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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CLARA DOS ANJOS 2 / Lima Barreto
CLARA DOS ANJOS 2 / Lima Barreto

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CLARA DOS ANJOS

 

 

Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo vê-lo cuidar todas  as manhãs daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas, às  quais dava milho moído, triguilho, examinando os pintainhos, um por  um, a ver se tinham bouba ou gosma.

Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá estava ele  atrapalhado com os galos malaios e a sua descendência de frangos e pintos.

 Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução  impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa  que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação  solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que,  agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe  por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto  à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi  o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É  um tipo bem brasileiro.

 Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele  só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível.  Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros,  pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava  uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da força,  da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então,  sim...

 Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado que uma moçoila com  livros e attirail de normalista, na viagem de trem, o olhava muito.

 Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma hora, pôs-se,  na estação, à espera dela; não veio. Esperou outro  trem, não veio. Assim, esperou diversos. No outro dia, após  esse, foi mais feliz; ela veio. Procurou lugar conveniente e pôs-se  a fazer trejeitos. A moça não lhe deu importância, Durante  dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata da ingrata,  quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimidade com que  a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia ser irmão  ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natureza, mas  fracos, não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem viagem,  palestrando calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam à Central,  e o rapaz despede-se da moça, que segue para a sua escola. Volta-se  o cavalheiro e procura com o olhar o Senhor Cassi.

 

—É o senhor?

 

Cassi Jones responde:

 

—Sou eu.

 

—Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria; é coisa  particular, e nós lá estaremos à vontade tomando um vermouth.

 

Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha o desconhecido,  que, com ar risonho e caminhando, vai dizendo:

 

—O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu  caro senhor, o conheço muito bem. Nos subúrbios, todos conhecem  as suas habilidades, Senhor Cassi Jones; e, embora esteja lá morando  há pouco, já tive notícias do seu valimento.

 

Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se a medir-lhe os músculos.  Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa do  negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado...  Mediu a musculatura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia  disposto. Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth;  e, quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi:

 

—O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado?

 

Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente:

 

—Não sei absolutamente.

 

—É minha irmã - afirmou o desconhecido.

 

— Também não sabia - respondeu docilmente o terrível  Cassi,

 

— Não podia saber naturalmente - justificou o rapaz. - Saio  cedo de casa para o escritório e volto tarde, pois janto e almoço  na cidade. Agora, eu chamei o senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor  continua a perseguir minha irmã, meto-lhe cinco tiros na cabeça.

 

Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro do paletó um magnífico  Smith & Wesson, muito reluzente e com um luxuoso cabo de madrepérola.

 Cassi redobrou o esforço para não denunciar o susto e, simulando  calma, disse:

 

— Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei com o respeito devido  à senhora sua irmã.

 

— É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la - confirmou  o outro e logo acrescentou, como que dando por acabada a entrevista:

 

— Quer tomar alguma coisa mais?

 

— Não; muito obrigado.

 

Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi foi para a sua roda  de Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo.

 

Um deles perguntou-lhe:

 

— O que queria aquele sujeito contigo?

 

— Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador antigo, pediu-me  que lhe arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma comissão.

 

Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de valente. Não julguem  que tinha estima e amizade por esses rapazes que andavam sempre com ele. Ele  não os amava, como não amava ninguém e com ninguém  simpatizava. Era uma coorte digna dele, que o iludia do vácuo feito  em torno dele, por todos os rapazes daquelas bandas.

 Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro, bem apessoado, mas  antipático pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido  operário em uma oficina do Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos,  abandonou o emprego, abandonou a mãe, de quem era único arrimo,  e quis imitar o mestre até o fim. Foi infeliz. Arranjou uma complicação  policial e matrimonial de donzelas, nas quais Cassi era useiro e vezeiro,  e saiu-se mal. Obrigaram-no a casar; mas teve a hombridade de ficar com a  mulher, embora, resignadamente, ela sofresse toda a espécie de privações,  no horrível subúrbio de Dona Clara, enquanto ele andava sempre  muito suburbanamente e tivesse vários uniformes de football.

 Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e também do football,  em que era considerado bom jogador - "plêiel", como dizem  lá.

 De vários clubes, havia sido expulso ou se havia demitido voluntariamente,  porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado pelos adversários,  para facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente de jogo de bicho,  e sua mulher viera gozar de mais algum conforto.

 Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela, era moça,  e bonitinha, na sua fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um tanto  baça, é verdade, mas não a ponto de enfeá-la,  quando conheceu Ataliba; e hoje? Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair  sofrimentos de toda a espécie, sempre mal calçada, quando, nos  tempos de solteira, o seu luxo eram os sapatos! Quem te viu e quem te vê!

 Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas idéias;  não guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única  mania era beber e dizer-se valente. Topava todos os ofícios; capinava,  vendia peixe e verdura, com cesto à cabeça; era servente de  pedreiro, apanhava e vendia passarinhos, como criança; e tinha outras  habilidades desse jaez.

 Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia de rugas precoces, sem dentes,  todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida, e era longo e estreito o  seu crânio, do feitio daqueles a que o povo chama "cabeça  de mamão-macho".

 Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa  e pela bebida, uma família a quem ele prestava pequenos serviços  - ir às compras, ao açougue, lavar a casa - dava-lhe um barracão  na chácara, onde dormia, e comida, se estivesse presente às  refeições. Encontrava-se nessa ruína humana o melhor  da turma e o único que não tinha maldade no coração.  Era um ex-homem e mais nada.

 O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez ou outra,  aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embrulhar os crédulos  clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele não  tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já  por não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não  ser, de verdade, advogado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros,  simplórias viúvas, que, no pressuposto de que os seus serviços,  na justiça, sobre a demarcação de terras litigiosas ou  despejos de inquilinos relapsos, fossem mais baratos, procuravam-no. Ele recebia  os adiantamentos e, em seguida, mais algum dinheiro, conforme a ingenuidade  e a falta de experiência do cliente, e não fazia nada. Entretanto,  vivia muito decentemente com a mulher, filhos e filhas. Cassi não lhe  pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando do violeiro, a conselho da  mulher, que zelava extremamente pela reputação das filhas, que  se faziam moças.

 O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo tout  court. Nele, talvez, houvesse tipo mais nojento do que mesmo em Cassi. A sua  profissão consistia em furtar, no trem, chapéus-de-sol, bengalas,  embrulhos dos passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos.  De tarde, ele fazia a especialidade dos embrulhos; e, à noite, às  vezes, a altas horas, postava-se na beira da plataforma de estação  pouco freqüentada e, quando o trem tornava movimento e impulso, arrebatava  rapidamente os chapéus dos passageiros, através da portinhola,  principalmente se de palha e novos. Vendia-os, no dia seguinte, como vendia  os chapéus-de-sol, as bengalas e o conteúdo dos embrulhos, se  fosse de coisa vendável; roupas de lã ou branca, livros, louça,  talheres, etc.

 Se fossem, porém, doces, frutas, queijos, biscoitos, grãos,  ele levava para a casa e contava à mulher que só arranjara dinheiro  para comprar aquelas guloseimas para as crianças. Usava dos mais imprevistos  estratagemas, para não pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo ficado  a dever oito meses, apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos, pediu-os  para examiná-los e ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa  competente em matéria de selo, porquanto as estampilhas não  lhe pareciam legais. Nunca mais os devolveu; e, apesar de todas as ameaças,  ainda ficou morando na casa quatro meses. Os seus vizinhos contavam que ele  tinha também o hábito de arrebatar as notas do Tesouro das mãos  das crianças, quando as encontrava sós também a caminho  das vendas, onde iam fazer compras para as casas paternas, levando-as à  mostra, na imprevidência natural de crianças.

 Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie  de amizade por esses rapazes, não pela baixeza de caráter e  de moral deles, no que ele sobrelevava a todos; mas pela razão muito  simples de que a sua natureza moral e sentimental era sáfara e estéril.  A seus pais e às suas irmãs, não o prendia nenhuma dose  de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo com sua mãe,  que o tinha retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em vésperas  de seguir para a detenção, ele só tinha manifestações  de ternura, quando estava às voltas com a polícia ou com os  juizes. O seu fundo e os seus princípios explicavam de algum modo essa  sua aridez moral e sentimental.

 A sua educação e instrução foram deveras descuradas.  Primeiro nascido do casal, quando as exigências da manutenção  da família obrigavam seu pai a trabalhar dia e noite, não pôde  este, pois poucas horas passava em casa, vigiá-las convenientemente.  Rebelde, desde tenra idade, a doçura para com ele, por parte de sua  mãe, e os prejuízos dela impediram-na que o corrigisse convenientemente,  assiduamente, no tempo próprio. Não ia ao colégio; fazia  "gazeta", correndo pelas matas das cercanias da residência  dos pais, então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam, pode-se  bem adivinhar; mas a mãe fingia não perceber, passava a mão  pela cabeça do filho querido, nada dizia ao pai, que quase mourejava  durante as vinte e quatro horas do dia. Cresceu assim, sem nenhuma força  moral que o comprimisse; e o pai seria a única.

 Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção  a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha,  com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de  Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado, fumando  às escâncaras, mal lendo, aos gaguejos, e escrevendo ainda muito  pior. Pô-lo nos "Salesianos"" de Niterói, As informações  semanais eram péssimas; e, ao fim de três ou quatro meses de  colégio, não sabemos que torpeza cometeu no colégio que,  uma bela tarde, acompanhado de um padre magro, com uma cortante figura angulosa  de asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em casa. Falou-lhe o reverendo  em particular, e Manuel de Azevedo, quase chorando, despediu-se do reverendo,  que insistia nas desculpas, e respondendo deste único feitio ao eclesiástico:

 

—Os senhores têm razão, muita razão. Eu é  que me sinto infeliz por ter um filho bastante mau e vicioso com tão  pouca idade. Que castigo, meu Deus!

 

A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a dignidade e a vergonha  de pai fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o dissesse.

 Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a  aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana  revoltou-se e esbravejou:

 

—Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele  é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços  ao país.

 

Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela muito o ajudara  e o animara, Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera afeição,  evitando o quanto possível contrariá-la, e, por isso, não  teimou dessa feita. Meses depois, porém, logo que chegou em casa, a  mulher e as filhas, chorando, pedem que vá soltar Cassi, que estava  preso em uma delegacia. O menino já roçava pelos dezesseis anos  e mostrava-se assim precoce na carreira de falcatruas. Havia sido preso, pelo  respectivo vigia, no interior de uma casa vazia, quando procurava arrancar  encanamento de chumbo para vender.

 O pai, então, voltou à idéia de pô-lo em uma oficina,  a ver se o trabalho manual, já pelo cansaço, já pela  convivência com pessoas honestas e de trabalho, desviava-o do mau caminho  que ele estava iniciando. A mãe acedeu com grande repugnância,  e ele foi ser aprendiz de tipógrafo.

 No fim de um mês, porém, era despedido, porque, tendo ido receber  uma conta de cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco  mais do que isso, voltara sem dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado  convenientemente, foi-lhe o dinheiro encontrado quase intacto entre a botina  e a meia.

 A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele  eram o seu fraco. Queria-o; mas sem trabalho e para ele só. As menores  dívidas que fazia, não pagava; não oferecia nada a ninguém.  Houve quem o conhecendo e sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os  seus desvirginamentos seguidos e as suas constantes seduções  a raparigas casadas, como sendo a resultante da aridez de dinheiro, que o  encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade sexual levada ao extremo,  que a sua estupidez explicava.

 Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo e que  nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não  cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo  o vagar. Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava  os planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos  scrocs de outras naturezas. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia  os obstáculos que antevia.

 Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas  langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo,  que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças  daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência  e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade  num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida.

 Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones  sabia aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d"alma  de suas vítimas, para consumar os seus horripilantes e covardes crimes;  e, quase sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices...

 

III

 Marramaque, apesar de sua instrução defeituosa, senão  rudimentar, tinha vivido em roda de pessoas de instrução desenvolvida  e educação, e convivido em todas as camadas. Era de uma cidadezinha  do Estado do Rio, nas proximidades da Corte, como se dizia então. Feito  os seus estudos primários, os pais empregaram-no num armazém  da cidade. Estávamos em plena escravatura, se bem que nos fins, mas  a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica, com  as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava  e penava sob os açoites e no suplício do tronco.

 O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens,  roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras,  para trabalhadores; armas, louças, etc., etc. Comprava diretamente  nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era  intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital  do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles,  por conta destas, com o que ganhava comissão.

 Marramaque era contemplativo e melancólico, e vivia, debruçado  ao balcão do armazém, ouvindo os tropeiros e peões contar  histórias de todo o gênero: façanhas de valentia, maus  encontros pelos caminhos desertos, proezas de desafio à viola e de  amor roceiro.

 No gênio, não saía ao pai, que era um minhoto ativo,  trabalhador, reservado e econômico. Em poucos anos de Brasil, conseguiu  ajuntar dinheiro, comprar um sítio em que cultivava os chamados "gêneros  de pequena lavoura", aipim, batata-doce, abóboras, tomates, quiabos,  laranja, caju e melancia, dando-lhe esta última cultura, pelos fins  do ano e começo do seguinte, lucros razoáveis. Com o correr  do tempo comprara um bote; e, duas vezes por semana, acompanhado de um companheiro  a quem pagava, trazia ele mesmo os produtos de sua lavoura, navegando por  um pequeno rio, mais ou menos canalizado, atravessando a Guanabara até  o Mercado. Vinha com o "terral" e voltava com a "viração".

 O filho não seria capaz dessas proezas; mas, como sua mãe,  que, embora quase branca, tinha ainda evidentes traços de índio,  seria capaz de cantar o dia inteiro modinhas lânguidas e melancólicas.

 Havia, quando rapazola, muitas névoas na sua alma, um diluído  desejo de vazar suas mágoas e os sonhos, no papel, em verso ou fosse  como fosse; e um forte sentimento de justiça. O espectro da escravidão,  com todo o seu cortejo de infâmias, causava-lhe secretas revoltas.

 Certo dia, um viajante, que pousara no armazém, deixara, por esquecimento,  na mesa do quarto em que fora hospedado, um volume das Primaveras de Casimiro  de Abreu.

 Ele nunca havia lido versos seguidamente. Nos jornais que lhe caíam  à mão, mesmo nos retalhos deles e em páginas soltas de  revistas que vinham parar ao armazém para embrulho, é que lera  alguns. Dessa forma, encontrando, no seu natural melancólico, cheio  de uma doce tristeza e de um obscuro sentimento da mesquinhez do seu destino,  terreno propício, o livro de Casimiro de Abreu caiu-lhe n"alma  como uma revelação de novas terras e novos céus. Chorou  e sonhou com os doridos queixumes do sabiá de São João  da Barra e não deixou de notar que, entre ele e o poeta das Primaveras,  havia a semelhança de começarem ambos sendo caixeiros de uma  casa de negócio da roça. Cristalizada a emoção  profunda que lhe causara a leitura dos versos do gaturamo fluminense, Marramaque  resolveu agir, isto é, instruir-se, educar-se e... fazer versos também.  Para isso, precisava sair dali, ir para a Corte.

 De quando em quando, pousavam no armazém, onde dormia também,  caixeiros-viajantes de grandes casas da Corte que tinham negócios com  o Senhor Vicente Aires, patrão de Marramaque. O seu natural bom, prestativo,  a sua irradiação simpática, provinda dos seus sonhos  vagos e amontoados, faziam-no estimado deles todos. Havia um, entretanto,  que ele estimava mais. Era um rapaz português, o Senhor Mendonça,  Henrique de Mendonça Souto. Em tudo, ele era o contrário do  pobre Marramaque, Era alegre, folgazão, palrador, bebia o seu bocado;  mas sempre honesto, leal e franco.

 Certa noite, estando ele hospedado nos fundos do armazém do Senhor  Vicente Aires, de volta de uma partida de "manilha", na casa do  sacristão da Matriz, o alegre "cometa" veio a encontrar o  caixeiro Marramaque lendo o volume de Casimiro de Abreu. Era alta noite, passava  da meia: e, como o caixeiro tinha que se erguer às cinco da manhã,  para abrir o armazém e atender a tropeiros e viajantes em preparativos  de partida, tal fato causou pasmo a "Seu" Mendonça:

 

—Ainda lês, menino! E não te lembras que, daqui a pouco,  deves estar de pé, filho de Deus!

 

—Esperava o senhor.

 

—E mais esta! Então tu pensas que eu mesmo não sabia  despir-me e meter-me à cama? Que lês?

 

—Primaveras, de Casimiro de Abreu.

 

O caixeiro-viajante acabou de vestir-se e deitou-se, Depois de cobrir-se,  perguntou a Marramaque:

 

—Tu gostas de versos, rapaz?

 

Hesitou em responder, mas Mendonça fez rispidamente:

 

—Dize lá, rapaz; porque nisto não vai crime algum. Está  a ver-se, rapaz! Dize!

 

—Gosto, sim senhor - fez o caixeiro timidamente.

 

— Pois deves ir para o Rio - acudiu Mendonça com pressa - estudar  e... quem sabe lá?

 

— Se eu arranjasse um emprego na Corte...

 

Mendonça pensou um pouco e disse:

 

— Na casa, não te serve. Há muito serviço e tu  não te acostumas... És aprendiz de poeta, tens inclinação  para essas coisas de versos e te aborrecias. O que te serve, era trabalhar  numa farmácia. Fala a teu pai que eu te arranjo a coisa. Escrevo-te  logo que chegar ao Rio.

 

Mendonça cumpriu a palavra, e o pai consentiu que ele viesse para  o Rio. Marramaque foi trabalhar numa farmácia; e, à noite, ia  completando a sua instrução, conforme podia, nas instituições  filantrópicas de instrução que existiam no tempo.

 Logo, tratou de fazer versos; e, certa vez, foi surpreendido por um dos habitués  da farmácia, compondo uma poesia. As farmácias, naquele tempo,  eram o lugar de encontro de pessoas graves e sisudas da vizinhança,  que, à tarde, após o jantar, iam a elas espairecer e conversar.  Quem surpreendeu o jovem Marramaque, fazendo versos, foi o Senhor José  Brito Condeixa, segundo oficial da Secretaria de Estrangeiros, poeta também,  mas, de uns tempos para cá, somente festivo e comemorativo. Além  de publicar, nos dias de gala, sonetos e outras espécies de poesias  alusivas à festa, não se esquecia nunca de comemorar as datas  domésticas da família imperial, em versos de um lavor chinês.  Esperava o hábito da Rosa; mas, só veio a ter no fim do Império,  quando retirou da Imprensa Nacional o terceiro volume da Sinópsis da  Legislação Nacional, na parte que se refere ao Ministério  de Estrangeiros.

 Lendo os versos do adolescente, Brito Condeixa gostou e jurou que havia de  proteger o caixeirozinho. Falou ao patrão, e ele foi se empregar numa  papelaria-livraria, na rua da Quitanda. Freqüentada por poetas e literatos  que ensaiavam os primeiros passos, nos últimos quinze anos do Império,  com eles se relacionou e sempre era escolhido para secretário, gerente,  tesoureiro, de suas efêmeras publicações. Deixou o emprego  da papelaria, sem zanga; e atirou-se às refregas e às decepções  da pequena imprensa, com ardor e entusiasmo, sangue republicano e abolicionista,  sobretudo abolicionista.

 Esse jornalismo contrário e efêmero pouco ou quase nada lhe  dava para a sua manutenção. Vivia uma vida de privações  e necessidades prementes. Sem deixar os companheiros poetas, escritores, parodistas,  artistas, ele se improvisou guarda-livros ambulante, fazendo escritas aqui  e ali, com o que ganhava para ter casa, comida, roupa e até, às  vezes, socorrer os camaradas. Manteve-se sempre absolutamente solteiro.

 Guardava, da sua vida de acólito da boêmia literária,  recordações muito vivas, que gostava de contar, ensopando-as  de comovida saudade. Anedotas deste, casos com aquele, expedientes daquele  outro, ele narrava com chiste e firmeza de lembrança; mas, ao que parece,  a figura de seu tempo que mais o impressionou foi a de um pequeno poeta, que  nunca teve seu quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente  esquecido. A respeito dele, Marramaque se referia com o sentimento profundo  de quem se lembra de um irmão muito amado:

 

—Ah! O Aquiles! Que alma! Que poeta! O senhor - dirigindo ao interlocutor  ocasional - não o conheceu?

 

—Não; não me recordo.

 

—Nem de nome? Ele deixou obras.

 

O outro com quem conversava, por delicadeza, respondia:

 

—De nome, pois não, pois não!

 

—Que alma era esse Aquiles Varejão! Morreu há pouco tempo,  em 94 ou 95; e, se não me falha a memória, na Santa Casa. Morreu  na maior miséria; entretanto, tudo o que ganhava - ele era tipógrafo  - estava sempre disposto a distribuir com os amigos. Não pude ir vê-lo...  Tinha tido o primeiro ataque e estava em tratamento. Lembro-me, porém,  do seu último soneto que a Gazeta publicou. Que lindeza! Aquilo era  um poeta que não forçava, nem tinha compasso e régua.  Ouça só!

 

E, com uma voz difícil, devido à semiparalisia da parte esquerda  da boca, esbugalhando os olhos, devido ao esforço para pronunciar bem  as palavras, recitava:

 

Prostrado nesta enxerga, sinto a vida

 

Ir, pouco e pouco, procurando o nada;

 

Pra mim não há mais sol de madrugada,

 

Mas sim tremor da luz amortecida.

 

Prazeres, onde estais? Longa avenida

 

De amores, que trilhei nesta jornada?

 

Tudo acabou. E justa esta pousada,

 

Antes que dobre o sino da partida.

 

Feliz quem tem família! Tem carinho

 

De mãe, de esposa, e, em derredor do leito,

 

Não sofre o horror de achar-se tão sozinho.

 

Porém ao meu destino estou sujeito;

 

Devo, batendo as asas, sem ter ninho,

 

Buscar, quem sabe? um mundo mais perfeito?

 

O Marramaque, quase sempre, acabava de recitar os versos do amigo com os  olhos úmidos; e o ouvinte, não só peia dor demonstrada  pelo declamador, mas também pelo tom elegíaco do soneto, comovia-se  também e, antes de qualquer pergunta, comentava:

 

—É bonito! É mesmo lindo.

 

Marramaque, poeta raté, tinha uma grande virtude, como tal: não  denegrir os companheiros que subitam nem os que ganharam celebridade. A todos  gabava, sem que, por isso, não lhes notasse as falhas de caráter.

 Tendo vivido assim, em vários e diferentes meios, ganhando experiência  e conhecimento dos homens e das coisas da vida, estava apto para julgar bem  quem era Cassi Jones. Demais, devido à sua convivência com literatos,  poetas e escritores, adquirira o hábito tirânico de ler diariamente  todos os jornais que apanhava na repartição, e não fazia  lá outra coisa, devido a seu estado de saúde.

 De quando em quando, ele encontrava noticias mais que escabrosas, às  vezes sangrentas mesmo, em que estava envolvido o nome do famigerado violeiro.  De umas delas, ele se lembrava perfeitamente, porque lhe havia causado, na  sua alma retardada de idealista e sonhador, de poeta que quis ser amoroso  e cavalheiresco, a maior revolta e um movimento de nojo irreprimível.  Joaquim dos Anjos não estava a par dela, pois não tinha hábito  de ler jornais e pouco tagarelava com as pessoas de suas bandas suburbanas.  Marramaque apoiou-se em contador e por alto.

 Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir  um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã,  grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido,  que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado tirando a mulato, baixo,  sempre triste, curvado e pensativo. Apesar da diferença de gênios,  que se percebia, e de idade, que estava à mostra, pareciam viver bem.  Quase sempre saíam à tarde, iam a festas, a teatros; aos domingos,  procuravam visitar os arrabaldes pitorescos e voltavam à noite. Tomavam  comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de uns dezesseis anos,  para os serviços leves da casa. Não se sabe como, Cassi conseguiu  conhecer a gaúcha e seduzi-la. Mal o marido saía, ele se metia  em casa da moça com violão e tudo. A vizinhança murmurava  contra aquela pouca-vergonha. Fosse de que fonte fosse, o marido veio a saber  e um dia, de revólver em punho, furioso, fora de si, louco, totalmente  louco, penetrava na casa e alvejou a mulher com dois tiros de revólver,  de cujos ferimentos veio a morrer horas depois. Após ter alvejado mortalmente  a mulher, correu em perseguição de Cassi, que, descalço,  de calças e em mangas de camisa, saltava cercas e muros, para se pôr  fora do alcance do marido indignado.

 Entregando-se à prisão, o oficial maquinista contou toda a  sua desdita e o causador dela. O delegado mandou procurar Cassi e conseguiu  pilhá-lo à noite, Os agentes deram uma batida nos matos, e o  galã fugitivo foi preso e recolhido à enxovia.

 Por ocasião dessa prisão foi que ele veio a conhecer Lafões.  Tinha este sido detido e recolhido ao xadrez, por ter feito um distúrbio,  num botequim, onde tomara uma carraspana, em comemoração ao  ter acertado uma centena no bicho. Quando Cassi foi recolhido, já Lafões  estava no xadrez, havia quatro horas.

 Cassi, que fugira do revólver do oficial, sem paletó e sem  colete, em cujas algibeiras estava o seu dinheiro, não pudera comprar  cigarros; mas Lafões os tinha, O profissional da sedução  pediu-lhe um, que lhe foi dado, Disse, então, para Lafões:

 

—Vou te soltar, meu velho. Tu és uma bela alma.

 

—Por que vosmecê está preso, meu caro senhor?

 

Cassi respondeu com muita calma e indiferença, como se tratasse de  um acontecimento vulgar:

 

—Por nada. Coisas de mulheres, meu velho. É o meu fraco.

 

Pela grade do xadrez, dirigiu-se a um soldado, a quem conhecia, e falou-lhe  baixo qualquer coisa. Em breve, foi a praça substituída por  outra. Vendo isso Cassi, disse para o velho Lafões:

 

—Estás aqui, estás na rua. Mandei o soldado falar ao  meu chefe político: e ele vai interessar-se para seres solto,

 

—E vosmecê?

 

—Não te importes comigo. Tenho que depor...

 

Na verdade, Lafões foi solto; não houve, porém, qualquer  intervenção do chefe político de Cassi. Libertou-o o  próprio comissário que o prendera e o conhecia como homem morigerado  e qualificado.

 Entretanto, o guarda das obras públicas sempre supôs que a sua  libertação tivesse sido obra de Cassi, por isso lhe era grato  e o defendia com todo o ardor.

 Lafões era um homem simplório, que só tinha agudeza  de sentidos para o dinheiro que vencia. Vivendo sempre em círculos  limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco,  ele não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi;  que alma suja e má era a dele, para se interessar generosamente por  alguém.

 Muito diferente do guarda era Marramaque, cujo âmbito de vida sempre  fora mais amplo e mais variado. Abraçava um maior horizonte de existência  humana...

 Quando aquele lembrou que se convidasse o celebrizado violeiro, o contínuo  viu logo os perigos que a presença do profissional da desonra das famílias  podia trazer à paz e ao sossego que reinavam na casa de Joaquim dos  Anjos.

 Agora mesmo, tivera a confirmação dessa suspeita com a ingênua  denúncia de Edméia, a filha de Lafões, de que Marramaque,  padrinho de Clara, não gostava dele. Era, portanto, prevenir-se contra  as "intrigas" do aleijado e arredá-lo de vez. Cassi sabia  que, quase sempre, Marramaque parava na venda do "Seu" Nascimento,  quando vinha do trabalho. Lá ficava bebericando com outros, até  que o negócio se fechasse. A ele, Cassi, não convinha ir por  todos os motivos; Timbó não podia também, por ser muito  conhecido na localidade, devido à surra que levara; Zezé Mateus  era um idiota. Quem iria, então, sondar aquele terreno? O Arnaldo,  que não era conhecido no local, nem sabidas eram as suas relações  com ele. Muito a contragosto, dirigiu-se para a casa dos pais. Não  tinha dinheiro que prestasse, para "escorvar" o jogo.

 O seu "socavão" doméstico ficava bem debaixo da sala  de jantar da casa, que aí acabava o seu corpo principal. As dependências  restantes ocupavam um puxado longo. Quando ele entrou, percebeu que na sala  de jantar, além do pai, mãe e irmãs, havia alguém  que não era de hábito e dissera, ouvindo-lhe os passos:

 

—Há alguém aí?

 

—É Cassi - dissera a mãe,

 

—Ele não sobe aqui? - perguntou a visita.

 

Todos se calaram e se entreolharam, enquanto o velho Manuel de Azevedo explicava  o fato em quatro palavras:

 

—Você queria, Augusto, que eu, chefe de família, que prezo  a honra das filhas dos outros como a das minhas, deixasse semelhante miserável  sentar-se ao meu lado? Se não o pus de todo para a rua, foi devido  à mãe.

 

—Você tem razão, mano; mas tudo isto que se diz dele pode  ser calúnia.

 

—É também o meu pensamento, Augusto - falou Dona Salustiana.

 

As moças se haviam calado por pudor, mas o velho Azevedo cortou de  vez o argumento da mulher e do irmão:

 

—Você não leu esses papéis escritos a máquina,  que mandaram a você, dois dias após você chegar, para o  hotel?

 

—Li.

 

—Leu as datas, a narração dos fatos, as cartas?

 

—Li, também, mas o tempo...

 

—Pois tudo é verdade; e ninguém mais do que eu, infelizmente,  pode assegurar isso. Em menos de dez anos, esse meu indigno filho fez tudo  isso. Não o posso negar em sã consciência. Se não  posso...

 

Ao entrar, Cassi, tendo percebido que a conversa ia versar sobre ele, colocou-se  de ouvido atento, embaixo da janela, nada perdendo e conseguindo ouvir esse  trecho em que tomava parte o seu tio Augusto, irmão de seu pai, que,  havia muito tempo, andava destacado numa alfândega do Norte. Quando  o velho Manuel de Azevedo falou em papéis escritos a máquina,  trazendo indicações de datas e a narração dos  fatos de suas complicações com a polícia e a justiça,  Cassi assustou-se. Quem estaria fazendo aquele trabalho surdo? Não  era a primeira vez que tivera notícia da existência desse caderno  misterioso e misteriosamente distribuído pelo correio. Dissera-lhe  um investigador de uma delegacia suburbana que, logo que havia mudança  de delegado ou de comissário, numa delas, o novo delegado ou o novo  comissário recebia o tal caderno. Apavorava-lhe essa perseguição  nas trevas, talvez segura, que, aos poucos, o ia minando. Tão indiferente  era ele pela sorte de suas vitimas e tão estúpido se mostrara  sempre em não compreendê-las, que não podia encadear raciocínios  seguros, para ter a procedência, mais ou menos provável, da remessa  de tais cadernos.

 Precisava fugir - era o que concluía; e ele se sentia ameaçado,  não por duendes, mas por alçapões, homens mascarados,  cárceres privados, suplícios, etc. - todo o arsenal do maravilhoso  das fitas de cinema.

 Entretanto, queria antes resolver o caso de Clara, que, apesar de tudo, considerava  em meio.

 Deitou-se e dormiu regaladamente, até o alvorecer do dia. Logo que  a luz do sol ganhou uma relativa nitidez, ele foi passar revista nas suas  gaiolas de galos de briga. Estava tudo a postos, e foi lhes dando milho, tirado  de uma lata que tinha em uma das mãos, e olhando todos aqueles bichos  hediondos, com a ternura de um honesto criador, que revê o seu trabalho  nas travessas pesquisas ou na doçura de olhar de seus cordeiros. Aos  pintos, deu milho moído, triguilho, e só não deu ovo  picado porque não era dia. O seu embevecimento por aquelas horrendas  aves era sincero: elas lhe faziam ganhar dinheiro. Olhou-as e perguntou de  si para si:

 

—Quanto valeriam ao todo?

 

Alguns já lhe haviam oferecido quinhentos mil-réis e ele estava  disposto a vendê-las, por esse preço, depois que a "coisa"  estivesse acabada...

 Veio tomar café no "socavão", onde a velha Romualda  lho trazia todas as manhãs. Era velha, e a sua velhice a defendia perfeitamente  contra qualquer assalto de Cassi. Perguntou-lhe este:

 

—Meu tio ainda está aí?

 

—Quem é seu tio, nhonhô?

 

—Aquele moço que esteve ontem, à noite.

 

—Ah! Foi embora logo depois do chá.

 

Não trocaram mais palavras. Depois de servido o café e comido  o pão com manteiga, a velha Romualda levou a bandeja com a xícara,  e Cassi tratou de vestir-se e sair.

 Quase nunca parava em casa. Temia encontrar-se com o pai, que, por isto ou  por aquilo, houvesse resolvido ficar no lar, e também por não  poder suportar o desdém de suas irmãs. A casa era-lhe mais penosa  do que os xadrezes, por onde passara dezenas de vezes.

 Ia à procura de Arnaldo, que, morando na Estrada Real, vinha no bonde  de Cascadura, para tomar o trem no Méier. Arnaldo não deixava  de um só dia ir "lá embaixo". Esperava sempre fazer  um biscate e, quando não o fizesse, arranjar algum "magote"  no trem.

 Não se enganara. Às nove e pouco, Arnaldo, com o seu nariz  de tromba de tapir, os seus olhos arredios e catadores, chegara; Cassi disse-lhe  que dele precisava, às cinco horas, ali; e pagou-lhe o café.

 

—Pois não, Cassi; nas ocasiões é que se vêem  os amigos. Cá estarei.

 

Fazendo o sacrifício de perder uma tarde de colheita, Arnaldo chegou  na hora marcada, ao ponto ajustado.

 Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda  do Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá,  simularia ter ido procurar por "Seu" Meneses, que ele conhecia.

 

—Se ele não estiver? - indagou Arnaldo.

 

—Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá.  Nela, devem estar, entre outros, o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele  não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você  ouvir, guarda e me conte. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar  com ele, negócio de interesse dele.

 

Cassi deu-lhe dois mil-réis e ele se pôs a caminho, mas a pé,  para poupar o tostão do bonde. Chegou à venda de "Seu"  Nascimento, teve duas decepções. Encontrara dois sujeitos, que  o conheciam perfeitamente: um era um engenheiro inglês, Mr. Persons,  de quem "abafara" uma capa de borracha, e o outro era o Alípio,  que até o sabia da roda de Cassi.

 Não se deu por vencido e, atravessando por entre Alípio e o  velho Marramaque, que conversavam, foi direto ao balcão e perguntou  naturalmente:

 

—O senhor não conhece um velho dentista, por nome Meneses?

 

E acrescentou:

 

—Ele tem vindo aqui?

 

O taverneiro respondeu:

 

—Há dias que não - e, dirigindo-se aos circunstantes,  por sua vez indagou: - vocês têm visto o doutor Meneses?

 

Todos, porém, responderam: não.

 Arnaldo ia dizer obrigado, para retirar-se, quando Mr. Persons perguntou-lhe:

 

—Sinhor, vem cá!

 

Arnaldo fez-se jovial.

 

—Oh! "Seu" mister como vai?

 

—Não diga "Seu" mister, é "error".  Bem... Onde está mia capa?

 

—Trago por esses dias, tenho me esquecido.

 

—Já é duas vezes que "sinhor" diz isso. Eu  precisa da capa.

 

—Não me esquecerei.

 

E saiu apressado. O negócio da capa fora simples. Persons não  viera da cidade são de seu juízo e deixara a capa descansando  no banco, ao lado, recostando-se na parede do carro. Pouco antes de certa  estação, Arnaldo sentou-se a seu lado, no intento de carregar-lhe  a capa. Ao pôr em prática o seu propósito, Persons despertou,  mas só pôde dar com o furto, quando Arnaldo ia saindo do carro.  Gritou: "minha capa". Um condutor ainda agarrou Arnaldo com a carga,  mas, quando o Persons deu com o lugar em que estavam ambos, já o auxiliar  o tinha largado e o trem se pusera em movimento. Guardara, porém, a  fisionomia do gatuno; e, vindo a encontrar-se com ele, perguntara-lhe por  essa peça de vestuário, e Arnaldo lhe dissera que a havia levado  por engano.

 Ele saiu corrido de vergonha; mas, vendo que ninguém vinha até  às portas da venda, ele voltou e se pôs a ouvir o que diziam.

 O mister já acabara de contar a história da capa, quando Alípio,  em tom de comentário, dissera:

 

—Isto que saiu daí é uma peste. Não sabia dessa  história de furtos nos trens; mas basta ele ser do bando do tal Cassi,  para não prestar.

 

Marramaque acudiu:

 

—Eu ainda não conhecia este. Vou indicá-lo ao compadre.  O tal Trembó ou Tipó, como é?

 

—Timbó, fez Alípio.

 

—O tal de Timbó já conheço e já o apontei  ao compadre. Por falar nisto, o senhor sabe, "Seu" Nascimento e  meus senhores, o que recebi, há dias, pelo correio, na secretaria?

 

—Não - responderam todos, por sinais ou por palavras,

 

—A vida desse Cassi.

 

—Impressa?

 

—Não. Copiada a máquina de escrever, com fotografias  dele, cópias de notícias dos jornais do tempo, indicação  das datas dos processos e dos juizes e delegados - tudo!

 

—Quem lhe mandou? - perguntou Alípio.

 

—Não sei. Recebi a coisa na secretaria, lá a li e dei-a  ao compadre, para se prevenir.

 

—Com uma boa garrucha - observou Nascimento.

 

—Ou revólver - obtemperou Marramaque.

 

                                                                                           

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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