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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CIRURGIÃO DE BATALHA / Frank G. Slaughter
CIRURGIÃO DE BATALHA / Frank G. Slaughter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CIRURGIÃO DE BATALHA

 

As cortinas que ocultavam por completo as janelas, devido ao black-out, não impediam que o bar do Royal George parecesse arrancado às páginas de Dickens. Nada lhe faltava. o mesmo lambril de madeira escura de carvalho, as mesmas gravuras desportivas, sem idade exacta, pregadas nas paredes, umas representando pugilistas de punhos nus, outras vencedores, há muito falecidos, de corridas de cavalos já no esquecimento. Também se podiam ouvir as mesmas canções, ricamente arrastadas pela pronúncia anasalada de East Anglia. Somente os uniformes dir-se-ia pertencerem a outro século. E a pistola automática de cano curto, dentro do coldre preso ao cinturão dum M.P.’, lembrava severamente que a guerra é hoje em dia uma ocupação de carácter internacional. Uma ocupação menos romântica do que outrora, mas sem dúvida muito mais eficiente.

 

O capitão, de cotovelos fincados no balcão, não se associara aos cantores. Mas ergueu o seu copo para as traves enegrecidas do tecto, num brinde silencioso, só dele conheciddo. Com esse gesto aliava-se à alegria dominante, sem sair do seu isolamento.

 

O copo, apenas meio de uísque, servia-lhe de espelho, e nele via reflectidas as bandas do seu uniforme, com o ouro do caduceu e as iniciais U.S., insígnias do Serviço de Saúde do Exército Americano. Mais acima das insígnias, divisava um rosto magro, de queixo pronunciado e boca contraída, apesar da juventude, num ricto de amargura, e uns belos olhos escuros a que sabia dar expressão ao mesmo tempo de reserva e simpatia.

 

Quando ouviu, à porta, alguém pronunciar o seu nome, voltou-se com um sorriso especial, que há muito conseguira tornar perfeito.

 

Um jovem alferes, acenando-lhe num gesto cordial, estugava o passo ao seu encontro, rompendo através da multidão. Era um rapaz de cabelos loiros, com todo o ar de estudante, apesar do uniforme em cuja banda a letra A se sobrepunha ao caduceu, a indicar que pertencia aos serviços administrativos.

 

- Porque diabo está sempre aqui metido, Rick?

 

M.P. - Polícia Militar.


O capitão esboçou um sorriso:

 

- Nunca ouviste a velha canção de caça inglesa: Entra onde a bebedeira for mais barata?

 

Este era um dos vários meios que Richard Winter usava para se defender de toda a gente. Conhecia o jovem Terry Adams precisamente há seis meses, desde que o rapaz fora incorporado na sua unidade, nos Estados Unidos. Mas a sua amizade possuía já esse valor sólido que só a guerra origina. No entanto, não podia dizer àquele jovem que estava ali há uma hora, convencido de que o seu destacamento deixaria o porto de embarque antes de escurecer uma outra noite e que encarava o facto sem a mínima emoção. Aliás, Rick Winter aprendera há muito a dominar a maior parte das suas emoções. Passara um ano em Espanha nas brigadas internacionais, depois outro ano num grupo canadiano que abrira a ferro e fogo o caminho da retirada desde as funduras das Ardenas até às praias homéricas de Dunquerque. Mas isso eram pesadelos muito pessoais e um homem sensato aprende a viver a sós com eles.

 

- Mais dois uísques - pediu Rick. E dirigindo-se ao amigo:

- Conseguiremos arranjar um canto em qualquer parte?

 

Pegaram nos copos e foram sentar-se num banco de madeira, de alto espaldar esculpido, próximo do fogão. Rick soltou um suspiro ao ver os olhos de Terry flamejarem de entusiasmo e excitação. Que palavras conviria dizer àquele garoto vestido de alferes que se preparava para enfrentar a guerra pela primeira vez?

 

- Quem te disse que eu estava esta noite fora do acampamento?

 

Terry Adams sorriu:

 

- Aprendi a seguir-lhe o rasto quando quero certificar-me dalgum rumor. Como está constantemente em contacto com o comandante, pode perguntar-lhe o que se passa...

 

- Cala-te! Tem cuidado! - murmurou Winter em francês, meio a sério, meio a brincar.

 

Terry baixou a voz e disse num sussurro:

 

- Ouvi dizer que partimos amanhã. E desta vez não é simples boato de caserna. Afirma-se que daremos um salto até África.

 

Rick respondeu serenamente:

 

- Lamento muito, Terry, mas sabes tanto como eu. Aqui para nós, também aposto na África, mas não passa dum palpite por enquanto.

 

A mão de Terry tremia um pouco; pegou no copo para beber e tornou a pousá-lo sem humedecer sequer os lábios. O seu rosto crestado por seis meses de vida militar mostrava-se abatido. Winter estudava-o atentamente, tentando avaliar a sua tensão interior. Os nervos de Terry tinham conhecido já toda a espécie de sacudidelas no caleidoscópio do último semestre. Primeiro, fora o trabalho árduo e monótono na escola militar; depois, uma vez obtido o grau de oficial, a passagem para uma existência sombria de papéis e mais papéis; finalmente, a excitação da transferência para a Europa, e de novo a inacção num porto de embarque, tendo por panorama as dunas inglesas... Winter julgou inoportuno dizer-lhe que a expectativa é o maior dos males da guerra. Essa era outra lição que o alferes Adams teria de aprender à sua própria custa...

 

Limitou-se a pronunciar:

 

- Ofereço-te outro uísque, meu rapaz. Bem o mereces.

 

- Um é a minha conta. Bem sabe porquê.

 

Rick riu com vontade. Tinham debatido muitas vezes esse problema durante os longos meses de vida em comum passados na base.

 

- Sempre com medo de fazeres seja o que for por causa dessa mulher que deixaste em casa?

 

- Censura-me por isso?

 

- Absolutamente. Não há lugar para Galaads nesta guerra. Quantas vezes terei de te repetir que com isso apenas fazes mal a ti próprio?

 

- Mas, Rick...

 

- Responde francamente à minha pergunta. Deixaste a tua Mary há quase seis meses. Há quanto tempo sentes tu o desejo de possuir uma mulher, uma qualquer?

 

Terry Adams contemplou o copo em silêncio. Como sempre, era-lhe extremamente penoso atacar assim, sem subterfúgios, o fundo da questão, e extremamente perturbador também. Desde que deixara Mary, já sentira de facto a tentação de ceder. Por vezes, quando não conseguia dormir, algumas recordações conduziam-no até ao limite da resistência. Ela surgia nos seus sonhos tal como na noite de núpcias a tivera nos seus braços. E repetia-lhe, num murmúrio, todas as palavras ternas da lua-de-mel. Na-Galaad - Um dos heróis da lenda medieval do Santo Graal. É o cavaleiro sem mácula e por isso teve o privilégio de descobrir o Graal perdido.


Estava outra vez ao seu lado, nua e sem pejo, num lago das Bermudas que o luar prateava...

 

Enquanto o capitão falava, o rosto de Terry tornava-se cada vez mais vermelho.

 

- Há certamente em qualquer parte uma rapariga disposta a ajudar-te, não como mercenária do amor, não por dinheiro, mas talvez por conhecer também as mesmas dificuldades. Quem sabe? Se procurares bem, és capaz de a encontrar até na nossa unidade. Não te importes com as razões do seu consentimento. Se ela se te oferecer, aceita-a, e não queiras saber de mais nada.

 

- Mas não seria justo...

 

- Para a tua mulher, queres tu dizer? Pois aí é que te enganas. Isso não tem nada que ver com os votos conjugais, nem nunca terá. Evidentemente, se acalentas a secreta esperança de voltar para casa vestido com uma camisa de forças... mas deixa-me calar; que tenho eu com isso? Sou cirurgião, não sou psicanalista.

 

Terry recuperara o sangue-frio. Bebeu o seu uísque em três grandes tragos.

 

- Continue, continue, doutor Freud.

 

- Há neste momento um baile no clube dos oficiais. Queres ir até lá? Poderemos explorar o terreno de caça...

 

- O senhor também, doutor?

 

- Eu também, meu pequeno! E porque não? Não sou casado... Não tenho portanto nenhum desses escrúpulos de consciência.

 

- Para falar verdade - declarou placidamente Terry - marquei um encontro com uma jovem no Railway Arms. Quer vir comigo?

 

- É melhor ires sozinho. Podia estragar-te a conquista.

 

- Não se trata duma conquista. É a minha irmã. Linda Adams. Nunca ouviu falar dela?

 

- Quem não ouviu falar dela? Mas porque guardaste esse segredo até agora?

 

- Porque sei que tem horror aos jornalistas. E sobretudo às mulheres dessa espécie. Mas, para lhe ser franco, não queria apresentá-lo a Linda sem saber primeiro se ela tinha ou não medo dos lobos...

 

Calou-se, confuso e perturbado com o olhar frio que Rick lhe lançou. E tão frio como esse olhar era a voz do capitão quando lhe observou:

 

- Não me digas que vem ser correspondente de guerra na nossa unidade.

 

- Pois digo-lhe isso mesmo. E ainda mais, que fará a viagem connosco no mesmo transporte, autorizada pelo Ministério da Guerra e pelos Serviços de Informação. Agora tenha a bondade de desfazer essa carranca que mete medo e venha daí falar-lhe.

 

- Se não te importas, prefiro ficar aqui sentado, Tenho de me habituar primeiro a essa ideia. Aliás, tu mesmo lhe podes pedir que não transforme esta guerra numa cruzada. Como bico-de-obra, este sabe defender-se muito bem sozinho. O maior bico-de-obra da história...

 

Ao ver o rosto de Terry pálido e magoado, Winter engoliu o resto da diatribe.

 

- Não faças caso, meu rapaz! Sei que a tua irmã é uma personagem importante. E tens todo o direito de te orgulhares dela. Queres levá-la ao clube esta noite?

 

- Se não estiver muito fatigada da viagem...

 

- É natural que esteja. Mas se for, cumprimentá-la-ei nessa altura. E esquece o meu conselho de há pouco. Como a maior parte dos conselhos, provavelmente não tem nenhum valor.

 

Ficou a ver a delgada silhueta de Terry desaparecer por trás das cortinas negras que ocultavam a porta do Royal George. Desta vez, estava disso convencido, a sua insignificante prédica ajustava-se de tal forma aos mais ardentes desejos de Terry que ele não a esqueceria. Qualquer noite, atrevia-se a beber um segundo uísque e, em seguida, quase inevitavelmente, se estivesse bem acompanhado, o resto sucederia sem dar por isso... Examinando as consequências, Rick concluía que o rapaz havia de se sentir depois melhor, se fosse bastante prudente para não contar nada à esposa.

 

O capitão encomendou outro uísque e continuou a meditar no facto surpreendente de Terry poder ter uma irmã como Linda Adams. Parecia-lhe no entanto uma criancice esse deliberado propósito de lhe ocultar circunstância tão natural como a de ter uma irmã, e ocultá-la durante seis meses... Felizmente nunca dissera diante de Terry o que pensava de Linda.

 

Seis anos antes, avistara-a de fugida em Espanha, quando ela passava a toda a velocidade num automóvel a transbordar de galões dourados e de cumprimentos latinos. A sua estrela principiava então a subir. Dois anos mais tarde, o seu nome era conhecido em todos os lugares onde se imprimem os best-seller e em toda a parte onde a rádio é livre. Linda Adams, a autora de O Enteado da Europa; Linda Adams, cuja emissão «O Ponto de Vista da Mulher» tinha quase tanta popularidade como os programas preenchidos com melodias de cantores sentimentais.

 

Como não havia de ter horror a uma tal mulher, mesmo sem nunca lhe ter falado?

 

Jamais contara a Terry que um dia atirara o último livro dessa jovem pela vigia do seu camarote, ao regressar de Barcelona para ir descobrir outra guerra. Em suma, nessa noite despedaçara um ídolo de Terry. No entanto, não faltaria à sua promessa e apareceria no clube dos oficiais. Por várias razões. Se Linda Adams estivesse lá com o seu caderno de apontamentos, mostrar-lhe-ia o género de delicadeza que reservava às intelectuais e petulantes da sua espécie.

 

Restava-lhe justamente o tempo necessário para engolir um último uísque, e apaziguar assim um pouco mais o espírito. Depois disso, talvez acabasse por admitir que não valia a pena gastar cera com ruins defuntos...

 

O ruído do chuveiro deixou de se ouvir e Gina Cole pôs os pés nos ladrilhos da casa de banho. Dobrou, torceu, estirou o corpo nu, com a alegria voluptuosa duma jovem pantera. O espelho da parede, embaciado pela humidade, assegurava-lhe que todas as suas curvas eram como deviam ser, proporcionadas e bem no seu lugar, desde os pomos firmes dos seios às linhas sedutoras das coxas, das pernas e dos finos tornozelos. Enxugou cuidadosamente um pé, meteu-o numa chinela, e interrompendo-se por instantes, ainda nua, interpelou a sua colega de quarto no lar das enfermeiras:

 

- Continuas a usar o teu roupão transparente, Carolyn? E se há fogo?

 

- Os meus pijamas cobrem-me de forma adequada - respondeu tranquilamente a outra.

 

Carolyn Rycroft era loira, dum loiro quase dourado. Naquele momento lavava as meias de seda numa bacia contígua.

 

- Pijama de seda, não é verdade?

 

- Não, de popelina.

 

A opulenta Vénus torceu o nariz e envolveu-se num macio roupão vermelho.

 

- Por minha parte, prefiro dormir nua. Quando muito, com um pijama de crepe da China.

 

- Mesmo em tempo de guerra?

 

Gina pegou num pente e pôs-se a tufar a cabeleira negra:

 

- Oh! A minha guerra nunca mais tem fim. É a eterna luta do macho pela conquista da fêmea. Estou alistada nela para toda a vida, ao passo que este emprego de auxiliar de radiologia é apenas temporário: o meu contrato dura enquanto durar a guerra. A guerra militar, bem entendido.

 

- E pelo que oiço dizer - observou Carolyn, sempre calma

- parece que triunfas facilmente.

 

- Sim, possuo uma boa colecção de admiradores, se é isso que queres insinuar. E dois deles levam-nos esta noite ao baile do clube. Agrada-te?

 

- Nem sei. Ando demasiado desnorteada para saber se me agrada qualquer coisa.

 

- Não te aflijas, a nossa promoção será um facto antes do fim da noite, sobretudo se o doutor Winter entrar em cena.

 

- O doutor Richard Winter?

 

Carolyn fez a pergunta sem levantar os olhos do seu trabalho.

 

- Sim, os amigos tratam-no por Rick - informou Gina. E será também teu amigo, minha bela, se valorizares um pouco mais a tua figura que tanto descuras.

 

Carolyn declarou modestamente:

 

- Mas eu conheço o doutor Winter. Trabalhei com ele esta tarde.

 

- Quando fez uma esplenectomia?

 

A enfermeira loira abanou afirmativamente a cabeça:

 

- Foi um trabalho perfeito. Nunca vi ninguém melhor do que o capitão Winter.

 

- Na sala de operações ou cá fora?

 

Carolyn procurou dissimular o aborrecimento. Chegara nessa manhã à unidade, como substituta, mas era enfermeira diplomada de cirurgia. Não imaginava que o Dr. Winter pudesse ser, fora das horas de serviço, um terrível conquistador. Fora tão agradável para ela nessa tarde... É verdade que lhe falara asperamente por causa da sua imperícia numa sutura... Mas isso sucedia com frequência nas salas de operações, quando os cirurgiões tinham os nervos tensos... Essa mesma tensão nervosa fazia-os às vezes esquecer quem eram os assistentes... Mas o capitão Winter, quando ela reunia os instrumentos cirúrgicos, passara junto de si e parara para lhe agradecer a colaboração, e isso raramente sucedia com outros médicos. Agora, pensava, desapontada, que ele só a vira com a máscara e touca e naturalmente não a reconheceria de rosto descoberto... Mas o riso de Gina despertou-a para as realidades do momento:

 

- Sentes-te uma Florence Nightingale, não é verdade? E ambicionas medalhas... Oxalá as possas usar durante toda a guerra sem as embaciares.

 

E dito isto desapareceu num frufru de sedas a arrastar nos ladrilhos.

 

Quando Carolyn, por sua vez, abandonou o chuveiro e entrou no minúsculo e atravancado quarto de cama, Gina tirava do armário um comprido vestido de noite de seda branca. E viu-a depois, com certo espanto, retorcer-se toda para fazer deslizar nas ancas o tecido muito justo ao corpo.

 

- Não vestes absolutamente nada por cima disso?

 

- Porque havia de vestir outra coisa? Isto cobre-me completamente.

 

- Mas é duma indiscrição tão... tão acentuada...

 

- Absolutamente de acordo. Em minha opinião, a mulher deve pôr bem em evidência os dons que possui.

 

E desarrolhando um frasco de perfume, passou várias vezes no vinco dos seios a pequena haste de vidro. Carolyn Rycroft pegara já na sua cinta.

 

- Não quero, obrigada! Como vou para a guerra, tenho de levar uma armadura.

 

No entanto, pusera de parte a primitiva ideia de ir ao clube de uniforme. Tinha um vestido de noite na mala. Era de seda branca, como o de Gina. E também uns preciosos sapatos de baile e umas divinas meias de nylon... Nenhum regulamento proibia as enfermeiras de andarem com vestidos de noite na bagagem... Quando já estava quase pronta, ajeitou bem a saia e submeteu-se à apreciação da colega:

 

- Não te contraria o facto de irmos as duas de branco, pois não?

 

- E porque havia de me contrariar? - perguntou Gina, muito afável. - O branco é a cor das virgens, ninguém o ignora, isso talvez impressione um pouco os nossos cavaleiros de escolta.

 

Carolyn ergueu as mãos para o céu, num gesto de protesto, mas não deixou de sorrir e voltou para junto do toucador. Era estranho. Gina Cole às vezes escandalizava-a e no entanto estava sempre disposta a ouvi-la...

 

A carreira de Carolyn fora, em todos os tempos e em todos os sentidos, uma carreira modelo. Nascera no Iowa, formara-se num colégio de Middle West e chegara a um hospital de Nova Iorque com um ideal intacto. Tinha já três anos de prática quando se alistou, logo após Pearl Harbour... Até àquele momento, a Inglaterra não lhe parecera um país estrangeiro: encontrara ali a familiar rotina do hospital e com facilidade se adaptara às diferenças.

 

Bastava-lhe saber que o seu trabalho era tão útil ao seu país como a si própria. Esperava, no fim da guerra, voltar aos Estados Unidos como assistente cirúrgica qualificada. Talvez mesmo, sonhava nos momentos de maior optimismo, e a sua respiração tornava-se mais e mais apressada, como esposa dum cirurgião. E se regressasse com o nome de senhora Winter, por exemplo? Se o que Gina contava era verdade, podia alimentar algumas esperanças. E tais sonhos não fazia também parte da atmosfera excitante da guerra?

 

Oh! Mas era muito possível que ela se enganasse a respeito do valor dos seus encantos. Nesse caso, restar-lhe-ia sempre o recurso de reconhecer que não os possuía e retomar o caminho das salas de operações na qualidade de enfermeira especializada. Antes de partir, tinham-lhe prometido um lugar quando regressasse do velho continente. Com o decorrer dos anos, subiria a enfermeira-chefe, cultivando simultaneamente o gosto das solteironas pelas empadas de frango e pelos encontros com Clark Gable no cinema mais próximo. Nessa altura, claro, com o galã que tivesse substituído Clark Gable...

 

- Acorda, minha bela, e regressa a este mundo! - exclamou Gina. - Quem quer que seja, não procures seduzi-lo em imaginação, persegue-o antes em carne e osso... E não abuses muito do rouge. E bom dar ao rosto a possibilidade de corar naturalmente, quando a ocasião se proporciona... Vamos, os nossos cavaleiros esperam-nos.

 

Carolyn nunca mais pôde lembrar-se do nome do seu alferes. Recordava-se somente que era atarracado e afável e tinha a doce pronúncia dos habitantes da Georgia.

 

Mal saíram do lar das enfermeiras, a noite do Outono saltou-lhes ao caminho, fria, enevoada e ressoante dos hediondos gemidos dos guindastes do cais, a carregarem os navios para o embarque próximo.

 

Do lar ao clube a distância era curta. A música de baile, coada através das pesadas e negras cortinas do black-out, flutuava no ar nocturno. Carolyn deu o braço ao seu alferes e correu para essa música, como uma adolescente corre para o seu primeiro passeio ao luar.

 

Agora havia uma prece nos seus lábios. Uma única prece. Que o capitão Winter aparecesse em campo e a reconhecesse sem a máscara e sem a touca.

 

Num quarto do Railway Arms, Terry Adams, depois de apagar a luz, afastou as cortinas e contemplou o porto, lá em baixo. O nevoeiro era agora menos denso. Para lá do tumulto da rotunda do caminho-de-ferro e dos armazéns dos cais, distinguia os vultos negros dos transportes e o casco luzidio dum torpedeiro ancorado. O conjunto assumia as formas irreais dum quadro de pesadelo. E o seu espírito pressentia, sabia, que no dia seguinte faria provavelmente parte desse comboio que se formava a toda a pressa. E esse mesmo espírito, no entanto, recusava-se a admitir o facto como uma certeza, até como uma possibilidade.

 

Uma voz feminina chamou-o da casa de banho; só então ele emergiu do oceano de angústia em que mergulhara, correu as cortinas e acendeu de novo a luz. A voz da irmã produzira-lhe o efeito habitual, o de um bálsamo sobre uma chaga. Mais exactamente nesse instante: o de uma onda de óleo num mar encapelado.

 

- Encomendaste alguma bebida, Terry? Eu estou quase pronta.

 

- Um minuto de paciência, Linda - respondeu, com forçada jovialidade.

 

Ele sabia perfeitamente que a irmã já adivinhara a sua perturbação, mas não sabia ao certo qual o sentimento que o dominava, se o desejo, a necessidade dos seus conselhos, ou o receio da conversa que ia iniciar-se.

 

Linda saiu da casa de banho, o vestido de noite a envolver-lhe os ombros como uma onda de espuma. Era um vestido branco, de crepe da China e tule. O irmão recuou um pouco, para a admirar, invadido, como sempre junto dela, dum misto de ternura e de medo. Linda era uma dessas mulheres altas e esbeltas para as quais dificilmente há termo de comparação. Um francês qualificá-la-ia defausse maigre, e essa expressão intraduzível mas significativa, definia-a com propriedade. A sua silhueta quase perfeita nada tinha de excitante nem de equívoco que sugerisse a volúpia. Era, em suma, demasiado positiva.

 

Nessa noite, desde o profundo decote em V, ao suave ondeado dos cabelos cor de cobre, dir-se-ia um Ticiano do século vinte. Mas bastava encontrar o seu firme olhar azul para logo se concluir que não era somente bela. E se o seu corpo seduzia, o inquieto dinamismo desses olhos aconselhava moderação.

 

- Não me admira que consigas todas as notícias que desejas - observou Terry. - Com semelhante indumentária, podes obter decerto as   confidências   de   qualquer   ditador,   sem exceptuar nenhum.

 

Linda deu-lhe uma leve palmada no rosto:

 

- Economiza os elogios. Esta é sem dúvida a minha última noite de gala! Ninguém muda de vestido para jantar a bordo dos transportes de guerra.

 

Instantaneamente, Terry tornou-se grave:

 

- Então, sempre é verdade, vamos embarcar? Obtiveste a informação em fonte segura?

 

- Não me teriam enviado para aqui a toda a pressa se o embarque não estivesse por horas. Baseando-me nesta intuição, ou para melhor, nesta dedução, já escrevi o meu primeiro artigo. Ao dizer isto acariciou a sua máquina de escrever portátil. É claro, só será transmitido mais tarde, pelo cabo submarino, quando estivermos no mar alto...

 

- Conheces o nosso destino?

 

- Nem mesmo o teu coronel poderia responder neste momento a tal pergunta. É, como as circunstâncias impõem, o segredo melhor guardado da história. Pega num mapa e pousa nele um lápis ao acaso; podes ter a sorte de acertar: Noruega, África, índia... - Linda tirou uma escova de cima do toucador e principiou a escovar-se, sorrindo. E acrescentou: - Também pode muito bem ser alguma praia no outro lado da Mancha.

 

Terry Adams respirou fundo:

 

- Fala claro e sem rodeios. Achas que serei capaz de suportar o chinfrim?

 

A escova continuava o seu tranquilo vaivém.

 

Não tenho dúvidas a tal respeito. Começarás por sentir medo. E eu também. Já espero isso mesmo. Mas suponho que nem tu nem eu o daremos a perceber.

 

- E se eu não conseguir disfarçar o medo?

 

- Queres tu dizer, se formos bombardeados?

 

- Não, durante a batalha.

 

- Pertences aos serviços administrativos, Terry. Certamente não andarás perto da frente.

 

- Pois enganas-te. A nossa unidade é uma das mais móveis de todo o exército. Somos um hospital de campanha. E levamos connosco tudo quanto possa ser preciso nas linhas de fogo.

 

A escova interrompeu o seu movimento e Linda fitou no irmão uns olhos inquietos.

 

- E é com um grupo desse género que vou embarcar? Conta-me o que sabes.

 

- Os espanhóis e os russos ensinaram-nos a técnica das unidades médicas móveis. Provaram que a mortalidade entre os feridos pode ser consideravelmente reduzida se os socorros forem prestados sem demora e o tratamento começar em acto contínuo. Trabalharemos provavelmente à frente da nossa artilharia.

 

Terry apertava os dedos uns contra os outros, ao ponto de tornar esbranquiçadas as articulações e olhava fixamente o vácuo.

 

- Soube isto pelo major Strang, o nosso cirurgião-chefe.

 

- E tu receias não poder estar à altura da situação?

 

- Ontem à noite houve um bombardeamento insignificante. Alguns Heinkels largaram as suas bombas e fugiram. Apenas meia dúzia. - O rapaz engoliu dificilmente a saliva e continuou:

- Pois meti-me debaixo da cama, como um coelho. Esta manhã ainda lá estava... e o mais aborrecido é que verdadeiramente não sinto medo. Simples questão de nervos. Não podes imaginar como eles se destrambelharam nos últimos meses. Se eu pudesse fugir de mim próprio... Nem que fosse só por uma noite...

 

Linda pousou a escova e acariciou-lhe os cabelos. Terry nunca deixara de ser criança, pensou. E sê-lo-ia sempre. De facto, pouco mais era ainda do que um garoto. Noutro tempo, bem se lembrava, livrara-o muitas vezes de apuros, acalmando-lhe os terrores, mas aquele problema somente ele podia e devia resolvê-lo, e resolvê-lo como um homem. Interrogou-o carinhosamente:

 

- Já examinaste essa questão com alguém?

 

- Não sou médico - disse Terry -, no entanto posso diagnosticar o meu mal. Chamemos-lhe depressão nervosa...

 

- Supunha a depressão nervosa uma consequência das explosões das granadas...

 

- Ouvi há dias uma conferência a esse respeito. Essa teoria está abandonada. As perturbações que resultam duma detonação próxima e que frequentemente são motivadas pela deslocação do ar, classificam-se hoje pela designação de «estado de choque». A depressão nervosa é apenas uma neurose acumulada pela própria vida de guerra, com as suas fadigas, desassossegos e privações diversas. Às vezes acaba por curar-se; outras vezes produz-se uma explosão, uma crise de nervos, porexemplo... E justamente neste momento sinto-me prestes a explodir... a não ser que encontre forma de me retemperar...

 

Um criado apareceu com as bebidas, pousou-as em cima da mesa, meteu no bolso o dinheiro que Terry lhe deu e foi-se embora olhando de soslaio.

 

Terry estava visivelmente perturbado e a sua mão tremia ao entregar o copo à irrnã.

 

- Receio bastante ter-me traído, Linda. Se não fôssemos tão perfeitamente amigos...

 

- Conta-me então tudo, idiota! Que entendes ao certo por retemperar!

 

De súbito, ele bebeu o seu uísque dum só trago.

 

- O que é que supões?

 

Antes de responder, Linda pesou a ideia com calma. Depois disse:

 

- E Mary, o que pensará a esse respeito?

 

- Dir-se-ia que compreendes tudo por meias palavras.

 

- Há sete anos que sou jornalista, e possuo uma boa estenografia mental.

 

- Então? Qual é o teu veredicto? Mas Linda esquivou-se à pergunta:

 

- Discutiste com certeza o problema com alguém. Não tentes fazer-me crer o contrário.

 

- O capitão Winter deu-me esta noite a sua opinião! .   - O capitão Richard Winter?

 

- Sim; conhece-lo?

 

- De nome. Não fez parte do estado-maior do cirurgião Trueta, na guerra de Espanha?

 

- É esse mesmo. Encontrá-lo-ás esta noite no clube.

 

E se eu não tiver nenhuma vontade de o encontrar? Como vês, já adivinhei o que ele te aconselhou.

 

- Tens razão, Linda. Rick aconselhou-me a não ir além das minhas forças e a fazer a corte à primeira jovem disposta a escutar-me .

 

Durante um momento, inquieta e perturbada, Linda ponderou essa estratégia masculina. Era exactamente o que esperava do capitão Richard Winter. Ouvira falar dele em várias capitais europeias, durante os últimos anos, desde Barcelona a Varsóvia. Em Espanha estivera envolvido numa espécie de escândalo com a filha dum alcaide. Outro em Paris, com uma estudante da Sorbona... Via Rick em imaginação e os seus lábios esboçaram um vago sorriso. Um desses lobos que a guerra alimenta...

 

- Tencionas seguir o seu conselho, Terry? De olhos fixos no tapete, o jovem respondeu:

 

- Não, a não ser que me aconselhes a segui-lo.

 

- Desde quando me consideras uma autoridade em tal assunto? Julgas que não há para mim limites em qualquer língua, incluindo as escandinavas?

 

Ficou satisfeita ao ouvir rir o irmão.

 

- Linda! Não me faças parecer ainda mais desastrado do que sou!

 

- Penso, pelo contrário, que és encantador com a tua franqueza. Espero no entanto que continues fiel às tuas opiniões e sincero para Mary.

 

- Rick diz que seria também melhor para Mary se eu...

 

- O teu amigo Rick tem todo o ar de um insuportável sofista.

 

- Não compreendo muito bem.

 

- Compreenderás melhor quando fores mais velho, querido. O seu sistema é sem dúvida excelente para ele. Mas tu sabes bem que nunca mais poderias olhar para Mary bem de frente se...

 

Mas Terry também já não a olhava de frente. E ela nunca chegaria a saber se de facto o ajudara ou lhe carregara apenas a consciência com um novo fardo. Teria parecido aos seus olhos uma pedante, repleta de fatuidade, com a sua moral de pataco? Linda encolheu os ombros, atirando para trás das costas essa nova inquietação, e pegou na capa.

 

- Vamos, senão chegaremos atrasados ao clube, Terry. Lembra-te que tenho de dançar várias vezes com os teus superiores, para abreviar a tua promoção.

 

Terry desceu, cambaleando, atrás dela, os degraus da escada escura: o Railway Arms observava escrupulosamente o black-out.

 

- Escuta, Linda, não fiques aborrecida comigo. Reparo agora que falei fora de propósito. Mas tinha necessidade de desabafar com alguém...

 

- O capitão Winter não bastava?

 

Um silêncio insólito estabeleceu-se entre ambos e a pergunta ficou sem resposta. O silêncio persistiu durante todo o caminho, no estreito carreiro de pranchas que atravessava um campo de exercícios lamacento, até atingirem a luz encarapuçada que iluminava veladamente a guarita da sentinela à entrada do aquartelamento do 95.° Hospital de Campanha do exército norte-americano.

 

Terry encontrou certo alívio em chalacear com o sargento da guarda. O segundo uísque zumbia-lhe aos ouvidos um estribilho sombrio e selvagem quando tomou o braço da irmã e a ajudou a atravessar uma espécie de caixa, feita dum duplo jogo de portas, que assegurava o black-out à entrada do clube.

 

Assim que apresentasse Linda ao coronel e adquirisse a certeza de que não lhe faltariam pares, principiaria então a sua caça nocturna. Estava decidido. E uma vez tomada uma decisão, tudo o mais era extremamente simples.

 

Uma imagem lhe atravessou o espírito. Mary, vestida de noiva, sorria-lhe por cima dos jasmins-do-cabo, no jardim da sua mãe. Depois outra visão: Mary, nos seus braços, valsava na coberta do vapor que os conduzira às Bermudas, em viagem de núpcias. Mas tais recordações eram insuportáveis naquele momento. Ia nessa noite desterrá-las para qualquer recanto onde nenhuma irmã, por mais esperta, fosse capaz de as descobrir.

 

Guiou Linda com mão firme até à porta do vestiário, e quando a deixou dirigiu-se à pressa para o bar, decidido a beber um terceiro uísque antes do baile começar.

 

O vestiário estava a transbordar de mulheres, a maior parte em vestidos de noite; mas no meio dessas rendas, tules e crepes, viam-se também uniformes: os azuis da Cruz Vermelha e o caqui claro de uma ou duas oficiais do W.A.A.C.1

 

Linda Adams parou um momento à entrada, envolvida num turbilhão cacofónico de conversas. Depois, aproximou-se do toucador, pendurou negligentemente a capa e abriu a malinha de mão. No entanto, não tirou de lá a borla do pó-de-arroz, mas sim

 

A.A.C. - Corpo Auxiliar Feminino do exército americano.

 

um caderno de apontamentos e um lápis, objectos indispensáveis a todos os jornalistas, tanto em Nova Iorque como em Moscovo...

 

Ia começar o artigo que tinha de enviar para o seu jornal e cujas linhas gerais já esboçara em pensamento. Pondo de lado Terry e os seus problemas, podia dedicar às suas obrigações profissionais toda a atenção. Congratulava-se por praticar, desde longa data, essa disciplina. Mas nessa noite ela aventurara-se num terreno proibido. Os costumes e a moral dum homem, tal como o seu gosto em matéria de gravatas, são coisas em que nenhuma mulher deve meter o nariz.

 

Duas jovens, ambas vestidas também de branco, aproximaram-se do grande espelho do vestiário, para um exame final. Uma era loira, delicada e atraente; a outra, alta, morena e com curvas de sereia. Antes mesmo de as ouvir falar, Linda adivinhou que as duas eram enfermeiras.

 

A das curvas de sereia dizia:

 

- Repito-te, Carolyn, já o vi debaixo do arco, qual caçador em emboscada, à espreita da presa. Já sabes de quem se trata, do nosso Rick Winter.

 

- Sim, e então?

 

A voz da loira era reservada.

 

- Desculpa, querida, se sei ler os pensamentos. Mas o melhor é deixar falar a natureza e ver depois o que sucede.

 

E afastaram-se, envolvidas nas ondas do riso da sereia. Linda guardou o bloco de apontamentos e seguiu-as.

 

O baile estava no auge, e apesar da nudez fria da grande sala do clube, criava por si próprio calor e alegria. Uma orquestra de mobilizados moía com dificuldade uma rumba, no meio dum rumor confuso de vozes humanas.

 

Linda viu as duas enfermeiras nos braços dos seus cavaleiros de escolta, dois alferes parecidos com as figuras que ilustram os cartazes de recrutamento. A loira não tardou a perder-se no meio dos outros pares, mas a morena agitou audaciosamente a mão para um capitão de elevada estatura, postado no outro extremo da sala, rosto magro e bronzeado, delgada silhueta entre dois pilares. Richard Winter em carne e osso.

 

Linda examinou-o durante algum tempo. O sangue afluía-lhe às faces, onda rápida que ela não podia deter nem compreender. Viu-o romper a direito pelo meio da multidão, e reclamar a loira ao seu par. Viu-o ainda rodopiar ao ritmo complicado da rumba.

 

Ergueu então a cabeça altiva, atravessou a sala e dirigiu-se para o bar, à procura de Terry.

 

Um pião lançado com mão de mestre não rodopiaria com mais vivacidade do que o capitão Richard Winter com Carolyn Rycroft nos braços. As cabaças de maracá, agitadas pelos músicos da orquestra, dir-se-ia marcarem o ritmo das suas pulsações. A sua face pousava nos cabelos loiros e tépidos, e aquele contacto apressava-lhe a circulação do sangue nas veias, numa cadência não menos imperiosa que a das maracás. Mas ele não fazia fosse o que fosse para acalmar pulsações tão desordenadas...

 

- Sabe que faz muito mal em dançar com um alferes? - interrogou .

 

Carolyn não ergueu os olhos, mas riu baixinho, denunciando bem o seu contentamento:

 

- Porquê, capitão?

 

- Por uma razão muito simples: como a sua patente é superior, ele tem de obedecer às suas ordens, o que é mau para qualquer homem, mesmo para um alferes.

 

- E convosco?

 

Rick percebeu que ela se amoldava ao seu humor com a mesma facilidade que o seu corpo se submetia aos movimentos e à cadência da dança.

 

- A resposta não é intuitiva?

 

- Quer dizer, tudo está bem, uma vez que a sua patente é superior à minha?

 

- É como diz, tenente.

 

Carolyn tornou a rir baixinho, um riso feliz.

 

- Quais são agora as suas ordens, capitão?

 

Por enquanto, podemos continuar assim. Mas quando tocarem uma valsa, venha comigo lá para fora fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.

 

  1. dito isto, fê-lo rodopiar como um dervixe.

 

Rick, não o podia negar, sentia-se plenamente satisfeito, e aquele instante da sua vida teria sido da mesma forma saboroso sem a resposta complacente da jovem. Atraiu-a mais a si e demorou os dedos, deliberadamente, na curva dos seios de Carolyn, numa leve carícia.

 

- A ordem foi entendida, Miss Rycroft?

 

- Perfeitamente, capitão. E fico contente por se lembrar do meu nome.

 

Mais do que uma simples frase, era uma confissão suspirada. Winter estava absolutamente senhor do terreno.

 

- As boas enfermeiras especializadas em cirurgia não brotam do chão como os cogumelos - disse Rick. - Nem mesmo durante uma guerra de primeira classe como esta. Há quanto tempo está na Europa?

 

- Somente há uma semana. Mas não se nota muito, pois não?

 

- Isto assemelha-se ao que imaginava?

 

- Absolutamente. E excede mesmo o que supunha.

 

- O trabalho também?

 

- Sobretudo o trabalho. Sempre o adorei. O de cirurgia, é claro. - E num arrebatamento, exprimiu o seu maior anseio:

- Poderei ficar integrada no seu grupo, como enfermeira? Pode conseguir isso?...

 

- Já consegui... - respondeu Rick, com sincera alegria. Arranjei as coisas com Strang esta tarde, logo após a nossa esplenectomia.

 

E esmagando contra o peito o seu arfar de contentamento, arrastou-a num último turbilhão frenético, ao som das maracás sacudidas com frenesim.

 

- Posso acrescentar - continuou - que foi um arranjo puramente, deliberadamente prático. Não uma recompensa. Nunca misturo o trabalho com o prazer.

 

- Isso também me agrada - observou Carolyn, sentindo a orla dum pesado reposteiro roçar-lhe os pés e o vestido de seda, enquanto rodopiava do calor e da luz do salão para a obscuridade fresca da varanda. Um outro par terminava igualmente ali a sua rumba. silhueta indistinta num fundo de estrelas. Dançando sempre, Winter arrastou Carolyn até à balaustrada.

 

Aos telhados do acantonamento, para lá do arame farpado, sucedia um extenso matagal selvagem. Mais adiante, uma súbita escarpa, vertiginosa, e depois o silêncio da Mancha. Não era a primeira vez que utilizava esse cenário para o primeiro acto de um drama eterno.

 

Carolyn não protestou quando ele diminuiu a pouco e pouco o ritmo da dança, tão gradualmente que seria difícil determinar

 

com precisão o momento em que os seus braços lhe envolveram o corpo e transformaram a rumba num verdadeiro amplexo. No entanto, ainda balouçavam os dois ao som abafado da música, quando ela sentiu uma boca apossar-se da sua. Primeiro brandamente, até que os lábios dela cederam e Rick se apercebeu do profundo estremecimento da sua resposta...

 

Quando findou o beijo, Carolyn Rycroft abriu os olhos, e, mesmo no escuro, Winter pôde ver que esses olhos brilhavam. A resposta da jovem era total. Com um cálido murmúrio, apertou-a novamente nos braços.

 

A orquestra estava agora silenciosa. Não podiam desculpar-se que terminavam a rumba, à maneira latina, com um beijo. Os lábios de Carolyn entregavam-se-lhe, e nem mesmo quando ele insinuou a mão na profunda abertura do decote, ela protestou. Reteve-a assim, em apertado abraço, durante toda uma eternidade perfumada, desafiando-a a romper o encanto que um e outro sentiam. Quando, finalmente, a libertou, viu-lhe os olhos embaciados por uma sombra de tristeza.

 

Et, dans I’ombre, je devinais tes prunelles... Et je buvais ton souffle...’

 

Os versos de Baudelaire dançavam-lhe no cérebro. Mas não os citou em voz alta. A poesia já algumas vezes o auxiliara em momentos semelhantes, mas agora não tinha necessidade da sua ajuda. Carolyn era por si só suficiente poesia. Pelo menos naquele instante. Sorriu ao vê-la recuar um pouco.

 

- Deseja recuperar tão depressa a dignidade?

 

- Se não se importa...

 

Não, não se importava absolutamente nada. Aproximou de novo, ao de leve, os seus dos lábios dela, desafiando-a uma vez mais a resistir a esse convite. Ela respondeu, num suspiro:

 

- Só um pequeno beijo, suplico-lhe. E depois leve-me para a sala.

 

Os seus lábios tocaram-se numa última carícia quase irreal. A orquestra principiara a tocar o Wienerblut. Carolyn Rycroft retirou a mão hábil de Rick de cima do seio e colocou-a na sua

 

Em francês no original: «E no escuro eu adivinhava as tuas pupilas.../ E bebia a tua respiração...»

 

cintura. Depois, inclinou-se para ele com um sorriso que mal disfarçava toda a emoção:

 

- Gosto de valsar, Rick.

 

Era a primeira vez que empregava aquele diminutivo, e não deixava de ser curioso depois do que se passara.

 

- Evidentemente, se deseja voltar para a sala...

 

- Não, não o desejo. E precisamente por isso é preferível. Sem proferir mais uma palavra, o capitão Winter arrebatou-a

 

nos passos da valsa iniciada. No fim de contas, tratava-se apenas do primeiro acto. Teria muito tempo, mais tarde, de atingir o ponto culminante.

 

Um major da Força Aérea meteu-se de permeio e tirou-lha dos braços, antes de poderem dar uma volta completa no salão. Rick aplaudiu-a em silêncio, ao vê-la afastar-se, com o seu novo par, calma e graciosa, sem qualquer sinal de perturbação. Apenas o brilho dos olhos a traía. Mas, claro, o major decerto estava já persuadido de que fora ele que acendera essas estrelas.

 

A atmosfera do baile atingia o ponto de ebulição. Em muitos outros olhos, além dos de Carolyn, flamejavam chispas. Eloquentes marcas de carmim decoravam as faces queimadas pelo sol de alguns militares. Sob uma aparência de decoro, o Exército, nessa noite, palpitava de alegria. Muda admissão de que no dia seguinte todos esses pares estariam dispersos por uma dúzia de frentes de batalha...

 

Terry Adams dançava com uma jovem vestida de branco que podia ter servido de modelo a uma Vénus de Rubens. Rick conhecia-a bem, quase bem de mais... Gina Cole, técnica especializada em raios X. Bem, os seus deliciosos encantos não fariam mal a Terry, mas...

 

Deu um passo em frente para os separar, mas reconsiderou a tempo ao lembrar-se do conselho que dera nessa noite ao jovem alferes. Talvez Gina fosse exactamente o récipe que o médico receitara ao paciente, se porventura era possível tornar com moderação um medicamento como Gina Cole! Winter viu o rosto do jovem, na altura em que invertendo o movimento da dança, fazia rodopiaro seu ágil parem sentido inverso. Terry estava um pouco vermelho, nada ofegante e absolutamente satisfeito...

 

«O que está bem, deixá-lo estar», pensou Winter, e afastou-se.

 

O olhar de Rick, vagueando pela sala, fixou-se noutra jovem vestida de branco. Alta, elegante, um par patrício, e cabelos cor de cobre. Rodopiava nos braços de Randall Strang, o chefe dos serviços de cirurgia da sua unidade. Winter inclinou-se um pouco, para lhe observar melhor o rosto, na altura em que o major a impelia num pomposo rodopio. Durante alguns segundos, sentiu vontade de ir tomar o lugar do chefe. O Dr. Strang era partidário duma disciplina rígida, no estilo da velha escola, com toda a superficial verbosidade da nova. Já mais de uma vez os dois tinham estado em conflito em questões de técnica cirúrgica. Seria, evidentemente, de péssima política, enfrentar Strang num terreno tão diferente, mas seria ao mesmo tempo bastante divertido... Rick ia já avançar, mas ouviu gritar o seu nome no outro extremo da sala, e renunciou à garotice. Era o coronel Amos Elaine, o paxá da unidade. Um Buda em grande uniforme e que ameaçava perigosamente estoirar as vestes com a sua gordura.

 

Na verdade, o coronel nunca fizera o menor esforço para adquirir uma linha aerodinâmica com vistas à Segunda Guerra Mundial, de cuja engrenagem era no entanto peça importante. A sua semelhança com Buda, adquirira-a no Oriente, após um ataque de icterícia. A última condecoração ganhara-a em Saint-Mihiel. A sua barriga devia-a a uma poltrona de governador. Oficial de reserva do exército regular, fora chamado de novo às fileiras para comandar aquela unidade médica.

 

A experiência ensinara Rick que o olhar plácido do coronel Blaine não ocultava fraqueza. Se o homem era de agradável convívio, possuía no entanto sob essa afabilidade uma segurança, uma decisão de ferro. Nos últimos meses, pusera a 95.a Companhia de Saúde nas condições devidas, com o máximo de eficiência e o mínimo de snafu’.

 

Toda a sua gente estava preparada para o embarque e o moral era perfeito. O seu estado-maior, à altura de todas as exigências da medicina moderna, não se limitava a cumprir.

 

- Sente-se, Rick, e ponha em dia o meu ficheiro. Quem é aquela dama que o senhor volatilizou há pouco para o ar livre da varanda?

 

Rick mostrou a sua expressão mais impassível de jogador de póquer:

 

Calão militar: trapalhada resultante de ordens contraditórias. Formado pelas miciais dum comentário irónico: «Situation normal, all fuddled up.» «Situação normal, todos bêbedos.»


- É a enfermeira Rycroft, meu coronel. Passou a fazer parte do meu grupo. Notável aquisição para a unidade.

 

- Terei ocasião de verificar - admitiu Elaine. - No entanto, é meu dever lembrar-lhe que, segundo o Regulamento

35-1440 do Exército, se arranja sarilhos, pode resultar daí uma perda séria de soldo.

 

- Recebeu alguma queixa, coronel? Amos foi sacudido pelo riso:

 

- Isso não! Pelo contrário. Mas não dê má reputação ao Exército. - E arredando da sua frente, na comprida mesa cheia de refrescos, um caos de copos vazios, acrescentou: - Sente-se aí ao lado de Miss Adams. Ela anda a dançar neste momento com Strang, mas deseja conhecê-lo.

 

O capitão Winter instalou-se na cadeira, com um sorriso irónico. Como lamentava agora não ter cedido pouco antes à tentação ! Mas a verdade é que esperara tanto tempo por poder apreciar Linda Adams, que não lhe custava aguardar com calma mais alguns minutos.

 

- Sentir-se-á um homem importante, Rick, se lhe disser que de ora em diante ela vai registar todos os nossos feitos?

 

- Posso dominar perfeitamente o meu entusiasmo, coronel. E essa história de o senhor nos ir proporcionar amanhã um passeio no mar, é verdadeira ou somente verosímil?

 

- Seja prudente, meu amigo. Por certo nem o próprio Quartel-General da divisão o sabe. Os bilhetes de viagem chegam por correio especial nestes tempos e vêm directamente de Washington.

 

- Estou convencido de que amanhã recebemos ordem de marcha. E agora que essa jornalista chegou, o meu convencimento é maior ainda.

 

- Como e porquê?

 

- Acredita que o editor dum jornal despachava uma Linda Adams para um simples campo de embarque se não houvesse qualquer coisa de importante no ar? - Winter estendeu a mão para apanhar um cigarro no outro lado da mesa e soltou um riso áspero. - Acredite-me, onde quer que aparecem jornalistas de primeira classe, soam logo os tambores da ofensiva. São uma espécie de corvos anunciadores de batalhas.

 

- Creia que lamento não estar vestida de negro - pronunciou uma voz feminina por cima da sua cabeça. - Corresponderia mais exactamente à sua comparação.

 

Rick levantou-se para oferecer uma cadeira à jovem. Atrás dela, imponente e maciço, de olhos semicerrados pela desconfiança, estava o major Randall Strang. O cirurgião-chefe era um dos médicos em voga na cidade de Boston quando foi forçado a meter a sua volumosa estatura num uniforme. Um cirurgião de palavra fácil e cortês, duma delicadeza extrema à cabeceira dos doentes ricos. Rick, no entanto, suspeitava que o pessoal da sua clínica o detestava tão cordialmente como agora o detestava toda a unidade. Mas não podia negar-se, nem mesmo discutir, a sua habilidade organizadora, a sua inabalável confiança. Rick pensou intimamente, e não pela primeira vez, que Strang se parecia de maneira curiosa a um touro bem alimentado e belicoso.

 

O major emitiu um ronco semelhante ao de um realejo manejado ao contrário:

 

- Não lhe parece que deve pedir desculpa?

 

- Absolutamente - respondeu Rick. - Miss Adams, considere retirada a palavra «corvo». Permita-me que a compare antes a um falcão. - E saudando-a, numa caricatura do aprumo gaulês, emendou: - Ou talvez melhor a um pombo-correio, portador dum ramo de optimismo.

 

Amos Elaine intrometeu uma exclamação:

 

- Não me digam que já se conhecem?!

 

- Há vários anos que sigo a carreira do capitão Winter explicou Linda. A sua voz era ligeiramente cortante, mas, à parte isso, a sua calma dir-se-ia intacta. - Agora que nos encontrámos, capitão, permita-me que lhe diga que valeu a pena esperar por si.

 

Rick replicou candidamente:

 

- Com a condição de me permitir que lhe devolva esse cumprimento .

 

A irmã de Terry pegou num cigarro, aceitou o lume que lhe oferecia Strang e retomou o diálogo:

 

- Foi uma pena, na verdade, que os nossos caminhos não se cruzassem em Espanha.

 

- Nunca supus que tivesse estado em Espanha, Winter admirou-se Strang. - De que lado combateu?

 

Linda esboçou um sorriso frio para Rick e não lhe deu tempo a responder:

 

- Não leu os nossos jornais nos últimos anos, major? O capitão trabalhou como cirurgião sob as ordens de Trueta.

 

- Um dos melhores médicos do mundo - acrescentou Winter.

 

- E não é horrível pensar que a maior parte dos homens que ele salvou apodrecem hoje por trás do arame farpado? - comentou Linda.

 

- Horrível, mas inevitável - opôs Rick.

 

O cirurgião-chefe, que conservava intacta, mesmo na Inglaterra, a sua pronúncia de Boston, julgou oportuno usá-la com a maior afectação:

 

- Verdadeiramente, meu caro, acha indispensável importar-se tanto com o que se passa hoje em Espanha? Não teremos agora muito melhor peixe para fritar?

 

- Fala como soldado ou como republicano?

 

- Falo como pessoa que pensa que a nossa tarefa é esmagar Hitler e voltarmos depois à nossa vida. Falo como homem prático e Deus sabe bem que não sou isolacionista!...

 

«Sim, somente Deus sabe o que és», pensou Rick. «E somente Deus será capaz de decifrar quais possam ser as tuas ideias sociais.»

 

- Admite que a América terá, uma vez terminada a guerra, um dever internacional a cumprir? - perguntou-lhe.

 

- Pois certamente, capitão. Creio numa Liga das Nações, se for possível filiarmo-nos nela sem por em perigo a nossa integridade nacional.

 

- Isso significa que amaria a paz se a pudesse adquirir sem esforço?

 

- Quero apenas dizer que a Europa, segundo todas as probabilidades, se balcanizará depois desta guerra, apesar dos nossos melhores esforços. E não desejo ver o meu Governo transformado em agente de polícia, com a missão de impor a democracia, à espadeirada, aos países atrasados. Creio que a América pode manter intacta a sua própria democracia, tratar dos seus negócios e prosperar ainda por cima.

 

Winter riu às gargalhadas; sabia bem quanto Strang se irritava ao ouvir um riso sonoro.

 

- E as quatro liberdades? E o século do homem da rua? E o leite gratuito para os hotentotes?

 

Desta vez sim, aquela discussão parecia agradar a Strang. Lançou a massa considerável do seu corpanzil contra a mesa, e depois duma breve pausa para dedicar a Linda um sorriso desconcertante, argumentou:

 

Aplique a sua inteligência, Winter. Como podem as quatro

 

liberdades, ou qualquer liberdade genuína, subsistir na política egoísta, «Eu acima de tudo», que sucede inevitavelmente a um armistício? Tome a Espanha como exemplo, uma vez que a conhece . Combateu lá, lembra-se desse povo. Deve reconhecer que Franco, ou qualquer outro do seu género, há-de infalivelmente dirigi-lo até ao dia do Juízo.

 

- Tudo é possível, major. Mas sejamos científicos a esse respeito. Procuremos compreender o que torna possível os Francos. Ataquemos as causas, não os efeitos. Falou há momentos em esmagar Hitler. Não esqueça que ele é o mais monstruoso efeito que até agora produziu este mundo doente. Um Napoleão de opereta, com miolos de quiromante, um paranóico nascido da cupidez, um fruto do desapontamento...

 

Strang teve um sorriso irónico:

 

- Não o sabia tão eloquente, Winter.

 

Rick estava lançado e continuou. O que o regozijava muito particularmente era ver o rubor que principiara a invadir o colo encantador de Linda Adams e ameaçava atingir as suas não menos encantadoras orelhas.

 

- A Espanha serve-me à maravilha para exemplo. Os germes da guerra abundavam lá muito antes de terem produzido Franco. O germe, de múltiplas cabeças como a hidra, da corrupção, da pobreza, da apatia social. Não vê que essa mesma semente começa a proliferar entre nós? Que, apesar de toda a nossa força, nos há-de destruir, a não ser que consigamos matá-la em devido tempo? A não ser que compreendamos enfim que nenhuma democracia pode dar-se ao luxo de fazer uma guerra em cada geração, desarmar nos intervalos e apesar de tudo subsistir?

 

Rick pronunciara a última frase num fôlego. Ao terminá-la, inclinou o busto uma vez mais para Linda e concluiu:

 

- E não me chame outra vez eloquente, major. Limitei-me a reproduzir de memória um artigo recente de Miss Adams. Se o quer ler todo, consulte a colecção do Record.

 

Linda perguntou então, sem embaraço aparente:

 

- E concorda com as minhas opiniões?

 

- Duma ponta à outra e convictamente - volveu Rick. Concordo também com os dez mandamentos. Mas como pode fazê-los adoptar por toda a gente?

 

A jornalista replicou:

 

- Dêem-me um século de paz; dêem-me um povo instruído, educado, que não conheça nem a fome nem o medo... Dêem-me alguns homens de valor na Casa Branca, em Downing Street,, no Kremlin... E os vossos netos hão-de conhecer um mundo melhor...

 

- A única pequena dificuldade consiste precisamente em poder dar-lhe todos esses pequenos nadas - declarou Rick sorridente. - Mas isso não tem importância! Está concedido! Concedido, senhores, à bela dama vestida de branco. Uma utopia no vinha em folha, cheia a mais não poder de tolerância e de fraternidade humana! Um canto do mundo onde o leão, sentado ao pé do cordeiro, se entretém com ele a traçar o plano da sociedade futura!

 

O coronel, porém, observou:

 

- Seja como for e apesar de tudo, o mundo marcha. Não sente isso, Rick? Oiça esta valsa que a orquestra está a tocar, é a Wienerblut. Na última guerra, seriam julgados em tribunal militar os músicos que a tocassem. Hoje o senhor dança ao som dos seus acordes...

 

- Talvez seja essa uma das nossas fraquezas - opôs Winter.

- Talvez sejamos demasiado sentimentais e demasiado lestos a esquecer o passado.

 

Linda interveio:

 

- Qual é o seu antídoto, capitão? Uma orgia de ódio?

 

- De maneira nenhuma. Mas devo observar que o ódio, dentro de certos limites, é um estimulante para o espírito. E não estou muito certo de que, mesmo agora, odiemos suficientemente os nossos inimigos para os esmagarmos duma forma radical. O nosso ódio verdadeiro anda muito misturado com o medo para poder ser eficaz; como, por exemplo, o Senado detesta a Casa Branca, os agricultores detestam os banqueiros, e os banqueiros a Rússia...

 

- Têm para isso excelentes razões - interrompeu Strang. «Parece que se picou», pensou Rick.

 

- De acordo, major. Mas então porque não temos a coragem de levar as coisas até ao fim e não detestamos todos os nossos aliados? Isso, ao menos, seria uma coisa positiva. Isso, ao menos, teria a vantagem, para si e para mim, de nos conservar em uniforme até ao final da vida... Se quer a minha opinião, valeria muito mais do que voltarmos para os nossos dividendos e as nossas garagens de dois automóveis.

 

Strang gritou o seu protesto:

 

- Defende os comunistas?

 

- Claro que não! - respondeu Rick. - Também pertenço à classe dos dividendos. E desejo que esses cheques continuem a chegar na altura devida. Mas na verdade gostava de fazer uma pequena ideia do que poderei comprar com eles daqui a alguns anos. Por isso preferia pagar hoje pesados impostos, e mesmo durante dez anos, se fossem precisos dez anos para matar o último cão danado.

 

- Os americanos nunca lançariam uma lei desse género!

 

- Tanto pior! Não adquirirá por menor preço a utopia de Miss Adams. - E voltando-se para Amos Blaine: - Estou dentro da razão, coronel? Ou mereço ser julgado em Conselho de Guerra?

 

Mas o velho Amos limitou-se a soltar uma pequena risada:

 

- Creio que o melhor que tem a fazer é ir dançar com Miss Adams, se ela desejar, bem entendido.

 

Linda ergueu-se graciosamente e todo o auditório lhe prestou a máxima atenção.

 

- Ordem de serviço, capitão. Não temos outra alternativa.

 

Leve como uma pena, Linda Adams era ainda mais agradável quando se tinha nos braços.

 

Rick rompeu numa série de rodopios artísticos, rápidos, complicados, e ela não deixou uma única vez de acompanhar o seu ritmo. O capitão ficou encantado por descobrir que um membro do «quarto estado» era capaz dum tal virtuosismo. E mais encantado ficou ainda ao sentir o corpo da jovem bem unido ao seu, num contacto perturbador.

 

- Responda à minha pergunta - disse Linda, passado um momento. - Em que acredita?

 

- Já lho disse: um ódio canalizado, um grande exército e nada de ilusões.

 

- No entanto, não é mais militarista do que eu. E não seria tão bom cirurgião se não acreditasse no seu semelhante.

 

- Quem lhe disse que sou bom cirurgião?

 

- Esquece-se que em mil novecentos e trinta e sete entrevistei Trueta? Infelizmente - acrescentou, lançando-lhe um rápido olhar - estava de licença nessa altura. Mas todo o seu grupo teve tempo de sobra para me explicar quanto o estimavam. Tudo muito espanhol e muito eloquente. - Linda dirigiu-lhe um novo sorriso afável e concluiu: - Ou terei também de lhe recordar os nossos amigos comuns de Londres e de Paris?

 

- Agora é a sua vez, Miss Adams, de me responder. Como conseguiu galgar, profissionalmente, tanto caminho em tão poucos anos?

 

- Isso também eu pergunto frequentemente a mim própria.

- Era uma resposta simples, sincera, sem presunção. - Talvez eu seja o produto lógico do avião e da rádio. Não concorda?

 

- Creio sinceramente que veio ao mundo e foi criada para muito melhor uso.

 

- Qual?

 

- Por exemplo, dançar... - E arrastou-a numa nova série de rodopios que deixou os dois um pouco ofegantes. - Porque não goza as alegrias desta vida enquanto é tempo? Porque não é suficientemente sincera e não reconhece que este mundo vai por água abaixo apesar de todas as suas preces?

 

- Mesmo se ganharmos a guerra?

 

- Mesmo assim. - E como ela o olhasse, um pouco desconcertada: - Vencedores, vencidos, ou empatados! - insistiu Rick, num tom alegre.

 

- Mesmo que eu consiga o meu século de paz?

 

- Isso, então, era uma desgraça para nós os dois. Pense bem o que seríamos se o mundo abrisse os olhos e se curasse sozinho. A senhora uma redactora de artigos de fundo sem cruzada para pregar. Eu, um cirurgião com bisturi ferrugento por falta de uso. Que horror! Evidentemente - acrescentou, rindo à gargalhada - eu podia tornar-me veterinário e você fazer as reportagens dos atropelamentos dos cães. Seria uma forma, como qualquer outra, de nos aproximarmos.

 

- Talvez não me desagradasse. E já que falou em reportagens, quero começar imediatamente. Vai dar-me a primeira entrevista.

 

Linda sentiu-o contrair-se e tanto que tropeçaram um no outro.

 

- Não a desencorajei ainda o bastante?

 

- Mesmo no início da minha carreira, eu já possuía a teimosia dum buldogue para descobrir uma história e não a largar. E o senhor tem uma história, com certeza. O homem que voltou de Espanha e de Dunquerque sem nenhuma finalidade na vida, e que no entanto ama a vida. O filósofo que aconselha os jovens maridos modelos a esquecer as esposas e a fruir o amor onde, quando e como as circunstâncias o proporcionem.

 

Rick observou-a um momento de silêncio. Depois disse:

 

Tinha esquecido que é irmã de Terry. Pelos vistos, ele não esperou muito tempo para lhe fazer confidências.

 

Creio que ele seguirá o meu conselho e não o seu.

 

Que quer dizer?

 

Há pouco citou os dez mandamentos. Pois recomendei ao meu irmão que não esquecesse o sexto, pelo menos.

 

- Portanto, é uma optimista tanto em política como em moral? Oiça-me, por favor.

 

- Sou toda ouvidos, capitão.

 

- Tem-se esfalfado há um bom par de anos a correr Ceca e Meca, em tarefas próprias da sua profissão. Com certeza não passou todo esse tempo metida nos grandes hotéis. E, assim, foi obrigada a descobrir que a política é «uma matilha de lobos a devorarem-se uns aos outros», e não se modificará enquanto o mundo for mundo; que a guerra é o inferno, e não deixará de o ser, que gera novas guerras e nunca utopias. Quanto aos homens nos quartéis, celibatários ou casados... bem, deve lembrar-se de Kipling...

 

Marcara primorosamente o compasso da sua tirada fazendo girar Linda como um pião em direcção à varanda. Quando ambos passaram pelas pesadas cortinas que impediam as luzes da sala de se filtrarem para o exterior, os pés da jovem continuaram a acompanhar, com exactidão, a cadência da dança. Rick ainda teve tempo de ver, antes da obscuridade lhe desvanecer por completo o rosto, os seus olhos chamejarem de furor.

 

- Obrigada, capitão, por ter completado a minha educação.

 

- Não está ainda completa - afirmou Winter.

 

E o seu beijo não teve nada de terno, nada de gracioso. Simplesmente se apossou dos seus lábios e os reteve, da mesma forma que as suas mãos lhe seguravam os ombros e os apertavam, como tenazes. Ela libertou-se do amplexo com a carne em fogo.

 

- É a primeira lição?

 

- Por hoje basta. A aula terminou.

 

Mas já de cabeça erguida, andar arrogante, Linda o deixava. A sua saída da varanda foi demasiado orgulhosa para poder considerar-se uma fuga. Mas o resultado era o mesmo. A jovem atravessou a sala de dança, entrou no vestiário, abriu a malinha de mão e pegou de novo no papel e no lápis.

 

Prometera, para Nova Iorque, na sequência dos seus artigos de fundo quotidianos, o envio duma história para o número de domingo. O momento era bem escolhido para principiar «O Meu Primeiro Dia Num Acampamento de Embarque». O editor aguardava um relato sensacional, recheado de anedotas, sugestões para desenhos à margem, em que Linda Adams era exímia.

 

Desta vez, ao contrário do que esperava, as palavras não lhe ocorriam. Fechou os olhos e invocou a musa dos jornalistas. Mas a musa permaneceu surda ao apelo. Em vez dela, a imagem de Rick Winter e do seu sorriso trocista invadia-lhe por completo o espírito, e também a insistente sensação duns lábios sobre a sua boca.

 

Fora por puritanismo que se furtara àquele beijo? Não teria sido preferível «deixá-lo avançar» um pouco, quanto mais não fosse para saber até onde podia ir um lobo fardado de capitão?

 

De súbito, fechou o bloco e recambiou-o para dentro da mala. Sem qualquer razão aparente, atirou o lápis para o outro extremo do vestiário. A orquestra tocava uma conga. Linda Adams voltou à sala de baile. Não conseguiu, no entanto, chegar até junto da sua mesa. Um tenente-coronel, duma outra unidade médica, arrastou-a consigo. Era um dos melhores diagnosticadores da América e a sua arte de dançar estava bem à altura da sua competência profissional. Como o seu novo cavaleiro a passeasse ao longo da extensa fila de homens, naquele momento simples espectadores em busca de par, Linda observava-os a um e um, ao passar, na esperança de poder desafiar com os olhos certo capitão em emboscada. Mas Rick não estava visível em parte alguma. E foi um major de engenharia que a arrebatou ao seu tenente-coronel, começando a iniciá-la, ao som da música, na técnica da aplicação de máscaras contra os gases nos animais de tiro.

 

«Enfim!», pensou a jovem. «A sorte sorri-me. Já tenho o meu artigo, mesmo que me falte a calma necessária para o escrever agora...»

 

Sentado no parapeito da varanda, o capitão Richard Winter balouçava maquinalmente os calcanhares no vazio, enquanto ia reflectindo no próximo movimento a executar na partida de xadrez em que figuravam como peões aquelas jovens diferentes mas igualmente sedutoras. Isso não constituía, porém, tarefa fastidiosa para um apaixonado jogador como ele.

 

Rick não era homem que lamentasse qualquer impulso; e agora que a pedra fora jogada, estava mais divertido do que vexado com a fuga de Linda. Era-lhe mesmo bastante agradável saber que não se enganara no seu julgamento. Uma virgem, tinha a certeza,

 

apesar de todo o seu brilho mundano. Ignorante como uma escolar, não obstante todos os seus contratos na imprensa e na rádio.

 

No entanto, havia miolos por trás daquele bonito rosto. E as mulheres com miolos tinham ocupado até então lugar muito limitado na vida do capitão Winter. Ficou um pouco irritado ao admiti-lo, mas não podia duvidar: por mais absurdamente optimistas que fossem as opiniões políticas daquela jovem, essas opiniões eram muito suas e não um amontoado de frases ouvidas algures. Tal descoberta pedia um antídoto imediato.

 

Caminhou ao longo da varanda, ignorando os pares enlaçados no escuro e por eles igualmente ignorado. Quando chegou ao bar, encontrou-o repleto de oficiais a conversarem em várias línguas: a cadência monótona do francês, o rebarbativo holandês, e mesmo o sedoso tagarelar do chinês... Como esperava, Gina Cole, flor deslumbrante e apetitosa no meio duma floresta de caquis, espargia por todos e a cada um a luz e o calor dum sorriso cuja força natural era considerável. Gina deu logo pela sua presença e ele, ao reparar nisso, dispôs-se a jogar a sorte até ao fim.

 

Abrindo caminho por entre os colegas, aproximou-se da capitosa jovem e pegou-lhe na mão. Carolyn fora o prólogo do drama, o último acto estava ali, preparado e pronto, para uma apoteose final. Há semanas que se entretinha a construí-lo, com um «continua amanhã» sempre que baixava o pano. Chegara desta vez a hora de concluir.

 

- Não é agora a minha dança, Miss Cole?

 

Gina entregou ao empregado o copo vazio e com uma palavra e um sorriso pediu desculpa aos seus admiradores. Não se mostrou muito impressionada ao entregar-se nos braços de Rick, para ele a conduzir no ritmo saltitante da conga. Tudo aquilo parecia bastante inocente, mas Winter naquele instante sentia-se bem senhor da presa, e de tal maneira que não se apressou, como bom jogador de xadrez.

 

- Há muito tempo que não nos víamos, capitão! - disse Gina.

 

- Há cinco dias, para ser bem exacto.

 

Rick notou que o rigor da sua memória produzira bom efeito. Tinham-se encontrado em Londres, por mero acaso, e jantado juntos, e bebido champanhe. Mais tarde dançaram num clube de Regent Street, guarnecido com sacos de areia. Depois, acompanhara-a à Victoria Station, certo de que, se lho pedisse, ela teria prolongado por sua conta a licença, para passar com ele o fim-de-semana. Mas limitara-se a dar-lhe um beijo de despedida à entrada da carruagem.

 

- Estou encantado por ver que sobreviveu à viagem - murmurou Rick.

 

Gina não respondeu, mas encostou mais o rosto ao dele.

 

- Oito lances e xeque-mate - sussurrou Winter.

 

- O que diz?

 

- Não faça caso, por favor. Estou a pensar muito em voz alta esta noite. Pensar é o pior entretenimento do mundo, depois do beber. Quer vir um momento lá para fora?

 

- Para quê?

 

- Para fumar um cigarro, por exemplo. Ou talvez... para uma surpresa...

 

- Combinado. Adoro as surpresas, desde que sejam de boa qualidade. Vou buscar a minha capa ao vestiário.

 

Durante alguns minutos seguiram o carreiro de pranchas que marginava o clube, num silêncio pleno de significado. Depois Gina parou. O seu demorado calafrio foi uma obra-prima do género. Rick não soube ao certo se era verdadeiro ou admiravelmente fingido.

 

- Está muito frio para si cá fora, não é verdade?

 

- Bastante, de facto. Não acha melhor irmos para a sala de jogos? Poderá lá fumar, se quiser.

 

- Vamos então.

 

Rick deixou-se conduzir. Agora eram dois a jogar, e o capitão tinha em Gina um parceiro tão experiente como ele. A porta da sala estava entreaberta. Lá dentro, escuro como breu, apenas se distinguiam, ao longo das paredes, no sítio dos sofás, os pontos luminosos dos cigarros que perfuravam a obscuridade.

 

- Este local não lhe parece exageradamente público? - perguntou Rick.

 

- Há uma galeria lá ao fundo. Não se afaste de mim, conheço o caminho.

 

A facilidade com que ela evolucionava no meio dos obstáculos invisíveis, mesas de brídege e de pingue-pongue, testemunhava bem a sua experiência; sem dúvida já não era a primeira vez que procurava refúgio nessa angra de paz, sem auxílio de luz. A galeria estava vazia, de persianas abertas para a noite estrelada.

 

Sem mais preâmbulos, Rick agarrou a jovem pelo cotovelo, fê-la dar meia volta e, atraindo-a a si, beijou-a. Levemente ao princípio, como mandava a boa táctica.

 

- Quem lhe permitiu isso?

 

- Continue - murmurou Rick. - Contrarie-me um bocadinho, se isso lhe agrada. Gosto de ser contrariado, com moderação.

 

Ela fingiu uma surpresa irónica:

 

- Dir-se-ia muito seguro de si...

 

- Seguro de saber ler no seu espírito, nada mais. Posso fazer a demonstração?

 

- Se for capaz...

 

- Vai empregar amáveis artifícios para me manter à distância durante mais algum tempo. Admitamos, cinco minutos, o máximo. Depois, permitir-me-á, digamos, que lhe faça a corte. Preciso também explicar porquê?

 

- Nunca ouvi ninguém tão insolente... Mas Rick destruiu logo a interrupção:

 

- Nós somos da mesma força, sabe-o bem. Sabemos o que queremos e não gostamos de perder tempo para o obter. Há cinco noites, desde que a acompanhei ao comboio, que desejo tê-la nos meus braços, que desejo amá-la e ser amado.

 

Procurou unir o gesto à palavra, mas Gina não correspondeu.

 

- E se eu não desejar isso que deseja?

 

- Mas, justamente, deseja-o também.

 

- Um pouco, não digo que não - ciciou ela, sorrindo.

 

Rick beijou-a violentamente na boca. Os lábios dela não cederam logo. Passados instantes moveram-se ligeiramente, como se esboçassem um sorriso de troça. No entanto, também não opunham resistência e Winter continuou a acariciá-la, sem insistir demasiado.

 

- Basta assim? - perguntou-lhe, algum tempo depois. Desta vez foram os lábios de Gina que procuraram os dele;

 

estavam húmidos e entreabertos... As mãos do homem eram hábeis e atrevidas, mas a jovem debateu-se e furtou-se à carícia.

 

- Não, Rick!

 

- Porquê?

 

- Aqui não.

 

- Estamos sós.

 

- Aqui não, já disse. É muito arriscado.

 

- Então onde?

 

- Não. Não deve perguntar isso!

 

- Onde, Gina?

 

- Não sei.

 

- Quando pode saber?

 

Lilith devia rir como ela, pensou Rick. Um riso baixo e profundo, da garganta, que lhe punha em desordem o sangue nas veias, fazendo-o bater violentamente nas têmporas. Tomou-a novamente nos braços, para a beijar uma vez mais. Xeque à rainha... sem demora...

 

- Esta noite - disse Gina Cole. - Depois do baile.

 

- Esperá-la-ei perto do lar das enfermeiras.

 

Ela dir-se-ia discutir a hora duma partida de ténis quando respondeu, numa voz absolutamente calma:

 

- E depois, para onde vamos?

 

- Tenho um quarto na cidade. Os donos da casa encontram-se em férias.

 

- É engraçado, não haj a dúvida, e o seu camarada de quarto ?

 

- Bill Coffin? Também por esse lado não há novidade. Está de serviço esta noite.

 

- De facto, pensa em tudo...

 

- Será pouco romântico para lhe poder agradar?

 

Rick tentou agarrá-la de novo, mas ela escapou-se-lhe agilmente. No entanto, ao tornarem a atravessar a escura sala de jogos, os dedos da jovem in traduziram-se, para um cálido aperto, nas suas mãos. Ainda desta vez ele lhe permitia dirigir o jogo à vontade. Nem ao próprio Casanova se exigiria uma entrega mais perfeita.

 

À entrada do vestíbulo, Gina parou:

 

- Preciso de ir ao vestiário. Devo ter o aspecto de quem foi muito e bem beijada e não é indispensável que isso se torne notório aos olhos mais cândidos.

 

- Posso esperar?

 

- É preferível não esperar. Não se esqueça que anda por aí, algures - e dizendo isto fez um gesto vago na direcção da sala de dança -, um cavaleiro de escolta. E se nos visse juntos...

 

Rick deu dois passos atrás e despediu-se com uma ironia:

 

- Assim, até à meia-noite, deixa-me completamente entregue a mim próprio?

 

- Procure não se aborrecer muito - respondeu Gina, imitando à maravilha as inflexões de Rick.

 

- Como posso ter a certeza de que não falta ao encontro?

 

- Precisa de ter a certeza de tudo?

 

Gina dirigiu-se para o vestiário e ele ja não tentou retê-la. Com a mão na maçaneta da porta, foi ela que se voltou e, com grande surpresa, Rick viu-lhe os olhos húmidos de emoção, a primeira emoção real que ela manifestava na sua frente, apesar de todo o seu abandono, momentos antes, na galeria.

 

- Diga-se uma coisa, Rick. Como é que um tipo da sua espécie pode ser solitário? E solitário ao ponto de atormentar quem quer que use saias?

 

Mas o tom de Rick não mudou, embora pensasse para si que aquilo era ir demasiado longe, muito longe mesmo para um simples jogo:

 

- Quem lhe disse que eu era solitário?

 

- Não é essa a única razão que o leva a marcar-me uma entrevista?

 

- Pode imaginar outra melhor?

 

O clarão de emoção extinguira-se. Gina estirou voluptuosamente o corpo, num gesto que lhe valorizava admiravelmente todas as curvas:

 

- Ganhou a partida. À meia-noite, portanto, se até lá não mudar de ideias.

 

Desta vez já não se voltou e a porta do vestiário fechou-se atrás dela.

 

Durante alguns instantes, Rick permaneceu sozinho em frente do recinto de dança. Não esperava por Gina, conhecia-a perfeitamente. Pensou primeiro em ir roubar Linda Adams ao seu par, quanto mais não fosse para ver a sua reacção, mas Linda não estava visível. Carolyn Ry croft também não. O baile continuava animado e a conga obtinha incontestável êxito: a farândola estirava-se, arrastando sem cessar, nas suas dobras e ondulações, novos convertidos, qual imensa serpente multicor que girasse, se inclinasse em curiosas e pequenas reverências, deslizando pela sala como que hipnotizada pelo rufo dos tambores.

 

Bruscamente, Rick voltou as costas ao espectáculo e à música, tirou de passagem o boné do cabide, e atravessando o átrio num passo rápido, saiu para o ar livre, sob um céu constelado de estrelas. Naquela noite já tinha brincado suficientemente com emoções que não sentia.

 

Uma vez transposta a entrada do acampamento, tomou a direcção das ruas da cidade, parando um instante para examinar os seus pensamentos e orientar-se. Segundo toda a verosimilhança, Gina esperá-lo-ia à meia-noite à porta do lar das enfermeiras, fruto maduro pronto para ser colhido. Ou então podia recapturar Carolyn Rycroft e continuar com ela a partida iniciada, até à sua conclusão, fácil de calcular. Podia também ir em demanda de Linda Adams, para um segundo duelo ideológico. No entanto, cada passo andado afastava-o mais dessas aliciantes perspectivas , sem despertar nele a vontade de voltar atrás. Por ora, sentia o desejo adormecido dentro de si. Não precisava de nada: nem comida, nem álcool, nem amor, nem sono.

 

Quando o invadira aquele torpor? É claro que não tinha a mínima disposição para uma neurose. O seu trabalho ocupava-o, duma forma plenamente satisfatória, longas horas por dia. Fisicamente, gozava de excelente saúde, atleta magro e rijo que adaptara o corpo à rotina do tempo de guerra. As noites, é certo, não as passava tão bem. Não podia continuar assim, a matutar sozinho diante do álcool de que nem sequer gostava, ou a fazer uma corte superficial a jovens que lhe excitavam o sangue mas não o coração. Se uma mulher tão leviana como Gina Cole podia perfurar a sua armadura e descobrir o vazio e a solidão da sua alma, então os sintomas deviam...

 

De repente, a calma noite de veludo foi rasgada ao meio, traspassada por um longo e fantasmal gemido. Logo a seguir, respondendo a esse sinal, a fraca claridade azulada dos candeeiros tremeluziu e por toda a parte e ao mesmo tempo se extinguiu. Rick parou um momento, procurando descobrir qualquer ponto de referência no negrume total. Pouco a pouco, as suas pupilas dilatadas reconheceram o Royal George, de janelas totalmente fechadas, silencioso, pois já passava da hora do encerramento obrigatório. Mais adiante, na esquina da rua seguinte, os vultos imponentes do Railway Arms e da igreja normanda, atarracada mas altiva como a própria Inglaterra em face daquela ameaça de morte vinda do céu.

 

Dois quarteirões mais além esperava-o o quarto que partilhava com Bill Coffin. Já calcorreara bastantes vezes aquele caminho para o poder percorrer às cegas. Além disso, não havia nenhuma necessidade de se precipitar. Aquela cidade não sofrera nem um só ataque aéreo nos últimos dias. E Jerry, sem dúvida, estava nesse momento bastante ocupado para proteger Colónia, Essen e a base de submarinos de Lorient. Naturalmente alguns bombardeiros tinham conseguido escapar às baterias antiaéreas do Norte e logo fora posto a funcionar o sistema de alarme que cingia Londres até ali, a ocidente.

 

Foi andando devagar, enquanto procurava, no fundo da algibeira, o cigarro que acenderia assim que se encontrasse entre as suas quatro paredes. Por cima do acantonamento, os compridos dedos dos projectores tacteavam cuidadosamente o céu. Lá muito em cima, em pleno zénite, cruzaram-se dois fusos luminosos, enquadrando uma móbil mancha prateada. Rick perguntou a si próprio se seria um Spitfire procurando atingir a cauda negra dum Messerschmitt. Mas a trajectória luminosa dos projécteis e o rápido matraquear dos canhões antiaéreos forneceram-lhe a resposta: lá em cima, talvez a uma milha do solo, um piloto inimigo fugia para a sua base. Levava informações suficientes para enviar em seguida uma esquadrilha suicida, decidida a procurar alvos no acampamento americano.

 

De olhos ainda fixos na cúpula opaca do céu, ouviu, não muito longe, um rápido tamborilar de saltos no passeio. Alguém avançava, às cegas, na sua direcção. O ruído cessou e ouviu um grito, mais de pavor do que de sofrimento.

 

- Ande devagar! - gritou-lhe. - Eu estou aqui.

 

O tamborilar acelerou-se numa série de passos rápidos e um vulto veio esbarrar com ele, mas não muito violentamente. Estendeu os braços para reter e amparar essa forma humana saída das trevas e reparou que abraçava mais uma vez uma mulher vestida de branco... Uma mulher embuçada até aos olhos num xaile ou numa capa que cobria mesmo os cabelos. Mal pôde tocar-lhe para adivinhar a contextura do vestido de noite ou a forma do seu rosto, pois ela agarrava-se-lhe com desespero.

 

- Esteja tranquila! - disse-lhe. - Tenha calma! Isto é apenas um alarme. Já ouviu bombas?

 

A noite, ainda desta vez, se encarregou da resposta, e a desconhecida escondeu o rosto no ombro de Rick quando um estrondo pagão e selvagem sacudiu a atmosfera com a sua mensagem de

 

Expressão depreciativa da gíria americana para designar o alemão, correspondente ao francês boche, que desde a Primeira Guerra Mundial entrou na nossa língua.

 

destruição, qual murro violento vibrado na terra pelo punho dum gigante furioso. O pavimento da rua onde estavam todo ele estremeceu. Na direcção do norte, pouco para lá do acampamento, o céu iluminou-se de reflexos vermelhos.

 

Rick inclinou-se, tentanto descobrir o rosto da jovem, para lhe acalmar o pânico, mas ela colava-se cada vez mais ao seu ombro.

 

«Tenho de a levar para qualquer parte», pensou Winter, enquanto a arrastava para debaixo da arcada da cervejaria, que oferecia relativo abrigo.

 

Mas já um fuso de luz azulada furava o escuro na sua direcção. Um A.R.P.’, com o seu capacete branco e a inevitável gabardina britânica, caminhava tranquilamente ao seu encontro.

 

- Quem está aí? - O seu tom abrandou ao descobrir as divisas no uniforme de Rick. - Queira desculpar, meu capitão, mas será melhor levar a dama para o abrigo. Jerry parece querer começar a sério esta noite, não acha?

 

- Há algum abrigo aqui perto?

 

- O mais próximo fica distante uns cinco quarteirões. O melhor é enfiar para dentro duma casa e ficar lá muito sossegado. Isto pode durar uma hora, bem sabe. Ou mais. Nunca se pode dizer ao certo.

 

- Eu moro logo adiante deste quarteirão. Pode ajudar-me a chegar lá?

 

- De acordo, capitão. Indique-me o caminho.

 

Guiados pela pálida claridade da lâmpada do homem da defesa passiva, Rick semiamparando e semitransportando a companheira, atingiram uma casa meio isolada ao fundo da rua estreita. O guardião deixou-os em frente da porta e com uma alegre saudação desapareceu no escuro.

 

Explodiu outra bomba. Um pouco mais perto desta vez. Mas não tanto que fizesse saltar o coração. Sacudida, a maçaneta da porta tilintou.

 

- Quer entrar comigo?

 

A desconhecida abanou freneticamente a cabeça. Mesmo quando ele a impeliu para o interior e fechou a porta atrás de si, ela manteve o rosto afundado no seu ombro.

 

- Não se aproxime da janela, vou forrar bem os vidros. Deixou-a perto do leito de colunas que atravancava por completo o pequeno quarto. Mas enquanto Rick se esforçava por tirar

 

Air Raid Precaution - defesa passiva.

 

os cobertores, ela precipitou-se loucamente para ele e agarrou-lhe na manga do uniforme.

 

- Sou louca por me conduzir assim?

 

A sua voz era ofegante, esbaforida pelo pânico. Podia ser a voz de quem quer que fosse, deformada pela mais primitiva das emoções. Seria alguém do seu conhecimento? Uma mulher que, mesmo naquele instante, não queria revelar a sua identidade? Tê-lo-ia seguido desde o clube? Não havia outra explicação para o facto de trazer um vestido de noite, em tempo de guerra e numa cidade tão pequena.

 

- Sou louca, capitão?

 

A desconhecida não empregara o seu nome. Apenas a patente, que as divisas lhe haviam podido revelar, tal como ao A.R.P. Não era impossível, em suma, que estivesse enganado ao supor que ela o conhecia. Então? Então... simplesmente um ser humano, mais um, arrebatado por uma crise de pânico, um ser humano aterrorizado e procurando às cegas, no escuro, qualquer mão amiga.

 

Rick abandonou as suas especulações e entregou-se ao trabalho de forrar hermeticamente a janela do lado do norte com uma espessura dupla de cobertores. Entretanto, a companheira continuava ainda agarrada à sua manga.

 

- Pelo menos - observou com bom humor-nada teremos a recear dos estilhaços dos vidros. A outra janela dá para a parede de tijolo duma garagem. A não ser que sejamos atingidos em cheio, depois do que, verosimilmente, já não havia mais problemas, estamos defendidos deste lado por uma protecção eficaz.

 

- E eles vão?...

 

A voz da jovem alongou-se num queixume que anunciava a crise de nervos. Todavia, Rick notou que ela lutava com quantas forças tinha para a dominar. Continuava embuçada na comprida capa que lhe cobria os cabelos como uma mantilha. Mas, coisa estranha, envolvia-a uma espécie de auréola, que revelava a sua beleza aos sentidos experientes de Rick. Havia nela fosse o que fosse, proveniente talvez da nobreza da sua atitude, mesmo nesses minutos de completa desordem, ou então da elegância da sua silhueta, ou da sua elevada estatura. Uma vez mais, Winter amaldiçoou os nazis que lhe atiravam para os braços presa tão capitosa e ao mesmo tempo o impediam de a abraçar, obrigando-o a consagrar-se unicamente ao indispensável labor de cuidar da protecção de ambos. Não podia sequer interromper esse trabalho para encetar o diálogo que lhe permitisse um pretexto decente de lhe perguntar ao menos o seu nome. Ouviu-a dar um passo para o meio do quarto.

- Cuidado! - avisou. - Há aí uma mesa. Um baque surdo no escuro; depois um grito. Rick correu a socorrê-la, passou-lhe um braço em volta do corpo, equilibrou-a contra a pesada mesa de carvalho onde se empilhavam os seus objectos de uso pessoal e os de Bill Coffin. Ao longe, o mesmo gigante furioso continuava a esmurrar a terra com os seus pesados punhos. A casa estremeceu, mas Rick, depois de forrar bem com cobertores a última janela, andava agora dum lado para o outro, com facilidade, no aposento familiar. A morte pairaria por cima das suas cabeças? Os Heinkels teriam localizado o acampamento? Não podia dizer ao certo, e a sua experiência de bombardeamentos não ia tão longe.

 

- Foi mais perto desta vez - soprou a desconhecida, num murmúrio. - Sempre que deixam cair uma bomba, é mais próximo do que a anterior...

 

Estava agora afundada numa poltrona, para onde Rick a conduzira, uma mancha branca no escuro. Com quem se pareceria aquela voz quando absolutamente normal? Era inglesa, sem dúvida. Dicção clara, um pouco líquida, mas a esse respeito não podia formular senão conjecturas. Que poderia perguntar-lhe sem parecer impertinente ou malcriado? Ela procurava evidentemente guardar o segredo da sua identidade. Rick ia abrir a boca para fazer uma pergunta qualquer, mas em lugar duma palavra foi um suspiro precipitado que se lhe escapou dos lábios, pois um choque brutal sacudiu nesse momento a rua inteira. Um som que não era apenas audível mas também sensível feriu-lhe ferozmente os tímpanos.

 

Decididamente, o trajecto das bombas desviava-se na sua direcção. A próxima bomba de Jerry traria o seu endereço? Esta ideia absurda provocou-lhe o riso e a jovem tomou-lhe ambas as mãos, apertando-as com um terror que nada tinha de fingido, testemunhavam-no bem o latejar precipitado das suas veias, os dedos frios e crispados. Rick falou o mais negligentemente que lhe foi possível, tentanto afastar o pensamento da jovem dessa bomba que cairia a seguir... A seguir... e sem demora... dum segundo para o outro...

 

- Curioso, estas situações inesperadas que surgem numa guerra... A senhora e eu, por exemplo...

 

- Sim?

 

A palavra significava tudo quanto se quisesse: uma pergunta, uma aquiescência, uma simples resposta de cortesia.

 

- Dois estranhos ao pé um do outro, reunidos por um ataque aéreo. Mais próximos, sendo desconhecidos, do que se fôssemos amigos íntimos. - E, dizendo isto, acariciou-lhe levemente o ombro. - Penso na ponte que estes bombardeiros lançaram entre nós. Se fôssemos ingleses, por exemplo... ou se a senhora o fosse...

 

Fez uma pausa, à espera duma reacção qualquer. Mas ela não disse nada, nem sequer se mexeu. Também não se afastou quando ele lhe passou um braço protector em volta dos ombros.

 

- Não teríamos mesmo ousado principiar uma conversação sem sermos apresentados e...

 

Mas não pôde concluir: lá muito em cima, no céu, um longo lamento aumentava de volume e de intensidade, canto de morte lançado por nova bomba que caía, advertência que só se ouvia demasiado tarde. Instintivamente, Rick reconheceu esse gemido: nunca o ouvira tão perto, nem mesmo em Espanha, e agindo por reflexos, lançou-se para cima da poltrona onde estava a jovem, afundando-a nas almofadas e cobrindo-a com o próprio corpo.

 

Quando finalmente o estrondo se produziu, dir-se-ia que o mesmo gigante os esmagava naquela poltrona, enquanto do tecto caía nos ombros e nas costas de Rick uma chuva de estuque. Algures no quarto, uma garrafa tombou e partiu-se: o seu último frasco de loção para a barba! O facto provocou-lhe uma pena incongruente. O silêncio que se seguiu foi apenas quebrado pelo dripe-dripe do líquido a cair no soalho, gota a gota.

 

Instintivamente, Winter aproximou-se, às apalpadelas, da janela do lado do norte, para verificar a extensão dos estragos. Espreitou para fora por entre as pesadas cortinas e viu que a bomba caíra, lá longe, em pleno campo. Um pequeno bosque em chamas, perto do ribeiro, assinalava o ponto atingido. Nem na cidade nem no acampamento se notavam sinais de qualquer devastação.

 

- Continua aí? - perguntou Rick de longe. E a sua voz pareceu-lhe estranha, ressoante e trémula. Era inútil esconder o medo: de um medo como aquele ninguém tinha de ter vergonha.

 

Arrastou a jovem para fora da poltrona, e como ela caísse de joelhos perto da mesa, deixou-a aí ficar. Depois, arrancou do leito o colchão e impeliu-o para debaixo da mesa, desenvolvendo uma energia frenética para o colocar confortavelmente sob o pesado tampo de carvalho. Com a mochila de Bill Coffin, o seu saco de dormir e a roupa dos dois, construiu um parapeito.

 

Lá de cima, descia novamente o gemido fantasmal, torturando-lhe uma vez mais os nervos.

 

Empurrou a jovem para debaixo da mesa e meteu-se em seguida na improvisada toca, protegendo-a de novo com o corpo, à espera da explosão. Foi menos violenta do que a anterior. O colchão amorteceu a maior parte das vibrações. O parapeito erguido nos três lados do abrigo absorveu o ruído. A bomba nem por isso deixara de cair perto, mas ainda desta vez apenas abrira uma inofensiva cratera no campo. O madeiramento da velha casa estalou. Dir-se-ia que lá fora uma escavadora a vapor, em maré de fantasia, alvejava a frontaria do prédio com uma saraivada de torrões de terra. Rick ouviu os vidros estilhaçarem-se e agradeceu à Providência os cobertores que forravam as janelas.

 

A jovem comprimia-se, trémula, nos seus braços, em busca de conforto. Rick recuou um pouco o corpo, apenas para ver a reacção da desconhecida, e sorriu no escuro ao senti-la seguir o seu movimento, em união perfeita, de forma a ficar tão colada a ele como anteriormente.

 

- Não se aflija - murmurou. - Não a abandonaria, mesmo que tivesse coragem de sair daqui.

 

Aquelas palavras eram mais verdadeiras do que supunha. Uma emoção mais forte que o pensamento apossava-se de todo o seu ser, desde a ponta dos pés até à raiz dos cabelos, e as suas mãos fecharam-se de novo sobre aqueles ombros macios. Um desejo atávico lançou um e outro na Idade da Pedra. A mesma vaga os submergiu...

 

Durante muito tempo ele rira das teorias psicológicas que afirmam que todas as emoções são susceptíveis de transmutação: o ódio pode transformar-se em amor, o medo em coragem. Naquele instante, tudo isso lhe parecia bem simples, evidente. Sabia agora que nada como o medo aproxima tanto os seres humanos, no entanto só o tempo era capaz de mudar o medo em amor. Mas quando palpitam no firmamento as asas negras da eternidade, a mudança pode ser imediata...

 

Um outro gemido riscou a noite, um gemido uivante ao qual todos os outros tinham servido apenas de prelúdio. Desta vez, a intensidade terrivelmente crescente do som só podia indicar uma coisa, um golpe directo. Os braços da desconhecida enlaçavam-no agora. E assim abraçados, no escuro, esperaram a detonação. Mais tarde, muito mais tarde, quando pôde classificar com clareza as suas recordações daquela noite, lembrou-se que os lábios de ambos se uniram durante essa espera. Não se tratava já dum jogo de gracejos, nem dum duelo galante ao rodopio duma valsa, nem duma entrevista amorosa com qualquer Vénus condescendente. Tratava-se, sim, duma luta da vida com a morte...

 

E o ruído que mantinha os dois anelantes em suspenso produziu-se: a bomba acabava de atravessar o tecto da garagem vizinha e vazia. Mais nenhum rumor se seguiu, senão o do esboroamento da caliça. Então o silêncio caiu nos seus nervos como um bálsamo.

 

Winter suipreendeu-se a gritar aos ouvidos da companheira:

 

- Não explodiu!

 

Mas a jovem continuava agarrada a ele, os ombros agitados por estremecimentos convulsivos. Rick estreitou-a mais a si, sabendo que nada a poderia confortar e sossegar melhor do que os soluços. Passado algum tempo, moveu um pouco a cabeça, até a sua face encontrar a suavidade dos cabelos sedosos. Neles se afundou, beijando desatinadamente um rosto banhado de lágrimas por entre macias madeixas:

 

- Tudo corre bem! - assegurava-lhe, numa voz rouca:

- Tudo corre bem! Por agora, acabou o chinfrim. Esta noite alguém guardava lá em cima os nossos registos. Não teria mesmo graça nenhuma morrermos estupidamente no próprio momento em que nos encontrávamos.

 

Mas Rick tinha a certeza de que todas as palavras eram inúteis nesse instante. O abandono daquele corpo, bem unido ao seu, espalhava-lhe nas veias um ardente langor. Sim, era bem isso... langor e fogo. Os seus lábios deixaram a face abrasada e apoderaram-se duma boca que não resistia nem correspondia. Mais um instante e terminaram os soluços. E a boca da jovem animou-se por fim...

 

Com efeito, não houve mais bombas nem explosões, embora os projectores continuassem a perscrutar avidamente o céu. A trinta mil pés acima do solo, lá onde o oxigénio se rarefaz no espaço vazio, os pilotos inimigos ajustavam as suas máscaras e tomavam o rumo das suas bases, no outro lado da Mancha. No sopé da escarpa, três escaravelhos gigantescos manchavam a areia com a sua fuselagem meio carbonizada, incandescente ainda, e a silhueta desses bastidôres naturais, inviolados desde os tempos dos Normandos, aparecia coroada de clarões vermelhos. Num promontório, algumas metralhadoras deram uma última rajada, para logo emudecerem.

 

Justamente ao fim de High Street, a calma era absoluta no quarto de dormir duma casa isolada. Somente um romântico poderia atrever-se a quebrar com palavras esse mágico silêncio. Com versos de Browning. Foi aliás por puro reflexo que Rick os murmurou: vieram-lhe naturalmente ao espírito e aos lábios enquanto, enrolando nos dedos os cabelos da jovem, se afastava um pouco para saborear o êxtase:

 

And a voice said in mastery while I strove... Guess now who holds thee? - Death, I said. But, there, the silver answer rang...

 

Quando sussurrou o final do soneto, Rick soube que o encanto não se quebrara:

 

But, there, the silver answer rang... Not Death, but Love1.

 

O murmúrio extinguiu-se sob a sua boca ávida. Nesse instante, a noite dobrou-se sobre eles, submergiu-os, e todo o ruído emudeceu, salvo o do ritmo amoroso dos seus corações.

 

Um punho martelou vigorosamente a porta. Rick soergueu-se no colchão e praguejou com eloquência quando bateu com a cabeça na madeira rija do tampo da mesa. Ainda ensonado, levantou-se, caminhou aos tombos até ao cabide, onde devia estar pen-

 

1 E enquanto lutava, uma voz autoritária perguntou-me: / Adivinha agora quem te prende? - A morte, repliquei. / Mas então ressoou a resposta eloquente.../Não é a morte, é o amor.

 

durado o seu impermeável, e como não o encontrasse, enrolou-se no último cobertor que restava em cima da cama desfeita, dirigindo-se às apalpadelas para a porta, que alguém continuava a martelar com perseverança. Embora o quarto estivesse mergulhado em denso negrume, Rick pressentiu, antes mesmo de pôr a mão no trinco, a baça claridade que já reinava lá fora.

 

- Quem é?

 

- Não se zangue antes de saber porque o vim acordar tão cedo, capitão.

 

Winter reconheceu logo a voz do seu impedido, Manny Ebstein.

 

- Idiota chapado! Não tens bom senso suficiente para...

 

- A culpa não é minha, capitão! Mandaram-me cá.

 

Rick abriu a porta, esforçando-se por encobrir o quarto dos olhares de Manny e saiu para a rua.

 

Ebstein, em sentido, fazia a sua imitação mais conscienciosa duma continência. Acompanhava Rick Winter desde certa memorável jornada de Toledo, quando num edifício parcialmente disperso pelas imediações devido a uma explosão, os dedos hábeis do capitão tinham encontrado e laqueado, sob o fogo do inimigo, a artéria por onde se lhe esvaía a vida. Mais tarde, o próprio capitão pegara numa das extremidades da maca em que o ferido fora transportado para uma ambulância.

 

No ano anterior, portanto, nos Estados Unidos, esse mesmo Manny Ebstein assinara, como a coisa mais natural deste mundo, o seu alistamento no 95.° Hospital de Campanha. Rick não ignorava que, de vez em quando, ele suspirava por Brooklyn, pelos resultados dos desafios de basebol e pelas proezas dos seus jogadores favoritos. Com queixo de velha, corpo desengonçado, vagamente raquítico, evocava, segundo a proximidade do dia do pré e o nível do seu barómetro alcoólico, um ajudante de gato-pingado ou um comediante na disponibilidade. Todavia, naquele momento, Manny Ebstein tinha apenas uma honesta preocupação:

 

- Tem a certeza que isto caminha bem, patrão?

 

- Já devias saber há muito tempo que não é pergunta que me faças antes do meio-dia.

 

Com a mão no braço do impedido, Rick caminhou cambaleante para o meio da rua. Uma pálida claridade, com a pretensão de se assemelhar à aurora, varria já os telhados. Essa luz do dia era suficiente, ao menos, para se poder distinguir os campos vizinhos. Num bosque de faias, na outra margem do ribeiro, troncos meio calcinados apontavam para o céu, em volta duma cratera recentemente aberta. Lá adiante, junto ao passeio, onde a rua fazia um cotovelo antes de atravessar a via-férrea, na direcção do acampamento, estava parado um jipe carregado até mais não poder com equipamentos.

 

Antes mesmo de formular a pergunta, Rick já conhecia a resposta:

 

- Não me digas que levantamos hoje ferro?

 

- O comandante não me fez confidências - assegurou Manny, arvorando o seu melhor sorriso. - Mas se me perguntar o que penso, dir-lhe-ei que é muito provável.

 

- E para que é o jipe?

 

- Em primeiro lugar, tenho de o levar sem demora ao comando. Em seguida, vou descarregar no cais as máscaras contra gases. Porventura isto diz-lhe alguma coisa?

 

- Espera-me ao fundo do passeio - ordenou Rick. - Estarei lá daqui a cinco minutos.

 

Fechou a porta atrás de si e estendeu a mão para o interruptor. A guerra não consentia os fins de acto com graça nem os adeuses românticos. O estado lamentável do pequeno quarto apareceu de súbito à luz do globo pendente da instalação eléctrica meio arrancada do tecto. Abriu e fechou os olhos ao ver o montão de caliça, tijolos e estilhaços de vidro: a gruta improvisada debaixo da mesa salvara-lhe a vida e a da desconhecida.

 

Mas nesse quarto em desordem ele estava agora só. Da jovem que tivera nos seus braços, restava-lhe apenas uma melancólica capa. Compreendeu que ela a deixara ali somente para não o despertar, pois adormecera com o ombro em cima dessa peça de vestuário.

 

Meteu-se imediatamente dentro do abrigo, para o explorar bem; empurrou depois a mesa, que foi embater com fragor na parede, e pôs-se a rebuscar tudo à pressa, produzindo em sua volta uma espécie de ciclone que fazia andar pelo ar quanto lhe servira para construir o bastião, roupa interior, cobertores, sacos de dormir... Abriu a boca para chamá-la, mas lembrou-se que não sabia sequer o nome da ausente; não lhe vira tão-pouco o rosto nem a cor dos cabelos...

 

A campainha do telefone retiniu, restituindo-lhe a presença de espírito. Forçou a voz a mostrar-se clara e pausada e atendeu:

 

- Aqui, capitão Winter!

 

- Olá, Rick! - Era Bill, o seu camarada de quarto, o major William Coffin, especialista em cirurgia do cérebro. - Não tentes fazer-me acreditar que dormiste durante a visita de Jerry.

 

- Como uma pedra, podes crer!

 

Rick esperava que a sua voz parecesse absolutamente natural. Bill estava de serviço na véspera e não tinha nenhum meio de saber que o camarada de quarto não dormira sozinho.

 

- Manny está aí com o nosso carro?

 

- Espera-me lá fora enquanto me visto.

 

- Óptimo. Então dize-lhe que carregue a minha cangalhada juntamente com a tua. Já não ponho aí os pés.

 

Rick deitou um olhar para toda aquela desordem. E, fosse pelo que fosse, sorriu.

 

- Salvaremos o que pudermos, camarada. Podes dizer-me o que se passa?

 

- Faz uso da inteligência - disse do outro lado do fio Bill Coffin. - Esta linha pode estar ligada a uma mesa de escuta.

 

Bill desligou enquanto Rick aprovava a última observação. Na sua qualidade de cirurgião mais antigo, logo após o cirurgião-chefe, esperava-o um belo dia de trabalho! Tinha a responsabilidade de todo o equipamento cirúrgico da unidade. Mas, bem vistas as coisas, essa tarefa até seria bem-vinda, ajudá-lo-ia a esquecer... Entretanto, continuava a rebuscar e a pôr em desordem todo o quarto, virando e revirando o mínimo objecto, na esperança de encontrar algum sinal da desaparecida.

 

Mas tinha de se render à evidência: nenhum outro traço lhe restava dela senão aquela capa, nas dobras da qual afundou o rosto, procurando ainda o fantasma da sua presença, nem que fosse apenas o odor do seu perfume. Acabou por examinar atentamente à luz aquela peça de vestuário, como um detective cuja carreira estivesse em causa: quase nova, na gola uma orgulhosa marca dum estabelecimento da 5.a Avenida, e um lenço cuidadosamente dobrado na algibeira do forro. Depois de apalpar e examinar o tecido em todos os sentidos, o único sinal suplementar que descobriu foi um pequeno monograma bordado a ouro no interior da gola, três letras misturadas e entrelaçadas nun hieróglifo que o próprio Houdini1 não seria capaz de destorcer.

 

Deve tratar-se de Harry Houdini, célebre ilusionista americano, cuja maior habilidade consistia em libertar-se, em questão de minutos, depois de manietado e solidamente amarrado com correntes e cordas, de dentro duma caixa colocada por baixo da ponte dum rio.

 

Manny bateu outra vez à porta, desta vez com menos força.

 

- Está sozinho lá dentro, patrão?

 

- Absolutamente só - murmurou Rick.

 

Mas o seu suspiro era destinado a outros ouvidos, não aos de Ebstein.

 

- Parece que se prepara um grande dia. Então pensei... Rick atirou a capa para dentro da mala e colocou a sua roupa

por cima.

 

- Entra, Manny, e vem dizer-me o que pensaste. Será mais cómodo. Agora já estou completamente acordado.

 

Na noite anterior, em grande uniforme, o coronel Amos Blaine assemelhava-se mais ou menos a um pudim de Natal mascarado de Tio Sam. Agora, no seu uniforme usado, a águia a cintilar no boné das tropas do ultramar, era um soldado até à última polegada da sua vasta superfície. Se o seu gabinete forrado de madeira de pinho dava a ideia, nesse alvorecer pardacento, duma colmeia bem organizada, ele era a alma que dirigia as idas e vindas do enxame. Atrás de si, duas máquinas de escrever crepitavam como metralhadoras, uma estenodactilógrafa do W.A.A.C. em cada teclado.

 

A secretária ao lado era um caos ordenado. Devido aos uniformes dos estafetas que entravam e saíam, dir-se-ia uma estação dos Correios na véspera do Ano Novo.

 

Em frente da secretária do coronel estava o major William Coffin, na posição de sentido, espécie de mágico irlandês, o seu queixo rachado de lutador em singular contraste com uns olhos de cientista, a espreitarem por trás duns óculos de aros de tartaruga. Ao ouvir os calcanhares de Richard Winter baterem correctamente um no outro, esqueceu por completo o decoro e deu meia volta para aplicar uma amistosa palmada no ombro do camarada.

 

- Acorda, meu índio! Não sabes ainda a grande notícia?

 

- O coronel já não quer nada de ti?... - perguntou Rick, baixinho.

 

Bill lembrou-se então do uniforme e retomou a posição de sentido.

 

- Desculpe, coronel.

 

Amos Blaine lançou a cabeça para trás e riu a bom rir.

 

- Bem, vá ao seu trabalho, Bill. Conhece-o melhor do que eu.

 

E continuou a rir mesmo depois de Bill deixar o gabinete.

 

- E então, Rick? É preciso pô-lo ao corrente do que se passa? - Ordem de marcha, não é verdade? - Hoje mesmo, ao meio-dia. Marcha simples, mas nada de demoras. Pode embarcar-nos a essa hora?

 

- Se me dispensar o alferes Adams para a papelada e Manny para o que requeira músculo...

 

- Já lá andam os dois na tarefa - disse placidamente o coronel. - Adams está a bordo do nosso transporte a verificar o material. Manny organiza o seu esquadrão de carregadores de bagagem. Sente-se, Rick, as minhas dactilógrafas não reparam. Isto era de calcular e você já estava preparado para o salto desde ontem.

 

Rick anuiu com satisfação:

 

- Ao meio-dia, nem mais um minuto, coronel.

 

- De acordo. Tendo em conta o snafu, há muitas probabilidades de não levantarmos ferro antes do crepúsculo. Em minha opinião, estamos demasiado próximos das bases inimigas da Mancha, para partirmos em pleno dia.

 

- Sim, demasiado próximos para podermos navegar confortavelmente. Pensa que o ataque aéreo da noite passada?...

 

- Impulso nervoso. Jerry sente que anda qualquer coisa no ar, mas não sabe o quê...

 

- Houve alguns estragos no acampamento?

 

- Erraram o alvo, graças ao black-out. Arderam alguns armazéns dum depósito britânico, lá para o norte. Ouvi dizer que a cidade escapou por pouco. Por acaso as bombas fizeram-no saltar fora da cama?

 

- Pude dormir em paz, obrigado.

 

Como reagiria o velho Amos se lhe descrevesse a surpreendente magia dessa noite de sortilégio? E se lhe dissesse que a sua vida ia mudar duma vez para sempre? Que não teria mais repouso enquanto não conhecesse a mulher com a qual partilhara essa noite sem sossego, no seu comum refúgio de terror? O coronel falava agora de vacinas. O que diria ele ao certo? Rick repôs a toda a pressa o espírito na posição de sentido.

 

- As inoculações, coronel?

 

- Não me diga que não estão todas dadas.

 

- Falta uma meia dúzia de picadelas contra o tifo, mas podem dar-se facilmente a bordo.

 

O coronel anuiu com a cabeça:

 

- Todo o nosso grupo está em condições, claro. Eu perguntava é se Miss Adams também estará. Se bem compreendo, uma correspondente de guerra deve estar vacinada contra tudo. Queira no entanto verificar os seus papéis para ter a certeza.

 

Linda Adams... Ela também ia vestida de branco. Como a sua desconhecida do black-out. Delgada, esbelta, alta, patrícia. Tal como ela. Tê-lo-ia seguido depois de o abandonar tão bruscamente na varanda do clube? Era pouco verosímil essa suposição. Linda detestava-o nesse instante, não só pelo conselho que dera a Terry, mas ainda pela maneira como lhe roubara um beijo. Mas Rick conhecia bastante as mulheres para saber que não as conhecia completamente. E sorriu pela primeira vez nessa manhã.

 

- Estou convencido de que Miss Adams está imunizada...

 

- Diz isso com certo azedume. Até que enfim encontrou pela frente um adversário temível.

 

E o coronel foi sacudido por um ataque de riso ao recordar a discussão da véspera. Rick olhava-o com afectuosa admiração, lembrando-se que Wellington, em Waterloo, galhofava também com os oficiais. A guerra, no fim de contas, podia ser suportável quando se conservava o sentido do humor.

 

- Deponho a dama nas suas mãos, capitão. Não há mais perguntas?

 

- Mais nenhuma, meu coronel. Devo ir receber as ordens do major?

 

- O major Strang está aí ao lado. Eficaz e activo à sua maneira.

 

Apesar do barulho das máquinas de escrever, o coronel baixara um pouco a voz. Rick sentiu de novo a camaradagem que os unia, a despeito da diferença de patentes. Era o mudo entendimento de dois soldados contra um civil em uniforme.

 

- Depois da contenda de ontem à noite - acrescentou Amos

- aconselho-o a afastar-se do caminho do major Strang durante algum tempo. Nas docas de embarque terá bastante com que se entreter e gastar energias.

 

- Posso pedir-lhe a biografia do nosso transporte?

 

- Nos tempos da sua vida privada era a rainha das Bermudas. Fazia cruzeiros. Hoje, vestida de cinzento, terá o mesmo donaire ao passear as nossas tropas. Aliás, partilha a sorte dos seus passageiros. Cada um cumpre o seu dever, e se todos o cumprirem, tudo correrá bem.- Com a palma da mão, o coronel bateu na secretária. - Desta vez, meu rapaz, partimos para a guerra. E em grande estilo. Pode retirar-se.

 

A continência de Rick foi uma maravilha de rígida correcção. Um chefe de protocolo não encontraria nela nada a censurar. Chegado ao átrio, parou para considerar um importante problema. Devia ou não voltar atrás e pedir a Amos uma hora de licença? Terry e Manny podiam muito bem desenvencilhar-se sem a sua presença. E não precisaria mais de uma hora para explorar a cidade até encontrá-la.

 

Sim, se fosse inglesa. Mas se não fosse?

 

A marca indicava que a capa fora adquirida na melhor casa da 5.a Avenida, em Nova Iorque. Seria então uma americana? E se fizesse parte da sua própria unidade? Carolyn Rycroft, por exemplo. Ou Gina Colle, essa beldade obsequiosa e complacente? Ambas estavam vestidas de branco no baile do clube. Talvez alguma delas, nesse instante, o seguisse de longe, da janela do lar das enfermeiras, perguntando a si própria o que iria ele fazer. E talvez essa fosse justamente a mulher que nessa noite se cobrira com o seu impermeável e o escondia agora no fundo dalguma mala de viagem, como ele fizera à capa de veludo.

 

Rick Winter saiu num passo apressado e, em pleno sol, ladeou a fila de jipes estacionados em frente dos edifícios da Administração, sem se importar de parecer ridículo em público se isso de alguma maneira servisse os seus fins. Mas a desconhecida do black-out eclipsara-se deliberadamente. Se algum dia se desse a conhecer, seria quando e como quisesse e nas condições por ela escolhidas.

 

Uma W. A. A.C., impecável e correcta, estava perfilada junto da porta aberta dum jipe. Saudou-o com precisão e ele respondeu da mesma forma, saltando para a sua viatura com a jovialidade dum bombeiro que acorresse ao seu primeiro incêndio. Já instalado, reparou que Terry Adams ocupava o outro extremo.

 

- Ia precisamente dar-lhe conta do meu trabalho e pedir novas ordens, quando o vi no patamar - disse Terry.

 

A jovem W. A. A.C. inquiriu, segundo as normas aprendidas em Fort Dês Maines:

 

- Posso perguntar para onde vai, capitão?

 

- Para o cais número quatro, por favor-respondeu Rick. O alferes guiá-la-á em seguida.

 

O jipe sacudiu endiabradamente as vértebras e deixou a fila como uma bala. Rick pegou num cigarro, afectando uma serenidade que não correspondia de forma nenhuma ao seu estado de espírito.

 

- Que efeito te produziu esta notícia, meu rapaz?

 

- Creio - disse Terry - que o dia está bonito para uma viagem no mar. Não é muito frequente a Inglaterra oferecer-nos manhãs como esta.

 

Todo o vestígio da tensão nervosa da véspera desaparecera da sua voz. Rick, estudando-o de perto, perguntou a si próprio se ele teria seguido o seu conselho quanto à escolha dum calmante. Ou se, pelo contrário, estaria a exigir dos nervos um esforço muito maior, agora que terminara o período de espera. Lembrava-se de ter também exigido o mesmo aos seus, há seis anos, em Espanha. E dominara-os até ao fim da sua primeira campanha. Talvez Terry Adams os conseguisse dominar também. Decidiu por isso não perturbar com perguntas a boa disposição do rapaz.

 

- Recebi uma carta esta manhã - informou Terry. - Da minha mulher. Começou a trabalhar numa fábrica de material de guerra. Uma fábrica de fuselagens de aviões, em Bridgeport.

 

«Cá está a explicação!», pensou Rick. «Amando como ama a sua Mary, esforça-se por partir para a frente com um sorriso nos lábios, uma vez que ela está também ao serviço da guerra!» Apertou cordialmente o braço de Terry.

 

- Fixa-te bem nisto: tu talvez acabes por mudar, mas ela não. Possivelmente é o que esta guerra te reserva.

 

- E se eu não tiver vontade de mudar?

 

- Mudarás da mesma forma. A guerra prega essas partidas aos melhores.

 

Rick aspirou profundamente a atmosfera inglesa. Era estranho como a achava tão deliciosa agora que a ia deixar...

 

- Respira fundo, meu rapaz. Está uma bela manhã para uma mudança.

 

O jipe virou a esquina do acampamento e meteu a toda a velocidade pelo declive do macadame que conduzia ao cais. Lá em baixo, o espectáculo era estimulante. Mesmo um profano teria adivinhado que os germes da batalha se agitavam e remexiam nas profundezas. No ar reboavam as imprecações das gruas a reclamarem o seu lugar junto dos comboios de mercadorias. Os homens corriam dum lado para o outro, no meio dos grandes barracões, como coelhos em dia de caça. O jipe fez marcha atrás para dar passagem a uma longa formação de fardas de caqui: eram jovens magros, queimados do sol, nos olhos uma luminosa felicidade que teria escandalizado as gentes da terra nativa... escandalizado e entusiasmado também!...

 

Quando a jovem W. A. A. C. meteu o jipe pela extensa e rumorosa calçada que conduzia ao barracão, Rick levantou-se. O transporte destinado à sua unidade apareceu, aos seus olhos, em contraluz. Maciça e sólida dama cinzenta, pertencera outrora à boa sociedade e conservava ainda o gosto das aventuras que vivera ao longo das rotas dos cruzeiros; era, enfim, uma dama que gostava bastante de viajar e não mostrava nenhuma falsa vergonha em admitir que levava no seio um canhão.

 

Sem qualquer motivo aparente, enquanto se entretinha a ver a tripulação polir o cabrestante da corrente da âncora, lembrou-se duma gravura pendurada na parede do consultório do seu pai: Dan Boone1, num desfiladeiro da montanha, de carabina ao ombro, os olhos meditativamente voltados para a imensidade do deserto...

 

Dum salto abandonou o jipe e deixou para trás Terry na escada do portaló certo de que estava agora em condições de trabalhar. Expulsaria do espírito a desconhecida do black-out, pois era esse o meio mais simples e mais rápido de a esquecer, se alguma vez lhe fosse possível esquecê-la.

 

Como quase todas as manhãs inglesas de Novembro, também aquela depressa deixou de ser bela. Durante a tarde, um nevoeiro espesso envolveu o acampamento, justamente quando o

95.° Hospital de Campanha começou a transferir-se a toda a pressa para o transporte.

 

O capitão Richard Winter, enfarruscado até aos olhos como qualquer mecânico depois de passar horas e horas com Terry no porão, postara-se ao fundo da escada do portaló, para registar as últimas entradas. A sua unidade viajava com dois batalhões de infantaria. Os soldados estavam já a bordo. Ficariam alojados em filas sobrepostas de beliches, no reduzido espaço dos porões não ocupado pela carga, e por isso com grande dificuldade poderiam mover-se.

 

Depois de conferir todo o pessoal dos quadros e enfermeiras,

 

Daniel Boone, 1735-1820, pioneiro americano.


findaria para ele aquela fastidiosa tarefa: olhou para a lista que tinha na mão com uma careta de enfado. No outro lado da estreita passagem, Manny Ebstein, apoiado a um cabo, bocejava prodigiosamente. A vida militar sob diversas bandeiras ensinara muitas coisas a Manny Ebstein, mas não a arte de se conservar na posição de sentido. No entanto, como o ex-entusiasta dos desafios de basebol realizara já nesse dia consideráveis esforços, Rick conteve uma reprimenda, mesmo quando Randall Strang passou, como uma rajada de vento, fazendo uma breve continência. Os outros estavam ainda reunidos em volta do camião que lhes transportara a bagagem. Oficiais e enfermeiras eram autorizados a levar uma mala, já arrumada no porão do navio, e, além disso, apenas o que pudessem transportar consigo. Nada mais se admitia: os regulamentos eram rígidos a esse respeito. A um sinal de Rick, Manny sacudiu-se e endireitou-se ao ponto de parecer vagamente acordado quando o batalhão de enfermeiras começou a desfilar no plano inclinado que conduzia à coberta. Manny anunciava os nomes; Winter apontava-os.

- Adams, Linda.

 

O capitão ergueu a mão e toda a fila parou. Nunca a vira antes em uniforme. Devia tê-lo mandado fazer, pensou, em Bond Street, lugar das elegâncias militares. Automaticamente, o seu olhar percorreu-a desde os sapatos franceses, ao mesmo tempo femininos e práticos, ao boné das tropas do ultramar, impertinentemente colocado em cima das ondas acobreadas dos seus cabelos, passando pelas pernas bem feitas e a blusa bem talhada, tendo no ombro, no lugar das divisas, em letras prateadas, as palavras «Correspondente de guerra». «Um verdadeiro cartaz de recrutamento!», pensou Rick amargamente. Tivera de facto nos seus braços, na varanda do clube, aquela gravura de tricromia? Parecia-lhe agora inverosímil.

 

- Vai assobiar, capitão? Ou este exame também é oficial? Linda falava numa voz fria. Rick sentiu corar a pele crestada.

 

- Parece-me estar em regra, Miss Adams. Suba, por favor. Linda levava dois sacos iguais. Comprados também em Bond

 

Street, sem dúvida, e forrados com rótulos de diversos grandes hotéis, desde Estocolmo a Singapura... Rick notou em seguida que ela colocava uma caixa mais pequena ao lado de Manny.

 

- Volto ainda para levar a minha máquina de escrever- declarou. - O seu impedido pode entretanto olhar por ela?

 

O capitão abanou negativamente a cabeça:

 

- As jornalistas estão sujeitas ao regulamento geral, Miss Adams. Lamento muito. Só entra a bagagem que possa levar consigo.

 

Linda fitou-o sem dizer uma única palavra. Ele sentiu os seus olhos faiscarem de cólera e regozijou-se profundamente.

 

- Uma vez que insiste, capitão...

 

Desafivelara já o cinturão e passava a correia pela asa dum dos sacos, depois pela caixa que continha a máquina de escrever. E afivelando-o novamente, pôs a carga aos ombros, como os soldados, pegou na outra mala e subiu a escada. Uma risota sacudiu toda a fila que estava à espera e Rick voltou-se bruscamente, mas não surpreendeu nenhum sorriso nos rostos para ele voltados.

 

- Beathie, tenente Bárbara; Carson, tenente May; Cole, tenente Gina...

 

Mesmo metida na sua capa regulamentar e no uniforme branco das enfermeiras, Gina arranjava forma de parecer voluptuosa. Durante um breve segundo de malícia, os seus olhos fixaram os de Rick. Pedia-lhe sem dúvida uma explicação por não ter comparecido, na véspera à meia-noite, em frente do lar das enfermeiras. Mas de momento ele só podia apontar o seu nome, seguindo o ritmo de Manny, e fazer-lhe com a cabeça sinal para seguir.

 

- Rycroft, tenente Carolyn...

 

A sua cabeleira loira lançava no cais uma luz dourada. O seu sorriso era apenas encanto e doçura, após a provocante sedução que exalava Gina. Teria sido ela que se refugiara nos seus braços, numa rua da cidade, quando caiu a primeira bomba do ataque nocturno?

 

- Fraser, tenente Joan; Enfield, tenente Helen...

 

O ritmo cantante com que Manny continuava a sua chamada era estranhamente tranquilizador. Quando os dois terminaram a conferência, um pressentimento segredou a Winter que o seu futuro franqueara também aquela escada do portaló e que encontraria maneira de recuperar intacto o interlúdio da noite anterior, se soubesse mostrar-se paciente e conservasse o sangue-frio.

 

Gina Cole, que não escondia o mau humor ao subir lentamente para o navio, pôde enfim atirar as malas para a coberta, lançando ao mesmo tempo um olhar pouco amistoso à máscara de gás que lhe batia no peito.

 

- Podiam ao menos despachar-nos com música - resmungou . - Assim até parece que vamos a acompanhar um enterro...

 

Carolyn, que a seguia, perguntou-lhe:

 

- Reparaste no capitão Winter, junto da escada do portaló?

 

- Se reparei! - exclamou Gina. - E até fiquei muito satisfeita quando a jornalista o meteu na ordem. Ele começa a ter ares muito importantes.

 

Os seus olhos escuros examinaram a coberta e não lhe escapou o interesse manifestado pelos dois marinheiros de sentinela. No fim de contas, a vida a bordo talvez fosse suportável. O exército estaria um pouco enjoado durante certo tempo, mas havia uma compensação: era composto exclusivamente por homens.

 

- Vá! Anda! - ordenou Carolyn. - Não comeces a namoriscar antes mesmo de saberes onde ficas instalada.

 

A pouco e pouco Gina ia avançando.

 

- Não se trata de namoriscar - rectificou. - Simples exame de apreciação, se assim queres. Porque não estudas também o ambiente? Naturalmente estamos condenadas a passar muito tempo nesta casca de noz. O telégrafo clandestino dá como origem a Austrália, via Cabo.

 

- Eu ouvi falar na Noruega. E não me interessa o ambiente.

 

- Já escolheste o felizardo? É isso, não é?

 

- Talvez.

 

- Quer creias quer não, sei guardar um segredo. Não andará metido na aventura o nosso caro Rick?

 

Carolyn não respondeu por palavras, mas a sua respiração acelerou-se e disse o suficiente. Gina sorriu e avançou um pouco mais com a fila. O ar desprendido da enfermeira loira não a iludia. Carolyn ausentara-se do baile na noite anterior, durante bastante tempo, e Gina começava já a suspeitar o motivo. Seria possível que aquela gata borralheira, com os seus grossos sapatorros e o seu complexo de Florence Nightingale, tivesse feito a sua suprema dádiva na véspera à noite? Parecia-lhe incrível. Mas no fim de contas nada era impossível em tempo de guerra... Pois bem! Carolyn podia guardar à vontade o seu segredo. Gina nem por isso deixaria de ser sua amiga e por uma razão excelente: não havia qualquer perigo que a enfermeira loira lhe fizesse alguma vez concorrência nos seus amores volúveis.

 

Gina ergueu a cabeça, como um cavalo de guerra que pressentisse o combate próximo. A fila avançara um pouco mais e atingira o salão do barco, outrora brilhante local de diversões, com

colunas artísticas e paredes forradas de espelhos. A guerra roubara-lhe o esplendor antigo, mas mesmo assim restavam-lhe ainda bastantes sinais de riqueza para lembrar a Gina que aquele barco fora antigamente um paquete de luxo.

 

Talvez o seu encanto de outrora reaparecesse com o sortilégio das luzes nocturnas. Ou estava muito enganada ou encontraria ali chinela para o seu pé. Se não pudesse lançar mão a Rick Winter, contentar-se-ia com o seu belo camarada irlandês. Uma noite de luar e um canto isolado no tombadilho... As brochuras de publicidade para uso dos turistas falavam com frequência de escusos recantos atrás dos barcos salva-vidas.

 

Uma mala bateu-lhe no traseiro. Gina avançou na direcção dum vão de escada que se afundava nas cobertas inferiores. Uma enfermeira exclamou:

 

- Fora de brincadeiras. Não me digam que nos vão meter juntamente com os soldados.

 

- Seria uma bela oportunidade, não haja dúvida. Mas se fôssemos torpedeados?! - perguntou outra.

 

Gina retorquiu, muito serena:

 

- Ora, ora! Saías de lá a nado e reaparecias num submarino. Já pensaste nessa sorte? Nada menos de cinquenta homens para uma mulher! Mas, evidentemente, tu pertences à espécie das que não correm nenhum risco, nem mesmo sendo a única do teu sexo dentro dum submarino...

 

- Se não baixas a voz, ainda te levanto um processo por difamação !

 

Outra enfermeira interrompeu o diálogo:

 

- Não se preocupem com a natação, minhas filhas. Enquanto andarmos no mar, teremos de trazer os cintos salva-vidas.

 

A conversa diminuíra-lhes a tensão nervosa e já estavam todas com boa disposição quando se embrenharam no estreito corredor da coberta B, onde um sargento dava as necessárias indicações:

 

- Os oficiais em frente. As enfermeiras por aqui. Como sempre, Gina teve a última palavra:

 

- Ao menos, se formos a pique, morremos em boa companhia.

 

Em longa fila, as portas dos camarotes estavam abertas. Uma claridade pálida entrava pelas vigias com os últimos fulgores da tarde em declínio, mas essas vigias seriam hermeticamente fechadas mal o navio aproasse ao mar.

 

- Miss Adams, número vinte e dois.

 

Linda Adams, erguendo a máquina de escrever, sorria agradecida ao oficial de marinha que lhe indicava o seu domínio temporário, onde entrou de viés, como um caranguejo.

 

- Tenentes Cole e Rycroft, número vinte - continuou o oficial, acrescentando, depois de fixar Gina com olhar sabedor:

- Um número que preciso não esquecer!

 

- Já está muito saído da casca! - exclamou Gina.

 

Mas isso não a impediu de lançar ao adolescente um longo olhar de soslaio antes de seguir Carolyn e entrar no alojamento comum. Após seis meses passados no exército, já tomava aquele género de ditos como um cumprimento.

 

Se o camarote não era grande, também não era mais pequeno do que a cela que as duas partilhavam no lar das enfermeiras. Os beliches sobrepostos pareciam confortáveis e, coisa mais apreciável do que o resto, uma porta dava para uma casa de banho. Gina atirou a bagagem para cima do beliche e propôs:

 

- Vamos tirá-los à sorte. Naturalmente temos de partilhar a casa de banho com a jornalista.

 

- E porque não? Acho que já é uma grande coisa haver um chuveiro para partilhar com alguém.

 

Gina estiraçou-se no beliche, arrojando para longe os sapatos: essa sua atitude negligente instalava-a acto contínuo no seu novo modo de vida.

 

- Tal como Sadie Thompson na Chuva’ - observou Carolyn . - Espero que não tenhas a intenção de imitar o seu exemplo...

 

Mas os olhos de Gina estavam já fixos na porta da casa de banho, para lá da qual se ouvia o insistente crepitar do duche.

 

- A nossa jovem e brilhante jornalista já se sente como em sua casa.

 

- Sem dúvida quer chegar lá acima à coberta antes de levantarmos ferro - admitiu Carolyn, ocupada em desfazer as malas.

- Não te esqueças que tens de descrever todo este cenário. Nós a única coisa que precisamos fazer é vivê-lo.

 

Gina reflectiu:

 

- Vou entrar de repente ali dentro para a observar de perto. Fardada tinha na verdade o ar de ser um bom pedaço de mulher. Se em pêlo não desmerecer, sempre te digo que é uma lasca de se lhe tirar o chapéu.

 

Célebre novela de Somerset Maugha

 

- Medo da concorrência?

 

- Talvez... - E mudando de assunto: - Com guerra ou sem guerra, levo hoje o vestido de noite ao jantar.

 

- Sim? E os cintos de salvação? Que fazes com eles?

 

- Que vão para o diabo os submarinos! E enquanto aqui estiver que vão para o diabo também os cintos de salvação!

 

Gina libertou-se das suas vestes brancas, pôs um roupão pelas costas e entrou na casa de banho armada com o seu sorriso mais delicadamente felino.

 

- Olá! É apenas a nossa vizinha!

 

Obedecendo a impulso mais forte do que a sua boa educação, Carolyn aproximou-se da porta, logo atrás dela: «No fim de contas» , pensava, «agora quase podemos dizer que somos três companheiras de quarto. E se Gina fosse estragar tudo, arreganhando-lhes os dentes...»

 

- A invasão não a contraria? - perguntou a Vénus. Respondeu-lhe um riso claro por trás das cortinas do chuveiro.

 

Carolyn, mais tranquila, considerou que estava ali uma rapariga capaz de encarar a vida com espírito e boa disposição.

 

- A invasão é inevitável em tempo de guerra - volveu Linda. - Se quer tomar o seu duche a seguir, por minha parte já terminei.

 

Afastou as cortinas e saiu com uma indiferença tranquila, encantadora silhueta esguia, de ancas delicadas e seios erectos. Durante algum tempo, Gina apreciou-a em silêncio: no entanto, aquela auxiliar de radiologia poucas vezes se mostrava pobre de vocabulário. Carolyn reparou que o à-vontade de Linda Adams destruíra as últimas desconfianças. E uma vez admitida por Gina Cole, a jornalista passava a ser «uma do grupo».

 

- O meu nome é Cole. Se lhe agradar, chame-me Gina. E já agora vou tomar o seu lugar debaixo do duche.

 

Gina enxugou-se e tirou depois a bomba de borracha, sacudindo os cabelos ruivos.

 

- Temos de aproveitar enquanto é tempo. Já viajei neste barco há alguns anos. Podem crer, uma vez no alto mar, não teremos outros duches senão salgados.

 

Vénus entrou no banho; Gina estava agora atrás das cortinas. Linda sorriu para Carolyn.

 

- Venha até ao meu camarote. Parece-me que é ainda um pouco mais pequeno que o vosso.

 

Invejando no íntimo aquele à-vontade de viajante experimentada, Carolyn seguiu-a. Por sua parte, não conseguira ainda habituar-se àquela vida movimentada, apesar dos meses que passara já no exército. Uma certa timidez continuava a atormentá-la, muito embora fizesse todos os esforços para acertar o passo com Gina e as outras. Deviam ser os restos dos seus hábitos de solteirona, adquiridos nos tempos de enfermeira em Nova Iorque, quando vivia num quarto com uma cama-armário e se inquietava com o ferrolho de segurança.

 

Atrás delas, o duche tamborilava forte, mas dominando o crepitar da água, ouvia-se o contralto voluptuoso de Gina:

 

Oh! Madame, have you a daughter fair... Parlez-vom, parlez-vous?... Oh! Madame, have you a daughter fair? Parlez-vous, parlez-vous français?

 

E no corredor uma jovem voz masculina, a dum oficial que passava, começou a trautear o estribilho:

 

Parlez-vous, parlez-vous français?

 

O camarote de Linda estava perfeitamente arrumado como os de todos os vagabundos. Sentia-se o hábito dos grandes hotéis, a mulher que vive atenta ao horário dos caminhos-de-ferro e não desperdiça energias a desfazer inutilmente a bagagem: as suas duas malas eram armários em miniatura. Abertas naquele momento, os varões cromados puxados para fora, punham todo o guarda-roupa de Linda directamente ao alcance da sua mão. A máquina de escrever, já aberta, estava colocada em cima da mesa e ao lado via-se uma pilha de notas prontas para serem transcritas. Um cinzeiro das Galerias Lafayette servia de pisa-papéis.

 

- Recordação da minha primeira viagem a Paris - explicou a jornalista. - Trago-o sempre comigo, como se fora um amuleto.

 

Sem responder, Carolyn Rycroft, ligeiramente deprimida por aquela organização impecável, continuava apoiada à ombreira da porta da casa de banho. Linda Adams vivera até ali uma existência excitante, não tinha a menor dúvida a esse respeito. No entanto, a enfermeira suspeitava que uma tal vida havia de comportar algumas horas de solidão. Não havia possibilidade de se ganhar raízes, nem sequer de se contrair amizades duradoiras quando se percorria o mundo a essa velocidade, à caça de informações sensacionais para alimentar uma imprensa esfaimada. E interrogava-se vagamente se aquela jovem alguma vez teria estado apaixonada, apaixonada como ela própria, Carolyn Rycroft, o estava por Richard Winter.

 

Via Linda ir e vir no estreito camarote, reunir as peças do seu vestuário de noite, e um sentimento de culpa invadia-a, acompanhado duma inegável sensação de bem-estar. Era bom, na verdade, encarar a realidade frente a frente e admitir que o beijo de Rick imprimira um ritmo novo ao seu coração, bastante mais vivo... Era estranho que só lhe ocorresse tal ideia ao ver aquela insinuante criatura vestir-se para jantar.

 

E de repente lembrou-se e compreendeu: tinha visto Linda dançar com Rick no clube. Seria possível que sentisse ciúmes? E tão depressa? E por uma coisa tão normal? Viu, cheia de melancolia, embora nunca a assaltasse tal disposição, Linda vestir uma escandalosa e encantadora combinação parisiense e por cima um vestido de noite branco.

 

- Crê que podemos andar assim ainda hoje?

 

Linda riu ao ouvir a pergunta, a cabeça presa nas pregas do vestido:

 

- Sucede que este é o meu único trajo de sereia para a invasão. Porque não o hei-de vestir enquanto me é possível fazê-lo? Não sairemos o gargalo deste porto antes de soar a meia-noite.

 

Enquanto falava, o chão começou a vibrar debaixo dos seus pés, como se a quisesse desmentir imediatamente.

 

- Não se iluda com este barulho. Vamos lançar ferro mais ao largo, perto da rede de minas que defende o ancoradoiro e aí esperaremos a meia-noite e o torpedeiro de escolta para aparelhar. Se prefere, direi o mesmo por outras palavras: jantaremos esta noite sem cintos de salvação.

 

Carolyn sorriu: com ciúmes ou não, simpatizava com aquela jovem.

 

- Tem verniz para as unhas, Miss Adams?

 

- Diga antes Linda. Qual é o seu nome?

 

- Carolyn Rycroft.

 

A enfermeira loira estendeu-lhe a mão e a jornalista apertou-lha calorosamente.

 

- Sirva-se à vontade, Carolyn. - E indicava-lhe com um gesto uma boa provisão de frascos: - Foram quase todos comprados em Paris, nas vésperas da conquista da cidade por Hitler.

 

E tão depressa não tornaremos a adquirir outros iguais. Teremos de esperar que Paris seja libertada.

 

Carolyn esboçou um movimento de recusa:

 

- Mas se tudo isto é importado, com certeza estou a sonhar...

 

E corou um pouco, pensando no verniz barato que sempre utilizava. Linda Adams, no entanto, escolheu um frasco e atirou-lho do fundo do camarote.

 

- Tome lá! Durante algum tempo teremos quartos quase comuns. Ora isso é válido igualmente para o verniz das unhas.

 

Dez portas adiante, noutro camarote da coberta B, Terry Adams ouviu também vibrar as turbinas e interrompeu a arrumação das coisas.

 

Assim, pois, a aventura começava! Chegara o momento para o qual procurava um meio de dominar os nervos. E agora que o navio metia a proa à saída da barra, apercebia-se de que podia enfrentar o acontecimento quase com indiferença. Um novo tumulto lhe agitava o sangue nas veias e mantê-lo-ia em efervescência até tornar a ver Gina Cole.

 

O seu espírito deu um brusco salto no tempo para reviver o baile da véspera. Sentia ainda em todo o ser o calor daquele corpo flexível, tão bem moldado ao seu no isolamento da galeria. E quase podia ouvir a voz dela murmurar no escuro:

 

- Não, Terry. Aqui não, não é conveniente.

 

- Não posso deixar de a desejar a todo o instante.

 

- Muito obrigada pelo cumprimento. Mas...

 

- Mas o quê, querida?

 

Com que facilidade encontrara de novo o apropriado vocabulário amoroso! Desde que beijara a esposa pela última vez, na noite da despedida, seis meses antes, nenhuma outra mulher lhe ouvira pronunciar aquela palavra. Mas na noite anterior (o principal fora começar), as palavras saíam-lhe dos lábios quase sem querer.

 

Gina perguntara baixinho:

 

- Quando se decidiu a meu respeito?

 

- Sempre a desejei - respondera.

 

Deus sabia bem que era exacto, se a palavra «sempre» pudesse significar essa eternidade que ele vivera separado de Mary. Desejava alguma coisa... bastante parecida com Gina Cole, em suma... para acalmar esse desejo. E murmurara:

 

- Venha comigo à cidade.

 

- Já lhe disse que prometi esta noite a outro oficial; não se lembra?

 

- Bem, mas então quando?

 

- Talvez amanhã...

 

- Amanhã? A bordo do transporte? Sim, porque amanhã já vamos com certeza no mar alto.

 

- Combinado. Dê-me o número do seu camarote.

 

Nesse instante sentira o sangue circular impetuosamente nas veias. Ela dissera aquilo tão tranquila, com tanta naturalidade... Respondera-lhe num murmúrio abafado. Como pertencia aos serviços administrativos, conhecia já a organização dos alojamentos.

 

- Dorme sozinho?

 

Era uma pergunta do mesmo género, um pouco trocista, um pouco provocante.

 

- Durmo com os meus classificadores.

 

- Pobre Terry! Com efeito tem razão para se sentir abandonado e só...

 

Permitira então que ele a beijasse, um longo beijo, um beijo de enlouquecer, antes de voltar a correr para o clube e para o baile.

 

Terry Adams parou o seu passeio e deu um murro na almofada do beliche. Esqueceria ela essa meia promessa? E agora que fizera uma espantosa descoberta, desejaria de facto encontrá-la ali, naquele camarote? Que diria Gina se lhe contasse que nesse mesmo transporte de guerra, nos tempos em que era ainda um barco para cruzeiros de luxo, realizara a sua viagem de núpcias às índias Ocidentais?

 

Ele e Mary tinham dançado no salão de Inverno da coberta superior, há bem poucos anos!... E agora preparava-se para destruir a sangue-frio tais recordações! E porquê? Para mostrar ao mundo um rosto sem tormentos! Para executar o seu trabalho com mão firme... O desejo, nesse instante, permanecia nele tranquilo. Fera enjaulada que sabia estar próxima a sua hora. Nada mais contava senão a noite que se aproximava. A noite, sinónimo de Gina e de apaziguamento...

 

No corredor da coberta B estavam acesas as luzes dum azul muito velado. À claridade já crepuscular, o transporte avançava lentamente para o seu ancoradoiro.

 

Rick, após o embarque, passara longas horas às voltas com trabalhos de carácter administrativo. Ao abandonar os números, teve alguma dificuldade em habituar os olhos àquela claridade difusa. Strang ajudara-o algum tempo, com a sua habitual e rude eficácia, depois retirara-se para ir dormir o seu sono, habitual também, antes da refeição, como convinha a um cirurgião-chefe, cujo excelente estado físico e energia são duma importância absoluta. Ao princípio, Rick supôs que era o chefe que o esperava em frente da porta do camarote, mas depois viu que era Weldon, o cirurgião do navio, e imediatamente distendeu o rosto num sorriso cordial. O major Weldon, velho amigo dos seus tempos de estudante, acolhera-o de braços abertos à sua chegada a bordo.

 

- Bem me parecia que o encontrava mais depressa e mais facilmente se fizesse aqui um quarto de sentinela - murmurou o médico. - Não está demasiado fatigado para me dar uma ajuda?

 

- Às suas ordens, doutor. De que se trata?

 

- Uma perfuração, suponho.

 

Como um peso visível, o cansaço caiu dos ombros do Dr. Winter. Era justamente aquilo o que as suas mãos nervosas esperavam desde manhã: o seu verdadeiro trabalho. Uma nova batalha a travar com o velho inimigo, canalizando para ela todos os pensamentos e energias, um novo labor que apagasse a recordação obsessiva da desconhecida do black-out.

 

- E porque não?...

 

Weldon, sem o deixar ir mais longe, levantou o índex inchado.

 

- Dei-lhe ontem uma martelada. Receio não poder fazer nada de jeito.

 

Desceram, um atrás do outro, para o hospital do navio, bem isolado no meio do barco, facilmente acessível, no ponto mais afastado das bombas e dos torpedos. Todos os transportes na Segunda Guerra Mundial possuíam hospitais semelhantes, tão completamente equipados como qualquer outra instalação análoga em terra. Além de duas salas de operações gémeas, tinham um aparelho portátil de raios X e um laboratório com todos os utensílios necessários. De cada um dos lados deste «centro» técnico ficavam as cómodas enfermarias para os doentes, defendidas por paredes estanques. O caso não era ainda do domínio público, mas esses mesmos transportes serviriam de hospitais flutuantes na viagem de regresso. Se não fora o ligeiro balanço, Rick julgar-se-ia num verdadeiro hospital, em terra firme... Lançou em redor um olhar de vivo interesse e o seu sorriso indicava um elogio.

 

- Não me diga que tudo isto foi agora organizado para este caso de urgência.

 

- Estamos organizados para casos de urgência durante as vinte e quatro horas do dia - respondeu Weldon. - Quer ver o nosso homem?

 

O soldado estava instalado numa maca, na enfermaria de estibordo. Era um rapaz loiro, alto e magro, que outro ra podia ter sido um óptimo jogador de basebol. Agora, coberto pelas mantas do exército, debatia-se numa verdadeira agonia, contra a qual urgia defendê-lo. Os seus lábios estavam brancos, os olhos embaciados pelo sofrimento. Um simples relance bastou a Rick para verificar que pouco lhe faltava para perder a batalha.

 

- A história, major?

 

- Dor abdominal súbita há... - Weldon consultou o gráfico aos pés do leito - ...seis horas. Mas não disse nada para não perder o seu lugar a bordo.

 

Com expressão compreensiva, Weldon olhou para Rick e depois para o paciente, inerte diante deles.

 

- Esperou que o barco levantasse ferro e só então se queixou.

 

Rick abanou a cabeça. Era velha história esse heroísmo temerário, com o seu bafio a romantismo. Soldados mais idosos do que esse rapaz e, admissivelmente, mais sensatos, tinham morrido antes dele por demorarem voluntariamente a sua entrada no hospital.

 

Pousou a mão no abdome dorido, ao de leve, num contacto experiente que mal aflorava a pele e no entanto lhe dizia muito sobre os órgãos que ela recobria. Tratava-se apenas de estabelecer o diagnóstico. Aquela rigidez de tábua não podia de forma alguma significar senão uma perfuração e uma peritonite. E no entanto... no entanto parecia-lhe que não era o tipo habitual de perfuração, provocada por úlcera no estômago ou no duodeno.

 

- Onde começou a dor? - inquiriu.

 

Sem hesitar, a mão do doente apontou o umbigo:


- Aqui, em redor deste ponto, doutor. Julguei ao princípio que fosse provocada por alguma coisa que tivesse comido.

 

- Vómitos?

 

O soldado confirmou com leve aceno de cabeça.

 

- Sim, duas vezes, há talvez duas horas. Rick voltou-se para o major:

 

- Foi feita a análise ao sangue?

 

- Vinte mil glóbulos brancos - informou Weldon.

 

O quadro da peritonite estava patente. Precisava de mais uma prova, mas Weldon tinha pensado nela.

 

- Fizemos uma radiografia há poucos minutos. Vamos ver o que acusa.

 

Na câmara escura, o radiologista mostrou-lhes a chapa. Aquilo que procuravam estava bem à vista, uma pequena superfície clara, muito em cima, sob o diafragma. Uma superfície menos opaca que o tecido que a envolvia, pois continha ar, prova irrefutável de perfuração.

 

- Sou de opinião que se opere imediatamente, major.

 

- O caso está em boas mãos, Rick. Dê as suas ordens.

 

- O que há a respeito da luz?

 

- A sala de operações permite um black-out absoluto. Weldon seguiu Rick no corredor.

 

- Qual é o seu diagnóstico? Úlcera?

 

- É difícil de dizer ao certo. Inclino-me para um divertículo de Meckel.

 

Os olhos de Weldon brilharam e assobiou entre dentes:

 

- É um diagnóstico astucioso. Quer fazer uma aposta? Pararam os dois e Rick teve um trejeito de bom humor.

 

- Uma cerveja antes do jantar, valeu?

 

Enquanto se vestia para entrar na sala de operações, Rick pensava que aquele transporte não se parecia absolutamente nada com os transportes das outras guerras. Antigamente, uma perfuração semelhante ou mesmo uma simples apendicite significava para a vítima quase a morte certa. Hoje um hospital completo acompanhava os soldados ao combate e, qual refúgio flutuante, esperava-os ao largo. É claro, havia ainda alguns aspectos que nem mesmo a ciência podia prever, mas duma maneira geral a ciência mostrava-se verdadeiramente à altura da situação. E os homens que marchavam para a guerra bem o mereciam.

 

Estava ali um rapaz a quem a sorte traíra. A caminho da maior aventura da sua vida, fora de súbito detido por um simples acidente cirúrgico. E, na melhor das hipóteses, talvez nada simples. As perfurações dessas pequenas e estranhas bolsas que se desenvolvem no intestino delgado durante o crescimento embrionário não são muito vulgares. No embrião, há a comunicação entre o intestino e a membrana vitelina, donde o feto extrai o sustento até poder absorver o sangue materno. Sucede, por vezes, dizem os livros, que a primitiva comunicação não desaparece inteiramente, subsistindo um divertículo, minúscula bolsa em estado rudimentar que pode conter tecido gástrico, propensa a ulcerar primeiro e a perfurar-se depois, espalhando o seu conteúdo e provocando infecções na cavidade abdominal, caso este em que a vida do paciente corre perigo de momento a momento e em que somente a cirurgia aplicada a tempo o pode salvar. Weldon entrou e começou também a preparar-se.

 

- Não se importa que eu assista?

 

- Ia mandá-lo chamar, major.

 

- Uma enfermeira especializada ofereceu-se voluntariamente e assim sentir-se-á ainda mais à vontade - anunciou Weldon sorrindo e começando a esfregar as mãos. - Eu devia ser director das enfermarias em vez de cirurgião. O meu trabalho faz-se sem mim! Mesmo quando não posso pegar num bisturi!

 

Rick juntou-se-lhe em frente da bacia imaculada. Mal ouvira aquelas palavras, pois o seu espírito já se voltara completamente para a tarefa a realizar. Não levantou sequer os olhos quando um soldado deu volta aos interruptores da sala de operações, inundando-a duma luz dramática. Uma enfermeira, de rosto coberto até aos olhos pela máscara, arrumava os instrumentos em cima da mesa e preparava as agulhas de sutura. Ao estender-lhe os braços, para ela lhe passar a blusa esterilizada, saudou-a com gesto distraído.

 

E em seguida encontrou-se diante dum quadro familiar: um rectângulo de pele pintada de anti-séptico vermelho, quatro pinças de pensos cada uma colocada no seu ângulo, o peito do paciente a subir e a descer com regularidade, o fiozinho de cor amarelada a escorrer do reservatório de vidro do aparelho de plasma, e mais em baixo o fluido vital a deslizar do tubo para a veia.

 

Estendeu a mão coberta pela luva de borracha, a enfermeira colocou nela o escalpelo e recuou um passo. Num único golpe firme, Rick abriu cerca de oito polegadas de pele. Os pequenos vasos sanguíneos esguincharam o seu protesto, mas logo as suas bocas foram fechadas por compressas de gaze aplicadas na superfície da ferida.

 

Salvo uma palavra ou outra que o operador murmurava ao estender a mão para receber o instrumento necessário, reinava completo silêncio na sala. Ouvia-se distintamente o tinir de uma pinça hemostática colocada na sua posição. A enfermeira, autómato infatigável, movia-se com desembaraço ao seu lado, colocando quase por instinto os instrumentos ou as compressas exactamente no sítio devido.

 

Rapidamente, com a ajuda dum novo bisturi, Rick abriu a camada muscular, expondo o peritoneu: a sua superfície mostrava-se pardacenta e inflamada. Nenhum vestígio do seu brilho habitual. Olhou para Weldon, que abanou a cabeça em sinal de concordância:

 

- Perfuração certa.

 

- Dentro em pouco saberemos a causa verdadeira.

 

Rick ergueu o peritoneu, afastando-o dos órgãos que cobria. Cortou depois a delgada membrana com o escalpelo. O que distinguiu , fê-lo alargar a abertura para cima e para baixo, de modo a expor melhor a cavidade abdominal.

 

- Sucção!

 

Um fluido cor de palha, arrastando consigo bocados flutuantes de detritos brotou da ferida aberta: o motor do aparelho de sucção já zumbia. Weldon limpou a ferida e ambos viram os intestinos inflamados e vermelhos: aqui e além, nas suas dobras, aparecia um exsudado felpudo, sinal característico de perfuração nas proximidades.

 

Rick colocou um instrumento de lâmina achatada, um retractor, sob o bordo superior da ferida que o seu assistente levantou. Ele próprio, com o maior cuidado, ergueu a parte inferior do estômago e examinou de perto a extremidade fina e alongada, o piloro, que comunica com o intestino delgado. É nesse ponto, duma polegada quadrada apenas, que se situam a maior parte das úlceras perfuradas e não se via lá nenhum vestígio. Tudo estava límpido. Nenhuma aparência dum mal qualquer.

 

Weldon fez uma careta:

 

- Tenho a impressão de que ganhou a cerveja.

 

Rick seguiu a pista intestinal, procurando o divertículo deteriorado que, tinha agora bem a certeza, causava todo o mal. Quando o descobriu, soube ao mesmo tempo que a bolsa não seria muito fácil de libertar, por estar colocada num sítio que não podia ver. O organismo tentara, como sempre, uma defesa directa para obstruir a ruptura e com esse fim colocara em volta do divertículo uma ou duas ansas do intestino, o que podia bem provocar dentro de pouco tempo um estrangulamento de consequências imediatamente desastrosas. A espécie de avental que pende ao longo dos órgãos menos profundos, o epiploon, estava também soldado por aderências à bolsa que, apesar de tudo, não ficara completamente obstruída, como o volume do fluido acumulado na cavidade abdominal dava sinistro testemunho. Não havia a menor dúvida, mais umas horas e a balança inclinar-se-ia de forma decisiva contra o paciente.

 

Após alguns minutos de cuidadoso trabalho, o cirurgião pôde enfim encontrar o órgão causador de todo o mal e fazê-lo emergir no campo operatório. Era uma bolsa de larga base, situada na base inferior do intestino delgado, cujas paredes se tinham esfarrapado pela acção corrosiva dos sucos digestivos.

 

Rick endireitou-se com um clarão de triunfo nos olhos: era uma satisfação imensa verificar que as suas suspeitas se confirmavam. A intuição cirúrgica, para a qual não existe melhor explicação do que para o dom do matemático ou do poeta, continuava a ser sua auxiliar preciosa. Sabia que podia contar com ela noutras crises eventuais.

 

- Ressecção - pronunciou num tom breve e logo a respectiva pinça foi colocada ao seu alcance.

 

Mais uma vez Rick se maravilhou com a eficiência da organização militar que colocara uma pinça de ressecção na aparelhagem daquele hospital, onde possivelmente não tornaria mais a servir, mas onde naquele momento era absolutamente indispensável .

 

Depois de a fixar no seu lugar, pediu:

 

- Cautério.

 

Com movimentos cautelosos e precisos, extraiu o divertículo, com a ajuda do instrumento aquecido ao rubro, que esterilizava ao mesmo tempo as extremidades seccionadas do intestino.

 

- Sutura especial, por favor.

 

Soldada à agulha, essa sutura era preparada de forma a não alargar nem rasgar a abertura feita pela ponta. Rick fechou a superfície cortada do intestino, sem deixar qualquer excrescência, restabelecendo a continuidade de passagem sem nenhum afunilamento. Isto era uma questão técnica de grande importância, pois o mínimo estrangulamento podia provocar uma obstrução, a qual necessitaria de nova operação, e o paciente não estava em estado físico de a suportar.

 

Uma vez terminado, o trabalho ficou tão perfeito que podia servir para ilustrar um tratado.

- Sulfamidas, por favor.

 

Polvilhou com a droga maravilhosa a cavidade abdominal, pondo uma porção suplementar no local da infecção. Se aquele soldado podia salvar-se em qualquer outro local, salvar-se-ia ali também, naquele hospital dum transporte de tropas. E, pelas mesmas razões, as suas possibilidades seriam igualmente boas no hospital de campanha da unidade, quando as tendas estivessem montadas e os feridos começassem a afluir.

 

Quando o último ponto de sutura fechou por completo a epiderme do paciente, Rick pousou a agulha e principiou a tirar as luvas e a blusa. Voltou-se então para a enfermeira para lhe agradecer, como costumava, mas ficou de olhos abertos de espanto ao vê-la baixar a máscara e responder-lhe com um sorriso:

 

- Eu é que lhe agradeço, doutor. É sempre um prazer vê-lo trabalhar.

 

Rick corou um pouco. No fim de contas, tinha beijado, um tanto atrevidamente, aquela jovem há menos de vinte e quatro horas. O seu sexto sentido devia tê-lo prevenido que era Carolyn Rycroft quem trabalhava ao seu lado com toda a perfeição, sob o anonimato da máscara. Para esconder a confusão, voltou-se para o major e perguntou:

 

- Inclui Miss Rycroft nesta cerveja, Weldon?

 

- Pois sem dúvida! - anuiu o outro. - E gostaria bastante de a poder amarrar a esta mesa com carácter definitivo!

 

Rick fez uma careta jovial:

 

- Quer um lugar permanente a bordo, Carolyn?

 

- O meu lugar é em campanha - respondeu a jovem.

 

- E o meu também - acrescentou Rick. - Então, vamos a essa cerveja? Liquidemos imediatamente a aposta.

 

- Não, muito agradecida, capitão. Mas agora já mal tenho tempo de me vestir para o jantar. Bem sabe que é a minha última oportunidade de brilhar, pelo menos nos tempos mais próximos.

 

E fitava-o bem de frente, com um desafio nos olhos. Depois, foi a sua vez de corar, quando se voltou e se dirigiu ao lavabo, para a monótona e indispensável tarefa de lavar e escovar cuidadosamente as mãos.

 

Quando chegou ao tombadilho, Rick ficou de boca aberta: já não reconhecia a paisagem em sua volta. O porto dir-se-ia, à luz do sol-poente, um enorme espelho pardacento, onde se balouçavam, ancorados, dezenas de transportes, o seu bem na vanguarda de todos.

 

Ao longe, para as bandas do ocidente, o dia morria em chamas, afogando num clarão de incêndio essa Inglaterra que ele amava: vedações de madeira de verdes quintais, estacarias de lúpulo, secadoiros, o profundo silêncio dum caminho escuso, pedras cobertas de patina dos tempos em povoados que perderam a conta dos séculos na tranquilidade de milhares de crepúsculos estivais.

 

Mas a terra, agora, ficava para trás, uma recordação na penumbra nascente. Em frente, para lá da rede de minas que defendia a entrada do porto, a névoa descia sobre a Mancha, em rolos espessos. Uma luz, apenas uma ponta de alfinete luminosa, furou essa cortina cinzenta e logo lhe respondeu um torpedeiro a estibordo .

 

Bill Coffin, encostado à parede da sala dos mapas, ofereceu a sua cigarreira:

 

- Podemos fumar aqui? - perguntou Rick.

 

- Se não nos aproximarmos muito da amurada... Como correu a operação?

 

- Um caso muito especial. Porquê?

 

- Tive vontade de ir lá meter o nariz, mas Weldon disse-me que aquilo era só para ti.

 

Rick esboçou um gesto de agradecimento. Depois daquela hora vivida lá em baixo, compreendia bem toda a impaciência de Bill por pegar de novo nos instrumentos da profissão. Mas Bill era sobretudo um especialista de cérebro, por isso o divertículo pertencia a ele, Winter, de direito. Aliás, não faltariam ocasiões para o Dr. William Coffin fazer o gosto ao dedo. Qualquer que fosse o destino do comboio, uma coisa parecia certa: os cirurgiões, mesmo os especialistas, iam ter bastante que fazer.

 

Se Rick estivesse disposto para confidências, Bill seria a pessoa mais indicada para ouvi-las. Tinham sido colegas na Escola Médica, depois internos no mesmo hospital e a guerra acabara por juntá-los na mesma unidade. A sua amizade, reforçada no decurso de tantos anos, podia agora exprimir-se sem palavras. Bill via o amigo num estado de espírito que requeria solidão. Deixou-o com uma palmada cordial no ombro e disse-lhe em ar de advertência:

 

- Não esqueças o jantar! Talvez se dance depois, se Amos estiver de acordo.

 

Rick encostou-se àquela parede pouco hospitaleira e aspirou profundamente o fumo do seu cigarro. Não podia perceber muito bem a exultação que o possuía: era absurdo considerá-la como o resultado natural duma operação bem sucedida. Seria então derivada dessa espécie de silenciosa impaciência que se apoderara de todo o comboio? Conseguiria ele ir até ao fim, entregando-se sem reservas à tarefa que lhe competia? Acreditava realmente que fazia parte duma cruzada para a libertação da humanidade?

 

Sempre na mesma disposição de ânimo, mas sem perder mais tempo a analisá-la, caminhou para um canto por baixo da ponte do comandante, donde podia ver à vontade, num plano inferior, o jardim de Inverno. Oficiais e enfermeiras passeavam ali, tal como fariam, no mesmo lugar, antes das refeições, os viajantes dos cruzeiros. Viu que muitas jovens tinham desafiado pela última vez os regulamentos e andavam com os seus vestidos de noite. Eles e elas pareciam alegres, descontraídos, tranquilos, e a cena dir-se-ia não ter nenhuma relação com a sua causa, com essa guerra formidável e desesperada que todos se dispunham a vencer.

 

Passaram três jovens vestidas de branco e de braço dado. Pararam um momento junto da amurada, para lançarem um último olhar à Inglaterra e logo se afastaram no mesmo passo ligeiro. Seriam apenas, aos fulgores acobreados do sol-poente, três recordações? Gina, Carolyn, Linda, alguma delas guardaria consigo o segredo da felicidade que ele tão ardentemente desejava encontrar?

 

Enquanto as seguia com o olhar no seu passeio, a sua exultação desvaneceu-se. Voltou-se uma vez mais para a terra, que dir-se-ia agora uma miragem despedaçada. Entretanto, o Sol sumira-se por trás dum promontório, para não mais reaparecer. Num segundo, as quintas e os campos passaram do ouro róseo ao cinzento. Talvez ele deixasse a felicidade nessa ilha tranquila e obstinada. Talvez a sua desconhecida do black-out, a dama dos seus pensamentos, estivesse nesse mesmo instante naquele promontório que acabava de ocultar a luz do Sol, inscrevendo mentalmente a palavra «fim» naquele romance duma noite, enquanto os últimos reflexos que aureolavam o comboio se fundiam na água já sem brilho.

 

O caminho era longo até ao seu camarote na coberta B. Só depois de abrir a porta e entrar notou pela primeira vez a sua excessiva fadiga. Manny, como de costume, desfizera-lhe a bagagem com todo o cuidado. O uniforme de grande gala e as vestes de uso quotidiano pendiam, bem alinhados, no guarda-roupa. As botas, maravilhosamente luzidias, brilhavam como espelhos à claridade difusa das lâmpadas do corredor, filtrada através da porta aberta. O seu roupão de lã estava estendido aos pés da cama: tocou-lhe com satisfação, principiando a desabotoar a blusa do uniforme. Depois de tomar um bom banho e de fazer a barba sentir-se-ia de novo em forma.

 

Mas o tecido que a sua mão encontrou era muito mais flexível e macio do que o burel do roupão...

 

Os seus dedos sensíveis identificaram-no, mesmo antes de poder dar volta ao interruptor da luz. Na sua ausência, alguém entrara no camarote para lhe devolver o impermeável, o mesmo impermeável que a desconhecida do black-out levara consigo na noite anterior, ao fugir dos seus braços...

 

Saiu do seu camarote como louco. Na escada, dois soldados tiveram de se comprimir contra o corrimão para deixarem passar aquele oficial apressado que galgava os degraus à velocidade dum foguete. Uma enfermeira olhou-o cheia de espanto ao vê-lo interromper a correria, para a encarar bem, sacudiu depois violentamente a cabeça, recomeçando logo a desvairada carreira.

 

No jardim de Inverno, parou ofegante. Para onde teria ido toda aquela multidão que deambulava ali poucos minutos antes? Onde estavam as três jovens vestidas de branco? Deu três voltas completas ao recinto e só então compreendeu o significado do toque da corneta cujas notas se perdiam no ar: era o último chamamento para a refeição dos oficiais, na sala de jantar de bordo.

 

Rick caminhou para as escadas que davam acesso à coberta A. Ficou um momento indeciso, a mão na balaustrada da escadaria principal. Era a sua última oportunidade de jantar. Mas na verdade sentia, sim, necessidade de beber, não de comer. De beber sozinho, lentamente, durante muito tempo; talvez depois encontrasse maneira de desenredar aquele problema complicado. Encolheu os ombros e voltou para o seu camarote, declinando o convite. Felizmente toda a unidade sabia que ele operara nessa tarde. Se alguém reparasse na sua ausência e a comentasse, de certo haveria logo quem lhe respondesse, achando muito natural que estivesse ainda à cabeceira do doente.

 

De regresso ao camarote, não deu volta ao interruptor; tirou uma lanterna da mochila de Bill Coffin, diminuiu-lhe a luz envolvendo-a num pano, e rebuscou até encontar uma garrafa. Era de aguardente Armagnac. Pertencia a Bill. Substituí-la-ia no próximo porto de escala.

 

Bebeu o primeiro copo. Os dois seguintes, misturou-os com água da torneira. Em todos os seus anos de vagabundagem, nunca sentira uma necessidade tão violenta de álcool. Pelo menos, sem ser para fustigar o espírito. Mas dir-se-ia que a alquimia soberana lhe era favorável naquela noite: após o segundo Armagnac, ficou um pouco mais calmo. Depois do terceiro, já sabia qual a atitude a tomar.

 

Rememorando os acontecimentos e procurando os seus elos invisíveis, como qualquer amador de mistérios, estabeleceu um facto incontroverso: a desconhecida do black-out estava a bordo do transporte. Este ponto, sem dúvida, ficava definitivamente assente. Tão lógico, digamos, como a observação de Euclides sobre as linhas paralelas, mesmo admitindo que a linha da vida da jovem vestida de branco não se cruzasse nunca mais com a sua. Ela conhecia a sua identidade, doutra forma não teria colocado o impermeável em cima da sua cama. Essa era outra verdade incontestável. Quoderat demonstrandum. Enfim, e isso parecia-lhe o mais importante, fora ao seu camarote, deliberadamente, com o risco de ser surpreendida e trair a sua própria identidade. Daí apenas podia deduzir que desejava lembrar-lhe que se encontrava muito perto. A não ser que o quisesse torturar com um segredo que jamais conseguiria descobrir enquanto ela não se resolvesse a desvendá-lo...

 

Se na realidade conhecia as mulheres, tinha de sofrer essa tortura em silêncio.

 

Tornou a tapar a garrafa de cindo estrelas de Bill e colocou-a solenemente donde a tirara. A expectativa seria dolorosa, sobretudo para um combatente que até então tomara de assalto, com rapidez, todas as cidadelas. Mas não havia outra coisa a fazer. O acaso e o toque da corneta para o jantar tinham-lhe sido favoráveis: que cara ou que cena faria ele se se encontrasse frente a frente com os seus três enigmas vestidos de branco?

 

A mulher que procurava seria realmente uma delas, Linda, Carolyn ou Gina? Não havia a menor dúvida, era ali mesmo, naquele corredor, que teria de andar nas pontas dos pés e pôr à prova a sua argúcia policial. Incluindo as W.A.A C., o pessoal técnico e as enfermeiras propriamente ditas, iam a bordo umas quarenta mulheres. Todas elas estavam na noite anterior alojadas na cidade ou no acampamento e qualquer uma podia portanto ter-lhe caído nos braços durante o ataque aéreo... Certas circunstâncias demasiado evidentes limitavam porém um pouco a sua escolha. E havia ainda a marca da grande casa de Nova Iorque na capa e o monograma bordado a fio de ouro.

 

Rick enterrou as mãos na sua mala e retirou de lá a capa; à luz da lâmpada de Bill, examinou demoradamente as iniciais entrelaçadas. Mas... como pudera ser tão estúpido que não se lembrasse há mais tempo daquela pista?!... Se ela usava aquele monograma na gola da capa, era natural que o usasse também noutras peças de vestuário... Um gatuno experiente há muito teria dado resposta àquele problema inquietante.

 

Os corredores da coberta B pareciam completamente desertos. Nem por isso Rick deixou de ir em pontas dos pés até junto da escada para se certificar. Por sorte, conhecia como a palma das mãos aquela parte do navio: o último camarote dos oficiais ficava ao fundo, depois era o das duas oficiais do W.A.A.C. que comandavam as auxiliares instaladas mais em baixo. O resto da coberta B pertencia às enfermeiras. Carolyn e Gina partilhavam o número vinte. Linda, a única pessoa estranha à unidade, ocupava o número vinte e dois.

 

A maçaneta da porta do número vinte não deu a volta. Rick foi mais feliz com a porta do camarote de Linda. O estreito compartimento estava fracamente iluminado e arrumado com ordem impecável. Entrou nele afoitamente, fechou-se por dentro e começou a rebuscar tudo com um cuidado que o mais arguto detective lhe invejaria.

 

Em primeiro lugar, o guarda-roupa. Além do uniforme, encontrou um roupão de flanela, de rigoroso corte masculino, e alguns pijamas, bastante austeros, com marcas duma loja parisiense. Em nenhuma peça de vestuário o mínimo sinal de monograma. Sucedeu o mesmo com a roupa suspensa nos varões cromados das malas entreabertas. A gaveta superior da secretária continha lenços e meias, alinhados geometricamente, como se estivessem expostos numa montra.

 

Rick injuriou com eloquência a ausente. Uma jornalista internacional devia ter um pouco mais de imaginação! Corrigiu no entanto esse erro de julgamento quando a sua mão, avançando mais, encontrou a renda transparente do encaixe duma voluptuosa camisa de noite em crepe da China, destinada para tudo menos para dormir. «Naturalmente descobri o seu enxoval», pensou. «Deve pelo menos ser parcialmente humana, pois traz para a guerra roupa como esta.»

 

Mas não foi capaz de descobrir o hieróglifo, nem nada que se lhe assemelhasse. Linda Adams, a julgar pelas aparências, não apreciava a publicidade pessoal, nem sequer na roupa interior de origem francesa.

 

Em duas passadas atravessou o camarote, parando alguns momentos a ler as notas colocadas ao lado da máquina de escrever. A porta da casa de banho estava fechada por dentro. Durante uns segundos, teve a impressão absurda de que alguém, no outro lado, tomava banho de chuveiro; depois reflectiu que Carolyn, como rapariga prática e de bom senso, fechara aquela porta e a do seu camarote antes de descer para jantar. Amaldiçoava ainda tantas precauções quando ouviu alguém rir no corredor.

 

Esse riso chamou-o à realidade e compreendeu quanto era fútil aquela busca às cegas. As vozes afastaram-se: útil aviso de que o silêncio da coberta B seria em breve desfeito pelo zumbido das enfermeiras, pois o jantar terminara.

 

Mal o ruído dos passos se extinguiu, Rick saiu para o corredor e sem mais delongas desceu a escada de serviço que conduzia à sala de jantar da coberta C. Um soldado vestido de branco guiou-o para uma mesa na grande sala já quase vazia. Soube mais tarde que o grupo que ocupava essa mesa compreendia Strang, o coronel e Bill Coffin. Soube também que conversara com lucidez sobre vários temas, desde os resultados de basebol às tendas de abrigo. Lembrou-se mesmo de ter devorado, com apetite, o bife e o pudim. Mas tudo isso só o recordou num outro dia. Naquele instante, tudo se lhe apresentava envolto numa espécie de bruma confusa, através da qual o seu espírito procurava inconscientemente um caminho, meditando no próximo passo a dar.

 

Quando os sons asmáticos dum gramofone chegaram à sua mesa, Rick levantou-se, balbuciando vagas desculpas. Strang e o coronel prolongavam a conversa enquanto fumavam um cigarro; sentiu o olhar de Bill fixá-lo com insistência e compreendeu muito bem o seu pedido mudo para se demorar um pouco mais ali. Mas não se deixou convencer por esse olhar: nessa noite não estava disposto a desperdiçar tempo com frias demonstrações de cortesia militar.

 

Subiu a escada principal, sem sequer olhar para trás, unicamente preocupado em não deixar que os pés traíssem a sua impaciência...

 

Uma dúzia de pares dançavam no jardim de Inverno. Os espelhos das paredes reflectiam essa pálida tentativa de animação e alegria que o gramofone portátil, colocado em cima duma cadeira, exactamente no mesmo local onde outrora havia um estrado para a orquestra, mantinha tanto quanto lho permitiam as suas fracas forças. Mas a hora não era para comparações nem para simbolismos. Um vestido branco passou, turbilhonante, e Winter interpôs-se rapidamente entre o cavalheiro e a dançarina, só notando demasiado tarde que se tratava de Gina Cole.

 

A jovem acolheu-o com o ar mais natural deste mundo:

 

- Até que enfim, capitão.

 

- Devo pedir-lhe desculpa?

 

- Havia de facto razão para isso. Ou esqueceu-se dum certo encontro marcado para ontem, á meia-noite?

 

Rick admirou aquele sangue-frio. Mesmo quando se mostrava descontente, Gina conseguia emprestar ao comentário mais insignificante uma inflexão sensual.

 

Fora ela que o seguira até à cidade antes do ataque aéreo? Certamente não... Ele saíra do baile às onze horas e o encontro estava marcado para a meia-noite... Mas, por outro lado, sabia bem que, se a fantasia lhe desse para isso, Gina era muito capaz de o seguir. ..

 

- Espera uma explicação? - perguntou Winter.

 

A voz da jovem tornou-se mais branda ao responder:

 

- Evidentemente que não, Rick. Você é do género dos que nunca explicam nada às mulheres. Ou estarei enganada?

 

- De facto assim é. Mas houve uma razão bastante poderosa.

- Reflectiu, porém, que não lhe serviria de nada cortar todas as amarras e prosseguiu num tom mais grave: - Decerto compreendeu que eu iria à cidade certificar-me que o meu quarto estava nas devidas condições... para nos receber...

 

- Realmente?

 

- Será preciso acrescentar que fui surpreendido pelo ataque aéreo? E, claro, a partir desse momento, ficaram canceladas todas as licenças no acampamento.

 

Ao falar, fitava-a bem nos olhos, mas Gina não pestanejou. Tentou então o ataque directo, a ver se obtinha qualquer resposta:

 

- Encontrava-se por acaso fora do acampamento nesse momento?

 

- Que ideia! Não aprecio nada esse género de perigo. Rick quase ficou contente quando alguém, abandonando o

grupo de homens que se formara a um canto da sala, avançou para ela e se intrepôs entre ambos. Era Terry Adams, sem tirar nem pôr! Um Terry Adams com um estranho ar de querubim, depois de lavado e barbeado. Um Terry vermelho até às orelhas e terrivelmente impaciente. Seria aquela a sua noite? Rick esqueceu-se de lhe perguntar enquanto procurava às cegas o caminho do tombadilho, onde se apercebeu que o barco iniciara já a sua derrota. De âncoras a espreitarem nos escovéns, o comboio deslizava a caminho da Mancha, ao sabor da maré.

 

A rede de minas à entrada do porto abriu-se, para lhe dar passagem. Minúsculos pontos luminosos piscavam as suas mensagens resvés à água. As máquinas principiaram a girar, unicamente para manter o navio na sua linha. Na ponte do comando, por cima da sua cabeça, Rick ouviu cochichar ordens:

 

- Um quarto para bombordo.

 

- Um quarto para bombordo, senhor.

 

- Reduza a velocidade, Gibbons. Espere instruções, Harrington.

 

- Velocidade reduzida, senhor.

 

O tombadilho estremecia e o transporte ia tomar o seu lugar na formação do comboio. Rick sentia em redor a presença dos outros barcos. Tanto a bombordo como a estibordo adivinhavam-se os torpedeiros de escolta pelo ritmo particular das suas máquinas; um gigante tossiu, adiante deles, no escuro, e Rick quase perdeu a respiração ao ver passar, à proa, um couraçado, de sinais luminosos a piscarem furiosamente no seu flanco esquerdo.

 

- Então, capitão Winter? Este espectáculo ajuda-o a encontrar a fé?

 

Era Linda Adams, embuçada até aos olhos num xaile e vestida de branco. Sempre fria e distante. Rick não fez caso da sua frieza e tomou-lhe o braço. E, coisa estranha, pareceu-lhe muito natural andarem assim os dois de braço dado a calcorrear o tombadilho.

 

- Ainda não me respondeu - insistiu Linda. - Não acha que vale a pena atravessar o oceano para ver semelhante espectáculo?

 

- Desta vez sim, entramos na dança.

 

Ouviu-a rir no escuro: a frase resumia tudo para ambos. Prosseguiu:

 

- Conheço o suficiente de navegação para saber que avançamos para o sul. A Noruega, pelo menos, não está em causa.

 

- Isso alegra-me bastante; com o Inverno a aproximar-se...

 

- Quando aqui cheguei estava sozinha?...

 

- Se lhe interessa saber, estava a imaginar como havia de começar o meu artigo de amanhã. Não me pergunte porque trabalho tanto, uma vez que não poderei transmitir tão depressa o que escrevo.

 

- A propósito da sua profissão, perdoou-me o episódio da máquina de escrever?

 

Linda respondeu com graça natural:

 

- Não devia ser eu antes a pedir-lhe desculpa?

 

Ele respirou profundamente, como para mergulhar, e mergulhou mesmo:

 

- Há uma hora fui ao seu camarote para lhe sugerir que nos tornássemos amigos... Receio bem ter entrado sem bater...

 

Na obscuridade, a voz de Linda conservava-se perfeitamente calma:

 

- Não peça desculpa por tão pouco, capitão Winter. Estou certa de que teve razões para o fazer.

 

- Pois claro. Mas talvez a minha oferta de amizade não passasse de um ardil. Talvez eu desejasse saber muito mais a seu respeito, e descobrir, se possível, qual é a força que põe em movimento uma caçadora de notícias.

 

Estavam os dois encostados à amurada de estibordo. Linda não se mexeu quando sentiu o braço dele enlaçá-la. Perguntou-lhe apenas, numa voz tranquila:

 

- E teve sorte? Descobriu alguma coisa? No camarote, é claro...

 

- Um artigo meio acabado na máquina de escrever. Creio bem que tive a indelicadeza de o ler. No fim de contas e sem o saber, não fui tão indelicado como à primeira vista se pode julgar, pois quase todo o texto se referia a mim...

 

- O senhor salvou esta tarde a vida dum homem na sala de operações. Não é um acontecimento importante para assinalar, quando se escreve o dia a dia?

 

- E precisava, para isso, desenvolver tanto o assunto? Quase que dá aos seus leitores a história da minha vida...

 

- Pois evidentemente. Na América, cem mil mães hão-de ler esse artigo. E ficarão mais animadas ao saberem que os seus filhos estão entregues em tão boas mãos.

 

Obstinado, Winter insistiu:

 

- Guarde o melaço para apanhar moscas, Miss Adams. Gostava que me dissesse como conseguiu saber tantas coisas a meu respeito.

 

Linda fixava os olhos ao longe, no mar invisível. Até então não dera mostras de ter percebido que um braço a retinha prisioneira.

 

- Veja o que posso citar de memória. Nasceu há trinta e quatro anos em Chicago. Durante várias gerações houve sempre um Dr. Winter na família e a maior parte deles triunfaram. Era filho único e, no entanto, decidiu ser pintor. O seu pai consentiu. Fez mais ainda, arranjou-lhe um importante depósito bancário sem quaisquer restrições. Durante um ano ou dois, divertiu-se em Paris, na margem esquerda do Sena, e por fim chegou à conclusão de que possuía mais entusiasmo que talento.

 

- Continue! - murmurou Rick. - Até agora deu no vinte.

 

- Enquanto não se decidia a respeito do seu futuro, resolveu empreender uma grande viagem, que compreendia Constantinopla, uma época no Cairo, e todos os recantos animados a leste do Suez. Incluía também um sortido variado de damas, em número suficiente para o tornar durante algum tempo a providência e o ai-jesus dos noticiaristas de jornais. No ano seguinte, decidiu voltar a Nova Iorque, pelos mares do Sul e Panamá. Não sei exactamente porque passou o Inverno de mil novecentos e trinta e dois nas Baamas. Uns asseguram que perseguia uma dama da alta sociedade. Outros afirmam que se divertira já bastante e tinha necessidade de repouso.

 

- Uns e outros laboram em erro - interrompeu Rick. Tencionava simplesmente comprar uma ilha, para fugir ao pagamento dos impostos e tornar-me canácar.

 

- Mas na realidade não fez nada disso. Alugou um automóvel em Nassau e foi dar um passeio até New Providence. Como era natural, o motorista levou-o a visitar a colónia de leprosos instalada no meio do pinhal de West End. É a grande atracção ritual de todas as expedições turísticas.

 

Sem demasiado azedume, Rick admitiu:

 

- Como escavadora, é admirável. Nunca perca semelhante dom.

 

- O senhor era então um rapaz de vinte e três anos - continuou Linda. - Provavelmente, nunca antes olhara bem de frente para uma miséria desesperada. Pelo menos no seu juízo perfeito.. . Fosse como fosse, voltou dessa visita com o futuro completamente traçado. No mesmo dia tomou o avião para Miami. Na semana seguinte estava matriculado na Escola de Medicina e Cirurgia de Columbia. Seis anos mais tarde, já com uma clientela brilhante, abandonou tudo e foi para Espanha trabalhar com Trueta. - A jovem esboçou um sorriso no escuro, depois acrescentou: - Eis os factos. Mostre-me o homem que está por trás destes factos e a minha obra ficará então perfeita. Rick comentou:

 

- Começo a compreender o seu sucesso, Linda. Quero dizer, o seu sucesso como jornalista. Posso chamar-lhe Linda, agora que recomeçámos a lutar?

 

- Sou um buldogue quando encontro uma história - respondeu a jovem. - Quer dar-me mais algumas informações?

 

- Mas se já sabe tudo quanto me diz respeito... Serve-lhe para alguma coisa revelar-lhe qual é o meu primeiro almoço favorito ou quais são as canções que prefiro quando estou bêbedo?

 

- Quero lá saber dos factos! - exclamou Linda. - Encontrei-os todos na nossa morgue, isto é, nos arquivos do jornal, em Nova Iorque. O que desejo de si é a exegese.

 

- Mas eu não compreendo esses termos bombásticos.

 

- Nasceu num berço doirado. Aos vinte anos divertia-se e tinha o mundo inteiro por palco do seu divertimento. Descobriu então o trabalho que lhe agradava e para o qual estava talhado. Que direito tem de ser cínico? - Linda voltou os olhos para a esteira de espuma que riscava a água negra atrás do navio e concluiu: - É isto o que lhe pergunto, Rick Winter.

 

- Mas é muito natural que não lho diga.

 

- Não tente fazer-me crer que perdeu todo o entusiasmo aos trinta anos, ou que sofreu alguma desilusão amorosa. Isso já não se usa. Não tem mesmo bom senso.

 

- Não falámos já sobre esses problemas?

 

- Talvez. Mas ficaram sem resposta. E eu quero fazer justiça à sua biografia. Lembre-se dos meus leitores...

 

- Quero lá saber dos seus leitores! Importo-me cá com a minha biografia! É melhor falarmos um pouco de si.

 

- Eu não passo dum dictofone para uso da nossa gente. E um dictofone não tem interesse.

 

- Não misture as suas metáforas. Acabou há pouco de me revelar que era um buldogue. Não seria uma notícia sensacional se um homem mordesse um buldogue? E se o entrevistador fosse entrevistado?

 

- Bata-me - redarguiu Linda. - Provavelmente bem o mereço.

 

- Fez sobre a minha vida, segundo parece, um estudo bastante completo. Interessa-lhe saber que fiz exactamente o mesmo a seu respeito, depois da publicação do seu livro sobre a guerra de Espanha?

 

- Espero que o escuro oculte o meu rubor. Rick prosseguiu:

 

- A senhora é no fim de contas o produto dum divórcio. O seu pai era um reputado financeiro de Wall Street, do modelo anterior à época de Roosevelt. Em mil novecentos e vinte e nove, na altura da Grande Depressão, uma manhã olhou para o seu aparelho teleimpressor e saiu do escritório pela janela. Nessa altura a sua mãe estava em Reno, reunindo os seus últimos papéis. Preparava-se para tornar a casar, suponho.

 

- Com um cow-boy chamado Buck Bradley - elucidou Linda. - Tempos depois conquistou certa fama em Hollywood como cantor sentimental. Continue, peço-lhe.

 

- Em mil novecentos e vinte e nove, estava no Smith College; Terry era ainda um garoto, e vivia em Andover. Algumas raparigas teriam seguido o caminho dos seus progenitores. Outras teriam ido parar ao consultório dum psicanalista. Mas você conservou intacta a sua personalidade e trabalhou como um castor na Universidade de Vassar. Creio que saiu de lá graduada magna cum laude. Isso facilitou-lhe, evidentemente, o início da sua carreira em Nova Iorque, no Record.

 

- Foi Terry quem lhe contou tudo isso?

 

- Não, não foi. Recolhi estas informações na morgue, ou para melhor dizer, nos arquivos do seu jornal quando fui consultá-los. Como lhe disse, acabava de ler o seu livro. E queria estar solidamente documentado a seu respeito para o caso de nos encontrarmos, o que me parecia muito possível. Quer que lhe descreva também os últimos oito anos? Caiu no jornalismo como um pato na água. Aprendeu tudo diligentemente, percorrendo todos os degraus da escala. Cães esmagados em Brooklyn, correrias para a secção de modas, frasco de cola e tesoura para a secção mundana, em resumo, teve de esperar muito tempo antes de ver publicado o seu primeiro artigo, mas uma vez dado esse primeiro passo, a ascensão foi rápida. O seu amigo, o editor de modas, mandou-a a Paris... e, no mesmo ano, Hitler ocupava a Renânia... Seis meses mais tarde, tinha uma coluna do jornal a seu cargo... Passados outros seis meses, terminavam para si os costureiros, estava lançada nas grandes reportagens... - Após uma pausa, inquiriu: - Devo dizer-lhe também a moral da história?

 

- Estou ansiosa por ouvi-la.

 

- Colocada nas encruzilhadas, viu mudar a face do mundo. Teve ocasião de conhecer por dentro toda a espécie de torpes negociações. Como pode continuar a representar o papel de Polyanna1 nos seus artigos? Ou falar aos microfones prometendo mundos e fundos para amanhã?

 

Desta fez as setas atingiram-na. Rick percebeu-o pela maneira como ela se esgueirou da curva do seu braço, e concluiu:

 

- Eis-nos chegados de novo ao ponto de partida.

 

- Somente porque se recusa a responder-me.

 

Linda era apenas uma mancha branca no fundo negro do céu. Durante um instante ele comparou essa fria discussão com o ardente episódio da noite anterior. Podia porventura ter tido aquela criatura tão racional nos seus braços e sentido o seu terror transformar-se em êxtase?

 

Ela continuou:

 

- Confio no homo sapiens nesta guerra. Você diz que ele a conduz com o queixo. Falta prová-lo. O homo sapiens já travou outros combates sem ficar vencido, não o esqueça.

 

- E se deixássemos o homo sapiens em paz durante algum tempo? Há no meu camarote um Armagnac de primeira ordem. Tem coragem de o vir saborear?

 

- Não, obrigada, embora a oferta dum cálice de aguardente seja muito mais original do que a de ir ver uma colecção de gravuras em cobre ou em madeira.

 

- É o seu único motivo de recusa?

 

- Não, não é. Mas sucede que tenho de escrever o meu artigo. A silhueta dum capitão que votou a existência a salvar os indivíduos duma espécie que despreza. Boa noite, Rick. Tenho a impressão de que é verdadeiramente digno de lástima.

 

E antes de se retirar, inclinou-se para ele e os seus lábios roçaram-lhe a face.

 

1 Personagem fictícia dum romance do século XX, tipo de optimista dos quatro costados.

 

Sem se voltar, Winter perguntou-lhe:

 

- Para quê essa diabrura?

 

- Ontem à noite impôs-me um beijo. Acabo de lho devolver para que saiba que não lhe guardo rancor.

 

Rick voltou-se rapidamente para a agarrar, mas ela já tinha desaparecido.

 

Terry Adams parou em frente da porta do seu camarote e tomou alento antes de dar volta à maçaneta. Atrás de si o corredor estava mergulhado numa semiobscuridade aqui e além desfeita pela luz difusa das lâmpadas azuladas. Por momentos teve a impressão infantil de que do fundo do claro-escuro alguma coisa ia saltar sobre ele. Era uma impressão evidentemente absurda, como a maior parte das fantasias infantis. O perigo, se algum existia, esperava-o lá dentro.

 

Ao entrar, nem sequer se atreveu a voltar os olhos para o beliche. Nem mesmo quando uma voz soou no escuro. Gina dizia:

 

- Bem sei que é o seu camarote. No entanto, podia dizer o santo e a senha ao entrar.

 

O ponto vermelho do seu cigarro brilhava entre os dois: ela aspirou-o profundamente e o clarão avivou-se, iluminando-lhe o rosto, um pouco acima dum roupão de seda branca, versão extremamente moderna de penteador, com uma estreita fita rematada num pudico laço por baixo do queixo. Terry admirou, uma vez mais, como aquela rapariga podia parecer ao mesmo tempo tão virginal... e tão condescendente...

 

- Ninguém...?

 

- ...me viu entrar no camarote? Não, alferes.

 

Aquela voz, ligeiramente trocista, era a mesma que lhe fizera ferver o sangue nas veias por ocasião do primeiro encontro.

 

- Lamento muito tê-lo contrariado por chegar primeiro... Preferia esperar por mim?

 

Terry não pôde responder. Nem uma palavra sequer. Caiu de joelhos e escondeu o rosto naquele colo tépido e perfumado. Não falaram durante bastante tempo.

 

«Pobre criança!», pensou Gina com um sorriso. «Como é possível que tenha tanto medo? Mesmo que seja a primeira vez...»

 

- Quer que me vá embora, Terry? - perguntou-lhe com meiguice.

 

O rapaz respondeu-lhe indirectamente:

 

- Sempre a desejei aqui... Se soubesse quanto me sinto infeliz... abandonado...

 

- Sei - afirmou Gina. - É curioso como uma pessoa possa sentir-se abandonada no meio de um exército...

 

Ao dizer isto levantou-se tranquilamente, lançou no lavabo o cigarro em meio, apagou a luz com o mesmo ar indolente e perguntou:

 

- É melhor assim?

 

Mas ele já lhe encontrara a boca. Seis meses de desejo frustrado dissiparam-se naquele beijo. Como ele tentasse em vão desatar-lhe o laço do roupão, Gina pousou as suas nas mãos do rapaz e desapertou-o ela facilmente:

 

- Espere, Terry. Não é tudo tão simples, bem sabe. Talvez eu não estivesse aqui se não sentisse pena de nós dois.

 

Só mais tarde, quando o seu cérebro retomou um equilíbrio normal, Terry se lembrou da profunda vibração que sentiu debaixo dos pés ao explodir a primeira granada submarina.

 

Um estremecimento semelhante ao arranco trémulo dum órgão monstruoso, e pleno de intenção. Algures no comboio um cruzador recolhera a vibração dum motor dum submarino. As cargas sucediam-se, granada após granada. Dir-se-ia que nessa noite o próprio Neptuno, de pé no fundo do oceano, sacudia o casco do navio com grandes pancadas do seu tridente.

 

Mas Terry desta vez limitou-se a rir, com Gina Cole nos braços: uma força mais velha do que o tempo erguia-o acima do medo e do amor.

 

- E se eu não quiser a sua piedade?

 

- O que quer então?

 

A sua boca respondeu sem palavras. Entre os dois, o leve roupão deslizara já para o sobrado, com um frufru ligeiro.

 

A trinta metros dali, ouvia-se no corredor o crepitar vigoroso duma máquina de escrever. Linda Adams tirou do rolo a última folha do seu artigo, acrescentou um comentário, dobrou o papel, meteu-o num sobrescrito, pronto a ser remetido à estação do cabo submarino do primeiro porto de escala. Em tempo normal, teria subido ao posto de T.S.F. do navio e expedido o texto para Londes ou Nova Iorque. Mas sabia que a rádio permanecia muda naquele comboio.

 

Insistentes e cada vez mais próximas, as granadas submarinas explodiam. Linda introduzira já no seu artigo um arrepiante parágrafo de terror e não podia desenvolvê-lo mais... Porque não sentiria medo? Era-lhe fácil imaginar o que se passava para além da vigia fechada. Em pensamento, via a ponte de comando do navio-chefe, ouvia os murmúrios do oficial a fazer o seu relatório a um almirante, cuja identidade por enquanto se desconhecia. Imaginava esse velho lobo do mar, de rosto anguloso, como os habitantes de Nova Inglaterra, a perscrutar a noite. Farejava o tempo e pedia a Deus nevoeiro ou uma enorme mancha de óleo à superfície do mar quando a próxima granada explodisse.

 

Algures nas profundidades obscuras e frias, um submarino permanecia muito quieto, confiando na sua dupla couraça de aço, capaz de suportar sem dano a explosão de todas as bombas, excepto alguma que o atingisse em cheio. Sem dúvida mergulhara a toda a pressa há algum tempo, com as silhuetas duma dúzia de barcos inscritos no seu diário de bordo. Quando o comboio passasse, enviaria para Lorient as suas informações através da rádio. E, ao longo da costa, todos os aeródromos seriam avisados. Se no dia seguinte não houvesse nevoeiro, era de esperar que o comboio fosse atacado pelos Stukas.

 

Já não havia tempo para mudar de rota. As ordens do almirante eram explícitas. «Arriscar todas as perdas de preferência a alterar o horário previsto.» Centenas doutros navios, nesse mesmo instante, navegavam do norte, do leste e do oeste para o local do encontro, todos prontos para o maior ataque naval da história.

 

Linda voltou com relutância da sua peregrinação no cérebro do almirante. O casco do navio estremecia de novo por baixo dos seus pés. Sentou-se no beliche e procurou um cigarro. Devia subir ao tombadilho para tomar algumas notas? Não. A marinhagem decerto não gostaria da sua presença lá em cima, na primeira noite passada no mar.

 

Subitamente, lembrou-se de Terry.

 

Vira-o durante o jantar, vira-o depois a dançar com as enfermeiras, como era próprio dum alferes modelo. Teria conseguido, enfim, dominar os nervos? Ao recordar a sua estranha confissão na noite anterior, ficou hesitante. Não faria bem em ir ter com ele ao camarote, como irmã solícita e afectuosa? E se quando lá chegasse o encontrasse trémulo, escondido a um canto, como durante os bombardeamentos na Inglaterra? Mais valia deixá-lo combater o seu medo da forma que melhor entendesse e pedir a Deus que do tratamento não resultassem cicatrizes...

 

Se Mary soubesse... Mas Mary, com certeza, nunca viria a saber.

 

Com a sua própria tranquilidade despedaçada, Linda surpreendeu-se a andar no camarote dum lado para o outro. Que outra coisa podia fazer um homem apanhado na torrente duma guerra? E como dominaria uma mulher um desejo veemente quando ele se torna demasiado intenso para se suportar?

 

Sem saber como nem porquê, Linda Adams achou-se estendida no beliche, de rosto afundado no travesseiro e sacudida por soluços convulsivos. Quando uma nova granada submarina explodiu por baixo do navio, saltou de súbito do leito e bateu com os punhos na parede de aço do camarote, com tal violência que sentiu o sangue escorrer nas falanges enquanto a mão lhe caía, sem firmeza, ao longo do corpo...

 

Estendido no seu beliche, a ler á luz da lâmpada de Bill Coffin uma novela policial, Rick perguntou a si próprio se tinha realmente medo. Nunca ouvira até então explodir granadas submarinas, mas reconheceu instantaneamente a sua detonação. Não houvera alarme nem correrias; por consequência, o perigo era ainda bastante indefinido e não reclamava uma acção precisa a bordo do transporte.

 

Mas mesmo assim levantou-se, ao lembrar-se da desconhecida do black-out. Ela estava algures a bordo daquele navio e tomava de novo contacto com a guerra. Talvez estivesse morta de medo, encolhida a um canto do seu camarote naquela mesma coberta. Tinha a convicção absurda de que se estendesse o braço lhe tocaria no escuro e essa impressão tornou-se uma certeza quando ouviu um leve rumor de passos no corredor.

 

«Volta para junto de mim», pensou Rick, exultante. «Volta para junto de mim! Das profundezas da obscuridade, tal como na outra noite... Ansiosa por unir o seu receio ao meu, por encontrar a paz no meu contacto...»

 

Lançou um roupão pelos ombros, abriu a porta e recuou com um riso triste. Carolyn Rycroft estava na sua frente, encostada à parede, de olhos muito abertos na penumbra. Vestia um penteador castanho-claro e um casto pijama de popelina azul tapava-lhe discretamente o decote. Pela primeira vez viu quanto ela era jovem e como tinha medo... Estendeu-lhe a mão, para a tranquilizar.

 

- Nada receie, peço-lhe... Não há razão para isso...

 

Um forte estremecimento da estrutura de aço do navio dir-se-ia querer dar um formal desmentido às suas palavras. A jovem já se precipitara para ele e agarrava-lhe impetuosamente a mão.

 

- Rick... este barulho terrível...

 

- São as latas dos despejos - disse o capitão ironicamente.

- Os cozinheiros estão a vazar o lixo. Há-de ouvir várias vezes esta barulheira antes de lançarmos ferro.

 

Carolyn parecia agora um pouco mais calma:

 

- Quer dizer, as granadas submarinas, não é verdade?

 

- Verifico com prazer que traduz facilmente a gíria marítima.

 

- E torpedos também? Ele sorriu:

 

- Não, não há a mínima possibilidade, depois do apressado mergulho que esse submarino foi obrigado a dar há pouco tempo. Mas agora reparo, hoje teve um duro dia de trabalho, Carolyn: o que faz levantada a estas horas?

 

A jovem não esboçou a menor tentativa de retirar a mão, húmida e trémula.

 

- Estava na coberta inferior a falar com uma amiga do W.A.A.C. Ia para o meu camarote quando... quando começaram a despejar as latas da cozinha... Fiquei cheia de medo.

 

- O bastante para lhe roubar a reflexão.

 

Nesse momento recomeçou o chinfrim. Uma nova sacudidela. Talvez um pouco mais próxima do que as anteriores. Carolyn estremeceu e apertou mais o roupão em volta dos ombros. Rick aproximou-se, tentando descobrir qualquer monograma na gola: uma convicção absurda acabava de se lhe instalar no espírito. Mas na verdade só conseguia distinguir no escuro o fulgor de dois olhos desvairados.

 

- Será suficientemente temerária para entrar no meu camarote e tomar uma bebida enquanto isto não acaba?

 

Carolyn acedeu e entrou, sem uma palavra. Rick fechou a porta e colocou a lâmpada eléctrica de forma a iluminar todo o pequeno aposento. Carolyn já se instalara numa cadeira, as mãos pudicamente juntas em cima dos joelhos. Quando quis esboçar um sorriso, ficou mais do que nunca com o ar duma aluna aterrorizada da escola dominical.

 

- Não me considero nada temerária, Rick. Estarei enganada? Ele deixou a pergunta sem resposta e rebuscou uma vez mais

na mochila de Bill Coffin, donde desta vez retirou um frasco bojudo cuja etiqueta arvorava a Union Jack.

 

- É capaz de beber isto sem água?

 

Carolyn abanou afirmativamente a cabeça e ficou a fitá-lo, de olhos muito abertos, enquanto ele vazava o conteúdo do frasco nos copos.

 

- Não se ponha a saboreá-lo, por favor - murmurou Rick.

 

Lembre-se que é apenas um medicamento contra... contra isto...

 

Precisamente nesse instante, nova detonação abalou todo o casco do navio. Não havia dúvida de que o capitão nazi estava a ser perseguido com grande eficiência.

 

Carolyn franziu o nariz e em duas goladas emocionantes tragou a sua ração de uísque sob o olhar aprovador de Winter. Quando devolveu o copo, já não tinha o mínimo ar de aluna da escola dominical. Os seus olhos brilhavam esplendorosamente.

 

- Mais um pouco?

 

- Não, obrigada. E agora realmente devo ir-me embora.

 

A sua intonação desmentia a prudente reserva das palavras, mas conseguiu pôr-se resolutamente de pé.

 

- Primeiro, responda-me a uma pergunta. Não é um pouco estranho que tenha uma amiga no W.A.A.C.? Elas só chegaram ao nosso acampamento esta manhã...

 

- Na verdade é estranho - admitiu Carolyn. - De facto é uma tremenda mentira.

 

- Com que propósito?

 

Os olhos da jovem não se desviaram.

 

- Vim aqui porque estava cheia de medo, Rick. E sabia que não poderia dormir sem lho dizer. Já está satisfeito agora?

 

Outra sacudidela estremeceu o navio. Carolyn inclinou-se para ele e a lâmpada de Bill iluminou em cheio a gola do roupão. Rick tomou-a carinhosamente nos braços, reprimindo a pergunta que não ousava fazer. Em vez de a formular, murmurou:

 

- Continua assustada?

 

- Agora não. Neste instante pode suceder seja o que for, já nada me inquieta.

 

Rick beijou-a com ternura, sentindo-lhe nas faces a humidade salgada das lágrimas. Durante um longo momento, os dois ficaram silenciosamente unidos nesse amplexo. Por baixo do puritano roupão, Rick sentia o bater apressado do coração da jovem e o tépido relevo duns seios palpitantes. Quando por fim ela se moveu, assaltou-o uma repentina e selvagem esperança. Mas Carolyn libertou-se sem lhe oferecer os lábios.

 

- Estou aborrecida, Rick. Aborrecida por ter sido tão... tão audaciosa... tão descarada... Mas tinha de lho dizer um dia ou outro.

 

- Tinha de me dizer o quê, querida?

 

- Que, comigo, só tudo ou nada. Ou melhor, connosco. Veja, Rick, desejo tão profundamente... - Interrompeu a frase deixando-a inacabada, e afirmou: - Agora tenho de me ir embora. Sim, tenho de me ir embora.

 

- E se eu não a deixar ir?

 

- Mas deixa, com certeza.

 

Rick atravessou o camarote, sem ousar fixá-la nos olhos, abriu a porta e lançou um olhar rápido para o corredor.

 

- O caminho está livre, Carolyn.

 

Então ela estendeu-lhe os lábios e beijou-o fervorosamente. Depois, saiu para o corredor, de cabeça erguida. Rick viu-a esboçar um leve sorriso para um segredo só dela conhecido. Pelo menos assim o julgava. Mas o segredo já não era só seu: ao voltar-se, a luz iluminou-lhe a gola do roupão, animando no sombrio tecido uns reflexos dourados...

 

Um monograma! Um monograma idêntico ao indecifrável hieróglifo escondido no fundo da mala de Rick Winter.

 

- Desculpe-me, capitão, mas de ora em diante devem usar-se sempre os cintos de salvação. É do regulamento, bem sabe...

 

Rick Winter anuiu com um aceno à observação do oficial de marinha e prendeu aos ombros a Mae West regulamentar.

 

No horizonte nublado, o Sol dir-se-ia um grande balão vermelho . Rick estava já farto de reflectir dentro dum camarote cheio de fumo e sentira necessidade de tomar ar. Trepara por isso ao tombadilho, mas depressa verificou que o ar puro é capaz de obscurecer tanto o entendimento como o próprio fumo.

 

Até àquele momento, ninguém do hospital de campanha saíra ainda dos seus camarotes. Mas um sussurro regular, subindo da entrecoberta, indicava que os soldados da infantaria tomavam já o primeiro almoço. Nos dois lados do tombadilho, os salva-vidas balouçavam-se preguiçosamente nos turcos, providos de mantimentos e preparados para todas as eventualidades que pudessem surgir dum momento para o outro. A vista do mar ficava quase obstruída pelas redes de camuflagem estendidas entre as amuradas e os canos dos canhões.

 

Rick Winter, ao percorrer em passo rápido o tombadilho, ia pensando que a calma daquele grande navio era a calma da confiança. Cada um conhecia a sua tarefa e o seu lugar, incluindo evidentemente certo oficial médico que acabava de resolver o maior problema de toda a sua existência.

 

Parou por baixo da ponte de comando para contemplar o mar. E foi como um tónico para o espírito, banindo, pelo menos provisoriamente, os seus miasmas pessoais. Todo o oceano era um imenso formigueiro de barcos até à linha do horizonte, onde os mastros duma corveta baloiçavam ao sol-nascente. Havia ali velhos calhambeques e modernos navios-cisternas e muitos Liberty de nariz achatado. Havia também luxuosos paquetes transformados em transportes, como aquele que lhe fora destinado. A meia milha de distância, escoltado por torpedeiros, um porta-aviões avançava laboriosamente, para ir ocupar o seu lugar.

 

Winter permaneceu muito tempo por baixo da ponte de comando: o espectáculo que contemplava seria capaz de encher de orgulho mesmo o coração mais indiferente. Aquilo era o resultado duma cuidadosa preparação. Todos os soldados que ali iam tinham-se sujeitado a um duro treino, em intermináveis manobras, durante as quais atravessaram torrentes geladas, suaram ao sol da Georgia, saltaram de aviões em pára-quedas, recalcitrando, resistindo, resmungando, mas avançando sempre e procurando evitar as bombas dum inimigo imaginário.

 

Agora as bombas existiam realmente, o inimigo também, mas esses rapazes cumpririam o seu dever com a mesma calma coragem.

 

Os Americanos são lentos na sua cólera. Jamais no decurso da sua história terminaram uma guerra na hora prevista: nunca venceram uma primeira, nem perderam uma última batalha. Agora iam ali ao encontro do inimigo, para lhe dar batalha no seu próprio terreno e em pé de igualdade. Não era um pigmeu, de força insignificante, destinado a ser repelido das costas dum novo Dieppe. Era sim um jovem gigante, confiado no seu poder e absolutamente sereno.

 

Rick Winter pôs-se a caminhar, um pouco curvado, e marcava a cadência da marcha batendo um punho na palma da outra mão. Faria tudo quanto estivesse ao seu alcance para manter intacta a força desse jovem gigante. De momento, os seus problemas pessoais deviam ser relegados para segundo plano.

 

Nessa manhã estava certo de que Carolyn Rycroft o amava. Amava-o o suficiente para ter ido ao seu camarote na última noite. Amava-o bastante para se lhe ter entregado na Inglaterra, durante o black-out, embora procurasse manter em segredo essa dádiva suprema... Uma coisa era evidente à fria claridade do dia: ela nunca mais se lhe entregaria com o mesmo abandono. Queria tudo ou nada. É certo que a amava e desejava, tanto que seria capaz de lhe oferecer o casamento. Mas o casamento era impossível enquanto durasse a guerra. Não lhe restava portanto outra alternativa senão a de ser prudente e esperar.

 

Porque se esquivava ela a falar do episódio do black-outl A pergunta deixava-o perplexo, embora a fizesse pela centésima vez. Saberia já que ele adivinhara o seu segredo? Levara aquele roupão vestido de propósito para lhe mostrar o monograma e ele poder compará-lo com o da capa que guardava? À primeira vista, parecia um clássico ardil feminino. Mas como sucede com a maior parte dos estratagemas femininos, não se descortinava bem o seu alcance. Era um outro problema que só o tempo esclareceria. No fim de contas, problema insignificante comparado com a magnitude da tarefa que a todos esperava para além da linha do horizonte.

 

Não eram ainda sete horas quando Rick desceu à sala de jantar, mas a mesa que lhe fora atribuída já estava bem repleta. Sorriu a Terry Adams, que olhava obstinadamente para uma chávena de café intacta.

 

- Não te deixes transtornar pelo enjoo, meu rapaz, pois já deixámos para trás o balance da Mancha. - Depois, lembrando-se da noite anterior, perguntou, baixando a voz: - Conseguiste dormir, apesar da ameaça do submarino e das granadas?

 

- Terry forçou um sorriso:

 

- Dormi bem, obrigado.

 

E ao dizer isto perguntava a si próprio como reagiria Rick se soubesse que ele, Terry, não dormira sozinho. Que vivia já à espera do minuto em que Gina voltasse... O que mais o surpreendia era não sentir a mínima vergonha. A recordação cegou-o durante um instante: bastava-lhe fechar os olhos para tornar a sentir, junto do rosto, o quente murmúrio dos lábios de Gina, o seu contacto... Falou, para se libertar da obsessão:

 

- E você, Rick?

 

Mas já Randall Strang se inclinava para o capitão:

 

- Antes de vir para aqui, Winter, visitei o seu doente.

 

- Estive lá às seis horas, major. Espero que entretanto o seu estado não tenha mudado.

 

- Weldon disse-me que tudo corre às mil maravilhas. Devo confessar-lhe, estou surpreendido.

 

- Porquê?

 

Strang respondeu sentenciosamente:

 

- Refiro-me   ao   seu tratamento pós-operatório,   capitão. Posso dar a minha opinião a esse respeito?

 

- Não a dá sempre?

 

O cirurgião-chefe aceitou o desafio com complacência. «Prepara-se para alguma coisa», pensou Rick. «Nunca mostra tanta delicadeza sem motivo.»

 

- Havia perfuração incontestável - admitiu Strang.

 

- Incontestável, sim, major. Um divertículo ulcerado.

 

- Weldon disse-me que não deixou um dreno.

 

- Não, com efeito. Polvilhei o peritoneu com sulfamidas e fechei tudo em seguida.

 

- Pessoalmente, fico mais tranquilo quando se deixa um dreno no local. No caso presente, deixarei as coisas como estão. Desde que, bem entendido, não haja recaída.

 

«Estás a passar-me a mão pelo lombo», cogitou Rick. «O que quererás pedir em troca?»

 

Esperou pacientemente, enquanto Strang, tirando do bolso a cigarreira de ouro, a fazia circular em redor da mesa, com o ar de um soberano distribuindo as suas liberalidades.

 

- Presumo que na guerra de Espanha não havia muito tempo para drenar, pois não, Winter?

 

- Para dizer moderadamente as coisas, não havia tempo, com efeito.

 

- Acabo de ler um artigo de Jolly sobre o Three-Point-Forward System, tal como o praticavam os médicos lealistas. Essa técnica é-lhe familiar?

 

- Um pouco - confirmou Rick. - Trabalhei numa unidade desse género perto de sete meses.

 

- Talvez dentro de poucos dias recorramos também a uma versão modificada desse sistema. Tenciono mesmo completar o artigo de Jolly com algumas notas e observações pessoais. É possível até que faça uma comunicação sobre o assunto à American Medical Association.

 

«Queres documentar-te junto de mim para te esqueceres depois de citar o meu nome», pensou Rick. Mas contentou-se em responder:

 

- Se os outros estiverem interessados em ouvir... Amos Elaine bateu na mesa com a palma da mão:

 

- Tem a palavra, Rick. A classe quer prestar atenção? Mas Strang não se dispunha a abandonar ainda a cátedra:

 

- Uma pergunta em primeiro lugar. Nós sabemos que o método dá resultado. Simplesmente, valerá a pena correr um tal risco?

 

- Vi os resultados com os meus próprios olhos - começou Winter. - Quanto aos riscos... bem, creio que a maior parte dos nossos cirurgiões andavam demasiado ocupados para terem tempo de pensar neles. - Hesitou um momento, perguntando a si próprio como havia de expor o assunto para o tornar bem perceptível. - O grande problema é este: a técnica hospitalar mais avançada só se torna eficaz e diminui consideravelmente a mortalidade dos ferimentos graves quando se reduz o tempo entre o acidente e o tratamento. Nalguns casos, conseguiu-se uma redução de várias horas...

 

- E qual a taxa de mortalidade do pessoal médico desses hospitais de campanha? Um soldado substitui-se facilmente. Um bom cirurgião não se improvisa só com a entrada em vigor duma lei de serviço selectivo.

 

Strang parecia encantado com a sua resposta, mas o argumento inflamou Bill Coffin:

 

- Desde quando nos importamos com os riscos que correm os cirurgiões militares? Morreram muitos na última guerra, bem sabe.

 

Rick levantou a mão:

 

- Bill tem razão, major. O dever de um cirurgião.,seja onde for, é salvar a vida dos outros e não de se preocupar com a sua.

 

- Porventura afirmei o contrário?

 

- Evidentemente que não. Sei que neste momento se contenta em elaborar... estatísticas...

 

Rick fez uma pausa, para dar maior importância às reticências, depois continuou:

 

- Eis, em poucas palavras, o que é o Three-Point-Forward System. Os feridos recebem os primeiros socorros nos postos do batalhão, exactamente como sucede entre nós. Em seguida são expedidos, em macas, para os postos de recolha. No sistema espanhol, chamavam-se a estes postos de classificação.

 

- Não me diga que classificavam assim os feridos tão rapidamente .

 

- Pois afirmo isso mesmo. Uma classificação tão perto quanto possível do imediato é a própria base do sistema.

 

- Urgentes e não urgentes?

 

- Avaliados rundimentarmente de harmonia com o progresso da ciência. Os casos «urgentes» incluem as feridas abdominais, as lesões torácicas, as fracturas complicadas...

 

Rick durante um momento fixou o olhar no tecto, recordando a angústia de semelhantes decisões. A expressão dolorosa, desesperada, do rosto dos feridos, diante dos quais o médico passava para designar o ocupante duma outra maca, cujo estado impunha uma mais rápida intervenção.

 

- Actualmente, o hospital de campanha deve ficar instalado tão perto quanto possível da linha de fogo. Todos os casos urgentes são para lá conduzidos sem demora. Os cirurgiões trabalham até não poderem mais, mas despacham todos os feridos. Em Espanha essas unidades eram completas e autónomas, exactamente como a nossa.

 

- Incluindo as enfermeiras?

 

- Enfermeiras de todas as categorias. Alguns dos nossos pacientes requeriam dez dias de tratamento antes de poderem ser evacuados para a retaguarda. Quando passámos a dispor de comboios-hospitais, as coisas simplificaram-se bastante. Eram ainda uma inovação recente. Mas os russos demonstraram o seu valor na prática. Enchíamos os vagões com os feridos que saíam das salas de operações, e quando o comboio estava cheio seguia viagem.

 

- Estou a ver o que é! - exclamou Bill Coffin. - Não conduziam o ferido até junto do cirurgião, mas sim o cirurgião até junto do ferido.

 

- Isso resume, com efeito, todo o método.

 

Os olhos de Rick percorreram os rostos atentos em volta da mesa, depois concluiu:

 

- E rogo a Deus que adoptemos a mesma técnica na presente aventura, com aperfeiçoamentos americanos. O que pensa a esse respeito, coronel?

 

Elaine limitou-se a abanar a cabeça:

 

- Não se cansem a dar à bomba sobre este assunto, rapazes. Asseguro-lhes que a fonte está seca.

 

- Não conto com muitas inovações, Winter - declarou Strang. - Em minha opinião, a nossa função é sobretudo experimental.

 

- Perdão - interrompeu Bill Coffin -, nós estamos classificados como uma unidade móvel.

 

- As nossas enfermeiras - acrescentou Rick - receberam um rigoroso treino de campanha em tudo quanto a guerra possa delas exigir. Trabalhamos juntos há alguns meses. E nos porões deste transporte há salas de operação rolantes, que podem ir até muito perto das linhas de fogo. Que diz a isto, major?

 

- Não creio na eficácia do pensamento em voz alta - atalhou Strang.

 

- Podemos deixar de o fazer uma vez que já chegámos a este ponto? Creio que seremos enviados para a frente de batalha, tão perto da linha de fogo quanto for possível. - Winter estava realmente divertido com a confusão do cirurgião-chefe. - Pessoalmente, não me importo de fazer qualquer experiência por uma boa causa.

 

O coronel ergueu-se da mesa. Winter fez outro tanto, rapidamente:

 

- O que pensa duma conversa com Weldon, major? Ele conduziu algumas unidades médicas para a Austrália. E dir-Ihe-á decerto que labora em erro.

 

O primeiro alarme soou ao princípio da tarde. Os aviões vinham do sul, aparentemente tão inofensivos como mosquitos, na brilhante claridade do dia. As sereias ulularam duma ponta à outra do comboio, e as baterias antiaéreas entraram logo em acção, com a precisão de aparelhos automáticos. Dos porta-aviões, os caças levantaram voo, um após outro, subindo no azul do firmamento. Não tardou que o céu estivesse todo salpicado de pequenas borlas de fumo, geometricamente dispostas. Os espectadores agrupados no tombadilho de transporte tinham a impressão de assistir a um filme fantástico de actualidades.

 

Rick preguiçava lá em cima ao sol quando soou o alarme.

 

Abrigou-se o melhor que pôde e pôs-se a observar a entrada em acção duma bateria antiaérea. O jovem tenente que a comandava dava as suas ordens com tanta calma como se se tratasse dum simples exercício. Cada pormenor gravava-se na retina de Rick com a nitidez duma água-forte: os canos esguios das metralhadoras, os dorsos bronzeados e luzidios dos serventes, a coleante huri tatuada no braço do sargento encarregado do telémetro.

 

Uns passos que se aproximavam distraíram-lhe a atenção. Linda Adams, completamente a descoberto, debruçava-se na amurada. Na sua excitação, esquecera-se mesmo de se proteger com o elmo.

 

- Ponha o capacete! - gritou-lhe Rick. - A não ser que a sua cabeça seja mais dura que os estilhaços. - E ficou a vê-la enterrar até às orelhas a absurda meia esfera metálica. Depois aproximou-se dela e tomou-lhe o braço. - Se quer ficar aqui, venha ao menos partilhar o meu abrigo.

 

Sem deixar de olhar para o céu, Linda deixou-se conduzir, perguntando:

 

- São Heinkels?

 

- Parece-me que são aviões de observação.

 

- Então não podem bombardear-nos.

 

Os aviões de caça americanos tinham já atingido, voando em espiral, a altitude do inimigo. Mesmo com o auxílio de binóculos, era difícil seguir, em todos os pormenores, o combate aéreo, e, à vista desarmada, dir-se-ia que o duelo se travava no meio do nevoeiro, como se uma massa de nuvens tivesse tragado igualmente os aviões americanos e nazis.

 

- Dêem-lhes tempo de radiotelegrafar as observações para o seu aeródromo em França, é tudo quanto eles desejam.

 

- Ao menos, sabemos agora que vão chegar dum momento para o outro...

 

Rick notou-lhe leve tremor na voz e observou-lhe:

 

- Quando deixámos a Inglaterra, já sabíamos que eles haviam de aparecer. Se tem medo, diga; não é vergonha nenhuma.

 

Linda respondeu pensativamente:

 

- É certo que já ouvi Stukas. Nos abrigos de Londres e do Cairo. Nunca ao ar livre, como hoje.

 

- Se imagina que a deixo ficar aqui...

 

- Mas não tenho outra alternativa, Rick. Lembre-se que preciso de ganhar o meu pão com manteiga... - Fixando-o bem nos olhos interrogou: - E você? Vão ser necessários todos os cirurgiões, bem sabe, e não é permitido...

 

- Mil desculpas, mas eu sou presbiteriano. Se uma bomba me for destinada, encontrar-me-á onde quer que esteja.

 

Outras sereias romperam a serenidade daquela tarde azul e ouro. Eram buzinas de som estridente. Linda aproximou-se mais de Rick. Ao longe, a bombordo, uma coluna de água enviou o seu jacto para as nuvens e tornou a cair antes que o ruído da explosão lhe chegasse aos ouvidos.

 

- Submarinos?

 

- Penso que sim. Jerry parece querer divertir-se com o seu jogo favorito: dispersar um comboio, ou pelo menos tentar dispersá-lo, com ataques simultâneos de aviões e submarinos.

 

As granadas de profundidade sacudiam agora o mar. A marcha do comboio prosseguia na mesma ordem. Se o comandante dum único navio perdesse a cabeça e tentasse uma fuga individual, a segurança de todos ficaria em perigo. O submarino contava talvez com essa possibilidade. Se conseguisse isolar um navio e romper a ligação com o torpedeiro de escolta, valeria então a pena aparecer à superfície para o afundar...

 

O transporte atravessava agora a própria zona onde momentos antes explodira a última série de granadas: o turbilhão aquietava a pouco e pouco o seu remoinho mas com uma horrível consequência. E Linda sentiu faltar-lhe o ar quando, subindo das profundidades, um vasto cogumelo de óleo se espalhou na superfície líquida como se lá em baixo um monstro estivesse em agonia.

 

- Mergulho demasiado tardio - observou Rick, cerrando os punhos. - E não desperdice a sua piedade, por favor. Quer voltar para dentro?

 

- Sim, desejava, mas continuarei cá fora.

 

Durante meia hora o comboio prosseguiu lentamente a sua rota sem haver novo sinal de alarme. Aparentemente, o perigo passara. Mas as guarnições dos canhões continuavam a postos e os aviões esquadrinhavam o céu para as bandas do oriente. No tombadilho, Rick notou que os marinheiros inspeccionavam os salvavidas, tirando-lhes as lonas da cobertura, verificando os mantimentos, examinando o funcionamento dos turcos. Ao longe, ouviu-se o crepitar duma metralhadora, prelúdio curiosamente pouco dramático duma batalha. À distância, produzia o efeito duma cana a tamborilar nos ferros duma grade, acordando na memória de Rick a recordação das suas brincadeiras de criança. O capitão Winter via o Sol a declinar e perguntava a si próprio se aquelas manchas negras que distinguia... Sim, não havia dúvida... Sentiu uma enorme simpatia pelos pilotos dos caças que levantavam voo da superfície plana do porta-aviões.

 

- Não é nenhuma parvoíce o que Jerry está a fazer. Nós esperávamos que ele nos saltasse em cima das bandas do oriente. Em vez disso, enviou a sua esquadrilha para o alto mar, contornando-nos de longe e ataca-nos pelo ocidente.

 

- Isso quer dizer que são fracas as nossas possibilidades de os abater?

 

- Muito fracas. Os pilotos dos nossos caças ficam com o sol a bater-lhes nos olhos e dificilmente poderão distinguir os seus alvos. É mesmo muito possível que só consigam ver o inimigo quando este estiver quase em cima deles.

 

O ar agora estremecia de estampidos por toda a parte. Enquanto Rick e Linda falavam, os aviões alemães tinham-se aproximado. Rick contou doze, escalonados, antes de principiar o primeiro embate. Indiferentes à ameaça das metralhadoras, os nazis passavam, estoicamente, por entre os estoiros. Mas já um deles, sombrio cometa, se separava da formação, cortava em dois o disco do Sol e descia a pique sobre o porta-aviões. Mas no próprio momento em que parecia ir endireitar-se, lançar as bombas e ganhar de novo altura, um obus antiaéreo atingiu-o em cheio.

 

O estrondo ouviu-se mesmo à distância. Mais uma fracção de segundo e o bombardeiro descia, rugindo, para o mar, já ferido de morte. Instantes depois, o Stuka estava transformado num destroço incandescente que terminava num lento remoinho a sua caminhada para o túmulo.

 

- Desta vez - disse Linda - não me deixarei arrastar pela compaixão.

 

Havia na sua voz uma espécie de alegre entusiasmo, primeiro sinal dessa loucura guerreira que Winter observara com frequência em Espanha. Instintivamente, arrastou-a para longe da amurada. É claro, o seu trabalho impunha-lhe que experimentasse aquelas emoções, mas ele estava absolutamente decidido a poupá-la ao pior, se pudesse.

 

O pandemónio era agora senhor absoluto de todo o espaço, despedaçado por contínuos uivos. Travavam-se meia dúzia de
combates, jogos de escondidas mortais no meio das nuvens. Um outro Stuka, mortalmente ferido, descia apertado movimento de verruma, qual preguiçosa gaivota negra, com uma faixa de fumo agarrada à cauda. Mergulhou por fim no mar, a menos de cem metros do transporte. Com um braço em volta do busto de Linda, o capitão arrastou-a para a escada que conduzia à coberta inferior.

 

- Mesmo para uma jornalista, isto é demasiado perto.

 

Uma diabólica chuva de invisível granizo tamborilou no tombadilho e picotou a superfície do mar; Rick elevou a voz para gritar:

 

- Desça, não ouve?! Já tem um bom fecho para o seu artigo: pode escrever, na última linha, que só procurou abrigo quando as primeiras rajadas de metralhadora começaram a saltar em nossa volta.

 

Mas ela libertou-se das mãos que a prendiam e correu outra vez para a amurada. Jornalista-nata em busca duma informação sensacional? Rapariga ridiculamente temerária obedecendo ao impulso dos nervos? Rick encolheu os ombros sem encontrar resposta e seguiu-a. Tal como ela, lamentaria também perder aquele espectáculo.

 

A batalha aérea decidia-se nitidamente contra o inimigo. Só seis Stukas se mantinham ainda no ar. Segundo todas as probabilidades, as perdas americanas não eram menos pesadas, mas o comboio prosseguia intacto a sua rota. A perseguição insistente dos aviões de caça e a precisão do tiro antiaéreo não deram tempo aos nazis para se organizarem e encontrarem uma aberta por onde pudessem introduzir-se para lançarem as suas bombas num objectivo escolhido.

 

No entanto, nesse mesmo instante, um avião alemão abandonou o combate e atravessou sozinho o céu, qual morcego atacado de loucura. Rick seguia de olhar fascinado essa corrida suicida. Uma vez, num jogo de futebol, nos seus tempos de estudante, atravessara igualmente o campo de lês a lês. E tornava a encontrar dentro de si, intacta, essa repentina sensação de liberdade que o invadira ao ver na sua frente, a menos de trinta metros, as balizas do Princeton e apenas um defesa para ultrapassar. Esse piloto, lá em cima, devia experimentar, em mais alto grau, a mesma embriaguez. Seguia-lhe os movimentos e compreendeu que o Stuka ia mergulhar. Somente um feliz acaso, o tiro certeiro dum canhão antiaéreo, poderia detê-lo. Mas não havia motivos para esperar dois milagres na mesma tarde.

 

Ouviu Linda ofegante ao seu lado. O Stuka estava precisamente por cima das suas cabeças e continuava a descer, direito ao transporte, a quinhentos quilómetros à hora. Teve necessidade de empregar toda a sua força para arrancar Linda Adams à amurada e estendê-la, de rosto para o chão, nas tábuas do tombadilho, sob o vago abrigo duma jangada. Nessa fracção de segundo, o Stuka transformara-se numa bala gigantesca, negra como a própria morte. Rick viu com estranha indiferença a bomba soltar-se do avião. Não teve tempo para baixar a cabeça, nem mesmo para rezar. O pássaro negro já ganhava outra vez altura e por baixo das suas asas duas grandes cruzes brancas pareciam olhá-lo impiedosamente, órbitas de pesadelo duma caveira.

 

A bomba atingira o transporte muito à proa, e teria sido fatal se não se desviasse o suficiente para perder parte da sua força no mar, poupando assim o navio a um tremendo desastre. Rick ergueu-se logo e correu ao longo do convés. Uma cratera hedionda substituía agora, à proa, a bateria antiaérea que momentos antes realizara tão bom trabalho. E desse enorme rombo viu sair a primeira língua de fogo, ao mesmo tempo que dois Condors, apanhando a cauda do Stuka no enfiamento da mira das suas metralhadoras, faziam pagar caro ao nazi o seu triunfo.

 

Rick não parou para ver o último e desesperado mergulho do inimigo. Lembrou-se de Linda e voltou atrás.

 

Apesar de toda a sua altivez patrícia, a jovem deixou-se transportar, inconsciente, nos braços de Winter. Rick levou-a para o salão, estendeu-a no meio das almofadas e, debruçado ansiosamente para ela, viu-a sair do desmaio com um aprumo perfeito. Com uma voz que depressa readquiria o timbre normal, desculpou-se:

 

- Lamento muito, Rick. Receio ser demasiado feminina, apesar de tudo... O que sucedeu? Preciso de saber.

 

- Não se importa de ficar aqui sossegada cinco minutos? Prometo vir informá-la.

 

Examinou-a atentamente, notando um fiozinho de sangue a escorrer-lhe pela testa: pequena escoriação provocada pelo capacete metálico, ao cair no tombadilho.

 

- Para a próxima vez lembre-se de apertar bem a correia. Mais nenhuma ferida? Nem qualquer bala perdida?

 

Linda sentou-se calmamente, ignorando o sangue na testa:

- Estou absolutamente intacta, obrigada. Quer então trazer-me esse comunicado?

 

Quando Rick voltou ao convés, o céu já estava limpo de inimigos. Os bombeiros moviam-se no meio de espirais de fumo que engrossavam e se sucediam à saída do porão da proa. Reteve a respiração ao ver um homem vestido de amianto meter-se no meio das chamas, como um habitante dum outro planeta. Os soldados de infantaria principiavam já a sair das entrecobertas. Não se notavam nenhuns sinais de pânico. De rostos carrancudos, sim, mas obedecendo todos às ordens recebidas.

 

Winter encontrou o comandante do navio.

 

- Pertenço ao Serviço de Saúde. Poderemos servir-nos do hospital?

 

O comandante mostrava-se preocupado, mas competente:

 

- Penso que sim, capitão. A bomba não nos atingiu em cheio, graças a Deus. As anteparas estanques devem resistir.

 

Linda esperava, obediente, o regresso de Rick.

 

- Temos de ir para os salva-vidas? - perguntou-lhe quando o viu.

 

- Desta vez não. Mas se está em condições de fazer alguma coisa, venha comigo para o hospital.

 

O rosto da jovem tornou-se grave:

 

- Mas o que posso eu...?

 

- Pode pelo menos escrever à máquina. Terei necessidade de si para fazer os relatórios... É a tarefa normal de Terry. Mas esta tarde, quer seja regularmente ou não, é promovido a médico assistente. Pode também preencher as fichas de urgência. Em resumo, documenta-se para o artigo que há-de escrever. Está pronta para a ofensiva?

 

Rick fê-la estugar o passo ao descerem a escada. E assim se incorporaram os dois na onda do pessoal, enfermeiras e oficiais, cada qual mais apressado em acorrer ao desempenho da sua missão.

 

Linda limitou-se a pedir:

 

- Indique-me o caminho, Rick.

 

- Não faço outra coisa.

 

Guiou-a até ao corredor da coberta antes de se lembrar de Carolyn.

 

Carolyn Rycroft! Fora para lá antes e fizera tudo quanto era preciso na sua ausência, enquanto ele andava no convés a ver o que se passava, como um garoto no circo. Carolyn Rycroft, a mulher amada. Carolyn Rycroft, a mulher com quem resolvera casar quando o mundo estivesse mais calmo.

 

Evidentemente, sabia-a em segurança. Estava de serviço nessa tarde, no próprio hospital, situado no bem protegido coração do navio.

 

Empurrou a porta de vaivém para dar passagem a Linda. Nesse instante, um grito dilacerou o are ambos trocaram um olhar cheio de piedade. Um grito que não era absolutamente humano, o grito desesperado dum homem cujo sofrimento se tornara insuportável.

 

- Os feridos começam a chegar. Se quiser, vá-se embora, saberá depois a história em segunda mão - aconselhou Rick.

 

- Mas não, não quero ir - declarou Linda. - E não é uma história o que pretendo, quero ajudar.

 

E libertando-se da mão que lhe amparava o braço, foi a primeira a entrar.

 

A sala de admissão do hospital era um quadro de pesadelo de Gustave Doré encaixilhado em fumo. A respeito do sistema de ventilação, dir-se-ia que um véu cinzento pairava no ar e sempre que a porta se abria para deixar passar outra maca, essa espécie de auréola sinistra tornava-se mais espessa. Rick parou um segundo, perguntando a si próprio se os bombeiros conseguiram extinguir o fogo antes das chamas atingirem as anteparas estanques a meio do navio.

 

Confiou Linda a um enfermeiro de serviço e dirigiu-se para a mesa central, onde Strang gritava ordens.

 

Era um espectáculo de dilacerar o coração. Soldados queimados e estropiados afluíam sem cessar ao hospital e já todo o pavimento da sala desaparecera por baixo das macas alinhadas lado a lado. Uns eram marinheiros, outros vestiam caqui. Homens cujos uniformes tinham sido quase totalmente devorados pelas chamas. Alguns mostravam já a peculiar tez de marfim anunciadora da morte; esses, via-se bem, eram casos desesperados. Rick notou que Strang os isolara num canto especial.

 

Bill Coffin parou na sua frente, armado duma seringa hipodérmica envolvida num pano esterilizado. O seu sorriso permanecia intacto.

 

- Graças a Deus que chegaste, meu velho - disse. - Estamos quase a deitar por fora. E vê se consegues afastar o chefe daquela mesa. Porque, com ele ali, deitamos por fora com certeza.

 

E dito isto, foi cuidar do homem que gritara momentos antes. Rick aproximou-se da mesa e tocou no cotovelo de Strang.

 

- Posso encarregar-me da separação dos feridos, major? A sua presença deve ser necessária na sala de operações.

 

Strang fixou-o com um olhar embaciado, depois anuiu:

 

- Tem razão, Winter. O meu lugar é na sala de operações. E saiu vagarosamente, passando com solenidade entreportas.

 

Mesmo nesse instante, o chefe arranjara maneira de conservar, como armadura inflexível, a sua aparência austera. Rick viu-o desaparecer com um suspiro de alívio. Era uma oportunidade magnífica para pôr em ordem aquele caos. E também uma ocasião excelente para experimentar a técnica em que matutava há muito tempo... Quando se lançou à sua tarefa, esqueceu mesmo Carolyn Rycroft. Esqueceu também que Linda colocara já uma máquina de escrever num canto da mesa e começava a dactilografar os primeiros relatórios.

 

- Podes chegar aqui por um instante, Bill? O major Coffin acorreu logo ao chamamento.

 

- O que desejas?

 

- Queria cinquenta comprimidos de morfina dum quarto de grão1, numa seringa de cem centímetros cúbicos. Enche-a de água quente esterilizada e mete mãos à obra.

 

- Entendido.

 

Com efeito, seria quase tão fácil dar injecções daquela forma como com uma seringa pequena e a dose única servia para cinquenta homens. Rick pusera já em ordem os registos de Strang dispersos em cima da mesa. Quando levantou a cabeça, Carolyn Rycroft estava na sua frente, vestida com a bata da sala de operações.

 

- O chefe mandou-me para aqui, capitão.

 

Um grão: 0,648 gramas.

 

O tom era absolutamente impessoal, verdadeiro autómato dum maquinismo perfeito, preparado para cumprir ordens. Rick adoptou, sem dar por isso, o mesmo tom:

 

- Como estamos a respeito de instrumentos esterilizados?

 

- Prontos desde o primeiro alarme.

 

- Muito bem. Será preciso gaze vaselinada, algodão em rama, e todas as ligaduras e sulfamidas que a sala de operações nos possa dispensar.

 

- Dentro de três minutos terá tudo quanto precisa, capitão. E desapareceu num relâmpago.

 

Na ponta da fila das macas, Bill começara já, metodicamente, a injectar um quarto de grão de morfina em cada braço estendido, passando logo para o braço seguinte. Terry Adams assomou à porta da sala dos raios X, e atrás dele o imponente arcaboiço de Manners, perito daquela secção.

 

- Prontos para o serviço, capitão.

 

A voz de Terry era perfeitamente calma. Onde teria ele arranjado tão depressa coragem?

 

- Os dois podem encarregar-se de ministrar o plasma. Terry, julgas possível convencer o chefe a dispensar metade do seu aprovisionamento?

 

- Posso tentar.

 

- O doutor Manners indicará quais os doentes que precisam. Quer começar esse exame imediatamente, Jim?

 

Linda chegou com as mãos cheias de fichas de urgência.

 

- Fique junto dos médicos - ordenou Winter. - Reúna todas as informações possíveis. O que dizem os primeiros relatórios?

 

- Noventa por cento dos casos admitidos são queimaduras, capitão.

 

Ela adaptara-se com facilidade ao ritmo geral. Dir-se-ia, verdadeiramente, que também fazia parte do grupo. E, na sua tarefa, funcionava com a mesma calma eficiência de Carolyn.

 

- Explodiu um reservatório de combustível à proa. Quinhentos homens estavam alojados no porão ao lado - informou Linda.

 

Não disse mais nada. Era inútil.

 

Rick abanou distraidamente a cabeça. O seu espírito estava preocupado com outro aspecto do problema. Nesse instante acabava de tomar uma decisão. Talvez lhe custasse a patente de capitão, ou mesmo a sua carreira como médico. Tanto pior; valia a pena correr o risco. Falou claro, um pouco secamente, numa voz decidida, e tanto técnicos como médicos, todo o pessoal o escutava com atenção, no desejo de compreenderem bem os seus intentos.

 

- Metade dos doentes devem ser enviados para a sala de operações, para desbridamento. Os outros ficam aqui.

 

E uma vez franqueado o seu Rubicon íntimo, ficou mais calmo.

 

O desbridamento, limpeza e cuidadosa excisão cirúrgica, com anestesia se fosse necessário, de todos os tecidos desvitalizados, constituía a técnica-tipo adoptada nos hospitais. Mas Rick nunca se convencera de que esse fosse o melhor tratamento. Vira muitos pacientes emergir dessa horrível tortura, o pulso a ceder, a pressão sanguínea a atingir um nível perigoso, a resistência nervosa enfraquecida, tudo isso exactamente quando a vítima mais precisava de todas as forças e de toda a coragem para lutar pela vida.

 

Bill perguntou serenamente:

 

- E com a segunda metade, o que contas fazer?

 

- Tratamo-los aqui. Nas mesas das duas salas. Sulfamidas e gaze vaselinada.

 

- Nada de desbridamento?

 

- Nada.

 

Parecia-lhe uma boa ocasião para provar que o desbridamento era sempre inútil e frequentemente perigoso. Se se enganasse, Strang agarraria pelos cabelos aquela oportunidade para cortar as pernas a um oficial de que não gostava. Se o resultado fosse o que esperava, então tudo correria bem. Strang, estava disso absolutamente convencido, usaria o método tradicional. Não podia pois arranjar melhor ensejo para medir o rígido major pela sua própria bitola.

 

Bill Coffin teve uma das suas expressões sorridentes. Winter ficou tão reconfortado como se, perdido no remoinho da dúvida, visse de repente brilhar uma luz de alegria e confiança.

 

- Ao teu triunfo - proferiu Bill, fazendo um brinde imaginário.

 

- É preciso que toda a gente ponha máscara. Enfermeiro, arranje uma para Miss Adams.

 

Voltou-se e viu Carolyn que chegava da sala de operações:

 

- Poderá começar não tarda nada, capitão. A gaze vaselinada vem a caminho.

 

- Obrigado, Miss Rycroft. Prepare-se.

 

Uma mesa rolante, onde se empilhava o material pedido, apareceu nesse instante.

 

Winter dirigiu-se para o homem estendido na primeira maca. A morfina tinha-o sossegado.

 

- Sala de operações - ordenou. Depois passou ao seguinte:

- Para a mesa da sala de estibordo.

 

A porta abriu-se de súbito e Manny Ebstein entrou. Um Manny ligeiramente tisnado, que se desembaraçava da blusa suja ao aproximar-se:

 

- Às suas ordens, patrão!

 

- Donde vens tu? De ajudar os bombeiros?

 

- Andei com a escada e com os ganchos. Agora já está tudo coberto com o toldo. Então disse para mim: «Vou ver se...»

 

- Bem, não gastes mais tempo a pensar em voz alta. Vai juntar-te a Miss Adams e separa os doentes como eu indiquei. Ela te explicará porquê, se porventura o caso te interessar.

 

E entrou para a sala de estibordo, acompanhado de Bill Coffin, de Carolyn Rycroft e da mesa rolante.

 

O Dr. Manners preparava o plasma diluindo em água esterilizada o pó acastanhado. Terry trabalhava junto dele, activo e aplicado. Rick dirigiu-se para a improvisada mesa de curativo.

 

- Eu trato o primeiro caso, Bill. Tu ocupas-te do segundo na outra mesa. Strang tem muito quem o ajude na sala de operações.

 

Bill anuiu, mas o seu rosto tornou-se grave:

 

- O tratado oficial de cirurgia é claro: ácido tânico e desbridamento das queimaduras, Rick. Estás absolutamente certo que o podes atirar pela borda fora?

 

- O suficiente para tomar as minhas responsabilidades. Como cirurgião mais antigo, tenho autoridade para decidir. Ficas ao meu lado?

 

O rosto de Bill Coffin abriu-se num sorriso:

 

- Estou ainda um passo atrás de ti. Mas não te dê isso cuidado, depressa te apanharei.

 

Pegou nas tesouras e começou a cortar o uniforme do soldado deitado na segunda maca.

 

Mal olhou para o seu paciente, Rick percebeu logo que ele estava horrivelmente queimado, com grandes extensões de pele calcinada nas costas e nos ombros. O tratamento habitual requeria, evidentemente, que se percorresse toda aquela superfície com a pinça e o bisturi. Uma vez removida a pele danificada, a ferida devia ser minuciosamente lavada e depois borrifada com soluto de ácido tânico ou qualquer substância similar, destinada a formar crosta.

 

Este tratamento era normal na maior parte dos hospitais. Todavia, ultimamente alguns autores tinham sugerido que esse método estava muito longe de ser ideal, insinuando mesmo que o desbridamento e a demorada lavagem que se seguia ocasionavam ao paciente um choque inútil. No laboratório tinham-se cultivado queimaduras, sem serem submetidas a esse tratamento para provar que poucas infecções se produziam, ou mesmo nenhumas. Em seguida, outras queimaduras com desbridamento, lavagem e ácido foram cultivadas, como as primeiras. Averiguou-se um resultado pelo menos estranho: visitantes imprevistos apareceram nessas feridas. Não os germes que é natural encontrar na sujidade e nos vestuários, mas os que pululam no nariz e na garganta das pessoas normais.

 

Chegados a este ponto, os pioneiros registaram os primeiros resultados dos seus ensaios: nada de bactérias quando a queimadura se produz e uma pululação abundante no dia seguinte, depois de o paciente ter passado para a câmara calorífera, após muitas personagens - dadores de sangue, médicos, enfermeiros - se terem para ele debruçado. Os germes provinham dessas pessoas sãs? Os pioneiros deslocaram então a sua frente de batalha e trataram os casos seguintes como tratavam os feridos na sala de operações, com blusa, máscara e luvas. Nenhuma infecção se registou nesse grupo; o choque fora reduzido ao mínimo. Verificou-se um progresso espantoso na percentagem de curas completas.

 

Mas os pioneiros tinham apenas principiado. Puseram-se a reflectir nessas espessas crostas negras que o ácido tânico formava sobre as feridas, por baixo das quais já tinham visto acumular-se a infecção, ao ponto de retrair por vezes os dedos dos pés e das mãos, bloqueando-lhes a circulação. Passavam-se dias e dias sem que essas crostas caíssem e, entretanto, a cura progredia com desesperadora lentidão na periferia da zona atingida. Não era sequer uma cura satisfatória, que reconstruísse uma pele sã e flexível; produzia, sim, um tecido cicatricial disforme, sempre irritado, fendido, dando origem a úlceras exsudantes.

 

Os pioneiros voltaram então aos princípios iniciais, e em lugar de provocar a formação de crostas, começaram a tratar as queimaduras como tratavam outras feridas, com pó de sulfamida para impedir a infecção local, e um penso de gaze vaselinada. Depois, e muito rapidamente, enxertavam no local novas camadas cutâneas, com a ajuda de pedaços de pele extraídos doutros pontos do corpo do paciente.

 

Ainda não tinham sido publicados os resultados de tais experiências e descobertas, pois esses cientistas não queriam desacreditar um processo há muito tempo usado sem a certeza absoluta de que o novo método era melhor e que com essa terapêutica se reduziria a mortalidade e diminuiriam muito as despesas de hospitalização.

 

No entanto, aqui e além já circulavam alguns rumores a esse respeito e Rick vira com os seus próprios olhos várias curas assim realizadas nos Estados Unidos. Sabia também que os britânicos tinham abandonado em grande parte o tratamento pelo velho método da formação de crostas. Aquela era pois uma excelente oportunidade, que talvez nunca mais se repetisse, para provar que os pioneiros estavam no bom caminho, e decidiu aproveitá-la.

 

Delicadamente, ia cortando e tirando as vestes do soldado, consciente da presença de Carolyn, vendo-lhe os olhos calmos por cima da máscara enquanto o ajudava a romper uma manga do uniforme.

 

Atrás dele, Bill Coffin perguntou:

 

- Que quantidade de sulfamida, Rick?

 

- Polvilha ligeiramente as queimaduras. São suficientes dez gramas para cada caso.

 

E, dizendo isto, desfez o invólucro duma caixa, tirou a tampa do crivo e espalhou meticulosamente na pele calcinada e empolada uma camada fina e regular de pó. Com a ajuda de pinças, colocou geometricamente alguns quadrados de gaze impregnada de vaselina até cobrir assim a última polegada de carne enegrecida, não deixando à mostra senão a epiderme intacta. Depois, estendeu sobre esse primeiro penso uma camada de gaze esterilizada e por cima uma boa espessura de algodão, tudo bem apertado com ligaduras e adesivo, de forma a manter uma pressão regular em toda a superfície queimada. A pressão era duma importância capital. Sob a epiderme destruída, a derme começaria a segregar um fluido bastante semelhante ao plasma, e a pressão era o único meio de impedir o excesso dessa exsudação.

 

Atrás de Winter, Bill falou de novo:

 

- Aponta o meu primeiro tratamento. O homem fica aqui?

 

- Com certeza. Diz aos maqueiros que o levem para uma cama e o conservem aquecido e de pés levantados.

 

Rick pegou no telefone interior e pediu a enfermaria de bombordo. Uma voz atenta respondeu-lhe:

 

- Daqui capitão Davis.

 

- Olá! Daqui Rick Winter. Queria que instalasse sem demora os nossos doentes, à medida que forem sendo tratados, e lhes desse, por via bucal, quatro gramas de sulfadiazina. Depois uma grama de quatro em quatro horas.

 

- Tomei nota, Rick. Mais alguma coisa?

 

- Um quarto de grão de morfina se for preciso. Mantenha-os numa temperatura bem quente. E dê-lhes plasma sempre que for necessário.

 

Ao voltar à sua tarefa, Rick pôs-se a examinar o soldado estendido na maca seguinte. Tomou-lhe rapidamente o pulso. Carolyn acorreu logo com um estetoscópio. Auscultou-o cuidadosamente, mas não ouvia nenhum som naquele peito. Quando se endireitou, puxou a manta e cobriu-lhe o rosto imóvel. O homem estava morto e, graças à morfina, tivera uma morte tranquila.

 

Ouviu então a voz de Linda, perto de si:

 

- Encontra aí o seu registo completo, capitão. - E indicava a ficha de urgência presa à camisa do soldado.

 

Rick ficou surpreendido ao vê-la correctamente preenchida.

 

- Como conseguiu isto?

 

A jovem estava na sua frente, pálida mas resoluta:

 

- Consultei as chapas de identificação...

 

Rick fixou-a um instante nos olhos e fez um aceno de aprovação. Era preciso na verdade ter coragem para afastar a camisa do morto e decifrar os discos de metal. Mas não havia tempo para grandes elogios.

 

- Bom trabalho! Continue. - E voltou para a mesa dos curativos, com Carolyn. - O doente seguinte, por favor!

 

Toda a unidade trabalhava agora num ritmo perfeito. Considerado a sangue-frio, aquele bombardeamento fora um bom ensaio geral para todos quantos viajavam no transporte. Para Rick, não passara dum incidente familiar. Vira queimaduras semelhantes nas planícies do Ebro e no espantoso holocausto do Alcazar. E nessa época era obrigado muitas vezes a ficar de braços cruzados, a ver os seus feridos morrerem, sem lhes poder dar plasma nem sequer aliviar-lhes a agonia com um pouco de morfina...

 

Meia hora mais tarde, Bill Coffin aproximou-se de Rick para lhe murmurar ao ouvido, entre dois tratamentos:

 

- Um facto evidente salta à vista: com este método, o choque é muito menor. Quando poderemos saber se isto pega ou não?

 

- Uma semana deve ser o suficiente para nos tranquilizar ou nos meter a pique.

 

- A propósito, preveniste o chefe? Rick encolheu os ombros:

 

- Para quê? Teria dito que não.

 

- E se dissesse?

 

- Não estou muito certo do que lhe faria. Talvez lhe desse um murro.

 

Bill assobiou brandamente entre dentes:

 

- Caramba! Creio bem que eras muito capaz disso. Ambos voltaram para o seu trabalho. A horrorosa procissão

continuou ininterruptamente durante muito tempo. Por fim, principiou a abrandar a pouco e pouco. Rick pôde ver então, ao fundo da sala, Terry Adams. O rapaz mostrara-se um precioso auxiliar de Jim Manners, preparando as agulhas e as seringas, ajustando os aparelhos de plasma, mal colocados, auxiliando o médico a encontrar uma veia colapsada com o choque. «Talvez tenha atingido hoje a maioridade», pensou Rick. «Se assim for, a guerra terá produzido ao menos um bom resultado secundário.»

 

Pelas cinco horas, houve uma interrupção no afluxo de doentes. Depois a torrente transformou-se num débil regato.

 

Por fim, Rick pôde tirar as luvas e voltar-se para Carolyn, mas havia gente a mais na sala para que qualquer significativa mensagem pudesse ser trocada entre os dois. Winter limitou-se a aceitar o convite que lhe lia nos olhos e a retribuí-lo com interesse.

 

- Vou à enfermaria de bombordo - disse - para ajudar Davis a pôr os registos em ordem.

 

Não pôde deixar de sorrir da insipidez da sua declaração, ao compará-la intimamente às palavras ardentes que lhe enchiam a alma.

 

Carolyn respondeu, com o seu tranquilo sorriso:

 

- Estou certa de que podemos agora arrumar tudo, capitão. Rick caminhou até um ventilador, tirou a cigarreira e estendeu-a a Carolyn, murmurando:

 

- Obrigado. Devo acrescentar mais alguma coisa?

 

- Obrigada, doutor.

 

Aceitou o cigarro, o lume e o cumprimento, com essa exacta mistura de decoro e prazer que todos os grandes hospitais ensinam às enfermeiras especializadas em cirurgia.

 

- E posso desejar-lhe boa sorte na sua tentativa? Com um gesto, ele afastou a pergunta:

 

- Fiquei contente de a saber cá em baixo quando... quando aquilo sucedeu, Carolyn...

 

- Porquê, doutor?

 

- As coisas não estavam muito agradáveis lá em cima, antes de a bomba aterrar. Espero - acrescentou, fixando-a bem nos olhos - que a sorte continue a sorrir-lhe.

 

E dizendo isto deixou-a, na esperança de que ela houvesse compreendido todo o seu pensamento. Não se atreveu, porém, a beijá-la ali mesmo, para dar maior expressão ao que dissera.

 

Na enfermaria de bombordo viu que a maior parte dos doentes pareciam sossegados.

 

Quanto a Davis, uma vez terminada a inspecção, não escondia o seu entusiasmo:

 

- Nunca vi casos de queimaduras graves com um ar tão... tão satisfatório. É um novo tratamento, Rick?

 

Winter riu com satisfação:

 

- Bem longe disso! É uma nova versão dum tratamento antigo. Mais «pó do Senhor», evidentemente - acrescentou, mostrando-lhe uma caixa vazia de sulfamida.

 

Na sala de operações, Strang e um outro membro do estado-maior cirúrgico afadigavam-se em redor de duas mesas. Antes de entrar, Rick parou uns momentos à porta, deprimido com o espectáculo que presenciava. Alguns doentes que já haviam deixado a mesa esperavam que os transferissem para a enfermaria. Deteve-se junto da primeira maca, tomou o pulso do homem nela deitado. Uma agulha de plasma alimentava a veia do braço do soldado, mas a sua pele estava húmida e fria, o seu pulso fraco e rápido. «Choque pó s-operatório», pensou Winter. E entrou na sala para enfrentar Strang.

 

O cirurgião-chefe lavava nesse momento as mãos com álcool. Franziu as sobrancelhas ao ver Rick.

 

- Porque não está a trabalhar, Winter?

 

- Acabei a minha metade de casos - respondeu gravemente o outro.

 

- O momento é mal escolhido para gracejos, capitão.

 

- Mas não estou a gracejar. Nunca senti menos vontade de o fazer. Enviei-lhe justamente metade dos feridos admitidos.

 

O major Coffin e eu tratámos os restantes com a ajuda do capitão Davis que os instalou na outra enfermaria.

 

- E como conseguiu esse milagre?

 

A voz de Strang era rouca e dura. A de Winter continuava calma:

 

- Com sulfamida e gaze vaselinada.

 

- E o desbridamento?

 

- Não fizemos desbridamentos.

 

Strang mergulhou duma só vez as duas mãos na solução de álcool. Era visível que quase sufocava para não gritar.

 

- Abusou da autoridade, Winter. Tanto quanto sei, pôs a vida desses homens em perigo.

 

- Examine-os. Encontrá-los-á quase todos em excelente forma.

 

- Não tenho dúvidas. Mas isso é agora. E amanhã, quando se declarar a infecção?

 

- Talvez não haja infecção.

 

Strang não se conteve mais e gritou furiosamente:

 

- Disse-lhe o que penso da sua experiência, Winter. Pois será bom que tome nota, suponho que isso é uma experiência, puramente uma experiência.

 

- Creio, major, que me coloquei num terreno muito mais sólido do que esse.

 

O chefe repeliu a interrupção:

 

- Contrariamente às instruções do tratado?

 

- O mais contrariamente possível.

 

- Obrigado por admitir ao menos isso. Pode voltar para os seus afazeres.

 

Rick fez-lhe a continência, tendo o cuidado de a fazer de forma impecável.

 

- Está certo de não precisar de mim aqui?

 

- Tão certo quanto é possível estar - respondeu Randall Strang, voltando-lhe as costas.

 

Rick voltou, pensativo, para a enfermaria. A escaramuça com Strang fora exactamente como receava que fosse. Se por infelicidade a sua tentativa falhasse, tinha-o à perna, armado de todos os textos possíveis e imagináveis. Mas havia de ser bem sucedido. E não era uma «experiência», como amargamente proclamara Strang. Claro que não teria aplicado aquele tratamento em tão larga escala se não conhecesse o assunto como os seus dedos, se não tivesse uma «certeza». Os factos não podiam deixar de lhe dar razão. O ácido tânico e o desbridamento haviam de ser atirados pela borda fora.

 

E com Strang ou sem Strang não desistiria. Estava resolvido a não incomodar os seus doentes durante alguns dias, resolução que incluía não lhes mudar os pensos. Rick conhecia os resultados da frequente renovação dos pensos nas queimaduras, o mal que daí podia advir às extensas superfícies privadas de epiderme, e até que ponto isso enfraquecia a resistência do paciente. A sua decisão estava firmemente tomada, nada o faria demover.

 

Manny Ebstein esperava-o no corredor, com um emplastro triangular a tapar-lhe uma vista. Rick sentiu voltar-lhe de repente a boa disposição.

 

- A situação parece estar dominada, pois já recebeste os primeiros socorros.

 

- Não faça caso desta picadela de pulga, patrão. O major Coffin tem entre mãos uma fractura que deseja mostrar-lhe. Todos os ortopedistas estão ocupados, por isso me mandou à sua procura.

 

Na sala de admissão um soldado acariciava maquinalmente o braço pousado em cima da mesa. Rick reconheceu um dos técnicos da unidade.

 

- Fractura do úmero - disse Coffin. - Deu-se quando o paciente ajudava a carregar uma maca.

 

- Um tecto desabou, patrão - murmurou Manny. - A minha tola por pouco não o apanhava em cima...

 

Os dedos de Winter palparam a fractura. Gina Cole saiu da sala de radiografia com uma chapa de urgência ainda húmida. «Pela primeira vez», pensou Rick ao vê-la, «tem um ar competente e não concupiscente.» Repeliu no entanto aquela maledicência mental e estendeu a mão para a chapa. Independentemente dos seus hábitos fora do serviço, Gina era para Manners uma preciosa colaboradora.

 

A radiografia mostrava o delgado osso fendido obliquamente numa fractura de algumas polegadas de comprimento.

 

- Felizmente o nervo radial não foi atingido - sublinhou Bill.

 

Rick anuiu com a cabeça: o seu exame confirmara já esse facto importante. O paciente podia dobrar e estender os dedos, portanto o nervo radial, que passa numa ranhura da face interna do úmero, estava intacto, embora situado na zona fracturada.

 

- Será preciso operar?

 

- Um gesso será o bastante. E novocaína, por favor - acrescentou, dirigindo-se a Carolyn que entrava nesse momento sem esperar que a chamassem.

 

O soldado contraiu-se quando a ponta aguçada penetrou na pele. Com a agulha flexível, Rick procurou o ponto preciso, até que um leve roçar o advertiu que estava em contacto com a superfície fendida do osso, envolvido pelos músculos do braço. Então puxou ao de leve o êmbolo e um fiozinho de sangue apareceu na seringa, mas não um afluxo igual ao que se seguiria à penetração numa veia.

 

- A agulha está no hematoma - disse.

 

Um hematoma é um pequeno depósito de sangue que se pode formar em volta das extremidades dum osso partido. Premiu o êmbolo, injectou a novocaína no local devido e retirou a agulha.

 

- Vamos esperar uns dez minutos para que se produza a anestesia.

 

Passado esse tempo, quando Rick lhe fez mover o braço doente, o rosto do soldado não traiu o menor sofrimento: a novocaína envolvera as extremidades do osso partido, adormecendo toda a sensação. Com a ajuda de Bill, o soldado ergueu-se e apoiou-se ao sólido ombro de Manny.

 

- Preciso duma ligadura de gesso com quatro polegadas de largura e duas vezes o comprimento do braço.

 

Já Carolyn Rycroft, na mesa ao lado, a preparava. Ao olhá-la atentamente, Rick perguntava a si próprio se seria o seu comum amor à cirurgia, sob os mais variados aspectos, o que os aproximara. Nesse dia, vira-a adivinhar cada um dos objectos de que precisava, quase por telepatia.

 

Enquanto esperava a ligadura, Rick exercia uma constante pressão para baixo no cotovelo do ferido, man tendo-o paralelo ao corpo. Depois, Bill Coffin enrolou habilmente a ligadura húmida, enquanto Rick segurava com firmeza o braço. Aquele era outro ensinamento aprendido em Espanha: a aplicação do gesso mole na parte que se deseja imobilizar, deixando-o depois endurecer na forma moldada. Expediente lógico que convertia centenas de «feridos deitados» em «feridos a andar».

 

- Astucioso - observou Bill. - E o que sucede ao osso?

 

- O peso do braço mantê-lo-á direito. É claro, colocaremos uma faixa a tiracolo, presa ao pulso, para lhe servir de apoio.

 

Rick sorriu para o soldado e perguntou a Ebstein:

 

- Achas que ele poderá lançar os dados só com uma das mãos, Manny?

 

- Não há nenhum movimento na fractura? - perguntou Bill.

 

- Muito leve. Mas isso não me parece que cause qualquer prejuízo. E a cura produz-se mais depressa com este sistema do que quando a fractura fica numa goteira.

 

Bill Coffin deixou escapar uma vez mais o seu inimitável assobio:

 

- És verdadeiramente o tipo das simplificações, Rick Winter. Peço-te que nunca metas o nariz na cirurgia do cérebro. Destruirias num abrir e fechar de olhos uma bela fonte de rendimentos!...

 

De cabelos ao vento, Terry Adams andava para trás e para diante no tombadilho, aspirando o ar fresco da noite. Meia hora antes a rotina voltara à sua normalidade nas enfermarias e Rick, com calorosos agradecimentos e uma palmada amigável na nuca, empurrara-o lá para cima. Era uma excelente oportunidade para reflectirem sossego nos seus problemas, mas não estava absolutamente certo de a acolher com satisfação.

 

O pôr do Sol perdera-se numa cortina de nevoeiro e chuviscos, mas essa frescura húmida, ao bater-lhe no rosto, revigorava-o. Pelo menos fisicamente. E também moralmente, pois o nevoeiro adensava-se cada vez mais, embora a chuva não parasse, e isso significava que não haveria outro ataque nessa noite. No dia seguinte, a dar crédito ao que se dizia, estariam já longe, nas costas da Espanha. Naturalmente, o inimigo não tornaria a aparecer-lhes até Gibraltar.

 

Parou à proa, para examinar os estragos. Os bombeiros trabalhavam ainda numa zona isolada por cabos, mas, embora à distância, Terry pôde verificar que tinham dominado o fogo e arranjado tempo para construir um sólido abrigo com encerados que defendia das vagas toda a parte interior posta a descoberto. Viu as altas e descomunais ondas aproximarem-se do navio, viu a proa cortá-las galhardamente e a espuma raivosa referver nos flancos do barco. Afastou-se, tranquilizado. Por esse lado, não havia perigo. Salvo se encontrassem algum furacão, atingiriam o Rochedo sãos e salvos. Mesmo assim, reparou que tremia um pouco, decerto devido ao frio fustigar da chuva.

 

O entusiasmo que o alentara durante todo o dia extinguia-se agora, mas sem dor. Sabia que trabalhara regular e ininterruptamente, e trabalhara bem, sem tempo sequer para ter medo. Sozinho, ali, na fria obscuridade, era outra história... De olhar fixo na sua frente, no escuro, lutava agora contra o medo de ter medo. Mas não conseguia esquecer as insondáveis e temíveis profundezas que o cercavam, a oculta ameaça dos submarinos, e essa outra ameaça, a pior de todas, o Mediterrâneo. Se os boatos que corriam eram verdadeiros, no dia seguinte, ou talvez no outro, o transporte tomaria o rumo de leste, procurando atingir, a todo o vapor, o estreito da Sicília, o famoso «triângulo de fogo». Os aeródromos donde partiam os Stukas ficariam então apenas à distância de trinta minutos de voo e Jerry podia lançar enxames de bombardeiros e de caças, para «arrasarem» metodicamente cobertas e baterias, prosseguindo ao mesmo tempo, metodicamente também, os seus combates aéreos.

 

Surpreendeu-se a dar murros na amurada com tal força que a dor o fez voltar a si brutalmente. Mas agora que conhecia o remédio para aquelas crises de melancolia, porque não ia procurá-lo? Gina, tal como ele, trabalhara também bastante durante toda a tarde. Sem dúvida estaria igualmente livre. E talvez ansiosa também por se divertir... Podia ir bater-lhe à porta e convidá-la a tomar uma bebida e a fumar um cigarro no salão.

 

Sim, mas... Não prometera a si próprio nunca mais se encontrar com ela a sós, depois das loucuras da noite anterior? Essa noite curara-o, por algum tempo, do que Maupassant chama o vício da continência. Não haveria nova queda.

 

Sem mesmo dar por isso, perdido no seu cogitar, Terry atingiu o jardim de Inverno e caminhou em direcção à popa. Porque não confessar que perseguia Gina e que procurava a sua pista? Ela era a chama e o esgotamento apaziguador, e nessa noite sentia necessidade dela mais desesperadamente do que nunca. A hora não era propícia para as mentiras íntimas: para que se hipnotizar com palavras enganadoras? Toma-a, sem nada perguntares, nem a ela nem a ti. Tal tinha sido na verdade o conselho de Rick em Inglaterra... A própria Gina tivera um comentário apropriado: Esta guerra não é uma guerra romântica, Terry Adams. Qual é o número do seu camarote?

 

Todavia, na noite anterior, nesse camarote, houvera mais alguma coisa do que paixão. Houvera ternura e risos abafados por beijos. A recordação chicoteava-lhe os sentidos com um látego afrodisíaco. Desceu, cambaleando, as escadas da coberta A com o nome de Gina nos lábios. Quando a encontrasse, prender-lhe-ia as mãos, suplicar-lhe-ia que se entregasse outra vez. Com certeza ela não esquecera tão depressa aqueles momentos de mútua embriaguez ...

 

A coberta B. A porta do «seu» camarote. O bater apressado do coração quase o sufocava quando bateu ao de leve, com os nós dos dedos. Mas ninguém lhe respondeu. Somente o crepitar duma máquina de escrever no camarote ao lado perturbava o silêncio do corredor. A máquina de Linda. Que pensaria a sua irmã mundana, se espreitasse e o visse ali, lobo de dentes arreganhados por ter de ir procurar mais longe a presa?...

 

Talvez Gina estivesse ainda a jantar. Nesse caso... E se entrasse no seu camarote e esperasse por ela? Não, Gina partilhava-o com Carolyn Rycroft, e não estava disposto a sujeitar-se às inevitáveis perguntas da sua companheira de quarto. Da mesma forma não podia demorar-se ali, naquele corredor, como um colegial louco de amor...

 

Vagueou um pouco por toda a parte, sem destino, sem saber onde encontrar Gina. Ao passar em frente do camarote de Bill Coffin deteve-o o som dum riso. Bill naturalmente estava a beber com alguns camaradas, agora que já passara o mau tempo. Sabia que seria bem recebido se batesse à porta, para se juntar aos bebedores. Bill mostrara-se sempre seu amigo. Erguia já a mão, decidido a entrar, quando ouviu nova risada... Era um riso feminino, sem dúvida possível... Um riso familiar, inconfundível, baixo e quente e que dizia muitas coisas... Um riso que lhe espicaçou a memória como uma agulha invisível...

 

Na noite anterior, Gina também rira assim nos seus braços. E, naquele instante, tinha a certeza, ela jogava com outro parceiro o mesmo jogo da véspera... Aos olhos da sua imaginação, a porta desapareceu, como traspassada por raios X, e viu Gina afastar-se de Bill, terna e travessa, após o primeiro demorado beijo. Tornou a ver a brancura da sua carne quando deixou entreabrir o roupão, acidente habilmente calculado para sublinhar a opulência dos seios, sem no entanto descobrir por completo os túrgidos pomos...

 

Por trás da porta fechada, Gina riu outra vez. E, subitamente, tudo ficou em silêncio.

 

Terry abriu a boca para gritar, mas o seu próprio silêncio juntou-se àquela pausa significativa. Ergueu o punho como para arrombar a porta, mas o braço não tardou a cair-lhe inerte ao longo do corpo...

 

Momentos depois fechava-se no seu camarote. Durante muito tempo ficou sentado, como bêbedo, na beira do beliche, em frente do espelho do guarda-roupa, demasiado fatigado para praguejar, demasiado indiferente para rir daquela cara de morto que via reflectida na sua frente.

 

Ao chegar ao fim da longa fila de leitos, Rick Winter parou e estendeu a papelada à enfermeira de serviço. Por uma vigia aberta, viu o sol matinal cintilar no Atlântico, liso qual azul espelho. Mal terminou o último dos monótonos exames, saiu um instante lá para fora e foi saborear o ar áspero e salino. Como podia o mar parecer tão enganosamente tranquilo nessa manhã, depois dos horrores a que assistira?

 

Os homens queimados estavam num estado surpreendente. É certo que isso podia ser apenas passageiro. Tinham resistido bem ao período inicial do choque, graças a uma combinação feliz de morfina, calor e plasma. Mas para os casos mais críticos era preciso contar com uma segunda fase, o período de enfraquecimento devido à perda considerável de sangue produzida pela exsudação das zonas atingidas. Sabia que esses casos requeriam um cuidado muito especial, pois a evolução da sua cura serviria de pedra de toque ao tratamento aplicado.

 

As injecções de plasma deviam continuar enquanto fossem necessárias e com a frequência que o estado dos doentes exigisse; além disso, os feridos deviam ser encorajados a tomar todo o alimento líquido que o organismo pudesse assimilar. A prova definitiva seria fornecida pelo período de infecção possível. Se as suas teorias estavam certas, a percentagem de infecções não se compararia, nem de longe, à que se iria registar nos doentes de Strang, tratados com a terapêutica clássica do desbridamento e da irrigação. Só o tempo ia pesar na sua balança o antigo e o novo método. Se no fim da semana nenhuma infecção se manifestasse, principiaria o período de cura. E Winter estava certo de que, graças ao processo adoptado, essa cura seria consideravelmente acelerada.

 

Voltou para a sala, refrescado pela brisa matinal, os olhos um pouco encandeados ainda pelo brilho ofuscante do mar. No fim de contas, tinha desculpa para se sentir fatigado; lançara-se ao trabalho muito antes da hora do primeiro almoço, principalmente para afastar do espírito problemas bastante importunos. Por exemplo, o que diria a Carolyn Rycroft se a encontrasse de serviço?

 

O oficial da enfermaria caminhou ao seu encontro com um sorriso ansioso.

 

- As coisas parecem correr bem, capitão.

 

- Qual é o seu veredicto?

 

- Já que me pergunta, dir-lhe-ei que estou um pouco admirado com resultados tão surpreendentes, especialmente nos casos mais graves.

 

- Tem vigiado as proteínas do sangue?

 

- Duas vezes por dia, além da contagem das hematias e doseamento da hemoglobina.

 

- Preparado para as transfusões se a anemia se declarar?

 

- Preparado e atento, capitão. Mas penso que com estes doentes não serão necessárias transfusões.

 

Rick agradeceu e caminhou para a sala de estibordo onde a maioria dos casos de Strang estava hospitalizada. Também tinham ao seu dispor todos os recursos da ciência, incluindo plasma e sulfadiazina. Nesse caso, pensou Rick com um ligeiro arrepio íntimo, se alguma diferença se manifestar, só pode ser atribuída ao tratamento inicial. Graças à perfeição militar, encontram-se agora em completa igualdade.

 

Talvez aquilo não passasse de imaginação, mas parecia-lhe sentir uma subtil diferença nas duas salas. Na de bombordo, os pacientes estavam tranquilos, descontraídos. Na de estibordo pareciam verdadeiramente mais doentes. Em vários rostos lia-se o desespero e em muitos punhos estendidos o pulso batia desenfreado .

 

Fosse pelo que fosse, voltou as costas àquela exibição do saber de Strang com maior confiança no seu próprio julgamento.

 

Uma ordenança cruzou-se com ele quando subia a escada e pôs-se em sentido: o coronel esperava-o no seu gabinete.

 

Desta vez teve de vencer um verdadeiro sobressalto. Seria possível que Strang tivesse ido tão depressa fazer queixas a Amos? O chefe era um cirurgião competente e bastante prudente para não dizer mal de ninguém sem a antífona, o versículo e toda a liturgia apropriada. Decerto agiria, no presente caso, como político avisado, esperando os resultados antes de dar largas ao ressentimento.

 

Winter uniu correctamente os calcanhares e fez a sua melhor continência no vão da porta, antes de entrar no gabinete improvisado de Amos Elaine. Descontraiu-se um pouco ao ver o coronel absorvido na leitura de velhos exemplos do Yank e a rir às gargalhadas com os desenhos de Breger1.

 

- Tire esse capacete em falso estilo de West Point, Rick. Sabe tão bem como eu que estamos aqui abrigados. Por minha parte, ainda não posso fechar os olhos sem me pôr a contar Stukas. E você?

 

- Palavra, meu coronel, estive ontem demasiado ocupado para ter tempo de contar.

 

- Sim. Não me custa a crer. O trabalho é a salvação dos tipos do seu género. A minha missão é manter-me no meu posto e esperar que todos cumpram o seu dever.

 

Amos ergueu uma sobrancelha: desde há muito tempo Winter reconhecia naquele gesto um sinal indicador de tempestade. Preparou-se para a enfrentar.

 

- Sim, esperar que todos cumpram o seu dever, mas em boa ordem. Por exemplo, essa experiência que ontem realizou na enfermaria...

 

Assim Strang tinha falado, apesar de tudo. Naturalmente limitara-se a fazer prudentes observações, mas nunca fiando. Isso permitir-lhe-ia, no caso de o método se revelar eficaz, tomar para si as honras, e lançar para cima dele as censuras se houvesse algum desastre.

 

Rick respondeu pausadamente:

 

- A responsabilidade é só minha.   Inteiramente minha. O major Strang não foi nisso havido nem achado. Tratei metade dos pacientes na enfermaria e ele tratou a outra metade na sala de operações.

 

- Disse que tratou?

 

- Com vaselina e pensos para assegurar a pressão, sim, senhor. Os do major tiveram o desbridamento regular, a irrigação e o ácido tânico para a formação de crostas.

 

- Não me diga que se serviu desses soldados como de cobaias...

 

Caricaturista americano de grande nomeada e assíduo colaborador de jornais e revistas.

 

- Claro que não. O tratamento é aplicado, e quase exclusivamente, há muito tempo, na Inglaterra, com resultados absolutamente satisfatórios. Porque não haviam de beneficiar também os nossos soldados da experiência já adquirida?

 

- Espero que possa vender essa ideia a Strang.

 

- Francamente, coronel, já abandonei a esperança de vender seja o que for ao chefe.

 

Era uma reflexão para além de todos os limites do respeito e Amos tinha o direito de franzir as sobrancelhas, como o fez. Mas foi um franzir rápido, como que aureolado de malícia.

 

- Posso dizer que aprecio... o vosso... o vosso dilema, Rick?

 

- Evidentemente, atirei a ideia para as mãos do chefe sem autorização nem aviso prévio. E, concordo, ele tem o direito de estar por isso um pouco transtornado. Sobretudo... (aqui a expressão de Rick igualou a do coronel) ...sobretudo se o novo tratamento for bem sucedido.

 

- Saia já da minha vista! - gritou o coronel. - Saia da minha vista antes que o mande prender!

 

Rick deu meia volta e o rosto de Amos abriu-se, sorrindo.

 

O capitão caminhou para o seu camarote, com o espírito considera velmente desanuviado. Gozava ainda essa sensação de alívio quando numa volta do corredor chocou com uma jovem loira em uniforme de enfermeira, Carolyn Rycroft, com o seu sorriso sereno como uma manhã de Primavera.

 

- Não lhe deram um período de repouso?

 

- Deram-me, sim, capitão. Mas hoje havia falta de gente. Sou voluntária.

 

Ele tomou-lhe o queixo, carinhosamente:

 

- Olhe para mim, por favor. Estamos sozinhos e a crise passou.

 

Ela ergueu os olhos e não fez menção de se libertar.

 

- Tem a certeza?

 

- Absolutamente. Pelo menos no que diz respeito aos doentes. Mas quanto a nós...

 

- Não sei nada, Rick.

 

- Que devo fazer? Terei de chamar em meu auxílio outro submarino?

 

O rubor agora traía-a. Ele retirou a mão do queixo e abriu-lhe os braços. Depois de olhar prudentemente em sua volta, Carolyn deixou-se abraçar. Os dilemas duma outra noite de insónia desvaneceram-se com aquele beijo.

 

- Porque veio ao meu camarote?

 

- Já lho disse, tinha medo.

 

Rick respondeu-lhe numa voz que não era absolutamente normal:

 

- Eu desejava-a nessa noite, e desejo-a agora, Carolyn. E sabe que não é simplesmente desejo, mas muito mais, sabe muito bem que a amo.

 

Beijou-a de novo, de modo mais insistente, procurando loucamente o mesmo êxtase da noite do black-out. Decerto ela já compreendera que ele adivinhara a sua identidade. Que a capa abandonada nessa noite inolvidável estava agora no fundo da sua mala. Se não fora para o atormentar, para que colocara o seu impermeável no beliche? E quereria continuar a atormentá-lo naquele momento com a sua dissimulação?

 

Procurou avançar um pouco mais e permitiu-lhe que se libertasse dos seus braços:

 

- Não podemos ser honestos a respeito dos nossos sentimentos, Carolyn?

 

Ela continuou com o rosto apoiado no seu ombro. Winter notou, exultante de alegria, que a jovem não se afastava, embora ele tivesse deixado cair os braços ao longo do corpo.

 

- Bem sabe o que desejo, Rick.

 

Durante alguns segundos ele sentiu a tentação de dizer alguma coisa, quanto mais não fosse para a obrigar a revelar-se. Esperaria ela que lhe propusesse casamento quando iam ambos a caminho da frente de batalha? Por Deus! Iria dali directamente ao gabinete de Amos e pedir-lhe-ia a sua bênção. Mas o instinto deteve-o, qualquer coisa o advertiu de que seria melhor deixar Carolyn fazer o seu jogo até ao fim. Deixá-la confessar que fora mais do que sua esposa nessa noite da Inglaterra. Quando a visse tirar a máscara, imediatamente tornaria as suas relações tão legais quanto ela o desejasse.

 

Carolyn rompeu aquele silêncio tenso; a sua voz tornara-se um modelo de decoro:

 

- Queira passar junto da cama doze, doutor. Tenho lá um homem com febre.

 

Rick seguiu-a até à enfermaria, perguntando a si próprio se aquilo não passaria dum jogo de palavras, mas o doente e a sua febre eram reais. Tratava-se dum rapagão esguio, do batalhão de infantaria, com os cabelos de estopa e envolvido desde o queixo aos sovacos num penso contínuo. Rick lembrou-se do caso no mesmo instante. Apesar da sua extensão, as queimaduras não eram graves. Aquela subida de temperatura podia significar várias coisas. Pensou na causa mais provável, talvez uma reacção à sulfadiazina. Era pouco frequente, mas por vezes originava perturbações quando não se descobria a tempo; o médico assistente podia ser levado, por exemplo, a atribuir a febre a um princípio de infecção, aumentando a quantidade da droga.

 

O gráfico indicava as temperaturas do doente, tiradas de duas em duas horas desde que lhe fora feito o curativo. Não havia uma subida regular. Simplesmente aquela flecha súbita. Não havia também qualquer sinal inquietante nas imediações das feridas.

 

Carolyn murmurou:

 

- Interrompe-se a sulfadiazina?

 

- Sabe ler o pensamento?

 

- Faço o melhor que posso, doutor Winter. - E baixando modestamente os olhos, acrescentou: - Em caso de urgência, pode ganhar-se tempo.

 

Quando Rick fixou de novo a atenção no gráfico, sentiu que Carolyn ganhara aquele assalto. Escreveu a observação na papeleta, pôs as suas iniciais e devolveu-lha.

 

- Interrompa a sulfadiazina. Nada mais a assinalar, tenente Rycroft?

 

- Nada mais, doutor.

 

- Isso quer dizer que está inteiramente satisfeita com a evolução do caso?...

 

Ela ergueu os olhos e fixou profundamente os do capitão. Rick ficou perturbado com o intenso fogo de paixão que neles viu brilhar.

 

- Completamente satisfeita... por agora.

 

- Gostaria de poder dizer outro tanto.

 

E dizendo isto bateu com os calcanhares, saudou-a com aprumo e enquanto ela continuava gravemente a examiná-lo, deu meia volta e abandonou a sala.

 

Rick foi o último da sua unidade a abandonar nessa tarde o transporte. O coronel, acompanhado de Strang, atravessara a baía na primeira barcaça. Depois principiara a habitual ronda aos sargentos e oficiais encarregados dos abastecimentos. Mas a rotina desta vez não lhe causara aborrecimento. A rapidez com que eram executadas todas as ordens indicava uma tensão interior, o perfeito conhecimento do perigo próximo.

 

Antes de os soldados começarem a abandonar o navio, já as gruas baloiçavam, por cima da amurada, o material do hospital. Centenas de caixas e fardos de todas as formas e tamanhos, contendo o equipamento necessário para salvar um sem-número de vidas nas tendas de campanha. Em cada caixa, uma letra e um número, enormes e bem visíveis, correspondiam aos inscritos no cimo duma lista onde se enumerava, em pormenor, todo o seu conteúdo: era assim possível saber ao certo onde estava o material de cirurgia, de medicina, de farmácia ou de enfermagem. Além disso, cada um desses grupos de sinais, letra e número, aparecia duplicado, em duas caixas, idênticas na composição e correspondendo a duas listas perfeitamente iguais. No caso de o hospital ter de se dividir em duas unidades em campanha, o equipamento já estava separado, o da lista A iria para uma, o da lista B para a outra. E tudo isto com o mínimo desperdício de tempo e a máxima eficiência.

 

Rick meditava nestes milagres administrativos ao transportar a sua própria bagagem, com a ajuda de Manny, para junto da escada do portaló. O hospital fora evacuado com a máxima economia de esforço e em perfeita ordem. A maior parte dos feridos graves estavam agora instalados em terra, na perspectiva de passarem ali uns quinze dias de repouso. Depois, seriam levados por outro transporte para uma convalescença no seu país, e talvez tornassem a encontrar, nessa travessia, o major Weldon...

 

Winter voltou-se e despediu-se com um aperto de mão do major, que fumava melancolicamente o seu cachimbo, encostado à amurada.

 

E meia hora mais tarde, depois de trepar a escada do portaló doutro navio, Rick depunha a sua bagagem no convés do transporte para o qual toda a unidade se transferira antes dele.

 

Tipo perfeito do navio de guerra do século vinte, galgo dos oceanos, construído para suportar todo o mar e atingir boas velocidades, esse transporte parecia estável e ao mesmo tempo rápido. As acomodações interiores, no entanto, diferiam totalmente das do confortável paquete que acabavam de deixar; a maior parte da unidade ficara alojada em dormitórios situados a meio do navio, salvo alguns oficiais a quem tinham sido atribuídos camarotes.

 

Rick não teve tempo de procurar Carolyn, mas tomou nota do local onde ficavam situados os seus alojamentos. Claro, pouco vagar havia agora para demonstrações de ternura e muito menos para lhe manifestar toda a que a sua alma ambicionava. Ela estava no seu direito de dissimular quanto se referia à noite do black-out. Da mesma forma ele estava no direito de tentar impedir o seu desembarque.

 

O toque da corneta para o jantar encontrou-o enterrado até aos olhos em papelada, juntamente com Terry Adams; os dois limitaram-se a comer uma sanduíche que um criado da cantina lhes levou numa bandeja ao gabinete da enfermaria. Às oito horas, apareceu a ordenança do coronel com uma comunicação. Rick leu-a e afastou para o lado o trabalho:

 

- Não te apetece ir à porta ao lado escutar uma ou duas palavras? Toda a unidade, sem faltar ninguém, parece que está à nossa espera...

 

- Não há maneira de evitar isso?

 

Winter verificou que Terry funcionava de novo como uma máquina bem regulada. Pelo menos aplicava-se ao trabalho como um castor inspirado! Talvez mantendo o rapaz constantemente ocupado...

 

Rick atirou para cima da mesa o bilhete do coronel e ajudou a erguer o seu assistente tocando-lhe no cotovelo.

 

- Ordens superiores, rapaz. Abotoa a blusa e vem daí.

 

A sala estava cheia, a deitar por fora, de oficiais e enfermeiras. Ao fundo sentavam-se Amos e Strang, em frente duma mesa coberta de mapas, e um terceiro oficial que Rick não reconheceu imediatamente. Alguns soldados colocavam um quadro negro encostado à parede. O coração de Rick parou por uns instantes de bater quando o oficial desconhecido se voltou: aquele rosto magro de guarda-livros pertencia ao capitão Hillary Somers, do Intelligence Service. Somers estava no navio apenas há uma hora, silencioso como uma sombra, mas toda a unidade sabia da sua presença e da sua missão.

 

Amos lançou um olhar por cima das cabeças reunidas do seu rebanho:

 

- Venha sentar-se cá à frente, Rick. Posso ter necessidade de si. - Depois, voltando-se para o inglês: - Desculpe-me a sem-cerimónia, capitão. Tem a palavra.

 

Somers ergueu-se, tossiu ligeiramente, pegou num bocado de giz e começou a desenhar um mapa no quadro negro. Para um homem tímido e reservado, desenhava com traços bastante vigorosos e decididos, e mesmo a mais ignorante das enfermeiras podia perceber o esboço duma costa e dum porto. Rick seguia-lhe os movimentos com a maior atenção, inclinando-se para a frente na cadeira. Reconhecia aquele quebra-mar, por detrás do qual se comprimiam as docas. Não havia engano possível, navegavam com rumo a Argel.

 

Somers atirou o giz para o lado. E quando se dirigiu aos assistentes, tinha todo o ar dum professor de geometria a expor um problema aos alunos duma classe superior, o ar ao mesmo tempo desconfiado e um pouco cínico de quem espera que a classe lhe atire bolas de papel mastigado antes do toque da sineta.

 

- Oficiais e enfermeiras, devo dizer-lhes em primeiro lugar que vos é conferida uma grande honra, a de fazerem parte da primeira expedição americana que vai enfrentar o exército alemão.

 

Fez uma pausa, verdadeiramente perturbado com os aplausos. O coronel deu uma palmada na mesa, chamando os subordinados à ordem. O oficial do Intelligence Service bebeu um copo de água, para se recompor, e prosseguiu:

 

- Por infelicidade, não estamos em situação de atacar o Huno directamente. Em vez disso, temos de tomar as possessões franceses do Norte de África, antecipando-nos a uma acção semelhante do inimigo. Para assegurar o êxito desta empresa, preparamo-nos para atacar simultaneamente em vários pontos e atacar forte. Entre esses pontos, figuram Casabranca, Orão e Argel. É Argel que acabo de desenhar neste quadro. - Pegou num ponteiro e com ele contornou o desenho: perdera já todo o ar dum professor de geometria. Adquirira mesmo um novo timbre de voz: - O Comando aliado está disposto a apoderar-se destes objectivos a todo o custo. Portanto, cada um de nós deve estar preparado para ir até ao fim. Cada unidade deve funcionar como uma equipa, como um elemento da grande estratégia de conjunto. Senão, tudo pode desmoronar-se. O objectivo indicado para o

95.° Hospital de Campanha é o de assegurar o apoio médico e cirúrgico durante o ataque a Argel. Devo avisá-los, insistindo neste ponto, que desembarcamos numa costa hostil. Não sabemos se as forças francesas se opõem ou não ao nosso desembarque e, em caso afirmativo, com que ardor nos resistirão. Mas é fora de dúvida que teremos baixas. Mais pesadas talvez do que supomos. É possível até que sejam forçados a agir na praia debaixo do fogo!

- Voltado para o auditório, Somers baloiçava levemente o ponteiro na mão. - E se vos peço que encarem essa perspectiva com calma, é justo e legítimo que vos exponha as linhas gerais do nosso plano de batalha.

 

E, dizendo isto, voltou-se novamente para o quadro e lançou-se ao trabalho com fervor. Era simples e perfeitamente claro. Mais uma vez forçou, mesmo a mais jovem das enfermeiras, a considerar-se parte responsável da expedição, ajudando-a a compreender que aquela ofensiva era apenas o princípio duma importante campanha. Os barcos, dizia o capitão, alinhariam em formação de combate, a coberto do escuro da noite. Enquanto as unidades navais varressem a costa com nutrido fogo de barragem, os destacamentos de desembarque atingiriam a praia. Estabeleciam imediatamente cabeças de ponte, a oriente e a ocidente da cidade, e uma vez conquistados esses pontos tinham de ser mantidos a todo o custo, até que o exército pudesse desembarcar em vagas compactas para assegurar as posições. Então os dois braços da tenaz, em ofensiva simultânea, fechariam a cidade por oriente e ocidente, neutralizariam os aeródromos, reduziriam ao silêncio as baterias defensivas. E quando todo este plano estivesse executado, a capitulação de Argel seria um facto.

 

Assim enunciado pelo capitão Somers, o ataque parecia de realização extremamente fácil. Rick deitou um olhar furtivo para os rostos atentos que o rodeavam. Sabia que cada um dos oficiais presentes punha a si próprio a mesma pergunta: se a ocupação das cidades-chaves da África era assim tão fácil, porque tinham esperado tanto tempo para as conquistar?

 

- Não preciso de vos lembrar - prosseguiu Somers - que vão penetrar mais profundamente na zona do Mediterrâneo do que qualquer das outras forças envolvidas neste ataque. Indubitavelmente, os perigos a que se expõem serão maiores. Há que contar com surpresas desagradáveis, de terra, do mar e dos ares. Mas por outro lado hão-de ter ocasião de verificar que as duas maiores armadas do mundo estão preparadas para fazer frente a essas surpresas, qualquer que seja a sua natureza. - Fez nova pausa para beber outro copo de água e envolver toda a assembleia num olhar. - Posso arriscar uma suposição? Presumo que a maior parte dos senhores procurou recordar, esta manhã, a geografia há anos aprendida. Não devem esquecer-se que o eventual objectivo desta ofensiva é a Tunísia e que as ilhas italianas se lhe seguirão na ordem cronológica. Do seu canto, Bill Coffin perguntou:

 

- Porque não se toma como objectivo imediato Tunes e Bizerta?

 

O capitão Somers olhou em redor. Agora que já transmitira as suas informações, refugiava-se de novo na sua calculada obscuridade. O ponteiro na sua mão era apenas um simples instrumento indicador, não a espada de Excalibur1.

 

- O capitão Winter quererá responder a esta pergunta?

 

- Receio que Bill Coffin se divirta a fazer perguntas de algibeira. Se alguma coisa esta guerra provou, foi que é preciso possuir a terra para dominar o ar e vice-versa. Se esta frota entrasse no Triângulo Siciliano, Jerry saltar-nos-ia em cima com todos os seus recursos. Mas se pudermos ocupar a Argélia com bastante rapidez, obtendo bases para a nossa aviação, antes do inimigo ter tempo de respirar...

 

Bill, obstinado, insistiu:

 

- Somos um hospital de campanha. Por que razão desembarca um hospital de campanha na Argélia, em vez dum posto de socorros?

 

Somers ofereceu ao auditório o seu sorriso oblíquo:

 

- Pergunta lógica. Gostaria de poder responder logicamente. Por agora, apenas lhe posso repetir o que já disse: não veja nesta acção senão o prelúdio duma verdadeira ofensiva contra o Huno, no seu próprio terreno. Exteriorizo, no entanto, a esperança de os ver a todos participar em breve na formação duma coluna volante que atacará em direcção à Tunísia, e atacará vitoriosamente. E acrescento ainda que espero encontrá-los na ceia de Natal, talvez em Palermo.

 

Saiu sob os aplausos da assistência, mensageiro activo, já a caminho doutras missões.

 

À saída da sala onde se realizara a conferência, Rick procurou em vão Carolyn no meio daquela onda apressada.

 

Avistara-a de longe momentos antes no grupo das enfermeiras vestidas de branco que escutavam atentamente a eloquência do capitão Somers. Agora, não a vendo no corredor repleto, experi-

 

A famosa espada do lendário Rei Artur.

 

mentava a vaga e desagradável impressão de que ela o evitava propositadamente.

 

Sentiu a mão de alguém no braço. O major Strang dizia-lhe:

 

- Pode dispensar-me um momento, capitão?

 

- Trabalho ou receio, major?

 

- Trabalho, infelizmente.

 

O chefe tomou-lhe a dianteira, abrindo o caminho até ao seu camarote, e fechou a porta quando ambos entraram. Rick notou que apesar do transporte ir a trasbordar, aquelas acomodações eram bastante amplas e confortáveis. Havia mesmo a um canto, entre o beliche e a vigia, uma poltrona estofada. Strang instalou-se nela, dirigindo a Rick um leve sorriso de desculpa. Colocou depois sobre os joelhos uma escrivaninha portátil e disse:

 

- Pode sentar-se no beliche, capitão. Está disposto a examinar comigo alguns pormenores da acção? Vai haver, evidentemente, uma reunião do estado-maior, quando navegarmos no alto mar, mas suponho que o senhor e eu... - A sua voz arrastava-se, e com a ponta dum lápis ia percorrendo uma lista que tinha na sua frente. - Vejamos, em primeiro lugar, o material operatório. Julgo inútil perguntar-lhe se estará imediatamente disponível.

 

Mal instalado na beira do beliche, Rick tinha a impressão de ouvir um zumbido monótono. Como sempre, agitava-o o vivo desejo de sacudir aquela fatuidade satisfeita, de deitar por terra aquela bela armadura blindada. Mas nessa noite Strang parecia bem-disposto e não seria fácil irritá-lo. «E, no fim de contas, talvez eu o tenha julgado mal», pensou Winter. «Agora que a acção está para breve é possível que ele abandone essa atitude farisaica, esse ar de eu-valho-mais-do-que-tu!»

 

Quase sem querer, exprimiu a sua esperança em voz alta, quando Strang fez uma pausa para tomar fôlego:

 

- Satisfeito por irmos fazer enfim alguma coisa?

 

- Foi precisamente por isso que eu lhe pedi para vir aqui. Gostaria imenso de poder estar junto de vocês no momento de agir!

 

Rick abanou a cabeça com convicção. Claro! Era de esperar aquilo mesmo. O chefe dirigiria as operações de longe, do transporte, enviando o pessoal cirúrgico para terra à medida que fosse preciso.

 

- Os meus sentimentos, major! Esqueci-me de que a sua presença era absolutamente indispensável a bordo.

 

Strang continuou, como se achasse muito natural o cumprimento de duplo sentido:

 

- Será desanimador ficar ao largo, a roer as unhas, enquanto vocês, os jovens, andam a cheirar a pólvora. De qualquer forma, devemos prever o pior. Isto é, um ataque directo sob o bombardeamento aéreo e o fogo das baterias. Já passou por isso em Espanha e em França, não é verdade? O senhor conhece o nosso pessoal. Partilha a minha confiança na sua qualidade?

 

- É o que há de melhor.

 

- Sem excepção? Faço-lhe a pergunta confidencialmente. Rick pensou em Terry Adams. Talvez uma palavra sua nesse instante o salvasse do futuro inferno. Mas repeliu a tentação.

 

- Temos um grupo verdadeiramente admirável, major. Não me importava de marchar amanhã, fosse com quem fosse, debaixo do fogo do inimigo.

 

Strang esboçou um leve sorriso.

 

- É talvez o que terá de fazer, Winter. - Folheou rapidamente os papéis e estendeu-lhe uma lista por cima da escrivaninha. - Como vê, inscrevi-o como chefe do nosso grupo de desembarque. Isto é evidentemente apenas um projecto. - Uma vez mais o seu lápis ficou suspenso. - Estão aqui os grupos cirúrgicos, incluindo as enfermeiras, que são voluntárias. A tenente Rycroft figura no seu...

 

- Porquê a tenente Rycroft?

 

- Foi a primeira enfermeira a inscrever-se. A sua folha de serviços é igual à das melhores da unidade. Tem alguma objecção pessoal a fazer?

 

Strang esperava, com o lápis amarelo a dançar entre os dedos médios. Os seus óculos octogonais adquiriam uma espécie de brilho místico. «Deus do Céu! Isto não é possível!», pensou Rick. «Ei-lo a representar de todo-poderoso, e muito ufano. Dar-se-á o caso de ter adivinhado qualquer coisa entre mim e Carolyn?. .. Tenho de me render à evidência: a justiça esta noite está do seu lado. Mesmo que fosse o meu melhor amigo, não podia pedir-lhe que dispensasse Carolyn.»

 

Respondeu portanto simplesmente:

 

- À enfermeira Rycroft é uma auxiliar de primeira ordem. Fico satisfeito por tê-la junto de mim.

 

Mas Strang insistiu:

 

- Se pensa na sua segurança...

 

- Verdadeiramente, não podia deixar de pensar.

 

- Na segurança de todas as enfermeiras, Winter? Ou na de Miss Rycroft em particular?

 

- Não atinjo bem o que quer dizer.

 

- Concorda, decerto, que ela deve correr todos os riscos, como qualquer de nós?

 

- Evidentemente que sim. Deseja fazer-me mais alguma pergunta?

 

- Apenas uma, mas bastante pessoal. O senhor e essa jovem estão apaixonados um pelo outro?

 

- Acha que essa pergunta merece resposta, major?

 

- Bem entendido se... se essa afeição influir no seu julgamento .

 

Por trás da escrivaninha, o anafado cirurgião-chefe sorria beatificamente como um ídolo. Balouçando-se na ponta dos pés, Rick ponderou por momentos as vantagens e inconvenientes dum sopapo bem dado naquela boca complacente. Imaginou os papéis a esvoaçar e Strang a erguer-se, vacilante, justamente a tempo de evitar novo tabefe. Um soco da esquerda no plexo solar e outro da direita para o arrumar de vez... A satisfação desse breve momento podia pagá-lo depois num Conselho de Guerra...

 

Contentou-se por isso em respirar fundo, para ganhar tempo, dizendo a seguir, numa voz branda:

 

- Perdão, major. Tem algum motivo para censurar o meu julgamento?

 

- Dir-lhe-ei isso mais tarde, Winter, dentro de poucos dias. Quando tiver em meu poder o relatório definitivo referente aos casos das queimaduras... Como sabe, os doentes ficaram hospitalizados em Gibraltar. - Juntou piedosamente os dedos, em forma de pirâmide: - Mas parece que a minha pergunta fica sem resposta.

 

- Ao contrário, major. Há algum tempo que amo Miss Rycroft. E tenciono desposá-la quando esta aventura terminar, se ela quiser, bem entendido. É tudo quanto deseja saber? Ou tem mais alguma pergunta a fazer-me?

 

Era um desafio directo e não dissimulado. De respiração suspensa mas perfeitamente calmo, Rick esperou que Strang medisse bem o alcance da frase. «Um minuto mais, e esmurro-o!», pensou Rick, decidido. O seu punho fechava-se no momento em que o chefe abriu a boca para responder:

 

- Creio que é tudo, capitão. Devo dizer-lhe que apreciei a sua franqueza...

 

No tombadilho, envolto em densa obscuridade, Rick encostou-se, sem forças, a um estai. Que impulso o forçara a anunciar como uma certeza - e principalmente a esse homem detestado - uma resolução apenas semiformulada no seu espírito? Teria sido muito mais simples esmurrar bem aquela boca trocista! Mas a psicologia tinha razão, como sempre. Muitas vezes confessamos sem custo a um inimigo aquilo que não ousaríamos confidenciar a um amigo, nem mesmo a nós próprios.

 

Sabia agora que uma necessidade interior, mais forte do que a sua vontade, o forçara a comprometer o futuro, a traçar um pequeno domínio de certeza no imenso isolamento que o submergia desde a noite do black-out.

 

As máquinas do navio começavam a estremecer ligeiramente debaixo dos seus pés, mas ele nem sequer se mexeu. Como um sonho, viu flutuar à proa, contra o fundo do céu estrelado, a sombra maciça dum porta-aviões. Emergiu por fim das suas cogitações e notou que toda a esquadra se pusera silenciosamente em movimento, revolvendo a baía em uníssono, como se uma única mão invisível fizesse girar uma centena de hélices.

 

Sempre presente no local devido, quando as coisas tomavam novo aspecto, Linda Adams lá estava à proa do navio. Naquele instante, Carolyn é que devia encontrar-se junto dele. Carolyn decerto precisaria do seu conforto, agora que a solidez do rochedo se desvanecia no negrume da noite. No entanto, decidiu-se a ir ao encontro daquela jovem, que parecia não ter nenhuma necessidade de conforto, para travar com ela novo duelo. E ia pensando que Linda Adams se parecia um pouco consigo, lobo solitário errando a seu bel-prazer pelo mundo. Talvez que sentados à proa do barco, um ao lado do outro, pudessem os dois uivar às estrelas.

 

Passou um oficial e murmurou uma seca advertência a um par cujos cigarros iluminavam o escuro dum salva-vidas. À popa, transportes e torpedeiros organizavam-se já nos seus escalões habituais. Rick, encostado à amurada, ficou por momentos a contemplar as miríades de esteiras em forma de V que riscavam as águas sombrias do porto com reflexos fosforescentes. Recordou a sua primeira partida de Gibraltar com igual destino. Mesmo tomando em conta a lenta marcha do comboio, atingiram o objectivo o mais tardar na manhã de domingo.

 

Encolheu os ombros, recusando-se a pensar no assunto e caminhou para junto de Linda Adams. Mas quando descia a escada, o transporte, ao entrar na corrente do estreito, ergueu a proa para as estrelas, mergulhando logo em seguida. Linda teve de estender um braço para o amparar:

 

- Cuidado, Rick, este lugar é reservado aos bons marinheiros.

 

- Tenho o ar dum tipo enjoado? - Mesmo à fraca claridade das estrelas, verificou que o rosto da jovem estava transtornado e acrescentou: - Naturalmente, vim importuná-la...

 

- Pelo contrário! Estou contente de o ver aqui. Esta manhã disse-me que ajudaria Terry se pudesse: agora tem de cumprir a sua palavra. - Rick ouviu-a respirar fundo. - Há cinco minutos desci... ao seu gabinete. Queria ver como ele vencera as dificuldades do dia... Encontrei-o espernegado entre duas poltronas, roncando como um magala, completamente bêbedo e com uma garrafa vazia junto dele... - Linda fazia um esforço considerável para falar calmamente. - E vim para aqui apanhar o fresco e reflectir. Como podemos transportá-lo para o camarote?

 

Rick rememorou rapidamente os acontecimentos. Deixara Terry, depois da conferência, morto de fadiga mas perfeitamente lúcido. Lembrou-se então da garrafa de conhaque que tinham encetado para celebrar o fim da fastidiosa tarefa.

 

- Pense bem, Linda. Nunca se sentiu tão cansada que não fosse capaz de dormir sem beber qualquer coisa?

 

- Não me parece que seja esse o caso. Mas pergunto a mim própria o que sucederá se alguém o encontra naquele estado? O coronel Elaine, por exemplo?

 

- Amos? Naturalmente levava dali o garoto e metia-o na cama com as próprias mãos. Não tenho dúvidas a esse respeito.

 

- E Strang?

 

- Sobre esse não digo nada. Quer ficar aqui sossegada, enquanto vou ver o que se passa?

 

Ao voltar, Linda esperava-o, ainda no mesmo sítio.

 

- Algum bom Samaritano descobriu-o primeiro. Já estava em segurança no seu camarote quando o encontrei. Roncando sempre, mas inofensivo. - Calou-se, analisou ajovem atentamente, depois concluiu: - Não há nenhum mal nisso. Ou será pedir demasiado a uma irmã um pouco de compreensão?

 

Linda bateu na amurada com o punho fechado, de olhar fixo em frente, na escuridão opaca:

 

- Temos de o ajudar nesta emergência, Rick.

 

- Deixei agora mesmo Strang. Terry está inscrito na lista duma barcaça de desembarque. Se me opusesse à sua inclusão, era natural que o deixassem em Gibraltar. Teria usado o lápis azul no meu lugar?

 

Linda não abandonou a sua contemplação quase hipnótica do mar:

 

- Provavelmente não... Suponho que continuaria a esperar que ele se portasse à altura das circunstâncias... - De súbito, deixou resvalar o corpo na amurada e sentou-se no chão, a coberto das ameaças exteriores: - Oiça-me, Rick, não quero acreditar de maneira nenhuma que Terry seja cobarde. Ou será verdade que todos os cobardes são apenas vítimas dos seus nervos?

 

- Dava talvez uma boa médica - respondeu Rick, já sentado naturalmente ao seu lado.

 

Quase lhe parecia confortável aquele estreito e obscuro santuário à proa do navio. O rumor do talha-mar impregnava esse minuto duma estranha nostalgia. Sem razão aparente, lembrou-se da sua primeira experiência na montanha-russa, em Coney Island, ao luar de Brooklyn. Havia uma jovem ao seu lado, evidentemente. Uma estagiária no hospital onde trabalhava. Quando a vagoneta mergulhou na primeira descida, passara-lhe um braço em redor da cintura, mais pelo medo do que por amor. Mas ocorreu-lhe de repente que Linda não pertencia ao número das jovens que precisam de conforto.

 

- Pode ser uma forma de distonia neurovegetativa.

 

- Isso parece qualquer coisa bastante respeitável.

 

- É tão respeitável como a vertigem, mas menos frequente. Teve alguma vez a ideia de tomar o pulso de Terry num desses... desses ataques?

 

- Lembro-me bem... Éramos ainda crianças... Um grande cão dinamarquês saltou uma sebe e foi ao seu encontro... Terry correu para mim, aos gritos... Tomei-lhe a cabeça entre as mãos e as suas têmporas latejavam duma forma absolutamente louca. Não podia mesmo contar-lhe as pulsações.

 

- Isso podia ser um sintoma.

 

- Há algum remédio?

 

- Esse tipo de distonia é muito difícil de localizar.

 

Podia tranquilizá-la com generalidades. Mas, sem saber porquê, sentia a necessidade imperiosa de ser franco naquela noite.

 

- O tempo de guerra produz milhares de casos semelhantes, eis tudo. Traz à superfície deficiências que normalmente não se manifestariam.

 

- Espero que seja esse o caso de Terry.

 

- O mal é profundo. O sistema nervoso vegetative comanda todas as funções vitais do corpo: pulsações, pressão sanguínea e assim por diante. O choque atira tudo isso ao ar tão naturalmente como um curto-circuito num dínamo. A partir de então, receio bem que não possamos fazer nada, a não ser que se consiga suprimir a causa.

 

- Isso significa que tais homens não prestam para a guerra? Rick não procurou poupá-la:

 

- Em geral, começam por ficar abatidos um dia ou dois antes de entrarem em acção. O importante, é claro, é separar as cabras dos carneiros, aqueles que perdem realmente o domínio dos nervos daqueles que fingem dominá-los para evitar o pior.

 

- Classifica Terry no número dos carneiros? Acredita que ele é capaz de fingir dominá-los?

 

- Sabe perfeitamente bem que não acredito nem deixo de acreditar. Aliás, parece-me que nenhum conselho de revisão aceitaria partilhar a minha crença. Duvido mesmo que conseguisse convencer Strang esta noite.

 

- O que sucederá se ele se comportar assim?

 

- É difícil de dizer. A maior parte dos asténicos estão a tal ponto preocupados consigo próprios que tomam o caminho dos hipocondríacos. O exército classifica-os então como psiconeuróticos. Os mais graves são abatidos ao efectivo, os outros são atirados para os serviços auxiliares. - Nisto, ergueu violentamente as mãos: - Para que me quer obrigar a falar mais nesse assunto? Com certeza procurou e encontrou há muito tempo o caso do seu irmão nos livros.

 

Linda respondeu numa voz amável:

 

- Acredite-me ou não, sempre pensei que Terry fosse pura e simplesmente um cobarde. Porque não lhe diz o que acabou agora de me contar?

 

- Terry sabe bastante de medicina para estabelecer o seu próprio diagnóstico.

 

- Não há realmente cura?

 

- Depende dele. Ou o seu mal é insuportável ou o pode dominar. No primeiro caso, será dado como inválido e mandam-no para casa. No segundo, acabará por vencer os nervos, tal como um homem que sofre de vertigens aceita escalar montanhas, como outro que sofre de agorafobia se treina a passear nas praças mais amplas que conhece, ou ainda como um que tenha um terror mórbido às serpentes consegue entrar na jaula duma cobra e desafiá-la, de olhos nos olhos. - Ergueu-se e com o mesmo movimento levantou Linda. - Se ele conseguir dominar-se, muito bem, terá construído o seu próprio futuro quando a guerra findar.

 

- Então crê que vale a pena correr o risco?

 

- Temos outra alternativa?

 

- E admitindo que ele enlouqueça?

 

- Neste desembarque, levá-lo-ei na minha barcaça, e farei o que puder, olharei por ele até onde me for possível. Pode também embarcar connosco, se tem coragem para tanto.

 

Linda riu baixinho:

 

- Sem querer veio ao encontro dos meus desejos. Quando pedi autorização ao coronel, ele respondeu-me que a decisão dependia de si.

 

A proa do transporte mergulhou profundamente no Mediterrâneo e o súbito impulso aproximou mais Linda de Rick. Demasiado perto para não perturbar a calma de qualquer homem, com a morte à espreita em cada recanto da escuridão. Os lábios dum encontraram os do outro e retiveram-nos, num longo beijo.

 

- Não tem medo de nada, Linda?

 

- Fale por si, capitão - murmurou ela.

 

Uma vez mais deixou-a libertar-se do seu abraço e afastar-se do seu beijo. E quando a viu subir para a coberta superior, admirou a firmeza do seu passo, a nobreza da sua silhueta, a maneira de manter os ombros direitos e a cabeça erguida. Não se sentia desleal para Carolyn. No fim de contas, não era de esperar que um lobo mudasse de hábitos dum dia para o outro. Sobretudo se a jovem que ama insiste em continuar fechada lá em baixo, na sua primeira noite do Mediterrâneo, esse Mediterrâneo a que nem a própria guerra conseguia roubar a perturbadora magia.

 

Pelo menos, estava certo de ter animado um pouco Linda, embora ela não fosse pessoa que precisasse que lhe incutissem ânimo.

 

Mas talvez se a tivesse seguido até ao camarote ficasse surpreendido ao vê-la, de olhos muito brilhantes, procurar no corredor o caminho às apalpadelas, como uma mulher em transe...

 

Vagarosamente, como a maior parte das armadas, o comboio continuava a sua rota no meio da noite.

 

No seu camarote, contíguo ao do capitão, o coronel Amos Blaine, impaciente, soergueu-se, sentou-se, deu um safanão irritado no travesseiro. Haja doze minutos, contados pelo relógio de pulso, que estava deitado, rígido e imóvel, no seu beliche, de olhos fixos no brilho e nas sombras dos rebites do tecto. Todos os seus esforços tinham sido vãos. Estava tão acordado como um quarto de hora antes. Vestiu o roupão, procurando às apalpadelas as mangas e o cinto, e foi para o convés contar as estrelas. Mas as estrelas tinham-se escondido num manto frio de nevoeiro. Apenas podia distinguir a silhueta do vigia de bombordo, encafuado até aos olhos na sua camisola.

 

Voltou para o camarote, fechou suavemente a porta e deitou-se no beliche, na expectativa de mais uma noite de insónia. Não é que a insónia em si mesma fosse desagradável. Os pensamentos é que ele receava, os pensamentos que enchem essas horas solitárias, enquanto a própria terra treme num vazio imenso. As dúvidas que se agitam como vermes no espírito dum homem abandonado por todas as suas defesas.

 

Somers dissera-lhe, em particular, que o ataque estava previsto para domingo, ao romper da aurora, a não ser que o tempo os obrigasse a uma brusca mudança no último minuto. E Somers avisara toda a unidade que seria necessário entrar em acção imediatamente se as perdas fossem pesadas... Pôs-se então a rememorar as suas recordações de guerra. Conduzira já muitas vezes homens ao combate, em Cuba, nas costas da China, mas a maior parte deles eram soldados experientes. Nunca comandara uma unidade daquele género. As raparigas, por exemplo... O seu próprio uniforme branco, tão claro e limpo, parecia demasiado militar para a sua juventude. Pela primeira vez nesse próximo domingo ouviriam explodir granadas numa praia hostil. Como conseguiria dominar o pânico se este se declarasse nas suas fileiras?

 

Voltou-se, agitado, para o outro lado. Com certeza não se registaria nenhum pânico... Essas raparigas eram americanas, executariam a sua tarefa e cumpririam o seu dever como os seus irmãos de armas. Essa jovem Adams, por exemplo... Devia retê-la a bordo do transporte até que o perigo passasse. E, no entanto, autorizara-a a acompanhar as outras... Era uma jornalista, e tinha de ganhar e merecer o artigo que escreveria em primeira mão.

 

O travesseiro, sob a sua face, dir-se-ia uma massa quente de algodão; mas mesmo depois de o atirar para longe não se sentiu melhor. Essa noite, entre todas as noites, tinha de ir até ao fim da insónia... A despeito dos seus argumentos e de todas as protecçoes de que se servira para voltar ao serviço activo, seria demasiado velho para a guerra? Oh! Não sentia nenhum medo por si. A sua memória saltou um quarto de século e reconduziu-o ao Marne, a uma ambulância do batalhão. Reconduziu-o junto dum jovem capitão, trémulo e pálido, incapaz de segurar na mais simples ligadura.

 

Lembrou-se do sargento que, sem dizer nada, o arrastara para uma tenda, tirara de qualquer parte uma garrafa e com gesto autoritário lhe chegara o gargalo aos lábios... Esse gole de fogo salvara-o. Salvara-o do revés e da vergonha. Depois disso, saíra-se sempre de apuros sozinho, andara com os outros, debaixo dos mais variados tiros, sem parar para reflectir.

 

Assim, esse jovem Adams... Perguntou a si próprio o que Terry pensaria e diria no dia seguinte de manhã, se soubesse que o seu próprio coronel tropeçaria nele no gabinete, encontrando-o bêbedo como um lorde e a roncar como um dorminhoco? O que pensaria e diria o rapaz se pudesse sair do seu estado de embriaguez e visse o seu próprio coronel empurrá-lo e arrastá-lo no corredor deserto até à sua tarimba?

 

Pensou que Terry precisava de ser vigiado. Randall Strang também, se alguma vez tivesse de avançar até à linha de fogo, coisa evidentemente muito pouco provável. Mas a respeito de qualquer dos outros, apostaria o seu último dólar com toda a tranquilidade. Fá-lo-ia da mesma forma se não os tivesse sujeitado nos Estados Unidos, durante meses, a um treino intensivo.

 

A parte mais importante do seu trabalho realizara-a na pátria, quando os modelara com as suas mãos, ao sol ardente do Sul. Desde que tinham subido a escada do portaló do transporte que os conduzira a Inglaterra, deixaram verdadeiramente de precisar de si. E esse domingo iria provar que podiam vi ver e morrer sem ele. O que precisava, nessa noite, era de dormir.

 

Amos Elaine, uma vez mais, olhou com ar feroz para o mostrador do relógio, sentou-se no beliche e depois, resignado, estendeu a mão para um pequeno tubo colocado em cima da mesa-de-cabeceira e engoliu um dos comprimidos brancos que continha.

 

Fenobarbital, o amigo dos velhos...


Capítulo décimo quarto

 

Enquanto durou a luz do dia, o Mediterrâneo podia ser tudo o que se quisesse menos romântico. Há quarenta e oito horas que o comboio seguia o rumo de leste sob um céu de chumbo e um mar estriado de escuma branca pela violência do mistral. Agora que morria a pálida claridade, os oficiais da expedição calcorreavam as cobertas dum lado para o outro, ou então, nos camarotes atravancados, debruçavam-se para os mapas e pediam a Deus que não clareasse o tempo. Aquelas nuvens e as violentas rajadas de chuva tinham até aí formado uma cortina perfeita, e não se assinalara ainda a presença do inimigo nem mesmo um rolo de fumo suspeito no horizonte. Os homens das guarnições das baterias antiaéreas, amontoados nos seus postos de combate, como patos submersos, esquadrinhavam em vão o céu. Nos torpedeiros, de ouvido atento aos aparelhos de detecção, as tripulações esperavam as vibrações submarinas que não se produziam.

 

A África, naturalmente, ocupava o primeiro lugar em todos os espíritos. A África, presença tangível a estibordo, não menos real por ser impossível distinguir-lhe o perfil à luz do sol-poente. Olhando pela vigia da sala dos oficiais, Rick Winter ia jurar que avistava minaretes e palmeiras. Pura miragem, com certeza, originada pela tensão duma longa jornada: nada se divisava naquele momento, na imensidade do mar, a não ser a chuva fustigada pelo mistral.

 

Winter passeou algum tempo debaixo do aguaceiro. Que fazer, senão esperar ordens? O último livro de contabilidade do 95.° Hospital de Campanha estava fechado, a última folha de serviço devidamente classificada nas pastas de Terry Adams, até que os acontecimentos do dia seguinte lhe acrescentassem um pós-escrito. «Amanhã é o grande dia», dizia com júbilo íntimo. «Aproamos ao sul e entramos em Argel.»

 

O jantar fora anunciado há mais de meia hora, mas havia pouco apetite nessa noite. Todos os componentes da unidade, em qualquer sítio que estivessem no bojo daquele transporte, arrumavam a bagagem, apertavam as correias, fechavam à chave lembranças queridas, ou escreviam, de cenho carregado, cartas à família, encerrados nos seus camarotes. Num momento como aquele, era uma espécie de calmante arrumar o conteúdo duma mala. Ou então escrever, com uma alegria forçada, a última mensagem à tia Marjorie, em Duluth... Rick passara por tudo isso no cargueiro que o conduzira a Espanha. Mas hoje sabia que o ar puro do alto mar era melhor antídoto do que a tia Marjorie... As suas próprias tias, em Chicago, contentar-se-iam em saber pela imprensa diária os seus eventuais feitos de heroísmo ou a sua morte. A única pessoa no mundo que desejaria ver ia a bordo e em todo esse dia fizera o possível para o evitar.

 

Reflectiu nisso um momento, depois voltou apressadamente ao gabinete onde, com Terry, suara as estopinhas desde manhã. O local estava agora vazio e tão arrumado como a gaveta da secretária duma velha solteirona. Rick sentou-se à escrivaninha e tocou a campainha. Trinta segundos mais tarde, uma ordenança, na posição de sentido, enquadrava-se no vão da porta.

 

- Procure a tenente Rycroft, no dormitório das enfermeiras, e diga-lhe que venha aqui sem demora. Despache-se que é urgente.

 

Como era possível não se ter lembrado mais cedo dum estratagema tão simples? E também porque esperara até à última noite para se decidir a falar-lhe? Continuava admirado da sua própria estupidez quando Carolyn entrou no gabinete. Calmamente, como sempre, com o clarão dourado dos cabelos a espreitar por debaixo do gracioso boné que usava.

 

Rick não se moveu:

 

- Queira fechar a porta, por favor, tenente Rycroft. - Ela obedeceu sem pestanejar. - E diga-me porque tem feito tudo nestes dias para me evitar?

 

- Mas não fiz nada...

 

Esta forma de se desculpar não era própria de Carolyn. Rick deu uma palmada tão forte na mesa que a jovem recuou um passo.

 

- Olhe bem para mim, Carolyn. Sei perfeitamente porque procura evitar-me.

 

Ela atirou para o lado a capa com violência igual à do capitão, e fez-lhe frente resolutamente, vibrante silhueta em uniforme branco.

 

- Tem razão, Rick. Não o nego. Mantive-me afastada desde Gibraltar e sabe bem porquê. Desembarco com o nosso grupo. Não conseguirá mover influências bastantes para o impedir. Pouco importa que... que nos amemos...

 

Mas a sua virulência desapareceu por completo quando Rick se aproximou. Com um pequeno grito abafado, voou imediatamente para os braços que se lhe abriam. Mais um segundo, e chorava, confortavelmente apoiada ao seu ombro, da forma mais feminina do mundo. Outro segundo ainda e oferecia-lhe os lábios.

 

- Se soubesse...

 

- Se soubesse o quê, querida?

 

- Há quanto tempo espero este instante.

 

Rick tornou a beijá-la. Mais perfeitamente do que a primeira vez, de maneira a compensá-la da longa espera.

 

- Podemos agora falar um pouco? Somente um pouco...

 

- Mas está decidido, Rick. Desembarcaremos juntos, não há mais nada a dizer.

 

- Não pensemos agora no desembarque. Discuti o caso com a minha consciência e está arrumado. - Resolutamente, ele pôs a escrivaninha entre os dois. - Esta é a sua guerra também, suponho eu. Aconselho-a a bater-se numa frente de cada vêz.

 

- Agora parece-me que não o compreendo...

 

Mas o estremecimento da sua voz denunciava que compreendia perfeitamente.

 

- Sabe bem que a amo, Carolyn. Quer ouvir-me repeti-lo?

 

- Se isso não o aborrece demasiado.

 

Desta vez foi ela que se dirigiu atrevidamente ao seu encontro, contornando a secretária para lhe oferecer os lábios e foi ele que com os braços a manteve à distância, lutando com quantas forças tinha por dominar as suas emoções. Nunca fizera antes aquela pergunta a nenhuma jovem, e era a pergunta mais difícil de todo o vocabulário masculino.

 

- Quando quer casar comigo, Carolyn?

 

Ela agarrou-se bruscamente a ele. Através da espessura dos dois uniformes, Rick sentia-lhe palpitar o coração.

 

- Mas... Rick... eu não imaginava que...

 

- Podemos ao menos pôr-nos de acordo sobre este assunto?

 

Winter verificou, com certo júbilo sardónico, que Carolyn recuperara já o equilíbrio. No fim de contas, pensou, esse é o grande momento duma mulher! E ela só tinha de se apoiar na sabedoria popular para se mostrar à altura das circunstâncias. Continuou, com um sorriso:

 

- Tudo ou nada, não é verdade? Foi isso que pediu, querida. Pois é isso que lhe ofereço.

 

- Mas... Rick... como podemos?...

 

- Não podemos, evidentemente. Quero dizer, não podemos casar neste momento. Temos de vencer primeiro a guerra. Ou, pelo menos, parte da guerra, custe o que custar. - Calou-se outra vez, para respirar fundo, como se fosse lançar-se à água. - Sei bem que a altura é mal escolhida para propor seja o que for a uma jovem, incluindo o casamento. Mas é talvez a minha última oportunidade, durante algum tempo, de lhe dizer... bem, de lhe dizer qualquer coisa de pessoal. - Tomou-lhe as duas mãos e apertou-lhas muito. - Para o diabo todo esse jogo das escondidas, Carolyn. Quer tomar boa nota da minha oferta, para consideração futura?

 

- Tenho de responder agora?

 

- Não, se não quiser- volveu Rick rapidamente. - Não me julgo no direito de lhe pedir um compromisso imediato.

 

Hesitou, de olhos fixos nos dela, sem ter bem a certeza de desejar ouvi-la infringir o seu veto.

 

- Quero unicamente afirmar-lhe um simples facto. De ora em diante, faz parte de mim próprio. Aliás, já fazia, desde a última noite passada na Inglaterra.

 

- Talvez eu possa dizer o mesmo, Rick.

 

Carolyn erguera altivamente a cabeça. Ele prosseguiu:

 

- Temos de ser um do outro. Para lhe dizer a verdade, nunca pensei casar. Mas sei que é isso o que deseja e desejo-a bastante para a querer com as suas condições.

 

Sabia que devia dizer-lhe muito mais, mas deixou o resto perder-se num longo beijo. Sabia que devia prometer-lhe coisas que as mulheres sonham na sua solidão. Uma quinta no fundo das encostas de Connecticut. Valiosos candelabros sobre uma mesa antiga assinada por um reputado ebanista. Um serviço de uísque numa bandeja, da época georgiana, para receber os hóspedes de Nova Iorque que fossem lá passar o fim-de-semana. Uma casa de velho lobo do mar em Nantuckect, para passar as férias do Verão, onde nada faltasse, galeria envidraçada, óculo de ver ao longe, uma barraca na praia. Nessa noite, sim, podia ter-lhe falado de todas essas coisas com o coração a transbordar de amor. Da vida que construiriam um dia ambos, quando um ao outro se unissem.

 

Mas como evocar uma felicidade futura com a África por horizonte? Tudo quando pôde dizer foi:

 

- Naturalmente serei o pior dos maridos. Mesmo sem os meus hábitos...

 

- Talvez corra o risco, quem sabe?

 

- Excelente ideia, querida. Lembre-se apenas de que a oferta está feita. Mas guarde os projectos na classe dos «talvez» e dos «quem sabe?» até que Amos nos apresente a Marte, com todas as consequências que isso comporta.

 

- Lembrar-me-ei, Rick - disse Carolyn, inclinando-se para ele com olhos húmidos. - Mas recompôs-se depressa e saudou-o militarmente: - Mais alguma ordem, capitão?

 

Rick seguiu-lhe o exemplo e respondeu no mesmo tom:

 

- Não, tenente, é tudo. Aconselho-a a deitar-se o mais cedo possível esta noite. É muito provável que tenha de acordar de madrugada.

 

Mas não prosseguiu, pois ela oferecia-lhe os lábios para um beijo:

 

- Obrigada por isto também - murmurou Carolyn.

 

Ia voltar-se para sair, mas Rick reteve-a ainda um momento junto de si. Pousou-lhe a mão no ombro e com os dedos da outra acariciou-lhe os cabelos de ouro. Poderia fazer renascer o instante que selara os seus dois destinos? Pelo menos poderia repetir os versos de Browning que tinham sublinhado a sua ardente entrega na noite do black-out:

 

Adivinha agora quem te prende? - A morte, repliquei Mas então ressoou a resposta eloquente... Não é a Morte, é o Amor.

 

É verdade, podia repetir esses versos, a boca colada ao seu ouvido. Podia obrigá-la a terminar o último, tal como o fizera na noite inolvidável. Obrigá-la enfim a admitir que se tinham possuído completamente um ao outro nessa última noite da Inglaterra. Mas uma vez mais o seu instinto lhe ordenou silêncio. Não, não era aquele o lugar nem o momento para ressuscitar o êxtase. Além disso, continuava a reconhecer-lhe o direito de escolher a hora e o local mais apropriados para semelhante confissão.

 

Beijou-a ternamente atrás da orelha.

 

- Pode sair agora, tenente. Queria simplesmente acrescentar isto. Para lhe lembrar...

 

Ao chegar à porta, Carolyn voltou-se para lhe enviar um beijo na ponta dos dedos. Apoiado à secretária, Rick viu-a partir, perguntando a si próprio como podia sentir-se tão tranquilo depois de dar o grande mergulho.

 

Até então sempre pensara no casamento como se pensa na prisão. Um sistema inventado para satisfazer legitimamente e legalmente o mais antigo desejo humano. O arrebatamento com-

primido num molde sintético e embotado pelo hábito. Nesse momento, não sentia nenhum ardor. Nenhuma pena também. Por muito incrível que pudesse parecer, sentia apenas alívio... um alívio semelhante ao que sente um homem mergulhado num banho quente depois dum dia de trabalho extenuante. Como todas as satisfações de qualidade, aquela, tinha de admiti-lo, era um pouco aborrecida.

 

Encarou de frente esta realidade, pensativamente, depois voltou-se com um ligeiro sorriso e pela última vez antes do desembarque pôs a secretária em ordem.

 

O seu futuro também estava agora em ordem. Pela primeira vez arrumado, regulado, definido...

 

E sentiu-se à altura fosse do que fosse, incluindo a guerra.

 

Ao caminhar vagarosamente pelo corredor, Rick ouviu, no camarote de Terry Adams, uma máquina de escrever a trabalhar fora de horas. Parou e bateu, desejoso de partilhar com alguém a sua tranquilidade recém-adquirida.

 

Mas, mal abriu a porta, estacou de repente. Era Linda quem escrevia. O irmão, sentado na beira do beliche, um cigarro apagado entre os lábios, esboçou um gesto de desespero fraternal e disse, apontando para Linda:

 

- Chega mesmo a tempo de interromper um inquérito. Quer creia quer não, Linda redigia as suas últimas vontades e o testamento .

 

Sem levantar os olhos do teclado, a jovem protestou:

 

- Não acredite, Rick. O meu testamento já está redigido desde a Primavera. Antes de partir para a Europa, tomei as necessárias disposições, legando tudo quanto possuo a Terry e a sua esposa. Isto é apenas uma carta para o meu notário, em Nova Iorque, a indicar-lhe quando deve proceder à abertura do documento. Bateu na tecla dos espaços e acrescentou com um sorriso:

- Entre, entre. Na verdade, esta conferência deve ser pública.

 

Rick entrou, inclinou-se para Terry, aproximou um fósforo do seu cigarro apagado e depois observou:

 

- Deve saber isto melhor do que eu, Linda, mas parece-lhe de boa psicologia?

 

- E porque não? Não posso ficar a discutir Alice no País das Maravilhas, para passar o tempo, como os dois heróis do Journey’s End. Isso está muito bem para os britânicos e não discuto o valor do método. É uma questão de temperamento. Nós, americanos, somos pragmatistas. Sentimo-nos sempre muito mais à vontade quando limpamos o nosso revólver ou quando redigimos o nosso testamento.

 

Rick viu-a continuar a matraquear nas teclas. «Talvez ela tenha razão», pensou. «Talvez esse mesmo impulso me levasse há pouco a amarrar o futuro numa reluzente fita vermelha com um nó corredio!» Em voz alta, no entanto, disse por entre o ruído do teclar:

 

- Se pensa que a deixo expor-se aos perigos do desembarque...

 

- Perdão! Não queira voltar agora com a sua palavra atrás.

 

- Combinado. Mas encarrego Terry de se sentar em cima da sua cabeça se for preciso, até que a nossa lancha chegue à praia.

 

- Parece-me que tanto um como o outro hão-de estar demasiado ocupados para se lembrarem que eu vou a bordo.

 

Aproveitando um segundo de distracção de Terry, trocaram os dois um olhar de inteligência. «Compreendeu?», disse-lhe Winter mudamente. «Obrigue-o a preocupar-se com a sua segurança, para não lhe dar tempo a preocupar-se consigo próprio. Talvez isso dê resultado.» E dando um piparote no queixo do jovem, perguntou:

 

- Em que pensas, meu rapaz? Achas que sou um idiota em consentir no desembarque desta dama jornalista?

 

- O senhor é verdadeiramente um homem, Rick, mas não pode fazer milagres. Seria preciso Houdini e mais uma camisa de forças para conservar amanhã a minha irmã a bordo deste barco.

 

Linda fechou a tampa da máquina:

 

- E agora que resumiste assim a situação, meu querido irmão, se não te importas vamos jantar os três e fingir que temos fome.

 

Saíram para o corredor, de súbito a abarrotar de gente que seguia na mesma direcção. Aparentemente, toda a unidade decidira ao mesmo tempo que a melhor forma de fazer descer a bola que cada um sentia na garganta era comer e engolir qualquer coisa. A mesa dos cirurgiões já estava bastante povoada quando Rick nela se sentou. Linda encaminhou-se para a mesa das enfermeiras. Carolyn não estava lá: como noiva obediente, decerto seguira o conselho e fora deitar-se cedo.

 

Ao lado de Rick, Bill Coffin resmungou:

 

- Não podias arranjar as coisas para eu ir também, em vez de ficar aqui com Randall Strang?!

 

- Quando começa a corrida de canoas? - perguntou Manners.

 

Hal Davis, por sua vez, gritou:

 

- Com quem vou eu? Contigo ou com a infantaria?

 

- Um de cada vez, meus amigos! - disse Winter, numa voz lenta e com o seu melhor acento do Sul. Agora tinha de se mostrar tão natural como se se tratasse dum piquenique de escuteiros.

 

- Acreditem, não sei de nada, e não lhes posso responder. A telegrafia secreta anuncia que atacamos amanhã. Mas a telegrafia secreta está sujeita a um curto-circuito como qualquer outra. Quem sabe se não vamos mudar de rumo e continuar até ao Cairo?

 

Mas Bill insistiu na sua ideia, interrompendo sombriamente o discurso do amigo:

 

- Estão a distribuir cartucheiras suplementares nas entrecobertas, meu velho, e os homens do batalhão de infantaria dormem todos com o equipamento completo esta noite. Por isso, repito-te, podias levar-me contigo...

 

- Para arriscar a pele dum dos melhores cirurgiões do cérebro dos Estados Unidos? Estás a gracejar, Bill. Não sejas criança, e olha pelos rapazes que ficam contigo. Acredita-me, será mais duro para ti do que para nós. - Lançou um rápido olhar a Terry Adams, que se esforçava por beber sem que lhe tremesse a mão que segurava o copo. - Acompanhas-me no bife, pequeno?

 

Terry esboçou um pálido sorriso ao ver Rick atacar a comida:

 

- Bem gostaria de conservar o apetite nestas montanhas-russas!

 

- Quando fizeres uma dúzia de viagens, saberás que nada é mais importante do que comer, antes e depois.

 

Mas ao verificar que em volta da mesa todos ou quase todos os pratos estavam intactos, não insistiu. A que propósito se punha a representar o papel de veterano diante daquele neófito atento e de boa vontade? Ele depressa aprenderia, e todos os outros igualmente, a dominar o apetite em ocasiões de crise. E a guerra é uma crise contínua desde que se ande longe da base. Masisso é outra lição que um homem só aprende por experiência própria.

 

Ficou bastante contente quando um oficial de marinha lhe tocou no ombro. Uma vez mais, Linda tinha razão. Mais alguns minutos e começaria a discutir Alice no País das Maravilhas ou a falar de porcos pretos e brancos como os heróis de Journey’s End.

 

- Pode vir ao camarote do coronel, capitão? Ele espera-o informou o oficial de marinha.

 

Encontrou Amos a devorar com grande apetite o jantar no estreito e atravancado camarote. Sentados na beira do beliche, tal como «fregueses à espera» no engraxador, três oficiais mostravam ar circunspecto: o capitão da administração que comandava o destacamento, o major que conduzia os regimentos de infantaria e o oficial de marinha que ia assumir a responsabilidade pela cobertura do desembarque. Rick sentiu os cabelos porem-se-lhe em pé diante de tantos mapas amontoados em cima da mesa.

Amos disse placidamente:

 

- Pode chamar a isto um ensaio geral. Deseja assistir, Rick?

 

- Se me é permitido...

 

O coronel alisou com a mão um papel bastante amarrotado. Por cima do ombro de Amos, Rick verificou que se tratava dum plano em grande escala da cidade de Argel e seus arredores, com legendas em inglês e francês. Munido dum punhado de alfinetes, o comandante aproximou-se e começou a marcar o local dos postos de combate.

 

- Continue a exposição, sem voltar atrás, Mickey. O capitão Winter não tardará a apanhar-nos.

 

O major grisalho olhou para o mapa placidamente:

 

- Ao romper do dia, teremos já desembarcado todos os homens e todo o material. Se não encontrarmos campos de minas, poderemos estabelecer imediatamente a ligação.

 

No ar principiaram a fervilhar números. Aqueles homens entregavam-se de corpo e alma à sua tarefa e falavam dela com perfeito conhecimento. Encostado à parede, Rick juntava o fumo do seu cigarro à atmosfera já saturada. Aquele zumbido regular de vozes tornara-o ainda mais calmo.

 

- E a resistência organizada, Mickey? - indagou Amos. O major esboçou um ligeiro sorriso ao responder ao coronel:

 

- Estamos preparados para enfrentá-la, é claro. Mas, se deseja saber a minha opinião, dir-lhe-ei que teremos os aeródromos em nosso poder antes mesmo de eles saberem que os atacamos.

 

- No entanto, as nossas unidades médicas têm um papel a desempenhar noutro campo. É a sua vez, Rick. O senhor está encarregado de dirigir o nosso desembarque. Diga-nos onde lhe parece que deve instalar-se o hospital de campanha.

 

Os oficiais mais velhos afastaram-se para o deixarem aproximar-se do mapa. Pertenciam a essa categoria de veteranos que escutam de boa vontade as ideias dos mais novos. Quando esse ponto, verdadeiramente importante, estivesse resolvido, passariam ao verdadeiro plano de batalha. Já o dedo de Winter pousara no mapa:

 

- Que pensam desta praia aqui, em Lorette?

 

- Conhece a costa, capitão? - inquiriu o major.

 

- Há oito anos passei alguns meses em Argel. Lorette é uma praia de banhos, a oeste do molhe e do porto. Uma arriba quase a pique eleva-se por trás, com uns bons cinquenta pés acima do nível do mar. A não ser que os franceses a tenham destruído, há uma rampa de cimento armado, ligando a praia à estrada que passa no cume da fraga.

 

Os outros escutavam-no atentamente. Sem dúvida que os vagamundos tinham ocasião de brilhar nesta guerra. Rick voltou-se para o oficial de marinha:

 

- Se bem compreendi, vão depor-nos na praia e depois ficamos entregues a nós próprios.

 

- Sim, com a devida protecção dos nossos canhões, ao largo, bem entendido.

 

- É claro, uma vez em terra este rochedo proteger-nos-á das baterias do inimigo. Com a permissão do coronel, penso instalar as nossas tendas de operação exactamente ao abrigo desse muro natural. Assim, com facilidade os feridos poderão ser enviados para lá e trabalharemos sem interrupção, a não ser que as próprias unidades de desembarque...

 

- Não se inquiete com isso, meu filho - disse o major com uma espécie de resmungo de aprovação. - Faremos por lhe conservar toda a liberdade de acção.

 

Rick agradeceu com um gesto e prosseguiu:

 

- Se não levássemos enfermeiras para a zona de combate...

 

- Para o diabo esse favoritismo! - interrompeu Amos. Agora está ao corrente dos factos, Rick. Se julga útil divulgá-los, pode fazê-lo; deixo isso ao seu critério. Não há nada pior para quem entra em combate, pela primeira vez, do que permanecer longo tempo na expectativa e na indecisão.

 

Já com a mão no puxador da porta, Rick teve uma leve hesitação, depois interrogou:

 

- Uma pergunta ainda, se porventura não é despropositada. Partimos com a primeira vaga de assalto?

 

- Não creio que sejamos heróicos até esse ponto - respondeu Amos. - Os destacamentos de infantaria terão antes, para começar, dois turnos de barcaças. Só então hão-de decidir se têm realmente necessidade de nós. - Lançou um olhar ao major de infantaria: - Gostaria que fosse para todos um simples passeio, mas duvido muito.

 

Rick voltou para o seu camarote num singular estado de descontracção. Agora que a hora H fora fixada, sentia-se apenas uma simples peça da máquina. Uma peça de certa importância se os dois primeiros destacamentos desembarcados tivessem feridos, mas perfeitamente substituível. E não se exige que a peça duma máquina pense ou sinta. Era na verdade bem agradável mandar para o diabo nessa noite pensamentos e sentimentos, e estender-se no seu beliche, lançando um sorriso a Bill Coffin, que na outra tarimba chupava o cachimbo apagado.

 

Bill proferiu, numa voz carregada de inveja:

 

- Manny acaba de arranjar a tua mochila. Queres verificá-la?

 

- Oh, não, se foi Manny quen a arrumou!...

 

- Todo o equipamento está em ordem?

 

- Desde o meio-dia.

 

Das dezenas de caixas alinhadas no porão tinham sido escolhidas cuidadosamente algumas que continham instrumentos cirúrgicos em quantidade e variedade suficiente para efectuar toda a espécie de pequenas operações. Nessa mesma manhã, Rick e Terry haviam assistido ao acondicionamento desse material em redes metálicas, que no momento oportuno seriam colocadas nas barcaças de desembarque. Talvez não pudessem abalançar-se à alta cirurgia, mas logo que o material chegasse a terra conseguiriam tratar, de forma adequada, os casos urgentes. As fracturas beneficiariam do emprego dos fios metálicos de Kirchner que se passam no calcanhar para assegurar a tracção. Disporiam apenas duma mesa de operações numa tenda de lona e dum jogo de instrumentos fervidos num esterilizador a gás. Em Dunquerque, trabalhara com menos do que isso. Podia fazê-lo de novo.

 

Bill sentou-se no beliche, de boca aberta, ao ver Rick tirar da mesa-de-cabeceira um revólver 45 do exército, metido no seu coldre, que prendeu ao cinto.

 

- Desde quando um médico vai armado para o campo de batalha?

 

- Desde que os Hunos aboliram a Convenção de Genebra. E, dizendo isto, Rick meteu na algibeira uma provisão suplementar de balas. - Já fui metralhado enquanto operava, umas vezes do ar outras de terra. Agora disse de mim para mim que talvez não fosse desagradável ripostar também.

 

- Pensas então, meu velho, que a coisa vai aquecer até esse ponto?...

 

Rick sorriu, dando uma palmada no ombro do camarada, que caiu no beliche:

 

- Não penso isso, Bill. Não tenho nenhuma intenção de parecer melodramático. O mais provável é nem sequer ouvir amanhã o sibilar duma bala. É uma simples precaução, sem dúvida inútil; mas já me sucedeu apanhar grandes cargas de água justamente quando não levava comigo guarda-chuva.

 

E estendeu-se ao comprido no seu beliche.

 

- Faço votos por te encontrar amanhã à noite, na Mesquita dos Pescadores, com uma Ouled-Nail nos meus braços.

 

- Uma Ouled-Nail! Espera, já li alguma coisa a esse respeito. Não representam a ideia que os Muçulmanos fazem do paraíso?

 

- Amanhã verás porquê.

 

- Como se distinguem das outras? Rick sorriu já meio a dormir:

 

- Por causa dos sapatos dourados e dos seus movimentos rotativos. Ou rotatórios, como queiras.

 

- Sempre ambicionei ver uma dessas danças - advertiu Bill.

 

- Pois prometo mostrar-te uma amanhã à noite. No Café Inglês, na Rua do Ouro. Custa caro, mas vale o preço. - E bocejando prodigiosamente: - E se deixássemos por agora dormir a Casbah e fôssemos fazer o mesmo? Estou morto de sono!...

 

- Mas és capaz de dormir esta noite?

 

- Se sou capaz? Olha para mim e verás. Dormir antes da batalha é um estratagema que Napoleão e eu aprendemos na juventude.

 

Três minutos mais tarde, Bill Coffin inclinou-se, incrédulo, para o beliche e verificou que Rick, na realidade, cumprira a sua palavra e dormia a sono solto.

 

Durante alguns instantes ficou hesitante perto do leito, a escutara respiração regular do camarada. Depois, em bicos dos pés, saiu para o corredor, à procura duma bebida e de Gina Cole.

 

Pouco depois das duas horas, a vibração das máquinas começou a abrandar até não ser mais do que simples murmúrio. Automaticamente, Rick acordou. Logo na plena posse das suas faculdades, consultou o relógio de pulso, saltou da cama e enterrou na cabeça o capacete que deixara em cima da mesa-de-cabeceira. Depois acendeu um cigarro, que iluminou a escuridão do camarote. Lá fora aumentava o burburinho, um vaivém contínuo nas escadas e no corredor.

 

O cigarro soube-lhe bem e aspirou-o avidamente. À chama do isqueiro, verificou que Bill Coffin não voltara para o beliche: aquilo era mesmo próprio de Bill, passar na coberta uma noite inteira só para não perder a primeira imagem da África do Norte. A não ser que andasse em qualquer parte a fazer de gato na companhia dalguma fêmea agradável...

 

Rick encontrou a sua mochila cuidadosamente suspensa aos pés da cama e lembrou-se, com um sorriso, que os sapatos da ordem estariam não menos cuidadosamente arrumados em baixo, como para uma inspecção que jamais se faria. «Muito militar até ao fim», pensou. «Muito militar, na verdade.» Porque não subir ao convés onde se concentrava agora toda a actividade? Se tivessem necessidade dele lá em cima, Manny com certeza já o teria vindo chamar. Mas isso não era razão para não ir tomar um pouco de ar fresco. Afivelou a mochila. Os seus dedos, habituados por longas horas de treino, encontraram com facilidade no escuro as correias e as fivelas. Tudo estava como devia, mesmo a sua pesada cantina de água. O revólver, esse, sim, não regulamentar, sentia-o bater na anca, dando-lhe maior confiança em si próprio. A sua caixa de «primeiros socorros» estava solidamente amarrada e não havia o perigo de a deixar cair ao mar quando saltasse da escada de corda para a barcaça.

 

Como tudo lhe pareceu perfeitamente em ordem, saiu para o corredor, onde flutuava uma claridade azulada e espectral. Manny Ebstein surgiu então dum recanto obscuro, qual humilde fantasma mas imensamente tranquilizador.

 

- Vinha agora mesmo acordá-lo, capitão. O velho perguntou por si há um minuto. Nada de urgente, mas...

 

Rick tinha já um pé num degrau... A enfermaria regurgitava de enfermeiras e pessoal técnico. Lançou-lhe, ao passar, uma vista de olhos, na esperança de ver ali Carolyn, mas ela não estava visível. Isso não lhe deu qualquer espécie de inquietação; sabia que não lhe faltaria a coragem necessária para momentos como aquele.

 

Quando surgiu, por fim, no tombadilho, verificou que o barco, ilha negra no meio do mar, conservava as hélices apenas com a potência suficiente para não andar à deriva. A despeito da obscuridade reinante, as cobertas estremeciam de animação. As barcaças esperavam apenas o sinal de serem lançadas à água. As suas equipagens eram constituídas por marinheiros escolhidos que nessa noite manobrariam os seus barcos com tanta perícia como nos exercícios realizados lá longe, nas águas do país natal.

 

Para lá da proa do navio a vogar em marcha reduzida, a noite estendia a sua cortina negra. Algures para o sul, ficava a Argélia, um território da França de Vichy, tecnicamente ainda em paz. Parecia incrível que as autoridades do porto ignorassem a presença daquela esquadra que avançava, qual frota fantasma, a tão pouca distância da costa. Nenhum som se elevava dos outros cascos maciços e sombrios que Rick sentia, sem os ver, nos dois flancos do transporte. Casualmente, um torpedeiro irrompeu da noite, falou na sua linguagem de rápidos sinais luminosos e desvaneceu-se logo no negrume, tão tranquila e silenciosamente como se mostrara.

 

Manny murmurou junto do ombro de Winter:

 

- Não esqueça o coronel, patrão!

 

Rick encontrou Amos Blaine no seu camarote, em frente da mesma mesa, tão aborrecido como uma galinha no choco, e só compreendeu o motivo dessa deslocação ao ver a um canto o vulto do major de infantaria, mais pesado ainda por causa da mochila. O major fumava um cigarro espetado numa longa boquilha de marfim, objecto verdadeiramente incongruente naquele lugar e com tal indumentária. O seu capacete estava pousado em cima do beliche do coronel, mas enterrara já até às orelhas o carapuço de malha que se usa por baixo. Sem dúvida nenhuma, daí em diante era o major quem tomava a responsabilidade das operações. O coronel, embora fosse o comandante da unidade, não passava dum útil segundo plano.

 

- Acho que não tenho necessidade de perguntar, Rick, se tudo está a postos - disse Amos.

 

- Tudo pronto para o desembarque, só esperamos ordens.

 

Amos fez um gesto largo e aborrecido:

 

- Tome então conta de nós, Mickey. Estamos todos ao seu dispor.

 

o major correspondeu à saudação de Winter:

 

- Continua ansioso por embarcar com a primeira vaga, capitão?

 

Rick endireitou-se, cheio de entusiasmo:

 

- Há alguma alteração nos planos?

 

- Lamento muito, capitão, mas não posso confirmar a decisão de ontem à noite. Apenas partem com a primeira vaga de assalto os homens dos socorros de urgência da Companhia. Na segunda, vão os grupos do posto de socorros. A sua vez é a seguir.

 

- E o horário?

 

- Não houve também nenhuma alteração nesse ponto. Desembarcamos às três horas, isto é, exactamente daqui a vinte minutos.

 

O major tirou a ponta do cigarro da boquilha de marfim e guardou-a na algibeira.

 

- Como já visitou Argel pode recomendar-nos um bom bar?

 

- Na minha última visita, o Metro era o melhor.

 

- Pois bem, encontrar-nos-emos lá amanhã. Eu ofereço o champanhe.

 

O major em seguida apertou-lhe a mão, sem qualquer solenidade, e saiu do camarote, assobiando baixinho, quase sem fazer nenhum ruído, tão placidamente como um habitante dos arredores duma grande cidade ao tomar todos os dias o seu comboio.

 

Amos fungou e resmungou ao mesmo tempo:

 

- Saia da minha vista! Não vê que tudo isto me enche de tristeza?

 

Prudentemente, Rick respondeu:

 

- Quando vem juntar-se a nós, meu coronel?

 

- Não me pergunte agora! Naturalmente na última barcaça que chegar a terra. Quando se trate já dum simples passeio! Mas o coronel estendeu-lhe no entanto a mão, cordialmente. Baixe a cabeça no momento oportuno, Rick; lembre-se de que terei necessidade de si mais tarde e que isto é apenas o levantar da cortina.

 

Rick contemplou «o velho» nos olhos; apesar da forte tensão daquele momento, sentiu que o seu coração podia ainda vibrar numa palpitação absolutamente nova:

 

- A nossa guia de marcha indica a Tunísia?

 

- Pode arriscar todo o seu dinheiro nessa aposta. Vamos apertar a mão a Monty, algures entre Argel e Tripoli.

 

Rick atingiu o tombadilho a caminhar sobre nuvens. Amos tinha razão! Como era bom pensar que aquele desembarque seria o primeiro movimento dum plano muito mais vasto, duma invasão simultânea em diversos pontos que tornaria o Mediterrâneo num lago aliado. Quando chegasse o Natal, o pintor de tabuletas, o louco colador de cartazes estaria metido numa camisa-de-onze-

- varas, fechado num círculo de ferro e fogo. Com certeza gritaria ainda durante algum tempo, mas o seu destino estava traçado, as contas não tardariam a saldar-se.

 

No céu, lá muito em cima, ouviu o roncar de aviões gigantes. Percorreu-o um arrepio dos pés à cabeça e olhou para o ar. O inimigo teria sido informado? Enviaria bombardeiros da Sicília para destruir o comboio? Esteve alguns minutos sem se atrever sequer a respirar; depois tranquilizou-se quando os seus ouvidos identificaram o som... Uma voz feminina deu forma aos seus pensamentos íntimos, tão perto dele no escuro que a sentiu picar-lhe a pele.

 

- São transportes de tropas, capitão?

 

Linda estava ao seu lado, em uniforme de campanha, com uma monstruosa máscara antigas presa ao ombro por um cordão. Mas ao examinar o monstro, Rick verificou que se tratava da máquina de escrever portátil.

 

- Não faça essa cara, Rick - disse a jovem. - Concedeu-me ontem autorização para desembarcar; levo comigo a ferramenta.

 

- Mas isso não lhe faz abaular as costas?

 

- De maneira nenhuma. Esta máquina foi especialmente construída para registar notícias no próprio local. Já mais de uma vez os pára-quedistas a utilizaram.

 

Outra vaga de aviões roncou por cima das suas cabeças: agora que aproavam ao sul, podiam distinguir bem as suas silhuetas.

 

- A propósito de pára-quedistas, Linda...

 

- Não me vai dizer que estes vêm de Inglaterra?

 

- E porque não? Temos todos o mesmo horário esta noite. A jovem prendeu-lhe o braço. Como ela se aproximasse mais, o capitão viu brilhar os seus olhos no escuro.

 

- Quer convencer-me, Rick, de que não está impressionado, nem mesmo neste instante?

 

- Estou de facto um pouco excitado, mas isso não é razão para me pôr a gritar como um escuteiro. Suponho ter já passado a idade dessas manifestações.

 

Ela examinou-o durante algum tempo, com olhar perscrutador, depois afastou-se um pouco, de forma a ficar mergulhada na sombra. Rick recusou-se a ler a muda pergunta que aqueles olhos acabavam de formular e prosseguiu a sua caminhada ao longo do tombadilho. Naturalmente ela andava uma vez mais a preparar o seu artigo, a descrição do desembarque. Sempre a mover-se dum lado para o outro, qual abelha diligente, constantemente à procura de pormenores para citar. Fosse como fosse, pensou cheio de cólera, não lhe arrancara material para nenhum artigo.

 

Mas esqueceu o mau humor, ao ter de mudar repentinamente de direcção para evitar, num canto escuro, duas silhuetas enlaçadas em fervoroso abraço. Gina e Terry Adams. Pelo menos tinha quase a certeza de que era Terry. Quanto a Gina, mesmo naquela densa escuridão, era impossível confundir as suas curvas... Bem, o rapaz merecia decerto uma recompensa e precisava dum tónico. Se Gina estivesse disposta, podia oferecer-lhe uma coisa e outra. E ao recuar, intimamente satisfeito, por pouco não esbarrava com Bill Coffin, de aspecto extremamente marcial, de gabardina vestida e binóculo ao ombro.

 

- Nada de ditos de espírito, por favor!... - resmungou Bill.

 

- Tenho necessidade de me convencer que também sou soldado, embora só salte em terra sabe Deus quando. Reparaste nos dois pombinhos que estão ali a arrulhar?

 

- Espero que não tenhas ciúmes?

 

O rosto de Bill abriu-se num largo sorriso:

 

- Que ideia! Fui eu próprio que lhe disse para ir consolar o rapaz à sua maneira.

 

- Filantropo na tua idade?

 

- Sim, acredites ou não, é assim mesmo. Gosto de ver as pessoas libertas das suas rugas, mesmo das morais. O rapaz andou atrás de Gina na nossa última noite de Blighty. Não me perguntes até onde isso chegou.

 

- Davas um bom psicanalista.

 

- Contentava-se em ter lugar na tua lancha de desembarque - opôs Bill. - Nenhuma alteração, pois não?

 

Rick sacudiu a cabeça e ambos se dirigiram para a amurada de bombordo. Eram quase três horas. As barcaças balouçavam serenamente na água, ao lado do transporte. O rumor surdo que delas subia indicava que o horário era cumprido à risca. Quase todas as lanchas já estavam repletas de tropas de choque. E enquanto Bill e Rick olhavam, encheram-se as últimas.

 

Dentro de cinco minutos, todo aquele enxame, estendido em preguiçoso semicírculo, tomaria a direcção da terra. O seu carregamento humano dir-se-ia agora uma massa informe. Os próprios capacetes, recobertos de pano, assemelhavam-se a cogumelos irreais...

 

Soou um apito e os motores aumentaram a velocidade. Descoloridos duma dúzia de esteiras fundiram-se na noite. A primeira vaga partira sem mais complicações nem ruídos. Já outras embarcações vazias cavalgavam as ondas, tomando posição ao longo do barco, prontas a receber o segundo carregamento de tropas.

 

- Digam-me agora que esses meses de treino na Carolina foram tempo perdido... - observou Bill.

 

Não havia qualquer interrupção na manobra: os soldados desciam pelas escadas de corda quase antes de os marinheiros terem tempo de tomar posição, e faziam-no com grande destreza, caindo cada um no seu lugar. Era uma operação bem conduzida, tudo feito naturalmente, sem lances melodramáticos. Apenas uma ou outra palavra segredada se ouvia no escuro, um gracejo de tempos a tempos, uma praga de cinco letras, tão velha como a própria guerra. E nessa pressa ordenada não transparecia a mínima desordem ou tensão: fossem quais fossem as emoções íntimas de cada um, todos esses homens estavam suficientemente treinados para não as manifestar. E de súbito, sem nenhum prelúdio, as metralhadoras começaram a picotar a noite para os lados do sul. Pronta para a réplica, uma bateria costeira entrou em acção, esfarrapando o escuro com clarões de pesadelo. Estava no entanto demasiado longe para parecer absolutamente real: Rick teve a impressão de assistir a um 4 de Julho tornado louco furioso...

 

Bill exultou.

 

- Chegámos na altura própria, meu velho!

 

Mas o momento não era para exclamações de entusiasmo. Uma vez posta em movimento, toda a engrenagem principiou a funcionar. Por trás deles, as peças dum torpedeiro entraram no concerto. Instintivamente, Rick agachou-se. Outros canhões se juntaram e toda a frota de invasão emergia da noite, em silhueta, iluminada pelo vermelho de fornalha das contínuas salvas. A bombordo e a estibordo, a artilharia de três polegadas dos torpedeiros não se divertia mais nem menos do que, ao longe, os grandes morteiros que uivavam nas suas plataformas. Todo o horizonte refulgia de variegadas cores: amarelo-vivo quando a granada deixava a goela do canhão, vermelho quando a fosforescência marcava a passagem do projéctil no escuro da noite.

 

Rick e Bill tiveram verdadeiramente a sua primeira visão de África quando, nesse grandioso cenário, um tiro certeiro fez erguer em terra enormes labaredas, à luz das quais puderam ver as paredes brancas da cidade, as copas das palmeiras...

 

Quando Rick afastou os olhos desse espectáculo e os baixou de novo para o mar, as escadas de corda estavam vazias, a segunda vaga de ataque partira já para a linha de fogo. A seguir era a sua vez... Endireitou-se, apertou um furo ao cinturão e ajeitou melhor a mochila com um brusco movimento dos ombros. Nesse instante, aproximou-se um sargento, a pedir ordens.

 

- Destacamento sanitário, atenção!

 

Incrédulo, viu todos já no convés, até ao último homem. Sargentos e técnicos, bem aprumados sob as suas mochilas; enfermeiras activas e decididas nos seus uniformes e capas azuis. Percorreu a fila, espreitando um sinal de pânico, mas não descobriu nenhum. O próprio Terry Adams sustentou o seu olhar sem pestanejar, embora notasse que o ombro do rapaz, quando pousou nele a mão, ao passar, tremia ligeiramente.

 

Mais adiante, o material cirúrgico já estava a ser embarcado numa lancha. Um oficial de marinha surgiu, não se sabe donde, para lhe falar ao ouvido.

 

- Chegou a nossa vez - disse pausadamente Winter. - Partimos com a terceira vaga. Permaneçam nos seus lugares atentos às ordens dos sargentos.

 

Retribuiu a impecável continência dos subordinados e seguiu o oficial de marinha, transpondo sem a mais leve hesitação a amurada de bombordo. As coisas não corriam nada mal, uma vez que conseguira firmar os pés na escada de corda.

 

Como num sonho, vieram-lhe à memória as manobras em Fort Bragg, alguns meses antes... O muro de pranchas de pinho e o colchão lá em baixo, para amortecer qualquer queda. Então, ainda tinham o recurso dos colchões. Mas nessa noite não podia haver o mínimo passo em falso: com aquela pesada mochila, um homem ia imediatamente para o fundo antes que o pudessem pescar, admitindo que havia tempo para pescar fosse o que fosse, mesmo um homem.

 

Uma advertência feita em voz baixa, e saltou no escuro. Os seus pés encontraram a madeira flexível da embarcação e a mão do oficial de marinha evitou que esbarrasse num banco. E ambos foram logo tomar os seus lugares na proa da barcaça.

 

Terry Adams debruçou-se para observar a casca de noz que se balouçava lá em baixo, junto do costado do navio. Há algum tempo que os técnicos tinham começado a transpor a amurada. Sabia bem que devia ter sido o primeiro, tal como Rick, pois muitos desses homens estavam sob as suas ordens e esperavam nos barcos as suas indicações. E no entanto não podia mexer-se... O barulho do bombardeamento nos dois sentidos dir-se-ia estoirar-lhe na cabeça. A mochila que lhe pesava nos ombros empurrava-o para o mar como ao velho Simbad, o marinheiro. E pensou que seria fácil escapar-lhe um pé, mergulhar e afogar as suas perturbações para sempre.

 

O suor cobria-lhe a fronte quando por fim conseguiu passar uma perna por cima da amurada. Sim... lá em baixo... no fundo... podia repousar e não ser nunca mais incomodado... Um clarão vermelho inundou-lhe o cérebro enquanto a emoção lhe dilatava as pupilas. A água atraía-o como uma sereia, como Gina Cole que instantes antes o beijara com tanto ardor... Podia perder-se no mar como se perdera no beijo de Gina. E talvez fosse melhor para Mary se ele se atirasse agora dali, de cabeça para baixo.

 

A escada de corda arranhava-lhe as palmas das mãos. Os pés, metidos em pesados sapatorros, embaraçavam-se nos degraus. De olhos fechados ia descendo, degrau a degrau, às apalpadelas. De súbito, largou as mãos e tombou no espaço, o corpo tenso, à espera de sentir o contacto frio da água.

 

Duas mãos vigorosas agarram-no pelos ombros, equilibrando-o, quando pôs os pés na embarcação. Terry abriu então os olhos e viu-se rodeado de vultos com uniformes cor de azeite. Um dos sargentos segurava-o agora pelo braço e conduzia-o para a proa, dizendo-lhe:

 

- Isto é fácil, meu alferes. Para aproxima vez, quando saltar, tenha o cuidado de olhar para baixo. Não caiu em cima da minha cabeça por uma unha negra!

 

As enfermeiras foram as últimas a descer, depois de os oficiais terem estabilizado os quatro cantos da embarcação. Muito lestas, soltando pequenos gritos abafados, esforçavam-se cuidadosamente por fixar os olhos nos degraus da escada sem quererem saber do sussurro do mar lá em baixo.

 

Carolyn esperou até ao fim e desceu com o último grupo. Então, transpôs também a amurada, ficou um momento suspensa unicamente pelas mãos até os pés encontrarem o primeiro degrau e depois começou a descida. Muito desembaraçada no seu uniforme de campanha, ia a meio caminho quando sentiu gelar-se-lhe o sangue nas veias ao ver um obus cair no mar a menos de duzentos metros, mas a estibordo.

 

Dois braços anónimos amparam-na lá em baixo e ela tomou o seu lugar num banco a meio da embarcação. Até ali agira apenas por instinto, confiada na lembrança dos treinos do acampamento. Nem chegara a ter tempo de sentir medo. E uma vez a trabalhar na praia, com Rick ao seu lado, poderia então suportar fosse o que fosse.

 

De súbito, viu Rick na sua frente, prova bem tangível de que tudo aquilo não era um pesadelo mas sim a realidade. Sentiu o leve contacto da sua mão no ombro e isso confortou-a. Mas, ao mesmo tempo, quase lamentou que ele a tivesse visto no meio das outras: a proximidade daquela mão recordava-lhe êxtases demasiado ardentes.

 

- Coragem! Bem sabia que havia de chegar. Não lhe disse mais nada. E ela apenas respondeu:

 

- Cá estou, como tanto desejava.

 

Depois, a embarcação estremeceu ligeiramente. Saltara para bordo o último viajante. Os dois voltaram-se ao mesmo tempo. Linda Adams, com a sua máquina de escrever presa ao pescoço, acabava de embarcar. Carolyn compreendeu que, jornalista acima de tudo, Linda se deixara ficar propositadamente até ao fim, sendo a última a descer, para poder anotar todas as suas impressões antes de deslizar por sua vez pela escada vazia.

 

- Tudo completo, capitão?

 

O oficial de marinha, na sombra, informava-se. Os olhos de Carolyn seguiram os de Rick enquanto ele contava as cabeças: todos os oficiais e enfermeiras estavam naquela embarcação, juntamente com alguns técnicos. Numa outra, iam os soldados, furriéis e sargentos. A pouca distância, uma terceira, carregada com uma pirâmide de material, acabava de largar as amarras.

 

- Todos presentes - disse Rick.

 

- Preparar para largar!

 

Falavam ainda em voz baixa, embora há muito tempo o silêncio deixasse de ser útil. A rotina fora largamente repetida para que se produzissem variantes.

 

- Prontos para largar!

 

- Largar a amarra da proa!

 

- Largar a amarra da popa!

 

O motor da barcaça fremia preguiçosamente. Ainda presa por um cabo ao transporte, tomava já o seu lugar na formação. Carolyn inclinou-se e sentiu de novo a mão de Rick acalmar o frémito do seu ombro. O capitão dirigiu-se, em voz serena, a um marinheiro:

 

- Como correm as coisas?

 

- Não pergunte isso à marinha, capitão. Até agora fizemos os nossos desembarques exactamente segundo o horário. Uma coluna apoderou-se da estrada do aeródromo onde se bateu valentemente. O resto, protegido pelo fogo de barragem, escalou a arriba. Foi tudo quanto pude ver. As noites por estes sítios são na verdade escuras...

 

Para os lados de leste, o troar dos canhões não diminuíra ainda. Por cima deles, o ar tornou-se de repente calmo. Mas foi por pouco tempo. Aparentemente nenhuma bomba atingira a cidade. A estratégia consistia em contorná-la e cercá-la, ocupando as instalações do porto sem as danificar. Manobra possível se o ataque tentado naquela noite cumprisse à risca o plano previsto.

 

Carolyn surpreendeu-se a perguntar ao oficial de marinha, com uma voz que não reconheceu absolutamente como sendo a sua:

 

- Porque esperamos?

 

- Os outros transportes não concluíram ainda os seus carregamentos. E esta vaga actua como uma unidade. Olhe para a terceira coberta a estibordo, é de lá que será dado o sinal da partida.

 

Carolyn agradeceu, mas os seus olhos não conseguiam distinguir no escuro o transporte que acabava de abandonar. «As demoras deste género são o que há de pior na guerra», pensou. «Quando cheguei ao fim daquela escada de corda, estava demasiado entorpecida para poder pensar fosse no que fosse. E assim continuaria se Rick tivesse guardado as distâncias ou se largássemos imediatamente.»

 

Começou mesmo a detestar a calma que campeava naquele sector. Os gemidos dos obuses por cima da sua cabeça exasperavam-lhe os nervos. Mas, aos seus ouvidos civilizados, tinham dado uma sensação dramática que ora lhe faltava. Valia mais efectivamente ter medo do que esperar, ofegante, a próxima comoção.

 

Um sinal luminoso riscou o escuro, à direita, e ao nível da água respondeu-lhe o som dum apito. O sinal foi repetido ao longo da fila das barcaças. Quando por baixo dos seus pés começaram a vibrar intensamente as pranchas de madeira, o oficial de marinha gritou, com voz jovial:

 

- Baixem a cabeça! Vamos avançar!

 

Aquele desembarque não fugiu à sorte comum a todas as coisas durante muito tempo esperadas. Para a maior parte foi uma decepção. Muitos oficiais nunca tinham posto o pé em terra estrangeira antes de o exército os levar para Inglaterra. Exceptuando Rick e Linda, todos os outros imaginavam África como o cenário dum filme romântico, com Charles Boyer por protagonista, animados bazares, e músicas e danças exóticas... Mas nessa noite, envolvidas em densa obscuridade, as barcaças aproavam a uma praia em declive que bem podia ser de Long Island ou de Galveston. Os soldados baixaram as rampas, saltaram em terra e foram prender as amarras, antes mesmo de Rick ter tempo de compreender que aquela fase da invasão terminara.

 

Mas mal sentiu os pés pisarem a areia, as coisas tomaram logo um aspecto diferente.

 

No alto da escarpa, um reservatório de óleo em chamas derramava no litoral labaredas deslumbrantes. Um quarto de milha para leste, os seus olhos divisaram o pavilhão de banhos, de paredes carcomidas, e no local onde o declive cimentado principiava a subida para se ir unir lá em cima, à estrada costeira, o mesmo bar encostado ao talude.

 

Nessa combinação movediça de sombras e clarões, o resto da paisagem era tão indefinida como num sonho. Lembrou-se das longas manhãs tépidas passadas no cais, lá em baixo, à esquerda. E, no quartito do bar, as tardes vividas na companhia duma titular cujo título não recordava já e que talvez fosse tão ilusório como o seu amor. Mas o momento não era muito próprio para tais evocações e correu pela praia fora, gritando ordens ao seu principal adjunto. O pessoal desenvencilhar-se-ia perfeitamente sozinho. Para alguma coisa se tinham inventado os sargentos...

 

As duas primeiras vagas de assalto tinham realizado trabalho bastante completo. Na praia já estava instalado um posto de socorros onde se alinhavam várias macas. Rick verificou num relance que do terreno conquistado começavam a afluir os feridos. Um enfermeiro, transpirando por todos os poros, pôs-se em sentido quando Rick entrou e passou por entre as macas.

 

- O capitão Douglas comanda o posto. Já chegou o hospital de campanha?

 

- Estamos a instalá-lo aí atrás. Quer indicar-me onde está o capitão?

 

O jovem médico militar ergueu os olhos da tala Thomas que estava a colocar. Rick aproximou-se e instintivamente estendeu a mão para tomar o pulso ao ferido: um pouco rápido talvez, mas o estado geral do homem era bom.

 

- O meu nome é Winter. Como correm as coisas por aqui? A um sinal do comandante, foi o próprio ferido que respondeu:

 

- Preparávamo-nos para calar uma bateria. Mas eles ainda puderam atirar uma salva antes de lhes saltarmos em cima.

 

- Parece que aqui não houve muita balbúrdia - observou Rick.

 

- Sim, parece que não, graças aos marinheiros - volveu Douglas. - Mas teria sido outra história, com toda a certeza, se os franceses tivessem dinamitado a rampa.

 

E lançou um breve olhar para a escarpa, enquanto a um quarto de milha para oeste uma nova salva, explodindo a pouca distância da praia, fazia estremecer a terra argelina. O jovem oficial continuou:

 

- Não me vai dizer que monta aqui um hospital de campanha? Há muito tempo já que não acredito no Pai Natal.

 

- Dê-nos meia hora & trataremos de todos os feridos que nos

envie.

 

- E admita que preciso já de facto dos seus serviços?

 

- Algum caso de urgência?

 

- O mais urgente que é possível.

 

Rick acompanhou o capitão Douglas até junto da fila de macas. Na última, deparou-se-lhe o caso de urgência em questão. Ao olhar profano, para aquele homem inerte já não havia qualquer esperança: pele viscosa, respiração opressa, pulso galopante e fraquíssimo. No tronco, o uniforme estava completamente ensopado em sangue. Rick ajoelhou junto do ferido e logo todo o pessoal dos primeiros socorros se aproximou com um ardor fremente que noutra altura e num lugar mais tranquilo seria patético. Ali, infelizmente, tanta solicitude só embaraçava e foi obrigado a afastá-los, pois roubavam-lhe a pouca luz existente.

 

Um médico militar explicou:

 

- Perfuração abdominal, capitão. Penso de urgência.

 

- Há quanto tempo?

 

- Uns quarenta minutos.

 

A hora era mais para inspirações do que para diagnósticos. O caso estava nitidamente no último extremo... Nenhum cirurgião do mundo podia determinar uma regra para esse género de feridas abdominais. Os britânicos consideram que acima das cento e vinte pulsações não resta nenhuma esperança à cirurgia. Mas aquela ferida era recente, tinha muito menos de seis horas, prazo geralmente admitido pelos cirurgiões de campanha para riscos de tal natureza. Se a sua audaciosa afirmação correspondesse à verdade, isto é, se realmente o hospital estivesse pronto a funcionar dentro de meia hora, talvez fosse capaz de salvar aquela vida...

 

Entretanto, era preciso atenuar o estado de choque e parar a hemorragia na sua origem.

 

- Plasma?

 

Douglas transmitiu imediatamente a ordem e um assistente foi buscá-lo a correr.

 

- E ligaduras com abundância; jogamos tudo por tudo.

 

No seu espírito começava a definir-se o quadro clínico. As feridas perfurantes do abdome provocam a morte por três motivos: hemorragia, choque, peritonite. Qualquer tratamento destinado a dominar essas causas - enquanto a cirurgia não entra em acção - pode salvar muitas vidas. O seu plano obedecia pelo menos a esses requisitos e, dadas as circunstâncias, valia a pena correres riscos.

 

Dobrou um lençol e com ele cobriu completamente o ventre do ferido, e enquanto Douglas e o seu assistente erguiam um pouco o homem, Rick, tomando das mãos dum enfermeiro uma larga ligadura, passou-a por baixo dos rins e em volta do abdome do enfermo, apertando-a fortemente em sucessivas espirais e comprimindo tanto o lençol sobre a ferida que mesmo em estado de coma o homem gritava e torcia-se com dores.

 

Douglas perguntou timidamente:

 

- Isso vem no tratado?

 

- Que eu saiba, não. Naturalmente por ser demasiado simples.

 

Rick ergueu-se e os outros dois pousaram cuidadosamente o ferido na maca.

 

- O que tentou com este tratamento?

 

- Em primeiro lugar, comprimir os bordos das feridas internas e por consequência dominar a hemorragia.

 

- Até aí compreendo.

 

- Em segundo lugar, fixando as grandes veias do abdome, tornamos a lançar o seu sangue na circulação geral. Fornecemos assim aos centros vitais aquilo de que eles têm mais urgente necessidade.

 

O rosto mascarrado do jovem capitão abriu-se num sorriso:

 

- Noutros termos, isso equivale a uma espécie de autotransfusão.

 

Sem afastar os olhos do ferido, Rick anuiu com um aceno de cabeça. Um outro assistente chegava com o aparelho do plasma. Douglas enterrou a agulha numa veia e abriu a pequena torneira para deixar escorrer o líquido.

 

- Conserve-o bem quente - aconselhou Rick. - Vou à praia ver se a nossa instalação está adiantada.

 

O destacamento sanitário trabalhava com a regularidade dum relógio e já erguera uma ampla tenda-hospital, vulto confortante a recortar-se num fundo de incêndio. Rick recuou para dar passagem a duas enfermeiras que instalavam a geradora portátil. Cinco minutos mais e as lâmpadas suspensas por cima da mesa de operações permitir-lhe-iam trabalhar. Alguém, lá longe, na faixa de areia molhada, gritou-lhe uma saudação o menos militar possível. Winter voltou-se e acenou com a mão a Manny Ebstein, que conduzia o primeiro jipe pela rampa de desembarque duma barcaça recém-chegada. Depois dirigiu-se para a segunda tenda e por pouco não tropeçou em Terry Adams.

 

De rosto colado ao chão, o rapaz estava estendido à beira da água e os seus ombros agitavam-se convulsivãmente. Vindos do largo, os obuses zombiam ao passar, e Terry, ao ouvi-los, parecia querer enterrar-se na areia.

 

Neste caso também Rick não podia usar de meias medidas. Com um safanão brutal, pôs o rapaz em pé e fê-lo dar meia volta: viu-lhe então os olhos vítreos, agitando loucamente os lábios. Aquilo era mais do que simples medo. Terry parecia uma criança agitada por pavoroso terror infantil.

 

Ao longe, mas não tanto que a distância fosse tranquilizadora, uma metralhadora atacava uma barcaça acabada de chegar. Rick, inteiramente absorvido pela tarefa de reconduzir Terry a uma aparência de calma, quase nem notou esse novo ruído. Um ninho isolado, que não tardaria a ser reduzido ao silêncio pelas descargas de artilharia... Mas Terry, libertando-se das suas mãos, começou a correr a toda a velocidade na direcção dos tiros.

 

As balas riscavam o escuro em frente da barcaça, que respondia com rancor a essa impertinente isolada nas dunas. Rick nunca chegou a saber se o intento de Terry era lançar-se, de cabeça perdida, no meio do fogo. Agarrara-o demasiado depressa e demasiado brutalmente, rolando no chão por cima do fugitivo... Novamente de pé, a mão a prender a blusa do rapaz, tomou o caminho da tenda, mas a marcha na areia tornava-se difícil com aquele prisioneiro a procurar fugir-lhe. Por fim, Terry conseguiu libertar-se uma vez mais e voltou a correr em direcção aos tiros de metralhadora.

 

Desta vez Winter mudou de táctica. Deixou Terry tomar-lhe a dianteira, cercou-o num galope rápido, ultrapassou-o à beira da água, a boa distância ainda do fogo, e conseguiu agarrá-lo de novo.

 

O rapaz desviou-se bruscamente, num último esforço para prosseguir a sua correria louca. Rick tomou então a única decisão possível. Um directo da esquerda ao ombro fê-lo dar meia volta, ficando em boa posição para receber o golpe de misericórdia. Desta vez o capitão estava decidido a não perder mais tempo: o punho, lançado de baixo, com todo o peso do seu corpo, atingiu em cheio o queixo de Terry.

 

Dez segundos mais tarde, transportando aos ombros um corpo inerte, Winter caminhava em direcção às tendas, quando bruscamente deu um salto: Linda Adams, sem máquina de escrever e com o rosto enfarruscado, barrava-lhe o caminho.

 

- Não procure desculpar-se - observou-lhe. - Vi tudo quanto se passou.

 

- E oxalá que tenha sido a única pessoa a ver.

 

- Ponha-o no chão, por favor- pediu Linda, na mesma voz decidida. - Farei com que ele permaneça tranquilo.

 

- Mas há talvez o perigo de...

 

- Faça o que lhe digo, suplico-lhe. - A sua voz era seca e cheia de autoridade: - Desde os dez anos que o meu irmão sofre de ataques semelhantes. Creia-me, já várias vezes o tratei de crises piores.

 

Rick não protestou mais. Ambos estenderam o corpo ao abrigo duma saliência rochosa, acima da linha das águas vivas. Linda ajoelhou-se ao lado do irmão inconsciente, sem erguer os olhos para Winter.

 

- Receio tê-lo esmurrado com bastante força Ela não se voltou, mas respondeu:

 

- Não tinha outra coisa a fazer. Agora vá para o seu serviço, por favor. O senhor é cirurgião, não é ama seca.

 

Rick ergueu a mão e tocou-lhe no ombro; invadiu-o um desejo violento de a estreitar nos seus braços. Para a tranquilizar, a ela que não lhe pedia conforto. Mas a hora não era para ternuras... nem mesmo para cavalheirismo. Deu meia volta e dirigiu-se para o seu destacamento.

 

Carolyn Rycroft levantou o pano da entrada da tenda no momento em que ele procurava ainda a abertura. Lá dentro, duas enfermeiras armavam a mesa das operações. A um canto, o esterilizador portátil assobiava como um caldeirão do Diabo.

 

- Tem os olhos um pouco pisados. Chocou com alguma coisa no escuro? - perguntou Carolyn.

 

Rick começava já a despir a blusa do uniforme. Lá fora, os primeiros alvores da aurora eram glaciais; até o longo lamento dos obuses parecia agora mais frio. Mas como o seu trabalho ia começar, podia muito bem isolar-se de tudo quanto se passava no exterior.

 

Voltou-se para Carolyn e pronunciou:

 

- Vamos abrir um peritoneu. Provavelmente fazer uma ressecção. Está tudo organizado para isso?

 

Carolyn respondeu-lhe imediatamente no mesmo tom:

 

- Dê-me só mais dez minutos, capitão.

 

E de súbito ambos ficaram impressionados com o formalismo das próprias palavras. Rick baixou o pano da entrada da tenda e atraiu a si a jovem para um longo beijo.

 

- Poderá suportar isto?

 

- Esforçar-me-ei tanto quanto possa - murmurou ela.

 

- Muito bem, é assim que deve encarar as coisas. Agora, vou dar uma vista de olhos à outra tenda, volto já.

 

O grupo aí instalado tratava os casos de ortopedia e os cirúrgicos que não exigissem anestesia geral. Rick viu Chuck Walters e um enfermeiro já ocupados com uma fractura. Em duas macas próximas, outros feridos aguardavam a sua vez. Era aqui que Terry Adams devia assistir. Pois bem! Teria de passar sem Terry durante um quarto de hora, pelo menos. Saudou Chuck com um aceno e saiu, de rosto impassível.

 

Voltou ao posto dos primeiros socorros, onde o capitão Douglas acorreu logo ao seu encontro. Inclinaram-se ambos para o ferido da perfuração abdominal. Rick verificou num relance que se fizera ali óptimo emprego dos meios disponíveis. O homem estava enrolado em cobertores e um enfermeiro terminava precisamente naquele instante a segunda injecção de plasma.

 

- As pulsações são agora mais compassadas. As forças voltam claramente. Parece-me que teve boa ideia... - disse Douglas.

 

À meia claridade do dia nascente, os dois trocaram um sorriso de inteligência. «Este rapaz é verdadeiramente um médico», pensou Rick. «Só um médico digno desse nome poderia falar com tanta calma quando uma vida está em jogo.»

 

- Talvez seja do plasma - observou. Douglas sacudiu negativamente a cabeça.

 

- Nada podia reanimar assim um ferido do abdome, se não se dominasse primeiro a hemorragia. Mas esta forma de autotransfusão interna intriga-me apesar de tudo. Porque não faz uma comunicação sobre o assunto?

 

- Antes de se vender a pele do urso, é preciso ter a certeza de matar o animal.

 

O jovem oficial respondeu de bom humor:

 

- Receio bastante que tenha muitas outras ocasiões para provar a excelência do tratamento. E agora, esse hospital de campanha que nos prometeu há pouco?

 

- Estamos preparados para tratar do ferido logo que nos seja entregue.

 

Dois maqueiros adiantaram-se sem esperar qualquer ordem.

 

Douglas estendeu a mão a Rick Winter e apertou-a vigorosamente:

- Aqui tem o seu homem, capitão. E muitas felicidades!

 

Rick encontrou-se por fim na sua tenda, pronto a exercer a profissão a que votara por completo a vida.

 

Tirou a camisa, envergou um avental de borracha e começou a ritual lavagem das mãos. Carolyn abandonava naquele mesmo instante o improvisado lavabo. Era na verdade uma assistente de primeira ordem, de que qualquer cirurgião podia orgulhar-se. Todos os seus movimentos, seguros, calmos e precisos revelavam um absoluto alheamento de tudo quanto se passava no mundo exterior, apenas concentrada no seu trabalho, único e poderoso antídoto para as recordações e sonhos que ambos procuravam nesse instante esquecer... Sorriu-lhe vagamente quando ela se afastou da bacia de anti-séptico e estendeu as mãos para uma toalha esterilizada. Um subalterno aproximou-se para lhe atar os cordões da blusa e do avental.

 

Já vestido e de máscara posta, Hal Davis estava junto da mesa das operações. Era o assistente de Rick desde a formação do grupo, nos Estados Unidos. Havia também Bárbara Beathie, uma rapariga alta e bonita do Kansas, que com certeza viera ao mundo desprovida de nervos. E ainda o anestesista Dean, que à cabeceira da mesa mexia maquinalmente no aparelho de oxigénio. Winter saudou-os com ar grave, cada um por sua vez, mas sabia que por baixo das máscaras todas as bocas lhe sorriam quando reclamou o paciente. Era bom e reconfortante encontrarem-se ali, bem unidos, no verdadeiro trabalho em que se tinham treinado, mesmo que houvesse apenas uma oportunidade em duas de vencer aquela luta contra o eterno inimigo da vida.

 

Despido pelos enfermeiros, o paciente foi cuidadosamente examinado por Dean dos pés à cabeça: nenhuma ferida lhe passara despercebida; nenhuma outra lesão existia. A bala penetrara pelo lado esquerdo do abdome e saíra pelo lado direito, justamente acima da anca. Sob o ponto de vista clínico, era um caso sem complicações. Perfurações múltiplas, provavelmente. Talvez uma porção do intestino, danificado, exigisse umaressecção. Na pior hipótese, não eram danos do tipo explosivo. Sucedera-lhe já tratar alguns casos desses e suar por todos os poros, pois a bala arrancara, um pouco por toda a parte, pequenos fragmentos de osso.

 

Sob o efeito do éter, o soldado respirava agora tranquilamente. Rick aproximou-se e verificou que Davis pincelava já a zona operatória com mercurocromo adicionado a uma solução anestésica. Atrás dele, Carolyn e Bárbara avançaram para estender, por cima do corpo do ferido, um pano com uma abertura que deixava a descoberto toda a área onde ia trabalhar o escalpelo.

 

A um sinal de Dean, Rick traçou a sua incisão, a direito, dum lado ao outro do abdome, pouco mais ou menos desde o ponto de entrada do projéctil até ao seu ponto de saída. A lâmina de aço, de gume fino como uma navalha de barba, ia separando impiedosamente as sucessivas camadas, músculos, aponevroses, peritoneu, até que a cavidade abdominal ficou completamente aberta, permitindo uma inspecção minuciosa ao seu conteúdo.

 

O quadro correspondia à expectativa: havia, por baixo do peritoneu, sangue misturado com resíduos intestinais, que Rick limpou cuidadosamente. Era uma tarefa aborrecida, mas um preliminar essencial para o indispensável exame dos órgãos, clássico trabalho preparatório sem o qual não podia estabelecer-se o plano da operação. A mínima ferida, cada possível local atingido, devia ser reparado antes do bisturi tocar no intestino.

 

Os seus dedos sensíveis apalparam o fígado, o estômago, o baço e encontraram-nos intactos. Intacto também, graças a Deus, o cólon transverso. Passou ao baixo-ventre e ao intestino delgado. Este, numa extensão de dez polegadas, estava também incólume. O primeiro buraco, nitidamente recortado, em volta do qual se divisava uma mucosidade de má aparência, só o vislumbrou no segmento seguinte.

 

Um cirurgião menos experiente teria talvez parado nesse ponto para reparares estragos. Mas Rick cometera já uma vez esse erro e não o ia repetir. Sabia agora que nas feridas provocadas por balas existe geralmente toda uma série, mais ou menos numerosa, de buracos análogos, numa extensão de doze ou mais polegadas de intestino. Neste tipo de ferimentos, é quase impossível a reparação sucessiva das perfurações. O único caminho lógico a seguir então é a eliminação completa do segmento atingido.

 

Tal como receava, descobriu mais quatro rupturas nos oito anéis de intestino que se seguiam. E a última era um enorme rasgão em ziguezague que separava completamente o frágil tecido.

 

Carolyn, já preparada, esperava no outro lado da mesa.

 

- Temos ressecção, capitão? - perguntou. Com o olhar, Winter interrogou Dean:

 

- Ele poderá suportá-la...

 

- Corte o que quiser- respondeu fleumaticamente o anestesista. - Vai no terceiro frasco de plasma e faz tiquetaque como um cronometro.

 

De vez em quando, um obus zunia lá em cima e ia explodir ao longe, nos campos por trás da escarpa. Porém, uma dessas descargas caiu a pouca distância, e na lona das tendas desabou então uma chuva de terra. Mas lá dentro a operação prosseguiu no mesmo ritmo apressado e calmo que resultava duma superior competência cirúrgica aliada a um perfeito trabalho de conjunto. Tudo quanto era indispensável estava pronto no momento preciso, e passava de mão em mão sem precipitações: um cautério, cuja rubra lâmina de aço cindia a zona infectada, esterilizando o corte unicamente com a aplicação do seu calor; pinças Furness, munidas de finos estiletes para furar as extremidades do intestino após a ressecção; agulhas de sutura duma incrível finura para não romperem os frágeis tecidos.

 

Como sempre, Rick sentia ao seu lado a eficiente e silenciosa presença de Carolyn. A pinça pedida aparecia na sua mão como por obra de magia; as agulhas, enfiadas e prontas, esperavam o momento de serem necessárias. Nenhum movimento inútil, nenhum instante perdido...

 

Quando a anastomose findou e foi restabelecida a continuidade do tubo digestivo, Rick entendeu que merecia bem alguns segundos de repouso. Tirou as luvas, lavou as mãos na bacia e permitiu-se sorrir por cima da máscara a quantos o rodeavam.

 

- Isto correu bem, tenente Rycroft.

 

Ela corou e, pela primeira vez, enfiou mal uma agulha de sutura.

 

- Correu até muito bem, doutor.

 

- Graças a si, obrigado.

 

- Por favor! - protestou a enfermeira. E voltou de novo para a mesa.

 

Rick seguiu-a, com um largo sorriso encoberto pela máscara. Naquele instante, sentia-se estranhamente satisfeito, ridiculamente jovem. Quase acreditava ter voltado aos seus anos de estudante, ao seu primeiro idílio com uma estagiária na cozinha das dietas. Tornou a si ao sentir a areia de África ranger por baixo dos seus pés quando caminhavam para a entrada da tenda, e voltou novamente para junto da mesa de operações.

 

Hal Davis levantou as paredes do abdome, permitindo-lhe continuar a exploração. Não havia mais nenhum vestígio de qualquer ferimento: a bala atravessara em linha recta, perfurando de passagem apenas uma secção do intestino, nitidamente delimitada.

 

- Sulfamidas, por favor!

 

Espalhou o pó cristalino uniformemente em toda a cavidade abdominal. As suturas chegaram-lhe facilmente às mãos: delgados filamentos acinzentados de algodão, o mais simples material existente, perfeito para todo o género de feridas. A rotina guiava-lhe agora os movimentos e ele continha uma absurda vontade de assobiar enquanto trabalhava.

 

Quando, por fim, abandonou definitivamente a mesa, o seu relógio marcava sete horas. Alguém acendera com certeza uma fogueira deslumbrante no alto do talude, por cima da tenda. Chegou a pensar que o reservatório de gasolina que vira em chamas ao princípio da noite tivesse pegado fogo a outro depósito. Só quando saiu para o ar livre percebeu que não assistira ao famoso nascer do sol argelino.

 

Um grupo de palmeiras, semidesenraizadas pelo bombardeamento, em equilíbrio instável no cimo da arriba, desenhava-se, qual silhueta de ébrio, no céu matinal. Mesmo as velhas casuchas que se lobrigavam ao longo da estrada marginal adquiriam um ar de vida. Até o escandaloso estuque vermelho do estabelecimento de banhos ganhava um novo brilho naquela claridade ao mesmo tempo violenta e meiga. À direita, uma reentrância do rochedo permitia vislumbrar o porto, onde balouçava, preso à sua âncora, um enorme couraçado faiscando ao sol. Rick compreendeu porque ecoavam em toda a praia gritos de alegria ao ver, desfraldada à popa do barco, a mesma bandeira que flutuara um século antes naquela abra, quando outros marinheiros desembarcaram também na enseada. A bandeira contava hoje mais estrelas do que então, mas era a mesma, e os mesmos marinheiros a aclamavam nos degraus da Mesquita dos Pescadores.

 

Rick achou-se sem saber como mergulhado até aos joelhos nas águas do Mediterrâneo, associando-se às aclamações. Quando se voltou, viu Hal Davis sair da tenda com um braço a contornar o busto de Bárbara.

 

Quis perguntar por Carolyn Rycroft, mas havia na praia demasiado burburinho para as perguntas poderem ser ouvidas ou obterem resposta. Obedecendo a qualquer inexplicável impulso interior, decidiu de súbito dar uma volta pelo acampamento. No fim de contas, era tempo de i