobe como o resto da sua família. Seu pai e a santíssima esposa dele sempre agiram como se eu não fosse bom o bastante para ficar perto de vocês. Mas olha só você agora. Está aqui, assim como eu. E ouço de tudo sobre você... mas você me vê julgando? Nós temos muito em comum.

Puxei o braço para me soltar.

— Disso eu discordo.

— Você é mesmo igual a eles! — Ele avançou na minha direção com passos trôpegos pela bebedeira. Não tinha certeza se ele estava tentando me bater ou só me puxar de novo, mas não havia como saber. Uma sombra alta de repente surgiu entre nós e o acertou com um gancho de direita. Ergui os olhos e encontrei Dimitri encarando meu tio, que agora estava estatelado na grama, com uma expressão forte de repugnância. Rose, Sydney e Lana vieram correndo até nós.

— Que droga está acontecendo? — Rose exclamou.

— Obrigado — eu disse para Dimitri. — Mas acho que a gente não precisava de uma intervenção tão forte. Estava me defendendo bem.

— Ele é um animal — Dimitri grunhiu. — Não devia estar aqui.

— Bom, acho que... — Parei e reconsiderei as palavras de Dimitri. — Você o conhece de algum lugar?

Dimitri me encarou.

— Sim. E você?

— Sim — eu disse. — Ele é meu tio, Rand Ivashkov.

— Ah, é? — A expressão dura de Dimitri não mudou. — Ele é meu pai.


10

Sydney

A gravidez de Olive Sinclair já não era a novidade mais surpreendente do momento. Ou pelo menos tinha uma forte concorrente em nível de esquisitice.

Ficamos parados e constrangidos no meio da trilha enquanto passarinhos cantavam alegremente ao nosso redor, tornando essa inesperada revelação familiar ainda mais surreal. Até mesmo Rose, que quase sempre tinha o que dizer, estava sem palavras. O Moroi Rand Ivashkov pestanejou ao ver Dimitri, como se estivesse diante de um fantasma. Parte da arrogância de Rand diminuiu e ele deu um passo para trás, apreensivo.

— Olha só que coisa. É você, Dimka. — Ele lambeu o lábio e tentou sorrir. — Você está muito bem para alguém que era um morto-vivo até pouco tempo, não? — Ele encarou o resto de nós, esperando que ríssemos da piada. Continuamos em silêncio. Dimitri se voltou para Lana.

— Ele está causando algum problema? — o dampiro perguntou com educação. — Estão com dificuldades de tirá-lo daqui? Vai ser um prazer fazer isso por vocês.

— A gente sabe se virar — ela retrucou delicadamente. Como se invocadas por um sinal silencioso, Mallory e outra dampira, que parecia uma segurança, surgiram na trilha atrás de Lana. Mallory não agia mais como uma fã extasiada. Naquele momento, sua postura era tão formidável quanto a de qualquer guardiã que eu já conhecera.

Rand relaxou um pouco.

— Viu? Não precisa se precipitar.

Lana fixou o olhar nele.

— Isso não significa que você é bem-vindo aqui.

— Ei — ele disse, retomando a confiança. — Tenho todo direito de estar aqui. Vim visitar Elaine. Ela é uma residente. Ela pode receber visitas.

— Ela pode receber as visitas que eu autorizar — Lana corrigiu, com as mãos no quadril. — E já falei que não quero você bebendo aqui.

Ele ergueu a mão num gesto aparentemente apaziguador.

— Certo, não vou tomar mais nenhuma gota. Juro. Mas você não pode me expulsar agora... não com meu filho e meu sobrinho aqui. Essa é quase uma reunião familiar.

Rose finalmente recuperou a voz e se dirigiu a Dimitri.

— Jura? Esse cara? Tem certeza?

Eu estava tão incrédula quanto ela.

Dimitri manteve o olhar frio fixo no tio de Adrian.

— Absoluta. Mas achava que ele estivesse vadiando pela Europa.

Rand balançou a cabeça.

— Faz anos que não vou pra lá. No trabalho que Nate me arranjou falaram que não precisavam mais dos meus serviços de consultor. Como Olena está?

— Nunca mais repita o nome da minha mãe na minha frente — Dimitri grunhiu.

— Jura? — Rose repetiu. — Esse cara?

A menção da mãe de Dimitri e do pai de Adrian, que nunca tinha ouvido ser chamado de Nate, chamou a atenção para a revelação mais surpreendente de todas. O queixo de Adrian caiu quando ele também se tocou.

— A gente... isso quer dizer que... a gente é primo? — ele exclamou, voltando-se para Dimitri.

Os olhos de Rose se arregalaram ainda mais.

Perto de nós, Olive se mexeu, constrangida, e colocou a mão na lombar, com uma expressão de dor. Por mais inesperado que fosse esse drama familiar para nós, imaginei que, para ela, não era nada interessante perto de tudo que estava acontecendo em sua vida. Dimitri se aproximou na hora e segurou o braço dela.

— Você está cansada. Não precisa ficar aqui em pé aturando tudo isso. Vou levar você de volta. — Ele começou a conduzir Olive na direção da cabana de Diana, mas parou para lançar um olhar a Lana. — A decisão do que vai fazer com ele é sua, mas eu teria o maior prazer de me livrar dele, se você quiser.

— Deixa que nós cuidamos disso — ela respondeu.

Dimitri concordou e levou Olive embora, como um cavaleiro de conto de fadas bizarro. Rose pareceu dividida, sem saber se ia com eles ou ficava, e finalmente decidiu seguir a dupla pela trilha. Lana se voltou para mim e para Adrian.

— Vocês se responsabilizariam por ele se ficasse?

— Meu tio? — Adrian perguntou. — De jeito nenhum. Faz anos que não o vejo. Não sei nada sobre ele.

— Ah, qual é? — Rand gritou. — Nós somos da mesma família. E Lana, você não pode me expulsar. O sol vai se pôr daqui a pouco. Houve relatos de alguns Strigoi na região esta semana.

Pensei que ele estava exagerando por benefício próprio, mas a expressão grave de Lana mostrou que não.

— Tudo bem. Você pode passar a noite na área de hóspedes na frente da comunidade.

Ela apontou para as cabanas particulares.

— Não tem por que se preocupar. Aposto que Elaine...

— Área de hóspedes — Lana repetiu mais alto. — Ou pode sair agora.

Rand soltou um suspiro dramático, como se estivesse sofrendo um inconveniente terrível, e não recebendo uma enorme gentileza.

— Certo. Pelo menos você me leva até lá, Adrian? Depois pode voltar para a dampira que engravidou.

Adrian fechou a cara mas não o corrigiu. Lana já estava indo embora, sem deixar outra escolha para mim e Adrian além de caminhar com Rand. Mesmo assim, notei as guardas nos seguindo a uma distância respeitosa enquanto caminhávamos até a entrada da comunidade. Lana não iria deixar Rand sem vigilância.

— Como vai seu pai? — Rand perguntou, amigável. — E sua mãe?

— Eles se separaram — Adrian respondeu. — Pensei que você soubesse.

— Nate não fala mais comigo. Ninguém fala. Preciso conseguir todas as informações por fofocas de segunda mão. — Ele parecia terrivelmente incomodado com isso. Deu para ver que era o tipo de pessoa que sentia muita pena de si mesmo.

— Talvez você devesse pensar a respeito disso — Adrian retrucou. — Se “ninguém” fala com você, talvez o problema não sejam eles. Talvez seja você.

Ele lançou um olhar para Adrian de soslaio.

— Não banca o certinho. Já falei, ouvi muito de você. Você e sua... esposa humana. — Rand parou de repente ao se tocar. Seu olhar pousou em mim, depois se voltou para Adrian. — Espera aí... Ela? A alquimista? E vocês estão assim... em público? Sem nenhuma vergonha?

Adrian manteve uma calma extraordinária.

— O nome dela é Sydney. E não temos por que ter vergonha. Humanos e Moroi casavam antigamente. Ainda casam entre os Conservadores. Eu e Sydney nos amamos. É tudo que importa.

Rand balançou a cabeça, incrédulo.

— Bom, então bem-vinda à família, Sydney. Pelo menos assim não sou o foco dos escândalos. — Ele virou para Adrian. — Mas vou te contar: nossa tia deve estar se revirando na tumba.

— Acho que ela não veria problema nenhum. Eu a conheço muito bem — Adrian disse. Um momento depois, pareceu perceber o que tinha falado. — Quer dizer, a conhecia muito bem. — Eu o observei com atenção, tentando descobrir se tinha sido um ato falho. Desde que ele admitira para mim que ouvia a voz da tia na cabeça, se recusava a explicar com que frequência ela falava com ele. Sem parecer abalado, ele manteve a atenção em Rand. — Por que você não foi ao funeral dela?

Rand deu de ombros e diminuiu o passo até pararmos diante de uma cabana em que estava escrito HÓSPEDES.

— Não gosto de funerais. Além disso, não dava tempo de voltar quando fiquei sabendo. Estava na Europa quando aconteceu.

— Rússia? — perguntei. Eu tinha passado bastante tempo na Rússia e estava certa de que lembraria de ter visto alguém tão detestável quanto Rand Ivashkov nos círculos Moroi.

— França — Rand respondeu. — Faz tempo que não vou para a Rússia.

— Você foi pra lá pelo menos uma vez — Adrian apontou. — Se Dimitri realmente é seu filho.

Rand se empertigou.

— Ele é, e estive lá várias vezes. Mas aquela família nunca teve consideração por mim, então não fui mais.

Adrian o encarou com desconfiança.

— Jura? É só isso a história? Apesar de durão, Dimitri é o tipo de pessoa que perdoa fácil. Acho que não tem como não ser, depois de já ter sido Strigoi. Mas com você ele estava furioso.

Rand desviou o olhar.

— Eu e a mãe dele já não nos dávamos muito bem. Os meninos exageram com esse tipo de coisa, só isso. — Ele subiu o degrau da entrada da cabana. — Vocês vão entrar? É bom já escolher o quarto antes que os outros homens que vão passar a noite aqui apareçam.

— Não vamos ficar aqui — Adrian disse.

Rand apontou para o horizonte, que escurecia.

— Vocês vão ficar. Essa é a única hospedaria da comunidade. Onde mais ficariam?

Eu e Adrian nos entreolhamos. Passar a noite não estava nos nossos planos.

— Não aqui — ele disse, decidido. — Não com você.

— Pode me desprezar o quanto quiser, mas fiz o melhor que podia nas minhas circunstâncias — Rand disse, com raiva. — Nunca me encaixei, nunca segui as regras e eles foram me rejeitando, um a um. Isso vai acontecer com você, espera só pra ver. É o preço de ter casado com ela. Você perdeu tudo que poderia alcançar, que poderia se tornar como um Ivashkov. Daqui a pouco vai descobrir como é ter que ir de um lugar para o outro sem rumo.

— Precisamos ver como nossos amigos estão — Adrian falou para ele, pegando meu braço e me levando embora. — Bom encontrar você.

— Você mente muito mal, rapaz — Rand gritou pra gente.

— Ele está certo? — perguntei baixinho depois de nos afastarmos um pouco da cabana de hóspedes.

— Que minto mal? Não, minto superbem.

Parei de repente, obrigando-o a parar também. Já estava escuro e a única luz vinha dos lampiões posicionados em lugares estratégicos ao longo do caminho principal do acampamento.

— Adrian, estou falando sobre o que ele disse sobre mim... Custei tão caro pra você? A gente sempre fala sobre eu ter me afastado dos humanos, mas você desistiu da vida como nobre para...

— Sydney — Adrian me interrompeu, segurando meu rosto entre as mãos. — Nunca, nunca pense desse jeito. Não me arrependo de nada que enfrentamos juntos. Estar com você é a melhor coisa que poderia ter me acontecido, a única decisão perfeita que tomei nessa minha vida atrapalhada e sem juízo. Faria tudo de novo para ficar ao seu lado. Nunca duvide disso. Nunca duvide do que sinto por você.

— Ai, Adrian — eu disse, deixando que ele me envolvesse em seus braços, surpresa com a emoção que crescia dentro de mim.

Ele me apertou com força.

— Eu te amo. Na verdade, eu é que não acredito em tudo que você fez para ficar comigo. Você mudou toda a sua vida por mim.

— Minha vida não tinha nem começado até eu conhecer você — eu disse a ele, com as palavras carregadas de sentimento.

Adrian recuou e me encarou com atenção por trás das sombras que cobriam seu rosto.

— Quando você vê alguém como ele, como o tio Rand, você fica com medo? De que eu possa virar alguém assim?

Senti meus olhos se arregalarem.

— Não — eu disse, decidida. — Você não é nada parecido com ele.

Percebi pela expressão de Adrian que ele não tinha tanta certeza e corria o risco de entrar numa das suas terríveis depressões. Seu uso recente do espírito com Charlotte sem dúvida o deixara muito mais vulnerável. Adrian podia não ter dúvidas em relação a mim e ao nosso amor, mas o futuro que Rand previra, com nós dois indo de um lugar para o outro sem ter onde ficar, poderia muito bem se tornar realidade. Isso me assustava e provavelmente assustava Adrian também. Observei enquanto ele tentava, com muito esforço, expulsar esses pensamentos sombrios e assumir uma expressão mais alegre.

— Bom, vendo pelo lado positivo, acho que posso comemorar por ter ganhado um novo parente.

Quase tinha me esquecido dessa revelação inesperada sobre ele e Dimitri.

— Isso é verdade mesmo? Como você nunca soube disso antes?

Adrian balançou a cabeça, melancólico, e voltou a andar.

— Pelo que ouvi falar das “atividades” do tio Rand, é bem possível que ele tenha algumas dezenas de filhos bastardos pelo mundo. Por que não Dimitri?

— Achei estranho Dimitri nunca ter comentado nada sobre isso antes — falei.

— Também achei — Adrian admitiu, quando chegamos perto da cabana de Diana. — Mas, pra falar a verdade, nunca nem passou pela minha cabeça que ele tinha um pai. Ele parece o tipo de cara que já nasceu adulto. Se um dia eu tivesse que imaginar o pai dele, acho que seria uma versão grisalha de Dimitri, com casaco e tudo.

Dei risada e parei atrás dele na entrada da cabana. Alguém gritou para entrarmos quando batemos na porta, e encontramos Rose e Dimitri sentados na salinha. Pelo visto, Diana tinha saído. Olive estava deitada num sofá simples, com o rosto pálido.

— Ele foi embora? — Dimitri perguntou. Seu tom deixou claro a quem se referia.

Eu e Adrian sentamos num banco de madeira.

— Não — respondi. — Ele vai ficar na cabana de hóspedes e acha que nós também vamos.

— Consigo pensar em uma dezena de torturas que eu preferia sofrer a passar uma noite sob o mesmo teto que ele — Dimitri disse, sério.

— Tenho certeza que não vai ser necessário — Adrian comentou.

— Olive falou que a gente pode passar a noite aqui — Rose explicou. — Se não se importarem em dormir no chão.

— Considerando a outra opção, sem problema. — Adrian fixou o olhar em Dimitri. — Quando você pretendia me contar que somos uma grande família feliz?

Uma expressão angustiada passou pelo rosto de Dimitri.

— Juro que não sabia.

Adrian ergueu as mãos.

— Qual é? Você tem o quê? Duas ou três irmãs? Está na cara que ele ficou um bom tempo com vocês. Nunca passou pela sua cabeça que Rand Ivashkov poderia ser parente de outro Ivashkov que você conhecia?

Uma faísca de ódio brilhou nos olhos de Dimitri.

— Ele nunca nos disse o nome completo. Era só Randall pra nós. Sabíamos que era um nobre americano que viajava a negócios com frequência. Nunca fazíamos perguntas. Minha mãe gostou dele... por um tempo.

— Ele falou que já não se davam muito bem — eu disse —, que vocês não tinham consideração por ele.

A faísca nos olhos de Dimitri virou uma chama.

— Nós não tínhamos consideração? Ele batia na minha mãe quando bebia e não conseguia o que queria.

Adrian deixou o tom brincalhão de lado.

— E o que aconteceu depois? — perguntou com a voz suave.

Dimitri não respondeu, mas Rose sim.

— Dimitri bateu de volta.

Ficamos em silêncio até ouvirmos um movimento de Olive no sofá. Ela estava escutando a conversa, com o rosto enrugado de desconforto. Adrian a observou com um olhar que eu já conhecia muito bem, ao mesmo tempo focado e distraído. Ele estava analisando a aura dela. Eu tinha brigado com ele sobre visão de aura por um tempo, mas acabei desistindo. Para ele era tão natural que metade das vezes nem percebia que estava fazendo. Segundo Sonya, usava muito pouco espírito, então passei a brigar só por usos maiores.

— Como você está? — Adrian perguntou para Olive, preocupado.

— Não estou me sentindo bem — ela respondeu. Passou a mão na barriga. — Um pouco de dor. Tenho dor desde o começo da gravidez.

— Suas cores estão todas espalhadas... diferente de antes. É quase como se fossem duas auras misturadas. — Adrian ergueu as sobrancelhas de repente. — Você está em trabalho de parto?

Ela foi pega de surpresa com a ideia... mas também ficou com medo.

— Eu... eu não sei. A dor está pior do que o normal, mas ainda falta mais de um mês para...

As badaladas de um grande sino ecoaram pelo ar. Rose e Dimitri levantaram imediatamente.

— O que foi isso? — ela perguntou.

Dimitri tirou uma estaca de prata do cinto.

— Alerta de Strigoi. Há o mesmo sistema em Baia. — Ele correu para a porta com Rose logo atrás. Antes de sair, apontou para a lareira. — Acendam o fogo. Se aparecer algum Strigoi, tentem jogá-lo nas chamas.

Ele não explicou como exatamente faríamos isso — com força bruta ou com o espírito de Adrian — e os dois foram embora antes que eu pudesse perguntar. Eu e Adrian nos entreolhamos até que a nova ameaça nos fez reagir. Com um simples feitiço, dobrei o tamanho das chamas da lareira. O fogo era nossa melhor arma contra os Strigoi e, embora eu pudesse invocá-lo do nada, ter uma fonte pronta poderia ser útil para mim e Adrian.

Olive soltou um grito quando as chamas cresceram. Virei para ela. Seu rosto se contorceu de dor e sua mão estava pousada na barriga.

— Você está bem?

— Acho... acho que talvez o bebê esteja nascendo — ela exclamou.

Adrian ficou pálido.

— Você quer dizer agora ou num futuro próximo?

A pergunta era tão ridícula que, por um momento, ela parou de prestar atenção na dor.

— Sei lá! Nunca tive um filho antes!

Adrian me encarou.

— Então... hum, você sabe como fazer isso, né? Como fazer um parto?

— Como assim? — perguntei, em pânico. — Por que eu saberia?

— Porque você é boa em tudo — ele disse. — Só sei o que vi em filmes. Esquentar água. Rasgar lençóis.

Como sempre, me apeguei à lógica para me acalmar.

— Daria para ferver água para esterilizar. Mas os lençóis? Isso não é muito...

Um grito do lado de fora me interrompeu. Adrian se posicionou de maneira protetora na frente de Olive e invoquei uma bola de fogo. Ficamos encarando a janela escura em silêncio, sem entender o que estava acontecendo. Ouvimos alguém falando alto e outro grito, o que deixou minha imaginação a mil.

— Queria que Neil estivesse aqui — Olive murmurou.

— Eu também — concordei, pensando que me sentiria muito melhor se ele estivesse parado na porta com uma estaca de prata.

Adrian apertou a mão de Olive.

— Vai ficar tudo bem. Eu e Sydney vamos te proteger. Nada vai passar por aquela porta a menos que a gente queira.

Naquele exato momento, a porta se abriu e Rand Ivashkov entrou, afobado.

— O que está acontecendo lá fora? — perguntei.

Ele trancou a porta e afundou numa cadeira.

— Strigoi. Dimitri me mandou vir ficar com vocês. — Ele lançou um olhar constrangido para o estado de Olive. — Caso precisassem de ajuda.

— Não precisamos, a menos que você tenha uma formação médica secreta que escondeu da família — Adrian retrucou.

— Tem quantos Strigoi lá? — perguntei.

Rand balançou a cabeça.

— Não sei direito. Provavelmente poucos, senão já estaríamos todos mortos. Mas mesmo em pequena quantidade podem causar muito estrago se forem pra cima de você.

Olive soltou outro grito de dor e voltamos a encará-la.

— Outra contração — comentei.

— Pelo menos demorou alguns minutos. Talvez ele espere até tudo isso acabar — Olive respondeu.

— Ele? Você sabe se é menino? — Adrian perguntou.

— Não com certeza — ela admitiu. — Mas tenho um pressentimento.

— Acredito em pressentimentos — Adrian disse, sério.

Ouvimos outro grito e tentei criar uma distração para Olive. Podia não saber tudo sobre trabalho de parto, mas um estresse desses não devia fazer bem para uma mulher grávida.

— Que nome você vai dar pra ele? — perguntei.

Adrian seguiu meu exemplo.

— Adrian Sinclair soa muito bem — ele disse.

Os olhos de Olive, cheios de medo, vigiavam a porta e a janela, mas seus lábios se curvaram num sorriso com a piada.

— Declan.

— É um belo nome irlandês — elogiei.

— Combinaria — Adrian admitiu. — Declan Adrian Sinclair.

— Declan Neil — ela corrigiu.

Me perguntei como Neil se sentiria ao saber que o filho de outro recebera seu nome. No caos infinito que havia se instaurado depois da nossa chegada, não houve oportunidade para conversar com Olive sobre as circunstâncias que a tinham levado à comunidade. E, na tensão da nossa vigília, parecia improvável discutir esse assunto tão cedo. A conversa foi se esgotando com o tempo. Só podíamos observar e esperar. Os sons lá fora acabaram e eu não sabia se devia ficar tranquila ou mais assustada ainda. Igualmente perturbadoras eram as contrações cada vez mais frequentes de Olive. Me perguntei se não deveríamos ferver água, afinal.

A porta se abriu de novo e quase lancei a bola de fogo antes de perceber que era Rose. Seu rosto estava sujo de sangue e terra.

— Matamos todos — ela disse. — Do nosso lado não houve mortos, mas muitas estão feridas. A médica não está aqui, então, Adrian, a gente queria saber se você poderia...

Ela não terminou, mas entendi o que queria. Adrian também. Ele se virou para mim, com uma expressão comovida.

— Sydney...

— Ela falou que ninguém morreu — interrompi.

— Alguém pode estar quase morrendo — ele rebateu. — Ainda mais se a médica está fora do acampamento.

Voltei a olhar para Rose.

— Tem gente correndo risco de vida?

Ela hesitou.

— Não sei. Mas tem gente em péssimo estado. Vi muito sangue na enfermaria.

Adrian começou a avançar em direção à porta.

— Então vou ajudar. — Ele parou para encarar Olive. — Ela também precisa de alguém. Agora. O bebê está nascendo. Sydney...

— Não, eu vou com você. Posso ajudar com primeiros socorros — eu disse, embora minha verdadeira motivação fosse ficar de olho em Adrian. — Rose, você pode ajudar Olive? Ou trazer alguém que possa?

A cara de Rose deixou claro que ela se sentia tão despreparada quanto eu, mas ela assentiu.

— Vou tentar encontrar alguém que saiba o que fazer. Deve ter bastante gente que ajudou em situações assim por aqui. Mas, Sydney, você tem certeza que quer ir? Tem um alquimista a caminho para ajudar a destruir os corpos.

— Um alquimista? — Olive exclamou.

Fiquei paralisada e, de repente, senti um novo tipo de pânico.

— A caminho?

— Ele ainda não chegou — Rose assegurou. — Acho que o nome dele é Brad, Brett ou alguma coisa assim. O posto dele é perto de Marquette.

— Não se arrisque — Adrian me falou. — Fique aqui.

Hesitei, mesmo sabendo que era a coisa mais inteligente a fazer. Seria idiota me arriscar agora depois de tudo que tinha feito para não ser recapturada pelos alquimistas. No entanto, também tinha medo do que poderia acontecer se deixasse Adrian usar o espírito sozinho. Balancei a cabeça.

— Brad ou Brett ainda não está aqui. Me escondo quando ele chegar.

A expressão de Adrian me mostrou que ele não gostava do plano, mas Olive falou antes que eu tivesse chance.

— Ele é como você? — ela perguntou, mais preocupada do que eu imaginara. — Um ex-alquimista?

— Não, isso é improvável — respondi. — Ele deve ser do tipo analítico padrão que acha que vampiros são aberrações da natureza.

Olive pareceu ainda mais assustada e lembrei do medo dela quando me viu antes. Rose abriu um sorriso tranquilizador.

— Sei que eles nem sempre são os mais simpáticos, mas esse daí pode ajudar com a limpeza. Não se preocupe. Vai ficar tudo bem. Enquanto isso vou buscar alguém para ajudar com o bebê. — Ela fixou um olhar duro em Rand. — Espera aqui com ela até chegar mais alguém. Vocês dois, venham.

Eu e Adrian a seguimos pela comunidade mal iluminada e senti um pavor completamente diferente do que tinha sentido durante o ataque Strigoi. Os lampiões ao longo do caminho faziam tudo parecer ainda mais sinistro. Vimos poucas evidências dos Strigoi até chegarmos à cabana de Lana, para onde os feridos tinham sido levados. Havia uma dezena de dampiras lá, feridas e ensanguentadas, mas sendo cuidadas da melhor maneira possível. Dimitri correu até nós quando chegamos.

— Obrigado por ajudar — ele disse. — Sei que é difícil pra você.

— Não é nem um pouco difícil, na verdade — Adrian respondeu.

— Adrian — avisei. — Use com moderação. Cuide só daquelas realmente em estado crítico.

Ele olhou ao redor, observando todas as dampiras em macas improvisadas. Rose tinha razão: havia muito sangue. Gemidos de dor enchiam o ar.

— Como vamos conseguir escolher quem merece a cura? — Adrian perguntou em voz baixa. — Ainda mais considerando que todas lutaram para nos manter em segurança.

— Vou ajudar a escolher — eu disse.

Dimitri apontou para o outro lado da sala.

— As em pior estado estão lá atrás. O que você puder fazer já ajuda. Preciso sair de novo. Parece que um Strigoi fugiu e está na floresta. Nós vamos atrás dele.

— Vou com você — Rose disse prontamente.

Dimitri tocou o rosto dela por um segundo.

— Preciso de você aqui, ajudando Sydney e Adrian.

— Depois você ajuda a gente — eu falei. — É melhor ir buscar alguém para ajudar Olive agora.

Rose ergueu as sobrancelhas ao ouvir isso e saiu correndo para encontrar Lana. Eu e Adrian nos dedicamos a cuidar dos feridos. Tentei chamar a atenção dele de novo para o uso exagerado da magia, mas não foi fácil. Ele só conseguia focar no sofrimento ao seu redor e no quanto queria remediar aquilo tudo. Ele deu início às curas usando o espírito de maneira generosa. Pelo menos começou com as pacientes críticas que Dimitri havia indicado. Enquanto isso, dei meu melhor usando minhas habilidades básicas na esperança de que Adrian visse que não precisava usar o espírito em todas elas. Fiz curativos nos cortes e dei água. Até falei algumas palavras de estímulo. A maioria das pacientes estava consciente e me esforcei para manter o bom humor, tranquilizando-as que tudo ficaria bem. Vez ou outra parava para dar uma olhada em Adrian.

Mallory estava entre as feridas. Ela e outra guarda estavam muito mal porque perderam muito sangue. Mallory também tinha várias costelas quebradas, além de alguns ferimentos internos, segundo a leitura de aura que Adrian fez. Aparentemente, um Strigoi havia arrancado um pedaço de carne entre o ombro e o pescoço dela, e o sangue jorrava do ferimento, apesar das tentativas de estancá-lo. Ela era uma das poucas inconscientes e parecia difícil acreditar que, até algumas horas atrás, estava tietando Rose e Dimitri. Adrian fez dela sua prioridade, restaurando sua saúde quase completamente. Fiquei feliz por ela, mas incomodada com o poder que aquilo devia ter exigido. Sem dizer uma palavra, Adrian passou para a próxima paciente.

Quando ele estava no meio da cura, Rose veio correndo até mim.

— Mandei uma pessoa ficar com Olive. Mas você precisa vir comigo para o andar de cima agora. O alquimista está prestes a entrar.

Terminei o curativo que estava fazendo e alertei Adrian uma última vez. Ele assentiu e fiquei sem saber se tinha ouvido o que falei. Mas não havia tempo para ficar mais, não com a chance de o alquimista prestes a entrar desfazer tudo que eu e Adrian tínhamos conseguido para conquistar minha liberdade. Meu coração batia rápido enquanto eu seguia Rose para o segundo andar da cabana. Soltei um suspiro aliviado quando chegamos. Era praticamente um sótão, mas me manteria escondida das pessoas lá embaixo. Infelizmente, também me manteria longe do que estava acontecendo.

— Rose — eu disse quando ela começou a descer —, você precisa garantir que Adrian não...

Uma dampira surgiu de repente na entrada e chamou Rose com urgência. Eu as vi conversando em sussurros preocupados do outro lado da porta. Rose pareceu angustiada e me observou de soslaio, depois seguiu a dampira rumo ao andar de baixo. Fiquei sozinha por quase uma hora, sem nada para fazer além de andar de um lado para o outro, preocupada com o que estava acontecendo. Finalmente, Diana subiu para me avisar que o alquimista tinha ido para outra área do acampamento e que eu poderia descer, já que ele não tinha motivos para voltar à enfermaria.

Não perdi tempo e obedeci. Fiquei chocada ao ver que quase todas as dampiras que antes estavam feridas no chão já estavam de pé, parecendo saudáveis. Adrian terminava uma cura e fiquei observando, boquiaberta, sem conseguir acreditar no que estava vendo.

— Adrian... o que você fez?

Ele demorou alguns momentos para virar na minha direção e, quando virou, mal pude acreditar em como estava diferente. Parecia tão mal quanto as pacientes antes: pálido, suado, com os olhos vítreos. Segurei seu braço, com medo que ele desmaiasse de exaustão.

— Quantas você curou? — murmurei.

Ele engoliu em seco e observou ao redor, sem expressão.

— Eu... não sei. O máximo que consegui...

Apertei sua mão, tomada por um misto de raiva e medo.

— Adrian! Você não precisava fazer isso! — Notei que algumas pessoas ao redor que antes só tinham machucados leves, alguns arranhões ou hematomas não possuíam nenhuma marca agora. Virei para ele, incrédula. — Foi um desperdício de energia! Quase todas essas pessoas teriam se curado sozinhas.

Ele pareceu recuperar um pouco a consciência.

— Eu podia ajudá-las... Então por que não? Depois que comecei, foi muito difícil parar... Que mal tem?

Antes que conseguisse processar isso, Rose veio até nós com uma expressão grave.

— Gente, tem uma coisa que vocês precisam saber. Olive sumiu.

Estava tão focada no esgotamento de Adrian que achei que tivesse ouvido errado.

— Como assim “sumiu”?

— Ela atacou Rand por trás e o deixou inconsciente. Depois fugiu antes que Lana chegasse lá para fazer o parto.

Mesmo aturdido, Adrian conseguiu focar nessa reviravolta improvável.

— Olive... derrubou alguém... em trabalho de parto? Como?

— Não faço ideia — Rose disse, com tristeza. — Mas ela sumiu... Acho que fugiu para a floresta.

— Para a floresta — Adrian repetiu. Ele pareceu ganhar uma nova energia ao entrar em pânico. — Em trabalho de parto. No escuro. Aquele Strigoi ainda está solto?

A expressão de Rose respondeu por ela e Adrian foi correndo até a porta, comigo logo atrás.

— Precisamos ir — ele disse. — Precisamos encontrá-la agora.

Rose tentou nos impedir.

— Adrian, não é seguro...

Dimitri entrou na cabana de repente.

— Nós a encontramos. Encontramos todos. Você precisa vir, Adrian. Precisa vir agora.

Nós todos o seguimos sem questionar e sofri para acompanhar o ritmo dos outros com seus passos rápidos.

— Vocês encontraram o Strigoi? — ela gritou quando passamos pelo centro da comunidade.

— Sim. Ali. — Dimitri apontou para duas dampiras arrastando um cadáver. Elas o levaram para onde três outros corpos estavam empilhados. Um humano ajoelhado perto deles jogava o conteúdo de um pequeno frasco sobre os corpos. O alquimista. Me posicionei de forma que Rose ficasse entre nós. Felizmente, ele estava concentrado em seu trabalho.

— Então o que aconteceu? — Rose perguntou.

— Ele alcançou Olive antes — Dimitri explicou. — Ela já havia tido o bebê, no meio da mata. Ela o escondeu lá. Também o encontramos. Ele está bem... Pequeno, mas bem.

Eu e Adrian ainda estávamos tão chocados com os acontecimentos que não conseguimos falar nada, mas Rose estava pronta para perguntar mais:

— Por que estamos indo até ela? Por que não a trouxeram pra cá?

Dimitri nos guiou para fora da comunidade rumo a uma área arborizada.

— Fiquei com medo de tirá-la do lugar. Achei que seria melhor deixá-la onde estava até Adrian curá-la.

Adrian franziu as sobrancelhas.

— Pessoal... não sei se ainda tenho espírito suficiente pra isso. Se vocês puderem estabilizá-la até eu me recuperar... ou se ela não estiver tão mal...

Dimitri não respondeu enquanto atravessávamos as profundezas da mata, mas sua expressão indicava que ela estava realmente mal. Senti um frio na barriga ao perceber as implicações.

Finalmente chegamos a uma clareira na floresta. Lana e outras duas dampiras estavam lá segurando lanternas. Fomos correndo até elas e encontramos Olive encostada numa árvore, com uma trouxinha no braço. Quando vi de perto, entendi por que tinham ficado com medo de tirá-la dali. Seu rosto estava tão pálido que ela poderia ser confundia com uma Strigoi. O braço que não segurava o bebê fora quase arrancado. Seu rosto parecia ter sido batido contra algo e havia sangue por toda parte, em todo lugar. Seus olhos estavam fechados, sua respiração rasa.

Adrian a observou por alguns momentos e depois balançou a cabeça, com uma expressão de desespero.

— Não consigo — ele murmurou, quase chorando. — Não consigo nem ler a aura dela. Estou sem... estou sem magia.

Os cílios de Olive tremularam ao som da voz dele.

— É o... é o Adrian?

Ele ajoelhou ao lado dela.

— Ei, não se esforce. Você precisa descansar até eu conseguir recuperar minha magia e curar você.

Com dificuldade, ela soltou uma risada rouca e um pequeno fio de sangue escorreu de seus lábios.

— Nenhuma magia me salva mais, nem mesmo a sua.

— Não é verdade. Só preciso me recuperar.

— Não há tempo — ela disse com a voz rouca. — Mas eu preciso... conversar com você. A sós.

— Olive, você precisa descansar — Adrian insistiu, mas as palavras soaram vazias. Nós dois sabíamos que não havia mais tempo. A vida dela estava se esvaindo diante dos nossos olhos.

O bebê começou a chorar.

— Vão — Dimitri ordenou aos outros. Para mim e para Adrian, ele disse: — Deem o conforto que puderem a ela.

Assenti de leve, mas tudo que conseguia fazer era tentar não chorar.

— Pega — Olive disse, quando os outros saíram. Ela empurrou o bebê para Adrian.

Tinha quase certeza de que Adrian nunca havia segurado um bebê na vida, mas o recém-nascido se acalmou quando foi envolvido pelos braços dele. Me aproximei para enxergar melhor. Ele era tão minúsculo que não parecia de verdade. Tinha uma penugem escura na cabeça e ergueu os olhos surpreendentemente alertas para nós. Estava enrolado no casaco de alguém e Adrian tentou embalá-lo devagar.

— Prontinho. Bem-vindo, Declan. Declan Neil Sinclair.

— Raymond — Olive disse. Ela parou para tossir mais sangue. — Declan Neil Raymond.

— O sobrenome do Neil — eu disse.

— Vocês precisam levá-lo para Neil — ela nos disse. — Depois que eu morrer.

— Não fala assim — Adrian disse, com a voz de quem estava se esforçando para não chorar.

Com o braço que não estava ferido, ela agarrou a manga de Adrian.

— Você não entende. Ele é filho do Neil. Neil é pai dele.

Discutir genética dampírica parecia inútil considerando o estado dela. Talvez ela estivesse tão fora de si que acreditava mesmo que Neil fosse o pai. Talvez estivesse falando metaforicamente. Pelo que vira na Corte, Neil a amava tanto que era provável que adotasse o bebê de qualquer jeito.

— Claro — eu disse gentilmente, querendo apenas acalmá-la.

Ela estava perdendo a força rápido, mas uma faísca de raiva se acendeu nos olhos dela.

— Não, estou falando sério. Ele é filho do Neil. Nunca dormi com mais ninguém.

— Olive — Adrian disse, delicadamente —, isso é impossível.

— Não — ela repetiu. Ela fechou os olhos e, por um momento, temi o pior. Então seus olhos se reabriram, trêmulos. — Só dormi com Neil. E uma única vez. Quando descobri... fiquei tão assustada. Não sei o que aconteceu... Deve ter a ver com o fato de eu ter sido restaurada, com todo o espírito que havia em mim. Fiquei com muito medo de que alguém, como os Moroi ou os alquimistas, descobrissem e tirassem o bebê de mim. Fizessem experiências nele, como Sonya faz. Então me escondi. Me escondi de todos. Inclusive de Charlotte. — A voz dela vacilou ao dizer o nome da irmã e ela parou para respirar, o que parecia cada vez mais difícil.

O que ela estava dizendo era impossível. Dois dampiros não tinham como conceber um dampiro. Era contra as regras fundamentais do mundo. No entanto, se ela acreditava nisso... De repente lembrei do pânico dela ao me ver e, depois, ao descobrir que outro alquimista estava a caminho.

— Foi por isso que você fugiu — eu disse. — Você ficou com medo do alquimista.

Ela assentiu levemente e abriu os olhos de novo.

— Você sabe como eles são. Eu não sei como isso foi possível, mas eles iam querer saber. Eles o levariam embora. Por favor, Adrian. Sydney. Não deixem. Nem as autoridades Moroi. Mantenham o bebê em segredo até ele chegar a Neil. Depois Neil vai escondê-lo. Neil vai mantê-lo em segurança. Mas prometam pra mim... — Seus olhos se fecharam e sua cabeça pendeu para o lado. — Prometam pra mim... que vão... manter Declan... em segurança...

— Fica com a gente — Adrian insistiu. Minha visão estava turva pelas lágrimas. — Mais um pouquinho. O espírito está voltando. Sei que está.

Declan se mexeu nos braços de Adrian e começou a chorar de novo. Os olhos de Olive se abriram um pouco e ela sorriu.

— Tão fofo — ela disse baixinho. Suas pálpebras se fecharam de novo e seu corpo tombou para a frente, sem forças.

— Pronto — Adrian exclamou. — Voltou. Uma faísca de espírito. Suficiente para ver as auras.

Segurei seu braço e senti as lágrimas escorrendo pelo rosto.

— Adrian...

— A do bebê é tão brilhante — Adrian disse. Seu rosto também estava coberto de lágrimas. — Feito uma estrela. Mas a dela... não tem nada. Não tem mais aura pra ver...


11

Adrian

Continuamos parados no meio da mata, Declan ainda no meu colo. Por incrível que pareça, ele tinha pegado no sono, felizmente sem saber em que mundo confuso e desolador tinha acabado de nascer. Sydney recostou em mim e coloquei o braço em volta dela como pude, sem deixar de segurar Declan firme. Rose e Dimitri estavam perto, observando aflitos enquanto Olive era levada cerimoniosamente.

— Precisamos agir rápido — eu disse, ainda em voz baixa. — Para honrar o último desejo dela.

Sydney ergueu os olhos e piscou algumas vezes para conter as lágrimas.

— Você não acha mesmo que... Quer dizer, você acredita nela? Nessa história do Neil?

Não respondi na hora.

— Eu os vi na Corte. Você também. Quando tudo isso começou, era impossível acreditar que ela ficaria com outro cara. Agora entendo. E, olhando para ele, para Declan, sei lá... É difícil explicar, mas tem alguma coisa especial nele. Na aura dele. É como se tivesse uma leve cobertura de espírito, do tipo que eu e Sonya tentamos criar. Ele tem naturalmente.

Sydney perdeu o fôlego.

— Se for o caso, muitas pessoas vão se interessar por ele.

— Elas não podem descobrir a existência dele — eu disse, obstinado. — Olive estava certa em relação a isso e prometi que manteria o bebê em segredo. É o mínimo que posso fazer já que falhei com ela.

— Adrian...

Não deixei Sydney terminar.

— Precisamos escondê-lo. Você vai me ajudar?

Seu rosto estava cheio de preocupação por mim, mas ela não hesitou na resposta.

— Você sabe que nem precisa perguntar.

Dei um beijo na sua testa.

— Vamos precisar de ajuda. — Chamei Rose e Dimitri. Eles se aproximaram na hora.

Rose engoliu em seco, com lágrimas brilhando em seus olhos castanhos.

— Adrian, sinto muito. Não havia nada que ninguém pudesse fazer.

Bom, tia Tatiana comentou, você poderia ter feito alguma coisa se não tivesse sido tão descuidado com o espírito.

— Não temos tempo pra isso — eu disse, enérgico. — Preciso da ajuda de vocês. O que vai acontecer com Declan agora? Você sabe mais sobre esse tipo de lugar, Dimitri. Qual é o protocolo quando a mãe morre? Preciso saber se podemos levá-lo.

— Quem é Declan? — Rose perguntou.

Apontei com a cabeça para o bebê nos meus braços, ainda embrulhado no casaco de alguém.

A expressão de Dimitri era difícil de interpretar.

— Se ela tivesse parentes morando no acampamento, ficaria com eles. Tenho certeza que também poderíamos entrar em contato com a família dela lá fora, quem quer que tenha sobrado. Tem também uma tradição...

— Que tradição? — insisti.

Ele encarou o bebê com insegurança antes de continuar.

— Uma antiga tradição entre dampiros, especialmente entre os que vivem em lugares perigosos e condições incertas. A pessoa para quem a mãe entrega o bebê vira seu guardião. Como falei, é uma coisa antiga, mas imagino que seja por isso que Olive insistiu tanto para ver você. E também por que Lana ainda não tentou tirar o bebê dos seus braços. Tenho certeza de que assim que você falar com ela...

— Não — interrompi. — É perfeito.

— Você... quer o bebê? — Rose perguntou, sem disfarçar como achava a ideia improvável.

— Quero tirar o bebê daqui — eu disse. — Quero que o mínimo possível de gente saiba sobre ele. Ou que está comigo. — Lembrei que Lana e as duas dampiras guerreiras estavam perto. Não tinha certeza se havia mais alguém quando Olive fora encontrada. — Vocês podem conversar com Lana? Falar pra ela que estamos levando o bebê para a família de Olive mas que é segredo? E peçam pra ela não comentar com ninguém sobre meu envolvimento. Se não fizermos alarde, a maioria das pessoas vai pensar que estamos levando o bebê para o parente mais próximo. Prefiro que seja o mais discretamente possível. Não quero que ninguém mais o procure ou pense sobre ele.

Rose e Dimitri se entreolharam, compreensivelmente confusos.

— Adrian, o que está acontecendo? — Dimitri perguntou.

— Não posso falar — respondi. — Não por enquanto. Mas acreditem em mim quando digo que a vida desse bebê depende de como agirmos agora. Vocês vão nos ajudar?

Era uma justificativa difícil de contrariar, e também não era mentira. À medida que voltávamos ao centro da comunidade, meu poder foi voltando devagar. E, cada vez que sintonizava a aura de Declan, ao observar com muita atenção podia ver aquela mesma infusão de espírito. Seria improvável que alguém notasse a menos que estivesse procurando por isso.

E entendi claramente por que Olive tinha ficado com tanto medo. Por que tinha dado as costas a todos que conhecia e fugido para um buraco no meio da floresta. O que havia acontecido, o que estava segurando nos braços não deveria existir. Dois dampiros não tinham como conceber outro dampiro. Isso era contra uma das regras biológicas mais básicas do nosso mundo. Era impossível, mas ali estava ele.

Ele era um milagre.

Mas Olive estava certa: iam querer estudar Declan, trancafiá-lo e fazer experiências. E, embora reconhecesse que o nascimento dele era extraordinário, não permitiria que sua vida se transformasse numa série de experimentos e olhares curiosos, ainda mais depois de sua mãe ter morrido para protegê-lo disso.

Dimitri conversou com Lana em particular e, fosse por causa da tradição dampira ou pela reputação dele (talvez ambas), ela aceitou todos os nossos pedidos. Lana nos ofereceu uma cabana vazia para ficarmos até o amanhecer. Quando pedimos suprimentos, ela os mandou através de Rose ou Dimitri, para que Declan fosse exposto o menos possível ao resto da comunidade. Eu precisava garantir que elas não pensassem nele. Precisava que esquecessem de sua existência.

Claro, isso significava que eu e Sydney ficamos responsáveis por cuidar dele durante aquela noite. E em poucas horas aprendi mais do que jamais imaginaria aprender sobre bebês. Sydney conseguiu pesquisar algumas informações no celular, reconfortando-se em fatos e lógica. No entanto, o sinal de lá era péssimo, e às vezes era mais fácil adivinhar do que esperar uma resposta. Felizmente, Declan era bonzinho e se mostrou bastante afável enquanto descobríamos as coisas juntos. Ele esperou pacientemente enquanto eu e Sydney líamos as instruções detalhadas da lata de leite em pó que Lana mandou. Não reclamou quando coloquei sua fralda ao contrário na primeira vez. Quando ficou cansado de novo e começou a chorar, eu não tinha mais ideias. Sydney deu de ombros, sem saber o que fazer quando a encarei. Então simplesmente andei pela sala com ele no colo, cantando rock clássico até ele pegar no sono.

Rose passou por lá algumas vezes e parecia ter mais medo do bebê do que teria de um Strigoi. Ela me encarou com admiração.

— Você tem jeito pra isso — ela comentou. — Adrian Ivashkov, o encantador de bebês.

Observei o bebê adormecido.

— É tudo de improviso.

— Já pode nos falar o que está acontecendo? — ela perguntou, com uma expressão séria. — Você sabe que só queremos ajudar.

— Ainda não posso. Mas se pudermos sair quando Dimitri voltar, isso seria...

O celular de Sydney tocou anunciando uma mensagem. Pareceu surpresa por alguém estar procurando por ela até encarar o celular.

— É a sra. Terwilliger. Ela mobilizou as bruxas de Palm Springs. Estão prontas para começar a busca.

Rose se levantou.

— Por Jill?

— Tecnicamente por Alicia, mas por Jill também — Sydney respondeu. — Ela falou que podemos nos juntar a elas... — Ela me encarou com insegurança e pude adivinhar seus pensamentos. Nós havíamos feito esse desvio até Michigan porque tínhamos tempo para gastar enquanto esperávamos que as coisas estivessem prontas em Palm Springs. Ter um bebê com a gente não estava nos planos.

Sydney, Jill e agora Declan, tia Tatiana comentou. Tanta gente contando com você. Tanta gente para você decepcionar caso faça besteira.

— Espero que você esteja me incluindo nesse “nós” — Rose disse, decidida. — Estou pronta para levar Jill de volta pra casa.

— Palm Springs — murmurei, ainda embalando Declan. — Seria perfeito. Podemos esconder o bebê lá.

— Não podemos levar um bebê numa caça às bruxas — Sydney advertiu.

Concordei.

— Toma. Segura enquanto ele está dormindo.

Sydney tirou Declan dos meus braços com cuidado e me encarou inquisitiva enquanto eu pegava o celular. Meu sinal também estava ruim, mas dava pra fazer uma ligação para minha mãe.

— Adrian? — ela atendeu em pânico. — Onde você está? Estava tão preocupada depois que aquela tal de Charlotte teve um ataque! Você está bem?

— Sim... quer dizer, não. É complicado. Mas preciso que você me encontre em Palm Springs o mais rápido possível. Vou pra lá daqui a pouco. Pode fazer isso?

— Sim... — ela começou, incerta. — Mas...

— Não posso contar o que está acontecendo — eu disse, rápido. — Não por enquanto.

— Eu sei, meu filho. Não era isso que ia perguntar. Estava pensando o que fazer com o gato e o dragão enquanto estiver fora...

Boa pergunta.

— Ah. Hum, vê se a Sonya pode cuidar deles.

Desliguei e vi que Dimitri estava na cabana.

— Estamos indo para Palm Springs? — ele perguntou.

— Hora de procurar Jill — Rose disse.

— Se vocês estiverem dispostos — acrescentei.

Dimitri ergueu uma cadeirinha de carro com uma mão, o que era quase cômico.

— Podemos ir quando estiverem prontos. Lana nos deu isso e jura que é fácil de instalar.

Rose deu risada.

— Ah, isso eu quero ver, camarada! Dimitri Belikov, deus da violência, instalando uma cadeirinha de bebê no carro.

Ele sorriu bem-humorado e ficamos andando de um lado para o outro juntando nossas coisas. Sydney precisou ligar para Jackie e, como eu estava com as mãos ocupadas, entregou Declan para Rose.

— É só embalar — eu disse, percebendo o pânico dela.

Rose ficou pálida mas obedeceu, ouvindo uma risada de Dimitri.

— Rose Hathaway, famosa rebelde, mostrando seu lado maternal.

Ela mostrou a língua para ele.

— Aproveita enquanto pode, camarada. Isso é o máximo que você vai ver.

Quase derrubei a mala quando uma ideia surpreendente passou pela minha cabeça. Olive havia dito que ela e Neil dormiram juntos antes de ele ser injetado com o espírito. Isso significava que o que quer que tivesse causado a concepção de Declan era resultado da restauração dela do estado Strigoi. Será que isso também se aplicaria a Dimitri? Ou só funcionava em mulheres? Rose e Dimitri estavam rindo e fazendo piada porque ter filhos no futuro era impossível para os dois... mas será que eles faziam ideia de que poderiam ter uma chance? Será que gostariam?

Você tem muito poder sobre eles, tia Tatiana sussurrou. Poder de criar ou acabar com a felicidade deles.

— Adrian? — Rose me chamou ao notar meu rosto atordoado. — Você está bem?

— Sim — eu disse, voltando a me mexer lentamente. — Só tentando me acostumar com tudo isso.

Quando finalmente saímos, com Declan nos meus braços novamente, era impossível impedir que as pessoas o notassem. Elas andavam de um lado para o outro, tentando se recuperar das consequências terríveis do ataque Strigoi. A maioria estava concentrada demais nas suas coisas, mas algumas me viram e quiseram falar comigo e me agradecer por tê-las curado.

— Obrigada, obrigada — Mallory exclamou, correndo e apertando meu braço. — Me contaram como eu estava mal. Poderia não ter sobrevivido se não fosse por você!

Se não tivesse feito isso, será que Olive ainda estaria viva?, me perguntei. Mas sorri e respondi gaguejando que estava contente por ela estar bem. Quando chamou algumas amigas que tinham sido feridas, entreguei rápido o bebê para Sydney.

— Vocês dois, fiquem escondidos — murmurei. Um bebê e uma ex-alquimista eram memoráveis demais, e essa era a última coisa de que precisávamos agora.

Sydney obedeceu, afastando-se rapidamente de mim e do meu fã-clube, seguida por Dimitri.

— Encontre a gente no carro — ele gritou para mim.

Assenti e voltei a encarar as dampiras que havia curado. Recebi a gratidão delas da maneira mais educada possível, mas não conseguia parar de pensar que Olive deveria estar entre elas. Algumas mencionaram seu nome, expressando a tristeza da perda, mas ninguém perguntou sobre o bebê. Pensei que estava livre quando finalmente se dispersaram, mas outra voz me chamou. Virei e encontrei Lana vindo na minha direção.

— Uma pena o que aconteceu — ela disse, com os olhos cheios de tristeza. Ela parecia ter envelhecido anos ao longo do dia. — Queria que tivesse sido diferente.

— Eu também — concordei.

— Dimitri não me contou o que está acontecendo, mas vou respeitar os desejos dele e os seus também. Não sei por que o sigilo, mas vi o rosto de Olive quando ela estava falando com você pouco antes de morrer. — Lana parou e esfregou os olhos. — Alguma coisa a estava consumindo, isso ficou claro. Ela confiou esse segredo a você, junto com o bebê. Isso já basta para mim. Fico feliz em ajudar no que for preciso.

— Ajude esquecendo que estivemos aqui — eu disse baixo. — E o bebê.

— Claro — Lana disse. Ela limpou a garganta. — Mas tenho uma pergunta desagradável.

Só uma?, indagou tia Tatiana.

— O que você gostaria que fizéssemos com o corpo? — Lana perguntou.

Levei um susto. Nem tinha pensado nisso. Olive estava morta. Tinha visto a luz da sua aura apagar diante dos meus olhos. Ter que tomar essa decisão nem tinha passado pela minha cabeça.

— Hum, o que vocês fariam normalmente?

Lana deu de ombros.

— Poderíamos mandar o corpo para a família para ser enterrado ou cremado. Ou para um lugar em Houghton, se quiserem resolver isso logo. O alquimista deixou um pouco daquela substância química aqui, a que dissolve os corpos. Disse que poderíamos usar se precisássemos.

Meu estômago se revirou. A ideia de o corpo de Olive passar pelo mesmo processo que o de um Strigoi era nauseante, ainda mais depois de tudo que ela havia sofrido para não ser mais um deles. No entanto, eu tinha visto do que a substância química era capaz. Destruiria os restos de Olive completamente, apagando as evidências de que ela teve um bebê. Fechei os olhos e senti o mundo girar ao meu redor.

— Adrian? — Lana perguntou. — Você está bem?

Abri os olhos.

— Use a substância. É o que ela iria querer.

Lana arqueou a sobrancelha, mas eu não podia explicar. Não podia contar que Olive não gostaria de correr o risco de que o corpo dela fosse enviado a uma casa funerária ou de volta à família, porque as pessoas descobririam que ela havia tido um filho e fariam perguntas. Olive tinha morrido para manter Declan em segredo. Essa era outra parte terrível do seu legado.

— Está bem — Lana disse. — Estava falando sério: realmente vou manter isso embaixo dos panos. Minhas meninas também. Vou fazer de tudo para que permaneça em sigilo. Este grupo sabe guardar segredo.

— Obrigado. Por tudo. — Fiz menção de me virar, mas ela me segurou pelo braço.

— Ah, o que falo pro seu tio? Ele estava perguntando de você.

Não queria falar com meu tio, ainda mais porque tinha certeza de que ele não era capaz de guardar segredo. Não queria que ele me perguntasse sobre Olive ou o que aconteceria com o filho dela.

— Não fale nada — respondi. — Só diga que fui embora.

Outro longo dia de viagem passou, ainda mais complicado pelo fato de estar com um bebê que precisava ser alimentado a cada três horas. Não dava para pegar um voo partindo de Houghton, então seguimos para Minneapolis. Tivemos de parar várias vezes ao longo do caminho, até finalmente estacionarmos no aeroporto de lá para pegar um voo de última hora para o Aeroporto Internacional de Los Angeles. Ao longo de toda a viagem, Sydney e eu dividimos nossa atenção entre cuidar de Declan e entrar em contato com o pessoal em Palm Springs. Confirmei que Neil já havia chegado lá, seguindo nossos planos prévios, mas não lhe contei nada sobre Olive nem sobre Declan. E, até falar com ele, também precisava esconder de Rose e Dimitri, por mais que odiasse isso. Achava que não deveriam saber a verdade antes de Neil.

— É o primeiro de vocês?

— Oi?

Enquanto o avião pousava em Los Angeles, estava me esforçando para embalar Declan, que estava inquieto, sem poder tirar o cinto de segurança. Em vez de usar brinquedos de bebê de verdade, Sydney tentava distraí-lo sacudindo um chaveiro em cima dele, por mais que tivesse lido num artigo que recém-nascidos não conseguiam enxergar de muito longe. A pergunta vinha de uma senhorinha sentada do outro lado do corredor. Ela apontou com a cabeça para Declan.

— É o primeiro filho de vocês? — ela esclareceu.

Eu e Sydney nos entreolhamos, sem saber direito como responder.

— Hum, sim — respondi.

A velhinha abriu um sorriso.

— Imaginei. Vocês são tão atenciosos! Tão dedicados. Mas não se preocupem. Não é tão difícil quanto pensam. Vocês vão se acostumar. Parecem ter talento pra coisa. Aposto que terão uma penca de filhos! — Ela riu consigo mesma enquanto o avião pousava.

Quando chegamos a Palm Springs, Declan era o único que não estava exausto. Fazia dias que nenhum de nós tinha uma noite de sono decente, mas continuamos em frente com o máximo de energia possível. Mais uma vez, Dimitri se incumbiu de dirigir e nos levou até a casa de Clarence Donahue, que oferecia um abrigo relativamente seguro e uma fonte de sangue que eu precisava muito. Clarence era um velho Moroi recluso que havia nos ajudado no passado. Ficou contente ao nos ver quando sua governanta nos levou até a sala. Fiquei feliz ao encontrar minha mãe sentada lá com ele.

— Mãe — eu disse, dando um forte abraço nela.

— Minha nossa — ela disse, quando, relutante, soltei o abraço. — Faz só alguns dias, meu filho.

— Muita coisa aconteceu nesse período — falei com sinceridade, lembrando de toda vida e morte que havia presenciado naqueles dias. — E acho que muita coisa ainda vai acontecer quando Sydney avisar as amigas que chegou. Vamos ficar bem ocupados e, hum, preciso da sua ajuda com uma coisa.

Dei um passo para o lado, revelando o bebê dormindo na cadeirinha que Sydney segurava.

Minha mãe observou o bebê confusa, depois encarou Sydney e se voltou para mim, com os olhos arregalados.

— Adrian — ela exclamou. — Isso não é... quer dizer, como é possível...?

— Não é meu — eu disse, cansado de explicar. — O nome dele é Declan e estou cuidando dele pra uma amiga. Mas vou precisar que fique com ele enquanto vamos atrás de Jill. Não tem mais ninguém em que posso confiar.

Como se reconhecesse seu nome, Declan abriu os olhos e nos observou solene. Sinceramente não sabia como minha mãe reagiria ao pedido. Ela sempre considerou os dampiros inferiores e, certa vez, quase tivera um ataque quando levei Rose para casa num encontro. Depois que ela aceitou meu casamento com Sydney, eu havia comentado que ela precisava se acostumar à ideia de ter netos dampiros. Minha mãe desconversou dizendo que entendia, mas eu achava que ela só estava deixando essa preocupação para outro dia. Como ela reagiria agora ao cuidar de um bebê dampiro?

Tirei Declan da cadeirinha com cuidado e fui pego de surpresa quando minha mãe o arrancou dos meus braços.

— Olha só você — ela disse com a voz melosa, segurando-o embaixo dos bracinhos. — Que menininho lindo! Quem é o menino mais lindo?

Lembro quando você era o menino mais lindo dela, tia Tatiana comentou.

Minha mãe tirou os olhos dele.

— Vocês deviam colocar uma roupa mais leve nele — ela falou. — Esse pijaminha é muito pesado.

— Hum, é tudo o que temos — eu disse. Apontei para uma sacola de mercado que Rose havia colocado na mesa. — Sério, tudo que ele tem está ali dentro.

— Onde ele vai dormir? — minha mãe perguntou.

— Estamos usando a cadeirinha do carro.

Ela soltou um suspiro alto.

— Ai, Adrian. Parece aquela vez em que você trouxe um filhotinho de cachorro do vizinho pra casa e ficou surpreso quando descobriu que tinha que dar comida pra ele todo dia.

— Ei — respondi. — A gente já deu comida pra esse moleque várias vezes.

— Sydney, querida — minha mãe acrescentou —, esperava mais bom senso da sua parte, já que não dá pra esperar isso do Adrian. Você obviamente sabe que um bebê precisa de muitas coisas.

Sydney ficou em choque por um momento, o que era compreensível. Tinha quase certeza que minha mãe nunca a chamara de “querida” antes, e acho que Sydney ficou sem saber se sentia-se lisonjeada pelo termo carinhoso ou repreendida pela falta de “bom senso”.

— Sim, sra. Ivashkov — Sydney disse, por fim. — É por isso que queríamos que a senhora estivesse aqui enquanto resolvíamos as coisas. Sabemos que vai conseguir tudo que ele precisa.

— Sra. Ivashkov é você agora — minha mãe corrigiu. — Me chame de Daniella.

Essa foi outra surpresa para Sydney, mas o espanto foi interrompido pelo toque de seu celular.

— É a sra. Terwilliger — ela disse, saindo da sala ao atender.

Ela voltou alguns minutos depois, com um rosto eufórico.

— As bruxas da cidade vão começar a busca amanhã de manhãzinha — ela nos contou. — Anotei o ponto de encontro. Eddie e Neil vão nos encontrar. Até lá, vamos ficar escondidos.

Ela gaguejou um pouco ao dizer o nome de Neil, observando Declan enquanto falava. Entendi como se sentia. Em algum momento, depois que as coisas estivessem resolvidas, Neil teria que saber que era pai. A ideia ainda me fazia hesitar. Era de se esperar que, depois de tudo que eu tinha passado a aceitar — Strigoi sendo restaurados, mortos trazidos de volta à vida —, conseguiria levar a ideia de dois dampiros concebendo um bebê numa boa. Mas não. Ainda era muito estranho, estranho demais para a minha realidade.

Minha mãe me surpreendeu ao devolver Declan para mim.

— Se vocês vão ficar presos aqui e não vai acontecer mais nada hoje, preciso fazer umas compras antes que tudo feche, para poder cuidar dele direito.

Fiquei um pouco ofendido. Realmente achava que tínhamos feito um trabalho muito bom cuidando dele nas últimas vinte e quatro horas. Ele podia ter só uma roupa, mas estava praticamente limpa e eu já havia aprendido a trocar fraldas do jeito certo. Além disso, Declan sempre era alimentado assim que mostrava os primeiros sinais de fome. Para alguém que tinha passado a maior parte da adolescência com medo de engravidar as meninas, achei que tinha me dado relativamente bem no meu teste inesperado como pai.

Mas sabia o que ela queria dizer — parte do motivo por que tinha pedido para ela vir era seu conhecimento. Afinal, ela já tinha criado um bebê e eu não.

— Não sobrou muito na minha conta — disse para ela. Nós dois tínhamos sido deserdados pelo meu pai. — Mas pode usar meu cartão de débito até acabar.

— Talvez eu possa ajudar — Clarence ofereceu, levantando. Com o auxílio de uma bengala com cabeça de cobra, ele foi mancando até uma caixa de madeira numa prateleira da parede. Já tinha visto aquela caixa centenas de vezes na casa dele, mas nunca a vira aberta. Meu queixo quase caiu quando ele tirou a tampa, revelando maços de notas de cem dólares. Ele entregou um maço com pelo menos mil dólares para minha mãe. — Isso é suficiente para o jovem, lady Ivashkov?

Minha mãe teve a audácia de ponderar a respeito.

— É um começo — ela declarou, magnânima. Se voltou para Rose e Dimitri. — Agora, quem de vocês vai me levar?

Por incrível que pareça, Rose se ofereceu. Apesar de ficar sem jeito perto de Declan e de outros bebês, pareceu animada com a ideia de fazer compras para um. Sydney ficou desapontada por não poder ir com elas, mas não discutiu. Com Alicia e os alquimistas à solta, ela não podia abandonar um lugar seguro como aquele sem um bom motivo. Então se enfiou num quarto de hóspedes para preparar alguns feitiços que seriam úteis para o dia seguinte. Assim, o trabalho de babá sobrou para mim e Dimitri, o que parecia uma comédia barata.

— Eles são incríveis mesmo, né? — ele pensou em voz alta, admirando Declan dormir em meus braços. — Uma pessoinha tão pequena... com tanto potencial. Para o bem ou para o mal. Atos grandiosos ou pequenos. O que ele vai ser? O que vai se tornar?

Não teria como saber essa resposta em relação a ninguém, muito menos sobre uma criança nascida graças à magia inacreditável usada para restaurar sua mãe morta-viva. Enquanto Dimitri falava, fiquei surpreso ao notar um desejo profundo e sincero em seus olhos. Ele e Rose podiam fazer piadas sobre bebês, mas, apesar de tudo, percebi que ele desejava séria e desesperadamente um filho. Sabia que era capaz de mudar toda a sua realidade ao contar a verdade sobre Declan e que ele também poderia ter um bebê. Talvez fosse só por falta de sincronia que ele e Rose ainda não tivessem concebido um. Precisavam saber dessa possibilidade.

Ele vai ficar em dívida com você, tia Tatiana murmurou. Desde que o conhece, você sempre ficou para trás, sempre em segundo plano. Com Rose. Com as grandes façanhas. Mas se você contar que ele pode ter um filho com ela, Dimitri vai se ajoelhar aos seus pés e chorar.

O poder estava nas minhas mãos e a vontade de contar era descomunal, mas mordi a língua. Não podia. Não antes de Neil saber.

Quando Rose e minha mãe voltaram, fiquei surpreso ao perceber que tinham ficado amigas. Também me assustei com a quantidade de produtos que haviam conseguido comprar em tão pouco tempo. Um berço de vime, um milhão de roupas, brinquedos e um monte de produtos para bebês que nem sabia que existiam. Sydney observou tudo com o olhar crítico e começou a verificar comentários sobre os produtos no celular.

— Isso vai ajudar o menino a sobreviver por enquanto — declarou minha mãe. — Mas, claro, alguma hora ele vai precisar de um berço grande. E, embora essa cadeirinha seja adequada por enquanto, vimos várias que seriam muito melhores.

— Tinha umas com porta-copos e guarda-sol — Rose acrescentou.

Sydney assentiu.

— Ele definitivamente vai precisar de um guarda-sol.

Sabia que era inútil falar para elas que Declan não estaria mais sob nossos cuidados quando precisasse de um porta-copos. Quando se tratava das mulheres fortes da minha vida, às vezes achava mais fácil simplesmente concordar com o que quer que elas decidissem. De qualquer modo, Declan realmente pareceu muito mais confortável dormindo num berço de verdade naquela noite, e ficamos em volta dele, admirando-o depois que pegou no sono.

— O bebê mais fofo de todos os tempos — minha mãe disse, suspirando.

— Você quer dizer o segundo bebê mais fofo, né? — corrigi.

Fiquei um pouco surpreso com a rapidez com que ela se apegou a ele, mas, enfim, talvez não devesse ter ficado. Toda a vida dela tinha passado por mudanças drásticas, desde deixar meu pai a defender meu casamento nada convencional. Declan era um projeto a que poderia se dedicar, algo muito mais importante e substancial do que ponto-cruz e menos estranho do que um dragão ou gato.

O mais importante para nós naquela noite foi que minha mãe se ofereceu para assumir a responsabilidade pelas mamadeiras noturnas. Em parte porque ela ainda estava no horário noturno da Corte. Mas ela também podia ver que o resto de nós estava exausto, e acordar a cada três horas não ajudaria se quiséssemos estar prontos para um possível confronto com Alicia no dia seguinte. Afinal, o objetivo da bruxa com aquela caça ao tesouro sempre fora cansar Sydney.

— Tomara que a gente a encontre — Sydney disse ao deitar na cama. — Imagina só: amanhã a essa hora tudo isso pode ter acabado. Encontramos Alicia. Encontramos Jill. Tudo volta ao normal. Quer dizer, o nosso normal, pelo menos.

Deitei na cama, desfrutando o luxo de poder me esticar depois de ter tirado meu último cochilo numa cadeira estreita de avião. Também era inebriante estar com Sydney com certa privacidade, para variar. A casa de Clarence era tão grande que nosso quarto ficava isolado no corredor, ao contrário dos quartos apertados no prédio de hóspedes da Corte. Só de shorts e regata, Sydney deitou abraçadinha comigo e suspirei, contente. Enfim um momento de paz com ela.

— Adrian — ela disse —, precisamos conversar sobre o que aconteceu na comunidade.

Apertei o abraço em volta dela.

— Muita coisa aconteceu.

— Eu sei, eu sei, e é óbvio que estamos cuidando da parte mais importante: Declan. Mas precisamos conversar sobre o que você fez... aquelas curas.

Ela culpa você!, exclamou tia Tatiana. Ela culpa você pela morte de Olive!

— Você acha que sou responsável pela morte de Olive? — perguntei.

— Quê? Não. Não. Claro que não. Adrian, você não se culpa, né? Foi um Strigoi que fez aquilo. Não havia nada que pudesse fazer.

— Então por que está reclamando das curas? — perguntei.

Ela respirou fundo.

— Estou preocupada com o jeito como você ficou, esgotado. Você falou que iria maneirar no uso do espírito, que era o melhor a fazer.

— Na verdade — eu disse —, acho que nunca falei isso. Foi você quem decidiu isso e tenta me obrigar a obedecer.

Seu tom doce ficou muito mais frio de repente.

— Obrigar? Adrian, estou tentando ajudar você. Você sabe o que aconteceu com Charlotte depois de usar tanto espírito. Não quero você em coma que nem ela!

— Não uso tanto espírito quanto ela usou — retorqui.

— Você se esgotou! Pra mim isso parece muito.

— É, enfim — eu disse, com raiva —, tem um monte de dampiras no acampamento de Lana que discordariam de você. Elas ficaram agradecidas pelo que fiz.

Mas não Olive, tia Tatiana murmurou. Ela não tem o que dizer.

— Adrian — Sydney disse, obviamente tentando se acalmar —, tenho certeza de que elas estão gratas, mas a gente já conversou sobre isso. Você precisa voltar para os remédios. Você não tem como salvar todo mundo. Não pode usar o espírito indiscriminadamente e ignorar o preço disso. Você está colocando sua vida em risco.

— Que tipo de vida teria, que tipo de pessoa seria se guardasse essa magia pra mim e deixasse as outras pessoas sofrendo? Não posso, Sydney. Se vir alguém que precisa da minha ajuda, vou ajudar. Não posso ficar parado e esquecer as pessoas!

— E eu não posso ficar parada e deixar que você continue se machucando! — ela gritou, perdendo a calma de novo.

— Desculpa — resmunguei, virando de lado na cama. — Acho que não posso mudar quem eu sou.

Depois de um longo momento, ela finalmente se virou de lado também, de costas para mim. Caiu um silêncio glacial. E pensar que aquela era pra ser uma noite calma e romântica.

Ela não entende, tia Tatiana me falou. Nunca vai entender.

Preciso que ela entenda, respondi mentalmente. Preciso dela na minha vida para me apoiar. Sem ela, estou perdido.

Você sempre terá a mim, o fantasma respondeu.

Me envolvi mais nas cobertas, pensando apavorado que, algum dia, teria que enfrentar o esqueleto no armário, ou melhor, a rainha morta na minha cabeça. Tinha quase certeza que se voltasse aos remédios, tia Tatiana iria embora... mas, junto com ela, o espírito. Estava pronto para isso? Sem o espírito, nunca teria sido capaz de curar aquelas dampiras. Não poderia ajudar no resgate de Jill no dia seguinte. Sem o espírito, o que seria de mim?

O espírito não poderia salvar Olive, tia Tatiana comentou. Ele é superestimado.

— Cala a boca — resmunguei.

Atrás de mim, Sydney se remexeu.

— Você falou alguma coisa?

Virei para o lado dela e dei um beijo no seu ombro.

— Pedi desculpa. Eu te amo.


12

Sydney

Fui dormir perturbada. Adrian havia mudado de ideia rápido demais para que fosse sincero. Na manhã seguinte, porém, não tivemos tempo de discutir mais. Declan exigia nossa atenção e, pouco depois, era hora de partir para ajudar os outros na busca por Alicia. No entanto, antes de encontrar as bruxas, eu e Adrian precisávamos nos reencontrar com alguns amigos de longa data.

Na companhia de Rose e Dimitri, fomos ao antigo apartamento de Adrian. Aquilo me despertou mais uma onda de nostalgia, ao lembrar de todo o tempo que havia passado ali. Longas tardes deitada nos braços de Adrian, antes de nos casarmos, antes de ser perseguida sem parar... Na época, achava que estávamos vivendo perigosamente, mas, comparado ao que enfrentávamos agora, a vida daqueles tempos parecia simples.

Trey Juarez atendeu a porta com seu sorriso simpático, que se tornou radiante ao se deparar comigo e com Adrian.

— Quanto tempo, Melbourne! Ou devo chamar você de Ivashkov agora?

Retribuí seu abraço forte. Quando Adrian tinha saído de Palm Springs para viver na Corte, ele havia dado seu apartamento para Trey.

— Vou continuar tentando fazer você me chamar de Sydney — eu disse. Apresentei Rose e Dimitri para ele, depois observei o apartamento. As paredes ainda tinham o tom radiante de amarelo que Adrian havia pintado. Eddie e Neil estavam lá nos esperando, e também abracei os dois. — Cadê Angeline?

— Em Amberwood. Está fazendo aulas de verão.

— Sério? — perguntei, surpresa. — Não sabia. Achei que ela só estava usando o alojamento lá durante o verão.

— Ela estava — Trey concordou, com um brilho nos olhos. — Mas a convenci de que estudar um pouco mais a ajudaria com as aulas no outono.

— Outono? — Sentei no sofá, tentando não pensar nas vezes em que eu e Adrian deitamos de conchinha ali. — Pensei que ela fosse voltar para os Conservadores.

— Até parece que você não conhece Angeline — Neil disse, irônico. — A rainha aceitou financiar os estudos dela como agradecimento por ter cuidado de Jill durante todo esse tempo. — Demorei para entender as palavras dele. Ver Neil me lembrou de Declan esperando na mansão de Clarence. Eu e Adrian tínhamos concordado que era melhor esperar para contar a notícia, mas esse era um segredo enorme demais para carregar.

— Angeline quase recusou — Trey acrescentou. — Disse que não merecia porque tinha deixado Jill ser levada. Mas a convenci de que Jill vai querer uma guardiã com boa formação quando a resgatarmos... e que Amberwood não fica muito longe da UCLA.

Sorri, apesar da pontada de inveja. Trey iria para a faculdade logo mais, o que me fora negado por fazer parte dos alquimistas. Agora, em fuga constante, parecia improvável que frequentaria uma algum dia.

— Olha só você, dando um bom exemplo pros outros — brinquei.

— Ei — ele disse. — Estava falando sério. E nós vamos resgatar Jill, certo? Explica aí essa pista que vocês têm. Eddie disse que é uma menina contra a qual você já lutou, certo?

A atmosfera tranquila mudou instantaneamente quando começamos a tratar dos assuntos sérios.

— O nome dela é Alicia DeGraw — expliquei, tirando o celular do bolso. — Não sabemos exatamente onde ou como está mantendo Jill, mas parece claro que está fazendo isso para se vingar de mim. A última pista dela levava ao Salton Sea, que é onde as amigas da sra. Terwilliger vão nos ajudar a procurar hoje. — Mostrei a foto de Alicia que a sra. Terwilliger havia conseguido com uma amiga que conhecera a bruxa nos tempos em que ela era aprendiz de Veronica. Tinha sido tirada alguns anos antes de eu conhecê-la, mas estava igual: óculos de aro grosso, muitos acessórios e cabelo loiro-claro cacheado.

Os olhos de Trey se arregalaram.

— Conheço essa menina. — Ao perceber nossos olhares assustados, ele acrescentou rápido: — Quer dizer, já a vi uma vez. Ela veio aqui procurando por você e Adrian. Contei a vocês na época... mas ela não falou o nome pra mim.

Lembrei vagamente de Trey mencionando uma menina que tinha vindo perguntar por mim e por Adrian durante a época que estava presa na reeducação. Nós estávamos tão preocupados com outras coisas, como escapar vivos das mãos dos alquimistas, que o incidente entrou por um ouvido e saiu pelo outro.

— Ela esteve aqui? — Eddie exclamou.

— Só por tempo suficiente para perguntar por Sydney e Adrian — Trey disse. — E usar o banheiro.

Logo entendi.

— E aposto que deixei um pente ou escova lá. Foi assim que ela conseguiu um fio de cabelo meu para ligar aquele feitiço a mim.

Muitos dos nossos amigos só sabiam partes da história da caçada a que Alicia havia nos conduzido, então parei um momento para atualizar todo mundo e fazer um relato completo. Eddie estava furioso quando terminei.

— Ficar na cidade sabendo que talvez esteja tão perto de Alicia sem poder fazer nada está me deixando maluco — ele disse. — Mas a sra. Terwilliger insistiu para fazermos a busca com as outras bruxas.

— Você poderia ter feito a barba nesse meio-tempo — Adrian sugeriu, prestativo.

— Entendo — falei para Eddie, ignorando a gracinha de Adrian. — Também não gostei da demora, mas a ajuda delas vai nos dar uma proteção extra contra Alicia. Não tem como saber que armadilhas mágicas ela preparou.

— Tem certeza que ela quer que você vá ao Salton Sea? — Dimitri perguntou. — Você acha que a pista dela era para ser levada ao pé da letra?

— Todas as outras pistas eram muito específicas — respondi. — Então, sim, acho que era o plano inicial dela... mas nós atrasamos alguns dias. Isso pode ter atrapalhado o que ela pretendia inicialmente, o que é bom e ruim. Significa que ela vai ser pega de surpresa... mas também que pode ter inventado alguma coisa nova que não estamos esperando. Nossa esperança é descobrir hoje alguma pista em Salton que possa nos colocar de volta ao caminho certo.

— Nem conheço essa menina e já tenho ódio dela — Rose comentou.

Encarei o relógio.

— Vamos torcer pra que a gente a encontre pra você falar isso pessoalmente. Está na hora de ir.

Nosso grupo se mobilizou e partiu em dois carros para encontrar a sra. Terwilliger e as outras bruxas no parque estadual do Salton Sea. O céu estava coberto de nuvens cinza, indicando um raro dia chuvoso de verão. Pelo menos umas vinte bruxas estavam nos esperando.

— Me sinto meio mal — murmurei para a sra. Terwilliger, afastando-me dos outros. — Envolvendo todas essas pessoas.

Ela ajeitou os óculos e sorriu para mim.

— Já te falei nos Ozark: esse é um problema de toda a comunidade mágica. Você não tem por que se sentir mal. A culpa é de Alicia, não sua.

Suspirei.

— Tomara que ter esperado para vir tenha sido a decisão certa.

— Preferia ter vindo exausta magicamente, como ela queria? Não, Sydney. Você estaria praticamente se entregando a ela. Mesmo se não a encontrarmos hoje, pelo menos você teve a chance de descansar e se preparar para o que está por vir.

Assenti, achando melhor não contar que meus últimos dias com Adrian não tinham sido nada relaxantes. Podia não estar exausta do ponto de vista mágico, mas sem dúvida estava esgotada mentalmente. Torci para que isso não prejudicasse a caça a Alicia.

Todas as integrantes do clã que havia conhecido na minha iniciação estavam lá, abandonando todos os seus planos a fim de rastrear Alicia. Maude, Trina, Alison e outras cujos nomes tinha esquecido nos últimos meses. Igualmente surpreendente foi ver integrantes de outros clãs também se juntarem a nós, confirmando a ideia insistente da sra. Terwilliger de que aquele realmente era um problema de toda a comunidade mágica.

— Nós é que não iríamos deixar um problema desses nas mãos de uma novata como você — Inez Garcia ironizou, vindo na minha direção quando me separei da sra. Terwilliger. Inez devia ser o reforço mais surpreendente de todos. Ela era uma velha bruxa venerável por seus poderes e sua recusa a entrar para qualquer clã. Tinha sido a bruxa com quem a sra. Terwilliger fora conversar sobre a caixa de madeira. Seu humor ácido também era famoso, mas até que tinha gostado de mim (na medida em que conseguia gostar de alguém). Ao avistar Rose e Dimitri conversando perto de Trey, Inez bufou com um sorriso sarcástico. — Não é nenhuma surpresa você trazer dampiros. O que aconteceu com aquele Moroi que estava com você da última vez? Aquele com o rosto bonito?

— Ah, está ali — eu disse, corando de leve. — Eu, hum, casei com ele.

Inez arqueou a sobrancelha.

— Casou, foi? Sorte a sua.

Maude, uma das bruxas mais velhas do Stelle, chamou a atenção de todos. Nos reunimos num grande círculo enquanto ela lançava um feitiço que criava um mapa em miniatura do Salton Sea no chão. Por enquanto, o plano era simples, até porque não sabíamos o que esperar. Juntando as recrutas mágicas da sra. Terwilliger e a “força bruta” que tinha conseguido com Trey e os dampiros, estávamos em quase trinta pessoas. Nos dividiríamos em grupos menores para investigar a maior parte possível da margem do lago. Algumas partes eram mais fáceis de chegar do que outras, então o objetivo do dia era dar uma olhada nas áreas públicas. Teoricamente, Alicia teria as mesmas limitações. Os grupos foram divididos com base nas que tinham maior talento para detectar magia e as que eram boas em lançar feitiços para detectar encantamentos ocultos. Os dampiros foram distribuídos entre os grupos, para caso fosse necessário usar a força. A sra. Terwilliger queria que eu e Adrian ficássemos com ela, e Eddie insistiu em continuar com a gente também. Embora Jill fosse sua prioridade principal, ele ainda se sentia responsável por nós.

Parecia que as previsões da sra. Terwilliger foram certeiras e que era bem provável que Alicia tivesse abandonado o plano por eu não ter mordido a isca imediatamente. Se ela havia deixado alguma armadilha mágica por ali, tinha feito um excelente trabalho erradicando todos os vestígios. Nossos grupos de busca vasculharam todas as áreas públicas possíveis, checando algumas delas duas vezes, sem encontrar nada. Não nos deixamos abater. Fizemos uma pausa para o almoço e nos reencontramos para explorar as regiões menos acessíveis. Chegar a essas áreas exigiu magia, especialmente feitiços de invisibilidade, e, para isso, foi necessária muita coordenação. Com o passar da tarde, porém, as buscas clandestinas se revelaram tão infrutíferas quanto as primeiras. Nem sinal de Alicia ou de armadilhas mágicas.

Maude e a sra. Terwilliger agradeceram os outros clãs pela ajuda e os mandaram voltar para casa para passar a noite.

— Eu e Maude vamos sair para arranjar alguns ingredientes de feitiços que podem ser úteis — a sra. Terwilliger me falou. — Seria bom você fazer alguns feitiços de proteção no lugar em que for ficar, só por segurança... a menos que queiram ficar na minha casa.

Sorri com a oferta, pensando em Declan.

— As coisas estão um pouco complicadas agora. É melhor ficarmos na casa de Clarence.

— Tudo bem — ela disse —, ainda mais com aqueles dampiros por lá. É bom que você esteja com essa proteção extra para o caso de Alicia tentar alguma coisa inesperada. Na verdade... Bom, tenho outra sugestão pra te ajudar. Queria que você passasse na casa do Malachi no caminho de volta. Você lembra como chegar lá, não?

— Malachi Wolfe? — perguntei, como se ela pudesse estar se referindo a outro Malachi.

— Sim — ela respondeu. — Já falei com ele. Vai te emprestar uma arma, só por precaução. Confio na sua magia, mas me sentiria melhor se você tivesse uma proteção extra.

Não gostava da ideia de ter uma arma, mas a sra. Terwilliger tinha razão. Quando o assunto era Alicia, não podíamos correr nenhum risco. Observei meus amigos reunidos atrás de mim.

— Não tem necessidade de irmos todos; alguém precisa ir pra casa ver como sua mãe está, Adrian. — Pude ver pelo rosto dele que entendeu perfeitamente o que quis dizer: na verdade, era Declan que precisávamos ver.

— Bom, adoraria ver Wolfe, mas acho que é melhor você mesma falar com ele, caso ele peça outro “teste de habilidade” antes de te emprestar uma arma — Adrian disse. — Vou voltar pra casa pra ver minha mãe. Vocês... — Ele encarou os dampiros.

— Vou com Sydney — Eddie disse. — Quero finalmente conhecer esse cara. — Ele tinha ficado mal com nossa falta de resultados hoje, então me surpreendi ao vê-lo entusiasmado com alguma coisa.

Claro, Malachi Wolfe tinha se tornado uma lenda entre os meus amigos. A maioria deles nunca o conhecera e só sabia das histórias que eu e Adrian contávamos sobre nosso curso na Escola de Defesa Wolfe. Na verdade, ficou claro nos rostos de Trey e Neil que eles queriam vir comigo e com Eddie, mas Trey precisava buscar Angeline e tinha vindo para o Salton Sea no carro alugado de Neil. Rose e Dimitri voltariam com Adrian. Assim, sobramos eu e Eddie. Depois de nos despedirmos dos nossos amigos, partimos para o terreno de Malachi nos arredores de Palm Springs.

— Os chihuahuas são mesmo treinados para atacar? — ele perguntou.

Não consegui conter o sorriso.

— Segundo Wolfe, sim. Mas a gente nunca os viu em ação.

— Mal posso esperar para ver os nunchakus dele.

— Não toque neles de jeito nenhum — avisei. — Nem em arma nenhuma sem permissão. Se ele aprovar você, pode deixar que pegue alguma emprestada também.

O bom humor de Eddie diminuiu um pouco.

— Odeio que você precise de uma arma emprestada. Odeio que a situação tenha chegado nesse nível. — Ele suspirou, desconsolado. — Sei que a sra. Terwilliger avisou que Alicia podia ter ido embora, mas estava torcendo muito, muito mesmo, para que encontrássemos algum sinal dela hoje.

— Eu sei — eu disse, com tristeza. — Também estava. Mas se ela mudou os planos, são grandes as chances de ter ficado descuidada. Só precisamos aproveitar isso e acabar com ela antes que ela volte a agir.

— E cada dia que esperamos é mais um dia de sabe-se lá Deus o quê pra Jill.

O desespero na voz dele partiu meu coração.

— Eu sei — concordei com ele, triste. — Eu sei.

O complexo de Malachi era composto por uma série de edifícios de aspecto industrial num grande terreno sem grama, bem longe da rodovia. Estacionamos na longa estradinha de cascalho e vi parte do entusiasmo de Eddie retornar ao ver com os próprios olhos cada fantasia sobre o excêntrico estilo de vida de Malachi se revelando. O sol estava começando a tocar o horizonte, deixando tudo ainda mais assustador com o cair das sombras. Não consegui conter um sorriso ao lembrar da primeira vez em que eu e Adrian tínhamos ido até lá, sem saber se estávamos nos metendo num curso de defesa pessoal ou num sequestro.

Bati na porta da casa e não fiquei surpresa ao ouvir os passinhos frenéticos dos chihuahuas, seguidos por uma cacofonia de ganidos agitados.

— Nossa, cara — Eddie exclamou. — É mesmo uma matilha inteira. — Já tinha visto Eddie enfrentar o ataque de um Strigoi sem pestanejar, mas ele deu um passo apreensivo para trás ao som do avanço canino.

Sorri e virei para a porta, esperando que o próprio Malachi Wolfe atendesse. Mesmo que ligeiramente instável e nada convencional, Wolfe tinha se tornado um bom amigo para mim e Adrian. E mais do que um amigo para a sra. Terwilliger. Essa última parte ainda me causava estranheza, mas, depois de tudo que eu e Adrian havíamos passado, estava mais do que convencida de que todo mundo precisava de alguém para amar, inclusive feiticeiras desmioladas e instrutores de defesa pessoal com tapa-olho.

Como ninguém atendeu, bati de novo. Isso fez os cachorros latirem ainda mais alto, mas Wolfe não apareceu.

— Que estranho — eu disse.

— Você não mandou mensagem pra ele antes de sairmos? — Eddie perguntou.

— A sra. Terwilliger mandou — respondi. Dei uma olhada nos outros edifícios, procurando algum movimento. — Ele falou que tinha algumas armas em mente pra mim. Talvez esteja indo pegar. — Voltei para a trilha e fui em direção ao lugar onde sabia que Wolfe guardava suas armas. — Espero que ele não tente me dar aquela zarabatana de novo.

O rosto de Eddie se iluminou enquanto me seguia pelo terreno arenoso.

— Zarabatana? Você jura que...

Sua frase foi interrompida quando a caixa de correio explodiu de repente ao nosso lado. Sem perder tempo, Eddie me jogou no chão e descemos rolando para longe de onde o calor e as chamas estavam mais fortes. O cascalho e o solo duro arranharam minha pele, mas era definitivamente melhor do que ser queimada. Eddie se manteve numa posição protetora sobre mim enquanto erguíamos a cabeça com cuidado para observar ao redor, vendo os destroços da caixa em chamas.

— O que foi isso? — ele perguntou.

Outra explosão estourou o chão ao nosso lado. Não houve nenhuma chama dessa vez, mas as rochas que saíram voando eram piores que os estilhaços, e soltei um grito quando uma especialmente afiada acertou meu braço. Apontei para a construção mais próxima.

— Lá!

Antes que ele pudesse me deter, corri na direção da garagem, lançando um feitiço de força invisível que quebrou uma janela. Um alarme estridente disparou. Não era nenhuma surpresa Wolfe ter instalado alarmes na sua escola. A questão era se a paranoia dele se estenderia a ter esse sistema de alarmes monitorado pela polícia ou não.

Eddie me seguiu e entramos no galpão que servia como área de treinamento para o curso de defesa pessoal. O lugar era amplo e aberto, forrado com espelhos e estojos de armas. Observei o salão, procurando o local mais seguro. Enquanto isso, Eddie correu diretamente para um dos estojos. Depois de ficar em dúvida entre uma boleadeira e um soco-inglês, escolheu a boleadeira, girando-a de um lado para o outro com facilidade enquanto recuava com cautela e ficava de olho na janela que havíamos quebrado. Fiz meu feitiço predileto, invocando uma bola de fogo na palma da mão.

— É Alicia? — Eddie gritou para ser ouvido sobre o alarme.

— Acho que sim — respondi. Tinha sentido uma magia humana nas explosões e, a menos que houvesse outra bruxa atrás de mim, Alicia parecia a escolha óbvia. Com a mão livre, consegui mandar uma mensagem para o contato mais recente no meu celular: sra. Terwilliger. Só consegui escrever uma mensagem curta e torci para que transmitisse a gravidade da situação: socorro.

Devia ter imaginado que Alicia não se contentaria com a abertura que fizemos na janela. De repente, a porta principal explodiu numa chuva de faíscas e madeira. Uma silhueta surgiu no batente e, antes de confirmar sua identidade, lancei a bola de fogo. O vulto ergueu a mão e a bola se desfez numa barreira invisível. Quando passou pela porta, a silhueta avançou e, finalmente, fiquei cara a cara com Alicia. Ela me abriu um sorriso frio.

— Oi, Sydney. Bom ver você de novo. Surpresa por me encontrar viva?

Invoquei outra bola de fogo.

— Nunca tive a intenção de matar você. — Até eu sabia quão pouco convincente isso soava, considerando tudo que tinha feito com ela. Alicia soltou uma risada dura.

— Jura? Então por que me atacou com cacos afiados e me deixou numa casa em chamas?

Antes que pudesse responder, Eddie avançou contra ela, girando a boleadeira no ar. Com um rápido movimento do punho, ela fez uma parede de espelhos se estilhaçar atrás dele. Percebi o que iria acontecer, mas não fui rápida o bastante para desfazer minha bola de fogo e criar um bom escudo para Eddie. Desviei parte do dano, mas alguns dos cacos o atingiram, especialmente no braço. Vi uma expressão de dor perpassar rapidamente seu rosto, mas isso não conteve seu avanço. Alicia quebrou outro espelho e, dessa vez, eu tinha projetado o escudo a tempo para protegê-lo. Ele lançou a boleadeira, mas, apesar da mira perfeita e da alta velocidade, ela se antecipou e explodiu a arma com uma onda de força invisível.

— Onde está Jill? — gritei para ela.

Alicia abriu um sorriso cruel.

— Você adoraria saber, né?

Eddie pegou um caco de vidro quebrado e foi correndo na direção dela, empunhando-o como uma faca.

— Juro que se você tiver machucado Jill...

— Ah, por favor. Até parece que perderia meu tempo machucando aquela menina. — Alicia tirou uma pitada de pó do bolso, atirando-a contra Eddie e gritando um feitiço que eu não conhecia. Não consegui interceptar e a magia se apoderou de Eddie. De repente, ele ficou paralisado, no meio do passo, segurando o caco de vidro ameaçadoramente na mão.

— O que você fez com ele? — gritei.

— Relaxa, Sydney — Alicia disse. — Ele está vivo. Assim como sua amiga Moroi... por enquanto.

— Onde ela está? — exclamei.

Alicia riu.

— Sinto muito, Sydney. Você nunca mais vai ver sua amiga. Ela vai sofrer ouvindo mais alguns salmos... Já você? Você só vai sofrer.

O chão aos meus pés tremeu. Cambaleei e caí de joelhos, mas consegui lançar uma bola de fogo contra Alicia antes de perder completamente o equilíbrio. Minha mira foi certeira, mas ela ergueu as mãos para lançar o que imaginei ser outro feitiço de proteção. O encantamento que ela falou era em grego, outro que também nunca tinha ouvido. A bola de fogo atingiu uma barreira invisível, mas, em vez de se apagar, as chamas rebateram e voltaram na minha direção. Gritei e consegui sair do caminho a tempo. Fui poupada, mas a bola de fogo atingiu um armário, tragando-o em chamas. O fogo se espalhou rápido, me levando a especular que tipo de verniz Wolfe tinha usado. O alarme finalmente parou de tocar.

— Feitiço de espelhamento — Alicia disse, sorridente. — Muito útil. Tome cuidado com o que você lançar.

Falou como uma provocação, mas havia uma verdade naquilo que me fez hesitar antes de planejar minha próxima ação. Demorei demais, pois ela logo lançou o mesmo feitiço que havia congelado Eddie. Era complexo demais para que o imitasse, mas consegui desviar e bloquear. Então, optei por um tipo diferente de congelamento, mais literal, enviando uma onda de gelo na direção dela. Não era tão devastadora quanto uma bola de fogo, mas não aumentaria o incêndio que se espalhava. Alicia respondeu com o feitiço de reflexão, enviando o gelo de volta para mim. Desviei e o gelo caiu numa parte da sala em chamas atrás de mim. Em vez de reduzir o fogo, porém, ele apenas tornou a fumaça mais densa.

— Você deve estar ficando cansada — ela provocou.

Ela estava certa. Ainda tinha muita magia em mim, mas esse combate ativo era desgastante. As palavras da sra. Terwilliger me voltaram à mente: Alicia está seguindo a velha tática de esgotar o inimigo primeiro. Era isso que Alicia estava fazendo: tentando me esgotar com magia para poder lançar um feitiço que acabaria de vez comigo. Com as vidas e poder que ela havia roubado, essa batalha não a cansaria tão rápido.

— Alicia, não precisamos lutar — eu disse. — Por favor. Vamos parar com isso e sair daqui antes que este lugar pegue fogo por completo. Me conte onde Jill está, solte Eddie e podemos seguir nosso caminho.

— Parar com isso? Depois que você tentou me matar?

— Eu só...

Sem se importar se agravaria as chamas, Alicia lançou outra bola de fogo na minha direção. Fiquei tentada a arriscar o feitiço de reflexão e mandar a bola de volta para ela, mas temi acertar Eddie por engano.

— Você é uma ameaça grande demais, Sydney — ela disse enquanto eu neutralizava a bola de fogo com um feitiço de água. — Não posso permitir que você simplesmente vá embora. Vou deixar esse lugar pegar fogo ao seu redor, assim como você me deixou para queimar naquela casa.

O chão tremeu aos meus pés novamente, e caí mais uma vez. Ela começou a recitar um feitiço complexo, que reconheci ser o início daquele que paralisara Eddie. Este era o plano dela: me transformar numa estátua viva e me abandonar num prédio em chamas, mais ou menos como eu tinha feito com ela. Com dificuldade, me levantei desesperada, tentando sair do caminho do feitiço. Enquanto ela terminava de falar, vi algo inacreditável: Malachi Wolfe no batente da porta da sala em chamas. Seu tapa-olho estava no olho direito (mudava de um dia para o outro) e havia pedaços de corda em volta dos seus punhos e tornozelos, como se tivesse sido amarrado.

Não era capaz de copiar o feitiço de estátua, mas tinha ouvido o feitiço de espelhamento vezes suficientes para me sentir confiante. Falei as palavras e senti a magia me envolver. Os olhos de Alicia se arregalaram surpresos enquanto ela tentava sair da frente do feitiço. O que ela não tinha visto, porém, era a matilha de chihuahuas correndo para dentro da sala junto com Wolfe. Depois de apontar para Alicia e dar um comando aos cachorros, eles se aglomeraram em volta dela, fazendo-a tropeçar e impedindo-a de desviar a tempo. O feitiço de estátua a atingiu e, de repente, ela ficou tão paralisada quanto Eddie, mas com uma aparência muito menos graciosa. Ele parecia um nobre guerreiro prestes a atacar. Ela, no meio do tombo, encarava incrédula a matilha de chihuahuas que latiam ao seu redor.

— Teria chegado aqui antes — Wolfe resmungou, chamando a matilha com um gesto rápido —, mas essa filha da mãe me amarrou. Precisei esperar os cachorros mastigarem as cordas.

— Rápido! — falei, correndo na direção de Eddie. — Me ajuda a tirá-lo daqui. — Tossi com a fumaça densa e encarei Alicia de relance, cujo rosto delicado estava paralisado num grito de desespero. — Me ajuda a tirar os dois daqui.

Eu e Wolfe conseguimos retirar os corpos paralisados antes que o prédio desmoronasse. Levamos os dois até a casa dele enquanto os bombeiros chegavam, seguidos quase imediatamente por Adrian, Trey, a sra. Terwilliger e algumas outras bruxas. Adrian me abraçou apertado.

— Você está bem? — ele perguntou. — Quando Jackie me ligou, não sabia o que esperar.

Pousei a mão em seu peito, tranquilizada pelo seu toque.

— Sim. Tive sorte. Muita sorte. Mas Eddie...

Uma das bruxas de um clã que não conhecia tirou da bolsa umas flores secas que espalhou sobre Eddie enquanto entoava um feitiço em latim. Um instante depois, Eddie ganhou vida novamente, ainda no meio do passo. Ele cambaleou, observando ao redor surpreso por não estar onde esperava. Eu e Adrian o deixamos ainda mais espantado quando demos um abraço coletivo nele.

— Vocês vão ter que descongelar Alicia também — eu disse, com pesar. — Precisamos encontrar Jill.

A sra. Terwilliger franziu a testa.

— É uma pena. Esse é um jeito muito bom de lidar com ela. Você não conseguiu arrancar nenhuma pista dela sobre a localização de Jill?

Balancei a cabeça e soltei Eddie.

— Não. Ela admitiu que Jill estava viva “por enquanto”, mas não explicou. — Fiquei lembrando, tentando repetir todas as palavras em meio ao caos. Embora tivesse sido bom ouvir a confirmação de Alicia de que Jill estava viva, já sabíamos disso através dos nossos feitiços. Não foi tão útil quanto eu esperava. — E ela falou alguma coisa sobre Jill ouvir salmos.

Para a sra. Terwilliger, isso fez tão pouco sentido quanto para mim, e ela soltou um grande suspiro, trocando olhares com outras bruxas. Elas também não pareciam empolgadas com a ideia de soltar Alicia.

— Bom, quando os bombeiros terminarem, vamos criar um círculo de segurança e libertá-la para conseguir algumas respostas.

Trey, que vinha se mantendo à margem do círculo, limpou a garganta antes de dizer:

— Talvez não seja necessário. Acho que sei onde ela está... ou, pelo menos, com quem está. — Todos os olhos se voltaram para ele em choque, mas ele não vacilou. — Acho que os Guerreiros da Luz estão com ela.


13

Adrian

— O que salmões têm a ver com os guerreiros? — perguntei.

Sydney me lançou um olhar de esguelha.

— Salmos, não salmões. E não sei a relação. — Ela observou Trey com expectativa. — São um tipo de poema religioso, certo? Da Bíblia?

— Sim — ele respondeu. — Quer dizer, os que os guerreiros gostam de citar não estão na Bíblia de verdade. Eles inventam um monte de salmos por conta própria que recitam muito em ocasiões formais, antes de reuniões ou coisas do tipo. Se Alicia falou que Jill estava ouvindo salmos, é provável que ela esteja sendo mantida em algum lugar por eles. Acreditem em mim, não tem nada que eles gostariam mais do que ter uma prisioneira Moroi.

Eddie se voltou para Jackie incrédulo e apontou na direção de Alicia.

— Descongela essa bruxa! Precisamos de respostas agora. Antes que seja tarde demais para Jill.

Nunca o vira tão agitado e fiquei tentado a acalmá-lo com compulsão. Jackie permaneceu extraordinariamente serena.

— Eu é que não vou libertar Alicia aqui. Se fizermos isso, vai ser com dez outras bruxas para mantê-la aprisionada. E, mesmo assim, não acho que ela vá colaborar.

— Ela está certa — Sydney disse, devagar. — Mesmo se soltarmos Alicia, não sabemos se ela vai nos contar alguma coisa.

— Farei com que ela fale — Eddie insistiu. — Ou Adrian pode usar compulsão nela.

Sydney não pareceu animada com a ideia, mas, na minha cabeça, tia Tatiana exclamou ansiosa: Sim! Sim! Vamos compelir essa bruxa a nos contar coisas que ela nem faz ideia de que sabe!

— Existem feitiços que protegem contra compulsão e Alicia é esperta o suficiente para ter tomado esse cuidado. — Jackie se virou para uma das amigas bruxas. — O que você acha? De quanto tempo precisa até ela enfraquecer?

A bruxa observou Alicia paralisada com o olhar clínico.

— Pra falar a verdade, eu a deixaria assim por uma semana. Mas, se vocês estão com pressa... — Ela olhou para Eddie antes de se voltar para Alicia. — Diria quarenta e oito horas.

— Quarenta e oito horas?! — Eddie exclamou. — Jill pode não ter quarenta e oito horas se os guerreiros estiverem com ela! Podem estar fazendo algum ritual de execução enquanto a gente fica aqui de conversinha.

Jackie continuou firme.

— Ficar paralisada suga a energia dela. Dois dias assim e vai estar esgotada, tanto do ponto de vista físico como mágico. Muito mais fácil de interrogar. Mesmo assim, só a libertaria se estivéssemos num lugar extremamente seguro e com mais reforços. Ela é muito imprevisível.

— Dois dias é demais — Eddie insistiu. Compartilhava da sua angústia. Sydney, porém, ficou pensativa.

— Alicia será uma ameaça menor e ficará mais fácil interrogá-la assim — ela disse, devagar. — E, enquanto isso, podemos conseguir algumas respostas mais rápidas sobre os guerreiros.

— Como? — eu e Trey perguntamos ao mesmo tempo.

— Com Marcus — Sydney respondeu. — Ou melhor, com um dos contatos dele. É uma menina que trabalha disfarçada com os guerreiros. Pode descobrir alguma coisa antes que possamos fazer Alicia falar. Vou falar com ela e com Marcus. Se eles não conseguirem nada em vinte e quatro horas, as bruxas vão preparar Alicia para o interrogatório.

Ninguém pareceu contente com a solução, mas todo mundo concordou. Finalmente fomos nos dispersando. Eddie ficaria com Trey enquanto eu e Sydney voltaríamos para a casa de Clarence. No caminho, Sydney ligou para Marcus a fim de explicar a situação e ele prometeu retornar assim que possível. Quando chegamos à casa de Clarence, Rose e Dimitri estavam ansiosos para saber o que havia acontecido. Deixei que Sydney contasse as novidades para os dois enquanto fui dar uma olhada em Declan e na minha mãe. Fazia poucos dias que ele estava na minha vida, mas fiquei surpreso com a ansiedade que sentia para ver como ele estava, por mais que o bebê não fizesse quase nada além de dormir. Depois dos acontecimentos turbulentos e do pânico que tinha sentido ao descobrir que Sydney enfrentara Alicia sozinha, a presença de Declan me tranquilizou.

Algumas horas depois, Marcus ligou para Sydney dizendo que tinha uma novidade e que estava a caminho de Palm Springs para contá-la pessoalmente. No entanto, Marcus era um fugitivo tão procurado quanto Sydney e, com a precaução de sempre, marcou um encontro no dia seguinte longe da mansão de Clarence e da casa de Trey.

O lugar que escolheu era um restaurante mongol fora da cidade. Depois de muita insistência, Rose e Dimitri aceitaram esperar as novidades na casa de Clarence para não aparecermos em um grupo grande demais. Trey e Eddie, porém, nos acompanharam. Trey tinha informações úteis sobre os guerreiros, e nenhuma força na Terra era capaz de manter Eddie longe dos planos relacionados a Jill. Quando entramos no restaurante, Sydney soltou um suspiro de alívio.

— Que bom. Ele trouxe Sabrina junto.

Já havia sido apresentado a Sabrina, mas não a conhecia direito. Ela tinha mais ou menos a minha idade e espionava os Guerreiros da Luz havia anos. Seu primeiro encontro com Sydney tinha envolvido uma arma apontada para minha esposa, o que não me deixara muito contente. Mas nós dois sabíamos que Sabrina só estava tentando proteger Marcus. Ao longo do tempo, passamos a respeitar tanto ela como a importância do seu trabalho. Ela não concordava com a filosofia dos guerreiros, mas continuava com eles porque as informações que conseguia eram úteis para os outros. Minha grande esperança era que fossem úteis hoje.

— Uma boa e uma má notícia — Marcus disse, o que não era exatamente a introdução que esperávamos. — A boa notícia é que temos quase certeza de que os guerreiros estão com Jill. A má é que não sabemos exatamente onde ela está.

Eddie cruzou os braços.

— Hora de libertar Alicia e arrancar algumas respostas.

— Não necessariamente — Sabrina disse. Seu longo cabelo loiro estava amarrado num rabo de cavalo e ela parecia uma menina normal, não alguém que fingia ser integrante de um grupo fanático antivampiros. — Meu palpite é que Alicia também não sabe onde Jill está. Ela deve ter capturado Jill e entregado aos guerreiros, deixando que a escondessem em algum lugar. Dei uma pesquisada e encontrei relatórios sobre uma “prisioneira Moroi de alta visibilidade”, mas, infelizmente, não revelavam a localização nem mesmo para os membros do grupo. Podem até trabalhar com alguém como Alicia, mas não confiariam nela tanto assim.

A notícia me desanimou e Eddie ficou igualmente frustrado.

— Então o que a gente faz se nem seu grupo sabe onde ela está? — ele perguntou.

— Bom — Sabrina disse —, alguém sabe. Mas não alguém do meu nível.

Marcus assentiu enquanto engolia um pedaço de seu refogado, que, pelo que vi, parecia conter apenas carne e nenhum legume.

Que primitivo, tia Tatiana zombou.

Ei, deixa o cara, defendi. Ser um corajoso fugitivo deve exigir muita proteína.

— Temos algumas ideias de como chegar a essa pessoa — Marcus disse. — A primeira é pedir para os alquimistas fazerem isso. Nós sabemos que eles têm laços com os guerreiros.

— Podem até estar atuando juntos — Eddie disse. — Como já atuaram no passado.

— Em algumas coisas, sim — Sydney disse devagar. — Mas não nisso. Eles não querem correr o risco de levar os Moroi ao caos. Eles querem Jill de volta. Não ficariam parados se soubessem sua localização.

— Concordo — Marcus disse. Seu olhar se voltou para mim. — Além disso, podem intervir simplesmente porque não gostariam que os guerreiros entrassem na área deles. Eles gostam de estar sempre no controle, e não vão gostar nem um pouco de saber que os guerreiros trabalharam com uma bruxa para interferir nos assuntos Moroi. Claro, isso significa que alguém precisa contar pra eles que os guerreiros estão com Jill...

— Não precisa ser um de vocês — Eddie disse, entendendo a mensagem silenciosa entre mim e Marcus. — Droga, deixa que faço isso.

— Podem não acreditar em você — eu disse, sorrindo com sua veemência. — Podem não acreditar nem em mim.

Trey tinha ficado em silêncio enquanto falávamos sobre o grupo de que ele já tinha feito parte, mas finalmente levantou a voz.

— Também tem uma grande chance de que os guerreiros neguem mesmo se os alquimistas resolverem investigar. Eles também são meio obcecados por controle. Podem dificultar de propósito.

— Você tem razão — Sabrina disse. — E é por isso que temos mais uma opção.

Havia um tom precavido na sua voz que me deixou alerta.

— Qual é?

Ela trocou olhares com Marcus e depois se voltou para Sydney.

— Os guerreiros vão iniciar alguns membros novos na semana que vem. Você pode entrar disfarçada e depois tentar se infiltrar nos níveis mais altos da hierarquia para descobrir onde Jill está. — Ela falou rápido, como se isso pudesse ajudar a diminuir o total absurdo da sugestão.

— Vocês querem que eu entre para os guerreiros? — Sydney exclamou.

— De jeito nenhum — eu e Eddie falamos em uníssono.

— Você só estaria participando do recrutamento — Sabrina disse, como se isso amenizasse alguma coisa. — É como uma orientação.

— Ou uma recepção aos calouros — Marcus disse, o que não melhorou muito as coisas.

Trey balançou a cabeça, consternado.

— Sei do que estão falando e é loucura. — Ele virou para o resto de nós. — Eles juntam um bando de possíveis recrutas, levam para um terreno secreto dos guerreiros e os fazem competir em todo tipo de testes para provar seu valor. Lembram quando precisei lutar contra meu próprio primo?

Certa vez, os guerreiros tinham mantido Sonya em cativeiro e a usado em parte de uma cerimônia com o objetivo de “testar” os membros mais jovens. Além de lutar contra o primo, esperavam que Trey matasse Sonya em seguida. Ele tinha planejado não realizar a execução, e os planos deram errado de qualquer jeito quando um grupo de guardiões interrompeu a cerimônia para resgatar Sonya. Sydney também havia causado um grande caos e os guerreiros definitivamente não gostavam dela.

— Os guerreiros conhecem a cara de Sydney — Eddie nos lembrou. — Ela não pode fazer isso. Deixem que eu vá. Não veria mal nenhum em bater em alguns daqueles malucos. Já tenho muita prática nisso.

— Sim — Marcus concordou —, mas Sydney tem mais prática em invadir lugares para conseguir informações. E também devem reconhecer você.

Sydney franziu a testa.

— Será que nós dois podemos ir juntos? Não veria mal em ter um reforço e tenho alguns truques na manga que podem nos disfarçar.

Você vai ficar parado e deixar que eles levem isso adiante?, tia Tatiana me perguntou.

Virei para Sydney, consternado.

— Você está considerando isso de verdade? Tipo, adoro planos malucos, mas esse é louco demais até pros meus padrões.

Sabrina franziu a testa, pensativa.

— Normalmente os guerreiros só apadrinham uma pessoa, mas já vi alguns apresentarem duas. Se vocês conseguirem se disfarçar, posso colocar os dois lá dentro.

— Então me manda junto com Sydney — eu disse.

— De jeito nenhum — Eddie rebateu. — Estou em condições muito melhores de bater naqueles malucos. Sem ofensa, Adrian. — Ia dizer que poderia protegê-la com o espírito, mas sabia que ela não gostaria dessa ideia.

— É melhor você ficar, Adrian — Sydney concordou. — Você pode usar a compulsão para tentar tirar respostas de Alicia quando as bruxas a descongelarem. Só você pode fazer isso.

Abri a boca para discordar, mas não consegui pensar em nada para dizer. Sydney havia me encurralado e sabia disso. Queria ir com ela, mas não porque tivesse um plano concreto para enfrentar os guerreiros. Era meu instinto de protegê-la. Mas ela estava certa em relação a Alicia. Poderíamos dar os dois dias para as bruxas enquanto Sydney entrava disfarçada como recruta. Se tudo desse certo, esse tempo enfraqueceria qualquer proteção contra compulsão que Alicia pudesse ter colocado sobre si.

— Você está apoiando o uso do espírito? — perguntei, surpreso.

— Não — ela admitiu. — Estou torcendo para que elas tirem as respostas por outros meios. Mas, se não conseguirem, tenho a impressão de que vai usar compulsão de qualquer jeito.

— Você sabe das coisas, como sempre — falei para Sydney.

Ela sorriu, mas deu pra ver que não estava nem um pouco contente com a ideia. Com um suspiro, se voltou para Sabrina.

— Quantos problemas a gente vai te arranjar com isso? Por levar dois espiões para dentro da organização? Porque é óbvio que não vamos ficar com os guerreiros.

Sydney estava certa. O que ela e Eddie estavam se voluntariando a fazer — infiltrando-se num ritual bárbaro de iniciação — era perigoso, mas não podíamos esquecer do papel de Sabrina naquilo. Ela estava envolvida em um jogo com um grupo perigoso e poderia acabar correndo mais riscos.

— Depende se vocês forem pegos. — Sabrina forçou um sorriso tenso. — Então não sejam pegos, certo?

O rosto de Trey foi ficando cada vez mais carregado com o avanço dos planos.

— Mas isso só vai acontecer se vocês não conseguirem convencer os alquimistas de que os guerreiros estão com Jill. Se tudo der certo e eles acreditarem, os alquimistas podem fazer o serviço sujo e vocês não vão ter que entrar nessa loucura.

— Se tudo der certo — Marcus concordou. — Mas, nesse meio-tempo, precisamos preparar Sydney e Eddie para o caso de irem com Sabrina.

Em seguida, Sabrina resumiu como planejava infiltrar Sydney e Eddie. Quanto mais ela falava, mais horrível aquilo tudo parecia e, novamente, quis pedir para Sydney não ir. Percebi que minha vontade de protegê-la era parecida com a insistência dela para que eu controlasse o uso do espírito. As duas condutas eram perigosas, mas como deixaríamos de fazê-las com a vida de Jill em perigo?

Não existe uma boa resposta, tia Tatiana declarou, rabugenta. Não tem como isso dar certo.

Quando o almoço acabou, os planos já estavam feitos e Sydney decidiu pedir ajuda para os disfarces mágicos a suas amigas bruxas. Sabrina recebeu uma ligação dos guerreiros chamando-a de volta antes do que imaginava. Ela fez uma careta e levantou.

— Vou entrar em contato assim que tiver mais detalhes sobre o recrutamento. Algum de vocês pode levar Marcus até o esconderijo?

— Nós levamos — Sydney disse, antecipando-se a Eddie e Trey. — Depois a gente fala com vocês.

Nosso grupo se dispersou, e eu e Sydney fomos com Marcus até o carro alugado que estávamos dirigindo desde que voltamos para Palm Springs. Era um conversível, um bônus oferecido pela empresa sem que tivéssemos pedido.

— Da hora — Marcus disse. — Está um dia ótimo para baixar a capota. — Ele me olhou de soslaio. — Quer dizer, talvez não.

Depois do tempo nublado do dia anterior, Palm Springs tinha voltado ao seu clima escaldante de verão, ao qual definitivamente não queria me expor. A luz do sol não matava os Moroi como matava Strigoi, mas podia ser muito desconfortável se ficássemos expostos por muito tempo. Momentos assim me lembravam das diferenças entre mim e Sydney. Ela adorava o sol, e viver comigo a mantinha longe dele.

— Pode abaixar a capota se quiser — eu disse em um tom despreocupado, jogando as chaves para Sydney.

Ela abriu um sorriso discreto, adivinhando meus pensamentos.

— Não, prefiro o ar-condicionado.

Retribuí o sorriso, sabendo que ela estava mentindo. Às vezes, deitados na cama, eu e ela discutíamos os planos para uma futura casa dos sonhos. Pensávamos em construir uma varanda telada, arejada o suficiente para que eu aproveitasse o calor, mas coberta o bastante para me proteger da luz mais forte. Dizia que serviria limonada para ela lá. Seria o lugar perfeito para nós, o encontro de dois mundos. Mas, no momento, era difícil imaginar um futuro assim.

Marcus deu as coordenadas até um condomínio que não era muito longe da Faculdade Carlton, do outro lado da cidade, onde eu tinha estudado. Enquanto Sydney dirigia na rodovia, liguei para um número que poucos Moroi tinham a sorte de ter. Fiquei ainda mais surpreso quando atendeu no primeiro toque.

— Oi, Adrian — Lissa disse.

— Estava esperando minha ligação do lado do telefone? — brinquei.

— Estou esperando uma ligação do Christian, na verdade. Mas prefiro saber notícias suas, se pelo menos estiver ligando para me dizer que está com Jill.

— Infelizmente não — eu disse, sentindo uma angústia. — Mas tenho uma notícia que pode ser útil. Temos fortes evidências de que os Guerreiros da Luz estão com ela.

Por essa Lissa obviamente não esperava.

— Como assim? Pensei que era uma bruxa que odiava Sydney. Se os guerreiros estão com ela, não é apenas uma vingança pessoal. Aquelas pessoas matam vampiros por prazer.

— Parece que Alicia entregou Jill para eles a manterem em cativeiro. Sydney tem um plano maluco para tentar descobrir onde Jill está presa, mas, se os alquimistas puderem pressionar os guerreiros, isso vai nos poupar muita confusão — eu a informei. — O único problema é que Sydney não pode ligar para pedir isso a eles.

— Mas eu posso — adivinhou Lissa.

— Você tem muito charme e persuasão — falei. — Além disso, tem um pouquinho mais de influência do que nós.

— Vou ver o que posso fazer — ela respondeu, parecendo cansada só de pensar na ideia. Era compreensível. Diplomacia também me deixaria exausto, ainda mais ao lidar com babacas como os alquimistas. — Vão querer saber que “fortes evidências” nós temos.

Hesitei, pensando em Sabrina.

— Não podemos entregar nossa fonte. Você não pode só falar que é uma pista anônima e pedir para eles investigarem?

— Vou tentar — Lissa disse. — Mas você sabe como eles são.

— Sim — concordei. — Sei muito bem. Boa sorte. E obrigado.

— Não precisa agradecer. Jill é minha irmã.

Desliguei bem a tempo de ver Sydney passar direto pelo condomínio que Marcus havia indicado.

— Ei — eu disse, reconhecendo o lugar dos meus tempos de Carlton. — Você não viu?

Seu rosto estava sério. — Vi. E também vi os caras de terno bisbilhotando na lateral do prédio. — Ela ergueu os olhos para o retrovisor. — Além do carro preto que acabou de sair do estacionamento do prédio e está nos seguindo agora.

— Droga — Marcus disse. — Descobriram que estou na cidade. Achei que aquele lugar era seguro.

Virei no banco, esticando o pescoço para ver o que Sydney mencionara. De fato, um Escalade preto estava fazendo algumas manobras bem agressivas para entrar na nossa pista. Sydney virou numa curva abrupta que me fez agarrar a porta, e o Escalade nos seguiu imediatamente. A frágil sensação de liberdade que tinha me permitido sentir ao sair da Corte se dissipou feito fumaça.

— Desculpa, gente — Marcus disse. — Devem ter me visto quando saí de manhã.

Sydney fez outra curva e o Escalade recebeu buzinadas ao nos imitar. O rosto dela estava tenso e sabia que ela se esforçava muito para permanecer tão calma quanto parecia. Esse era o pesadelo com o qual ela convivia havia tanto tempo: ser encontrada pelos alquimistas novamente.

— Não se sinta mal — ela falou para Marcus. — Depois de tudo que aconteceu em Palm Springs, eles devem manter um pessoal por aqui. É bem possível que você nem tenha sido reconhecido. Eles podem ter visto Eddie e achado melhor investigar. Ele também é procurado. — Ela balançou a cabeça. — Agora a questão é como vamos despistá-los.

— Volta pra rodovia e entra na primeira saída para o centro — Marcus disse.

Voltar para um congestionamento não faz sentido nenhum, tia Tatiana exclamou. Vão capturar Sydney de novo!

— Não seria melhor seguir pela rodovia e tentar correr mais rápido do que eles? — perguntei.

— A gente nunca conseguiria — ele disse. — Além disso, provavelmente pediriam reforços e teríamos mais alquimistas atrás de nós.

Sydney seguiu as indicações, levando-nos em direção ao centro da cidade. À nossa frente, pude ver algumas das ruas mais movimentadas do centro, estreitas e cheias de carros, enquanto pedestres e mesas enchiam as calçadas.

— Você está apostando na ideia de que os alquimistas não gostam de fazer escândalo, imagino? — Sydney perguntou. — Mas eles nos perseguiram descaradamente no meio da Strip em Las Vegas. — Ela estava com um vestido de noiva, o que chamava ainda mais atenção. — Eles vão fazer o que for preciso.

— Sim, eu sei — respondeu Marcus. — Mas se puderem, vão evitar. Na verdade, meu objetivo principal é chegar no meu carro de fuga.

— Carro de fuga? — perguntei, perplexo. — Você tem um carro de fuga?

Ele me abriu um sorriso.

— Sou Marcus Finch. É óbvio que tenho um carro de fuga. Está estacionado depois de um túnel subterrâneo que sai da Miguel’s Taqueria.

— Isso fica a seis quarteirões daqui e estamos prestes a parar no trânsito por causa dos semáforos e dos carros lentos. — Os carros à nossa frente pararam quando a luz do semáforo ficou vermelha.

— Correção — Marcus disse, soltando o cinto de segurança de repente. — São eles que estão prestes a ficar presos no trânsito por causa dos semáforos e de um carro largado no meio da pista. Todo mundo sai. — Entendi na hora o que estava prestes a acontecer quando ele pôs a mão na porta. — Vocês sabem não chamar atenção. Me encontrem na Miguel’s, mas não deixem que sigam vocês até lá.

Ele saiu do carro rápido e, assim que Sydney parou alguns segundos depois, nós também. Ele saiu em disparada por um lado da rua, perdendo-se na multidão sem olhar para trás. Alguns poderiam ter considerado um abandono, mas Marcus nos conhecia o bastante para confiar que sabíamos o que fazer em situações como essa. Ser imprevisíveis. Esconder-se entre as multidões e lojas. Voltar a nos encontrar quando tivéssemos despistado os alquimistas.

Isso, claro, supondo que eles viriam atrás de nós. Na rodovia, tinha dois carros entre o nosso e o deles, então havia a chance de eles não nos virem largar o carro. Quando o semáforo ficasse verde e o trânsito não avançasse, perceberiam que havia alguma coisa errada. O problema era que distância eu e Sydney conseguiríamos percorrer nesse meio-tempo, e se viriam atrás de nós ou de Marcus.

É óbvio que foram atrás de nós.

— Mais rápido — eu disse, segurando a mão dela enquanto saíamos em disparada pela calçada.

Uma série de buzinas de motoristas furiosos que não conseguiam seguir com o nosso carro abandonado na pista me avisou que o semáforo tinha ficado verde. Gritos atrás de nós indicaram que outra coisa tinha dado errado. Quando me virei, vi um homem e uma mulher de terno bege correndo na nossa direção, sem se importar com os pedestres no caminho. E pensar que eles não queriam fazer escândalo.

À nossa frente, a calçada parecia ainda mais cheia de gente do que o normal, com pessoas aglomeradas em volta de alguma coisa. Que ótimo. Não era de atraso que precisávamos. Outra olhadela rápida para trás mostrou que o alquimista, que era quase tão alto quanto eu, estava se aproximando. Chegamos perto do amontoado de gente e vi que as pessoas tinham parado para admirar os manequins que uma loja colocara na calçada como parte de alguma promoção. Vestidos, echarpes e outras peças coloridas enfeitavam os manequins. Eu e Sydney nos esprememos para passar por um grupo de mulheres que admirava um vestido de seda roxo e vimos os alquimistas a poucos metros de nós.

Sydney observou ao redor e um sorriso inesperado se formou em seus lábios. Ela recitou um feitiço que não ouvi por causa do barulho da rua, mas teve efeito imediato. Todas as lindas roupas ao nosso redor explodiram em retalhos multicoloridos. Os retalhos choveram à nossa volta, quase impossibilitando a visão. Houve confusão quando as pessoas gritaram admiradas, sem saber se aquilo era um ataque ou uma campanha publicitária.

— Vamos — ela disse, voltando a apertar o passo.

Enquanto corríamos para longe, ouvi um grito de espanto especialmente alto de uma pessoa conhecida: Lia DiStefano. Aquela era a loja dela, o que explicava o sorriso maldoso de Sydney. Me senti um pouco mal, mas não muito. Lia tinha feito um vestido maravilhoso para Sydney um tempo atrás, um longo vermelho inspirado na Grécia antiga. Sydney tinha ficado tão linda nele que achei que estava sonhando. Lia merecia crédito por isso. Por outro lado, Lia havia ficado tão desesperada para ter Jill como modelo que publicou um anúncio com ela sem que ninguém soubesse, o mesmo que Alicia havia incluído na caixa que Jackie levara para Sydney. Não sabia exatamente a relação entre Alicia, os guerreiros e como aquele anúncio os tinha ligado a Jill, mas não havia dúvida de que havia colocado nossa amiga em perigo.

— Desculpa, Lia — murmurei ao passar correndo na frente da loja dela. — Da próxima vez, não recrute modelos que não pode usar.

No quarteirão seguinte, havia uma floricultura aonde tinha ido uma vez. Sem confirmar se ainda estávamos sendo seguidos, entramos rápido pela porta, aberta para aproveitar o calor da tarde. Fomos cercados imediatamente pela fragrância opressiva de rosas e lírios. Buquês de todas as cores enchiam a loja, mas só estava concentrado em procurar o que lembrava ter visto na última vez em que estive ali: uma porta dos fundos. A floricultura tinha duas entradas: uma que dava para a avenida principal, e outra que levava ao estacionamento no beco atrás das lojas. Cumprimentei com a cabeça a florista espantada e sorri. Então levei Sydney correndo para a porta dos fundos, como se o que estivéssemos fazendo fosse completamente normal.

No beco, parei e tomei coragem para espiar pela janelinha da porta, verificando se algum alquimista tinha entrado na loja. Ninguém entrou, então cruzei os dedos para que a destruição dos manequins de Lia tivesse causado confusão suficiente para ocultar o resto do nosso caminho. Eu e Sydney corremos pelo beco dos fundos, passando pelas portas de várias lojas, algumas abertas ao público, outras não. Então chegamos à porta dos fundos da Miguel’s Taqueria, onde estava escrito APENAS ENTREGAS. Bati mesmo assim, sem saber como explicaríamos nossa presença.

Entretanto, o cara que abriu a porta não pareceu nem um pouco surpreso ao nos ver e nos convidou a entrar.

— Vocês devem ser os amigos de Marcus.

Entramos no que descobrimos ser a cozinha, que estava com um cheiro delicioso. Um cozinheiro que estava virando uma quesadilla na chapa ergueu os olhos, nos cumprimentou com a cabeça como se nossa presença fosse completamente normal e voltou ao trabalho. Enquanto isso, nosso guia nos levou a um depósito repleto de prateleiras com comida. Havia um alçapão no piso. Ele o abriu e, lá embaixo, segurando uma lanterna, estava Marcus, que acenou para nós.

— Como você conhece Marcus? — perguntei enquanto descia os degraus da escada de mão.

O guia deu de ombros.

— Ele me fez um favor uma vez.

Essa parecia a história da vida de Marcus. Agradecemos o moço e descemos. Como Marcus tinha dito, realmente havia um túnel, o qual atravessamos correndo, quase sem conversar, até sair num barracão a alguns quarteirões de distância. Não vimos sinal de perseguição nem no túnel nem na superfície, e Marcus se sentiu seguro o suficiente para nos guiar até um Chevrolet azul. Tirou as chaves do bolso e destrancou a porta.

Foi só quando entramos na estrada que ele finalmente falou.

— Bom — ele disse —, tenho uma boa e uma má notícia. A boa é que vocês não precisam mais fingir para os alquimistas que estão na Corte. A má é que os alquimistas sabem que vocês não estão mais lá.


14

Adrian... de novo

Depois de garantir que tínhamos escapado dos alquimistas, pelo menos por enquanto, a primeira coisa que precisava fazer era proteger Declan e minha mãe.

— Onde você está? — perguntei para ela quando atendeu o telefone. Estava sentado no banco de trás enquanto Marcus dirigia rumo ao que esperava ser um esconderijo seguro. Sydney estava no banco do passageiro, mandando atualizações por mensagens para quase todo mundo que a gente conhecia.

— Na casa do Clarence — minha mãe respondeu. — Onde mais eu estaria?

Soltei um suspiro aliviado.

— Ótimo. Você precisa ficar aí por um tempo. Não saia. Você tem coisas suficientes para Declan? — Tinha achado que ela exagerara na primeira compra. Agora estava grato por isso.

— Bom, acho que sim, embora ele não goste muito daquelas chupetas que comprei. Talvez precise de uma diferente...

— Não saia — repeti. — É muito provável que a casa esteja sendo vigiada. Os alquimistas sabem que estamos aqui.

Imediatamente minha mãe entendeu a gravidade da situação.

— Vocês estão bem?

— Estamos, conseguimos fugir. Mas eles vão vigiar todos os nossos pontos de encontro para nos encontrar. Vão saber que não voltamos para a casa do Clarence, o que é ótimo. Mas também não podem saber que você e Declan estão aí. Precisamos que continue assim. Fiquem aí dentro.

Ela permaneceu em silêncio por alguns segundos.

— Adrian, tem alguma coisa... diferente no Declan, não tem?

— Especial — corrigi. — Ele é muito, muito especial. E por enquanto é melhor que os alquimistas não saibam que ele existe. Se quiserem vir atrás de mim e de Sydney, tudo bem. Mas o bebê precisa ficar fora do radar deles.

— Entendi — ela disse. — Se precisarmos de alguma coisa, mando entregar aqui ou peço para Rose e Dimitri comprarem. Eles podem sair?

Hesitei.

— Sim. Os alquimistas não têm interesse neles. Podem ficar curiosos para saber por que estão na cidade, mas não vão invadir a casa de Clarence para descobrir, não sem outro motivo. Outros Moroi e dampiros já se hospedaram aí antes. Posso falar com um deles?

Depois de algum movimento, Rose atendeu.

— Estou vendo pela cara da sua mãe que alguma coisa deu errado.

— Os alquimistas sabem que eu e Sydney estamos aqui — disse para ela. — Conseguiram rastrear Marcus quando ele chegou à cidade e viram a gente junto.

Não tinha como ter certeza, mas tive a impressão de que Rose xingou em russo.

— Então qual é o plano?

— Estamos indo para um lugar que é, teoricamente, seguro — eu disse para ela. — De lá, Sydney vai investigar os guerreiros e, depois, vou interrogar Alicia.

— Quero ir junto — Rose disse, prontamente.

— Eu sei, mas preciso muito, muito mesmo, que vocês fiquem com Declan e minha mãe. Estava falando para ela agora que não pode sair da casa. Acho que os alquimistas não sabem que ela está na cidade e quero que continuem sem saber. Mas, se acontecer alguma coisa esquisita, preciso que vocês os protejam.

— Como assim, “alguma coisa esquisita”? Por que alguém se importaria com eles? — Assim como minha mãe, Rose estava começando a desconfiar que tinha algo estranho acontecendo.

— Não posso contar — eu disse. — Mas confie em mim: é importante. Pelo menos um de vocês precisa ficar com eles o tempo inteiro. Se der pra você me encontrar com segurança quando eu for falar com Alicia, tudo bem. Mas, enquanto isso não acontecer, prometa que vai cuidar deles.

Houve um longo silêncio e pude adivinhar o porquê. Assim como todo mundo, Rose queria encontrar Jill. Com tantas pistas em potencial, era compreensível que preferisse estar envolvida nessa missão a ficar cuidando de um bebê. Mas Rose vira o suficiente na comunidade e era minha amiga, então enfim aceitou.

— Está bem. Vamos ficar de olho nos dois. Mas, se houver alguma coisa que possamos fazer para encontrar Jill, qualquer coisa...

— Aviso vocês — prometi. Desliguei e observei ao redor. — É aqui?

Tínhamos saído da área urbana de Palm Springs e entrado no deserto. Paramos num lugar que fazia o terreno de Wolfe parecer completamente civilizado. Uma única cabana solitária se erguia na paisagem desolada, e os pneus do carro levantavam nuvens de poeira enquanto seguíamos na direção dela por uma estrada arenosa.

— Sim — Marcus disse.

— Bom, é definitivamente afastada — Sydney comentou. — Mas é segura?

— É o lugar mais seguro que vamos conseguir agora — Marcus nos garantiu, estacionando o carro na frente da casa. — Ninguém nos seguiu até aqui. Ninguém sabe da minha relação com essas pessoas.

Saímos do carro e seguimos Marcus até a porta. Ele precisou bater três vezes, cada vez mais alto, até a porta finalmente abrir. Um homem de cinquenta e poucos anos, com o cabelo desgrenhado e óculos de aro redondo, nos encarou, estreitando os olhos sob o sol como um Moroi. Seu rosto se iluminou quando reconheceu nosso amigo.

— Marcus, cara! Quanto tempo!

— Bom ver você também, Howie — Marcus respondeu. — Eu e meus amigos precisamos de um lugar pra ficar. Tudo bem se passarmos um tempo aqui?

— Claro, claro. — Howie deu um passo para o lado para podermos entrar. — Entra aí.

— Howie e a mulher dele, Patty, cultivam e vendem todo tipo de ervas — Marcus explicou.

Respirei fundo ao entrar na sala, que poderia ter saído diretamente de 1971.

— Especialmente uma erva em particular — acrescentei.

— Não se preocupa — Marcus disse, abrindo um sorriso com o canto dos lábios. — Eles são gente boa.

Sydney torceu o nariz.

— Não vai adiantar muito fugir dos alquimistas se formos presos numa batida de drogas.

Marcus não parecia preocupado.

— Esse é o menor dos nossos problemas. Eles vão nos dar um lugar para ficar. E a cozinha está sempre abastecida.

Isso, pelo menos, era verdade. Desde que pudéssemos sobreviver à base de porcarias, não correríamos risco de passar fome tão cedo. Nunca tinha visto tantas caixas de bolinhos recheados na vida. Patty era tão simpática e chapada quanto o marido, e nos garantiu que poderíamos ficar o quanto quiséssemos. Os dois deviam passar a maior parte do tempo no porão ou no jardim, cultivando as várias plantas que usavam ou vendiam. Depois que nos acomodamos, desapareceram no andar de baixo, deixando-nos a sós para continuar os planos. Descobri então que, enquanto conversava com minha mãe e Rose, Marcus e Sydney tinham recebido mais informações.

— Sabrina ligou para Marcus. Ela vai levar Eddie e eu até os guerreiros hoje à noite — Sydney disse. — Bem tarde. Parece que precisamos chegar ao amanhecer. A sra. Terwilliger vai vir mais cedo com Eddie para ajudar com alguns feitiços e nos preparar.

— Acho que não preciso dizer que Eddie vai ter que tomar cuidado ao vir pra cá — Marcus disse. — A essa altura, os alquimistas devem estar de olho em todos os seus conhecidos na região.

— Ele vai tomar cuidado — ela disse, confiante. — Ele sabe como não ser seguido. — Ela se voltou para mim. — Depois, a sra. Terwilliger vai levar você com ela para interrogar Alicia quando as bruxas a descongelarem. Promete pra mim que vai tomar cuidado, Adrian? Pega leve com ela. Use o mínimo de compulsão necessária. Lembre que são grandes as chances de ela sequer saber onde os guerreiros estão mantendo Jill.

Pegar leve com ela? Mesmo sabendo que Sydney tinha dito isso para me proteger, era impossível seguir essa recomendação. Como poderia pegar leve com a mulher que havia sequestrado Jill? Que era o motivo por que Jill podia estar sofrendo nas mãos daqueles malucos? Sonya estava em péssimo estado quando foi resgatada dos guerreiros e eles já estavam com Jill havia muito mais tempo.

Alicia vai pagar, tia Tatiana prometeu na minha cabeça.

Para Sydney, disse:

— Vou ver o que posso fazer.

Meu celular tocou e soltei uma risada irônica ao ver o nome na tela.

— Pouca gente pode dizer que falou com a rainha Moroi duas vezes no mesmo dia. Alô?

— Adrian? — veio a voz de Lissa. — O que você fez?

— Por que você parte do princípio que fiz alguma coisa? — perguntei.

Lissa suspirou.

— Porque um burocrata alquimista acabou de me ligar muito furioso e agitado porque você e Sydney estão à solta em Palm Springs! Deixaram bem claro que vão fazer de tudo para capturar Sydney de volta. Pensei que estavam sendo discretos.

— Nós estávamos, nós estávamos — eu disse. — Foi meio que um acidente. Mas estamos seguros por enquanto.

— Bom, tentem continuar assim. O lado bom é que consegui perguntar sobre a possibilidade de os alquimistas botarem pressão nos guerreiros.

Me enchi de esperança. Assim, Sydney não precisaria se infiltrar entre os guerreiros e eu não teria que interrogar Alicia. Os alquimistas simplesmente resgatariam Jill por nós.

— E aí? — perguntei.

— Aconteceu o que temia: querem mais provas. Quer dizer, a pessoa com quem conversei disse vagamente que faria algumas “investigações”, mas tive a impressão de que não estava me levando a sério. Acho que pensou que eu estava usando isso para desviar a atenção do fato de que você e Sydney estão fora da Corte.

Minhas esperanças desmoronaram enquanto meu olhar pousava em Sydney. Ela procurava espaço para sentar num pufe cheio de coisas do outro lado da sala. A ideia de ela partir para investigar o complexo dos guerreiros me deixava péssimo. Era diferente de quando tinha saído com Eddie e a sra. Terwilliger. Estava indo direto para as garras de um dos nossos inimigos. E se fosse descoberta? E se os guerreiros tentassem reatar a amizade com os alquimistas usando-a como moeda de troca? E se decidissem fazer dela um exemplo por ser uma mulher que casou com um vampiro?

Não tem como isso dar certo, tia Tatiana reiterou.

— Mas vou continuar tentando convencê-los — Lissa disse, sem saber dos meus pensamentos agitados. — Vocês vão tentar conseguir respostas por conta própria?

— Parece que sim — respondi.

— Certo, me avisa se eu puder ajudar em alguma coisa. Conversei com Rose mais cedo e ela contou que você já deixou uma missão pra ela. Use Rose, Dimitri e Neil como achar necessário para ajudar no resgate de Jill.

O tom de Lissa pareceu completamente inocente e percebi que Rose devia ter mantido Declan em segredo até da melhor amiga. Fiquei grato por isso, mesmo que me fizesse lembrar da situação precária do bebê. Ouvir o nome de Neil também me recordou que ainda não havíamos tido a oportunidade de explicar para ele o que estava acontecendo. Mas muitas complicações não paravam de aparecer.

Passamos o resto do dia esperando Jackie e Eddie chegar. Marcus, que havia passado boa parte da vida em fuga, parecia perfeitamente à vontade enfurnado na salinha da cabana. Eu e Sydney, que tínhamos nos acostumado logo com nossa recente liberdade, sofremos um pouco. Fizemos todos os planos que dava para fazer com nossos amigos remotamente e depois tentamos passar o tempo. Apesar da localização afastada, estávamos com medo de sair. A única TV da casa ficava no porão, e a fumaça que subia de lá era suficiente para nos manter afastados. Só nos restou uma pilha de revistas velhas para nos entreter.

— Tem um carro estacionando — Marcus disse no fim da tarde. Ele estava parado perto da janela, espiando por entre as cortinas fechadas de vez em quando. Seu rosto franziu. — Não estou vendo Jackie nem Eddie.

Sydney levantou em um salto e foi até a janela ao lado dele. Depois de um instante, sua tensão passou.

— Tudo bem. Conheço essas pessoas.

Marcus abriu a porta e duas mulheres que reconheci entraram. Uma era Maude, a integrante mais velha do clã de Sydney, que também havia ajudado no lago. A outra era a boa e velha Inez, que me deu uma piscadinha malandra. Maude ficou parada perto da porta, mantendo-a aberta como se esperasse que outra pessoa fosse entrar. Ninguém entrou e, depois de alguns segundos, ela fez sinal para Marcus fechar a porta. Convivia com Sydney havia tempo suficiente para entender que alguém invisível tinha entrado e, quando me toquei disso, o feitiço de invisibilidade se quebrou.

— Eddie! — Sydney exclamou, correndo para dar um abraço nele.

Ele sorriu.

— Vocês estão bem?

— Sim — respondi. — Só estocando carboidratos e esperando a próxima fase dessa loucura começar.

— Tem certeza de que ninguém seguiu vocês? — Marcus perguntou, fechando bem as cortinas da janela da frente.

— Absoluta — Eddie disse. — Nos encontramos num lugar público e os alquimistas que estão me vigiando nem perceberam que saí com essas duas.

Inez estava avaliando a sala com seu olhar crítico e não parecia impressionada.

— Jaclyn nos mandou porque não conseguia se livrar dos amigos de vocês. Estão vigiando a casa dela.

— Os alquimistas não são meus amigos — Sydney retorquiu.

— Bom, eles são um pé no saco, isso sim — Inez disse. — Mas prometemos para ela que ajudaríamos, então aqui estamos nós.

— Obrigada — Sydney disse, adoravelmente educada como sempre. — Imagino como deve ser um incômodo para as senhoras.

Maude abriu um sorriso doce para ela.

— Não é um incômodo tão grande quanto certas pessoas fazem parecer. — Ela depositou duas sacolas na mesa, cheias até a borda de ingredientes misteriosos. — Então, precisamos deixar você mais forte.

— Ah é? — Sydney perguntou, surpresa.

Inez arregaçou as mangas do vestido estampado de rosas e observou dentro de um dos sacos.

— Jaclyn disse que você vai se meter em brigas ou alguma loucura assim.

— Sim, mas pensei que usaria as técnicas de fuga que Wolfe me ensinou.

— Wolfe? — Inez bufou com desprezo. — Aquele hippie que Jaclyn está namorando? Acredite em mim, inteligência e “técnicas de fuga” são ótimas se forem tudo o que você tiver, mas, se tem a chance de ser a mais forte e violenta, sempre seja a mais forte e violenta.

Ela estava errada em vários sentidos, primeiramente ao se referir a Wolfe, que tinha mais armas do que qualquer pessoa que conhecia, como um hippie.

Com cuidado, Inez tirou da sacola um cantil de aparência inofensiva.

— O que é isso? — perguntei.

— Uma poção muito complexa e especial — Maude respondeu. — Várias de nós trabalhamos nela quase o dia todo.

Enquanto ela falava, percebi as olheiras em seu rosto e o cansaço em sua voz. Sydney também notou.

— Não precisavam fazer isso... — ela disse.

— Precisávamos — Maude disse, simplesmente. — Limpar a bagunça da Alicia é nossa responsabilidade e, se isso envolver preparar você para atos violentos, vamos ajudar com isso.

— O que tem aí? — perguntei. O poder e o alcance da magia humana ainda me fascinavam. E me concentrar nisso me distraía de pensar em Sydney e nos “atos violentos”.

— É melhor não saber — Maude me respondeu. — Então, agora precisamos terminar o feitiço...

Ouvimos o som de uma porta abrindo. Segundos depois, a cortina de miçangas que separava a sala da cozinha estremeceu e Howie entrou. Pareceu surpreso ao ver mais gente ali e pestanejou, como se quisesse se certificar de que todos eram reais. Imaginei que devia ter que fazer isso o tempo todo. E, considerando minhas interações cada vez mais constantes com tia Tatiana, entendia a sensação.

— Marcus, cara — ele disse, ajeitando os óculos. — Não sabia que você tinha chamado mais gente. A gente está procurando o Doritos. Você viu o Doritos?

Marcus apontou para uma mesa de canto ao lado do sofá. Howie abriu um sorriso ao pegar o pacote de Doritos, mas ficou desapontado quando viu que estava quase vazio.

— Você comeu esse Doritos aqui em cima na hora do almoço — Marcus o lembrou.

Howie pareceu não acreditar.

— Comi?

— Sim — confirmei. — Você disse que estava assistindo um filme de tubarão mutante na TV.

— Trey também estava assistindo esse filme hoje — Eddie comentou, num tom casual demais, o que me fez pensar que Trey não era o único que estava assistindo.

— Era no mesmo estilo de A vingança do Raptorbot? — Sydney perguntou, irônica.

Howie ergueu a mão para falar.

— Essas coisas não são inventadas, sabia? A vida real é mais estranha que a ficção, cara. O governo está escondendo isso de nós.

— Total — Marcus disse, levando Howie de volta para trás da cortina de miçangas. — Por que você não leva alguns biscoitos para o porão? Acho que vi uns de manteiga de amendoim na cozinha.

Marcus explicou um pouco a situação para nosso anfitrião e o mandou para outro cômodo. Nenhum de nós falou nada até ouvirmos a porta do porão fechar. Eddie comentou:

— A vida real é muito mais estranha que a ficção.

— Nem me fala — Sydney disse, voltando a encarar o cantil. — O que preciso fazer?

— Beber — Inez disse. — A gente misturou um pouco de Tang para melhorar um pouco o gosto. Veja bem, um pouco.

— Mas primeiro vamos terminar o feitiço — Maude disse. Ela e Inez deram as mãos em volta da mesa onde estava o cantil. Tinha ouvido Sydney recitar feitiços suficientes para reconhecer o som do latim. Também tinha aprendido o bastante para saber que a maioria dos feitiços que ela usava era simples, com resultados imediatos. O tipo que aquelas bruxas estavam fazendo agora — feitiços com múltiplas partes que exigiam várias usuárias de magia — era potente, o que a expressão impressionada de Sydney confirmou. Quando elas terminaram de falar, Maude entregou o cantil para Sydney com um movimento dramático. — Beba tudo.

Sydney abriu a tampa e fez uma careta ao encarar o conteúdo. Estava ao lado dela e também fiquei com nojo. O líquido tinha cheiro de corda molhada... e Tang.

— Quanto mais rápido você beber, melhor — Inez acrescentou. — Tampar o nariz pode ser uma boa também.

Sydney fez as duas coisas, mas nada a impediu de sentir ânsia de vômito.

— É melhor não vomitar — Inez avisou. — Porque é tudo que temos.

Sydney fez careta e balançou a cabeça enquanto devolvia o cantil.

— Não vou vomitar. E agora? Estou mesmo mais forte? A única coisa que sinto é vontade de escovar os dentes. — De fato, não haviam aparecido músculos e ela não começou a levantar peso compulsivamente.

— Quão mais forte? — Eddie perguntou, ansioso. — Tipo, capaz de levantar um carro?

Maude sorriu.

— Desculpa desapontar, mas não. Isso chamaria muita atenção, e imagino que não seja o que vocês querem. Nosso poder tem limites também. Não podemos sair por aí criando deuses. Diria que... — Ela olhou de Eddie para Sydney, especulando enquanto seu sorriso crescia. — Diria que você está com força suficiente para enfrentar um dampiro numa queda de braço.

— Adoraria ver isso — admiti. A expressão de Eddie mostrava que ele também.

Sydney resmungou.

— Sério? Que coisa mais primitiva!

Eddie se debruçou sobre a mesa e apoiou o cotovelo onde antes estava o cantil.

— Vamos lá, sra. Ivashkov. Vamos testar isso. Além do mais, se você tiver problemas com uma queda de braço, como vai lidar com os guerreiros cara a cara?

Ele tinha razão, pelo menos com base nas histórias que Sabrina havia nos contado. Sydney sentou à mesa na frente dele e imitou a posição do braço. Seus dedos se entrelaçaram e Marcus fez a contagem regressiva, parecendo quase tão animado quanto Eddie. Para a minha surpresa, quando eles começaram, Eddie não virou o braço dela imediatamente. Seus olhos se arregalaram e seu sorriso se abriu ainda mais. Ele aumentou o esforço e começou a fazer algum progresso. Rangendo os dentes, Sydney forçou de volta e ficou na frente da disputa.

— É estranho — ela disse. — Sinto a força dentro de mim... como se fosse minha, mas não parte de mim. Como uma roupa que estou vestindo. — No fim, Eddie se esforçou ao limite e a derrotou, mas só depois de um bom tempo. Ergui o braço dela como o de uma vencedora numa luta de boxe, triunfante.

— Minha esposa, senhoras e senhores. Linda, inteligente e, agora, forte.

— Incrível — Eddie disse, num raro momento de diversão. — Quanto tempo vai durar?

— Quatro dias — Maude disse, como se pedisse desculpas. — Como falei, não podemos criar deuses.

— Quatro dias — Sydney repetiu. — Sabrina vai nos levar hoje à noite. Então vamos ter três dias e meio para descobrir o que os guerreiros estão escondendo sobre Jill.

— Ou só bate em todo mundo no primeiro dia pra deixarem você em paz depois — Marcus sugeriu, prestativo.

Encarando a segunda sacola que as bruxas haviam trazido, perguntei:

— O que mais tem aí além de superforça?

Maude começou a tirar itens da sacola.

— Jackie falou que precisamos fazer algumas mudanças na aparência dela também.

— Já fiz feitiços assim antes — Sydney disse para elas. — Não precisam fazer mais nada.

— Fica quieta, menina — Inez retrucou. — Você precisa poupar sua magia para a loucura em que vai se envolver. Além disso, manter um feitiço desses ativo não é tarefa fácil. Você já fez isso por uma semana? — Ela deu uma olhada de soslaio para Eddie. — Para duas pessoas?

— Não, senhora — Sydney admitiu.

Maude tirou duas caixas de tinta de cabelo no tom “castanho lustroso”.

— Uma pra cada — ela disse. — Vocês podem tingir depois que a gente for embora. Quanto mais pudermos disfarçar sem magia, melhor.

Eddie pegou uma das caixas e ergueu a sobrancelha, mas não fez nenhuma reclamação. Alguns caras teriam um ataque por ter que pintar o cabelo, mas Eddie não. Pensei que, quando você derrotava criaturas do mal cotidianamente, um pequeno tratamento de beleza não ameaçava nem um pouco sua masculinidade.

O resto que ela tirou da sacola eram ingredientes normais de feitiço: ervas, cristais e pós. Maude e Inez começaram a montar um círculo sobre a mesa e percebi que seria outro ato complicado de magia que exigia múltiplas partes e pessoas. Sydney também notou.

— É tanta coisa... — ela murmurou para mim. — Estão ajudando muito.

— Aceite — respondi, apertando sua mão. — Você vale a pena. Jill vale a pena.

Quando os materiais estavam prontos, Inez posicionou dois anéis de prata no meio de tudo. Ela encarou Maude.

— Você está pronta?

Maude assentiu e caminhou até Sydney, segurando uma varinha. Relutante, dei um passo para o lado e perguntei:

— Por que você nunca usa uma varinha?

Sydney sorriu.

— Apesar dos clichês, as bruxas raramente usam varinhas. Elas só são necessárias para trabalhos complicados ou se parte da varinha tiver um elemento que pode concentrar ou ampliar a magia. — Ela observou os cristais na varinha de Maude. — Chutaria concentração neste caso.

— Exato — Maude respondeu. — Agora fica parada e fecha os olhos. — Ela recitou um verso em grego e um brilho tênue iluminou a varinha. Um momento depois, ela tocou a ponta do nariz de Sydney. Devagar e com cuidado, Maude foi mudando a varinha de lugar, passando pelos cílios de Sydney, depois pelas bochechas e pelo queixo. Em cada lugar que a varinha tocava, era como se Maude estivesse pincelando uma pintura, mudando cada traço de Sydney. Suas bochechas ficaram um pouco mais cheias, e seu rosto mais estreito. Eram mudanças sutis, mas, quando somadas, a transformavam por completo. Mesmo com a cor natural do cabelo, duvidava que alguém a reconheceria. Em pouco tempo, até mesmo a tatuagem de Sydney desapareceu. A maior surpresa de todas foi quando Maude deu um passo para trás e mandou Sydney abrir os olhos. Seus olhos, antes castanhos, estavam de um azul tão vívido quanto os de Marcus.

Não consegui conter uma exclamação e Sydney virou para mim com um sorriso inocente.

— Ainda me reconhece?

— Te reconheceria em qualquer lugar — respondi, galanteador.

— Eu não — Eddie disse.

Imediatamente, Maude voltou sua atenção para ele.

— Sua vez. Feche os olhos.

Ele fechou e ela repetiu o feitiço. Fiquei observando admirado enquanto seu rosto mudava de aparência no lugar em que a varinha encostava. Quando ela terminou, ele não era mais o Eddie que conhecia, mas definitivamente parecia parente da nova Sydney.

— Posso ver? — Eddie perguntou, ansioso.

— Espera — Inez disse, tirando a varinha de Maude. — Precisamos agir rápido para salvar o feitiço. — Ela brandiu a varinha sobre os anéis e voltou a entoar em grego. Faíscas saíram da varinha. Quando Inez terminou, entregou um anel para Eddie e o outro para Sydney. Eles os colocaram e Sydney perdeu o fôlego.

— Que estranho... — ela murmurou. — Sinto como se alguma coisa tivesse fechado.

— Esses anéis garantem os feitiços de vocês agora — Maude disse. — Se tirarem, vão retornar à aparência original. Caso contrário, os feitiços vão durar por mais ou menos uma semana.

— Esse é o seu verdadeiro prazo — Inez acrescentou. — Você pode disfarçar quando sua força for embora. Mas, quando seu rosto voltar ao normal, estão fritos. Aí realmente vai precisar da inteligência para se explicar.

Ela falou com o mesmo tom sarcástico e excêntrico de sempre, mas, mesmo assim, deu pra notar que estava exausta. Uma rápida conferida na sua aura comprovou isso. A magia que tinham realizado ali era substancial, sem contar o que já havia sido iniciado antes, com a ajuda das outras bruxas. Sydney se voltou para Maude e Inez.

— Não sei como agradecer pelo que fizeram. De verdade. Significa muito para mim e...

— Sem sentimentalismos — Inez interrompeu. — Sabemos que você está agradecida. E tem que estar mesmo. Mas agora precisa provar isso arrumando a bagunça da Alicia. Vai lá salvar sua amiga.

Sydney se endireitou.

— Sim, senhora.

As bruxas deram as instruções finais, tanto para Sydney quanto para mim, já que as encontraria mais tarde para interrogar Alicia. Depois foram embora. Eddie e Sydney seguiram direto para o espelho e se assustaram com a mudança de aparência. Eles já tinham sido confundidos como irmãos, mas depois dos feitiços pareciam ligados de um jeito diferente. Tinham os mesmos olhos azuis, e Maude tinha feito um ótimo trabalho tornando seus traços os mais comuns possíveis. Se tudo desse certo, isso garantiria que ninguém olhasse para eles duas vezes.

Sabrina chegou assim que terminei de ajudar os dois a pintar o cabelo na cor “castanho lustroso”, um tom castanho-escuro com um leve toque avermelhado. A personalidade normalmente presunçosa dela vacilou um pouco ao encarar os dois. Ela tinha se acostumado a várias estranhezas, mas magia humana não era algo com que tivesse muita experiência.

— Incrível — ela murmurou, olhando do rosto de um para o do outro. — Nunca acharia que são vocês. Podem passar bem debaixo do nariz dos alquimistas agora.

Marcus, que observava tudo com um sorriso no rosto, cruzou os braços e se recostou no sofá superestofado.

— Talvez suas amigas possam fazer esse feitiço em mim de vez em quando. Sair irreconhecível seria muito útil.

— Vou falar com elas — Sydney disse. Para Sabrina, ela mostrou a mão com o anel prateado. — Tem alguma regra sobre joias? Vão deixar a gente entrar usando isso?

— Provavelmente — ela respondeu. — Vão revistar em busca de armas ou alguma coisa que considerem suspeita. Celulares também. Não querem que exista um jeito de vocês serem rastreados. Vocês precisam estar vendados quando forem.

— Deve ser como quando fui para a arena — Sydney comentou. Ela tirou as alianças de noivado e de casamento e se aproximou de mim. — Não quero que nada aconteça com elas enquanto estiver lá.

Segurei as duas mãos dela nas minhas.

— Não é com as alianças que estou preocupado.

Um leve sorriso perpassou seus lábios e, mesmo com um rosto diferente, aquele sorriso ninguém além dela teria.

— Vou ficar bem... mas quero que você cuide delas pra mim até eu voltar.

— Fechado — eu disse baixinho, para só ela poder ouvir —, mas sou eu que vou colocar as duas de volta no seu dedo.

— Está bem — ela disse.

— De joelhos — acrescentei.

— Está bem.

— E nós dois vamos estar pelad...

— Adrian — ela avisou.

— Depois a gente discute os detalhes — eu disse, com uma piscadinha. Mas senti uma pontada no peito quando soltei as mãos dela e fiquei segurando apenas as alianças, odiando o risco que ela estava prestes a enfrentar. Ela podia estar diferente, mas sua aura brilhava para mim como a de mais ninguém: cheia de coragem, apesar dos perigos. Queria tanto ir com ela... mas sabia que não poderia fazer nada lá. Minha ajuda seria mais útil com Alicia, quando as bruxas a descongelassem.

— A gente devia comer alguma coisa antes de pegar a estrada — Sabrina disse.

— Espero que goste de bolacha recheada e salgadinho de queijo — Eddie falou para ela.

Fizemos uma refeição cheia de porcarias enquanto Sabrina explicava mais algumas coisas para nós.

— Vamos para Calexico, perto da fronteira — ela disse. — Mas vocês teoricamente não sabem disso. Precisamos manter as aparências. Depois que entrarmos, acho que vão nos separar, mas vou estar por perto. Além disso, posso ficar com o celular, assim dá pra mandar mensagens pro Marcus.

— E depois você me atualiza, certo? — perguntei a ele.

Marcus abriu um sorriso tenso.

— Certo. Não se preocupe. Sabrina vai cuidar deles.

Não era garantido, já que todos sabíamos que as coisas poderiam ir muito, mas muito mal no terreno dos guerreiros. E era provável que Sabrina não fosse capaz de fazer muito para ajudar. Como sempre, Sydney estava mais preocupada comigo quando saíram.

— Toma cuidado, Adrian. Também quero encontrar Jill, mas não quero perder você.

— Vou usar pouca compulsão — prometi. — É você que está entrando num ninho de cobras.

— É o que a gente faz — ela disse, simplesmente. — Você tem a sua função, eu tenho a minha. — Ela ficou na ponta dos pés e me deu um beijo leve na bochecha. É óbvio que não me contentaria com isso. Com um movimento rápido, a envolvi nos meus braços e dei um longo e intenso beijo de despedida, sem me importar com as testemunhas. Quando ela finalmente se afastou, seu rosto estava muito corado, mas continuou abraçada comigo.

— Não posso dizer que não esperava por essa — ela admitiu.

— É isso então — falei para ela. — Estamos perto de resgatar Jill. Depois vamos garantir nossa liberdade e finalmente ter aquele “felizes para sempre”.

Como exatamente vocês vão conseguir isso?, tia Tatiana perguntou. Voltando a morar na Corte? Ficando com aquelas Conservadoras em Michigan?

Tive a sensação de que Sydney estava prestes a fazer as mesmas perguntas, mas não falou nada. Em vez disso, sua expressão demonstrou apenas amor e esperança ao me dar outro beijo de despedida. Logo em seguida, Sabrina apressou os dois até o carro para começar a aventura bizarra. Fiquei com Marcus à porta, com o olhar perdido mesmo depois que partiram.

— Tomara que esse plano dê certo — eu disse, com o coração apertado.

Marcus suspirou e, pela primeira vez, sua expressão normalmente otimista pareceu cansada. Devia ser difícil ficar o tempo todo convencendo as pessoas de que todas as ideias arriscadas valeriam a pena.

— Não é uma questão de dar certo ou errado — ele admitiu. — É o único plano que temos.


15

Sydney

Calexico ficava a duas horas de distância, então a jornada foi longa e estranha. Quando estávamos no meio do caminho, Sabrina parou para nos vendar, seguindo o protocolo dos guerreiros. Durante o resto da viagem, repetiu informações que já tínhamos decorado e que nunca seriam suficientes para nos preparar para esse plano maluco. Consegui me manter calma, focando apenas em Jill e no meu objetivo ali, deixando de lado qualquer emoção. Tentei especialmente não me preocupar demais com Adrian. Senão, eu daria para trás. Em vez disso, ouvi os conselhos e as informações de Sabrina, fixando na memória junto com os objetivos daquela missão. Me sentia estranhamente fria e sem envolvimento emocional.

Então chegamos ao terreno dos guerreiros.

Sabrina avisou que estava perto e o carro diminuiu a velocidade ao se aproximar do portão. Ouvi a janela abrir.

— Sabrina Woods — ela disse —, com dois recrutas em potencial.

— Dois, hein? — respondeu uma voz grave, parecendo achar graça.

Sabrina manteve a calma.

— Não trouxe nenhum ano passado. Estou tentando compensar.

— Leva para a área de espera — foi a resposta.

A janela fechou e Sabrina acelerou devagar. Um suspiro aliviado foi o único sinal de que ela estava mais nervosa com o plano do que demonstrava. Ouvi os pneus rolando sobre cascalho e, um minuto depois, o carro parou. Ela o desligou e abriu a porta.

— Podem sair — disse.

Nos guiou na direção do som de pessoas conversando. Ali, finalmente, nossas vendas foram removidas. A paisagem do deserto era árida e desolada, e incluía um conjunto de prédios caindo aos pedaços. Lembrava mais ou menos o terreno de Wolfe, só que muito mais destruído. Dois caras enormes com armas na cintura conversavam amigavelmente na entrada de um prédio grande, mas suas expressões endureceram ao perceberem nossa chegada. Sabrina repetiu o que havia dito no portão, acrescentando:

— São irmãos.

Um dos homens pareceu gostar disso.

— Essa é uma organização familiar, afinal.

Não era exatamente o que me vinha à mente quando pensava nos guerreiros, mas abri um sorriso que esperava que parecesse tranquilo e corajoso. Os guardas nos revistaram em busca de armas ou equipamentos de rastreamento. A revista foi rápida e fria. Eu e Eddie tínhamos tomado o cuidado de deixar os celulares com Howie e, depois de não encontrar nada suspeito, um dos guardas fez sinal para atravessarmos a porta atrás deles. Sabrina fez menção de vir conosco, mas um dos guardas não deixou.

— Eles entram sozinhos — ele disse. — Você vai pela porta do público do outro lado.

Sabrina tinha nos avisado que em algum momento nos separaríamos, então tentei não deixar o pânico transparecer enquanto ela se despedia sem cerimônia e nos desejava boa sorte. Eddie e eu cruzamos a entrada, que nos levou para uma arena aberta com chão de terra, não muito diferente daquela onde estivera quando os guerreiros pegaram Sonya. A arena parecia ter sido feita originalmente para jogos de beisebol ou futebol, mas os jogos daquele dia não seriam esses.

Dezenas de outras pessoas estavam lá. Algumas em grupos, outras visivelmente sozinhas, encarando todos como potenciais inimigos. Umas pareciam pessoas normais que você encontraria no shopping. Outras pareciam ter “sim, quero entrar para um grupo vampirofóbico fanático” estampado na testa. Todas tinham mais ou menos a nossa idade. Havia mais homens do que mulheres. Nas arquibancadas, outras pessoas entravam e assumiam seus lugares. Avistei Sabrina e acenei rápido com a cabeça antes de voltar a atenção para Eddie.

— Ela disse que começa ao nascer do sol — falei para ele. A leste, o céu tinha um tom laranja queimado envolto por uma luz púrpura. — Tecnicamente já estamos lá.

— Não faço a menor ideia de como vai ser — ele disse, com os olhos aguçados de dampiro analisando rapidamente os arredores enquanto falava. Mesmo em situações convencionais, sua tendência natural era ficar à procura de ameaças. Em momentos arriscados como aquele, ficava constantemente alerta.

— Tomara que a gente consiga...

Minhas palavras foram interrompidas pelo som de um trompete. Todos viramos na direção dele e vimos três homens de manto amarelo e elmo dourado. Fiquei tensa, recebendo um rápido olhar de preocupação de Eddie.

— O que foi? — ele murmurou. — Quer dizer, além do óbvio...

— Conheço dois deles. Mestre Angeletti e mestre Ortega. Estavam na última assembleia.

— Eles não têm como reconhecer você.

Concordei, mas ver aqueles rostos conhecidos me deixou nervosa. Achei que a qualquer momento um deles apontaria na minha direção e me declararia como inimiga, mandando todos os aspirantes a recruta na minha direção.

Mas os dois mestres não prestaram atenção em mim. Quando o terceiro homem parou de tocar seu trompete, mestre Angeletti falou, com a mesma voz grave e a mesma barba grisalha e desgrenhada de antes:

— Estão vendo aquilo? — ele perguntou, apontando para o sol nascente. — Aquele é o motivo por que estamos aqui, o que nos dá vida. O sol. A luz. Nascemos para a luz, para o bem. Isso me lembra de um dos meus salmos favoritos: “Os humanos nasceram na luz/ Com o bem que o brilho conduz/ Só o mal na noite se reproduz/ Vamos bani-los com o poder da cruz”.

Quase não consegui conter o riso ouvindo um poema que eu mesma poderia ter escrito com dez anos de idade. Mas o rosto do mestre Angeletti estava cheio de êxtase enquanto falava, e os outros guerreiros aprovavam balançando a cabeça, como se estivessem ouvindo um soneto de Shakespeare.

— Esse é o jeito natural das coisas — mestre Angeletti falou. — Aqueles que vivem na escuridão não fazem parte do plano divino. São forças perversas e abomináveis, e é função do nosso exército eliminá-las e salvar a humanidade.

Ao lado dele, mestre Ortega assumiu a fala:

— Todos vocês estão aqui porque demonstraram interesse em erradicar essa escuridão e porque seus padrinhos os consideraram dignos de se unir a nós. Mas não se enganem: somos nós que vamos decidir quem realmente merece servir conosco. Não será fácil. Vocês serão testados e avaliados de perto; até a alma de vocês será examinada. Se algum de vocês estiver com medo ou achar que não terá forças para enfrentar o que está por vir, convido-os a sair agora.

O silêncio tomou conta enquanto observávamos ao redor com expectativa. Alguns dos outros recrutas se remexeram, mas ninguém fez menção de sair.

— Muito bem então — mestre Ortega disse com a voz estrondosa. — Que comecem as provas!

Se algum dia me perguntara qual a diferença fundamental entre alquimistas e guerreiros, tive a minha resposta naquele momento. Apesar dos defeitos, os alquimistas quase sempre procuravam primeiro pensar e depois agir. Já os guerreiros, nem tanto.

Terminadas as formalidades de abertura, mestre Ortega passou o comando para o diretor de recrutamento, que, para minha surpresa, era Chris Juarez, o primo de Trey. Não o via desde que os guerreiros haviam capturado Sonya, e Trey não parou de falar sobre a família depois de ser deserdado. Trey os humilhara ao namorar uma dampira. Aparentemente, Chris se manteve na linha, fazendo por merecer essa posição de respeito. Ele caminhou na nossa frente, vestindo uma calça jeans e uma camiseta justa que evidenciava seu físico bem desenvolvido.

— Vocês não estariam aqui se não estivessem interessados em livrar o mundo do mal — ele disse. — E vamos determinar o grau desse interesse. Mas, antes disso, precisamos ver se vocês são capazes de se defender na hora de enfrentar o mal. Vocês têm medo de sentir dor? Têm medo de se sujar? Têm medo de fazer o que for necessário para manter a humanidade na luz? — Sua voz ficava mais alta a cada pergunta, agitando espectadores e recrutas em um frenesi. Algumas pessoas perto de mim e de Eddie gritavam em resposta. Um cara soltou um grito de guerra primitivo que ganhou vivas das pessoas na arquibancada. Tentei demonstrar ansiedade e interesse para esconder o medo e a repulsa que sentia.

Enquanto Chris falava, outros guerreiros espalhavam pela arena uma estranha variedade de objetos: caixas de madeira, latas de metal, baldes, blocos de concreto. Fiquei pensando se haveria algum tipo de corrida de obstáculos em seguida. Quando terminaram, vieram na direção dos recrutas e deram a cada um de nós um coração de madeira num cordão. Meu nome falso, Fiona Gray, estava escrito nele. Eddie, ou Fred Gray, também recebeu um.

— Isso representa o seu coração, a sua vida — Chris disse. — Agora precisamos saber quem quer isso de verdade, quem está disposto a fazer o que for preciso para vencer. Mulheres, por favor, se afastem e sentem lá. — Ele apontou para uma área das arquibancadas. — Rapazes, posicionem-se onde quiserem.

Encarei Eddie antes de nos separarmos.

— Boa sorte — eu disse.

— Não preciso de sorte com essa galera — ele respondeu.

Sorri e fui sentar ao lado de uma menina que estava com a cara fechada e era uns dez centímetros mais alta que eu, quase tão musculosa quanto Chris. Uns trinta recrutas homens se espalharam pela arena, assumindo posições que consideravam estratégicas. Alguns ficaram perto das caixas, outros procuraram objetos que poderiam ser usados como armas, como os blocos de concreto. Eddie escolheu sua posição de acordo com a dos outros combatentes: um lugar que lhe proporcionava espaço para movimentação e uma boa vantagem.

— Durante a próxima hora — Chris anunciou —, o objetivo de vocês é coletar o maior número possível de corações dos outros oponentes, usando todos os meios necessários. Vale tudo nesta arena, qualquer tática. Só pedimos que tentem não matar ninguém. Os seis competidores com mais corações no final vão para a próxima etapa. Se em algum momento se sentirem incapazes de continuar, simplesmente retirem-se para aquele banco — ele apontou para outra área das arquibancadas, onde estava um homem de chapéu vermelho — e abaixem as duas mãos. Isso vai liberar vocês do desafio e Bart lhes oferecerá os primeiros socorros necessários.

Bart, com camiseta lisa e jeans rasgado, não me parecia o tipo de pessoa com treinamento médico oficial, mas não podia me deixar levar pelas aparências.

Senti um frio na barriga quando Chris perguntou se havia alguma dúvida e observou ao redor para ver se estava tudo pronto. Sabrina tinha nos avisado que haveria algum tipo de competição física, mas não dera detalhes. Era diferente a cada ano para que nenhum padrinho pudesse avisar seus recrutas com antecedência. Pelo jeito os guerreiros queriam ser justos, o que parecia irônico, considerando como tinham deixado Sonya exausta e drogada antes de levá-la para uma tentativa de execução.

Chris ergueu a mão para marcar o início e um silêncio tenso preencheu o ar. Eddie se inclinou para a frente, ainda em seu lugar, com um olhar afiado e o corpo pronto.

— Comecem! — Chris gritou, abaixando a mão.

Então veio o caos.

Os rapazes se jogaram uns em cima dos outros feito membros de uma matilha lutando por um pedaço de carne. Alguns partiram para o combate corpo a corpo, tentando derrubar os oponentes no chão e roubar seus corações. Outros assumiram uma tática mais brutal, lançando blocos de concreto e usando outros entulhos como arma. Minha atenção se focou quase totalmente em Eddie, que seguiu uma tática mais comedida e esperou que viessem atrás dele. Sua força não era perceptível à primeira vista e muitos pensaram que seria presa fácil. Essas suposições logo se provaram falsas quando ele derrubou um competidor após o outro, nocauteando-os com socos e chutes precisos, e pegando seus corações na sequência. Perder o coração não significava que a pessoa estava fora da competição. Se ela conseguisse recuperá-lo, ou simplesmente tivesse coletado muitos ao fim de uma hora, tudo bem. Alguns daqueles de quem Eddie tirou corações tentaram recuperá-los. Outros partiram para adversários que pareciam mais fáceis.

Meu coração de verdade batia acelerado enquanto observava Eddie. Ele precisava continuar na competição. Nós dois precisávamos. Até agora, não parecia haver motivo para me preocupar. Ele era claramente mais rápido e mais forte do que a maioria dos homens ali, além de ter mais experiência. Outros, embora fortes, não tinham a habilidade necessária e simplesmente usavam a força bruta, o que, em alguns casos, se revelava eficaz. Vi um cara bater com uma tábua no joelho de outro, fazendo com que a vítima caísse e berrasse de dor. Seu agressor roubou o coração, ignorando os pedidos do oponente por ajuda para chegar até Bart e receber os primeiros socorros. Eddie, que por acaso estava passando por ali no momento, parou para ajudar o menino caído a chegar ao banco.

Outro cara (aquele que tinha soltado o grito primitivo no início) também estava se dando muito bem na competição. Seus músculos, que chegavam a ser grotescos de tão desenvolvidos, me deixaram em dúvida se ele tomava esteroides ou simplesmente vivia na academia. Pelo jeito, tinha alguns fãs na plateia, que gritavam seu nome toda vez que ele roubava um coração.

— Caleb! Caleb! Vai, Caleb!

Caleb abriu um sorriso malicioso para os fãs enquanto atravessava a arena à procura da próxima vítima. Embora sua força fosse enorme sem nenhuma ajuda, ele às vezes usava um bloco de cimento como arma. Não fui a única a perder o fôlego quando ele bateu com o bloco na cabeça de um cara, derrubando-o no mesmo instante. Caleb roubou os três corações que sua vítima carregava e seguiu seu caminho. Bart arrastou pessoalmente o caído de volta à segurança da arquibancada. Só voltei a respirar quando vi o pobre rapaz mover um braço com dificuldade.

Dois outros homens tinham chegado ao recrutamento juntos, assim como Eddie e eu, e estavam se unindo para derrubar os oponentes e dividir os corações entre si. Era uma estratégia inteligente, e desejei que eu e Eddie pudéssemos usá-la. Os guerreiros tinham algumas ideias ultrapassadas em relação a gênero, e Sabrina havia explicado que as garotas dentro da organização costumavam ser mantidas longe da linha de perigo e relegadas a funções mais tranquilas. Não sabia se deveria ficar feliz pelos guerreiros demonstrarem um pouco de consideração ou ofendida porque consideravam as mulheres incapazes daquela brutalidade sanguinária.

Com o passar da hora, cerca de metade dos competidores estava fora da briga, recebendo o cuidado médico que Bart administrava, fosse qual fosse. Alguns se destacaram claramente, como Eddie, Caleb e a dupla. O restante ficou tentando derrubar uns aos outros ou ir atrás da liderança. Chris avisou que faltavam cinco minutos e um dos rapazes, percebendo desesperado que estava quase fora da competição, lançou-se num ataque febril contra Caleb, na esperança de roubar seu enorme estoque de corações. Caleb o jogou no chão como se não passasse de um inseto, depois continuou chutando o rapaz caído, apesar das súplicas para parar.

— Pode levar! Pode levar! — O rapaz no chão tentava desesperadamente tirar os corações do pescoço e entregá-los a Caleb, que não parava de chutá-lo. Senti náuseas até Caleb finalmente deixar o menino em paz. Ele observou ao redor, pousando o olhar em Eddie, mas felizmente Chris avisou que o tempo tinha acabado. Todos se reuniram à frente, ansiosos para saber os resultados.

Como era de esperar, Caleb e Eddie eram os que tinham mais, seguidos por três outros rapazes em quem eu não havia prestado muita atenção. Os dois que trabalharam junto estavam empatados em sexto lugar. Fiquei curiosa para saber se os guerreiros aceitariam sete vencedores, mas, depois de deliberar com os mestres, Chris escolheu apenas um da dupla. Ele parabenizou o outro, incentivando-o a tentar outra vez no ano seguinte. Eu não tinha notado nada de diferente no comportamento dos dois no combate. Porém Wayne, o escolhido, era maior e mais musculoso. Algo me dizia que os guerreiros se importavam muito com a aparência física, provavelmente acreditando que aquele que parecia mais forte seria mais forte.

Esse não era um bom sinal para mim, uma vez que, quando todas as treze meninas foram chamadas, ficou claro que eu era a menor e menos musculosa de todas. As coisas pioraram quando Chris anunciou que apenas duas continuariam na disputa e que também seriam escolhidas pela quantidade de corações que tivessem ao final de uma hora. Ao ouvir isso, eu e Eddie nos entreolhamos. Duas meninas? Não havia uma boa margem de segurança, ainda mais por ser imprescindível que eu, mais do que Eddie, fosse aceita para poder pesquisar as informações sobre o paradeiro de Jill. Ele abriu um sorriso tenso e deu um aceno encorajador com a cabeça, como se dissesse “bom, então dê um jeito de ficar com mais corações”.

Claro. Sem problema.

Ver os homens competindo antes nos dera uma noção de qual poderia ser a melhor estratégia. Nos posicionamos na arena e muitas meninas correram em direção a possíveis armas. Vi algumas me encarando, por ser a menor, e me preparei para me defender. Por um lado achei bom, porque havia aprendido defesa pessoal com Wolfe. Mas a resistência não me faria ganhar nenhum coração. Não era violenta por natureza. Atacar era natural para Eddie, e ele não tinha dificuldades para assumir esse papel.

Chris deu a largada e mais uma vez o caos se instaurou. Duas meninas vieram na minha direção na mesma hora. O sangue latejou nos meus ouvidos e, aos poucos, me enchi de uma concentração fria ao lembrar de todas as lições de Wolfe. Me mantive fora do alcance delas, desviando de seus ataques brutais e muitas vezes desajeitados. Pareceram frustradas quando provei que não era uma vítima fácil e, depois de um tempo, ficaram cara a cara uma com a outra. Com um rosnado, se atracaram, ambas caindo na terra num emaranhado de golpes e puxadas de cabelo. Uma saiu vitoriosa, levando o coração da outra, e avançou na minha direção. Finalmente, me permiti entrar na briga e a surpreendi com um soco que a fez cambalear graças à força mágica que corria pelo meu corpo. Tive a mesma sensação estranha de que a força ao mesmo tempo era e não era parte de mim, mas logo entrei no ritmo dela. Depois de mais alguns ataques fracassados, a menina se rendeu e me entregou os corações.

Observei ao redor, sem saber direito o que fazer em seguida. Sabia que precisava agir e atacar alguém, mas essa ainda era uma atitude estranha para mim. Você está representando um papel, Sydney, falei a mim mesma. Se concentre nele. Não se sinta mal. Lembre-se de quem são essas pessoas, do que estão fazendo com Jill.

Não precisei escolher minha próxima vítima porque outra menina veio atrás de mim, achando que minha vitória inicial era sorte de principiante. Houve um processo parecido, com mais uma longa série de golpes de defesa pessoal. A melhor luta é aquela que você evita, Wolfe sempre dizia. Obriguei minha adversária me perseguir em vão e, quando finalmente ficou impaciente e me atacou, consegui fazer com que ela tropeçasse e caísse no chão. Nisso, seu tornozelo torceu e consegui pegar seu coração sem muita resistência. Ficou claro que ela estava fora do jogo e, embora me sentisse um pouco culpada por isso, estava aliviada por não ter causado um ferimento grave. Com base nos gritos das mulheres ao meu redor, outras não tiveram a mesma sorte.

Isso me deixou com três corações além do meu, e fiquei bastante orgulhosa. Um olhar rápido para Eddie, que estava sentado com os outros vencedores homens, me mostrou que não deveria ficar tão convencida. Ele fez um gesto frenético, como se dissesse “acelera o ritmo!”. Minha tática defensiva estava me mantendo protegida, mas não era efetiva para acumular corações. Uma olhada na arena deixou claro que outras tinham mais corações do que eu. Mas, antes que pudesse escolher minha próxima tática, a decisão foi tomada por mim.

A menina grande e musculosa que antes estava sentada ao meu lado veio na minha direção com força total. Colidimos e caímos. Seu punho se fechou em volta dos cordões no meu pescoço e ela os puxou, quase me enforcando no processo. Aquela força mágica cresceu dentro de mim, e a joguei para longe com um empurrão forte, levantando com dificuldade. Ela também levantou e me observou com curiosidade, claramente surpresa com a força oculta por trás do meu corpo pequeno. Chris gritou o aviso de cinco minutos. Me preparei para o ataque da garota, mas, dando de ombros, ela virou as costas e correu na direção de outra competidora. Levei apenas um segundo para entender o motivo. Ela obviamente tinha mais corações. Com o tempo se esgotando, não arriscaria perder todos para alguém cuja força a havia surpreendido. Preferiu não correr esse risco e deixar que o tempo passasse. Outras meninas estavam competindo pelo segundo lugar e ficaram cada vez mais desesperadas em seus ataques.

Eu? Eu estava exatamente em terceiro lugar. O problema era que não havia espaço para a terceira colocada.

Encarei Eddie novamente e, em seus olhos, vi uma grande preocupação. Então meu olhar pousou na pessoa ao lado dele: Caleb, com sua postura segura e arrogante. Sem pensar duas vezes, corri até lá e puxei Caleb pela camisa. Aquela força mágica ardeu dentro de mim, deixando-nos muito mais páreos do que jamais seríamos em circunstâncias normais. Pegá-lo de surpresa me deu uma vantagem extra. Dei um soco na cara dele que teria deixado Wolfe orgulhoso e, depois, um chute no joelho. Caleb não quebrou nada, mas tropeçou e caiu no chão. Rapidamente puxei os corações em volta do seu pescoço e desviei quando tentou me dar um soco, urrando de raiva. Eddie avançou para me defender, mas, a essa altura, Chris anunciou o fim da competição.

Ele veio correndo até nós, franzindo a testa diante do meu comportamento nada convencional.

— Que droga você pensa que está fazendo? — ele perguntou.

— Ganhando — respondi. Ergui meu coração junto com os três primeiros e mais o monte que havia roubado de Caleb. — Você disse que as mulheres vencedoras seriam escolhidas com base na quantidade de corações que carregassem no final. Essa sou eu.

Chris corou ao se ver acuado por suas próprias palavras.

— Sim, mas...

— E você disse que valia qualquer tática.

— Mas...

— E — continuei, triunfante — você perguntou se estávamos dispostos a fazer qualquer coisa para combater o mal. Eu estou. Mesmo se isso significar enfrentar alguém maior e mais forte, como obviamente aqueles demônios vampíricos vão ser. — Apontei com desprezo para as outras competidoras, que me encaravam boquiabertas. — Por que lutaria contra aquelas ali?

Um silêncio total tomou conta da arena, seguido por gargalhadas. Mestre Angeletti caminhou pela arquibancada na nossa direção, tomando cuidado para não tropeçar no manto dourado. Ele não parava de rir.

— Ela tem razão, Juarez. Foi mais esperta que você, e diria que, se conseguiu fazer isso e derrubar nosso maior competidor, mereceu o primeiro lugar.

Caleb ficou vermelho como um pimentão.

— Não usei toda a minha força. Ela é só uma garota.

Mestre Angeletti balançou a cabeça.

— Relaxa. Você ainda pode ficar. Essa garota... Qual é o seu nome?

— Fiona, senhor. Fiona Gray.

— Fiona Gray pode ficar com uma das vagas para mulheres. Parece que a outra vai para aquela jovem ali. — Mestre Angeletti apontou para a menina alta que preferira não correr riscos e deixar o tempo passar. Seu nome era Tara e, embora não parecesse animada ao me ver declarada vencedora, não reclamou, já que tinha sua vaga garantida. Foi a garota que estaria em segundo lugar que me xingou. Os chefes dos guerreiros pareceram achar graça, mas não mudaram sua decisão. Ela e as outras recrutas foram dispensadas.

Na sequência, nós, os vencedores, fomos convidados para um banquete em nossa homenagem num lugar que funcionava como refeitório no complexo. Nós oito ficamos numa mesa enquanto os guerreiros experientes ocuparam as demais. Particularmente, preferia um banho, mas pelo menos pude reencontrar Eddie. Nós sorrimos para nossos pratos de costela enquanto os outros relembravam momentos marcantes dos combates anteriores e falavam que a gente “super” aniquilaria vampiros de verdade. A maioria dos competidores pareceu impressionada pelo que eu tinha feito com Caleb e riu bastante. No entanto, ficou claro que ele não tinha visto graça nenhuma. Ao longo da refeição, lançou vários olhares nervosos para onde eu e Eddie estávamos, e torci para não me arrepender da minha ideia no último minuto na arena.

Depois do almoço, os guerreiros decidiram que já tinham testado nossa brutalidade o suficiente — ao menos por enquanto — e que era hora de verificar nossas personalidades. Fomos chamados um a um para conversar com os mestres superiores e com alguns guerreiros sobre nossas intenções. Nos chamavam em ordem alfabética, o que significava que iria antes de Eddie e não teria nenhum aviso do que estava por vir. Essa etapa, pelo menos, quase não mudava de um ano para o outro, e Sabrina havia nos prevenido sobre o que esperar: basicamente um longo interrogatório durante o qual teríamos que repetir como odiávamos vampiros.

O que eu não esperava era o quanto aquilo me lembraria a reeducação.

Depois que sentei na frente dos mestres e dos membros do conselho, todos eles homens, direcionaram minha atenção para uma grande tela pendurada na parede. A imagem de um Moroi comum e feliz apareceu.

— O que você vê? — mestre Angeletti perguntou.

Meu coração subiu pela garganta e, de repente, parecia que estava de volta àquela prisão subterrânea, amarrada numa cadeira sob o olhar fixo do rosto bonito e cruel de Sheridan.

— O que você vê, Sydney?

— Moroi, senhora.

— Errado. Você vê criaturas do mal.

— Não sei. Talvez sejam. Eu precisaria saber mais sobre essas Moroi em particular.

— Você não precisa saber nada além do que eu disse. Elas são criaturas do mal.

E então ela me torturava, mergulhando minha mão numa solução ácida que dava a sensação de queimar minha carne, obrigando-me a suportar a dor até finalmente concordar com ela e repetir que os Moroi eram criaturas do mal. A lembrança foi tão intensa e tão vívida quando sentei ali com os guerreiros que minha pele ardeu. A sala parecia estreitar ao meu redor, como a prisão da reeducação, e fiquei com medo de desmaiar na frente deles.

— Fiona? — chamou mestre Angeletti, inclinando a cabeça ao me observar. Apesar do rosto severo, havia um tom complacente em sua voz, como se achasse que eu poderia estar intimidada pela presença deles. — O que você vê?

Engoli em seco, ainda paralisada pelo medo do meu passado. Como continuava em silêncio, os outros guerreiros começaram a me encarar curiosos. É uma atuação, Sydney!, exclamei para mim mesma. Conseguiu antes e pode conseguir agora. Aqui não é a reeducação. Você não está presa e a vida de Jill está em jogo.

Jill.

Foi só pensar nela, lembrar de seu rosto puro e inocente, que voltei à realidade. Pisquei e encarei tela.

— Mal, senhor — eu disse. — Vejo criaturas malignas que não fazem parte da ordem natural.

E assim começou. Respondi como Sabrina havia me aconselhado, não que precisasse de muito treinamento. Era só responder como na reeducação. Contei uma história que tínhamos inventado, sobre como eu e meu irmão Fred fomos atacados por um Strigoi certa noite e quase não sobrevivemos. Expliquei que havíamos tentado contar às autoridades, mas ninguém acreditava. Sabíamos a verdade sobre o mal que presenciáramos e passamos os anos seguintes em busca de ajuda, até finalmente conhecer Sabrina e descobrir a luta dos guerreiros.

Quando a entrevista acabou, os guerreiros estavam sorrindo, o que me deixou confiante de que estavam satisfeitos com as minhas respostas. Retribuí o sorriso, mas me sentia péssima por dentro. Me esforçava para não tremer ou me perder naquelas lembranças horríveis. Dei um aceno encorajador para Eddie quando voltei à sala de espera com os outros, e então me afundei numa cadeira, contente por ninguém parecer interessado em falar comigo. Pude ficar sentada sozinha por um tempo, acalmando minha respiração e tentando esquecer aquelas memórias. Eddie voltou um pouco depois, irritado pela série de interrogações, mas no geral tranquilo.

— Doentes — ele murmurou para mim, mantendo um sorriso no rosto por causa dos outros na sala. — Fui fiel à história e gostaram.

— Comigo também — disse, invejando como havia sido mais fácil para ele. Não tinha a mesma bagagem que eu.

Depois que todos foram interrogados, era hora do jantar, ou seja, outro banquete no refeitório. Enquanto comíamos, mestre Ortega recitou um salmo e fez um longo sermão sobre a glória da humanidade e da luz, e como estávamos fazendo um excelente trabalho na luta contra o mal. Era uma variação do que ouvia dos alquimistas antes da reeducação, e fiquei pensando se algum dia ficaria livre de grupos tentando impor suas crenças a mim. Felizmente fomos liberados depois disso, e Sabrina veio falar com a gente num canto da sala. Outros padrinhos estavam conversando com seus recrutas, então ninguém achou estranho.

— Aguentando firme? — ela perguntou baixinho. Fizemos que sim e ela abriu um sorriso irônico. — Corajoso o que você fez, indo atrás de Caleb.

— Pensei que fossem curtir a ousadia — respondi.

— Sim e não — ela disse. — Vencer um desafio assim realmente te dá alguns pontos, mas há quem não goste de quem quebra as regras.

— Soa familiar — eu disse, pensando nos alquimistas.

— O que vai acontecer agora? — Eddie perguntou.

Sabrina observou ao redor e deu de ombros.

— Não muito por hoje. Tem alojamentos separados para homens e mulheres, então todo mundo vai dormir daqui a pouco. Essa vai ser sua chance de dar uma investigada, Sydney. Dei uma olhada pelo prédio mais cedo e não existem muitas portas fechadas. Você falou que esse seria um problema, né?

— Sim — concordei. Feitiços de invisibilidade poderiam me esconder, mas não adiantariam nada se alguém visse uma porta abrindo sozinha. — E câmeras de segurança.

— Também não achei — ela respondeu. — A maior parte da segurança está no perímetro do complexo. Querem manter os outros do lado de fora e nós do lado de dentro. Se não puderem te ver, não vai ser muito difícil sair andando por aí. As áreas que querem proteger têm guardas armados e, se tudo der certo, você consegue passar por eles.

— Se tudo der certo. — Mal dava para acreditar que classificávamos guardas armados como obstáculos fáceis. — Só não sei direito para onde tenho que ir.

— Eu sei — ela disse. — Descobri enquanto fazia o reconhecimento. Se você observar pela janela atrás de mim, vai ver um grande prédio cinza. É o alojamento feminino. À direita, fica o alojamento masculino e, mais à direita, o quartel-general dos mestres. É lá que vai encontrar suas respostas.

Eu e Eddie observamos pela janela que ela indicou. Ele franziu a testa.

— Odeio que você tenha que fazer tudo isso sozinha. Me sinto inútil.

Toquei seu braço para reconfortá-lo.

— Você é meu reforço — eu disse. — Me sinto melhor com você aqui.

— E é possível que a gente precise da sua ajuda quando for hora de sair daqui — Sabrina acrescentou.

Notei o uso de “a gente”.

— Você vai conosco? — perguntei.

— Quando vocês desaparecerem, vou me meter em encrenca por ter trazido recrutas falsos. Mesmo se não acharem que faço parte de uma conspiração, vão me acusar de descuido. Não quero passar por isso. E sinceramente? — Ela suspirou. — Já estou cansada deste trabalho. Vou ajudar Marcus de outra forma.

Nosso tempo livre acabou e todos foram mandados para os alojamentos. Chris aconselhou os recrutas a descansar bastante, porque teríamos “um grande dia amanhã”. Tentei não fazer careta. Já estava dolorida e machucada e meu trabalho nem tinha terminado ainda.

Quando entrei no alojamento feminino, vi que Sabrina tinha razão. Havia muitas portas abertas ligando os corredores aos dormitórios. Como não tinha ar-condicionado, muitas janelas também estavam abertas. Havia cortinas penduradas nos batentes dos quartos para dar privacidade, mas nem tocavam o chão. Era quase um sonho transformado em realidade para alguém que precisava investigar o lugar usando a invisibilidade. Além disso, como havia poucas mulheres, o alojamento quase não era usado.

Infelizmente, meu dormitório não estava vazio. Alguém tivera a brilhante ideia de alojar Tara comigo. Ela me encarou feio enquanto nos preparávamos para dormir e fez algumas ameaças vazias sobre como provaria para todo mundo que era a melhor candidata. No entanto, não pareceu que iria me atacar durante o sono. O problema era que eu não podia correr o risco de ela acordar, ver minha cama vazia e me denunciar. Ou seja, precisaria lançar um feitiço de sono nela, o que nunca tinha feito antes.

Esperei até ela adormecer e então, sem fazer barulho, levantei no quarto escuro. A cortina pendurada na porta pendia até dois terços do batente, permitindo a entrada de um pouco da luz do corredor. Examinei a silhueta adormecida de Tara e me preparei para o feitiço. Não exigia muita energia, mas alguns cálculos complexos. Funcionava quase como uma droga. A quantidade de magia necessária dependia do tamanho da pessoa. Sob a luz fraca, arrisquei um palpite do peso dela. Uns setenta quilos? Se lançasse algo fraco demais, ela poderia acordar muito cedo. Então preferi me precaver e lancei um feitiço para alguém com noventa quilos.

Sua respiração ficou mais pesada quando a magia atingiu seu corpo, e seus traços pareceram muito mais relaxados. Talvez estivesse fazendo um favor a ela. Talvez uma noite de sono profundo a ajudaria na competição do dia seguinte. Mal sabia ela que era a única mulher competindo. Recuei e lancei um feitiço de invisibilidade em mim mesma. Reuni o máximo possível de magia para garantir que durasse um bom tempo e não fosse quebrado facilmente.

Após tudo isso, me ajoelhei na frente da cortina e engatinhei embaixo dela com cuidado para não mexer no tecido. No corredor, um guarda armado estava parado perto, contendo um bocejo. Estava claro que ele não esperava nenhum distúrbio naquela noite. Passei por ele tranquilamente até chegar a uma janela aberta, por onde saí rumo à escuridão, partindo para explorar o acampamento dos guerreiros.


16

Adrian

Foi difícil dormir depois que Sydney partiu. Não conseguia deixar de lado o medo que sentia em relação aos perigos que ela iria enfrentar, nem o fato de que não poderia estar lá para protegê-la, por mais que ela fosse corajosa, astuta, competente e provavelmente melhor em me proteger do que o contrário. A vontade de cuidar dela era forte demais.

Também foi difícil dormir porque minha cama era um pufe gigante.

— Tem certeza que não quer o sofá? — Marcus perguntou.

Balancei a cabeça e dei alguns soquinhos no pufe para deixá-lo num formato mais aconchegante.

— Pode ficar — eu disse. — Não sei se vou conseguir dormir de qualquer jeito.

Ele sorriu.

— Howie deve ter alguma coisa para ajudar você a dormir.

— Não, obrigado — eu disse, bufando.

Marcus apagou as luzes e se ajeitou no sofá amarelo-mostarda. O silêncio tomou conta da sala, interrompido às vezes pela melodia suave de “Mr. Tambourine Man” que vinha do porão. Me revirei algumas vezes, procurando uma posição confortável, mas não tive sucesso. Em vez de pensar em Sydney, tentei pensar no dia seguinte, quando ajudaria as bruxas a interrogar Alicia. Não era exatamente um pensamento relaxante, mas pelo menos me ajudava a direcionar minhas emoções para outra coisa além do meu nervosismo por Sydney. Antes de ir embora, Maude tinha falado que viria me buscar na tarde do dia seguinte. Pelo que entendi, as bruxas estavam ocupadas protegendo o lugar onde Alicia estava, ao mesmo tempo que tentavam descobrir uma forma de levar a sra. Terwilliger até lá sem que os espiões alquimistas a seguissem.

Por incrível que pareça, apesar de todos os pensamentos, finalmente caí no sono. E, mais incrível ainda, fui levado para o sonho de espírito de outra pessoa. Quando um exuberante jardim tropical se materializou devagar ao meu redor, soube quem era a criadora do sonho antes mesmo de ela aparecer.

— Oi, Sonya — eu disse.

Ela saiu de trás de um arbusto de madressilva, usando roupas simples de jardinagem, mas com o cabelo ruivo impecável.

— Adrian — ela cumprimentou. — Está difícil te encontrar nos sonhos ultimamente. Nunca sei que horário você está seguindo.

— Nenhum em especial — admiti. — Não tenho dormido direito. A gente anda ocupado.

— Percebi. Estão falando que os alquimistas já sabem que vocês saíram da Corte.

— Pois é. — Me recostei numa palmeira. — Você poderia ter ligado se queria conversar.

— Sim, eu sei — ela disse. — Mas queria conversar pessoalmente. Além disso, tem uma coisa que você só poderia ver em sonho. Ou melhor, uma pessoa.

Levei um momento para entender o que ela queria dizer.

— Charlotte.

O rosto de Sonya se encheu de tristeza.

— Sim. O estado dela acordada não mudou muito. Não está exatamente em coma, mas também não interage muito. Se você colocar comida na frente dela, ela come. Se ligar o chuveiro, ela entra embaixo dele. Mas toma poucas atitudes sozinha. E nunca fala nada.

O choque dessa notícia me fez perder o equilíbrio e usei um pouquinho de espírito para criar um banco e sentar.

— Tem alguma esperança de melhora? — perguntei.

— Não sei. — Sonya sentou ao meu lado. — Quer dizer, estou torcendo para que tenha. Nunca quero dizer que não há esperança. Mas aquela sobrecarga de espírito... foi demais, e quase sem nenhuma preparação. Ela já estava num estado frágil por causa do uso excessivo e não estava apta para aguentar o que invocou. A consequência disso foi enorme.

Meu coração bateu mais forte.

— Devia ter dado um jeito de impedir.

— Não sei se teria como, Adrian. Ela estava decidida a fazer o que fosse necessário para encontrar a irmã.

Hesitei, quase com medo das minhas próximas palavras.

— Eu a encontrei. Encontrei Olive e descobri por que ela fugiu. Mas... Bom, essa história não tem exatamente um final feliz.

Sonya não pediu mais detalhes.

— Não sei se contaria a ela.

— Contar a ela? — perguntei.

— Sim. Essa é uma parte do motivo por que queria conversar com você. Como Charlotte não respondeu pessoalmente, tentei chegar até ela em sonhos de espírito. No começo também não deu certo. Depois consegui... quer dizer, mais ou menos. Vou te mostrar.

Ela ficou em silêncio e fixou o olhar numa clareira do jardim. Depois de um momento de forte concentração, surgiu um enorme bloco retangular de pedra. Nele, havia uma pequena abertura protegida por grades. Levantei e observei o lado de dentro, tomando um susto com o que vi. Charlotte estava sentada na pequena cela de pedra, no chão, envolta por sombras.

— Charlotte! — exclamei.

Ela olhava fixamente para a parede de pedra, sem dizer nada, com o rosto inexpressivo.

— Charlotte? Está me ouvindo?

Sonya foi até mim.

— Acho que ouve, mas não consegue responder.

Apontei para a prisão de pedra em volta dela.

— De onde veio isso?

— Da mente dela — Sonya respondeu. — É assim que ela se vê: presa. Mas, sinceramente? O fato de ela aparecer desse jeito já é promissor. Antes a mente dela nem tinha forças para se conectar comigo. Minha esperança é que, com o tempo, ela avance mais. Por isso converso com ela pessoalmente e em sonhos. Achei que você gostaria de saber, caso quisesse visitá-la também.

— Quero — respondi, ainda me recuperando do choque com o estado dela. Mesmo quando Sydney estava presa e sob tortura, a mente dela tinha permanecido forte o suficiente para criar uma conexão em sonhos de espírito. Que tipo de dano Charlotte havia sofrido para ficar nesse estado? Era esse o perigo que eu corria com o uso contínuo do espírito?

— Acho que é bom que pessoas diferentes conversem com ela — Sonya disse, com cautela. — Mas acho melhor evitar certos assuntos até ela se recuperar. Como finais tristes.

Ela não precisou explicar mais. Saber a verdade, saber que Olive tinha morrido, provavelmente não seria nada terapêutico para a recuperação de Charlotte. Assenti e voltei a me aproximar da janela da pequena prisão.

— É bom ver você de novo, Charlotte. Tem tantas coisas que queria te contar... Muitas são sobre Olive. E outras... outras são realmente incríveis. — Abri um sorriso ao pensar em Declan. — Você vai querer muito saber, então preciso que volte para nós logo, tá?

Não houve resposta e sua expressão não mudou, nem mesmo quando mencionei o nome de Olive.

— Vai demorar — Sonya disse, tocando meu braço de leve. — Mas tudo isso ajuda.

— Obrigado por me informar sobre ela — eu disse. Ao encarar Sonya de novo, me dei conta de que ela também ficaria muito interessada em saber sobre Declan. Não tinha certeza, mas desconfiava que a forma como o espírito estava infundido nele era exatamente a proeza que ela estava tentando replicar em sua vacina. Se pudesse vê-lo, poderia fazer um progresso incrível. Mas era exatamente isso que Olive tentara evitar. Era o motivo por que tinha morrido.

— Que foi? — Sonya perguntou, ao perceber meu olhar preocupado.

Abri um sorriso fraco.

— Nada. É só que tem muita coisa acontecendo.

— Imagino... e não quero atrapalhar. Só queria que você soubesse do progresso de Charlotte e visse como pode conversar com ela.

— Obrigado — eu disse, dando um rápido abraço em Sonya. — Vou dar uma olhada nela de vez em quando. Me avisa se ela acordar no mundo real.

O sonho se dissipou e voltei para o meu sono, surpreso ao acordar na casa de Howie quando já era quase meio-dia. Assim que levantei, comemos mais besteiras. Nunca tinha sentido tanta vontade de comer salada na vida. Marcus me contou que Sabrina havia mandado uma atualização sobre o complexo dos guerreiros. Todos estavam seguros e, até agora, o disfarce estava convencendo.

Essa notícia me fez passar o dia até a chegada do crepúsculo, quando um carro desconhecido parou na frente do esconderijo. Pude ver que Marcus estava quase tendo um ataque até eu reconhecer Neil no banco do motorista.

— Jackie Terwilliger me mandou buscar você — ele explicou. — Eu a ajudei a sair hoje e a se livrar dos alquimistas que estavam vigiando a casa dela. Ela está preparando as coisas para Alicia agora.

Quando mencionou o nome de Alicia, sua expressão ficou sombria. Ela tinha esse efeito nas pessoas.

— Estou meio surpreso por ser o “sortudo” a presenciar o interrogatório dela — ele acrescentou. — Mas com Eddie em missão, e Rose e Dimitri fazendo alguma coisa misteriosa na casa do Clarence, sou o único guardião livre.

— Você conversou com Rose e Dimitri? — perguntei como quem não quer nada.

— Vi os dois — Neil disse. — E sua mãe também. Passei lá hoje de manhã. Aliás, ela estava cuidando de um bebezinho lindo. Ele é parte do motivo por que Rose e Dimitri vão ficar por lá? Tive a impressão de que Rose queria muito vir comigo.

Hesitei. Neil ainda não sabia que era pai, nem que a mulher que ele amava estava morta. Era um segredo enorme e terrível que ele merecia saber, mas, de novo, não era o momento certo. E definitivamente não falaria sobre o assunto na frente de Marcus. Não parecia certo mencionar isso como se fosse um assunto banal no caminho para o interrogatório de Alicia.

— É uma longa história — eu disse apenas. — Depois te conto.

— Tudo bem — Neil disse. Os guardiões estavam acostumados a segredos e a não saber de quase nada. Ele não insistiria, embora não soubesse o quanto esse segredo tinha a ver com ele.

Falei para Marcus me informar assim que soubesse de qualquer novidade sobre o progresso de Sydney e Eddie no complexo dos guerreiros. Depois de pegar alguns salgadinhos na cozinha de Howie — ainda que, sinceramente, estivesse enjoado de todos a essa altura —, eu e Neil seguimos viagem de volta à civilização de Palm Springs. Ao longo do caminho, ele mencionou que tinha ficado sabendo do estado de Charlotte e, de novo, precisei tomar cuidado para não revelar o grau do meu envolvimento. Obviamente Neil também quis saber se eu descobrira alguma novidade sobre Olive, ainda mais considerando o estado da irmã dela. Precisei dar uma resposta vaga, dizendo que não tinha conseguido entrar em contato, mas odiei ter que mentir para ele. A decepção ficou clara em sua expressão e percebi que também odiaria contar a verdade, pelo menos em relação a Olive.

Logo depois, me contou que estávamos indo à casa de Maude, líder do Stelle. Maude não só não estava sob vigilância alquimista, como, pelo jeito, tinha um calabouço de verdade em casa. Pelo menos foi o que Inez disse quando chegamos.

Maude, que ouviu a conversa enquanto passava, revirou os olhos.

— Não é um calabouço, Inez. É uma adega.

Estávamos na sala, esperando outras integrantes do clã chegarem. Inez torceu o nariz.

— É subterrâneo e tem paredes de pedra — ela retorquiu. — E não tem nenhuma prateleira de vinho.

— Ainda não mandei instalar — Maude explicou.

— Só estou falando do que vi — disse Inez.

Jackie veio até nós.

— Bom, seja lá o que for, é incrivelmente útil agora. Lugares subterrâneos são excelentes para conter magia. Podemos criar um círculo para impedir que Alicia tente alguma coisa abominável e aí você pode cuidar do seu próprio tipo de magia, Adrian. Ah, as outras chegaram.

Depois que entraram, chegou-se a um total de catorze bruxas. Segundo Jackie, havia vários números sagrados na feitiçaria, mas, para oferecer a melhor proteção contra Alicia, era necessário um círculo de treze, além de uma pessoa para realizar os outros feitiços. Depois de dois dias paralisada, Alicia devia estar muito fraca, mas depois de todas as vezes em que ela nos surpreendeu, ninguém queria correr riscos.

Descemos todos para o porão. Lá, encontrei Alicia paralisada exatamente na mesma posição em que estava na casa de Wolfe. Acabei concordando com Inez sobre o lugar.

— Parece um calabouço mesmo — murmurei para ela. — Quem usa pedras tão escuras para uma adega? Estava esperando alguma coisa mais toscana.

— Pois é! — ela murmurou em resposta.

Treze bruxas deram as mãos e formaram um círculo de proteção em volta de Alicia, entoando feitiços para manter toda magia humana apenas dentro dele. Fora do círculo, Maude usou as mesmas ervas e encantamentos com que tinha libertado Eddie no complexo de Wolfe. Ao encarar Alicia, não pude deixar de sentir a mesma relutância inicial das bruxas para libertá-la. Ela havia tentado matar Sydney e roubar o poder de Jackie, além de ter deixado a irmã de Jackie em coma. Depois de tudo isso, tinha capturado Jill e a entregado para os guerreiros, simplesmente para se vingar de Sydney. Sério, Alicia merecia ser deixada na forma de estátua para sempre.

Mas, enfim, precisávamos de respostas.

Maude terminou o feitiço e saiu do círculo, posicionando-se ao lado de mim e de Neil. Observamos Alicia ganhar vida novamente. Suas pernas cederam quando seus músculos precisaram reaprender a funcionar de repente. No entanto, mesmo caída no chão, ela grunhiu e ergueu a mão, soltando raios de luz que atingiram uma barreira invisível formada pelas treze bruxas e se dissiparam, inofensivos.

— Vocês não podem me prender para sempre — ela gritou. — E assim que me libertar, vocês todas vão pagar por isso!

Virei para Maude e cochichei em seu ouvido:

— Ela até que tem razão. O que vai acontecer depois?

— Não se preocupe — ela murmurou em resposta. — Assim como vocês Moroi têm suas prisões, temos as nossas. — Limpando a garganta, deu um passo à frente e entrou no campo de visão de Alicia, ainda fora do círculo. — Alicia, o que vai acontecer com você vai depender do quanto colaborar. Quando você for levada à justiça, sua vida pode ser confortável... ou muito desagradável.

Alicia expressou o que achava disso lançando uma bola de fogo contra Maude. Também foi absorvida pela barreira invisível e pensei que Alicia devia se sentir sortuda pela parede protetora não rebater os feitiços de volta para ela.

Maude cruzou os braços e encarou Alicia sem hesitar.

— Sabemos que você participou do sequestro de uma jovem Moroi. Conte para onde a levou.

Por um momento, Alicia pareceu surpresa com a pergunta, até me ver parado fora do círculo. Ela riu.

— Cadê Sydney? Está com medinho de me enfrentar de novo?

Não deixe ela falar assim!, tia Tatiana mandou.

Com uma pequena quantidade de telecinese de espírito, fiz os braços de Alicia se retorcerem em volta do corpo, como se estivesse usando uma camisa de força. Seus olhos se arregalaram quando tentou levantá-los e não conseguiu.

— Sydney tem mais talento e integridade do que você jamais vai ter — eu disse. — Você tem sorte de não precisar enfrentá-la de novo. Agora, conta pra gente aonde levou Jill. Sabemos que ela está com os guerreiros. Mas onde?

— Se você contar, vamos mandá-la para julgamento e será uma prisioneira bem tratada — Maude acrescentou. — Caso contrário, vamos paralisá-la de novo.

— Vocês vão precisar de mais do que ameaças e truques baratos para que eu conte onde ela está. — Alicia me abriu um sorriso perverso. — Podem ter me capturado, mas essa é uma batalha que Sydney nunca vai vencer. Nunca mais vão ver aquela pirralha Moroi de novo.

Se ela machucar Jill... Tia Tatiana não terminou a ameaça, e não era preciso. A raiva, incitada pela fúria da minha tia, cresceu dentro de mim. Me forcei a me controlar, tentando manter a cabeça fria.

— Chega de joguinhos — eu disse. Soltei seus braços e redirecionei o espírito para a compulsão. — Fale onde Jill está.

Os olhos de Alicia começaram a ficar vidrados, sua boca começou a abrir... E então, surpreendentemente, ela se livrou da compulsão. Sua expressão voltou a endurecer.

— Não sou tão fácil assim de controlar — ela disse.

— Deve ter se protegido com poções — Maude me falou. Jackie havia dito o mesmo, que Alicia poderia ter usado todo tipo de proteção mágica, incluindo contra a compulsão. — Não vai durar pra sempre. Mais alguns dias e todo o efeito vai passar.

Rangi os dentes e aumentei o uso de espírito.

— Não. Vamos conseguir respostas hoje. — Com a magia renovada, voltei a me focar em Alicia. — Fale onde Jill está.

Novamente, Alicia tentou me desafiar, mas, dessa vez, teve mais dificuldade para me enfrentar.

— Com... com os guerreiros.

— Isso já sabemos — eu disse. — Onde? Onde estão mantendo Jill?

Tentar compelir Alicia era como tentar abrir uma porta que alguém estava empurrando do outro lado. Nós dois estávamos dando tudo que tínhamos. Sua força de vontade e a tal poção que havia tomado eram fortes, mas eu tinha certeza de que meus poderes eram mais. Aumentei novamente a quantidade de espírito correndo pelo meu corpo, sabendo que, a essa altura, uma pessoa sem tanta força de vontade estaria de joelhos diante de mim. Os avisos de Sydney se repetiram na minha cabeça, mas continuei mesmo assim. Precisávamos de respostas.

— Onde os guerreiros estão mantendo Jill? — perguntei.

Dava pra ver que Alicia estava suando agora, lutando contra o meu poder.

— Em... em Utah — ela deixou escapar finalmente. — St. George. Um complexo lá. Mas nunca vão chegar até ela! Nunca vão conseguir chegar até onde ela está!

— Por quê? — perguntei, forçando com a compulsão. — Por quê?

— Obstáculos... demais — ela disse, pálida e trêmula.

— Conte tudo — ordenei.

Ela continuou obstinada e eu estava prestes a compeli-la ainda mais. Com uma avalanche de espírito, eu tinha certeza que poderia tê-la nas minhas mãos, de joelhos, implorando para me contar tudo que sabia.

Vai!, mandou tia Tatiana. Faz essa bruxa pagar! Faz dela sua escrava!

Estava pronto para isso, mas de repente uma imagem do encontro com Sonya no sonho da última noite me veio à mente. Ou, para ser mais específico, lembrei de Charlotte em sua cela e das palavras de Sonya sobre as consequências do uso excessivo de espírito. Não podia quebrar minha promessa para Sydney de que manteria as coisas sob controle.

Sydney não poderia ter previsto isto, argumentou tia Tatiana. Você é mais forte do que Charlotte. Não vai acabar como ela.

Não, falei à voz fantasma. Não vou correr o risco. Vou ser fiel à minha palavra.

Com grande relutância, soltei a compulsão e o espírito direcionado contra Alicia. Ela caiu, dessa vez por pura exaustão mental.

— Isso é o bastante por enquanto — eu disse. — Podemos encontrar esse lugar em St. George. — Fosse através da investigação de Sydney, pela eventual ajuda dos alquimistas ou mesmo pelas informações de Sabrina, não poderia ser tão difícil agora que sabíamos a cidade. Gostaria de saber mais sobre os “obstáculos”, mas não tinha motivos para me esgotar se ela provavelmente só fosse falar de guerreiros malucos e armados. Os guardiões poderiam cuidar deles. Já tinham feito isso antes.

— Precisa de mais alguma coisa antes de a paralisarmos de novo? — Maude perguntou.

Os olhos de Alicia se arregalaram.

— Você falou que não me paralisaria se eu cooperasse!

— Isso não foi exatamente cooperar — Maude respondeu com frieza.

Fiz que não.

— Isso basta por enquanto. Se precisarmos de mais, aviso vocês.

— Não! — Alicia gritou. Bolas de fogo se formaram nas mãos dela e começou a lançá-las inutilmente contra a barreira invisível. — Não vou entrar naquele estado de novo! Não vou! Vocês não podem...

Mas Maude estava lançando o feitiço ao meu lado e, um minuto depois, Alicia ficou paralisada novamente, agora numa postura pronta para lançar bolas de fogo, ainda mais ridícula do que a anterior. As bruxas liberaram o círculo e Jackie veio falar comigo.

— Tem certeza que conseguiu tudo que precisava? Fiquei com a impressão de que queria perguntar mais.

— Queria — admiti. — Mas as defesas dela eram fortes. Vou passar a informação sobre St. George para os meus contatos e ver o que podem descobrir.

Jackie assentiu.

— Muito bem, então. Conversei com Maude. Se quiser, pode ficar aqui na casa dela até o próximo passo do plano. Assim você fica mais perto da ação e, pelo que me falaram, aqui tem muito mais espaço do que o último lugar em que ficou.

— Tomara que tenha mais frutas e verduras também — acrescentei. Lancei um olhar para Neil. — Você é o especialista em segurança. Aqui é seguro?

— Acredito que sim — ele disse depois de um momento de reflexão. — Ninguém seguiu nenhum de nós. E, se não tiver problema para ela, também posso ficar para proteger você.

Agradecemos Maude pela hospitalidade e tentamos não atrapalhar enquanto as bruxas terminavam de arrumar as coisas. Pelo que entendi, Alicia seria transportada para um julgamento e uma prisão mágica, mas, por enquanto, continuaria na adega-calabouço. Felizmente, eu e Neil ficamos com quartos de hóspedes no andar de cima. Mandei a informação sobre St. George para Marcus, e decidi que finalmente era hora de dar a difícil notícia a Neil, já que pelo visto ficaríamos ali por um tempo.

— Neil — comecei, quando ficamos sozinhos no quarto dele —, precisamos conversar.

— Claro — ele disse, tranquilo. — É sobre Jill?

— Não tem nada a ver com ela, na verdade. — Apontei para a cama. — Acho melhor você sentar.

Neil franziu a testa, inquieto pelo meu tom de voz.

— Vou ficar de pé, obrigado. Só me fala o que está acontecendo.

Cruzei os braços como se pudesse me proteger de todo o sofrimento que estava prestes a despertar. Até então, não tinha percebido o quanto estava lutando para impedir que aquilo me machucasse.

— Neil, não tem nenhum jeito fácil de dizer isso... e sinto muito por ser a pessoa a te contar... mas Olive morreu há dois dias.

Neil não soltou nenhum ruído, mas seu rosto ficou pálido. Tão pálido que achei que ele fosse desmaiar.

— Não — ele disse por fim, depois de um longo silêncio agonizante. — Não pode ser. — Ele balançou a cabeça obstinado. — Não.

— Ela foi morta por um Strigoi — eu disse. Enquanto havia sofrido para encontrar as palavras no começo, me vi falando sem parar. — Ela estava hospedada numa comunidade dampira. Em Michigan. Um pequeno grupo de Strigoi atravessou as defesas e atacou a comunidade. Suspeitamos que eles mandaram um humano tirar uma das estacas de defesa. Seja como for, eles entraram e Olive foi atacada enquanto estava fugindo e...

— Espera — Neil interrompeu. Num piscar de olhos, seu rosto aflito ficou sério e cético. — Olive não fugiria de uma luta. Muito menos de um grupo de Strigoi. Mais do que ninguém, ela tentaria se defender.

Aquela agonia terrível voltou a correr por mim.

— Ela estava fugindo para proteger o filho dela. Declan, o bebê de que minha mãe está cuidando.

O silêncio encheu o quarto novamente enquanto as palavras entravam na cabeça dele. Nesse momento, desejei ter esperado por Sydney. Ela teria feito um trabalho mais eloquente explicando tudo.

— E nem era do Strigoi que estava fugindo — eu disse, quando Neil continuou a me encarar em choque. — Neil, o bebê, Declan... ele é seu. Seu filho. Você é o pai.

A expressão de Neil ficou incrédula novamente, mas, dessa vez, era mais uma descrença atônita do que nervosa.

— Nós dois sabemos que isso não é verdade — ele disse. — Foi... foi por isso que ela fugiu? Ela achou que eu a julgaria? Não tínhamos nenhum compromisso sério, não de verdade. Eu era louco por ela, sim, mas foi só uma...

— Só uma vez, eu sei — completei. — Mas foi o suficiente. Não sei como, mas alguma coisa aconteceu no corpo dela quando foi restaurada do estado Strigoi. Isso permitiu que ela concebesse um bebê com você. Também não acreditei até verificar com a minha magia. Definitivamente tinha um resíduo, sei lá, espiritual nele. É loucura, eu sei. Mas ele é seu filho sim.

Neil sentou na cama, tão imóvel quanto uma estátua. Entendia seu sofrimento e sentei ao lado dele.

— Neil, eu sinto muito.

— Olive morreu — ele disse, atônito. Ergueu os olhos para mim e piscou para conter as lágrimas. — Se o que você está dizendo é verdade, se, de algum modo, por algum tipo de magia, esse filho é meu, então por que a própria Olive não me contou? Por que ela fugiu?

— Porque ela estava com medo dessa magia — eu disse. — E estava com medo do que as pessoas diriam ou fariam, tanto os Moroi como os alquimistas. Escondeu o bebê para protegê-lo de ser tratado como uma aberração da natureza, e prometi que ajudaria.

Neil ficou com o olhar vago por um bom tempo, mas acho que ouvir sobre proteção despertou seus instintos.

— Quem sabe? Quem sabe sobre D... Declan?

— Sobre a verdadeira natureza dele? — Apontei para mim. — Só eu e Sydney. Rose e Dimitri sabem que ele é da Olive, assim como algumas pessoas na comunidade. E só. A gente achou que seria mais seguro se o mínimo de gente possível soubesse da existência dele. Se descobrissem que, de alguma forma, talvez pelo fato de Olive ter sido restaurada, os dampiros seriam capazes de ter filhos... Enfim, isso assustaria muita gente. Alguns ficariam felizes, outros curiosos. Todos iriam querer saber mais sobre o bebê.

Neil continuou em silêncio e quase tão imóvel quanto a estátua de Alicia.

— Neil? — eu disse, um tanto aflito pelo estado de choque dele. — Vai ficar tudo bem. Vou ajudar você. A gente vai dar um jeito de honrar o último desejo de Olive. Declan vai ter uma vida feliz e normal. Quando essa história com Jill acabar, vamos juntar você e Declan e...

— Não — disse Neil, enérgico de repente. Ergueu o olhar cortante para mim e, embora sua expressão estivesse firme, havia uma tristeza terrível em sua voz. — Nunca mais posso ver esse menino.


17

Sydney

O complexo dos guerreiros estava calmo e silencioso enquanto eu caminhava pela noite. Trey e Sabrina haviam contado que os guerreiros faziam festas enormes de vez em quando, mas quando havia toques de recolher e disciplina, todos obedeciam. Esse definitivamente era o caso agora. A maioria das pessoas estava dormindo, e apenas quem estava em patrulha passava por mim enquanto eu caminhava invisível na direção da sede dos mestres. Ninguém parecia esperar que muita coisa acontecesse naquela noite, e as rondas eram feitas com uma tranquilidade confiante.

Outra porta aberta permitiu que eu me infiltrasse no prédio dos mestres com facilidade, bem na frente de um guarda que vigiava a entrada. Lá dentro, praticamente só salas vazias e silenciosas e, assim como no meu prédio, quase todas as portas estavam abertas. Havia, claro, algumas salas fechadas, e quis a sorte que uma reunião dos mestres fosse atrás de uma dessas portas. Pelo menos foi o que imaginei que estivesse acontecendo. Dois guardas estavam posicionados em frente a uma porta fechada e pude ouvir vozes abafadas lá dentro. Memorizando a posição da sala, voltei para o lado de fora e dei a volta no prédio, na esperança de encontrar uma janela aberta que me permitisse entrar e espionar. Quando encontrei, a janela estava aberta apenas pela metade, o suficiente para deixar o ar entrar, mas não para eu passar por ela. Sabrina tinha dito que um dos mestres devia carregar informações pertinentes sobre a organização o tempo todo, em cópias impressas ou num laptop, dependendo de quem era e do quanto entendia de tecnologia. Meu plano era vasculhar essas informações na esperança de descobrir onde Jill estava. Por enquanto, poderia apenas ouvir a conversa deles.

Havia chegado bem a tempo do começo da reunião, o que a princípio pensei ser um golpe de sorte. Não tinha perdido nada, mas infelizmente tinha que suportar a introdução, incluindo mais daqueles salmos absurdos. Então alguém desviou o assunto e começou a perguntar sobre os jogos de beisebol. Durante todo o tempo, estava consciente da minha invisibilidade. Ia durar, mas não tanto, e senti um alívio quando o grupo finalmente começou a falar sobre as questões do dia.

— No geral, foi uma demonstração forte — disse uma voz que reconheci como a de mestre Angeletti. — Tivemos um bom resultado e fizeram um espetáculo louvável.

— Alguns saíram da linha — resmungou uma voz taciturna. Essa também reconheci: Chris Juarez.

Mestre Angeletti riu.

— Ainda está incomodado porque aquela menina enganou você? Eu diria que ela merece mais crédito. Precisamos de mais gente inteligente por aqui.

— Mas não muitos. — Esse era mestre Ortega.

— Não, claro que não — mestre Angeletti disse. — Mas, se vamos negociar mais com os alquimistas, precisamos ser mais espertos do que eles.

Meus ouvidos formigaram com isso. Os alquimistas? No passado, havia feito uma investigação para Marcus e descoberto que realmente havia alquimistas e guerreiros trabalhando juntos, mas Marcus ainda precisava descobrir a real extensão da relação entre eles.

— Já somos mais espertos do que eles — mestre Ortega disse. — Nós os fizemos trabalhar conosco.

— Sim, mas não se acostume com esse acordo — disse uma nova voz que devia ser de um dos membros do conselho. — Você não disse que recebeu uma ligação sobre aquela menina, Alfred?

— Sim, sim — respondeu mestre Angeletti, sem parecer especialmente preocupado. — Mas era só algo preliminar. Um deles alegou que tinha recebido uma pista de que poderíamos estar com ela, mas acho que só estavam cobrindo todas as bases. Confirmei com os guardas e eles disseram que não havia sinal de que alguém tivesse ido investigar ou procurar por ela. Mesmo assim, vou continuar registrando tudo aqui, para termos um histórico caso alguma coisa aconteça.

Só entendi o que ele quis dizer com “registrar” quando ouvi o som de teclas. Fiquei tensa, esperando que eles falassem mais sobre “aquela menina”, mas mudaram de assunto e voltaram a falar sobre as provas. Isso, porém, me reanimou. Sabrina tinha razão. Havia um computador lá dentro onde, pelo que entendi, mestre Angeletti estava anotando os registros. Será que haveria mais informações registradas sobre “aquela menina”? Não tinha certeza se estavam se referindo a Jill, mas isso era promissor, assim como a existência do laptop. Meu objetivo era obter acesso àquele computador. Não seria fácil, considerando que não fazia ideia de quanto tempo duraria aquela reunião ou se mestre Angeletti levaria o laptop com ele quando acabasse. Estava listando todas as distrações que poderia causar quando os alquimistas foram citados de novo na conversa, de forma completamente inesperada.

— Bom, mas tome cuidado — mestre Ortega disse em resposta a outra pessoa. — Não faça besteira nesse acordo com os alquimistas. Se seu contato realmente puder cumprir o que está prometendo, não vamos precisar nos focar tanto nas qualidades físicas dos candidatos. Podemos tornar nossos recrutas tão fortes quanto quisermos.

— Continuo não gostando disso — murmurou outro membro desconhecido do conselho. — Estamos lidando com substâncias profanas.

— Não se as purificarmos antes — mestre Angeletti disse. — E se usarmos a força delas para combater o mal.

Franzi a testa enquanto tentava determinar a que eles poderiam estar se referindo.

— Já vi do que essas substâncias são capazes — Chris comentou. — Eu as vi sendo usadas na escola do meu primo. Se os alquimistas realmente tiverem mais daquilo, estarão desperdiçando se não usarem na luta contra o mal.

— Os alquimistas combatem o mal catalogando-o — outro riu.

— Não faça esse tipo de comentário quando estiver perto do nosso contato — mestre Ortega advertiu. — Ele já está hesitando sobre fazer negócios com a gente. O grupo dele não vai gostar se descobrir.

— Sei o que estou fazendo — retrucou mestre Angeletti. — E, acredite em mim, estou pagando o suficiente para ele não hesitar.

O tema da conversa voltou para os recrutas, analisando cada um de nós segundo o que os guerreiros viam como nossos prós e contras. Ouvi sem prestar atenção, pois minha cabeça estava a mil com a novidade surpreendente que tinha acabado de ouvir. Pelo que Chris havia dito, pareciam se referir ao uso de sangue de vampiro para criar tatuagens anabolizantes em humanos. Uma onda delas havia percorrido a Escola Preparatória Amberwood, aumentando as habilidades esportivas e acadêmicas dos alunos. O problema era que essas tatuagens eram imprevisíveis e, muitas vezes, causavam efeitos colaterais. A quadrilha tinha sido fechada quando ajudei a revelar o responsável, Keith Darnell. Ele então foi mandado para a reeducação e passou a se comportar com uma lealdade quase robótica.

Ou será que não?

Os guerreiros tinham se referido ao contato como “ele”. Não conhecia nenhum outro alquimista que participasse de atividades assim. Seria possível que Keith tivesse se libertado de parte da reprogramação? Será que ele estava fazendo uma negociação secreta com esses psicopatas? Uma negociação que daria força sobre-humana aos guerreiros?

Mais uma vez, ouvi o barulho das teclas, o que me lembrou da importância de investigar o que havia naquele laptop. Considerei algumas opções que possibilitariam dar uma espiada nele, mas logo as rejeitei. Os guerreiros podiam agir como se estivessem na Idade Média, mas era muito provável que mestre Angeletti bloqueasse o laptop com uma senha quando saísse. Provavelmente precisaria de assistência técnica para ver o que havia nele. Além disso, queria mais do que dar uma espiada. Se ele fazia os registros de todas as reuniões, mantinha um controle de ligações e transações importantes... As possibilidades do que aquele laptop poderia conter eram infinitas. Resgatar Jill era minha maior prioridade, mas podia sair dali com informações capazes de revelar muito mais.

Fui até os outros alojamentos e tirei Sabrina e Eddie de lá usando o feitiço de invisibilidade neles. Nenhum dos dois estava dormindo quando os encontrei, e conseguimos achar um lugar isolado atrás de um barracão para conversar.

— Você estava certa — eu disse a Sabrina. — Mestre Angeletti registra as informações num laptop. E ouvi algo que parecia muito uma referência ao cativeiro de Jill.

Eddie se empertigou.

— Então o que estamos esperando? Vamos lá pegar agora.

— Na verdade, era o que tinha em mente — eu disse. — Quer dizer, talvez haja formas mais delicadas de fazer isso, mas será que temos tempo? Já demoramos demais para encontrar Jill. — Me voltei para Sabrina. — Marcus deu a entender que você está preparada para o caso de seu disfarce ser descoberto. É verdade?

Ela arqueou a sobrancelha.

— Você está planejando estragar o disfarce?

— Não se puder evitar — eu disse. — Mas o resultado final disso tudo vai ser um laptop desaparecido, e eu e Eddie abandonando o recrutamento. Se nos ligarem ao roubo, vão ligá-lo a você também. Você pode ter problemas.

— Entendi — ela disse. — Se eu sair desse trabalho com o laptop como prêmio, vai valer a pena.

— Só tenho medo que venham atrás de você — eu disse.

Sabrina não se deixou abalar.

— Não se preocupe comigo. Esses caras não têm tantos contatos quanto os alquimistas e sei como fugir deles. Agora, qual é o plano?

— É bem simples, na verdade — admiti. — Criar uma grande distração e roubar o laptop no meio do caos.

Ela pareceu um pouco desapontada, talvez porque estivesse esperando algo mais elaborado. E, se tivesse tempo de inventar um plano mais sofisticado, eu teria feito. Eddie, por outro lado, não viu problemas na minha ideia. Era simples e direta, como ele gostava.

— Fogo? — ele sugeriu.

— Considerei isso. Mas como esses prédios são tão próximos... — Fiz um gesto para mostrar como tudo fica perto no complexo. — Enfim, não gosto deles, mas não quero matar todo mundo se o incêndio sair do controle. Acreditem ou não, vou usar uma ideia da Alicia. Uma ideia mágica, para ser mais exata.

— Alicia provavelmente botaria fogo no lugar inteiro — ele apontou.

— Sim, mas ela tem métodos menos violentos também. Enquanto estava esperando em Palm Springs, pesquisei alguns feitiços que ela usou contra nós. A maioria era muito avançada, mas acho que consigo fazer o das fotianas.

— Foti... o quê? — Sabrina perguntou.

— Pense nelas como vaga-lumes mutantes — Eddie explicou.

Assenti.

— Acho que um enxame delas seria uma distração boa o bastante para tirar os mestres da reunião. Assim consigo pegar o laptop e podemos fugir durante o caos. Sabrina, você acha que consegue sair e preparar o carro?

— Claro. Os guardas no portão não vão me deter. E se tiver um grande tumulto, posso fingir que estou indo pegar armas no carro e que Eddie está me ajudando. — Ao ver nossos olhares surpresos, ela revirou os olhos. — Ah, vá. Vão me dizer que não imaginavam que todo mundo aqui tinha armas no carro?

A questão passou a ser se eu realmente conseguiria executar o feitiço de Alicia. Tinha decorado as palavras depois de ler sobre ele, mas magia era mais do que memorização. Invocar criaturas sobrenaturais não era uma tarefa fácil, muito menos sem nenhum componente físico para auxiliar. Proferi as palavras, me concentrando no poder dentro de mim, e senti a magia acender em resposta. O feitiço sobre o qual havia lido tinha um elemento de controle, uma forma de a bruxa direcionar as fotianas segundo sua vontade. Meu plano era fazer com que elas dessem voltas regulares pelo complexo, o suficiente para causar uma distração e tirar a atenção de todos sem causar uma destruição completa no complexo.

Infelizmente, as coisas não correram exatamente como eu planejava.

Precisei de muito mais poder e energia do que imaginava para lançar o feitiço e, por mais que conseguisse executá-lo com dificuldade, não pude manter absolutamente nenhum controle. Um enxame de fotianas se materializou à minha frente, pairando ali por um momento antes de se espalhar e voar pelo complexo em alta velocidade e em direções completamente diferentes. Ficamos encarando, boquiabertos.

— Elas eram tão rápidas assim no museu de robôs? — Eddie perguntou, com os olhos arregalados.

— Acho que não — respondi. — Talvez não tenha lançado direito. Também não pretendia invocar tantas.

No entanto, se o que queríamos era caos, conseguimos. As fotianas chamaram a atenção imediatamente, girando e rodopiando pelo complexo, deixando rastros de luz atrás de si. E, assim como no museu, picavam quem tocava nelas. Gritos estridentes surgiram quase na mesma hora, e com eles um berro que não estava esperando.

— Apocalipse! O Apocalipse caiu sobre nós! Guerreiros, peguem as armas!

Sabrina abafou uma exclamação e virei para ela, surpresa.

— Estão falando figurativamente, certo?

Ela balançou a cabeça rapidamente.

— Está brincando? Essas pessoas? É pra isso que estão se preparando. Mas não imaginei que tomariam esse feitiço como um sinal!

— Olha! — Eddie apontou para um grupo de guerreiros correndo na nossa direção. Comecei a entrar em pânico. Como eles tinham ligado as fotianas a nós?

— O barracão — Sabrina explicou, levando-nos para longe dele. — É pra lá que estão indo. Fazem treinos para o Apocalipse e as armas que usam ficam lá.

De fato, uma multidão de guerreiros não prestou atenção em nós enquanto se amontoava em volta do barracão e esperava que fosse destrancado. Assim que isso aconteceu, alguém começou a passar espadas e clavas para o grupo. Depois de armados, correram de volta para o centro do complexo, atacando loucamente as fotianas, que chamavam de “demônios do inferno”.

— Bom — eu disse, precisando gritar para ser ouvida em meio a todo aquele barulho —, eles estão bem distraídos. Vocês podem ir preparando o carro enquanto pego o laptop?

Sabrina concordou, mas Eddie disse:

— Deixa que vou com você.

— É mais fácil entrar e sair sozinha — respondi.

— Sydney...

— Eddie — eu disse, decidida. — Consigo fazer isso. Você precisa confiar em mim. Vai com a Sabrina e se prepara para sair correndo daqui assim que eu atravessar os portões.

Pensei que continuaria insistindo, mas ele cedeu. Os dois partiram rumo ao portão enquanto voltei correndo para a sala de reunião, desviando dos guerreiros armados enlouquecidos e das fotianas no caminho. Felizmente as coisas estavam tão caóticas que ninguém prestou atenção numa recruta solitária. Devem ter achado que estava perdida e confusa. Na verdade, eram grandes as chances de que pensariam que sumimos por medo e nunca ligassem o desaparecimento do laptop a nós ou a Sabrina.

Como esperava, os mestres tinham saído correndo da reunião com o tumulto. Entrei na sala vazia com facilidade e quase pulei de alegria ao ver o laptop abandonado lá. A tela pedia uma senha, como tinha desconfiado, mas esse era um problema para depois. Eu o peguei e segui para a porta — onde quase trombei com mestre Angeletti. Ele ficou perplexo por um momento, olhando de mim para o laptop e depois para mim de novo.

— O que pensa que está fazendo? — ele falou, bloqueando a saída.

E pensar que não queríamos estar envolvidos no roubo do laptop... Demorei um momento para decidir o que fazer. Se meu disfarce havia sido descoberto, já era. Lembrando do treinamento de Wolfe, acertei um soco no mestre Angeletti pelo qual ele obviamente não estava esperando. Tinha me esquecido completamente do feitiço de força que as bruxas colocaram em mim. Com a força extra, ele saiu voando alguns metros e caiu no chão. Gemendo, levou a mão à cabeça mas não veio atrás de mim quando passei correndo por ele e voltei a atravessar o complexo às pressas.

Ninguém me deteve enquanto corria até o portão principal. Os guerreiros estavam ocupados demais brandindo as armas contra as fotianas, gritando sobre a última batalha e sobre mandar os inimigos para o inferno. Os guardas dos portões tinham abandonado seus postos para entrar na briga. Consegui escapar fácil, e fiquei feliz ao encontrar o carro de Sabrina com o motor ligado, pronto para partir. Entrei no banco traseiro tropeçando e ela pisou no acelerador antes mesmo que conseguisse fechar a porta.

— Pegou? — ela perguntou enquanto acelerava para longe.

— Peguei — respondi, prendendo o cinco de segurança. — Mas, hum, não foi tão discretamente quanto pretendia. Acho que você vai ter que seguir aquele plano de ficar longe deles no fim das contas.

Ela riu.

— Sem problemas, ainda mais se esse laptop valer a pena.

Abracei o objeto contra o corpo.

— Vamos torcer. Para onde vamos levar o computador?

— Para Marcus, óbvio.

Marcus ainda estava hospedado na casa de Howie no deserto, e o sol já estava quase nascendo quando chegamos lá horas depois. Minha esperança era que Adrian estivesse lá, mas quando entramos encontramos apenas Marcus no sofá, comendo bolachinhas de café da manhã e folheando uma revista velha.

— Acho que ele está com as suas bruxas — ele explicou, devolvendo meu celular na hora.

Em troca, dei o laptop para ele.

— Conhece alguém que possa desbloqueá-lo?

Marcus sorriu.

— Na verdade, sim. Nosso anfitrião.

Fiquei encarando com cara de idiota por um momento.

— Howie?

— Sim. Acredite ou não, ele trabalhava com computadores antes de “se aposentar” e entrar no mercado de ervas. Vou pedir pra ele agora mesmo. — Marcus desapareceu pela cortina de miçangas.

Na mesma hora, liguei para Adrian, mas caiu na caixa postal. Era difícil saber em que horário ele estava e, se fosse no horário humano, devia estar dormindo. Contendo um bocejo, concluí que dormir não parecia uma má ideia depois da minha aventura noturna. Eddie e Sabrina concordaram. Marcus prometeu que ninguém nos incomodaria enquanto dormíamos na sala. Peguei no sono quase instantaneamente e acordei algumas horas depois, com o som dos sussurros de Eddie e Marcus. Sabrina ainda estava dormindo no pufe.

— Alguma novidade? — perguntei baixinho, caminhando até eles.

— Howie conseguiu logar bem fácil — Marcus disse. — Mestre Angeletti não é muito cuidadoso com a segurança. Passei a última hora lendo alguns arquivos.

— Descobriu onde estão mantendo Jill? — perguntei, ansiosa.

— Sim — Marcus respondeu. — Era o que estava falando para Eddie agora. Está tudo aqui... Quer dizer, quase tudo. Falam dela, mencionam há quanto tempo está presa, têm plantas do lugar onde está. Há detalhes até dos termos que negociaram com Alicia.

— Termos? — perguntei.

— Pelo jeito, fizeram algum tipo de acordo. Alicia queria que ela ficasse mantida por um tempo, provavelmente para ter uma moeda de troca com você, mas os guerreiros queriam que ela fosse usada em algum tipo de ritual bárbaro de execução.

Meu coração parou.

— Exatamente como fizeram com Sonya.

— Parece que sim — Marcus disse, desolado. — Segundo o acordo que fizeram com Alicia, só precisam manter Jill presa por mais três dias.

Meu queixo quase caiu.

— Três dias?

— Precisamos ir pra lá agora! — Eddie disse, com uma expressão perturbada. Estava inclinada a concordar.

Marcus nos lançou um olhar preocupado.

— Esse é o problema. Lembra que falei que temos “quase” todas as informações? A única informação que falta é a localização. Eles se referem ao lugar como “Complexo do Julgamento Final”.

Teria rido se a situação não fosse tão horrível.

— Que nome idiota. Mas isso pode ser suficiente para os alquimistas agirem. Eu mesma vou falar com eles dessa vez e ver se consigo chamar sua atenção.

— Ah — Marcus acrescentou. Havia um sorriso seco em seu rosto que não consegui interpretar direito. — Tenho uma coisa que pode ajudar com isso. Sabia que os guerreiros estão comprando sangue de vampiro encantado de alquimistas corruptos?

Lembrei do que tinha ouvido no complexo.

— Na verdade, sim. Ia perguntar se você conseguiu descobrir alguma coisa sobre isso também. É Keith quem está fazendo isso?

— Não — Marcus respondeu, virando a tela na minha direção. — Aqui está a lista.

— Entendi — disse depois de ler.

— Pois é. Aposto que os alquimistas ficariam interessados nela... e em muitas outras interações entre guerreiros e alquimistas que estão rolando.

Concordei, mas antes de responder meu celular tocou, indicando o número de Adrian na tela.

— Um momento. — Atendi, aliviada. — Adrian, você está bem?

Ele riu do outro lado da linha.

— Sabia que perguntaria isso. Foi você que acabou de entrar disfarçada no esconderijo dos guerreiros, não eu. — Ele se interrompeu. — Já saiu de lá, né?

— Sim, e conseguimos o que precisávamos... mais ou menos. Temos todos os detalhes sobre o lugar onde estão mantendo Jill, só falta a localização geográfica.

Houve uma longa pausa.

— Olha só que coisa — ele disse. — Foi a única coisa que consegui tirar de Alicia. Fica em St. George. Mas não conseguimos nenhuma outra informação dela sobre o lugar, não sem usar, hum, mais força. Ela insinuou que poderia haver alguns obstáculos lá.

— St. George — repeti. Quase caí no chão de tanto alívio. — É isso então. A última peça do quebra-cabeça. Temos o resto: a planta do lugar, tudo sobre os obstáculos a que ela se referiu. Agora só falta mobilizar todo mundo. O problema é que só temos três dias pra isso.

— Por que três dias?

— Porque o plano deles é sacrificar Jill daqui a três dias, assim como planejavam fazer com Sonya. Foi o trato que fizeram com Alicia.

Outra pausa silenciosa, mas percebi a mudança na voz de Adrian quando falou:

— Três dias. — Sabia como devia ser difícil para ele. A ideia dela presa, sendo torturada, me angustiava, mas nossa amizade não era nem de perto tão forte quanto a deles.

— Vamos resgatar Jill — eu disse. — Não se preocupe. Agora que sabemos tudo isso, vou dar um jeito de fazer os alquimistas ajudarem. Entre em contato com os guardiões, vê se Rose e Dimitri conseguem organizar isso. E aproveita pra saber como Declan está...

— Já sei — ele interrompeu. — Como Declan está, quero dizer. Acho que estou deixando minha mãe maluca de tanto que ligo pra ela. Estão bem. Mas, Sydney... contei para Neil.

Minha mente estava agitada com os planos para resgatar Jill, mas essa notícia me paralisou.

— Sobre Declan? O que ele disse?

— Está com medo de ficar perto de Declan. Quer dizer, não com medo do Declan em si, mas de que alguém descubra a verdade sobre a origem dele.

— Mas ele é o pai — eu disse, incomodada. — Precisa ficar com ele.

Adrian suspirou.

— Foi o que eu disse pra ele! Mas Neil argumenta que algum usuário de espírito poderia ver que eles são parentes ou mesmo que um leigo notaria a semelhança física e começaria a fazer perguntas. Ele diz que não pode demonstrar nenhum sinal de que têm um parentesco para ninguém resolver fazer um teste genético... e insiste que para isso precisa manter distância do bebê. Se ofereceu para fazer o possível para ajudar Declan em outros sentidos. Acho que ele roubaria um banco se precisasse.

Minha cabeça estava a mil.

— A gente convence Neil a mudar de ideia. Ele deve estar em choque só. Quando ouvir a voz da razão, vai entender.

Desligamos e torci para estar certa. Partia meu coração que Neil quisesse fazer um sacrifício desses, mesmo se, racionalmente, conseguisse entender o que o levava a pensar dessa forma. Mas mesmo assim. Como poderia privar Declan de um pai sendo que o bebê já tinha perdido a mãe? E o que seria de Declan?

Essas perguntas inquietantes tinham que ficar para depois. Por enquanto, precisava organizar as coisas com os alquimistas. Pedi para Eddie me levar ao outro lado de Palm Springs, até um telefone público num posto de gasolina afastado. Rastrear celulares não era fácil, mas não estava além da capacidade dos alquimistas, e não queria correr nenhum risco. Segurei o aparelho e me preparei para discar um número para o qual não ligava havia muito tempo, mas ainda sabia de cor. Só torci para que ela atendesse.

— Stanton falando — veio a voz conhecida.

— Oi, Stanton. Aqui é Sydney Ivashkov.

Ela ficou em silêncio, talvez pela surpresa ou para iniciar um rastreamento da ligação. Possivelmente os dois.

— Oi, Sydney — ela disse, finalmente. — Que surpresa agradável! Não posso dizer que estava esperando essa ligação.

— O prazer é todo seu e não vou repetir nada do que falar, então preste atenção. Os Moroi precisam de reforços alquimistas para resgatar Jill Dragomir dos Guerreiros da Luz. Imagino que já tenha ficado sabendo disso pela rainha Vasilisa.

— Sim — respondeu. — E imagino que tenha ficado sabendo que nossos superiores decidiram não participar, visto que as evidências de que os guerreiros levaram a menina são apenas circunstanciais.

— Bom, agora temos provas, então você vai dar um jeito de fazer com que participem — eu disse. — Se fizer isso, vou dar os nomes de quatro alquimistas que estão vendendo sangue Moroi encantado para os guerreiros fazerem mais tatuagens anabolizantes. Aliás, vou te dar dois desses nomes agora: Edward Hill e Callie DiMaggio. Investigue esses dois. Você tem uma hora. Vou te ligar de novo, de outro número, por isso não adianta rastrear este aqui. Aí você vai me contar como vão mandar reforços para ajudar no resgate de Jill em St. George, Utah, dentro das próximas vinte e quatro horas. Se ela for resgatada com segurança, te dou os outros nomes. Até mais.

Desliguei e Eddie me encarou admirado.

— Isso foi incrível! Mas acha que vai funcionar de verdade?

Eu o segui de volta ao carro, torcendo para que a aposta valesse a pena. Dirigimos para outra parte da cidade até um restaurante chamado Tortas e Tal, que Adrian e eu costumávamos frequentar. Ficamos esperando ali, perdidos em nossos pensamentos, sem falar muito enquanto comíamos torta. Sabia que Eddie estava aflito pelo prazo curto que tínhamos para salvar Jill. Eu também estava. E me preocupava com Declan e Neil. Adoraria ir até a casa de Clarence para ver o bebê, mas enquanto os alquimistas continuassem vigiando o lugar, não poderia correr esse risco.

Quando o prazo de uma hora acabou, comprei uma lembrancinha para Adrian, pelos velhos tempos, e me preparei para ligar para Stanton novamente. Parte do motivo por que tinha escolhido o Tortas e Tal era que havia um telefone público no estacionamento.

— O que decidiram? — perguntei quando Stanton atendeu.

— Vamos ajudar — ela disse, contrariada. — Sua história sobre aqueles dois confere. Um grupo nosso está a caminho de St. George agora mesmo.

— Nossa — deixei escapar, impressionada. — Vocês agem rápido. Sabem aonde ir em St. George?

— Sabemos sobre um campo dos guerreiros lá. Vamos fazer um reconhecimento e descobrir se é neste que ela está.

— Tenho todas as informações sobre o lugar. Posso pedir para enviarem pra você — disse a ela. — Os guardiões...

— Também estão a caminho — ela completou. — Entramos em contato com eles e vamos coordenar nossos esforços para atacar juntos. Imagino que tudo vá acontecer ao longo das próximas vinte e quatro horas. Suponho que seja bom o bastante para você.

— É bom o bastante para você conseguir os outros dois nomes — respondi. Era difícil manter a frieza, considerando o alívio que senti ao ouvir que estavam sendo tomadas medidas para o resgate de Jill. O fato de que isso finalmente estava acontecendo, e tão rápido, me deixava eufórica. — Mas se quiser o resto das informações que tenho, precisa trabalhar por elas.

Houve uma longa pausa. Então Stanton perguntou:

— Que informações seriam essas exatamente?

— Tenho provas de outras interações entre guerreiros e alquimistas, negociações que você não deve saber. Negociações que espero que você não saiba. — Stanton era uma defensora das regras, mas queria acreditar que era uma das melhores alquimistas. — Vou dar todas essas informações também. E vou garantir que os Moroi não fiquem sabendo disso tudo. Vocês os obrigam a depositar uma confiança enorme na ajuda de vocês, mas tenho a impressão de que não colaborariam tanto se soubessem que há alquimistas trabalhando com o inimigo.

— O que você quer? — foi tudo que ela perguntou. Isso significou várias coisas, mas sobretudo que ela tinha consciência de que era possível haver traidores entre eles.

— Anistia para todos que libertamos da reeducação. E um fim a essa prática.

Ela respirou fundo.

— Impossível.

— De que adianta a reeducação, Stanton? — perguntei. — Não funciona em metade dos casos. Tinha gente lá havia séculos. E, mesmo quando parece que funciona, nunca mais vão confiar naquelas pessoas. É o caso de Keith. Ele está sempre sob vigilância. Se quiserem ajudar a proteger humanos do mal, do verdadeiro mal, que são os Strigoi, devem usar melhor seus recursos.

— Podemos discutir isso depois que resgatarmos Jill Dragomir — ela disse, inflexível.

— Não. Vamos discutir isso agora. Anistia para todos, incluindo eu e Adrian. Quando isso acabar, quero circular com ele por onde bem entender e levar uma vida normal. Não quero alquimistas passando de carro ou me vigiando em restaurantes. Quero ser deixada em paz para seguir meus próprios interesses. Em troca, vou dar uma cópia do que encontrei num laptop do mestre Angeletti dos guerreiros. E prometo que não vou fornecer essas informações aos Moroi, a menos que violem os termos do trato.

Ao erguer os olhos, vi Eddie examinando os cartazes na porta do Tortas e Tal, e fiquei contente por ele não estar me ouvindo. Provavelmente não gostaria da ideia de que eu esconderia algo que pudesse interessar seu povo, mas eu estava negociando a minha vida e a de outros ex-alquimistas. Não podia escolher entre alquimistas e Moroi. Precisava cuidar dos que tinham sido apanhados no meio de suas negociações.

— Vou ser sincera com você — Stanton disse, por fim. — Temos muitas dúvidas sobre a utilidade da reeducação, se realmente é o que queremos. Mas não posso aceitar esse trato sozinha. Você sabe disso. Preciso levar os termos para os demais. O que posso prometer a você é anistia pelo resto dessa campanha em St. George. Se quiser participar, tem a minha palavra de que não precisa ter medo dos alquimistas. Depois, informarei o que os outros têm a dizer sobre o resto.

Algo na voz de Stanton e o que conhecia do caráter dela me levaram a acreditar.

— Certo — eu disse. Tentei manter a voz altiva, como se estivesse fazendo um grande favor a ela por aceitar essa concessão. No fundo, estava ansiosa para botar o plano em prática.

Era hora de trazer Jill de volta para casa.


18

Adrian

— Só olha pra ele — insisti. — Por favor.

— Não — disse Neil, desviando os olhos da tela de celular que eu mostrava. — Se eu olhar... — Sua voz embargou e ele não conseguiu terminar.

Ainda estávamos na casa de Maude, esperando a próxima fase da operação, e eu tentava convencê-lo a desistir da ideia maluca de que precisava evitar Declan.

— Escuta — eu disse —, ninguém vai desconfiar se você criar esse bebê. Todo mundo sabe que você amava Olive. Vão achar que está ajudando por causa disso, e não porque graças a um efeito colateral maluco do espírito vocês mudaram o mundo que a gente conhece.

Neil balançou a cabeça.

— Pouquíssimas pessoas sabem que Olive teve um filho. Isso é bom. Precisamos deixar as coisas assim e me manter longe disso.

Era a centésima vez que tínhamos essa conversa e isso já estava me deixando maluco. Se Neil quisesse ficar longe de Declan porque, sei lá, não gostava de crianças ou tinha medo de virar pai, eu entenderia melhor. Mas era óbvio que Neil queria desesperadamente ver Declan e participar da vida dele. Dava para ouvir esse desejo na voz dele.

— A gente encontra um jeito — eu disse. — Juro.

Havia uma expressão perturbada no rosto de Neil.

— Declan é um milagre — ele murmurou. — Precisa ser protegido e levar uma vida normal. Uma vida normal e feliz.

— É o que também quero — eu disse, exausto. — Acredite em mim.

Estávamos sentados na varanda dos fundos, aproveitando o calor da tarde, quando ouvimos a voz de Maude:

— Adrian? Tem visita pra vocês.

Entrei como um raio, com o coração acelerado e Neil atrás de mim. De fato era Sydney, parada na sala com sua aparência normal. Eu a abracei, girando-a tanto no ar que ela riu e me mandou botá-la no chão antes que ficasse tonta. Pus as mãos em seu rosto.

— Você está bem — eu disse, contente.

Ela me deu um soquinho de brincadeira.

— Você sabia que sim.

— Um telefonema é diferente de te ver pessoalmente — eu disse. Dei um beijo na sua testa. — Quer dizer, sabia que você era competente, corajosa e incrível, mas, enfim... não é fácil saber que sua mulher está arriscando a vida com um bando de maníacos vampirofóbicos. — Enfiei a mão no bolso. — Ah, e não esqueça isso. — Fiquei de joelhos e coloquei em seu dedo as alianças de diamante e rubi que estava guardando para ela. — Como prometido. Quer dizer, tirando a parte sem roupa. Mas a gente pode cuidar disso depois.

Fiquei esperando um “Adrian” em tom de repreensão, mas ela sorriu, cheia de amor e felicidade. Pegou minhas mãos e me ajudou a levantar, parecendo prestes a me dar um beijo, até lembrar que havia pessoas em volta. Sem graça, deu um passo para trás e cruzou os braços, tentando parecer profissional. Eddie e Marcus pareciam se divertir com aquilo tudo. Neil parecia intrigado, olhando estranhamente de mim para Sydney.

— Hora de voltar para o trabalho — ela disse.

— Agora sim — Eddie disse, ansioso. — Vamos resgatar Jill.

— Qual é o plano? — perguntei. Depois que ligara para Rose e Dimitri para contar as informações sobre Jill e os alquimistas, tinha perdido a noção do que estava acontecendo. Só sabia que Sydney tinha ajudado a elaborar a estratégia.

— Os alquimistas confirmaram que o lugar que conheciam em St. George é o mesmo que está nos registros do laptop. Agora eles e os guardiões estão analisando todas as plantas para tomar cuidado e elaborar um bom plano — Sydney explicou.

Fiquei contente com isso. Alicia estava convencida de que não estaríamos preparados para ir atrás de Jill, mas não contava com as habilidades investigativas de Sydney. Estava orgulhoso de mim mesmo por conseguir não usar todo o espírito. Na verdade, vinha tomando muito cuidado com ele nos últimos dias, e tia Tatiana havia permanecido incrivelmente quieta.

— Também conseguimos anistia por enquanto, então podemos ir com eles livremente para St. George — Sydney disse, apontando para mim com a cabeça. — Não que a gente possa fazer muita coisa durante a ação, mas pelo menos poderemos monitorar as coisas e estar presente quando Jill for solta. Neil, Eddie e os outros vão participar do resgate propriamente dito.

— Mal vejo a hora — Neil disse, com um tom perigoso na voz. A expressão acalorada de Eddie falava por ele.

— Vamos receber mais detalhes quando chegarmos a St. George — Sydney continuou. — Podemos pegar a estrada assim que todo mundo estiver pronto. É um trajeto de umas seis horas e imagino que a gente chegará lá mais ou menos na hora em que o ataque está programado para acontecer.

— Estou pronto pra ir — Neil disse.

— Eu também — concordei. — Só me dê dois minutos pra pegar minhas coisas.

Sydney veio comigo até o quarto de hóspedes de Maude e ficou observando enquanto enfiava minhas poucas roupas e meu laptop na sacola de lona que vinha carregando de um lado para o outro naquela aventura.

— Rose me ligou — ela disse, fechando a porta. — Ela e Dimitri queriam saber se poderiam ir a St. George e deixar sua mãe e Declan na casa do Clarence. Falei que sim. Espero que não tenha problema.

Parei, sobressaltado por um momento, depois assenti devagar.

— É, acho que tudo bem. Os alquimistas vão parar de vigiar nossos pontos de encontro agora que sabem para onde você está indo. E, na verdade, se ninguém estiver procurando por Declan...

— Foi o que pensei também — Sydney concordou. — Mas deu pra ver que Rose estava morrendo de curiosidade para saber o motivo de tanto sigilo em torno dele.

Coloquei a sacola no ombro e pus o braço livre em volta de Sidney, notando que ela também estava com uma sacolinha no braço.

— Acho que precisamos contar pra eles quando isso acabar. E quando resolvermos as coisas com Neil. São confiáveis e têm o direito de saber. Você sabe o que isso significa pra eles.

— Sim. Além disso, seja lá o que decidirmos fazer para ajudar Declan e Neil... Bom, acho que vamos precisar de ajuda. Eles são bons aliados. Você conseguiu fazer Neil mudar de ideia?

— Não — respondi, exasperado. — Ele continua cheio de palavras bonitas, dizendo que é o melhor para Declan.

— A gente vai conseguir convencê-lo — ela disse. — Quando tudo isso acabar e Jill estiver de volta.

— Quando Jill estiver de volta — concordei. As comportas que seguravam todas as emoções que sentia em relação a Jill estavam ameaçando explodir. — Meu Deus, não acredito que estamos tão perto. Faz tanto tempo que estou preocupado com ela.

Sydney apertou minha mão.

— Eu sei, eu sei. E a gente está quase lá.

— Queria acabar com Alicia — admiti. — Por causa do que ela fez. Queria pulverizar aquela mulher com o espírito.

— Você não fez isso, fez? — Sydney perguntou, arregalando os olhos.

Suspirei.

— Não. Queria ter feito, mas não. Me contive. Só usei o espírito necessário. E estou mantendo o controle desde então.

O sorriso que Sydney abriu aqueceu meu coração.

— Estou muito orgulhosa de você, Adrian. Sei que não deve ser fácil.

— Não é — admiti. — Mas estou me esforçando. E acho que consigo... acho que consigo me controlar. Não preciso dos remédios. Posso simplesmente controlar o uso do espírito.

Seu sorriso vacilou, como se fosse discordar, mas então me surpreendeu dizendo:

— Vou apoiar e estar ao seu lado no que você decidir, para o resto das nossas vidas. — Ela me entregou a sacola que carregava. — Trouxe um presente pra você. Quer dizer, é meio que pra nós dois.

Abri e encontrei uma caneca do Tortas e Tal.

— Ah, cara, não acredito que você foi lá sem mim — brinquei.

— Ela é nossa — ela disse. — A primeira coisa para colocarmos na nossa casa nova juntos. Estou negociando com Stanton para comprar nossa liberdade. Quando tudo isso acabar, vamos ter uma vida juntos, Adrian. Uma vida de verdade.

Meu amor por ela era gigantesco. Deixei as sacolas no chão e a tomei nos braços. Aquela caneca boba ganhou de repente uma importância enorme e, ao encarar Sydney, aquele rosto que tanto amava, pude imaginar o futuro que descreveu, um futuro juntos em que poderíamos fazer qualquer coisa. Voltar para os remédios parecia um preço pequeno a pagar por isso. Não precisava do espírito se tinha Sydney.

Eu a encostei contra a porta e dei um beijo nela, permitindo-me esquecer por um momento de tudo que nos esperava fora daquele quarto. Naquele instante, só havia nós dois e aquele momento perfeito juntos.

— Você me faz acreditar que tudo é possível — murmurei.

— Já falei antes: nós somos o centro — ela disse. — E o centro vai aguentar.

Dei outro beijo nela, mais intenso, e foi com grande relutância que finalmente nos soltamos.

— Quero muito uma casa de verdade — eu disse, acariciando o cabelo que caía em seu rosto —, mas, antes disso, a gente pode por favor ter uma lua de mel de verdade?

— Eu adoraria — ela murmurou, beijando-me mais uma vez. — Assim que resgatarmos Jill, tudo vai mudar.

Eu a abracei forte.

— Então, pelo amor de Deus, vamos buscar Jill.

Nós quatro pegamos a estrada para St. George, virando a noite dirigindo para chegar a tempo. Tentamos revezar no volante para que todos conseguissem descansar, mas era difícil. Sinceramente, a essa altura achava que relógio biológico e “horas do dia” não passavam de invenções alheias à minha vida. Estava feliz por ter Sydney ao meu lado novamente, e ficamos contando um para o outro o que acontecera durante nosso tempo separados. Ela não quis explicar que acordo estava tentando fazer com Stanton, mas falou com confiança sobre o futuro que tanto queríamos.

Fomos rápidos, chegando ao centro de comando improvisado dos alquimistas e guardiões pouco antes do nascer do sol. E, por mais que odiasse admitir, os alquimistas se provaram úteis. Em menos de um dia, tinham encontrado um prédio comercial disponível e o enchido de alquimistas e computadores. Tinham informações de câmeras e satélites sobre o complexo dos guerreiros, além de batedores posicionados no local, nos mantendo atualizados sobre a situação e as medidas de segurança dos guerreiros.

Um homem bruto chamado McLean estava no comando dos alquimistas. Ele e Dimitri, que tinha chegado algumas horas antes, estavam trabalhando juntos na organização do ataque, surpreendentemente bem. Todos nos prometeram que seria um resgate relativamente simples. Nossas forças eram maiores do que as dos guerreiros. Se nosso ataque inicial fosse forte e inesperado, não haveria motivo para fracassar. Eu e Sydney trocamos olhares apreensivos, sabendo que as coisas dificilmente eram tão simples quanto pareciam, mas tentamos manter o otimismo. Queríamos que fosse simples. Precisávamos que fosse simples. Nos despedimos de Dimitri, Rose, Eddie e Neil animados, que nos deixaram sem nada para fazer além de esperar as novidades.

Era estranho não ir junto. Tinha passado tanto tempo me preocupando com Jill sem poder fazer nada, preso na Corte. Depois, quando conseguimos a pista sobre Alicia, ficara para trás no início para acobertar Sydney. Agora que finalmente sabíamos onde Jill estava, estava ficando para trás de novo. Era enlouquecedor. Desde que trouxera Jill de volta da tentativa de assassinato, tinha a impressão de que sua vida dependia de mim. Por mais que soubesse que um complexo cheio de fanáticos armados seria mais bem invadido por guardiões e alquimistas treinados, não conseguia deixar de lado a sensação de que devia ir junto.

— Vai dar tudo certo — Sydney disse com doçura, apoiando a mão no meu braço. — Também estou me sentindo inútil, mas eles são especialistas. E, depois que a tirarem de lá, vamos ser uns dos primeiros a vê-la.

— Eu sei — respondi. Coloquei o braço em volta dela. — Paciência não é uma das minhas melhores virtudes.

Enquanto falava, o olhar de Sydney se fixou em algo atrás de mim e me virei para observar. Era o pai dela e Zoe entrando no centro de comando. Também ficaram parados por um momento, e então, Zoe deu alguns passos à frente, abrindo um sorriso, até um grito súbito do seu pai a fazer parar.

— Zoe! — ele vociferou.

— Minha própria irmã não pode me ver, pai? — Sydney perguntou. — Está com medo que eu corrompa Zoe?

Ele ficou vermelho.

— Fiquei sabendo que fez algum tipo de acordo com Stanton. Não teria acontecido se eu estivesse no comando.

— Como você está, Zoe? — Sydney perguntou, voltando a atenção para a Sage mais nova. — Tudo bem?

Zoe encarou o pai insegura e depois assentiu de leve.

— Estou. E você?

— Vem comigo — ordenou o pai delas. — Vamos ver como está o progresso da operação.

Zoe lançou um último olhar para Sydney e depois, relutante, seguiu Jared Sage para onde os alquimistas estavam monitorando a equipe que invadia o complexo dos guerreiros. Sydney se separou de mim e foi atrás deles.

— Também quero atualizações — ela disse. Mas, quando chegou ao grupo amontoado em volta das pessoas responsáveis pela comunicação, Sydney esperou até o pai se distrair e então tocou a manga da blusa de Zoe e a puxou de leve na nossa direção. — Não tive tempo de agradecer por não me denunciar lá nos Ozark — Sydney disse baixinho.

Zoe balançou a cabeça mas manteve o olhar preocupado fixo no pai.

— Era o mínimo que podia fazer. Sydney, se tivesse alguma ideia do que você passaria lá, nunca a teria denunciado. Achei que iriam te ajudar. Juro. — Lágrimas surgiram em seus olhos.

— Como você ficou sabendo do que aconteceu? — perguntei. Pelo que sabia, os detalhes do que os detentos sofriam na reeducação eram confidenciais.

Zoe não respondeu de imediato e, pela forma constrangida como me encarou, ficou claro que ainda não aceitava muito bem a ideia de ter um cunhado vampiro.

— Carly me contou — ela disse por fim. — Ficou sabendo por um cara que ajudou você. Acho que estão namorando agora.

Eu e Sydney trocamos olhares surpresos.

— Marcus? — perguntamos em uníssono.

— Sim — Zoe respondeu. — Acho que é esse o nome dele.

— Que espertinho — murmurei. Quando Marcus e Carly se conheceram, ele se mostrou claramente interessado pela irmã mais velha de Sydney, mas não fazia ideia de que tinha ido atrás dela.

— Que bom que está conversando com Carly — Sydney disse. — Tem falado com a mamãe também?

— Não — Zoe respondeu. — Queria, mas o papai não deixa. E ele tomou o cuidado de deixar os termos do divórcio bem definitivos.

Eu e Sydney notamos a tristeza na voz da irmã.

— Você quer sair? — Sydney perguntou, ansiosa. — Quer ficar livre deles?

— Ainda não — respondeu Zoe. Ao ver o olhar cético de Sydney, ela continuou: — Não, estou falando sério. Não é por medo. Ainda acredito na causa, mas nem sempre estou contente com os métodos. Isso não significa que quero desistir. Quero continuar aprendendo e trabalhando com eles... e depois, quem sabe? — Seu rosto ficou mais triste. — Mas seria bom ver a mamãe de novo.

— Zoe! — Jared vociferou. Ele tinha acabado de notar que ela estava conversando com a gente. — Venha aqui e...

— Estou recebendo um relatório — exclamou uma alquimista sentada ao lado de um guardião com quem dividia a função de monitoramento. Os dois estavam usando fones, com laptops diante de si, e ele assentiu. — As duas equipes entraram, mas parece que existem minas no terreno.

Sydney apertou minha mão e um silêncio terrível caiu à nossa volta enquanto esperávamos mais informações. Lembrei de Alicia zombando que nunca conseguiríamos chegar até Jill.

— Conseguiram passar pelas minas — disse o guardião muitos minutos depois. Todos respiraram aliviados, mas logo voltamos a ficar tensos. — Estão enfrentando combatentes inimigos agora.

Mesmo com o som abafado pelos fones, dava para ouvir o crepitar das mensagens urgentes daqueles que invadiam o complexo, além do que parecia o som de disparos. Sydney voltou a encostar em mim, com a mão pousada no colar com a cruz de madeira que eu havia pintado para ela tempos antes. Os minutos pareciam horas e eu não parava de pensar: Deveria estar lá, deveria estar lá.

Por quê?, escarneceu tia Tatiana. De que adiantaria você sem o espírito? Sua esposa não deixaria você usar, lembra?

Um sorriso apareceu de repente no rosto do guardião enquanto ele ouvia a última mensagem.

— Eles entraram. Os andares superiores do complexo foram dominados. Todos os combatentes foram detidos. — Ele parou enquanto recebiam mais informações. — Nenhuma morte do nosso lado. — Em um surpreendente momento de solidariedade, ele e a alquimista bateram as mãos em comemoração. Mas não conseguia compartilhar da mesma alegria, não por enquanto.

— Estão com Jill? — perguntei. — Já estão com a princesa?

O guardião balançou a cabeça.

— Estão indo atrás dela agora. Ela está sendo mantida no porão. Fizeram uma medição de calor e parece que só tem uma pessoa lá. Tudo aponta que é uma Moroi da estatura dela.

Puxei Sydney para perto num abraço esmagador, afundando o rosto no cabelo dela.

— Acabou. Finalmente acabou. — Não chorava fácil, mas senti as lágrimas surgindo nos olhos ao pensar que logo teria Jill de novo com a gente.

— Eu... Sim. O que foi?

Virei para a alquimista com fones de ouvido e me dei conta que ela estava falando com uma pessoa do outro lado, não com a gente. Sua testa se franziu e ela ergueu os olhos para nós.

— Sra. Ivashkov, querem falar com a senhora.

Pelo canto do olho, notei a careta que o pai de Sydney fez ao ouvir o sobrenome.

— Comigo? — Sydney perguntou, pegando os fones de ouvido. Ela os colocou e sentou na cadeira, entrando numa conversa da qual só conseguíamos ouvir metade. — Como assim? Entendi... Tem alguma marcação? Algum objeto? Certo... Não, você pode estar certo. Só espere... Estou indo. Sim.

Ela levantou e tirou os fones.

— O que está acontecendo? — perguntei.

— Era Eddie — ela respondeu. — Estava com o grupo prestes a invadir o porão, mas aí, no último minuto, fez todo mundo parar.

— Por quê? — Zoe perguntou.

Sydney me encarou.

— Ele disse que sentiu o cheiro da casa da sra. Terwilliger.

Por um minuto, pensei que estava sugerindo que Jackie estava lá, e só então entendi a conclusão a que ele chegara.

— Você acha que tem algum tipo de magia lá embaixo?

— Foi Alicia que capturou Jill para eles — Sydney apontou. — É possível que tenha deixado alguma armadilha montada. Isso também explicaria por que não tem nenhum guerreiro protegendo o andar.

— Provavelmente porque todos subiram correndo para lutar no primeiro ataque — disse o pai dela.

As palavras de Alicia voltaram à minha mente: “Mas nunca vão chegar até ela! Nunca vão conseguir chegar até onde ela está!”. Uma sensação de pavor revirou meu estômago.

— Não, tem alguma coisa lá.

— Suspenderam a ação até eu chegar para investigar — Sydney disse. Ela me encarou. — Você vem comigo?

Não precisava nem ter perguntado, e nós dois sabíamos disso. Um guardião nos levou até o local, que ficava nos arredores da cidade. Não era nenhuma surpresa, já que fanáticos costumavam construir fortalezas longe de áreas civilizadas cheias de pessoas que poderiam chamar a polícia. A paisagem desértica dominava, mas de um jeito diferente de Palm Springs. As rochas e a terra eram de um vermelho que ficava impressionante sob o poente, e havia pequenos trechos de vegetação rasteira. O complexo em si era um vasto prédio térreo cercado por arame farpado. Os alquimistas e guardiões patrulhavam a área de ponta a ponta, e pude ver onde haviam cercado e prendido os guerreiros inimigos. Dimitri nos recebeu quando saímos do carro.

— Por aqui — ele disse, apontando adiante. — Acreditamos que ainda existam minas na área. Vamos levar vocês por um caminho seguro.

Nós o seguimos pelo terreno rochoso, passando pelos prisioneiros que nos encaravam. O prédio em si era tão austero quanto um quartel militar e, pelo que pude observar, não tinha servido a nenhum propósito além de ponto de encontro para discutir planos malucos contra vampiros e manter os prisioneiros. Senti calafrios só de encará-lo.

Uma escada no centro do prédio levava para um andar subterrâneo, onde Eddie, Neil e Rose nos esperavam. Eu e Sydney descemos a escada até um longo corredor de cimento que se estendia na escuridão. Dava para ver algumas portas, mas não fazia ideia do que havia atrás delas. Ao meu lado, Sydney franziu a testa.

— Lembra uma versão primitiva da reeducação — ela murmurou, sentindo calafrios.

Ao lembrar de quando ajudei a resgatá-la, pude entender o que queria dizer. O centro alquimista também tinha vastos corredores com portas misteriosas, mas lá o clima era quase hospitalar: um lugar todo esterilizado, com uma forte iluminação fluorescente. O lugar onde estávamos, por sua vez, parecia mais uma masmorra medieval no meio do deserto de Utah. Passei mal só de pensar que Jill estava lá.

— Achamos que Jill está logo ali — Rose disse. — Foi o que o equipamento alquimista detectou. Quero entrar e buscá-la, mas Eddie... — Ficou claro que ela não sentia os mesmos medos que ele.

Ele pareceu um pouco envergonhado, mas defendeu sua opinião.

— Simplesmente não consigo deixar de lado a sensação de que tem alguma coisa errada aqui. Por que ninguém está vigiando a prisioneira mais valiosa deles? E estão sentindo esse cheiro?

Sydney assentiu e precisei concordar.

— Cheira um pouco como a casa de Jackie aqui — comentei.

— Alguém acendeu incenso aqui dentro — Sydney disse. — Mas não é algo que a sra. Terwilliger usaria. Vetiver. Lótus negra. — Ela franziu a testa e observou ao redor. — Lá tem algumas cinzas. Foi queimado ali.

Fiz menção de investigar, mas ela me deteve.

— Espera — ela disse. Ergueu a mão e proferiu palavras numa língua que eu desconhecia. Depois de alguns segundos, símbolos luminosos surgiram no teto acima de onde as cinzas estavam. Sydney os examinou com atenção até eles se apagarem e soltou um suspiro conturbado. — Droga.

Quase nunca a ouvia praguejar, e não achava que isso era um bom sinal.

— Que foi? — perguntei.

— Tem um demônio aqui — ela respondeu num tom casual. — Parece que Alicia invocou um para ficar de guarda.

— Tecnicamente Pulinho é um demônio — comentei.

O rosto dela estava apreensivo.

— Não acho que seja desse tipo. É um senicus. — Ao ver nossos olhares pasmos, continuou: — Já ouviram falar da hidra da mitologia grega? É tipo isso. Mais ou menos. Serpentino, muitas cabeças. E as cabeças cospem ácido fervente.

Estudara mitologia grega no ensino médio e até tinha prestado atenção nessa aula.

— As cabeças crescem de volta também? — perguntei.

— Não se forem destruídas com fogo — ela disse.

— A gente precisa de um lança-chamas? — Neil perguntou.

Sydney ergueu a mão e uma bola de fogo surgiu.

— Não.

Os olhos de Rose se arregalaram, fascinados.

— Nossa. Espadas machucam essa criatura?

— Não — Sydney respondeu. — Ela tem um couro mágico que serve de proteção. Sou a única realmente capaz de destruir essa coisa. O que vocês precisam fazer é tirar Jill daqui enquanto distraio o demônio. Alguém precisa passar por ele enquanto estiver ocupado comigo. Como fogo é o único jeito de destruir a criatura, não quero Jill presa aqui se tudo desmoronar.

Mais uma vez me senti inútil. Sydney podia ser uma profissional com bolas de fogo, mas isso não significava que queria que ela enfrentasse o demônio-hidra sozinha.

— O que faço?

— Nada — ela respondeu. — Sai daqui.

Ela acha você um incompetente!, tia Tatiana exclamou. Acha que você vai atrapalhar.

— Sydney, me deixa ajudar — insisti.

Sydney sequer estava olhando para mim enquanto examinava o corredor, provavelmente medindo o alcance das bolas de fogo e quão inflamável o lugar era.

— Adrian, não tem nada que você possa fazer aqui. Fique seguro, Jill pode precisar da sua ajuda quando sair.

Ouviu isso?, tia Tatiana perguntou. Ela acha que você não é capaz de nada!

Comecei a perder a calma e quase concordei com tia Tatiana, até parar um pouco para repetir mentalmente o que Sydney havia dito. Não, ela tem razão, disse à fantasma na minha cabeça. Se Jill estiver ferida, preciso poupar meu poder. Não podemos repetir o que aconteceu com Olive.

Tia Tatiana discordou: Você não precisa poupar nada! Você consegue fazer tudo!

Tentando calar a voz interna, dei um beijo em Sydney e um abraço rápido.

— Toma cuidado — murmurei. — E se precisar de mim, vou estar por perto.

— Não perto demais — ela avisou. — Essa coisa cospe ácido. Não quero que se machuque.

— Entendido — respondi, antes que tia Tatiana pudesse reclamar que Sydney estava sendo superprotetora.

Escolhi um lugar na escadaria que me dava uma rápida rota de fuga se precisasse, mas também uma boa visão de onde tudo aconteceria. Não tinha discutido com Sydney, mas a saúde de Jill não era a única coisa com que estava preocupado. Além de Sydney, os dampiros estavam se arriscando. Queria estar por perto caso algum deles se machucasse. Depois de uma discussão acalorada, os três definiram um plano. Eddie e Neil esperariam comigo como reforço enquanto Rose entraria sozinha para resgatar Jill. Os dois também queriam ir, mas ela argumentou que era menor e mais rápida. Também alegou que o lugar era apertado demais para que todos, contando com Jill, passassem pelo demônio na volta. Ficou difícil desbancar os argumentos dela, e Sydney concordou que, com bolas de fogo voando, seria melhor ter menos gente com quem se preocupar.

Assim, relutantes, Eddie e Neil vieram esperar comigo, enquanto Rose se posicionou logo atrás de Sydney.

— Hora de invocar a criatura — Sydney disse, nervosa. — Ela apareceria por si só se eu atravessasse esse caminho, mas prefiro trazê-la nos meus próprios termos. — Ela ergueu as mãos e declamou um feitiço que, novamente, fez as marcas no teto brilharem. Dessa vez, porém, o demônio se materializou na frente delas.

Então entendi por que uma hidra era a comparação mais próxima que Sydney tinha achado. Da cintura para baixo, o demônio caminhava em duas pernas como nós, apesar da pele escamosa e das garras nos pés. Da cintura para cima, tinha vários tentáculos sinuosos se estendendo do torso, além de cinco pescoços com cabeças de serpente. Todas chiavam e encaravam Sydney. O medo se agitou na minha barriga ao ver o demônio, e quase senti falta do tempo em que os únicos monstros que conhecia eram os Strigoi. Apesar do terror que aquela coisa inspirava, ainda tinha uma vontade arrasadora de proteger Sydney. Não importava se minha vida corria perigo. Me sacrificaria de bom grado por ela.

Vai!, tia Tatiana exclamou. Atira alguma coisa nele!

— Não tem nada para atirar — eu disse. — E Sydney consegue sozinha.

— Hum? — Eddie perguntou.

Tinha falado em voz alta sem querer de novo, e balancei a cabeça.

— Nada.

Sydney se manteve firme, encarando o demônio-hidra diante dela como se fizesse aquilo todo dia, e não como se tivesse entrado sem querer no covil dele. Uma bola de fogo surgiu na ponta dos dedos de Sydney, que a lançou na mesma hora numa das cabeças de serpente. Sua mira foi boa, mas a criatura foi mais rápida. Num piscar de olhos, virou a cabeça e desviou. Uma das outras cabeças cuspiu uma gosma verde brilhante que caiu no piso de concreto e começou a corroer a superfície. Não queria nem pensar no que aquilo faria com a pele.

Sydney lançou outra e não acertou de novo, mas seu olhar permaneceu firme.

— Uma hora vou acertar — eu a ouvi dizer para Rose. — E é quando você deve agir.

Rose estava preparada ao lado dela, pronta para correr. As duas faziam uma dupla impressionante, uma morena e a outra loira, ambas completamente destemidas diante do perigo. Eram lindas e mortais.

A bola de fogo seguinte acertou uma das cabeças. A criatura recuou de dor e as outras cabeças sobreviventes gritaram. Rose aproveitou o momento para passar correndo pela criatura e chegar ao lado oposto do corredor de concreto. Mesmo assim, o demônio percebeu e fez menção de virar, mas outra bola de fogo certeira chamou sua atenção de volta para Sydney. Alguns de seus tentáculos eram curtos e grossos, mas outros eram mais longos e chegavam perigosamente perto dela, obrigando Sydney a desviar tanto do ácido como dos tentáculos. Fazia isso com mais habilidade do que eu jamais conseguiria, fugindo dos ataques com uma técnica que deixaria Wolfe orgulhoso.

— Perto demais — Neil murmurou, depois que Sydney escapou por pouco de um ataque de ácido.

— Ela é boa — eu disse. Na mesma hora, outra bola de fogo atingiu uma das cabeças de cobra, deixando uma marca chamuscada.

— Por que Rose está demorando tanto? — Eddie perguntou.

Não tinha uma resposta para isso. Ela havia desaparecido na escuridão e nenhum de nós sabia o que havia lá. Talvez tivesse que procurar atrás de vinte portas. Ou talvez estivessem trancadas. Ou Jill podia estar acorrentada. Ninguém sabia ao certo, e a dúvida nos consumia.

Sydney tinha acabado de aniquilar uma terceira cabeça de cobra quando ouvi Eddie respirar fundo. Atrás da criatura pude distinguir Rose com uma silhueta apoiada nela. O rosto da outra pessoa estava enfiado no ombro de Rose, mas era impossível confundir os longos cachos castanho-claros. Meu coração subiu pela garganta.

Jill.

Ficou claro que Rose estava esperando a hora certa para voltar, e uma mudança na postura de Sydney indicou que ela já tinha avistado as duas atrás do demônio. Sydney lançou uma bola de fogo sem mirar numa cabeça específica, mas o lance obrigou a criatura a recuar para o outro lado do corredor. Rose reconheceu a oportunidade e avançou correndo, quase arrastando Jill pelo caminho. Um conjunto de tentáculos encostou na perna de Rose e perdi o fôlego, mas logo uma rápida e bem lançada bola de fogo atingiu a quarta cabeça. A criatura soltou a perna de Rose e voltou a fúria contra Sydney, enquanto a guardiã levava Jill correndo até a escada.

Numa fração de segundo, Eddie e Neil chegaram ao lado delas, ajudando Rose a trazer Jill para cima. Meu estômago se contorceu ao ver Jill, e tive uma terrível sensação de déjà-vu, semelhante a quando havíamos finalmente encontrado Sydney nas profundezas do centro de reeducação. O estado de Jill era parecido: tinha perdido bastante peso e sua pele estava pálida, mesmo para os padrões Moroi. Usava pijamas sujos e surrados, sem dúvida a roupa que vestia quando foi sequestrada, e parecia que não a deixaram tomar banho ali. Suas pupilas estavam ligeiramente dilatadas, o que confirmava que tinham lhe dado algum tipo de droga que impedia que eu chegasse até ela através dos sonhos.

— Você está bem? — perguntei. Evoquei o espírito dentro de mim, preparado para fazer uma cura.

— N... não, não faz isso — ela avisou. Mesmo drogada, o laço ainda devia estar funcionando. Ou isso ou ela simplesmente me conhecia bem o bastante para adivinhar o que eu faria. Ela levou alguns segundos para formar o resto das palavras. — Eu... só estou fraca. Com fome. Me deram sangue de animal.

Meu estômago se revirou. Os Moroi podiam sobreviver à base de sangue animal, mas “sobreviver” era um eufemismo. Continuávamos vivos, mas perdíamos muita força e energia. Apareciam histórias de vez em quando sobre famílias Moroi que ficavam presas sem acesso a um fornecedor e precisavam se alimentar de sangue de animais. Saíam fracos e debilitados, gerando manchetes sensacionalistas nos jornais Moroi. Mal conseguia imaginar quão fraca Jill devia estar depois de um mês assim. Isso explicava por que ela mal conseguia ficar de pé.

No entanto, tinha o instinto de ajudá-la de qualquer jeito, de dar uma injeção de espírito nela.

— Não — ela disse, categórica, prevendo o que eu queria fazer de novo. — Só me levem para um fornecedor. E mandem alguém para os fundos do terreno. Tem um barracão lá com outra prisão subterrânea.

— Vou levar Jill para um fornecedor — disse Eddie, levando-a para cima. Rose ajudou, apoiando o outro lado de Jill.

— Vou procurar os outros prisioneiros Moroi — Neil disse, saindo na frente deles. Ele parou e olhou para Sydney. — A menos que precisem de mim?

Fiz que não.

— Tiro Sydney daqui. Vá ajudar os outros.

Os dampiros e Jill foram embora, me deixando sozinho para cuidar de Sydney. Aquele demônio-cobra só tinha uma cabeça agora, mas notei que havia fumaça no corredor. Uma das bolas de fogo dela devia ter encontrado uma porta de madeira para incendiar.

— A gente precisa sair daqui — gritei para ela. — Esse incêndio pode se espalhar. Jill está a salvo.

— Não vou deixar esse monstro à solta! — Sydney gritou. Uma bola de fogo bem lançada quase acertou a última cabeça, mas a criatura desviou no último segundo. O demônio urrou de fúria e um de seus tentáculos avançou mais rápido do que ela conseguiu prever, derrubando-a no chão. Com a mesma velocidade, a criatura correu até ela, com a última cabeça se preparando triunfante para cobrir Sydney de ácido.

Faz alguma coisa! Faz alguma coisa!, tia Tatiana gritou para mim.

Mas não havia nada para atirar telecineticamente, nenhuma planta para invocar, como Sonya poderia ter feito. Aquele era o mundo real, não um sonho. O espírito não era uma magia de combate, mas sabia que precisava agir naquela fração de segundo. Sydney — meu coração, meu amor, minha esposa — estava perto da morte. Jogaria meu corpo na frente dela de bom grado, mas não havia tempo para isso. Tinha apenas um milésimo de segundo para decidir, então usei minha última cartada de espírito.

— Pare! — ordenei.

O espírito ardeu pelo meu corpo e enviei uma onda de compulsão ao demônio, tentando dominar sua vontade. Nunca tinha feito nada assim antes. Nem sabia se era possível. No entanto, a criatura chegou a parar, o que me fez pensar que ela era suficientemente racional para que pudesse ser controlada. Ênfase em “pudesse”. Porque, por mais que tivesse controlado a criatura por um momento, logo perdi o controle, e ela voltou a rosnar, pronta para atacar Sydney. Quanto maior a força de vontade, mais difícil era controlar alguém por compulsão. Os demônios deviam estar numa categoria completamente diferente, porque já estava com o espírito amplificado e mal surtia efeito.

Mais! Mais!, disse tia Tatiana.

Invoquei quantidades maiores de espírito, usando toda a minha energia, toda a minha força de vontade. Era mais do que tinha usado no sonho com Charlotte e Olive, quase tanto quanto usara para trazer Jill de volta à vida. O espírito me preencheu por completo, tornando-me maior do que nunca, quase um deus. Voltei esse poder contra o demônio, exercendo meu controle enquanto proferia os comandos:

— Solta Sydney! Vai pra trás!

O demônio obedeceu.

Seus tentáculos soltaram Sydney, que se arrastou para longe e levantou. O fogo surgiu em suas mãos e, com o demônio sob meu comando, virou um alvo fácil para ela. Quando destruiu a última cabeça, o resto do corpo se desintegrou numa fina nuvem de poeira preta. No entanto, o espírito continuou ardendo dentro de mim, me fazendo sentir radiante e invencível. Sydney correu até mim e chacoalhou meu braço.

— Adrian, chega — ela disse. — Acabou. Você conseguiu. Libera a magia!

Ninguém nunca possuiu um poder como esse, tia Tatiana disse. Consegue sentir? Não se sente vivo? Por que iria querer abandonar essa sensação?

Ela estava certa. Com aquele poder, poderia fazer coisas grandiosas. Strigoi, guerreiros e até mesmo demônios: nenhum inimigo teria chance. Não precisávamos de estacas de prata ou da vacina de Sonya. Eu era capaz de tudo. Poderia salvar nosso povo sozinho.

— Adrian! Adrian!

Por um momento, não sabia de quem era aquela voz. Estava perdido demais em meu poder, um poder que me consumia. Um rosto se moveu diante da minha visão enevoada, uma humana loira e de olhos castanhos. Mas não a reconheci.

— Adrian! — ela gritou de novo. — Chega. Por favor. Libera a magia... por mim.

Por mim, ela tinha dito.

Mas quem era ela? Então finalmente o êxtase do espírito diminuiu o bastante para que a reconhecesse. Sydney. Sydney, minha esposa. Era ela que me encarava, completamente aterrorizada.

Ignore a menina, disse tia Tatiana. Esta é a magia que você nasceu para praticar!

Sydney apertou minha mão.

— Adrian, por favor. Libera a magia.

Conseguia sentir o espírito obscurecer minha mente de novo, apagando Sydney, destruindo o meu raciocínio como tinha feito com Charlotte. Queria soltar, mas era difícil quando tinha uma sensação tão gloriosa e inebriante.

Você é um deus, tia Tatiana falou. Estou muito orgulhosa de você.

— Adrian — Sydney disse. — Eu te amo.

Aquelas palavras e aquela voz tiveram mais poder sobre mim do que fantasma nenhum poderia ter. E assim, pouco antes de o espírito apagar Sydney por completo, soltei a magia.


19

Sydney

Percebi quando aconteceu. Vi em seus olhos que ele voltou a si de repente. Pelo menos torci para que tivesse voltado a si. Não fazia ideia de quanto poder ele havia usado para controlar um demônio de outra dimensão, mas sabia o que quantidades gigantescas de espírito podiam fazer.

— Sydney — ele exclamou, apoiando-se em mim.

Quase chorei de alívio.

— Sim. Vem, vamos embora.

A porta que tinha acertado sem querer estava pegando fogo e não sabia como os andares subterrâneos se ligavam ao andar principal. Não queria correr o risco de que tudo desmoronasse à nossa volta. Adrian parecia um pouco aturdido e precisei guiá-lo até a escada. Parte de mim, em pânico, não parava de pensar no que ele havia me contado sobre Charlotte, sobre como o espírito a deixara incoerente. Ele me reconheceu, disse a mim mesma. Ele me reconheceu. Enquanto tivéssemos isso, precisava acreditar que tudo ficaria bem.

Chegamos ao andar de cima, onde vários guardiões esperavam preocupados na entrada da escadaria. Havia ordens rigorosas para não interferirem, mas isso ia contra a natureza deles.

— Tirem todos daqui — eu disse para o guardião mais perto. — Tem um incêndio lá embaixo e não sei se vai se espalhar. E vê se não tem nenhuma arma aqui. — Afinal, aquele lugar era dos guerreiros. Não queria que um novo desastre com explosivos fosse causado por acidente.

Adrian e eu saímos e o guiei até passar pelos guardiões e alquimistas atarefados, e também pelos guerreiros prisioneiros. Lá fora, perto de onde tínhamos estacionado, avistei alguns rostos conhecidos e caminhei até eles. Rose, Dimitri e Eddie rodeavam Jill, que estava sentada numa cadeira dobrável. O ocupante da cadeira ao lado levantou e foi levado embora por um guardião. Reconheci a expressão zonza de um fornecedor.

— Espera — gritei. — Adrian também precisa de sangue.

Jill levantou em um salto, ainda cansada e suja, mas com muito mais vida e cor no rosto do que quando a vira no porão. Apesar de tudo que tinha acabado de passar, se apressou para ajudar Adrian a sentar. Não sabia se ele realmente precisava de sangue, mas ele havia passado por um grande martírio, e o sangue costumava ter um efeito curativo nos Moroi. Adrian não falara mais nada desde que dissera meu nome, e eu não conseguia deixar de lado o pânico de que o espírito poderia ter finalmente o dominado para sempre. O fornecedor ofereceu o pescoço e Adrian se debruçou automaticamente para mordê-lo. Desviei o olhar, me perguntando se algum dia ficaria completamente à vontade com essa parte da vida dos vampiros.

— Ele está aí — Jill disse, segurando minha mão, os olhos verdes ainda maiores do que o normal em seu rosto magro. — Vai ficar bem.

Agradeci com a cabeça e contive as lágrimas.

— Você devia estar descansando — falei para ela. Meu coração estava com Adrian, mas naquele momento me toquei o quanto ela havia sofrido. O fato de que estava ali, preocupada com outra pessoa, era prova de sua força. — Ai, meu Deus, Jill. Mal posso imaginar o que você passou. Desculpa não termos conseguido resgatar você antes. Te machucaram?

Ela fez que não e abriu um leve sorriso, embora pudesse ver o sofrimento em seus olhos.

— A maioria tinha medo demais para ficar perto de mim. Alicia havia colocado certas condições temporais naquele feitiço... naquela criatura. Num curto período do dia, perto do nascer do sol, alguém poderia vir à minha cela, me drogar, deixar comida e sangue, e sair. Nunca ficavam muito... Acho que tinham medo de ficar presos lá comigo.

— Sinto muito — disse de novo. — Queria que pudéssemos ter salvado você antes.

Jill me abraçou.

— Sei que tentaram. Conseguia ver muita coisa pelo laço e...

— Chave de Cadeia?

O fornecedor estava indo embora e Adrian se virou em nossa direção, com o rosto alerta e sagaz. Jill soltou um grito e correu para os braços dele, com lágrimas no rosto. Também comecei a chorar diante do reencontro.

— Você está bem! — ele exclamou, com as mãos no rosto dela. — Você está bem. Estava tão preocupado. Você não faz ideia. Achei que tivesse falhado com você...

Jill começou a chorar mais.

— Você nunca falhou comigo. Nunca.

Queria me jogar nos braços de Adrian também, mas dei a eles aquele momento. O amor que eu e Adrian tínhamos era forte, e sabia que se manteria pelo resto de nossas vidas, não importava o que acontecesse. Mas o amor que ele e Jill tinham, aquele afeto de irmão graças ao espírito, também era forte. Sabia como ele tinha sofrido por ficar longe dela.

O som da porta de um carro chamou minha atenção. Me virei para o outro lado do estacionamento improvisado a tempo de ver meu pai e Zoe saindo de um carro, junto com Stanton. Depois de um olhar rápido para confirmar que Adrian e Jill estavam bem sem mim, fui encontrar os alquimistas.

— Sydney — disse Stanton, a título de cumprimento. — Parece que tudo deu certo na sua operação. Suponho que vá me dar os outros dois nomes?

— Charlene Hampton e Eugene Li — respondi prontamente.

Stanton os repetiu para si mesma e pegou o celular na mesma hora.

— Muito bem. Vou mandar verificar.

— E o resto do nosso trato? — perguntei.

— Não se passou muito tempo — ela me lembrou —, mas consegui uma decisão intermediária para você. Os outros líderes alquimistas concordaram em deixar você em paz. Você e o seu, hum, marido podem sair mundo afora e fazer o que bem entenderem. — Sua testa franziu ligeiramente durante a fala educada, o que foi a única indicação de como achava a ideia repugnante.

— Sério? — perguntei. — Eu e Adrian estamos livres? Nenhum espião atrás de nós? — Meu pai ficou boquiaberto.

— Tão livres quanto qualquer pessoa neste mundo — ela lamentou. — Para ser sincera, acho que foi um alívio para alguns deles. Você causa muita encrenca, Sydney Ivashkov.

Não consegui conter um sorriso.

— E os outros? Os outros detentos?

— Anistia para eles também... desde que você entregue as informações — ela acrescentou. — Não posso dar nenhuma garantia sobre o futuro da reeducação. Essa é uma questão mais complexa.

Para mim não parecia nada complexa, mas a minha liberdade e a dos outros que sofreram na reeducação era uma bênção gigantesca, se os alquimistas mantivessem sua palavra.

— Estava falando sério sobre meus receios com a reeducação — Stanton me disse. — É uma questão a que planejo me dedicar. Precisamos de sistemas disciplinares, como no caso da emergência das tatuagens, mas, claro, existem limites que podemos redefinir melhor.

— Obrigada — eu disse. Mais uma vez, torci para estar certa em relação à sinceridade que via nela. — Vou pedir para enviarem o conteúdo do laptop para a senhora.

— Excelente. Agora me deem licença por um momento enquanto lido com a sra. Hampton e o sr. Li. — Ela ligou para alguém e saiu andando, me deixando numa situação ligeiramente constrangedora com meu pai e Zoe.

— Não sei o que você fez — meu pai resmungou —, mas duvido que os alquimistas vão deixá-la sair impune. Alguns podem aceitar sua vida abominável, mas outros não.

— É verdade — eu disse. — Mas Stanton claramente não vê problema. E acredito firmemente que pessoas como ela vão ter força suficiente para pegar leve comigo e com os que não querem mais fazer parte dos alquimistas. Na verdade, você vai ajudá-la.

A fúria se acendeu em seus olhos.

— Jamais.

— Porque a questão é a seguinte, pai — eu continuei como se ele não tivesse falado nada —, fiz Stanton ajudar no resgate dando a ela o nome de quatro pessoas que estavam trabalhando com os guerreiros a fim de produzir mais daquelas tatuagens ilícitas. Revelei quatro, mas tinha cinco. E nós dois sabemos quem era o quinto.

— Não faço ideia — ele disse imediatamente.

Zoe lançou um olhar assustado para ele.

— Quê? Você não... você não pode ter...

— A prova está lá — eu disse. — O laptop que pegamos tem registros de reuniões e encomendas que você fez com alguns dos guerreiros. Agora, se tiver sorte, os alquimistas que já foram pegos não vão denunciá-lo para tentar se salvar. E, se colaborar, eu não vou te denunciar também.

— Colaborar? — ele zombou. — O que isso significa para alguém como você? Alguém que jogou no lixo todas as lições morais com que foi criada...

— Significa — o interrompi — que você vai apoiar Stanton para rever a reeducação e manter o acordo que fez comigo. E também significa que vai mudar o acordo de custódia para que Zoe veja nossa mãe.

Meu pai cerrou os punhos.

— Você não tem o direito de impor nada disso! Não vou entrar nessa chantagem.

— Sem problemas — respondi. — Então vou contar para Stanton que tem mais uma pessoa que precisa ser interrogada. E não se esqueça que, mesmo se acabarem com a reeducação, ela disse que ainda precisam de medidas disciplinares instauradas para casos como esse.

— Pai, como você pôde? — Zoe exclamou. — Você sabe quantas pessoas sofreram com aquelas tatuagens!

— Você não entende — ele disse. — Seriam os guerreiros que fariam. Não importa o que vai acontecer com eles.

Assenti com uma seriedade irônica.

— Aposto que Stanton vai concordar com esse argumento hipócrita. Os alquimistas adoram questões duvidosas. Definitivamente preferem isso do que tudo bem esclarecido.

— Sydney? — ouvi Adrian chamar. Virei e fiz um aceno para ele antes de me voltar para meu pai e Zoe.

— Esses são os meus termos. Se obedecer, vou garantir que não haja menção do seu nome quando entregar as informações para Stanton. Senão... — Deixei meu pai no escuro, para que a imaginação dele terminasse a frase. Enquanto ficava ali parado, em choque, dei um abraço rápido em Zoe. — É bom ver você. Me manda uma mensagem se ele não deixar você ver a mamãe, ainda que seja provável que eu descubra sozinha antes.

Deixando os dois, voltei para onde meus amigos estavam. Só faltavam Dimitri e Neil. Adrian me parou, dando-me um abraço.

— Sydney — ele murmurou no meu ouvido. — Desculpa por ter perdido o controle lá embaixo.

— Você não perdeu nada — eu disse firme, colocando os braços em volta do pescoço dele. — Você se controlou. Conseguiu voltar e fazer a coisa certa.

— Não parecia que estava me controlando — ele disse baixinho, fitando meus olhos. — Teve um minuto lá que não reconheci você, não reconheci nada além do poder que sentia. E tia Tatiana estava lá, gritando na minha cabeça. Ela ainda está aqui, mesmo enquanto falo com você. Acho... — Ele respirou fundo. — Acho que estou definitivamente pronto para voltar a tomar os remédios. Não sei o que vai acontecer se chegar uma hora em que precise de espírito e não consiga usar, mas não posso correr o risco de me perder como quase aconteceu hoje. Não posso ficar como Charlotte. Como Avery.

Afundei o rosto no seu peito.

— Você não vai ficar. Já provou que não. Voltou a si no momento em que elas não conseguiram. E, aconteça o que acontecer, você não vai enfrentar nada sozinho. Vou ajudá-lo. — Lágrimas voltaram a surgir em meus olhos, dessa vez de felicidade. — Acho que a gente conseguiu. Acho que a gente está livre dos alquimistas. Depois de muitos esquemas e... Enfim, não sei se vai dar certo, mas parece que sim. E... — Comecei a rir ao perceber que estava tagarelando. — Não sei o que vai vir agora, mas sei que vamos estar juntos.

Adrian segurou minha mão esquerda na dele, fazendo nossos anéis de casamento cintilarem num brilho de rubis e diamantes.

— É tudo que importa, Sage-Ivashkov. Quer dizer, isso e a briga que vou ter com Castile se não resolver a situação dele com Jill de uma vez por todas.

Virei para onde Eddie estava sentado com Jill, segurando a mão dela e abrindo seu coração. Ri mais uma vez.

— Acho que perderia essa briga com ele, sem ofensa. Mas felizmente acho que estão se resolvendo.

Fiquei observando Eddie e Jill por mais um momento, sem conseguir ouvir o que estavam falando. Pela expressão radiante dela, era uma boa notícia. Jill tocou o rosto não barbeado dele e sorriu, aparentemente aprovando a barba de que Adrian sempre tirava sarro. Recostei em Adrian e suspirei feliz, sentindo-me em paz com o mundo pela primeira vez em muito tempo. Ficamos ali sentados, abraçando um ao outro por vários minutos tranquilos, até vermos Dimitri se aproximar.

— Alguma novidade? — perguntei, erguendo a cabeça.

— Busque aquele fornecedor — Dimitri falou para outro guardião atrás dele. O homem saiu correndo para obedecer. — Encontramos outros Moroi.

— Os outros presos — Jill murmurou. Ela olhou para Rose e Dimitri. — Falei para vocês sobre eles. Estão bem?

— Sim — Dimitri disse. — Malnutridos como você, mas vão ficar bem. Neil foi importantíssimo para resgatar todos. Estavam numa prisão muito difícil de chegar, parecia mais uma caverna, e ele precisou escalar muito.

— É o jeitinho do Neil — Adrian comentou. — Cadê ele?

Dimitri pareceu perplexo.

— Na verdade, pensei que ele tivesse voltado pra cá. — Ele tocou o fone. — Alguém tem informações sobre Neil Raymond? — Ficamos encarando Dimitri em silêncio enquanto esperávamos uma resposta. No fim, ele balançou a cabeça. — Ninguém o viu.

Eu e Adrian trocamos olhares, pensando a mesma coisa.

— Mande todo mundo procurar por ele — Adrian disse. — Agora. Se não o encontrarem já, tenho a impressão de que nunca mais vamos achá-lo.

Dimitri pareceu assustado pela frase, mas mesmo assim ordenou uma busca em todo o campo por Neil. Eddie pareceu ao mesmo tempo preocupado e confuso.

— Vocês acham que ele se machucou? Ou foi capturado?

— Não — respondi. — Acho que viu uma oportunidade. E precisamos impedir que faça isso.

Mas era tarde demais. Depois de uma hora, as buscas da equipe de Dimitri não deram nenhum resultado. Neil tinha realizado seus atos heroicos e depois sumido.

— Ele sabia — Adrian disse. — Sabia que, assim que isso acabasse, eu voltaria a insistir na questão do Declan. A culpa é minha.

— Do que está falando? — Rose perguntou. Ela percebera que tinha alguma coisa errada e esperou impacientemente durante a busca. — Declan está bem?

— Sim — Adrian respondeu, mas voltamos a nos entreolhar. Nenhum de nós conseguia dar voz a nossos medos. Se tínhamos perdido Neil, o que aconteceria com Declan? Adrian balançou a cabeça. — Vou procurar Neil em um sonho.

— Adrian — avisei. — Você acabou de dizer...

— Eu sei, eu sei — ele resmungou. — Mas a gente precisa encontrar Neil. Você sabe por quê.

Lá estava o espírito nos ameaçando de novo.

— Mesmo se encontrarmos Neil no mundo dos sonhos, não existe garantia de que ele vá voltar pra cá — lembrei Adrian.

— Alguém por favor pode me dizer o que está acontecendo? — Eddie perguntou. — Por que Neil não voltaria?

Entrelacei os dedos nos de Adrian.

— Vamos voltar para perto de Declan. Depois a gente pensa no que fazer em relação a Neil.

Mesmo sem saber a história toda, Rose, Dimitri e Eddie quiseram voltar com a gente para a casa de Clarence na esperança de rastrear Neil. Jill também queria, mas foi levada para a Corte, para ficar sob a proteção de Lissa e receber outros tratamentos médicos. Deu para ver que foi angustiante para Eddie se separar dela, mas Neil era amigo dele e tinham salvado a vida um do outro mais de uma vez. Fingi que não vi quando Eddie deu um beijo de despedida em Jill e prometeu voltar a vê-la em breve.

De volta à casa de Clarence, encontramos tudo como tínhamos deixado. O anfitrião estava descansando no quarto e Daniella estava na sala, falando sem parar que Declan precisava de pijamas de algodão orgânico em vez daquele algodão tosco. Ela contou, para nossa total surpresa, que Neil tinha passado lá.

— Como assim? — Adrian exclamou.

— Hoje de manhã — ela disse. — Passou e segurou o bebê no colo por um tempo. Não falou muita coisa. Depois foi embora. Pensei que soubessem.

Eu tinha pegado Declan e o embalava nos braços, surpresa com a saudade que sentira do seu calor e, digamos, do seu cheiro de bebê. Adrian estava ao meu lado, também surpreso pela saudade.

— A gente não fazia ideia — ele respondeu.

— Ele deixou isso — Daniella acrescentou e entregou um envelope que Adrian abriu imediatamente. Dentro estava uma carta manuscrita que Adrian posicionou para nós dois podermos ler.

 

Adrian e Sydney,

Sei que vocês dois têm seus meios para descobrir onde estou. Se for isso que decidirem fazer, não tenho como detê-los. Mas imploro que não façam isso. Por favor, me deixem ficar longe. Deixem que os guardiões pensem que desertei da organização. Deixem que eu ande pelo mundo, ajudando quem puder.

Sei que acham que eu deveria ficar com Declan. Acreditem em mim, queria poder. Queria mais do que qualquer coisa ficar e cuidar do filho de Olive, do meu filho, e dar a ele tudo que precisa. Mas não posso deixar de lado a sensação de que nunca estaríamos seguros. Algum dia, alguém poderia começar a fazer perguntas sobre Olive e o filho dela, e então os medos dela se concretizariam. A notícia de sua concepção mudaria nosso mundo. Animaria alguns e assustaria outros. Acima de tudo, faria com que as previsões de Olive se tornassem realidade: as pessoas iriam querer estudá-lo como um rato de laboratório.

E é por isso que estou propondo que ninguém descubra que ele é meu filho ou de Olive. De agora em diante, que ele seja de vocês.

Ninguém vai questionar se criarem um dampiro. Afinal, os filhos de vocês vão ser dampiros e, pelo que vi, são inteligentes o bastante para convencer todo mundo de que Declan é seu filho biológico. Também vi como vocês se amam, como apoiam um ao outro. Mesmo com as dificuldades que a relação de vocês sofreu, se mantiveram fiéis a si mesmos e um ao outro. É disso que Declan precisa. É esse tipo de lar que Olive iria querer para ele, o tipo que eu quero para ele.

Sei que não vai ser fácil e partir é uma das atitudes mais difíceis que já precisei tomar. Se chegar um dia em que eu possa me sentir seguro estando presente na vida dele, eu volto. Podem usar seus métodos mágicos para me encontrar e juro que estarei ao lado dele num piscar de olhos. Mas, até lá, enquanto a sombra do medo e do olhar curioso dos outros pairar sobre Declan, imploro que o levem e lhe deem a vida linda que sei que podem dar.

Com carinho,

Neil

 

As mãos de Adrian estavam tremendo enquanto terminava de ler a carta. Lágrimas se formaram em meus olhos e me obriguei a piscar para contê-las.

— Ele tem razão — eu disse finalmente. — Podemos encontrá-lo com a minha magia. Você nem precisa usar o espírito.

Adrian dobrou a carta.

— Mas ele também tem razão em relação aos riscos.

— O que ele está pedindo é muita coisa... — comecei. Neil tinha razão no sentido de que ninguém nos questionaria por ter um filho dampiro, mas mesmo assim as complicações eram infinitas. Nossas vidas já eram muito indefinidas. Me afundei no sofá ainda com Declan no colo, a cabeça a mil.

Quando Adrian me pedira em casamento, senti medo, não por falta de amor, mas porque ser noiva aos dezenove anos nunca tinha feito parte dos meus planos. E ser mãe aos dezenove? Isso esteve menos ainda nos planos. Mas, bem, alguma coisa saía como eu planejava? Examinei o rosto de Declan, adorando todos os detalhes perfeitos dele, mas sabendo muito bem que, se assumisse a responsabilidade por ele, qualquer tentativa de garantir o futuro que eu queria — uma casa com Adrian, a faculdade, uma vida normal — seria seriamente comprometida. No entanto, como poderia abandonar Declan?

Encarei Adrian.

— Não sei o que fazer. Não tenho a resposta. — Essas não eram palavras que proferia com frequência.

Adrian respirou fundo e encarou as pessoas ao nosso redor.

— Acho... acho que talvez a gente precise pedir alguma ajuda para isso.

Entendi a sugestão e a considerei. Quanto menos gente soubesse a verdade sobre Declan, melhor. Mas o que estava sendo pedido de nós era grande demais para assumirmos sozinhos. Precisávamos de aliados em quem pudéssemos confiar para decidir o futuro de Declan. Ao encarar aqueles reunidos à nossa volta — Rose, Dimitri, Eddie e Daniella —, percebi que eram as pessoas com quem poderíamos contar.

— Certo — eu disse a Adrian.

— Alguém pode finalmente contar pra gente o que está acontecendo? — Rose interrompeu, impaciente.

Adrian respirou fundo, preparando-se para a história imensa que estava prestes a contar. Todos ficaram muito quietos, como se sentissem a gravidade do que estava por vir.

— O que estou prestes a falar vai mudar tudo o que vocês pensam — Adrian disse. Ele se focou em Rose e Dimitri. — O mundo de vocês dois em particular está prestes a mudar.


Epílogo

Adrian

— São eles? — minha mãe gritou. — Acho que ouvi a porta.

— Tem que ser — eu disse, tirando uma caçarola do forno e a apoiando com cuidado no balcão. — Essa carne está no ponto máximo da delícia. Não vou esperar que cheguem pra cair matando. Seria um crime. Uma declaração de guerra contra a alta culinária do mundo inteiro.

Minha mãe, acostumada com meu drama, sorriu.

— Sydney também não chegou ainda.

— Ah — eu disse. — Bom, então espero por ela.

Eddie apareceu na entrada da cozinha, com o rosto radiante.

— Chegaram.

Tirei as luvas térmicas e o avental e fui até a sala para recepcionar os convidados que tinham acabado de entrar na sala da nossa pequena casa alugada. Fazia quase um ano e meio que não via Rose e Dimitri, mais ou menos desde o resgate de Jill em St. George. Estavam como sempre, lindos e formidáveis, enquanto batiam as botas no chão para tirar a neve e sorriam para nós. Jill, que tinha viajado com eles, se jogou nos braços de Eddie e o beijou.

— Opa, ei — eu disse. — Não faz tanto tempo assim que vocês não se veem. Controlem-se.

Na verdade, fazia um mês que não se encontravam, o que para eles devia parecer uma eternidade. Estavam namorando desde que ela fora resgatada dos guerreiros, mas Jill precisara voltar à Corte para terminar os estudos enquanto Eddie ficara conosco. Assim, o relacionamento dos dois tinha sido à distância ao longo do último ano — ela nos visitava nos feriados ou ele ia à Corte quando conseguia arranjar outro guardião para ficar conosco.

Jill ficou vermelha e conseguiu soltar Eddie por tempo suficiente para me dar um abraço.

— Estava com muita saudade — ela disse.

— Eu também — eu disse com carinho. Toda vez que a via, ficava surpreso ao notar como ela havia se transformado de uma menina desajeitada numa elegante princesa da linhagem Dragomir. — Mas precisa admitir que sou muito bom em mandar novidades. E te envio fotos toda semana.

Ela sorriu.

— Eu sei, eu sei. É só um pouco estranho não estar com você como antigamente.

Dei um beijo na sua testa.

— É melhor para nós dois assim, Chave de Cadeia.

Estava cumprindo a promessa que fizera a Sydney. Tinha voltado aos medicamentos, calando tanto o espírito como tia Tatiana. Também haviam silenciado o laço entre mim e Jill. Ela ainda me sentia perto dela, mas já não tinha a mesma visão íntima do meu coração e da minha mente. Antes que pudesse falar mais, um som de choro chegou até nós.

— O rapazinho acordou — eu disse. — Já volto.

Saí da sala e subi a escada correndo até o quarto que o bebê dividia com Eddie. Eu era nobre o bastante para finalmente ter um guardião designado à minha família, e Eddie tinha mexido os pauzinhos para ser transferido para nós. No começo, tinha sido contra, porque queria que ele ficasse na Corte e tivesse um namoro normal com Jill. Eddie, porém, se sentia obrigado a ficar conosco, tanto pela amizade comigo e com Sydney como por todas as vezes que Neil o auxiliara. Havíamos sugerido transformar o pequeno escritório num quarto só para Eddie, mas mesmo assim ele sempre acabava dormindo no quarto de Declan.

— Ei, campeão — eu disse, andando até o berço. Declan estava em pé no berço, com seu pijama de caminhões de bombeiros, e me encarava sério com seus grandes olhos castanhos. Seus cachos castanho-escuros estavam desgrenhados por causa do sono, mas sorriu quando cheguei perto e o peguei no colo. — Foi boa a soneca? A gente tem visitas, sabia? Tia Jill voltou.

Declan encostou a cabeça em mim e bocejou, sem responder. Só tinha um ano e meio, e não era muito de conversa. No entanto, pouca gente sabia a verdadeira idade dele. Para o resto do mundo, dizíamos que ele tinha pouco mais de um ano.

Isso porque nós também falávamos que era meu filho com Sydney.

Neil estava convicto de que essa era a única forma de dar a Declan a chance de uma vida normal e, no fim das contas, respeitamos os desejos do dampiro de continuar escondido. Não havia nenhum outro parente para cuidar de Declan. Charlotte nunca se recuperara. Mesmo se admitíssemos que Declan era o filho de Olive que estávamos criando, ainda poderia haver muitas dúvidas sobre quem era o pai. Mas, se nós, um Moroi e uma humana, disséssemos que tínhamos um filho dampiro, ninguém teria por que pensar que estávamos mentindo.

Assim, Sydney e eu nos isolamos de todos por um tempo, finalmente revelando ao mundo que tivemos um bebê alguns meses depois, numa data de nascimento fictícia. Dissemos que ela havia engravidado logo depois de ser resgatada da reeducação, e depois falamos que o bebê nasceu prematuro. Ficamos longe das pessoas por tempo suficiente para conseguirmos disfarçar as datas e fazer tudo parecer plausível. Se parecíamos sigilosos em relação a nossos atos, a maioria das pessoas presumiu que era porque ainda tínhamos medo dos alquimistas. Eles se mantiveram fiéis à promessa de nos deixar em paz, mas todo mundo entendia por que preferiríamos tomar cuidado.

Também ajudou o fato de termos excelentes aliados. Eu e Sydney nunca conseguiríamos fazer tudo sem nossos amigos. Rose e Dimitri ajudaram a nos acobertar na Corte. Minha mãe ajudou imensamente cuidando de Declan para que eu e Sydney pudéssemos nos dedicar a outros interesses. Eddie também cuidava muito dele, além de nos dar a proteção necessária. Ele era o único que finalmente tinha entrado em contato com Neil na localização secreta dele. Neil ainda mantinha distância, mas recentemente vinha permitindo que Eddie mandasse fotos e novidades, e nossa esperança era que, algum dia, Neil e Declan pudessem estar de volta na vida um do outro.

— Olha só pra ele! — gritou Jill quando desci a escada. — Como ele cresceu!

Até Rose e Dimitri entraram na onda de admirar o bebê. Enquanto Jill tinha vindo fazia pouco tempo, havia meses e meses desde a última visita dos dois. Declan devia parecer gigante para eles.

— A gente devia ter trazido uma estaca de prata pra ele — Dimitri disse. — Estou surpreso que Eddie ainda não o esteja treinando.

Eddie, com o braço em volta de Jill, abriu um sorriso.

— A gente treina sempre depois da soneca matinal.

A porta da sala abriu novamente e Sydney entrou, com flocos de neve no cabelo loiro, uma mochila no ombro e uma sacola nos braços. Entreguei Declan rapidamente para Jill e peguei as coisas de Sydney. Dentro da sacola, encontrei uma baguete e algumas frutas. A mochila parecia carregar uns cem livros, o que devia ser verdade. Sorriu para mim enquanto tirava o casaco pesado.

— Desculpem o atraso — ela disse. — O trânsito estava terrível.

Embaixo do casaco, ela estava usando um vestido de lã vermelho e um crachá em que se lia: SYDNEY IVASHKOV, MONITORA.

— Muito trabalho no museu? — perguntei.

— Sempre — respondeu, me dando um selinho rápido.

— Melhor tomar cuidado quando usar esse vestido — eu disse. — Alguém pode confundir você com uma obra de arte.

Depois que mudamos para cá, Sydney estava decidida a se lançar no mercado de trabalho para nos sustentar. Essa foi nossa primeira briga de verdade que não envolvia algo sobrenatural. Insistia para que ela finalmente fosse para a faculdade. Ela dizia que isso podia esperar até nossas finanças melhorarem. Felizmente, outro bom amigo havia nos salvado: Clarence. Com sua enorme fortuna, teve o maior prazer em nos mandar mesadas regulares. Aliás, nós é que precisamos botar um limite para não chamar atenção demais. Contudo, entre esses depósitos e os empréstimos estudantis, Sydney tinha finalmente realizado seu sonho de estudar arte antiga numa universidade local. Ela até arrumou um estágio no museu deles.

Recentemente, eu também estava conseguindo ajudar na renda familiar com... o meu trabalho.

Às vezes essa parecia a parte mais surreal de tudo. Eu, Adrian Ivashkov, ganhando a vida normalmente. Depois de todos os altos e baixos que tivera com o dinheiro, deixando de ser um moleque mimado com fundos infinitos para me tornar um filho deserdado pelo pai, era inacreditável que agora recebesse um salário como todo mundo. Igualmente surpreendente era o quanto passara a gostar do meu trabalho. Para ser sincero, nunca tinha esperado conseguir um emprego com minha graduação em arte, mesmo se um dia a terminasse. Simplesmente não havia muitos empregos para artistas, e muito menos trabalhos para pessoas com graduação incompleta em arte. No entanto, enquanto ajudava uma vizinha certo dia, fiquei sabendo que a pré-escola da filha dela estava precisando de um professor de artes por meio período. Para essa idade, minha formação não importava muito, só meu entusiasmo para ensinar as crianças. O incrível foi que me descobri muito bom nisso, embora talvez fosse minha imaturidade natural que me permitia me identificar com os pequenos. Tinha achado algumas outras pré-escolas e me candidatado a vagas nelas também, juntando empregos de meio período suficientes para contribuir de maneira significativa com a renda da família.

A primeira escola gostou tanto de mim que o diretor disse que, se eu conseguisse o diploma de licenciatura, poderia trabalhar como professor em período integral, com um salário melhor e horários mais fixos. Sydney não tinha me pressionado para voltar à faculdade, mas, quando ouviu isso, seus olhos brilharam e tive a impressão de que ela já estava incluindo o pagamento da minha faculdade no orçamento.

Nunca tinha visto esse orçamento, mas pelo visto dava conta de muita coisa. Até agora conseguira sustentar nós cinco na casa alugada e ainda tinha uma poupança para pagar uma futura casa própria, nossa educação e, mais tarde, a educação de Declan. Era bem impressionante como Sydney conseguia fazer tudo aquilo dar certo, mas, enfim, só podia esperar coisas impressionantes dela.

Sydney abraçou todas as visitas e depois pegou Declan no colo. Por mais que no começo só fingíssemos que ele era nosso filho, para nós isso passou a ser verdade. Sydney amava loucamente o rapazinho e, assim como todos nós, faria de tudo por ele. Ela beijou os cabelos cacheados dele e ganhou um sorriso.

— ¿Cómo estás, mi amor? — ela perguntou, levando-o para a cozinha para verificar o jantar.

Rose virou para mim.

— Ela acabou de falar em espanhol com ele?

— Sim — eu disse. — Só fala com ele em espanhol, na verdade. Leu em algum livro de maternidade sobre a importância de as crianças aprenderem uma segunda língua.

— É melhor a gente comer — minha mãe disse, me encarando sarcástica. — Senão vamos cometer um crime contra a alta culinária.

Essa era outra tarefa que eu tinha assumido: cozinhar. E até que acabei me descobrindo bom nisso também.

Mais tarde, lá para o fim do jantar, quando todos estávamos em volta da mesa, me peguei admirando em volta sem conseguir acreditar que essa era minha vida agora. Nunca teria imaginado que me casaria com uma humana. Nunca teria imaginado que assumiria tão tranquilamente o papel de marido e pai. E, definitivamente, nunca teria imaginado que seria tão feliz sem o espírito.

Depois de resgatar Jill e concordar em criar Declan, precisávamos tomar uma decisão sobre aonde iríamos com nossa liberdade recém-adquirida. O norte do Maine acabou ganhando. Perto da civilização, mas longe o bastante para não ser fácil de nos vigiar sem que percebêssemos. Às vezes ainda acordava perturbado, sentindo culpa por amar tanto Declan, por ser tão feliz de chamá-lo de filho. E sempre, sempre me sentia culpado por não ter salvado Olive, por não ter moderado o uso de espírito naquela noite.

Mas aquilo era passado, e tudo que podia fazer era honrar os desejos de Olive e dar a Declan a vida mais normal possível. Até agora, parecíamos estar conseguindo. Ele não fazia ideia de que havia algo diferente nele. Pouquíssimas pessoas sabiam que não era meu filho de verdade. Menos ainda sabiam a verdade sobre sua origem extraordinária. Apenas aquele grupo seleto no jantar de Natal sabia do passado de Declan. E todos estavam comprometidos a proteger seu futuro.

Ao pensar nisso, meu olhar recaiu sobre Rose e Dimitri, sentados um ao lado do outro na ponta da mesa. Tínhamos contado para eles sobre Declan porque eram grandes as chances de os dois estarem na mesma situação de Olive e Neil. Tanto Dimitri quanto Olive tinham sido restaurados do estado Strigoi. Essa façanha do espírito que possibilitara a Olive engravidar de outro dampiro poderia muito bem se aplicar a Rose e Dimitri. Ao contrário de nós, porém, não teriam como fugir e esconder o milagre. Suas vidas eram visíveis demais. Se tivessem um filho juntos, todo mundo saberia... e a possibilidade seria revelada. Os dois sabiam disso, mas não fazia ideia de que planos tinham para o futuro.

Quer dizer, logo descobri um desses planos.

— Caramba — eu disse. Enquanto observava Rose e Dimitri, um lampejo brilhante chamou minha atenção. Um brilho no dedo de Rose. — O que é isso? — exclamei. — Você roubou as joias da coroa de Lissa?

Rose pareceu desconcertada, como quase nunca ficava.

— Talvez seja um exagero.

Dimitri levou a mão dela até os lábios e deu um beijo.

— Não, é perfeito.

Jill bateu as mãos, encantada.

— Um anel de noivado!

— Espera — pedi. — Mostra a mercadoria.

Dimitri sorriu e Rose ergueu a mão esquerda para o resto da mesa ver. Era uma peça impressionante. Um grande diamante redondo perfeitamente talhado num quadrado decorado de filigranas de platina, envolto por opalas azuis pequeninas. Era um anel e tanto, e uma escolha completamente inesperada.

— Foi você que escolheu? — perguntei a Dimitri. Para ser sincero, esperava que ele dobrasse um pedaço de aço com as próprias mãos e a presenteasse com ele.

— Sim — Rose respondeu por ele, retomando a descontração natural. — Ele sempre dizia que, depois que eu fizesse vinte, seria só questão de tempo até me pedir em casamento. Falei pra ele que, se me pedisse, era melhor me dar um anel de rock star, nada sutil.

— É bem rock star — Eddie concordou. — Há quanto tempo isso aconteceu?

— Um mês, mais ou menos — Dimitri disse. — Consegui fazer com que ela usasse, mas não que escolhesse uma data.

Ela sorriu.

— Tudo tem seu tempo, camarada. Talvez quando fizer trinta. Não tem por que ter pressa. Além disso, qualquer dia desses Christian vai pedir Liss em casamento. A gente não quer ofuscar os dois.

Dimitri balançou a cabeça exasperado, mas continuou sorrindo.

— Você sempre tem uma desculpa, Roza. Qualquer dia desses...

— Qualquer dia desses — ela concordou.

Ficamos acordados até tarde trocando novidades, e então finalmente fomos dormir. Rose e Dimitri ficaram alojados na sala, enquanto Jill dormiu no escritório, como sempre fazia quando visitava. Declan já tinha pegado no sono fazia tempo e, depois de cuidar para que ele deitasse confortavelmente no berço, fui para o meu quarto. Alugamos uma antiga casa vitoriana, e nosso quarto ficava na pequena torre lateral; era praticamente uma ala separada. Adorava o formato oval e a privacidade do quarto. Ele me fazia sentir como se estivéssemos no nosso próprio castelo.

Como Jill estava onde Sydney costumava estudar, não fiquei surpreso ao encontrar minha esposa na nossa cama cercada por livros, usando um robe curto.

— Você trocou de roupa — eu disse, fechando a porta atrás de mim. — Queria ver mais aquele vestido vermelho.

Ela sorriu para mim e fechou um livro intitulado Arte e arquitetura minoicas.

— Pensei que você fosse gostar mais dessa roupa. Mas posso colocar o vestido se quiser.

Eu a ajudei a empilhar os livros e tirá-los da cama para poder sentar ao seu lado.

— Depende — eu disse, passando a mão na perna dela. — Tem alguma coisa embaixo do robe?

— Não. Acho que devo trocar. — Ela fingiu se levantar e segurei sua mão, puxando-a para baixo e fazendo com que ela ficasse deitada.

— Nem pense nisso. — Ela colocou os braços em volta do meu pescoço e notei que ainda estava com as alianças, o que me lembrava da grande notícia dos nossos convidados. — Queria saber se Rose e Dimitri dariam conta de ter filhos — comentei. — Mas acho que essa é uma dúvida que não será resolvida tão cedo, já que ele nem consegue levar a menina pro altar.

Sydney deu risada.

— Acho que vai conseguir antes do que você imagina. Ela vive discordando, mas aposto que vai acabar cedendo. Igual a mim.

— Sim, mas sou muito mais charmoso do que o Belikov. E cozinho muito melhor. É uma batalha difícil pra ele.

— Talvez você possa dar algumas dicas — Sydney brincou.

— Talvez — concordei. Abaixei e dei um beijo nela, impressionado pela forma como o toque dela sempre me deixava em chamas. Mesmo depois de dias longos, sempre que voltava para casa, para perto dela, me sentia vivo e energizado. Tinha temido que, quando deixássemos de viver perigosamente, em fuga constante, a paixão pudesse perder a força. No entanto, a estabilidade e sobretudo a liberdade haviam intensificado ainda mais nossa paixão. A sensação que tivera no ano anterior havia se confirmado: não precisava do espírito. Só precisava de Sydney. Desci a mão para a faixa do robe e descobri que ela a tinha amarrado com um nó de marinheiro que só ela era capaz de desfazer. — Ah, não — resmunguei.

— Desculpa — ela disse, rindo de novo. — Nem pensei. Juro.

— Acredito em você — eu disse. Parei para beijar sua nuca. —Você é a garota mais inteligente que conheço. Não consegue evitar saber de tudo e ser sempre genial, e não aceitaria se fosse de outro jeito. — Dei mais um beijo na sua boca, mas, depois de alguns segundos, ela recuou um pouco.

— Ei — ela murmurou. — Tem gente em casa.

— Sempre tem gente em casa — eu a lembrei. — Foi por isso que fugimos para a torre do castelo. Plano de fuga número... droga, nem sei. Perdi a conta. Fazia tempo que a gente não precisava inventar um.

Sydney passou os dedos pelo meu rosto.

— É porque estamos vivendo esse plano, Adrian. Este é o único plano de fuga de que a gente precisa.

— Tem certeza? — perguntei, apoiando-me no cotovelo. Tentei assumir uma expressão contemplativa. — Porque há coisas que poderiam melhorar. Como uma casa maior. Ou talvez...

— Adrian — ela interrompeu. — Você não acabou de falar que sou genial e sei de tudo? Então confia em mim.

— Sempre — eu disse, deixando que ela me puxasse de volta para perto dela. — Sempre.

 

 

                                                   Richelle Mead         

 

 

 

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