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CLEÓPATRA RAINHA E MULHER / Terenci Moix
CLEÓPATRA RAINHA E MULHER / Terenci Moix

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CLEÓPATRA RAINHA E MULHER

 

Cleópatra Sétima, rainha do Egito, amante de Júlio César e de Marco Antônio, soberana de um império em decadência cujas fronteiras sonha ampliar para muito além dos limites a que chegaram os antigos faraós. Uma vulgar prostituta? Uma criatura ambiciosa que não hesita em matar para concretizar seus projetos? Uma destruidora de homens? Neste belo romance de amor e morte, ganhador do Prêmio Planeta de 1986 — o mais importante da literatura espanhola —, o escritor catalão Terenci Moix mostra uma outra verdade sobre essa mulher deslumbrante, dona de vasta cultura e de enorme habilidade política, uma das personagens mais fascinantes da História.

Tendo como principal cenário a mítica Alexandria, Terenci Moix cria um vigoroso romance que resgata uma das personagens mais fascinantes da História: Cleópatra Sétima, rainha do Egito. A célebre soberana apa­rece aqui como uma mulher de extraordinária cultura, apaixona­da e ambiciosa, que acalenta o sonho de transformar sua Ale­xandria na capital de um vasto império, do qual Cesário Ptolo­meu, seu filho com Júlio César, seria o chefe supremo. Seu amor por Marco Antônio — retratado como um soldado grosseiro, co­lecionador de derrotas políticas-e militares — insere-se nesse projeto grandioso.

Mesclando ficção e realidade, Moix leva o leitor a transportar-se no tempo e no espaço para conviver com egípcios e roma­nos, sacerdotes e prostitutas; pa­ra participar de batalhas e ceri­mônias místicas; e para conhe­cer intrigas que determinaram a queda e a consolidação de dois impérios. Desse modo é elabo­rado um deslumbrante painel da Antiguidade, merecedor do Prê­mio Planeta, o mais importante da literatura espanhola.

O romancista catalão Terenci Moix costuma dizer que nasceu em algum ano da década de 50, no século XX, com um pé em Alexandria e outro em Barcelo­na. Em 1968-1969, irrompeu no mundo da literatura com La tor­re de los vícios capitales e Olas sobre una roca desierta, que, aplaudidos pela crítica interna­cional, lançaram-no de imedia­to a uma posição de destaque dentro da nova geração de escri­tores espanhóis.

Ganhador de cinco troféus im­portantes da literatura catalã, Terenci Moix conquistou, em 1986, o Prêmio Planeta, com o romance Cleópatra, rainha e mulher (No digas que fue un sue-no). Opera, teatro, pintura e ci­nema (uma de suas obras mais famosas é justamente O dia em que Marilyn morreu, publicado pela Editora Globo) igualmente despertam seu interesse e inspiram-lhe numerosos artigos e romances. Moix dedica-se tam­bém ao jornalismo, colaborando com alguns dos mais importan­tes periódicos espanhóis, dentre os quais El País.

 

 

                   LIVRO PRIMERO

                   SERPENTE DO NILO

 

Ela era o último membro de uma raça solitária e sutil. Era uma flor que Alexandria havia tardado trezentos anos a produzir e que a eterni­dade não pode murchar. E abriu-se ante um soldado romano, simples mas inteligente...

  1. M. Forster, Alexandria

 

E disse a mulher:

Maldito seja Amor, que me assassina. Tingi de morte o Nilo. Cobri de luto as nuvens. Convertei o Egito em se­pulcro.

E assim se fez. O pavor foi descendo pelo rio. A morte instalou-se em suas margens. E caiu o inferno sobre o universo.

Cumprida a ordem, uma densa nuvem negra cobriu os céus nos quais nunca há nuvens. Tão insólita era que se di­ria o véu de uma deusa traiçoeira. Dir-se-ia sangue apodre­cido gotejando sobre os frondosos palmeirais, as florestas de papiros, os pomares e jardins que um dia foram férteis.

Uma galera real vogava com majestosa lentidão em busca dos confins mais remotos do reino, onde este se perde nos desertos que correm em busca das selvas ignotas, onde di­zem que nasce o rio santo.

O negror chegava acompanhado por hinos tão tristes quanto o dia. Era a percussão incessante de cem timbales do­loridos. Era o bater de cem remos nas águas, por sua vez tão tristes que também se tornaram negras.

As ribeiras encheram-se de camponeses procedentes dos vilarejos mais próximos. Chegavam em procissão, e em seus rostos enrugados, em suas rugas sulcadas pelo sol de muitos séculos, o espanto alternava-se com o medo. Jogavam-se no chão, escondiam a cabeça entre os juncos, golpeavam o pei­to com pedras afiadas e esfregavam os olhos com lodo, co­mo se vem fazendo desde os tempos mais remotos quando morre um monarca ou quando a natureza interrompe seu cur­so inexorável, porque os deuses não estão satisfeitos.

A nuvem negra pousava sobre todas as cores da paisa­gem, tão sensível nos albores do mês de Atir, quando a luz já não chega, esgotada pelos flagelos do estio. Os palmeirais e os trigais, os bosques de sicómoros, as mimosas, os hibis­cos, as heras que sobem pelos palácios, tudo que ontem foi uma profusão de esplendoroso colorido ficava encerrado na­quela cor única, manto sinistro que os camponeses, aterra­dos, não podiam reconhecer. Pois ignoravam o tipo de per­fume de cuja mescla brotava.

Perfumes que os escravos negros da nave espargiam por toda parte.

Perfumes das noites de Alexandria! Emanações entre-mescladas de sândalo, almíscar e ambarina; essências de in­censo, patchuli e da mirra que adormece os sentidos; flutua­ções de heliotrópio e açucenas combinadas com o sumo oleoso que as gardênias destilam quando roçam o sexo de uma vir­gem nabatéia.

Em contato com o ar, a mescla tingia-o de luto. E, as­sim empeçonhadas, as auras caíam sobre os camponeses co­mo uma condenação. A noite mais pavorosa apoderava-se do dia. Todos interpretaram aquilo como um augúrio do fi­nal do universo, segundo se anuncia nas inscrições dos tem­plos antigos.

Os camponeses acolheram a catástrofe salmodiando can­tos mortuários aprendidos nos grandes funerais e transmiti­dos de uma geração a outra.

Quando os escravos que espargiam os perfumes descan­savam um instante, a nuvem artificial se diluía. Em meio a uma breve pausa, semelhante a um amanhecer, surgiam co­mo um consolo as águas familiares do Nilo e, sulcando-as, uma soberba proa em forma de papiro. E, sobre as estrias rosicleres que seu avanço abria na corrente, emergia a em­barcação de Cleópatra Sétima.

A suprema majestade de Alexandria navegava rumo à matriz do Egito!

Então os camponeses descobriram que a famosa embar­cação estava de luto. Negras eram as velas, negro o convés, inteiramente negras as carrancas e até os régios estandartes. Não anunciaria tudo aquilo algum lúgubre prodígio? Até on­tem, foi uma nave suntuosa, ainda mais brilhante que todo o ouro das minas do Sinai, mais deslumbrante que todas as cores das colunas do templo de Amon. Foi igual a um cofre repleto de riquezas e, hoje, era uma urna para restos de de­funtos. Sulcou os mares até a própria Roma e hoje parecia um velho corvo que só desejava morrer na ignota solidão dos desertos.

Que ordem pronunciada na distante Alexandria destruíra o donaire daquela galera, dissimulando-o sob um disfarce tão negro quanto a nuvem que esmagava os azuis do Nilo?

Havia sido um grito de Cleópatra. Pronunciou-o com os braços erguidos, como se invocasse todas as deusas da vin­gança, fossem gregas ou egípcias:

— Morte sobre meu amor ingrato! Que cubram de luto minha galera, como a cobriram de ouro quando fui a seu en­contro. Os tesouros do Egito despertaram-lhe a cobiça. Que o luto do Egito sepulte para sempre sua lembrança. Luto em mi­nha nave, ministros. Luto nos céus. E no próprio Nilo, luto.

Tudo foram crepes; portavam negras braçadeiras os sol­dados e negras túnicas as damas da que havia sido a mais amena das cortes. E, como um remate da aparência mortuá­ria da galera, negro também ficou o solene baldaquim, cus­tódio, por sua vez, do trono que a rainha ocupava para con­templar o lento passar das margens em navegações mais felizes.

Mas naquele trono enlutado só restava um lenço azul que Cleópatra esquecera. Era o emblema de sua ausência in­substituível.

Ao descobri-lo, exclamou um personagem de nobre as­pecto que, do convés, contemplava os camponeses:

— Continua sem aparecer. Esconde-se de nós. E já faz três dias que zarpamos de Alexandria.

Assim falou Epistemo. Tinha uma voz melíflua, que ar­rastava o modo caprichoso de falar do cortesão, mas escon­dia uma última inesperada revelação, como convém à caute­la do político.

—            A rainha consegue converter em espetáculo seu luto de amor! Se exige tanta suntuosidade para um abandono, qual não reservará para a morte, que queiram os deuses re­tardar o quanto possível?

Dirigia-se a um mancebo de traços formosos e porte al­tivo, além de outras singularidades que o convertiam no mais pitoresco dos tripulantes da nave. Pois, enquanto os demais vestiam negro, como ordenava o luto da rainha, suas roupa­gens eram completamente brancas, como cabe aos homens que fizeram voto de servir aos interesses da alma. Sua cabe­ça era raspada da maneira inconfundível dos que juraram consagrar-se ao serviço dos deuses.

Com um amplo gesto que abarcava o impenetrável ne­gror que os envolvia, exclamou:

Todo este luto por um simples amorico!

Pois eu te digo que é por um amor que foi tudo, me­nos simples. Egrégia em tudo é Cleópatra Sétima. Na pleni­tude do amor o era. Em sua dor o é mais ainda. Sabe-o já, pois a própria rainha quebra seu segredo ao converter a na­ve real em voz pública do desconsolo. Sabe que o romano que ocupou seu leito, aquele hipócrita que, há apenas um ano, deixou-a grávida de dois príncipes, aquele Marco An­tônio que ela fez aparecer nos grandes monumentos como dono e senhor de Alexandria e depois monarca do Oriente inteiro, aquele vil, aquele animal, tomou mulher em Roma.

Sendo Cleópatra a mãe de seus filhos?

As leis romanas só reconhecem os filhos que Marco Antônio teve com a primeira esposa, a infausta Fúlvia... Epistemo inclinou-se para o mancebo, a fim de falar-lhe em tom mais reservado. E já que falamos de filhos, precisa­ríamos de altas matemáticas para contar os que Antônio en­gendrou em quantas cidades visitou antes de chegar a Ale­xandria!...

A curiosidade do servidor dos deuses foi mais forte que o recato.

Tantos filhos de um amante tão miserável?

Amante miserável, talvez; esposo falso, quem sabe; mas também um reprodutor de estatura. É tão impenetrável assim a clausura dos templos que não vos chega esse tipo de notícia? Se tua castidade não tivesse de se recriminar depois, eu te contaria os transes a que os excessos da carne levavam Antônio. Basta dizer que ele crê descender do próprio Hér­cules e, além disso, ser apadrinhado por Baco! Cá entre nós, se com tal combinação de fúria e selvageria não encheu de filhos todos os gineceus do Império, as mulheres do século deveriam se envergonhar, pois já não sabem parir como suas mães.

Ao inclinar todo o corpo para a frente, em busca de maior segredo, deparou-se com uma expressão de repúdio.

Sem dúvida, zombas de meu sagrado ministério, já que invocas deuses estrangeiros. Deves saber que os abomi­no e destesto o amante romano da rainha. O que ele repre­senta e todos os que são como ele.

Quando, em um movimento demasiado brusco, mostrou um dos braços, Epistemo viu que estava raspado como a ca­beça. Assim pôde saber que se encontrava diante de um mem­bro da sagrada ordem de Isis, pois seus acólitos são os mais obcecados inimigos da impureza dos pêlos, que tanto ofen­dem a grande mãe; e, a fim de sentirem-se limpos e destarte tornarem-se gratos a seus olhos, devem raspar todo o corpo duas vezes por semana, o que costuma ser objeto de zomba­ria por parte dos blasfemos e dos viajantes que chegam de Roma.

O mancebo provinha de um iseion1 do Alto Nilo, conforme contou com grande brevidade e economia de palavras, pois era de natural

 

  1. Templo de Ísis (N. Do E.)

 

austero. Também disse chamar-se Tot-més, em honra ao deus Tot. Então o servo de Epistemo tratou-o de antiquado, pois os moços na moda preferem chamar-se Hermes, derivação grega daquele nome que, no passado, ostentou o deus com cabeça de íbis, padroeiro da sabedoria. Embora Epistemo quisesse acrescentar frivolida­de à grosseria do servo, deparou com o repúdio aberto de Totmés. Resistia a qualquer outro comentário referente a sua pessoa, e só pareciam interessar-lhe os camponeses da ribei­ra e os acontecimentos que se desenrolavam no camarote da rainha.

Tantas promessas de amor na boca de um romano só poderiam acabar em luto! continuou falando Epistemo.

De que adianta falar de Antônio e sua boca, se hoje tudo se reduz a um abandono que logo, muito em breve, se­rá esquecimento? É a única coisa que entendo dessa história e de quantas giram em torno do desamor. Sei que, no fim, todos somos esquecimento colocado nas mãos de uma von­tade mais elevada que os sonhos do mundo.

De repente, um sobressalto sacudiu os tripulantes.

Silêncio! exclamou Epistemo. — Digna-se apresen­tar-se diante de nós a suprema majestade de Cleópatra.

Todos se ajoelharam.

 

Podia ser Cleópatra Sétima aquela figura encurvada que subia com grande dificuldade a escada do camarote e chora­mingava como uma velha moribunda? Podia ser a rainha mais fascinante do mundo aquele fardo de véus negros que se apoiava no braço de seu primeiro conselheiro para conseguir avançar apenas uns passos?

Sua aparição, por ser tão desejada, havia enganado a corte. Os sacerdotes de escalão inferior jogaram nos pivetei-ros de ouro uma pletora de essências e perfumes. Os solda­dos, que até então andavam distraídos pelo convés, permitindo-se as atitudes mais indolentes, apressaram-se a formar um corredor, à guisa de caminho sagrado, perfilando­se com o porte altivo adequado às grandes cerimônias. As escravas núbias arrumaram o trono de baldaquim, ao redor do qual agruparam-se os cortesãos mais íntimos. O harpista cego foi transportado quase voando, e as tangedoras de alaúde afinaram seus delicados instrumentos. Também comparece­ram as dançarinas, os equilibristas e o narrador de histórias fantásticas.

No entanto, ao verem avançar aquela anciã prematura, produziu-se um silêncio mortal em todos os rincões do con­vés. Todos os preparativos da alegria foram suspensos, sem nenhuma ordem. Foi o resultado de um desencanto comum. Ninguém escapou a sua influência. Donzelas, eunucos, ma­labaristas, dançarinas, escravos e marinheiros ficaram imó­veis, os olhos cravados naquele par que parecia formado por dois profissionais do pranto, como as carpideiras contrata­das para chorar à vontade nos funerais da alta nobreza.

Com o rosto oculto como o corpo e este retorcendo-se em si mesmo, aquela pobre mulher poderia enganar qualquer um. Contudo o aspecto do nobre Sosígenes não enganava. Era a mesma figura venerável que aparecia constantemente ao lado da rainha desde os longínquos dias da guerra civil, quando Cleópatra conseguiu derrotar seu esposo e irmão, o imberbe Ptolomeu, e apoderar-se do trono do Egito. Sosí­genes, seu preceptor de ontem, seu conselheiro de sempre, era, hoje, o báculo que a sustentava, o guia que orientava seus passos trôpegos.

Cleópatra olhou ao redor, sem entender. O luto da na­ve encontrava resposta adequada na dolente comitiva que os camponeses continuavam formando. Mas nem sequer essa homenagem a sua dor conseguia afetá-la.

Uma vez sentada no trono, tentou adotar a rígida atitu­de que tanto costumava impor aos embaixadores estrangei­ros. A corte inteira reteve a respiração, esperando a eclosão da majestade. Foi uma espera inútil. A cabeça de Cleópatra despencou sobre o peito e o fiel conselheiro correu para sus­tentá-la. Ficou de pé e junto dela, como em tantas ocasiões triunfais. Hoje, porém, limitava-se a ajudá-la a sobreviver.

— Procurarei esquecer em outros corpos o corpo de An­tônio. Não me importa que isso dê razão aos romanos. Se já fui maldita para eles quando César me amou, mais ainda terão a dizer quando me virem agarrada a uma vulgar carne de galeras. A puta de Antônio quer ser, agora, puta de to­dos os homens, inclusive do mais sujo! — Calou-se por um instante. Sentiu-se invadida por uma vaga de doces instan­tes, amáveis recordações que pareciam transportadas pelos cantos funerários das margens. — Antônio! Esse homem in­digno, que tive pelo maior dos heróis, chamava-me de Ser­pente do Nilo! Quanta ternura havia em sua ironia e quanto desprezo nos demais romanos! Não fui outra coisa para eles. Nem rainha, nem mulher, nem mãe. Só a Serpente do Nilo. Sim, a cobra venenosa que se introduziu nos mais floridos pomares de Roma e, com olhar perverso, enfeitiçou a von­tade de seu melhor macho. Para destruí-lo, dizem. Não pen­sam que de um macho tentei fazer um homem.

— O despeito te leva a exagerar, minha rainha. Cleópatra tentou sorrir. Por um instante, sua voz tornou-se mais dura, com a dureza do sarcasmo.

— Então é só despeito esta dor que me assassina? Oxa­lá assim fosse, pois seria muito simples combatê-lo! Tanto que poderia solucionar-se com outro crime. Um sicário bem remunerado levaria minha vingança a Roma e acabaria com a ofensa, acabando com Antônio. Nos subterrâneos de nos­sos santuários há boticas onde os sacerdotes conseguem os melhores venenos do mundo. Que simples seria a vingança que não deixa rastro! Se fosse despeito, Sosígenes, se fosse tão-somente despeito, como dizes!... Que os deuses o man­dem a mim, a fim de acelerar meu consolo com uma morte! Se for despeito, nem sequer precisarei recorrer a um emissá­rio. Tenho brio bastante para me apresentar em Roma e enfiar meu punhal no coração de meu esposo execrado. Hei de vê-lo retorcer-se ensangüentado aos pés de sua cordeira romana!

Nem mesmo Sosígenes pôde prever o repentino acesso de sua raiva. Cleópatra endireitou-se de um salto, correu para um dos soldados e, num instante, arrebatou a espada que pendia de seu cinturão. Tudo foi rápido demais para que o soldado pudesse detê-la. Já estava junto da borda, com a es­pada no alto, apontando em direção a Roma. E gritava:

Contra ti, Antônio. Contra ti, a partir de agora! Estava completamente erguida. Em seu arrebatamento, havia arrancado o véu que lhe cobria o rosto. Teve, por uns momentos, o semblante de uma deusa. Suas faces pareciam afogueadas, e o cabelo, abundante e liso, assemelhava-se a um estandarte que apregoava sua grandeza. Mas foi apenas um instante. Sua própria fúria caiu sobre ela, arrasando-a. Sua própria fúria devolveu-a à dor, e todo o seu corpo encolheu-se de novo.

O despeito é tão cruel quanto o amor exclamou, estendendo para as escravas o braço armado. Carmiana, íris, minhas amigas, segurai-me a mão, não deixeis que ela se aferre à espada! Não é para meu esposo. É para meu pei­to, que foi incapaz de vibrar e retê-lo. Não hei de ter a digni­dade de meus ancestrais? Não saberei acabar com esta an­gústia?

Uma recordação excepcional deteve seus gritos. Retor­nou a um instante privilegiado de sua vida, um instante pri­vilegiado do mundo inteiro. Aquele em que entrou triunfal­mente em Roma, como hóspede do grande Júlio César. Quan­do sua esplendorosa juventude ainda era capaz de derrotar o Tempo!

Vós que me vistes chorar, escutai-me agora. Contra os anos jovens da romana, meu corpo egrégio! Contra o des­prezo que me dedica Antônio, o respeito que César teve por mim! Obtive o amor do maior de todos os conquistadores! Será Antônio mais que César, quando se permite me rejeitar? Não será minha majestade que há de tolerar isso. Não choreis por minha agonia, pois ela não existe. É despeito. É minha sede de vingança. Cessem esses salmos de dor. Cesse o luto. Ouro para minha barca! Velas vermelhas que anunciem mi­nha alegria! Lembre-se o mundo de que esta barca levou César pelo Nilo, e tal lhe basta para ser um palácio... — Dirigiu-se, então, aos camponeses da margem: Silêncio! Esta dor ofende minha grandeza. Não vedes que me rebaixa?

Mas os camponeses não podiam reconhecer a rainha do

Egito naquela figura grotesca que, agarrada à borda, conti­nuava implorando silêncio. A dor já havia disparado e era como uma ordem que, recolhida pela multidão, não podia ser detida. Continuava nas margens o mais esplendoroso fu­neral que uma soberana poderia ter em vida.

Muitos braços foram necessários para arrancá-la da bor­da. Suas damas choravam, quebravam todas as cadeias do protocolo, estreitando-a contra o corpo, recebendo seu pran­to. E aquela amazona do despeito, que percorrera o convés com passadas indignas de sua classe, tornou a apequenar-se como antes, e todo o seu corpo formou um novelo de véus que a cobriu até ninguém poder mais vê-la, até perder-se no labirinto que Amor criava em sua alma.

 

Levaram-na para o camarote. E Epistemo permaneceu ajoelhado por um longo momento. Acariciava o lenço, reta­lho de azul-celeste que guardava reminiscências de outras ho­ras, aquelas em que a alegria de Cleópatra brilhou com os fulgores de um topázio.

Mas Totmés não compartilhava seu êxtase. Enquanto as damas da rainha tentavam acalmar a curiosidade da tri­pulação com explicações pouco plausíveis, o jovem sacerdo­te tornou ao fastio que, fazia horas, seus companheiros de viagem lhe inspiravam.

Já era muito tolerar a companhia daqueles dois homens, majestoso um, ignóbil o outro, que o haviam submetido a uma perseguição tão incômoda quanto estranha mal o des­cobriram no lugar mais apartado da proa, absorto em suas meditações. Tudo que perdeu de intimidade — seu mais apre­ciado pertence — ganhou, todavia, em explicações sobre a vida alexandrina, que desconhecia por completo. E, naque­le tráfico de indiscrições, estiveram a ponto de arrancar-lhe a única que poderia ser fatal para ele.

— És avaro, bom Totmés! Tu te vales de teu encanto juvenil para obter de mim todo tipo de confidências sobre a rainha e nada me ofereces em troca. — Riu com um jeito ruidoso, que pretendia parecer coquetería e não passava de paródia. Ou minha maturidade vai se aproximando da se-nectude muito mais rapidamente do que sempre temi, ou a gente de teu ofício usa o mistério como escudo.

Totmés pôs-se em guarda. Nos olhinhos escrutadores da­quele homem acabava de descobrir a astúcia da áspide.

Que mistério eu poderia revelar? Só conheço os do culto que professo.

Direi em poucas palavras: os desta madrugada.

Os desta madrugada, Epistemo?

Exatamente. Pois fui testemunha de um acontecimen­to extraordinário. Vou te refrescar a memória, ministro de ísis. Esta madrugada atracamos no porto de Panópolis. Eu não podia dormir por causa do calor e subi ao convés. Es­tranhava que nos detivéssemos longe ainda do destino e em uma cidade alheia aos planos da rainha. Ela não tem negó­cios lá, que eu saiba. Nem os tem seu luto, que é a única coi­sa que hoje lhe importa. Enfim, deixo de lado considerações, pois o verdadeiramente esquisito nessa escala é que só serviu para pegar um jovem sacerdote de ísis, preocupado demais em se ocultar entre as sombras, como se quisesse que sua pre­sença não despertasse curiosidade. A mim, particularmente, tanto sigilo chegou a intrigar.

O criado mimava as descrições do amo com um exage­ro que caía no grotesco. Embora Epistemo esperasse certos resultados do efeito que sua explicação produziria em Tot­més, deparou-se com um rosto inescrutável.

Tua conversa era mais amena quando me falavas da corte. Não te afastes dela, Epistemo. Compreenderás que, conhecendo tão poucas coisas de Cleópatra, seria uma per­da de tempo falar de mim, que nada sou nem pretendo ser.

A habilidade dialética do perfeito cortesão revelou-se es­téril. Bem dizem que a capacidade para o silêncio é a melhor lição ensinada nos seminários dos deuses egípcios. E Totmés tinha-a na ponta da língua quando, apontando para a mar­gem, murmurou:

Tem mais valor o pranto deste povo que todos os amores contrariados de Alexandria.

Epistemo aceitou a sugestão. Com aquele circunlóquio, a conversa voltava a suas origens. Era ladino o jovem sacer­dote. Ou, talvez, um pobre ingênuo, por acreditar que con­seguia parecê-lo.

Virou-se para o cortejo de camponeses que seguiam a galera de Cleópatra. Continuavam cantando. Batiam duas pedras uma na outra, como nos tempos dos grandes faraós. Rimavam aquela salmodia funerária como se a lenta desci­da da barca arrastasse consigo um fragmento de suas pró­prias vidas e os últimos restos do tempo áureo do Egito.

Epistemo pensou ver em Totmés um reflexo de qualquer um deles. A gravidade de sua expressão esfumava-se sob uma placidez que remetia a uma infância já perdida, embora não distante. E toda a sua pele tinha a cor do cobre vivo e o por­te orgulhoso que faz de cada camponês do vale um príncipe e de cada príncipe um cofre cheio de mistérios.

Totmés raciocinava em voz alta:

As histórias de amor costumam comover as almas simples. Pouco sei de tuas politicagens, Epistemo, mas ta­manho pasmo, tamanho horror no Nilo me diz que muito aumentará a fama de Cleópatra.

Demonstras uma deliciosa ingenuidade ao crer que o povo conhece os feitos de seus reis. Quem, dentre esses cam­poneses, jamais viu a pessoa de Cleópatra? Se antes ela na­vegou até tão longe, foi para entreter seus amantes roma­nos, mas só se dignou sair de sua galera para consagrar al­gum templo e culminar, assim, a obra de seus ancestrais. Quanto ao mais, seu rosto é tão misterioso para esses mise­ráveis quanto o dos deuses cujas funções representa...

Como se estivesse arrependido de mostrar-se muito sé­rio, Epistemo emitia uma risadinha que lembrava o som de uma ocarina. E Totmés tornou a considerá-lo um inimigo da seriedade e um perverso caçador de indiscrições.

— A grandeza de Cleópatra revela-se tanto em seus acer­tos quanto em seus desmandos. Suprema incongruência da majestade! Para estar a sua altura, a fidelidade de seus súdi­tos não pode ter um único rosto. Por isso te digo que este luto é o sonho de uma mente enferma, e, não obstante, ren­do um tributo de admiração à atitude de Cleópatra por ter ordenado celebrá-lo. Pois eu estava com ela na tarde em que decidiu lançar sua agonia com tal força que atingisse o rosto dos próprios deuses.

Pela primeira vez, Totmés mostrou uma expressão in­teressada. E, quando Epistemo cingiu-lhe os ombros a fim de levá-lo para fora do alcance de qualquer escuta, não se viu repelido.

 

Epistemo rememorava para seu companheiro um entar­decer recente nos terraços do palácio de Cleópatra. De suas balaustradas, contemplam-se as ninfas nas ondas; em seus jardins, passeiam sossegados os pavões reais. São terraços flanqueados por ribeiras tão fecundas como as do Nilo, mas voltadas para aquelas águas que conduzem às terras gregas, de onde dizem ter chegado Alexandre para instalar, no ven­tre do Egito, a régia estirpe que culmina em Cleópatra. E é certo que, assim como seus reis, Alexandria nasceu desse pac­to entre o limo que fecunda o vale e o sal que põe águas-marinhas nas rochas do litoral.

O sangue misturado de dois mundos palpitava nas arté­rias da cidade divina.

O farol já acendera suas luzes, guia de quantos nave­gantes que procurem em Alexandria um bom refúgio. Já se acendiam os fogos votivos ante os altares dos muitos deuses estrangeiros, que têm culto aberto no bairro das pousadas. As tocheiras punham chamas nas esquinas. E, nas tabernas, no fundo das cubas de barro mal pintado, irisavam-se os vi­nhos mais diferentes pelo fulgor que projetava o holocausto das nuvens no céu. Assim, cor de sangue ou de rosa mística, o céu carregava-se de paixões quando agonizava sobre Ale­xandria.

Ao contemplar a fuga do sol, a rainha Cleópatra viu-se dividida entre duas almas. Uma era grega e imaginava Hé-lios com os traços de um efebo louro que percorria o espaço na quadriga dourada. A outra era a alma tão egípcia que ado­rava Ra, o deus cuja barca afunda nas trevas para travar com­bate com as forças do Mal, ressurgindo a cada dia invicto, renovador da força que assegura o constante renascer de tu­do que foi criado.

Naquelas horas do dia, a intimidade da rainha do Egito acoplava-se com as mutações do céu. Como as nuvens, co­mo a luz, como o próprio Sol, deixava-se seduzir por hesita­ções não programadas.

Era o instante privilegiado em que a placidez só conce­de audiências à preguiça, por sua vez alcoviteira da memó­ria. Ficava para trás um dia cheio de compromissos, devi­dos, em parte, aos afazeres da política e, em parte, às exi­gências do protocolo.

Pois era certo que Antônio, obrigado a ir a Roma para presidir os funerais da esposa, deixara em Alexandria assuntos demais. Tantos que esgotariam as forças de qualquer gover­nante que carecesse da paixão de Cleópatra. Porém a matu­ridade ensinara-lhe uma verdade primordial, recentemente pregada nas escolas mais prestigiosas de sua cidade divina. Dizia tal verdade que a mente mais inclinada à ação deve ce­der lugar à suave vagueza da alma, ao inconsistente de sua própria essência, para encontrar o equilíbrio que permite en­frentar os combates diários com vigor renovado e, inclusi­ve, enriquecido.

O crepúsculo propiciava o abandono. Às vezes era o re­pouso absoluto: o sonho do ópio e da mandragora, acom­panhado pelos doces tangimentos arrancados de sua harpa dourada pelo cego Ramose, que, sem nunca ter visto sua so­berana, tinha-a pela mais formosa das estrelas. Ilusão nada gratuita, pois entre os títulos de Cleópatra figurava, preci­samente, o de Estrela do Egito. Em outras ocasiões, menos dadas ao sonho, a placidez nascia de atividades que estão na própria essência do caráter de Alexandria: a conversa com os astrônomos do palácio, a polêmica com os filósofos do Mouseion a soberba instituição cultural que, não por aca­so, depende de Cleópatra —, o estudo nas salas da Grande Biblioteca ou o passeio meditabundo entre os jardins sun­tuosos da Soma, onde jaz Alexandre, protegido por um sar­cófago de cristal talhado.

Naquela tarde, contudo, nos albores do outono alexan­drino, aquela que estava destinada a ser a mais fatídica de todas as tardes, a rainha consagrava-se ao ócio e à conversa banal com alguns personagens, privilegiados pelo simples fato de ocupar um triclínio junto ao dela. E os embaixadores es­trangeiros admiravam-se com seu engenho e sua agudeza, com o alcance de seus conhecimentos e a fluência com que podia dirigir-se a sete pessoas diferentes em cada um de seus idiomas.

A conversa fluía com doçura ao som da harpa de Ra­mose. O lento derivar da preguiça conferia acentos poéticos a uma simples dissertação sobre geografia. Cleópatra suspi­rava em seu triclínio. O corpo lânguido, os membros suave­mente cansados, os músculos flácidos, a pele recebendo os primeiros sopros do frescor que se aproximava qual arauto da noite. Aroma de gardênia sobrecarregando as brisas. Pé­talas de amapola amolecendo no chá preferido. E o suave murmúrio do tanque cheio de nenúfares, anúncio de exce­lentes augúrios.

Augúrios felizes chegavam pelo mar! Anunciou-os a loira Carminiana, que ficou de vigia na balaustrada. Uma enor­me trirreme estava chegando ao cais novo. O porte grandio­so e o avanço insolente apregoavam a impudência de Roma. E uma divisa vermelha, que ondulava no topo do mastro prin­cipal, anunciava aos vigias de Cleópatra que a nave era por­tadora de notícias.

Novas para Cleópatra só podiam ser novas de Antônio! De Antônio, exilado em Roma.

E se algum dos que estavam ali reunidos estranhou quan­do, ao falar da viagem do amado, invocou o exílio, bastou recordar com quanta paixão Antônio havia depositado sua vontade nos mármores de Alexandria. Durante um inverno, esta fora sua cidade, aqui estiveram seus amores, nestes tem­plos comemorava seus triunfos militares para opróbrio dos romanos e indignação de quem se erigira em porta-voz de seus destinos: Otávio Augusto. O herdeiro legítimo de Cé­sar. O que compartilhou com Antônio a divisão do Império.

A sombra de quem era o companheiro do amado e, ao mesmo tempo, o mais acerbo de seus críticos turvou, por um instante, as esperanças de Cleópatra. Aquele rapazola dema­siado arrogante continuava ameaçando, até mesmo de lon­ge! Sua severidade proverbial cedeu lugar à dureza cada vez que exigiu o regresso de Antônio a Roma. Predispunha con­tra ele seus melhores amigos, tentava roubar-lhe o amor de seus soldados, pintava-o ante o Senado como um bêbado que largou todos os deveres para fornicar com sua concubina oriental na mais corrupta das metrópoles: Alexandria, latri­na do mundo

Cleópatra tinha motivos para temer que as notícias pro­cedentes de Roma trouxessem algum filtro de amargura.

Permitiu-se um instante de ansiedade. Mas a causa não era Otávio, apesar de ser motivo suficiente. Era algo mais profundo e, até, ambíguo. Era a mordida do verme insensa­to que é companheiro de todos os amantes. O ciúme renas­cendo no fundo de sua alma. Ciúme inapresentável. Pois era dirigido contra um cadáver.

Assustava-a mais a influência de Fúlvia morta que a hos­tilidade de Otávio vivo. Se ele representava uma ameaça que uma estratégia política bem organizada poderia combater, Fúlvia ia mais longe em sua violência, porque era uma re­cordação que atacava do outro mundo. O que seu corpo não conseguira em vida obtinha quando não passava de um monte de cinzas recolhidas na pira funerária: arrancar Antônio de seu leito de ouro, roubar-lhe os opulentos fastos de Alexan­dria, despojá-lo das suntuosas roupagens orientais que gos­tava de vestir e devolver-lhe a medíocre aparência da toga romana...

Abandonada um dia por Antônio, Fúlvia começava sua vingança do mundo dos mortos.

Mas Cleópatra era filha de uma terra que, durante sé­culos, havia convivido com a morte, convertendo-a na idéia iluminada que guia os passos do homem pelo mundo. A morte mirava-a do fundo dos túmulos de seus antepassados; a morte estava presente nas invocações dos grandes deuses; a morte estava implícita no devir do tempo, nos caprichos das esta­ções do ano e nas flutuações do grande pai Nilo.

Se Fúlvia preparava suas armas para atacá-la a partir das cavernas escuras, Cleópatra rainha, guerreira, ama­zona se embrenharia nelas com a destreza de quem co­nhece o caminho desde todos os séculos que a precederam. Além disso, dispunha de outros trunfos. Os trunfos da vida.

O primeiro trunfo era ela mesma, quando se transfigu­rava em fêmea feroz, capaz de abandonar sua envoltura de deusa e soberana e rebaixar-se à perícia de uma rameira pa­ra saciar os célebres apetites do amante. O segundo era a imen­sa ladra de vontades em que a cidade podia converter-se, em que podia converter-se Alexandria, quando abre sua imensa matriz para devorar os amantes enlouquecidos. O terceiro trunfo eram duas criaturas.

Alexandre Helios e Cleópatra Selene, os gêmeos nasci­dos para perpetuar o alcance mítico da dinastia.

Antônio partiu para Roma sem conhecê-los, mas com o orgulho de saber, com ciência certa, que seu nascimen­to estava inscrito nas constelações. Não empregou seu sar­casmo característico quando os astrônomos o anunciaram. Afinal, a família de Cleópatra aqueles pitorescos Ptolo-meus! era perita em transladar para os céus seus confli­tos domésticos. Quando, no passado, a rainha Berenice per­deu sua vasta cabeleira, os astrônomos decidiram que ela as­cendera às profundezas da noite, lá ficando inamovível, cin­tilante, transfigurada na mais formosa das constelações. E se os reveses de uma rainha excessivamente desnorteada po­diam mudar o curso dos astros, que não fariam aquelas crian­ças nascidas do encontro entre os dois rios mais fecundos, o rio de Roma e o do Egito, confluindo no apaixonado lito­ral de Alexandria?

Aqueles dois filhos eram a vida. Eram a certeza de que a vida brotava do corpo de Cleópatra, como brota das mar­gens do Nilo. Contra o fantasma de Fúlvia, os gêmeos com nomes de reis garantiam um sonho longamente acalentado por Antônio: o domínio absoluto do Oriente. Ao mesmo tem­po, contudo, representavam uma continuidade almejada, su­plicada a toda divindade que ostentasse o pendão da fertili­dade. Imitar no seio de sua rainha a gesta do maior herói que Antônio conhecera. Pois, anos antes, naquela mulher privilegiada, Júlio César gerara o futuro rei do mundo. O príncipe Cesário.

E dele se falava agora nos triclínios que rodeavam a in­timidade de Cleópatra. Foi seu nome o talismã contra suas desventuras momentâneas.

Pois nenhum sentimento podia ser comparado ao que expressava, mal surgia a menor alusão ao primogênito. E ora admirava-lhe os progressos nas distintas disciplinas a que sua educação de príncipe o submetia, ora lamentava-se da au­sência, não menos molesta por ser necessária, a que aquele processo o obrigava.

O barco de Roma já atracava no porto, já se considera­va iminente a chegada de algum mensageiro de Antônio; mas o interesse de Cleópatra permanecia distraído, senão domi­nado pelas opiniões que os presentes davam sobre o prínci­pe. Não perdia tempo calibrando sua sinceridade, muito me­nos suspeitando que poderiam ser devidas a uma vil lisonja de cortesãos. Aceitou-se que a perfeição de Cesário era uma verdade universal. E não faltou quem comentasse sua for­mosura.

Não seria formoso, se fora gerado pelo grande Júlio em uma descendente de Alexandre?

A educação do príncipe, em Mênfis, converteu-se no te­ma dominante, embora acolhido com certa perplexidade pe­los convidados estrangeiros, em especial por Márcio, o ge­neral romano. Pois, embora esse povo de bárbaros se sinta fascinado pelas magias e ritos milenares que chegam do Orien­te, ainda se encerra em obstinado racionalismo quando se trata de compreender as crenças dos povos que tentam do­minar. Assim, aquele sensato general romano considerava um disparate quase cósmico os sacerdotes de Mênfis inicia­rem o príncipe Cesário no culto dos bois sagrados. Explicar-lhe aquilo constituía uma tarefa demasiado árdua.

Daí que uma rainha versada em todas as disciplinas do espírito podia desinteressar-se da conversa e, por fastio, voltar a suas quimeras. Era o que fazia Cleópatra, deixando-se cair com negligência nos almofadões macios, aspirando mais uma vez o aroma de almíscar e invocando o negro fantasma de

Fúlvia. Ao longe, fluíam as palavras de seus conselheiros, relativas aos bois sagrados e à necessidade de o príncipe Ce­sário ser consagrado em seu seminário, da mesma forma que ela, a rainha, teve sua consagração no templo de Hátor, a deusa que se apresenta com cabeça de vaca.

Foi então que a escrava íris anunciou a chegada do men­sageiro de Antônio, exilado em Roma.

 

Todos a viram saltar de seu leito de plumas. Não foi ma­lévola invenção do romano, nem do embaixador judeu, nem do influente mercador cipriota. Não houve difamação quando contaram, depois, aquele excesso. A rainha, tão altiva em suas audiências, tão cautelosa na hora de tomar decisões po­líticas, dava um tremendo salto que comprometia gravemente o perfeito plissado de sua túnica de corte helenizante e cor­ria para o mensageiro, que acabava de ajoelhar-se entre dois oficiais da guarda palaciana.

Todos notaram também que a apaixonada ofegava ao perguntar:

Que novas trazes de meu senhor Antônio? Mas, an­tes, dize-me: quando ele regressa a Alexandria? Ou dize-me de uma vez que está na galera e que és o arauto de sua boa chegada. Dize-me isso, e te nomearei governador da melhor província do reino.

O mensageiro, entretanto, permanecia mudo e não ou­sava erguer o olhar. De modo que Cleópatra insistiu:

Terás dez províncias se me disseres que Antônio vem seguindo teus passos. Ou se me indicares que eu acuda cor­rendo a meus aposentos, porque ele foi diretamente abraçar os filhos, tanto ansiava conhecê-los. Mas tu calas. Por teu silêncio, sei que Antônio não chega. Então, que mensagem me trazes? Antônio diz que ainda ama sua rainha? Ou só quer saber de seus dois príncipes?

Um silêncio sepulcral se abatera sobre o terraço. A mu­dez do emissário, seu nervosismo motivaram olhares de cum­plicidade entre os companheiros da rainha. E ela, impacien­te e talvez temerosa como o próprio mensageiro, desceu a sua altura e agarrou-o pelos ombros, sacudindo-o violenta­mente, até que seus olhares se encontraram.

E todos puderam ouvir as palavras que, depois, tantas crônicas recolheram:

— Marco Antônio tomou esposa em Roma.

Três vezes precisou repetir a notícia, tamanha a fúria com que Cleópatra o sacudia, tamanha a violência com que o acusava de derramar calúnias sobre o amado. Assim é a fragilidade das vítimas do amor. Pois jamais houve amante abandonado que acreditasse em sua sorte quando ela se lhe anunciou de improviso. Três vezes o pai Nilo deverá cres­cer, e terão de esgotar-se muitos plenilúnios nos céus, para que o amante compreenda que o final foi definitivo e, uma vez assumida tal verdade, decida matar-se, como muitos, ou aceite continuar vivendo com suas feridas abertas, como todos.

A ira de Cleópatra emitiu um último lampejo. Tanto acu­sou o emissário de canalha e embusteiro que ele retrocedeu, temeroso, até seu ombro chocar-se com a couraça dos soldados.

— Se teu anúncio é certo, que Antônio morra como os escorpiões. Que morra por seu próprio veneno! Dize-lhe is­so quando o vires. Mas, antes, conta-me quem é a feliz es­posa, a que pode gabar-se de desfrutar os gozos que eram meus. Dá-me seu nome! — E gritou para os amigos: — Pa­ra que o mundo entenda, terá de ser mais jovem que Cleó­patra. Terá de ser muito mais bela. Terá de lhe dar filhos mais formosos.

— É a nobre Otávia — respondeu o mensageiro.

Os presentes não puderam reprimir um rumor entre sur­preso e escandalizado. Cleópatra, um desafogo.

— A irmã de meu inimigo. A irmã de Otávio. — E, di­rigindo-se a Márcio: — Essa cadela romana já não era casada?

Em sua posição de lugar-tenente de Antônio, o general não se atrevia sequer a falar. Por fim, murmurou:

— É viúva, minha rainha.

Cleópatra pôs-se a rir. Contradisse sua elegância quan­do cuspiu no chão como uma lavadeira do mercado judeu.

— Vede que se vende barato a virilidade de Antônio!

Gabava-se de ser Hércules na cama da rainha do Egito e ho­je se conforma com um catre usado. — De repente, calou-se. Não pôde conter uma lágrima. E sua voz tremia, ao acres­centar: — Seu amor sempre foi de duplos usos. Chegou ao meu quando César já o tivera e até há pouco me fez sentir ciúmes da defunta Fúlvia, que o tivera. Mas é ridículo que, agora, empane o brilho de seu nome, pois antes empanei o meu por amá-lo. Em má hora! Se uma vez abandonou Fúl­via por Cleópatra, cabia esperar que algum dia deixasse Cleó­patra por alguma nova Fúlvia. — Dirigiu-se, então, a Már­cio: — Roma converteu a inconstância em ofício. Se nunca aprovaste que meu povo adorasse os animais, agora te digo que qualquer animal do Egito é mais nobre que um romano.

Márcio prostrou-se aos pés de Cleópatra. Oferecia a dig­na estampa da homenagem, não do acatamento. No rijo as­pecto de soldado que curtiu a maturidade em terras selva­gens, sob o açoite constante dos elementos, dir-se-ia o últi­mo dos titãs rendendo seus poderes ante a mais indefesa das náiades. E a barba, já encanecida, exprimia o bom juízo de quem pode compreender as vicissitudes da alma porque che­gou a superá-las à força de tanto sofrer por elas.

Houve em seu gesto uma última declaração de amor. E a afirmação de uma amizade que não conhecia intermediários.

Dessa maneira interpretou-o Cleópatra. E assim disse:

— Não é mister que demonstres a tua fidelidade, pois a conheço. Aqui, juntos, vimos passar horas muito agradáveis. Mas, hoje, falta-nos o que as compartilha ou, melhor ainda, que as inspirava. Por isso digo que estás livre para abando­nar Alexandria quando bem quiseres. Corre para junto de teu amigo e dize-lhe que viste a rainha do Egito chorar. Nin­guém, nem mesmo ele, o viu, até hoje. Ninguém voltará a ver.

Márcio titubeou. Teve de perfilar-se para adotar a ati­tude do soldado e não a do admirador da beleza.

— Não posso abandonar a guarnição de Alexandria... sem uma ordem de Roma.

Desapareceu o amigo. Longe ficou a senectude venerá­vel, o tato do bom conselho. Cleópatra distinguia as atri­buições da couraça dourada e, nela, a águia ameaçadora.

— Não era amizade, eu devia ter entendido! Roma não se irá do Egito, ainda que tenha recobrado a fidelidade de Antônio. O amor anulou minha visão até me fazer pensar que meu inimigo era Fúlvia, que está morta. Não lembrei que Otávio continua vivo. Meu amor reteve Antônio, que por sua vez te retinha. Mas só Otávio pode ordenar que vás embora! Fica, portanto. Porém não como amigo, e sim como inva­sor de minha terra.

Em outra circunstância, as palavras de Cleópatra teriam significado uma afronta que só uma complicada intervenção política conseguiria apagar. Mas naquela hora da grande re­jeição, quando todo um fragmento de vida ficava definiti­vamente para trás, a ira da amante de Antônio não podia ofender, nem seus impropérios insultar. Pela primeira vez na vida, a régia fêmea encontrava-se diante de uma evidên­cia que a deixava ainda mais nua que o abandono: os súdi­tos não retrocediam ante a eclosão de sua cólera, os escra­vos não se ajoelhavam temendo ser flagelados, os soldados não apresentavam armas a sua passagem. Ao contrário, o jovem capitão da guarda balbuciava para evitar as lágrimas — tão jovem era! —, os cortesãos aproximavam-se para consolá-la, e suas damas, íris e Carmiana, acolhiam-na em seus braços para evitar que desmaiasse.

Conduziram-na ao gineceu. Afastaram-se as escravas ne­gras, e correram os eunucos para junto de Carmiana, a fim de formular-lhe mil perguntas sobre o acontecido. O harpista chorou lágrimas vazias por sua rainha. E ela ostentava tal lividez, sua pele tornara-se tão branca, que pensaram se não teria provado alguma máscara de beleza que contivesse ex­cessiva quantidade de lótus úmido.

Ali, entre as cortinas de seda, em um leito de plumas, muito mais macio por erguerem-se sobre ele montanhas de almofadões das cores mais berrantes, dormiam Alexandre Hélios e Cleópatra Selene.

Tão divinos eram os gêmeos, que seus nomes invoca­vam as forças primordiais existentes já antes do mundo e mui­to antes de os deuses começarem a nascer. Alexandre era o Sol. Cleópatra, a Lua. Resplandeciam como tais entre o es­plendor de cores que seu sono avivava ainda mais, tão bran­co como os enigmas da vida quando ainda está por produ­zir-se. E, na força que às vezes tiravam do próprio sono, con­traindo o corpo, dobrando para cima os joelhos ou baten­do no ar com as mãozinhas fechadas; nesse combate eter­namente repetido que é o da vida nova contra o mundo que desconhece, já demonstravam a audácia que seus nomes in­dicam. Cleópatra, assim chamada para perpetuar a distin­ção de sete mulheres da dinastia. E Alexandre, o último deus que aceitou viver entre os homens e conduzi-los à altura dos Imortais.

A rainha esteve a ponto de lançar-se sobre as crianças, mas as duas amas — robustas e bonachonas, porque eram de uma aldeia do vale — aproximaram-se previdentes e as­sustadas ao mesmo tempo. Pois não se sabia se no gesto de­sesperado da mãe havia amor ou fúria de assassina.

No singular combate entre a dignidade e o amor, triun­fou a rainha. E achou restos de sua distinção para dirigir-se a suas duas damas preferidas:

— Ninguém deverá dizer que chorei neste dia. Ainda menos vós, amigas, que podeis vos tornar culpadas de indis­crição. Pois me vistes gritar nas torturas do parto, e nelas me mostrei fraca, de modo que, se tivésseis voltado a ver mi­nhas lágrimas, também tomaríeis por fraqueza o que só há de ser meu aprendizado do ódio. Pois é forçoso que esta noite a rainha do Egito consiga abominar o malnascido.

Viram-na afastar-se em direção a seus aposentos, com­pletamente só, com as costas corcovadas, cambaleando pela primeira vez na vida e arrastando o véu azul, cor do Tempo em Alexandria.

As amas descansaram mais tranqüilas ao ter a mãe se­parada das duas crianças. Pois temiam o que sempre se es­creveu sobre as mulheres arrebatadas pela fúria de um amor ferido: que são em tudo iguais aos porcos, o mais impuro animal do Egito, por ser capaz de devorar as próprias crias.

Tal não era, porém, a feroz disposição de Cleópatra, se­gundo puderam ouvir, desde os escuros corredores da ala nor­te, as pessoas que formavam seu pequeno círculo. Todas ti­veram a oportunidade de compadecer-se dela, quando de lon­ge chegou sua agonia.

Um urro patético atravessou salões, escadarias e cor­redores:

— Fala comigo, Antônio! Fala comigo, malvado, que sinto só um terrível vazio na alma!

Assim transcorreu a noite, e foi como se a morte pas­seasse pelos telhados de Alexandria. A rainha imaginou vis­lumbrar o negro manto das Parcas e escutar o tétrico ladrar dos cães trífidos que costumam acompanhá-las. Alexandria, a cidade única, origem e culminância do mundo, era apenas um campo-santo adornado por grupos escultóricos que re­presentavam as horas mais formosas do amor!

Quão distintas as trevas que cobriam os céus daquelas outras noites, alegres e vivas, que viram as orgias e os triun­fos do amado! Quantas noites percorreram juntos, na lou­cura de uma bacanal interminável, hoje convertida em um desfile de imagens de morte que empeçonhavam a alma, quan­do, antes, deram fulgor aos sentidos! Alexandria, a cidade divina, era apenas uma pira gigantesca entre cujas chamas ardiam os despojos do amor perdido. As luzes, os gritos de prazer, o ruído incessante das carruagens ou a música das mil tabernas dos dois portos demonstravam que a cidade con­tinuava com a costumeira algaravia de todas as suas noites. Mas era inútil. Marco Antônio já não estava!

Continuavam percorrendo os cômodos os gritos prolon­gados de Cleópatra. Gritos vis, indecorosos, que transpassavam a alma dos cortesãos como uma confissão de impo­tência. Soaram a intervalos durante toda a noite e até depois da aurora, como aqueles gemidos que o vento arranca das noras que giram sem parar junto do lago Moero e fazem os gregos, ingênuos, imaginarem que são a voz dos defuntos.

Quando o sol já se encontrava no mais alto de sua via­gem e o vento grego chegava com seu carregamento de aro­mas recolhido ao passar pelo mercado, quando a cidade já vomitava a agitação que ela própria criava em suas entra­nhas, quando as pontas de ouro dos grandes obeliscos pro­jetavam mil reflexos contra as academias de mármore, só en­tão a rainha saiu de sua alcova e convocou de novo os que a intimidade convertera em zelosos guardiães de sua angús­tia durante o pesadelo da noite já passada.

Nada em seu gesto a delatou. Mantinha a augusta ati­tude que a fazia temível como contendora. Tudo nela indi­cava que podia governar o mundo inteiro até debaixo do pá­lio que a dor estendia sobre sua cabeça. Alguns descuidos, no entanto, recordavam o combate mortal que estivera tra­vando: a maquilagem diluíra-se com o suor; os anéis dos ca­belos, penteados na noite anterior de acordo com a última moda de Atenas, apareciam desfeitos, em grenhas desorde­nadas; e a túnica, tão airosa na véspera, convertera-se em farrapo.

Pouco a pouco, cem operários começaram a pintar de negro a nave de Cleópatra. E as docas encheram-se de cu­riosos que propagaram o acontecimento por todos os rincões da cidade. Soube-se nos mercados e nas oficinas, nos tem­plos e nas bibliotecas, nas tabernas e nas mansões de linha­gem nobre. Quando a nave já zarpava para o coração do Egi­to, com as velas negras lançando sua mensagem de desespe­ro, os poetas a soldo da rainha compuseram epodos melan­cólicos que lembravam quão formosa fora aquela barca dou­rada em uma viagem anterior, havia muitos anos. Quando Antônio e Cleópatra subiram o Nilo, encheram-no de tanto amor que o próprio rio se envergonhou por não caber em seu leito.

 

A bordo da nave enlutada, o jovem sacerdote de ísis guardava um silêncio devoto, de tal modo as recordações de Epistemo o impressionaram. Já subiam a parte mais sinuo­sa da região tebana, ali onde o rio efetua uma ampla curva e permite contemplar, na distância, as montanhas de pedra rosada, os rochedos pontudos, os vales minerais em cujo ven­tre se guardam os restos de reis que fizeram a glória de Te­bas, quando esta era a rainha do mundo e faltavam mil anos para que o poder do Nilo se transladasse para a beira-mar. Para que Alexandria nascesse.

Quando apareceram as montanhas, às quais os nativos davam o nome de Guardiãs da Eternidade, Totmés sentiu um profundo estremecimento, como se ante seus olhos se apre­sentasse todo o esplendor de um tempo que jamais viveu, mas que era seu próprio tempo e seu sentimento mais profundo: o único que lhe cabia. Não ignorava que os reis da família de Cleópatra reis estrangeiros! haviam ousado abrir os túmulos de Tebas para satisfazer a curiosidade dos via­jantes romanos, que convertiam os restos do antigo poder faraônico em objeto de curiosidade apto para saciar seu afã de pitoresco, tão próprio dos novos ricos. Mas a sua voraci­dade Totmés opunha aquela íntima sensação de estar ligado a uma corrente indecifrável e, não obstante, segura. Naque­les túmulos longínquos, naqueles restos que o precediam em mais de mil anos, reconhecia o augúrio de seu destino.

Voltou à realidade assim que Epistemo o intimou a afastar-se a fim de abrir passagem para a insólita animação que se apossara do convés. Após três jornadas de luto, anunciava-se algum acontecimento excepcional. As camarei­ras mais próximas da rainha iam de um lado para outro, os copeiros preparavam-se, enquanto as escravas líbias busca­vam os enormes leques de plumas e os lacaios arrumavam a liteira que Cleópatra utilizava para seus deslocamentos. Tot­més confirmou que estava a ponto de produzir-se alguma mu­dança na monotonia da viagem.

Se bem que poucas mudanças podiam surpreendê-lo tan­to quanto as que se operavam na voz de Epistemo a cada novo comentário sobre a rainha. Ao vê-lo agora possuído por uma ternura repentina, Totmés começou a considerar o pouco que sabia da condição humana. Sua mente foi atra­vessada por um raio que lhe mostrou, em um segundo, to­das as horas transcorridas nos obscuros aposentos de iseion. Viu a si mesmo crescendo lentamente, possuído primeiro pela febre dos deuses, depois pela febre incessante do saber. Viu todos os seus anos resumidos em um só segundo. O menino que fora e o jovem que era haviam sido rodeados por uma espessa muralha de conhecimentos proibidos ao resto dos mortais. Contudo, antes de consagrá-lo no altar divino, con­vertendo-o, assim, no membro mais jovem do culto, o grão-sacerdote revelou-lhe a verdade última, não a que se escon­de atrás do véu de ísis, como crêem os profanos, mas aquela verdade que só se encontra além do olhar primeiro da Cria­ção. E sua luz foi tão intensa que os olhos de Totmés torna­ram-se presa da cegueira divina.

Hoje voltava a cegá-los outra espécie de fogo: brotava de Epistemo, e suas chamas não eram do céu. Quis averi­guar se eram benéficas ou, quiçá, destruidoras. Suas pergun­tas, porém, permaneceram sem resposta, pois deparava com a única matéria que seus superiores não se lembraram de en­sinar-lhe: o insondável mistério do coração humano.

O acontecimento que todos os ocupantes da nave espe­ravam desviou a curiosidade de Totmés e avivou uma singu­lar excitação no ânimo de Epistemo, cujos olhos estavam a ponto de sair das órbitas, já avermelhadas pelo vinho.

Mas não apareceu, como se esperava, a rutilante ma­jestade de Cleópatra. Só a discreta autoridade de Carmiana, cujos cabelos loiros, insólitos naquele distante rincão do rei­no, destacavam-se como um látego formado por espigas de trigo que, ao serem agitadas pelo vento, flagelavam o negror da embarcação.

— As deusas negras continuam acampadas no camarote — exclamou Epistemo, endireitando-se. — Tão amorosa é Cleópatra Sétima que a tristeza não quer se afastar de seu lado.

A uma indicação de Carmiana, acudiu o capitão da guarda-real, Apolodoro, que até então se limitava a controlar as lutuosas evoluções que os camponeses continuavam efetuando nas margens. Carmiana e o capitão trocaram algumas pala­vras. Aos poucos, foram chegando outros soldados. Custo­diavam um atleta de proporções formidáveis, ainda mais des­tacadas por apresentar-se em nudez quase total. Pois só a dissimulava uma simples pele de leopardo à guisa de saiote, ajustado, por sua vez, aos pétreos músculos. Uma coroa de murta rodeava-lhe as têmporas, contribuindo para recriar a imagem de alguma alegoria mitológica.

—            Outro Hércules, outro Baco ou outro Tritão? ex­clamou Epistemo, esvaziando sua taça. Palavra, não houve tantos atletas no Olimpo como os que vão aparecendo neste barco!

Olímpico, de fato, era o atleta. Tão descomunal apre­sentava-se aos olhos da corte que houve quem calculasse o preço que se poderia obter por ele em qualquer escola de gla­diadores. Seus músculos haviam se desenvolvido até formar uma imponente massa que parecia cinzelada em um montí­culo de basalto do Sinai. Seu corpo era um canto à beleza.

Epistemo dirigiu-lhe um olhar estranho. Talvez de ódio.

Só lhe falta pêlo em abundância para em tudo lem­brar Marco Antônio. Embora eu deva reconhecer que já es­tava muito adiposo a última vez que o vi nas termas da via Canópica.

Totmés observava com ostensiva reprovação a nudez do atleta e os escassos atributos com que o tinham adornado. Soube que era um galeote que fazia dois anos cumpria pena no ventre da nave. Imaginou-o agarrado ao remo, maldizendo sua sorte minuto a minuto, murmurando os que faltavam para o cumprimento de sua pena... ou, quem sabe, para a supre­ma libertação da morte. Imaginava-o sujo, acorrentado so­bre os próprios excrementos, pasto de chatos e piolhos...

Cleópatra procura consolo em corpos que lembram o de Antônio. Seus rituais não constituem segredo. Em mais de uma ocasião os viram fazer amor em público. Acaso ig­noras que ele aparecia disfarçado de Hércules e ela de Vênus-Afrodite? Até mesmo no coito chegavam às alturas do mito...

O servo, que agora segurava a taça vazia do amo, ria com uma obscenidade que esgotou a paciência de Totmés. Epistemo ainda acrescentou:

É o quarto Hércules em tão escassas jornadas de via­gem. Cleópatra tentou se consolar com outros três, antes que embarcasses. Ao que parece, o comércio carnal revelou-se sumamente medíocre. Longe de aplacar seu desejo, eles a dei­xaram mais vazia que antes.

Novamente me desconcertas, tagarela. Que fidelidade é a tua, que coloca a rainha à altura de uma puta?

Odiar e amar. Adorar e abominar. São vinhos que se fermentaram no mesmo odre. Por isso digo: que Cleópa­tra pague em sua própria alma a dor que inflige aos demais! Mas é também meu desejo mais ardente que esqueça nos bra­ços desse homem o suplício que a leva à loucura.

— Nos braços de um galeote sujo? Nunca ouvi desejo tão grosseiro.

Mas Totmés precisou retificar-se, já que o corpo do atleta havia sido ungido para elevá-lo acima da condição humana. A pele expedia as cintilações do aço, pois aplicaram-lhe unguen­tos perfumados. Os cabelos, intensamente negros, brilhavam como se tivessem se convertido em domicílio de vaga-lumes, tal era a qualidade dos óleos com que foram ungidos. E os lábios, carnudos como as vísceras do leopardo, inflamavam-se pelo instante,de liberdade que lhe fora concedida.

Antes de desaparecer pela escada que levava ao cama­rote real, ainda demonstrou um gesto de surpresa, pois Car­miana e o capitão, ao escoltá-lo, dispensavam-lhe um trata­mento de monarca.

Assim comentou o jovem Totmés, com maior surpresa ainda. Epistemo então riu. E seus olhos brilhavam com o fogo de uma agressividade tipicamente cortesã, inconfundivelmente alexandrina. Era uma violência disfarçada de elegância.

Por seus atavios, deduzo que até lhe proporcionam trato melhor que a ti.

E que teria eu a ver com um trato deste estilo? — replicou o mancebo, desviando o olhar para as vestimentas brancas, ofendido por uma comparação que as comprometia.

Epistemo encurralou-o com o corpo carregado de ou­ropéis.

—            Porque sei que esta madrugada, mal chegaste a bor­do, conduziram-te à presença da rainha, que não receberia, em tal transe, nem mesmo o próprio Tifão, se deixasse seus infernos. Quis dizer isto, sem ir além, nem procurar ofender.

Pulsara, no entanto, uma corda ainda mais delicada no coração do sacerdote. E, pela primeira vez, Totmés perdeu o controle ao exclamar:

— Qual é o teu jogo? E, antes de mais nada, dize-me: de que situação, com que poder te dispões a jogá-lo?

Meu jogo pode ser selvagem, porque deduzo o teu. Adivinho até onde pode chegar a hipocrisia dos servidores dos deuses.

Não te darei atenção. Estás bêbado.

O servo parecia confirmá-lo. Pois deixou de lado o re­cipiente de vinho e, a partir desse momento, dedicou-se a sus­tentar seu senhor.

— Todos os homens que se aproximaram de Cleópatra têm um cheiro especial — gritava Epistemo. — Sua pele exala o aroma dela. Por que enrubesces, porco? Porque estou lem­brando coisas que teu uniforme sagrado não te permite se­quer aventurar?

Totmés tentou escapar ao interrogatório. Afastando-se de Epistemo, confundiu-se entre os malabaristas que, perto do baldaquim, ainda esperavam a aparição da rainha. Mas foi em vão. Seu contendor — outra coisa já não era Episte­mo — alcançou-o junto da escotilha e, agarrando-o pelo pul­so, apartou-o de todos os olhares.

— És um sacerdote ou um vulgar prostituído?

A voz de Totmés foi, agora, a de um pobre suplicante. Apenas um gemido de agonia.

Deixa-me! Se este é o teu jogo, humilha-me.

Também serviste de consolo a Cleópatra? Teu cor­po está muito longe de se parecer com o de Antônio e, me­nos ainda, com o de um Hércules. Mas é um corpinho deli­cioso. Poderia ser o de uma criança. Poderia ser o do filho da sacra ísis. Eu também conheço meus deuses, Totmés; não é necessário se encerrar em um templo a vida toda. Assim, exatamente igual a ti, apresenta-se a nós o filho de ísis, com sua cabecinha raspada, o corpo ligeiramente musculado, a pele limpa e casta e o púbis sem sombra de pêlo... Aposto que Cleópatra sabe apreciar um púbis raspado em honra à deusa que representa!

As mãos de Epistemo converteram-se em garras que mantinham Totmés fortemente aferrado. E, para seu deses­pero, acariciava cada um dos membros que invocava em seu delírio.

—            És formoso, Totmés, e tua cabeça é lisa e suave co­mo a do Menino Divino. Cleópatra sentou-te em seu colo, como ísis faz com o filho? Despiu-te com as próprias mãos, ou as escravas te despiram? Tenho certeza de que foi ela mes­ma. É perita como amante e como mãe. Só me falta saber que prazer pode preferir em uma noite de luto. Não será ne­nhum que seus antepassados não tenham provado. Não te ensinaram em teu templo que as Ptoloméias sempre se ca­sam com os irmãos? Nossos reis mais antigos não se deita­vam com as próprias filhas? Não te espantes, Totmés. Até mesmo um frívolo cortesão, um linguarudo, um bufão da rainha pode ter alguns conhecimentos. E, se me examinares bem, até um pouco de compreensão. Sim, cabe-me ser com­preensivo. Tanto o sou que até me felicito por tua chegada a este barco. Digo-te mais. Acho lícito que Cleópatra tente esquecer Antônio mediante um matrimônio místico com al­guém que se pareça com seu filho. É mais que lícito. Afinal de contas, ela é a grande ísis!

Totmés viu-o avançar até o baldaquim real. Tomou o lenço que a rainha esquecera sobre o trono no dia anterior e levou-o aos lábios.

Tentou rir, mas só conseguiu emitir um uivo selvagem, desesperado, que se foi paralisando até dar lugar a um es­pasmo atroz. E, quando tentava avançar para Totmés, cam­baleando como um enfermo do mal sagrado, tropeçou em um monte de cordas e caiu de joelhos. Continuava apertan­do o lenço de Cleópatra contra o peito.

— Bastardo de ísis! Fala de uma vez! Cleópatra revelou-te a sabedoria do amor ou só a do desejo?

Diante de seus olhos, úmidos de lágrimas, Totmés apa­receu sob um aspecto desconhecido. Sorria com toda a sere­nidade da pureza. E sua voz era doce, repousada, como as notas que o cego Ramose arrancava de sua harpa.

— Epistemo, quem quer que sejas, reconheço que so­fres. Adivinho um suplício terrível por trás do que dizes. Mas já nada posso fazer por ti. A sabedoria de que me falas é proibida para mim. Desconheço os crimes do amor, assim como suas virtudes. E não hei de conhecer o desvario que produz nos humanos. Porque jurei castidade ante os deuses de meus pais e de quantos pais viveram antes deles nestas ter­ras do Nilo. Sei que meu corpo não conhecerá o gozo de ou­tros corpos, nem há de reproduzir-se em outras vidas.

O cortesão pareceu envergonhar-se de seu arrebatamento anterior, pois estendeu a mão para que Totmés o ajudasse a levantar-se. A partir de então, sua tristeza foi mais serena. E em suas palavras só houve melancolia:

— Em verdade te digo que meu jogo é estúpido e se volta contra mim, de maneira que este comportamento é uma far­sa absurda. Porque conheço perfeitamente a razão de tua pre­sença nesta nave e nada do que eu disse pode ser verdade. Mas é verdade que bebi demais e que te odiei por amor, o que não encerra nenhuma contradição, porque o amor é o pior dos vinhos. Nunca o bebas em Alexandria! Hão de querer te embriagar com amores, e a princípio sentirás que nunca conheceste um arrebatamento tão doce. Pois doce é o pri­meiro grau de sua embriaguez, mas amargo o vômito que te leva ao luto.

Para Totmés não houve mistério maior que aqueles afo­rismos de um coração ferido. Via-o sangrar diante de si, sem atinar com a causa. Era uma dor misteriosa como a perso­nalidade de Epistemo, tão mutável. Pois o que até então era um alexandrino disfarçado de judeu, tagarela, extravagante e efeminado, transformara-se de repente em um cavalheiro possuído por uma velhice prematura. Só então Totmés ob­servou que sua barba era branca e suas feições, decrépitas. Mas aquele triunfo do tempo, que vinha recuperar seus di­reitos, outorgava-lhe uma dignidade, um respeito que, pa­radoxalmente, assustava muito mais que sua frívola aparên­cia anterior. A partir desse momento, Totmés deveria defron­tar-se com um homem de categoria, não com um palhaço.

Epistemo continuava acariciando o lenço da rainha, quando o camarote real tornou a abrir-se. Carmiana apare­ceu de novo.

— Por fim saberemos se o consolo do Hércules foi efi­caz — exclamou Epistemo, avançando em direção à escrava.

Totmés, porém, tentou retê-lo, segurando-o pela mão. Foi um ato mais de inspiração que de compreensão certeira.

— Não faças isso — disse com doçura. — O que te dita o coração é algo mau.

Epistemo desfez-se da mão de Totmés. Mas acariciou-lhe a cabeça raspada. E pôs carinho em seu sorriso.

— O coração não fala aos castos. Isto, paspalho, é a alma. E a alma só ama os deuses. É estúpida assim.

Carmiana procurava apressadamente o capitão do bar­co entre os marinheiros que se afainavam na proa. Parecia distraída, como se um excesso de ocupações a agoniasse. Res­pondeu sem muito interesse às perguntas de Epistemo:

A rainha ordenou que nos detenhamos em Tintíris1. Quer fazer uma oferenda à deusa do amor e prostrar-se a seus pés, a fim de que se digne iluminá-la.

Não me interessam os problemas de Cleópatra. Fala-me de seu corpo. Que estímulos recebe sob aquela massa de músculos?

Carmiana adotou a atitude de uma comadre amante da intriga e ansiosa por divulgar qualquer mexerico:

Foi terrível, nobre Epistemo. Terrível.

 

1 Atual Denderah, no Alto Egito. (N. do A.).

 

Outra vez? — perguntou o homem, ansioso.

Foi um novo punhal no coração da rainha. Quando aquele bruto, ataviado tal como Antônio em suas bacanais, a estreitou completamente nua contra o peito, Cleópatra pôs-se a gritar igual a uma leoa em transe de morte. Golpeava brutal­mente o rosto dele com o punho fechado, como se quisesse des­truir tanta formosura. Ato contínuo, deixou-se cair na cama, consumida por um pranto patético. Agora está aos cuidados de Sosígenes. E eu estou a ponto de chorar, porque, em tantas ad­versidades, vejo a mão negra de alguma divindade invejosa das graças de Cleópatra. Talvez tenha ofendido Vênus-Afrodite quando se fez passar por ela para excitar o amante, e a deusa agora se vingue de maneira muito má, se me é permitido opi­nar. Pois cada homem que a rainha tenta abraçar para esquecer Antônio afunda-a cada vez mais no desespero. — Deteve de repente sua fala e examinou Totmés com desprezo. — Mas não sei se devo contar essas coisas diante de estranhos...

— Não é um estranho — replicou Epistemo. — É al­guém de quem ouvirás falar amiúde. E falar bem, ou não conheço meu ofício.

Totmés surpreendeu-se com a generosidade de tal refe­rência, pois não havia objetivos que a justificassem. Sentiu, então, que a corte estendia suas redes. E considerou-as te­míveis, embora chegassem sob o disfarce do bem-fazer.

— Quanto a teu ofício, bom Epistemo, faze com que se note — disse Carmiana, com um sorriso melindroso. — A rainha pede que não contes essas coisas ao rei Herodes, quando chegares à Judéia. Não deseja que ele saiba quão vul­nerável pode ser uma inimiga.

Epistemo limitou-se a dar de ombros e a seguir a don­zela com um sorriso melancólico, embora não isento de sa­tisfação. Era como se o fracasso de Cleópatra acendesse em seu íntimo promessas de vitória.

Entretanto havia semeado na alma de Totmés mais dú­vidas do que as que ela já abrigava. Seu voto de confiança a um jovem sacerdote que via pela primeira vez era digno de toda dúvida. Seu ciúme exagerado era mais duvidoso ainda se, a ponto de eclodir, tinha de pronunciar-se tão favoravel­mente em favor dele. E as últimas palavras de Carmiana con­tribuíam para aumentar o mistério, embora parecessem com­pletamente normais em uma conversa entre velhos co­nhecidos.

Decidido a obter alguma resposta para tantas pergun­tas, o mancebo abordou abertamente o servo daquele grão-senhor desconhecido:

— Que quis dizer a dama da rainha com as últimas pa­lavras que dirigiu a teu amo? — Mas o escravo não respon­deu. E Totmés precisou insistir: — Por que se referiu à Ju­déia e ao rei Herodes?

No olhar do servo já não brilhava a grosseira velhaca-ria de antes, e sim uma total indiferença pelo que ocorria ao redor. Era como se estivesse mil anos antes ou mil anos de­pois de tais acontecimentos. Totmés entendeu que não con­seguiria arrancar-lhe uma só palavra. Pois, ao entrar a ser­viço do nobre Epistemo, fizera voto de amnésia imediata.

A rainha debatia-se contra os luxuosos tecidos que ador­navam seu leito. íris e Carmiana em vão tentavam deitá-la. Ela lutava para soerguer-se e rasgar com as unhas as corti­nas de seda. Também se espojava entre os lençóis de cetim, retorcendo-os até formarem um sem-fim de dobras diminu­tas. Sua alma continuava na mesma indecisão:

Não é amor, juro. Dizei-o a meu povo. Que se repi­ta mil vezes. Que se apregoe por todos os rincões do vale. Que isso chegue ao deserto e se inscreva nas estrelas que mar­cam os confins de meu reino. É vingança, sim! É ódio, que lanço além dos mares! — Soergueu-se de novo. Farejava o ar, à maneira de uma gata buscando odores conhecidos pa­ra orientar-se. — Onde está o mar? Quero gritá-lo para o mar! Que meu ódio o atravesse e, ao chegar a Roma, fulmi­ne Antônio e sua pulcra viúva! Contai-o ao mar.

Faz dias que o deixamos para trás, minha rainha.

Não é verdade. Ouço como ruge o mar de Alexan­dria. O mar e a cidade caçoam. Sim! Mereço ser o bufão do mundo inteiro... Quem enganou minha vontade? Que quer essa frota de corvos que grasnam sobre meus olhos?

Estamos nos aproximando de Tintíris, como foi teu desejo.

Então é o Nilo. Ah, este rio banha minhas origens como o mar banhava meus amores! Porque era amor, eu sei, amor maior que a vida, amor que não pode ter comedimen­to. De que outro modo poderia amar a rainha do Egito? Que Antônio o saiba em seu leito nupcial. Ninguém há de amá-lo assim. Ninguém fundirá o universo em um abraço; nin­guém lhe dará em seu olhar todas as ordens do céu; ninguém, em um beijo, todas as forças da natureza. É amor, eu sei. Amor que só se acalma no infinito.

Voltava o pranto. E ela o acolhia sem a menor resistên­cia, enquanto íris aproximava de seus lábios uma tisana bem quente.

— Tão daninho é Amor que exige drogas para acalmar as dores que inflige? Ou consegui despertar tanto afeto que meus súditos me concedem o consolo da morte sem que eu tenha de pedi-lo?

Bebe, doce senhora. É um licor de mandragora des­tinado a te serenar.

A mandragora não lhe deu o doce fluir de um erotismo secreto, propriedade que a faz tão apreciada pelos amantes não correspondidos, ansiosos de ganhar a vontade de urna dama desdenhosa. Ao contrário, a mandragora teve o efeito fulminante de uma bigorna destinada a abater a consciên­cia. Antes de sucumbir por completo a seu efeito, Cleópatra compreendeu que a fiel íris, tão destra no preparo de certas formas do ópio, vertera na beberagem o sumo da planta que os nigromantes chamam de dormideira.

Contudo as prostrações que Amor envia aos mortais des­validos não desaparecem com o sonho, antes atacam com maior porfia, pois não acham defesas em seu caminho. As­sim, os felizes dias de ontem aparecem mortificados pela tor­tura do presente, que continua à espreita lá no fundo da alma.

Assim também o sono de Cleópatra esteve cheio de ins­tantes de Antônio. Ele não alimentava seu despeito, mas instaurava-se como um deus de tão altíssimas prendas que, inclusive para ela, era inalcançável. A voz mais recôndita da droga repetia incessantemente: "Não o mereces. Ele é a per­feição, e tu, um verme. Ele é filho de Hércules. Ele é Baco redivivo. E tu, és digna da força prodigiosa de Antônio, ca­paz de destroçar com suas mãos potentes o próprio leão da Neméia? És digna de seu alegre talante, e de sua infinita ca­pacidade de gozar todos os dons e despertar a felicidade nos instintos, como Baco semeia os dons da embriaguez, rodea­do de seus travessos faunos?".

Eu te amo repetia ela em seu delírio. Os deu­ses riem de mim, mas eu te amo.

Quando recobrou os sentidos, Carmiana e íris continua­vam a seu lado. Dir-se-iam dois gênios diligentes, cuja única missão consistia em proteger os pesadelos dos mártires do amor. Ao mesmo tempo, contudo, eram devotas da mulher a quem serviam. Eram duas amigas da melhor amiga do mun­do. Eram duas rainhas, porque gozavam do favor e da pre­dileção da maior soberana do universo. E também forma­vam um só corpo, ao qual se outorgou o dom de possuir duas cabeças. O corpo era o do Egito, airoso e delicado como seus amanheceres. As cabeças correspondiam a duas facetas dis­tintas de seu tempo imenso. Pois íris era de tez morena, co­mo os beduínos do deserto, e seus cabelos, tão negros quan­to as noites que se vêem das dunas, estavam penteados à moda antiga, com diminutos cachos rematados por contas de lápis-lazúli. Ao contrário, os cabelos de Carmiana formavam um denso capacete de ouro puro, de cujo topo caíam em delica­dos fios, como fazem as damas frívolas de Alexandria, imi­tando, por sua vez, a moda que chega a Atenas.

íris e Carmiana colocavam na fronte de Cleópatra pa­nos empapados em perfumes exóticos, tratando em vão de evitar seus ardores. Outras duas damas abanavam-na, e o mo­vimento das plumas de avestruz levantava o único sopro de ar inspirador de vida no sufocamento que impregnava o ca­marote. E, ao pé da cama, o diligente Sosígenes vigiava o despertar de Cleópatra.

Fitava-a com certo desassossego. Pelo que ele compreen­deu que o sono da mandrágora não a havia livrado da im­prudência.

Já não cabem dissimulações. O povo do Egito há de crer que o orgulho de sua rainha é mais forte que os de um amor funesto. Mas meu amigo de sempre, meu mestre, meu conse­lheiro, será partícipe da agonia que começa para mim a partir de agora... Tentou soerguer-se. Todo o seu corpo vacilava. A mão de Sosígenes sustentou-a de novo. Os olhares encon­travam-se. E ela acrescentou: Quero sinceridade, Sosígenes.

Tua doença será demorada disse o conselheiro gra­vemente. E só o tempo pode curá-la.

O tempo! Haverá de me socorrer o mais temido dos monstros? Olha-me bem, Sosígenes. Já não sou aquela jo­vem que enfeitiçou César. Os anos passaram sobre meu ros­to. Olha-o bem, pois agora está limpo de maquilagens. Não descobres em sua nudez o açoite do tempo?

Não vejo a moça que desejava dominar o mundo, é verdade. Mas vejo a mulher que está dotada para consegui-lo. O tempo melhorou-te, minha rainha. Não foram os cos-mésticos.

Tempo para Cleópatra! Em má hora vem me socor­rer. Quando estava ao lado de Antônio, queria agarrar o tem­po para que não passasse. Despertava à noite e sentia que seu corpo era tão belo, tão poderoso, que nunca envelhece­ria. Em seu sono, tinha o sorriso de uma criança. Eu queria deter o curso das horas, agarrar-me àquele instante de vida encerrado no amor de meu homem único. E ele continuava dormindo, quase sempre bêbado. Quantas vezes tive de ar­rancar a taça de suas mãos! Até mesmo vazia, separava nos­sos corpos. Ao acariciar-lhe a cabeça, ou, às vezes, brincan­do com suas madeixas negras, pensei que o tempo nos des­culparia. Mas agora sei que o tempo transcorreu para mim... Quantos anos já tenho, Sosígenes? Cala-te! Eu te considera­rei cruel, se o disseres. Que minha fúria se dirija apenas con­tra mim mesma. Pois sei bem os anos que tenho. Trinta ve­zes cresceu o Nilo desde que meu pai anunciou meu nasci­mento nos altares de Alexandria.

E isso te preocupa? perguntou, com fingida fri­volidade, a gentil íris. Quarenta e três vezes cresceu o Ti-bre desde que os deuses de Roma saudaram o nascimento de Antônio.

O rosto de Cleópatra adquiriu uma violência inusitada.

— Cala-te, estúpida! És mulher e não sabes que os deu­ses foram injustos ao repartir o castigo dos anos? Quanto mais rugas tiver o rosto de Antônio, mais elogiada será sua prudência. Em contrapartida, as rugas de Cleópatra são sua condenação ao abandono e à solidão. Assim tem sido desde que os deuses nasceram, divididos em dois sexos antagôni­cos. Assim há de ser para Cleópatra.

O fugaz instante de lucidez dissipou-se... A rainha vol­tava ao abandono, cobrindo o rosto com as mãos, talvez no intento de dissimular que o pranto não a havia abandonado.

Nem sequer a morte é um consolo exclamou. Comecei a construir meu túmulo pensando que seria para dois amantes. Que solidão a de um sepulcro que agora será ape­nas meu!

Não ficarás só, minha rainha. Todos os teus ante­passados te acompanharão na longa noite de contar os anos.

Esta frase! Só um egípcio poderia compreendê-la. Só um apaixonado quereria que fosse verdadeira.

Quando se fecha para sempre a lousa da tumba, come­ça para o defunto a noite que só pode terminar com o renasci­mento. E começará a contar os anos que faltam para alcançá-lo.

E hei de contá-los sem Antônio! Descansarei entre reis e rainhas, príncipes e princesas, com o corpo de Alexan­dre presidindo o cortejo. O grande fundador da dinastia e tantos parentes excepcionais, destinados a mortificar-me com sua presença por toda a eternidade. Deixa os mortos em paz, Sosígenes. Devolve-me Antônio. Não vê que até na morte preciso dele? Durante uma de nossas viagens pelo Nilo, levei-o a conhecer os túmulos dos reis de Tebas. Em um deles, to­mei sua mão entre as minhas. "Hás de amar o Egito", disse-lhe, "quando começares a amar estes túmulos. Em tua terra queimam os mortos. No Egito damos-lhes mansões de eter­nidade." E, entre as trevas daquele lugar santificado pelos séculos, ele me beijou docemente. "Quero um lugar para mim nesta tua vida, nesta longa noite de contar os anos", falou. "Que a eternidade seja para os dois ou não seja de nenhum."

Todos silenciaram. A nave não se movia. Era como se o Nilo se tivesse petrificado para impedir definitivamente o avanço do luto. Só os ruídos do convés devolviam à realida­de seu justo alcance. Pouco depois, ouviram-se batidas na porta. Quando íris abriu, achou-se diante de Apolodoro, o capitão de Cleópatra. Trocaram em voz baixa algumas pa­lavras que a dama não precisou transmitir. Pois todos inter­pretaram que o barco acabava de aportar em Tintíris.

Vou me preparar para entrar no grande templo — disse Cleópatra, tentando novamente soerguer-se. — Oxalá me receba a deusa em seus sublimes mistérios para me proprorcionar o sossego de que preciso.

Não te dará tal sossego — interveio Sosígenes gra­vemente. — Nenhum deus pode te acalmar. Nenhum deus tem esse poder, pois os deuses não existem.

Cleópatra descobriu em seu conselheiro a aleivosia do filósofo de profissão. E ela, que os freqüentara a todos, com­preendeu de imediato a que raciocínio pretende arrastá-la.

Poderás enganar a todos os teus sacerdotes, mas não a mim, que te eduquei nas disciplinas da mente, nem a tuas amigas, que te despem à noite e vestem quando nasce o dia. A arma de que necessitas para enfrentar a enfermidade não está nas mãos dos deuses, mas nas tuas.

Qual é a arma, conselheiro?

A que tua inteligência te proporciona. Recupera-a de uma vez, Cleópatra. Corres a encerrar-te nas criptas de um obscuro santuário, vais afundar-te nas profundezas do mundo, quando teu remédio está na superfície. Olha a teu redor, e a luz se fará. A explicação é esta: Roma e Egito en­frentam-se em um duelo mortal. E preside-o o jovem Otá­vio. Um raro engenho, segundo dizem. E um espírito tão gra­ve quanto severo. É ele que nos manipula a todos.

Hás de compreender que este não é o melhor mo­mento para falar de política.

Seria, se ousasses supor que Antônio talvez não te­nha deixado de te amar? Conhecendo seu caráter, não é fá­cil que a austeridade romana possa compensá-lo da volup-tuosidade com que soubeste envolver sua vida.

Por um instante, Cleópatra sentiu-se traída.

Foi uma volúpia fácil, Sosígenes, e sabes disso. Ro­deei Antônio de todos os prazeres que podiam retê-lo a meu lado. Dei-lhe a volúpia da carne. Renovei sua admiração dia a dia, embriagando-lhe os sentidos com os estímulos que Ro­ma não lhe pôde dar... suntuosidade, exotismo e extravagân­cia até no sexo. Por ele, fui uma sacerdotisa da paixão. Mas conservei meu cérebro desperto.

Então por que dormiu de repente? Por que teu cére­bro não pensa que Antônio ainda te ama com loucura, mas se viu obrigado a ceder ante uma razão de Estado?

Cleópatra voltou-se com cólera.

Porque o execraria muito mais. Posso chorá-lo por ter se apaixonado por aquela viúva romana, posso detestá-lo ao pensar que profanou meu leito. Mas, se soubesse que foi fraco a ponto de ceder ante uma ordem de Otávio, então o desprezaria abertamente. Pensaria que não consegui que estivesse a minha altura.

Sosígenes mostrou-se extremamente cauto ao afirmar:

É esta, e não outra, a arma de que precisas para te defenderes contra o amor.

Uma arma que desacreditasse Antônio só serviria pa­ra me demonstrar que o amor da rainha do Egito não vale nada. Tu me consideras estúpida a ponto de chorar por al­guém que não o mereça? Quando vi Antônio pela primeira vez, eu era uma criança ainda propensa a qualquer sonho. Chegou a Alexandria muito antes de César, quando eu ain­da ignorava todo o mal que a intervenção de Roma signifi­cava para o Egito. Muito menos podia compreender que, ao pedir ajuda a Roma, meu pai, o grande Aulete, colocava-nos para sempre em suas mãos. Tu me contaste isso muito mais tarde, Sosígenes, mas, naqueles tempos, eu ainda esta­va aos cuidados das damas de minha mãe. E todas saíram ao balcão quando aquele jovem guerreiro fez sua entrada no pátio do palácio. Suspiravam com sua graça, e minhas ir­mãs mais velhas se atreveram a jogar flores a seus pés, como se fosse o vencedor de mil gestas em Olímpia. Era tão ga­lhardo, tão forte, e contavam-se dele tantas histórias herói­cas, tantos feitos escandalosos, que ficou em minha mente infantil como um desses heróis invencíveis que aparecem nos velhos cantares! Muito tempo precisou transcorrer até aquele herói prodigioso fazer de mim a mais feliz das fêmeas. An­tes tive de suportar o matrimônio com meu próprio irmão, um imbecil, além de imberbe. Depois, César passou por mi­nha vida. Mas, afinal, o heróico Antônio veio a minha bar­ca dourada como eu o esperara: vestido de Hércules e ro­deado pelos alegres faunos de Dioniso. E abri os braços pa­ra ele, como Antônio queria que fosse, encarnando Afrodi­te, que surge da espuma do mar de Alexandria só para se entregar a tal homem. Era meu herói, Sosígenes. E se um herói de sua têmpera se submete a um decreto de Otávio, is­so significa que o mundo inteiro caiu na mais atroz vulga­ridade.

Sosígenes pegou sua mão e beijou-a:

Rainha do Egito, teu culto aos heróis te honra, mas não convém a nossos tempos. Enquanto Otávio pretende se erigir em senhor do mundo mediante a razão, teu Antônio se conforma ocupando teus sonhos à base de heroísmo.

— Agora basta, Sosígenes. Prefiro o conselho dos deu­ses. Que me falem esta noite pela boca da nobre Díctias.

— Vai recorrer às superstições daquele velho abutre?

— Ela possui a ciência milenar de nossos templos. Ade­mais, sei que me adora além do excesso.

Seu rosto iluminou-se com um antigo sorriso, o mesmo que utilizara para subjugar os homens quando as astúcias do cérebro não conseguiam fazê-lo. Era o sorriso que devolvia vida a seu rosto, capaz de transfigurá-lo, convertendo-a na mais formosa das esfinges. Era então que o mundo sucum­bia ante um feitiço que ninguém podia imitar e muito menos explicar. Contribuía para que uma mulher não bela alcan­çasse a perfeição da beleza. Nascia, assim, a mais fascinante dentre as bruxas.

— Quero que Díctias me veja novamente tal como fui na perfeição de minha primavera. Se há dor em meu rosto, aplicai-lhe a máscara da formosura. Vesti meu corpo com sedas e pedrarias, como a mais vulgar de minhas dançari­nas. E tu, íris, não poupes perfumes. Envolve-me com os aromas mais penetrantes. Que minha simples presença ener­ve os sentidos.

Sosígenes inclinou-se, indicando que deixava o camarote. Não ocultava uma expressão de desgosto.

— Se te colocas nas mãos da superstição, significa que não precisas de meu conselho.

Cleópatra dirigiu-lhe o sorriso lisonjeiro que ele conhe­cia bem demais. Era um sorriso conquistador de universos.

— Também me acompanharão o nobre Epistemo e o jovem sacerdote de ísis. É minha vontade que se convençam. — E voltou ao espelho, para obrigar sua beleza a ressurgir dentre os mortos.

 

Reinava a Lua cheia sobre o mundo, quando a reduzi­da comitiva deixou para trás a cidade de Tintíris sem nela entrar. Escutaram de longe o bulício das ruas, a conforma­ção de uma atividade crescente, pouco comum naquela zo­na. Mas a proximidade do grande templo de Hátor, centro de peregrinação desde muito tempo, enriquecera seus habi­tantes, e o que fora um vilarejo sem importância era, hoje, uma mostra esplendorosa de sofisticação e poderio.

Do interior da liteira que compartilhava com Epistemo, o jovem Totmés contemplava as luzes distantes da cidade com uma expressão de desdém absoluto. Voltando-se para seu companheiro, não encontrou o habitual sorriso irônico. Ao contrário, dir-se-ia que começava a compreender seus lon­gos silêncios e a respeitar a intimidade de suas meditações.

Naquela ocasião era simples: para um jovem servidor dos deuses, comprovar que uma religião podia converter-se em uma forma de comércio representava um golpe não me­nos rude por ser sabido. Para Totmés aquele era um lugar santo, e a utilização da divindade com motivos de lucro revolvia-lhe as entranhas, enchia-o de uma fúria que teria po­dido convertê-lo facilmente em flagelo da justiça divina. Afi­nal de contas, não carecia de precedentes. Pois contam as histórias mais antigas que, irados os deuses com a maldade em que incorrera o gênero humano, mandaram à terra a va­ca celeste, a doce Hátor, para castigá-los. Hátor encontrou tanto prazer no castigo que tomou gosto por beber sangue, e tanto bebeu que caiu numa embriaguez contínua e funes­ta, pois quase deixou a terra despovoada. Medida esta que Totmés não desaprovava de todo, ao pensar que, precisamen­te ali, nos pomares que ora atravessavam, Hátor tinha um culto que servia para alguns homens enriquecerem às custas da piedade de outros.

Mas os portadores já os aproximavam do grande tem­plo, instalado nos confins da terra cultivável, adentrando-se nas dunas do deserto. Embora estivesse para ser terminado — e Cleópatra empenhava-se particularmente em consegui-lo —, o santuário já se erguia como uma massa soberba, de elegância sobrenatural, como um pedaço de eternidade sur­gindo na paisagem quase nua; uma paisagem que, de repen­te, pertencesse a outro planeta. A Lua projetava no céu uma claridade espectral, propícia à mais inesperada revelação mística. E era tamanha a intensidade daquela luz que chegava a esconder o fulgor das estrelas.

O templo estava rodeado por uma muralha de tijolos que o isolava do mundo, concedendo-lhe o inapreciável dom da privacidade. Só os andaimes dos artistas que, de dia, cin­zelavam mil inscrições nas paredes laterais convidavam a sus­peitar que havia vida humana naquele recinto reservado aos donos do céu.

Enquanto Totmés passeava, maravilhado, pelos edifí­cios secundários, a liteira de Cleópatra detinha-se diante do pórtico e a rainha descia, envolta em um manto vermelho que lhe restituía a majestade perdida. Chegou, apressada, uma sacerdotisa de grau superior, a quem rodeavam cinco outras portando tochas.

Vestiam túnicas de linho branco, e Cleópatra reconhe­ceu nelas aquelas jovens de nobres famílias, inclusive prin­cesas, que desde tempos imemoriais consagram sua vida ao serviço da deusa. Apesar do avançado da hora, não viu em seus rostos marcas de sono, e sim certa agitação que não se devia ao inesperado da visita, nem às obrigações do culto. A rainha sorriu, pois não ignorava que algumas noites po­dem ser muito agitadas na clausura dos templos. E que as sacerdotisas põem-se em transe de gata ardorosa quando lhes dá o plenilúnio.

— Como a nobre Díctias não saiu para me receber?

Não esperou que lhe abrissem caminho. Já se encontra­va no vestíbulo e continuava avançando. A sacerdotisa cor­reu a colocar-se a seu lado. E, ainda nervosa, titubeou:

Deverias anunciar tua visita com antecedência, senhora.

A rainha do Egito nunca precisou fazer isso. Desde quando tanta insolência? Ou por acaso os templos que man­do construir me excluem de seu culto quando venho como humilde suplicante de Hátor?

A sacerdotisa enrubesceu. Não se atrevia a fitá-la dire­tamente.

— Suplico que não emprestes uma interpretação equi­vocada a minhas palavras. Nunca me atreveria a sugerir tal coisa, a não ser... — calou-se por alguns segundos. Cleópa­tra olhava-a com atenção. Depois de um silêncio forçado, a jovem atreveu-se a dizer: É porque encontrarás a grã-sacerdotisa em um estado lamentável.

Está doente? Se assim é, por que não fui informada?

É muito mais que isso, senhora. Nos últimos tem­pos, a nobre Díctias parece enlouquecida. Todas as noites ela se encerra no santuário e ordena que as noviças lhe sir­vam continuamente cerveja ou vinho, conforme seu desejo. Às vezes, permanece agarrada à estátua da deusa e chora mui­to. E quando ri é de maneira incontrolada. Seus gritos ater­rorizam as mais jovens. Envelheceu prematuramente. É co­mo se os anos houvessem caído de improviso sobre ela, a pon­to de não lembrar em nada aquela que foi. Vê coisas muito estranhas e pronuncia sem parar um nome que... Não sei se posso me atrever a pronunciá-lo...

O nome. Exijo-o.

Cleópatra.

Haviam chegado ao corredor processional e, por um ins­tante, reviveu as suntuosas cerimônias a que assistira quan­do menina, a imaginação embebida no mistério que costu­mava rodeá-las. Recordava como a barca da deusa desfilava entre as enormes colunas, nos ombros dos sacerdotes jovens. Aquele corredor prolongava-se no exterior, até alcançar o Nilo, onde o povo acolhia a barca sagrada com júbilo reno­vado, como nos tempos mais antigos.

A lembrança, no entanto, foi substituída pela solidão, que, naquela noite, parecia ameaçá-la de todos os cantos do recinto. Oferecia um aspecto impressionante. Do meio das trevas emergia a pétrea floresta formada pelas colunas cujos capitéis representavam o rosto de Hátor, com suas orelhas de vaca e o sorriso que, quando menina, dava-lhe a impres­são de uma careta de zombaria. Eram volumes gigantescos, cheios de inscrições que recordavam os feitos heróicos ou a piedade de sua ilustre família, colocadas diante dos pés da deusa do amor. E, através das janelas superiores, filtrava-se no chão, ou contra alguns cantos, o reflexo prateado da Lua.

Em meio àquela atmosfera carregada de mágicas resso­nâncias, Cleópatra ouviu os primeiros gritos de Díctias. Des­cobriu-a entre quatro sacerdotisas núbias que riam desenfrea­damente e se tocavam os seios, enquanto ela as perseguia de olhos fechados, como as meninas em suas brincadeiras.

O aspecto da grã-sacerdotisa era, na verdade, patético. Seu rosto amarelado tornava-se fúnebre ao colocar-se ao al­cance da Lua. Suas mãos pareciam uma mixórdia de ossos cansados. E a túnica arroxeada que a envolvia deixava asso­marem de vez em quando umas pernas enrugadas como o couro de um burro velho.

Ao vê-la daquele modo, Cleópatra lembrou-se do aspecto que ela própria oferecera, horas antes, em sua nave. E por um instante sentiu-se estremecer de vergonha.

A sacerdotisa que a acompanhava advertira as demais, que, ao notar a presença real, recuperaram a seriedade. To­das compuseram rapidamente seu aspecto e aproximaram-se cerimoniosamente, esquecendo-se de Díctias.

— Não vos afasteis! — gritava esta. — Não me deixeis sozinha! O fantasma já está para chegar. Está aqui! Eu o vejo! — Díctias recuou, apalpando o ar com as mãos, como se buscasse um refúgio entre as trevas. — Não me deixeis só com ela! Protegei-me de sua magia! — E corria entre as co­lunas, dava saltos ferozes, rasgava as trevas com as unhas, até que a parede principal a impediu de continuar recuando.

— Do que ela está falando? — perguntou Cleópatra.

— De um fantasma. O de uma mulher. Aparece-lhe sem­pre que bebe. E, como bebe muito, ele se converteu em hós­pede permanente do templo.

As outras sacerdotisas trocaram olhares de cumplicida­de e puseram-se a rir. Percebendo nisso uma zombaria im­piedosa, Cleópatra arrancou o leque de uma das donzelas e golpeou-lhe brutalmente o rosto. As outras calaram-se inti­midadas.

— Creio conhecer este fantasma. E me apraz incorporá-lo — disse Cleópatra em um tom baixo e misterioso, cujo sentido escapou a seus acompanhantes.

Deixou cair o manto, e seu corpo inteiro apareceu ba­nhado nos reflexos que a lua enviava pelas aberturas late­rais. Seus membros transpareciam através das tênues gazes que os envolviam. E seus seios pareciam prestes a brotar por cima das fileiras de pedras preciosas que, rodeando-os, os prendiam.

Começou a avançar, organizando-se em todos os ardis de uma coqueteria ao mesmo tempo ancestral e refinada. Re­mexia-se à moda das dançarinas profissionais. E olhava com a força de uma heroína trágica.

Parecia, de fato, um fantasma. E Díctias, ao vê-la em meio àquela alternância de luzes e sombras, emitiu um bra­do pavoroso e caiu prostrada de joelhos.

Agarrou-se aos relevos do muro. E gritou:

— Vai embora de uma vez, fantasma odiado! Não me arrastes contigo para os infernos!

De repente reconheceu-a. A quimera havia tomado cor­po. Tinha pele, tinha carne, tinha um sorriso de serpente. E, como ela, sabia enfeitiçar as vontades.

Quis ocultar-se àqueles olhos pintados como os de uma meretriz. Mas a parede deteve-a. Pareceu engolir o próprio grito:

Deixa-me sentir teus membros para saber se és mes­mo Cleópatra!

Se for, que efeito há de me produzir ver minha grã-sacerdotisa reduzida à categoria de uma escrava? E não só à categoria, conforme observo. Também é assim sua vonta­de. A tal ponto a bebida pôde anulá-la?

Estendeu amão para ela. Díctias beijou-a com fervor. Seus lábios chegaram até o braço, mas interromperam-se ante os braceletes de ouro em forma de serpente.

— Não quero que vejas meu rosto, Cleópatra. É como deparar com a velhice. — Afastou-se rapidamente. — Não olhes para mim! Tu és perversa. És cruel. Tu me matavas quando eras o fantasma que aterroriza minhas noites e, ho­je, chegas do mais profundo de meu delírio para me matar duplamente.

— Se gostas de mim como sempre disseste, ajuda-me.

— Como eu poderia, se necessito mais ajuda que todas as criaturas que agonizam no mundo? Vivo aterrorizada por teu fantasma assassino. Quando ele se apodera de mim duran­te o dia, eu me consumo esperando que a noite venha, pois penso que o sono o levará embora, que me dará consolo trazendo-me visões mais serenas. Porém chega o sono e é pior ainda, porque volta a criatura do delírio. E contra ela não há defesa. E és sempre tu, puta imperial! Fazes de mim a mais dócil, a mais indigna de todas as cadelas do Egito. Como que­res, então, que te ajude? Como poderia quem nada deseja?

Dirigiu um sinal aos cantos mais escuros. Foi como se os hieróglifos que se escondiam entre as trevas tomassem vi­da e se aproximassem, portando as ânforas de vinho. Eram ninfas solícitas, quase crianças. Cumpriam o serviço com um sorriso parecido com o desejo, que iam trocando entre si mes­mas. Na culminância de seus excessos, a grã-sacerdotisa dei­xou de lado a cratera que uma das ninfas enchia e agarrou-se a suas pernas, buscando a pele sob o linho branco. Ao senti-la, contudo, projetou-a para longe e voltou aos pés da rainha. Beijava-os com desespero, banhava-os com suas lágrimas.

Ai, Cleópatra! Teu fantasma contém a mais cruel das perfídias. Por tua culpa, até os corpos que destilam mel são, para mim, fontes de absinto!

Olha para mim, Díctias. Tens diante de ti a majes­tade do Egito, que procura o oráculo da deusa do amor. Mas, se puderes sentir piedade ante uma mulher abandonada, es­quece todo protocolo e acaricia esta pele, cuja suavidade os poetas cantaram. Despoja-me de minhas roupas, mulher, e goza de mim. E se houver algum prazer possível neste mun­do, em que a morte do amor assassinou todos os gozos, diga-se então que Cleópatra ressuscitou onde ninguém esperava que o fizesse. Nem sequer ela mesma.

Ainda ajoelhada, Díctias via o corpo da rainha erguido a sua frente como uma soberba escultura, das que o novo estilo fazia florescer nos ateliês mais seletos de Alexandria. Era como um bloco de mármore betado em leves estrias, um mármore que se levantasse, apenas profanado, ainda impo­luto, no primeiro suspiro da invenção da arte. Isso a torna­va ainda mais parecida com um sonho que qualquer fantas­ma nascido do delírio.

De repente, contudo, a estátua ajoelhou-se à altura da sacerdotisa, suas mãos pegaram as dela e levaram-nas à al­tura dos seios, para que os acariciassem. Díctias sustentou-os como se fossem dois frutos dourados dos que crescem nos jardins elísios, tão feitos à medida do amor e tão pouco pro­pícios ao tato que se convertem em pó, se os deuses os to­cam por muito tempo.

— Meu corpo continua formoso, Díctias?

Teu corpo é como um sacrário, que só a deusa po­deria abrir. Deixa-me adorá-lo, Cleópatra. Deixa-me adorá-lo. — Levou a face até o ventre da rainha e nele permaneceu uns instantes que foram diluir-se entre as altas colunas, on­de está inscrito o relato dos amores da deusa. — Sei que pa­garei com mais dor este instante supremo de beleza — sus­surrou Díctias.

Quero que me sejam comunicados todos os misté­rios do amor que não conheci. E que seus gozos ocupem o lugar que um dia foi de Antônio. Apaga suas lembranças com tua pele de mel. Apaga-as com teus lábios nos meus.

O recinto encheu-se de doçura. A sublime Hátor pare­cia patrocinar aquela entrega. Rompia as trevas um raio da lua que a deusa ostenta entre os chifres quando aparece em forma de vaca. Rompiam o silêncio os harmoniosos sons do sistro que seu filho sagrado leva nas mãos para recreio dos que se amam na música. E o mundo tentou renascer em ple­na noite, porque todos os animais do zodíaco queriam pro­teger o retorno de Cleópatra a suas origens.

De repente a grã-sacerdotisa soergueu-se de um salto fe­lino. Em vão a rainha tentou atraí-la.

Basta! Há demasiadas sombras malignas nesse ato. Teu desejo é uma mortalha. Fica com ela e deixa-me em paz.

Pela segunda vez meu desejo fracassa. Oh, deuses! O amante que o levou consigo já não responde a meus cha­mados. Dize-me, Díctias, dize-me... sou velha demais para o desejo?

Serpente! Perguntas isso quando sabes que teus po­deres estão intatos?... Quando sabes que se abatem sobre mim e me acorrentam, ainda me perguntas isso?

Dizem que a mulher que pariu não torna a ser a mes­ma. Suas cadeiras se alargam, pendem os peitos como ubres e gretam-se os mamilos como terras em que há séculos não cai a chuva. Assim se tornou o corpo de Cleópatra, que an­tes conseguiu quantos quis?

Rainha minha. Não há neste templo donzela que iguale tua lisura. Nem a mais jovem das virgens, nem a mais virginal das meninas. Teus lábios são como os seios de um deus recém-nascido...

Meus lábios estão ressecados, Díctias. Foi sua sequi-dão que enfastiou Antônio e o afastou de mim.

Choras?

Chorei de raiva até hoje. A fuga de Antônio me con­duziu à ira. Porém a ira se vai desvanecendo e cede lugar a uma dor ainda mais terrível. Estou odiando esta Cleópatra que nasce. E sei que me acaricias por piedade, porque os anos não deixaram nada para acariciar.

Minha pobre menina. Estás perdida.

Tu me presenteias com lástima. Também em ti o de­sejo desaparece. Vejo em teus olhos o olhar desses viajantes de terras longínquas, que acodem a contemplar as ruínas do que foi meu Egito. Ao supor o esplendor que habitou nelas, lançam um suspiro. Mas já não poderiam sentir nenhum de­sejo pelos tesouros que o deserto devorou. Não sou mais tua menina. Sou um cadáver.

Tua pele é aveludada como a daquela princesa que eu banhava nas águas do lago sagrado. Como me lembro de ti, minha menina! Tu te adiantavas todas as manhãs, rodea­da por minhas sacerdotisas, nua entre suas túnicas brancas. Cada um de teus passos era como a queda de uma pétala de rosa. Teus cabelos compridos se mexiam, entregues ao ca­pricho da brisa. E, entre teus braços cruzados, o leque das grandes procissões parecia a pena de uma pomba. Quando chegavas ao lago, eu te abraçava docemente, porque vestia as roupas sagradas de Hátor e me cabia reconhecer-te como filha. Assim divinizada, ias entrando na água e tremias leve­mente, até que os nenúfares vinham se apoiar em teus seios e os lótus te serviam de abrigo. E o pai Sol depositava na água seus primeiros raios para assim te comunicar toda a sua força e para que o vigor de um novo dia passasse para teu corpo e dele se estendesse a todas as coisas para renovar a criação de Hátor sobre o mundo. Menina divina! Foste mais que a própria deusa, e eu, ao te proteger, sentia-me mais forte que ela. Pensei que ia ser assim durante todos os dias do tem­po. Por que tiveste de crescer, Cleópatra? Levaram-te, mi­nha menina. Os anos te afastaram de mim. E contigo se foi a luz do santuário.

— O esplendor que um dia conheceste revolve-se hoje na esterilidade. Este corpo está vazio.

Esse corpo gerou um rei.

Cesário!

Cesário, sim. Não te basta o poderio desse nome?

O filho de César! Meu príncipe!

E mesmo depois de parir o filho mais divino podes chorar Antônio? Levanta esse corpo, Cleópatra! Já caiu baixo demais. Tanto que chegou a um leito como o meu. Levanta-te, mulher. Estás em meu templo, não em um prostíbulo. Se vieste falar com a deusa, para que se comprazer em seu si­lêncio? Não me acusaste de me ver reduzida ao talante de uma escrava? Pois agora te digo que nenhuma foi tão indig­na quanto a rainha do Egito, mendigando prazeres de sua serva. Ao ver humilhada tua grandeza, a deusa cala sua voz, que vinha atroando há séculos. Só tu podes devolvê-la, Cleó­patra. Só tu, sendo tu mesma.

Tudo que é meu Antônio levou. Se algo ficou, é a recordação de um sonho.

Foi um luxo para Roma que o sonhasse a maior de todas as filhas do Egito. Tua própria ruína há de ser o pre­sente de bodas que ofereces a um amante abjeto?

Cleópatra esbofeteou-a com um ódio que restituía a ma­jestade em forma de tirania.

Não fales assim de Antônio! Até para execrá-lo, ele é só meu!

Falarei assim dele, e assim falará a deusa. E todos os deuses do Egito o repetirão, pois Cleópatra não tem a co­ragem de fazê-lo. Eia! Já chega, que me cansa recordar aos reis o que estes nunca deveriam esquecer. Vivemos no fim dos tempos, para que a maior dentre as rainhas se veja des­truída por um bêbado? Não poderia aspirar a mais o esterco de Roma, nem a menos o esplendor do Egito. Ou ainda será necessário recordar? Quando essa Roma nasceu, cem reis egípcios haviam dominado o mundo. Eras uma menina e sa­bias disso. Agora, que és mulher, esqueceste.

Os cem reis do Egito não conseguiram me ajudar em minha agonia.

Se não voares para além dessa dor, serás maldita. E vê bem que este presságio te chega por dois caminhos. Lançam-no o oráculo de Hátor e, ao mesmo tempo, uma amante enlouquecida.

Vim a ti em busca de amor. Sim, nobre Díctias. An­tônio levou meu espírito, depois de possuir meu corpo em tantas noites de Alexandria. Eu quis me recuperar em ou­tros braços, mas todos me repugnavam; assim, cheguei aos teus. Dizem, desde há muito, que o amor das mulheres é o mais completo, e sei que até as deusas o praticam. Vim a teu amor, procurando uma saída de meu labirinto.

És cruel, Cleópatra. Porque vens buscar cura em uma pobre agonizante. Mas, ao mesmo tempo, és tola, pois, ten­do sido assassinada no amor, pretendes reviver inteira pelo amor, que é o mais incongruente dos sonhos, quando não o mais tirano dos pesadelos. Se ele te escravizou uma vez, para que te oferecer no mesmo mercado? Nem amor de ho­mem, nem de mulher, nem de deusa há de te servir. Todos os amores são um só. A tumba das vontades e o vinho que envinagrou recém-servido.

Continua esse vazio assustador da alma. E tenho medo.

Cobre-te para que, além disso, não tenhas de sentir vergonha.

Certo. Voltam o pudor e o medo da menina. Ah, sim! A menina que fui entre estes muros. Deixa já de idealizar meu corpo núbil e recorda meus gritos de terror. Tive neste tem­plo minha educação de príncipe. Meus amantes romanos riam-se quando eu lhes dizia que me era concedido esse tra­tamento. Fui príncipe, não princesa; do mesmo modo que sou rei, não soberana. O último soberano da estirpe de Ale­xandre! Teria ele tremido nesta escuridão? A lenda de seu valor guiava meu aprendizado da valentia. Eu treinava en­frentando os ventos. Ao passarem seus uivos entre as jane­las da sala sagrada, ao deslizarem entre as altas colunas, era como se todos os mortos do passado viessem me ameaçar em meu retiro. Essa menina que foi Cleópatra teve de cres­cer combatendo o medo. E tão perita se tornou no combate, tantas vitórias obteve sobre si mesma que nem sequer tre­meu diante do grande Júlio. Entrei em Roma presidindo um triunfo que não precisou de guerra nenhuma. Fui coronela de um exército que arrasou o foro sem disparar uma só fle­cha. Foi aqui, neste lugar, onde busquei minhas forças. Aqui, combatendo os espectros que o vento me trazia cada noite. Uma vez, consegui triunfar e soube que jamais tornaria a me render. No entanto, hoje, voltei a sentir medo. Mas tu não me protegeste contra ele, como fizeste em outros tempos. Não me inspiraste a segurança que me comunicaste em minha in­fância, quando aparecias entre as colunas, toucada com as sacras insígnias, fingindo ser a encarnação da grande deusa. Hoje vi que não podes curar meus terrores, porque és ape­nas uma pobre mulher, tão indefesa quanto aquela menina.

—            Estás vendo que o amor que te posso comunicar é como o dos demais. Só agonia. Mas não voltarás a conhecê-la. Se a menina que foi Cleópatra pôde vencer o terror neste templo, a mulher que há em ti há de ser a guardiã de todos os terrores. Lembra-te de que assim a plebe chama a grande esfinge. Ela é mil anos mais velha que nós e ainda se man­tém de pé. Tua força há de ser digna da dela. Velarás esta noite no altar de Hátor, e antes de sair o sol te será revelado o grande mistério que só os iniciados podem conhecer.

— Onde estarás, Díctias?

— Não tornarás a ver a mulher. Quando nos encontrar­mos, depois de teu repouso, serei a voz de Hátor. E o marte­lo de sua ira, se for o caso.

Foi um milagre inesperado que lhe devolveu a dignida­de perdida? Foi, quem sabe, a altivez desesperada de um ex­celente perdedor? De qualquer modo, todo o seu corpo ia endireitando-se até adquirir uma realeza que Cleópatra in­vejou. Pois a sua ficara humilhada pela nudez e também pe­la sensação de ter se visto repelida. E, enquanto Díctias ba­tia palmas solicitando a presença de suas sacerdotisas, atreveu-se a perguntar:

— A deusa me trará visões de Antônio? Quero vê-lo! Quero saber o que faz neste instante. Se ainda me ama, re­negarei de mim mesma por tê-lo insultado. Se o vir sofrer na distância, saberei perdoá-lo.

Só a autoridade que acabava de renascer deu a Díctias força para lançar um olhar de desprezo àquela que um dia fora sua pupila.

— Fêmea estúpida! Pretendes comprometer os grandes mistérios da Criação em teus ardores de gata insatisfeita? Disse-te antes que estavas em teu templo, não em teu prostí­bulo. Mas tu ainda cais mais baixo ao confundi-lo com uma feira. É lá que se encontram as mulheres tortas que lêem a mão das matronas, preparam beberagens para as donzelas e fazem aparecer em bolas de cristal a efígie dos maridos que estão viajando. Tudo isso e muitas outras magias encontra­rás nas feiras e até nas ágoras, mas não nos recintos sagra­dos onde se veneram os mitérios do céu.

A rainha do Egito ajoelhou-se, envergonhada, e foram necessárias duas sacerdotisas para ajudá-la a levantar-se. As­sim a conduziram por uma intricada série de corredores que chegaram a formar um dédalo retorcido, um jogo de gar­gantas impenetráveis. Era como entrar nas profundezas do mundo. Era um novelo de pedra que ia se enrolando pro­gressivamente e dava lugar a escadas que desciam a criptas subterrâneas para, depois, fazê-la subir de novo em direção ao céu por degraus tão estreitos que ela se via obrigada a apoiar-se nas paredes a fim de não escorregar. Só as tochas que as sacerdotisas levavam iluminavam, por um breve ins­tante, a infinita acumulação de hieróglifos que a rodeavam. Invocações à deusa, aos membros de sua família e a ela mesma.

Deixaram-na em um quartinho de paredes completamen­te nuas. Ficou imersa na escuridão, enquanto o ar se enchia de um vapor insólito, profundo e doce ao mesmo tempo. Na­quela nebulosa irreconhecível, ficou adormecida a soberana das Duas Terras.

 

Do lado de fora do templo, no grande pátio, Epistemo seguia os passos do jovem sacerdote de Isis. Sorria ao pen­sar que, mais uma vez, os papéis haviam sido trocados. Pois, se bem que o mancebo se unira a ele a princípio, o cortesão pouco depois desviou seus passos para iniciar um passeio so­litário, absorto ante as imagens que seus olhos contempla­vam pela primeira vez. E, ao comprazer-se com aquela figu­ra imaculada que avançava lentamente entre as novas cons­truções do templo, pensou que dois mundos se enfrentavam e que ele, Epistemo, era testemunha excepcional do grande combate. Porque, no aspecto de Totmés, revivia por inteiro a tradição, enquanto o templo revelava o mais atual das no­vas tendências.

Ali, no coração do Alto Nilo, a família de Cleópatra quis perpetuar mitos que, em sua condição de estrangeiros, não lhes pertenciam. Mas a própria vontade de perpetuá-los, de torná-los vivos, implicava a necessidade de reconhecer que existia, no Egito, uma voz mais profunda que todas as suas inovações. Uma voz que continuava ressoando nos templos mais antigos, nas canções dos camponeses, nos bairros po­pulares de Tebas. Era uma voz que não conseguira calar a elegante influência dos gregos, ditadores da moda e da cul­tura em Alexandria.

Naquela noite, a voz do passado parecia surgir dos lá­bios de Totmés. Porém convertida em um gemido mais do­loroso ainda que no luto de amor de Cleópatra.

Epistemo alcançou-o quando acariciava uns relevos que representavam a deusa do amor consagrando seu divino fi­lho. Era de execução recente e, inclusive quando seguia os ditados da tradição, seu estilo delatava a influência estran­geira. De modo que Totmés mudou sua carícia por um soco cheio de fúria.

— Que será de meu povo, quando até mesmo as preces aos deuses estão mal escritas?

Leu em voz alta as inscrições do muro. Mas não com a piedosa atitude de uma invocação, e sim, antes, com a se­veridade do mestre que, em cada palavra do discípulo, des­cobre um atentado às normas. Epistemo admirou-o, porque poucos homens no Egito estavam capacitados para compreen­der os antigos hieróglifos.

— Essa ciência que me ensinaram converte-se em uma ciência da morte — murmurou o sacerdote. — Só me serve para comprovar que já não tem cabimento no mundo.

Subiram ao terraço do templo. E, como Totmés conti­nuasse em sua tristeza, Epistemo deixou tilintar de novo suas moedas fenícias, anunciando que estava disposto a voltar à frivolidade.

Doce Totmés, tuas meditações evocam tanta ruína que me fazes sentir no final dos tempos...

E não é esse o tempo em que nos tocou viver? — mussitou o mancebo, absorto na contemplação das dunas. — Educaram-me para amar um Egito povoado de sombras pres­tigiosas. Cada vez que abandono meu retiro e observo a mi­nha volta, sinto-me mais defraudado, porque as sombras já nem sequer se atrevem a sair do fundo dos templos.

Epistemo esboçou um sorriso melancólico que perma­neceu fixo em seus lábios, como um fugaz mensageiro do ontem.

Continuaram passeando em rigoroso silêncio. De repen­te, Totmés mudou de atitude. Mostrava-se nervoso, vacilante. Epistemo notou em seu rubor o palpitar de uma pergunta que não se atrevia a formular. Até que, por fim, ela irrompeu:

Ainda que eu seja pouco dado a me imiscuir na vida dos outros, já faz horas que sinto uma grande curiosidade em conhecer o significado de certas palavras de Carmiana, a dama da rainha... — Precisou tomar forças para prosse­guir: — Por que ela te recomendou cautela ante o rei Herodes?

Porque Cleópatra não gostaria que sua dor se con­vertesse em motivo de troça na boca de semelhante paspalhão.

Sem dúvida não entendeste minha pergunta...

Entendi perfeitamente. Queres que te diga de uma vez que sou o embaixador de Cleópatra na corte de Hero­des. — Pôs-se a rir. — É um estratagema para conseguir um convite para minha casa de campo na Judéia?

Totmés ficou surpreso com a facilidade que teve para obter aquela informação.

És isso mesmo? — perguntou.

Sou isso e não outra coisa. — E em voz mais baixa acrescentou: — Por um mesmo direito às confidências, decido-me a perguntar acerca dos boatos que circulam a teu respeito...

Totmés voltou a adotar uma atitude de cautela.

Temo que o político torne a suplantar o amigo, Epis­temo. Se já te dei mostras de afeto e sinceridade, por que não me concedes o direito ao silêncio?

Porque sei muito mais do que teu silêncio crê ocul­tar. Por exemplo, sei que nunca voltarás a teu santuário. E sei que teus superiores lamentarão isso, pois tu és doce, bon­doso e o primeiro nos estudos das coisas do céu, conquanto um pouco remisso na compreensão das que correspondem a este baixo mundo. Como podes ver, estou informado. In­clusive posso assegurar que sei para onde te diriges e quem te espera.

Isso tudo não são conversas, mas espionagem.

Nobre disciplina! — exclamou Epistemo. — É a mais útil para servir a Cleópatra na corte de Herodes. Mas tam­bém para reconhecer quem temos de chamar de o eleito.

Não sei do que estás falando.

Chega de ficção! Tu és o eleito.

Totmés emudeceu. Era tão inábil no dissimular que co­meçou a tremer, quando pretendia parecer depreciativo.

Duplamente eleito. O que há de servir ao trono. O que há de ser, ao mesmo tempo, meu aliado. Em ambos os casos, equivale a servir ao Egito.

Não quero te ouvir. Porque compreendo que tenta­rás desviar minha língua para onde meu coração não pensa­va se dirigir.

Nobre direção. Pois leva ao príncipe. Nesse ponto, Totmés pareceu ruir por completo.

Ao príncipe, disseste?

— A Cesário — insistiu Epistemo. — Sei que ainda não o conheces. Mas não ignoro que, amanhã, te reunirás com ele em um lugar secreto da necrópole de Tebas. Nem mesmo tu tens permissão de saber mais detalhes. O importante é o encontro em si mesmo. Pois ele te outorga a mais alta res­ponsabilidade que qualquer jovem egípcio poderia ter na hora presente. A majestade de Cleópatra põe em tuas mãos o de­ver de preparar para o futuro a majestade de Cesário!

O sacerdote observou ao redor, em atitude de sigilo ex­tremado, como se temesse a presença de uma caterva de es­piões. Contudo o terraço estava deserto e o fulgor da lua con­tinuava sendo tão intenso que não permitia nenhum escon­derijo.

Não temas por teu segredo, Totmés. Nunca foi tal coisa... muito embora o guardasses como um voto sagrado. Era um segredo proclamado a altas vozes em todos os tem­plos do Egito. O nome do eleito era pronunciado com inve­ja nos aposentos escuros dos noviços, com admiração nas aulas onde os filósofos de segunda categoria dão suas lições, com suspicacia nos recônditos laboratórios que os sumos sa­cerdotes utilizam para amanhar os embustes de suas teolo­gías... Estás vendo que não foi sequer um segredo bem guar­dado. Menos ainda para nós, que temos a nosso encargo a indústria da intriga e o próprio quefazer dos segredos do governo.

Encerra-se nisso tudo elevada dose de exagero. Pois não serei o único preceptor a serviço do príncipe. É bem sabido.

É certo que nunca houve tantos para uma só crian­ça. Os mais excelentes cérebros estão aos cuidados do dele. Os corpos mais vigorosos o treinam diariamente para lhe co­municar toda a beleza, toda a harmonia física de um deus na terra. Vive rodeado de matemáticos e astrônomos, filó­sofos e literatos, mestres de equitação e lançadores de dardo...

—            Vês, então, como é limitada minha função.

Cabe a mim lembrar-te o contrário? Terei de tratar-te de embusteiro. Pois, embora ele tenha muitos precepto­res, digo-te que só terá um guardião de seu cérebro. Ou de sua alma, se levarmos em conta a estéril dualidade tão deba­tida por nossos pensadores, nas academias de Alexandria...

Agora entendo que devo ir. Porque, entre todos, só tu conseguiste adivinhar a gravidade de meu empenho.

Rejeitas, então, a confidência...

Fujo dos ardis da política. Ainda não estou na corte e já me encurralam.

Mais uma vez — uma das tantas ao longo do dia — ten­tou escapar da presença de Epistemo. Encaminhou seus passos para a escada que o levaria de volta ao grande pátio. Um pressentimento súbito deteve-o. Algo que o atravessou com a velocidade do raio. De novo viu-se assaltado por instantâ­neos dispersos do que fora sua vida até aquele dia. Todas as suas horas no iseion, toda a sua clausura, todas as suas renúncias. Observou de novo a sacra alvura de suas roupas e sentiu que as usava na qualidade de empréstimo.

Ao erguer a cabeça para o outro, a lua revelou a pro­funda angústia de sua expressão. A lua feria-o com a inten­sidade de um sol mascarado.

— Quem sou eu, Epistemo? — exclamou, a voz em gri­to. O brado de impotência não fez o embaixador mostrar rea­ção nenhuma, como se o esperasse, como se lhe parecesse natural. — Tu, que aparentemente sabes tudo, também sa­berás por que fui eu o eleito. — Sua figura, suas roupas e toda a aura que o envolvia constituíam um conjunto tão pu­ro que Epistemo sentiu o desejo de apertá-lo contra o peito. — Quem sou eu? — repetia Totmés. — De onde venho?

O embaixador precisou de toda a cautela da diplomacia para que seu arrebatamento de ternura derivasse para um maior comedimento.

— Não penses que este encontro se deva a um capricho do acaso. Muitos e bem nobres passos foram preparando os teus. Muitas e bem nobres mentes educaram-te ao longo dos anos para que, chegado o momento, pudesses inspirar o maior príncipe que o mundo conhece nesta hora. Não ignoras que sua ascendência é o prodígio de uma conjunção mítica: o fi­lho de Júlio César e da rainha que pode chegar a dominar todo o Oriente! O porvir de Cesário é o do Egito. E, por ex­tensão, o de Roma, o que é como dizer o do Oriente e o do Ocidente reunidos em um só filho.

— Tudo que me dizes é tão sabido que pode estar na boca de qualquer tagarela que mastigue moscas nos cais. Mas continuo gritando minha pergunta, Epistemo. Responde-a de uma vez. Por que, entre todos os sacerdotes deste ou de qualquer outro culto, fui eu o eleito para formar o príncipe?

Epistemo observava a inquietação do outro com certo humor.

Doce Totmés! Nossa relação não tem remédio. Co­meço eu inquirindo. Terminas tu perguntando.

Não pergunto, Epistemo. Exijo. Ordenaram-me man­ter um segredo que não existe. Deram-me uma vida que não me pertence. É possível que tudo quanto sou, quanto fui, eu o deva a uma intriga cujos alcances me superam?

Que te disse a rainha quando te recebeu ontem à noite?

Que eu lhe fui recomendado por um altíssimo con­selho de sacerdotes. Que me cabia ensinar a Cesário tudo que me ensinaram sobre o passado de nosso povo. Não disse mais nada.

Pouco importa que deixasse escapar uma mentira. Ela mesma deixou a meu critério qual era o momento de desfazê-la.

Que este momento chegue de uma vez, Epistemo!

Chegou. Assim, pois, espera. O conselho que te ele­geu não foi o dos sacerdotes. Fomos a rainha e eu. Faz sete anos.

A idade de Cesário. E eu tinha... dez, no máximo... — Não pôde continuar. Uma vertigem desconhecida apoderou-se dele. Sentiu-se transportado por uma nuvem de indecisão, nada segura. Podia deixá-lo cair a qualquer ins­tante. Podia precipitá-lo em um abismo cujo fundo o ater­rava descobrir.

Com efeito — prosseguiu Epistemo. — Tinhas dez anos quando tua educação foi decidida.

Porém fazia muito mais tempo que eu estava no san­tuário. Às vezes, meus superiores caçoavam de minha vete-ranice. Se eu lhes perguntava algo mais acerca de minhas ori­gens, diziam-me que quase nascera diante do altar de ísis. Tornou a interromper-se. Inesperadamente, agarrou as mãos de Epistemo e nelas cravou as unhas. Minha cabeça está a ponto de explodir diante de tantas coincidências! Ajuda-me. Há muitas coisas de minha vida que ignoro e que anseio por conhecer de uma vez. Demasiadas coisas, que, desde criança, me convertem em um estranho entre os homens. Não careço somente de recordações de qualquer existência ante­rior a meu ingresso no santuário. E muito mais, Epistemo. Ninguém me disse quem foram meus pais, e hoje chegas pa­ra me lembrar que, sem dúvida, tive pais. Acrescentas dúvi­das às que eu já abrigava. Por que teu interesse por mim? De onde vem? Faz apenas meio dia não nos conhecíamos, mas, ao me ver, tu me chamaste por meu nome. E me per­guntaste se foi feliz minha infância nesta província. Eu mes­mo ignorava que nascera em Tebas, pois meus superiores não me confessaram isso até poucas semanas atrás. Tu, porém, conhecias essa circunstância e, pouco depois de me fazer sabê-lo, acrescentaste que, há anos, frequentaste meus pais! E, para enganar minhas possíveis suspeitas, adotaste uma apa­rência de frivolidade que em nada te é adequada.

Não estou autorizado a te fazer mais revelações. O eleito não pode ter passado. Só se lhe concede o que convém ao trono.

Totmés retrocedeu, horrorizado.

Todos me converteram em uma invenção pensada à medida de um trono!

De um príncipe.

É igualmente monstruoso! Por esta criança, que nem sequer conheço, manipularam minha vida. Não sou feito con­forme a vontade dos deuses, como sempre acreditei. Inclusi­ve nisso me mentiram. Existo pelo resultado de uma intriga atroz. E não serei nada que não queiram que eu seja.

És algo muito maior, Totmés. És imenso. Porque és o tempo eterno do Egito.

O corpo de Epistemo alçou-se ao pronunciar essas pa­lavras. Seu rosto, até então sombrio, apareceu iluminado pelo reflexo de alguma verdade que acabara de eclodir dentro de­le com mais força que a vida.

A vida que começava a renascer no horizonte!

Levou Totmés até o alto do pórtico principal. Daquele ponto, o mais elevado do templo, efetuou um amplo gesto que abarcou a imensidão da paisagem. Do templo ao deser­to. Das dunas à várzea fértil. Dos palmeirais às águas do gran­de rio.

Observa a teus pés a suprema arquitetura do mun­do. Admira-te, Totmés. Porque há um tempo fugaz, que transcorre como um suspiro e é vão como um sonho, e é o tempo que chamamos de vida. Em sua brevidade, os homens se aproximam da loucura. Constroem castelos efêmeros, acre­ditando que hão de ser mansões de eternidade. Mas a vida os destrói, porque traz em si mesma a semente da destruição imediata. Assim nascem os impérios e assim caem depois. Existe, porém, um tempo eterno, inscrito na própria essên­cia das coisas, no constante devir que se transmite de homem a homem. É um tempo muito mais vasto do que poderiam calcular os historiadores do palácio e vai muito mais além do que os homens do futuro podem esgotar. Este é o tempo que te entregamos, Totmés. O tempo eterno que deverás transmitir a Cesário.

Triste destino! — exclamou Totmés. — Aspirei à per­feição e me verei reduzido à categoria de um simples trans­missor de idéias!

Que importância pode ter para ti, se estavas dispos­to a transmitir a mensagem de teus deuses? Tu te prestavas a ser intermediário de poderes desconhecidos. Aceita sê-lo do único poder que perdura. Ser o encarregado de transmi­tir a Cesário o amor a sua terra.

E meu destino continuará sendo triste. E continua­rei sendo uma ponte entre duas imposturas.

És uma criança que ainda não compreendeu o valor das pontes entre as almas. Se a tua tende para o príncipe, conhecerás a grandeza da criação em outro ser humano. Não dizem os sacerdotes de Mênfis que seu antigo deus criou o homem no torno de um oleiro? Cria Cesário a partir dessa ponte com que te presenteamos sem que o soubesses. Os sa­cerdotes do Grande Sul não asseguram que seu deus com ca­beça de carneiro tirou o homem de dentro de um ovo gigan­te? Tira Cesário das trevas e da ignorância em que seus cur­tos anos o mantêm encerrado. Um dia, essa criança chegará a ser para ti algo que só os grandes privilegiados do amor alcançam. Essa criança será mais que um irmão, mais que um pai, um filho ou um amigo. Será tua criação. E, por sê-lo, um pedaço de teu absoluto.

O rosto de Totmés iluminou-se ligeiramente na derra­deira solução da ironia:

Muito aborrecidos devem andar os tempos nos céus, quando os próprios deuses se comprazem em jogar nos da­dos uma vida tão vulgar como a minha. Pois jurei ante o sa­grado altar de Isis que meu corpo jamais se perpetuaria em outros corpos. E hoje meu espírito irá se perpetuar em ou­tro espírito.

Assim foi, sempre. E assim há de ser. Um homem cria outros, e assim se vai cumprindo a cadeia que sustenta o tempo eterno dos povos e o livre fluir das idades.

A aurora já anunciava seus caprichos. A gentil Nut, que estende seu corpo sobre o mundo, retirava o braço que, até então, havia desdobrado os negros mantos da noite. A linha do horizonte já se revestia com um galão ambarino. E con­tra a ilusão do sonho renasciam as formas da realidade, co­mo uma renovação inexorável.

Coincidindo com a aparição das primeiras luzes, soou ao longe uma doce melodia. E um coro de vozes femininas, tênues como a brisa, chegou ao terraço, atravessando as enor­mes lousas do teto.

O que é esta música? perguntou Totmés, extasia­do. Será que aparece para nós o filho de Hátor, fazendo soar seu divino sistro?

Começam para a rainha os sagrados mistérios. Du­rante alguns instantes, Cleópatra verá transcorrer diante de seus olhos o tempo eterno de teu povo.

— De repente os cantos cessaram e cederam lugar a um silêncio ainda mais encantador. Totmés reconheceu-o no mes­mo instante, pois em suas profundezas, em suas luzes, en­contrara sua própria revelação. Era o silêncio da origem!

Caiu de joelhos. E levantou os braços para a sublime abóbada que é o sustentáculo do infinito.

— É o único silêncio que fala — exclamou em seu arre­batamento. — O único silêncio que está cheio de palavras. O único que tem vida. Lembro-me dele, Epistemo, lembro-me dele. Também a mim foi mostrado. Também por ele pe­netrei na grande matriz da vida. E vi surgir a luz das trevas. E vi nascer o sol na tormenta.

A alvorada continuava crescendo. Começava o império das luzes. Dentro do templo, todos os deuses do Egito supli­cavam luz para sua rainha.

 

Os grandes mistérios dispunham-se a revelar sua mensagem!

Rodeada de sacerdotisas ataviadas com a máscara da deusa Hátor, Cleópatra avançava pelo corredor cerimonial. Ia completamente nua sustentando com uma das mãos o sis­tro divino e, com a outra, o ankh, símbolo da vida em for­ma de cruz.

Só se sentia protegida por sua abundante cabeleira, que lhe chegava até a cintura. O resto do corpo tremia sob uma estranha sensação de terror. Em seu avanço rumo ao altar da deusa, imaginava flutuar sobre uma nuvem de vapores espessos que se diluíram lentamente, até roubar de seu cor­po a sensação da gravidade.

Avançava sob o efeito da beberagem que lhe havia sido ministrada na antecâmara, o tempo todo que durou a pre­paração de seu espírito. Em sua letargia, porém, soube que caminhava e que, durante todo o itinerário pelo comprido corredor das colunas, era observada por jovens e donzelas usando máscaras de ouro parecidas com as das sacerdotisas que a acompanhavam.

Ao prostrar-se ante o altar de Hátor, viu que também o rosto da nobre Díctias se ocultava atrás de uma máscara cujos traços imitavam os da deusa.

Embora oficiante, não recitava. E à voz que ressoou de cima chamou, a partir de então, de "a Voz". Porque era única.

— Rainha e, ao mesmo tempo, rei das Duas Terras, co­mo chegas ante meu altar?

Como suplicante.

E o que suplicas?

Que a deusa do amor faça seu silêncio loquaz.

A deusa negará o amor que te destrói.

Acato sua negação.

— A deusa é escrava de uma vontade mais alta. Foi re­velada faz milhares de anos nos primeiros santuários do Ni­lo. Não existia o Sol. Não existia a Lua. O mundo não era sequer um sonho na mente dos deuses. Pois os deuses ainda não existiam.

A imensa pupila do olho divino, que sempre permanece oculto, começou a dilatar-se e assim continuou até converter-se em massa abstrata. Flutuava no ar um pó dourado que, por sua vez, esfumou-se completamente até perder a cor.

O espaço assassinou a si mesmo. O tempo morreu em suas próprias entranhas.

Nenhuma cor. Nenhuma forma. Nenhuma voz. Nenhum espaço.

Sinto uma vertigem espantosa — gritou Cleópatra. — É algo parecido com o êxtase. Estou voando!

Voas sobre o caos. Atravessas o caos. Ele foi a origem.

Sobre o nada inicial, sobre a absoluta negação (cujo no­me não foi revelado), começaram a brotar borbulhas incan­descentes, e cada uma delas, ao rebentar, arrojava as forças primordiais.

Origem, tempo, espaço, matéria, energia, movimento e, por fim, a força.

A força a possuía. A força a violava. A força criava um vulcão em suas entranhas.

Fora delas, no imenso caos da origem, o mundo criava a si mesmo. E Shu, o ar, beijou Geb, a terra. Depois, uniram-se em uma cópula magistral, da qual saiu Nut, o céu, que ocupa um espaço entre ambos.

E o recinto do templo converteu-se em um imenso len­çol azul, no qual foram aparecendo estrelas e os deuses que as encarnam.

— Saúda os deuses que surgiram da origem — disse a Voz.

E diante de Cleópatra desfilou o préstito das divinda­des, o incalculável rol dos grandes senhores dos milênios.

— Tu sais do caos — disse a Voz. — Estás dentro do tempo.

O préstito era formado por mancebos e donzelas, nus da cintura para cima, porém com a cabeça coberta por más­caras que representavam os animais divinos. Ao deter-se por um momento ante Cleópatra, cada deus acariciava-lhe a fron­te com a cruz da vida. E o coro entoava doces melodias, pro­duto de uma tradição duas vezes milenar.

Desfilou Anúbis, o chacal; Tuéris, a hipopótama; Sekmet, a leoa; Tot, o íbis, acompanhado, por sua vez, de seus babuínos; Knhum, o carneiro; e, por fim, a vaca celeste de Hátor.

Como te apresentas diante dessa plêiade divina?

Como pretendente.

O que pretendes?

Que o Egito me seja revelado.

Soaram tambores triunfais. Dentre as trevas apareceu o único animal que não desfilara na sublime procissão. Era o falcão, soberbo, majestoso, como a máscara de ouro que cobria a cabeça do fornido atleta que o representava.

Sou Horus, o falcão. Sou o Egito. Em outros tem­pos, representava-me o faraó em vida; antes que, mediante a morte, passasse a se converter em meu grande pai Osíris.

A que vens, Horus?

A vingar.

E a quem consagras tua vingança?

A meu divino pai, assassinado pelas forças do mal. A minha divina mãe, ísis.

— Seja, pois. Que compareça a Sacra Família do Egito. Pai, Mãe e Filho culminarão o imenso drama da luta fratricida.

Apareceram duas novas máscaras, embora, nessa oca­sião, humanas. O mancebo era Osíris, mumificado, com o rosto pintado de verde e ostentando os atributos da realeza.

A donzela era ísis, ataviada com uma couraça de esca­mas douradas e a alta coroa de plumas que a distingue entre as demais deusas.

—            Cleópatra, tu me representas na terra. Como eu, des­posaste teu irmão. Como eu, és mãe de um filho divino. Co­mo eu, amas.

E exclamou a Voz:

— Sacra Família, Pai, Mãe e Filho, representai para mi­nha suplicante a única história que perdura. A história da ressurreição da carne. Que se abra o poemário dos tempos e soe uma voz mais humana que a minha!

Apareceu, então, o mais ancião de todos os sacerdotes do Egito. Só ele recordava aqueles salmos. A jovem harpista que o acompanhava na recitação sentiu-se honrada e até bendita.

Doce foi sua melodia quando apareceram os animaizi-nhos que ajudaram Horus em seu descomunal combate! Po­rém terríveis foram os impactos dos timbales tão logo sur­giu das trevas o ator que interpretava o malvado Set, senhor do deserto, onde não cresce a vida.

Quando os atores estavam preparados, várias sacerdo­tisas correram um tapete que escondia uma enorme piscina. E em suas águas apareceram o Nilo e suas cidades e os bos­ques e os pântanos que foram testemunhos da magna batalha.

Cleópatra lançou um gemido de prazer, pois convertera-se em um pássaro que, desde a altura, abarcava toda a imen­sidão do solo egípcio.

Então o ancião sacerdote começou seu relato...

 

                   O Mistério de Osíris

 

Canto o supremo mistério da vitória do Bem sobre o Mal. Canto o combate fratricida que dividiu os homens em sua origem. Canto a ressurreição da vida sobre a morte...

Pois contam as histórias de nossos pais mais distantes que, em um princípio, habitavam o céu multidão de deuses que o homem não podia alcançar. E os homens viviam na ignorância, pelo que eram parecidos com os bichos.

Mas um filho dos deuses apiedou-se da solidão dos ho­mens, deixou-se comover por sua estupidez e quis ensinar-lhes o que os deuses sabiam.

 

Osíris: Sou o deus que baixou para viver entre os ho­mens, para sentir como eles e para sofrer todo o ciclo da vi­da. Ensinei-os a viver do pastoreio. Ensinei-os a secar os as­fixiantes lamaçais que cobriam o Nilo. Ensinei-os a organi­zar colheitas e a educar-se nas virtudes das plantas.

ísis: Não desceste sozinho, irmão e esposo amado. Mi­nha fidelidade te acompanhou. Tu me contagiaste com o amor aos homens e, por meio de teu amor, eu os amei. E quis adestrá-los nas artes da magia. Quis ensinar-lhes os dons da medicina para que se pudessem curar de todo mal.

 

Felizes eram os esposos entre os humanos. E amados por eles de tal modo que os próprios deuses do céu se admira­vam, pois nunca haviam conseguido tanta adoração.

Calai-vos! Meus olhos estão a ponto de contemplar os negros abismos abertos no fundo do coração de um deus. Calai-vos! Aproxima-se a serpente que espreita nas roseiras para nelas deixar veneno no lugar da fragrância.

Assim, assim nasceu o ódio no coração de um irmão. Sim! O ódio mais nefasto substituiu o amor na alma impura do irmão de Osíris. De Set, sim, que os irmãos chamam de Tifão, que as crianças chamam de Demônio.

Set: Meu coração é árido como o deserto em que habi­to. Odeio Osíris. Os homens o preferem. Os deuses o prefe­rem. Se não hei de possuir suas altas qualidades, exercerei as minhas, o poder do Mal!

Osíris: O fratricida esquartejou meu corpo. O fratri­cida cortou-me em mil pedaços. O fratricida jogou-os no Nilo para que não recebessem sepultura. Flutuando vai minha car­ne, do Delta que se abre aos oceanos até as três cataratas que levam às ignotas selvas da África!

ísis: Crime funesto! Dor ao ver meu sangue assim der­ramado! Dor de esposa e irmã apaixonada! Osíris, teu cadá­ver esquartejado já não conhecerá a vida eterna. O Mal cru­zou os limites da tumba!

néftis: Eu, Néftis, esposa de Set, irmã de ísis, renego deste crime. Se houve em meu coração sombras de inveja, apagou-as minha vontade de irmã. Ouve-me, ísis: hei de acompanhar-te em tua busca dos fragmentos dispersos de teu esposo.

Assim, convertidas em sagradas peregrinas, Isis e Néf­tis percorrem as terras do Nilo. Ora encontram a cabeça do esposo, ora um braço, ou um pé, ou a boca. Quando estão de posse de todo o corpo, ísis recorre a sua ciência extraor­dinária.

Néftis: ísis, irmã, o que fazes com os pedaços de teu esposo?

ísis: Volto a uni-los, como estiveram em vida. Assim unidos, hei de regá-los com unguentos preciosos. Farei mais ainda: envolverei os pedaços com um lençol de finíssimo li­nho que, mantendo-os juntos, evitará que voltem a se perder.

néftis: Osíris, saúdo em ti o senhor do outro mundo. Lá reinarás, desde lá julgarás nossas culpas. E, graças às in­dústrias de minha irmã, todo egípcio terá direito a ser como um Osíris quando seu corpo for embalsamado.

Porém o mal segue livre no mundo. O mal abate-se im­placável sobre as colheitas. O mal assenhora-se das almas. Maldito Set, abominável irmão, que depois de assassinar con­tinua sua negra missão!

ísis: Saibam os homens que o olho de Osíris engendrou em minhas entranhas aquele que haverá de vingá-lo. Aquele que haverá de restaurar o Bem sobre a Terra.

Néftis: Horus, filho do Sol!

HORUS: Chego do longo combate contra meu tio Set, o do nome ensangüentado. Persegui-o por todas as cidades que balizam o rio dos rios. Nunca houve combate mais ár­duo! A eternidade, contudo, há de saber que, na longa luta da luz contra as trevas, o Bem voltou a reinar em terra egípcia...

 

Horus, filho divino, conta agora o detalhe de todos os teus azares. Conta os danos que infligiste. Conta...

 

O ancião sacerdote viu-se obrigado a interromper seu relato. Os atores, sua interpretação. Uma voz poderosa soou com maior força que a percussão dos tambores.

Farsantes! Que cesse de uma vez esta farsa!

Era Cleópatra.

 

Estais me enganando! exclamava a rainha, voz em grito. Não há nada que eu não soubesse! Estais me contando uma velha fábula!

Correu para Osíris e arrancou-lhe a máscara. Já não ti­nha a cor verde da morte. Já era apenas um jovem sacerdote de traços afilados e olhos penetrantes. E, ao arrancar a más­cara de ísis, achou-se diante de uma das sacerdotisas que havia surpreendido brincando com Díctias.

Os deuses não existem! Nem os deuses, nem o pró­prio Egito! Nem sequer chega a ser um sonho... É uma vul­gar patranha.

O ancião sacerdote ergueu os olhos para o teto e iniciou uma oração de desagravo. A menina harpista tangeu uma nota desafinada. E, enquanto a rainha continuava arrancando as máscaras dos outros deuses, a grã-sacerdotisa abandonou o altar e chegou até ela, presa de uma fúria que excedia os limites da vida.

Mulher ignóbil! Não te atrevas a arrancar-me a más­cara de Hátor! Seu raio há de te perseguir eternamente até os últimos confins do Nilo, até o inferno onde habitam os canibais.

Ao enfrentá-la, Cleópatra encontrou-se diante do rosto dourado da deusa, iluminado pelo sorriso ambíguo. Mas, através das órbitas vazias da máscara, o olhar de Díctias lan­çava fulgores terríveis. Compreendeu que sua fúria era sincera.

Ignoras que os deuses reproduzem nos céus as ações dos humanos no mundo?

Tuas revelações não me ensinaram nada. Se isso são os grandes mistérios, têm a ingenuidade da primeira lição que as crianças aprendem na escola.

Escuta a voz do oráculo, mulher. Escuta a revelação que não soubeste interpretar, pois estás cega a tudo que não seja tua funesta paixão por um porco... — Díctias ergueu o báculo, solicitando, assim, que o velho sacerdote se apro­ximasse. — Tu, Râmfis, leste mais do que estava escrito...

O corpo desmembrado de Osíris é o do Egito. É nossa terra cortada em mil pedaços pelas forças de um mal que nos supera.

Que mal é esse, Râmfis? Que força atua sobre o Egito como o pérfido Set agiu contra seu santo irmão?

Roma é o mal. Roma é o irmão pérfido que ergueu seu braço sobre o Nilo. Roma desmembra o Egito em mil pedaços. Roma é o crime. Se houvesse uma grande mãe ca­paz de lhe devolver a vida eterna!...

— Onde está a mãe divina, Râmfis?

— A mãe divina é Cleópatra-ísis. Em seu ventre foi en­gendrado o vingador. De seu corpo surgiu o herói divino.

— Quem é Horus vingador, Râmfis?

Cesário chama-se o vingador do Egito. Ptolomeu Ce­sário é o Menino Divino.

Então um estrondo estremeceu as paredes do templo. Seu fragor chegou multiplicado e adquiriu tonalidades tão imensas que todos caíram de joelhos.

Cesário! Cleópatra exclamou. — Cesário é Ho­rus vingador!

Ele é tua resposta — proclamou Díctias-Hátor. — Que mil trombetas o proclamem pelo Nilo! Que os deuses o cantem no céu!

E todas as máscaras divinas uniram-se em uma procla­mação única. E, assim, salmodiaram-na o chacal e o carnei­ro, a vaca e o escaravelho, a serpente e o hipopótamo:

— Glória ao vingador do Egito! Está escrito no curso dos astros que Ptolomeu Cesário há de reunir os fragmentos mutilados do grande corpo egípcio. Que Ptolomeu Cesário tomará vingança sobre Roma. Nele se encarnará o antigo po­der do faraó representante de Horus na terra. Que ele pro­longue a estirpe de sua mãe na vingança que haverá de levar o Egito à ressurreição, depois da longa noite de sua ruína.

Calaram-se as vozes celestiais, começaram a retirar-se as sacerdotisas, esfumaram-se as máscaras do drama, volta­ram os espaços a reunir-se e, ao cabo de uns instantes, todo o templo havia recuperado suas formas, e Cleópatra encon­trou-se como horas antes: em frente de Díctias e do altar da deusa. A sacerdotisa sustentava a máscara dourada de Há­tor como um símbolo destinado a lembrar à suplicante que o grande mistério realmente se cumprira e não era um sonho.

Podes ir embora, mulher. Vai-te já, com teu aspec­to de indigna dançarina. Assim vieste, mas não penses que te vais do mesmo modo.

Eu sei — disse Cleópatra. — Vim cheia de Antônio. Vou cheia de Cesário. É como se tornasse a levá-lo em mi­nhas entranhas. Tanto me cumulam as promessas de seu futuro!

— Outros hão de se ocupar dele. Não te esqueças. Cleópatra fez uma reverência ante o altar e, depois de

recolher seu manto vermelho, perdeu-se além do bosque de colunas do grande corredor sagrado. Enquanto ela se afas­tava, a nobre Díctias iniciou uma prece destinada a iluminar seus caminhos.

No grande pátio, Totmés continuava absorto na leitura de uns hieróglifos mais antigos que os demais. Quando Epis­temo se aproximou dele, foi para revelar-lhe uma expressão sombria e triste.

— Em que está pensando? — perguntou o mancebo.

— Nos crimes do amor, doce Totmés. Mas tu não po­des conhecê-los.

Se alguma vez chegasse a conhecer o amor seria uma bênção tão grande que negaria o crime. Pois sei que seria a própria origem da vida.

Então já o conheces. Pois eu não me referia a este amor sublime, e sim àquele, mais elementar e necessário, que agrilhoa o sentir dos humanos. Sem que pudesses suspeitar, produziu-se hoje, neste templo, uma série de amores não cor­respondidos. Seres que amavam outro ser e chocavam-se con­tra sua rejeição. Amores que nunca poderão se encontrar. E nem mesmo os deuses podem fazer coincidir tantos ca­minhos.

Deixaram para trás o recinto sagrado de Hátor e intro­duziram-se na espessura dos palmeirais. Atravessaram o es­plendor dos campos, cruzaram os caniçais e, quando alcan­çaram a nave real, Epistemo apressou-se a ajudar sua rai­nha a descer da liteira.

Dir-se-ia que era outra mulher, recém-nascida com o dia. A luz do sol vivificava as cores audaciosas de sua maquilagem. Os olhos voltavam a ser profundos; os lábios, arden­tes; a pele, suave. Toda a sua majestade entregava-se aos cá­lidos raios do primeiro sol da manhã. E em sua voz tornou a aparecer a coqueteria de uma ave-do-paraíso.

E meu lenço, Epistemo? Deixou de te interessar?

Entreguei-o à nobre Díctias, como lembrança.

Foste generoso mas nefasto. Se está de posse de uma prenda minha, se pode acariciá-la cada noite, nunca se livrará de seus fantasmas.

É o risco que correm teus adoradores.

Quero premiar teus serviços ao trono e tuas bonda­des para comigo. Atenta bem: quando zarparmos, eu te es­perarei em meu leito e permitirei que gozes com meu corpo.

Nem teu corpo nem o meu gozariam desse encon­tro. Nossos cérebros estão demasiado acostumados à ago­nia. Ademais, quero que minha vida transcorra sem morrer a cada instante. E em verdade te digo que só há um meio para isso: afastar o amor de meus caminhos.

Há verdade em tuas palavras. Que o amor é o des­crédito dos poetas. Eles cantam suas virtudes; ele, em troca, mata. A rainha do Egito dirigiu o olhar para a margem opos­ta. Nunca se recortavam com tanta precisão as montanhas dos sepulcros de Tebas como naquelas primeiras horas da manhã. Nunca emitiam uma cor tão rosada.

— Ainda que tenhas te permitido desprezar meu cor­po, vem depois a meu camarote. Torno a estar com disposi­ção para me interessar pelos problemas dos demais. Quan­do voltarmos a Tebas, cavalgaremos sem dilação até a necrópole dos antigos faraós. Dispus que o príncipe Cesário se reúna ali conosco para que, por fim, conheça nosso pro­tegido.

— Eu já sabia, majestade.

Ela sorriu com a malícia que acabava de desenterrar.

Sabes tudo, Epistemo.

E tu também, minha rainha.

Trocaram entre si, por um instante, o prazer da intriga. E Cleópatra novamente gostou de ser felina. De voltar a brincar.

— Algo soube, Epistemo. Algo soube.

Viram-na subir pela rampa, sem olhar para trás. Todo o seu corpo erguido, todo o seu porte egrégio, todo o seu rosto recebendo a luz, como as grandes deusas recebem em suas máscaras o resplendor vacilante dos fogos sagrados. E, ao pôr os pés no convés, ao deixar-se transportar suavemen­te pelos braços de suas damas de honor, deixou cair o man­to vermelho e seu corpo apareceu na esplêndida nudez das grandes filhas do amor.

Por aquele esplendor, os camponeses conheceram que era, na realidade, a rainha do Egito. E abandonaram em unís­sono o labor para reunirem-se em coro triunfal que seguiu a nave até Tebas.

 

Enquanto a formosura ia emprestando seus artifícios ao rosto de Cleópatra, disse ela a suas damas:

— É mister que cumpramos o aprendizado da dor, ainda que entre risos fingidos. Talvez seja esse o sentido do luto em todas as coisas humanas, o qual é como dizer o humano despropósito. Que outra coisa foi o luto dessa nave? Tingi­mos com cores de treva os diamantes que a memória ente­soura. Já não sei se a memória é um bem que nos ajuda a sobreviver ou um estratagema forjado por nossa própria fra­queza. Que ela converta em plácida recordação o que foi o alvoroço da paixão! Pois viver vendo brilhar nossos diamantes dia após dia, ano após ano, seria morte pior, por ser repetida.

Bebeu com gosto uma taça de vinho adoçado com mir­ra. E a galera seguia sua rota em direção a Tebas, memorial da morte gloriosa.

 

Tebas, a das cem portas!

Embora o barco estivesse ancorado na margem oposta, Totmés pôde sentir plenamente o impacto da mais legendária dentre as cidades. Tebas! Parecia emergir além da névoa como o espectro de um baixel ferido. Até na agonia de seu esplendor surpreendia o ânimo dos peregrinos do espírito. Poetas, ar­tistas, místicos reverenciavam os restos de seus santuários, a gravidade de seus obeliscos, as colossais efígies de seus reis.

Demasiados invasores haviam caído sobre seus edifícios, um dia gigantescos. O deus local, Amor, viu seu prestígio reduzido aos cultos populares. Seu imenso santuário havia sido uma cidade dentro de Tebas, um poder autônomo den­tro do imenso poder dos grandes faraós. Mas os tetos desa­baram, as águas do Nilo, em suas cheias, penetraram no in­terior das gigantescas salas hipóstilas, esmagando o poder, deixando em seu lugar um sabor de cinzas. O tempo encar­regou-se de completar a destruição. Tanto Amon como Te­bas viram-se arrastados pela devastadora corrente que nem sequer os deuses podem controlar.

"Transcorre o Nilo", pensou Totmés, "mas nunca ter­mina de passar totalmente. Em compensação, o homem pas­sa. E também o fazem os deuses. Quem criou quem? Não importa a resposta. Só o passar existe. Passaram homens e deuses, enquanto o Nilo se limitava a transcorrer. E não sei que força superior ao Nilo tem poder suficiente para dispor de tantos contra-sensos..."

Perguntas singulares que o assaltavam com maior por­fia desde os últimos acontecimentos.

Tebas! A cidade onde nasceu. A cidade que viu os pri­meiros anos de sua infância... Haviam-no insinuado seus su­periores, mas bem que poderia ser outra mentira. Em todo caso, era um tempo demasiado breve, estéril na recordação, pois arrebataram-no muito antes que a semente pudesse abrir-se em flor. De maneira que, quando tentou emocionar-se com alguma lembrança remota — um sabor, um aroma, uma ruela —, descobriu que só dispunha daquelas de que os demais ha­viam disposto. Depois, das que Isis se encarregou de ensi­nar-lhe.

Perguntas vãs. Perguntas da desolação. Só tinham uma resposta desesperada: o descuido que imperava nos santuá­rios de Tebas, ontem tumultuosos; a desordem urbanística de uma cidade que foi o centro do orbe; o abandono de mo­lhes que, em seus momentos de esplendor, decretaram todo o tráfico do Nilo.

Ele e Tebas navegavam na mesma incongruência!

Enquanto Alexandria triunfava ao abrir-se para o Me­diterrâneo, Tebas dormia, totalmente imersa em seu prestí­gio ancestral. Por causa de seu isolamento das novas vias de comunicação, ficou encerrada entre suas ruínas, mas tam­bém absorta no próprio caráter. Assim, não era estranho que a cidade e sua região fossem as menos permeáveis à influên­cia estrangeira, as mais arraigadas na tradição. Por ela, gra­ças a ela, Totmés escutava, hoje, a voz que o remetia a suas origens místicas. Para lá do tempo e do espaço, Tebas esta­va em seu coração.

E o coração da Tebas sonhada, a íntima essência de uma Tebas pensada para a eternidade, regozijou-se intensamente quando Cleópatra Sétima, soberana de sangue grego, apa­receu no alto de seu barco vestida à usança dos faraós guer­reiros que puseram sua força a serviço de Amon.

Vestia a couraça de ouro e o capacete azul que o povo já podia ver somente nos relevos dos templos antigos. Era uma reencarnação daqueles grandes dominadores que esma­gavam com seu poderoso punho povos que a História havia esquecido. Pois os muros sagrados de Tebas demonstravam aos filhos do presente que o tempo também arrastara consi­go nações poderosas que um dia se acreditaram invencíveis. Já não existiam Babilônia, Mitani ou Punt. Outros povos rei­navam nos solares dos hititas, dos mitamies ou do khabiri. A vida que conheceram, as vitórias de que se vangloriaram eram apenas palavras sem vida inscritas em muros gigantes­cos, destinados também ao esquecimento.

"Somos apenas esquecimento colocado nas mãos de uma vontade mais forte que os sonhos do mundo", dissera o jo­vem sacerdote de Isis no dia anterior. E, agora, Tebas con­firmava-o, enquanto Cleópatra, a rainha obcecada em um luto de amor, pugnava desesperadamente para desfazer a mal­dição dos séculos, devolvendo ao povo a miragem da glória.

Aumentavam as manifestações de júbilo da multidão. Cleópatra montou em seu carro de ouro, também copiado dos faraós, e o povo acreditou ver nela uma reprodução do grande Ramsés. Arvorando o bastão de sua autoridade, pro­feriu vários gritos em dialeto tebano. A plebe enlouqueceu; fazia três séculos que se acostumara ao fato de a família real de Alexandria dirigir-se a ela utilizando o idioma grego. Hoje regressava uma autêntica filha do Nilo! Talvez uma miste­riosa descendente daqueles reis sepultados nos vales das mon­tanhas rosadas. Quiçá a reencarnação daquela outra rainha legendária, cujos obeliscos ainda se erguiam nos maltrata­dos santuários de Amon.

Mas a nova faraona, a guerreira de ouro, não apontava para o deus. Seu cetro indicava a direção contrária: a mar­gem oposta do Nilo, os túmulos reais. E, quando tomou as rédeas das mãos de um soldado negro, quando arrancou de seus cavalos um trote de centauros, todo o seu séquito a se­guiu naquela direção.

Envolta em uma nuvem de poeira que a plebe tomou por um novo prodígio, Cleópatra Sétima dirigiu sua carrei­ra veloz para mais além da vida. Cruzou as férteis veredas que crescem junto do rio e, ao chegar diante dos enormes colossos de pedra que os viajantes gregos consideram uma representação do filho da Aurora, tornou a erguer o bastão real, como remota homenagem de um soberano a outro. Pois sabia que, apesar das fabulações de seus contemporâneos, aqueles dois colossos pertenciam a um rei cujo templo ruiu com o passar dos séculos.

Deixaram para trás a necrópole dos nobres e as ruínas calcinadas da cidade dos operários que, durante dois milê­nios, trabalharam naquela zona para conseguir que o esplen­dor e a felicidade das noites de Tebas se prolongassem na grande noite da Eternidade. Por fim, Cleópatra deteve sua carreira na entrada de uma trilha estreita, aberta na monta­nha como uma ferida.

— O príncipe Cesário já terá chegado?

Apolodoro, que cavalgava junto do carro real, apressou-se a assinalar o cimo em forma de pirâmide que presidia outro dos vales da montanha. O sol escondia-se atrás dele, o império do dia estava a ponto de concluir. O capitão lembrou à rainha que os sacerdotes haviam imposto como condição que o encon­tro entre Totmés e o príncipe ocorresse quando o sol afunda sua barca nos domínios da noite. Nem antes, nem depois.

Totmés sentia-se comovido ante o profundo mistério que emanava do lugar e a intensa sublimidade implícita no cre­púsculo. Compartia com Epistemo um dos carros reais. E, se suas emoções houvessem permitido, teria lhe dito como estranhava que um diplomata pudesse conduzir o carro de guerra com uma marcialidade, um domínio que ultrapassa­vam a simples perícia.

Estranho cerimonial — murmurou Totmés. — E es­tranho lugar.

Os antigos chamavam-no de Sede da Beleza[1]. Nes­te vale estão enterradas as grandes soberanas de Tebas e os príncipes que não chegaram ao trono.

Creio compreender. Cleópatra é rainha; Cesário, príncipe...

E esta é a hora em que o deus Ra adentra as trevas e os mortos começam a vagar pelas montanhas, apregoando a luta do deus contra os demônios da noite.

A barca de Ra desapareceu completamente. Foi co­mo se uma tênue gaze de cor azul deslizasse sobre as pedras que, até aquele momento, foram rosadas. Ouviu-se o uivo de um chacal ao longe. Mas ninguém tremeu, porque todo egipcio sabe que, desde tempos imemoriais, este é o hino do deus Anúbis, que todas as noites acode para proteger os de­funtos.

Abriram caminho entre as penhas que fechavam a en­trada do vale. Os carros tiveram dificuldade para avançar entre as grutas. Por fim encontraram o caminho ritual; o que, em tempos antigos, fazia as vezes de estrada. Por ali haviam avançado os cortejos funerários das grandes soberanas do Egito! Hoje era uma paisagem desolada: um acúmulo de pe­dras gigantescas, escarpas afiladas, ladeiras tortuosas. E, co­mo bocas sedentas, as portas de numerosas sepulturas.

Só uma estava aberta.

Do interior surgia, entremesclada, a vacilante luz de vá­rias tochas. No exterior, montava guarda um pelotão de sol­dados. Mais além, dois sacerdotes do culto de Ptah aguar­davam junto de quatro carros que ostentavam o estandarte da cidade de Mênfis. Totmés não pôde deixar de sorrir ante tal circunstância. Sacerdotes da grande capital do Norte obri­gados a dirimir um problema de Estado na antiga capital do Sul! O Alto e o Baixo Egito defrontados em uma questão de honra que, no entanto, vinha decidida de antemão da ca­pital que anulava a ambas: Alexandria, a grande dama do mar.

Existiam, contudo, explicações plausíveis. Enquanto o clero de Amon havia perdido toda a sua beligerância desde várias gerações, os sacerdotes de Mênfis, com seu culto ao boi Ápis, continuavam mantendo seu alto prestígio. A cida­de convertera-se em um centro cosmopolita que, através da religião, atraía pensadores e intelectuais de todos os países conhecidos. E os viajantes gregos cantavam-na constantemen­te em seus escritos, embora deformando a velha tradição e helenizando os nomes, pois escreviam tudo de ouvido.

Um esgar de desprezo ensombreceu o rosto de Totmés ao pensar nesses fatos. No entanto abrigava também outro temor, quiçá mais grave. Se o príncipe Cesário havia sido educado naquele ambiente, era fácil supor quais seriam suas idéias, que aspecto físico apresentaria. E imaginou-o vesti­do à grega, como costumava fazer sua mãe. Ou, no pior dos casos, convertido em menino romano, para não renegar seu ilustre progenitor...

O filho de Júlio César, opressor do Egito, no túmulo de uma de suas rainhas mais importantes!

Mas, ao penetrar na estreita passagem que conduzia à camará funerária, percebeu que não estava no túmulo de uma rainha, e sim no de um príncipe. Era um menino de pouca idade que aparecia reproduzido de maneira obsessiva nas pa­redes, acompanhado pelas principais divindades que se ocu­pam de proteger a vida e a morte. Entretanto, como era nor­mal no caso dos príncipes mortos em idade prematura, seu próprio pai, o rei, guiava-o pelos obscuros caminhos do além.

Tudo estava destinado a converter a mansão eterna do principezinho em um instante de ternura preservado para a eternidade.

Sorriam os deuses, sorria o imponente faraó, sorriam inclusive os gênios maléficos. E o menino era a criatura mais formosa que Totmés havia visto em sua vida. Apresentava um aspecto andrógino, só desmentido pela largura das espá­duas, e ia ataviado à moda dos cortesãos ociosos: o saiote plissado, um primoroso colar de lápis-lazúli no peito nu e sandálias de pele de pantera. Tinha a cabeça raspada, em­bora do lado esquerdo do crânio pendesse a trança, que é símbolo da infância.

Quanto ao mais, o túmulo estava vazio. Já fazia muitas gerações que os saqueadores os haviam profanado, como a tantos outros. E a eternidade do principezinho, inclusive sua múmia, ficou convertida em artigo de contrabando.

De repente Totmés foi testemunha de um milagre.

O principezinho ressuscitava! O principezinho surgia de sua representação pictórica e voltava à vida!

Estava saindo da parede. Ou foi só um delírio que o jo­vem sacerdote alimentava desde o mais profundo de seu amor pelo passado?

Não, não se tratava de uma visão. O ilustre defunto sor­ria e punha-se a andar. Já abria os braços e entregava-se aos de Cleópatra. E ela o estreitava com todas as suas forças, até arriscando machucá-lo com a armadura. Depois do abraço foram os beijos, os sorrisos e, inclusive, uma lágrima da mãe.

Totmés compreendeu, então, que era o príncipe Cesá­rio, filho de Júlio César, que surgia de outro menino pinta­do mais de mil anos atrás. A mesma indumentária, a mesma trança, as mesmas sandálias e um sorriso idêntico ao dirigir-se a ele, dos braços de sua mãe!

Inclinaram-se os soldados encarregados da guarda. A rainha dirigiu-lhes um gesto de deferência, mas seu sorriso foi dedicado a Totmés.

— Ministro de ísis, só para que chegasse esse momen­to nos permitimos te despojar de teu passado. Só por este instante roubamos-te teus pais, tua cidade, teus possíveis amo­res. Só por este menino.

Então falou Cesário:

— Mãe, não fales tão alto. Os sacerdotes de Ptah, que cuidaram de mim até hoje, poderiam se zangar. Tu me en­tregas a um culto rival.

Para surpresa de Totmés, o menino exprimia-se em egíp­cio. Dialeto de Mênfis, não de Tebas; mas egípcio genuíno, egípcio amado.

— Irá mal a unificação do Egito, se já começam a bri­gar entre si — comentou Epistemo, rindo do fundo do túmulo.

Ao descobri-lo, Cesário correu para ele e lançou-se em seus braços, golpeando-lhe o rosto entre risos e comentários. Pelo que Totmés deduziu que o conhecia e o amava.

— Saiamos — ordenou Cleópatra, enviando sua vénia com um gesto dirigido a todos os presentes. — Quis o en­contro neste túmulo pelo que ele simboliza. Mas nós esta­mos vivos. Ou é forçoso que assim seja.

Saiamos, porque é de fato um túmulo muito triste — disse Cesário a Epistemo. — E este príncipe também era. Po­bre menino! — E, repassando com o dedo os antigos hieró­glifos, leu-os em voz alta: — "Eu, o príncipe Apkatotef, não chegarei a homem. Não chegarei a conhecer a irmã de meu coração. Não chegarei a ocupar o trono dourado para satis­fação do rei, meu pai. Eu príncipe Apkatotef não fui. Só se­rei a partir de agora, na longa noite de contar os anos..."

Brotou dos lábios de todos os presentes um murmúrio de admiração que pôs no rosto de Cesário um sorriso de pe­quena vaidade. Mas aborreceu-o que o jovem sacerdote de Isis não fizesse o menor comentário e, muito mais ainda, que sua expressão fosse severa, contrária inclusive aos elogios dos demais.

Não era assim. No mais recôndito da alma de Totmés acabava de nascer um sentimento que chorava como um re­cém-nascido. Uma angústia inexplicável, uma necessidade inesperada. Era uma ligação que lutava para abrir caminho e atravessar todas as barreiras que o separavam daquele me­nino recém-saído de uma pintura e que, ademais, lia as pa­lavras sagradas dos antepassados... As palavras que os egíp­cios já haviam esquecido!

Caiu de joelhos diante de Cesário. Não se atrevia a fitá-lo. Mas pegou suas mãos e agarrou-se a elas, como se fos­sem portadoras de todos os benefícios que necessitava.

Beijou-lhe os pés, ao mesmo tempo que dizia:

Príncipe meu!

E assim permaneceu durante um longo instante, que per­mitiu ao menino decidir se gostava de seu novo carcereiro. Por fim exclamou:

Mãe, vejo que têm razão os sacerdotes de Ptah quan­do afirmam que os de Isis estão um pouco loucos por causa da clausura a que vivem submetidos.

Epistemo ajudou Totmés a levantar-se, pois este conti­nuava presa de um êxtase que nem por ser pressentido revela-se menos espetacular.

Mas é um louco de que gostarei disse o pequeno César. E acrescentou: Com certeza conhecerá uma brin­cadeira que os sensatos desconhecem.

Cleópatra acariciou a fronte do filho. De sua estampa guerreira brotava uma singular ternura. Era como os con­trastes do imenso solar egípcio.

— Vai com ele, filho meu. E lembra que, muito antes de sua chegada, uma louca já havia cruzado teu caminho. Esta que vês aqui. Tua mãe e soberana.

Já do lado de fora, Totmés e Cesário foram ocupar seu lugar nos carros dos sacerdotes de Mênfis. Viajaram com eles até el Faiyum. Epistemo acompanharia a senhora em seu re­gresso a Alexandria pelo Nilo.

As estrelas amontoavam-se na densa noite da necró-pole. Os chacais continuavam uivando. O vento silvava en­tre as penedias. E uma das sentinelas teve medo, porque assim são os gemidos que emitem as rainhas enterradas no vale.

Mas nenhuma estrela brilhava com a intensidade do rosto de Totmés quando se inclinou diante da rainha do Egito:

— Senhora, agradeço-vos por terdes roubado meu pas­sado, porque acabais de pôr em minhas mãos o futuro.

Antes de tomar as rédeas, a rainha voltou-se para o man­cebo e acariciou-o docemente, servindo-se do bastão real.

— Se o entrego a ti é para que lhe transmitas toda a be­leza que, por minha indicação, te foi ensinada. Entrega-lhe a ternura do amanhecer e a solidão do crepúsculo. Põe em suas mãos a fragrância da primavera e a suave resignação do inverno. Dá-lhe as estrelas e seu significado. Concede-lhe o Nilo com todos os seus dons e o mar com todas as suas aventuras. Não lhe poupes países, por mais distantes que se­jam; transmite-lhe as montanhas e os bosques, os desertos e seus oásis, as raças que vivem no gelo e as que enchem as grandes cidades. Entrega-lhe o mundo, Totmés, pois, atra­vés do mundo, tu lhe entregarás o Egito; e ao fazê-lo, pode­rás dizer que sua rainha chegou a depender de ti muito mais que do maior amor de sua vida.

Dirigiu os cavalos para a saída do vale. Desapareceu em uma nuvem de poeira que rompia as trevas da noite. Na rea­lidade, era um sopro. Um sopro formado pelo alento de to­das as rainhas do Egito que alguma vez buscaram sua eter­nidade nos túmulos da Sede da Beleza.

De regresso a Alexandria, a rainha ordenou que reu­nissem a corte a fim de conhecer suas decisões. Muito tive­ram de esforçar-se os camaristas para localizar todos os mi­nistros, todas as damas, todos os oficiais. A placidez da tar­de propiciava as saídas, quando não algum excesso. E, pa­ra lá da dor de sua rainha, para lá da ausência de seu ba­cante oficial — o romano Antônio —, Alexandria continua­va estendendo seus tentáculos, irresistíveis para os amantes do prazer.

Por fim foram localizados os servidores de Cleópatra e quantos tinham acesso a seu governo ou a sua intimidade. Ao receber a notícia de que a rainha aliviava seu luto, a cor­te tirou as melhores roupas de gala e, no grande salão do tro­no, exibiu o esplendor do Oriente como um desfile que cele­brasse o retorno da alegria... Luxuosas túnicas, mantos de ouro, leques de suntuosas plumas, bastões de prata, colares de esmeraldas, perucas adornadas com todo tipo de jóias — nada faltou a uma recepção que se proclamava simples e ín­tima... apesar dela!

Viram aparecer a rainha no alto da grande escadaria. Para os que conheceram seus dias de luto, sua presença teve o efeito de um milagre. Inteiramente vestida de ouro, com os braços cruzados sobre o peito e nas mãos os cetros do po­der, não parecia a encarnação do majestoso, mas a repre­sentação da divindade. Aparecia sob os traços de ísis e anun­ciou que doravante aquele seria seu traje para as audiências e festas solenes.

Seguiam-na seus conselheiros — Sosígenes e Epistemo, em primeiro lugar — e, a curta distância, seu capitão, o gar­boso Apolodoro. Mais adiante, suas damas, vestidas de li­nho branco como as virgens ou as sacerdotisas. E, culminando o séquito, as duas amas reais, que levavam nos braços os fi­lhos de Antônio, os gêmeos Alexandre Hélios e Cleópatra Selene, príncipes do Egito.

Todos os olhos estavam fitos em Cleópatra Sétima. Avançava para o trono dourado com passo severo, mas rít­mico. Era como se obedecesse aos sons de vários harpistas que o cego Ramose dirigia.

Nunca pareceu tão serena a voz de Cleópatra Sétima. Nunca ficaram tão claros sua ascendência e seus direitos.

O rei do Egito a sua corte. O rei do Egito a seus ami­gos. Reatamos a vida depois de termos viajado até o fundo da morte. Suspendemos um luto que nunca deveria ter sido cele­brado. Voltem as cores a Alexandria! Anuncie-se sua ressur­reição de um confim a outro da terra. Desde as remotas costas da Hispânia, onde habitam os monstros marinhos, até as montanhas da China, onde nascem os rios cor de jade. O rei já não teme a morte. Nem a morte, nem os monstros que assustam os romanos, nem os rios de cores extravagantes. A razão do rei é uma só. Começa hoje, sob a placidez do mês de Atir, a época mais gloriosa da história de Alexandria.

Chamou, então, Apolodoro. O capitão ajoelhou-se dian­te dela. E mais de uma dama suspirava, tal era sua postura.

Creio recordar que, em meu delírio, dei ao fiel Apo­lodoro uma ordem excessivamente drástica.

Tu me ordenaste que meus homens destruíssem to­das as estátuas que representavam Marco Antônio. E que seu nome fosse apagado de todas as inscrições.

Essa ordem fica revogada.

Minha rainha! exclamou Apolodoro, tão contur­bado que até se enganava de tratamento.

Eu não seria digno desse título se permitisse que fosse convertida em decreto público a fúria de uma mulher aban­donada. Se o povo não me há de ver chorar, para não ter seu monarca por um ser fraco, há de conhecer ainda menos seu afã de destruição, pois poderiam tomá-lo por bárbaro. Os romanos subvertem a História, manipulam-na de acordo com seus interesses. Sabemos demasiado pouco da história do Egito para que seu rei apague a mais imediata! Se o no­me de Marco Antônio tiver de desaparecer, será por seus pró­prios pecados. Não há de contribuir para tanto o despeito do rei. Não será este o legado que deixará aos príncipes do Egito.

Receberão os filhos de Antônio o mesmo tratamen­to que o de César? perguntou Sosígenes, inclinando-se diante do trono.

Acaso não são filhos de Cleópatra?

Não necessitou acrescentar uma palavra mais. Com sua decisão legitimava duas crianças que, para muitos, eram o símbolo da vergonha.

Fêmea divina! exclamou Epistemo em voz baixa. Mas não tanto para que Cleópatra, do mais elevado de sua majestade, não percebesse o movimento de seus lábios.

Esta noite celebraremos um banquete em tua hon­ra, Epistemo. Não será com os excessos de outros tempos, pois eles já passaram. Mas constituirá, sim, uma nobre des­pedida para quem vai nos deixar muito antes do que nós mes­mos desejaríamos.

Vendo Epistemo adiantar-se alguns passos, com um gesto de surpresa, Cleópatra cortou a possibilidade de qualquer pa­lavra, fosse de acatamento, fosse de rejeição.

Partirás amanhã mesmo para a Judeia. A viagem é longa, e faz muitas semanas que as intrigas de Herodes não contam com um adepto do trono egípcio para neutralizá-las. Partirás, pois, em boa hora.

A sessão foi longa. Desfilaram os governadores das pro­víncias, os embaixadores estrangeiros, os mercadores ansio­sos em obter permissões, os funcionários agradecendo algu­ma prebenda. Quando todos passaram e a fadiga ainda re­sistia a aparecer no rosto da rainha, chegou o momento de falar com Roma. A primeira no mundo e a última ante o tro­no do Egito!

O general Márcio inclinou-se, como haviam feito todos os demais. E expôs os problemas inerentes ao tratado entre Roma e Egito.

Compreendo que Roma queira mais disse Cleópa­tra —, mas também deverias compreender que o Egito aspire a dar menos. O atual tratado foi firmado em condições que eu me atreveria a qualificar de privilegiadas. Márcio assentiu, compreendendo. As circunstâncias pessoais do rei do Egito puderam favorecer que o triunviro Marco Antônio acedesse a fazer algumas concessões que o senado daquele nobre po­vo pode considerar excessivas. Chegou-se a dizer que o Egi­to obteve suas vantagens graças ao leito de Cleópatra.

Surgiu um murmúrio de indignação entre os assisten­tes. Até o rude Márcio se envergonhou.

De modo algum quis dizer isso, meu senhor.

Os tempos mudaram, Márcio. Com ou sem leito, Ro­ma não pode pretender mais vantagens do Egito. O tratado converteu-se em um saqueio constante. Levam mais da meta­de da colheita de nossos camponeses. Os barcos romanos sul­cam os mares carregados de trigo egípcio. É lógico que quei­ramos reter um pouco mais do que deixam como esmola...

— Permite-me recordar, grão-senhor, que teu pai...

Meu pai solicitou a intervenção de Roma, e Roma está muito acostumada a intervir nos países estrangeiros. Acostumada demais, diria eu. Em todo caso, essa ajuda es­tá nos custando muito caro. Não só pelo que pagamos, mas também porque Roma se permite imiscuir-se em nosso go­verno. Tudo isso me indica que devemos agir sem deferên­cias. Os romanos não receberão mais trigo do Egito enquanto o tratado não for revisto. E com urgência.

Partirei esta semana mesmo para comunicá-lo ao grande Otávio respondeu Márcio de má vontade e perfi-lando-se com soberba.

Dispunha-se a sair quando a voz irada da rainha o reteve:

Espera! Ninguém pode se retirar sem nossa permis­são. E não a concedemos... Por tuas palavras entendo que, a partir de agora, nossos tratos serão com Otávio.

Com quem mais?...

Tua pergunta é justa. De fato, com quem mais, a não ser ele, um rei do Egito poderia tratar de tudo?

Abandonou o salão, rodeada pelos leques de plumas que suas damas sustentavam. Continuavam acompanhando seu régio passo as harpas do cego Ramose.

 

Enquanto íris e Carmiana despiam a rainha detrás de um biombo, Sosígenes recolhia os documentos que devia es­tudar para aprovação no dia seguinte. Mas pressentia outras palavras. E meneava a cabeça em sinal de descontentamen­to. Ao ouvi-lo resmungar, Cleópatra pôs-se a rir.

Cleópatra deveria saber que essa euforia é fictícia disse o sábio. Está escrito que nenhuma doença se cura antes de cumprir seu tempo na terra.

O meu será curto, como de todos os mortais re­plicou ela. Não estou autorizada a malbaratá-lo. Cesário me proíbe isso. "Por que malbarataste aquele instante do pas­sado, mãe estúpida?", parece gritar-me de seu futuro, que vislumbro esplendoroso. Sei que me arrependerei então pelo tempo que deixei escapar. Tentarei recuperá-lo e será em vão. Porque até teus companheiros, os filósofos, asseguram que nem sequer o próprio Tempo dispõe de mais instantes do que os que lhe foram concedidos.

Mas não podes acelerar o tempo do amor, Cleópa­tra! Chora, ri, desespera-te, embriaga-te, pula... o que fize­res será em vão. O tempo do amor deve cumprir-se inexora­velmente.

Saiu de trás do biombo. Toda a sua autoridade estava aliviada por uma túnica transparente, de dobras airosas. Tra­zia os braços nus e a cabeleira solta.

Cumprirei os prazos do amor e esperarei o império do esquecimento. Poderia permanecer encerrada em meu pranto durante os anos que durasse a doença. Poderia mor­rer em vida. Mas isso não seria luto, e sim resignação, o úni­co sentimento que Cleópatra jamais se permitirá! Não ten­tarei adiantar os decretos do tempo, pois sei que ele tem sua lógica. Mas guardarei a dor para as minhas noites. Os dias estarão cheios das atividades que o mundo supõe próprias de minha grandeza. Alexandria as propõe a mancheias! Go­vernarei o Egito como ninguém o fez desde os dias remotos do grande Ramsés. Consagrarei meus ócios ao estudo e à lei­tura, como não se fez desde os gloriosos dias de Platão. To­marei as grandes verdades da vida para investigá-las até suas origens. E será tanta minha atividade que ninguém poderá suspeitar que sofro. Nem mesmo tu, bom conselheiro. Nem mesmo minhas damas. Seu rosto converteu-se na másca­ra da grande esfinge, espelho onde vão refletir-se todos os segredos, todos os enigmas. Seu sorriso foi o daquelas ou­tras esfinges, menores, que os gregos tinham em seus tem­pios; sorriso semidesenhado, sorriso imprevisível, sorriso a meio caminho entre a dor e a ironia. — E, um dia, chegará o esquecimento. Quando eu conseguir aceder a ele, poder-se-á dizer que Cleópatra conseguiu dominar o Tempo, convertendo-o em seu servo.

Com passo lento, saiu ao terraço. A seus pés, Alexan­dria já não se apresentava como a encruzilhada de paixões que conseguiu exacerbar a violenta paixão do amante perdi­do. A Alexandria dos grandes amores, com sua sexualidade tumultuosa, seus aromas exóticos, seus lances misteriosos em esquinas turbulentas, ficava para os viajantes romanos, an­siosos de pitoresco. Para ela, a cidade recobrava as ambi­ções que Alexandre abrigou ao fundá-la. Berço da civiliza­ção! Crisol do pensamento. Agora das letras. Luz da ciên­cia. A Alexandria capaz de dirigir os destinos do mundo.

E então Cleópatra recobrou a têmpera das mulheres de sua raça, as mulheres famosas de uma dinastia baseada na loucura. As Arsínoes, as Berenices, as Cleópatras... Rainhas aziagas, rainhas fatais, sim, mas também rainhas decisivas. Mulheres que souberam ir além da vida. Humilhadas talvez. Vexadas, amiúde. Porém nunca vencidas.

Ergueu o punho para a cidade e a fez sua. Dirigiu o olhar para o mar. O vento agitou sua cabeleira a modo de estan­darte e levou suas palavras na direção de Roma:

— Quando chegar o esquecimento, Marco Antônio! Quando chegar o esquecimento!

 

               LIVRO SEGUNDO

               OTÁVIA

 

Se a sabedoria, o pudor e a beleza puderem serenar o coração de Antônio, Otávia será, pa­ra ele, feliz presente.

                                           Shakespeare, Antônio e Cleópatra

 

 

Otávia não esqueceria facilmente a noite em que deu à luz a filha de Antônio. Não porque o parto tivesse sido es­pecialmente difícil, pois a menina saiu à vida dando mostras da mesma admirável serenidade com que Otávia conquista­ra a admiração de seus concidadãos. Tampouco por causa da tormenta que se abatia sobre Atenas, pondo nos mármo­res de suas ágoras cintilações de uma luz ainda mais intensa que a do dia. Nem as dores de sua condição nem a fúria dos elementos desatados contribuíam para converter aquela noite no pesadelo que recordou depois... e para sempre.

O pesadelo de uma solidão absoluta, reconhecida por fim como a mais brutal das evidências quando seu grito não encontrou resposta. Quando seu grito ficou como uma in­vocação ao vazio do amor.

Onde está Antônio? gritou. Onde está o pai de minha filha?

Só essa dor recém-descoberta. Que importância tinham as demais? Tal como seu egrégio irmão, fora educada no es­toicismo mais estrito. Nem sequer a morte do primeiro es­poso, homem exemplar que a enaltecia mediante as próprias virtudes, nem sequer aquela ausência insubstituível conseguiu que sua inteireza cambaleasse aos olhos do mundo. Resistiu aos caprichos da fortuna com a autoridade que lhe conferia o saber, que representava a mais alta das virtudes da tradi­ção romana. Nenhuma adversidade pôs barreiras a esse dever.

O parto do primeiro filho ensinara-a a suportar a dor como uma obrigação a mais entre as muitas a que seus avoengos a obrigavam. Resistiu-lhe sem demonstrar que resistia, sendo nis­so admirada pelas mulheres que a assistiram e por certa parteira, linguaruda em excesso, que se ocupou em apregoar sua intei­reza pelas principais mansões de Roma. Onde já era sabida.

Assim, na noite em que deu à luz a filha de Antônio, a fama de Otávia estava firmemente estabelecida. Mas não sua solidão. E, quando os espasmos obrigaram-na a contrair-se toda, quando um trovão mais horríssono que os outros fez estremecerem as mulheres que a assistiam, ainda teve um sorriso gentil e sussurrou ao ouvido do escravo Adônis o lu­gar em que poderia encontrar Marco Antônio.

— Procura-o em casa da hetera Aspásia. Dize-lhe que abandone aquele leito. Pois no seu vai nascer um filho.

As assistentes, vestidas de negro como todas as velhas da Ática, trocaram palavras apressadas com a parteira. Esperavam-se dores mais intensas. Otávia apertou os dentes com todas as forças para não desmentir a si mesma.

Ergueu um braço para a tormenta. Com a palma da mão aberta, buscou amparo dos gênios que velam pelos nascimen­tos felizes. Então tornou a gritar:

Antônio! Esposo meu!

Só responderam as vozes iradas da tormenta. Nenhu­ma ajuda familiar contra elas. Só as velhas enlutadas que aju­davam o bem-fazer da parteira. Só criadas gregas, rostos me­lancólicos, desconhecidos. E o abismo da solidão abrindo-se diante dela, em um palácio escuro, longe de sua família, longe da pátria. Àquele ponto, esqueceu toda a cautela e pro­feriu uma maldição, enquanto alguém anunciava que aca­bava de nascer uma menina.

Quando as palmadas da parteira fizeram a pequena An­tônia chorar, a mãe permitiu-se um instante de desmaio. Pois até no abandonar-se a uma mínima concessão à dor, Otávia era dona e senhora de seus recursos.

Ao despertar do desmaio, já estava de volta o escravo Adônis. A parteira tentava evitar que ele sé aproximasse da cama, porém Otávia fez um sinal de assentimento, e o efebo aproximou-se, embora mantendo certo sigilo, pois dizem que um movimento demasiado brusco ou uma voz excessivamente altissonante pode provocar graves cataclismas interiores em uma mãe recente.

Era evidente: os gregos não conheciam Otávia. Embo­ra aquele doce jovem a intuísse. Pois continha muita devo­ção seu modo de falar-lhe e muita querença a distinção com que ornava seus gestos ao obedecê-la.

Meu senhor não se encontra na casa que houveste por bem me indicar. Seu rosto cobriu-se de rubor quando acrecentou: A opípara Aspásia me deu vinho de mel, co­mo a seus melhores clientes, e disse que, a estas horas da ma­drugada, meu senhor Antônio costuma estar em outras casas.

Sabes quais são? perguntou Otávia, esforçando-se por soerguer-se na cama.

Nunca as freqüentei, porque sou fiel a meu amigo Fedro, o jardineiro que embeleza teus jardins e minha alma. Tu, que sempre nos protegeste, e por isso te reverenciamos, deverias saber. De modo que me é tão difícil ultrajar meu companheiro, entrando em uma casa de lenocínio, quanto magoar-te dizendo como são as que meu senhor Antônio fre­qüenta a estas horas.

Não me desconcertes com retórica grega, fiel Adô­nis. Que o mal já está feito. Pois entendo que meu esposo se encontra em lugares ainda mais baixos que os salões de Aspásia.

O efebo exprimiu ofensa. Como se a voz de Roma fe­risse o orgulho de todos os atenienses.

—            Muito mais, minha senhora. Pois Aspásia é uma no­bre dama que segue a grande tradição das heteras que foram gloriosas no passado. E assim se chama em honra àquela ou­tra Aspásia de Mileto, que, nos tempos gloriosos desta cida­de, servia de conselheira ao imortal Alcibíades e lia-lhe poe­mas enquanto proporcionava prazer ao seu corpanzil. Tudo isso segundo se conta.

Otávia sorriu de bom grado. A elegância, o donaire de seu escravo preferido consolavam-na.

Tens o dom de converter uma resposta em um curso de oratória. Não achas isso pouco apropriado para uma par­turiente? Anda, dize de uma vez por todas onde se diverte meu senhor. E vai buscá-lo.

É longo o caminho. Pois está em um bordel do Pireu. E ali todos são sujos e miseráveis.

Viu que suas palavras haviam quebrantado as defesas de Otávia. E quis retificar. Mas sem êxito, já que ela disse em um lamento:

Quanto mais alta é a honra que se dispensa a sua ca­sa, mais baixo o prazer que Antônio busca. Porém a verda­de da qual sempre suspeitei não há de doer mais por ver-se comprovada. Assim seja.

Não vais me mandar a esses antros, não é? Meu ami­go me baterá com um porrete, se descobrir que estive com tais mulheres.

Então deixarei de te proteger, porque não hei de que­rer um verdugo como jardineiro. Mas estou cansada, Adô­nis. Rogo-te que me deixes. Cavalga até o Pireu e informa a meu senhor que tem uma filha. Dize-lhe que se chama An­tônia, como ele dispôs para quando chegasse a ocasião. — Calou-se por um instante. Precisou esforçar-se para repri­mir uma lágrima. — Dize-lhe também que minha filha e eu não queremos nos interpor em seu alvedrio. Que venha quan­do lhe aprouver.

O escravo soube discernir em seu cansaço a máscara que ocultava algum pesar mais profundo. Ao ver como se soer­guia para receber a filha, admirou-a.

— Saio já! — exclamou. — Mas antes quero dizer que és a mãe mais formosa que meus olhos viram, divina Otávia.

"Humana, simplesmente humana. Já é carga bastante", pensou ela.

Quando ficou a sós com as criadas gregas, Otávia sen­tiu que a tempestade que assolava o mundo havia se intro­duzido no mais profundo de sua alma. Em seus braços, a pequena Antônia efetuava mil ações incontroladas, em que acreditou ver gestos de rejeição. Devolveu-a a uma das mu­lheres, enquanto outra arrumava-lhe a cama. Otávia, con­tudo, pediu que a deixassem sentada, e assim permaneceu um bom momento, o olhar fito na tempestade que projeta­va as sombras monstruosas sobre os telhados de Atenas.

Mas as tormentas, aquela ou qualquer outra, tinham de haver-se com toda a integridade que, ao longo do tempo, con­vertera a matrona romana em uma instituição. A melhor para manter as formas até no descalabro da morte. Para mostrar serenidade ante qualquer tormento.

Serena mostrou-se na escola, nos jogos com as meninas de sua idade, nos trabalhos domésticos e nos primeiros pas­sos daquela experiência única, adorada ainda na distância, que os poetas deram para chamar de primeiro amor. Com uma serenidade tingida de radiante dita, aceitou a proposta de Caio Cláudio Marcelo, o agradável cônsul que soube conduzi-la pelos caminhos de uma felicidade cômoda, sem sobressaltos, tênue e sutil como a virgindade que ela deposi­tava em suas mãos, à guisa de dote ainda mais apreciado que o material. E toda a sua serenidade envolveu o nascimento do pequeno Marco Cláudio, ajudou-a a dirigir-lhe os primei­ros passos pelas sendas da dignidade e da inteireza, que to­cam ao herdeiro de duas nobres famílias.

Serena soube estar em tudo e para todos. Levou sua se­renidade até os limites das próprias forças, quando compa­receu ante a pira funerária do esposo e assistiu sem uma só lágrima à rápida ascensão das chamas que devoraram o cor­po amado, a mente respeitada, o rosto que nunca a fitou sem um sorriso, os membros que jamais se dirigiram a ela sem um gesto de deferência.

Entretanto, naquela noite em que deu à luz a filha de Antônio, toda a serenidade de Otávia converteu-se em resig­nação. Conseguiu dominar as dores do parto, porém não a apatia que a encarcerava. E seus olhos, completamente inex­pressivos, percorriam o aposento assimilando todos os ob­jetos sem pousar em nenhum. Achava-se só, em meio a um museu de fantasmas convertido em cárcere de ouro e beleza. Esculturas gregas, de diferentes épocas, que Antônio fora ex­propriando dos palácios de Atenas, dos templos de Delfos e Olímpia, dos cemitérios das ilhas. Aquele colecionador exa­gerado transformava uma alcova em mostruário da cultura que o fascinava, a dos grandes mitos de quem dizia descen­der! Acostumada à austeridade doméstica que presidiu seu primeiro matrimônio, Otávia sentia que todas aquelas escul­turas a olhavam com ironia, zombando de seu parto. O Olímpio, trasladado aos mais requintados materiais, lançava-lhe uma gargalhada unânime, como vingando-se de quantas in­júrias lhe infringira o domínio de Roma. Vénus, Baco, Ju­no, Júpiter, acompanhados por buliçosos cortejos de fau­nos, ninfas, sátiros e cupidos, cuspiam-lhe o nome do bor­del onde o esposo se regozijava. E de seu poderio olímpico chegavam a desprezar a recém-nascida, pois não tiveram a força de arrancar seu pai dos braços das meretrizes, dos de­lírios das fontes de vinho.

Ela, contudo, resistiu à afronta de seus deuses e, lenta­mente, foi adotando uma postura mais cômoda, como se a obrigação de reincorporar-se à vida fosse mais importante que sua dependência de Antônio, que sua dependência de qualquer homem. Afinal, a noite fora sua. Durante nove me­ses, cada palpitação, cada vibração íntima daquela criatura pertenceram-lhe por inteiro. Só ela a ouvia mover-se em seu interior. Só ela sentia o inferno em suas entranhas, quando aquela coisa ainda incriada decidia erguer-se em guerreira pre­coce. E só ela abriu suas carnes para dar passagem à vida, expulsando-a de si para que fosse propriedade do mundo.

Mas não de Antônio, decidiu. Não de Antônio e suas meretrizes! Não desse pai que se conformou com depositar um dia a semente e abandoná-la depois à própria sorte, sem acudir sequer à gentil colheita.

Já se encontrava sentada quando os escravos anuncia­ram uma visita que não era Marco Antônio. Sorriu com des­prezo ao pensar que qualquer visitante, estranho que fosse, podia chegar antes de seu esposo: o homem que, ao desposá-la, convertera-a na mulher mais invejada de Roma, quando já era a mais respeitada. E era por demais irônico que, no transe de dar à luz uma filha de ambos "Porém, só eu a sofri", repetia em seu íntimo —, naquele momento sole­ne, lhe houvesse inspirado grandes forças o respeito que o povo lhe outorgava e nenhuma aquele amor que os demais imaginariam poderoso.

Uma singular combinação de relâmpagos iluminou a en­trada da visita. Dir-se-ia que os raios caíam tão perto ape­nas para realçar aquele privilégio. Pois, ao levantar o manto que a protegia dos elementos, apareceu, devidamente real­çado, o rosto ainda formoso da viúva Calpúrnia Pisão.

A viúva de Júlio César.

 

Poderia ter sido rei do Oriente! berrava o general bêbado no interior do bordel.

Sob a tormenta, a casa parecia ainda mais decrépita que em outras noites. Um edifício de um só andar, com uma por­tinhola de madeira podre. Paredes gastas ao longo dos anos por causa do salitre do mar e das urinas de mil cães vaga­bundos. Cheiro de peixe podre. Acúmulo de desperdícios na esquina. E toda a miséria do porto em seu interior.

Quando Adônis entrou no vestíbulo a toda pressa, sa­cudindo a chuva que o deixara ensopado, ouviu a voz incon­fundível de seu senhor, que continuava gritando em uma das salas internas:

Estive a ponto de ser rei do Oriente! Acreditai, por­cas! Tive o Oriente em minhas mãos!

Sua voz interrompia-se com os arrotos provocados pe­lo vinho. Sua angústia traspassava as paredes. E Adônis, que tremera de medo ao cavalgar até o Pireu entre os raios, tre­meu agora de indignação. Pensava na solidão de sua senho­ra e nas bondades que Otávia sempre tivera para com ele e seu amigo. De modo que a ostentação de Marco Antônio pareceu-lhe uma solene bofetada, já não contra a honra, mas contra a ternura.

No vestíbulo repousavam três soldados de idade avan­çada: três veteranos que acompanharam Antônio em todas as suas campanhas e, antes dele, o próprio Júlio César. Na­quela noite, limitavam-se a esperá-lo em bancos de pedra, com as costas contra a parede e as mãos descansando nos seios de algumas prostitutas rechonchudas, veteranas tam­bém de outras batalhas, em cujas vitórias não se obtêm mais louros que os do fastio. Assim, as profissionais do amor e os profissionais da guerra compunham uma imagem de fa­diga e fracasso que, a Adônis, na flor de sua apostura, pare­ceu patética.

Mal tentou passar além do vestíbulo, um dos soldados endireitou-se cansadamente e agarrou-o pelo pescoço, sem demasiadas contemplações.

— Fora daqui, rapazinho! — exclamou o soldado. — Hoje não se aceitam clientes. Vai embora! Esta casa foi de­clarada fora de limites.

O escândalo desenhou-se no rosto querúbico do escravo:

— Cliente, eu, o lindo Adônis, servo preferido de mi­nha elegante senhora e meu poderoso dono? Fica sabendo, vil servidor de Marte, que me ultrajas por duas razões. Pri­meiro, porque, ao supor-me cliente, me supões dinheiro e, como não o tenho, começarei a me envergonhar de mim mes­mo. Segundo, porque, ao supor-me dinheiro, deduzes que o gastaria aqui, com o que me tomas por um imbecil, que outra coisa não seria eu se, deixando as moedas no desones­to regaço destas fêmeas, tivesse de renunciar a comprar cor­das novas para minha cítara ou o ancinho de que precisa, com urgência, meu nobre amigo, o jardineiro, para efetuar sua plantação de bulbos, que já está na hora...

Uma das prostitutas levantou-se, alarmada:

Mas o que está dizendo esta criatura? Teve de repente um acesso do mal sagrado?

Que bulbos, que nada! — gritou o soldado. — Os daqui estão tomados pela milícia romana...

E muito dói meu bulbo, que nunca esteve tão ente­diado desde o último luto oficial, quando fecharam nossa casa! É assim que a ponderada milícia romana gasta seu sol­do? Um só cliente e toda a putada do Pireu fazendo-lhe os caprichos. Ou escutando sua lengalenga, o que, no caso, dá no mesmo.

Tornou a soar a voz de Antônio, lançando seu grito de guerra:

— Digo que poderia ter sido o rei do Oriente! Do Egi­to à Síria, de Petra a Catai, tudo poderia ter sido meu!

Ao levantar-se uma gasta cortina cinzenta que separava o vestíbulo da sala principal, apareceu uma moça mais jo­vem que as outras, sustentando os seios, pois estava nua da cintura para cima. Tinha os cabelos bastante revoltos e, no pescoço, o sinal inconfundível de lábios que o morderam com excessiva paixão.

Estou farta de teu general com tantas bravatas! — exclamou, deixando-se cair nos bancos de pedra, junto às ou­tras. — Toda noite a mesma cantilena. E ainda acaba vomi­tando em cima da gente!

Que bravatas! — protestou o soldado, de nome Sis-to. — É como a luz do dia o que ele diz. Se há anos suas mãos ofereceram a César uma coroa, em plenas corridas das Lupercais, ele foi mais longe, pois se lhe abriram cem reinos mesmo, cada um dos dias que estivemos em Alexandria. — E, dirigindo-se ao outro soldado, acrescentou: — Tu servias na mesma legião, Glauco. Não vás me deixar passar por fan­tasioso, nem nosso general por embusteiro.

O outro bocejou. A barba por fazer, os cabelos seben­tos e uma enorme pústula na testa, parecia haver alcançado o doce grau da indiferença ante todas as coisas. Sinal de que vira demasiadas.

— Deixa para lá — disse, titubeando. — Os assuntos da realeza não são para a cachola de uma rameira de quatro sestércios.

Adônis permanecia junto à porta, com a cortina semi-corrida e o braço ainda preso nas garras peludas do chama­do Sisto. Percebia, no interior, um folguedo tão intenso que chegava a abafar os próprios fragores da tempestade.

Encontrava-se em uma situação estranha, para não di­zer ridícula. Não lhe davam atenção, mas tampouco o dei­xavam entrar. A discussão que se armara parecia muito mais importante que sua intrusão. Era como se, ao tomar como centro o cliente de honra, decidissem o prestígio de Roma.

Interveio uma prostituta, Circena, que até então perma­necera estendida a um canto, junto de um soldado mais jo­vem, porém de modo algum mais asseado que os outros.

— É verdade o que este velho diz — falou Circena. — Eu trabalhava em Alexandria naqueles tempos, em uma ca­sa do cais antigo. E vi esse general desfilando em um carro de ouro, ao lado da própria Cleópatra. Eram como dois deu­ses, tanto reluziam ao sol e tanto lançavam resplendores. Com couraças de ouro iam os dois. Juro por meus defuntos. Que esse Antônio, que aqui está bêbado e cambaleante, esse An­tônio, que grita como um louco, foi arrimo da rainha mais divina. E divino era ele próprio, para os alexandrinos, em­bora hoje possa aborrecer uma deslambida como essa, que não aceitariam nem para limpar a cozinha daquela corte dourada.

A aludida cobria sua nudez com um xale grosseiro, que um dia tivera franjas, porém perdera mais da metade pelos caminhos do mundo.

— Muito ouro, muita rainha e muita lábia! — gritava. — Mas garanto que, se deixou os esplendores no Egito e em Atenas, só trouxe os excrementos. Se soltava para a egípcia a mesma arenga que para nós, ela devia dormir em plena có­pula, de tanto enfado.

— E o que sabes de rainhas, deslambidona?

— Por ser rainha eu sei. Rainha da entreperna, corno. E neste título não difiro da egípcia. Nem no uniforme de nos­sas batalhas. Que não é outro, senão este. — E, emitindo uma sonora risada, mostrou toda a sua nudez, para desa­grado de Adônis e de todas as escolas do bom gosto. — As­sim trabalha a putona. Mas ela obtém reinos por abrir as per­nas, e eu, quatro miseráveis sestércios. E já é muito a nojen­ta da Escância, que os deuses a amaldiçoem, não me cobrar o sujo fardo de palha que tem a ousadia de chamar de catre. Só nisso somos diferentes da egípicia: ela, cama de ouro; nós, de ouro, só o bico!

De repente Adonis viu-se afastado da porta pelo empur­rão de uma soberba mulherona que saía da sala central, consumindo-se na agitação própria da perfeita organizadora.

O que tens a dizer desta minha casa, malnascida?

Embora usasse trajes de festa e, em sua vulgaridade, pre­tendesse demonstrar certa importância, aquela mulher gran­dona pôs as mãos na cintura como uma verdureira e con­traiu as feições de tal modo que todas as suas pinturas es­correram até formar um emplastro.

Desde quando em Atenas chamam de casa as pocil­gas? — exclamou a prostituta beligerante.

Pocilgas, não. Hospitais é como as chamamos. Desde que aqui acolhem mulherzinhas que estão podres e têm o monte de Vénus feito um leprosario. E não procures briga comigo, peste, que te ponho na tormenta!

A dona e a empregada continuaram brigando. Adônis, já acostumado à cena e ao esquecimento a que o submete­ram, permaneceu em um canto, de braços cruzados, descui­dando um instante de seu recado. O ambiente estava fican­do tão animado! Em determinado momento, a dona come­çou a gritar uma série de nomes, e foram aparecendo outras mulheres e alguns rapazes, meio por vestir ou vestidos com roupas sebentas e malcheirosas. Ao comparar-se com eles, Adônis, sendo um escravo, sentiu-se príncipe.

A dona continuava batendo palmas:

— Vamos, vamos! Vamos preparar a farsa e compor as fantasias, que o general já está irritado. Cada qual se vis­ta como lhe aprouver.

Ou que se dispa no momento costumeiro. — Ia de um lado para o outro, a toda velocidade. E gritava: — Os pu­tos! Venham os putinhos! Farão de fauno.

— Para o fauno, o general! — exclamou um dos rapa­zes. — Ele cisma que todas as noites temos de lhe montar uma dramaturgia. Não percebeu que aqui se vem para outra coisa? Quando pensas que o agradas, quer dizer, que fazes o que deves, ele se põe a arengar de tal modo que converte o salão em foro. E quando já te acostumaste a engolir suas histórias sobre o Oriente... que, verdadeiras ou não, têm seu interesse... então deves te converter em histrião e fazer tea­tro para ele.

— Fica tranqüilo — disse Glauco. — Por melhor que te saia a arte, tua representação não há de superar as que Cleópatra organizava. Lembras-te, Sisto, quanto esplendor?

— Não se viram outros. Quando esse general, que es­tamos vendo bêbado hoje, fazia a rainha Cleópatra de tola, ela lhe organizava representações dramáticas que tinham o sexo por motivo. Buscava para ele as mais belas mulheres, os mais formosos homens, de meia-idade, adolescentes e até crianças. E ela mesma escrevia os textos, que sempre tendiam a mostrar os mil modos e maneiras de que Eros se serve para entreter os mortais. Antônio mergulhava inteiramente naque­les sonhos encenados. Viram-no cair nu entre várias náiades. E, presidindo tudo de uma cama em forma de cisne, a so­berba majestade de Cleópatra. Assim o mimava. Assim o pre­senteava.

Suspiravam com inveja mulheres e efebos, soldados e até a exuberante dona. E Adônis pensou: "Minha pobre se­nhora Otávia! Que batalha perdida de antemão!".

Mas que terá a rainha do Egito que meu assento não tem? — exclamou um dos efebos, enquanto punha sua fan­tasia de fauno.

Muita manha, é o que tem — comentou Cloé, a mais jovem de todas aquelas rameiras. — Sem manha não se entende.

Alguma deve ter, para enlouquecer um Júlio César e, depois, o general. Que será ridículo quando cai na bebe­deira, mas ninguém venha me dizer que não é bem-apessoado. É garboso. E bastante refinado quando está sereno, de mo­do que alguma coisa a rainha do Egito deve ter, como dizía­mos, para ter sido ela a eleita, e não outra.

Dizem que quando está em plena cópula desmaia.

Lá isso excita os homens? Muito astuta essa soberana. Ou muito doidos esses homens, que vão conquistando ter­ras e depois se rendem como pombinhos ante a primeira que lhes põe qualquer erva no vinho.

— Dizem também que ela tem o artifício que todas as orientais levam entre as pernas. Sei disso através de uma com­panheira que trabalhou em Esmirna e diz que as chinesas de olhos amendoados sabem contrair suas partes no momento justo em que o homem tem o êxtase. E que o macho, se sabe ser macho, acha nessa contração um prazer que nem se po­de dizer.

As peles puídas dos faunos, as falsas flores das gri­naldas para as ninfas, os cascos rugosos dos sátiros... tudo parecia tirado de um depósito onde permanecia desde a mais remota antiguidade, pasto de traças, piolhos, percevejos e até baratas.

Do outro lado da cortina, voltava a soar a voz de Antônio:

Que venham meus faunos! Que venha de uma vez a corte do rei do Oriente!

Uma náusea profunda dominava a consciência de Adônis. As paredes mal caiadas, o chão úmido, o vinho derramado e os últimos restos de comida esquecidos junto da cisterna produziram-lhe uma sensação de decrepitude que não pôde suportar. Face a ela, imaginou a estampa serena de sua se­nhora Otávia. E tomou a decisão de ir embora sem dar o re­cado. Sabia que ninguém ia recebê-lo em toda a sua grandeza.

Apartou-se discretamente de seus ruidosos acompanhan­tes e, com todo o sigilo, procurou a porta de saída. Antes de alcançá-la, porém, soou a voz autoritária da dona da casa:

Rapazinho, lindo rapazinho, estás procurando al­guém ou fazes parte da farsa?

Adônis deteve-se instantaneamente. Improvisou um sor­riso delicioso.

Eu estava procurando uma farmácia, minha senhora.

Uma farmácia, a estas horas? exclamou a espeta­cular Escância. Queres zombar de mim, fedelho?

Mas Adônis já tinha saltado no lombo do cavalo. E dirigiu-o a todo galope para o coração da tormenta.

 

A estirpe da viúva de César apresentava-se como um des­plante do poder de Roma contra o prestígio das divindades de mármore que espiavam o repouso de sua amiga.

Vestia com o rigor próprio de uma grande dama, mas com último, ligeiro atrevimento que se deseja em uma dama da alta sociedade. Tanto a túnica como a toga eram de um discreto azul-cobalto, mas rebitadas por um capricho de ou­rivesaria. Ao tirar o manto com que protegera sua cabeça da chuva, apareceu uma soberba massa de cabelo prateado, com alguma mecha tingida de loiro, como exigia a moda ro­mana nos últimos tempos. Por toda jóia, um camafeu com a imagem de Juno, a deusa que é mestra nos domínios das paixões.

A viuvez convertera Calpúrnia Pisão em incansável via­jante; seu prestígio, em convidada cobiçadíssima. Realizava o périplo ideal de todo o romano ilustrado ou, pelo menos, distinto. Alguns pontos do Oriente Próximo onde o domí­nio das legiões romanas garantisse alguma segurança. Po­rém, antes de mais nada, a peregrinação sentimental entre as antiguidades da Grécia. Embora alguns patrícios opinas­sem que a viagem era supérflua, pois todas as riquezas da Grécia acabariam nos palácios de Roma, outros preferiam deslocar-se aos lugares que as produziram e embeber-se na totalidade de seu espírito. Assim embebida, Calpúrnia Pi­são deixava transcorrer em Atenas todo um inverno. Ou tal­vez seja necessário para a presente narrativa que assim acon­tecesse.

Ao vir até aqui, espreitada por essa cruel hecatom­be de raios, eu me dizia: "As coisas que vimos, esta menina e eu! As coisas que vimos... ". — E suspirou com nostalgia quase patética. No entanto, passou a examinar, uma a uma, as novas esculturas da alcova. E ia repetindo: Bonito. Ele­gante. Muito próprio.

Vir em hora tão avançada!... Tua consideração é real­mente excessiva.

A prosápia de Calpúrnia levou-a a subtrair-se mérito, mas não carinho. Afinal, o sono não costuma ser o visitante mais assíduo das damas de certa idade, enquanto uma visita a tempo um "detalhe", disse representa a cortesia cu­ja assiduidade é mais agradecida.

Tomou assento junto do braseiro que confortava a con­valescência de Otávia. O fragor de um novo trovão devolveu-lhe a nostalgia de outro momento de sua vida. Outro céu es­curecido no fragor da ameaça.

—            Assim era a noite que precedeu o assassinato de César

murmurou Calpúrnia, aproximando-se mais do braseiro.

Roma foi assolada por uma tormenta como não se via des­de muitos anos. Um inferno nos céus. Na terra, os mais estra­nhos prodígios. Surgiram pelas esquinas homens com duas cabeças, fugiram duas leoas do circo e uma delas pariu aos pés da estátua de Pompeu. E, diante da mesma estátua, dentro do Capitólio, caiu apunhalado meu marido no dia seguinte. Co­mo se os mortos houvessem procedido a uma vingança tardia!

 

Grande Calpúrnia, teu bom discernimento é mais fa­moso que o meu e mais antigo. Ele não te diz, agora, que não é de sábios revolver as recordações dolorosas?

As recordações já não doem quando passam a ins­pirar os cronistas. Nem sequer sei se são minhas. Meu espo­so foi assassinado para o bem de Roma, disseram os conspi­radores. Depois teu irmão, teu esposo e o justo Lépido ex­terminaram os conspiradores pelo mesmo bem comum. No fundo, todos teriam razão, pois todo o bem e todo erro se fazem por Roma, e assim fica escrito nas atas e anais do Ca­pitólio. Neles fica a dor, não em meu espírito. E posso re­cordá-lo como uma testemunha cuja voz foi substituída por outras mais sábias na arte de narrar os acontecimentos. — Sem dar importância, acrescentou: — Não quero te amar­gurar. Se me referi àquela noite funesta, é porque certos pres­ságios têm significados diferentes, conforme quem os adivinhe ou quem os leia. Se uma noite como a de hoje pode significar a morte de uma deusa em Cartago, também pode significar o nascimento de um príncipe para os fenícios. Por isso te di­go que tanto trovão, tanto raio e tanta ventania anunciam grandes coisas para o porvir de tua filha. Que, ademais, não é uma menina qualquer.

Pronunciou o elogio como um consolo de urgência con­tra algum pesar que intuía. O que se refletia na expressão ausente de Otávia. O que tornava mais baixo o som de sua voz, quando respondeu:

Não é uma menina qualquer, dizes?

Filha de Antônio e sobrinha de Otávio! Não se po­de pedir melhor aliança para os tempos que vivemos. Essa criatura enlaça duas famílias de avoengos, mas, além disso, une dois rivais. — Adotou uma atitude de extrema discrição ao acrescentar: — Porque, apesar de todos os conluios, teu irmão e teu marido... enfim, tu me entendes.

Bem demais. Faz três anos que me situaram no cen­tro do conluio, como o chamas. Não vou conhecê-lo, quan­do o tenho em casa? Dir-se-ia que toda a minha vida fica reduzida a um intento permanente de evitar discórdias entre Otávio e Antônio. — Guardou silêncio. Não podia suportar o olhar escrutador de Calpúrnia. Por fim, acrescentou: — Não dês atenção, sei que é meu dever fazê-lo. Mas se minha filha nasceu com esse único fim, eu preferiria...

Calou-se de novo. E havia tal severidade em seus silên­cios que Calpúrnia ficou assustada.

— Vamos, vamos! A que vem essa tristeza? Tem de ser uma noite de alegria. Devias estar rodeada de músicos. — Improvisou um gesto alegre. — Cítaras e charamelas para saudar a alegria que abençoa esta casa!

O olhar fixo de Otávia deixou bem assentado que não admitia mentiras. Nem piedosas nem lisonjeiras. Nem, mui­to menos, alegres.

Quando falas desta casa referes-te ao palácio mais triste de Atenas. Um palácio expropriado, Calpúrnia. Nada que me pertença. Centenas de obras de arte, também expro­priadas. E, depois, um enorme vazio.

Já que falas de vazio, é justo que te pergunte por An­tônio. Deveria estar a teu lado.

Mais uma vez o olhar de Otávia teve uma excepcional loquacidade. E exprimiu sem palavras o que só a fala do vulgo está autorizada a expressar.

Compreendo disse Calpúrnia, sem mais.

Não posso dizer que me levavam ao matrimônio por engano. Antônio, suas meretrizes, seus companheiros de be­bedeira... Sabia de tudo isso antes de nos casarmos. Não es­perei curá-lo. Sim, pelo menos retê-lo alguma noite. Algu­ma haverá em que aquelas mulheres descansam! Um conso­lo medíocre e, ainda assim, impossível. De pouco me servi­ria o dia de folga de todas as rameiras da Grécia. Se não está com elas, Antônio se embebeda com seus soldados. Com ra­zão o adoram. É o marido de todos eles, antes de ser esposo de sua mulher.

De repente Otávia recordou as chanças que, durante um tempo, correram pelos melhores salões de Roma, referentes aos usos eróticos do grande César. Quando se disse que era o marido de todas as esposas e a esposa de todos os maridos.

— Perdoa-me, Calpúrnia. Preciso dizer que não pretendi fazer alusão alguma que te pudesse ferir?

Calpúrnia limitou-se a arrumar a estola, com um gesto de suprema condescendência.

Tens hoje uma obsessão especial com minhas feri­das. Se não as tenho pela morte de César, lá iria tê-las por seus devaneios na vida? Entre nós, minha filha, a esta altura da comédia (estás vendo que não chamo de tragédia a vida, seria dar-lhe demasiada importância), a estas alturas, digo, os devaneios de Júlio César me produzem certo riso. Seja­mos sinceros. Teu irmão poderá divinizá-lo, e Antônio so­nha acordado ser a sombra dele; mas eu o tive em um leito como este e posso dizer que nos últimos tempos ele se torna­va um pouco ridículo.

Calpúrnia, Calpúrnia, não deverias me contar essas coisas.

Ao contrário, sou obrigada a contá-las para ti. Se nossos destinos tivessem sido mais cômodos.... não sei... es­posas de vulgares senadores ou, no máximo, de algum ad­vogado... Mas fomos condenadas a compartilhar a vida de donos do mundo. Homens cujas esculturas adornam todos os foros do Império! E as estátuas mentem, em muitos ca­sos. César, para não ir mais longe, fez-se esculpir, em certa ocasião, mais alto do que era na realidade e com uma mus­culatura fictícia. Estava completamente nu, com exceção de uma folha de parreira que pudibundamente lhe cobria as par­tes. Pois bem, devo dizer que nunca vi folha mais excessiva para os atributos que tentava cobrir.

Até mesmo no incómodo de sua postura, Otávia pôde rir sem nenhuma dissimulação.

Conseguiste me divertir, Calpúrnia. Não sei se te agradeço ou censuro por falar assim do divino César.

Remeto-te aos anos, Otávia. Quando tiveres os que tenho, contemplarás Antônio de tão longe que ele te parece­rá diminuto. Não menor que os demais homens, não creias, mas, sim, em relação à magnitude que hoje lhe outorgas. É como vejo César, desta altura dos anos, que é a única altura realmente soberana. O que queres que te diga do divino? Pois não trasladou à alcova nenhuma de suas heroicidades. No máximo, introduziu suas manias... Por certo, essas tuas mu­lheres entendem o que dizemos, ou são tão gregas que só fa­lam grego? — Otávia indicou que podia continuar sem te­mor de que aquelas mulheres a entendessem. — De que fa­lava eu? Não da divindade de César, claro. Isto é, de suas manias. Sabes que depilava todo o corpo e que quando o pêlo tornava a nascer punha-se como uma velha lunática? — Riu com a malignidade de uma harpia. — Se chegarem a saber no Senado! E isso não era nada, comparado com sua obses­são pela calvície. Que esquisitos são os homens, por mais que se chamem César e se julguem donos do mundo! Tanta aver­são pela penugem do corpo e, depois, se obcecava porque perdia a da cabeça.

Calpúrnia, Calpúrnia! Os anos te tornaram irre­verente.

Em minha idade, repito, a gente pensa: "Não mais respeito, nem mais nada". Digo-te, assim, que duas coisas obcecavam meu esposo. Que o coroassem rei de Roma, pelo que recebeu a morte de mãos dos conspiradores; e que se cu­rasse da queda do cabelo, com o que fez ricos não sei quan­tos curandeiros e charlatães. Todos os jovens sofisticados de Roma imitando seu penteado, e não sabiam que o grande César se penteava para a frente a fim de dissimular a calví­cie! E se te disserem que tinha horror ao vento, porque nele via presságios funestos, não acredites. Calpúrnia e todos os seus íntimos sabem que, se evitava o vento, era porque lhe deixava a calvície a descoberto.

Otávia compreendeu que os ensinamentos da grande Cal­púrnia encerravam um porfiado intento de distraí-la de suas penas. Tomando entre as suas aquela nobre mão, sorriu-lhe com extrema doçura.

Adivinho que tua visita não foi unicamente por mi­nha filha. Nem sequer por minha saúde. E, já que sei disso, agradeço-te o motivo.

Querida, a indiscrição, uma vez disparada, é como as flechas de Cupido: só pode detê-las o peito que as recebe. Por ter sido mulher de César, adivinho o que é ser esposa de Antônio; mas seria a mesma coisa sê-la de Otávio, Lépi­do ou Agripa. Que mais te vou dizer? Teu Antônio é o mari­do de todos os soldados e o amante de todas as meretrizes. Que teu orgulho não tenha de se ver em piores transes. Não tenhas de sofrer a humilhação da pobre Pompeia, quando escutava as quadrinhas que corriam a respeito dos amores de César com aquele rei bárbaro, Nicomedes, creio que se chamava. O fato é que a cada uma de nós, suas esposas, Cé­sar reservou alguma surpresa... Não direi que a que me cou­be foi minúscula... Mas posso assegurar com orgulho que, enquanto foi meu esposo, não agachou seu divino corpo pa­ra que algum oriental lhe desse prazer por trás. Respondeu como um homem, com uma rameira egípcia. E, como um deus, fez-lhe um filho. Só uma queixa, Otávia, só uma quei­xa. Já que fui incapaz de dar-lhe filhos... e não dar filhos a César é não dá-los a Roma... poderia ter-me ferido me­nos, gerando seu príncipe em uma romana....

Então não teria sido um príncipe... murmurou Otávia com sumo tato, pois entendia que estavam roçando alguma ferida que nem sequer o tempo conseguira cicatrizar.

Certo. Tinha de ser em uma rainha. E essa classe de arbitrariedades só ocorrem no Oriente, onde os povos são tão atrasados que até aceitam o jogo de uma rameira.

Oriente! Outra vez aquela palavra que enchia as con­versas, propondo singulares visões de esplendor, barbárie e decadência. Terras ignotas cujas origens se perdiam no pró­prio princípio do tempo. Cerimônias estranhas, feitiçarias fas­cinantes, arcanos indecifráveis. Oriente! Tecidos suntuosos, perfumes embriagadores, metais preciosos. Tudo que uma romana podia considerar exótico, mas também proibido. Ex­cessos de grandes reis que edificavam luxuosas cortes sobre a superstição de seu povo. Sexualidades pervertidas, sexua­lidades incestuosas, sexualidades criminosas. Oriente. Sem­pre Oriente.

Mas Otávia disse:

Não é justo que fales assim de Cleópatra.

Assim fala Roma.

Roma despreza o que não conhece. Quanto mais con­quista, mais despreza. E quanto mais despreza, mais aniqui­la. Olha este aposento cheio de obras-primas do passado. Per­corre, depois, todo o palácio, e verás como um dos mais no­bres filhos de Roma forja seus conhecimentos. Roubando o melhor dos povos que suas tropas conquistam! Contudo, ele ama o Oriente com todas as suas forças....

Tem seus motivos. — E acrescentou, incisiva: — Trataram-no muito bem no Egito.

Foste maldosa, Calpúrnia.

Fui precisa. Todos te adoram por tua bondade, Otá­via, mas devias ser menos adorada e um pouco mais malig­na. Mortifica-me que possas elogiar essa Serpente do Nilo. Em qualquer momento, compreendes, em qualquer momen­to, ela pode atacar de novo. E sua picada é mortal.

Tocou na madeira a grande Calpúrnia. Era belíssima. Cedro do Líbano.

Cleópatra é a mãe dos filhos de meu esposo — disse Otávia. — Isso bastaria para que seu nome merecesse res­peito em qualquer de minhas casas. Mas, além disso, sabe-se que é uma mulher sumamente inteligente, muito mais cul­ta do que se podem gabar alguns de nossos intelectuais. E, se tudo isso não bastasse, é a soberana de um país cujos co­nhecimentos milenares sustentaram grande parte de nossa ciência e de nossa cultura.

Esse país não tardará a pertencer a Roma. Deixa teu irmão agir.

Ficarei sentida pelo Egito. Se já é triste ser o celeiro de Roma, há de ser trágico converter-se em sua cloaca.

Calpúrnia pareceu escandalizar-se. Abriu desmesurada­mente os olhos ao exclamar:

Ou todos os deuses que nos rodeiam estão zomban­do de mim, ou os anos me levam a inventar significados lou­cos para as palavras. Estou ouvindo Otávia? Estou ouvindo uma romana?

Por me chamar Otávia e por ser romana, busco os defeitos de minha pátria, para que me ajudem a sentir falta de sua grandeza. E tanto a desejo que recordo as glórias de César, não sua calvície, e prefiro pensar que, quando Bru­tus e seus companheiros o assassinaram, atuavam guiados pela nobreza de espírito, não pela ambição. E por me cha­mar Otávia e ser romana, estimo também o melhor do Egito e respeito o melhor que há em sua rainha. Se é minha inimi­ga, cabe-me congratular-me por lutar contra alguém de ta­manha estatura. Quanto mais alto o inimigo, maior o méri­to da vitória. Ou, simplesmente, o do combate.

Calpúrnia entristeceu-se. A tormenta afastara-se, mas o reflexo dos raios ainda punha leves brilhos em suas rugas.

Tu te esqueces de que eu também tive de lutar con­tra ela, boa Otávia. E te esqueces de que me coube ficar em desvantagem. Passaram-se os anos, e é possível que esta se­ja a única ferida que a distância não diminuiu. Eu era esté­ril, e ela chegou à vida de César com toda a fecundidade da juventude. Deu-lhe um príncipe, e ele, em recompensa, a fez entrar em Roma com uma majestade desproporcionada....

De modo nenhum desproporcionada. A que lhe ca­bia. De que outra forma se apresenta uma rainha? A visi­tante reconheceu seu erro com um gesto irado. — Lembro-me perfeitamente daquela jornada, Calpúrnia. Eu estava com minha mãe em uma das salas do Foro. A aparição da rainha do Egito, no alto daquela imensa esfinge, rodeada de escra­vos e damas de honor, todos vestidos com tanta suntuosida-de como nunca se viu em nossas ruas, nem sequer nas fanta­sias das Saturnais....

Um magnífico espetáculo para o público, sim. Mas eu estava entre os intérpretes. Ou não te lembras disso? Tive de sofrer a humilhação de me levantar, em sinal de homena­gem, à passagem de sua majestade... a amante de meu espo­so! E foi maior opróbrio tolerar que ele a hospedasse em uma de suas quintas, enquanto durou sua estada em Roma. Ela deve ter-lhe dado muita complacência, para que ele lhe des­se tanto em troca. Pergunto-me se encontraria entre suas dro­gas algum remédio para a calvície.

Otávia deixou cair a cabeça entre os almofadões, rindo novamente de bom grado.

— As lembranças te cegam, Calpúrnia. Cegam todos os que pensam que Cleópatra oferece algo de especial aos homens. Será uma maga? Será uma deusa? Dá-lhes filtros de amor? Envenena-os? Não, Calpúrnia. É algo que não po­demos compreender. Fomos educadas para personificar o or­gulho de Roma, mas são os homens que o constroem. Se nos­so sexo nos deu alguma arma, nós a reservamos para os com­bates do lar. Invejo Cleópatra, se descobriu que pode servir para empresas mais altas.

— As de uma meretriz, não esqueças.

— Talvez. Mas não é culpa de Cleópatra se os homens preferem a companhia das meretrizes. Ou, pelo menos, es­ses homens que chamam a si mesmos de "pilares do mun­do". — O otimismo que Calpúrnia conseguira inspirar-lhe desapareceu por completo. Já falava de si mesma quando acrescentou: — Feliz Cleópatra, se conseguiu feri-los com as armas que eles próprios puseram em suas mãos!

As de Calpúrnia, ao buscar o rescaldo do braseiro, re­velaram um desassossego alheio a sua compostura habitual.

— Se consegui te distrair, pagas-me com má moeda, pois lograste me escandalizar. Serias amiga de uma mulher como Cleópatra?

Seria sua discípula!

Otávia!

— Seria de bom grado, em troca de não voltar a viver nunca mais uma noite como a de hoje — raciocinou com de­cisão. — Mas não precisas te assustar, grande Calpúrnia. Che­go tarde ao encontro com a corrupção, porque fui educada para pensar nela a distância e com um sorriso de frieza. Por­que sou apenas um nome em um tratado político. E em defi­nitivo, porque cada um não pode ser mais do que é à mar­gem do sonho impossível que o guia. Eu sou Otávia. E sou romana.

Assim foi aliviada a inquietude de Calpúrnia Pisão, no­tória viúva de Júlio César.

 

O soldado jovem decidiu sem esforço que Marco Antô­nio não seria seu modelo, muito menos sua inspiração, ja­mais o exemplo que lhe guiasse a conduta.

Bufão de merda! — exclamou. — Desprestígio de Roma! Escárnio de nosso exército!

Se o tivesses conhecido! — soluçava o soldado Sisto, já bêbado.

Ali estava Marco Antônio, convertido em rei dos fau­nos. Ali estava, dominando uma farsa miserável, governan­do o império da podridão, da sujeira e da miséria.

— Evoé! — gritava. — Evoé! Sou Dioniso, sou Hércu­les, sou divino!

Exibia sua agressiva nudez de uma postura que preten­dia ser épica. Pois dominava o mundo fazendo prodigiosos equilíbrios no alto de dois barris de cerveja separados entre si. O que o obrigava a manter as pernas abertas em forma de arco, para que as bacantes passassem por baixo.

Com as pernas abertas, as mãos na cintura e a cabe­ça erguida, pretendeu representar, por um instante, o míti­co Colosso de Rodes. Foi, porém, uma ilusão efêmera. O vinho pôde mais que a mitologia. Antônio perdeu o equilí­brio e foi cair entre a massa de corpos que se contorciam a seus pés.

Acolheram-no com gargalhadas zombeteiras. Cobriram-no de beijos grotescos. Chegaram a cuspir-lhe. E ele se ar­rastava entre os corpos, agarrando-se a qualquer um, agra­decendo aos assobios e vaias, vomitando sobre as imundas grinaldas e os louros de pacotilha.

— Vem cá, fauno. Vomitarei vinho de Marsala em tuas orelhas peludas.

— Abster-se-á disso sua excelência. Tome-me por fau­no, conforme o preço, e reserve para latrina a boca de sua nobre mãe.

Lançou para longe de si o garoto. Foi cair no montão de carne enrugada e alentos fétidos.

— E esse bufão pretende derrotar Otávio? — guincha­va o soldado jovem.

Antônio cambaleava de um lado para o outro. Seus bra­ços rompiam o ar com a inépcia de um bastão de cego. Só quando se apertavam sobre os seios das rameiras sentia que estavam vivos.

És virgem, Dafne? Dize-me que és virgem!?

Da orelha, meu senhor Dioniso — gritava a aludi­da, soltando gargalhadas vulgares e empurrando Antônio con­tra outro grupo.

Onde estão as virgens? — gritava ele, apalpando quantas peles se aproximavam. — Ninguém mais interpreta os desejos de Dioniso! Só ela sabia fazê-lo... Ela!

Caía de joelhos, invocando com gemidos entrecortados o nome de Cleópatra. Revolvia as flores de papel barato co­mo se esperasse achar o mais rico tesouro. Os rapazes-faunos açoitavam-lhe o rosto com as caudas, e uma das náiades nuas subia em suas costas e rodeava-lhe o pescoço com a grinal­da, à guisa de rédea.

Anda, macho caprino! Dá uns trotes por teus bos­ques encantados!

Dizem que a rainha Cleópatra fazia isso. Montava nele como se fosse um pangaré.

Um asno! — exclamava o jovem soldado. — Um as­no velho!

Cala-te! — gritava Sisto. — A rainha Cleópatra o teve por um deus! A rainha Cleópatra o amava!

Mais certo que a luz da lua nos oásis! — berrava An­tônio. E endireitava-se vacilante, dava cotoveladas para trás na tentativa de desprender-se da meretriz. — Fora daqui, ca­dela imunda! Só ela tinha o direito de me cavalgar... Só ela podia ser meu ginete... Onde estás agora, rainha amada? Que­ro que vos sintais honradas! É o próprio deus que vos bus­ca! Ela se sentia honrada... E era toda uma rainha! Mas até uma soberana se rebaixa ante a grandeza de Marco Antô­nio, quando ele se faz de Dioniso. Ela se rebaixava e sabia gozar rebaixando-se. Cadela genial! Egípcia única!

Agarrava-se desesperadamente às taças, às jarras, a qual­quer odre. Enfiava o rosto no vinho das cubas e, ao tirá-lo, o vinho resvalava por seu corpo, contribuindo para formar uma camada cada vez mais ensebada no pelame que o en­volvia.

— Sabei de uma vez por todas como Cleópatra se re­baixava diante de mim! Toda a sua distinção a meus pés! To­dos os seus luxos convertidos em esterco!

A assistência, até agora agitada pela zombaria e pelo de­senfreio, guardou silêncio ante os excessos que brotavam dos lábios daquele homem enlouquecido. Era com se de repente a paixão da carne cedesse ante uma paixão envolvente pelo suicídio — como se precisasse assassinar uma a uma todas as glórias do amor e todos os esplendores do desejo.

Seus lábios lançaram uma enfiada de explicações do pior gosto, seus gritos compraziam-se no detalhe mais abjeto, na descrição mais repugnante. O corpo de Cleópatra foi de tal modo ridicularizado que até as prostitutas se sentiram ridícu­las. Os costumes amatórios de Cleópatra foram expostos com tal brutalidade que até as prostitutas se sentiram envergonha­das por tê-los praticado algum dia. De modo que a última bravata do bêbado teve um resultado singular: despertou o respeito para a figura da amante distante, não o contrário.

Não sei o que diria a rainha do Egito, ouvindo-o gabar-se a sua custa diante de toda a putada do Pireu.

Não lhe agradaria. Uma rainha é uma rainha, em­bora tire a coroa para se entregar ao prazer.

E os segredos de uma mulher na cama são tão sa­grados como o oráculo de um deus antigo.

Noite de paixões encontradas! Quando uma paixão apa­recia era para contradizer a anterior. Noite de vinhos opos­tos! Bebido um, provocava uma febre distinta ao que aca­bava de ser vomitado. Assim Antônio. Assim sua loucura. Pois, de repente, irrompia em pranto, invocando a lembrança da amada com uma ternura envolvente.

Maravilha egípcia! Se vos dissesse que podia ser a mais terna das mães... Nenhum presente lhe pareceu dema­siado valioso para o filho de Dioniso! Ouvistes falar alguma vez das pérolas que dormem nos mares da índia? São mais puras que as neves da montanha da lua. São mais valiosas que o trono da rainha de Sabá. Não há pérolas de tal beleza nos viveiros do mundo, e as poucas que existem só os sátrapas do Oriente possuem... Pois, não havendo presente maior, foi este que a grande mãe Cleópatra fez ao humilde Marco Antônio!

Não cairá tal maná para o senhor nesta casa, gene­ral — disse uma das prostitutas.

As outras, no entanto, mandaram que se calasse, por­que Antônio se emocionara até as lágrimas. Talvez por con­tágio, esta era a predisposição de toda a assistência.

Continuai, meu senhor Antônio — disse o soldado chamado Glauco. — Mas deixai-me dizer que vosso currícu­lo não merecia somente esta pérola, e sim um colar da mes­ma prosápia...

Mesmo que merecesse! Ela excedeu qualquer mere­cimento, porque também excedia na arte do presente... Ai, Cleópatra! Quem poderia imitá-la?... Pois, ansiosa por me conceder um capricho que eu não tivera antes, atingiu os pró­prios limites do absurdo e ordenou que lhe servissem uma taça de vinagre. Nele se desfez aquela jóia, ali morreu sua beleza, como termina a das neves que só são belas nos picos das montanhas e se convertem em lama virulenta mal as pi­sam os transeuntes das grandes urbes...

Isto é amor. E o resto é cópia — disse, admirada, a dona do bordel.

Setecentos mil sestércios valia aquela pérola — dis­se o soldado Sisto. — No dia seguinte, toda a Alexandria co­mentava o fato.

E de repente o general ergueu-se com majestade inespe­rada, e todos o viram andar com garbo, mexer a cintura com deliqüescência e buscar uma finura extremada no vaivém con­tínuo das mãos.

—            Sou Cleópatra — murmurou, com um dengo cuja fragilidade nenhuma das jovens do bordel teria sabido imi­tar. — Sou a rainha do Egito e só quero a meu senhor, Antônio!

Que peluda é a rainha do Egito! — exclamou um dos rapazes-faunos.

Calai-vos todos! — gritou o soldado Glauco. — Não vedes que sua mente está em Alexandria?

Alexandria! — gemeu Antônio, requebrando-se co­mo uma mulher. — Não está ali meu reino? Não sou Cleó­patra Sétima, a mais amada entre as mulheres de Antônio?

Quão traidora é a memória, que sabe se apresentar em momentos tão aleivosos! — exclamou o soldado Sisto. — Assim brincavam os dois amantes em Alexandria. A divi­na vestia-o de dama da corte, asseguro-vos. E pintava-lhe os lábios e os olhos com a ciência da maquilagem que só ela possui. Assim, como uma ninfa, só que barbuda, meu gene­ral saía para se misturar com a multidão, sem escolta, nem proteção, nem espada que o defendesse. Só Cleópatra, ves­tida, por sua vez, de soldado. Assim se divertiam. Assim lou­cos são os amantes em Alexandria.

Alexandria — exclamou Antônio de súbito. — Não é lá que tive meu império?

Miúdo império, que tem os limites de um bordel — exclamou o soldado jovem. — E tome rainha com sexo de macho e macho com melindres de donzela!

Ao fechar os olhos, ao apertá-los com todas as forças de uma lembrança incomparável, Antônio pareceu pressen­tir a direção do mar. Dos mares além das paredes! Pois le­vantou o braço com a segura autoridade de um argonauta e apontou para a cortina gasta, para o vestíbulo, para fora da casa, onde rugiam as ondas oleosas do porto.

—Alexandria! — exclamou. — Foi minha cidade. Foi meu sonho.

Não conseguiram detê-lo. Com os braços abertos em for­ma de cruz, Antônio correu para fora. Nem sequer se deteve ao dar com a cabeça contra a verga superior da porta. Gri­tava o nome mágico daquele sonho que o delírio do vinho restituía.

Cidade divina! Capital do Oriente que quase foi meu!

Os soldados correram atrás dele, mas sem alcançá-lo. Sua corrida desafiava os elementos. Contra seu corpo nu, contra sua pele suja, contra seu pelame sebento, batia o gra­nizo, golpeavam as gotas, contemplava-se a luz dos relâm­pagos. O divino Dioniso tomava emprestadas as sandálias aladas de Mercúrio para atravessar a tempestade, para cru­zar os oceanos, para instalar-se como divindade protetora de Alexandria, a cidade sonhada!

Pulou por cima das pedras, afundou os pés nus na areia, sentiu, por fim, que as ondas batiam contra seu peito e, en­tão, a memória triunfou sobre o presente.

A incalculável memória de Alexandria!

 

A cidade, Cleópatra, o Tempo...

... retalhos de amor disperso, de amor repartido entre elementos que, por fim, se uniam na configuração única de seu sonho. Cleópatra, o Tempo, Alexandria! Tudo quanto sonhou entre os braços da rainha dourada, tudo quanto pen­sava entregar à cidade divina, tudo quanto o Tempo arras­tou sem remédio para os ermos não do esquecimento, mas da resignação. A pele ardente de Cleópatra, o fastuoso ar­minho que lhe forrava o sexo, a sublime harmonia de sua voz ao despertá-lo no meio da noite, buscando o abraço, solicitando-lhe o corpo como uma gata amorosa. As ruas va­riegadas da cidade, o matizado tropel de seus perfumes, a inebriante voluptuosidade que anunciava os crimes do Orien­te. A cidade e Cleópatra! O amor e seu ponto culminante na terra, o amor e os segredos infranqueáveis de seu culto, o amor e seus delírios inimitáveis.

Cleópatra! gritou. O amor organizado contra o tempo! O prazer couraçado contra os anos! A eterna ju­ventude dos sentidos!

Os sentidos retornaram. Haviam permanecido aletarga­dos sob estímulos alheios, haviam permanecido ocultos sob o vinho, sob o repouso que incha, sob o letargo de uma feli­cidade cotidiana. E tudo era mentira. Os sentidos desperta­vam agora: agitavam-se tão-só com ouvir uma invocação de Alexandria.

— Ali está Alexandria! — gritava, assinalando com bra­ço de titã os confins daquele mar da Grécia.

Já não havia dúvidas entre as prostitutas: aquele gene­ral descendia de Hércules e era apadrinhado por Dioniso! Até o próprio Netuno, de sua morada marítima, dava-lhe licen­ça para tomar emprestado seu tridente.

Não atendeu aos soldados que lhe achegavam uma ca­pa para cobri-lo. Lançou-se em uma carreira fenomenal, que recordava aquele Marco Antônio das Lupercais já distantes, quando, em sua esplendorosa juventude, foi o capricho pre­ferido do grande César. Sua corrida contra a tempestade der­rotava o tempo! Os relógios de areia tinham parado. Era aquele Antônio que, quinze anos antes, corria nos jogos de circo, ultrapassava os demais atletas e, ao passar pela tribu­na de César, acariciava o ventre da grande Calpúrnia, pois toda mulher estéril deixará de sê-lo se tocada pela mão sua­da de um vencedor nos jogos.

Continuou estéril a grande Calpúrnia, porém Marco An­tônio não tornaria a ser o mesmo desde que a tormenta devolveu-lhe o anelo de Alexandria. Seus pés caíram no pes­cante da quadriga, impulsados por um salto fenomenal. Gri­taram com entusiasmo as rameiras e os prostitutos que an­tes escarneciam de suas fraquezas. Saltaram nos cavalos os soldados de sua escolta. Ficava para trás a sujeira da areia, para trás a porcaria do porto. Abriam-se diante dele hori­zontes resplandecentes, que o fulgor dos raios nem sequer chegava a intuir. Abria-se a epopéia!

E épica foi sua corrida ao longo da costa, mais épica ainda sua entrada pela muralha centenária que separava Ate­nas do Pireu; completamente épico seu trote destrutor sobre as lousas das vias principais. Os raios iluminaram um gigan­te. Não era só Dioniso. Era um ciclope. Era um centauro. Era Marte redivivo.

Assim chegou ao acampamento. Como um herói anti­go que viesse propor a gesta mais titânica dos tempos mo­dernos. E, ao vê-lo, todos os seus homens gritaram: — Vol­tou Marco Antônio, rei do Oriente. Abria-se a epopéia.

 

Ao despertar no acampamento, entre seus soldados, Marco Antônio compreendeu que era um prisioneiro do on­tem. Entre as nebulosas que o vinho mantinha em seu cére­bro, via-se repartido entre dois cárceres. Por um lado, a lem­brança que lhe inspirava Cleópatra. Por outro, a tendência a reunir-se com seus homens ao redor das fogueiras, reme­morando façanhas passadas, glórias perdidas, projetos que não chegaram a realizar-se.

Naquela manhã, a regressão continuava seu curso, po­tencializada pelos sons inconfundíveis da vida militar. A efer­vescência do acampamento — uma efervescência cotidiana — remetia-o a uma existência anterior que se revelava tão insistente em seus fatos como em seus símbolos. Trote de ca­valos, ranger das máquinas de guerra, estrépito das espadas ao chocarem contra os escudos, imprecações dos oficiais, queixas dos recrutas... Orquestração de sons conhecidos, des­tinados a convencê-lo de que voltara ao lar.

Ao erguer-se na cama de sua tenda, não encontrou nada que lhe parecesse estranho. Como se não se tivesse movido da­li desde aquele longínquo dia de seu ingresso na milícia, quan­do estava tão cheio de fé, tão fortalecido por toda a sua espe­rança juvenil que não podia pensar no futuro nem muito me­nos imaginar que chegaria a ter quarenta anos. A idade em que a alma se esvazia de ideais. A idade do vazio provisório.

Acolheu seu despertar o risonho Enobarbo. Dir-se-ia que era um adivinho demasiado impertinente, já que pôde espiar seu sono durante a noite inteira e, o que é pior, tirar conclu­sões comprometedoras.

Por sorte, para sua intimidade era o Enobarbo de sempre: seu lugar-tenente, mas também seu melhor amigo. Seu com­panheiro em muitas batalhas, mas também o confidente de numerosas derrotas de amor. Valendo-se dessas duas catego­rias, atreveu-se a perguntar, sem preâmbulo nem vacilação:

                Em tua bebedeira, berravas o nome de Cleópatra.

Isso significa que continuas pensando nela... Tanto podem ainda suas fantasias?

Como queres que não pense nela? — suspirou An­tônio. — Por ela me converti em uma cidade assediada. To­da a estratégia de Cleópatra está destinada a me tomar de novo! Assalta-me. Encurrala-me. Arremete contra mim com maior força que todos os elefantes de Aníbal.

Isso não é uma amante. É uma catapulta.

Certo. E cheia de óleo fervendo. — Riram os dois. — Assim ferve meu sangue quando me lembro daquelas noites de Alexandria!

Sabes que és um dos homens mais invejados de Roma?

Porque Cleópatra me amou?

Porque te casaste com Otávia.

Antônio resmungava. Golpeou com um punho brinca­lhão a cabeça do companheiro. Como nos primeiros tempos de seu aprendizado.

Otávia, dizes! A perfeição desperta as invejas alheias... mas não é nada invejável para quem a desfruta. Otávia! Ela é o melhor que poderia suceder na vida de qual­quer homem sensato.

Para muita gente, Otávia é mais bela que a própria Cleópatra.

Sem dúvida... se nos ativermos aos cânones gerais da beleza. E não só Otávia. Na corte de Cleópatra há jovens muito mais bonitas que ela. Mas sequer as teme. Seu poder reside além da beleza... — calou-se um instante. Porém não para resistir à recordação. No máximo, para refugiar-se no presente. — Que aspecto terá agora?

As últimas moedas que chegaram do Egito não a fa­vorecem muito...

Uma mão de Antônio estendeu-se com avareza. Eno­barbo depositou nela uma moeda de ouro, que pôs um fugi­dio lampejo de refinamento egípcio na palma demasiado tosca do soldado. E o perfil de Cleópatra, com os cabelos arma­dos em cachos ao longo da nuca, parecia sorrir com uma ocul­ta e imperceptível ironia. Parecia dizer-lhe: "O dinheiro viaja mais depressa que os amantes".

Adotou o penteado grego — murmurou Antônio, fe­chando a mão. — Não a reconheço neste perfil. É como uma referência distante. Não sei quem mente, o coração ou a arte.

A arte, sem dúvida. Porque a esta altura um cora­ção tão assediado quanto o teu há de conhecer o rosto do inimigo.

Talvez conheça o dela. Não o meu, em todo caso.

O que procuras, Antônio?

Não sei. Mas, seja o que for, procurei até agora em lugares errados. Só esta madrugada, no ambiente mais con­trário à sensatez, no domicílio da sem-razão, apareceu-me um caminho que me trouxe até aqui. E se este fosse o ninho que eu nunca deveria ter abandonado? O acampamento, com suas incomodidades e suas alegrias. Meus homens, com seus otimismos e suas angústias. Só aqui me sinto seguro.

Sempre que me pediste franqueza, eu te dei. Hoje brindo-te com ela sem que me peças... Antônio, estás per­dendo tempo em Atenas.

Mais que tempo. Estou perdendo a vida.

Otávio se fortalece em Roma. Em contrapartida, tua situação no Oriente não envoluiu.

Antônio suspirou profundamente. Levou as mãos à ca­beça. Suas têmporas continuavam latejando, como mensa­geiras de um poderoso conflito interior.

No começo a oferta de Otávio me pareceu atraente. Regressar a Atenas equivalia a recuperar os anos mais feli­zes de minha juventude. É provável que não tenha calcula­do direito a jogada. Afinal, minha saudade pôde mais que o cargo.

É estranho como as cidades podem influir em ti...

Só duas. Atenas e Alexandria. Em uma, os sonhos perdidos da juventude. Na outra, a loucura que necessita mi­nha maturidade para sentir-se viva.

Com uma mulher em cada cidade. Otávia em Ate­nas. Cleópatra em Alexandria.

Duas mulheres tão iguais e, ao mesmo tempo, tão diferentes. Otávia é como Atenas... o rigor clássico, a supe­rioridade do espírito, a perfeição. Em outros tempos, essas idéias moldaram minha personalidade. Mas hoje minha mente se volta para Cleópatra e Alexandria... a sedução, a suntuo-sidade, o mistério de não saber o que vai acontecer depois do instante preciso...

Enobarbo fitou-o diretamente nos olhos. Conhecia uma corda da ambição de Antônio que, bem tangida, podia fazê-lo reagir.

Duas cidades! Só duas! Antes não era tão limitada tua idéia do Oriente.

És astuto, Enobarbo. Buscas a palavra que melhor pode excitar meu interesse político.

A palavra que poderia te levantar.

Estou outra vez de pé, Enobarbo. Estou pisando terra firme.

Assim tens de estar para lembrar-te do grande César.

Cada palavra ia adquirindo maior sonoridade que a an­terior. Cada frase estava destinada a estimular o interlocu­tor. Enobarbo sorria para Antônio com uma careta que lhe torcia os lábios. O outro correspondia-lhe deixando assoma­rem, entre a barba e o bigode, dentes poderosos, dispostos a fincar-se nos deliciosos bocados que até então deixara pas­sar inutilmente.

Lembra-te de César.

Quando recitei sua oração fúnebre?

Quando o acompanhavas em seus triunfos.

Todos o fizeram.

Omites o que não chegou a ocorrer. Lembrá-lo te dá medo?

A guerra contra os partos.

Exatamente. É uma espinha que ficou cravada no orgulho de Roma... e no teu próprio.

Crasso perdeu essa guerra há anos. César não che­gou a tempo de empreendê-la. Eu acalentei o projeto duran­te muito tempo. Até Cleópatra me animava.

Cleópatra conhecia Antônio.

Atenas me dissuadiu. E ninguém pode me culpar por ter cedido. Entreguei-me à doçura destes céus e à comodida­de do amor de Otávia. Quem não teria feito o mesmo?

O Antônio que conheci. O amigo de César. O ven­cedor de Filipos. Este teria compreendido que a vitória so­bre os partos era sua cartada definitiva contra a insolência de Otávio. Estou falando sério e com urgência! Não haveria romano que não aprovasse uma intervenção na Partia. Nem teus mais acérrimos inimigos no Senado deixariam de te acla­mar. Vencendo os partos, tu os farias pagar a ofensa que in­fligiram a Roma quando derrotaram Crasso.

Estás falando de política. Deixa isso para Otávio. Devolve-me a ação, Enobarbo. Dá-me um mapa, e voltarei a sonhar com o Oriente...

Voltou-lhe a excitação do estrategista, retornou a pai­xão da consulta com seus oficiais ao redor dos mapas, aber­tos como peles de animais que, a seu conjuro, mostrassem os segredos de qualquer país, de qualquer rota. E, ali em um dos mapas de seu próprio acampamento, estava o reino dos Arsácidas, a cobiçada Partia. Ali, entre o Indo e o mar Cás­pio, estendia-se a terra cuja conquista, cuja possessão se con­vertera em lenda para os romanos.

— É o caminho que intuí esta madrugada. Meu braço apontava para Alexandria, mas o caminho tem de se desviar antes de alcançá-la. Este é o caminho, Enobarbo.

Por um breve momento, imaginou-se diante do Capitó­lio, esgrimindo a sagrada lança de guerra, apontando em di­reção ao inimigo, como é costume.

A audácia do guerreiro foi, porém, substituída de re­pente pelas preocupações do administrador. E Enobarbo riu ao ver que todo o seu ímpeto vinha abaixo, como seu corpo ao cair sobre os punhos, apoiados na mesa.

Falta saber se conseguiria subvenção para minhas tro­pas. As arcas estão vazias. Sabes disso.

Ainda és muito popular em Roma. Não sei se tão respeitado quanto Otávio, porém mais querido, sim.

 

Precisaríamos armar um exército...

O melhor de todos.

E recorrer aos mercadores, aos políticos... Longos debates no Senado! Aborrece-me o simples fato de pensar nisso.

É o enfado de um poeta da luta! Talvez uma poetisa do amor pudesse acalmá-lo...

Sei o que estás insinuando. Para um empenho tão gigantesco como o que penso empreender necessito do apoio de algum país rico...

Eu pensava concretamente nas riquezas do Egito.

Pensavas em Cleópatra. Ela tem barcos, soldados, carros e, o que é mais importante, ouro em abundância. Mas tem outra coisa... ódio a Antônio.

O ódio pode voltar ao amor, se é que este foi tão profundo como dizem.

Antônio deu um soberbo soco sobre os mapas. Foi só uma coincidência que o punho caísse sobre Alexandria?

Um sonho tão magno como o meu não pode ser de­cidido com o estômago vazio e um acampamento cheio de soldados vociferantes. Tampouco discutindo diariamente com uma esposa que mede a perfeição dos demais pela sua. Pre­ciso pensar, Enobarbo. Tornarei a minhas raízes. Talvez possa desenterrá-las sem necessidade de remexer na erva. Melhor farei se disparar em direção do céu! Em direção de Delfos!

O último rincão do mundo.

O teto do mundo. Foi um excelente lugar de medi­tação nos tempos dos clássicos. Voltou a sê-lo para mim quan­do eu era jovem. Fui consultar o oráculo de Apolo, mas ele emudecera. Não se importou comigo. Seu silêncio favorecia minhas meditações. Hoje tornará a impulsioná-las. Está de­cidido. Amanhã partirei para Delfos e não regressarei até ter decidido a estratégia contra Otávio e a guerra com a Partia.

Saíram da tenda. Embora o sol outonal não tivesse for­ça para ferir os olhos, o distante sol da Síria conseguira inchá-los com a força da decisão.

Entusiasmado pela corrente de vitalidade que de novo o arrastava, Antônio tomou a lança de um dos recrutas e arrojou-a em direção do Oriente. Foi um arremesso memo­rável, que mereceu a admiração dos jovens e ajudou-o a sentir-se um deles.

Quanto a Cleópatra?... indagou Enobarbo com cautela.

Cleópatra! sussurrou Antônio. Meu sonho nun­ca a excluiu, Enobarbo. Apesar de a moeda não a favore­cer, continua sendo divina.

 

Antes de partir para Delfos, Marco Antônio reconhe­ceu a pequena Antônia, pegando-a nos braços e levantando-a para o céu, como é costume dentro da legalidade. E, quando o corpo de Otávia se recuperou e a cor voltou a pôr saúde em suas faces, tomou-a de novo e ela aceitou o presente de sua potência, de modo que engravidou outra vez.

Grande tema de conversa para a viagem! Pois comprazia-se Antônio vangloriando-se ante os soldados das façanhas que seu membro viril podia realizar quando recebia a inspi­ração de Hércules, sua outra divindade tutelar e, ademais, seu antepassado direto. De modo que os soldados deleitaram-se mais que nunca conhecendo os detalhes íntimos da vida sexual dos patrícios. Todos concordaram em admitir que não havia outro general como Marco Antônio, tão simples e hu­mano que era capaz de compartir a esposa com a soldades­ca. Logicamente o adoraram.

No palácio expropriado, Otávia deixava as semanas pas­sarem sem prestar atenção nos dons que os dias pudessem oferecer-lhe. O anúncio de outro filho não levou a seu cora­ção nenhuma das diferentes variações com que a alegria sói manifestar-se. Ao contrário, seu semblante ensombreceu-se, o olhar foi-se a vagar pelo Nada e as mãos adquiriram uma estranha palidez que atribuíram aos primeiros frios.

Mas foi inútil que aproximassem os braseiros de sua ca­deira preferida. Ou que alimentassem com mais lenha a caldei­ra do sótão. Nenhum rescaldo era capaz de acalmar o frio da alma. Nenhuma paisagem servia para avivar o olhar, que se li­mitava a errar pelo jardim já desnudo no final daquele outo­no. À falta de outro atrativo, o olhar deambulava pelo espesso tapete de folhas mortas que, todos os dias, o jardineiro Fe­dro, jovem amigo do escravo Adônis, em vão tentava limpar.

Quando os dois iam saudá-la com um ramo de crisânte­mo, última homenagem floral do ano, Otávia esforçava-se para sorrir-lhes. Seu sorriso era sincero, mas consegui-lo exigia um esforço demasiado árduo; esquecera como sorrir.

Às vezes recebia cartas de Roma. Então sua imagina­ção voava para os rincões da infância, para os édens da pri­meira juventude ou das festas que costumava freqüentar quando, já esposa de Caio Marcelo, dedicava-se a uma in­tensa vida social.

Sua amiga Clódia solucionou as parcelas menos favo­ráveis de seu outono ateniense graças a uma correspondên­cia habitual e de caráter ameno. A última missiva, entretan­to, acabava de transcender a simples amenidade, o vulgar jogo de indiscrições. Chegava para recordar-lhe um fato de que foi protagonista Marco Antônio. Um fato que não lhe agra­dava guardar na memória. Muito menos ressuscitá-lo.

Clódia começava sua carta referindo-se, como de cos­tume, à vida citadina. Algum banquete organizado por per­sonagens de certo crédito, os jogos de circo, o encontro com alguma amiga comum no templo das vestais e quão pompo­so ficara o cortejo nupcial de outra amiga ou, simplesmen­te, de qualquer conhecida. Em suma, os mexericos costumei­ros da boa sociedade.

Naquele dia, porém, a carta de Clódia foi mais longe em suas intenções. Depois dos preâmbulos citados, entrava abertamente no assunto.

 

Se fosse Clódia a esposa de Marco Antônio, e não Otá­via, Clódia não hesitaria em dizer-lhe: "Bêbado, tagarela, vaidoso, folgazão, inútil. Tens o amor de Roma a teus pés e, em vez de tomá-lo, tu o pisoteias. Pois, por muito que Otá­vio faça para ser amado pelo povo, tu és o preferido. De modo que, se te dignasses assentar a cabeça, terias todo o mundo de teu lado ". Assim lhe diria, amiga minha, e aqui devo pedir-te desculpas por desmerecer a fama de teu irmão. Considero desnecessário dizer que não era esta minha intenção. Mas co­nheces melhor que eu seus defeitos e suas virtudes. E o povo também os conhece. Consideram-no excessivamente severo, rigoroso e duro. Alguns pensam que poderia ser implacável se se apresentasse a ocasião. Quanto a Agripa, que, ao que parece, logo irá embora para governar as Gálias, não é um inimigo que teu esposo deva temer. É feio demais, e isto é muito importante para as almas simples, embora possa pare­cer-te inacreditável, porque fomos educadas em esferas mais elevadas, graças à deusa Vesta. Mas, paradoxalmente, é nessas esferas que Otávio tem seus adeptos. É respeitado e ouvido. E, conquanto Antônio seja amado, eu me pergunto se na ba­talha pelo poder é mais importante o amor que se desperta ou o respeito e o temor que se sabe inspirar.

O que aconteceu com teu marido? Todos o relembram como o mais valoroso dos guerreiros. Ainda que, diga-se de passagem, há alguns que guardam dele pior lembrança. Aqui vejo-me obrigada a falar da morte de Cícero, que foi um golpe muito duro para todos, muito especialmente para os que que­remos bem a Antônio. Sem dúvida, quando mandou assassiná-lo teria motivos que desconhecemos, porém, ain­da assim, aquela morte não se apagou da mente dos intelec­tuais. Nem, supérfluo é dizê-lo, da viúva de Cícero, a pul-quérrima Terêncio, que vi anteontem. (Algumas mulheres, diga-se de passagem, não se emendam. Cícero repudiou-a de­pois de trinta e cinco anos de matrimônio. Ela, em compen­sação, guarda a viuvez. Com o que penso que ou Terência é muito grande ou é muito boba.)

Dirigia-me eu aos novos mercados, pois soube por Pompônia que acabam de chegar umas sedas deliciosas, das que os nômades da Mauritânia confeccionam, quando, ao pas­sar pelo foro, encontrei a nobre Terência, envolta em um lu­to que alguns consideram excessivo, mas que eu, ao venerar a memória de Cícero, acho oportuno.

Contaram-me que vai todos os dias fazer suas orações ante a tribuna da vergonha pública, porque foi ali que Mar­co Antônio mandou expor a cabeça do grande filósofo. E sempre que alguém me conta este fato lutuoso, outro acres­centa que teu esposo se excedeu. É certo que Cícero o criti­cava abertamente em seus textos — e todos nos divertimos ao lê-los! —, porém ordenar que o matassem por causa de uma crítica, por mais dura que fosse, continua parecendo ex­cessivo para muitos. Sobretudo quando, entre os romanos inteligentes, prospera o respeito às idéias alheias e a necessi­dade de impor as suas mediante a polêmica, nunca com a espada. (Embora tenha sido pior ainda quando a odiosa Fúl­via traspassou a língua de Cícero com sua agulha, tanto a odiava por causa das críticas ao marido.)

Como te dizia, encontrei a pulquérrima Terência. O res­peito que ainda me inspiram os escritos de Cícero — embo­ra ele, reconheçamos, fosse tão pedante e vaidoso — levou-me a render-lhe uma homenagem na pessoa de sua viúva. Aproximei-me dela, cobrindo minha cabeça com a estola, pois a sabedoria constitui, para mim, um bem sagrado. Depois de cumprimentar a nobre Terência e convidá-la para cear qualquer dia da próxima semana — a qual terá transcorrido há tempos quando esta carta chegar a tuas mãos —, depois de tantos cumprimentos, como disse, perguntou-me por ti. Falei de tuas últimas cartas, sem fazer menção à tristeza que noto nelas (não sou dessa classe de amigas).

A viúva de Cícero recebia notícias de alguns correspon­dentes gregos, amigos do defunto. Muito lhe agradou saber por eles que ganhaste o respeito e o coração dos atenienses e que és tão admirada na Grécia quanto eras em Roma.

Mas o rosto da pulquérrima Terência ensombreceu-se quando ela se referiu a teu marido, pois, pelos mesmos cor­respondentes, sabia que Antônio se converteu no objeto das chacotas de Atenas e que suas bebedeiras e bacanais sujam o nome de Roma no estrangeiro.

Ao chegar a esse ponto ficou uma fúria. Disse que seus correspondentes mentiam ou, pelo menos, se enganavam de data, porque o nome de Marco Antônio já era maldito des­de muito antes de seus excessos áticos; ou seja, é execrável desde o dia em que mandou assassinar Cícero. E que isso é algo que ela nunca esqueceria e que, ademais, nem Roma nem Atenas nem o mundo deviam esquecer. E desejava que o per­cebesse quanto antes possível, pois és merecedora de um des­tino muito mais elevado.

Acrescentou também que, enquanto Cícero sempre se­rá venerado por seus escritos, ele só será lembrado por seus amores com uma puta oriental.

Continuo condenando Marco Antônio por aquela ação, porém não vou tão longe quanto a pulquérrima Terência, que, por ser viúva de quem é, tem parte mais ativa no caso. Con­tinuo pensando que está à espera de Marco Antônio um lu­gar privilegiado nos destinos de Roma e que só falta ele de­cidir assumi-lo de uma vez. Como disse no início, se Clódia fosse Otávia em vez de ser Clódia, dir-lhe-ia que ainda é tempo de vencer Otávio. E perdoa que torne a me mostrar severa com teu irmão, mas sinto-me protegida de tua ira ao saber que tu mesma conheces seus defeitos, como demonstras in­tercedendo constantemente para manter os dois reconcilia­dos. Espero que algum dia o consigas pois um choque entre esses dois homens poderia significar o fim do mundo.

 

Com as cartas chegou a solidão. À força de temê-la, Otá­via imaginara-a muito mais espetacular, com uma irrupção mais vistosa. Uma solidão feita à medida da mulher que com­partia o destino de um dos pilares do mundo.

Esquecia que a solidão, quando é cotidiana e, portan­to, inseparável, escreve-se com minúsculas e é humilde e quase vergonhosa. Não se presta às grandes apoteoses nem sequer celebra seu triunfo. Sua cor é cinzenta; seu aspecto, triste; seu olhar, vazio. É uma companheira resignada, pois per­deu tudo pelos caminhos do mundo. Nem sequer tem ami­gas: todas morreram de tanto estar sozinhas.

Tão discreta, calada e medíocre era a solidão de Otávia que chegou discretamente, pela porta da cozinha, sem se fa­zer anunciar pelos escravos. Otávia descobriu-a uma noite, de repente, sentada junto ao braseiro e muda como a morte. Não era atraente e, claro, em absoluto exuberante. Era se­nhorial, mas sem a menor concessão à fantasia. Era a mais severa de todas as matronas romanas. A mais severa e, qui­çá, crítica.

Ao vê-la com sua toga cinzenta, Otávia acreditou ser uma premonição da morte. E não estava muito equivocada. Des­de que se instalou em seu palácio expropriado começaram a morrer todas as plantas do jardim. Cessaram os risos de Adônis. Cessaram os balbucios da pequena Antônia.

A dama cinzenta apresentou-se a Otávia como cabe à estrita urbanidade das patrícias. "Sou tua solidão", disse-lhe. Depois, o silêncio. Uma convidada de pedra, que nem sequer tinha o empenho de uma vingança a cumprir nem acu­sações a formular nem culpas a reprochar. Suas obrigações eram assépticas: limitou-se a ser a sombra de Otávia, mas sem a graça e a beleza que aquela sombra tinha, por ser sua.

Sentavam-se as duas, frente a frente, e assim transcor­riam as horas. Nem sequer conversava. Nem sequer lhe fa­zia companhia.

Não comia, não bebia, não tinha a menor necessidade. Era tão austera que levou Otávia à mortificação mais abso­luta. Comprazia-se nas coisas que Otávia negava, nunca nas que fazia. Era uma alcoviteira das negações. Tal como a mor­te, deleitava-se nos dias negros de sua anfitriã. E estes eram quase todos.

Obrigou Otávia a detestar a música, a leitura, as flores e até a própria filha. Só aspirava a mantê-la sentada a sua frente, as duas caladas, fitando unicamente o teto, porque olhar uma para a outra já teria implicado uma escolha, um ato, um juízo. Gostava de vê-la assim, hora após hora, de maneira que, quando Otávia fechava os olhos, já nem se­quer tinha o consolo de ver diante de si o negro abismo do nada absoluto, mas ainda a cor cremosa daquele teto que, à força de fitá-lo, ficou cravada em sua retina.

Para não ofender a convidada, Otávia converteu os dias naquele desfile de negações que tanto comprazia a seus sen­tidos atrofiados. Livros que não lia, melodias que se negava a escutar, paisagens que resistia a viver, amigos desatendi­dos, mares cuja cor ia esquecendo...

Era certo. A dama cinzenta levava diretamente ao rei­no dos mortos. Ao sabê-lo, Otávia pôs-se a chorar amar­gamente. Pois não era difícil intuir que, até lá, se encontra­ria só.

As primeiras neves coroaram o Parnaso. Poucos dias depois, já deslizavam pelas ladeiras. Um vento gelado açoi­tou persistentemente os santuários de Apolo. Então Marco Antônio decidiu que suas meditações haviam terminado e re­gressou a Atenas.

Otávia encontrava-se dando intruções a suas servas, quando entrou o efêbico Adônis, presa da excitação, arque­jante, com os braços erguidos e toda a sua exuberância na­tural posta a serviço da notícia. Que a quadriga de Marco Antônio acabava de chegar aos estábulos. Ato contínuo, apressou-se a buscar a estola de lã de Otávia, e ela agrade­ceu sua antecipação com um sorriso.

Saíram ambos ao pórtico principal. Marco Antônio des­pedia sua escolta perto das roseiras. Da posição de Otávia ainda era um belo guerreiro que passeava sobre a desolação semeada por um exército descontrolado. O jardim chorava os rigores do inverno. As roseiras estavam reduzidas aos es­pinhos. As vinhas, a seus nervos. As heras, a troncos nus, semelhantes a serpentes enroscando-se pelas colunas do Bel­vedere.

Só os ciprestes triunfavam da morte. Provavelmente por­que a cantavam. E o gentil Adônis, que compreendia a an­gústia de Otávia e percebia violência no recém-chegado, apon­tou para uma daquelas árvores e disse:

Sabes, minha senhora, que na Grécia devemos os ci­prestes a um devaneio amoroso do deus Apolo?

Será uma de tuas mentiras... — sussurrou a dama, sem deixar de vigiar, de longe, a chegada de Antônio.

Não é, minha senhora, não é. Esta divindade subli­me era muito dada a farras com os efebos, se me permites a expressão. E mordeu-se tanto de amor ao ver um dia o gentil ciparisso que sentiu desejo e quis ser correspondido. E, co­mo o outro o tratasse com insolência, converteu-o nesta ár­vore que aqui vês.

Otávia continuava distraída. E soube ler no rosto de An­tônio, sem que mediassem tradutores, a incerteza de seu futuro.

—            Apolo também se apaixonou pelo rapaz Jacinto. E este não lhe correspondeu. Magoava-o, pois era coquete co­mo ele só e dava-se demais com homens que não devia, por isso o divino Apolo sentiu-se coroado com algo pior que sua habitual coroa de louros. Sabes o que fez então? — Otávia negou com a cabeça, tristemente. — Disparou contra ele uma de suas flechas, e daquele sangue tão coquete nasceu a flor que alegrará esses canteiros da esquerda mal se retirem as geladas de março. Assim, teus olhos, senhora, poderão alegrar-se graças ao sofrimento do mais belo dos deuses.

Em março — murmurou Otávia. — Se eu estiver aqui, Adônis. Se eu estiver aqui...

Estarás — sussurrou ele, emocionado. — Como Ate­nas iria ficar sem sua primavera? Não sei se é tão formosa quanto a romana, que os poetas tanto encarecem, mas digo-te que traz ventos muito propícios, que tornam boas as pessoas.

Que saberá das pessoas um bom rapaz como tu? Co­mo vais intuir que a bondade pode ser tão criminosa quanto a maldade e talvez mais, porque é criminosa inclusive sem o saber?

Senhora, minha senhora, nasci escravo. Doméstico e de luxo, se quiseres, mas escravo ainda assim. E desde crian­ça aprendi a reconhecer a bondade onde se encontra. E se me consideram, considero. E se me outorgam, agradeço. E pago em moeda mais forte, se convier. Pois se o que me deu bondades sofre, ponho-me a sofrer; e vou ainda mais longe, aborreço meu amigo, o jardineiro, que sofre muito e se vin­ga fazendo as flores sofrerem. Pelo que chega o inverno.

A imagem saiu muito rebuscada — sorriu Otávia. — Medita-a melhor e conta-a mais tarde. É justo que eu fi­que a sós com meu senhor Antônio, depois de tantos dias.

Adônis atreveu-se a beijar-lhe a mão. E sentiu-a fria co­mo as das estátuas. Mas não altiva como elas.

— Vou porque me despedes, minha senhora Otávia. Já conheces minha curiosidade, e eu não queria perder este en­contro por todos os atletas de Esparta. Mas, antes de ir-me, como cabe ao escravo, gostaria de dizer-te uma sentença, co­mo cabe ao agradecido. É a seguinte: se o deus Apolo, sen­do tão deus e tão formoso, não conseguiu ser amado por me­ninos coquetes e tolos que não chegariam nem mesmo à al­tura do calcanhar dele, como vamos pretender maior fortu­na dos mortais? — Ao ver que sua dona sorriu com maior tristeza, acrescentou: — Se não me compreendeste, queria dizer...

— Compreendi perfeitamente — atalhou Otávia. — Mas vai-te de uma vez ou incorrerás nas iras de teu amo, que te considera folgazão e mexeriqueiro...

"Se contasse o que sei", pensou Adônis "não teria bas­tante ira para me odiar..."

E assim se afastou Adônis, assobiando uma melodia pas­toril. E tão avermelhado parecia o otimismo em suas boche­chas que era um insulto contra a fria mortandade dos jardins.

Inclinou-se à passagem de Antônio, que apenas lhe de­dicou um olhar inexpressivo. Foi um milagre que o efebo não exclamasse em tom de burla: "Salve, rei do Oriente". Mas proclamou-o para dentro de si, com grande celebração.

Apesar da antipatia instintiva que o dono lhe inspirava, viu-se obrigado a reconhecer que recobrara parte de sua an­tiga prestancia. Talvez fosse proporcionado pelo uniforme, que não usava desde muito tempo. Vê-lo com sua esplendo­rosa couraça de ouro equivalia a reconhecê-lo em todo o seu poder, tão prejudicado pelas situações ridículas em que a be­bida o fazia amiúde incorrer. Ademais, acostumara-se a deambular pela casa vestido com o simples quitão grego e, na maioria das vezes, com pesadas túnicas orientais, ou, no verão, com leves túnicas de algodão egípcio. Nas grandes oca­siões, próprias de seu cargo e condição, a toga dos magistra­dos romanos.

Mas aquele Antônio que regressava da sagrada Delfos vinha convertido na encarnação da marcialidade romana. Só quando tirou o elmo para saudar a esposa, Adônis desco­briu que trazia os cabelos recolhidos com uma faixa, à ma­neira dos atletas da Grécia, pátria de adoção.

Não ouvia suas palavras nem as de Otávia. Presumiu que eram poucas e, ainda por cima, pronunciadas entre sorrisos fictícios. Tampouco algum beijo apaixonado, pró­prio do amante que retorna de uma longa ausência. Estra­nho, decidiu. Aquele amante optava por encurtar o encon­tro com um simples beijo na testa de uma mulher que tanto o esperara!

Adônis soube então o que já sabia desde aquela noite no bordel do Pireu. A sorte de Otávia estava selada. E ela não o ignorava.

 

Naquela noite, Adônis advertia que sua canção não era dirigida a ninguém. Otávia descansava em um dos reclinato­rios, enquanto as mulheres gregas recolhiam o que, preten­dendo ser as sobras da comida, era a comida em sua totali­dade. Só o vinho diminuíra, e continuava diminuindo no copo de Antônio. Os outros pratos — entre eles, um gamo assado ao gosto grego e ouriços banhados em mel — não recebe­ram sequer um olhar de beneplácito de seus amos.

Adônis continuava sua canção, dirigida a um público indiferente. Nenhuma música especial, nenhuma letra audaz por ser desconhecida; ao contrário: sentimentos de sempre, tópicos agradáveis de tão habituais no repertório do efebo:

Se vires Amor errando

pelos altos caminhos, detém-no:

é meu escravo que escapou...

 

O conhecido poema não afetava a sensibilidade de Otá­via, como em outras ocasiões. Como Amor, seu olhar erra­va, vagabundo, pela geografia de um mural que produzia as aventuras de Ulisses na ilha dos lotófagos. Uma pálida colo­ração, digna de algum artista de refinada sensibilidade, da­va repouso ao olhar. Não à consciência. Nela palpitavam as aflições que ameaçavam eclodir havia horas.

Antônio suportava a espera em uma atitude que o re­quintado Adônis considerou vulgar: um cotovelo sobre o joe­lho, a mão sustentando a cabeça e, na outra, o copo de vi­nho fortemente seguro. Para maior grosseria, arrotava de vez em quando. Costume inesperado em tão célebre patrício!

A pausa fazia-se insuportável. A canção, repetitiva. As­sim, Antônio deciciu atacar:

— Regressei de Delfos com uma decisão. Só então Otávia falou. Seu tom foi severo.

Com a permissão de meu senhor Antônio, espero que será uma decisão mais judiciosa que de costume.

Pelo menos é cauta. Decidi empreender uma cam­panha contra os partos.

A cítara de Adônis emitiu uma nota falsa. Seus lábios, uma expressão de espanto.

Teremos, pois, a guerra? — perguntou Otávia.

Longe de nossas fronteiras, em todo caso.

— Como sempre, tratando-se de Roma. As mães roma­nas deveriam ser sumamente gratas a seus generais. Mandam a guerra para países distantes. Pergunto-me o que seria de nosso sentimento de segurança se algum dia tivéssemos a guer­ra dentro das muralhas de Roma.

Adônis considerou o raciocínio adequadíssimo. Não por nada era filho de um povo conquistado! Antônio considerou-o próprio de um espírito ácido e até desagradável. Não por nada era um conquistador.

— Podemos passar sem tua música, rapaz — gritou. Adônis guardou a cítara, disposto a ir-se de bom grado.

Tocaste muito bem — disse Otávia, com doçura pro­visória. — E a cada dia cantas melhor.

Ao ficar a sós com o esposo, voltou o silêncio. Voltava a solidão a dois. O vazio de ambos. As palavras que se negam a sair, temerosas talvez do mal que possam causar. Ofensas não pronunciadas, acusações por nascer, espreitando-os. E as res­pirações aceleravam-se como os gladiadores que medem o inimigo até encontrar o momento adequado para atacá-lo.

Então Antônio procurou adotar um tom festivo.

— Sei o que te preocupa nas guerras — exclamou, rin­do. — As conversas à mesa! — Não encontrou a cumplici­dade de Otávia. Só seu estupor. — Reconheço que nós, ma­ridos, podemos ser muito enfadonhos, quando, ao regressar das batalhas, nos pomos a contá-las. Se dependesse das es­posas, fica certa de que sempre haveria paz.

É o que pensas de tua esposa? É triste que só uma guerra possa te dar motivos para considerá-la um pouco.

Não queria ferir tua dignidade. De fato, queria manifestar-te minha admiração. Pois diga o que disser so­bre qualquer tema, sinto-me um sáfio diante de teus raciocí­nios. O mesmo me acontecia com...

O nome ficou no ar, ameaçado com uma auréola de fa­talidade. E Otávia soube enobrecer sua própria auréola ao pronunciá-lo sem alterar a voz ou as feições.

Com Cleópatra, devia ser...

Ele confirmou com a cabeça, esquivando o olhar, sem se atrever a procurar o da esposa, que pressentia pene­trante.

É muito afortunada essa soberana, ao dispor dos meios para organizar suas próprias batalhas. Deste modo não precisa esperar que as venham contar à mesa.

Sabes que reconheço o valor de tuas virtudes.

Fazes-me uma ofensa ainda maior, pois, reconhecendo-as, não me permites aplicá-las.

Aplica-as em boa hora, Otávia, mas não me tortu­res procurando em minhas palavras sentidos que não têm.

As palavras talvez não, mas as ações sim. De tuas três mulheres oficiais (as outras não caberiam neste palácio), sou a única que me contento esperando inteirar-me de tuas coisas depois das refeições. Em especial se vêm amigos cear. Quando estamos a sós, nem sequer batalhas. Apenas estes silêncios que esmagam a alma. E lógico que inveje Cleópa­tra. Digo mais, invejo, inclusive, a infausta Fúlvia. Quando se aliou com o irmão e puseram-se os dois a intrigar, deve ter encontrado um pouco de distração. Sem dúvida, neces­sitava.

Queres dizer que a culpas por ter conspirado contra Otávio a meu favor?

Às vezes és muito banal, Antônio. Se isso é a única coisa que deduzes de minhas queixas, nem sequer mereces conhecê-las.

Otávia, Otávia! Estou novamente desarmado dian­te de ti. De todas as perfeições que reúnes, a sinceridade é a que mais me assusta. Nada posso dizer sem encontrar uma reprovação em teu olhar. Nada posso fazer sem desvelar uma reprimenda em teu sorriso.

A rainha Cleópatra era, sem dúvida, mais toleran­te. Sempre me contas que ela não te negava o menor capricho.

Nenhum.

Era mais disposta que eu. Significa que podia se per­mitir tanto. Eu nunca. Nem por educação nem por caráter. Talvez por me chamar Otávia e ser romana. O que pode ser importante, mas de modo algum cômodo.

Tu és a esposa mais respeitada com que um romano jamais pôde sonhar. Além disso, o respeito que te outorgam é merecido. Não sei de ninguém tão perfeito, seja macho ou fêmea. A tal ponto és admirável que, se não estivéssemos ca­sados e um dia te encontrasse em teu passeio e estivesse algazarrando com meus amigos, como costumava fazer na ju­ventude, ao te ver passar me inclinaria e este seria meu ga­lanteio: "Que grande mulher! Dama perfeita!".

Mais que um galanteio é uma condenação. Por ele sei que pensas em me mandar de volta para Roma.

Regressou o silêncio. Outra pausa interminável, esma­gada pela lousa cruel da evidência.

Pensas em me mandar de volta para Roma, Marco Antônio?

Sinto muito — respondeu por fim o general.

Logo, pensas em me repudiar.

Não.

Queres o divórcio?

Não.

Compreendo. A comodidade continua sendo o re­fúgio de Antônio. Nem me repudias nem te divorcias. Sim­plesmente me mandas embora.

Otávia, encontrarás alguém que te mereça mais que eu. Alguém melhor. Que esteja a tua altura.

Marco Antônio, tu me falas com frases feitas. As­sisto muito amiúde ao teatro para não conhecer o repertó­rio. Dizes que encontrarei alguém que me mereça; mas continuarei sendo tua esposa. Nem casada nem repudiada! Pelo que te digo que o homem que me tomasse não me mereceria em absoluto.

Não sei o que responder. Tento facilitar a situação...

Como vais facilitar uma situação difícil?

Estás zombando de mim!

Não, Marco Antônio. Estou te seguindo. De fato te segui durante três anos... sem sair do lugar. Mas o que ocu­pei até agora já não me toca. Assim, pois, sou eu mesma que peço para que me mandes de volta a Roma. Nem repudiada nem divorciada, mas livre. E não te permitas adjudicar-me sucessores hipotéticos. Não te permitas desejar sequer que eu encontre um homem melhor que tu! Porque Antônio é bom, honesto, valente e garboso. Mas, se o preço de Antô­nio ser tão virtuoso e Otávia tão perfeita se paga com situa­ções como esta, prefiro me contentar com menos perfeição e conservar minha dignidade, que é alta demais.

Como eu duvidaria disso? — exclamou, e inespera­damente pôs-se a chorar. Lágrimas espetaculares, que não feriam sua dignidade nem seu prestígio.

Otávia associou o pranto ao vinho. Mas enganava-se. Em todo caso, levantou-se da mesa e, dispondo-se a aban­donar o aposento, alfinetou-o:

Antônio, que é o verdugo de Otávia, chora. E Otá­via, que é a vítima de Antônio, sai batendo a porta. Franca­mente, se um autor satírico não encontrar inspiração em tal cena, duvido que consiga fazer carreira no teatro.

O general jogou todo o corpo sobre a mesa. E disparou seus direitos de esposo com um só grito:

Como podes falar em teatro quando se está decidin­do teu destino?

Se falo em teatro é porque fazes teatro constante­mente. Em teus silêncios e em tuas bravatas, em tuas rejei­ções e em tuas opções. Que grande histrião terias sido se Ro­ma não tivesse posto uma espada em tua mão!

Com uma espada na mão saberia me defender con­tra ti. Com as palavras nem vale a pena tentar.

Defender-te de mim, disseste?

Estás chegando a extremos. Mas tal não será meu caso. Fui educada para manter a compostura. Quando o cor­po de Caio ardia na pira funerária, senti que o mundo aca­bara e quis morrer com ele, lançar-me nas chamas a fim de acompanhá-lo. Mas os olhos de Roma estavam fixos em mim. Assim, pois, contive-me e, contendo-me, suportei todo o tra­jeto de volta com a cabeça erguida e o olhar fixo no vazio. Ao chegar em casa, pude desmaiar. Foi um desmaio que guar­dei durante várias horas! Portanto, meu destino não deve te preocupar. Posso guardar até minha chegada a Roma a rea­ção ante o mal que me infliges. Então já não estarás a meu lado. E minha dor não te poderá incomodar.

Antônio sentiu-se assaltado pela insatisfação do assas­sino, que mata sem prazer e teme pela culpa.

Não desejo tua dor, Otávia. Só busco minha paz.

Os pés de barro do titã não suportaram o peso excessi­vo da perplexidade. Surgia da descoberta de seus próprios abismos. Nascia ao descobrir que sua paz dependia do sofri­mento de um ser a quem estimava, embora sem amá-lo. Que um riso do Hércules Antônio estava estreitamente ligado às lágrimas de algum outro ser no mundo. Assim, a perplexi­dade e os pés de barro deixaram-no cair como se fosse um boneco. E em tais condições sua estatura tornou-se mais hu­mana. E assim soube percebê-lo a nobre Otávia.

Sei que não desejas minha dor, Antônio. Mas isso também é uma frase feita. Em troca, não faço nenhuma, as-segurando-te que sou tua melhor amiga. Não precisas te defen­der de mim, porque sempre me encontrarás a teu lado. Aconte­ça o que acontecer e do modo que suceder. E não me respon­das com alguma estupidez, porque verdadeiramente não me­reço isso. Seus dedos perdiam-se entre os cachos negros do cabelo do esposo. Sorriu com alívio, porque a situação, por mais cruel que sua lembrança chegasse a ser, já estava superada. Agora, espera. Se me mandas de volta a Roma como desejas, tem presente todo o risco em que incorres. Pois inflige a Otávio um ultraje que ele nunca há de perdoar.

Também nisso és perfeita, Otávia. Também em teu afã de reconciliar.

Fui útil, e isso me basta. Mas compreendo que eu não te possa bastar, se acabas de recuperar tuas ânsias de grandeza. Sei que precisarás de espaços tão vastos que não cabem em tua atual aliança com Otávio. Mas cuidado com ele, meu amigo. Ele conhece a realidade melhor que tu. Nem mesmo quando era criança se permitia sonhar.

Sempre esse Otávio! Desde que César morreu, ele se interpõe constantemente em meu caminho. Com que direi­tos? Só os que lhe concedeu um capricho de César. Eu tinha mais direitos que teu irmão. Não falo apenas dos que adqui­ri estando sempre a seu lado. Estes todo o mundo conhece. É que, ademais, minha mãe pertencia à estirpe Júlia. Não era direito suficiente? Posso invocar os que adquiri nos cam­pos de batalha. Quando enfrentamos os conspiradores em Filipos, Otávio caiu doente, e eu conduzi os soldados à vitó­ria, o que equivale a dizer que vinguei a morte de César. Quando se abriu seu testamento, esse obscuro sobrinho, es­se rapazola frágil revelou-se seu herdeiro universal! Só ele tem o direito de usar o nome de César, enquanto Antônio se alimenta com as migalhas de sua glória! Sempre Otávio interpondo-se entre Antônio e seus sonhos!

Continuava chorando, mas agora como um menino en­vergonhado. Ao reconhecê-lo como seu, a nobre Otávia op­tou pela doçura:

Qual é o sonho que leva Antônio para tão longe de Otávia? E a rainha do Egito?

Ainda que estivesse nele, não o esgota, tão imenso é meu sonho! Não pára no Egito, abarca até os confins mais remotos do Oriente. É maior que a vida. Só ao invocá-lo, alargam-se os caminhos, abrem-se os oceanos, movem-se os bosques e as selvas, felizes porque acharam maior espaço para se desenvolver. Cidades fabulosas, tesouros inimagináveis, deuses cujo nome nem sequer conhecemos. É impossível me­dir os espaços de meu sonho! É o mesmo que Júlio César teve e, antes dele, Alexandre. Mas, sem dúvida, seus deuses os abandonaram. Antônio, porém, está sob a proteção de Dioniso, que não há de abandoná-lo enquanto viver. Ele fa­rá que o sonho se converta em um império.

E esse império poderá ser governado de Roma?

De Alexandria. A nova Roma do Oriente!

Isso é o que Otávio nunca há de tolerar. Torno a prevenir-te, Antônio. Cuida para que teu sonho não inco­mode Otávio. Podes transformá-lo em realidade no campo de batalha, mas ele o fará desvanecer-se no Senado.

Alexandre riria de todos os senadores de Roma!

Alexandre, talvez. Mas a voz de Roma já não é a dos heróis, e sim a dos políticos. E para eles os sonhos de glória constituem uma perda de tempo... Agora, permite que me retire. Embora não especialmente longo, o dia foi singular. Preciso meditar sobre ele.

Antônio, ainda sobreexcitado pelo ímpeto de suas vi­sões, aproximou-se dela para beijá-la. Otávia, no entanto, afastou a face sem vacilar.

Um beijo depois de tanto tempo? Não te molestes sequer para tentar. Sou tua amiga, tua irmã até; nunca tua amante. Cuidarei de teu filho. Hei de educá-lo junto dos meus, como fiz até agora. Continuarei defendendo tua cau­sa perante meu irmão. Mas não queiras que minha utilidade compreenda mais parcelas que as que Roma lhe atribuiu.

Por que fazes isso por mim? Como podes me dar o bem em troca do mal?

Ela sorriu, triste mas irônica.

— Porque me chamo Otávia. E sou romana.

 

Porque era Otávia e era romana não chorou quando os escravos embalaram as últimas antiguidades gregas, as es­culturas e cerâmicas que, durante três anos, constituíram sua única companhia no palácio confiscado. Não chorou por suas lembranças, nem porque, no jardim, já começassem a bro­tar as plantas cuja floração não chegaria a conhecer. Con­templou pela última vez os telhados de Atenas, os frontões de seus templos prestigiosos, as colunas de suas ágoras pro­fanadas. E decidiu que o tempo só levava o que era seu.

As antiguidades de Antônio não viajaram para Roma, e sim para Alexandria. Otávia imaginou por um instante o prazer da culta Cleópatra quando lhe mostrassem, uma a uma, as obras-primas que rodearam a solidão da esposa de seu amante. Não duvidou que algum dia acabariam rodean­do os espetaculares fastos das noites de Antônio. Não per­mitiu, contudo, que sua dignidade se rebaixasse ao ponto de invejá-lo. Antes, pôs certo humor ao pensar que, naquelas estátuas de divindades gregas, Antônio encontraria modelos adequados para os disfarces de que tanto precisaria nas in­termináveis bacanais de sua amada cidade.

Sorria com essa idéia, quando o formoso Adônis che­gou, acompanhado do amigo Fedro. Embora a intimidade do primeiro o autorizasse a mostrar-se espontâneo com sua senhora, o pobre jardineiro parecia mais intimidado e não se atrevia a erguer os olhos do chão. Tinha, ademais, o as­pecto de um pastor, e sua túnica cinzenta contrastava com a colorida ostentação do amigo.

Que felicidade ver sorrir de novo a benquista Otá­via, a quem todos os deuses...!

Otávia apressou-se a interromper o que, presumivelmen­te, ia ser um extenso ditirambo em honra de suas virtudes. Ao mesmo tempo, pegou da mesa um pergaminho enrolado com uma fita escarlate e colocou-o nas mãos de Adônis.

Não me presenteies com tua retórica, pois te conhe­ço. Só me resta uma noite nesta casa e não quero passá-la ouvindo tuas tolices. Apontou para o pergaminho com um gesto enérgico. Lê isso e depois fala.

Adônis fitou-a com uma expressão travessa.

Não preciso ler, pois conhecemos o conteúdo. Otávia ficou perplexa.

És capaz de conhecer de antemão uma surpresa tão importante... algo que não acontece todos os dias?

É certo que não acontece todos os dias uma dama romana conceder a liberdade a dois pobres escravos; mas acontece todos os dias essa dama ser maravilhosa porque se chama Otávia, e acontece, ademais, todas as horas eu ser mui­to linguarudo, como sabes e muitas vezes me censuraste. Mas também é certo que, em compensação por esse defeitinho, sou limpo como os jorros de ouro, sei me exprimir, toco cí­tara divinamente e leio em voz alta, com boa entoação em latim e formidável em grego. Ademais, sou destro em...

Chega. Vais passar o resto da tarde recitando tuas virtudes?

Não vou estar sempre cantando as tuas. Alguma vez tinha de caber a mim.

Nota-se que já és livre, pois ficaste deslinguado. Dize-me de uma vez como soubeste que eu vos tornava libertos. E fala breve, que serás duas vezes excelente.

Mais curto, impossível. O escrivão a quem ditaste o documento contou ao mordomo de serviço; o mordomo de serviço disse para a cozinheira; a cozinheira é mais lin­guaruda que eu e falou para o tropeiro, que encontrou meu amigo trabalhando no jardim e lhe contou. E Fedro, aqui presente, correu a minha procura chorando como uma Níobe ao perder os filhos, e me contou. Então eu também me pus a chorar (porém muito mais como Fedra quando morre Hipólito), e nós dois derramamos tantas lágrimas que até os peixes do tanque morreram por excesso de bebida.

Assim continuou falando até que a nobre Otávia não pôde reprimir o riso e foi ingressar na alegria dos amigos.

Vejo que fiz bem, pois a alegria te deixou louco.

E vejo que a alegria voltou a esta casa, desde que meu senhor Marco Antônio foi para a guerra, em boa hora. E, como intuímos que a alegria viajará contigo a Roma, que­remos te fazer uma proposta. Por que ris, nobre Otávia?

Porque ainda ontem teria sido uma súplica. Mas, se te sentes com autoridade para me propor um negócio, bem-vindo sejas.

Adônis trocou um olhar de inteligência com o rústico Fedro.

— Meu amigo, aqui presente, não falará, porque é tí­mido como um camelo órfão e, além disso, demora para se acostumar com sua nova situação. Mas falo eu em nome dos dois e de outros mil, se houvesse; e como sei que arruinamos teu prazer com a surpresa, vamos te dar outra, maior ainda. Não queremos nos separar de ti. Para sermos mais exatos, eu não quero me separar de ti e Fedro não quer se apartar de mim, o que significa, por extensão, que não quer se afas­tar de ti, que estou envolvido. Explico-me?

— Não, mas no mesmo. Prossegue.

Queremos a liberdade, sim, porque posso ser linguaru­do e um pouco retórico, e meu amigo aqui, dependendo das vezes, é algo gago, mas tontos não somos. Por isso, uma vez livres, posto que gostamos de ti e não poderíamos viver se­parados de ti, como já disse antes e, se quiseres, posso repe­tir... Otávia apressou-se a negar com a cabeça. Pois, verbi gratia do expresso, oferecemo-nos para que nos leve contigo para Roma na qualidade de trabalhadores remune­rados, isto é, com uma paga que, sem ser opípara, seja es­plêndida e nos permita viver, se não com luxo, pelo menos com folga. E que, ao chegarem os dias faustos, possamos vestir nossas melhores roupas e exclamar com alegria: "Va­mos de mãos dadas receber o que a nobre Otávia nos paga".

A dama conheceu um momento de ternura, ao mesmo tempo que se envergonhava por não ter pensado também na­quela solução.

És realmente atrevido. Como queres cobrar por teus serviços se és um desastrado e teu amigo gagueja?

Teu raciocínio tem asas curtas disse Adônis. Primeiro, porque ofendeste o pobre Fedro, de quem gosta­rias mais se conhecesses a doçura que emana de seu trato. Segundo, porque confundes ofícios de uma forma que, admirando-te como te admiro, nunca teria suspeitado. Que terão a ver as têmporas com os peitos de uma verdureira do Pireu? pergunto. Meu amigo gagueja, mas, como não o em­pregas para que recite os versos do imortal Homero, e sim para que tenha teu jardim como um verdadeiro primor, te­rás de me dizer o que pode te importar sua gagueira. E eu posso ser um desastrado, mas, como não vais me contratar para que cuide de teu jardim, e sim para que leia os versos do imortal Homero, terás de me explicar em que meu desjei­to te incomoda. Atentando bem, Fedro e eu somos duas jóias, de modo que, se nos empregares aos dois, farás um bom ne­gócio. Direi mais: os efebos gregos são de uma utilidade ina­preciável para qualquer dama distinta. Embora Fedro seja um pouco grosseiro e prefira os jogos da palestra, sempre atentei muito para as coisas da moda e posso te aconselhar sobre a túnica que combinará com teu véu de festa, o pente que ficará bem com os brincos, ou se esta pintura ou aquela espessura das sobrancelhas... Estás vendo quanto ganhas per­dendo dois escravos. Tenho dito.

— E disseste demais. És capaz de aborrecer as próprias pedras. Tomai vossa liberdade de uma vez e deixai-me. Te­nho muitas ordens a dar antes da partida.

Recolheu as dobras da túnica e dispunha-se a sair em direção às dependências internas, quando uma ação inespe­rada do jovem jardineiro a reteve de pé, imóvel, junto da mesa. É que Fedro, silencioso até então, Fedro, que não se atrevera sequer a fitá-la, lançou-se a seus pés e, pegando-lhe a mão, beijou-a várias vezes, com o rosto comovido por um arroubo de ternura.

— Nós te amamos — disse. — Te amamos. Adônis avançou alguns passos e apoiou a mão no om­bro do amigo, como se quisesse protegê-lo de todos os males.

— Perdoa-o, nobre Otávia. É sua forma de expressar o que eu tentava dizer com mais adornos. Que ninguém se portou conosco como tu durante os útimos anos.

— Ninguém, Adônis?

Fedro só tem suas ferramentas de jardinagem e a mim. Eu só tenho minha pobre cítara e Fedro. Certa oca­sião, tivemos um cachorro branco de manchas pretas, mas ele morreu de velho e tornamos a ficar sós.

O que não havia conseguido o corpo de seu amado es­poso ardendo na pira funerária, o que não conseguiram seus filhos ao nascer, obtiveram-no os dois rapazes gregos, ajoe­lhados a seus pés. Chorou, sim, a nobre Otávia. Sua reco­nhecida autoridade, sua fama e seu prestígio ruíram ante um par díspar e, quiçá, extraordinário. Um efebo loiro e formoso, de modos refinados, e um jovem rústico, igualmente formo­so, mas de uma beleza que lembrava o modo tosco das mon­tanhas.

Quando a emoção passou, Otávia decidiu que os leva­ria para Roma, e os dois jovens se abraçaram e, sem o me­nor recato, puseram-se a saltar, enlouquecidos, no mármo­re finíssimo daquele palácio que logo ficaria longe.

Talvez envergonhada das próprias emoções, talvez ten­tando recuperar seu prestígio, Otávia brincou:

Não vos faltará trabalho, com seis crianças em ca­sa. Isso se meu senhor não resolver fazer mais seis, quando voltar de suas conquistas....

Não haverá crianças mais bem cuidadas. Quanto a teu jardim de Roma, Fedro fará que seja tão bonito quanto a própria morada da deusa Flora.

Assim transcorreram as últimas horas de Otávia no pa­lácio que fora confiscado por Marco Antônio, procônsul de Roma em Atenas. Transcorreram, sim, repartidas em lentos olhares para os cantos que podiam avivar algum sentimen­to: o nicho das deusas tutelares, as elegantes colunas do átrio, os triclínios, sempre vazios, da sala de banquetes. E as cria­das começaram a apagar as lâmpadas de óleo e logo se fez a escuridão nos vastos salões.

Quando já terminava a noite, quando começavam a can­tar os galos da madrugada, preparou-se a saída.

Enquanto Otávia e as mulheres arrumavam as crianças para a longa viagem, Fedro e Adônis encarregaram-se de em­balar cuidadosamente seus pertences: umas tantas ferramentas de jardinagem e uma cítara envelhecida. E também um osso de madeira que o hábil Fedro talhara com as próprias mãos a fim de jogar para o cão branco de manchas pretas.

Quando, já na viagem, Adônis mostrou o osso a sua se­nhora, ela estranhou.

— Convém guardar sempre alguma recordação do que amamos, nobre Otávia. Pois dizem que a memória é traiçoeira e, se faz cúmplice do tempo, apaga tudo.

Foram buscar Fedro no jardim. O jovem manifestara seu desejo de levar certas sementes gregas para que flores­cessem no jardim dos Octávio, sob o benigno céu de Roma. E viram-no cabisbaixo, segurando um pequeno saco e cho­rando de novo, porque não veria mais florescer, naquela pri­mavera, as flores que ele mesmo plantara.

Adônis também se emocionou ao despedir-se da caba­na miserável que tinham compartilhado com o cão. E assim soube, pela primeira vez, que o homem vai deixando frag­mentos dispersos de sua existência ao longo de caminhos ines­perados. E que só a memória é capaz de restituí-los afinal, no supremo balanço dos amores.

Otávia, contudo, não olhou para trás. Para ela, o jar­dim estava cheio de morte, o palácio infestado de vazios, Ate­nas imersa no nada. Só restavam com vida seus três filhos, seus dois amigos, as mulheres e os soldados que Marco An­tônio lhe deixara como escolta. Só restavam com vida ela pró­pria e os seres que levava para Roma.

Quando ainda estavam no pórtico, esperando a chega­da dos carros e das liteiras, Adônis descobriu que sua senhora olhava para Fedro com uma luz estranha no olhar. Interessando-se o efebo por seus pensamentos, ela respondeu:

Fui educada no culto da perfeição e há certas coisas que não consigo entender...

Quais são essas coisas, nobre Otávia?

Não sei expressá-lo. Além do mais, não gostaria de parecer brusca... Amas realmente Fedro?

Mais que a minha própria vida.

Mas ele é gago.

Se não fosse gago, não seria Fedro.

Então o segredo do amor consistiria em amar um ser apesar de seu defeito...

Em todo caso, o mérito de Fedro não reside em sua gagueira. Compreendes, nobre Otávia?

Os carros partiram de Atenas, e o sol suave do inverno grego surpreendeu-os nas agrestes montanhas que levam a Corinto. Faltavam muitos dias, muitas pedras, muitas mu­danças de lua lá na noite para chegar em casa. Os caminhos puseram pó em seus rostos e as pousadas, piolhos em suas roupas. Todavia nunca se viu a nobre Otávia sorrir com tanta freqüência, nem o rústico Fedro falar com maior fluidez, nem a cítara de Adônis tocar mais afinada. Fluíram suas pala­vras ao longo da viagem, recuperando as que, em outros tem­pos, haviam forjado a grandeza daquela terra e enobrecido os insignes caminhos de sua arte...

 

           Se vires Amor errando

           pelos altos caminhos, detém-no:

           é meu escravo que escapou...

 

Palavras imortais da Grécia! Adônis ressuscitava-as para solaz e devaneio da mais bela de todas as senhoras.

— Chamava-se Otávia. E era romana.

 

               LIVRO TERCEIRO

               CESÁRIO

 

Chegaste com teu encanto indefinido. Poucas linhas somente se encontram na história sobre ti... (...)

modelei-te belo e sensual. Minha arte confere a teu rosto a beleza atrativa de um sonho.

  1. Cavafis, Cesário

 

Quando todos acreditavam que o tempo do esquecimento já estava consumado, chegou a Alexandria um mensageiro que solicitava ser recebido pela rainha com a maior brevida­de possível. E, tendo o camarista comprovado que era um soldado de Roma, supôs que a rainha Cleópatra podia con­siderar urgente qualquer notícia que chegasse de Otávio. ("Com quem, se não ele, poderia eu tratar?", dissera ela pró­pria três anos antes.)

A mensagem, contudo, era de Marco Antônio e não pro­vinha de Roma, nem sequer de Atenas. Chegava de Antio­quia, na distante Síria, onde, segundo as últimas notícias, o procônsul preparava uma campanha contra os partos.

Qualquer mensagem de Antônio pode esperar por to­da a eternidade disse a rainha, tentando parecer implacá­vel. Precisará de cerveja, como sempre. Na verdade, não seria bem-visto se a rainha do Egito acudisse para abastecê-lo depois de três anos e meio de desprezos e rejeições.

A rainha pintava cores ousadas nas faces de um mane­quim de cera que reproduzia suas feições. Não era uma ati­vidade completamente nova entre as que a ocupavam todos os dias. Conhecedora da importância da beleza em suas re­lações com os enviados das altas esferas, aprendera a criá-la onde não existia. Ademais, educada em duzentos anos de pen­samento alexandrino, sabia valorizar a teoria tanto quanto a prática. De maneira que um jovem escrivão ia anotando suas impressões, enquanto a harpa de Ramose soava como uma deliciosa melodia de fundo que, ao unir-se às palavras da rainha, gerava uma canção referida à beleza.

O ateliê de Cleópatra continha o mais secreto de sua in­timidade, estando o acesso reservado aos muito iniciados em seus interesses. De fato, só a acompanhavam suas damas e um reduzido grupo de artesãos especializados em perfumes e cosméticos. Com eles experimentava todo tipo de unguen­tos, cremes e maquilagens: delicadas unturas, exóticos xaro­pes, tênues polvilhos, raríssimas pinturas que aplicava sobre máscaras e manequins de cera, buscando novos resultados, anotando os acertos ou desaconselhando os mais banais. Com a precisão do cientista e o gênio repentino do artista, iam apa­recendo sobre a cera os artifícios destinados a projetar sua mensagem de fascinação, uma vez aplicados ao rosto de Cleópatra.

Não era estranho que trasladasse alguns desses experi­mentos para os livros de cosméticos que tanto êxito alcança­ram entre as damas de Roma, ansiosas por conhecer os se­gredos da egípcia, embora em público se permitissem vituperá-la como a mais execrável das meretrizes. Assim pagam as hi­pócritas matronas por Cleópatra comunicar em seus escri­tos mil anos de experiência na beleza, inapreciável herança de quantas rainhas teve o Nilo!

Naquela tarde em que o mensageiro de Antônio chegou — uma tarde que remetia a outra, tão distante no tempo —, Cleópatra abandonou suas distrações habituais e encerrou-se em suas dependências privadas. Temia que a recordação do que foi seu amante inesquecível ainda tivesse o poder de feri-la.

Depois, no entanto, suas damas comentaram que sequer chegou a alterar-se. Ao contrário: parecia dominada por uma intensa sensação de orgulho. E em seu foro interior celebrou o fato de existir entre as maravilhas do ser humano aquela de poder reagir com indiferença ante as coisas que outrora ocuparam as parcelas mais importantes do sentimento.

Elogiou a si mesma. Ato contínuo, decidiu que a prova da impaciência estava superada; assim, pois, não era neces­sário infligir ofensas gratuitas ao mensageiro. De maneira que lhe concedeu uma audiência, adiada só pelas horas que decidira dedicar ao ócio.

Um ócio que, de qualquer modo, voltava a estar cheio de intensidade. Pois consagrava-se a vigiar os progressos do ser que ocupara em sua alma o lugar de Antônio: os pro­gressos, cada dia mais espetaculares, do príncipe Cesário.

Onze anos, já! — exclamou, enquanto examinava os re­latórios dos diferentes mestres de seu filho. E, voltando-se para Sosígenes, acrescentou com um sorriso triste: — Os três últimos transcorreram como prognosticaste. Um vôo apenas. Um suspiro.

O tempo, que é implacável, também tem piedade. E, para oferecer alguma compensação a seus desaires, faz que o mau se vá um dia, como se foi o bom.

Aceita inverter teus conceitos, e não serão tão con­soladores. Coloca-os assim: "Se a dor se esquece, sendo tão forte como é, que não há de acontecer com a pobre alegria, que é tão frágil?"

Entregaram-se a jogos de palavras que colocavam o bri­lhantismo como companheiro imprescindível da inteligência. Trocaram silogismos, brincaram de circunlóquio, esmiuça­ram o fundo de uma metáfora... E os brancos muros da ci­dade sorriram ao comprovar que seu espírito não se perdia.

Mas, em meio àquela retórica, Cleópatra deixou esca­par um suspiro de tristeza.

Quando me comunicaram a chegada desse mensa­geiro tremi por um instante, pois temi que fosse de Otávio.

Não era mais lógico tremer ao saber que era de Antônio?

Pobre Antônio! Ele é apenas uma lembrança contra a qual aprendi a lutar. Mas Otávio é uma ameaça que conti­nua combatendo contra mim... — Apertou com força a ca­beça, como se um temor contido durante longo tempo su­bisse de uma vez à superfície. — Oh, Sosígenes! Enquanto Otávio viver, sei que meu filho corre perigo.

Quem, em toda Alexandria, se atreveria a fazer-lhe

mal?

Qualquer emissário de Otávio. É um pesadelo que me ameaçou durante muitas noites! Vejo Cesário orando diante da gigantesca estátua de Serápis. De repente, uma mão misteriosa a empurra, ela cai com todo o peso e esmaga meu filho. Consultei meus advinhos, e todos concordam em di­zer que é a mão de Otávio.

Não é necessário que prossigas com tuas superstições para chegar a tal conclusão. Nem que estranhes a fúria de Otávio. Ele se considera o filho de César. E tu, como é lógi­co, continuas afirmando ante o mundo que o verdadeiro her­deiro de César é teu filho.

E continuarei repetindo. Conheceste a vontade de Cé­sar. Acalentava o projeto que, mais tarde, Marco Antônio esteve a ponto de retomar. Queria que Roma se estendesse por todo o Oriente e que nosso filho, o verdadeiro, o legal ante os deuses, governasse esse imenso império do trono do Egito, de Alexandria. Nunca falou desse sobrinho que ago­ra se faz chamar César Otávio!

É lógico. César só falava de si próprio. Não creio que pensasse em nada mais quando se referia a seu projeto. Acaso não foi a ambição que provocou sua morte? Queria ser rei de Roma. Queria, mais tarde, fundar uma dinastia nascida dos Júlios e dos Ptolomeus. Ele, sempre ele em pri­meiro lugar! E, em seguida, a parte que pudesses levar. Em nenhum momento falava de Roma. Em nenhum momento se referia ao Egito.

É possível que tuas palavras não careçam de verda­de. Mas esta não deve excluir minhas ambições para Cesá­rio. Se nem sequer o medo consegue vencê-las, como o faria um erro de César? Quando Otávio se atrever a prejudicar meu filho, darei razão a seus concidadãos, pois garanto que posso ser a Serpente do Nilo, se me atacam... Que se faça chamar César Augusto, se isso lhe dá mais presunção para se dirigir a um Senado de patrícios corrompidos! Mas meu filho é grande por dois nomes, grande de Roma, porque é o Pequeno César, grande do Egito, porque é Ptolomeu. — Um súbito estremecimento contradisse sua apaixonada de­claração. — E no entanto tenho medo, Sosígenes. Nunca o tive por mim, e agora ele me consome por meu filho.

Tentou dissimular aquele arroubo quando entraram em tropel algumas de suas damas. Foi um alegre vaivém que in­vadiu o aposento. Os risos misturavam-se ao suave murmú­rio das túnicas de linho, ao tilintar dos colares e a todas as cadências de um vestuário nítido, harmonioso, como que des­tinado a converter cada movimento das damas em um ins­tante musical.

Para completar, entrou Ramose, que se instalou no ou­tro extremo da estância, com a reserva de quem procura que sua música constitua uma amorosa companhia e nunca uma insistência não desejada, por ser próxima.

Carmiana pôde intuir o pesar que acabrunhava a rai­nha do Egito, pois correu até um dos terraços que davam para a parte posterior do palácio e dali exclamou:

— Senhora! Vem ver o príncipe! Está no pátio de armas.

Cleópatra ajudou Sosígenes a levantar-se. Uma vez no terraço, apoiaram-se na robusta balaustrada, presas do te­mor por um instante.

Cesário montava um potro negro, cujas rédeas eram se­guras por um capitão da guarda que procurava explicar-lhe as diferenças entre o ritmo preciso do trote e o ímpeto do galope.

Mas o interesse, a diversão do príncipe centrava-se nos saltos de obstáculos. E seus olhos desviavam-se para a vara que os escravos colocavam, dois terços acima do solo. Em seu rosto resplandecia a tentação do perigo, como o sol que lhe banhava as espáduas desnudas. Pois trajava-se segundo a moda tradicional: o saiote plissado como única peça, tam­bém como alívio para os rigores do verão alexandrino.

— É esse pobre menino o inimigo mortal de Otávio, não eu!

Ao descobrir que o medo adquiria cotas desproporcio­nadas em suas palavras, Sosígenes acariciou-lhe os cabelos, como costumava fazer quando ela ainda era criança e tre­mia antes de adotar qualquer decisão que suas altas respon­sabilidades exigissem.

Esse pobre menino será um grande príncipe — sussurou o ancião com infinita ternura.

Certo. Não há mais formoso em todo o Egito. Para sua idade já é um atleta consumado. Viste com que fúria ar­remessa o dardo? E se o visses dirigindo o carro de guerra! Desafio-te a encontrar um auriga mais veloz e mais garboso...

E eu te desafio a encontrar um amor mais incons­ciente que o amor de mãe...

Nisso demonstras que és homem. Os homens se em­penham em associar o amor de mãe com a estupidez. Mas conheci pais tão estúpidos que, a seu lado, o amor de mãe é logística pura.

A rainha do Egito não é precisamente a sensatez na maternidade. Acaba de dizer que, à noite, desperta sobres­saltada pelos temores que seu filho lhe inspira. O que não evita que o deixe realizar os exercícios mais perigosos.

Não creio que montar a cavalo ou lutar com um ra­paz da mesma idade na palestra seja muito mais perigoso que os treinos a que se entregavam no passado os príncipes de sua idade. Até hoje não manifestou o desejo de caçar leões ou hipopótamos.

Cleópatra reparou em um dos terraços superiores. Apoia­do na balaustrada, um jovem também vigiava as evoluções do príncipe. Era uma figura conhecida por sua habitualida­de e amada por sua dedicação absoluta. Era a sombra de Ce­sário, a que sabia colocar-se sempre atrás de sua pessoa, em um segundo lugar humilde e pudoroso. Mas era também o gênio bom que sabia preceder seus passos para guiá-lo e, se chegasse o momento, cobrir com o próprio peito qualquer ataque que a vida lhe enviasse.

Seu aspecto mantinha-se invariável: a cabeça raspada, os traços serenos, o olhar doce e o sorriso de compreensão colocado ao alcance de todos os humanos. Mas, antes de tu­do, à disposição do príncipe.

Sosígenes continuava insistindo em suas queixas. Dema­siado repetidas já, na opinião de muitos. Persistente insis­tência da velhice, segundo os demais. E, para Cleópatra, outro aspecto arraigado do homem que contribuíra em maior grau para fazê-la como era.

Às vezes penso se o príncipe não dedica tempo de­mais ao exercício, descuidando das disciplinas da mente disse o ancião, iniciando, ao mesmo tempo, uma de suas tem­pestades de tosse.

Cleópatra apontou para o terraço onde se encontrava Totmés.

Não és o único que pensa assim. Nosso bendito sa­cerdote de Isis está, hoje, com um aspecto horrível. Sem dú­vida, prefereria ter Cesário sentado agora a sua mesa e fa­zendo cálculos.

Ao simples nome de Totmés, as damas da rainha puse­ram-se a rir com picardia. Trocaram opiniões ao ouvido; e Cleópatra esteve a ponto de repreender uma delas, pois dei­xara cair seu melhor vestido de plumas de avestruz.

Que aborrecido é o sacerdote! comentava íris, en­quanto arrumava a coleção de pentes, trabalho que fazia parte de seu cargo palaciano.

Pode ser aborrecido riu Carmiana. Mas tam­bém é muito bem-apessoado.

Não fales assim diante de Bálkis. Dizem que as mu­lheres da terra dela são ferozes como panteras.

A aludida Bálkis dirigiu-lhes um olhar de insolência. Ne­nhum rubor nas faces, maquiladas com cores tão espetacu­lares quanto as da própria Cleópatra. E era tão formosa que sua beleza excedia a própria moldura e surgia pelos olhos em forma de violência semelhante a um rio transbordante.

Suas águas dirigiam-se para Totmés. Suas águas fluíam para o terraço com a única intenção de envolvê-lo. Mas a atitude do jovem sacerdote, absorto apenas na contempla­ção de seu príncipe, convertia-as em águas paradas.

O que acontece com Bálkis? — interessou-se Cleó­patra, dando o braço a Sosígenes para voltar a suas depen­dências. — Vejo-a muito agitada ultimamente.

Amores — respondeu íris, sem deixar de rir.

Estou segura de que a causa é Apolodoro — disse a rainha. — E ele corresponde. Suspira cada vez que a vê.

As damas continuaram trocando balbucios, risadinhas e confidências. Nenhuma, porém, atreveu-se a desmentir a rainha. Alguma até achou que, fosse certa a suposição, Cleó­patra se mostrava magnânima em aceitá-la. Afinal, ninguém ignorava que o formoso capitão consolara seu leito em mais de uma ocasião.

Amores! — exclamou Sosígenes, tomando assento junto da biblioteca privada de Cleópatra. — Desde quando a rainha do Egito se interessa mais pelas frivolidades de uma aia fenícia que pela educação de seu próprio filho?

Desde que os conselheiros, que antes eram úteis e efi­cazes, passaram a se converter em um pesadelo que, como Otávio, assaltam os sonhos de Cleópatra só para enchê-la de reproches. Agora mesmo dizias que Cesário dedica tempo demais ao exercício...

Afirmo que, ao fazê-lo, está roubando horas ao es­tudo. E lembro-te que o símbolo da maturidade de nosso povo foi representado pela sábia reflexão dos escribas, não pela brutal exuberância dos gladiadores...

Hei de ser, eu, humilde discípula, quem te há de lem­brar a Históriat bom Sosígenes? Se os livros da Grande Bi­blioteca não mentem (e, se mentem, é porque trabalharam bem os bárbaros de César ao queimar alguns), se as escultu­ras de nossos ancestrais exprimem verdades e não simples van­glorias, houve no passado um faraó que foi muito admirado por ser precisamente um atleta ideal. Forte de braços, am­plo de peito, ginete formidável, auriga excelso. Seus escri­bas cantaram-lhe a fama através dos milênios, mas o que des­pertou a admiração do povo, na longínqua Tebas daquele século, foi a galhardia de um corpo e o vigor de suas proe­zas. Por isso te digo, conselheiro, que converter nosso Cesá­rio em um modelo de força e garbo é uma manobra política tão necessária quanto dotá-lo de cultura e inteligência.

Quanto alento estrangeiro tens em tuas idéias!

Ainda que assim fosse... Que outra coisa é Cesário? Que outra coisa sou eu? Sangue grego até a última gota, san­gue estrangeiro. O mesmo que palpita nas artérias de Ale­xandria. Pedaços do Egito... inesperados para o próprio Egi­to. Como este país podia sequer sonhá-los durante os milê­nios de isolamento que lhe deu toda a sua força, que lhe im­primiu todo o seu caráter? O nosso é outro, Sosígenes; é o do hibridismo, o da bastardia, o dos eternos deslocados. No caso de Cesário, o sangue se turva mais ainda, pois leva o de César. Não te esqueças.

Todos, mestres conselheiros, sacerdotes e até artis­tas, todos nós estamos lutando para que desapareça esse com­ponente estrangeiro do sangue do príncipe...

Lutam os livros, sim, batalham as idéias que tenta­mos impor-lhe, mas há algo que não deve nos confundir; o sangue serve para alimentar o coração que o recebe, não pa­ra ofuscar o cérebro, que há de saber utilizá-lo em seu pro­veito. O cérebro de Cesário será encaminhado para os no­vos tempos que se aproximam. Tempos que já não se circuns­crevem a uma pequena aldeia do Nilo, por mais arraigadas que vivam ali as tradições. Tempos que decretam a expan­são para o mundo...

O que pretendes, Cleópatra? Os detratores de tua fa­mília disseram amiúde que seu erro consistiu em governar o Egito comportando-se como gregos em Alexandria e co­mo faraós no Alto Nilo...

O centro do mundo pode ser o Egito, mas o Egito não poderá viver isolado. Ao agarrar-nos à glória do passa­do, esquecemos o presente; ao cantar as glórias do Egito, suas vitórias sobre outras nações, esquecemos que muitas delas já nem sequer existem em nossos mapas. Não quero que ne­nhum fantasma, por mais prestigioso que seja, dirija os pas­sos de meu príncipe!

Alexandria vive sumida na intensidade do moderno, no que este pode oferecer-lhe a cada instante. O resto do Egito vive ancorado em tradições que já eram velhas quando as pirâmides foram construídas. São mundos muito opostos. Se chegassem a colidir, o desenlace poderia ser fatal.

— Ao contrário, seria uma colisão salutar. Um Egito adscrito aos novos tempos, mas conservando o melhor dos antigos! Sangue novo inspirado pelo que vem nos sustentando faz séculos! Que melhor empenho poderia desejar um gran­de príncipe ou, simplesmente, um homem jovem?

A proclamação de uma juventude agressiva caiu sobre Sosígenes com a intenção de vencê-lo. O ancião deixou as­somar uma lágrima por tantas horas perdidas, por tantos mo­mentos irrecuperáveis. Ao contemplar, um a um, os objetos artísticos que a rainha reunira para seu prazer naquele apo­sento, sentiu que o arrastavam definitivamente para o lugar do Tempo que não tem retorno.

— Não sei se te dou razão, Cleópatra, porque o dilema que está colocado é o meu próprio. Sou velho e vi muitas coisas, mas nenhuma me ajudou a compreender o mundo co­mo esperei fazê-lo nos verdes dias de minha juventude. Tam­bém poderia dizer que sou um ente ambíguo. Falo do passa­do de meu povo, mas sou tão alexandrino que, ao falar, faço-o em grego. E minhas roupas não indicam outra coisa, se­não um falso cosmopolitismo...

Cleópatra viu-se, então, meio grega, meio egípcia, cara e coroa de uma moeda de ouro destinada a circular pelo mun­do sem se introduzir em seu espírito. Emitiu um suspiro de nostalgia por uma totalidade que nunca chegaria a alcançar...

— Não quis ferir teus sentimentos, fiel Sosígenes. Nem te fazer pensar em coisas que pudessem te machucar. Mas, ao traçar teu retrato, desenhaste o meu, e nós dois chora­mos por Alexandria, acreditando que a louvávamos. Perten­cemos a uma raça em extinção. Nossa alma quer permane­cer nos velhos santuários do Nilo, mas o cérebro se compraz polemizando nas ágoras de Atenas. E, ameaçando tudo, a águia de Roma...

Ficou em silêncio. Este transcorreu no sentido de uma pausa impregnada de melancolia. E apenas Sosígenes atreveu-se a interrompê-la, invocando a tirania das obrigações.

— Na sala do trono espera-te o mundo que um velho amigo deste palácio está forjando...

Cleópatra teve o impacto de uma revelação, não de uma lembrança.

O mensageiro de Antônio! Já terá chegado?

Esta era a hora combinada. Tu o receberás em au­diência oficial?

Sendo romano, não poderia ser de outro modo. An­tônio foi o último dessa raça que entrou em minhas depen­dências privadas. O último que me viu relaxada, como se fosse uma mulher, não uma deusa. Depois de seu abandono, ne­nhum romano há de me ver sem a couraça de minha grande mãe, Isis.

Ordenou a suas damas que preparassem o traje de ceri­mônia. Antes de ausentar-se, Sosígenes encontrou forças para perguntar:

— Ainda pensas em Antônio?

Ela deu de ombros e quis afetar indiferença. Não per­dera, porém, sua nostalgia.

— Não penso nele, mas recordo-o.

Ao dizer isso, conheceu um instante de poesia. Pois di­zem os líricos alexandrinos que a lembrança é como um la­drão que, escondido no mato, espera a passagem do cami­nhante indefeso para surpreendê-lo.

 

O talante brincalhão de Amor empenhou-se em uma tra­vessura excessivamente ousada: obrigar o Tempo a voltar so­bre seus passos e acender, um a um, todos os fogos da lem­brança. Tudo isso compreendido em um rosto. Tudo isso re­cobrado em uma barba cor de trigo.

Pois, quando o romano ajoelhado a seus pés levantou a vista para dirigir-se a ela, a rainha instantaneamente reco­nheceu Enobarbo. E, mais uma vez, o encontro com uma pessoa — qualquer pessoa — que houvesse compartilhado antanho as horas de seu amor ao lado de Antônio devolvia-lhe a condenação fatal da memória.

As pessoas, como os lugares, tinham essa virtude... ou essa desgraça. Guardavam o eco de uma voz que, embora escondida, não estava morta. E aquela voz era uma ameaça. Podia soar de um momento para o outro, sem advertir, ata­cando de surpresa e ferindo mais, se é possível, por pegá-la desprevenida.

Assim é a memória do amor perdido. Parece que se foi, mas retorna. Parece que perdoou, mas condena.

O fiel Enobarbo, o grande amigo, recordava-lhe o melhor de Marco Antônio. Ela, no entanto, conseguira esquecê-lo, à força de lembrar suas abominações. Assim, pois, obrigou-se a pensar: "Que não regresse a mim a doçura do amante. Que não volte seu encanto prodigioso. Fora a ternura! Longe de mim o carinho! Só hei de recordar um bêbado infiel, um déspota, um homem convertido em uma velha acovardada".

Depois de cumprimentar Enobarbo com uma gesticula­ção ausente que a convertia em máscara, ficou de pé diante do trono. E, em tom sarcástico, disse:

— A honra que nos dispensa Antônio enviando seu me­lhor amigo será, sem dúvida, para comemorar o magno ani­versário...

— A que aniversário te referes?

— Ao que comemora seu abandono. Seguindo o calen­dário juliano (vês que, até nisso, sou dedicada a César), com­provo que se passaram três anos e sete meses desde que An­tônio foi para Roma, prometendo retornar a toda pressa. Des­de aquela data, não se dignou sequer a lembrar que, em al­gum lugar do mundo, existe uma cidade chamada Alexan­dria. Onde não foi tão maltratado, segundo me dizem.

— Sente uma saudade desesperada da cidade.

— Sinal de que se lembra dela. Compraz-me enganar-me a esse respeito. Mas contam as crônicas malévolas que Antônio deixou dois filhos nesta cidade... pelos quais não manifestou o menor interesse.

Minha rainha...

Tenho tratamento de rei. Não te esqueças.

O emissário começava a conturbar-se. Sabia que uma Cleópatra brincalhona era tão temível quanto uma Cleópa­tra furiosa.

Não consigo falar, se te trato no masculino!

Será então porque meu latim, que aprendi, é melhor que o teu, que é de raça. Enfim, não te obrigarei a exercitar-te diante do trono do Egito. Trata-me como quiseres. Meu pleito é com Antônio, não contigo.

Antônio, meu amigo e senhor, não quer pleitos. Li­mita-se a te chamar. Entendes, Cleópatra? Ele te chama!

Então é porque quer se converter em meu senhor, além de teu. Eu deveria ordenar que te flagelassem por teres insinuado tal coisa.

Não podes. Sou cidadão romano. Não um escravo de tua corte.

Os escravos da corte de Cleópatra são mais livres que qualquer cidadão da Roma de Otávio... Aliás, que dirá aquele jovem colérico se souber que o aguerrido Antônio voltou a cair nas mãos da rameira egípcia?

A ambigüidade de suas respostas aturdia o sensato ro­mano. Sempre lhe ocorria assim, em Alexandria! Aquela gen­te era incapaz de formular uma pergunta direta ou respon­der com uma clara negativa. Especulavam constantemente com as palavras, retorciam as idéias, punham tantos ador­nos nos conceitos que os tornavam incompreensíveis.

Não sei por que falar de Otávio — disse Enobarbo. — Antônio é senhor de decidir seu destino.

Antônio é o cão de Otávio. Sempre faz o que ele di­ta. Só espera uma ordem sua para ir atrás dele abanando a cauda de satisfação.

Em todo caso, seus latidos tornaram-se queixas.

Não tem a nobre Otávia para consolá-lo?

Mandou-a de volta para Roma faz tempo.

Um sobressalto inesperado assaltou a impávida expres­são da rainha. Sosígenes, que se gabava de conhecê-la, pôde captá-lo no mesmo instante. Mas o romano, pouco dado a astúcias, deixou-o escapar. E Cleópatra soube recobrar sua autoridade sem que se visse desmentida. Nem sequer por aquele arrebatamento, tão fugaz quanto intenso.

Dizes que a mandou de volta para Roma, e é cer­to que Roma está muito longe da Síria. Mas teu senhor An­tônio conhece o modo de achar provisões em qualquer momento.

Para isso é militar — disse o outro, com expressão tosca.

Vejo que não entendes minha sutileza, e nisso és mais militar que o próprio Antônio. Quis dizer que teu senhor pode se cansar outra vez de Cleópatra e encontrar alguma Otávia síria. Teu dono gosta de deixar as coisas pela metade. Do mesmo modo que com os prazeres da boa mesa. Ele gostava de comer a mancheias, mas nunca do mesmo prato. Precisa­va dispor de vários ao mesmo tempo.

A grandeza de Cleópatra se equipara a um manjar?

Poderia equiparar-me ao mais delicioso, mas não é isso que eu esperava de tua compreensão. Quis dizer que a grandeza de Cleópatra se viu obrigada a passar uma vez pe­la humilhação de ser prato de terceiro uso. Nem Cleópatra, nem o Egito podem tolerar que isso aconteça de novo.

O rosto do soldado ensombreceu-se. Quis exprimir a mensagem desesperada de que era porta-voz, porém a rai­nha dourada representava uma parede demasiado resisten­te. Não só o fitava do alto de uma situação privilegiada, co­mo ainda lhe falava com um senso de humor excepcional.

"Dize a Cleópatra que preciso desesperadamente de­la." Assim se exprimiu meu senhor Antônio.

Precisa de meus barcos, meu ouro e meu exército.

"Faze-a saber que minhas noites sem ela não são na­da...", disse.

A inteireza da esfinge vacilou por um instante.

Acrescentou mais alguma coisa?

"Meus dias sem ela estão vazios", acrescentou.

Em que tom disse isso? — perguntou a rainha, já interessada.

Se ele latisse, como dizias, teria soltado os ganidos de um cachorro que perdeu seu amo.

Então precisa de mim...

Voltou-se rapidamente para evitar que o soldado lhe comprovasse no rosto o alcance de suas próprias palavras. Resistia com todas as forças para que ninguém, nem sequer

Sosígenes, assistisse ao nascimento de uma dimensão ines­perada de si mesma. Todo o seu corpo tremeu ao reviver por um instante o calor do de Antônio em outros tempos.

Era impossível que retornasse aquele calor de um dese­jo perdido no tempo. Nos quase quatro anos que separavam Cleópatra de suas últimas noites de prazer, o corpo de An­tônio perdera todos os privilégios e, talvez, a beligerância. Corpo formoso, sim; masculinidade envolvente, sim; porém, de maneira nenhuma, um caso único. Qualquer oficial da guarda palaciana poderia oferecer-lhe, hoje, o mesmo ím­peto, o mesmo garbo com que Antônio a deslumbrava na­queles dias já distantes.

Cleópatra, se posso invocar a amizade que demons­traste por mim em outro tempo, atende a meu rogo. Volta para Antônio!

Pretendes comover uma rocha? Sosígenes olhava de soslaio, sem acreditar nela.

Vós dois fostes tão felizes! Ou já não te lembras?

— Tanto me lembro que mereceria ser açoitada por is­so. Tanto me esqueci que agora sinto saudade de quando ain­da recordava com mais força. Tanto o quis que é impossível voltar a querê-lo como antes...

Sentou-se no trono e, ante os olhos escandalizados de Sosígenes, deixou de lado as insígnias da realeza. Ato contí­nuo, tirou com as próprias mãos, a coroa dupla, sem espe­rar a ajuda das damas.

Sua cabeleira caiu sobre o vestido de ouro. Seus braços descansaram nos do trono, também de ouro. E sobre sua ca­beça despregavam-se as asas do falcão divino, Horus, espar­ramando mais ouro sobre sua majestade.

— A recordação cansa mais que a política — murmurou docemente. — Se estivéssemos discutindo um assunto de Es­tado, tu me verias de pé, autoritária, dominante. Rainha de ouro e, ao mesmo tempo, deusa! Mas a lembrança me afun­da em uma dor muito vaga e demasiado doce. Não sei o que te dizer que não tenhas dito em tua mensagem. "Antônio te chama, Antônio precisa de ti." O que Marco Antônio quer hoje que sua rainha já não lhe haja dado sobejamente?

Antônio te pede, te suplica que te reúnas a ele em Antioquia.

Hei de correr atrás dele? riu a rainha. Real­mente é cômico!

Não corras, minha rainha. Navega, simplesmente. Cleópatra e o soldado trocaram um olhar cúmplice. E

Sosígenes celebrou que o senso de humor de romanos e ale­xandrinos coincidisse, por fim, em algum ponto.

Navegar até a Síria! Que teria de estranho? Outros o fazem por prazer...

Não deves descartar o prazer... tratando-se de Antônio...

Enobarbo deu uma risada tão grosseira que Sosígenes se viu obrigado a intervir.

Lembro-te de que estás diante do trono do Egito, e não em uma taberna romana.

Deixa-o, Sosígenes. E vós também. Dispunha-se a sair, deixando Enobarbo sem resposta. Contudo, antes de alcançar a escadaria, acrescentou: Outra vez o prazer que só pode proporcionar a puta do Egito? Ai, Enobarbo! Acre­ditei que, ao ganhar mais anos, Antônio aprenderia a ser mais exigente com a vida. Por minha parte, não me queixo. Vou aprendendo a não esperar dos humanos o comportamento que exigimos dos deuses. Ainda mais o dos deuses que pro­tegem Antônio: o da bebida e o da força... Quererá ele que eu chegue sob o auspício exclusivo da deusa da formosura?

Quer que Cleópatra chegue exclamou o romano, já impaciente.

Cleópatra chegará, eu te garanto. Mas dize a Antônio que, durante a espera, aprenda de cor esta mensagem: "A paixão é irrepetível, o desejo, passageiro. Também o é a ju­ventude. Antônio e Cleópatra já não são jovens. O que po­deriam se dar mutuamente nesta longa hora do crepúsculo?"

Hei de repeti-la assim, com a mesma tristeza que ema­na de tuas palavras. Mas em meus olhos brilhará a alegria, porque são desobedientes e, ademais, estarão anunciando tua chegada.

Quando a audiência terminou, Cleópatra pediu a Sosí­genes que a acompanhasse até a Grande Biblioteca. Enquanto se desfazia de seus trajes de gala, para dar-se melhor à co­modidade da consulta, transmitiu a Apolodoro, seu capitão, a mais extravagante das mensagens.

Procura uma tal Trifena, a que chamam Bitínia, e traze-a diante de mim com urgência...

Minha rainha! exclamou Apolodoro, sem evitar um rubor. Esta mulher é...

Sei perfeitamente quem é. Uma rameira com um cur­rículo que a converte em rainha de sua arte. Traze-a, como te peço...

Descobriu a presença do escândalo no rosto sempre se­reno de Sosígenes. E, em suas mãos, um desjeito que o im­pedia de manejar os documentos com a habilidade habitual.

Apolodoro, evitaremos que o bom Sosígenes tenha de se envergonhar em nome do trono. Dize à rameira que se vista de penitente. O que calará qualquer mexerico.

Quando ficaram a sós, o bom conselheiro adotou um tom decididamente patético.

Sem dúvida foste mordida por um macaco louco ou tomaste tanto sol que teu cérebro secou, como aqueles figos que os judeus vendem...

Detesto macacos. Quanto a meu cérebro, está per­feito. Mas não sei como estará o de Antônio. Assim, pois, necessito tomar minhas precauções.

E hão de ser as de uma rameira?

As únicas de que posso dispor, se meu inimigo se con­verteu em um vulgar sátiro.

Embora tivesse falado com tristeza, pôs grande decisão em suas palavras. Afinal, a própria Ônfale teve de colocar o sexo no lugar do cérebro para reter o poderoso Hércules.

— Acompanha-me, Sosígenes. Preciso conhecer o es­tado atual de Antônio e o lugar que ocupa no mundo.

 

Enquanto Cleópatra caminhava atrás do próprio pas­sado, suas damas consolavam a formosa Bálkis, cujo cora­ção chorava por uma paixão funesta. E o gineceu real enchia­se de gemidos prolongados, que não eram patéticos como os do amor, mas espantosos, horríssonos como os do ódio.

Em vão o cego Ramose refletia, aos sons de sua harpa dourada:

Louca é, na verdade, a paixão, que desvia dessa ma­neira os caminhos das fêmeas em cio e assim as aturde. Pois muita e mui insana confusão cobre os olhos de quem con­verte o desejo em divindade tutelar de seus caminhos.

Falas assim porque teus olhos não podem ver — disse Carmiana. — Falas assim porque nunca soubeste o que é o amor.

Talvez o veja melhor um cego, pois muitas vezes os olhos abertos não conseguem ver claro, por mais que mirem. Apesar de ter nascido cego, contaram-me a beleza das coi­sas muitos homens ilustres, que são os que no passado es­creveram os poemas que arrulho com minha harpa. Meu de­sejo também vive através dos aromas de Alexandria. E por esses aromas sei que Bálkis é mais bela e desejável que todas as deusas de sua terra. Sei que seus cabelos, vermelhos co­mo o fogo, poderiam anular a vontade dos capitães mais gar­bosos desta corte. Embora bastasse citar o nome de um só, de Apolodoro, sim. Pois ele seria feliz se pudesse chamá-la de "irmã de meu coração", como fazem os amantes nas an­tigas canções que não vos cansais de me pedir.

Canta-nos a daquela dama cujos seios se converte­ram em lótus para comprazer melhor as mãos de seu galã — pediu a mais jovem das damas.

Seria inoportuno — replicou Ramose. — No estado em que se acha mergulhada a ardorosa Bálkis, a poesia é co­mo aqueles óleos olorosos, cujas virtudes, longe de ajudar, prejudicam. Pois alimentam o fogo, agigantam as chamas, sem desprender outro perfume que o das cinzas. Não lhe deis calor de amores, já que seu mal precisa da neve das monta­nhas de sua terra.

Mas Bálkis não bebeu água de neve; recebeu, sim, chu­va de chamas. Tanto seu coração se inflamou que foi em bus­ca de Totmés e, aproveitando a ausência do príncipe, abordou-o sem rodeios.

Ministro de Isis disse. Terás consolo para uma mulher aflita?

Isis o tem responde ele, desviando o olhar ante o açoite daqueles olhos verdes que atravessavam seu corpo como setas. Cabe a ela consolar o aflito e castigar quem o aflige.

Tenho ouvido dizer que os deuses andam atarefados demais nestes tempos, por isso delegam seu trabalho a al­guns servidores. Também sei que, se estes são agradecidos, esmeram-se por agradar as mulheres desesperadas, porque, assim, são mais gratos aos olhos dos deuses.

Está na inteligência dos servidores discernir entre a aflição que açoita os humanos e os ignóbeis desejos das cortesãs.

Já choraste de amor por alguma mulher, Totmés?

Chorei, sim, por amor muito maior.

Já beijaste as lágrimas de uma mulher que chorasse de amor por ti?

Beijei as lágrimas que a grande mãe Isis derramou quando achou o corpo desmembrado de Osíris na ilha sa­grada de File. Beijei-as porque, graças a elas, cresce o Nilo e são, portanto, lágrimas de vida, não de morte, como as des­sas mulheres que choram de desejo e levam a desgraça em suas entranhas.

Bálkis sentiu-se desprezada duas outras vezes e voltou a seus aposentos. O desprezo, porém, não fez senão avivar ainda mais seu fervor. De noite abriu o sexo às carícias da lua e, ao recebê-las, sentiu que todo o seu vigor se renovava como as flores dos jardins reais, como a relva que cresce en­tre a lama dos caminhos.

Soube, assim, que era vítima da mais nefasta das pai­xões. E que, por ela, era capaz de chegar ao crime.

 

Deixando para trás um longo corredor de paredes bran­cas que comunicava as dependências privadas do palácio com a Grande Biblioteca, a rainha acedeu a uma de suas salas se­cundárias e, através de novos corredores, cuja intensa bran­cura chegava a confundir a vista, como um labirinto, pas­sou aos arquivos do Estado.

Sosígenes, em atitude dubitativa e quiçá irada, tentava seguir sua rápida progressão. De vez em quando, via-se obri­gado a deter-se — tanto pode o açoite divino chamado gota —, e ela o imitava, em sinal de gentileza, embora não pu­desse evitar um gesto de excitação. Entretanto um diálogo mudo desenrolava-se entre ambos, e o inevitável motivo do mesmo era Marco Antônio. Seu nome soava de novo naquele palácio que conseguira excluí-lo por completo. Seu nome tor­nava a ameaçar. De fato, qualquer adivinho dos que Cleó­patra consultava diariamente poderia prognosticar funestos augúrios a partir de tal reaparição. Embora as palavras da superstição fossem as últimas que Sosígenes estaria disposto a escutar — e menos ainda a atender —, desejou ardente­mente que qualquer daqueles insensatos acudisse com suas magias para exorcizar os possíveis excessos da rainha.

Estranha é a sabedoria alexandrina! Educada na razão, cimentada no justo critério, não impede a si mesma de dei­xar o caminho livre para qualquer elemento que a razão se esqueceu de catalogar.

Só assim era possível que, naquele grande recinto do saber, na biblioteca que catalogava os momentos mais pre­ciosos do pensamento humano, um sábio conselheiro edu­cado na leitura de Aristóteles esperasse com veemência as conjurações de uns feiticeiros negros que tinham a fama de atravessar com facas maléficas o coração dos inimigos do amor.

Quando, em uma das paradas a que o difícil passo da velhice o obrigava, Sosígenes tentou abordar abertamente o tema de Marco Antônio, a rainha revestiu-se com sua más­cara de esfinge, sorriu como ela — isto é, não sorriu — e disse concisamente:

— É uma sorte que os cronistas não sigam os ditames do coração. Se se tivessem refugiado no esquecimento, co­mo fez a rainha do Egito, hoje careceríamos da informação que necessitamos.

Sosígenes limitou-se a assistir, com profundo assombro, aos altos e baixos daquele coração que, afinal, já não era tão jovem para admiti-los.

Antes de penetrar na grande sala de leituras, Sosígenes inclinou-se com extremo respeito — e não menos extrema di­ficuldade — ante um nicho em forma de concha contendo o busto de um ancião que sorria discretamente e lançava bri­lhos de sabedoria através de olhos vazios. Era Zenódoto, o primeiro bibliotecário daquela magna instituição. O homem a quem Alexandria devia a glória de ter sistematizado os dois grandes poemas de Homero, tornando-os mais acessíveis ao leitor moderno.

"Os deuses da sabedoria estão ébrios como o Dioniso que protege Marco Antônio", pensou Sosígenes, com a de­vida saudade de um tempo melhor. "Se destas salas saiu um dia a primeira gramática grega, hoje elas só servem para que as mulheres venham dilucidar seus assuntos sentimentais. A razão da sem-razão, em resumo."

Mas não eram essas as intenções de Cleópatra Sétima. Ou não eram exclusivamente. Com certeza o discreto Sosí­genes também sabia disso.

Alguns jovens que se achavam classificando os volumes de geografia (uma das grandes especialidades da instituição) inclinaram-se respeitosamente à passagem da rainha e de seu conselheiro. Em pleno aturdimento, um deles chegou ao ex­tremo de colocar os braços à altura dos joelhos, como se fa­zia em, tempos passados.

Cleópatra, porém, distava muito de apreciar as frioleiras do protocolo. Com firma decisão, dirigia seus passos às salas onde se conservavam os anais e cronologias da história contemporânea.

Desejava uma relação exata dos acontecimentos ocorri­dos na vida de Marco Antônio durante os últimos quatro anos. O arquivista foi procurar nos numerosos nichos de ala­bastro onde se armazenavam os estojos de couro que, por sua vez, continham a documentação desejada.

Uma vez a sós com Cleópatra, Sosígenes comentou:

— Maus tempos se anunciam, se a rainha perde o con­trole de si mesma ante a simples menção do romano.

Ao contrário, anunciam-se tempos prósperos — disse ela secamente.

Não pode me incomodar que mintas para mim... mas é lamentável que aceites mentir para ti mesma.

Ele precisa de mim. E esta é uma palavra nova em Antônio.

Quando tu precisaste dele, não acudiu em teu auxí­lio. E também era uma palavra nova em Cleópatra.

Tudo quanto concerne ao amor é novo e velho ao mesmo tempo, meu bom Sosígenes. Sempre aprenderemos do amor, porque o amor nunca se apresenta com o mesmo rosto. Seus ensinamentos são inesgotáveis. Eu julgava que os dominava quando era amada por Antônio. Que grande erro! Não comecei a conhecer o verdadeiro sentido do amor até o dia em que Antônio me abandonou. É extremamente curioso que tenha conhecido isso graças à dor, não aos gozos.

Lembra as horas injustas da aflição, Cleópatra.

É certo que as vivi, mas talvez não as tenha esgota­do. Foi uma sensação tão lacerante, um tormento tão inten­so, que pensei ter esgotado a medida. Porém minha convic­ção não era mais que um esforço desesperado para sair da­quele poço incomensurável. Agora sei que o poço tem um fundo muito mais profundo que aquele que pensei tocar. E que a taça da dor nunca fica cheia, por mais que a enchamos.

O arquivista regressou, presa de cômica agitação. Seus passos eram desastrados — muito mais ao avançar depressa —, e era de tão baixa estatura que estava a ponto de desapa­recer sob os enormes estojos de couro. Respirou aliviado quando acabou de tirar os pergaminhos que a rainha solici­tava, estendendo-os diante dela sobre uma grande mesa de mármore quadrado.

Seu alívio, entretanto, desapareceu com um novo pedi­do que o obrigou a perder-se de novo entre os arquivos.

— Traze-me agora os documentos mais recentes sobre o que se faz chamar César Otávio Augusto.

A sós com Sosígenes, a rainha recuperou sua expressão severa. O olhar deixou de exprimir sentimentos e converteu-se em um arquivo a mais.

Esquece tudo que falamos, meu bom Sosígenes. Por­que a partir deste momento meu interesse por Antônio se li­mita aos dados que estas crônicas expõem. Enquanto dei­xava as páginas passarem com certa negligência, acrescen­tou: Um homem encerrado em um estojo de couro! É pos­sível que, a longo prazo, o resumo de nossa vida se limite a ser um dado melhor ou pior arquivado?

No melhor dos casos. Na maioria, nem sequer um número.

Apenas virando a página aparece a grandeza e a mi­séria do homem por quem tanto cheguei a sofrer. Aqui, quan­do era tribuno. Aqui, quando perseguiu os assassinos de Cé­sar. Aqui, quando se uniu a Otávio e Lépido para formar o triunvirato.

Ele ainda não expirou, minha rainha.

Eu sei. Omito intencionalmente esses fragmentos por­que neles está minha própria crônica: o dia em que Antônio conheceu Cleópatra!

Deixou passar as páginas com elegante negligência. Em um só instante, transcorreu a totalidade daquele tempo fe­liz, que pôde parecer eterno. Ao chegar à data em que Antô­nio se casou com Otávia, a rainha sentou-se e leu cuidadosa­mente todos os dados. Depois meditou sobre eles e pediu a Sosígenes que os lesse, a fim de emitir uma opinião. Porém a vista do ancião estava excessivamente cansada, e as condi­ções de luz não eram as mais favoráveis àquela hora da tar­de. Limitou-se a exclamar:

Rameira romana!

Os homens, sejam crianças, jovens ou velhos, têm o feio costume de desprezar o inimigo, sem se dar conta de que, ao fazê-lo, rebaixam sua própria estatura. Mas eu te digo que é mais digno a rainha do Egito ter uma contendora de sua estatura que uma vulgar rameira. Deixemos isso para An­tônio. Por sorte, nós, as mulheres dele, temos metas mais elevadas. Quanto a Otávia, não invejo sua sorte. É formo­sa, culta e inteligente; mas Roma, em vez de utilizá-la para algo positivo, limita-se a mantê-la como pacificadora nas guerras familiares.

Guerras, disse eu? Simples pendências. Carecem de grandeza.

O nome de Otávia ia aparecendo constantemente nos do­cumentos relacionados com Antônio. Mas a rainha do Egi­to não sentiu ciúme, como teria ocorrido anos antes.

— Pobre mulher! — exclamou. — Antônio fez-lhe ou­tro filho antes de mandá-la para Roma. Três vezes prenhe em nome de uma aliança política. Se sua dignidade não fos­se tão conveniente à minha de inimiga, pensaria que é es­túpida.

Ali estava Otávia, inscrita em uns textos que pretendiam ser objetivos... se é que alguma vez o foram os textos da his­tória. Aparecia como uma estátua distante, petrificada em sua condenação à dignidade, inexpressiva na obrigação de mostrar-se admirável a todas as horas.

Todavia o férreo molde que continha sua humanidade quebrava-se em determinadas ocasiões, e sua intervenção em algum assunto, em qualquer negócio, produzia uma ruptura e proporcionava-lhe a grandeza das grandes lições morais.

Em sua última intervenção mostrou-se sublime.

Sucedeu que, estando a ponto de iniciar um novo ata­que contra os partos, Antônio sentiu-se incomodado por cer­tas calúnias que Otávio vertera. Disposto a defender-se me­diante a ação, mandou aparelhar trezentos navios e dirigiu-se para a Itália. Otávia, ainda grávida, suplicou ao esposo que lhe permitisse mediar no conflito. Entrevistou-se com o irmão, em rota para Tarento, onde esperava o exército de Antônio. Roma tinha os olhos postos naquele encontro. Di­zem que Otávia, ao suplicar pela paz, chorou amargamente, pois a adversidade havia feito que dos dois imperátors que se repartiam o mundo, um fosse seu irmão e o outro, seu esposo. E acrescentou: "Se triunfarem os piores conselhos e estourar a guerra, é incerto qual dos dois será o vencedor e qual o vencido. Mas, em ambos os casos, minha sorte será miserável".

Tais palavras tiveram o poder de comover Otávio e apla­car as iras de Antônio. E nas praias de Tarento os barcos equipados para a guerra ofereceram o formoso aspecto da reconciliação em nome da paz. Os generais e seus respecti­vos aliados intercambiaram mostras de amizade e, o que era mais importante para efeitos práticos, cederam-se conside­ráveis quantidades de material bélico.

Assim se separaram. Otávio foi preparar suas campa­nhas contra Pompeu, que continuava ameaçando-o da Sicí­lia, e Antônio passou de novo para as costas asiáticas, não sem antes deixar em mãos de Otávia seus três filhos e os que tivera de Fúlvia.

Ao conhecer tais fatos, Cleópatra dedicou acesos elo­gios a Otávia. E compreendeu o mérito de sua reputação, embora fosse incapaz de compartir seus sentimentos. De que têmpera eram feitas as romanas, capazes de levar as noções do dever até aqueles extremos?

Deve ser algo mais profundo que o amor, pois o amor não ajuda a inteireza, antes põe obstáculos a seu desenvolvi­mento. Eu não saberia agir desse modo. Quando Antônio me abandonou para se casar com Otávia, eu pedia a morte dele. Lembras-te bom Sosígenes? E, por muito que tornasse a amá-lo, estou certa que a pediria de novo.

Pressentindo no fundo de sua alma certa inveja pelo bem-fazer de sua inimiga romana, Cleópatra decidiu que não po­dia permitir-se um sentimento de tal índole e, com fingida naturalidade, deixou de lado os primeiros documentos. A in­veja, entretanto, continuava prosperando e já nunca a aban­donaria.

Deixamos Antônio na Ásia comentou com falsa indiferença. Antes de Otávio irritá-lo com suas calúnias, estava recuperando a fama que malgastou em Atenas... Continuou lendo com atenção. Vejo aqui a primeira vi­tória sobre os partos. Antônio teve o bom critério de con­fiar o comando a Ventídio Basso, que é um estrategista ex­cepcional... Isso confirmaria o que os próprios romanos di­zem sobre Antônio e, também, acerca de Otávio. Que são mais afortunados quando confiam suas campanhas a outros do que quando as dirigem eles próprios...

Permitiu-se um esgar de malignidade. E Sosígenes uma careta de aborrecimento.

Já sabíamos disso tudo — murmurou o ancião.

Há algo que eu ignorava. Ou talvez sequer tenha no­tado, levada por meu desejo de esquecer Antônio. Ele se reu­niu em Miseno com Otávio e Sexto Pompeu e firmaram cer­to tratado concedendo a este último pequenos poderes na cos­ta mediterrânea, com a condição de proteger Roma dos pi­ratas. Já conheces as estreitas relações que unem esse irrita­do jovem à chusma dos mares.

Não vejo em que esses fatos possam afetar o Egito.

Qualquer coisa que ocorre em Roma afeta o mun­do, já que Roma aspira a dominá-lo. Todavia, neste caso con­creto, afeta-nos muito mais porque a situação de Antônio está fortalecida pela vitória sobre os partos, que o tornará muito popular em Roma. E se desejas encontrar maior im­portância nisso para assim justificar minha decisão de reunir-me a ele, atenta para um detalhe: Otávio reservou para si o controle sobre Itália, Gália e Hispânia e cedeu o Oriente a Antônio. É certo que, por enquanto, só tem seis províncias. Mas seu cargo autoriza a dispor de muitas mais...

No olhar de Cleópatra, até então equívoco, apareceu um brilho intenso, que Sosígenes não teve dificuldade em asso­ciar com a ambição. Conhecera-a em outras ocasiões. Po­rém nunca a recebeu com tanto júbilo como nessa vez, em que vinha substituir a expressão, muito mais vulnerável, de um amor que voltava a nascer. Um amor por demais funesto.

Acabava de chegar o arquivista com os documentos re­ferentes a Otávio. Embora os distribuísse com extrema efi­cácia junto dos anteriores, o olhar de Cleópatra não repa­rou neles. Vagava por espaço imenso, onde renascia uma an­tiga quimera.

Esse Antônio, a quem tanto amei em outros tempos, não é mais que a bola de sebo arrastada pelo escaravelho sa­grado de Ra. Quem quer que a empurre tem o caminho tra­çado de antemão.

E esse caminho é Cleópatra? — perguntou com te­mor o conselheiro.

É o Oriente. Um caminho inevitável para os sonhos de Antônio, mas também necessário para a expansão do Egi­to. Precisamos dele tanto quanto ele de nós. Por outro lado, convém aproveitar as lições que a própria Roma nos dita. "Divide e vencerás", bom Sosígenes. Assim, pois, é vital para nossa segurança que Antônio e Otávio briguem até a morte. Se conseguissem entrar em acordo, e Egito se converteria em província romana.

Deu um brusco safanão que rechaçava a vida inteira de Otávio. Seu olhar, depois de percorrer espaços incertos, pou­sava já nas costas da Síria.

— Que Otávio fique em Roma! — exclamou. — Que estenda seus tentáculos sobre todo o Ocidente! Quanto mais longe melhor. Entretanto, viajarei para a Síria a fim de tra­balhar em prol dos interesses do Egito e dirigirei os desejos de Antônio para os caminhos que ainda não foram pisados pelas botas de Roma.

Algum dia o farão. Quem poderia detê-las?

Um guerreiro e uma rainha — disse ela com decisão.

Isto é, dois amantes.

Ela se ergueu. Em sua decisão não havia limites. Para seu ímpeto não havia descanso.

— Uma espada e um cérebro. A ambição e a mão que a executa. Serão inseparáveis. E, algum dia, a história pode­rá dizer que Roma só chegou a tremer ante os exercícios de Aníbal... e ante uma serpente do Nilo.

 

"Cidade odiosa", Totmés costumava exclamar consi­go mesmo. "Alexandria berço de todas as abominações. Ale­xandria, mixórdia de raças impudicas. Quem a fundou não podia ser egípcio. Quem conseguir amá-la sempre será um estrangeiro na terra."

Alexandria perto do Egito. Não do Egito. Nem sequer nele. Somente "perto", na opinião dos contemporâneos. Ci­dade em tudo estranha ao país cujos limites encerrava. In­venção demasiado moderna, transmitida em herança a uma família singular. Legado de ambigüidade para uma dinastia de sangue macedónico que, ao enamorar-se pelas peculiari­dades do Oriente, converteu-as em corrupção.

Totmés, que retornava ao palácio atravessando os jar­dins de Serápis, teve medo mais uma vez. Porque o angus­tiava aquele deus inventado pelos Ptolomeus a partir da mis­tura de tendências isoladas de divindades gregas e traços orien­tais das divindades egípcias. Porque, ademais, tudo em Ale­xandria vacilava entre mundos opostos e, amiúde, litigan­tes. Porque sua alma sentia-se rejeitada pelas ruas que de­sembocam no mar, pelos palácios brancos como espectros, pelas avenidas impolutas, imensas, infinitamente mais lar­gas que nas melhores de suas cidades do Alto Nilo.

Entretanto, acima de qualquer outra consideração, late­java o pavor que o mar inspirava. E dominava-o a indignação ao pensar que um rapazelho, por mais Magno que fosse, podia inventar-se uma cidade condenada a ser acariciada constan­temente pelas ondas encobridoras dos abismos tenebrosos em cujas profundezas nenhum deus egípcio atreveu-se a habitar.

A fim de exorcizar seus medos, aquele Totmés, que não era senão um transplantado em Alexandria, continuava invo­cando o gênio do Nilo, o bondoso Hápi, o deus hermafrodita que, nos relevos antigos, oferecia aos grandes faraós os mara­vilhosos dons vegetais que só o grande rio pode proporcionar.

Em sua aversão ao mar, Totmés demonstrava que era um egípcio de coração. E em seu veemente desprezo ao cos­mopolitismo de Alexandria, ratificava o obstinado de suas raízes nilóticas. Muito especialmente naquela manhã, em que se vira envolta no intenso tráfico do mercado dos ídolos, con­junto adjacente ao bairro dos templos, onde se vende todo o tipo de imagens dos deuses principais e inclusive dos se­cundários (pois o povo é imprevisível em sua piedade).

Ao misturar-se com a multidão que ia e vinha de cá pa­ra lá, formando uma maré tumultuosa bem capaz de devo­rar a si mesma, Totmés compreendeu por que não se acostu­mara à vida urbana sua vida podia ligar-se à insana en­cruzilhada onde confluíam sírios e armênios, judeus e ára­bes, gregos e romanos, nômades do deserto e negros de Nú­bia, líbios e damascenos, gauleses e somalis. A pavorosa en­cruzilhada onde se mesclavam sacerdotes e marinheiros, en­cantadores de serpentes e traficantes de tapetes, granjeiros e prestamistas, mercadores de camelos e vendedores de es­peciarias, estudantes de filosofia e damas em busca de de­vaneios...

Totmés detestava Alexandria, mas não só por causa do mar, como todo egípcio que se estime, nem porque o Nilo ficasse tão longe, como todo egípcio que se preze. Era por­que aquela cidade lhe produzia a sensação de não estar em lugar nenhum, mesmo estando em muitos ao mesmo tempo. De não adorar nenhum deus, mesmo tendo ao seu alcance todos os deuses inventados pelo homem. De não pertencer a ninguém, mesmo quando a cidade lhe pedia aos gritos que acedesse a pertencer-lhe... como ela pertencia a todos.

"Menos ao Egito", decidiu o sacerdote. "Perto dele, à beira dele, mas completamente distante de seu coração."

E suspirou, pensando que algum dia voltaria a sentir no rosto a brisa do Nilo e o aroma penetrante da lama que suas águas deixam ao retirar-se.

 

Naquela manhã, depois de fazer suas libações diárias no templo de Isis e raspar o pêlo do corpo nas dependências con­tíguas ao altar, Totmés arriscara-se a penetrar na ingente mul­tidão que costuma encher o mercado dos ídolos. Após mui­to procurar, voltou ao palácio carregando uma estela de ba­salto suficientemente pesada para fazê-lo maldizer o momento em que decidiu dispensar sua liteira oficial e entregar-se ao prazer do passeio.

Porém sacrificava-se com gosto, pois a estela era um pre­sente para seu príncipe. Mais que um presente, era uma pro­teção. Ou, talvez, a possibilidade de salvar-lhe a vida.

As damas da rainha consideraram que se excedia em seu zelo e inclusive zombaram dele às escondidas. Nenhuma, con­tudo, pôde negar-lhe uma evidência: no dia anterior apare­cera um escorpião junto à cama do príncipe. Embora sua pi­cada não fosse mortal, bastava para produzir febres espan­tosas e aquela horrível inchação parecida com a que a peste produz no ventre dos amaldiçoados pelos deuses.

De modo que Totmés decidiu recorrer urgentemente à sabedoria secular das mães do Nilo e procurou o amuleto in­falível, o que constitui a única proteção contra ataque de es­corpiões, áspides, ratos e até crocodilos. Pois eram estes os animais maléficos que apareciam vencidos pelo poder do di­vino Horus na pedra negra que Totmés carregava com ex­trema dificuldade pelas ruas mais seletas de Alexandria.

Quando a colocava sob os almofadões da cama de Ce­sário, ouviu a suas costas a voz do rapaz.

Perverso Totmés! Estás com raiva porque dedico mais tempo aos cavalos que a ti e te vingas colocando em minha cama algum artefato mortífero. Como conseguiste bur­lar os guardas de segurança de minha mãe?

Porque sou um deles, meu príncipe. O que assegura teu sono e tua vida, a partir deste momento.

Cesário retirou os almofadões. E a estela mágica apareceu.

Mas, Totmés, como esperas que eu possa dormir com essa pedra debaixo de minha cabeça?

É irreverente e mereces que o divino Horus abando­ne este amuleto e te deixe à mercê dos crocodilos que esma­ga com seus pés.

De fato, o falcão milenar aparecia convertido no meni­no Harpócrates, que esmaga os crocodilos dos pântanos, es­trangula com as mãos as serpentes que se introduzem pelas fendas nas casas e mata os escorpiões que se aninham nas paredes.

Pouca importância teria disse Cesário. Afinal de contas, o crocodilo é um animal sagrado e, como sou di­vino, criaria em sua barriga o cúmulo dos prodígios se me devorasse.

Se falas assim, terei de te repreender. E cada vez que faço isso, sinto-me uma velha ranzinza.

Outra coisa não és, bom Totmés. Além disso, um obstinado por coisas vãs. Pois como queres que esse menino da estela me proteja de picadas, se sou eu mesmo? Fizeram meu retrato há poucas semanas.

Verdadeiramente, ninguém ganha de meu príncipe em matéria de presunção e engano. Pois esse menino é for­moso como um deus, e tu és feio e horrível como um lagarto enegredido pelo sol.

Totmés, no entanto, estava consciente de sua mentira. Porque o menino que uma noite lhe entregaram em certo tú­mulo de Tebas convertera-se em um adolescente prematuro, cujas prendas naturais apareciam realçadas pelo exercício e por um surpreendente equilíbrio interno, cujas origens se­quer o próprio Totmés podia precisar. Se até somente um ano antes era um menino bochechudo e com tendência a obe­sidade, uma inesperada mudança submetia cada uma de suas feições a um processo de refinamento que augurava um equi­líbrio perfeito. Seus cabelos eram negros e crespos e possuíam a intensidade dos da rainha Cleópatra, por mais que na este­la de Horus aparecesse reproduzido com a cabeça raspada e a trança da infância, como exigem os cânones.

Sabes o que dizem meus preceptores quando os dei­xo para vir te encontrar?

Dirão atrocidades. Porque é dos humanos invejar a fortuna alheia, e sou mais afortunado que todos, porque es­tou mais perto de meu príncipe.

 

Dizem que és um corvo branco.

Não existe tal espécie.

—            Eu sei. Seria uma pomba. Mas, quando interroguei Euclínio, o filósofo, ele sorriu com certa malignidade e disse que a espécie se encarnava pela primeira vez em ti, porque tua posição no palácio te faz branco por fora e preto por dentro.

Ante a alusão a seu hábito sagrado, Totmés sorriu amar­gamente, pois sabia que sua situação privilegiada junto ao futuro rei do Egito criara-lhe inimigos.

— E acreditas no que dizem? — perguntou timidamente.

— Jamais o acreditaria de meu melhor amigo — res­pondeu Cesário com grande energia. — O pior que eu pode­ria pensar de ti, e mesmo assim se me permitires, é que és mais enfadonho que um restolho do deserto.

Dizes isso porque te obrigo a estudar.

— Digo isso porque, em outros tempos, pensei que, co­mo estavas irremediavelmente louco, pelo menos serias um louco divertido.

Lembras-te de quando nos conhecemos naquele tú­mulo da Sede da Beleza?

Como não iria me lembrar? Tu te comportaste de um modo tão ridículo. Beijaste os pés. A mim, teu amigo!

Então eu não era teu amigo. Só era teu vassalo, co­mo tantos milhares de egípcios.

O que és agora, Totmés?

Continuo sendo o eleito, como chamavam o que es­tava destinado a ser teu mentor — sorriu com nostalgia, ao mesmo tempo que acariciava a estela de Hórus-Harpócrates. — Mas, com o passar dos anos, compreendi que deveriam me chamar de "o afortunado".

Nunca falas de tua vida anterior àquela noite.

Não sei se foi vida, na realidade.

De tua infância, então.

Totmés permaneceu calado por uns instantes. Voltava o grande vazio, a ausência de recordações, a memória ca­rente de raízes.

— Eu não tive infância, mas não me dei conta disso até ver como a tua se desenrolava. Só fui criança quando tu fos­te. E penso que nem mesmo agora sou jovem e que começa­rei a sê-lo quando tu fores.

Cesário também se deixou levar por aquele fluxo da me­mória. Era algo recente, inesperado, que o fazia acariciar com mais doçura instantes que já haviam passado, paisagens que haviam transcorrido, brinquedos que não voltaria a utilizar. E experimentava uma dor pequena e doce, porém ao mesmo tempo profunda. Como se fosse uma nova brincadeira, das que os meninos de outros países lhe ensinavam, e que estava disposta a permanecer para sempre em seus hábitos. Como se fosse o único brinquedo que nunca poderia jogar fora, de­pois de usá-lo.

Lembras-te, meu príncipe, de como eu me deleitava ao te ver brincar com aqueles animais de madeira? Pois era inveja. Uma inveja atroz.

Em certa ocasião te encontrei acariciando um de meus carros.

Recordo-me perfeitamente. Imitava uma quadriga ro­mana, e costumavas dizer que havia sido a de teu pai, o grande Júlio. E precisei sentir seu contato, porque era uma das coi­sas que nunca tive, uma lembrança que me fora negada. E te digo que, naquela noite, chorei muito, porque soube que na vida existem coisas que é impossível recuperar...

— Também choro algumas noites, Totmés, porque sinto que, ao crescer, não voltarei a ter as coisas que tive. E que nada voltará a ser igual, embora tudo seja melhor.

Totmés compreendeu assim que o tempo também trans­correra para aquele menino que em um dia já distante, sur­giu das pinturas de uma tumba em Tebas para revelar-lhe toda a doçura da infância. Compreendeu que fora crescen­do ante seus próprios olhos, que se alimentara de seu espíri­to e, portanto, trazia algo dele mesmo, como Epistemo prognosticou-lhe em outra noite não menos distante, no gran­de terraço do templo de Hátor.

Não podia deixar de maravilhar-se. Ele, que sempre per­manecera tão distante dos vaivéns do coração humano, esti­vera praticando, estivera aprendendo a partir do mais terno de todos os corações. Tão terno que deveria perder sua ter­nura nas primeiras voltas da roda do tempo.

O coração de um menino.

Era só um coração ou, quem sabe, uma armadilha des­tinada a aprisionar seu afeto para sempre? Quando quis ave­riguar, já era tarde demais. Já não podia voltar atrás. Pois, ao girar a roda dos dias, o coração de Cesário também gi­rou, e foi como as noras que os camponeses do Nilo utili­zam. Tinha vários cubos que se iam enchendo de água para deixá-la imediatamente nas acéquias, convertida em alimen­to dos campos. E quanto mais o menino recolhia em sua ex­periência cotidiana, mais deixava nas mãos de Totmés, co­mo se o tivesse nomeado guardião de um tesouro inigualável.

Hoje, contudo, as pérolas do adolescente esparramavam-se em uma evolução que nem mesmo seu mentor pudera prever.

— Dize-me, Totmés, gozaste com muitas damas de ho­nor desde que chegaste a Alexandria? — A esse ponto, o guar­dião do tesouro quase sofreu um desfalecimento. De manei­ra que Cesário viu-se obrigado a insistir:

Tu te calas como um hipócrita. Sei que poderias me contar algo, pois sei algo do que as aias de minha mãe opi­nam sobre ti.

Nada tenho a ocultar, meu príncipe. E nada há em mim que pudesse despertar o interesse de damas tão formosas.

És modesto demais, bom Totmés. Ou talvez não en­xergues mais longe que o pobre Ramose. Deves saber que antes de vir a teu encontro passei pelo gineceu, pois me di­verte ver como as mulheres banham meus irmãos. E eis que todas me faziam perguntas sobre Totmés. E cochichavam en­tre si, e, não te deixavam por menos de garboso e sedutor.

Príncipe, príncipe, não é esta a hora em que nos to­ca falar de números? Os que teu matemático deu hoje exi­gem muito mais concentração.

Tornaremos o cálculo um pouco ameno. Calculare­mos com quantas mulheres gozou o bom Totmés.

Nunca conheci mulher.

Totmés, continuas me tratando como uma criança.

De fato és uma criança, mas nunca te trato como tal.

As damas de minha mãe é que não o fazem, pois não escondem suas opiniões, embora eu ande espionando. O que me agrada, porque são mais ardentes do que costumamos imaginar. Portanto, posso dizer com toda a segurança que pelo menos cinco delas compartiriam tua cama e te chama­riam de irmão, como nos poemas antigos que Ramose canta.

Se fosse em noite de tormenta não poderiam, pois te encontrariam aninhado ao meu lado. Apesar de teus cavalos e tuas ginásticas, és extremamente assustadiço; assombraste com o fulgor do raio e morres de medo ao ouvir o trovão.

Eu iria embora para que pudesse entrar a irmã de teu coração.

Farias bem. Assim não falarias depois destas coisas. E não te aproveitarias de tua posição para pôr em apertos um amigo.

Digo-te, Totmés, que tu és a criança, não eu. Tu te esqueces de que, se eu tivesse uma irmã de minha idade, já me teriam casado com ela?

São imperativos religiosos.

Religiosos podem ser, mas, se eu tiver de fazer um filho em minha esposa, não virá o divino Horus ocupar meu lugar...

Crescera, sim. Talvez com excessiva rapidez. Quiçá em uma velocidade demasiado cruel. Porque o encanto inigua­lável da criança dava lugar a uma sorte de autoridade tão pre­coce, tão prematura, que poderia parecer artificial. Totmés pensou nos odiosos filhos de alguns membros da nobreza que costumam imitar o comportamento e as maneiras dos mais velhos sem ter deixado a infância. Lembrando-os, temeu que a autoridade de Cesário desembocasse em algo de monstruo­so, em uma maturidade que desafiava todas as leis da natureza.

Mas o encanto, a doçura, a ingenuidade continuavam manando de seu sorriso como um manancial que nem sequer teria sido profanado pelos raios do sol. Haviam-no enchido de sabedoria, haviam formado seu corpo com as proporções exatas da força e da beleza; não obstante, tudo em seu trato continuava irradiando a atrativa beleza de um sonho que ain­da estava por nascer.

Tesouros do menino Cesário conservados para sempre na memória do sacerdote que não teve meninice! O que era e deixava de ser no mesmo instante. O que aprendia para dei­xar de lado em uma nova e constante aprendizagem. O que o maravilhava sendo um nada, o que fazia chorar por ser imenso. Mistérios infinitos daquele fundo insondável sobre o qual podiam edificar-se tantas e tantas coisas. Projetos, obrigações, sonhos, quimeras, dores e alegrias que chegavam até Totmés graças a uma mente tão limpa como a sua pró­pria e que a cada momento regozijava-se ante a infinita va­riedade do mundo.

Totmés em Cesário, e Cesário em Totmés. Uma unida­de indestrutível. Uma bofetada constante nas leis do esque­cimento. Um projeto que nem sequer Alexandria teria se atre­vido a supor.

 

"Ai Trifena, Trifena, quem te viu na lama e te visse ago­ra, rodeada de pompa e opulência!".

Assim pensava a rameira mais famosa de Alexandria, enquanto íris e Carmiana a introduziam nas mais privadas das dependências de Cleópatra. Tão privadas eram que ar­mazenavam quanto luxo pode desejar a comodidade, quan­tos prazeres reclama a licença e quantos excessos exige uma alma sensível para sentir-se além do mundo e mais perto dos paraísos prometidos.

Em determinado momento, Trifena sentiu-se coibida an­te o luxo que a rodeava. E sua beleza exuberante, porém nem um pouco cuidada, foi como um emplastro de primitivismo colocado no centro da falsidade mais refinada, da sofistica­ção preparada por séculos de cultura.

Nunca estiveste em um palácio? perguntou íris.

Em muitos, mas este não tem igual. Já se sabe, a mu­lher que se aluga conhece todos os ambientes e não a deixam ficar em nenhum. Embora te diga que um palácio assim eu não teria me atrevido sequer a imaginar em sonhos. A rai­nha do Egito não se sente só entre coisas tão grandes?

As damas riram e algumas chegaram a zombar. A mu­lher, todavia, considerava-se dignificada pelas cores rigoro­sas do vestido que a camareira real lhe mandara. Tão reca­tado era que a fazia sentir-se sacerdotiza.

Deteve-se diante da enorme banheira de Cleópatra. Era como uma enorme baía situada no ponto exato onde fossem confluir todas as luzes do mundo. Pois assim se mostrava a claridade, chegando de imensas clarabóias e através de enor­mes janelas. Tudo isso dando às águas as preciosas tonali­dades do marfim.

Mas não era água, senão leite. Leite tão branco quanto o líquido da neve que se desfaz se a toca um adolescente ex­citado por seu primeiro desejo. E sobre aquela superfície diá­fana navegavam os brinquedos capazes de dar amenidade a qualquer banho, em geral de longa duração. Vogavam gale­ras diminutas, imitações das canoas populares, crocodilos e hipopótamos que, tocados pelo dedo da rainha, cambalea­vam e erguiam-se de novo para continuar a brincadeira...

O leite despendia um aroma especial, uma fragrância tran­qüilizante que teve o poder de mergulhar a prostituta em uma espécie de letargo. Sem prestar excessiva atenção, íris contou-lhe que a rainha acrescentava ao leite infusões de flores de sabugueiro, camomila, urtiga e um extrato de determinada tília. A prostituta, no entanto, obedeceu a seu senso prático:

Quantas jumentas são necessárias para encher uma banheira tão grande?

Como deves compreender, a rainha não mede a be­leza pelas jumentas que a proporcionam respondeu íris com certo acento de menosprezo.

Trifena continuou vagando entre os suntuosos objetos até chegar a uma enorme plataforma de mármore rosado. Havia ali toda a classe de espelhos que adotavam as formas mais refinadas. E cada suporte tinha representações que em si mesmas, constituíam uma obra de arte.

Sua cobiça não se viu, porém, tentada pelos espelhos he­lenísticos nem pelos vasos de lápis-lazúli nem mesmo pelos belíssimos pentes lavrados em madeiras aromáticas. Não. Seu olhar foi diretamente para uma cestinha de morangos que pareciam uma tentação à gula e uma provocação aos gulosos.

Dispunha-se a pegar um morango, quando os gritos de Carmiana detiveram-na instantaneamente:

Não toques nisso! São para a máscara de sua ma­jestade!

Estás me tomando por uma imbecil?

Ela manda-te flagelar, se descobrir. Não é fácil en­contrar morangos nesta época do ano. Trazem-nos para Cleó­patra os mercadores que chegam de Biblos.

E como vou acreditar que os põe na cara em vez de comê-los?

Como faziam outras rainhas do passado. Os dons de Flora põem seu vigor a serviço da maravilhosa pele de Cleópatra. Ai tens o extrato de trigo, o óleo de sésamo, o vinagre de hamamélis e até um vaso de sementes de alcaravia.

Ouviu-se uma voz autoritária que, no entanto, tentava abrir-se à amabilidade. Era Cleópatra.

Todos os hortos do Egito não bastariam para dar be­leza a quem não a tem. Muitos, porém, são necessários para que a beleza existente não murche antes do tempo.

Todos se inclinaram, embora algumas escravas conti­nuassem rindo em voz baixa.

Come o morango, mulher disse a rainha. Mas lembra-te de que por tua culpa um pequeno canto do rosto de Cleópatra ficará sem nutrição neste dia.

Trifena repeliu a fruta com expressão de desagrado.

Desceria mal, depois de ouvir o que dissestes. Conduziram-na ao aposento contíguo. Estava cheio de

amplos divãs, e a mulher deixou-se cair em um deles sem es­perar que a rainha o fizesse. Sua falta foi perdoada ou, quem sabe, omitida.

Deves te perguntar por que te mandei chamar.

Quando perguntei, responderam-me iradamente que não era de minha conta. O que achei estranho, pois, estan­do eu aqui, não vejo da conta de quem mais poderia ser a coisa.

De Cleópatra disse a rainha amavelmente.

Pelos deuses! Tenha piedade a rainha, se cometi al­guma falta.

Não te preocupes. As faltas cometidas nos prostíbulos não chegam até o trono... Verás que o que vou te pedir é um pouco comprometedor para a rainha do Egito... ou, me­lhor, para a pobre mulher que há por trás dela.

Temeis que eu solte a língua?

Em absoluto. Eu poderia te cortar a cabeça, se o se­gredo fosse importante. Mas, na verdade, não poderias con­tar mais coisas do que as que já estão na boca do povo... Agora, olha-me direito nos olhos e não tentes mentir para mim. O povo diz que tua rainha é uma fêmea ardente?

Minha senhora! Como o povo vai dizer uma coisa dessas?

Eu sei que diz. E se continuares mentindo para mim com lisonjas, ordenarei que te cortem a cabeça como se ti­vesses roubado todos os meus morangos.

A mulher refletiu um instante. Precisou reunir todas as suas forças para responder:

O povo diz que sois o que acabais de dizer.

Só isso?

Bem, dizem que sois muito, muito ardente.

E nada mais? Não mintas!

Já que insistis... enfim... garantem que sois uma rameira.

Não te excedas, mulher! — Brincava com uma pre­ciosa faca de obsidiana, a qual lhe emprestava um aspecto ameaçador. Acrescentou baixinho: — Se dizem que sou uma rameira, hão de me atribuir amantes...

A mulher tomara suas defesas:

Nunca ouvi dizer.

A verdade, cadela!

A verdade, senhora, é que me colocais entre a espa­da e a parede. Se minto, cortais-me a cabeça; se digo a ver­dade, só me flagelais. Assim, pois, digo que vos atribuem mais amantes que as estrelas das constelações. E fazei de mim o que quiserdes, pois na verdade não tenho saída.

Cleópatra pôs-se a rir. Ofereceu a fruta a sua compa­nheira e, com o olhar agudo, exigiu que aceitasse.

Tens uma saída que, aliás, contém uma recompen­sa. Faze-me perita, mulher.

Em que a pobre Trifena poderia vos fazer perita?

Nas artes que praticas. E não mintas. Informei-me a fundo e sei que nenhuma outra prostituta de Alexandria conhece como tu as artes do prazer.

É isso que me pedis vós de quem tantas maravilhas contam a tal respeito?

Minhas maravilhas passaram de moda, doce Trife­na. Quem as conheceu em seu momento poderia achá-las en­fadonhas três anos depois. E eu preciso surpreendê-lo a ca­da instante. Que pule e alcance a vertigem dos sentidos.

Sem dúvida vosso amante confunde o amor com os jogos do circo.

E os mistura, se a ocasião se apresenta. Por isso te digo: conta-me todas as novidades que tenham aparecido nos bordéis de Alexandria. Adestra-me nelas. E passarás a fazer parte dos grandes mestres que tiveram a honra de instruir o trono do Egito.

Ainda sem sair de seu assombro, a prostituta contou à rainha algumas anedotas frívolas que, lentamente, foram derivando para o obsceno. Onde esperava encontrar uma fêmea experimentada, descobriu uma mulher completamen­te fria que escutava suas palavras com atenção. Se tivesse freqüentado as conferências e preleções da Academia, a pros­tituta teria compreendido que a rainha a escutava com a atenção e o respeito próprios dos estudantes de ciências na­turais.

Sua expressão final foi a do matemático que encerra to­das as suas experiências com uma análise rigorosa.

Bem, bem, bem — disse a rainha, ainda pensativa. — De modo que este é o logos do prazer.

Eu não disse uma coisa tão esquisita — protestou Tri­fena, assustada. — Disse que, quando o homem se põe de pé e a mulher por baixo...

Levantou-se, sem que a outra a imitasse. Mas as damas acudiram àquela altura, com a intenção de vestir sua ama para uma audiência de caráter privado.

Ficarás no palácio — disse Cleópatra em tom seco e entregou sua cabeleira ao finíssimo pente de Carmiana.

Subitamente, Trifena levantou-se como que impulsio­nada por uma mola.

— Sou prisioneira? — perguntou em um grito.

— Só se for de ti mesma — respondeu Cleópatra rin­do. E todas as damas imitaram seu júbilo, enquanto a en­volviam com uma leve túnica de linho azul. — Dai-lhe mo­rangos... ainda que acabe comendo-os. Depois, banhai-a na piscina... e tratai de que não beba o leite. — Dirigindo-se a Trifena, acrescentou: — Amanhã começaremos as aulas. Espero que sejas tão destra nas práticas do prazer quanto o demonstras ser na teoria.

— Será um prazer ensinar a tão nobre senhora...

— Espero que seja um prazer aplicá-las, em Antioquia, para deleite de um cavalheiro não tão nobre...

Enquanto Carmiana adornava-lhe os braços com pul­seiras de ouro e turquesas, Cleópatra lançou uma queixa pa­ra o mais profundo de seu coração: "Maldito sejas, Marco

Antônio, e também maldita tua estupidez. Pois Amor viria a ti envolto de sedas, mas, em troca preferes que chegue ves­tido com os mais vis farrapos...".

Contudo, se Amor só podia ir andrajoso despertar os apetites do romano, o sexo vestiu-se com suas melhores ga­las para que Cleópatra recebesse sobre a pele os acobreados músculos de seu capitão egípcio.

Entregou-se a ele sem medições do cérebro, sem astú­cias, nem jogos, nem disfarces. Inteiramente nua, como o mundo no primeiro amanhecer, aberta como os primeiros mananciais, surpresa como uma virgem que recuperasse a vir­gindade a cada momento em que a perdia.

Gozou com seu capitão, e ele com sua rainha, sem uma esperança de prolongamento, sem se obrigarem a um ama­nhã. De modo que o desejo, transfigurado em sua própria imediação, converteu-se em singular variante da castidade. Remetia-os às vozes que a natureza fazia soar em seus pei­tos; vozes que chegavam com a simplicidade do estritamen­te necessário. E assim fora deste o primeiro encontro deles, no leito, dois anos antes.

Algo tão simples como a necessidade urgente dos ani­mais! O corpo desejado para acalmar o desejo, os lábios bus­cados para consolar uma boca, o delírio invocado para ser companheiro do êxtase. Preciosos utensílios, ferramentas prá­ticas, valores que rendiam bom crédito graças apenas a seu valor intrínseco. Tudo isso foi o capitão nos braços da rai­nha. E isso foi o que lhe deram, sem oferecer mais, seus pró­prios braços.

Naquela noite, porém, como nas mais recentes, o capi­tão suspirava profundamente, e sua atenção parecia buscar outros destinatários. Tão longe estavam que se perdeu no ca­minho. Em vez de cravar as unhas em seus músculos, presa da culminância do prazer, a rainha do Egito pôs-se a rir, em­bora com simpatia.

De que ris minha rainha? Tão inepto me mostro es­ta noite?

Ela acariciou-lhe o cabelo com extrema doçura.

Não poderia rir porque conheço as causas de teus des­varios; são as mesmas que conheci em outros tempos. Ain­da que eu não as tivesse conhecido e que não existissem, ja­mais ousaria opor minhas zombarias a tuas galhardias, pois bem sei que eu sairia perdendo. É próprio dos insensatos rir da beleza, esquecendo que ela possui seus direitos. E é de na­tural bastardo pagar com desaires que só nos deu atenções. Com o que digo que meu riso, longe de te ultrajar, te abençoa.

Ante teu riso cai em ridículo teu capitão. Pois gos­taria de chorar e ficaria donzelil por fazê-lo. E já quase o sou por apenas pretendê-lo.

Serias humano, meu Apolodoro. E mais formoso ain­da, por revelar-te humano sem rubor dentro de tua virilida­de. Chora, portanto, se for de teu gosto.

Meu gosto, dizes? É minha desgraça.

Não chorou o capitão nos braços de sua amante passa­geira. Contudo naquele rosto viril, cujas feições pareciam tra­çadas pelo mais perfeccionista dos escultores, a dor desenhou uma gravidade que o tornava ainda mais patético que no es­cape do pranto.

Eu deveria chorar em teu lugar — disse Cleópatra, trocando o riso por um esgar de ternura. — Pois bem sei que tuas lágrimas não saem por minha causa. Não deveria me ofender com tanta violência como tu te afliges? Depois de tantas noites de amor em teus braços, depois de comparti­lhar tantas navegações pelos mares do êxtase, digo-te que vou me reunir a meu antigo amante, e tu só sabes chorar por uns olhos verdes que não são os meus. E preferes uma cabeleira de vermelho aceso aos cabelos de tua soberana, dos quais costumavas dizer que não tinham igual em toda a rota da seda.

Na verdade, sou um desagradecido, porque fui pre­senteado com tuas mercês e, no entanto, pago-te chorando porque outra mulher não me concede as suas.

És severo demais contigo mesmo, Apolodoro. Se te concedi algum favor, tu os devolveste com acréscimo. Isso é o prazer quando está bem repartido, e se os deuses não che­garam a conhecê-lo, é sempre porque distavam muito de se­rem civilizados. De modo que, se te sentiste recompensado, eu me senti bem servida — suspirou, acrescentando uma no­ta de humor à dramática situação de seu amante. — E tens mérito, porque nos leitos das rainhas os homens não costu­mam triunfar pelo que depois se gabam nos quartéis.

Apolodoro titubeou. Todavia animado pela confiança da rainha, disse por fim:

Esta confiança que me outorgas obriga-me a confes­sar quem provoca minha dor.

Pela mesma confiança, digo-te que sei. E, ao te agrade­cer, obrigo-me a interceder para que tudo chegue a bom porto.

Um porto muito triste, pois outras naves já lá chegaram.

Sem dúvida estás enganado. Eu mesma vi como se desfazia em suspiros a donzela que provoca os teus...

— É Bálkis, a fenícia. E não é livre.

— Livre será na medida em que eu assim dispuser. Em primeiro lugar, porque é uma de minhas damas de honor, não uma escrava. Em segundo, porque foi deixada em mi­nha corte por seu pai, o nobre guerreiro Thirkos, autorizándo­me a entregá-la ao homem que meu critério decidisse. Em último lugar, mas o primeiro a meus olhos, porque tu a ado­ras e ela te ama.

O escuro olhar do capitão expressou desconcerto ante a segurança da rainha.

— Sem dúvida não me compreendeste quando eu me referia a sua liberdade. Ainda que ela fosse escrava, basta­ria eu pedi-la a ti para tê-la. Mas sua condição é pior porque todo teu poder não poderia libertá-la. É prisioneira de uma paixão impia.

— Como é possível?

— Está apaixonada pelo sábio preceptor de teu divino filho. E por ele pena tanto quanto eu por ela, que é como não viver ou viver amaldiçoando a vida. Esta é a verdade e não outra.

O inesperado da notícia faria qualquer monarca refletir sobre a eficácia de seus métodos de espionagem.

De Totmés, disseste? — exclamou Cleópatra surpresa e, ao mesmo tempo, ultrajada por aquele desmentido a sua reconhecida suspicácia. Depois de um instante de meditação acrescentou: — Verdadeiramente a formosa Bálkis é estúpida, além de atrevida. Porque pôs os olhos na santidade, que é a única barreira contra a qual nada pode o desejo dos ho­mens. E porque se atreveu a desejá-la.

É assassina e suicida ao mesmo tempo. Porque com seus desaires me mata. E com os que o sacerdote lhe dedica apunhala-se a si mesma. E nós dois sofremos por culpa de alguém que, para cúmulo dos males, jurou ser casto mais além dos séculos.

Voltaram a exibir-se ante Cleópatra todas as dissidências do amor. De novo dominou-a uma vertigem insólita e terrível.

Vil sentimento, este que chamamos de amor, por falta de outro insulto! Faz anos que soube que era traiçoeiro e co­nheci seus estragos de tal forma que me fez ver a morte co­mo um bálsamo. Procurei nos outros, esperando encontrar uma verdade mais profunda, esperando que aprenderia on­de reside o consolo que todos buscamos. E por toda parte vi amores desenganados, por toda parte vi ânsias não cor­respondidas. Mas um dia, escutei teus suspiros e, ao compará-los com os da fenícia, tomei os dois como modelo. Amores que por fim coincidiam! Foi tal a novidade que decidi aju­dar. — Acariciou o peito do capitão, em sinal de aprecia­ção. Acrescentou: — Ninguém melhor que eu poderia inter­ceder junto a Bálkis, pois conheci a destreza que possuis e tive ocasião de apreciar os infinitos alcances de tua ternura. É certo que eu te mandava a ela usado, mas que homem não o é, antes de usar a mulher que ama? Esta é a surpresa com que eu esperava te brindar esta noite: que a rainha do Egito, posta de alcoviteira, confundia em um só dois amantes que não se atreviam a confessar seus suspiros. Mas inclusive esta satisfação os deuses vetam!

Um de seus emissários a impede! — exclamou Apo­lodoro com uma raiva que não se esforçou em dissimular. — Um maldito hipócrita que esconde sua lascívia debaixo do manto da castidade!

Não vás por esse caminho, Apolodoro, ou conhece­rás a fúria de Cleópatra. Acaso possuis provas de que aque­le manto se tenha levantado para acolher os apetites de Bálkis?

Nenhuma. E sinto-me envergonhado de minha acu­sação. Faze de mim o que quiseres.

Beijar-te, formoso amigo. Senti que depositas em meu lábio o ímpeto que tua amada nunca recolherá. E, ao recolhê-lo eu, chamo-a novamente de estúpida, porque olhou para ti e não te soube ver. Mas ao mesmo tempo me compa­deço dela, pois fixou seus raios em um raio que pode cegá-la.

Tentou devolver a paixão àquele corpo tão deseja­do, quis que seu próprio corpo também o fosse. E nunca se sentiu tão satisfeita por não estar apaixonada. — A Fortuna quis recompensar os humanos proporcionando-lhes momen­tos como este. Em que só o desejo preenche os espaços que separam os corpos. Desejo que não compromete. Desejo que une e não escraviza. Oxalá possam dá-lo a ti mil mulheres, quando tiveres esquecido aquela louca de cabelos vermelhos! — Exalou um suspiro de bem rebuscada frivolidade ao ex­clamar: — Que, além do mais, são tingidos, se isso te serve para começares a te cansar dela...

Agarrou-se ao corpo do capitão, foi-se aninhando con­tra seus músculos, como uma gata. Mas seus pensamentos já estavam em Antioquia.

"E quem fará que eu me canse de Antônio, se nem o mais galhardo capitão de todos os exércitos o consegue? Quando tua fogosa juventude não serve para se impor a essa imperiosa vontade de ir ao encontro dele, quem em todo o mundo po­derá anulá-la? Ditoso és tu, fugaz amante meu; ditoso, sim, pois amas uma mulher que nunca poderá te amar! Infortu­nada eu, provisória amante tua; infortunada, sim, que já não sei se ainda amo o homem que de repente volta a me amar! E maldito seja Amor, em ambos os casos, pois se interpõe entre minha vontade e meu desejo. Assim, tu me abraças sem sentir meu corpo; assim, eu te abraço sem sentir tua fúria. Maldito seja Amor! Ele faz que este instante prodigioso se

converta em lamentável desperdício. Pois já restam poucas fêmeas como eu. E escassos os homens de tua têmpera...”

Entregou-se à virilidade de Apolodoro uma, duas, três últimas vezes, antes de fazer-se aos mares em busca das cos­tas sírias.

 

Os arautos que cavalgavam a todo galope pela fértil vár­zea de Antioquia pareciam enlouquecidos. Seus gritos tras­passaram as muralhas, apoderaram-se dos guardiães e che­garam até a gente simples, que foi transmitindo a mensagem por todos os postos do mercado. E, embora Antioquia dis­tasse algumas milhas do mar, ninguém ficou sem saber do prodígio.

Ouro sobre as águas! O mar ficou louco!

Um cofre de tesouros cavalga sobre as ondas!

A cidade não tardou a saber que uma galera de porte excepcional bordeava suas costas. Os vigias acabavam de avistá-la ao longe, destacando-se sobre o horizonte sempre igual, sempre impávido. E em que pese a indiferença habi­tual dos antioquenses, habituados a quantos esplendores o intenso tráfico cosmopolita de sua cidade podia propor, a notícia converteu-se em um acontecimento que trazia infil­trações de paixão a um verão muito parecido com todos os demais.

Nobres e plebeus, sírios e estrangeiros, homens e mu­lheres puseram penachos em seus corcéis; outros prepararam as cadeiras de mão; os demais encheram carros com paren­tes e amigos; por fim, todos saíram das muralhas em dire­ção à costa. A notícia espalhara-se de tal modo que a cidade ficou vazia. E alguns desde o porto, outros desde os roche­dos contemplaram com olhos assombrados o lento vogar da nave egípcia que ia em busca do procônsul de Roma no Oriente.

De seu palácio junto ao mar, Marco Antônio gritava o nome de Cleópatra. Sua invocação dera resultado. Certa deu­sa egípcia em quem lhe ensinaram a acreditar, apesar de não recordar seu nome, demonstrava mais poderio que todas as divindades do Panteão romano. E sob o céu mais puro que se havia visto desde muito tempo, sobre as águas mais diá­fanas que Antioquia conhecera desde muitas luas, a galera dourada de Cleópatra triunfava com um arroubo de beleza e um manifesto afã de espetaculosidade.

O grande espetáculo do Oriente tornava a causar assom­bro nos mares!

Antônio expressava isso de seu miradouro privilegiado. Junto dele, aferrados ao vinho, seus oficiais lançavam cha­mas pelos olhos.

É muito astuta murmurou Fonteu Capito. Co­nhece o melhor modo de despertar o assombro de um pro­cônsul que se aborrece.

Assombro, dizes? E Marco Antônio suspirou pro­fundamente. Só com saber que chega desperta minha pai­xão, inflama-se meu desejo, alentam-se meus ímpetos como se voltasse a ser o primeiro dia.

Nunca ouvi o garanhão mais insaciável do Ocidente falar de modo tão galante.

Marco Antônio pôs-se a rir com ansiedade, enquanto esvaziava de um só trago uma taça de falerno.

Porque nunca conheceste ninguém como a égua egíp­cia. Demorei muito tempo para compreender isso. Porém ago­ra sei que está muito além de minha razão. E ao mesmo tempo excede minha loucura.

A galera parecia arder sobre as águas. A popa era de ouro; as velas, de púrpura; os mastros, de marfim. E os es­cravos espargiam tanto perfume que o próprio vento enlan­guesceu ao levar para a cidade uma mensagem de rosas.

Os remos, que eram de prata, lembravam com suas ba­tidas o som de mil flautas, divinamente melodiosas. Força­vam a água a seguir mais depressa, como se se tivesse apai­xonado por eles.

Quanto a Cleópatra, sua aparição empobreceu todas as belezas que a custodiavam e voltou a ser Vénus redivi­va. Sob seu baldaquim de brocado de ouro, havia sido co­locado um leito de pedra calcárea que, ao receber as insi­nuações do sol, tornava-se rosada como as montanhas de Te­bas. Recostada sobre peles de pantera, rodeada de crianças vestidas de cupido e abanada por escravos hercúleos, recos­tava-se a formosa com sua nudez apenas aliviada pelo tênue capricho da seda.

Suas damas apresentavam-se como nereidas ou como se­reias. Acendiam com seus encantos os desejos dos marinhei­ros e acrescentavam à suntuosidade da cena a graça de suas evoluções. Uma delas, completamente nua e coroada com algas de bronze, fingia dirigir o avanço da nave, encarapita­da no timão e com os braços erguidos. Todo o velame inflava-se à manobra daquele corpo tão suave. Do quebra-mar lançavam-se à água os efebos mais belos de Antioquia, de­sejosos de recolher entre seus lábios as flores que outras es­cravas jogavam, encarapitadas, por sua vez, nos mastros cujos topos eram rodeados inteiramente de grinaldas de flores sil­vestres, desconhecidas naquelas latitudes. A costa encheu-se com os perfumes que espargiam cem escravos etíopes, en­voltos em veludos de um vermelho aceso. Nessa ocasião, po­rém, não tingiam o ar com o negro toldo do luto, e sim com as rosadas tonalidades do desejo.

Se este é o esplendor do Oriente, compreendo que Antônio se empenhe tanto em conquistá-lo! — exclamou o rústico Fonteu Capito, bebendo avidamente.

Ela viaja sempre com roupa tão leve ou isso se deve ao calor da Síria?

O calor da Síria causa estragos no ânimo de Antônio. Pois não achas que ele parece presa de uma febre tumultuosa?

Não soube precisar se mofavam dele ou se manifesta­vam sua inveja em forma de zombaria. De qualquer modo, cabia-lhe aceitar a lei não escrita da camaradagem e supor­tar subentendidos, palmadinhas nas costas e prognósticos li­bidinosos na conta da rainha do Egito em sua primeira noite síria junto do procônsul de Roma. Depois do que esgotou-se a paciência de Antônio, e, pela primeira vez na vida, deci­diu que suas esperanças amorosas pertenciam só a ele e não estava disposto a compartilhá-las.

— Chega! — exclamou, gritando. — Enviai-lhe rapi­damente um emissário. Transmita-lhe meu convite para cear esta noite. E acuda também meu escravo Eros. Convém ar­rumar este palácio até ficar à altura de uma soberana.

Enobarbo pegou a mão do companheiro. Dir-se-ia que a diversão contribuía para tostar-lhe ainda mais o trigo da barba.

Permite que continue rindo ao comprovar que a his­tória se repete todas as vezes que lhe apetece.

Repete-se o amor, o que é muito diferente.

A história, Antônio. Poderia apostar meu melhor ca­valo, que ademais é digno dos de Aquiles, que a rainha do Egito inverterá teu convite. Não aceitará vir a teu palácio. Exigirá que vás a seu terreno.

Em que te baseias para aventurar tal coisa?

Em que tua dama pratica uma arte que ignoras. Acre­ditas que o amor se dá no leito. Cleópatra, antes de chegar a ele, já triunfou sobre os sentidos... Já assistimos antes a sua capacidade de organizar suntuosos espetáculos à custa dos mares. Ou esqueceste a ocasião de vosso primeiro en­contro?

Quando veio me conhecer em Tarso! É verdade. Che­gou envolta no mesmo esplendor, como dizes. E também em uma galera de ouro.

Cleópatra reproduz os sonhos do passado para ador­mecer seu amante. Naquela ocasião, tu a convidaste para cear em teu palácio, e ela pediu que a ceia tivesse lugar a bordo de sua galera.

Divina noite, prelúdio de dias mais divinos! Depois de uma festa como jamais se fez para um general romano, despertei entre seus braços e vi em seus olhos tanto amor que decidi partir com ela para Alexandria. Nunca senti um êxta­se semelhante! Nunca tornei a senti-lo. Era a primeira vez que uma mulher se negava a aceitar meu convite. Sua obsti­nação inflamava-me os desejos, que já estavam inflamados por si mesmos. Ao conhecer sua negativa, decidi que tinha o dever de domá-la.

E ela quase te domou, general. Mas, enfim, já que a rainha do Egito sabe distribuir seus golpes teatrais com tanta astúcia, pergunto-me o que ocorreria se esta noite ela res­pondesse a teu convite com a mesma manobra de outrora.

Eu não iria. Antônio não tornará a ser o cachorri­nho de uma fêmea caprichosa.

Extraviado no sem-fim de idas e vindas exigida pela pre­paração de um banquete que estivesse à altura de Cleópatra, o general não se deu conta de que as horas iam passando, até que a tarde começou a cair sobre as brancas cúpulas da cidade. Enquanto Eros azafamava o ar transmitindo suas or­dens aos demais escravos e o interrompia a cada instante pa­ra dizer palavras que contradiziam as anteriores pois não são eficazes organizadores do lar os grandes senhores da mi­lícia —, chegou por fim o mensageiro com a resposta da rai­nha do Egito.

O que disse Cleópatra?

Deixou-me perplexo, senhor.

Acaso não vem? perguntou Antônio, nervoso.

Mais ainda. É que fala como um homem. "Dize a teu senhor Antônio, que o rei do Egito isso, o rei do Egito aquilo..." Tu, que a conheces... é um homem disfarçado de senhora?

Antônio esteve a ponto de golpear o energúmeno com um dos escudos que pendiam da parede, mas Enobarbo deteve-o a tempo. Conhecia aquele nervosismo, vivera antes aquela agitação e sabia como a conter. Quanto ao mensa­geiro, bastou que Eros lhe desse um pontapé no traseiro.

Vir, vir,... não vem — apressou-se a dizer o homem. Mas isso não quer dizer que a ceia não se celebre. Só que o rei ou a rainha do Egito, ou que for, exige que sejas hós­pede de sua nave.

Antônio não o deixou terminar. Deu um murro tão po­deroso no escudo que alguns escravos acudiram correndo, pois nunca haviam sido chamados com tanta urgência.

Então Enobarbo sorriu:

Pois bem, meu senhor Antônio, que resposta o men­sageiro deve transmitir?

O olhar inflamado de Antônio procurou além do mira­douro, além da costa, até que chegou ao porto e pousou na dourada galera de Cleópatra. Apertou os punhos com todas as forças, quando disse:

—            Irei. Tenho o dever de domar a égua egípcia!

Contudo o guerreiro habituado aos mais deliciosos li­cores voltou a enlouquecer com o fastuoso veneno de sua ás­pide egípcia.

Rainha dourada! Estás aqui, meu amor, minha dita, minha condenação e minha afronta, tudo ao mesmo tempo.

Estou aqui, meu senhor, meu dono, meu tirano, meu verdugo amado e, ao mesmo tempo, meu escravo execrado.

Nunca houve leito mais suntuoso para acolher o luxo de dois corpos excitados. Peles lustrosas resvalavam ao unir-se, fundiam-se deslizando na voluptuosidade suprema de um suor perfumado por jasmins. Abraçavam-se sobre tecidos tin­gidos de púrpura. Esfregavam-se com sexos de prata. Perdiam-se sob uma nevada formada por plumas de íbis do Nilo.

A fêmea limpava o suor do corpo do amado com sua cabeleira ungida com óleos da Arábia. O macho recebia a carícia de seus seios como se fossem romãs dos pomares de Tiro... e Amor reproduziu-os em uma profusão de espelhos dourados e lançou sobre eles um rocio de pedras preciosas.

Choviam esmeraldas sobre seus olhos, para que pudes­sem contemplar o corpo desejado através de um verde pare­cido com o dos vales do Líbano. Choviam opalas, pérolas, ônix, rubis, safiras, turquesas e águas-marinhas. O êxtase convertia-se em um jogo de luas enfiadas no branco marfim que chega da índia. O êxtase era um cofre repleto de aromas compostos por dezesseis espécies de substâncias, como o per­fume entorpecedor chamado kyphi, que só os sacerdotes egíp­cios conhecem. O êxtase assemelhava-se à explosão de todos os planetas, encastrado para sempre em um tecido primoro­so, do que chega pela rota da seda.

O êxtase deixou o guerreiro extenuado sobre um ocea­no sulcado por galeras de loucura.

Vendo-o arquejar no leito de pedras preciosas, enquanto sua pele recebia as carícias dos perfumes, a amante soube que já não era o mesmo. Suspirou profundamente, colocando um tempo de nostalgia entre aquele corpo demasiado maduro e o fogoso galã que a tomara nos braços, anos antes, con­vertendo o momento em prodigioso anúncio da eternidade.

— Os anos passaram, Marco Antônio. É certo que o tempo não perdoa. É certo que é um assassino.

Ele tratou de erguer-se sobre os cotovelos, enquanto mantinha os seios da amante contra seu peito. Voltou-lhe aos olhos o ingênuo assombro da juventude, agravado, porém, por um olhar de insolência e um aroma de brutalidade.

Só lhe ocorreu perguntar se a rainha não gozara bas­tante. E apressou-se a acrescentar que, em todo caso, não seria sua culpa.

— Marco Antônio! — exclamou ela, rindo. — Teus ar­dis continuam sendo grosseiros e tuas perguntas, cretinas.

Quis sentir os ardores de ontem, quis queimar-se em um fogo idêntico e morrer no êxtase de um instante único. Mas as grosseiras imprecações do amante impediam-no. Tão longe estavam de seus sonhos de amor!

— Tu és mais bela que todas as meretrizes da Síria. Mais ardente que todas as cortesãs da Armênia. Mais destra que qualquer marafona de Cartago.

Exaustiva geografia do prazer para um instante em que o prazer já não existia! Títulos de honra baseados somente no efêmero de um beijo que já não obedece ao cérebro!

Assim ficou Cleópatra, ajoelhada junto ao corpo ren­dido do amante. Ele ainda buscava a atitude do titã que re­pousa depois da batalha: o corpo estendido com a boca pa­ra cima, os braços abandonados, como as pernas, em forma de cruz. E a rainha passeando por seus músculos um dedo tão suave quanto as pombas que fazem ninho nos templos.

 

— Meu amante... — murmurava ela, com uma doçura que viajava em direção à lembrança. — Eu te esperei tanto, Antônio! E, quando te vi chegar, esta noite, com teus trajes gregos, a barba tão arrogante e o andar decidido de um atle­ta, pensei que o tempo se detivera como eu costumava rogar já faz anos. Que o havíamos detido, Antônio, que tornaría­mos a compendiar em um abraço todos os dias da vida...

O que mudou?

Não sei se Amor, não sei se Cleópatra. Ou, quem sabe, tu mesmo, apesar de estares demasiado embebido no espírito de teus deuses protetores para sequer pensar nisso.

O lento percurso de seus dedos pelo corpo de Antônio tropeçou a cada passo na invasão de um outono prematuro. Ela o teria amado profundamente, ter-lhe-ia dedicado toda a sua ternura, se ele tivesse cedido um só palmo em seu or­gulhoso avanço rumo à dominação.

"Foi tão amado este corpo...", pensava. "Não hou­ve no mundo pele mais desejada, não conhecerá o Impé­rio músculos mais cobiçados, nem pêlo que, ao roçar mi­nha pele, lhe comunicasse tanto vigor e inspirasse tantas ân­sias. Mas teu corpo se desfaz, Antônio. O que chamas de músculo é gordura. O que dizes serem nervos deverias cha­mar de varizes. E há cãs no bosque de teu peito. Ao abra­çar-me a tua cintura, encontro bolsas de carne que provo­cam riso. Prisioneiro do tempo, tu também! Que será, en­tão, de Cleópatra?"

Algo, porém, havia sucedido nos vaivéns inconstantes que Amor propõe, quando se alia com os exércitos do tem­po. Aquele guerreiro fofo, com tendência à obesidade, aquele Hércules deformado pelos excessos do vinho e pelos estra­gos da gula, aquele guerreiro tinha de enfrentar uma mulher a quem o tempo recompensara fazendo-a mais inteira, mais soberba, erguida sobre uma gravidade que só possuem cer­tas frutas quando, antes de amadurecer completamente, permitem-se adquirir um delicado tom dourado e revestir-se de uma capa suave, parecida com veludo.

O guerreiro, entretanto, queria demonstrar à doce ini­miga o alcance de todos os seus poderes, como o orador que lança seu discurso mais brilhante antes de cair na mudez. As­sim, tornou a agarrá-la entre os braços com uma fúria re­pentina e angustiante.

— Dentre todas, só tu sabes me dar prazer. Minha Ser­pente do Nilo! Faze o sol reluzir entre meus músculos.

Ela se desfez violentamente de seu abraço.

— Porco estúpido! — exclamou. — Achas realmente que a rainha do Egito pode ser a puta de Antônio?

O macho ajoelhou-se então diante dela e abraçou suas pernas, choramingando como uma criança imperita. Não por aquela atitude de ferocidade, aquele orgulho violento que já conhecia e, ademais, lhe agradava, mas sim porque percebia que a paixão já não estava no rosto da amante, que seus beijos, suas carícias, todo o ritual de uma sexua­lidade subjugadora limitavam-se a uma atuação perfeita­mente aprendida e aplicada com rigor e exatidão. De ma­neira que tentou recorrer aos mesmos métodos que a tinham excitado em outros tempos e beijou-lhe o pescoço lentamen­te, buscou com a língua as partes mais excitáveis de seu cor­po, tentou possuí-lo como se, com isso, voltasse a possuir seu espírito.

Ela, contudo, pôs-se a rir, e aquele Hércules sentiu que todo o seu universo desmoronava. Foi como se o êxtase de apenas uma hora se revelasse uma gigantesca miragem, ape­sar de ter sido tão intenso.

Na verdade percebo que o tempo passou — disse An­tônio. — Porque hoje te rebelas contra meus desejos. Mas antes eras capaz de desfazer uma pérola no vinagre só para me divertir.

Pobre Antônio! — exclamou ela, um tanto depre­ciativa. — És como uma criança que só se diverte se lhe con­cedem o que as outras crianças não têm. Mas eu não sou a mesma e estou muito longe da infância. Antônio pede péro­las para brincar, enquanto Cleópatra só esperava um gesto de Antônio para se converter em mulher madura!

— Teu corpo está maduro como o da melhor cortesã de...

Poderias me dizer do melhor lugar do mundo, e eu cuspiria em ti por dizê-lo! Porque não entendes nada, Mar­co Antônio. É inútil tentar te contar, pois será em vão. É inútil tentar te mostrar, um a um, os dias de minha dor, inú­til te dizer as feridas de meu coração, porque só consegues ver o seio que o cobre.

Teu corpo povoou meus sonhos durante muito tem­po. E quando, há umas horas, tremias em meus braços, com­preendi que também não pudeste esquecer Antônio.

Passou para sempre aquele Antônio de meu primeiro amor e chega outro Antônio, que não conheço. Como sabe­rei se sou capaz de amá-lo?

— Tu me aturdes, minha rainha. Ou talvez já trouxes­se o estupor dentro de mim. Pois descubro que já não sou jovem. E nunca pensei que viveria para descobri-lo.

Tentou endireitar-se com um gesto que pretendia simu­lar desdém, mas no qual Cleópatra soube descobrir uma gran­de dor.

Muito pouco valor dás a tua amante, se pensas que ela só se enamora pelos anos... É exatamente o contrário, Marco Antônio! Quisera eu ter chegado à velhice e olhar para trás com ironia. Antônio e Cleópatra já teriam culminado o amor, teriam brigado muitas vezes e conhecido mil recon­ciliações! Mas, com os sentidos já acalmados, com os olhos fitos na morte, saberíamos que nem sequer o tempo poderia derrotar nossa aliança...

"Que a eternidade seja dos dois, ou não seja de ne­nhum", eu te disse há anos.

E tomei tua palavra, Marco Antônio. Esta noite, aqui, enquanto me possuías, senti por um instante que na­vegávamos em direção a esse tempo eterno. Foi algo tão curto, tão distante do que esperavas!...

Eu te esperava, Cleópatra. Isto é tudo.

Eu acreditava que ia em busca de Antônio, continua­va aferrada à idéia de que Amor tem um único rosto. Não encontrei o Antônio de ontem, mas, por um instante, senti-me transportada para um universo de esferas superiores. Sou­be que não te amo, Marco Antônio. Mas também sei que pos­so chegar a te amar com um amor ainda mais profundo que aquele que um dia conhecemos.

A rainha do Egito apartou com sua mão delicada as es­meraldas, os rubis, as turquesas e as safiras. Fechou os olhos e, ao apertá-los com todas as forças, pronunciou três vezes o nome do amante. E depositou em seus lábios um beijo que foi quase um suspiro.

— Rainha birrenta! — murmurou ele com amargura. — Como podes esperar que eu me compraza em ser amado na derrota?

— Em ti disputam o general e o amante... Que Amor não saia prejudicado no litígio!

E voltou a ser sua com uma intensidade muito ensaiada.

 

Chegou outra noite de amor, antes de muitas outras. Mas a excitação da carne cedeu ante o ímpeto de outros colóquios não menos excitados.

— Eu te disse ontem que em ti luta o general contra o amante. Hoje te digo que tomes cuidado para que o político não saia prejudicado.

Ainda estavam abraçados. Seus corpos nus vibravam.

Súbito, Cleópatra retrocedeu ante o êxtase que ela mes­ma criara e, ajoelhando-se como soía junto do corpo esten­dido do amante, adotou uma atitude grave, como se todo o seu ser acabasse de entrar em guerra.

— Marco Antônio, cuidado com Otávio. Ainda é tempo.

Cala-te, mulher! A mais adorável das concubinas há de acabar convertida na mais enfadonha das esposas? Já ti­ve duas fêmeas deste estilo, e ambas romanas, isto é, enfa­donhas. Não caias na mesma cilada.

A razão de Cleópatra aborrece Antônio! Vejo que é verdade o que dizem minhas escravas... cada homem é um mundo diferente dos outros, mas cada mundo é uma forma distinta do disparate. Porque era sensata e inteligente, por­que sabia estar a sua altura, consegui o amor de César. Mas assim não se consegue o de Antônio, pelo que vejo! Antô­nio quer ser igual a César sem aprender nada de sua grandeza...

Ele a agarrava pelo pulso e, recorrendo à força de ou­trora, atraía-a contra o peito, tentando afundar os lábios nos seus. Mas ela se livrava habilmente de suas garras e recobra­va a postura ereta, severa, convertida em juiz.

Vendo-a fugir com tanta astúcia, ele gemia com maior afinco:

Trono, dizes? Mil leitos para gozar contigo é o que quero!

Um trono, Marco Antônio. Tão grande é que tem lugar para muitos. Não só para nós. Também nossos filhos e os filhos dos filhos deles. Um trono tão sólido que resistirá ao poder de Roma e vencerá a passagem das idades...

Dá-me o esquecimento através do amor!

Posso te dar o amor. Mas mata-me, se te der o es­quecimento. E se Antônio é tão esquecidiço que pode se con­verter em petimetre, a rainha do Egito o empregará como bufão, mas nunca como amante...

O amante desconcertado olha para o que não pode do­minar. Como exigir-lhe o império da razão, quando só aspi­ra a cair nos reinos da vertigem?

Antônio odiado! gritava a rainha. Não deixa­rei que o amor volte a me colher em suas redes! Terás o que desejares de meu corpo. No leito não haverá meretriz mais perita, nos bailes não haverá dançarina mais voluptuosa, nos banquetes não encontrarás cortesã com melhor disposição para se embriagar contigo. Mas no trono do Egito serei a rai­nha, e em meus mandatos jamais se imiscuirá o amor!

Antônio ri das rainhas. Que respeito poderiam lhe inspirar, se tive a todas de boca aberta, suplicando que lhes desse prazer?

Tua grosseria me indica claramente qual é meu lu­gar. Mas tu te enganas comigo, Antônio. Não preciso ficar sentada na sala do trono para me fazer obedecer. Porque te­nho o sangue de soberanos muito nobres. Porque sei quanto custa ser mulher em um mundo dominado por homens que só o são em palavras.

Pelos deuses, tua beleza cresce quanto mais te excitas!

Por esses mesmos deuses, pelos teus e pelos meus, digo-te que nem sou deusa, nem estou excitada. E ouvirás minhas razões por mais que te pese, romano estúpido. Por­que sei qual é meu lugar. Não é o mesmo que o dessas rai­nhas famintas que suplicam teus favores.

gesto mágico, o amante passou da fantasia à realidade. E sen­tiu que esta o sacudia com a fúria de um raio.

A rainha do Egito te ordena que a sigas!

Obrigou-o a cobrir-se com uma de suas túnicas exóti­cas. Pouco depois, deixaram para trás o leito e todas as suas recordações. Achavam-se em um camarote arrumado como sala de despachos provisória da rainha. E, se a alcova era a culminância do luxo e da suntuosidade, o escritório era aus­tero como um santuário da razão pura.

Estás sereno? perguntou Cleópatra, colocando-se atrás de uma grande mesa de ferro, cheia de documentos.

Como poderia estar, se te amo?

Do mesmo modo que haverei de estar por muito que te ame. Falaremos de homem para homem.

O amante não pôde reprimir uma expressão de espanto.

Como entender essa metáfora?

Como a única maneira de Antônio me respeitar. Eu te disse que voltava a meu lugar. Não é necessário ser muito inteligente para compreender que Antônio só se mostrará sério diante de um homem. Porque Antônio deixou Fúlvia, que era sensata, valorosa e lúcida. Porque Antônio, depois, aban­donou Otávia, que duplicava a outra em beleza, juventude, inteligência e valentia. E, apesar de Cleópatra reunir todos esses dons e até aumentá-los, tem de se apresentar como va­rão e como rei para que Antônio não a trate como uma de suas meretrizes.

Que condição põe o rei do Egito para ser de novo mulher nos braços de Antônio?

Que esta mulher se veja legitimada aos olhos do mundo.

O mundo inteiro tem ciúmes de Antônio porque é amante de Cleópatra.

Isto não serve em Roma. E, já que Roma é o mun­do, Antônio se divorciará de Otávia e tomará Cleópatra co­mo esposa legítima.

Eis aqui todo um rei raciocinando como a esposa de um vulgar mercador de tecidos! Temes não receber minha herança, se não fores legitimada?

O general continua sendo grosseiro. Estou legitima­da ante mim mesma. Isso me bastaria. Mas é preciso que es­teja também aos olhos de meu povo. Especialmente aos olhos de Otávio.

Se tenho teu amor, não me importa Otávio nem Ro­ma nem o mundo.

Antônio bocejava. A rainha sentia-se mais exaltada ainda diante de tamanha indiferença.

— Até nosso amor depende de Otávio. És tão cego que não consegues ver isso? Acreditas que um político tão ambi­cioso permitirá que seus dois inimigos se amem em paz e per­corram os mares em uma galera de ouro? Unindo-nos por meio do amor, nós o ameaçamos de duas frentes ao mesmo tempo. Ele nos perseguirá até conseguir acabar conosco.

Fitou o amante e, mais uma vez, as rugas da maturida­de e o carregado cenho da virilidade foram suavizando-se para dar lugar à suave incongruência da criança que perdeu o ca­minho de regresso ao lar. Cleópatra sentiu que a ternura re­gressava a seu coração, como sempre volta ao da grande mãe Isis, quando acaricia o Menino Divino.

— Antônio! — exclamou, apaixonada. — Não te peço pelo Egito nem por Roma nem sequer por meu filho... Peço por nosso amor! Pelo direito de nos amarmos em liberdade, sem que a sombra de Otávio nos ameace...! — Subitamente deteve seu arroubo. Fora um fulgor instantâneo, impruden­te, suicida. Recuperou sua majestade e, sem apartar o olhar da mesa, acrescentou: — Esquece o que acabo de dizer. Só te peço isso por ti mesmo. Porque antes de te amar de novo preciso te respeitar. E teu respeito passa por minhas exi­gências.

Antônio deixou cair os braços de cada lado do corpo, em atitude de rendição total. Se no amor se deixou dominar pelas graças de Cleópatra, no jogo da política intuiu que de­via deixar-se conduzir por seu cérebro. Acabava de reconhe­cer as funções específicas de sua estranha associação. Se ele era o guerreiro invencível, Cleópatra era o estadista que nin­guém ousaria contradizer. De maneira que disse:

—            Esquecerei o amor, como me pedes, rei do Egito. De homem para homem peço-te que transmitas a Cleópatra mi­nha vontade de convertê-la em minha esposa legítima ante o mundo, depois de me divorciar da nobre Otávia. Cleópatra pôs-se a rir.

Que magnífico comediante terias sido, se não fosses um soldado tão excelso, meu bom Antônio!

É curioso. Otávia me disse algo parecido faz tempo.

Não tão curioso assim. Otávia é, sem dúvida, uma grande mulher. Pena que seja necessário sacrificá-la... Mas, afi­nal de contas, isso é o poder. Sacrifícios que passam por bon­dades em nome do bem comum. Seja, pois. E vamos a Otávio!

Com que armas?

Com as que me disponho a pôr em tuas mãos. Põe nas minhas os territórios que pertenciam ao Egito quando Roma teve a má idéia de acudir em nossa ajuda. Uma ajuda que se converteu em jugo!

Nem mesmo o amor me outorga poderes para te dar o que não é meu.

Acabas de dizer: não é teu... porque é meu. E vais devolvê-lo a mim fazendo uso das faculdades que teu cargo de procônsul do Oriente te concede... — Estendeu-lhe um documento que desde algum tempo observava com atenção. Acrescentou: Só precisas assiná-lo. Com essa rubrica, Otá­vio conhecerá sua primeira derrota.

À medida que Antônio lia o pergaminho, seu descon­certo ia aumentando. Não pela perfeição de estilo que Cleó­patra imprimia a seu latim, pois aquele soldado não era ho­mem capaz de se admirar de tais finuras, mas porque lhe so­licitava uma quantidade de territórios que punham o Orien­te Próximo em mãos do trono egípcio.

A petição implicava um desafio direto ao Senado roma­no. Incluía a entrega ao Egito de territórios ribeirinhos do Jordão, Armênia, Fenícia, Arábia Nabatéia, península do Si­nai e ilhas de Chipre e Creta.

Depois de lê-lo várias vezes, sacudindo a cabeça como um boneco, terminou por recitá-lo em voz alta. Longe de alterar-se ante sua estupefação, Cleópatra acrescentou com absoluto domínio de si mesma:

E uma parte da Judéia. Ou será que não sabes ler teu próprio idioma?

O território de Jericó. O mais rico em bosques! Omiti-o intencionalmente... — À medida que falava, sua voz su­bia de tom até que ultrapassou a medida da exaltação: — E continuarei omitindo, porque essa doação me coloca con­tra o rei Herodes, meu amigo e aliado!

Mas não meu, Antônio. Para minha fortuna ou des­graça, descobri faz muito tempo que só tenho um aliado. Chama-se Egito. E também pode ser o teu, se conseguires entender o verdadeiro significado de meu pedido.

És uma rainha ou uma vulgar brigona? Não franzas o cenho! Sei perfeitamente que sou um grosseirão. E posso ser mais até, se me provocam. É o que estás fazendo. Tu me obrigas a me colocar contra o mundo.

Pobre imbecil! O que estou fazendo é te aproximar cada vez mais de teu antigo sonho. Ou por acaso o esqueces­te? Nós o sonhamos juntos, Antônio, como antes o sonhei com César. É a herança que me foi deixada por Alexandre e todos os monarcas de minha família.

Meu sonho. O caminho do Oriente. Ou era só o amor que há pouco te pedia em vão?

Em ambos os casos caminharás ao lado da rainha do Egito. — Então a mulher saiu do corpo da rainha, a mu­lher saiu inclusive de si mesma e, movida pelo ímpeto de sua quimera, jogou-se nos braços do homem e deixou-se sentir protegida. — Marco Antônio, toda minha força se inclina diante de ti para pedir que a tomes. Liberta-me dela, pois, em verdade, ela me enfastia! Não é cômodo ser forte, por­que a força pesa como as pedras que os escravos arrastam nos canteiros de Elefantina. Toma minha força por tempo e faze que a rainha do Egito possa amar de novo, sem se en­vergonhar, aquele galhardo capitão que parecia disposto a devorar o mundo com seus formosos dentes brancos.

Ele a cobriu de beijos. Enquanto o fazia, sentiu que o sonho se aproximava. E que, de um cômodo trono junto ao mar, seu amor se convertia em um cetro que governaria so­bre todos os tronos da terra.

Rainha pendenciadora! O que mais pede nosso sonho?

Deves coroar Cesário rei do Egito.

Sangue romano no trono dos faraós! Não deixa de ser divertido. E, já que começo a conhecer tua ambição, ima­gino que, depois, a parte egípcia de Cesário aspirará ao tro­no de Roma.

Isso nunca. Os direitos de Cesário hão de ser outros. Os romanos nunca aceitarão um rei. Foi essa pretensão que custou a vida a César. Não deves te esquecer disso, inclusive quando acalentares tuas próprias pretensões. Coloquemo-nos contra quem governa Roma, mas sem que o povo nos odeie por isso.

Lentamente os braços que rodeavam o grácil corpo de Cleópatra recobraram a força que ela acreditava perdida. Um coração indómito recomeçava a bater sob o peito que rece­bia sua cabeça. Do poderoso pescoço voltava a brotar um riso enérgico cheio de orgulho, de modo algum quebrado pela indecisão do vinho. Ela sentiu que o amado a libertava fi­nalmente de sua força.

—            Apostarei minha vida inteira em uma só carta! exclamou Antônio. Que nosso sonho a leve à vitória!

 

Transcorreram os meses sobre as cúpulas douradas de Antioquia. E os soldados romanos acampados extramuros souberam que seu general os manteria inativos durante al­gum tempo. A conquista da Partia deveria esperar, porque voltara a Serpente do Nilo.

Enquanto a natureza tingia com cores escuras os bos­ques de carvalhos, enquanto os céus se empapavam de ne­gro anunciando a estação das grandes chuvas, o palácio de Marco Antônio enchia-se com os tons variegados de um mer­cado aberto a todos os artigos. Cleópatra encarregava-se pes­soalmente de que estes correspondessem à necessidade de manter os sentidos continuamente avivados. Pois, assim co­mo conhecia os imperativos de renovação constante que a beleza exige, não ignorava que melhor se avivam os sentidos quanto mais apropriados são os objetos que os rodeiam.

Assim, devolveu ao amante o gosto pelo refinamento e a obsessão pelo luxo. Voluptuosos incentivos do desejo! Não houve nenhum que não entrasse pelos olhos antes de chegar ao sexo. A rainha apresentou-se sobre tapetes de vis­tosas cores, povoados por animais quiméricos grifos, dra­gões, aves fénix —, ou então ressaltados por ornamentos geo­métricos cujo requinte confinava com a filigrana pura. A rai­nha apoiou-se em móveis de formas fantasiosas, construí­dos com os metais e as madeiras mais apreciados da Ásia. Planejou que nenhum objeto que o romano viesse a tocar fosse vulgar ou sequer conhecido. Fez que lhe servissem os melhores vinhos em graciosos copos de vidro esmaltado que reproduziam as esfinges alíferas que foram adoradas por cul­turas já extintas. Buscou os mais suntuosos recipientes de por­celana azul a fim de recolher suntuosamente seus vômitos nos excessos da embriaguez (demasiado contínua). Pôs incrus­tações de nácar nas portas de seu escritório, rubis em sua ca­deira de leitura, ouro no fundo de sua banheira e prata do Sinai nas bordas de seus calçados. Também na grande mesa dos mapas, destinada a absorvê-lo durante muitas horas de meditação, não faltaram acessórios de cobre repuxado, va­sos de requintada damasquinaría e até lâmpadas de marfim.

E isso em meio a uma intensa exalação de perfumes e essências que contribuíam para inflamar o ânimo do aman­te ao mesmo tempo que enchiam seus oficiais de indignação.

Tudo o que rodeava Marco Antônio mobiliário, ob­jetos, tapetes ou cortinados era destinado a recordar-lhe a cada momento o apelo do Oriente. E, apesar de Antioquia ser um dos centros mais animados do helenismo, a sagaci­dade de Cleópatra soube inverter a situação em proveito de suas ambições. Assim, Antioquia passou de última cidade que recordava a Grécia à primeira que falava da índia.

O Oriente converteu-se em um apelo contínuo, em um estímulo obsessivo, que transcendia a mesa de trabalho, ia além das manobras dos exércitos e introduzia-se nos edens mais íntimos do prazer. Qualquer delícia que chegasse até Antônio convertia-se na antecipação de mil outros deleites, sempre tingidos com as cores de um exotismo arrebatador.

Cleópatra converteu a si mesma no reclamo vivo o mais desejável daquela meta que era necessário alcançar.

Decidida a surpreender continuamente seu amante, mu­dava de aspecto várias vezes por dia, recordando-lhe ora a mulher que amara, ora mil mulheres desconhecidas. Alter­nou a moda grega com a do Egito clássico, como sempre foi seu costume; mas logo aparecia a Antônio e seus oficiais sob os traços de uma mulher do deserto ou, quando convinha perturbar mais os sentidos, com a inquietante seminudez de uma odalisca. De sua cabeleira, solta e despenteada ao mo­do das bárbaras, pendiam franjas das mais vivas cores, len­ços animados com bordados multicores, turbantes bordados com fios de ouro finíssimo e bonés coalhados de pedras pre­ciosas.

E já que Corinto se encontrava em um ponto privilegia­do da rota da seda, este material foi converter-se em asas que, nascendo no corpo da rainha, batiam ao ritmo primoroso de seu andar. Véus, túnicas, lenços, estolas, corpetes e toda a mui variada arquitetura de coqueteria feminina vestiu-se de seda azul, verde, vermelha, amarela —, para emitir constantemente o rumorejo da sedução.

Seda foi, em última instância, a pele da rainha, coloca­da entre os dedos de seu homem como uma antecipação das delícias impensadas que se achavam escondidas detrás de cada manifestação de sua sexualidade.

Pois, poucos dias após chegar a Antioquia e apesar da igualdade que seu amante reclamara para ambos, Cleópatra teve de recorrer às lições de Trifena. Enquanto ele se esfor­çava, preparando a melhor estratégia na guerra contra os par­tos, ela se encerrou em sua condição de estrategista do sexo, procurando sempre surpreender o amante demasiado propen­so ao enfado.

Assim transcorreu todo o outono, e assim Cleópatra re­cuperou para Antônio os fastos, as algazarras, as loucuras de um já distante inverno em Alexandria.

Foi todas as mulheres que o romano precisava conhe­cer para satisfazer sua fantasia. Foi a melindrosa e a irada, a alegre a a lacrimosa, a ardente e a tímida, a recatada e a dadivosa, a rainha e a escrava, tudo ao mesmo tempo. No fundo, porém, não era mais que a grande mãe velando por um filho excessivamente caprichoso.

E o menino caiu no logro, crendo que era ele quem lo­grava. Deixou-se pegar pelas ciladas do prazer de Cleópa­tra, pensando que era ele quem as armava. E supôs que era o dominador, quando na realidade, era o dominado.

Dentre todas as mulheres, só Cleópatra fizera-se digna de compartilhar o áureo carro que Dioniso pôs a sua dispo­sição para percorrer os verdes campos do prazer, os excitan­tes edens do êxtase. Só ela ganhara o direito de converter-se em sua sacerdotisa. De gritar, a seu lado, o aulido ritual re­servado aos mais afamados banquetes: "Evoé! Evoé!" A cul­minância da quimera nas próprias entranhas do mito.

Da mesma forma que Cleópatra construíra uma passa­rela de diamantes para ele subir a bordo de sua barca doura­da, Antônio estendeu-lhe a mão para que, agarrada a seu vi­gor, subisse de um pulo no carro dionisíaco, convertida, as­sim, na única companheira do deus sobre a terra. Foram vistos percorrendo as ruas de Antioquia, presidindo os mais for­mosos cortejos mitológicos que seus habitantes haviam vis­to em muitos anos.

Precedia sua passagem um desfile de faunos suntuosa­mente ataviados, formosas criaturas que avançavam sob uma chuva de flores douradas, executando melodias enlouquece-doras, por meio de cornucopias que, ao afastar-se de seus lábios, deixavam cair um riquíssimo alude de presentes que a população se apressava em recolher, afastando-se uns aos outros aos empurrões, rodando no chão. No carro, Antônio envolvia-se com as mais suntuosas peles de tigre e leopardo, coroava as têmporas nevadas com cachos de uva prateada, e sua barba, primorosamente cortada no estilo grego, estava polvilhada com ouro, o que a tornava semelhante a um fron­doso bosque, cujas árvores, em lugar de neve, tivessem rece­bido um banho formado pelos suores do sol da Ásia.

Ao lado de Dioniso, ia Cleópatra vestida de amazona, com a couraça de escamas douradas e a cabeleira ondulan­do ao vento, à guisa de fúria enlouquecida. Levantava a lança e saudava aquele povo que não era o seu, mas cuja vontade soubera ganhar, iniciando, assim, uma fama de prodigiosidade que se estendia pelo Oriente como uma nuvem mila­greira. Pois em todas as províncias sabia-se que o Dioniso romano tinha a seu lado uma rainha que superava em gran­deza todas as conhecidas, uma deusa que conseguia criar na terra muito mais portentos que todas as deusas celestes em seus santuários.

O renome de Cleópatra foi crescendo, à medida que au­mentavam em Antioquia os fastos que preparava para An­tônio. Caçadas em florestas intrincadas, concursos de pesca em rios turbulentos, torneios de luta em que se enfrentavam os atletas mais fornidos de doze reinos, danças executadas por dançarinas cuja beleza escapava a toda ponderação, re­gatas a cargo de canoas disfarçadas de peixes exóticos. To­dos os esportes, todas as representações marcaram encontro para aquele outono, que chegou a superar, na memória dos amantes, a recordação daquele inverno, já distante, na sem­pre saudosa Alexandria.

As magias de Cleópatra também recuperaram para An­tônio os mais deslumbrantes galardões da gastronomia. Re­organizou a Sociedade da Vida Inimitável, que Antônio in­ventara anos antes, no curso de certo inverno famoso, e que atraíra aos festins do grande palácio de Alexandria os co­mensais mais requintados, quando não os mais descomedi­dos. Ao renascer aquela sociedade no palácio de Antioquia, mui seletos hóspedes assistiram às mais extraordinárias proe­zas. Viu-se um cervo de cujo ventre surgia uma gazela, de cujo peito aparecia, por sua vez, um faisão que, ao abrir-se, deixava sair um pombo com os pulmões cheios de os­tras envoltas em suculentas misturas de fígado de ganso. Viram-se corças gigantescas devoradas em um instante, mo­lhos exóticos surgindo aos borbotões das bocas dos comen­sais, crustáceos do tamanho dos centauros e polvos cujos tentáculos abarcavam toda a extensão de uma enorme me­sa de ferro forjado.

Anos antes, em Alexandria, os excessos gastronômicos da Sociedade da Vida Inimitável deram lugar às mais pito­rescas conjecturas. Uma testemunha excepcional, o médico Filotas de Anfissa1, teve ocasião de comprovar sua veraci­dade. Pois, tendo travado amizade com um oficial das cozi­nhas reais, este lhe proporcionou a oportunidade de visitá-las. Ali, entre muitos outros manjares, o médico descobriu cinco enormes javalis, que os escravos estavam assando em espetos não menos gigantescos. O médico exprimiu então sua admiração pelo número de comensais que encheriam de pom­pa os salões de Cleópatra. O oficial pôs-se a rir e respondeu: "Não é um festim tão esplêndido, pois limita-se a uma dú­zia de convidados. Mas cada prato deve ter tal ponto de per­feição que, no instante de servi-lo, poderia ficar passado. Se Antônio pede sua ceia neste exato momento, mas de repente tem algum desejo ou quer entregar-se à bebida e, portanto, deixa seu prato de lado, é preciso ter outro

 

1 Amigo do avô de Plutarco, cujo testemunho serve de base para Vida de Antônio, do escritor romano. (N. do A.)

 

preparado para servir assim que ele tiver vontade. Por isso, hás de entender que é necessário ter preparadas várias refeições ao mesmo tempo, já que é impossível adivinhar a hora exata em que o capricho pode se produzir..."

Foram maiores ainda os caprichos de Antônio em An­tioquia e maior o empenho de Cleópatra em conduzi-los a bom porto. Por seus fastos, seus excessos, suas extravagân­cias, aquela capital passou a ser a Cidade Inimitável, pois nenhuma pôde oferecer um gênero de vida que a superasse em esplendor, ou sequer se aproximasse dela.

Cada madrugada, a rainha desnudava o amante com as próprias mãos e jazia sobre seu corpo, recostando a face no peito encanecido. Escutava, sem atentar para eles, os mur­múrios que chegavam de mais além da embriaguez. Deixava os próprios pensamentos voarem em direção aos rochosos alcantilados, aos agrestes baixios que os separavam da terra que Antônio devia conquistar como início de seu prodigioso domínio sobre o Oriente. Pensava na Partia, sim, e perguntava-se com certa inquietude se o renascimento de seu antigo amor por Antônio chegaria pelos caminhos daquele prazer convertido em cotidiano ou quando depositasse a seus pés o território vencido e os louros do vencedor.

Nenhum de seus adivinhos conseguiu tirar-lhe as dúvi­das. Mas um ligeiro estremecimento percorria seu corpo, mal pensava na possibilidade do amor, mal se imaginava percor­rendo de novo aqueles edens cujas árvores preciosas e per­fumadas escondiam tantos espinhos.

Quando soube que estava novamente grávida de Antô­nio, não pensou mais no amor, nem nos edens. Compreen­deu que daria à luz um filho da estratégia.

 

Antônio discutia com seus oficiais quando lhe anuncia­ram que o rei do Egito solicitava ser recebido em audiência protocolar. Enobarbo pôs-se a rir, recordando seu aperto quando Cleópatra o recebeu em Alexandria e recorreu a tal tratamento.

Negócios de governo, sem dúvida murmurou Antônio.

E deixou de lado um ponteiro de prata que utilizara até aquele momento para assinalar os territórios dos partos em um mapa pendurado entre duas colunas.

Os negócios de Estado do rei egípcio atrasam, uma vez mais, os assuntos de guerra do general romano res­mungou um velho oficial chamado Demétrio. Os partos podem esperar tranqüilos nas portas de suas casas, pois a guerra passa longe de seus narizes para ir languescer no leito do amor.

Antônio soltou uma gargalhada sonora, enquanto o es­cravo Ionides o ajudava a colocar a mais cara de suas túni­cas orientais.

O rei do Egito nunca entrou no leito do amor, que está reservado permanentemente para a adorável sereia de Alexandria. Por isso te digo, Demétrio, que, se Cleópatra recorre a seu título de coroação para me visitar, deve ser por­que sua embaixada concerne à política, não ao amor. E nesta campanha a política é tão importante quanto a própria guerra.

—            Seria importante se Antônio fosse político insis­tiu Demétrio, sob o olhar desconfiado dos demais oficiais.

                Mas Antônio é um guerreiro, e, aliás, o melhor em seu

ofício. Um ofício que, apesar de reiterados anúncios, reluta em praticar. Já faz meses que seus soldados se aborrecem no acampamento. Estão fartos de repetir continuamente uma instrução de que não precisam. Perguntam-se para que tan­tas marchas, tanto cavar trincheiras que não servem para na­da, tanto tirar a poeira de catapultas e aríetes cujos gonzos quase se oxidaram...

O tom jovial de Antônio não parecia o mais adequado para contra-atacar a gravidade imposta por Demétrio e com­partida pelos outros membros de seu estado-maior. De mo­do que se limitou a continuar rindo e a acudir à procura de Cleópatra.

O rei do Egito esperava-o na grande sala do palácio. To­das as suas indumentárias emprestavam-lhe um aspecto de gravidade ainda mais incômodo que as recriminações dos ofi­ciais romanos.

Mas Antônio tinha a favor de seu bom humor o pláci­do sol da manhã e os vestígios que o vinho da noite anterior deixara-lhe no cérebro. De maneira que correu para a ama­da com os braços abertos e um brilho brincalhão nos olhos.

— O rei do Egito está mais formoso que nunca! — ex­clamou, descendo a trote a escadaria.

Cleópatra, entretanto, permanecia imperturbável, com os braços cruzados sobre o peito e a cabeça sustentando uma imitação mais ou menos valiosa de sua coroa oficial. A de viagem, como diziam frivolamente suas damas, quando lhes cabia depositá-la em uma caixa de ébano adornada com o nome de coroação de Cleópatra.

O cerimonial não se limitava ao vestuário. Rodeava sua majestade um nutrido grupo de cortesãos e donzelas que a acompanhavam naquela viagem. E, a julgar pela severidade de suas expressões, oficiavam como testemunhas de algum acontecimento de grande relevo.

Cleópatra dirigiu-se a Antônio falando em voz baixa e pausada, como se recitasse uma lição longamente ensaiada.

— O rei do Egito a Marco Antônio, procônsul de Ro­ma no Oriente. O rei do Egito ante toda a sua corte. O rei do Egito ante o mundo... anuncia oficialmente que seus mé­dicos lhe anunciaram a chegada de um filho.

Marco Antônio não se alterou ante o que era, com toda a evidência, um costume nascido de uma obrigação divina. Prosseguiu com seu tom jovial ao dizer:

— Antônio, descendente de deus Hércules, Antônio, protegido de Dioniso, aceita oficialmente a notícia. E, ao mes­mo tempo, orgulha-se dela, já que confirma seu caráter di­vino. Pois fazer um filho em um rei é algo que nem o pró­prio Júpiter conseguiu.

Os cortesãos não se alteraram. Mais uma vez, os sensos de humor egípcio e romano não coincidiam. O de Cleópa­tra, contudo, parecia adaptar-se a qualquer situação. Pois, sorrindo com notável encanto, respondeu:

Em todo caso, é mais mérito do rei do Egito que do procônsul de Roma.

Não é se adjudicar demasiadas virtudes? — pergun­tou Antônio, divertido.

Tente o procônsul fazer um filho no rei Herodes. Será curioso ver se triunfa nesse empenho.

Antônio descobria uma insólita cumplicidade no sorri­so da amante, um ritmo agradável que flutuava acima e além da insólita cerimônia que organizara.

— Antes de me mandar cumprir um empenho tão pou­co grato, porque Herodes nunca foi precisamente uma ré­plica viva de Apolo, o rei do Egito dará ao procônsul oca­sião de comprovar a veracidade de sua prenhez.

Ditas estas palavras, ergueu-a no colo ante o estupor da corte. A coroa em forma de mitra caiu no chão, e, como uma cascata, surgiu a negra cabeleira que se agitava tumultuosa­mente enquanto Cleópatra ria nos braços de Antônio.

Uma vez em seus aposentos, depositou-a sobre as peles que cobriam o leito e, ato contínuo, pulou para o lado dela. Beijou-a com um delírio a que ela resistia entre risos e balbucios. No entanto, ao rir, jogando toda a cabeça para trás, não fazia mais que oferecer-lhe o pescoço, que ele percorria com os lábios.

Nunca deixaste de me surpreender. Para chegar até aqui, montaste essa ridícula cerimônia.

Para conseguir que reconheças oficialmente o que se­rá teu terceiro filho. E acrescentou, coquete: Comigo, quero dizer. Os outros não tenho paciência para contar.

Cleópatra e o caráter oficial! Não tens nada melhor para ocupar teus dias?

É o único modo para que nossos amores, e o que de­les deriva, não sejam um simples motivo de conversa entre comadres ociosas. Ou, pior, o ponto fraco que pode servir ao Senado romano para nos atacar. A falta de caráter ofi­cial é nosso calcanhar de Aquiles.

Rainha enfadonha! Aquiles tinha outros atributos, além do calcanhar. E vou te demonstrar que também posso tê-los.

Sendo vistos demais, os atributos de Antônio podem chegar a entediar.

Mas fizeram amor, e Cleópatra sentiu de novo o mes­mo vazio e teve de gritar sem vontade, para ocultar que seu prazer era fictício.

Quando seus corpos se recuperavam, estendidos sobre peles e repartindo-se frutas do outono, o cérebro da rainha voltou a pôr em marcha sua engrenagem.

Antônio, lembro-te a necessidade de reforçar de uma vez tua situação no Oriente.

Não me esqueci disse ele, pensativo. Dir-se-ia que, pela primeira vez em muitos meses, pen­sava seriamente em alguma coisa.

É necessário que me entregues as terras que pedi e reconheças Cesário como rei do Egito.

Isso me colocará contra Roma.

Somente contra Otávio. Se entrares em Roma osten­tando como um triunfo a vitória sobre os partos, o povo se deixará deslumbrar por tua auréola. E, mesmo que te acu­sem de entregar territórios que foram conquistados, pode­rás te defender alegando que, em troca, lhes dás outros.

A política sempre vem invadir os terrenos do amor! exclamou Antônio.

Tentou abraçá-la de novo, porque o fogo renascia em suas veias.

A habilidade do político é a única que pode nos aju­dar a preservar nossa independência.

A insistência de Cleópatra afastava-o do desejo. E seus temas, talvez por serem repetidos, começaram a convencê-lo. No final da tarde, dava-se por vencido.

Ativarei minha campanha contra os partos. Hei de me concentrar nela como jamais fiz com nenhuma batalha. Porém será necessário que voltes para Alexandria.

Não pretendo fazer isso. Precisas de mim a teu lado.

Embora precisando tanto de ti, até extremos que se­quer podes supor, vou prescindir de ti em nome dos dois, do Egito, dos filhos que já temos e do que está para chegar. Acariciou com doçura o ventre de Cleópatra. — Espera-me em Alexandria como mãe, e saberei conseguir que te or­gulhes em me receber como rainha. Antônio ainda não tra­vou sua última batalha. Sua vida começa agora. Tudo quanto houve antes foram simples escaramuças. Se queimei minha juventude em fogos-fátuos, quiçá a maturidade me dê a sa­bedoria de que necessito. E pressinto que minha maturidade está em tuas mãos, minha rainha, assim como a senectude do Egito está nas mãos do deus do Nilo.

 

Pouco a pouco, Antônio recuperou a gravidade que, sem ele mesmo saber, era seu trunfo mais seguro para aceder à admiração de Cleópatra. A partir daquele dia, diminuiu o número de festas, o vinho escasseou em sua mesa de traba­lho e o ponteiro de prata pousou tantas vezes no mapa da Partia que esgarçou a pele, de maneira que foi necessário substituí-lo. Em poucos dias, Antônio conhecia de memória os estreitos desfiladeiros, aptos para qualquer emboscada do inimigo, as cidades fortificadas que podiam exigir o uso das máquinas de guerra, as planícies onde seria cômodo acam­par os soldados ao abrigo dos fortes ventos.

Todos os seus oficiais afinaram-se em idêntico entusias­mo, avalizado pelo que se apossava de seu chefe. Considerou­se prudente atacar em meados da primavera, quando os ele­mentos não ameaçassem com uma derrota ainda mais inevi­tável que aquelas que as armas pudessem infligir. E os sol­dados, cansados de tantos meses de ócio, vitoriaram a decisão.

Enquanto o grande sonho do Oriente começava a tomar forma prática nas atividades diárias do general, Cleópatra preparava seu regresso a Alexandria. Embora a lembrança de sua cidade a arrastasse com um ímpeto que nenhuma pai­sagem da terra podia inspirar-lhe, experimentava de repente uma doce melancolia, uma vaga tristeza por ter de deixar o amante. Se não era amor, era algo muito parecido com a ter­nura, substituto ideal, delicioso, quando o amor não existe.

Imagens de melancolia. Instantes breves, carentes de im­portância, insubstanciais e até medíocres. Tudo quanto a me­mória não espera reter assaltava-a agora com uma insistên­cia quase feroz e sempre traiçoeira. Pois a memória não ad­vertia: estabelecia-se como uma imposição, sem importar-lhe em absoluto o alvedrio da alma.

"Talvez a essência do amor, seja esse caráter provisó­rio dos instantes", pensava Cleópatra, tentando analisar as sombras que resistem a toda análise. "Talvez a plenitude do amor estivesse naquele fugaz encontro de nossos olhares, em algum lugar do qual não me lembrarei dentro de uns anos. Mas que doce será então, e que díspares suas delícias!"

Sorriu ao perceber que se convertia em uma teórica dos sentimentos, enquanto Antônio recuperava, passo a passo, seu papel de teórico da guerra. Ao vê-lo passear meditativo ou desenhando na areia da praia os itinerários que antes as­sinalara no mapa; ao vê-lo caminhar, nervoso, de um lado para o outro do terraço, sentia-se confundida por sentimen­tos tão antitéticos, por impulsos tão opostos, que se maravi­lhava com sua própria complexidade ao senti-los.

Em honra à amada, Antônio recuperou a galhardia de ontem, entregando-se aos mais duros exercícios, devolven­do ao corpo a agilidade que necessitaria na guerra, onde a gordura e o intumescimento não se limitavam a ser um pro­blema de estética meditado por uma sofisticada princesa ale­xandrina.

Cleópatra gostava de deslocar-se até o ginásio, acom­panhada por suas damas de honor e, uma vez ali, assistir co­mo espectadora aos exercícios e jogos do general. Este e seus companheiros extenuavam-se ao gosto grego, isto é, comple­tamente nus, de modo que as damas da rainha agradeceram por não estar na antiga Olímpia, em cujos sagrados recintos era proibida a entrada de mulheres. No ginásio de Antioquia, ao contrário, sua presença era bem recebida, e algum oficial de Antônio, havendo-se mostrado desejável aos olhos da me­nos cauta das aias de Cleópatra, converteu-se em seu assí­duo comprazedor durante as semanas que restavam para a partida.

Naquela atmosfera sobrecarregada, Hércules e Eros davam-se a mão com uma complacência que, afinal, não era tão singular quanto teria podido parecer a qualquer visitan­te pudibundo. Eros visitou de novo a mente de Cleópatra, oferecendo-lhe imagens de Antônio que excediam os disfar­ces de suas pândegas para introduzir-se nos domínios da ar­te. De modo que Eros se fazia alexandrino.

O outono de Antioquia estabelecia um contraponto ade­quado à vida que se renova constantemente, com a natureza revestida de suntuosidade. Comprazia-se então a rainha con­templando como as árvores se desnudavam progressivamente, no estilo de uma odalisca demasiado tentadora. E a queda das folhas mostrou, sobre a várzea de Antioquia, uma pro­cissão de esqueletos que, sendo desconhecidos, tinham de revelar-se fascinantes para uma filha do Nilo. Carvalhos de corpo robusto, cheio de protuberâncias acidentadas; esbel­tos álamos, cujos ramos só pareciam crescer para retorcer-se na parte mais alta; castanheiras cujos troncos formavam cavernas pavorosas, que pareciam adentrar no mais profun­do da terra... tudo, enfim, falava a Cleópatra da infinita va­riedade da existência tão logo os olhos se apartavam do cor­po desejado, tão logo se apartavam de Alexandria.

Sua memória, contudo, não se exilara da cidade. A su­prema arte de suas ruas assaltava-a, na recordação, e confirmava-se como uma parte de si mesma, à qual era im­possível renunciar. Porque, ademais das características que a convertiam na cidade única, Alexandria guardava Cesário. O objeto mais adorado na singular tesouraria de sua alma.

Cesário, o menino de ontem, convertido agora em um projeto tão magno que excedia suas pobres forças. Cesário, suportando a pesada coroa dos dois países, o diadema im­perial, como os poetas gostavam de dizer. Duas terras, sim, o Alto e o Baixo Egito, mas uma só voz que se faria escutar em todo o Oriente. E, se as forças de Cesário não bastas­sem, ela estaria detrás do trono, insuflando-lhe as suas, co­mo fazem as divindades do vento. Junto dela, Antônio, su­premo conquistador de um império como nenhum de seus antepassados chegou a conhecer.

Mais uma vez, o amor não a tranqüilizava. O amor trazia-lhe o anúncio das mil ameaças que podiam espreitar Cesário. O amor convertia-se em outra carga.

Em uma daquelas tardes de Antioquia, enquanto o pá­lido sol acariciava suas faces, Cleópatra adormeceu. De no­vo sonhou que Cesário estava em perigo. De novo sentiu-o na carne como a ferida que nunca pode cicatrizar.

Mas o habitualismo do pesadelo multiplicara o número de atacantes. Já não era apenas Otávio que se encarniçava so­bre o filho adorado. De qualquer canto do universo, surgia traiçoeiramente uma coorte de demônios maléficos armados de tal modo que seus corpos disformes estavam mais bem ape­trechados que qualquer armaria, que qualquer arsenal. Gênios do mal prontos para atravessar o coração do Menino Divi­no com lanças de ponta envenenada, flechas de guerra e ar­pões capazes de acabar com os enormes hipopótamos do Nilo!

Entretanto, até em suas descidas ao mundo dos mitos, Cleópatra conservava o civilizado senso de humor. E ouviam-na repetir em seus sonhos:

— Filho meu! Se fosses realmente Horus, e tua mãe a grande ísis, que tranqüilidade para os dois.

Mas naquela tarde, uma qualquer de sua última sema­na em Antioquia, o pesadelo habitual sobre Cesário viu-se interrompido por umas das damas que lhe anunciava a che­gada de um dos oficiais de sua guarda em Alexandria. Era portador de cartas urgentes de Sosígenes.

Chega de Alexandria? Que entre já, se traz consigo os ventos do crespúsculo! Que entre, se traz o aroma das flores nos oásis! Mais ainda, se traz toda Alexandria em seu olhar! Enfim, que entre de todo modo.

Prescindindo da urgência das cartas, Cleópatra reparou no garbo do galã. Era um típico espécime da nova sociedade alexandrina: o corpo escuro, as feições aquilinas dos egíp­cios do Alto Nilo, desmentidos por um uniforme de estilo grego. Ao sorrir-lhe, tão-somente para recompensá-lo por sua beleza, a rainha pensou em Apolodoro. E sentiu, por um ins­tante, saudade de sua ternura.

Como está teu capitão? perguntou, com um olhar carinhoso.

Meu capitão está desolado. Não mais por amor, co­mo costumava, e sim pelos tristes sucessos que estas cartas relatam.

Cleópatra teve um sobressalto, como se temesse que a parte mais aterrorizante de seus sonhos se houvesse desen­rolado em algum lugar distante.

Aconteceu alguma coisa a meu filho? perguntou rapidamente. Se assim for, ordeno-te que não me ocultes nada. Mais ainda, eu te suplico.

O príncipe está divinamente bem... como cabe a sua dupla natureza. Os tristes, fatídicos acontecimentos que já estão na boca de toda Alexandria se referem a tua dama fe­nícia, a dos cabelos como fogo e olhos estranhos como as estátuas dos gatos sagrados.

Referes-te a Bálkis? Não entendo. Merece essa lou­ca cartas urgentes?

Contudo, à medida que lia a narração de Sosígenes, seu rosto empalidecia. E descobriu que Amor dispunha de dis­farces e máscaras desconhecidos até mesmo para ela.

 

Um calor intenso desabava sobre Alexandria, e os va­pores dos lagos próximos misturavam-se com o sopro opressor que chegava do deserto, de maneira que uma muralha de fo­go atravessava a cidade vinda de trás dela e nem sequer o mar a detinha. Pois o próprio mar ardia, enviando aos ho­mens um eco do inferno.

Entre as paredes de sua estância, paredes que o calor revestia de fagulhas, a bela Bálkis queimava incenso diante da imagem da deusa dos inúmeros peitos, que ainda hoje pro­tege os fenícios.

Eram em vão suas orações. Eram em vão os olhares su­plicantes que dirigia a Totmés, quando se cruzavam nos apo­sentos reais. E, em meio a tanta esterilidade, na negação de todo o resultado, a formosa decidiu recorrer aos feiticeiros.

Deixou para trás as brancas edificações da cidade no­va: os marmóreos templos, as delicadas mansões dos ricos, as equilibradas colunatas das academias. Superou, depois, os bairros populares, os becos das pousadas, as tabernas e os mercados. Cruzou entre gregos, judeus, armênios, ára­bes, negros e todo o tipo de gente vomitada de todas as cos­tas daquele mar que ardia além do farol. Quando, depois de cruzar a muralha, chegou aos limites do deserto, dirigiu-se a uma choça edificada com sacos e caniços entre as colunas de um antigo santuário faraônico.

Daquela escuridão emergiu a maga chamada Fruna. Sua pele, igualmente escura, aparecia sulcada por símbolos es­tranhos, mal pintados com cores terrosas. A quantidade de amuletos variados e versicolores metais que lhe pendiam do corpo enxuto indicava que ela procedia da longínqua Núbia, país que sempre deu ao Egito seus melhores feiticeiros.

— A lua cheia insufla vida nos metais no ventre da ter­ra. A lua cheia fecunda as plantas e abre-as à vida. A lua cheia é igual à cabeça de teu amado, branca e lisa como os ovos das pombas dos templos.

— Assim é, de fato, a cabeça de meu verdugo.

— A lua se mostrará propícia, se lhe aprouver. Mas to­ma cuidado, pois é uma lua perversa. Não vês que engorda como uma vaca à custa do sangue dos apaixonados?

A feiticeira entregou-lhe um boneco de cera que repro­duzia os traços principais de Totmés, ou seja, a cabeça ras­pada, a alvura das roupas pintadas na pele e uma agulha de ouro no lugar exato que o falo deveria ocupar.

Que a lua banhe duas noites e outras duas noites tua urina o faça. No ponto exato em que teu verdugo tem o mem­bro viril aparecerá uma flor. Mas toma cuidado, Bálkis, pois a lua pode decretar maldades. Se a flor que sair for negra, desiste de teus propósitos, pois o crime cairá sobre Alexan­dria. Encerra-te na contenção e deixa o sacerdote em paz, porque a lua pedirá mortos em lugar de oferecer amantes.

Bálkis regressou ao palácio e realizou com toda a dili­gência os exercícios que a feiticeira lhe ordenara. A figuri­nha de cera recebeu raios da lua, alimentando-se com seu avanço, e, por fim, apareceu o membro secreto de Totmés, anunciando a proximidade do plenilúnio.

Bálkis recusou horrorizada, pois o suposto membro do amado era uma pequena flor tão negra quanto o sangue dos demônios. Por um momento, soube o que era o medo, mas de modo algum a derrota.

Tomou aquela monstruosidade recém-criada e apertou-a contra o peito.

— A lua é agora uma sultana que quer escravizar. A lua quer mortos, quando há pouco se contentava com escra­vos! O sangue a fez crescer mais! Porque há de nutrir-se de sangue esta deusa glacial? Fingirei que minhas libações são em tua honra, dama sinistra... mas hão de ser só para Tot­més. Oh, deusa! Manda um raio de luz sobre estas trevas para que ele possa me ver. Eu te invoco, princesa da morte, para que aumentes a agonia do que feriu meu coração... Ah, Tot­més! Olha para mim do cárcere de tua castidade! Ergue os olhos para Bálkis! A ti não posso mentir. Não é a lua que acende minha fúria. Mil vezes recebi sobre minha carne a ca­rícia de seus raios, e só foram dardos de neve sobre meu fas­tio. Totmés, Totmés! Só esta noite a lua realiza o prodígio de me dar lava em lugar de água de neve. Ah, a lua acaricia­rá minha carne como antes acariciou teu corpo casto! Por que tua castidade é a causa de meu drsejo? Tua castidade acende minha carne uma dor mais atroz que todas as heca­tombes que os sacerdotes oferecem aos deuses de mármore. Meus seios palpitam em tua honra. Dir-se-ia um brinde de ametistas. Todo o meu corpo faz brindes a teus membros e jamais brindou assim outro homem. Por que a madureza de meu desejo não cedeu ante homem algum? Fui fria como a lua, Totmés; e como ela, capaz de assassinar. Ah! Percorri as terras negras do infinito Nilo e, à sombra das esfinges ig­notas, conheci os formosos membros do beduíno tostado pelo sol, que é deus daqueles mundos. Mas nenhum despertou mi­nha sede, nenhum me causou feridas. Só fui neve que nave­gou, errante, pelas águas onde flutuam as lágrimas de tua grande mãe Isis. Percorri os anfiteatros da opulenta Creta, os anfiteatros onde atletas nus dançam sobre os corpos de minotauros ferozes, mas seus músculos, untados com óleos divinos, só me produziram o fastio do que todo o mundo pode possuir. Conheci o encanto dos efebos da Síria, que se abrem ao amor de qualquer sexo; mas em seu gozo só achei o sabor do vinho que não teve tempo de amadurecer. Bus­quei o desejo dos galhardos centuriões de Roma, desejei o prazer entre os mancebos que nadam nas águas verdes dos oásis da Arábia, quis que me apertassem os braços de aço dos gigantescos pescadores do Eufrates, aspirei a sentir meus seios esmagados pela couraça de ouro dos potentes capitães da Judeia. Não houve guerreiro feroz, nem efebo tingido de púrpura que pudesse quebrar meu gelo, Totmés. Nem guer­reiro nem efebo nem pastor nem levita. Procurei na Babilô­nia e em Mênfis, em Cartago e na Bitínia, mas a lua me ne­gou seu influxo. Até hoje, Totmés, até esta noite, porque a lua converte a paixão em crime. Nunca enfrentei a barreira do sagrado. Inflama-me esse corpo inflamado por teus deu­ses; quero beijar esse sexo onde talvez a divindade deposi­tasse seus beijos. Quero profanar esse sacrário. Quero pos­suir tua santidade além da morte, Totmés; Tua santidade é a barreira que se ergue entre minha paixão e os edens do amor. E tu és tão criminoso quanto a lua, Tótmes; és meu verdu­go, porque as barreiras contra a paixão constituem o maior dos crimes. Tua santidade insulta a natureza. Tua santidade merece ser castigada... Já estou disposta para te atacar. A lua já acariciou todas as minhas roupas. A lua já pousou em minhas jóias. A lua acaba de firmar seu último decreto... Por ti, Totmés! Por ti, meu feitiço e minha agonia!

Negando-se a ouvir a justa voz dos arcanos, cravou três agulhas de ouro no coração de Totmés. Esperou que a noite transcorresse para ir ao seu encontro.

 

Na manhã seguinte, bem cedo, Bálkis seguiu Totmés até o templo de ísis e misturou-se aos fiéis, esperando que as ce­rimônias terminassem para ficar a sós com ele. Os fiéis apartaram-se respeitosamente ao vê-la passar, pois suas rou­pas eram de linho real e suas jóias denotavam seu elevado grau hierárquico no palácio.

Quando todos já haviam ido embora, Totmés ainda con­tinuava suas libações. Uma vez concluídas, dirigiu-se para uma das dependências destinadas a depósito das oferendas. Tomou a navalha e a bacia de que necessitava para raspar as partes impuras do corpo, como ordena o ritual desde tan­tos séculos. Já se havia desnudado completamente e invoca­do a bênção de ísis, quando se viu surpreendido pelo brilho de uns olhos verdes como a esmeralda, mas ardentes como a chama que resplandece no fundo dos rubis.

Apareceu, então, a formosa Bálkis, com a longa cabe­leira revolta e os lábios mordidos com fúria na espera da noite anterior.

— O que está fazendo aqui? — exclamou Totmés es­candalizado. — Como te atreves a penetrar neste recinto re­servado aos sacerdotes?

Em vão tentou cobrir a nudez. Bálkis apoderara-se de suas mãos e apertava-as com ardente veemência.

— Também sou sacerdotiza, Totmés. Meu culto é o amor. E meu deus, um jovem demasiado avaro de suas gra­ças. Mas vim apesar disso, porque ardia em desejo de ver teu corpo. Porque há muito meus olhos vão além de teus tra­jes brancos, transpassam-nos e pousam em tua pele, a fim de possuí-la por inteiro... — Pôs-se a rir com um nervosis­mo que, longe de saciar-se, aumentava. — Agora que sinto tua nudez tão perto, posso te dizer que tua beleza supera o que eu esperava.

Abriu a túnica, e seu corpo apareceu, também nu, com exceção do púbis, que se cobria com uma diminuta cinta de diamantes. Na penumbra, Totmés viu que seus seios eram cálidos como o meio-dia nos bairros da praia e sua pele, tos­tada como a madeira das árvores exóticas.

Teve medo. Mais que o ardor prometido, mais que to­dos os paraísos anunciados, a nudez de Bálkis enchia-o de suor frio, parecido com o que empapa as vítimas do mal do inverno. Seus dentes rangiam e apertavam-se com tal violência uns contra os outros que toda a boca pareceu a ponto de ex­plodir como um vulcão.

Bálkis conduziu a mão do sacerdote até seu próprio se­xo. E sorriu com malignidade ao dizer:

Não chores, meu irmão; ao contrário, regozija-te por­que teu corpo estava adormecido e despertou para a vida.

Nem o porco, que nos é proibido comer, nem o es­terco, que nos proibiram pisar, é tão impuro ante os olhos da deusa quanto o são teus atos: Vai-te já daqui, com tua coorte de demônios!

Vou-me, apesar de, na realidade, teu desejo ser bem diferente. Os demônios ficam contigo, e esta noite abrirei meu corpo para que me penetrem, porque nem sequer tua casti­dade é forte o bastante para resistir aos filtros com que a lua embriaga o sexo dos mortais, quando está cheia.

Totmés conheceu assim os primeiros ataques do dese­jo, que assim permaneceram dentro dele, atormentando-o du­rante todo o dia, desviando-lhe do cérebro todos os pensa­mentos que não se referiam ao corpo delicioso de Bálkis, à ondulação de seus cabelos vermelhos e ao verde resplendor de seus olhos ferinos.

Ao chegar a noite, entretanto, cumpriu-se o vaticínio de Bálkis: a lua encheu-se completamente e enviou sobre os hu­manos filtros de amor e cutiladas de desejo. O ar encheu-se de gritos de prazer, as plantas vigorizaram-se, os animais sa­grados buscaram seu par entre as colunas dos grandes tem­plos. E Totmés, encerrado em seu quarto, abraçava-se ao pró­prio corpo e estreitava-o com tal força que mal podia respirar.

— Bálkis, minha irmã! — gemia o sacerdote, apertan­do o ventre contra os mármores do chão. — Minha adora­da! Vem a mim de uma vez! Vem, porque estou cheio como a lua!

De repente sentiu horror de sua fraqueza e saiu pelos corredores que o distanciavam dos aposentos das mulheres. Precisava de um amigo que o ajudasse a superar aquele transe. Precisava que alguém o distraísse de seus pensamentos, de seu corpo e da lua.

Assim chegou até as dependências de Cesário. Aproximou-se do leito e afastou de um golpe as cortinas que faziam as vezes de mosquiteiro.

Soluçava desesperadamente, enquanto tentava desper­tar o príncipe, sacudindo-o e soprando em seus olhos.

— Protege-me, meu príncipe. Protege-me porque senti a tentação em meu corpo, e ela continua palpitando, embo­ra eu tenha tentado desterrá-la.

Agitava o corpo do rapaz, cravava as unhas em seus om­bros nus, suplicava-lhe a viva voz nos ouvidos, até que Ce­sário despertou à realidade e fitou-o com olhos atônitos.

Pergunta-me algo, meu príncipe. Não. Pergunta-me mil coisas, uma após outra, e que sejam duas mil até chegar a manhã. Que tua conversa me ajude a esquecer os feitiços da lua. Pergunta-me sobre a conformação do corpo das abe­lhas. Pergunta-me sobre a respiração das lagostas. Há ape­nas dois dias, desejavas saber. Pergunta-me agora, imploro!

Vens me despertar para falar de insetos? Não tem a menor graça!

Tentou afastá-lo com um empurrão. Totmés, contudo, insistia em seus soluços.

— Pede-me que te conte alguma história. Conheces a dos dois irmãos? Não, não, esta te contei várias vezes. A que não conheces é a do náufrago. Pede-me para contá-la ago­ra! Não vês que preciso de ajuda? Não vês que és meu único amigo?

Mas Cesário ajoelhou-se no leito. Seus olhos lançavam chispas. Os braços dobraram-se sobre o peito em inequívo­ca atitude de mando.

— Acaba com isso de uma vez, bastardo de abutre! Que­ro dormir, não escutar tuas idiotices! Estás com febre? Pois consulta os médicos do palácio! E, em tom mais impera­tivo ainda, acrescentou: Se não comprires minhas ordens, serás espancado.

Totmés retrocedeu ante aquela primeira manifestação da majestade e compreendeu que estava completamente só contra a lua.

Não vou me queixar, meu príncipe. Eduquei-te as­sim para que assim reagisses, de acordo com a tua grandeza, mas nunca supus que seria eu o primeiro a sentir o peso de­la. Por essa reação, que te coloca tão acima de mim, com­preende que meu destino é o do verdugo, que deve escolher entre matar os demais ou matar a si mesmo.

Ao sair de novo para o terraço, observou que a noite era ardente, como se os raios da lua alimentassem mil fo­gueiras na terra. E lá no fundo os mármores de Alexandria despediam sua habitual brancura de sepulcro.

Das profundezas da cidade uma voz mais forte que to­das as outras lançou uma mensagem consoladora. Não era a voz atroante que surgia das tabernas. Não eram as agita­das melodias das casas de prazer. Era um salmo delicioso que surgia do templo de ísis e alcançava-o para enchê-lo de dita ou para reclamar sua presença.

Saiu do palácio e pôs-se a correr pelos bairros elegantes até deixar para trás o Ginásio e Mousêion. Cruzou os jar­dins das palmeiras, deixou para trás os parques de mimosas e acácias e, finalmente, chegou às portas do santuário.

Tardaram em abrir, apesar de que seus golpes contra a porta de ferro forjado deviam ressoar no interior com o es­trondo de mil tambores de guerra. Mas, afinal, apareceu um noviço que fitava com expressão de assombro, tão estranha deve ter-lhe parecido a visita e, especialmente, o aspecto que oferecia. Pois assemelhava-se em tudo a um evadido das ca­vernas de Abukir, que é onde vivem encerradas as vítimas da demência.

O noviço deixou-o entrar e rogou-lhe que esperasse, en­quanto avisava o grão-sacerdote Pentauer. Ao afastar-se, Tot­més viu que seu andar era cambaleante e suas palavras ex­cessivamente animadas para aquela hora da noite.

Nem sequer a comprovação de tal irregularidade no com­portamento do mancebo podia prepará-lo, porém, para a im­pressão que lhe produziu a entrada do grão-sacerdote. Pois estava tão embriagado que tinha de apoiar-se no ombro dos acólitos, bêbados por sua vez. Todos haviam posto de lado os sagrados trajes de ísis e mal cobriam a nudez com tapa-sexos brancos, que foram mudando de cor por causa das nu­merosas manchas de vinho, gordura e óleos de cozinha.

Apesar de sua descomunal bebedeira, o grão-sacerdote reparou nas lágrimas de Totmés, apiedou-se dele e manifes­tou o desejo de ajudá-lo, se o príncipe lhe houvesse retirado seus favores ou, caso mais provável, se algum marinheiro de Esmirna o houvesse atacado nos cais aonde acodem os sa­cerdotes jovens em busca de prazeres proibidos.

Tendo ouvido a história de Totmés, ficou perplexo e, fitando-o fixamente, perguntou se era tão ingênuo quanto indicavam suas palavras ou porventura fingia. Quando Tot­més se referiu a seus votos de castidade, pondo em cada pa­lavra acentos beatíficos, todos os presentes puseram-se a rir, e o mais jovem de todos vomitou sobre uma estatueta de Ho­rus menino.

— Você é mesmo exagerado — disse o sacerdote, sem deixar de rir. — Pois uma coisa é ir abençoado pelos deuses e outra muito diferente é ir à corte e não ver o rei. Com o que pretendo significar-te, que boa e nobre é a santidade, mas obtusa e até malsã quando aparta da vida, como te apar­tou. Meu filho, meu filho! O clero já tem bastante trabalho com a difusão da mensagem dos deuses, só faltaria que, além disso, lhe tocasse predicar com o exemplo. Pois o clero já tem garantida sua santidade desde o princípio dos tempos e, se pretendesse segui-la depois de aplicada, cairia em re­dundância. O que não sei se é pecado aos olhos dos deuses, mas é no mínimo bobagem aos olhos dos gramáticos.

Totmés deixou os braços caírem dos dois lados do cor­po. Sentia que o templo ruía sob seus pés e que no mais pro­fundo dos infernos mil criaturas maléficas disputavam sua alma.

Embora seus companheiros de culto o convidassem a acompanhá-los no festim que estavam celebrando e, a fim de animá-lo, anunciassem a chegada de algumas sacerdoti-zas da deusa da Arábia, Totmés fugiu para a saída e, mais uma vez, perdeu-se pelas ruelas de Alexandria e correu por elas com expressão aterrada, de maneira que as pessoas se apartavam a sua passagem porque o julgavam raivoso. De fato, dir-se-ia que havia sido mordido por um rato da Cloa­ca Magna.

De novo em seus aposentos, caiu de joelhos, levou as mãos para dentro da túnica e enfiou as unhas na carne até começar a sangrar.

— Bálkis, cadela maldita! De que espécie é tua beleza, que assim me precipita na agonia?

Em sua loucura, reparou em uma pequena escultura de ísis que parecia observá-lo zombeteiramente de um pequeno nicho aberto na parede junto à cama. Ergueu a mão para a estátua e, agarrando-a com todas as forças, jogou-a no chão, de maneira que a divindade quebrou-se em inúmeros pedaços. O maior deles formava uma pedra pontiaguda pa­recida com as facas que os sacerdotes de Mênfis utilizam quando abrem as entranhas dos bois sagrados nas cerimô­nias do embalsamamento.

Enfiou a pedra afiada de ísis no peito e, imediatamen­te, empurrou-a para baixo, de maneira que abriu uma feri­da tão profunda quanto seu desejo. Depois cravou a pedra nas costas, nos músculos, no braço, e a cada ferida que se infligia uivava como um coiote ferido. Até que não pôde mais e caiu rendido sobre o próprio sangue.

Súbito a porta abriu-se e a lua banhou-lhe as feridas com tal quantidade de luz que sua profundidade aumentou para bebê-la. No centro daquela cegante claridade apare­ceu Bálkis, a fenícia. Ele viu que estava completamente nua, e os cabelos vermelhos colavam-se à pele, revestida por sua vez, de um suor sutil, diferente, semelhante ao bálsamo das magnólias.

— Estou enferma de ti. — gemia Bálkis. — E por estar tanto, percebo tua febre e maldigo a obsessão que te leva a resistir ao remédio.

Minha febre é funesta. Que os deuses me castiguem com uma morte sem sepultura, pois caí na abominação...

A mulher ajoelhou-se junto daquele corpo maltratado e foi acariciando suas feridas, uma a uma, sem encontrar re­sistência. Depois beijou-as e bebeu seu sangue sob os raios da lua cheia.

— Toma-me logo disse Totmés. Destrói-me com tua sanha, pois está escrito que toda resistência é inútil quando os céus se tornam surdos às súplicas desesperadas dos santos.

Três vezes Bálkis gozou de sua vítima e três vezes o pa­lácio encheu-se de gritos que pareciam de prazer, mas eram de desesperança. Pois nunca houve êxtase que pudesse comparar-se tanto à agonia como aquele que Totmés conhe­ceu sobre o próprio sangue.

Quando voltou a si, a formosa Bálkis jazia a seu lado e acariciava-lhe o peito com uma ternura que ele jamais te­ria suposto. Sua voz era doce, e suas palavras estavam cheias de amor.

Quando a lua começava a retirar-se de seu campo estre­lado, quando sua luz começava a empalidecer e a força de seus raios minguava, Bálkis disse a Totmés:

Meu coração estava certo quando me indicou que eras meu irmão. E meu corpo inteiro resplandece porque sabe que, a partir desta noite, não voltará mais a ficar só.

Não ficará, mulher, porque meu ódio há de te acom­panhar todos os dias de tua vida. Em noites como as de ho­je, os camponeses celebram a chegada da lua sacrificando um porco a Osíris. Tu sacrificaste a mim e, de fato, acertas­te na vítima, porque ante meus deuses devo ser hoje muito mais repulsivo que todos os porcos do Egito. Mas tu me re­duziste a tal condição. Por isso buscarei teu mal e farei que cada um de teus dias sirva apenas para amaldiçoar o que há de segui-lo.

Cala-te, Totmés, pois me feres profundamente. Cala-te, porque, negando-te ao amor, tu me fazes mais mal que quando me negavas teu desejo.

Sobre o meu sangue o tomaste. Pois bem, muito mais sangue brotará de teus olhos, porque o que saciaste não é nada, comparado com o que nunca terás. Puseste em minhas mãos a arma com a qual posso te matar lentamente. Deste­me o amor, para que eu possa ir cortando tua alma em pe­dacinhos, para que possa te sangrar até que teu coração fi­que completamente seco. Só então a lua terá cumprido sua vingança.

A formosa Bálkis ergueu-se com o horror pintado no rosto. E jogou toda a cabeleira para trás, a fim de afastá-la do peito do amado.

Tu és perverso, Totmés — gemeu em sua tortura. — Foste perverso quando me negavas teu corpo, porque esta­vas negando a natureza. És perverso agora, quando preten­des me estrangular com o lenço mais precioso que minha al­ma pôde tecer.

Se esse lenço é o amor que sentes por mim, utiliza-o para te enforcar. Há no jardim da rainha árvores dignas de tua beleza e tua nobre linhagem. Consome nelas tua ação, porque tudo que fizeste era contra ti mesma. E os suplícios que te infligirei a partir de agora me foram ensinados por tuas artes.

Bálkis exalou um uivo pavoroso e saiu correndo em di­reção ao gineceu. Mas no dia seguinte as mulheres declara­ram que ninguém a viu entrar nem sair. Procuraram por to­dos os cantos do palácio sua presença, ou a lembrança da mesma, ou a prova de que ali esteve ou deixou de estar.

Disseram depois que escorregou, opinaram se sofria de vertigens, falaram de algum ladrão. Entretanto, quaisquer que fossem as opiniões, todos choraram por sua sorte e pelo estado em que ficou seu corpo, tão maravilhoso horas an­tes. Pois apareceu estalado contra as pedras que serviam de base para a muralha externa do palácio de Cleópatra. E as ondas lambiam aquela nudez esplêndida, que ainda causou admiração aos que a encontraram.

Mas os carangueijos haviam devorado seu rosto, e, quan­do o capitão Apolodoro procurou os lábios que não pudera beijar, só encontrou um poço informe, monstruoso, que re­cordava o dos cadáveres que não haviam sido embalsama­dos e apodrecem nas areias do deserto. O capitão chorou com lágrimas de sangue, como se fosse ele, e não Bálkis, que ti­vesse possuído o corpo martirizado de Totmés.

Quando este soube da notícia, estava junto de seu úni­co amigo, o príncipe Cesário, que acudira rapidamente a seu leito, quando os médicos lhe informaram o lamentável esta­do que se encontrava.

O rapaz também chorou, porque pensou que suas zom­barias habituais sobre a virgindade do mentor haviam sido as causadoras daqueles tristes acontecimentos. Logo, porém, compreendeu que os outros deviam assumir a responsabili­dade pelas próprias ações e que não é culpado o homem que semeia a semente, e sim aquele que, quando a vê transformar-se em planta, sabe endireitá-la ou torcê-la, conforme sua von­tade. Com essa lição convertida em sabedoria, o príncipe Ce­sário deixou atrás a infância, para sempre.

Com sua maturidade recém-inaugurada, tentava consolar o amigo, o sacerdote louco...

Na verdade és afortunado, porque conheceste uma vez os gozos do amor...

Tenho medo, meu príncipe, muito medo.

De quem, Totmés? Dize-me, para que eu possa te defender.

De mim mesmo, porque agora sei que posso assassi­nar, embora sem ser um assassino. Vejo também que é esta a maldição que pesa sobre todos os humanos. Por ter queri­do me defender, fiz mal. Por ter suplicado tua ajuda e teres preferido o sono, fizeste-me mal. Depois me assassinaram os sacerdotes de meu culto, os mesmos que me fizeram o que sou. Assassinei Bálkis, e sua morte destroça a vida do capi­tão Apolodoro. Por tudo isso, eu me desespero e rendo mi­nhas armas ante os deuses da destruição. Pois todo ato dos humanos para com os humanos é uma cadeia que nos leva indefectivelmente para a morte...

Mas, Totmés, tu e todos os teus sacerdotes me repe­tistes à saciedade que a morte não existe.

Não existe na eternidade. Mas existe a morte na vida. Assim soube o príncipe Cesário que na alma do ser mais bondoso que conhecera acabavam de instalar seu domicílio as negras deusas do desespero e do ódio.

Quando conheceu todos os pormenores daquele drama alexandrino, a rainha exclamou:

Os deuses já não têm continência, se permitem que o desejo se ponha em ridículo até esses extremos! E tudo por uma estrangeira ardente demais. Tudo por um pobre iludi­do que prefere a esterilidade aos gozos da vida.

Dirigia-se a Marco Antônio, que acabava de chegar com outro maço de cartas.

As notícias de Alexandria te deixaram de mau humor...

Sempre disse que essa desventurada Bálkis era uma insensata. Pois é o que são, e não outra coisa, todos os que, tendo a felicidade ao alcance da mão, não sabem sentir seu contato. Tão cara é a felicidade, meu Antônio, que é um crime desperdiçá-la.

Recordou as perfeições que Apolodoro reunia, assim co­mo seus prolongados suspiros ante os desaires da formosa. E decidiu com extrema ligeireza que seu garboso companheiro de tantas noites era a felicidade, e Bálkis, a pródiga que não soube aproveitá-la. Seu raciocínio, porém, ficou flutuando no ar, mais como um capricho que como uma regra certei­ra. Se a felicidade fosse um assunto tão simples, ela mesma não acharia necessário teorizá-la.

Não devo mesmo chorar por seu destino. Correu para ele de uma maneira demasiado egoísta, sem reparar no mal que fazia a dois de meus servidores mais amados. Tomou o que não lhe cabia. E violou o inviolável.

Minha rainha exagera o tom disse Antônio com um acento jocoso.

Violou meu pobre sacerdote de uma forma que, além do mais, é antiquada. Liam histórias como a de Bálkis para mim, quando eu era menina, nos aposentos de minha mãe. Podes ouvi-las dos lábios dos mendigos nas esquinas de qual­quer aldeia do Nilo. Sempre aparecem mulheres perversas, cujos seios de fogo desviam do bom caminho adolescentes castos. Para desgraça de Bálkis, meu sacerdote é muito mais obstinado que todas as fenícias com presunções de rameira.

Antônio decidiu de si para si que o verdadeiro bobo era o sacerdote. Assim é a paixão de amor, segundo o sexo que a contempla: viola a mulher, segundo o macho; viola este, segundo a fêmea. Em qualquer caso, a tragédia permanece, pois, no dizer dos sábios, o amor que precisa de ataques sem­pre é um amor abortado.

Cleópatra cortou a conversa, como se o tema do amor, tratado com Antônio, a incomodasse. E ele ficou triste ao perceber isso.

Sei que recebeste os emissários de Herodes...

Tua rede de espionagem é tão eficaz na Síria quanto no Egito — riu ele. Em todo o caso, sempre tens razão. Herodes está preocupado com tua decisão de visitá-lo em tua viagem de volta a Alexandria.

Tem motivos para estar. Sabe que sempre apoiarei seus adversários, embora finja amizade por ele.

Tuas manobras contêm astúcias que escapam a mi­nha compreensão...

No entanto é uma astúcia prístina. Herodes tem o poder, mas não o coração de seus súditos, que o sabem ven­dido ao ouro de Roma.

Grande novidade! exclamou Antônio. Eu mes­mo convenci o Senado de Roma a colocar Herodes no trono da Judeia.

Tampouco isso é novo, tratando-se de Roma. Quan­do não podem conquistar um povo, os romanos colocam no trono um títere que serve a seus interesses. Herodes serve-os à perfeição e sem muitos obstáculos, desde que mandaste cor­tar a cabeça do valoroso Antígono. Não foi uma ação dig­na, Antônio, embora tenha sido no interesse de Roma. En­tre outras coisas, porque a família de Antígono continuará a luta. E, embora eu finja amizade a Herodes (ainda mais estando tu entre os dois), o certo é que qualquer intervenção do Egito na Judeia será em favor do príncipe Aristóbulo.

Antônio observava-a com expressão meditativa. Achava­se diante dos misteriosos telões da intriga. E desejou ter uma espada para rasgá-los um a um.

Herodes está completamente romanizado — prosse­guiu a rainha. — Não posso me opor a que se converta em uma vulgar paródia dos que o pagam. Mas posso te dizer, sim, que não interessa ao trono do Egito ter os romanos do outro lado do Sinai.

Tuas relações com Roma sempre constituíram um mistério para mim — exclamou. — Por um lado, tu a corte­jas. Por outro, favoreces por baixo do pano todo aquele ca­paz de minar seu poder.

Nós, povos fracos, não podemos nos permitir o jogo limpo. Especialmente quando vós, os fortes, sois tão sujos. Por outro lado, a obrigação do político é conhecer o terreno em que pisa. E eu sei que o do Egito não é tão seguro quanto parece... — sorriu amargamente. — Nenhum dos reinos que Alexandre deixou para seus herdeiros o foi, na realidade. É só ver que fim levaram muitos impérios... Qualquer de nos­sas iniciativas tem de ser empreendida partindo da fragilida­de! Por isso não me passaria pela cabeça atacar Roma de fren­te, nem no mais louco dos sonhos. Mas não é em vão que os próprios romanos me chamam de Serpente do Nilo. Co­nheço com perfeição o alcance de uma ação serpenteante.

Antônio contemplava alguns dos objetos artísticos que amenizavam a galera da rainha. Vetustas lembranças de ci­vilizações cujo esplendor se perdera nas perversas lacunas do Tempo. Sentiu uma estranha vertigem ao pensar que seus res­tos — se sobrava algum — jaziam sob os luxuosos edifícios, as poderosas fortalezas, os robustos santuários do Oriente moderno.

Viu-se levado a perguntar-se o que restaria do que o ro­deava no presente. Em mãos de que rainha, de que sacerdo­te, de que grande capitão estariam os objetos de seu mundo dentro de mil anos. Ou, quiçá menos, porque às vezes a des­truição do tempo não aceita esperas nem tolera dilações.

— Impérios perdidos! — murmurou Cleópatra. — Já vês que velhos somos, Antônio, nós, que nos alimentamos da morte de outros.

Roma nem sequer esperará que se cumpra o ciclo natural.

Eu sei. Roma é uma criança impaciente demais. Quando houver por bem estender seus domínios, nenhum de nossos reinos, tão antigos e soberbos, poderá atacá-la face a face. É possível que nem sequer possamos nos defender. Mas, se estabelecermos entre nós laços suficientemente for­tes, será difícil para Roma cortá-los de um só golpe...

Cada palavra de Cleópatra era um repto, e Antônio as­sim compreendeu, apesar de não poder recebê-lo com o mes­mo entusiasmo.

— Se teus projetos chegarem a ser os meus, eu me ve­rei obrigado a enfrentar Roma.

Cleópatra respirou profundamente. Acabava de ler o fu­turo nos olhos tristes do amante.

— Ainda não chegou esse momento — decidiu ele com fingido desenfado. — Pensemos no amor. Que por uns dias ele desterre a política.

Ela reprimiu um bocejo.

Como quiseres. Mas amor e política não poderão ir separados, se te decides a compartilhar minha sorte... e a do Egito.

Por enquanto, o que não posso separar é o ciúme...

Ciúme?

Terrível. Espantoso. Nunca pensei que chegaria a conhecê-los. E dói muito.

De quem poderia ter ciúme o açambarcador Antônio?

De Herodes.

Ela caiu em uma gargalhada violenta. Não escondia o desprezo.

Pelos deuses, é como se tivesses ciúmes das nuvens.

Ele soube mudar em seu próprio interesse o motivo da tua próxima visita. Em mais de um festim cantou tua be­leza de viva voz. E já se jactou de que conseguirá teus favores.

É duplamente estúpido. Primeiro, por supor que os obterá. Segundo, porque se gaba pelo que perdeu de ante­mão. Tranqüiliza-te, pois. Que Herodes se gabe como lhe aprouver. Digo-te em favor de tua tranqüilidade que, se exis­tem ervas para despertar o desejo dos reis, também há as que o aplacam por completo.

— Que mérito o de tua virtude, divina rainha!

Ela rodeou-lhe o pescoço em um abraço. E empregou toda a astúcia para que o amor conseguisse aflorar em seus olhos.

— Não é mérito de minha virtude. É de meus herbários. Enquanto se entregava à fogosidade do macho, pensou

nos estúpidos caminhos que o ciúme pode seguir. Quão er­rados! Pois, enquanto nenhuma mulher podia pensar com desejo em Herodes, havia na Judéia aquele jovem príncipe, Aristóbulo, mais formoso e desejável que todos os tesouros encerrados nos templos.

Aristóbulo era tão formoso que até o cantaram os poetas.

 

               LIVRO QUARTO

               O DEUS ABANDONA ANTÔNIO

 

Não digas que foi um sonho

Não aceites tão vãs esperanças.

Como homem preparado há tempos, como um valente,

como convém a quem de tal cidade foi digno [...]

e dá teu adeus a esta Alexandria

que perdes para sempre.

                                       Cavafis

 

A nobre Otávia acordou muito cedo, embora não por causa de um sono deficiente nem sequer por culpa de preo­cupações mais sérias que as costumeiras. Despertaram-na o vozeiro dos criados no átrio e o ruído impertinente de um carro que se afastava.

Pelo rangido das rodas, muito mais próximas que o tráfe­go que tanto incomodava os romanos naqueles dias, a nobre Otávia intuiu que alguém acabava de trazer alguma notícia im­portante ou, pelo menos, singular. Supremo atrativo naquelas semanas de tédio absoluto, apenas amenizado pelas disputas com seu augusto irmão e pelas brincadeiras das crianças!

Não tardou a aparecer na sala de almoço, devidamente vestida — isto é, com rigor e elegância — e rodeada de to­dos os seus criados. Como costuma acontecer nas relações entre a autoridade e o serviço, os que antes proclamavam a notícia aos gritos não se atreviam agora a proferir palavra. Otávia teve de recorrer a seu homem de confiança — como ele mesmo gostava de chamar-se — para que a informasse devidamente sobre a causa de tanta confusão.

De maneira que o lindo Adônis, pregoeiro da ale­gria matinal, com seu leve quitão azul-celeste, adiantou-se à fila dos demais servidores e disse:

Faze-te forte, minha senhora Otávia. Pois meu se­nhor Marco Antônio foi derrotado em terras da Ásia.

Otávia cravou as unhas nas cadeiras para reprimir qual­quer emoção. Mas Adonis, que pressentia todas, acrescentou:

Observa que o digo sem retórica. Nem é preciso, dada a magnitude da catástrofe.

É a notícia que trouxe agora mesmo o soldado pro­cedente da Partia — disse a ama de seus filhos.

Sabeis para onde se dirigia ele? — perguntou Otávia.

Para a casa de teu irmão, claro. E até se sentia cul­pado, pois entendia que era sua obrigação informá-lo antes de mais ninguém. Mas sua esposa lhe disse que as mulheres são as primeiras que devem condoer-se nesses casos. Pois são elas que correm a queimar incenso na casa das Virgens Vestais.

Otávia tomou uma decisão repentina e mais necessária que meditada. Apoiando-se no ombro de seu servidor prefe­rido, disse:

Doce Adônis, manda prepararem imediatamente mi­nha liteira. Vou até a cidade. É preciso que eu chegue à casa de meu irmão ao mesmo tempo que o mensageiro.

Enquanto os escravos corriam a preparar sua litei­ra, enquanto Adônis apressava-se em encontrar uma estola mais elegante — portanto, a menos vistosa —, Otávia rea­giu com certa nostalgia, pois era a estola que usara em seu último encontro com Antônio em Roma. Um dia particular­mente cruel e, portanto, uma memória desgraçada cujas con­seqüências ainda arrastava em suas constantes disputas com o irmão.

Como ela mesma, sua recordação continuava divi­dida, sua memória navegava sob dois estandartes. Enquan­to Otávio tentava convencê-la de que devia abandonar a ca­sa de Antônio, onde sua presença era vã e talvez ridícula, a lembrança deste navegava livremente, como um corsário louco que quisesse impor sua vontade contra todas as leis da razão.

Não voltara a vê-lo desde o nascimento do terceiro fi­lho (um menino que, na opinião do indiscreto Adônis, "che­gava tarde para tudo"). E lembrava-se daquela ocasião com especial ternura — ou pelo menos simpatia —, porque nela se mostrou o melhor do Antônio que amara. Recordou a in­genuidade de seu orgulho quando inscreveu a criatura no re­gistro civil, jactando-se de seu nascimento como mais uma gesta heróica, própria do mortal que supera os deuses no pro­porcionar à República mais rebentos que a areia do deserto tem grãos.

Areia do deserto já era a lembrança de sua última pre­sença. Uma lembrança mais, um vento nem bom nem mau — algo que soprava, simplesmente. Um amuleto que ficou pendurado no pescoço do menino para protegê-lo dos aza­res do mundo. Um cumprir com os deveres de todo pai ro­mano para logo ir espargir, em algum lugar do Oriente, seus carinhos de esposo.

Por ser uma evidência, a situação não influiu nas deci­sões de Otávia, naquela manhã em que ficou sabendo da der­rota do Antônio guerreiro.

Mais uma vez ia defender o esposo contra as iras do ir­mão. E, embora tentasse couraçar-se contra a severidade im­placável deste último, reconheceu que, no fundo, não a ame­drontava em absoluto. Afinal, contava com uma vantagem que os demais desconheciam: era a única pessoa capaz de ar­rancar a máscara de severidade que cobria o rosto de Otávio e descobrir que nele havia amor. E muito.

Por estranho que pudesse parecer a seu caráter glacial, inimigo de toda extroversão, Otávio amava-a profundamen­te. Suas virtudes iam além do prestígio e despertavam o úni­co afeto verdadeiro que sentira em toda a vida. Ou talvez não fosse o único. Pois em algum espaço de seu coração, no mais singular, sem dúvida, guardava outro pedaço de sen­timento para seu inimigo mais odiado. Para Marco Antô­nio, precisamente.

As almas geladas reservam amiúde essa sorte de surpre­sas que um espírito ardente e aberto seria incapaz de com­preender. Assim, o ódio entre os dois homens que disputa­vam o domínio do mundo podia transfigurar-se em amor sin­cero que não nascia dos triunfos repartidos, mas dos momen­tos de ócio que chegaram a compartilhar. De uma camara­dagem capaz até de desencadear ciúmes muito mais furiosos que os dos célebres amantes da lírica antiga. Se Otávio re­corria a seu espírito analítico, geralmente implacável, para descobrir as raízes daquele amor entre camaradas, aquele sen­timento que sua razão não saberia desculpar, então via-se obrigado a reconhecer o encanto de seu amigo de outros tem­pos. E, ao recordar as muitas coisas que aprendeu dele, pintava-o com os traços do herói que se acostumou a admi­rar, esquecendo por uns momentos o fantoche que o irritava.

Por tudo isso, Otávia deduziu que, se um Antônio bê­bado era capaz de despertar as iras de Otávio e um Antônio vitorioso podia inspirar-lhe receios, um Marco Antônio der­rotado bem que podia bater com êxito às portas daquele afeto, daquela ternura, que só ela conhecia.

Mas, quando Otávio a recebeu em seu escritório, sentiu que sua presença não era desejada. Era-o, a de Agripa, guer­reiro valoroso, cidadão sempre certeiro em seu critério; e era-o mais ainda a do soldado que acabava de chegar da Ásia. Otá­via constituía um estorvo. Foi isso, precisamente, o que a animou a combater para deixar de sê-lo. Assim, e não de ou­tro modo, atuam na política as mulheres extraordinárias!

Tratando-se de uma derrota de tal magnitude, po­deria considerar-se um segredo para Roma — disse Otávio.

Então maior afronta a minha reputação seria ir-me embora sem ouvi-lo, pois meu irmão me tomaria por uma cidadã indigna de escutar um desastre que, infligido a Ro­ma, é infligido a ela. Por dois motivos, pois, seria oprobrio-sa minha ausência. Porque me negam o direito de ser esposa e, ao mesmo tempo, o de ser romana.

As feições do irmão não se alteraram. Ele só se per­mitiu um gesto de parca gentileza, que convidava Otávia a sentar-se.

Quando o soldado Lúcio já estava recuperado do can­saço e o vinho punha-lhe um brilho de vivacidade nos olhi­nhos rodeados de rugas, começou sua narração.

Triste jornada! exclamou, imitando os lamentos de um histrião. Lutuoso dia em que o maior exército do mundo caiu, vítima das artimanhas do inimigo mais cruel, do inimigo mais bárbaro...!

Contém tua tendência ao excesso verbal ordenou Otávio secamente, pousando nos olhos do homem aquele olhar que intimidava quantos o recebiam. Quero dados exatos e cifras precisas. Quantos homens Antônio perdeu?

Uns vinte e cinco mil, entre legionários e ginetes...

Pelos deuses, não é uma cifra baixa murmurou Otávio, cerrando o punho contra o braço da cadeira.

Isso só na batalha... balbuciou o soldado. E ti­midamente acrescentou: Depois chegou o inverno... o in­verno, que, como sabes, traga tudo que lhe atirarem. Ou­tros oito mil homens ficaram sepultados sob as neves da Armênia...

Produziu-se um silêncio tão denso que o mensageiro pôde palpá-lo. Os rostos dos dois irmãos continuavam sem expres­sar suas verdadeiras emoções, mas no de Agripa, já quebra­do pelos anos e pela experiência, fez efeito a amplitude da catástrofe.

Sem dúvida ficou louco! exclamou. Não havia pre­visto adiar a campanha até a primavera? O soldado as­sentiu com a cabeça. Como pôde lhe ocorrer adiantá-la?

Certo disse Otávio. Nem o pior estrategista ata­caria quando todos os elementos estão contra si. Que moti­vos o levaram a fazê-lo? — E, suspirando ironicamente, acres­centou: Às vezes, amada Otávia, teu esposo age de ma­neira muito leviana.

Otávia não replicou. Conservava sua atitude rígida e mantinha o olhar perdido na distância.

Carregava o mau agouro, por causa da rainha Cleó­patra do Egito — exclamou o soldado, titubeando. E ajun­tou: Consta que, ao falar assim, peço perdão à nobre Otávia...

O gélido Otávio demonstrou um de seus escassos gestos de ternura ao apertar a mão da irmã com algo que ao menos pareceu afeto. O soldado admirou-o por um instante e deci­diu que não era tão frio como seus inimigos asseguravam.

—            Em seu afã de passar o inverno em Alexandria, junto da­quela rainha tão perversa, Antônio iniciou a campanha an­tes do tempo. Depois da catástrofe, os que estiveram mais perto dele disseram que agiu a todo instante de maneira muito confusa. Dizem que não era dono de sua razão. Todos nós, soldados, pudemos perceber isso cada vez que falava conos­co, seja para nos animar, seja para nos consolar... Era co­mo se estivesse sob a influência de não sei que drogas ou sor­tilégios estranhos...

Nenhum sortilégio — murmurou Otávia em tom tão baixo e melodioso que era como se lançasse sua voz a dis­tância: — Nenhum sortilégio... nenhuma droga estranha.

Dizem que só pensava na rainha. Apregoava isso todas as horas. E tinha tanta pressa de se reunir a ela em Alexandria que a tudo antepôs esse propósito. Precisava ven­cer os inimigos quanto antes e correr para deleitar-se com Cleópatra.

À pronúncia de tal nome, Otávio não pôde mais conter a ira. E ela foi como uma mola que o impulsionou a levantar-se.

— Pobre imbecil! — exclamou. — Com todas as car­tas na mão e foi jogá-las precipitadamente no leito de uma puta. Perdoa minha fúria, doce Otávia, mas sabes que, ape­sar de nossas desavenças, sinto afeto por teu esposo. E não sou jogador que gosta que lhe presenteiem as partidas sem ganhá-las.

—            Nunca tornará a dispor de um exército semelhante!

—            queixava-se Agripa, dando voltas no recinto. — A Ásia inteira tremia sob o galope de tantos cavalos! Sessenta mil homens de infantaria, outros dez mil entre iberos e celtas, seis mil ginetes do rei da Pérsia e trinta mil mais de outros aliados... Tremo ao pensar onde foi parar essa tremenda reu­nião de forças! Tremo ao pensar como terminará Antônio...

— Ficou com os restos de nosso dizimado exército. Em Antioquia, segundo creio. Desesperado... e só.

Só? — exclamou Otávio, em tom sarcástico. — Con­fias demais em teu general. Ele viverá rodeado de suas dan­çarinas, seus saltimbancos e seus faunos... Nunca estará só.

Por certo que não — interveio Otávia, erguendo-se. Ficou, então, à altura do irmão. E toda a sua resignação transformou-se em autoridade ao dizer: — Otávia e tudo que ela representa estará a seu lado.

Teu orgulho, Otávia! É possível que se possa dobrar tão facilmente?

Meu orgulho é ser esposa de Antônio, como é ser irmã de Otávio. E não seria orgulho, mas simples vaidade adolescente, se a desgraça de qualquer um dos dois pudesse dobrá-la.

Agripa aproximou-se. E ao falar foi o amigo prudente e sincero de sempre.

Teu irmão tem razão, nobre Otávia. A situação de Antônio é penosa, e isso o faz aceder com maior facilidade ao coração das mulheres. Quem não se comoveria ante a ima­gem de seu desamparo em um país remoto? Mas tu possuis uma têmpera e um orgulho que foram provados, demons­trados e, ademais, aplaudidos. Apelando para tua condição, apelando para teu nome, digo-te que não podes passar por cima das vexações de que Antônio te fez objeto.

Nobre Agripa, toda essa têmpera, todo esse orgu­lho não evitam que, entre todos que estão lutando pelo do­mínio do mundo, minha situação seja a mais comprometi­da. Repito agora o que já disse em certa ocasião e não deixei de repetir a mim mesma desde então: "Se prevalecerem os piores conselhos e ocorrer uma guerra, é incerto qual dos dois está destinado a vencer ou ser vencido. Mas, em qualquer dos dois casos, minha sorte é miserável..."

Se não se comoveu, Otávio ficou impressionado com suas palavras e, mais uma vez, admirou na irmã o melhor daque­la tradição romana que ele mesmo tentava impor... ainda que fosse a sangue e fogo.

Porém, por trás de seu arroubo de indubitável admira­ção, mais além de um carinho fraterno sobejamente demons­trado, pulsava uma razão última, que colocava o interesse em primeiro lugar e sua vontade cesárea na vanguarda mais destacada. Tudo isso não passou despercebido a Agripa, que conhecia a capacidade daquele estranho jovem para adaptar seus sentimentos às necessidades multicores do camaleão.

Peço tua permissão para acudir em ajuda dele — disse Otávia. — Quanto a Roma, exijo que a concedas, porque é pelo bem da própria Roma.

Que seja pelo bem de todos — disse Otávio, já sor­ridente. — Este soldado precederá teus passos, levando a An­tônio a notícia de que pensas reunir-te a ele.

Vou esperá-lo em Atenas, porque não seria digno da esposa de Antônio ir buscá-lo entre suas tropas, como uma vulgar vivandeira. Estás vendo, irmão, que Otávia sabe guar­dar sua dignidade. E de tal modo a guardo que te peço que não seja um vulgar soldado a levar as notícias, mas um ami­go de Antônio, alguém merecedor de toda a sua confiança... — Perguntou ao soldado o que o exército de Antônio podia necessitar em sua derrota. Quando Lúcio enumerou os auxí­lios mais urgentes, ela acrescentou: — Para demonstrar a meu senhor Antônio o amor que Roma tem por ele, tu me darás dois mil soldados equipados como coortes pretorianas, com armamento completo e da melhor qualidade...

Otávio continuava sorrindo.

Concedido. Pois é Roma quem o dá a um de seus filhos mais preclaros.

Também uma grande quantidade de roupa para os soldados, animais de carga suficientes para compensar as per­das, dinheiro e presentes para os oficiais e amigos de Antônio.

E Otávio não cessava de sorrir!

— Tudo será feito como dizes. E o maltratado exército de Antônio brilhará na derrota como se tivesse obtido a mais notável das vitórias. Seus oficiais exaltarão sua categoria, pois é bem certo que nenhuma dama que se estime acode a um funeral ou a um casamento sem levar algum presente para os convidados... Embora tema muito que, com o passar do tempo, o convidado deste grande festim será a Morte.

Agripa ofereceu o braço a Otávia, e ambos abandona­ram o recinto, deixando o jovem César a sós, não com seus sonhos, mas contra os sonhos dos outros. E ainda teve tem­po de perguntar ao soldado:

A rainha do Egito conhece esses tristes aconteci­mentos?

É de se supor. Nestes dias as notícias voam. O que acontece em Roma já se sabe ao cabo de quinze dias em Ale­xandria! Ademais, nobre senhor, é lógico que a rainha do Egito receba notícias de Antônio antes de qualquer um...

Por ser sua amante?

Porque lhe deu outro filho.

Para assombro do soldado, Otávio soltou uma garga­lhada clamorosa.

Com que então Hércules continua empenhado em po­voar o universo com sua prole privilegiada! Não duvido de que disporá, agora, de mais tempo. Se já o teve para engen­drar tantos rebentos entre vitória e vitória, o tempo entre duas derrotas é longo e aborrecido...

Perdoa-me, César, mas Antônio só teve uma derro­ta até agora.

Certo. Só uma... até agora! Toma tua recompensa por me lembrares isso...

Entregou-lhe uma bolsa cheia de moedas, que o solda­do soube agradecer com um olhar bovino...

Obrigado, César...

Por que me chamas desse jeito?

Todo o mundo sabe que és o herdeiro do grande Júlio.

Isso está na boca do exército?

E até do povo.

Otávio fingiu certa dor ao exclamar:

Há quem diga que o verdadeiro herdeiro de César é o filho que ele teve com Cleópatra.

Nenhum romano de coração ousaria dizer isso, se­nhor. Aquele é um bastardo. É um monstro que saiu de uma má cópula entre a loba do Capitólio e o basilisco do Nilo...

Justa definição, soldado. Tão justa que, doravante, teu César pensa adotá-la para divertir os amigos...

Mas foi ele quem se divertiu quando, a sós consigo mes­mo, revelou à própria alma todas as cartas de seu jogo. E, embora fossem obscuras, não eram atípicas.

"Sem saber, nobre Otávia, jogas a meu favor e contra teu marido. Corres a ajudá-lo sem pressentir que ele te repe­lirá mais uma vez. Tuas virtudes o aguardarão em Atenas, porém a nave dele desviará para Alexandria... ou não co­nheço o mundo. Mas isso não te deve preocupar. Vai atrás dele, humilha-te, e, enquanto isso, o tempo trabalhará em meu favor. Quando todos te souberem arrasada, quando vi­rem a mais nobre de todas as romanas suplantada pela mais viciosa de todas as egípicas, hão de se compadecer de ti e exi­girão vingança. Ao ceder em teu orgulho, não farás nada mais que fomentar o amor-próprio de Roma. O povo dirá então a última palavra, como deve ser em uma República que as­pira a tão elevados destinos. O povo fará ouvir sua voz so­berana. E será uma voz muito sábia, porque antes terá escu­tado a de Otávio César Augusto."

E fechou os olhos com extrema condolência. Afinal, con­siderava que sua voz era muito humilde, apesar de ser a eleita.

 

A derrota de Antônio em terras partas não foi interpre­tada em Roma da mesma forma que em Alexandria. Mudou, sem dúvida, o tom da angústia. Para o pilar do mundo que era Otávio importaram umas cifras concretas sobre perdas, que podiam ser esgrimadas como arma no Senado. Para a Serpente do Nilo as cifras foram um dado para uso exclusi­vo de estrangeiros (bem diz certo refrão das esquinas que "ro­mano morto, romano posto, e todos no mesmo saco"). Pa­ra a Serpente do Nilo nem sequer existia o lugar chamado Partia (nunca soube o porquê do interesse de Roma por um pedaço de terra tão pouco importante). Para a Serpente, en­fim, importava especialmente o que a derrota tinha de fra­casso. E os que a conheciam compreenderam que era um mau augúrio para o início de seu grande sonho de domínio.

O arauto do infortúnio encontrava-se diante dela, em seus aposentos privados. Embora fosse um romano, era, antes de mais nada, um vínculo com os sonhos de Antônio.

Senhora, sou um profissional da guerra e posso di­zer que nunca vi um desastre semelhante. Não me lembro de nenhum nos tempos modernos, nem sei de ninguém que possa se lembrar desde que Tróia caiu em mãos dos gregos, segundo asseguram os cantares que, às vezes, amenizam os banquetes nos acampamentos e quartéis. Não sei como me expressar, porque não sou douto. Meu pai era padeiro, e mi­nha mãe lavava roupa para as vizinhas do Testaccio. De ma­neira que não tenho letras, mas sim estes olhos e um cora­ção. E não sei como os olhos não ficaram cegos, não sei co­mo é que o coração continua batendo. Mas, como tino não me falta, compreendo que seguramente o belicoso Marte re­tirou sua proteção a Antônio, por ele depender demais de seu deus protetor, Dioniso. Pois os deuses têm ciúmes uns dos outros e, às vezes, se engalfinham, o que é bem sabido desde que se dividiram em bandos quando do sítio da cha­mada Tróia...

A rainha lançou-se sobre a mesa em um arrebatamento de cólera.

Do que estás falando, insensato? exclamou. Que tanta Tróia e tantos deuses que não servem para nada? Dize de uma vez quem derrotou Antônio.

Primeiro, o rei dos partos, o tal Fraates, nome ad­verso para Roma. Mas o remate foi dado pelo inverno, já disse.

É outro deus romano? Olha que te mandarei flage­lar, se continuares dizendo asneiras.

Ai, senhora. O inverno que chega para todos (e quei­ram os deuses que não o conheçais em Alexandria) caiu so­bre as montanhas da Armênia, depois da derrota em mãos dos partos.

Na Armênia? O que as legiões faziam na Armênia? A guerra não era na Partia?

Batíamos em retirada, porque na Partia a guerra se convertera em uma imensa catástrofe.

Estás mentindo, cão! Antônio pensara em uma gran­de estratégia. Ia surpreender os partos pelo flanco que os ro­manos nunca haviam atacado. Não fez isso?

Fez, sim, minha senhora. Mas sua estratégia foi inú­til. Por uma vez que surpreendemos os partos, eles nos sur­preenderam quinze. Estás vendo que mau negócio. Conhe­ces aquele terreno? É agreste, acidentado, tão abundante em erosões e corredores naturais que o tomarias por domicílio dos próprios demônios. Tudo são desfiladeiros tapados por altíssimos penhascos, trilhas abertas nos montes, ladeiras que de tão inclinadas parecem precipitar-se sobre a gente, gar­gantas tão estreitas que às vezes um legionário carregado com seu equipamento de campanha não podia passar e tínhamos de dar meia-volta. Digo que, comparadas com o terreno da Partia, as infernais covas de Prosérpina são amplas como a campina romana e abertas como os seus desertos.

E as máquinas? Antônio me disse que levava as mais tremendas. Catapultas, torres de assalto e um aríete tão enor­me que era capaz de abrir buracos nas muralhas mais sólidas.

Tantas máquinas para tão poucas cidades a assaltar! Se no início foi um progresso que encheu de orgulho todas as legiões, pouco a pouco se converteram em estorvo. Como transportar engenhos tão descomunais por desfiladeiros que não permitiam a passagem de um homem? De que iam ser­vir as catapultas, se de repente os arqueiros partos, que têm fama de ser os melhores da Ásia, nos atacavam de surpresa? Foi preciso formar dois exércitos distintos, indo homens em um, as máquinas no outro. Quando se encontravam, já era tarde demais. Sofremos uma emboscada em uma canhada muito estreita, dessas que se os arqueiros ficam no alto po­dem enviar suas flechas como se fosse uma chuva. Quando não era uma garganta, era uma planície em que havíamos parado para descansar da fadiga de tanto subir e descer pe­nhascos. Então ouvia-se o brado de alerta, porque apareciam ao longe as tropas do rei dos partos. E nos dispúnhamos a preparar a tartaruga, que é a estratégia infalível das legiões de Roma em qualquer batalha. Mas nem isso servia, porque, enquanto preparávamos os escudos, a cavalaria inimiga, com suas lanças atravessando peitos e suas maças esmagando ca­beças, já estava em cima de nós. Assim todos os dias. O mo­ral minguava como uma lua insatisfeita, e ninguém mais acre­ditava nos gritos de vitória que Antônio se esforçava em pro­ferir. Pois devo dizer, em honra dele e para assegurar a per­pétua glória que merece, que até com o rosto fatigado, o an­dar extenuado e uma expressão como se não estivesse a par da situação, ele continuava nos lançando arengas e lembrando que, se tomássemos a Partia, vingaríamos o ultraje que esta infligiu a Roma por não se deixar submeter no passado. Não havia legionário que não recuperasse o ânimo com Antônio, se já não o tinha, pois é justo reconhecer que, quanto mais cansado ele se sentia, mais obrigado se mostrava para co­nosco. E isso tem mais mérito ainda quando se pensa que, enquanto nos animava, ele estava pensando no suicídio.

O que estás dizendo, cachorro? exclamou Cleó­patra. Então te atreves a desafiar os próprios deuses?

Senhora, minha senhora, só estou repetindo o que ouvi muito bem ouvido e disseram com melhor dizer os que ouviram de mais perto. Antônio chamou um membro de sua escolta pessoal, um liberto chamado Ramen, e o fez jurar que quando ordenasse ele lhe cortaria a cabeça, porque não queria que seus inimigos o pegassem vivo, nem que, no caso de encontrá-lo morto, reconhecessem seu cadáver. Tal era seu pudor ante a derrota.

Cleópatra cobriu o rosto em sinal de dó:

E qual é o meu, que ainda me obriga a reter as lágri­mas? Desditoso pudor, que me impede de gritar como a mais desditosa das fêmeas!... De repente agarrou-se às mãos de suas damas. Carmiana, íris. Não sei que novo senti­mento me assalta. Mas me dá medo, porque é muito mais intenso que qualquer um dos que senti até agora.

O soldado prosseguiu seu relato:

Mas essas derrotas só foram o começo de males ain­da piores, como se Marte, brincalhão além de vingativo, se tivesse aliado às sujas Parcas. Antônio já via tudo perdido, a ponto de vestir um saio preto para inspirar piedade quan­do nos falava. Tão perdido estava tudo, como digo, que re­cebemos ordem de retroceder. O que se fez, sem ordem nem concerto nem medida nem meditação. Começou a fome; que nunca a conheças, minha rainha, pois só quem a conheceu uma vez sabe com que cuteladas ela nos rasga as entranhas. Começou também a sede, ainda mais terrível, porque nos as­saltava ao mesmo tempo que os partos, de modo que tínha­mos de levantar as espadas mais pesadas com a garganta se­ca de dois dias. De repente apareciam mananciais, e a tropa desfazia a formação para secá-los, àqueles e a todos do mundo que se tivessem apresentado. Pois tínhamos palha na boca, e não saliva; tínhamos estrias na língua e fogo nas entranhas. Mas até o consolo dos mananciais continha outra vingança dos deuses! O fato é que, embora a água fosse fresca e lim­pa, uma vez bebida produzia dores espantosas, acompanha­das por espasmos do ventre e aquela baba que o mais infec­to dos males produz quando cai em epidemia sobre a terra. E assim eram todos os mananciais que encontrávamos na­quele país maldito. Assim morriam nossos homens, às cen­tenas, aos milhares depois, como que envenenados, não sei se pela água ou porque há na Partia deuses tenebrosos que juraram ódio eterno aos romanos.

— Que acontecimento mais funesto ainda poderás me contar depois dessa hecatombe?

— O inverno, senhora.

Antes tua insistência me enfurecia. Agora tremo por­que imagino um suplício que, por ser o último, será o mais terrível. Dizias que o inverno chegou...

Já na Armênia, senhora, quando dávamos tudo por perdido e os mais desesperados diziam que inclusive Antô­nio se matara. Antes o tivesse feito meu pobre general, para se poupar de ver tanta miséria! Mas é certo que o inverno caiu sobre as montanhas, e só quem o viveu pode compreen­der que, trocando-se uma só letra, a palavra inverno pode se converter em inferno. Odiarei para sempre essa estação. Odiarei para sempre a neve. Odiarei o gelo, por muito que o desejar em uma tarde de canícula em meu sufocante bair­ro de Roma...

A mim que importam teus ódios? Fala-me de An­tônio!

Decidiu a retirada porque, entre tantas calamidades, tanta fome e tanta água empesteada, os partos continuavam nos fustigando com suas escaramuças. Começamos a sair do território a caminho da Armênia, que, como sabes, é um país amigo ou pelo menos finge ser, pois já não sei se existe ami­zade possível em caso de guerra, tão loucos se tornam os ho­mens. O exército, dizimado até um número arrepiante de bai­xas, começou a subir montes, cruzar desfiladeiros, deixar para trás planícies e canhadas. O céu logo ficou negro, os ventos foram facas afiadas. Começou a cair a chuva, e com ela a lama. Depois chegou a neve, e com ela o gelo. A duras pe­nas conseguíamos avançar, tanta fadiga levávamos nas cos­tas, além das mochilas, das armas, do escudo e de todas as provisões que sempre constituíram o lar portátil e a glória dos legionários. Mas que glória de merda! O equipamento nos impedia de avançar, as espadas pesavam como carros, os escudos não serviam para mais nada. Se tivesses visto co­mo jogávamos fora, a caminho, os objetos que estavam des­tinados a conquistar o mundo! De todos eles só nos serviam o capacete, que pelo menos nos protegia das ventanias, e a capa, que já não sabíamos como enrolar para que nos co­brisse mais partes do corpo. Também nos serviam, quando serviam, as sandálias, embora estivessem furadas e sentísse­mos que a neve se introduzia pelos furos como pregos na mão de um crucificado. De modo que, quando um de nossos com­panheiros caía, os outros corriam para lhe roubar a capa de lã, que cortávamos em pedaços para forrar os pés e, assim, avançar algumas milhas até qualquer monte, porque esperá­vamos que atrás dele estivesse, por fim, a primavera. Porém quanto mais montanhas cruzávamos, mais neve, mais gelo e mais vento gelavam nossos ossos e punham nos rostos uma cor tirando para o roxo, nos narizes um catarro como o que têm os cachorros e nos lábios uma inchação de sangue coa­gulado. E conste que este soldado que aqui fala nunca foi friorento. É fácil para o Egito rir do inverno, quando são mornas suas noites mais geladas, mas eu vivi a agonia de meus homens e digo que nunca conheci inimigo mais terrível, nem assaltante mais inesperado. Vi jovens recrutas ficarem intu­mescidos na neve; vi o cadáver de meu amigo se tornar duro como o próprio gelo; vi os cavalos ficarem paralisados co­mo montanhas de pedra completamente branca. Que outras coisas posso te contar, rainha minha? Que o mais glorioso de todos os exércitos parecia um cortejo de mendigos, esfar­rapados, mortos de fome, com as mãos congeladas, o rosto paralisado e os pés inchados. Queres ouvir mais, rainha de cálidas terras? Se adormecíamos, acordávamos cobertos de neve, de modo que todo o acampamento era um acúmulo de colinas ou tumbas formadas pela nevada da noite. Acor­dávamos debaixo dela e, ao sacudi-la, víamos que ainda res­tavam outros que tinham morrido ou permanecido soterra­dos por vontade própria. "Não me acordes", sussuravam em voz baixa se alguém pretendia despertá-los. "Deixa-me debaixo da neve, dize que estou morto, porque se ficar aqui poderei morrer dentro de um instante, e assim terão termi­nado meus padecimentos." Assim fomos deixando muitos companheiros pelo caminho. Quanto mais prosseguíamos, mais a fome aumentava. Começamos a comer os cavalos e teríamos comido até os próprios legionários defuntos, se não tivéssemos conseguido sair da Armênia...

— E Antônio?

O tom do homem mudou, assumindo acentos mais quen­tes e até entusiastas.

Antônio é um luxo para Roma. Não descende dos deuses que assegura, e sim de algum deus de grande bon­dade que ainda está para ser descoberto. Um péssimo es­trategista, conforme todos reconhecem, porém o mais no­bre general que já mamou na santa loba. Não houve pade­cimento de seus homens que ele não sofresse em maior me­dida. Cem se cansavam, ele sofria o cansaço por duzentos. Cem jejuavam, ele repartia sua comida entre o dobro. E, se mil chorassem, ele teria enfiado nos olhos archotes ace­sos para que sua dor fosse superior a qualquer pranto. Su­portando em seus ombros todo o desengano da derrota, des­ceu do pódio dos generais e pôs-se a caminhar entre nós. Tudo nele era consolo, alento, ânimo e vigor. Tudo nele era maior que o desastre.

Onde ficou?

Em Antioquia, esperando tuas ordens.

Pelos deuses, só posso lhe dar súplicas. Dize-lhe assim.

Não entendo tua linguagem, senhora. Quem suplica nesta história?

A rainha do Egito a seu general triunfante.

Triunfante? O homem fitava-a fixamente.

Se tentava consultar o olhar das damas de honor, ainda ficava mais atônito, pois pareciam tão pendentes da menor reação da rainha que choravam de emoção.

Dize a meu rude general aquilo que ele entenderá sem necessidade de outras palavras. "Alexandria o espera", dize-lhe. "O amor está em Alexandria", dize-lhe ainda. E que saiba que o clima é excelente, as mimosas floresceram, e to­dos os dias são trocadas as flores do aposento onde seus três filhos são educados.

Se ele entender, senhora, é que, além de bom, é adivinho.

Cleópatra, no entanto, não o ouvia. Algo acabava de morrer em seu íntimo. E nascia um sentimento novo que só se chamava Antônio.

Vai embora, já ordenou Cleópatra ao legionário. Vai e leva contigo o inverno da Armênia. Os deuses sa­bem que em tal transe meus olhos precisam ver a primavera da vida!

Os homens de Apolodoro levaram o decurião, e, quan­do as damas tentaram aproximar-se da rainha em atitude so­lícita, ela as repeliu com um gesto enérgico, mas de modo nenhum irado. Carmiana e íris, que se gabavam de conhecê-la melhor que as outras, souberam observar em seu rosto um resplendor que só lhe conheciam da época em que esteve apai­xonada... ou pensou estar.

Julguei estar apaixonada, faz uns anos sussurrou para si, enquanto punha as damas para fora com golpes sua­ves, quase insinuados. Pensei que o amor era realmente aquele azougue, aquela loucura dos sentidos...

A voz de Sosígenes soou no umbral da porta.

Antônio derrotado! exclamou o ancião, entran­do no aposento. Agora poderás te aproveitar.

Dir-se-ia que a notícia acabara com todos os seus acha­ques, tal era a agilidade de seus gestos e a pressa de seus passos.

Antônio derrotado — sussurrava Cleópatra. — An­tônio caído. É como se o gigante tivesse perdido o equilíbrio.

Isso o coloca em tuas mãos...

O que estás dizendo?

— Ele depende de ti, Cleópatra. Está vencido! Um raio de fúria perpassou o olhar da rainha.

— Tuas palavras trazem o inverno de volta a meus apo­sentos. Serás pior que os partos, quando te alegras com a primeira derrota de meu herói? Pobre Antônio! Se os ami­gos da amante assim celebram seu infortúnio, o que não di­rão os que o odeiam? Deverias ir para junto de Otávio, a fim de encontrar um companheiro de alegria! Não o procu­res em Cleópatra! Não o procures na mulher de Antônio...

Sentia dentro de si uma nova dita, toda a sua alma enchia-se de uma profunda ternura que não se parecia em nada com aquela longínqua paixão da juventude. Ao mes­mo tempo, contudo, rejuvenescia-a de tal modo que por um instante retornou aquela mocinha ainda virgem que se pôs a correr para o terraço, porque suas damas anunciavam a chegada do mais galhardo de todos os capitães de Roma.

Assim correu Cleópatra, embora houvessem transcor­rido mais de vinte anos. Precipitou-se para o mesmo terraço como se não portasse a pesada coroa dos dois países, como se suas têmporas estivessem rodeadas por uma grinalda de diminutos lírios brancos.

— Antônio vencido! — exclamou. — Antônio amado! Chegou à balaustrada e sentiu que o vento grego trazia

a suas faces a suave condescendência de um beijo nunca pres­sentido, nunca desejado. Rodeou com os braços um dos enor­mes jarrões de granito vermelho e sentiu que abraçava uma quimera, algo carente de consistência e que, todavia, apoderava-se de sua alma só para elevá-la. Então pôs-se a chorar.

"Volta de uma vez", pensava. "Vem, amado, porque meu coração estréia uma melodia inteiramente nova, suas no­tas são virgens, e tu não a conheces, embora te seja dedica­da. Jamais senti tanta harmonia, nunca ouvi esses sons até agora e não sei que nome lhes dar! Já não podem se chamar' Antônio, já não são de Cleópatra. São para alguém que está chegando de além do amor, são para alguém que vem a mim desde o outro lado do tempo. Mas o que está dizendo minha loucura? O tempo e o espaço se misturara, porque Antônio vai chegar. Antônio como era e como é, Antônio onde este­ve e onde está. Todos os seus rostos ao longo dos anos, sua beleza e sua velhice, sua força e seu cansaço. Antônio vito­rioso em um carro triunfal, Antônio fracassado montado em uma mula velha. Antônio inteiro! Antônio amado!"

Percebeu o cálido contato de uma mão amiga. Sem ne­cessidade sequer de voltar-se, soube que era Sosígenes.

O que procuras no mar, minha rainha?

A chegada de Antônio, triunfante.

Que nova loucura te traz esse nome?

Talvez uma loucura mais lúcida que a razão de to­dos os teus filósofos. Por ela vejo que não amei até agora. Por ela sei que todas as formas do amor foram apenas um ensaio. Porque estive louca por um Antônio vitorioso e me senti destruída por um Antônio desdenhoso. Porque morri de dor enquanto procurava a maneira de esquecê-lo. E por fim voltei a ele, e minha alma estava indiferente. Tanto pen­sei amar e de tantas formas distintas que caí em confusão, pois na realidade só amava o que ele provocava dentro de mim: a loucura, o desprezo, o ódio, a dor e até a indiferen­ça. Mas não amei Antônio até hoje, porque hoje Antônio só pode me oferecer sua derrota. Porque vem a mim despi­do, sem armas nem bagagem. Nem sequer tem passado, por­que a derrota o apaga ante meus olhos.

Tanto ouvi dissertar sobre o amor que já não sei o que dizer. Se choro, engano-me, porque tu amas; se rio, es­tou errando, porque tu odeias. O que há nesse coração, Cleó­patra, que remoinhos, que estranhas cavernas?

Meu coração girou, girou, até chegar a este momen­to. Não há nada nele, Sosígenes, que o diferencie dos demais. Porém hoje ele se sente novo, simplesmente. — Apontou para o horizonte com um dedo carregado de anéis. E o sol arran­cou reflexos de delírio de suas unhas pintadas da cor da pra­ta. — Quando eu era menina, tu me contavas a origem míti­ca de Alexandria... Por que chamamos nosso porto de "o do bom regresso". Pelo marinheiro Eunosto, dirías-me, por algum herói... Não sei, confundo as coisas e não espero que me contes agora. Meu cérebro já está cheio de dados, e os que me faltam sobre o coração não será o cérebro que há de me dar. Mas olhe para lá do horizonte e grita comigo "Eu­nosto". Que, ao ouvi-lo em sua dor, Antônio saiba que es­pera por ele o bom regresso...

Tua maturidade cabe no cérebro de uma formiga, rainha minha.

"Não me digas minha idade, já que eu poderia te odiar por isso", eu te falei em certa ocasião. Pois hoje po­des dizê-la, porque são trinta e quatro anos. E não me dão medo, porque são trinta e quatro diademas para ostentar com orgulho no triunfo de Marco Antônio.

Seja triunfo, se assim dizes. Esconde de ti mesma o que quiseres. Sinto-me velho para esta espécie de brincadei­ra. Mas em verdade te digo que tua maturidade é esplêndi­da, e poderias desfrutá-la mais que os anos dourados da ju­ventude. Vais desperdiçá-la, depositando-a aos pés de um der­rotado?

Minha maturidade chega no momento mais propí­cio, porque é a que me aconselha a agir assim e não de outro modo. Não sei se isso é amor, nem qual de suas manifesta­ções, pois o sinto pela primeira vez, não tenho prática e não posso estabelecer nenhuma comparação. Como tampouco perguntar aos demais, já que ninguém sentiu antes de ago­ra. Mas digo que, se nasce de saber Antônio derrotado, se eclode sabendo-o medíocre, quer dizer que este amor chega a mim das fontes mais generosas da vida e só a maturidade me capacita a senti-lo plenamente. Se me houvesse chegado quando eu era mais jovem, não teria sido capaz de reconhecê-lo. Por isso bendigo os anos que passaram. Por isso espero que continuem passando, porque todas as artimanhas da ju­ventude não valem o que vale esta segurança de agora.

E se Antônio não for capaz de apreciar os insensa­tos presentes que lhe ofereces?

Inútil pensar nisso. O que poderia me importar, se o sentimento é meu e quanto mais vai para ele mais recom­pensado fica?

Enfim! — suspirou Sosígenes com notável ceticismo. — Eis que o amor voltou a esta casa. Que o cérebro não saia prejudicado na queda.

Como quer que seja, não penso em colocar redes que a detenham.

Voltou o rosto para o horizonte e ali fixou os olhos du­rante um tempo que ao conselheiro pareceu interminável e a ela um vôo.

— Secunda-me, Sosígenes! Grita aos mares o nome de Antônio, para que o eco o traga consigo para Alexandria.

Sua voz perdeu-se sobre as ondas, como o mágico me­nino que sulcou os mares cavalgando um delfim de mil cores.

 

Era um resquício, era um mísero vestígio de sua galhar­dia de outrora. E os cuidados exagerados que seus homens lhe dispensavam firmavam-no mais em sua convicção de que era um ser muito triste que somente inspirava piedade.

Antônio via desfilar ante seus olhos as costas da Ásia. Eram porém, olhos perdidos, como cavernas em um rosto sulcado por lágrimas que lhe produziam queimaduras na pele, por mais que o vento do mar fosse gelado e fustigasse com a força do aço.

Permanecia longas horas na coberta, rememorando uma a uma as amargas imagens da derrota. Nem sequer ouvia o clamor do vento. Em seu cérebro ressoavam os gritos de ago­nia de seus homens, os apelos desesperados aos deuses e até o relinchar dos cavalos, com as patas paralisadas por causa do frio. E sentia sobre o próprio corpo o gelo da derrota e a gelidez dos cadáveres, enquanto que as costas da Ásia chegavam-lhe aos olhos e afastavam-se instantes depois, co­mo se fossem produto da alucinação.

Ao deslizar para lá dos alcantis, o sol corria a afundar se nas vagas escuras. Dir-se-iam arcanos divinos que até en­tão estivessem escondidos no mais pronfundo do mar.

Este mar, estas costas, no entanto, já não eram prodi­giosos espaços, cheios de vida, que a épica de seus amados gregos cantou. Ao contrário, era o oceano funesto, infernal, que os egípcios tanto temiam.

Compreendeu então até que ponto sua alma se achava dividida. Já não tinha a certeza, tipicamente romana, de que o mundo começava e terminava em si mesmo. Abandona­dos os ímpetos do triunfador, sua alma já não se comprazia no vigor patriótico, na fé inquebrantável nos grandes ideais que haviam sustentado toda a sua carreira. Não! Sua alma estava fragmentada em duas miragens distintas, que, no en­tanto, confluíam em um ponto comum. De um lado o mun­do grego, que alimentara as ânsias míticas de sua juventude; de outro, aquele mundo misterioso e desconhecido que radi­cava toda a sua força nas margens do Nilo.

Cleópatra, criatura de dois mundos, conseguira submergi-lo na mesma corrente contraditória que caracteri­zava Alexandria: como uma corrente que o afastava cada vez mais de suas origens. Descobriu, assim, que não estava va­zio, apenas substituíra um mundo interior por outros muito mais complexos e, quem sabe, mais valiosos.

De repente sua derrota começou a existir em função do amor de Cleópatra. Só podia pensar nela. Teria de enfren­tar sua pletórica majestade com as mãos vazias — com as mãos cortadas. Ia em direção a seu esplendor completamen­te mutilado da glória, com cujos fulgores pretendeu deslumbrá-la no passado. Era um mendigo que só podia as­pirar à piedade de uma deusa.

As horas passavam, os dias passavam, e o mar conti­nuava escuro e o céu plúmbeo. O general mal provava a co­mida, por mais que seus oficiais o instassem a fazê-lo. Con­tinua imperturbável, na mesma posição que adotara quan­do partiram de Antioquia. Envolto dos pés à cabeça em uma grosseira capa de lã, contemplava a passagem dos mares. O vento era tão afiado, seus flagelos tão cortantes, que lhe abri­ram no rosto novos sulcos.

Rainha divina! murmurava. Tem piedade des­se mendigo. Não o expulses de teu lado.

Às vezes surgiam diminutas ilhas que remotamente lem­bravam a vida. E, contudo, uma impressão fugaz, pois as ilhas perdiam-se ao longe, como se o mar as levasse consigo e não como se o barco as deixasse para trás. Porque o navio parecia imobilizado em um fragmento do tempo que nunca mais evoluiria. E assim passavam pequenos arquipélagos, al­cantis embravecidos, praias imensas como a solidão da al­ma. A água continuava escura, com a cor dos minerais que acarretam o infortúnio aos humanos. Os abismos submari­nos pareciam um prolongamento dos alcantis, brutalmente cindidos, cruelmente assassinados pelo mar.

—            Serei teu escravo! sussurrava sob as estrelas Se­rei o que quiseres que eu seja. Mas receba-me em teus bra­ços, rainha do amor. Compadece-te de Marco Antônio.

As estrelas continuavam presidindo o desenrolar de sua agonia, ao mesmo tempo que dirigiam a navegação rumo às costas do sonho. Tanto as fitou que até lhes falava, pergun­tava sobre o seu destino, queria saber qual dentre elas era a do Egito, porque sabia que, em seu deslumbrante tilintar, apareceria o rosto de Cleópatra.

Até que um dia o mar perdeu sua cor escura e as ondas se alegraram com a diáfana claridade de um sol que chegava da costa, à qual chegara antes, procedente dos vastos deser­tos da África. As águas perderam a limpeza irreprochável do aço e encheram-se de cascalhos e detritos, e logo houve manchas de óleo e restos de comida. Os vigias gritaram que estavam atravessando a gigantesca cloaca de Alexandria. E Marco Antônio viu naquela chegada um novo sinal de sua própria decrepitude.

De repente apareceu o farol, a impressionante manifesta­ção da benevolência da cidade para com todas as almas erran­tes, todos os esquecidos da vida, todos os mendigos da alma. O farol, maravilha do mundo, estava ah para lembrar-lhe que Alexandria era o lar. E com suas luzes insistentes parecia repe­tir: "Este é Eunosto, o porto do bom regresso. Esta é a cidade da boa acolhida, o paraíso do bom esquecimento, o lugar que, desde a antiguidade mais remota, serviu para os marinhei­ros encontrarem os caminhos mais difíceis, as peregrinações mais arriscadas. Isto é Eunosto, consolo das almas aflitas".

A disposição particular de Alexandria, que está edifica­da em um terreno completamente plano, não permitia ver o porto até estar-se quase nele. Tal, porém, não foi óbice para os marinheiros começarem a saltar pela coberta, enlouque­cidos pela lufada de febril agitação que chegava da cidade. O escravo Orion suplicou a Antônio que compusesse seu as­pecto, que era de fato lastimável, não se lavava desde vários dias, seus olhos continuavam avermelhados, e a barba, por não estar cuidada, mostrava muito mais cãs que o normal.

Mas Antônio rejeitou os conselhos do escravo e fixou o olhar na distância, no ponto onde começavam a emergir os dois portos e, atrás deles, as formas da cidade. Quis invo­car o vento com um grito feroz, porque finalmente estavam em Alexandria.

Formosa, altiva, reluzente como ele a recordava! Ah apa­recia com seus múltiplos palácios de mármore branco, com as diáfanas escadarias que comunicavam seus frondosos par­ques, com a gravidade impressionante de seus templos. Ali estava, híbrida como sua história e majestosa como o orgu­lho dos que a governaram! E o sol arrancava-lhe tais resplen­dores que a cidade inteira parecia um hino de triunfo.

Assim eram os cânticos que o vento transportava do por­to. A cidade estava em festa! A cidade estava consagrada a uma cerimônia apoteótica, que se brindava por inteiro a modo de boas-vindas.

Uma ingente multidão, ataviada como nas grandes fes­tividades, trasladara-se ao porto novo e enchia-o até o últi­mo rincão. Os que não cabiam encarapitavam-se nas esca­darias dos palácios, penduravam-se nos frontões da Grande Biblioteca, agarravam-se aos afiados obeliscos cujas pontas pareciam de acordo para recolher os raios de sol e projetá-los em uníssono em direção à nave de Antônio.

Os oficiais romanos permaneciam perplexos no convés. Algum concluiu que ou haviam se enganado de cidade, ou os alexandrinos, de barco.

— Estranha maneira de receber os derrotados — comen­tou Enobarbo.

Antônio, contudo, não respondeu. Ali, no meio da mul­tidão, presidindo-a com as mais fulgurantes cintilações que fêmea nenhuma despedira, estava ela.

Cleópatra, afinal! A estrela que iluminava o fim de seus caminhos!

Não vestia traje de cerimônia. Não fingia ser Isis nem qualquer das outras divindades oficiais, que tanto prestígio dão a qualquer cerimônia. Vestia um manto azul que lhe co­bria a cabeça à moda das castas esposas ansiosas por rece­ber em seu regaço o último alento do guerreiro. A distância, dir-se-ia Penélope, que acabava de abandonar sua tapeçaria por umas horas.

Enquanto avançava para a rainha, Antônio viu que ela estava rodeada por seus íntimos, os quais tampouco se ves­tiam à maneira oficial. Mais além, ao lado do fiel Sosígenes, encontrava-se o herdeiro do trono, Cesário, com seus fron­dosos e negros cabelos parecidos com os do próprio Antô­nio. Junto ao rapaz, um jovem sacerdote de Isis, como dava a entender sua cabeça raspada. E ainda no aturdimento que o dominava, Marco Antônio conseguiu pensar: "Este deve ser o violado". Mas não teve tempo de ir além, pois acaba­va de avistar os próprios filhos, os gêmeos, e junto deles uma robusta ama que sustentava nos braços o menor de todos: o recente Ptolomeu Filadelfo.

Por fim, ela. Por fim, seus olhos profundos, seus lá­bios inchados em uma inflexão de êxtase que não conhece­ra nem sequer nos momentos de máximo prazer. Todo o seu rosto contraído em uma expressão de entrega absolu­ta, em um sorriso que fazia parecer a própria representação da serenidade.

Antônio envergonhou-se de seu aspecto. Sentia-se su­jo, miserável, envelhecido. E estava tão consciente disso que cerrou os olhos e apertou-os fortemente, como se tentasse buscar refúgio no mais profundo de sua vergonha. Ao abri-los, porém, viu que a rainha Cleópatra Sétima, filha de ísis, soberana das duas terras, ajoelhara-se e, tirando o manto, deixava cair a abundante cabeleira e pousava-a docemente sobre seus pés, para limpá-los do pó de tantos caminhos.

— Bem-vindo a Eunosto, Marco Antônio. Bem-vindo ao porto do bom regresso.

A multidão rompeu em ovação, as trombetas lançaram ao ar sons clamorosos, os sacerdotes iniciaram um salmo de agradecimento. E, dos avermelhados olhos de Antônio, bro­taram, por fim, as lágrimas.

Estou muito cansado murmurou, de modo que só Cleópatra pudesse ouvi-lo. É como se tivesse morrido.

Cleópatra levantou-se. Era certo que parecia um morto em vida. Mas ela tomou-lhe a mão com extraordinário vi­gor. E pôs todas as suas forças ao exclamar com impudência:

Voltaste para casa, meu amor. Sei que voltaste para não ir embora jamais. E, já em tua casa e com tua amada, nada tens a temer. Ergueu o braço e o de Antônio, uni­dos ambos por uma mão que dominava sem ferir, que tenta­va tansmitir-lhe toda a força da decisão, mas também toda a ternura de um amor renovado. E gritou para a multidão: Dá graças aos deuses, povo do Egito, porque voltou um amigo. Que se inscreve em todos os templos, em todos os obeliscos e em vossos corações. Marco Antônio, amigo do Egito, devolveu a felicidade a Alexandria.

E pela mão de seu amante entrou no templo de Serápis para celebrar uma cerimônia de ação de graças que se pro­longaria até o plenilúnio seguinte.

Cleópatra, chego a ti como um mendigo.

Amores imortais nasceram da mendicidade de um instante...

No terraço da rainha, Marco Antônio sentiu de novo o impacto do luxo. Todo o negror que seus olhos haviam ar­mazenado durante os últimos meses viu-se cheio de luzes. Os bancos de mármore, os mosaicos multicores, as muralhas evo­cando idílios bucólicos levaram-no de volta ao tempo da be­leza. E tremeu ao pensar que estivera a ponto de acostumar-se a viver sem estar rodeado de coisas belas.

Ela abriu os braços, entregando-se por inteiro. Se um dia admirou sua arrogância, hoje a arrebatava sua queda. Ia até ele sabendo disso, ia até ele conhecendo suas limita­ções, assumindo as coisas que jamais seria, mesmo quando sonhou que poderia ser tudo. Seu aspecto cansado, seu an­dar desajeitado, seus gestos retardados mergulhavam-na em uma estranha sensação que, embora misericordiosa, sublimava-se para converter-se em desejo total, em fervor ab­soluto.

— Descansa, Marco Antônio. E em meu regaço, por­que voltaste a ele sem saber que dele havias nascido.

Conduziu-o até o leito de plumas que, dominando todo o esplendor do terraço, conseguia abarcar a queda do sol so­bre os mares. Antônio ficou estendido, com a cabeça depo­sitada em seu regaço e os olhos fitos em nuvens fugidias que tinham a cor da azaléia.

— Dentro em breve teus cabelos estarão completamen­te brancos, e eu te amarei ainda mais. Não terei medo, Antônio.

Estou sujo, minha rainha.

E, estando sujo, assim limpas minha alma!

Venho derrotado.

— E, estando derrotado, fazes que eu me sinta triun­fante! Então fica para sempre em Alexandria, Marco Antô­nio. Porque quando estiveres limpo e voltares a obter vitó­rias, levarás à culminância este instante único.

Beijou-o na testa. Todos os mundos que vivera dentro de si mesma, todos os anos que se foram acumulando sem se anunciar colidiam em uma apoteose maravilhosa, mais ain­da que a luta dos planetas na mágica noite de Osíris.

— Mandarei que te sirvam de beber. Não te lembras de que na corte de Cleópatra até o vinho é perfumado? Farei mais, desde que te agrade: entre as diminutas ondas de vi­nho navegarão, só para ti, pérolas divinas, esmeraldas, to­pázios e berilos...

— Não mais, Cleópatra. Passou-se o tempo.

— Será que Antônio, além de mendigo, volta a Cleó­patra moribundo?

Ele fechou os olhos. As unhas prateadas da rainha fo­ram passear sobre suas pálpebras demasiado avermelhadas. Também nelas palpou sulcos diminutos.

Regressava o passado. A glória do passado. E também suas torturas.

Tudo em ti era fantasia — sussurrava Antônio. — Quando, abraçada a meu corpo, sugerias-me ao ouvido as posturas mais originais do desejo. Quando ordenavas que teus escravos as representassem diante de nós, enquanto eu te pos­suía. Quando organizavas um festim, quando escolhias meus vinhos, quando nos misturávamos disfarçados entre as mul­tidões do porto... Que outra mulher pôde me conhecer me­lhor? Que mulher conheci menos?

No entanto eu estava a teu lado, estava inteira de­baixo dos disfarces que exigias...

Nos amargos dias da derrota, constantemente me aparecia Cleópatra vestida de luto. Era mais bela ainda que nos festins, muito mais desejável que nos leitos de plumas, muito mais amada que na intensidade do prazer. Entre tan­ta beleza, eu não sabia compreender que lugar Antônio po­dia ocupar...

Todos os lugares. E, agora, meu regaço.

Teu regaço! — Ele sorriu, tratando de erguer-se fa­tigadamente. — Antônio terá retrocedido tanto que se en­contrará na infância sem saber!

As crianças, os loucos, os iluminados são os predi­letos da grande mãe Isis. Eu a represento na terra, Antônio...

Nunca houve mãe, fosse mulher ou deusa, que tivesse um filho tão velho.

Agora foi ele que a pegou nos braços, que recebeu as tênues faces sobre a couraça de couro desluzido pelas unha­das do vento, rachado pelos arranhões da derrota.

— Um dia eu disse que te considerava de igual para igual, mas agora não é possível, porque chego destruído, e tu estás triunfante. Deixa que os dias passem. Deixa que eu volte a sentir o ar de Alexandria. Empreenderemos o proje­to que há de nos colocar de novo em paridade de condições. Eu te darei o que prometi. Devolverei ao Egito suas possessões na Ásia. E, quando o Nilo efetuar sua grande cheia, ve­rás Cesário convertido em rei do Egito.

— E, chegado esse momento, não tornaremos a conhe­cer a paz.

Ele suspirou no livre aceitamento da condenação.

Sem dúvida, porque estamos feitos para a batalha, rainha minha! Batalha permanente entre nós, porque nos amamos; batalha permanente contra o mundo, que tende a nos separar.

Contra Otávio... — sussurrou ela, recuperando parte de sua agressividade. Antônio pôs-se a rir.

Que trema Otávio! Porque a tenho a meu lado e a minha altura. Porque teu amor me dá uma couraça invulne­rável. Porque, ao empunhar a espada, saberei que empunho a ti. E tendo-te por escudo e por espada, o Oriente já não tem portas, as cidades não têm muralhas e até o tempo se humilha a nossos pés e nunca há de se atrever a passar mais do que permitamos que passe.

Caiu exausto no leito, e a rainha do Egito cuidou de cobri-lo com seu manto azul. Enlevou-lhe o sono com uma antiga melodia que falava do amor entre as crianças.

 

Antônio consumiu suas primeiras semanas alexandrinas na doação de territórios ao trono egípcio e, muito especial­mente, nos preparativos da coroação da magnífica prole de Cleópatra. Feito por demais singular, já que os quatro fi­lhos eram de pais romanos.

Os observadores sorriam malevolamente ante aquele jogo de imposturas e presenciavam desdenhosos a coroação. Que egípcio verdadeiro podia aprová-la? Um rapazola e três crian­ças dirigiam-se ao trono dos faraós sem que uma só voz sen­sata se alçasse para lembrar que não tinha havido faraós do Egito durante os últimos cinco séculos. Um rapazola e três crianças que traziam nas veias o sangue de uma rainha entre cujos antepassados não existia um único egípcio. A História dispunha-se a jogar uma partida surpreendente nas margens do Nilo. Pura caricatura, segundo os observadores.

"Sangue macedónio e sangue romano vêm fecundar o sagrado solo egípcio!", comentavam os mais aferrados à tradição.

Os demais limitavam-se a dar de ombros. Estavam tão helenizados que o destino de um Egito autóctone não podia importar-lhes. Para eles o Egito limitava-se ao prodigioso hi­bridismo de Alexandria.

Naquele jogo de bastardias, os lugares-tenentes de An­tônio mostravam-se inquietos por motivos muito diferentes. Temiam que, em Roma, frente ao Senado, a parte egípcia dos príncipes coroados pudesse pesar mais que seu sangue romano. E, se esse detalhe era fácil de perdoar nos filhos de Antônio, a questão comprometia-se em grau extremo quan­do entrava em cena o filho de Júlio César. Porque aquele príncipe, Cesário, feria um orgulho mais suscetível ainda que o do Senado e o do povo de Roma unidos. Feria diretamen­te César Otávio Augusto, à medida que atentava contra seus interesses e punha em dúvida sua legitimidade.

Tais questões eram graves, porém não tanto quanto a cessão ao trono egípcio dos territórios que Cleópatra recla­mara incessantemente. Os amigos mais fiéis de Antônio, en­tre eles Enobarbo e Caio Márcio, encaravam aquele pedido e, posteriormente, a dádiva como um pesadelo que envene­nava suas noites mais serenas.

Era como o camponês que constantemente vê em sonhos a elevada cifra de suas dívidas. Uma imagem obsessiva que repetia como um tímpano martelante os nomes dos territó­rios em litígio. Os territórios banhados pelo Jordão, a Ar­mênia, a Fenícia, a península do Sinai, as ilhas de Chipre e Creta e uma parte do reino nabateu de Petra, a cidade cons­truída entre as rochas, além da península da Arábia. (A es­pinhosa questão da parte da Judeia que Cleópatra também exigia foi solucionada com certo tato quando, em sua visita a Herodes, ela decidiu cedê-la em troca de dois mil e qui­nhentos talentos anuais. E alguém comentou, em tom de tro­ça, que a rainha do Egito já se achava dona do Oriente, pois cobrava aluguel por territórios que não lhe pertenciam.)

Enobarbo percebia que Antônio não estava plenamen­te consciente das repercussões políticas de suas ações. Se na guerra contra os partos ele se revelara um medíocre estrate­gista — quando não péssimo —, nas batalhas contra o Se­nado romano não podia correr o risco de um tropeço ou um passo precipitado. Deixar nas mãos de Cleópatra a metade do império do Oriente equivalia a ambas as coisas, agrava­das diante da opinião pública pelo fundo sentimental em que se desenrolavam.

Antônio limitava-se a replicar a tudo isso com extrema naturalidade:

— Roma é maior pelo que dá, não pelo que toma.

E os cortesãos egípcios aplaudiam fervorosamente, en­quanto seus oficiais romanos observavam-no com o cenho franzido.

Inclusive os observadores mais piedosos teriam reconhe­cido que continuava agindo um tanto levianamente, como no momento propício disse Otávio a quem quisesse ouvi-lo. O que equivale a referir-se a um círculo cada vez mais am­plo, porque, na ausência de Antônio e sua simpatia arreba­tadora, Otávio vira crescer a própria credibilidade... com base em uma antipatia que, para muitos, era a máscara que es­condia um prudente compêndio de seriedade, juízo e recato. Algo que qualquer romano podia associar facilmente com a segurança e a firme permanência das instituições.

Entrementes Antônio entregava pedaços do império em nome do que chamava de "gigantesco projeto oriental". Por­que já abandonara o conceito de sonho, excessivamente ar­raigado em um momento de sua vida que precisava esquecer a todo custo. Pois o sonho implicava sua imaturidade de on­tem, e o projeto dirigia-se para o futuro; um futuro dirigido com autoridade, mão firme e clarividência.

O projeto Oriente estava em marcha!

E Cleópatra nele, ou Cleópatra mandando nele. Es­ta era a questão que mantinha em suspenso os lugares-te­nentes do procônsul. Qualquer que fosse a intenção últi­ma do projeto, era óbvio que visava mais aos interesses da egípcia que aos dele mesmo e, por conseguinte, de Roma. O que o convertia em um caso ainda mais difícil de defen­der que a coroação de um príncipe meio macedónio e meio romano.

Pouco importava que os territórios cedidos agora a Cleó­patra tivessem sido conquistados anteriormente por Pompeu e César, conforme os casos. Com o correr do tempo, Roma fizera-os seus e considerava-os sujeitos às leis tácitas das con­quistas. Nesse aspecto, os povos subjugados tinham poucas possibilidades de formular qualquer objeção. Quem pode­ria dizer a Roma que não era de lei o que, sem lei, ela tomara?

Mas subitamente a ordem do mundo estava transforman­do-se. Do palácio decadente de uma cidade bastarda, uma cidade que não era grega, nem egípcia, nem romana, um ge­neral bêbado e uma puta oriental tentavam impor ao Sena­do de Roma uma lei que não tinha precedentes.

Daí a angústia que se apoderava dos amigos de Marco Antônio em um momento em que deveriam ter expressado júbilo, porque, em seu íntimo, do outro lado da derrota, já de volta dos abismos, o general exprimia a vontade do con­quistador. Os que o amavam deveras sabiam que não impor­tava muito a origem do prodígio. Se Antônio ressuscitava em nome de Roma ou de Cleópatra, era uma questão que só devia preocupar as comadres desocupadas. O importante era que seus passos tornavam a ser firmes, seu olhar galhar­do e seu sorriso arrebatador. Quiçá um pouco envelhecido, na opinião de alguns. Talvez. Mas sua autoridade fazia-o pa­recer anos mais velho e séculos mais sábio.

E retrocedia mais séculos ainda ao instaurar a sucessão ao trono do Egito ou, como disseram os galhofeiros de sem­pre, ao leito sagrado de Alexandria. A dinastia ficava salva, e ele próprio assegurava sua conservação, pois tomava para si o título de autocrátor, isto é, governante absoluto. Seria o braço direito da rainha, e, durante um tempo prudente, ambos administrariam o país em nome de Cesário, que se convertia em rei dos reis.

Só nesse ponto os amigos de Antônio respiraram aliviados.

— Pelo menos não coroou rei a si mesmo! — exclama­vam. — Se houver conseqüências, o principezinho as pagará.

Acabavam de decretar o futuro de Cesário.

Cada triunfo, cada cortejo, cada suntuosa procissão pre­parada por Antônio devolveu a Alexandria uma reputação de fastuosidade que chegou a rivalizar com seu prestígio co­mo centro cultural. Do grande híbrido surgia um monstro dourado cujos tentáculos alcançavam a própria Roma, des­pertando a expectativa das almas mais seletas, dos espíritos mais sofisticados. Se Alexandria recebia suas idéias do me­lhor pensamento ocidental, radicado na tradição grega, sua fastuosidade alimentava-se dos costumes do Oriente, com seu refinamento, seu hedonismo e a idéia que todo prazer tinha de ser maior que a vida.

Em Roma Otávio seguia os acontecimentos com mani­festa repugnância. Sua frieza recuava horrorizada diante da­quela fogueira de prazeres que ardia do outro lado do Medi­terrâneo; sua tendência à austeridade escandalizava-se ante aquela desproporcionada exibição de luxo e pompa. Em sua rejeição ainda achava tempo para temer o maior dos males: em Alexandria crescia o único ser vivo que podia arrebatar-lhe o direito de proclamar-se herdeiro legítimo de César. Em Alexandria desenvolvia-se o infante que se convertia em ob­jetivo de um ódio maior que aquele que Otávio sentia pela mãe dele.

— Demasiados Césares não é bom para ninguém! — costumava exclamar.

Embora seus partidários o tranqüilizassem, supondo que o bom-senso da rainha Cleópatra triunfaria sobre sua audá­cia, o certo era que o coração de Alexandria preparava-se para palpitar com a mais intensa das emoções que até então se lhe depararam. A entronização de Cesário.

Quanto ao coração do príncipe, Cleópatra decidiu prepará-lo pessoalmente, ao mesmo tempo que esperava revelar-lhe as mais recentes palpitações de seu próprio cora­ção. Para isso recorreu ao caráter oficial, como era sua ob­sessão. O encontro realizava-se no salão do trono e em pre­sença do prudente Sosígenes, nunca tão necessário quanto naquela oportunidade.

O príncipe mal se recuperara de alguns exercícios vio­lentos na palestra quando lhe anunciaram a decisão da mãe.

Totmés deduziu que o amigo estava a par de tudo, mas con­siderou prudente sua atitude, pois ele fingia ignorância. Limitava-se a comentar em tom jocoso alguns fatos de sua árvore genealógica. E fazia-o de forma tão virulenta que che­gou a intimidar o jovem sacerdote de ísis.

Chegados à sala do trono, Tótmes ficou junto à porta, esperando o príncipe, como costumava fazer quando consi­derava sua presença desnecessária ou inoportuna. Aquela, porém, era uma ocasião especial. Pôde comprová-lo ao ou­vir a rainha do Egito dizer ao capitão Apolodoro:

Que venha também o sacerdote de ísis.

O capitão convidou-o a entrar. Mostrava-se pouco afá­vel, pois, embora lhe tivesse reconhecido a inocência na morte de sua amada Bálkis, lembrava-se de que ele fora a única cau­sa de tal fato, e sua simples presença fazia-o pensar nela com dor. Totmés também se sentia violento, porque estava con­vencido de tê-la matado com suas recriminações, e isso era tão grave a seus olhos quanto se a houvesse atravessado com mil punhais.

Ao ver a rainha vestida de ísis, Totmés compreendeu que a cerimônia era solene. Ainda mais que o príncipe Cesá­rio foi obrigado a inclinar-se diante dela, como qualquer de seus súditos. Apenas o fiel Sosígenes permanecia de pé, jun­to ao trono.

Mas foi o único ato protocolar que se viram obrigados a acatar. Pois a linguagem da rainha Cleópatra era normal, apesar de estar "disfarçada de rainha" (como Cesário disse depois, rindo a bandeiras despregadas com Totmés no pátio de armas).

Recebo-te como príncipe, porque é a rainha que te fala, a rainha que pode te ordenar, a rainha que, se for o caso, poderá suplicar.

Assim compreendi disse Cesário com uma som­bra de insólita gravidade no formoso rosto. E embora se­ja lisonjeiro que minha mãe tenha algo a me suplicar, direi que me rebaixa pensar que possa haver algo que Cesário não lhe conceda sem a mediação das súplicas.

Sosígenes moveu a cabeça em sinal de complacência ante o tom solene de Cesário. O capitão Apolodoro limitou-se a achá-lo um pouco afetado.

— Acaba já o mistério. Cesário será rei.

O rapaz não se alterou. Totmés esteve a ponto de des­falecer.

— Mãe, entendo que para isso fui preparado.

Príncipe do Egito, não brinques com os circunlóquios com tua mãe, que disso sabe mais que tu. Embora seja bom que saibas praticá-los, pois nestes tempos um rei que fala claro tem a batalha perdida. Entende, em todo caso, que tua no­meação é iminente.

Mãe, muito me custa imaginar que vás abandonar o trono do Egito. Com isso desmentirás tua reputação, que te pinta aferrada ao poder até o fim de teus dias.

Cleópatra não pôde reprimir um sorriso. E admirou no filho a rapidez das respostas e a leveza do humor.

— Filho, serás nomeado rei dos reis, porém isso não quer dizer que Cleópatra abandone o poder. Ao contrário, precisará exercê-lo com maior porfia que nunca, para que o herdes em pleno esplendor. Mas tua nomeação é necessá­ria, porque significará a consolidação da dinastia. É a ma­neira de dizer ao mundo que o verdadeiro filho de César não se limita a existir, mas, além disso, atua.

Produziu-se um longo silêncio, durante o qual Cleópa­tra trocou algumas palavras em voz baixa com Sosígenes. Ce­sário, por sua vez, comentou algo no ouvido de Totmés em voz mais baixa ainda.

Consultados os respectivos conselheiros, mãe e filho en­frentaram de novo seus olhares:

— Depois desse presente, meu filho, vêm as súplicas.

Insisto em que seria melhor presente se tu as con­vertesses em ordens.

Não pode ser ordem de Cleópatra o que concerne es­tritamente aos afetos de seu filho. — Calou-se um instante. Finalmente se atreveu a dizer: — Tua mãe te pede que sai­bas ver com indulgência a permanência neste palácio de um antigo amigo..., uma permanência que poderia ser indefinida.

—            Minha mãe nunca me pediu indulgência para qual­quer de suas amizades, pois entendíamos que a tinha de an­temão. Quem é esse que chega e tanto a necessita?

— Já chegou. Chama-se Marco Antônio. Tu o conhe­ces desde tua infância.

O príncipe não se alterou; Totmés delatou sua surpresa com um sobressalto. Assaltava-o a recordação da nave en­lutada da rainha Cleópatra e, apesar dos anos transcorridos, recordava com horror sua primeira aparição, no convés, con­vertida em uma anciã desesperada que mal podia caminhar. Ao vê-la agora, no esplendor de sua beleza, no apogeu de sua autoridade, temeu que a relação com Marco Antônio, o romano, pudesse fazer retroceder o tempo em detrimento da mulher e do Egito.

— As sombras de minha infância passaram — disse Ce­sário — e são muito distantes para me afetar. Devo ater-me ao presente e procurar alguma razão lógica.

— Pensa que não falas com a mãe. E sim com a rainha.

— Com a maior severidade procuraria mil razões, pois a mãe só concerne a mim, enquanto a rainha afeta todo o povo que um dia haverei de governar.

Dessa vez foi o valente Apolodoro que tremeu. Acostu­mado a relações familiares mais simples, pensou que em qual­quer outro lugar menos solene o príncipe teria recebido um bofetão como primeira advertência.

Todos os sentidos de Cleópatra puseram-se de sobrea­viso. Defrontava-se com um digno rebento de sua raça, com um filho de Alexandria. Alguém que sabia extrair toda a sua força dos jogos de palavras. Alguém que, em sua curta ida­de, podia esconder os próprios sentimentos.

Filho, quero te dizer que só há um homem cuja popula­ridade em Roma, cujo prestígio entre todos os povos do Oriente lhe permitem converter-se em paladino de teus direitos...

Não ignoro isso. Como também sei que, enquanto sou rei dos reis, ele será autocrátor...

— Como sabes disso? — perguntou a rainha surpresa. Junto dela, Sosígenes não dava crédito a seus ouvidos.

— Num palácio onde impera a intriga, é lógico que quer aprendê-la todo aquele que aspire a sobreviver...

Uma expressão de escândalo verdadeiro refletiu-se no rosto de Cleópatra.

— Estás chegando longe demais, príncipe — exclamou Sosígenes. — Como te atreves falar assim com tua mãe?

— Com minha mãe ou com a rainha?

— Com as duas! — exclamou Cleópatra, deixando de lado as insígnias reais. — E nenhuma das duas o merece. Por­que qualquer intriga desenrolada neste palácio nos últimos anos foi urdida em teu benefício.

— Do trono do Egito, mãe.

Pois bem, dá no mesmo. Como também daria falar em tua felicidade.

Minha felicidade poderia ser maior em uma cabana junto ao Nilo.

Cleópatra voltou-se para Totmés com expressão violenta.

— Tu lhe ensinaste essas coisas, ministro de ísis?

— Estou tão perplexo quanto minha rainha. E com to­do o respeito permito-me dizer que não consigo entender o jogo do príncipe.

Mas no rosto de Cesário, tão grave aquele momento, apareceu a expressão de malignidade que foi lentamente de­rivando para o sorriso encantador que lhe servia para apro­priar-se de todas as vontades.

— Se caio na cilada da intriga é porque minha mãe e senhora se permite armá-la para mim, em vez de falar com clareza, como seria digno dela e de seu filho. Pois é certo que tudo que aqui se disse a respeito do romano Marco An­tônio é uma perda de tempo... — Todos os ouvidos estavam atentos para o novo rumo que as declarações do príncipe to­mavam. E alguns estavam inclusive a ponto de perder-se ne­las. — Porque é certo que Antônio é valoroso — prosseguiu Cesário —, mas não o é menos por chegar vencido. E pode ajudar o rei dos reis, porém este pode ajudá-lo muito mais, pois, convertendo-o em autocrátor, põe em suas mãos todo o Oriente... E, depois de tantas voltas e mais voltas, é possí­vel que tivéssemos teminado há algum tempo, se minha mãe e senhora me confessasse que o ama além de toda intriga e que, não tendo eu pai efetivo, me proporciona um que poderá me ensinar toda a sua experiência na luta de espadas, no salto de obstáculos e em outras práticas necessárias a um grande conquistador...

Um suspiro de alívio brotou do peito de Sosígenes. E a própria rainha ergueu os olhos para os deuses, não por con­vicção e sim como consolo. Cesário, entretanto, ainda acres­centou:

— Afinal, eu nunca pedi contas a minha mãe quando ela se deitava com o galhardo capitão aqui presente. E isso não são sombras de minha infância.

Totmés apressou-se a intervir:

Juro, majestade, que essa história nunca saiu de meus lábios.

Eu sei — disse Cleópatra. — É típico de minhas da­mas de honor. Em todo caso, uma rainha que não tem se­gredos para o filho sempre foi digna de elogios. E nisso tam­bém se mostra alexandrina.

E um filho que pede à mãe que não o ofenda supli­cando, merece que lhe seja outorgada a mercê de conceder sem a mediação de mais súplicas.

Cleópatra desceu do trono e abraçou o filho, o que fez Sosígenes pensar que tanta cerimônia havia sido desnecessá­ria e que os novos alexandrinos tinham muito arraigada a tentação do teatro. Quanto a Apolodoro, sentiu-se ridículo e não se atreveu a erguer os olhos do chão. Máxime quando sabia que o romano, tema desagradável de tantas conversas, usurpara seu lugar para sempre.

 

Estendida em seu leito de plumas, Cleópatra acariciava os cabelos do amante, que, por sua vez, lia com atenção umas cartas chegadas recentemente.

Bebiam a volúpia de um novo verão alexandrino. San­gue nas nuvens, vida palpitante nas palmeiras; embriagado­res aromas na brisa, licores letárgicos que deslizam pelos cor­pos, assassinos de todas as urgências...

Antônio rompeu o idílio com uma estrondosa gar­galhada.

Dissipou-se a placidez do ócio. Foi como um trovão, que fez os pavões correrem. Um bando de gaivotas levantou vôo. Chocaram-se em tropel as andorinhas.

As notícias de Roma puseram Antônio de bom humor.

Forçosamente. São reproches de Otávio.

Costumam ser tão acres que só conseguem divertir se não são lidos. De que te acusa nesta ocasião?

De perder tempo.

Vejo que se tornou relojoeiro. E especializado em relógios de sol, de areia ou em clepsidras?

Repete mais uma vez as palavras do filósofo: "O maior tesouro de que dispõe o homem, e até os deuses, é o tempo".

E tem tanta razão que amaldiçoo o tempo que estou perdendo ao tolerar que um imberbe como ele se permita te julgar.

Não hás de rir quando souberes que atribui minha ruína ao gosto pela doma de serpentes.

Sei que as do Nilo te atraem. Quais são as outras?

Segundo ele, possuo todo um terrario.

Responda-lhe que a Serpente do Nilo acabaria com todas as outras a mordidas.

Não sei se estás com ciúme, o que me lisonjearia mui­to, ou só indignada com essas acusações... o que seria de se esperar.

Meu ciúme não faria nossos planos perigarem. As acusações de Otávio, que sem dúvida estão na boca de todos os romanos, podem desbaratá-los. Confirmam tudo o que venho dizendo ultimamente.

Confirmam, em todo o caso, que meu cunhado está se tornando muito hipócrita... Ele me acusa de mulherengo quando faz exatamente o mesmo que eu!

Certo. Mas toma muito cuidado para ocultá-lo. Tu mesmo me contaste, uma vez, que o severo Otávio faz leva­rem rameiras para sua casa, já bem entrada a noite...

E de estofa ainda mais baixa que as que eu fre­qüento...

O que é difícil — suspirou Cleópatra. — Aceitemos que sejam tão horrendas quanto as que deleitam os gostos de Antônio. Mas a diferença entre os dois está na ocultação. O que Antônio costuma fazer de dia e a viva voz, Otávio es­conde sob o manto da noite e do silêncio. Astúcia contra in­genuidade. Pergunto-me se haverá algo que este moço faça à luz do dia, à parte mortificar todas as nações da terra.

Ele se divorcia em nome do Estado. Agora é a vez da nobre Escribônia, irmã de Sexto Pompeu. Otávio deixou a primeira esposa para se casar com ela. Mas, ao que pare­ce, sua linhagem já não lhe basta. Um viajante digno de cré­dito me contou que Otávio agora anda louco por uma jo­vem de dezenove anos, certa Lívia Drusila, de grande beleza e caráter enérgico. Além disso, avaliza uma dinastia de grande renome...

Os Cláudios. Boa presa para teu inimigo.

Como os conheces?

Nós, povos ameaçados por Roma, temos a obriga­ção, ou o gosto, de conhecer toda a vossa genealogia. De Enéias a César... e os que forem chegando. Convém saber onde cairá o golpe e de quem. De que cria de ilustre parentela.

Em todo o caso, teus conhecimentos não chegam aos mexericos mais recentes...

É possível. Eu consulto os historiadores. Não minhas damas de honor.

Pois neste caso tuas damas poderiam te informar de negócios muito truculentos. Como queres que não me divir­tam? — Adotou um ar desenfadado, muito oposto à gravi­dade que se apossava do rosto de Cleópatra. — Tens de sa­ber que essa Lívia Drusila, último amor de Otávio, já estava casada com Tibério Cláudio Nero (não sei se tantos nomes têm algum significado para ti) e até esperava um filho dele. Pois bem, Otávio não se detém ante fatos tão fúteis e decla­rou nulo esse casamento. Ao mesmo tempo, acaba de dis­solver o seu com Escribônia, no mesmo dia em que esta lhe dava uma filha...

E dizes que um jovem assim não é perigoso? Antô­nio, Antônio! Ele está fazendo com quem lhe convém o que não te atreves a fazer com a esposa que o próprio Otávio te obrigou a aceitar...

Mas no rosto do general acabava de aparecer uma ex­pressão rejuvenescedora. Era a nostalgia de outro tempo. A nostalgia de outro amigo. Daquele Otávio tímido, enfermi­ço, quase insubstancial, a quem a herança do grande César parecia pesar como uma lousa. Um Otávio que ainda se fa­zia querer.

— Fomos muito bons amigos — disse com um trêmulo de emoção na voz. — Considero a amizade uma das missões mais sagradas dos homens que se prezam. Ensinei Otávio a beber e agüentar de pé uma bebedeira! Pus uma espada em suas mãos e lhe disse: "Sairás deste quartel convertido em macho, ou macho não é Antônio"... — Nesse ponto a rai­nha do Egito deixou assomar uma expressão de desgrado. Porém não conseguiu arruinar o orgulho de Antônio nem reduzir seus espetaculares exageros. — As coisas que vive­mos juntos! Certa ocasião precisávamos de dinheiro. Nenhum prestamista confiava em nós..., especialmente em mim, pois estava crivado de dívidas. Mas, naquela época, não nos detínhamos diante de tais insignificâncias. Eram tempos herói­cos, rainha minha. Decidimos explorar a confiança que des­de sempre me outorgaram os deuses e saqueamos o templo das Vestais. Se tivesses visto o terror pintado no rosto da­quelas santas mulheres! Sem dúvida temiam que fizéssemos com elas o que aquela tua fenícia, a ardente Bálkis, fez com o pobre sacerdote de ísis. Pois bem, foi Otávio quem as en­curralou na sala onde se venera o fogo sagrado. "Não te­mais por vossa pureza, senhoras virgens", disse-lhes. "Para saciar nossa excitação temos as mulheres mais belas de Ro­ma. Para encher nossos bolsos só contamos com vosso di­nheiro. Assim entregai-o já para nós e guardai vossa pureza para os deuses." Esse era Otávio! Grande rapaz, grande ami­go e, além de tudo, meu mais obsequioso admirador.

Falava com tanto orgulho que Cleópatra se permitiu um olhar de comiseração. E tremeu ao pensar que nações com dois mil anos de antiguidade, culturas que haviam sustentado o mundo pudessem cair algum dia nas mãos daqueles arrivistas.

Teu amigo Otávio muda constantemente de ofício. Se antes era ladrão, agora é um vulgar casamenteiro. Entregou-te à irmã com a única intenção de fortalecer uma união que o beneficiava. Casou-se com essa tal Escribônia porque lhe interessava ficar bem com o irmão dela, Sexto Pompeu. Se agora são inimigos, ele se desfaz da esposa para que os laços familiares não possam incomodá-lo. Em resu­mo, esse jovem está instaurando um novo estilo na política. Os tratados só são válidos se passam pelo himeneu.

A rainha do Egito vê política em toda parte. Eu me limito a lamentar a perda de um bom amigo.

Essa é a diferença entre nós. Antônio acredita que Otávio tinha sentimentos e os perdeu com os anos. Portan­to, chora. Mas eu não posso me permitir tal luxo, porque estou de acordo com os filósofos. Sei que o tempo é o maior tesouro que os deuses depositaram em nossas mãos. Assim, pois, não posso desperdiçá-lo.

A conversa ficou em suspenso. Com Cleópatra cada con­versa convertia-se em colóquio. Cada palavra, em motivo de meditação para seu amante.

Sempre fazes a mesma coisa — disse ele, desalenta­do. — És mais que uma rainha birrenta; és uma ave de mau agouro. Cheguei aqui rindo por causa das cartas de Roma. Saio preocupado pelo que quiseste ler nelas.

E esse é meu triunfo. Quero te ter preocupado, por­que só assim serás vencedor.

Rodeou com os braços o pescoço do amante e beijou-o com uma paixão muito bem estudada e ainda mais aprendi­da. Quando Marco Antônio já estava excitado, ela se afas­tou de seu corpo e foi para a porta, dirigindo-lhe um trejeito de refinado coquetismo.

Não é momento para o amor — disse, enquanto cha­mava Carmiana. — Tenho uma surpresa muito apta para te divertir.

De que se trata? — perguntou Antônio, com a ilu­são de criança que podia renascer nele a cada instante.

Conheces a fama dos adivinhos egípcios, mas nun­ca consultaste os da rainha Cleópatra.

Sabes perfeitamente que adoro oráculos.

Os oráculos não são dignos de confiança, pois se acham nas mãos dos sacerdotes e estes são interesseiros, rastei­ros e ruins em todos os países do mundo. Aliás, tudo o que está a serviço dos deuses é embusteiro por natureza, pois des­tina-se a elogiá-los e, inclusive, a torcer o rumo do destino em proveito de seus elogios. Em compensação, um adivinho só fala em nome da sorte. E esta é tão pobre, tão miserável, que nem sequer dispõe de meios para pagar um suborno.

Carmiana foi buscar o adivinho, e Antônio surpreendeu-se com a rapidez da chegada deste, como se estivesse aguar­dando no aposento contíguo. Não fez, porém, maiores ave­riguações e deixou-se fascinar pelo aspecto daquele homem e pelo número que lhes apresentou.

Tal como os malabaristas egípcios, tão solicitados nos festins de Roma, o adivinho vestia-se conforme usança clás­sica de seu país, quase desterrada pela moda grega. De ma­neira que o saiote plissado, o colar de contas de cristal e o toucado que lhe cobria a cabeça convertiam-no em delicioso anacronismo. Mas sua exuberância era a própria de um gal-rão do Alto Nilo, como Antônio teve ocasião de ver e ouvir durante sua remota viagem com Cleópatra.

Depois de gesticular até o indizível, depois de pronun­ciar uma enfiada de fórmulas mágicas, que nem sequer a rai­nha do Egito podia compreender, o adivinho mostrou uns bastõezinhos de cores distintas e, após cruzá-los várias ve­zes, descruzá-los e tornar a cruzá-los, achou-se em condições de emitir seu veredicto.

Perdão, minha rainha, mas hoje os bastões sagra­dos só falam do procônsul de Roma, aqui presente.

E aqui atento disse Cleópatra. Teus bastões são muito oportunos, porque o que hoje me interessa saber con­cerne especialmente ao procônsul.

Posso falar com absoluta franqueza, minha rainha?

Não sei se devo te ordenar ou rogar que o faças. Mas faze-o de qualquer modo, e que seja breve.

Vejo aqui uma atividade do procônsul que eu des­conhecia. E nela aparecem animais muito estranhos.

Se for uma serpente não duvides que é Cleópatra — riu a rainha. — Se houver outras, não digas, porque irás dar com teus ossos no mais lúgubre calabouço.

Que seja em Alexandria, para que se faça mais doce minha sentença. Mas ela não há de se produzir, pois não há serpentes em meus bastões. São... são... codornas!

Antônio pôs-se a rir.

Se além delas vês galos de briga, é claro que te referes a meus jogos com Otávio. — E, dirigindo-se para a rainha, ex­plicou: — Quando não jogávamos dados, organizávamos bri­gas de galos e codornas. Teu adivinho é um gênio. Ademais, possui a capacidade de me restituir momentos inesquecíveis.

Não tanto, senhor, não tanto. Pois vejo em teus bas­tões que te enfurecias amiúde, porque esse Otávio, represen­tado pelo bastãozinho preto, era mais forte que tu no jogo.

O semblante de Antônio enfureceu-se. Não lhe agrada­va divertir a amante com as crônicas de derrotas tão distantes.

Tua fortuna é brilhante — prosseguiu o adivinho em tom grave. — Tua fortuna reluz. Mas toma muito cuidado, meu senhor, porque aquele rapaz que ganhava de ti nos da­dos, aquele grande domador de animais de luta, pode te fa­zer sombra a qualquer momento. E ainda te direi mais... fi­ca longe desse Otávio, não te aproximes dele, porque suas mãos empunham uma lança.

Para me matar?

Para acabar com todas as coisas que desejas conse­guir. A lança que esse jovem empunha é sagrada. Ele avan­ça entre uma multidão ingente. "Contra o Egito!", grita. — Meditou por alguns segundos. Parecia achar-se diante do inex­plicável. — É curioso. Muito curioso. Por que seu grito não é dirigido contra ti?

Vou te dizer, sem ser adivinho. A lança que Otávio empunha é a de Marte, nosso deus da guerra. É costume dirigi-la contra o país que Roma se dispõe a atacar. — An­tônio teve um estranho pressentimento. Ergueu-se lentamente e passeou pelo aposento meditativo. Por fim, disse: — Con­tinua sendo curioso. Por que dirige a lança de Marte contra o Egito?

Não sei, meu senhor. Em minha humildade só pos­so te aconselhar que não te aproximes desse jovem.

Não desejo saber mais coisas — decidiu Antônio. — Que Otávio ganhe nos dados de quem lhe aprouver. A mim cabe cuidar da conquista do Oriente. E quanto antes!

Saiu a toda pressa, como se uma mola mágica acabasse de impulsionar suas ambições e precisasse cumpri-las naquele mesmo dia.

A rainha Cleópatra presenteou o adivinho com uma bol­sa de moedas que traziam sua efígie. E pensou que algum dia elas trariam a de Cesário. O rei do mundo!

 

E sucedeu que o tempo começava a correr sobre o Egi­to. Não constituía nenhuma surpresa. Já fazia séculos que o vinha fazendo.

Cada dia era castigado com a morte por haver assassi­nado o dia anterior. Cada noite recebia o castigo da alva por­que ousara assassinar a tarde. Só o tempo ficava sem casti­go, apesar de ser o assassino de todas as coisas.

Cleópatra decidiu castigar a si mesma pelo prolongado ócio do inverno anterior. Segundo seu próprio critério, des­perdiçara o tempo entregando-se ao repouso, à espera de seu quarto filho. Aquele nascimento, no entanto, não foi aco­lhido com o alvoroço que rodeou a chegada dos dois gêmeos e, antes, a do príncipe Cesário. A mãe apressara-se a cuidar de outros misteres. De modo que se procurou um nome ade­quado e protocolar — Ptolomeu Filadelfo, como o segundo rei da dinastia — e ele foi parar junto aos irmãos pequenos em um canto do gineceu real.

As ocupações de Cleópatra tinham miras muito mais ele­vadas. E as proporções da última delas eram tão descomu­nais que primeiro assombrou seu amante e depois deslum­brou os cronistas.

A rainha do Egito pretendia abrir um canal no istmo que separava o Egito do mar Vermelho, justo na zona que se considerava a fronteira entre a Ásia e a Líbia.

Na parte onde era mais estrangulado pelos mares, o ist­mo não teria mais de trezentos estádios de largura, e Cleó­patra pensava abri-lo para assim favorecer a livre navega­ção em uma zona que sempre foi de vital importância para o Egito, não só na exploração das minas do Sinai, mas tam­bém como passagem natural para as terras da Ásia.

Por mais temerária e grandiosa que fosse a empresa — e assim contavam as crônicas —, o interesse de sua realização final não igualava ao que a rainha prestava aos especialistas dedicados a levá-la a cabo. Os arquitetos e mestres-de-obras não suspeitavam que seus conhecimentos eram expressos para engrossar os dela. Com o que ela não se limitava a profundar-se nas possibilidades do presente, como, além disso, adqui­ria pértigas para saltar em direção aos segredos do passado.

Totalmente entregue ao prazer que lhe proporcionavam todos os ramos da sabedoria, informou-se sobre os métodos de construção seguidos nos antigos templos do Nilo, pois a arte de seu povo representava para ela a culminância de uma habilidade e o aperfeiçoamento de um artesanato que era ne­cessário recuperar a qualquer preço. Não comungava com a idéia de que as portentosas edificações do período faraô­nico haviam sido construídas seguindo uma inspiração me­ramente religiosa. Ao contrário, concordava com os que afir­mavam que aquele excepcional legado surgiu de uma extraor­dinária preparação científica, baseada na razão e não no cul­tivo da superstição.

Fascinada, assim, pela antiga ciência do Nilo, compreen­deu facilmente que entre o canal que se dispunha a abrir no mar Vermelho e as pirâmides milenares subjazia uma linha de racionalidade que nenhum cataclisma conseguiu destruir. Pois, embora estivesse consciente do caráter revolucionário de seu empenho, não ignorava que muitas idéias de reforma haviam sido acometidas no passado. Quando algum de seus arquitetos chegava propondo um plano de irrigação na zona de Mênfis ou de Tebas, deparava-se com a surpresa de que algum faraó esquecido já a empreendera mil anos antes. E, quando não era assim, os camponeses haviam agido por sua própria conta e risco, premidos pelas necessidades da vida cotidiana e aconselhados pela lógica das forças naturais.

Quando concentrava sua atenção naquele tipo de polê­mica, fosse com os arquitetos, fosse com os filósofos do mou-seíon ou os historiadores do palácio, Cleópatra sentia-se pos­suída por uma sensação de velhice que nada tinha a ver com seus anos. Era algo que concernia à terra. O Nilo, tão dis­tante, tão às costas de sua cidade, chamava-a sem cessar co­mo uma força completamente estranha à hibridez alexandri­na. O Nilo era uma força primigenia que sustentava sua parte perdurável. E o apelo que percebia era o da eternidade.

Para aquela eternidade mandara Cesário, convencida de que era um requisito indispensável para sua nova situação no mundo. O rei dos reis tinha de ser, acima de tudo, faraó no Egito, e só compreendendo sua realidade chegaria a en­tender o mundo. De maneira que, empenhando uma vez mais os olhos de Totmés, mandou ambos na galera real até os úl­timos confins do rio.

O príncipe reagiu conforme se esperava, pois suas car­tas de distintos pontos da viagem demonstraram um entu­siasmo que a mãe só conhecia nele nos assuntos referentes ao exercício físico. Embora antes se destacasse em todas as disciplinas do humanismo, como convinha a um bom ale­xandrino, nenhuma chegou a despertar-lhe tanta emoção quanto aquela comprovação de que suas raízes se estendiam para muito além do tempo que podia recordar, para tempo muito anterior ao que os cronistas a soldo de seus antepas­sados registraram.

Tem um bom mestre dizia a rainha, entre suspi­ros de saudade. Totmés, ministro de ísis, converterá nos­so rei dos reis em Cesário do Egito.

O caráter de Cesário ia progredindo, assim, na direção que antes fora percorrida pelos olhos de seu tutor. E embo­ra estes aparecessem turvados por uma sombra de ceticismo, provocada talvez pela queda de muitas das coisas em que acre­ditara, continuavam mantendo viva a chama que fora acesa por um cavalheiro chamado Epistemo, anos antes, no terra­ço de certo templo de Hátor. Aquela era uma chama cons­tantemente alumbrada por um sentimento vago, que se pa­recia com o amor porém o excedia. Carecia de suas servi­does e alimentava-se de todas as suas virtudes. Crescia ao entregar-se e eclodia ao receber. Aumentava ao propor e enchia-o de orgulho a cada proposta recebida.

Fazia muitos meses que Totmés não acudia ao recinto sagrado de ísis, apesar dos reiterados apelos de seus supe­riores. Desde aquela noite em que os fogos de Alexandria acenderam-se em seu sangue, demonstrando-lhe suas capa­cidades para o mal, desde o momento em que todos os ensi­namentos dos deuses não haviam servido sequer para dimi­nuir aquela tendência, sabia que sua condição recém-descoberta o obrigaria a caminhar sempre só pelos caminhos do mundo. Ao olhar em torno, ao buscar uma mão amiga, só achava a de seu jovem príncipe, a qual, apesar de tudo, não estava ali para ajudá-lo, e sim para pedir-lhe ajuda. Então Totmés sentiu que aquele pedido o ajudava muito mais que todos os preceitos dos deuses e todos os conselhos dos homens.

Sua juventude conheceu então um ponto de ardor com­pletamente inesperado. Durante alguns meses a chama que o desejo de Bálkis acendera em seu íntimo converteu-se em uma fogueira que as noites de Alexandria souberam desen­volver até que chegou a consumi-lo. A corte inteira surpreen­deu-se ao descobrir entre os membros da Sociedade da Vida Inimitável aquele jovem geralmente severo, prodígio de con­tenção e maravilha de recato. Os mais acérrimos buscadores de prazer encontraram nele seu modelo, quando não sua cul­minância. E, de costas para seus deuses, ele enfrentou os pra­zeres buscando uma intensidade que o arrebatou até a loucura.

E, se alguma dama conhecida por seus ardores pergunta­va-lhe entre risos por sua proverbial castidade de outrora, Totmés respondia entre duas taças:

Na verdade, a castidade deveria ser um insulto aos deuses, mas estes são tão falsos que fingem não ser insulta­dos. A castidade é um crime contra a natureza. É o único crime que cometi de verdade.

Durante aquela época de sua loucura, Totmés quis es­quecer a si mesmo, a ponto de mudar completamente seu as­pecto. Poucas noites depois de freqüentar os festins de Cleó­patra tornou-se irreconhecível. Às suas imaculadas vestimen­tas de antanho, brancas como a alma da própria ísis, opôs as túnicas mais suntuosas, confeccionadas com materiais ca­ríssimos que chegavam do Extremo Oriente e só alguns cor­tesãos privilegiados podiam possuir. Deixou crescer o cabe­lo, de forma que, decorridos poucos meses, viam-no com abundantes melenas arrumadas à moda dos sátrapas persas e uma barba cuidadosamente aparada e sempre ungida com óleos preciosos. De maneira que, se algumas damas lamen­taram que tivesse perdido o excitante aspecto dos castos, ou­tras celebraram que adquirisse o aspecto enlouquecedor dos libertinos.

E, depois de provar todas as formas do prazer que Ale­xandria podia deparar-lhe, Totmés voltou os olhos para o passado e descobriu que uma criatura indefesa continuava esperando-o em algum lugar do palácio, aguardando que de­saparecessem de seus olhos os véus do delírio para tornar a servir-lhe de guia. Quando compreendeu isso, Totmés havia realizado o trajeto que muitos homens não chegam a per­correr em toda uma vida. E de novo agradeceu que a sua ti­vesse sido manipulada não à medida de Cesário, como su­pôs a princípio, mas à de uma velocidade que, sem o *aber, era a do período histórico que lhe coubera viver.

Essa velocidade que ele imprimira a seu ciclo vital cor­ria paralelamente aos acontecimentos que se desenrolavam a sua volta. Desde a coroação de Cesário como herdeiro ao trono do Egito e de seus irmãos mais novos como grandes senhores das possessões no Oriente, a vida de Alexandria lançara-se em uma intensidade que convertia cada dia em nova peripécia, em diferente agitação. Naquela voragem constan­te, que ninguém mais podia deter, chegou um dia a presença da morte, convidada habitual das gentes do Nilo e, ao mes­mo tempo, hóspede surpresa na vida de qualquer homem jovem.

A morte chegava de longe, porém a distância não dissi­mulava os aspectos mais sinistros de sua irrupção. Nem se­quer a intriga política, alcoviteira da morte em tantas oca­siões, conseguiu aliviar o efeito que seu impacto produziu primeiro em Totmés, depois em Cesário.

A voz de Cleópatra anunciou-a com um pateticismo que excedia a dureza com que tentava disfarçar suas reações:

— Chegam más notícias da Judéia. Morreu afogado o príncipe Aristóbulo. As causas de sua morte são completa­mente suspeitas. Asseguram que morreu afogado na pisci­na, enquanto fazia exercícios aos quais, aliás, estava sobeja­mente acostumado. Por isso suspeita-se de uma intriga do rei Herodes. — Guardou silêncio antes de completar a notí­cia. Ao fim deste, acrescentou: — Conhecendo sua reputa­ção e seu afã em servir os interesses de Roma na Judéia, creio-me autorizada a culpá-lo pela morte de outra pessoa tão que­rida quanto aquele formoso príncipe. Estou me referindo a nosso embaixador Epistemo. Sua morte é atribuída a causas naturais, mas o trono do Egito não ignora que as causas mais naturais de uma morte na corte de Herodes costumam ser o veneno, quando não um golpe de espada.

A notícia comoveu Totmés, devolvendo-lhe a recorda­ção de algo tão distante quanto seu próprio nascimento. Pois, embora não tivesse visto o cavalheiro Epistemo desde aque­les distantes dias do luto de Cleópatra, lembrara-se várias ve­zes de suas palavras no terraço do templo de Hátor e, quan­do meditava sobre a própria vida — e fazia-o com muita fre­qüência —, só podia atribuí-la àquele que fora seu inventor. De maneira que Epistemo, distante e inacessível em sua em­baixada da Judéia, sempre aparecia como o artífice da mons­truosidade que era ele e do estranho fenômeno em que toda a sua existência posterior se convertera.

Só quando se resignou a não averiguar mais suas ori­gens compreendeu que o papel de Epistemo perdera valor e que o criador da monstruosidade já era ele próprio.

Os cortesãos teceram uma complicada história de espio­nagem na qual o trono egípcio ajudava por caminhos secre­tos a família dos Macabeus, pretendentes ao trono de Hero­des, enquanto este entretecia sua própria rede destinada a contra-atacar por caminhos igualmente secretos e mais sinis­tros, se possível. Alguns membros daquela ilustre família ha­viam pago sua rebeldia com o desterro para Roma ou sendo executados de maneira ignóbil, porém o último de seus mem­bros, o príncipe Aristóbulo, era suficientemente amado pe­lo povo para esperar que Herodes, o usurpador, o tirano, o vendido aos interesses de Roma, não se atrevesse a erguer a mão contra ele. Teve de ser um acidente, fingido ou real, o que o fez desaparecer prematuramente da cena, deixando atrás de si uma auréola de formoso pateticismo. Pois os poetas que cantaram sua beleza em vida choraram-no além da morte e desejaram que seu formoso rosto se convertesse em uma estrela que, da segurança do firmamento, protegesse os difí­ceis caminhos da Judéia.

A partir daquela morte, Totmés percebeu no rosto de seu príncipe uma sombra de tristeza que nunca mais o aban­donaria. Durante algumas semanas, perdeu o interesse pe­los jogos da palestra, deixou de freqüentar os irmãos e pas­sou a chorar em silêncio, quando se acreditava sozinho em seus aposentos. A morte penetrara em seu ânimo, geralmen­te risonho; a morte apresentara-lhe um rosto muito distinto do que costumava oferecer quando chegava dos lábios de Tot­més ou pela boca dos sacerdotes dos vários cultos que se en­carnavam em sua pessoa. Porque, enquanto toda a história do Egito o ensinava a pensar na morte como uma prolonga-ção da vida na eternidade, as notícias chegadas da Judéia eram-lhe transmitidas como uma interrupção brutal que po­dia apresentar-se a qualquer momento ao longo do caminho. Não no final, como sempre esperou, mas em qualquer para­da, inclusive em pleno avanço, como uma fruta que se im­pede de amadurecer.

Ao perceber os negros pressentimentos que o invadiam, Totmés deixou de lado todos os prazeres que aprendera a de­vorar e abraçou seu príncipe como um filho que, ao mesmo tempo, fosse muito mais que um amante. Sentiu que eram certos os prognósticos que lhe fizera Epistemo na distante noite de Hátor: ao prolongar seu espírito em outro espírito, alcançara uma grandeza que nem sequer o amor aos deuses conseguira insuflar-lhe. Quando se sentiu saturado daquela sensação maravilhosa, soube que em Cesário se encarnava o melhor da vida que lhe haviam inventado. E que, se era um monstro, sua monstruosidade só era a do amor absoluto.

Transcorreram os dias, depois os meses, e os laços que o uniam a seu príncipe estreitaram-se de tal modo que a pró­pria Cleópatra chegou a sentir ciúme. Não era, contudo, um ciúme gratuito: tinha uma origem prática que não desmen­tia nem sua ascendência alexandrina, nem sua habilidade po­lítica. Desde que sentiu renascer o amor por Antônio, aspi­rava a ser para ele o que Totmés era para Cesário. Olhos aber­tos para abrir os do outro. Mãos prontas para criar no ou­tro uma força arrebatadora mediante uma contínua cerimô­nia de imposição. Cérebro disposto a dissolver-se em um lí­quido de criação contínua que, ao banhar o outro, agisse co­mo as águas do Nilo no verde vale do Egito.

Cleópatra aspirava a exercer sobre Antônio as infinitas possibilidades de criação e recriação que seu papel de ísis lhe concedia. Não era original, naturalmente. De fato, responsa­bilizava-se pela longa cadeia que, desde o princípio dos tem­pos, tem servido para os humanos transmitirem entre si o pedaço de divindade que palpita no fundo de suas almas.

Só os seres excepcionais conseguem puxá-lo para fora; só os privilegiados sabem apreciá-lo, quando chega. Chame-se amor, arte ou caridade, o fragmento de deus que jaz no fun­do do homem é a única luz que vale a pena receber, a que mais urge comunicar.

E Cleópatra, pela mão de Antônio e frente ao Egito, an­siava converter-se em um desses seres excepcionais que re­produzem a eterna mensagem.

 

Na falta de um ser excepcional como o que a rainha do Egito invocava, Otávio possuía um dom inapreciável: a pa­ciência. Ignorava se era um presente dos deuses, como asse­gura o vulgo, mas, em todo o caso, não aparentava dema­siado interesse em averiguá-lo. Suas relações com os deuses eram diretas e sem rodeios. Que outras poderiam ser, se ele mesmo ordenara a divinização de Júlio César? De que outro modo podiam ser, se ele também aspirava a fazer parte, al­gum dia, do panteão romano? Otávio não mentia a esse res­peito: não tinha necessidade de alcançar a outra vida para encontrar-se face a face com os deuses. Isso ficava para os egípcios e outros povos supersticiosos e ignorantes. Ele po­dia encontrar-se no Senado com um patrício a quem, anos depois, adoraria como deus em qualquer templo do Foro. Já havia instalado ali alguns que outrora apertaram a mão de seu avô... quando não o acompanharam a um prostíbulo mais ou menos refinado.

Seu único deus era a paciência, quem quer que a tivesse criado e sem lhe importar quem a outorgasse e de onde. Em­bora detestasse os animais (acaso porque são algo vivo?), ti­nha conhecimentos de zoologia suficientes para saber que a cobra é um animal infinitamente mais perigoso do que o man-gusto, porém este é o que vence cedo ou tarde. E às vezes muito antes do que a cobra pode supor, porque ela vive tão segura de sua superioridade que executa um movimento im­prudente que o mangusto aproveita para saltar-lhe em cima e cortar-lhe o pescoço. Questão de paciência.

A cobra é bela, misteriosa, imperial, mas demasiado se­gura de sê-lo. O mangusto é medíocre, simples, rasteiro, mas quer deixar de ser todas esses coisas e crescer em importân­cia mediante a vitória.

Otávio esperava tranqüilamente que a grande cobra egíp­cia executasse algum movimento em falso, levada pela peri­gosa convicção do próprio fascínio. Ele não se julgava fas­cinante, porém, certeiro. Não amava a aventura a ponto de desejar o risco, este antes o repugnava. Sabia que, em um jogo estabelecido por Roma, as rainhas têm mais a perder que seus vassalos.

Não foi preciso que se rebaixasse falando mal de Antô­nio. Não era essa a impressão que precisava dar ao povo. Qualquer passo em tal sentido teria sido em falso. Teria si­do o arrogante movimento da cobra imperial. Mas o man­gusto, em sua vocação da espera, deixou que outros come­çassem a considerar que o comportamento de Antônio no Egito ia longe demais. Se alguém fazia um comentário nesse sentido, Otávio dava de ombros e desenhava um sorriso neu­tro, embora bastante claro para que vissem nele um ponto de compreensão e certa condescendência.

Admirável jovem que sabia perdoar os excessos dos mais velhos com a esperança de que um dia voltariam ao redil! Jovem tão mais admirável se se pensasse nas constantes hu­milhações que recebia na pessoa de sua irmã.

A conduta de Otávia continuava irrepreensível, e alguns mal-intencionados (especialmente suas amigas) perguntavam se isso se devia à resignação ou a uma vocação frustrada de virgem vestal. Com o tempo, sua beleza havia amadurecido e continuava igualando à da rainha Cleópatra, se é que não a superava. Dir-se-ia, no entanto, que sua vida se detivera. Uns debochavam, dizendo que se convertera em um relógio de sol para dias de chuva; e outros, que era como a clepsidra em uma fria manhã de janeiro: suas águas gelam e a hora fica fixa, impertérrita, como se o tempo houvesse deixado de transcorrer.

Mas até os que se permitiam zombarias acerca de Otá­via adoravam-na a extremos delirantes, sem que ela se per­mitisse a menor concessão que pudesse fomentar adorações ou ódios. Limitava-se a manter uma posição irrepreensível e a apregoar que se chamava Otávia e era romana.

Em sua última viagem a Atenas, quando enfrentou a opi­nião pública para acudir em busca e ajuda de seu esposo, com­preendeu claramente que toda esperança de dignidade nele era vã. Soube que sua viagem a Alexandria não se devia a um passatempo momentâneo e que, ademais, ele não estava apenas motivado pelas volúpias com que Cleópatra pudesse envolvê-lo. Era algo que os romanos não podiam compreen­der: Antônio e Cleópatra tinham algo mais que um amor pen­dente. Tinham um projeto juntos. Tinham um sonho com­partilhado.

O projeto de Antônio não necessitava de mulheres co­mo Otávia: precisava de amazonas como a rainha do Egito. E, ademais, compartilhar é uma palavra que se utiliza pou­cas vezes na vida. Quando chega a ocasião, convém aferrar-se a ela violentamente, necessariamente, mesmo que o pon­to de destino final seja a loucura.

E Otávia não estava louca. Penava, no entanto, porque nunca mais se lhe apresentaria a oportunidade de estar louca.

Ao retornar de sua segunda viagem à Grécia, seu irmão negou-se a toda discussão sobre a casa onde devia morar. E negou-se pelo caminho mais simples: ordenando que aban­donasse a do marido, que, insultando-a com seus desplan­tes, insultara aos dois.

Otávia continuou habitando na casa de Antônio, como se ele tivesse de chegar toda noite e sair cada manhã. Com magnífica e nobre solicitude, ocupou-se das crianças que a vida fora colocando sob sua tutela: as do primeiro matrimô­nio, as três de Antônio e as que este teve com a infausta Fúl­via. Cumpriu, assim, a promessa que fizera a seu liberto Adô­nis: este e o jardineiro Fedro teriam trabalho o suficiente para justificar uma boa paga.

Recebia os amigos de Antônio e ajudava-os a obter tu­do que necessitassem do cada dia mais poderoso César Otá­vio. Entretanto, ao agir desse modo, ao converter-se na per­sonificação de todas as perfeições, prejudicava Antônio sem querer. Pois o povo romano, que vira com maus olhos a ce­rimônia de entronização de Cesário organizada por Antô­nio no Egito, sentiu maior repugnância ao ver que ele se por­tava de maneira tão ignóbil com uma dama excepcional. E, ademais, extraordinariamente romana.

A espera do mangusto estava dando excelentes resulta­dos. Só cabia lamentar que estes fossem pagos pela nobre Otávia, a qual, se não estava louca, tampouco era surda aos ecos da invejável loucura alheia. Roma inteira convertera-se em um fervedouro de notícias "recém-chegadas do Egito", ou pretendidas como tais. Otávio continuava sem intervir. Mercúrio, deus das notícias, multiplicara as asas de seus pés a fim de poder estar em todos os lugares onde se decidia a opinião pública. Em poucos dias, a própria Roma espantou-se com o fato de caberem em seu seio tantas bocas prontas pa­ra o boato, tantas línguas ansiosas de maledicência, tantos ouvidos ansiosos de calúnias.

Correu a voz de que a rainha Cleópatra do Egito tornara-se muito ciumenta. E mais de uma dama comentou, sem gra­ça, que isso se devia indubitavelmente ao avançado de sua idade. Outras diziam que a matéria bruta que utilizava para seus cosméticos esgotara-se no Egito e que a rainha, obriga­da a mostrar-se diante de Antônio com o rosto limpo de ar­tifícios, começava a perder seus favores. Falou-se inclusive que Cleópatra era um homem transformado em mulher, sem deixar, com isso, de perder seus atributos. O que justificaria que, na juventude, fascinasse Júlio César — o qual, em sua mocidade, fora louco por efebos — e, anos depois, conse­guisse aprisionar a vontade de Antônio. Pois todos lembra­vam que nem sempre as mulheres foram o objeto de seus ir­refreáveis desejos, como podia recordar certo patrício cujo filho não só se consagrou a Antônio de corpo e alma, como esteve a ponto de dilapidar o próprio patrimônio ajudando-o a pagar suas abundantes dívidas.

Mas a lenda que convertia Cleópatra em homem não prosperou, porque cada dia apareciam dez jovens romanos que se jactavam de ter-se deitado com ela durante sua esta­da em Alexandria. E, quando o discreto Polindo contou o número de conquistadores do leito de Cleópatra, pôde de­duzir que a cifra era impossível, pois ela não poderia dispor de tantas horas em todos os dias de sua vida.

Roma continuava falando, enquanto César Otávio limitava-se a dar de ombros e a afirmar, com grande gene­rosidade, que a opinião exagerava o fato e que, longe de ado­tar atitudes violentas capazes de precipitar Antônio mais longe da pátria, convinha demonstrar-lhe amizade e até carinho pa­ra devolvê-lo a ela.

O próprio Otávio deu o exemplo, mandando erguer no Foro estátuas de Antônio para agradecer certa ajuda que pres­tou na captura e execução do rebelde Sexto Pompeu. Aque­la homenagem pública serviu para recordar o povo que ain­da era romano o bastante para ajudar sua pátria desde o Egi­to. E continuava fazendo parte do triunvirato que salvou Ro­ma da desordem e do caos.

A vitória sobre Sexto Pompeu convertera-o em herói po­pular, talvez o de maior repercussão, porque tal façanha li­bertava Roma de uma de suas maiores preocupações: os cor­sários que a ameaçavam pela costa, da capital até o último de seus domínios. Mas, além disso, conseguira livrar-se do outro componente do triunvirato, aquele Lépido que chama­vam de "o terceiro pilar do mundo". E Lépido, homem pou­co brilhante e de ações indecisas, saiu da cena deixando que os mais moços a repartissem... se é que Antônio podia incluir-se entre eles. Assim, longe de seu cargo no governo de Ro­ma, o desapossado limitou-se a seguir os acontecimentos com a mesma passividade de Otávia, mas com uma vantagem pri­mordial: adquirira uma vivenda perto de Nápoles e esquece­ra os azares da política contemplando a paisagem mais for­mosa da Itália.

Entretanto, se Lépido pudera prescindir da política com uma simples mudança de casa, Otávia não pôde fazê-lo tão facilmente, pois a política introduzira-se na sua para não sair jamais. Um dia compreendeu que ela mesma era um instru­mento político, alheio a sua própria capacidade de decisão. Ao contemplar-se no espelho, já não havia uma pessoa, e sim uma escultura destinada a ser adorada, mas não a co­municar sentimentos. Qualquer manobra podia utilizá-la. Qualquer partido podia fazê-la sua, sem lhe dar tempo de consentir ou negar.

Roma aprisionava-a. Roma devolvia-lhe a cada instan­te os ecos das histórias que desejava esquecer. Roma e seus habitantes convertidos em lembrança constante da prisão em que a tinham encerrado!

Não eram suas ruelas retorcidas, sujas, superpovoadas por uma gentalha malévola e, amiúde, desesperada. Não eram seus soberbos palácios, rodeados por jardins espetaculares e povoados por fontes de esplendoroso primor. Não eram seus passeios convertidos em centro onde iam desembocar todas as cloacas do mundo conhecido. Era, simplesmente, aquele rumor nos lábios de seus habitantes, dos mais humil­des aos mais poderosos, dos mais sujos aos mais perfuma­dos. Era aquele rumor que dizia: "Marco Antônio e Cleó­patra, ontem... ".

Estava sempre ali, martelando sua consciência. Estava sempre ali, impedindo-a de avançar rumo à liberdade. Aon­de quer que fosse, sempre haveria alguém que a agrediria com aquela recordação, aquela relembrança, aquele falatório con­vertido em imposição.

Se não chegou às profundezas de teu encerro, Otá­via, o eco dos excessos de Antônio, tampouco chegaria; an­tes, a fama de sua prodigalidade. Ninguém poderá acusá-lo de avaro por dar a Cleópatra quanto ela quer. Já faz anos que põe a seus pés mundos, impérios, tronos usurpados. E, já que falávamos de livros, direi que até neles Marco Antô­nio é dadivoso. Pois, sabendo que o maior orgulho de Cleó­patra está na Grande Biblioteca de Alexandria e que as le­giões de César queimaram uma parte de seu gigantesco acer­vo nos dias da guerra civil egípcia, Marco Antônio decidiu emendar o dano presenteando-a com cinco galeras carrega­das de volumes que roubou da biblioteca real de Pérgamo.

Não sou inimiga de Cleópatra — repetia constante­mente a nobre Otávia. — Pelo que dela sei, coloca sua virtu­de em lugar muito alto. Seguramente o próprio Antônio com­preende isso, se, em suas presas de guerra, busca livros para obsequiá-la, e não pedras preciosas...

Mas seus elogios contribuíam para culminar o círculo vicioso em que se achava encerrada. Pois todos voltavam a concordar em que era um exemplo de perfeição e uma lásti­ma que se tivesse casado com um homem indigno. Com o que, mais uma vez, piorava a situação daquele a quem que­ria ajudar.

E Roma continuava falando, falando, falando...

Até que a nobre Otávia não pôde resistir a tanta confu­são e, pela primeira vez na vida, quebrantou todas as leis do comportamento. Abraçada ao fiel Adônis, irrompeu em um pranto desesperado.

— Que fizeram comigo, doce Adônis? Em que me con­verteram?

 

A passagem do tempo serviu apenas para fortalecer Otá­via, para reafirmá-la em sua atitude de vela poderosa, con­feccionada com materiais invencíveis, capazes de resistir à investida de todos os furacões. Chegou um dia em que o mais alto magistrado da República apresentou-se pessoalmente em sua casa para comunicar-lhe uma decisão de Antônio. A mais dolorosa, e, contudo, nem por isso, a menos esperada.

Enfim atrevia-se a pedir o divórcio. E exigia-lhe aberta­mente que abandonasse sua casa.

A nobre Otávia não se permitiu um titubeio, não dei­xou que seus olhos pestanejassem, não quis que ninguém pu­desse ver um leve tremor em suas mãos. Era a estátua em que Roma inteira quisera convertê-la, mas nunca a humilde vítima que a ação de Antônio podia fazê-la representar. Per­maneceu erguida, com as mãos serenamente cruzadas no re­gaço. E sorriso irônico assomou-lhe aos lábios, como se qui­sesse assegurar aos demais que continuava viva e vitoriosa. Mais rainha ainda que a do Egito, pois não necessitava do trono para proclamar sua majestade.

E se eu me negasse a abandonar esta casa? per­guntou secamente.

Eu me viria obrigado a te expulsar, nobre Otávia disse o magistrado, com as mãos suadas e um trêmulo de an­siedade na voz. Não me obrigues a fazê-lo, eu te rogo. Jamais poderia me perdoar por isso.

Tratando-se de Otávia, ninguém se viu obrigado a re­correr a extremos. Não se colocaram situações desagradá­veis em um assunto que já o era por si mesmo. Os trâmites do divórcio realizaram-se com a simplicidade e a celeridade de uma transação entre camponeses: como a cessão de um porco ou de um cavalo. Quando lhe tocou abandonar a casa do marido, Otávia não mostrou nem o mais ínfimo sinal de dor nem o mais leve assomo de nostalgia.

Foi-se como chegara: discretamente e sem fazer baru­lho. Com seu dote, seus pertences, sua fortuna e tudo que o direito romano permitia que as divorciadas conservassem. Foi-se com seus filhos e os de Antônio, com suas roupas, seus móveis e seus escravos preferidos. Ninguém, nem sequer o lindo Adônis, soube dizer se também se ia com um pouco de dor.

Porém os romanos, que tanto a admiravam, seguiram sua peripécia com o interesse que só dedicavam aos jogos do circo e, os mais sofisticados, às representações teatrais. Os romanos seguiram-na de perto e sentiram muita pena. Não dela, e sim de Antônio. Ou assim contam os cronistas que registraram aqueles tristes dias.

Otávio recolheu o insulto infligido a sua família com uma altivez e uma dignidade que o colocavam à altura da irmã. Roma conhecia o fervor que sentia por ela, embora não fos­sem filhos da mesma mãe. E alguma língua de vil gume che­gara a sugerir que, se não a amasse tanto como irmã, teria podido amá-la da mesma forma como namorado.

Nenhuma dessas considerações importaram na hora de assumir uma situação que levava ao ponto culminante o des­prezo de Otávio pelo pobre louco que preferia os falsos ou­ropéis de uma rameira aos discretos encantos de sua nobre irmã. Calou-se, pois. Soube agüentar como um filósofo de­senganado da inconsistência dos sentimentos.

Eram falsas aparências. Em seu íntimo Otávio pedia a guerra aos gritos: exigia sangue e fogo. Era, no entanto, um grande conhecedor do poder da aparência e não ignorava que, na política, esta é mais importante que as idéias. Não convi­nha às suas que, em um futuro muito próximo, os romanos associassem seu comportamento com um arrabatamento de fúria revelado no dia em que a irmã foi posta para fora da casa de Antônio.

Limitou-se a olhar sem ser observado, a observar sem ser visto. Soube que, enquanto sua família vivia aqueles tristes acontecimentos, Antônio e Cleópatra viajavam por distin­tos pontos da Grécia em uma galera de ouro que a rainha batizara com um nome revelador: Antoníada. Mas soube tam­bém que nenhuma galera seria veloz o bastante para permi­tir que os dois amantes escapassem de sua fúria. Projetou-a sobre todos os ventos, enviou-a sobre todos os mares preci­samente no dia em que a rainha do Egito fazia trinta e oito anos. E Antônio soluçou, porque o relógio de sua vida cor­ria mais que sua vontade desejava.

Quando decidiu que era chegada a hora de falar direta­mente contra Antônio, Otávio ainda se ateve às mais estritas medidas de prudência que pudessem envolver qualquer ação pública. Não deixou nada ao império do azar. Ao contrário, acabou de enrolar seu novelo com tal esmero que lhe saiu um trabalho de filigrana. Mais que um político, parecia um tecelão.

Em princípio decidira que não era conveniente desper­tar as ânsias belicosas do povo em uma época do ano em que os arrecadadores de impostos achavam-se em pleno exercí­cio de seu ingrato labor, provocando reações pouco agradá­veis nas massas, nos artesãos, nos patrícios. E é certo que as grandes empresas heróicas, as grandes inspirações patrió­ticas hão de encontrar devidamente disposto o generoso pei­to dos povos, o qual, por sua vez, é tão contraditório que não se inflamará facilmente se o cérebro se achar aplicado em questões de índole econômica.

No entanto Otávio teve conhecimento de certa notícia providencial que o impulsionava a atuar com maior rapidez que o previsto. Não viu nisso um sinal de imprudência, nem sequer de celeridade gratuita. A notícia justificava-o de so­bra. Pois informava da chegada a Roma do testamento de Marco Antônio.

Por uma indiscrição do encarregado de depositá-lo no sagrado lar das Virgens Vestais, Otávio soube que naquele escrito encontravam-se as provas irrefutáveis da deserção de seu antigo amigo. Provas que o Senado e o povo de Roma poderiam considerar, por fim, uma traição absoluta.

Decidido a agir, chamou urgentemente Dolabela, um dos militares mais fiéis a sua causa.

Irás com teus soldados ao templo das Vestais e soli­citarás em meu nome que te entreguem o testamento de Antônio.

Dolabela, no entanto, não reagiu com a veemência que Otávio esperava.

É possível que eu não tenha entendido direito tuas ordens disse, vacilante. Se Antônio decidiu recorrer ao segredo que aquele santo lugar garantia aos romanos, não temos direito de lhe negar isso.

— Lembro-te que foi o próprio Antônio que, em certa memorável ocasião, me levou a assaltar os prestigiosos se­gredos das Vestais. Estou seguro de que a grã-sacerdotisa não vai me negar um pequeno favor em lembrança daquela noi­te... talvez por medo de viver outras mais singulares ainda. E, posto que há de obsequiar-me, dize-lhe de minha parte que solicito como presente o testamento de Antônio.

Dolabela apressou-se em cumprir o que preferiu enten­der como um indiscreto desejo de seu amigo e aliado. Agiu com diligência, como era seu costume e seu prestígio, mas não sem alguns escrúpulos, por demais lógicos. Certas tra­dições estavam muito arraigadas em seu espírito, como no de qualquer cidadão romano que se considerasse prudente (virtude essa que começava a ser inseparável da idéia de ci­dadania). Na realidade Dolabela deixava-se levar por precon­ceitos ancestrais: podia faltar a certos deuses um determina­do número de vezes ao longo da vida, sem que isso o con­vertesse em um miserável; porém qualquer desatenção à gran­de Vesta podia acarretar-lhe a reprovação do povo e, ade­mais, atrair sobre seu próprio lar todo tipo de maldições e, talvez, desgraças.

Uma afronta às Vestais era uma afronta às origens da vida, às forças básicas que sustentavam o poder de Roma desde suas origens. A manutenção do fogo sagrado não era assunto que tolerasse frivolidades. Em todos os lares guardava-se permanentemente acesa uma chama que as dig­nas matronas renovavam de forma periódica com parcelas da chama original, conservada no templo.

Dolabela temia, com razão, que uma ofensa à grã-sacerdotisa pudesse gerar desgraças sem número contra to­da a sua família. Incluídos os defuntos.

Quando regressou de sua ingrata comissão, viu que Otá­vio acabava de regalar-se com um almoço à base de frutas secas, amêndoas e azeitonas. Com o que o regalo era não só frugal, como também medíocre. Uma vez mais Dolabela maravilhou-se de que alguém tão jovem pudesse enfrentar um acúmulo tão desproporcionado de responsabilidades con­tando com um estômago tão pouco estimulado.

Não lhe foi menos surpreendente que, naquele dia, Otá­vio se permitisse o excesso de uma taça de vinho. Quando lhe sorriu por sobre as bordas, Dolabela compreendeu que esvaziava o conteúdo, porém não o saboreava.

Trabalho inútil — anunciou o general. — A grã-sacerdotisa não acede em te entregar o testamento. Mais ainda aborreceu-lhe o simples fato de que eu me atrevesse a pedi-lo. "Dize a Otávio que, se quiser esse testamento, terá de vir buscá-lo com seus soldados...", acrescentou em tom ar­rogante.

Não deixa de ser um convite, em todo caso — res­pondeu Otávio, sem perder a calma. E, deixando de lado a taça vazia, anunciou: — Manda preparar um pelotão arma­do. E que não sejam homens excessivamente piedosos.

Seu olhar de gavião estava posto no futuro. Suas garras cravavam-se no presente. E a seus ouvidos soaram comple­tamente inócuas as queixas de Dolabela:

Se nem sequer é possível resguardar a própria inti­midade ao amparo do fogo sagrado, o que mais nos resta?

Se o fogo sagrado se interpõe entre Otávio e o inte­resse de Roma, significa que Roma pode passar sem seu fo­go. É mais conveniente a seus interesses que conheça de uma vez o verdadeiro rosto de um renegado.

Quando saía em direção ao templo, convenientemente ataviado com uma couraça que lhe era um pouco larga, Otá­vio dirigiu-se ao nicho onde se conservava o fogo sagrado, bênção do lar, e jogou sobre as chamas um jarro de água. Dolabela ficou horrorizado. Mas a casa continuava de pé, e, naquele dia, a terra não se abriu aos pés de Otávio.

 

Mal ocupou seu lugar privilegiado no Senado, todos os presentes compreenderam que os punhos de Otávio se dis­punham a assestar um golpe definitivo. Sua habitual mode­ração tranformara-se em uma expressão autoritária e enér­gica. Seus olhos, amiúde evasivos, lançavam centelhas de uma violência disposta a agir não só contra os inimigos, mas tam­bém contra os que se atrevessem a secundá-los. Para melhor garantir sua posição, o insolente jovem fez seus partidários levarem armas ou objetos contundentes sob as togas oficiais. Daí alguém poder referir-se à "polícia pessoal de Otávio".

Não se propunha tomar o Senado, mas simplesmente intimidá-lo. Sua astúcia levava-o a aprender constantes li­ções do passado, e de todas elas tirou a mais proveitosa: qual­quer intento de insultar a República passando por cima de seus representantes estava abortado de antemão. Talvez o con­seguisse algum dia, mas por ora era mister contar com eles. Precisava fazê-los crer que eram suas as decisões que ele se encarregaria de inculcar-lhes.

Através de seus representantes, o povo de Roma tinha os olhos fitos em Otávio. E ele soube jogar com todas as pos­sibilidades de sua voz, variando a modulação, graduando o ritmo, manipulando os assentos conforme os sentimentos que convinha expressar com vistas a maior efetividade.

O que me disponho a revelar concerne a um grande amigo que foi meu mestre. Mas afeta especialmente a Ro­ma, porque lhe mostra quão perigoso é colocar seus filhos mais jovens em mãos de mestres errados. Sei que, exprimindo-me assim, alguém poderá me acusar de ingrato. Responde­rei dizendo que, se houvesse delegado minha dolorosa mis­são a outro, poderiam acusar-me de covarde. Enfrentando a escolha, decido ater-me à lei que sempre dirigiu o compor­tamento de Otávio. Para não ser covarde, atraio sobre mim todas as iras dos partidários de Antônio. Para não ser ingra­to, roubo aos demais a oportunidade de falar contra meu ami­go e arrogo-me o doloroso encargo de fazê-lo eu mesmo, na convicção de que meu afeto de ontem saberá pôr atenuantes no que qualquer outro converteria em desapaixonada carga de acusações contra o comportamento de Antônio. Muito mais temível, porquanto será inevitável, assim que conhecer­des o conteúdo deste testamento...

Ergueu o braço, mostrando aos presentes um envelope lacrado. Aquela evidência levantou uma onda de murmúrios entre os representantes da saúde romana.

Um dos partidários de Antônio levantou-se possuído pela indignação.

Este documento estava depositado no templo das Vestais. Mediante que ardis conseguiste tê-lo em teu poder?

As Vestais rogam pelo bem de Roma — respondeu Otávio pausadamente. — Logo, proporcionam os meios ne­cessários para garanti-lo.

As vozes, os gritos, os impropérios dos partidários de Antônio converteram-se em força comum. Era um esforço desesperado para conseguir que o documento se mantivesse em segredo. Com o que se limitavam a restituir-lhe sua fun­ção original.

Otávio apressou-se em interceptar o pedido com uma nova manobra.

— Se Antônio ainda fosse um amigo, Otávio jamais se atreveria a abrir seu testamento nem em público nem em pri­vado. Mas Antônio converteu-se em um desconhecido para o povo de Roma. Quantos anos faz que não se digna a pôr os pés em sua pátria? Quantos anos transcorreram desde a última vez que o vimos neste Senado? Cinco longos inver­nos trancorreram desde que Antônio regressou à infausta Ale­xandria! Para comunicar-nos com ele nos vemos obrigados a recorrer à magia. À magia, sim, porque não é ele quem nos fala de longe, mas seu fantasma! — Cresceram os ru­mores quando Otávio se dirigiu aos primeiros assentos e, pe­gando a mão de um dos senadores mais jovens, puxou-o até a tribuna. — O nobre Calvísio, de cuja objetividade ninguém pode duvidar, vos contará o que pôde ver em sua recente via­gem a Alexandria. E se, depois de ouvir seu relato, conti­nuardes pensando que Otávio não deve ler o testamento de Antônio, Otávio acatará vossos altos desígnios e ele próprio se aplicará um severo castigo por ter ousado agir mal, cren­do que falava com justiça...

A expectativa acentuara-se ante a presença do mencio­nado Calvísio. Era um jovem imberbe, abundante em gor­duras e muito conhecido por sua inquebrantável lealdade a Otávio. Com o que os presentes deduziram que devia trazer alguma arma escondida sob a toga e, portanto, não seria pru­dente contradizê-lo.

—            Se me pedirem que fale de Antônio, direi que em Ale­xandria não conheci ninguém que seja digno desse nome. Só conheci um general romano convertido em cãozinho de esti­mação de uma egípcia de luxo. Uma egípcia tão fogosa que utiliza o alento do romano para aliviar os fogos que ardem sob seu monte de Vénus.

A afetada voz daquele petimetre conseguiu despertar a hilaridade de seus ouvintes. E outro dos partidários de Otá­vio gritou:

Dá-nos o nome desse general, Calvísio!

Pois bem, ele jura e perjura que é Antônio, mas eu vos digo que não posso crer no que vi. Daria Antônio de pre­sente a uma rameira toda a biblioteca de Pérgamo, que con­tém duzentos mil volumes? Não, meus senhores. O Antônio que conhecemos os teria entregue a Roma, enriquecendo, as­sim, suas bibliotecas públicas. Toleraria Antônio que, du­rante sua estada em Éfeso, os nobres daquela cidade saudas­sem Cleópatra com o apodo de Imperatriz do Mundo? Não, senhores. Porque nosso Antônio saberia que essa alcunha ca­be somente a Roma. Quereis saber mais coisas ainda desse general ébrio e afeminado que usurpa os títulos de Antônio? No curso de um banquete, levantou-se com passo cambaleante e, ajoelhando-se diante de sua egípcia, lavou-lhe os pés em uma bacia de prata. Enquanto se achava reunido com o alto tribunal, repartindo justiça e tratando de assuntos de vital importância para os interesses de Roma no Oriente, inter­rompia a reunião a cada momento porque sua amante lhe enviava bilhetes de amor, como fazem as criadas aos cria­dos quando conseguem burlar o olhar dos patrões. Durante meus últimos dias em Alexandria, pude ver com estupor que a liteira de Cleópatra passava pelo foro e nela ia dependura­do esse general romano, vestido como seu deus Dioniso e ex­primindo aos gritos sua paixão extravagante. Se este é An­tônio, senhores, envergonho-me aqui de que o seja. Pois ao que acabo de contar poderia acrescentar coisas muito mais atrozes, que o convertem no alvo das chacotas dos alexan­drinos. A tal ponto o é que corre uma frase em Alexandria: "Antônio é um comediante, mas em Roma usa a máscara da tragédia e guarda a da comédia para ostentá-la em Ale­xandria". Eu acrescentaria que é a da farsa, pois continuo sem acreditar que esse general abalofado, bêbado, envelhe­cido e ridículo seja Marco Antônio, que conheceu a admira­ção de Roma e o carinho de seus melhores cidadãos.

— Estás mentindo! — gritou um dos senadores. — Fa­las assim porque és amigo de Otávio!

Este afastou Calvísio do centro da tribuna.

— E não são amigos de Antônio os que o defendem?

—            replicou, com voz pausada mas certeira. — Só o amor jus­tifica vossa cegueira. Pois é preciso estar cego para continuar defendendo quem renega ser romano.

Estas últimas palavras foram decisivas. Os nobres se­nadores, que costumavam adequar suas decisões ao império da razão, deixaram-se pegar pela rede que Otávio acabava de estender-lhes. O que não conseguiram as derrotas de An­tônio, a coroação de Cesário e as terras entregues ao Egito, conseguiu-o, em poucos instantes, uma simples dúvida so­bre o patriotismo de um romano.

As dúvidas puderam mais que a dignidade. E Otávio foi autorizado a ler o espinhoso documento que continuava ar­vorando, à guisa de trunfo.

Em certa ocasião, quando Antônio se contava entre os mais nobres representantes do sentir de Roma, leu diante de uma plebe inflamada o testamento de César. Sua eloqüência contribuiu para levantar o povo contra os conspiradores. Hoje cabe a mim a dolorosa responsabilidade de inflamar vossos ânimos, não contra aquele Antônio de gloriosa lembrança, mas contra este outro Antônio que foi capaz de verter sua indigni­dade neste testamento. Pois nele pede que, ao chegar a hora suprema da morte, lhe seja permitido descansar em terra egíp­cia. Isto quer Antônio, em lugar de pedir que o levem para sua pátria. E se nela se encontrasse por acaso, pois por acaso será qualquer visita de Antônio a partir de agora, solicita que seu cadáver seja transportado através do foro e embarcado com destino a Alexandria, onde já mandou construir seu túmulo.

Constrói seu túmulo em vida! — exclamou um dos senadores mais antigos e respeitados do partido conservador.

—            Até nisso imita os egípcios!

— Não é um túmulo! — exclamou Otávio, a voz em grito. — É um monumento à deslealdade, um insulto a to­dos nós e, por extensão, ao povo de Roma!

O veneno acabava de surtir efeito. E não precisou se­guir um curso prolongado. Foi uma apózema violenta, in­tensa, que entrava pelos olhos e acabava de golpe com todas as suas defesas. Não só inflamou os ânimos dos senadores: converteu-os em autênticas feras, que tentavam descarregar sua ira sobre os partidários de Antônio, cujo próprio des­concerto os desarmara completamente ante o ataque dos demais.

Novamente, porém, Otávio recorreu à astúcia, para que ninguém pudesse pensar que suas ações eram guiadas pela animadversão para com o homem que o injuriara através de sua irmã. E, sem deixar de arvorar o testamento de Antô­nio, proclamou:

— Não penseis na guerra pelo momento. Não empreen­dais nenhuma ação contra aquele que foi nosso amigo. Pen­sai que não é senhor de seus atos. Pensai que a corte do Egi­to é famosa por seus feiticeiros e que talvez nosso amigo se encontre sob a influência de um filtro de amor. Que Roma não incorra no erro dos que desertam de seu glorioso desti­no! Que triunfe a razão. Pois, se declarardes guerra agora, não lutareis contra Antônio, nem sequer contra Cleópatra. Lutareis contra suas damas, seus magos e seus eunucos, já que são eles que governam o Egito ultimamente.

Mas na intimidade de seu escritório Otávio contava os dias que faltavam para que os arrecadadores de impostos des­sem por encerrado seu trabalho. Calculava as semanas que deveriam transcorrer até o povo esquecer a dolorosa sangria de que suas bolsas haviam sido vítimas e retornar ao humor habitual.

 

Os grandes eventos da terra não se produzesm sem que antes os anunciem espantosos prodígios no céu. Augúrios ter­ríveis, mensagens aterradoras anunciam aos mortais que os deuses decidiram brincar com seus destinos. E nenhum deus se faz anunciar com tanta antelação quanto o belicoso Mar­te dos gregos e a temível Bakset dos egípcios. Pois ambos necessitam da deflagração da guerra para sentir-se comple­tamente satisfeitos.

Em torno do nome de Antônio começou a tecer-se uma auréola de fatalidade. Sintomas sinistros foram o prelúdio de coisas ainda mais terríveis! Nas margens do Adriático uma cidade colonizada por Antônio foi engolida por gigantescas crateras que se abriram de repente na terra. De umas está­tuas que os cidadãos de Alba haviam erigido em honra a An­tônio brotou durante vários dias um suor muito estranho, que não secava por mais que o limpassem. Em Atenas uma borrasca estremecedora derrubou os colossos de Eumene e Átalo, que continham inscrições de Antônio. Inclusive seus deuses protetores receberam o castigo de algum fado adver­so, pois o templo de Hércules em Patras foi incendiado por dois raios que rasgaram o céu em plena luz do sol, e em Ate­nas um furacão mortífero arrancou do chão a estátua de Dioniso.

Mas tudo era obra dos deuses que habitam além das nu­vens, porque o furor de Roma não precisava de artifícios para manifestar-se. Como precisaria, se Otávio velava dia e noi­te? Nenhum preparativo parecia-lhe inútil, nenhuma precau­ção excessiva, nenhum conselho vão. Enquanto Antônio cum­pria os primeiros passos de seu sonho oriental enchendo as noites de Alexandria com festas e desfiles, ele calculava os benefícios materiais que o Oriente podia trazer a Roma. Lon­ge de imaginar uma dinastia de titãs, personificada em qua­tro crianças divinas sentadas em tronos de ouro, Otávio usur­pava o ofício dos mercadores e imaginava barcos carrega­dos de trigo, caravanas repletas de especiarias, escravos tra­balhando dia e noite nas minas de estanho, lenhadores cor­tando árvores de madeiras preciosas e quantos benefícios po­dia proporcionar um império cujo poder não residisse nos devaneios da imaginação, e sim na eficácia das espadas.

Entrementes Antônio e Cleópatra continuavam viven­do o esplendor de seus amores junto ao mar de Alexandria.

Quando Otávio empunhou por fim a lança sagrada, pas­sou de porta-voz de uma fração do Senado a exata personi­ficação do sentir de Roma. Converteu-se no coração popu­lar que respondia a um único lema: vingar Roma dos ultra­jes infligidos em seu orgulho por uma fêmea desnaturada, cruel e despótica.

À medida que a procissão presidida por Otávio avança­va para o Campo de Marte, a zona bélica por excelência da cidade, à medida que a procissão aumentava com os tran­seuntes que iam se somando a sua passagem, os romanos co­meçaram a assimilar o verdadeiro sentido da guerra. E tal assimilação também era o resultado do longo trabalho de Otá­vio, de suas noites em claro, de seus sorrisos fingidos, de suas acusações veladas. Era o triunfo do humilde mangusto so­bre a orgulhosa cobra do Egito.

Ao levantar a lança da guerra, ao dirigi-la com estre-mecedora precisão para a alma de Alexandria, Otávio teve particular empenho em fazer com que a multidão congrega­da a seu redor percebesse com toda a clareza o inequívoco da declaração.

Não é uma guerra civil gritou, marcando cada pa­lavra. Não é Roma contra Roma. É Roma contra o Egi­to. É Roma contra Cleópatra. É a grande cruzada que Ro­ma empreende para libertar um dos seus. Para arrancar An­tônio da influência dos feitiços orientais e do cárcere da de­pravação!

Os gritos da multidão fizeram coro a suas palavras, que durante várias semanas converteram-se em um hino triunfal que percorria as ruas de Roma e introduzia-se nos lares até arraigar-se firmemente em todos os corações. E aquele jo­vem de aspecto enfermiço, aquele patrício de aspecto dema­siado austero apareceu revestido com os mais audazes atri­butos do heroísmo, como se, de repente, houvesse compra­do, a muito bom preço, a auréola de grande conquistador que até então adornava a reputação de Marco Antônio.

Enquanto a lança de guerra cravava-se na alma de Ale­xandria, os amantes continuavam disfarçados de deuses, e a galera de ouro a Antoníada abandonava lentamente os mares e subia até as nuvens, impulsionada por uma ilu­são que nada queria saber da realidade. E nas nuvens nave­gou desde aquele dia, deixando atrás de si uma estela de qui­meras que, longe de decrescer, não parava de aumentar. Na­quele éden completamente fechado à turbulência dos acon­tecimentos, Antônio celebrou seu aniversário com tantas es­peranças que sua amante julgou-o completamente louco. Po­rém mais uma vez bendisse sua loucura.

Os cinqüenta e um anos de Marco Antônio foram rece­bidos por Cleópatra com uma profunda sensação de sereni­dade que ela resistiu a analisar, como, em outro tempo, negara-se a averiguar por que a atraía a soberba maturidade de Júlio César. Mas daquela relação a jovem Cleópatra ob­tivera muitas e notórias vantagens, que depois repercutiram favoravelmente em sua maturidade; por isso esperava que a de Antônio trouxesse os melhores augúrios não só para seus amores, como também, e muito especialmente, para sua con­veniência e para o trono do Egito. Ao vê-lo repousar em uma profunda sesta, pois os excessos da comida começavam a cansá-lo, pensou que ambos se aproximavam da perfeição. E decidiu que logo ela poderia depositar toda a sua força nas mãos de Antônio e ambos poderiam abandonar sua comba­tividade aos pés do trono de Cesário. A partir desse momen­to se abriria um espaço completamente branco, não profa­nado por ações nem projetos, destinado unicamente a alber­gar horas ociosas, plácidos entardeceres, gozos sem fim na ilimitada capacidade de prazeres que as esquinas de Alexan­dria apregoavam.

Ao mesmo tempo, contudo, a amazona que palpitava dentro de Cleópatra revelava-se, invocando suas ambições mais arraigadas: as que a levavam a imaginar-se à frente de uma dinastia poderosa que dominaria os mais remotos con­fins do mundo conhecido e imporia sua autoridade sobre o poder de Roma. "Desta vez será outro César que há de pre­sidir minha entrada triunfal em Roma", costumava dizer a suas damas de honor. "Será meu filho, situado no mais alto de sua glória. Será Cesário, o rei dos reis, que fará Otávio se inclinar a meus pés."

Mas o amor que sulca os mares, povoando-os de espe­rança, ignora que a fortuna é frívola e inconstante, como a viúva que decidiu viver intensamente os gozos que não des­frutou em vida do marido. A fortuna é a pior das divinda­des, pois é a que cobra mais caro os favores que prestou aos homens. A fortuna não sabe de mares idílicos, pois alugou-os cobrando depois a sangue e fogo.

Porque Fortuna se aliou com os deuses da guerra para que os amantes de Alexandria — e a própria cidade e o solo egípcio — conhecessem, uma a uma, todas as setas da ad­versidade. Disparadas de Roma, com certeiros impactos de domínio, transpassaram as couraças mais resistentes e foram cravar-se no fundo da alma.

Quantos deuses horríveis se juntaram para invocar a fu­nesta estrela que alterou a vida dos formosos amantes! Quem lhes diria ontem, na culminância do gozo, que o destino se desentendia com eles e os deixava nas mãos de seus mais ad­versos inimigos?

Então os amantes de Alexandria despertaram de seu so­nho e, ao olhar a sua volta, viram que o mundo mudara. Os mares já não bebiam os azuis que o céu refletia em seus abis­mos. O sorriso perene de Alexandria contraiu-se em uma ex­pressão de horror. Caíram as grinaldas das estátuas, e os fo­gos apagaram-se nos templos, porque as felizes divindades de antanho eram substituídas pelas temíveis deusas da vin­gança, que só semeiam destruição a sua passagem pelo mundo.

A sorte do mundo foi decidir-se em um lugar distante, uma inóspita costa situada nas costas da Grécia. E o mun­do, ao tremer, soube que sua enfermidade estava em Áccio. Dali sairiam os raios destinados a destruir, uma a uma, to­das as defesas de Alexandria e a derrubar todos os baluartes do amor.

Duas divindades da guerra, de pátrias diferentes, caí­ram sobre Áccio dispostas à luta. De Roma veio Marte, atleta poderoso, coberto com elmo invulnerável e armado com o poderoso sopro que inspira nos mortais a loucura da luta. Do Egito chegou Bakset, terrível deidade com cabeça de leoa, infame instigadora de todas as catástrofes, horrenda criatu­ra que insufla no peito dos mortais a ânsia de matar e a ne­cessidade de possuir mediante a matança.

Animando seus respectivos bandos, as terríveis divinda­des que reinam nos céus desceram para organizar um infer­no pavoroso nas costas escarpadas de Áccio. E o ameno pul­mão de Alexandria conteve a respiração, enquanto os deu­ses convertiam a sua em ferozes labaredas de ódio.

Enquanto Otávio consagrava suas noites à vigília, pre­parando até o último detalhe uma operação cujo alcance era muito mais vasto que a escusa da guerra permitia adivinhar, os dois amantes convertiam suas noites em um prolongamento esplendoroso dos fatos que conheceram em Alexandria. A frota egípcia, unida à de Antônio, navegou para o lugar da batalha, porém os amantes decidiram bendizer o tempo detendo-se em lugares mais prazenteiros. E, graças à matu­ridade de seus amores, a ilha de Samos conheceu seus me­lhores dias e suas noites mais prósperas. Pois não se viu em todos os mares maior aparato de suntuosidade, maior excesso na alegria, um conjunto mais pletórico de prazeres e loucu­ras. Era como se Antônio consagrasse o futuro da guerra a seu deus Dioniso.

"Estão mesmo seguros de sua força", diziam os ilhéus. "Pois se gastam toda essa alegria antes de entrar em comba­te, o que não farão quando obtiverem a vitória?"

A alegria, contudo, tornou-se dor nas costas da guerra. E os egípcios puderam dizer: "Áccio, nome maldito para sem­pre nos altares de Alexandria. Áccio, costas tenebrosas, al­cantis maléficos, águas negras avermelhadas pelo sangue dos cadáveres, céu coberto pela maldição funesta que arroja a sagrada lança de Roma. Áccio, gigantesca hecatombe onde os amantes jogam a carta inesperada que já não há de deci­dir o curso de seus amores, mas a morte do mundo que os protegia, do mundo que chegou a amar graças a eles".

A alegre e confiante Alexandria começou a tremer du­rante os três meses em que os exércitos que se enfrentavam em Áccio dedicaram-se a preparar o momento da grande batalha.

Dos terraços do palácio real Cesário contemplava o ho­rizonte, como se, acima daquela linha ambarina, onde o azul do mar coincidia com o azul dos céus, pudessem aparecer, de um momento para o outro, imagens das batalhas que en­chiam sua alma de desassossego. Era inútil que os conselhei­ros de sua mãe o tranqüilizassem. Era inútil que os bruxos do palácio efetuassem todo tipo de sortilégios positivos. Uma força mais poderosa que todos os augúrios, muito mais avi­sada que todos os conselhos dos mais velhos, falava em seu íntimo de sangrentos acontecimentos, de terríveis vinganças efetuadas pelas divindades do desastre e pelos gênios da de­solação.

Os marinheiros que chegavam ao porto de Eunosto eram portadores de notícias que, se não desesperançadoras, eram no mínimo pessimistas. Em numerosos pontos da Grécia as multidões inflamadas haviam derrubado a golpes de maça as estátuas de Antônio e Cleópatra. Em outros pontos, mais próximos do campo de batalha, dizia-se que os oficiais de Antônio começavam a desertar de suas fileiras, passando para as de Otávio, porque os incomodava a constante irrupção da rainha egípcia nos planos de batalha e nas relações com os soldados. Chegavam de todas as partes notícias do des­concerto reinante entre as tropas... desconcerto que se opu­nha à perfeita ordem que reinava entre as fileiras de Otávio.

Quando não chegavam notícias, Cesário continuava apoiado na mágica balaustrada que se abria para o incessante tráfico do porto e os esplendores de Alexandria. Respirava então o ar ácido, corrosivo, que chegava da corrupção dos lagos, com sua putrefação aumentada pelo lôbrego calor de agosto. O jovem príncipe sentia então que a cidade, o país inteiro eram como uma maldição que o destino pusera em suas mãos sem que ele solicitasse. Seus olhos enchiam-se da­quela Alexandria de formas irreprocháveis, aquela Alexan­dria da qual um viajante disse que obrigava a manter os olhos continuamente fechados, tão intensa, tão cegante era a bran­cura que o sol arrancava de seus infinitos mármores.

O destino final de tanta beleza decidia-se em umas cos­tas distantes, das quais Cesário sequer ouvira falar!

— Meu destino está unido ao de Alexandria — sussur­rou tristemente em uma tarde em que não chegou nenhum navio carregado de notícias. — Meu destino é como tua vi­da, bom Totmés; outros o decidiram por mim, e são outros que o jogam agora, em uma partida de morte, nas costas de Accio.

Falava com tanta amargura que Totmés se viu obriga­do a acariciá-lo. E sentia que de fato eram ambos o resulta­do de dois destinos postiços.

Teu destino é o do Egito, meu príncipe. Da mesma forma que o meu foi te ajudar a compreendê-lo. E o que su­ceder em Áccio nos arrastará aos dois.

No dia em que nos conhecemos, naquele túmulo da Sede da Beleza, li em voz alta a história de um principezinho que não chegou a se tornar homem...

E eu te adorei, porque, no meio da queda do Egito, falavas com as palavras da tradição.

A lembrança daquele menino morto prematuramente não me abandonou durante toda a minha vida. Tal como o príncipe Aristóbulo da Judéia. Por isso te digo que o Egito é um peso demasiado árduo e Alexandria, uma maldição. Ambos são o peso que me impedirá de avançar e que, ao mes­mo tempo, me mantém imóvel, esperando que em Áccio dois exércitos decidam meu destino.

E ao mesmo tempo eu te digo que não podes esca­par à sorte do Egito, porque nós todos quisemos te fazer digno dela. Que, embora seja adversa, será grandiosa.

Estás a tempo de fugir, Totmés. A vida que me con­sagras é algo artificial, um voto que podes desfazer a qual­quer momento, porque não o formulaste. Fizeram-no em teu nome. Podes renunciar a ele, voltar a teu passado, procurar teus pais...

Meu passado já é só o que tive junto de ti. Quem pode desfazer o caminho percorrido? Compreendi que o des­tino se compraz em anular seus próprios decretos. Se em crian­ça tive um, foi desfeito por Epistemo e tua mãe. Meu desti­no agora é viver a teu lado, impulsionando o sonho que me levou para ti. O tempo eterno do Egito, compreendes? Ele durará mais do que nós. Sobreviverá à queda de Alexandria, porque existe desde muito antes que os resplendores de seus mármores e a sabedoria de suas academias começassem a se irradiar.

Durante três meses o futuro rei do Egito acudiu todas as tardes ao terraço, como um vigia imperturbável que usur­pava as funções do farol e cujo coração se inflamava pro­nunciando as célebres boas-vindas do porto velho: "Eunos­to, soldados de Alexandria. Bom regresso, ótima chegada, salutar acolhida aos vencedores de Áccio..."

No entanto as notícias dos mares eram cada dia mais contraditórias, embora nenhuma desmentisse o pessimismo da anterior.

Otávio vencia. Otávio estava a ponto de vencer comple­tamente. Otávio quase se proclamava vencedor.

E um dia apareceu no horizonte a galera de Cleópatra. Alexandria inteira regozijou-se com a notícia de que a rai­nha regressava a seu palácio de mármore. Alexandria intei­ra sentiu-se mais protegida, e só a fetidez do vento trouxe notas sinistras aos desfiles de flores e aos coros triunfais. Foi, contudo, a fetidez que acabou triunfando, porque a suntuo­sa galera chegava impulsionada pelos maus ventos da derrota.

Cesário reuniu os conselheiros, mandou as damas de ho­nor vestirem de gala seus três irmãos, animou as gentes da corte a porem suas melhores galas e ele próprio vestiu-se de grande cerimonial, para que os olhos de sua mãe, ao entrar em Alexandria, ficassem deslumbrados pelos brilhos do ou­ro e pela garridice que o sol arrancava das pedras preciosas. E que seus ouvidos fossem acalentados pelos suaves rumo­res da seda, não pelos rugidos do deserto!

A comitiva dirigiu-se ao cais e ali esperou a aparição da rainha, no alto de sua orgulhosa galera, alegria dos mares. Mas havia manchas de sangue no nome que até então osten­tara com não menos orgulho — Antoníada, Antoníada! —, o ambiente da tarde era cansativo e uma umidade aflitiva gru­dava a seda na pele mofada dos cortesãos. Até o grande fa­rol, com suas luzes apagadas, parecia mais desluzido.

Na aparição de Cleópatra vieram os primeiros anúncios de um destino hostil. Pois chegava completamente enlutada e só entre suas damas. O galhardo acompanhante de outras horas, o amante que prometera conquistar o mundo para depositá-lo nos altares de Alexandria ficou em algum lugar do imenso mar da derrota. Durante alguns meses, Alexan­dria não teve notícias do homem que dera tudo por sua sorte.

 

Se o destino da guerra muda o mundo, este muda o amor dos amantes. Toda a serenidade de antigas horas passadas ao abrigo de um idílio converte-se em tortura; o esplendor de um sonho de conquista consome-se agora no fracasso. E os amantes tornam a uma casa modesta, um último rincão que só permite esperar o supremo instante do túmulo.

Passa o tempo com mais força que o sopro dos fura­cões. Transcorre lentamente a miséria, a dor converte-se em costume, a derrota, em estado de ânimo. O tempo fez um trabalho irreversível. Os heróis estão mutilados.

Marco Antônio não quis regressar a Alexandria derro­tado pela segunda vez em sua vida. Pois naquela ocasião sa­bia que seu destino já estava traçado e que, ao cumprir-se, arrastaria consigo a cidade e sua rainha amada. Que algum dia, por mar ou por terra, as forças de Otávio culminariam naquele lugar, sobre o próprio terreno sagrado, o trabalho sistemático de destruição que vinham acometendo desde Ro­ma. Era a águia que se encarniçava sobre sua presa com fe­rocidade implacável e sem se deter ante nenhuma súplica, sem se deter nem mesmo ante a lembrança do carinho de outrora.

Marco Antônio buscou a solidão e fugiu da companhia dos homens, porque acabava de descobrir até que ponto eles o entediavam. Refugiou-se em um afastado rincão das costas da Líbia, o lugar mais solitário que pôde encontrar. E ali pas­sou meses inteiros, vivendo por seus próprios meios em uma humilde cabana e contemplando o mar durante longas ho­ras, saudoso da época em que fora capaz de conquistá-lo.

Em seu exílio naquela praia deserta, açoitado pelos ven­tos ardentes do verão, recordava amiúde a história de certo patrício de Atenas, chamado Timão, que, como ele, também repeliu o contato dos homens e, como ele, quanto mais du­rava sua solidão, menos desejo sentia de voltar a viver entre aqueles. Contudo, embora tivessem merecido as zombarias de Aristófanes e Platão, os motivos do antigo ateniense fo­ram mais filosóficos que os dele: Timão passou a vida fa­zendo favores aos demais e, ao necessitar do afeto destes, achou-se por todos abandonado. Não hesitou em condenar-se ao ostracismo mais absoluto. Permaneceu isolado em uma colina perto de Atenas e dedicou-se a odiar a raça humana pelo resto de seus dias.

Antônio não odiava os homens, mas sua própria fra­queza. Deixando-se levar pela inteligência de Cleópatra, lançara-se a uma empresa para a qual não estava prepara­do. Nunca lhe ocorrera desse modo quando se limitou a ser um guerreiro, mais um entre seus homens. A ambição colocara-lhe diante dos olhos um espelho que, ao apresentá-lo como um ser superdotado, deformava-o. Em sua queda, arrastara o melhor de si mesmo: a ânsia de viver, a necessi­dade de esgotar até o fundo as coisas mais elementares, os prazeres mais rudimentares. Suas únicas possibilidades de ser um homem como os demais, de não se ver obrigado a encar­nar todas as horas o incômodo herói que o Egito, Roma e Cleópatra necessitavam.

Foi Cleópatra quem se viu obrigada a encarná-lo durante os meses que durou sua ausência. Mas ela, em sua soberba maturidade, não perdeu tempo considerando-se uma heroí­na. No máximo uma grande profissional das intrigas inter­nacionais. E embora nisso o próprio Marco Antônio não se tivesse mostrado inepto durante seus anos mais recentes em Alexandria, a rainha demonstrou sobejamente que podia agir sem ajuda de ninguém. Ou talvez com uma ajuda já distan­te, que lhe prestou em sua juventude um mestre excepcio­nal. Chamava-se Júlio César e ensinou-lhe tantos ardis que o leito real se converteu em aula de alta política.

Ao recordar seu primeiro amante, Cleópatra regressou à juventude e tentou aspirar-lhe os aromas, sem perceber que também aquela primavera convertera-se em um sonho em­balsamado. Acabava de fazer trinta e nove anos, e curiosa­mente tal evidência, que em qualquer outra ocasão a teria angustiado, naqueles dias não lhe roubou um só pensamen­to. Embora já não fosse jovem, era, sim, bastante madura para que suas intrigas se revelassem mais eficazes. Embora já não tivesse a audácia insolente do guerreiro, possuía, em troca, a arte do político. E, fazendo bom uso dela, tentou alterar a história de quantos reinos vizinhos ao Egito pudes­sem servir-lhe para impedir a passagem de Otávio. Nada mais inútil, nenhum esforço mais em vão. Todos os seus aliados viviam presas do mesmo terror. Roma avançava.

O mesmo terror já cavalgava sobre Alexandria, enquanto os cavalos de Otávio assolavam os pequenos reinos da Ásia. A cidade, antes buliçosa, voltava-se para dentro de si mes­ma, e todas as raças que confluíam em seus mercados, todos os filósofos que polemizavam em suas academias, todos os atores que faziam o povo chorar nos grandes teatros come­çaram a falar em voz baixa. A cidade estava consciente de que o poder de Roma chegaria, mais cedo ou mais tarde. E Cleópatra sabia que o hibridismo de sua cidade era a força menos adequada para resistir a alguém que chegava como senhor absoluto de seus recursos. Alguém cujas idéias esta­vam perfeitamente claras.

Quando soube que nada mais poderia deter aquelas idéias impostas pela força das armas, Cleópatra recordou os votos de eternidade que Anônio formulara continuamente e sen­tiu que precisava conciliá-los com os seus. Então mandou buscá-lo, e Antônio sentiu de novo dentro de si a chama sa­grada e o desejo de experimentar a febre de Alexandria jun­to ao corpo da amada e sucumbirem os dois sob seus ardo­res. E se alguém dizia: "Será que o misantropo Antônio já não odeia os homens como antes", ele repondia: "Os ho­mens, sim, mas não as serpentes do Nilo".

Assim os amantes voltaram a reunir-se sob o signo ad­verso qua as más estrelas haviam decretado desde a derrota de Áccio. Naquela ocasião, contudo, não houve alegria no encontro, só a agradável cumplicidade de pessoas que deci­diram empreender juntas um grande projeto.

Já não era o projeto do Oriente. Era o da Morte.

Rodeados pela adversidade do mundo, decidiram encon­trar seu guia espiritual na mais fatídica das adversidades. Os milênios do Egito ensinavam-lhes que o amor à morte era o mais seguro, porque ela é uma dama cuja presença nunca abandona os mortais. E, ao regressar aos prazeres orgiásti­cos que caracterizaram sua juventude, Antônio soube mes­clar o vinho com a volúpia de imaginar que talvez fosse o último.

Sabiam que deviam estar preparados para o suicidio. O alto lugar que ocupavam não permitia uma morte vulgar, não tolerava uma morte decretada. Guiados por essa idéia, fun­daram a mais peculiar das associações que até então o mun­do conhecera: a Sociedade da Morte em Companhia. Todos os seus membros, amantes fervorosos da boa vida, comun­gavam naquela íntima segurança do final inevitável, o final trabalhado pela própria pessoa e de tal modo conquistado. Essa conquista pessoal outorgava às bacanais dos terraços de Cleópatra uma deliciosa voluptuosidade que não se limi­tava a manar dos vinhos ou das drogas que se consumiam para alcançar o êxtase. Era, ao contrário, uma forma com­pletamente nova da deliqüescência, um jogo subjugador, por­que em qualquer manjar, em qualquer droga ou bebida po­dia encontrar-se o veneno desconhecido, a peçonha original capaz de cortar o ritmo de uma vida em poucos segundos.

No curso de intermináveis festins que tinham a morte como convidada de honra, os apetites de Antônio voltaram à vida. Eram apetites de uma espécie gigantesca, como re­queria sua linhagem divina. O descendente de Hércules, o protegido de Dioniso entregou-se ao prazer com uma vora­cidade desmesurada e, ao mesmo tempo, angustiosa. Dir-se-ia que não só devorava os instantes, como se aferrava a eles uma vez saturados e esgotava-os com uma ansiedade próxi­ma da loucura. Desejava, ansiava encadear suas vivências com a febril obstinação de quem sabe que não voltarão a repetir-se.

Tornou a exigir que os instantes não detivessem seu pas­so, que cada prazer não constituísse uma meta em si mes­mo, e sim a origem de prazeres continuamente renovados. Assim soube que nunca conheceria o cimo do prazer, que nunca conseguiria viver o sumo da ventura, porque a culmi­nância, a totalidade, o absoluto constituem uma limitação não menos desesperadora por ser elevada.

O absoluto do prazer era algo que estava além do al­cance dos mortais, o pináculo que só os deuses puderam co­nhecer (se é que existiu algum tão afortunado). Ainda assim, Antônio ratificava sua ascendência divina colocando-se além daquele cume, nos próprios limites da morte, e dominando de lá um mundo lúgubre, fragmentado em instantes de ini­gualável intensidade.

E ali estava Cleópatra, genial artífice do sonho da mor­te, quando, tempos atrás, o fora da vida. Ali, a seu lado, estava Cleópatra, dirigindo o timão da nave do delírio, estreitando-o com crepes negros, surpeendendo-o com uma sexualidade desesperada, esgotada em seu próprio martírio, destinada a adiantar-lhe o estremecimento da morte anun­ciado nos fugazes estertores de um orgasmo fatal, definitivo.

Convencida de que a morte estava constantemente a seu lado, guiando-lhe todos os atos, a rainha do Egito deixava transcorrerem as bacanais a provar venenos diversos e ge­ralmente eficazes. Enquanto as dançarinas se entregavam a giros delirantes, enquanto os saltimbancos efetuavam pro­digiosas piruetas nos ares, Cleópatra dava seus venenos pa­ra algum condenado à morte provar. Não era uma capricho excepcional. Nem sequer uma crueldade gratuita. Educada no culto da razão, filósofa e cientista por natureza, Cleópa­tra buscava um sentido prático para aquela ocupação.

Dispunha de um extenso repertório, garantido pelos sé­culos do Nilo. Contudo, ao prová-lo primeiro nas pessoas, depois nos animais, retrocedia ante os espasmos das mais atro­zes agonias. Desejava descobrir um veneno que, ao matar, acariciasse. Um veneno que tornasse possível aceder à mor­te sem passar pela dor. E só o encontrou na picada da áspi­de egípcia, da qual se diz que mata a vítima através de um sono muito doce, um abatimento sereno, uma voluptuosa so­nolência...

Afinal, a áspide egípcia era parente de Cleópatra Séti­ma, segundo os romanos.

Quando Cleópatra intuiu que os deuses da guerra se aproximavam demais de Alexandria, lembrou os pesadelos que costumavam assaltá-la outrora. Recordou os perigos que espreitavam o menino Cesário, os infinitos perigos que este se via obrigado a evitar no negror de seus piores sonhos. E a lembrança conduziu-a a uma conclusão fatal: se o Cesário daquela época pôde incorrer no ódio de Otávio, um Cesário de dezessete anos era uma vítima muito mais favorável, má-xime quando as mais recentes vitórias na Ásia haviam ou­torgado ao inimigo uma autoridade, um poder de que care­cia então.

Decidiu enviar Cesário aos últimos confins do império de Alexandre: a índia. Mas não quis mandá-lo sob engano. Assim, expôs-lhe as ameaças que pesavam sobre o Egito e a possibilidade de que um ataque de Otávio terminasse para sempre com a independência do país e, quiçá, com as vidas da família real.

Não podes me pedir que te deixe neste transe! ex­clamou o rapaz, tentando recuperar ares heróicos que a an­gústia apagara completamente de Alexandria.

É a rainha que o ordena. É a rainha que te obrigará pela força, se não a obedeceres. Fugirás de Otávio como te ordeno e levarás contigo uma caravana carregada com os te­souros que te cabem como príncipe.

Não os quero contestou Cesário com uma altivez inadequada.

Hás de querê-los. Se não pensas em teu próprio pro­veito, pensa no de qualquer membro de tua família que se vir obrigado a se reunir a ti no exílio.

Ficou acertado que Totmés o acompanharia. E a rainha do Egito quis insistir em um fato doloroso, mas que era co­varde ocultar: aquele encontro era, provavelmente, o últi­mo de suas vidas.

A partida de Cesário foi discreta, quase medíocre, co­mo exigia o segredo. Nenhum alexandrino percebeu que nos dois camelos que passavam pelas ruas adjacentes à parte tra­seira do palácio real cavalgavam outras pessoas que não dois jovens mercadores árabes. Nem sequer seu obstinado embu­ço despertava suspeitas. Afinal era próprio dos que vivem sob o açoite dos ventos, sem mais paredes que as dunas do deserto, sem outro manto que a luz das estrelas.

Tampouco a modesta liteira que seguia os dois supos­tos árabes podia delatar a presença, em seu interior, da rai­nha do Egito acompanhada por uma de suas damas. Dir-se-ia o regresso ao lar de duas cortesãs que tivessem prolonga­do excessivamente os prazeres da noite. Nada podia ser me­nos espetacular nem mais alexandrino.

Mal deixaram para trás a porta grande da muralha, pe­netraram no deserto, e, poucas milhas depois, detiveram-se no primeiro palmeiral (o último que se podia considerar per­tencente à cidade de Alexandria). Esperava-os ali um robus­to ginete ataviado à usança dos nômades, como os dois jo­vens. Desta vez tratava-se de um autêntico mercador: um nabateu que permanecera fiel à amizade de Cleópatra desde os tempos em que ela planejava abrir o canal no istmo do mar Vermelho.

Dez camelos, que descansavam sobre as patas dobradas, portavam em seus alforjes alguns dos mais preciosos tesou­ros da dinastia. Para custodiá-los, e para maior proteção de seu filho, a rainha escolhera pessoalmente um pelotão de dez soldados, em cuja lealdade podia confiar. Também passa­vam por árabes, se bem que qualquer observador atento po­deria descobrir que suas feições eram inconfundivelmente egípcias.

Já a ponto de a caravana partir, a rainha beijou a testa do filho. Este, suas mãos.

— Que formoso rei terias sido! — exclamou ela, ten­tando conter a emoção. — Sangue de Júlio César governan­do o império de Alexandre!

Toda a solenidade que Cleópatra costumava empregar com o filho converteu-se em ternura quando tomou as mãos de Totmés entre as suas.

— Já faz anos que te confiei meu filho. Distante oca­sião aquela! Quisemos ver em seu futuro o destino do Egito. Era visão de rainha. É a mesma que hoje me leva a estreme­cer, porque vejo um Egito sem futuro. Mas, já que a rainha fala com dor, permite-me que a mãe fale com esperança. Confio-te um homem. Vela por seu destino sem pensar em outra coisa.

— Ao pedir isso, tu me confias a ele. Pois minha vida depende da sua. Não hás de achar estranho, porque tu mes­ma traçaste minha vida.

Cleópatra sorriu com nostalgia. E, sem se atrever a confessá-lo em voz alta, pensou que a personalidade de Tot­més era o resultado de uma de suas melhores intrigas.

Ao traçar uma vida, apaguei a tua para sempre. Tu me guardas rancor por eu ter usurpado o alto encargo dos deuses?

Ao contrário, estou agradecido por tua singular de­cisão. Já faz tempo que não me preocupam as coisas que eu poderia ter sido. Porque cada homem é o que deseja ser, não o que a vida lhe impõe. E eu não quero ser outra coisa, além dos olhos de meu príncipe e suporte de sua alma.

O nabateu anunciou que chegara a hora de partir, e um dos soldados acrescentou que seria imprudente dilatar a saí­da, porque o sol se apresentava com muito poderio lá no ho­rizonte. Então Cleópatra Sétima adotou uma atitude suma­mente digna para despedir o rei Ptolomeu Cesário, como ca­bia aos últimos descendentes de uma estirpe que conheceu mui nobres dias.

— Rei dos reis, aconteça o que acontecer, não olhes para trás. Mesmo que me ouças gritar, mesmo que penses que a vida me escapa pela boca, não te voltes. Segue teu caminho. E que algum dia chegues a conhecer a felicidade, mesmo que seja negando o sonho que te quisemos impor. Pois meu fi­lho há de viver acima dos reinos com que sonhamos.

Então ouviu o grito do nabateu, que transmitia algumas ordens com o braço dirigido para o Oriente, para as fabulo­sas terras que ela planejou conquistar para que um dia fos­sem de Cesário.

De repente sentiu que morria.

Grandeza, majestade, soberba, horizontes, imensidão... eram apenas conceitos que se diluíam em seu cérebro, que se afastavam progressivamente, ante o impacto de uma im­pressão única e terrível. Cesário se afastava! Não era o rei dos reis. Não era o jovem titã predestinado a salvar o Egito e devolver-lhe toda a sua grandeza. Cesário, somente. Cesá­rio, o menino. Cesário, o adolescente terno e assombrado ante os mistérios da vida. Cesário, o jovem que enchia as imensas salas do palácio com seus risos e sua beleza...

A rainha do Egito lançou um grito pavoroso e pôs-se a correr entre as palmeiras, para além de sua sombra, até as primeiras dunas do deserto. Todos os seus véus ondeavam ao vento, impulsionados pelo próprio ímpeto da carreira. Cor^ ria com os braços abertos, com as mãos abertas, com todo o coração lançado atrás da caravana que já se perdia entre as dunas.

Cesário gritava. Meu príncipe!

Corria, arquejante, atrás daquela ilusão maravilhosa que a areia arrastada pelo vento começava a ocultar. Gritava uma e outra vez o nome do filho, lançava-o à margem de qual­quer protocolo, como uma pobre cadela que pretendesse re­cuperar a cria de quem acabavam de separá-la.

Cesário já não ouvia seus gritos. Estava completamen­te envolvido pelo vento dos cinqüenta dias, cujo ardor faz tremer os miseráveis restolhos que constituem os únicos ha­bitantes das dunas.

Completamente extenuada, a rainha deixou-se cair e apertou o rosto contra a areia, mordendo-a com os lábios inchados por aquela paixão por aquele rei que o vento lhe arrebatava.

Malditos deuses! exclamou. Por que me fazeis pagar um preço tão alto por um pobre sonho de mãe? Por que, se já era o único que me restava?

Mas os sonhos mesclaram-se de novo em sua mente, cau-sando-lhe grande confusão. Enquanto retornava ao palácio, protegida pelos espessos véus da liteira, soube com certeza que já não haveria despertar. Que sua vida estava terminan­do com o sonho de Antônio, o sonho do Egito e o sonho íntimo do pequeno Cesário...

Poucos inimigos eram tão temíveis como os que amea­çavam Marco Antônio naquelas horas da manhã. Eram os gênios carnívoros que surgem nas entranhas inundadas pelo vinho: serpentes trífidas que reptam por todo o corpo e instalam-se no cérebro, devorando pouco a pouco a vonta­de, criando fantasmas ainda mais maléficos que se engen­dram a si mesmos. Criaturas da alucinação que descendem até aquelas profundezas do espírito onde a própria alucina­ção não se atreveria sequer a chegar por medo de retroceder aterrorizada.

Ninguém podia precisar com certeza se Antônio vivia na madrugada do dia anterior ou no anoitecer do próximo. Os dias converteram-se em um espaço de tempo sempre igual, tedioso por ser invariável, e reproduziam os mesmos rostos, as mesmas músicas, o mesmo mostruário de prazeres. Ape­nas de vez em quando Marco Antônio apartava-se daquela procissão perpetuamente repetida e perdia-se pelas praias mais afastadas da cidade, a pé, sozinho, recordando suas horas na Líbia e o exemplo de Timão, o ateniense.

Assim, quando voltou de despedir o filho, Cleópatra de­parou com a banheira ocupada por Antônio e alguns membros de sua corte báquica. Em geral, virgens e efebos de famílias nobres, que gostavam de adotar os disfarces mais pitorescos e alistar-se no grupo do novo Dioniso, cada dia mais embebi­do em seu papel, quando não em outros licores mais perigosos.

Chegavam até o quarto da rainha as grosseiras garga­lhadas do amante, os cânticos alterados de seus companhei­ros de orgia e o chapinhar próprio de uma batalha aquática. Sorriu ao pensar que sua banheira, tão cômoda quanto es­paçosa, podia servir para os sátiros de Alexandria receberem o novo sol imitando as festas aquáticas que a plebe romana tanto apreciava. Chegou a pensar que, assim como alguns povos se mantêm unidos por um poderoso nexo espiritual, outros os fazem por meio do mau gosto. E naquele século era a tendência que começava a imperar, a que se demons­trava nos espetáculos públicos e grandes cerimoniais, talvez como signo da tomada do poder por parte dos novos-ricos e dos arrivistas.

Tentou dormir apesar dos ruídos e embora o sol apare­cesse já bem alto no céu de Alexandria. Quando um Marco Antônio completamente bêbado deixou-se cair a seu lado, já inconsciente e abatendo um braço sobre ela sem a menor consideração, a rainha do Egito absteve-se de qualquer co­mentário, pois sabia que podia ser violento. Ou talvez o fos­se a resposta de Antônio, ou, mais ainda, o que ela pudesse replicar em atitude de defesa.

Maravilhava-a reconhecer que chegara o temido momen­to em que o amante tinha de se defender da amada. Ou esta dele. Ou os dois de ambos.

Todas as suas conversas dos últimos tempos ficaram re­duzidas àquela pugna, demasiado ignóbil. Um duelo contí­nuo em busca de uma vitória estranha, de uma submissão ao contrário, que só proporcionava um instante de prazer e, depois, arranhava a memória até sangrá-la.

Subitamente, no curso de uma daquelas disputas infer­nais, um arroubo de paixão unia-os em um abraço que, no fundo, tinha algo de desesperado. Ou muito. Como se fosse a confirmação de um pedido de ajuda que cada um esperava encontrar no outro e que só se dava em forma de repulsão.

Tinha medo. Não de perder Marco Antônio (aonde iria o pobre louco?), mas de estar vivendo uma interrupção da plenitude dos amores, de haver terminado a etapa maravi­lhosa em que cada amor vai ganhando as coisas ao amor que lhe corresponde. Temia comprovar que Antônio já lhe dera tudo que tinha para oferecer-lhe e que, daquele dia em dian­te, só podia começar a subtração. Um momento, menos, um pouco menos de beleza, um absoluto menos de alegria, uma queda alarmante da tolerância. Tudo seria um constante ex­cluir, um permanente minguar no longo declive da inten­sidade.

Ao contemplar agora seu corpo, sentiu algo parecido com aquele sentimento de decepção que a invadira anos an­tes, em Antioquia, quando descobriu que o tempo agira cruel­mente sobre o aspecto de Antônio e que já não era seu herói.

Mas depois voltara a amá-lo de uma dimensão comple­tamente diferente e não menos intensa. Tomara sua derrota contra os partos para convertê-la em divisa de um amor que se comprazia na realidade do ser amado e não na idealiza­ção de virtudes que, aliás, nunca teve.

Daquela experiência irrepetível restavam-lhe ainda muita ternura e a sensação íntima e delicada de que todas as suas faltas converteram-se em um costume tão cálido para ela que a necessidade de conservá-lo já era tão importante quanto o heroísmo e a graça que outrora alienaram seus sentidos.

Nesse costume entrava também o fracasso de Antônio. Era como uma flor murcha que ele lhe oferecia desespera­damente, para que tentasse revitalizá-la com um sopro de amor ou, se isso já não fosse possível, um hálito de amiza­de. Que sói ser o caminho traçado para as paixões que, ao morrer, resistem a desembocar no nada absoluto.

O fracasso de Antônio era, contudo, uma evidência dra­mática, que afetava não só os sentimentos de Cleópatra, co­mo as necessidades do Egito. O fracasso de Antônio precipitava-a na queda daquele mundo pelo qual tanto luta­ra e que nunca mais seria o mesmo, se os romanos se apro­veitassem da derrota e, invertendo-a, a convertessem em po­derosa vantagem a favor de sua conquista. Havia um homem que sabia fazê-lo perfeitamente, um verdadeiro especialista na arte das inversões totais: Otávio, o iminente visitante de Alexandria.

Cleópatra estava consciente de uma realidade patética: Antônio não voltaria a recuperar-se e sua impotência decre­taria a do Egito. Nesse transe de mortes compartilhadas, ela se agarrava a sua antiga necessidade de ação, às ânsias de combate que continuavam pulsando no fundo de sua alma, e imaginava qual teria sido seu destino se tivesse amado Otá­vio e não Antônio. Sem dúvida o Egito teria saído afortuna­do, pois aquele jovem odioso que se aproximava pela Ásia com o propósito de destruí-lo, aquele Otávio poderia ter si­do uma poderosa combinação dos elementos contraditórios que o Egito necessitava para sua sobrevivência. Poderia ter sido faraó e césar ao mesmo tempo. O grande governante que sabe utilizar o cérebro para conservar os mundos que o braço conquistou.

Mais uma vez Cleópatra viu-se imersa nos contra-sensos do amor. Já não a preocupava tanto a terrível roda dos amo­res não correspondidos como a surpreendente teoria da des­compensação. Confirmavam-na seu imenso amor por An­tônio e seu ódio a Otávio. Nenhum desses sentimentos encaixava-se no homem a que eram dirigidos. Pois ela pare­cia muito mais com Otávio que com Antônio; inclusive era provável que, sentados à mesa de conversações, Otávio e ela terminassem identificados e até unidos por sua afinidade em muitos pontos. Entre ambos, Marco Antônio era um pobre bêbado a quem só restava esperar tranqüilamente a chegada da morte.

 

A morte! Nenhuma das religiões estrangeiras que man­tinham culto aberto em Alexandria, à guisa de consulados dos deuses, conseguira atenuar por completo o impacto de sua chegada. A morte aparecia sempre como maldição defi­nitiva, que era necessário conjurar por meio de promessas consoladoras. Mas no Alto Egito, nos túmulos das gentes de Tebas, o gênio egípcio conseguiu converter a morte em com­panheira inseparável da vida. E o fez à base de cores berran­tes. Cavalgando por cima de escolas teológicas tão severas e racionais quanto os mistérios primigênitos da vida, os dis­tantes antepassados de Cleópatra transmitiam-lhe uma lição de alegria, uma atmosfera bonançosa e aparentemente des­preocupada que dava à morte o aspecto de uma quermesse entre frívola e coquete, convertida em mais um luxo dos mor­tais privilegiados.

No mausoléu que Cleópatra mandara construir para si em Alexandria, detrás do templo de ísis, as cores da morte apareciam deslocadas pelas da vida. Lentamente convertia-se em museu para a eternidade: o museu destinado a conter todas as recordações do quefazer cotidiano nas aldeias do Nilo, toda a sabedoria de Alexandria, os objetos mais belos do artesanato popular, as jóias mais apreciadas da ourivesa­ria seleta e o catálogo, amiúde exaustivo, dos deuses criados ao longo dos séculos pela fé dos homens do Egito.

Naquela época em que se sentia assediada continuamente pela presença da morte, Cleópatra passava longas horas em seu mausoléu, meditando sobre os momentos mais extraor­dinários do que tinha sido sua vida até então e sobre os es­tranhos destinos do Egito. Como sempre, o país erigia-se em idéia inseparável de todas as suas experiências. Era insepa­rável da morte, como o fora da vida. Era inseparável de sua personalidade intelectual, como o fora de suas batalhas. E era inseparável do amor, pois os dois homens de sua vida começaram amando-a e acabaram convertidos em amantes do Egito.

Consciente de que o fim se aproximava, quis rememo­rar, um a um, os fragmentos dispersos de sua terra e embar­cou em uma última viagem Nilo acima. Marco Antônio fi­cou em Alexandria, imerso definitivamente nos excessos de sua fúnebre Sociedade. E ela soube que, no mais fundo da alma, agradecia aquela ausência, porque queria despedir-se do Egito em solidão absoluta, como se a lenta peregrinação às fontes originais constituísse, de fato, uma comunhão mís­tica com sua própria essência. Com a parte dela mesma que não poderia morrer, nem quando tudo houvesse morrido a seu redor.

De volta a Alexandria, sentiu que a morte apertava ine­xoravelmente seu cerco e que agora só cabia esperá-la. Ago­ra só restava descansar e aformosear-se para que a morte en­contrasse todos apresentáveis.

Mas os humanos freqüentemente caem na fraqueza da esperança antes de aceitar com prudência e sabedoria os al­tos desígnios da morte. Freqüentemente tentam fugir de seu acossamento e utilizam artifícios que, sendo por demais de­sesperados, acabam sendo ingênuos. Desse modo um egré­gio par de amantes malfadados tem a serenidade e a firmeza de consumir suas noites no seio de uma sociedade fundada para acostumar-se a fitar a morte com um sorriso de prazer, e esses mesmos amantes são capazes de aferrar-se à vida de maneira vã, com a ingenuidade dos adolescentes que nunca mais voltarão a ser.

Assim fez Cleópatra em uma carta dirigida a Otávio no tom humilhante da súplica e na infantil esperança da com­preensão:

Cleópatra não pede nada para si. Apenas suplica pelo bem-estar e pela segurança daqueles que ama. E serás, as­sim, bendito por todos os seus deuses e pelos meus — estes graças a minha agradecida invocação —, se aceitares conce­der o reino do Egito a meus filhos. Quanto a Antônio, ela roga que lhe permitas viver em Alexandria e, se esta opção não for inteiramente de teu gosto ou conveniência, que o dei­xes residir em Atenas, como simples particular que nunca vol­tará a interferir nos altos caminhos de tua glória...

 

Dizem que Otávio riu com tal pedido, pois estava obce­cado pela idéia de castigar o desertor Antônio, que um dia fora seu amigo. E enviou mensageiros a Cleópatra com a in­tenção de voltá-la contra o amante. Pois dizia-lhe que se acei­tasse desterrá-lo, conheceria toda a extensão do afeto de um caudilho digno de chamar-se herdeiro de César; mas se acei­tasse assassiná-lo, esse mesmo afeto se transformaria em de­voção eterna, e não faltariam provas de gentileza e generosi­dade a partir do mesmo dia em que fosse cometido o assas­sinato.

Desse modo a rainha que quis escapar ao acossamento da morte soube que tinha nas mãos a oportunidade de administrá-la. Ao pensar nas vantagens que sua ignóbil ação poderia trazer para o Egito, decidiu sacrificar os próprios sen­timentos com o implacável sacrifício de seu amante.

Certa manhã, porém, Marco Antônio voltava de um de seus passeios pelas praias desertas, e, ao vê-lo de longe, en­volto em uma capa negra e com o semblante ensombrecido por alguma infausta meditação, Cleópatra lembrou-se de quanto se haviam amado e quão grande fora sua dor quan­do tal sentimento faltou-lhe no peito. Antônio apresentava o aspecto de um vagabundo cuja única aspiração consistisse em esgotar o máximo a luz do sol e a infinita variedade dos caminhos. Seu rosto prematuramente envelhecido pela bar­ba branca e pelo contato diário com os elementos, despedia fulgores de uma sabedoria antiga que só se ensina nas esco­las da vida, uma enfiada de verdades elementares que Cleó­patra não podia aprender através de seus filósofos ou nos livros da Grande Biblioteca.

Era o homem que pôs seu destino nas mãos de uma rai­nha e apostou sua vida em um sonho. O homem que perdia jogando dados com Otávio e jogando a vida com seu povo. O homem que já não tinha nada no mundo, o esbulhado da fortuna, o bufão dos deuses. Marco Antônio.

Cleópatra rebelou-se contra si mesma, amaldiçoou aquele Egito que lhe exigia tantos sacrifícios, clamou de ira ante o rosto impassível dos deuses. Chorou amargamente, porque estivera a ponto de erguer a mão contra o homem que já não era nada por querer ser todo seu. Enquanto corria pela praia, com os braços abertos, desejosa de apertar contra o peito todo o fracasso de Antônio, lançava blasfêmias contra aquele novo César de imitação, aquele ser inumano que depois de arrebatar-lhe todas as coisas pelas quais vivera, pretendia roubar-lhe a última oportunidade de qualquer ser encurra­lado: esperar com serenidade a chegada da morte. E esperá-la com ternura, em companhia do eleito, para compartir de­pois a longa noite de contar os anos.

 

Quando o estio alcançava seu ponto culminante e os ven­tos do deserto fustigavam o mundo com lambadas de fogo, as tropas de Otávio acamparam diante de Alexandria. Ante as gigantescas muralhas, respaldadas por uma história rica em prestígio e distinção, o jovem paladino da prudência es­teve a ponto de sentir-se um deus e meditou sobre certo fa­moso estratagema de Alexandre Magno, que lhe permitiu to­mar o Egito sem encontrar defesas. Naquela ocasião, o deus-soldado compareceu diante do oráculo de Amon, no oásis de Siwa, e fez o mais poderoso dos deuses egípcios daquele tempo aparecer-lhe nomeando-o perante o povo seu filho herdeiro.

Se a fábula foi proveitosa para o nascimento de Alexan­dria, outra semelhante poderia ser igualmente benéfica para aqueles dias em que Alexandria e o Egito inteiro dispunham-se a ingressar nos domínios de Roma. Porém o sentido parti­cular da prudência, que sempre valeu a Otávio seus melho­res êxitos, aconselhava-o a esperar. A divinização chegaria em seu devido tempo, quando ele e todos os seus sucessores se inscrevessem nos grandes templos do Nilo na qualidade de reis absolutos e, tendo em conta a mentalidade do povo egípcio, deuses induscutíveis.

Do ponto mais alto de seu palácio, no lugar em que anos atrás tivera um observatório que lhe servia para estudar os segredos dos planetas, Cleópatra contemplava agora o acam­pamento inimigo. Observava ao longe as ameaçadoras mas­sas das torres de ataque, a soberba monstruosidade das ca­tapultas, a asfixiante fumarada dos fogos onde se fervia o óleo para um próximo ataque. E soube que a morte já se acha­va bem perto, porque todas as mortes estavam implícitas na queda de Alexandria.

E a cidade emudecera. Sua brancura espectral lembra­va mais que nunca um campo cheio de sepulturas. As ruas vazias anunciavam a iminência da catástrofe. Os grandes edi­fícios consagrados à cultura pareciam a ponto de ruir ante a iminente irrupção dos bárbaros.

O heroísmo, todavia, ainda conheceu um derradeiro ar­roubo, embravecido e inútil como a loucura do vinho, quando Marco Antônio mandou abrir de surpresa a Porta da Lua e caiu sobre uma guarda avançada da infantaria romana, ob­tendo, assim, sua primeira vitória desde os trágicos dias de Áccio. Mas Cleópatra não quis enganar-se e só viu em tal vitória o fulgor momentâneo do raio. Entendeu que os ím­petos de Antônio o convertiam em um centauro ideal para deslumbrar seus soldados em plena batalha, porém em um duvidoso defensor da cidade, se esta se visse obrigada a so­frer um assédio prolongado demais.

No entanto, ao vê-lo chegar suado e arquejante, voltou a sentir ternura por ele e acolheu-o docemente no regaço, de­sistindo de coroá-lo vencedor, como teria feito em outros tem­pos, diante de uma corte suntuosa e entre as ovações de uma multidão enlouquecida por sua galhardia.

Antônio já não era um homem de uma peça, nem sequer de um só sentimento. Pois apesar da vitória prorrompeu em amargas lágrimas; então sua amante compreendeu que os anos haviam caído com mais força nos últimos meses, que ambos já estavam derrotados pelo tempo antes até de sê-lo por Otávio e que este não se limitava a representar a ameaça do poder de Roma, porém chegava protegido por todo o po­der de uma juventude agressiva. Algo contra o que nenhu­ma arma podia combater e nenhuma Alexandria pelejar.

Contudo, Marco Antônio quis rir e alegrar-se naquela noite, anterior à batalha definitiva. Quis que os amigos o ad­mirassem ataviado com a mais suntuosa de suas túnicas de púrpura, que fossem servidos os vinhos mais deliciosos e suas dançarinas se mostrassem mais tentadoras que nunca e Ra-mose invocasse os mais felizes amantes do passado com a harpa eternamente feliz.

Foram chegando, um a um, os membros da Sociedade da Morte em Companhia. Também apareciam mais formo­sos que nunca, com seus extravagantes atavios, suas maqui-lagens versicolores, suas matizadas perucas adornadas com toda classe de ornamentos e caprichos fantásticos.

Quando todos já se encontravam reclinados em seus tri-clínios, Marco Antônio ergueu a taça de nácar e, dirigindo-a para uma escultura de Afrodite, brindou a ela. Ato contí­nuo, disse:

Talvez este seja meu último vinho. Tomá-lo-ei co­mo se bebesse meu próprio sangue, pois não quero outro para voar amanhã rumo àquele além de que tanto ouvi falar no Egito. Com os anos que tenho, que, se não são muitos, em todo caso são demasiados, já não posso aspirar a maiores perspectivas. Depois dos cinqüenta, nós, heróis, devemos nos retirar. Só peço uma morte gloriosa e que meu corpo se veja glorificado durante toda a eternidade, porque repousa aqui, em Alexandria.

Os que haviam sido seus amigos choraram com tais pa­lavras. Quanto mais votos de fidelidade saíam de seus lábios, mais Antônio insistia em que não queria arrastá-los consigo na derrota. Só Cleópatra, em um alto setial dourado, per­manecia impassível, como se fosse a esfinge que há muito conhece a solução dos grandes enigmas.

De súbito os terraços foram invadidos por uma melo­dia celestial, que progredira lentamente sobre os telhados de Alexandria. A tristeza e o terror que dominavam seus habi­tantes cederam lugar ao espanto, e todos saíram à rua, às janelas, às escadarias dos grandes templos para testemunhar o mais extraordinário prodígio que a cidade conhecera em todos os seus séculos.

 

Maravilhosa visão, sonho mágico, divino delírio!

Uma música deliciosa ritmava o passo de um cortejo que atravessava os céus por cima da cidade, em direção à grande muralha. Era um desfile de seres extravagantes que avança­vam de mãos dadas, como se dançassem continuamente em honra à insólita figura que os comandava de um carro car­regado de talhas, de cujo interior manava em torrente um vinho vermelho como o sangue.

Peludos faunos, sátiros travessos, afortunados unicór­nios, robustos centauros e hipogrifos alados misturavam-se a histriões que ostentavam as duas máscaras rituais do tea­tro, dançarinos de pés alados, flautistas cobertos com peles de animais selvagens, copeiros que serviam o grande senhor de todos os prazeres e escansões habituados a pôr em seu pon­to os melhores vinhos do Olimpo.

Sublime desfile! Presidindo-o, animando-o, comprazendo-se nele, aparecia um magnífico ancião de aspecto muni­ficente, abundante em carnes, rechonchudo até. Ostentava um tirso rematado por uma enorme pinha, e tanto de suas têmporas como de sua densíssima barba pendiam pâmpanos que refulgiam picaramente à luz da lua.

É um deus! — gritavam alguns, de seus terraços.

É Dioniso! — proclamavam outros nas ruas.

— O deus se vai de Alexandria! — gritou um sacerdote horrorizado.

Cleópatra correu para a balaustrada e, ao olhar para cima, descobriu que, efetivamente, a maravilha estava ocorrendo.

Aos sons de sua música encantada, o divertido desfile do mais libérrimo dos deuses avançava sobre os templos, so­bre os obeliscos, além das colunas da agora. E toda a des­lumbrante brancura de Alexandria não era capaz de apaixoná-lo para deter a fuga.

— O deus abandona Antônio...! — murmurou Cleó­patra, apertando a mão sobre o peito.

E Marco Antônio, sustentando-se a duras penas, esten­dia os braços para o céu no intento desesperado de arreba­tar a seu deus particular as rédeas do soberbo carro e desviá-lo para o palácio, onde ele, seu filho, o obsequiaria com os melhores vinhos de várias províncias. Mas todos os seus ges­tos, embora empolados, eram em vão. O cortejo do deus se­guia seu caminho.

Dioniso já não olhava para seu filho. Dioniso estava con­centrado nas gigantescas crateras do vinho que seus sátiros lhe serviam. Dioniso estava ocupado, respondendo com a mão rechonchuda às ovações das bacantes que acompanhavam seu celeste itinerário. Pois, além de faunos, sátiros e unicórnios, rodeavam-nos os efebos e donzelas mais formosos que seja dado imaginar. O próprio cortejo era um autêntico resplen­dor que escurecia as estrelas. Os harmoniosos sons que os mais diversos instrumentos conjugavam iam criando uma me­lodia de tal beleza que fazia calar as vozes do mar.

Divina folia! Deslizavam com a lentidão de um sonho, como se flutuassem sobre nuvens de vinho, lançando gigan­tescos cachos de uva que pareciam escondidos entre as do­bras das nuvens. Avançavam, sim, longe de Antônio, fora do alcance de Antônio, longe do Novo Dioniso.

— O deus abandona Antônio! — gritavam os alexan­drinos.

Cleópatra acudiu junto dele. Viu-lhe o rosto desconjun­tado, os dentes trêmulos, os olhos a ponto de saírem das ór­bitas. Sua mão aberta continuava apontando para cima, pa­ra o cortejo de seu deus. De Dioniso, que desertava.

Todos viram como o desfile definitivamente deixava para trás Antônio, que sempre foi o mais devoto dos adoradores de Dioniso. Ele próprio mudou seu assombro em uma ex­pressão de horror, quando viu que o cortejo sobrevoava o centro da cidade e encaminhava-se para a porta principal, traspassando-a também. Ia em busca do acampamento de Otávio.

Quando toda a sua razão sucumbira havia tempo, a que­da do mito contribuiu para piorar ainda mais o ânimo do general, que desabou em um dos bancos de mármore, en­quanto os comensais buscavam qualquer desculpa para ausentar-se. Uns olhavam para ele, de soslaio, outros aber­tamente, mas todos com expressão de dúvida no olhar. To­dos tinham medo de aproximar-se, temendo que fosse víti­ma de uma maldição. Pois está escrito que o homem a quem seu deus tutelar abandona será sempre um maldito sobre a Terra.

 

Marco Antônio depositou sua agonia sobre o corpo de Cleópatra e dormiu com a cabeça apoiada no regaço da rai­nha, como em tantas ocasiões, das mais felizes às mais de­sesperadas. Cleópatra, contudo, sabia que aquela era a defi­nitiva e, ao acariciar os cabelos brancos do amante, compreen­deu toda a beleza do ocaso. E soube com certeza que, a par­tir de então, só poderiam encontrar-se na longa espera da eternidade.

Beijou-lhe os lábios pela última vez e respirou seu alen­to de bêbado, como se ainda pudesse transmitir-lhe a fra­grância da juventude. Nem sequer a necessitava. Pois era evi­dente que o amara, apesar dos disfarces com que Amor se obstinou a enganá-la ao longo dos anos.

Foi ela mesma quem o despertou para a última batalha, foram suas próprias mãos que o banharam e depois o aju­daram a cingir a couraça de ouro e colocar o elmo de esplen­dorosa plumagem destinado a destacar-se acima de qualquer conquistador e além de todos os reinos da terra.

Por algum motivo que escapava a sua compreensão, An­tônio mostrava-se jovial e até falava de grandes projetos pa­ra depois da vitória. Só estranhava que nenhum de seus ofi­ciais viesse a seu encontro, como em outras ocasiões. Mas não deu maior importância a isso, pois estava feliz, segundo disse, e continuava adorando seus deuses, apesar de um de­les tê-lo abandonado.

Cleópatra viu-o sair de seus aposentos, bêbado, talvez, mas não de vinho, e sim daquela felicidade insubstancial que tanto se parecia com a de um suicida. Quando ele não mais a podia ouvir, dirigiu-se a suas damas em tom afetuoso mas seco:

— Disponde de todo o necessário para que nos encer­remos no mausoléu, pois a sorte desta batalha pode me acar­retar uma fortuna indigna. E, se este há de ser o final do Egi­to, prefiro morrer com ele a ser conduzida em escravidão a Roma.

— A batalha ainda não está perdida... — protestou íris.

— Digo-vos que já está. Nada restou com vida, desde que os deuses nos deram as costas em Áccio. Só me resta lu­tar pela salvação de meus filhos. Por sorte, estão a salvo, mas os bisbilhoteiros de Roma são capazes de dar com qual­quer esconderijo.

Envolveu-se em um manto negro e contemplou pela úl­tima vez os objetos que haviam acompanhado sua intimida­de, as pequenas maravilhas que encheram suas horas de so­lidão ou completaram seus instantes de ventura.

— Não tardarão a adornar algum palácio romano — sussurrou com um assomo de desprezo em seu sorriso. — Mas não os acompanharei! Sei perfeitamente qual é o desti­no dos vencidos. Roma não lhes evita a menor humilhação. Quando capturou o valoroso Vercingetórix, chefe dos gau­leses, César o fez desfilar entre a chusma romana, e aquele soberbo guerreiro se viu tratado como um animal, insultado pelos medíocres, golpeado pelos covardes. Em certa ocasião entrei triunfante em Roma. Não será Otávio que me levará de volta a ela vencida e humilhada...

Mas o aspecto de Antônio desmentiria aquela declara­ção de pessimismo. Pois, à medida que cruzava os imensos salões do palácio, crescia-lhe a satisfação e aumentava em seu peito a estranha felicidade que acolhera seu despertar so­bre o amado regaço da rainha.

Sua figura voltava a reluzir como se o ouro da couraça lhe cobrisse o corpo por inteiro. Assim avançava para o pá­tio de armas, onde deveriam reunir-se todos os membros de seu estado-maior a fim de conjugar suas forças com as do exército egípcio.

De novo aquele arroubo de ventura! Era um dinamis­mo inusitado, impróprio de sua idade, mas muito importan­te a sua condição. Era um ímpeto que o arrancava daquele cenário para lançá-lo em direção a um bem distinto: o de sua primeira batalha, seu primeiro triunfo, obtido quando mal se desenvolvera plenamente a flor de sua juventude. E a cou­raça de ouro, presente de Cleópatra, fazia-o pensar que era realmente assim e não de outro modo.

Marco Antônio triunfador! Mil gritos voltavam a pronun­ciar essas palavras, mil gritos surgidos das entranhas de Ale­xandria e projetados para o resto do mundo. As mulheres mais formosas do Oriente saudavam sua passagem de trás de cau­tas gelosias: os mais galhardos efebos do deserto inclinavam suas cimitarras de prata ao vê-lo desfilar; os materiais mais ri­cos, as flores mais delicadas formavam um suntuoso tapete, destinado a impedir que o pó profanasse seus pés. Glória do Oriente, esse Antônio! Grande guerreiro, além de autocrátor!

De pronto deteve o passo ao ritmo exato da morte de seu sonho. Os ruídos que chegavam de Alexandria não eram trombetas triunfais, os gritos não eram ovações, os rugidos não correspondiam a um leopardo amestrado que guardasse o leito de alguma imperatriz caprichosa.

Era o fragor da batalha. Era o horríssono clamor da guerra que chegara às ruas de Alexandria. Era o silvo feroz das catapultas lançando sua carga mortal, o estampido repi­cante dos aríetes arremetidos uma e outra vez contra as enor­mes portas dos templos e das bibliotecas, o rangido arrepiante das gigantescas torres de madeira que se aproximavam das muralhas com seu carregamento de romanos dispostos a as­sestar um último e definitivo golpe ao que sobrava de Ale­xandria. E por toda parte erguiam-se no céu gigantescas fo­gueiras, desabavam os edifícios, como que envergonhados com a grandeza que tiveram até a véspera.

Correu para o pátio de armas... estava completamente deserto. Só o iluminavam o resplendor das fogueiras e uma tocha sustentada pelo capitão Apolodoro.

Em sua frenética corrida Marco Antônio olhava ao re­dor em busca de algum rastro, qualquer um, que lhe indi­casse onde estavam suas tropas. Mas só restava Apolodoro.E seu formoso uniforme azul, com saiote e ombreiras doura­das, punha na tristeza da solidão uma leve nota de alegria que talvez pretendesse recordar o que foi a beleza naquela cidade hoje devastada pelas chamas.

Foram-se... — murmurou ao ver Antônio. — To­dos os teus homens. Sem exceção. Deixaram-te sozinho.

Não é verdade. Estão me esperando em outro pon­to. Decidiram atacar Otávio por outro flanco e estão escon­didos em algum lugar, esperando que seu chefe os leve à vitória...

Foram-se... — repetiu Apolodoro, e em seu rosto ha­via toda a tristeza de um final absoluto. — São romanos e querem estar com os romanos.

Marco Antônio continuava procurando ao redor, dan­do tapas no ar, apalpando-o, como se seus homens se hou­vessem convertido em fantasmas que só pudessem reapare­cer mediante o contato de sua mão amiga.

— Enobarbo... Rufio... Marcelo...

— Todos os teus oficiais, sim. E também teus soldados. Não queriam lutar contra Roma. Não queriam morrer pela causa de uma rainha egípcia. Que importa a eles se esta noi­te termina com nosso mundo?

Em meio ao fragor, entre os incontáveis ruídos da des­truição, Marco Antônio sentiu renascer seu ímpeto, transportando-o à loucura. Deixou para trás o capitão e pôs-se a correr em direção às ameias. Encarapitou-se entre duas delas e, de tão elevada altura, contemplou a batalha, como um Mar­te que houvesse decidido presidi-la. Espada na mão, invo­cou várias vezes o nome de Otávio. E várias vezes tratou-o de covarde, instando-o a aceitar seu desafio.

De repente os soldados o reconheceram. Eram homens que haviam combatido sob suas ordens, homens que antes cantaram suas virtudes, homens que o haviam adorado. E no mesmo instante detiveram todas as suas manobras e bai­xaram as armas, porque acreditaram reconhecer um dos seus.

Montado em um reluzente corcel negro, procedente de sua campanha síria, o jovem Otávio também ficou olhan­do seu amigo de antanho, presa do estupor. Era tal a ma­jestade daquela figura erguida no alto da muralha, era tal a grandeza de seu desespero que Otávio viu o tempo retroce­der, e por um instante Antônio tornou a ser o herói que tan­to admirou.

Seus gritos, todavia, foram os de um pobre louco:

Heitor assediado desafia o ignóbil Aquiles! bra­dou. Por que não respondes? Temes que eu descubra teu calcanhar?

Otávio pôs-se a rir.

Pobre velho! Tens mais anos que Aquiles e Heitor juntos e ainda te atreves a fanfarrear...

A magia, o poderio do instante romperam-se em uma série de risadas frenéticas que se apossaram dos soldados mais próximos de Otávio. E estes as transmitiram a outros mais afastados, esses aos mais distantes, até que todos riram e os mais jovens proferiram impropérios contra Antônio.

Nenhuma flecha atirada contra seu peito, nenhuma pe­sada maça projetada contra sua cabeça teriam aberto tantas feridas no general quanto os insultos daqueles que foram seus soldados. De velho ridículo a fantoche de Cleópatra, de porco renegado a cão vencido, os insultos percorreram toda a ga­ma da violência, e Antônio, todos os caminhos da humilha­ção. Ainda teve tempo de exclamar:

Otávio! De jogador a jogador. Apostemos Alexan­dria em uma só carta. Um combate pessoal. Otávio contra Antônio pela posse de Alexandria!

Não é preciso gritou Otávio, sem perder seu sor­riso. Alexandria já está ganha.

Os soldados acolheram as palavras de Otávio com vi­vas clamorosos, ao mesmo tempo que continuavam impre­cando contra Antônio, rindo dele e jogando-lhe pedras.

Apolodoro apartou-o da muralha. E o general deixou­se cair em seus braços, extenuado e sem mostrar sinais de vergonha.

Cleópatra — murmurou. — Onde está minha rainha? O rosto de Apolodoro escureceu detrás de uma expres­são misteriosa e com vontade de não deixar de sê-lo.

— Já não está entre nós — sussurrou. — A rainha do Egito já não é deste mundo. Está em seu mausoléu, defron­tada com a eternidade.

Antônio voltou a sentir-se só e desta vez sem remissão. Seus homens haviam-no abandonado. Sua rainha acabava de antecipar-se a ele na morte. Só lhe restava errar em busca de rincões que ainda desconhecia.

Em um arroubo arrancou a couraça de ouro e jogou-a por cima da muralha, como se fosse a última arma que lhe sobrasse para disparar. Esgotadas todas as suas reservas, cor­reu para dentro do palácio, invocando com brados ferozes o nome de Cleópatra.

Chegou até a grande sala de audiências. Mergulhada na penumbra, parecia fazer parte de um universo onírico cuja paz a violência não poderia perturbar. Ali, no entanto, sen­tada no trono, sob a gigantesca figura do falcão dourado, movia-se uma sombra que lançava no ar patéticos gemidos de morte.

Não era Cleópatra, mas Sosígenes.

— Tua rainha está viva? — perguntou Antônio, agarrando-lhe o braço.

O ancião afastou-o com um movimento rápido. Entre suas lágrimas apareceu uma expressão de ódio.

Deixa-me chorar, romano. E vai-te embora de uma vez de Alexandria. Tua taça está cheia. Já não podes nos acar­retar maiores infortúnios...

E os meus? — gritou Antônio. — Todos pensam so­mente na queda do Egito. Ninguém se compadece da queda de Antônio.

Continuou procurando por todos os cantos do palácio. Rasgava com a espada outras tênues cortinas de seda que se­paravam os aposentos uns dos outros, precipitava-se em ver­tiginosa corrida pelas suntuosas escadarias, pulava sobre os delicados mosaicos como se quisesse afundá-los sob seus pés. Mas ninguém respondia a seus gritos. Ninguém surgia do es­plendor do passado para acompanhá-lo na solidão. Então ergueu os braços para o céu e lançou-lhe seu último grito:

Cleópatra, rainha amada! Onde perdi minha coroa de louros?

Saiu para o terraço da rainha, observatório previlegia-do de tantos momentos felizes. Ali estava o mar eterno, sul­cado agora pelas belicosas birremes romanas; ali estava o por­to do bom regresso, abarrotado de legionários que esmaga­vam os últimos restos do antanho orgulhoso exército egíp­cio. E ali estava Antônio, última testemunha da ruína, últi­mo despojo da cidade.

Levantou a espada com as duas mãos unidas no mesmo aperto, robusto e trêmulo ao mesmo tempo.

Brindo a ti cidade da desgraça! Por um momento che­guei a pensar que te possuía. Por ti apostei minha vida intei­ra. Joguei de golpe, sem vacilar, como é digno de um joga­dor de raça. E te perdi, cidade! Perdi a ti e meu sonho de Oriente.

O medo apoderava-se dele, o medo colocava-lhe no rosto um suor gelado e nos lábios uma crosta dura, impenetrável, que lembrava o intumescimento de seus homens na fria der­rota da Armênia. A espada vacilava, como se houvesse ad­quirido vida própria e sentisse horror da mente que preten­dia guiá-la. Por fim Antônio fechou os olhos e apertou-os com todas as forças.

Oriente! exclamou. Tudo terá sido um sonho que Antônio teve em vão.

E de um só golpe cravou-se a espada no ventre, enquanto seus lábios invocavam o nome de Alexandria.

Da Alexandria amada, que ia se apagando ao longe, que desaparecia completamente, até não ser sequer uma ilusão. Até diluir-se completamente nas profundezas do caos que é origem do mundo.

Contaram, depois, os cronistas de tantas dores que a ago­nia do general ainda durou algumas horas. E que começava a amanhecer sobre o mar quando Sosígenes o encontrou e, quem sabe arrependido por sua dureza anterior, confessou-lhe que Cleópatra estava viva no mausoléu. Com o que An­tônio rogou que lhe permitissem morrer junto dela, porque em outros tempos felizes haviam trocado promessas de eter­nidade.

Foi conduzido até o mausoléu, mas Cleópatra não quis abrir as portas por temor dos romanos. De uma janela sufi­cientemente ampla, ela e suas damas lançaram correntes, e os escravos puderam atar Antônio que assim se viu içado em sua agonia. Só a amada e as damas Carmiana e íris podiam puxar as cordas, pois, embora Ramose estivesse com elas, sua cegueira teria constituído mais um estorvo que uma ajuda.

E continuaram dizendo os cronistas que nunca houve um espetáculo tão lastimoso quanto aquele que oferecia o corpo de Antônio, sujo de sangue, quase nu, com a ferida aberta e ascendendo até a amada tão cheio de esperanças que erguia os braços para ela, no intento desesperado de adiantar-se ao tempo. Quando Cleópatra conseguiu introduzi-lo no mausoléu, estendeu-o com as próprias mãos em uma mesa de alabastro reservada para a vida eterna, chorou sobre suas feridas e arrancou os cabelos, como fazem as viúvas nos gran­des funerais de Tebas.

— Não me compadeças por minhas desgraças nos últi­mos tempos — disse o moribundo. — Ao contrário, felicita-me, pois fui homem ilustre e desfrutei de muitas coisas belas ao longo da vida. E, se agora me venceram não foi ignobil­mente, pois o conseguiu um romano.

Pediu vinho, e as donzelas de Cleópatra foram buscá-lo entre as jarras que também haviam sido reservadas para a imortalidade.

— Rainha birrenta, vais me repreender nesta hora?

— Mais que nunca — disse Cleópatra, soluçando do­cemente. — Porque te adiantas a mim no caminho que de­víamos percorrer juntos.

Ele a via através de seus olhos nublados, sentia-a nos estertores de sua dor, procurava-a com seus gemidos entre­cortados.

—            Esta ferida é como um poço de cal viva. Arde como ela! Mas estou satisfeito, porque meu braço ainda tinha for­ça para enfiar a espada.

Teu braço é o do herói com que sonhei quando menina.

Quando te vi pela primeira vez, Cleópatra. Quando eras a mais bela dentre as flores de César.

E tu eras formoso, Antônio! Estavas feito à altura de Alexandria.

Cleópatra e Alexandria. Vós duas me atormentastes até a morte. Como eu podia saber que, ao me abandonarem todos os meus deuses, só vós ficareis para velar meu sono eterno?

Sempre é desvelada a noite do que ama.

Se alguém quiser saber o que é o amor, não diga nun­ca que foi um sonho. Quando todos os meus outros sonhos fracassaram, este existiu com tanta força que, ao morrer, eu o invoco como o único deus que dirigiu meus caminhos... — Exalou uma poderosa risada, e todo o seu corpo pôs-se a tremer em pavorosas convulsões. — Fecha meus olhos rai­nha birrenta! Por uma vez não poderás discutir minhas últi­mas palavras...

Levantou a cabeça, ajudado pelas mãos de Cleópatra. Seus lábios encontraram-se em um beijo que teve a duração de todos os séculos do passado.

De repente ela soube que Antônio se fora.

— Romano grosseiro! — exclamou. — Uma vez me abandonaste e hoje te antecipas a mim...! Nunca soubeste tratar uma dama!

Deixou cair a cabeça sobre o peito ensangüentado do amante. Detrás dela, íris e Carmiana soluçavam. Uma delas virou-se para o harpista cego e pediu:

— Toca, Ramose, toca a canção de que Marco Antô­nio tanto gostava...

Soou uma melodia de infinita tristeza, uma música sua­ve que transportava ecos de amores antigos, cadências de idílio junto do Nilo, travessos arpejos que recordavam os rumo­res da brisa...

—            Tempo, detém teu curso neste instante. Escuta a mi­nha mensagem, doce Antônio. Nunca mais saberás quanto te amou a rainha do Egito. Nunca saberá o mundo quanto agradeci por ter te amado. Por ti conheci todas as formas do amor. Que outro mortal poderá dizer a mesma coisa? Eu te amei quando eras jovem e arrogante, te odiei quando te afastaste de mim, te desejei quando foste vencedor, me en­terneci quanto te venceram. Conheci o arrebatamento da pai­xão, os fogos do desejo, a ternura da resignação, a serenida­de da lástima... Tive tudo por ti. Agora resta apenas uma forma do amor e está nas mãos dos deuses. A ela me dirijo, Antônio. É o amor que vibra além das constelações, no lu­gar onde os amantes se encontram para sempre...

Ergueu-se com o olhar perdido na distância. Abriu as mãos, a palma para fora, indicando às damas que não se atrevessem a interromper nenhuma de suas ações. Assim chegou à mesa de oferendas e pegou a adaga depositada jun­to de uns jarrões pródigos em frutas que podiam servir-lhe no além.

— Toca, Ramose! Toca a canção de Marco Antônio. Não pares!

Abriu a túnica, e seus seios vibraram como se fossem entregar-se ao amor.

— Deuses perversos! Este é o grito de Cleópatra.

Com uma das mãos apertou fortemente o seio que bro­tava da parte esquerda do corpo e com a outra aplicou-lhe a adaga. Jogou toda a cabeça para trás, enfiou a lâmina com maior força e, finalmente, a fez girar sobre si mesma, até que uma parte do seio caiu a seus pés, destroçado.

Jogou-se no chão, retorcendo-se no próprio sangue ui­vando com todo o desespero que até aquele instante havia conservado calado, protegido pelo pudor e pela valentia.

— Junto de Antônio! — gritou. — Levai-me para jun­to de Antônio, irmãs!

Arrastaram-na até o cadáver. E Cleópatra forcejando contra a dor, lançou-se sobre a ferida e verteu dentro dela o sangue que continuava manando de seu corpo. Ao ver-se completamente integrada ao sangue de Antônio, desmaiou.

Com o passar dos dias, a vida converteu-se em um cruel prolongamento daquele desmaio. Agora só restava aguardar as ordens do novo dono de Alexandria.

Otávio chorou ao saber da morte do que fora seu ami­go e companheiro. Não pôs o menor reparo em mostrar aos seus homens o último vestígio de um amor que nem mesmo ele soube definir.

Ontem eu o teria chorado por dissoluto sussur­rou. Hoje choro por romano.

Mas não tinha muito tempo para consagrar-se à dor, de maneira que entrou em sua tenda e mandou um de seus ho­mens marcar uma reunião com a rainha Cleópatra. Estava disposto a recebê-la no dia seguinte.

Temos grandes notícias para ti, César disse Caio Ligúrio, subtenente de segundo grau. Ao perceber que Otá­vio as esperava sem necessidade de pedi-las, acrescentou: Temos notícias do bastardo Cesário. Uma de nossas legiões o localizou perto do porto de Berenice, disfarçado de mer­cador. Pretendia sair do Egito o aloucado. — Pôs-se a rir com uma grosseria que se orgulhava de ser grosseira. Quan­do lhe dissemos que tu lhe oferecias o trono de sua mãe, não vacilou em nos seguir. Isso apesar das súplicas de seu acom­panhante, um jovem barbudo que, embora também estives­se disfarçado de árabe, é um sacerdote egípcio, segundo creio.

Onde se encontra agora?

Está em boa guarda. Ficou na guarnição de Mênfis, perto das pirâmides, ou como quer que se chamem aqueles castelos misteriosos.

Um soldado entrou, anunciando Cleópatra.

— Antecipou-se a meus desejos exclamou Otávio, ad­mirado. Ato contínuo, ordenou em voz baixa: Não que­ro que saiba que temos seu filho em nosso poder.

Também temos o filho mais velho de Antônio... Otávio afetou uma grande tristeza.

Sendo maior de idade, poderia constituir um estor­vo. Que lhe cortem a cabeça sem dilação.

Ato continuo, tentou compor seu aspecto. Não lhe foi difícil. Era um jovem pulcro, elegante e até refinado. Um digno oponente da famosa Cleópatra.

Mas, quando esta entrou na tenda, vestia o humilde manto negro das camponesas do Nilo. Seus cabelos apareciam sujos e desgrenhados. E o rosto apresentava a palidez dos mortos.

 

Sou uma sobrevivente de gestas mui patéticas...

Assim falou a mulher enlutada. E, apesar de sua misé­ria, apesar da absoluta falta de protocolo, Otávio soube que se encontrava em presença da majestade.

Rainha do Egito, não temas. Receberás o trato que mereces.

Para qualquer romano mereço coisas tão atrozes que prefiro que me trates como uma ladra o mereceria. Mas sou, de fato, Cleópatra, a rainha das duas terras.

Otávio fitou-a fixamente nos olhos. Era ela. A mons­truosa criatura. Não só a serpente. Também a ogra, a gigan­ta, a górgone. Todas as ameaças reunidas em uma mulherzi­nha disfarçada de penitente.

Também ela o fitou sem dissimulações, examinando to­das as facetas de seu rosto. O inimigo. O que permaneceu oculto nas sombras durante tantos anos, disposto a encaniçar-se contra todas as suas possibilidades de futuro. O inimigo de Antônio, de Cesário, do Egito, do Oriente, do prazer e do amor, de todas as coisas que tiveram importância em sua vida.

Não correspondia às descrições recebidas de tantos es­piões ou de muitas lembranças de Antônio. Não era, em ab­soluto, o rapaz enfermiço, retraído, austero e, no entanto, civilizado. Ao contrário, era um homem insolente, de aspecto enérgico, disposto a fazer sentir sua autoridade em qualquer momento. Cleópatra pôs-se a rir ao comprovar isso.

De que estás rindo? perguntou ele, suspicaz.

De comprovar em tua pessoa como o poder modifi­ca os humanos.

Também devem ter notado isso em ti, quando te fi­zeste poderosa.

Sempre fui princesa. — Disse-o com tanta altivez que equivalia a colocar sua tradição acima daquela situação e de qualquer outra em que um romano pudesse colocá-la.

Antes de começar nosso trato, quero te fazer uma advertência disse Otávio secamente.

Advertências de Roma ao Egito! — riu ela. É ver­dade que os tempos mudaram. Pois houve um em que os sá­bios gregos vinham aprender conosco. E hoje Roma quer nos fazer advertências.

A austeridade do ambiente não predispunha ao brilhan­tismo nem justificava o jogo retórico. A coisa mais próxima da beleza que podia ver na tenda do romano era uma espada com uma delicada empunhadura de marfim. O mais era fer­ro vulgar, cobre barato e couro gasto.

Ele viu que Cleópatra se aproximava, e por um instante assaltaram-lhe o cérebro todas as recordações de sua lenda. A fascinante. A perigosa. A tentação convertida em demônio.

Não tentes me seduzir exclamou Otávio, recuan­do. És famosa por teus ardis.

Isso é o que dizem em Roma, eu sei. A Serpente do Nilo que enfeitiça os homens com o olhar. O que dirias, pru­dente Otávio, se meus olhos astutos se pousassem nos teus mais tempo que um varão honesto pode tolerar?

Seria em vão. As mulheres mais velhas que eu não me atraem.

Cleópatra acusou o impacto daquelas palavras. Fechou fortemente os olhos para não delatar sentimentos mais pro­fundos. Era a última cutelada contra seu orgulho. O instan­te temido, quando a beleza não era senão uma sombra inca­paz de despertar um desejo.

Perdão, rainha. Não te quis ferir.

Um filho de Roma poderia ferir, se a rainha do Egi­to não quer ser ferida? Aliás, sei muito bem que sou velha. Tenho a idade da grande esfinge. Mais de mil anos.

Otávio não respondeu. Tentava manter a frieza a qual­quer preço.

Fui muito amada ela continuou. Mais do que nunca poderás imaginar. Agora avanço em tua direção, e mi­nha beleza ainda pode te inspirar medo. Mas nada tens a te­mer. Vês que estou de luto. Tenho, assim, o aspecto de uma puta que gostaria de se fazer desejável? Além do mais... não estou inteira.

Dando uma patada feroz, arrancou o manto e, ato con­tínuo, a bandagem que cobria suas feridas. Otávio teve de recorrer a toda a sua força para não cobrir os olhos ante a visão daquele corpo mutilado.

O que fizeste, mulher? — És mais cruel contigo mes­ma que qualquer verdugo romano!

Cortei meu seio para enviá-lo a ti em uma bandeja de prata. Se um dia quiseres fundar um museu de guerra que recorde tuas façanhas, poderás exibir o seio da rainha egíp­cia. Posso te assegurar que, em outros tempos, ele conheceu grande prestígio.

Tomando o manto com as próprias mãos, Otávio co­briu a horrível ferida.

— Mas mudei de opinião. Em vez de enviá-lo a ti, pre­firo conservá-lo para a vida eterna. Quero chegar no além de Osíris tal como fui no melhor momento de minha prima­vera. Que Antônio não encontre faltando nenhuma parte de meu corpo quando me apertar em seus braços.

— De Antônio falaremos depois.

Tu falarás dele. Eu falarei com ele. Estás vendo a diferença.

Fala com quem te aprouver e onde quiseres. Não me importa o que farás depois de tua morte. Por enquanto pre­ciso de ti viva.

Um calafrio percorreu o corpo de Cleópatra.

Queres fazer comigo o que César fez com Vercinge-tórix? Mostrar minha vergonha à repugnante plebe de tua aldeia! Queres que a última descendente da glória do Egito entre em Roma acorrentada a teu carro?

Quero que venhas comigo para Roma. O tratamen­to que te será concedido depois dependerá de tua conduta... ou de tua benevolência. Por exemplo, quero que me digas onde estão os tesouros do Egito...

Em seu céu diáfano. No azul do Nilo quando ama­nhece. Na sabedoria gravada nas paredes de seus templos...

Basta de comédias! — exclamou Otávio, dando um murro na mesa. — Onde estão teus fabulosos tesouros, Cleópatra?

Tu me pediste um inventário dos mesmos, e eu te dei. Não escondi nada. Exijo que creias em minha palavra, pois é de rainha.

— Não estás aqui para exigir. Nem sequer para oferecer. Cleópatra reparou em seu erro. Nem a soberba nem a

altivez serviam para tratar com aquele jovem envaidecido com seu poder. Ademais, ele carecia de senso de humor.

De maneira que a rainha do Egito fingiu submissão e, inclinando-se à altura de seus joelhos, disse:

Conheço qual há de ser minha condição a partir de agora. Mas deves me conceder algum tempo para assumi-la. Na primavera de minha vida, terias sido obrigado a te incli­nares diante de meu trono. Hoje tens direito a que eu me ajoe­lhe e podes exigir que eu limpe teus pés com meus cabelos.

A cada coisa que eu ordenar só deves responder afir­mativamente. Não posso perder tempo com veleidades.

Ainda não me acorrentaste, e sinto já o peso das cor­rentes.

Tu me entregarás todos os teus tesouros.

Porei o Nilo em uma talha para que o leves a Roma.

Virás comigo na qualidade de prisioneira.

Se não me atares forte demais ao carro, distrairei a chusma dançando a dança do ventre.

Tu me cederás todos os teus territórios na Ásia. In­clusive Chipre e Creta...

Tu mesmo os tomaste ao tomar o Egito. Aliás, são territórios que vão e vêm.

— Desde hoje o Egito passa a ser província romana.

— Já o são tantas nações que meu pobre Egito estava com inveja de não se ver na lista.

— Não atentarás contra tua vida.

— Não o poderia, pois ninguém em são juízo chama­ria de vida este momento.

— E, por último, me entregarás o cadáver de Antonio.

Todo o edifício da majestade desmoronou em um ins­tante. Foi como se os ossos, roídos por uma caterva de ratos diminutos, fossem se quebrando até se reduzirem a um mon­tão informe que se agitava aos pés de Otávio.

Meu único rogo é por esse cadáver! Não o arranques de mim! Permita que meus sacerdotes o embalsamem. Se seu corpo era romano, seu coração pertencia ao Egito. Mil ve­zes hei de te suplicar que o deixes nesta terra para que, jun­tos, possamos compartilhar a longa noite de contar os anos.

O que isso pode te importar, se morrerás em Roma? Em qualquer dos casos, não estareis juntos.

Cleópatra recobrou o sentido exato da situação, a ne­cessidade de enganar o bárbaro com seu fingido acatamento.

Morrer em Roma! É certo que morrerei lá. É certo que não mais voltarei a ver o mar de Alexandria nem a sen­tir as andorinhas nos templos do Nilo... — De repente assal­tou-a uma imagem mais espantosa que todas as outras, uma súplica mais urgente que todas as mercês. — E meus filhos, Otávio? O que vais fazer com meus filhos?

Os três que tiveste com Antônio irão viver com mi­nha irmã Otávia.

A nobre Otávia!

Mortifica-te que tua inimiga os eduque?

Ao contrário, tranqüiliza-me. Sinto grande admira­ção por ela. Bendize-a em meu nome.

Otávio assentiu com a cabeça, embora sem excessiva con­vicção. E a rainha, em um último titubeio, já quase sem for­ças, perguntou:

E Cesário?

Deves saber — respondeu Otávio com o mais cínico de seus sorriso. — Tu o mandaste para a índia, segundo me contaram.

Porém o braço de Roma é mais longo que todas as distâncias. Promete-me que não farás mal a meu príncipe.

Não posso te prometer nada.

— Não permitas que eu morra sem este consolo! Otávio deixou escapar toda a sua fúria.

Não me fales de tua morte, puta egípcia! Amanhã mesmo quero te ver em minha nave, disposta a partir para tua nova pátria.

Certo — disse ela com fingida humildade. — Tão certo quanto meus olhos verão nascer o novo dia.

Afastou-se com passo lento e extenuado, cobrindo a ca­beça com o véu negro, lançando suspiros entrecortados. Mas, ao chegar à saída, onde a esperavam dois centuriões, voltou-se pela última vez e perguntou:

—            Que necessidade tens de ser cruel, se já és poderoso?

— Quando tudo na vida fracassa, devemos entender que ela não nos quer. É a vida que nos põe de lado, não nós a ela. Mas é preciso ter coragem para deixá-la. E elegância pa­ra que a saída seja a tempo.

Não permaneceram encerradas no palácio, mas regressa­ram ao mausoléu. Embora Otávio tivesse mandado reforçar a guarda ante a porta principal, com a ordem expressa de que os oficiais impedissem a entrada da rainha, esta e suas damas conheciam com perfeição as passagens secretas que comuni­cavam o monumento com as diferentes partes do palácio e, além disso, possuíam servidores fiéis que cuidavam de em­bebedar as sentinelas romanas. De modo que não foi difícil para a rainha entrar no túmulo por uma estreita abertura dis­simulada atrás de um biombo fictício da câmara mortuária.

Uma harpa inconfundível soava com lânguidos acentos. Ao desviar o olhar para um canto iluminado por fogos dedi­cados a Hátor, depararam com Ramose.

Estrela do Egito! — gemia o cego. — Tua luz não há de se apagar enquanto soar minha música.

Peço-te que nos deixes, Ramose, porque em verda­de te digo que esta é uma cerimônia muito íntima.

Tu te tornaste egoísta, rainha minha. Porque te dis­pões a ouvir músicas celestiais e tens vergonha de minha po­bre harpa. Mas eu sempre toquei o melhor que soube e pude aprender mais, porque me inspiravas. Não tive outro lar além de teu palácio, onde nasci em tempos de teu pai. E não terei outra vida se a tua terminar, nem outra cidade se Alexan­dria morrer.

— A música dos altos céus não será tão formosa quan­to a tua. É o primeiro som que ouvi e o que embala todas as minhas recordações, como o bramido das ondas e a brisa do Nilo. Mas hoje, Ramose, um amante tão ciumento vem me buscar que não posso compartilhá-lo com ninguém. Vai embora, já e sem nenhum temor, pois dispus que uns ami­gos fiéis cuidem de ti e te destinei umas propriedades que te ajudarão a viver folgadamente pelo resto de teus dias.

Conduziram Ramose até a porta, e a rainha escreveu uma carta apressada ao grande Otávio. Nela comunicava sua de­cisão de dar-se morte e suplicava de novo os melhores tratos para o príncipe Cesário.

Quando Carmiana entregou a carta aos servidores, or­denou que trouxessem a ceia da soberana e não esquecessem nada, pois pensavam trancar as portas por dentro.

— Mas não trancareis até que chegue o homem que há de me trazer a morte doce — disse Cleópatra.

Carmiana, a de cabelo loiro, e íris, a da negra cabelei­ra, ajoelharam-se ante Cleópatra e, agarradas às dobras de sua túnica, soluçaram em sinal de rogo.

Não queremos sobreviver a ti, doce princesa. Deixa-nos ocupar um lugar em tua barca dourada, pois a teu lado a navegação pelo mundo das sombras será mais alegre.

Assim será duplo prazer para Antônio. Porque, ao me ver chegar tão bem acompanhada, saberá que chegaram a existir neste mundo a beleza e a fidelidade.

Pouco depois encontravam-se diante de uma suntuosa ceia. Cleópatra agradeceu ao cozinheiro por ter se lembrado de seus caprichos sem que fosse dada ordem alguma. Pois havia ali peixe branco do Nilo, pato assado, ganso com fi­gos, verdura em abundância, uva de duas cores e, para me­lhor regar a morte, vinho das vinhas da Galileia.

Concluída a ceia, a rainha aproximou-se novamente do cadáver de Antônio, antes que o depositassem aos pés de uma enorme escultura de Anúbis em sua manifestação de chacal. E, sob a sombra protetora do divino guardião das necrópo-les, o rosto de Antônio adquirira uma serenidade majesto­sa, dir-se-ia a glorificação da maturidade.

Não morreremos no mesmo momento, doces ami­gas. Atrasai uns minutos vossa viagem para me servir, como sempre fizestes. Deixai-me morrer abraçada a Antônio. Quan­do minha vida estiver consumada, depositai-me naquele trono que roubei do túmulo de um rei de outros tempos. Riu com leve picardia. Até na paz da morte se introduz a in­quebrantável cobiça dos vivos! Mas quero que os romanos me encontrem sentada conforme minha majestade e em um trono que lhes mostre o esplendor que o Egito teve centenas de anos antes do nascimento de Roma.

Despojou-se do manto. Ante o cadáver de Antônio, ten­tou dissimular as bandagens que cobriam suas feridas. Pois sentia estranho pudor em mostrá-las.

— Vesti-me com minhas galas preferidas. Os símbolos da realeza. Os da divindade. Os do amor. Embora estes não sejam necessários. Estão aqui, no corpo de Antônio... — Abraçou-o de novo, sem lhe importarem agora as feridas. Desgraçados os que pensam que a morte é um adeus! É exatamente o contrário, Marco Antônio. Com cada abraço estou te anunciando minha chegada.

íris penteou-a à maneira egípcia, e Carmiana ajudou-a a maquilar-se. Depois ataviaram-na com o vestido dourado do cerimonial, e ela mesma cingiu a coroa do Alto e do Bai­xo Egito. Em suas mãos, os símbolos da realeza.

Colocai no peito ferido uma moeda com a efígie de Cesário. Quero senti-lo junto a Antônio. Quero imaginá-lo ginete nos desertos, lavrador nos campos, tritão nos ocea­nos. Quero imaginá-lo inteiramente livre, longe dos palácios, longe da ameaça de Roma, vibrando na liberdade que Cleó­patra nunca conheceu!

Depois de beijar o rosto do Menino Divino, queimou incenso diante da estátua de ísis. Ato contínuo, acariciou o rosto da única escultura do mausoléu que não obedecia ao estilo egípcio ortodoxo. Era o busto de um romano ilustre.

— Não quero esquecer Júlio César. Ele me fez rainha e mulher ao mesmo tempo, pois Cleópatra não teria sido uma coisa sem ser a outra. Dele aprendi o bom senso e a melhor razão. Por ele soube as artes do governo, a estratégia das in­trigas e a cautela do governante. Grande Júlio! Onde quer que estejas, lembra-te daquela menina.

Virou-se para as paredes revestidas de ouro e pintadas com os símbolos da morte e da ressurreição. Ali estavam to­das as figuras que haviam acompanhado o devenir de seu po­vo desde suas épocas mais gloriosas até a longa noite da de­cadência. Ali estavam os deuses, os gênios, as paisagens do Além e as deliciosas recordações dos prazeres do homem junto ao Nilo. Ali estava o mais formoso que o Egito produzira para afirmar sua vontade de existir.

Cleópatra levantou os braços para as imagens de seus deuses, em solene atitude de invocação ritual.

— Agora vamos dar nosso adeus ao Egito. Olhai-o bem, porque vos digo que está tudo nestas paredes. E está para nos acompanhar na longa viagem através dos milênios. Contem­plai meu Egito, tal como era nos tempos mais altos de sua fa­ma. Tudo que morreu aparece aqui representado para se reen­carnar algum dia conosco. Abri os olhos e contemplai o Egito, pois nem sequer na outra vida haverá lugar mais belo! Se a recordação do Nilo não bastasse, pousai os olhos em qual­quer destes objetos, para assim morrer embriagadas de beleza.

Acariciava lentamente cada objeto de seu enxoval fu­nerário. Sentia o contato frio do alabastro, o toque suave do marfim, as refinadas turgências do ébano...

— Que me sirvam a morte como ordenei!

As duas damas de honor ajoelharam-se a seus pés e ba­nharam-nos de lágrimas.

— Nem uma lágrima, irmãs. Não vedes que estou can­sada de tanto sobreviver? Vamos logo para junto dos nossos.

E a morte aproximou-se como um suspiro. Abraçada ao cadáver do amante, Cleópatra descobriu com satisfação que a morte que lhe haviam servido era muito doce.

—            Bendita seja a ciência de meu povo, que me faz ver a morte como se fosse a mais encantadora de todas as mi­nhas amigas. Estou vencendo o tempo, Marco Antônio! To­dos os meus instantes confluem neste momento incompará­vel. Todos os espaços são um espaço. Que eterna primavera nos sentidos!

Carmiana abraçou-se a ela e solicitou sua gentileza:

— Senhora, dá-nos um pouco dessa morte que enche teus lábios de formosura!

íris ajoelhou-se diante dela e deixou cair a cabeça em seu regaço.

— Dá-nos esta paz que há em teu rosto, estrela do Egito!

— Irmãs... Que longe vai ficando este mundo rasteiro! Vou embora! Afasto-me! Meu reino é a poesia.

 

E a morte passou, pois ela também é tributária do tem­po. Passou como o instante de um suspiro, como o segundo de um aroma, como a apoteose de um amor. E, ao passar, a morte deixou atrás de si um rastro de ouro. No vestido isíaco da rainha, nos corpetes de suas damas, nas estátuas dos deuses do Egito eterno, nos relevos das paredes, também dourados...

Quando Otávio e seus legionários conseguiram penetrar no mausoléu, acharam-se diante daquela imagem suntuosa, para cuja compreensão Roma não os havia capacitado. Uma rainha morta, sentada em um trono antigo, e, a seus pés, duas formosas mulheres que haviam recebido o sono eterno co­mo o doce e cálido abraço do namorado nas tardes estivais de Mênfis.

Eram dois mil anos de refinamento obtido na impertur­bável serenidade da morte.

Mas o esplendor não residia somente naquele grupo dou­rado formado pelos cadáveres das três mulheres. Toda a sa­la mortuária era um canto ao luxo mais desaforado, aos ex­cessos menos recomendáveis. Suntuosidade nos prodigiosos objetos que a rainha levava para a outra vida, requintada acumulação de manjares nas mesas para as oferendas, incrí­vel acumulação de pedras preciosas espalhadas sobre o cor­po de Antônio...

Ante aquela manifestação tão oriental da morte, Otá­vio não pôde evitar um gesto de repulsa. Tanta ostentação inútil repugnava-lhe os olhos sentidos. Mas era bastante ro­mano para superar qualquer sentimento em favor do bem comum. Um bem que estava a muitas milhas de distância. Um bem que exigia um rápido inventário dos tesouros que se amontoavam naquele mausoléu.

Dolabela não escondia certa emoção. Os legionários, ex­pressões de autêntico assombro.

— Quando recebi sua carta compreendi que me enga­nara — disse Otávio. — Ou talvez tenha me enfeitiçado, co­mo fez com tantos outros. Deverei me contentar em levá-la em efígie, quando entrar triunfalmente em Roma. Em todo caso, averiguai como morreu, pois teremos de informar o Se­nado sobre isso.

Mas o Senado de Roma nunca chegou a saber como a rainha do Egito morreu. Circularam muitos rumores a res­peito, e os guardiães declararam que só entrara no túmulo um camponês carregado com um cesto de figos. Disseram que foi uma áspide escondida entre as frutas: falou-se de uma agulha de ouro carregada de veneno que a rainha trazia sem­pre presa aos cabelos; apregoou-se alguma maldição dos te­nebrosos deuses egípcios. A única coisa certa é que a morte transcorrera como um supremo instante de gozo.

Prosperou a idéia de que foi a áspide venenosa — pa­rente, sem dúvida, da rainha. Assim foi representada na ale­goria que presidiu o grande desfile de Otávio pela Via Sa­cra: uma egípcia maléfica que trazia uma enorme serpente enroscada no corpo. No mausoléu não se encontraram, po­rém, vestígios do animal. Só do lado de fora, quase na areia da praia, os soldados disseram que haviam visto um ligei­ro serpenteio.

Como Otávio não podia ir embora sem um informe ra­cional de tão tristes acontecimentos, ordenou que lhe trou­xessem um escravo ou um delinqüente condenado à morte. Quando teve diante de si um homem que era ambas as coi­sas, ordeonou-lhe:

—            Vais morder as veias de Cleópatra em várias partes de seu corpo. Beberás seu sangue. Se sobreviveres à prova, Roma te concederá a liberdade.

Foi a última humilhação que a estrela do Egito viu-se obrigada a suportar. Depois que seu corpo foi profanado pe­las mordidas angustiadas daquele homem, permitiram que ela repousasse em paz. Otávio ordenou que ela e Antônio descansassem juntos para sempre e que lhes fossem ofereci­das honras fúnebres de acordo com sua posição.

Estendeu o alcance de sua piedade às estátuas. Só as de Antônio seriam derrubadas, enquanto as de Cleópatra con­tinuariam de pé para recordar ao povo a dinastia que mor­reu com ela.

Quando entrou vitorioso em Alexandria, prometeu a seus habitantes que seria benevolente. E que respeitaria a gran­deza da cidade, pois ela não nascera em vão de um capricho de Alexandre.

 

Naquela mesma noite, porém, enquanto os soldados fa­ziam o inventário dos bens depositados no mausoléu real, Otávio quis passear pela praia para contemplar dali toda a magnificência dos grandes palácios, dos fabulosos templos e das mui ponderadas bibliotecas.

Enquanto passeava junto de Dolabela, aproximou-se um centurião de aspecto grosseiro. Marco, chamavam-no, para não lhe dar nome pior.

Que faremos com o filho de César?

Queres dizer o bastardo de Cleópatra.

Esse tal Cesário, com efeito.

— Que morra antes da alvorada. Encarrega-te tu mes­mo de levar minhas ordens a Mênfis.

Permaneceu alguns minutos em silêncio, ante o olhar dolorido de Dolabela. Por fim, disse:

Não convém que haja césares demais.

Certo, César — respondeu o outro secamente.

O mar estava tranqüilo, e a noite, lá nos céus, mostrava um sem-fim de estrelas desmemoriadas. Mas a cabeleira de

Berenice continuava velando sobre a cidade, embora já não restassem Ptolomeus para proteger.

Depois da última batalha, a cidade parecia adormecida em um sono de resignação. Só um leve odor de queimado lembrava que não se rendera pacificamente. Só o gemido de alguma mãe anciã lembrava que houve cadáveres em suas ruas, antes que os carros romanos os levassem todos para o deserto, a fim de evitar epidemias.

— Hoje tenrúnamos com uma dinastia de fantoches. Ce­sário será o último. A sua é uma morte obrigatória. Para que desapareça a raiva é preciso matar o cão. E o Egito esteve muito raivoso por causa de uma família de lunáticos.

Voltou-se para a cidade. Seus mármores despendiam um fulgor espectral à luz vacilante dos astros noturnos. Não ha­via nada tão branco quanto aquela cidade que pretendeu erigir-se em baluarte de todo o universo culto!

Muito me comprazeria que Alexandria consagrasse um templo a meu nome. E, se seus habitantes não o fizerem, o Senado deverá prover os meios necessários para tanto. Creio que não é um pedido exagerado. Afinal, conquistei o Egito para Roma. Tanto César quanto Antônio só conseguiram uma pequena parte, uma miséria para nossas necessidades de expansão. Mas César Otávio Augusto subjuga o Egito completamente! Agora este país só existirá em função da exis­tência de Roma...

Entendo — sussurrou Dolabela com lágrimas nos olhos. — O melhor do Egito para o melhor de Roma...

O Egito é um terreno conquistado, e como tal o ocu­paremos. A fim de prevenir abusos, ficará sob meu controle pessoal. Este solo contém demasiadas riquezas para eu per­mitir que usufruam delas indivíduos sem escrúpulos em pre­juízo do Estado. A nobreza romana não poderá viajar ao Egito com tanta facilidade como até agora. Acabaram-se as viagens de prazer, terminaram os cruzeiros Nilo acima. Nin­guém poderá viajar até estas terras sem um salvo-conduto rubricado com meu assentimento.

Dolabela, todavia, continuava murmurando em voz baixa:

O Egito é um terreno conquistado. O mundo inteiro é um terreno conquistado.

Quanto aos habitantes, não mostreis a menor com­paixão para com eles. Não façais distinções entre ricos e po­bres, livres e escravos. Passai pelas armas todo aquele que resistir ao poder de Roma. Para exemplo geral, começai com uma crucificação maciça. Nos últimos dias prendemos mui­tos rebeldes. Ao amanhecer quero vê-los em um campo de cruzes que abarque até os limites do deserto. E que o exem­plo seja imitado em todos os pontos do Egito onde existir uma guarnição romana.

Dolabela sequer se alterou. Vivera muitas jornadas tão triunfais quanto aquela. Assistira, impassível, ao escarmen­to com que Roma celebrava sua entrada em qualquer cida­de, sua imposição a qualquer país. Imensos campos de cru­zes que recordavam aos vencidos a implacável lei do vencedor.

— A sangue e fogo... — dizia Otávio, comprazendo-se com a esplêndida visão de Alexandria. Instantes depois, acres­centou: — Esta cidade teve a pretensão de se parecer com Roma. Foi o sonho de um bêbado! Não tornará a acontecer enquanto eu viver. Quero fazer algo por Roma. Sim, Dola­bela. Quero convertê-la no centro absoluto de um império infinitamente mais extenso que este com que tantas mentes enfermas sonharam. Roma será o assombro das épocas e, ao mesmo tempo, personificará por inteiro a nossa. E talvez um dia as crônicas poderão dizer que, em uma noite como a de hoje, no Egito conquistado, começou a era de Augusto sobre o mundo. Quem sabe?...

Ouviu-se ao longe uma ordem do centurião Marco:

— Levai a Mênfis a pena de morte para o príncipe Cesário!

 

Os capitães da legião destacada em Mênfis haviam ha­bilitado os subterrâneos de um antigo templo do deus Ptah como calabouços onde mantinham bem guardados os egíp­cios que se atreveram a resistir durante as jornadas da con­quista. Não se podia encontrar ratoeira mais segura que aque­las covas, que em um passado remoto serviram de estrebaria aos animais sagrados. Na palha, entre a porcaria, misturándo­se com os excrementos que o tempo cuidara de secar, jaziam os desventurados que deveriam sofrer o suplício da cruz ao nascer da alba.

Totmés e Cesário foram trasladados para um calabou­ço igualmente lúgubre, porém separado dos demais por vá­rias passagens que se perdiam na rocha. O chefe da guarni­ção decidira mantê-los no anonimato, a fim de evitar que a identidade de Cesário contribuísse para exaltar os ânimos do povo. De maneira que ninguém soube que o último Ptolo­meu ia morrer no subsolo de uma cidade onde, muitos sécu­los atrás, acenderam-se os primeiros fogos do gênio egípcio.

Os temores do oficial romano eram de certo modo in­fundados. Pois teria sido difícil, ou impossível, reconhecer o herdeiro do trono egípcio naquele jovem mercador cujos luxuosos trajes árabes haviam sido reduzidos à categoria de sujos farrapos depois de uma penosa marcha através dos de­sertos, com a mãos acorrentadas à cintura do amigo. Quan­to a este, ninguém o reconhecera como membro da sagrada ordem de Isis, tanto lhe haviam crescido os cabelos, o pêlo do peito e a densíssima barba negra. Mas ambos jaziam na escuridão, sobre a palha e o esterco, à espera do instante su­premo. O qual não tardaria a apresentar-se, segundo seus guardiães lhes haviam anunciado.

Cesário chorava desesperadamente:

Totmés, meu amigo. Tu me preparaste para ser ho­mem e para ser rei. Por que não me ensinaste a morrer?

Porque a morte não existe, meu príncipe. Porque os milênios do Egito serviram para que saibamos encará-la co­mo um prolongamento de nossos amores na terra. Como um lugar em que os amigos acabam convertidos em irmãos.

E Totmés evocou para seu príncipe as coisas belas do passado, os instantes prazenteiros que estavam destinados a reproduzir-se na outra vida. Cesário, todavia, continuava cho­rando amargamente, porque se lembrava daquele príncipe da Sede da Beleza cujo destino foi interrompido por uma mor­te prematura. E sabia que toda a beleza invocada por Tot­més estava destinada a morrer com eles e a ficar esquecida na mente dos homens.

O destino, que se compraz em escarnecer dos povos aci­ma dos séculos, jogava uma nova ironia, escondida atrás da máscara de uma crueldade implacável. Fazia muitos anos já — anos perdidos na aritmética do tempo —, os cortesãos de Alexandre chegaram às portas de Mênfis trazendo seu cadá­ver sobre os ombros, como se de um deus se tratasse. Pre­tendiam que o herói divinizado descansasse para sempre na­quela cidade cujo prestígio religioso transcendera à passa­gem das épocas. Mas os sacerdotes de Mênfis negaram-se a dar guarida a seu corpo, porque estava escrito que traria des­graças permanentes, guerras, discórdias e infortúnios ao lu­gar que o abrigasse. E mandaram-no para sua cidade, Ale­xandria, sonho bastardo nascido junto do mar inóspito.

E agora o último monarca daquela duvidosa estirpe que nascera de um capricho de Alexandre ia morrer em uma Mên­fis tão devastada quanto a própria Alexandria e, como ela, destinada à destruição total e ao esquecimento dos homens.

O príncipe achava-se em tais meditações quando a por­ta do calabouço se abriu para dar passagem a dois soldados de aspecto sonolento, cada um portando uma tocha. E sua luz, mais tenebrosa ainda que a própria escuridão, iluminou em cheio os dois condenados.

Entraram mais homens, depois outros, e era como se toda uma legião não bastasse para dominar um jovem de de­zessete anos. Mas não tardaram a compreender que qualquer precaução era desnecessária. A vítima contemplava-os com uma expressão aterrada, todo o seu corpo tremia em uma única comoção. Viram até que perdera o pudor, porque se urinava.

O chamado Cesário disse a seu companheiro:

Ensina-me a morrer com dignidade, Totmés. Su­plico-te!

Não posso. Porque nem eu nem ninguém vai exigi-la de ti. Porque não é necessária. Porque toda dignidade é mentira nesta hora.

Um centurião de rosto macilento e modos grosseiros pe­gou uma enorme espada de fio negro e mandou que os ou­tros trouxessem o condenado.

Cesário desabou nos braços do amigo. Apesar do olhar zombeteiro dos romanos, continuou chorando e mordendo os lábios febrilmente, como se tentasse despertar de um pe­sadelo atroz.

Vou avançar contigo — sussurava-lhe Totmés. — Es­tarei a teu lado. E, se tiveres medo, terei mais ainda. Se cho­rares, dobrarei o caudal de tuas lágrimas. Quando morre­res, terei morrido muito antes.

Dá-me tua mão, Totmés. Porque, na verdade, foste um irmão.

Viram os dois avançar com um passo cambaleante en­tre o corredor formado pelos soldados. Um corredor de cou­raças gastas, rostos medíocres, bocas que emanavam a feti­dez do vinho, não só daquela madrugada como de muitas outras mais. Ao ver o medo refletido no rosto de Cesário, um dos soldados comentou que os egípcios não sabiam morrer com prestancia.

— Esta merda é o filho de Júlio César e da grande rai­nha Cleópatra! — exclamou o soldado, cuspindo na parede.

Ao ouvi-lo, Cesário procurou desesperadamente o olhar do amigo.

Não sei o que lhes responder, Totmés... As palavras não saem...

Como poderiam sair, meu pobre irmão! Como po­deriam!

Era tal a dor que o embargava que cravou as unhas no braço desnudo do príncipe e afundou-as ainda mais, até fazê-lo sangrar. Queria infligir-lhe uma dor que por alguns ins­tantes distraísse sua atenção da imensa dor que o aguardava.

A espada do centurião cortou de um só golpe o pescoço do príncipe. A cabeça foi cair no barro, e o corpo, assim de­capitado, desabou uma vez mais nos braços de Totmés, que até então o sustentara. E ele abraçou aquele pedaço de car­ne ensangüentada até que o sentiu no mais profundo de si mesmo.

O céu ficou vazio. O céu foi uma solidão imensa. O céu era uma injustiça concebida por deuses zombeteiros. Deu­ses egípcios, deuses gregos, deuses da Ásia. Não importava sua ascendência. O céu era apenas a boca inepta de um po­bre mudo.

— Ah, cruéis! — exclamou Totmés. — Quereis me dei­xar com vida, quando todo o meu mundo está morrendo a meu redor?

Amanhecia do outro lado do rio. A grande nave doura­da de Ra vencera os demônios da noite e dispunha-se a revi­talizar o mundo com seus raios. Mas na alma de Totmés só havia morte. E, em seus ouvidos, as grosseiras imprecações dos legionários, que já tiravam do calabouço os outros con­denados a fim de levá-los até os limites do deserto, onde ha­viam sido colocadas as cruzes.

Totmés viu-se arrastado para a fila sinistra. Na pele es­cura daqueles homens, em suas feições cortadas por facas de agonia, reconheceu todos os rostos do Egito. E soube que estava entre os seus e junto deles avançou até os imensos areais, empurrado pelos legionários romanos, golpeado a cada sintoma de fraqueza, insultado até.

Continuaram avançando pela areia. O sol, que no vale fora tão agradável, tinha ali uma intensidade que queimava os ombros nus e arrancava a pele aos puxões, como as tena­zes que os curtidores utilizam. Totmés caiu várias vezes na areia e todas as vezes sentiu a violência do látego nas espáduas.

Quando chegaram à zona da execução, ergueu os olhos para o céu e esperou uma resposta. Só ouviu os gemidos das vítimas e o martelar dos soldados, que começavam a cravá-los nos madeiros. O céu continuava mudo. E outros solda­dos já haviam terminado de cavar os buracos onde as cruzes deveriam ser plantadas.

O sol punha entre Totmés e o mundo uma cortina de névoa ardente, caliginosa, que fazia vacilar as formas como se fossem objetos entrevistos do fundo de um tanque. Mas na imensa solidão do deserto, solidão apenas interrompida pelos condenados e seus verdugos, perfilavam-se agora umas formas que, embora difusas, não deixavam de ser familiares.

Eram Unhas abstratas que, ao concretizar-se, formavam uma espécie de escada erguida em direção ao céu. Linhas as­cendentes de três construções gigantescas, tão antigas quan­to o nascimento dos deuses.

Totmés, no entanto, não pôde ver mais. Os soldados desnudaram-no e obrigaram-no a estender-se em um madei­ro. Ato contínuo, com a rapidez da rotina, atravessaram-lhe os pulsos com dois pregos, e, quando ainda gemia nos ester­tores daquela dor atroz, sentiu que o içavam com cordas po­derosas, até que o madeiro ficou fixado na árvore da cruz. Então pregaram seus pés e reconheceram que acabavam de fazer um bom trabalho.

Na imensa solidão do suplício, Totmés buscou uma re­cordação em que pudesse agarrar-se. Mas a seu redor tudo era desolação. A solidão acabava triunfando até sobre a ago­nia. Não tinha ninguém a quem se dirigir: os seres que ha­viam povoado sua vida desapareciam, prisioneiros do tem­po, vítimas da desolação do tempo, perdidos para sempre no esquecimento. E chorou com maior amargura ao com­preender que o nada acabaria triunfando sobre o mundo que conhecera.

Tentou erguer a cabeça, dirigir os olhos para o sol divi­no, embeber-se com sua força antes de iniciar sua viagem para as escuras cavernas que não têm regresso. Porém o sol bri­lhava com tanta intensidade que o cegou completamente. Ao fim de algumas horas, todo o seu corpo era uma brasa ace­sa, uma bolha enorme a ponto de rebentar e mais dolorida por não o fazer.

Subitamente as três construções gigantescas que entre­vira antes que o pregassem na cruz tornaram a insinuar-se à distância. Não lhe eram desconhecidas. Ao contrário, sur­giam como uma memória muito distante, recordando-lhe algo que lhe aparecera na remota pureza de sua adolescência, quan­do os sacerdotes o confiaram à Grande Revolução. Uma luz mais intensa que o próprio sol, mais ambígua que os pró­prios deuses; uma luz que não estava sujeita às necessidades dos homens, nem sequer aos caprichos do tempo.

Quis correr até aquela última e diáfana manifestação da vida. Fazia esforços titânicos para mover as mãos, para ar­rancá-las da cruz e iniciar, assim, seu novo caminho. Mas era em vão. Continuava pregado ao instrumento de seu su­plício e tudo o que podia fazer era lançar o corpo para a fren­te, em uma tentativa desesperada para que seu peito alcan­çasse a luz, para que os raios absolutos o acariciassem.

O raio que costumava atravessar-lhe a memória com ins­tantâneos dispersos de sua vida devolveu-lhe agora o rosto de Cesário, o sorriso da rainha Cleópatra, os olhos vazios do harpista Ramose, o delicado farfalhar das sedas nos plá­cidos crepúsculos de Alexandria...

À medida que o mundo ia perdendo os contornos a seus olhos moribundos, as linhas do horizonte acabaram de perfilar-se e a escadaria dirigida para o céu completou-se com formas totais, rotundas, que vieram expor-lhe em um ins­tante toda a velhice do Egito. Porque eram três pirâmides que permaneciam em meio à solidão desde muito antes do que a memória do homem era capaz de recordar.

O tempo voltava sobre os próprios passos. O tempo o fez cavalgar em um raio da memória, e Totmés encontrou-se de novo no terraço de um santuário egípcio, ouvindo as palavras de um nobre cavalheiro que inventara para ele uma vida inteira e uma missão no mundo. A vida era aquela morte. A missão, carregar sobre os ombros o tempo eterno do Egito.

— Nem tudo é esquecimento! — exclamou, negando suas próprias palavras do passado. — Nem tudo é esqueci­mento nas mãos do tempo!

Recitou pela última vez as palavras sagradas, uniu sua voz ao catálogo dos milênios, às canções da harpa de Ramo­se, ao murmúrio das flores vermelhas quando a brisa do Ni­lo beija suas pétalas...

Fechou por fim os olhos, crucificado a sós com suas lem­branças, mas guardando na alma errante aquela última visão das três pirâmides, sobreviventes da eternidade, garantes da recordação. E morreu com um sorriso tão formoso que até a Grande Esfinge quis contemplá-lo para aprender a sorrir.

Deixou atrás de si algo que chegara muito antes dele, algo que sobrevivera além da destruição, além da tirania: uma presença do Egito destinada a permanecer de pé quando o poder de Roma não fosse mais que poeira na poeira dos sé­culos. Uma presença que era a memória eterna dos povos e a vitória do homem contra os crimes do tempo. Pois desde os séculos mais remotos está escrito:

 

           "O homem teme o tempo,

           e o tempo só teme as pirâmides".

 

[1] Atual Vale das Rainhas. (N. do A.)

 

                                                                                Terenci Moix  

 

                      

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