Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
CLÍNICA DO AEROPORTO
Havia já algum tempo que se encontrava no terraço do restaurante do aeroporto, agarrada às grades de ferro, interiormente crispada, olhando fixamente para o vazio a seus pés, mal reparando no vai-vem dos carrinhos com a bagagem, nos carros indicando follow me e nos grandes autocarros que transportavam para qualquer outro local do aeroporto grupos apertados de pessoas que iam embarcar num avião. As pistas brilhando ao sol terminavam na larga pista de descolagem para onde se dirigiam aviões prontos a levantar voo ou onde outros aguardavam ordens da torre de controlo. Uma vida agitada, fascinante, sempre repetida de todas as vezes que dali se olhava para aquele lugar de onde partiam inúmeras pessoas para destinos longínquos.
O avião no lado de lá, um Jumbo com o emblema do Sol-Nascente, partia em breve para o Japão. E por de trás dele deslocava-se um outro avião tendo desenhado na cauda um canguru aos saltos, rolando lenta e majestosamente para a pista de descolagem tendo vinte e seis horas de viagem à sua frente, até à Austrália, à volta de metade do mundo. Junto à entrada B15 rugia com os motores em força um Jumbo de Singapura dirigindo-se ao túnel de saída a que chamamos manga. Muitas vezes se encontra ali o mundo inteiro, reunido durante algumas horas. Já não existe lugar nenhum no mundo a que não se possa ter acesso. O planeta foi conquistado, e aqui, deste lugar, temos a noção de que, vindo de todos os pontos do céu, o mundo cabe numa só grande mão. Aeroporto: o portão de acesso a todas as terras e a todas as gentes.
Era um dia quente, contudo, ali em cima, no terraço do restaurante, soprava sempre um vento umas vezes fraco outras forte, mas soprava sempre, como se pretendesse mostrar que os grandes pássaros barulhentos e brilhantes cheirando a querosene não eram os únicos a comandar os ares.
O vento tinha prendido na grade os longos cabelos louros da mulher, tinha-os revolvido atirando-os uma vezes contra o rosto, outras para a nuca. Ela deixava o cabelo revolto, não o segurando uma única vez nem atando qualquer lenço à cabeça. Estava ali, de pé, Junto à grade de ferro, imóvel como se fosse uma boneca grande. Poder-se-ia julgar que iria cair para o lado mal alguém lhe tocasse. Uma figura de plástico e não um ser humano vivo.
Era também assim que pensava o criado Joseph Hellerfas que havia algum tempo já a contemplava através das grandes janelas. Não a tinha visto entrar no restaurante nem dirigir-se para a varanda. De repente estava ali, de pé junto à grade, olhando imóvel para o aeroporto e deixando o vento emaranhar-lhe os cabelos.
- Há ali qualquer coisa que não está bem - disse Hallerfas para Sybìlle, que tomava conta do buffet,?especìalmente dos pratos frìos que apresentava já preparados. - Aquela está para ali quase há uma hora.
- E depois? - Sybille deitou um olhar rápido em direcção ao terraço e à figura imóvel. - Se ela se diverte assim...
- Mas não tem um ar normal.
- Nem todos precisam de ser tão normais como tu - respondeu Sybille desdenhosa. - Meu Deus, se não consegues ter sossego, vai lá fora e pergunta-lhe: “Por que é que não se move?”
- É mesmo isso que vou fazer!
- Faz favor... Depois não te queixes. Estás tonto de todo, Jupp.
Josef Hellerfas ainda levou um gulache com massa e uma garrafa de cerveja à mesa 7, depois abriu a porta do terraço e saiu. O vento apanhou-o imediatamente, soprou contra o casaco e fez bater as calças contra as pernas. Ainda mais se espantou por a mulher junto à grade suportar aquele quase ciclone havia cerca de uma hora, sem se mexer.
A cerca de cinco passos de distância, falou-lhe:
- Minha senhora, permita-me que...
Foi como se a mulher tivesse levado um murro nas costas. Estremeceu, virou-se e ficou a olhar para Hellerfas com uma expressão onde se lia um espanto total. Era uma expressão que atingiu Hellerfas como se fosse uma faca. Um rápido olhar, um leve acender do olhar... depois a mulher virou-se novamente para a grade, esticou-se levantando uma perna para cima numa tentativa de se atirar para o vazio.
No último momento Hellerfas ainda conseguiu agarrá-la pelo vestido, quando já se baloiçava do outro lado da grade e tentava de olhos muito abertos libertar-se da mão de Hellerfas. Entretanto ia esperneando, puxando-o com ela para fora das grades.
- Socorro - berrava Hellerfas. - Socorro! Já não consigo segurá-la!
Olhava aflito para dentro do restaurante. Ali já tinham dado pelo caso e observavam de narizes encostados aos vidros das janelas o que se passava lá fora, mas ninguém se mexia para ajudar. Sybille gritava histérica atrás do balcão, parecendo uma sirene. Só depois de grande hesitação dois clientes se decidiram correndo para a porta do terraço, abrindo-a de rompante.
Hellerfas ouviu o vestido da mulher começar a rasgar-se enquanto se debatia não faltando muito para se rasgar totalmente. Mais alguns segundos e o tecido rasgar-se-ia de forma a que já não seguraria a mulher e esta iria despenhar-se dali abaixo.
- Socorro - voltou Hellerfas a gritar, tendo a sensação de que o peso da mulher o arrastava também por cima das grades da varanda. - Socorro!
Os dois clientes agarraram em Hellerfas no preciso momento em que o tecido finalmente se rasgava debaixo das suas mãos e a mulher silenciosa e agitada se desprendia dele como se saísse de um invólucro. Uma fracção de segundo demasiado tarde, quatro mãos tentaram agarrar as pernas e braços da mulher. Impotentes, de rostos amargurados e espanto nos olhos, ficaram a ver o corpo cair no meio da multidão de pessoas, carros de bagagens, malas e sacos.
Um dos carrinhos de transporte de bagagem, por qualquer estranha razão coberto com uma lona, uma vez que não estava a chover, acabou por ser a salvação da mulher. Caiu sobre o oleado e as malas e sacos amorteceram a queda. O embate produziu um ruído forte. A pele da cabeça estalou e o rosto cobriu-se de sangue - nada sangra mais que uma ferida na cabeça - e quando as pessoas começaram a aparecer de todos os lados, perdeu os sentidos.
- Meu Deus, teve cá uma sorte... - gaguejou Hellerfas, limpando o suor da cara. -Um minuto mais tarde e tinha-se estampado no chão. Livra! Que coisa mais estúpida atirar-se daqui abaixo. Se uma pessoa quer suicidar-se, existem maneiras mais agradáveis de o fazer.
Três trabalhadores do aeroporto levantaram cuidadosamente a mulher de cima do carrinho levando-a para um dos carros follow-me. Um deles despiu a camisa a e atou-a à volta da cabeça que sangrava.
Então, o carro partiu a grande veiocidade, buzinando, desaparecendo depois ao virar de uma esquina.
- Para onde a levam agora? - perguntou um dos clientes que tinha acorrido a ajudar Hellerfas.
- Para a clínica do aeroporto.
- Clínica do aeroporto? Isso que é?
- A nossa clínica, meu senhor.
- O quê? O aeroporto tem uma clínica própria? Nunca tinha ouvido falar nisso. Uma clínica a sério?
- Pode ter a certeza.
- Uma clínica com todos os quês e porquês?
-- Sim... com cinco médicos, vinte e uma enfermeiras e auxiliares, com bloco operatório e todo o equipamento como as clínicas da cidade.
- E ninguém sabe disso?
- Os que precisam dela ficam a saber. Esta candidata a suicida nunca mais se esquecerá da clínica do aeroporto, garanto-lhe eu.
Hellerfas olhou uma vez mais para o sítio onde a mulher tinha caído sobre o carrinho das bagagens, depois voltou-se, entrando novamente no restaurante. Entretanto tinham chegado mais quatro clientes... um bife simples, dois rolinhos de couve recheados, umas salsichas com batatas fritas.
A vida continuava. A vida que um ser humano tinha querido destruir.
O médico-chefe, Dr. Hansen, havia dez horas que se encontrava em serviço e apetecia-lhe um copo de cerveja. “Um enorme copo”, pensava ele, “ para eu beber de um só trago.” Além disso, apetecia-lhe o cantinho do sofá da sua sala de estar, o seu roupão de seda, a música de um CD de qualquer uma das músicas de Mozart para se sentir relaxado. E alegrava-o a ideia de Evi. Evi Borges, hospedeira da Lufthansa. Segundo o plano de voo deveria aterrar vinda de Carachi dentro de aproximadamente uma hora.
Meter-se-ia então no primeiro táxi a passar, dirigir-se-ia para casa dele, atirar-se-ia ao seu pescoço cobrindo-lhe o rosto de beijos. Levá-la-ia para o quarto e então começaria uma tarde e uma noite que o levariam a dizer: “Sim, sou um homem feliz. Sou o homem mais feliz do mundo!” E nessa noite também esqueceria que tinha nos braços outra mulher sempre que Evi cruzava os ares para longe. Uma mulher ardente de paixão: Lucrécia Bonelli. A enfermeira Bonelli da clínica do aeroporto. Hoje estava de serviço à noite... por isso estava livre de surpresas.
O Dr. Hansen, conhecido por “Fritz Bonitão”, era o protótipo do ginecologista e não do simples cirurgião, pois segundo se dizia, um médico de senhoras tem de ter um aspecto tal, que qualquer paciente fique com o coração aos saltos e o pulso acelerado. Acabava de despir a sua bata de médico quando o telefone tocou.
- Acabei de sair - disse para o colega, Dr. RolfGrãfe. Deitou uma olhadela à enfermeira Bonelli, atirou-lhe um beijo e vestiu o casaco. Fritz Wullemann, o enfermeiro-chefe, entretanto pegara no telefone e ouvia a voz excitada do outro lado da linha.
- Tudo bem - disse então. - Peixe miúdo! Nada de excitações...
Desligou e virou-se para os médicos.
- Então, que foi? - O Dr. Hansen riu-se. - Peixe miúdo? Um caso de gases persistentes?
- Uma suicida! - O enfermeiro-chefe Wullemann passou a língua pelo lábio superior. Era um homem grande, forte, com umas mãos que fariam a inveja de um catcher de basebol, mas essas mãos enormes podiam ser incrivelmente cuidadosas e meigas; e tão eficientes nos tratamentos que os médicos se maravilhavam sempre com a sensibilidade daquelas patas. Fritz Wullemann era quase indispensável na clínica do aeroporto. Quando acontecia qualquer coisa, como por exemplo os passageiros todos de um avião regressado dos Emiratos terem de dar entrada na clínica perdidos de bêbados, Wullemann era como um rochedo sustendo a maré. Nada o perturbava. Os homens são assim!
Esta era a sua filosofia de vida e ninguém conseguia contestá-la.
- A mulher atirou-se da varanda do restaurante. Para cima de um carro com bagagens... Deve estar a chegar.
- Gravemente ferida? - O Dr. Grãfe acenou para as três enfermeiras que se encontravam na sala de operações. - Preparem o oxigénio, tenham os raios-X a funcionar, ponham a mesa de operações em ordem.
Olhou para o Dr. Hansen que estava a vestir a gabardina.
- Vou fazer esta hora até terminar o meu turno. Este caso é para ti, que és cirurgião de acidentados.
O Dr. Hansen deitou uma olhadela ao relógio de pulso. Uma hora? Nessa altura já Evi estaria na sua casa em Niddenheim. Bem, ainda tinha algum tempo... seria suficiente para prestar à doente os primeiros socorros.
- Está bem - dísse o Dr. Hansen, bem disposto, voltando a despir a gabardina e o casaco. A enfermeira Bonelli segurava-lhe na bata. - Vamos lá ver a saltadora.
Dois enfermeiros tinham entretanto levado uma maca para a entrada da clínica. O carro follow-me estacou com grande chiar de travões e o condutor quase que se atirou para fora do carro.
- Não esperámos pelo vosso carro - gritou. - Talvez seja uma questão de minutos. Raios, sujou-me os estofos todos de sangue.
Rápida e eficientemente, os enfermeiros retiraram a mulher desmaiada do banco de trás colocando-a sobre a maca. A camisa enrolada à volta da cabeça estava ensopada em sangue, mal se reconhecendo o rosto, que mais parecia outra estranha mancha de sangue.
- Vem connosco - disse um dos enfermeiros. - Rápido, anda também...
- Porquê? - O motorista abanou a cabeça. - Que tenho eu a ver com o assunto? Tenho de ir tentar limpar este sangue.
- Tens de fazer o relato dos acontecimentos...
- Acontecimentos! Essa atirou-se da varanda abaixo e foi cair em cima do carrinho das bagagens. É tudo.
- Contas isso aos médicos e à Polícia. Rápido, anda, anda...
Os enfermeiros partiram com a maca a toda a velocidade, seguidos pelo motorista, que só pensava nos seus estofos sujos.
O Dr. Hansen, o Dr. Grãfe e, naturalmente, também Wullemann, inclinaram-se imediatamente sobre a suicida.
- Morta não está! - foi a primeira coisa que Wullemann disse.
O Dr. Grãfe, que lhe tomava o pulso, abanou a cabeça dizendo:
- Pulso irregular e muito fraco.
O Dr. Hansen, depois de lhe retirar a camisa da cabeça, inclinou-se sobre a rapariga.
- Tem uma ferida na testa. Sem gravidade. Lucrécia, o oxigénio! Britte, cordalina!
Um outro auxiliar de enfermagem lavava-lhe o sangue do rosto. Duas enfermeiras começaram a despir com todo o cuidado a mulher desmaiada. O Dr. Hansen examinava-lhe os braços e as pernas.
- Não tem nada partido. Teve sorte. Os raios-X estão prontos?
- Sim, Sr. Doutor.
- Então toca a andar com ela. com cuidado, gente! Pode ter fracturas internas. Que te parece, Rolf?
- Não tem aspecto de ter hemorragias internas. Talvez tenha tido realmente uma sorte danada.
Vinte minutos mais tarde, os médicos tinham uma visão mais clara do assunto. Radiografias, pulso, tensão arterial e respiração apresentavam-se normais. Tinham estabilizado a circulação. A mulher ainda se encontrava sob a máscara de oxigénio, o golpe na testa tinha sido suturado pelo Dr. Grãfe e mantinha-se seguro por um adesivo especial. Não tinha feito qualquer costura para não deixar mais tarde uma cicatriz feia. Ficaria talvez um ligeiro risco mais claro, que a maquilhagem facilmente disfarçaria. Não havia lesões internas; a tensão e o pulso assim o indicavam.
- Um anjo pôs-lhe a mão por baixo - disse o Dr. Hansen, dirigindo-se ao lavatório para lavar as mãos e os braços. - Já descobriram como se chama?
- Não. Não tem papéis nenhuns com ela. - Wullemann tinha examinado a roupa dela, pelo menos aquilo que ficara depois de o vestido se ter rasgado. - Quando acordar, certamente vai dizer quem é.
Ouviam-se agora vozes na sala de entrada. Uma enfermeira entrou na sala de operações e apontou com o polegar para trás.
- Chefe, a Polícia...
- com certeza. Têm de fazer um relatório. Rolf, quando ela acordar, chama-me imediatamente.
O Dr. Hansen dirigiu-se à sala de espera onde habitualmente se sentavam os conhecidos e amigos dos doentes, que ali entravam para se informarem do andamento dos casos e para que hospital da cidade os pacientes iriam ser transferidos. Naquele momento a sala estava praticamente vazia. Só ali se encontravam dois homens de uniforme, um da polícia de vigilância do aeroporto e um inspector da polícia de segurança.
- Fomos informados, Sr. Doutor... - começou o agente da Polícia.
Hansen fez imediatamente um aceno de confirmação.
- É verdade. Uma mulher atirou-se da varanda do restaurante. Porquê, não sabemos ainda. Ela ainda não está consciente.
- Sobreviverá?
- Espero bem que sim. Incrivelmente, os ferimentos não são graves. Depois de voltar a si, poderíamos mandá-la para casa. Mas penso que isso seria um erro. Gostava de a mandar para observação psiquiátrica. Tenho o pressentimento, sem quaisquer bases de facto, de que irá repetir a tentativa. E nessa altura certamente que vai conseguir. Temos de o evitar. you pôr-me imediatamente em contacto com a clínica psiquiátrica. Os suicidas são sempre um problema. Problema são também as tentativas de acabar com a vida. Não posso, por enquanto, dizer-lhes mais nada.
- Quando pensa que voltará a si? Precisamos do nome, morada, parentes próximos, motivo da tentativa de suicídio...
- Para quê?
- Sob o ponto de vista legal, o caso é considerado descuido, podendo pôr em risco a segurança pública. Poderia ter caído sobre outra pessoa ferindo-a gravemente...
- Mas não o fez.
- Não se trata de saber se aconteceu ou não, trata-se de que o fez. Poderia...
- Parece-me pouco provável que um suicida leia antes a lista de regras, tomando todas as precauções para que a sua morte não prejudique ninguém. Sob o ponto de vista da mulher, já será castigo suficiente saber que não morreu e que foi salva. Será a primeira acusação que nos fará. Por isso, considero uma tentativa de suicídio um caso muìto importante.
O Dr. Hansen acenou aos dois homens.
- Desculpem-me, meus senhores. Tenho de voltar para junto da doente.
- Informa-nos quando ela estiver consciente?
- com certeza, mas pode demorar ainda um certo tempo.
Saiu da sala de espera um pouco abruptamente, atirando com a porta atrás de si.
O polícia olhou espantado para o inspector.
- Parece que não gosta de nós!
- Tipicamente médico. Assim que vestem a bata branca, sentem-se deuses. Arrogantes até dar vontade de vomitar! Conheço um professor na clínica de senhoras. A minha mulher foi lá para um exame de rotina e pergunta-lhe o tipo: “ Quantas vezes tem relações com o seu marido?” E temos de suportar isto! Digo-lhe, tenho um verdadeiro horror aos médicos...
Entretanto, tinham levado a mulher para fora da sala de operações. Estava agora deitada numa cama, vigiada pela enfermeira Britte Happel, e acabava de abrir os olhos. Grandes olhos azuis brilhantes. Embora estivesse consciente, parecia não acreditar no que a rodeava; os olhos pestanejavam no vazio.
- Pulso normal. Tensão arterial 12-8...
- Bem, quem diria! - O Dr. Hansen aproximou-se da cama. - Conseguimos.
Inclinou-se sobre os pés da cama, afastado da suicida.
- É bom viver, não é verdade?
- Não diz palavra. - A enfermeira Britte encolheu os ombros resignada. - Posso dizer o que me apetecer, que ela fica calada.
- Por favor, deixe-nos sozinhos, Britte.
O Dr. Hansen rodeou a cama e sentou-se na beirinha. O rosto da mulher estava agora bem visível à sua frente. Uma cara bonita e bem proporcionada. Um nariz fino. Lábios cheios, não demasiado grossos. Um queixo pequeno e arredondado. E aqueles olhos! Tão azuis como se tivessem absorvido um pedaço de céu sem nuvens. A única coisa que destoava era o grande adesivo na testa. A enfermeira Happel saiu silenciosa da sala.
- Agora estamos sozinhos - disse suavemente o Dr. Hansen, pousando a mão sobre as dela, dobradas uma sobre a outra. - Quem é você?
Silêncio.
- Por que fez isto?
Silêncio.
- A vida é tão bela e curta que não se deve desperdiçá-la. Há as flores que florescem. O vento a passar pelas folhas das árvores. Um lago pequeno, com o sol a reflectir-se nas suas águas brilhantes. Há as ruas, as lojas cheias de coisas que se desejam. Ouvem-se risos de criança, música a sair de um rádio, música de dança ou de Bethoven. Há discotecas, teatros, cinemas... o mundo inteiro está a nossos pés, grande, aberto. O mar. As montanhas. Praias com palmeiras. Ou o tilintar dos chocalhos das vacas sob os ulmeiros. E sobre tudo isto um céu maravilhoso, infinito, iluminado pelo Sol e afagado pela Lua. Meu Deus, como é bela a vida, mesmo que só tenhamos pão seco para comer e água para beber, pois também isso são maravilhas. O crescer das searas e a água das fontes e riachos, rios e correntes... a vida é toda ela uma maravilha apesar dos desgostos. E é isto que você quer atirar fora assim tão simplesmente! Uma rosa na sua mão não é mais importante que os problemas do dia-adia?
Silêncio. Só nos olhos azuis acontecia qualquer coisa. Ficavam húmidos, começavam a encher-se de água. Lágrimas corriam junto ao nariz inundando-lhe as faces.
- Prefere que me vá embora? - perguntou o Dr. Hansen.
Silêncio... só um imperceptível movimento de cabeça. Mas foi resposta suficiente. O Dr. Hansen respirou fundo. Tinha quebrado a couraça que lhe envolvia o coração.
- Não quero perguntar-lhe por que razão pretende acabar com a vida. Não é obrigada a contar-me nada. Foi a sua vontade, a sua decisão. Agora vai perguntar: “Por que razão não me deixaram morrer? Por que razão me salvaram? Não me fizeram favor nenhum, não fizeram mais que trazer de novo o sofrimento...” Está a ver as coisas de forma errada. Não há nada na vida que não possa ser superado. Existe sempre um caminho, mesmo que íngreme e pedregoso. Mas são caminhos que conduzem para a vida e não para fora dela.
A mulher moveu a cabeça, virou-a para o Dr. Hansen e disse subitamente com uma voz bonita, bem timbrada:
- Sabe lá como a vida pode ser pavorosa!
O Dr. Hansen sentiu o coração a bater com mais força. “Ela está a falar; está, portanto, de regresso à vida.”
- Como médico vejo muitos desgostos, muitas situações horríveis e profundas dúvidas. Mas para tudo existe uma saída...
- Sim. A morte.
- Ninguém vive eternamente. Todos temos de morrer. Claro que isto não passa de sabedoria barata, mas sem dúvida que é assim. Portanto, ninguém pode tornar-se dono do destino e baralhar a obra de Deus.
- Deus? - Os olhos azuis molhados de lágrimas tornaram-se duros. - Deus existe?
- Sim! Mas cada um O vê e sente à sua maneira. Quando consigo aqui na clínica salvar um ser humano... depois de um enfarte, de um derrame cerebral ou de um grave acidente... mesmo como médico digo sempre “ Graças a Deus”! E você agora era o que devia dizer era: “Graças a Deus continuo viva.”
A mulher fechou os olhos.
- Você também poderia ter sido padre.
- Todos nós o somos um bocadinho.
Inclinou-se sobre ela e com a outra mão afastou-lhe da testa uma madeixa do bonito cabelo louro.
- Quer dizer-me agora quem você é?
- Herta Frieske... - Falou tão baixo que ele mal a podia ouvir.
- Posso chamar-lhe Herta?
Acenou afirmativamente e, subitamente, agarrou-lhe a mão.
- Que há de tão horrível para que já não queira viver mais?
Novamente silêncio. Mantinha as pálpebras baixas mas sob as pestanas novamente se soltavam lágrimas.
- Já não tenho coração - disse depois de um grande bocado. - Partiram-me o coração e sem coração não se pode viver.
- Deus do Céu! - O Dr. Hansen endireitou-se. - Não pode ser! É um homem, não é verdade? Por causa de um homem dá cabo da sua vida? Herta...
- Amei-o mais que à própria vida. Não pode perceber isto. Um amor assim só existe uma vez.
- Isso é parvoíce... desculpe a dureza da palavra. Todos os amantes julgam que o seu amor é único. Que ninguém nunca amará como eles.
- Estivemos ligados pelo casamento durante doze anos, casei-me com Temos dois filhos, duas raparigas, uma com 10 e outra com 7 anos. Levei-as para junto da minha mãe. Aí terão um lar. Aí farão tudo por elas...
Soluçou e ficou calada enquanto o Dr. Hansen lhe limpava as lágrimas do rosto.
- Há dois anos que o Horst morreu, o meu marido. Num acidente. Na auto-estrada Würzburg-Nürnberg. Estava a chover e um outro carro derrapou e embateu em cheio no carro de Horst. A Polícia disse que teve morte imediata. O volante ficou meio espetado no peito dele. Nessa altura pensei que o mundo se desmoronava. Não conseguia acreditar. Três horas antes, Horst tinha-se despedido com um beijo, como habitualmente, e depois regressou um corpo destroçado. Sabe o que isso é?
O Dr. Hansen acenou afirmativamente.
- Sim, sou cirurgião de acidentados.
- Precisei de um ano inteiro para voltar a sentir-me um ser humano - disse baixinho. - Então conheci o Helmut durante uma ida ao teatro. Um homem atraente, arquitecto, independente, rico. Tinha um Jaguar e vivia num apartamento de último andar que ele próprio tinha construído. Um homem de cultura e espírito, bem humorado e encantador... fiquei fascinada com ele.
“Voltei novamente a sentir-me mulher e demos início a um amor que nunca julguei ser possível. Não fazia ideia de que podia existir uma coisa assim tão maravilhosa. O céu era na terra e tudo à nossa volta era um paraíso. Era como se vivêssemos os dois numa ilha isolados. Numa ilha de praias brancas e palmeiras baloiçantes. Numa casa à beira-mar frente a um Sol que nunca se punha. E andávamos por aí como no jardim do Éden e amávamo-nos mergulhados numa total ausência de noção do tempo. Era assim incrível o meu sonho, tão palpável para mim... e quando estava no apartamento com ele dizia: “Agora estamos na nossa pequena ilha, aqui ninguém nos pode separar.” Eu era indescritivelmente feliz. Consegue perceber isto, Doutor?
- Sim - respondeu simplesmente o Dr. Hansen. Que mais poderia ele dizer?
- De repente, percebi que a minha ilha no mar azul, a branca areia e as palmeiras baloiçando não passavam de um sonho que me cegava. Uma viagem a uma imensa, vazia, saudade.
Soluçou novamente, mas a sua voz tinha-se tornado mais firme.
- Uns amigos... são sempre os bons amigos... disseram-me um dia: “Serás tu cega? Não sabes e não vês o que todos sabem? Helmut tem outra namorada. Mandou construir para ela uma casa junto ao rio Taunus, uma bela vivenda. Ela tem dois filhos dele. Quando diz que vai ver as obras, vai quase sempre para junto dela. Para ele não passas de um bonito brinquedo. Uma bonequinha de vestir e despir e com quem se pode fazer tudo. Três dias na Floresta Negra, dois dias em Roma, uma semana em Chipre... e tu mergulhada no sétimo céu deixando que a realidade te fuja. Sais do mundo real assim que te deitas na cama com ele e ele te abraça e tu sentes o seu corpo. Ele sabe isso, sabe isso exactamente e serve-se de ti sem qualquer vergonha. Enquanto tu, louca de amor e feliz, te revolves na cama desejando-o, está ele na sala a telefonar à sua amada no Taunus: `Queridinha, hoje à noite, pode deitar para tarde, mas estarei ao pé de ti...’” É isto que nos dizem os bons amigos.
- Então foi investigar?
- Dirigi-me ao Taunus, estive em frente da vivenda e vi as duas crianças e ela... ela... uma lindíssima mulher do tipo das mulheres do Sul, de longos cabelos pretos, mais nova que eu... tenho agora 36 anos... depois fui para casa e disse para comigo: “Acabou-se, Herta! A tua vida foi-se. Acabou. Deixa que a tua ilha se afunde e afunda-te com ela.” Por que razão ainda hei-de suportar esta vida? Por dentro já estou morta... o corpo vazio já não interessa nada.
- Por isso se dìrigiu ao aeroporto para se atirar da varanda abaixo? Porquê exactamente aí? Existem tantas possibilidades mais.
Ela abanou a cabeça cruzando depois as mãos.
- Tem a ver com a minha ilha de sonho. Eu e o Helmut tínhamos estado uma vez na varanda do restaurante, naquele tempo em que não havia nada a não ser o nosso amor. Nessa altura, tínhamos ficado a olhar para os aviões que partiam, e Helmut apontara para um dos aviões dizendo: “Olha para aquele, vai voar para o Quénia” ou “Lá parte um para as Maurícias. Uma ilha maravilhosa com praias paradisíacas. E ali, o Jumbo, vai para o Japão. Japão... as flores de cerejeira. O país inteiro coberto de cerejeiras em flor, havias de ter visto. Quando as cerejeiras voltarem a florir, vamos ao Japão... “ Era tão bonito, acreditei em tudo. Andava nas nuvens... e não muito longe dali estavam a mulher e os seus filhos. Mas nessa altura ainda não o sabia. Hoje, querendo acabar com tudo, fui até ao terraço, ao sítio onde sonhara com o meu grande amor. Era ali que queria morrer. Parece-lhe assim tão pouco compreensível?
- Agora já não. Mas está viva. E vai continuar a viver. Tem dois filhos... uma avó não pode nunca substituir a mãe. Você deu o salto e o destino decidiu que deve continuar a viver. A morte não a quer ainda. Aceite o facto! Deixe o mal passado acalmar, encerre esse capítulo da sua vida. Fugir não é solução... agarrar a vida ajuda muito mais. Pense em tudo o que ainda pode esperar dos seus 36 anos! Tem alguma profissão?
- Tenho. Antes de me casar era jornalista. Na redacção do jornal Rundschau. Foi aí que conheci o Horst. Era repórter fotográfico e por isso andava sempre em viagem. Quando nasceu o meu primeiro filho, deixei de trabalhar no jornal.
- Pode voltar a trabalhar como jornalista, Herta.
- Já não tenho coragem para isso, Doutor. Sinto-me vazia por dentro.
- Leva o seu tempo até que a alma volte a encher-se. - O Dr. Hansen levantou-se da beira da cama: - Volto já, Herta. São só uns minutos. Ainda temos muita coisa a conversar um com o outro.
Fez um aceno e, pela primeira vez, nos cantos da boca dela surgíu um fraco sorriso.
- Obrigada, Doutor...
Então voltou a fechar os olhos e o Dr. Hansen saiu do quarto.
Os agentes da Polícia estavam ainda na sala de espera folheando revistas velhas e muito manuseadas. Quando o Dr. Hansen entrou, puseram-se de pé.
- Podemos agora? - perguntou o inspector.
- Não. A doente ainda se encontra em estado de choque bastante crítico. - E prosseguiu com sarcasmo: - As pessoas não estão habituadas a matar-se várias vezes. Neste momento não está em estado de prestar declarações. Sou obrigado a evitar que o faça. Além disso, no estado em que se encontra, não consegue falar. Mas posso dar-lhes os seus dados pessoais. A mulher chama-se Herta Frieske.
O agente anotou o nome na sua agenda.
- Morada? - perguntou com aspereza.
- Não faço ideia.
- Não lhe perguntou?
- Volto a dizer-lhe: ela está em estado de choque. O nome foi a única coisa que conseguìmos arrancar-lhe. Voltem amanhã outra vez.
- A Srª Frieske vai ficar aqui na clínica do aeroporto?
Era costume os pacientes, depois dos primeiros cuidados, serem transferidos para o hospital mais próximo. Para isso existiam quatro carros de transporte de doentes e duas ambulâncias.
- Não faço ideia. Amanhã informo-os do seu estado.
- Mas temos de notificar os parentes! - O polícia fechou o bloco de notas com força e com ar provocante. - Ela é de Frankfurt?
- Não faço ideia. - O Dr. Hansen encolheu os ombros: - Os parentes, tanto quanto sei, são notificados pela Polícia em casos de morte. Mas a Srª Frieske está viva... bom dia, meus senhores!
- Um palerma arrogante! - rosnou o inspector depois de o Dr. Hansen se ter ido embora. - Deus vestido de branco. Mas ser médico é uma profissão como outra qualquer...
Na sala de observações, o Dr. Hansen encontrou a enfermeira Lucrécia Bonelli. Estava a rasgar tirinhas de um rolo de adesivo e colocava-as numa caixa niquelada.
- Vemo-nos amanhã, meu querido? - perguntou ela. - Posso estar em tua casa amanhã cedo, por volta das sete e meia. Amanhã é o teu dia de folga.
- A essa hora estou num congresso de medicina intensiva, em Hamburgo.
Foi para junto dela, colocou-lhe o braço à volta dos ombros e deu-lhe um beijo na nuca. Ela inclinou a cabeça, fechou os olhos e suspirou baixinho. Embora tivesse um nome italiano e o aspecto de uma ardente beleza do Nepal ou de Palermo era alemã nascida em Hamburgo. Entrara para a clínica do aeroporto depois de ter concorrido ao lugar de enfermeira. Era previsível que entre ela e o Dr. Hansen se desenvolvesse um caso de amor. O temperamento semelhante, a forma de encarar a vida e a alegria comum a ambos faziam prever uma relação mais íntima entre os dois. Não sabia nada sobre a hospedeira Evi Borges com os seus cabelos ruivos totalmente diferentes dos seus cabelos negros nem da relação que ele mantinha com ela. Caso contrário teria certamente havido um drama siciliano. A habilidade do Dr. Hansen em dividir o seu tempo entre Evi e Lucrécia fazia que as duas nunca se tivessem encontrado. Quando Evi se encontrava em viagem de serviço para a Austrália, Singapura, Hong-Kong ou São Francisco deixava-se envolver pelo apetite sexual de Lucrécia. Se Evi se encontrava por dois ou três dias em terra, ficava indisponível para Lucrécia. Desculpava-se então com os seus muitos parentes a quem tinha de ver um por um. Como todas as apaixonadas, Lucrécia acreditava nesta conversa. Era sempre só por três dias. Depois disso, podia voltar a atacá-lo como uma gata selvagem. Estranhamente era só a força do Dr. Hansen que permitia esta situação. Mas quando se está no fim dos 30 anos... bem!
- Amo-te - sussurrava agora Lucrécia na sala de observações, encostando-se a ele. - Cada dia e cada noite sem ti põe-me maluca.
- Exageras, meu tesouro! - O Dr. Hansen olhou para o relógio de pulso. Dentro de poucos minutos Evi aterraria, se o avião chegasse a horas. Tinha de ir imedìatamente para casa e preparar tudo para a sua chegada. Uma garrafa de champanhe, lagosta Termidor, rolinhos de presunto com espargos - tudo já encomendado para ser disposto de forma atraente sobre a mesa.
- Porta-te bem...
- É tudo, amorzinho?
- Tens uma difícil noite de serviço à tua frente.
- Nunca te passou pela cabeça que posso vir a ser-te infiel?
- Nunca. Uma maravilha como eu não encontras nunca mais.
- Macaco vaidoso! - Riu-se enquanto ele voltava a beijá-la aninhando-se no seu abraço. - Mas, como sempre, tens razão. Dorme bem!
- Obrigado, meu tesouro.
O Dr. Hansen voltou à enfermaria para ver Herta Frieske. Esta estava sentada na cama e sorria-lhe.
- Já nos sentimos melhor agora, não é verdade? - disse o Dr. Hansen.
- A cabeça ainda está confusa e dói-me.
- É o pequeno castigo para um disparate tão grande! A enfermeira Britte vai dar-lhe um remédio para as dores. Depois uma ambulância leva-a à clínica do Norte.
- Porquê, Doutor? - Os seus olhos azuis voltaram a fazer-se grandes e redondos.
- Para onde quer então ir?
- Para casa.
- Nesse estado?
- Não estou em estado nenhum.
- Quer matar-se. Já é “estado” suficiente. Quem me garante que não sai daqui para se atirar para debaixo do primeiro carro?
- Prometo-lhe, Doutor.
- As promessas dos suicídas não valem nada.
- Podem levar-me para junto dos meus filhos, da minha mãe. Não servem de garantia?
- Tenho... tenho as minhas dúvidas, Herta.
- Quer enfiar-me numa camisa de forças, não é verdade?
- Palavras demasiado fortes. Quero que seja observada por um psiquiatra.
- Vem a dar no mesmo. Quando era repórter fui visitar uma clínica dessas... era um inferno! Durante noites não consegui dormir. Tinha a garganta como que estrangulada.
- É assim que os saudáveis vêem as coisas. Para os doentes é a salvação.
- É para aí que me quer mandar? Doutor, antes disso salto mesmo para debaixo de um carro.
? - Segundo as leis tenho de a deter. Uma tentativa de suicídio...
- Quem é que precisa de o saber? E porquê?
- O meu relatório dos doentes...
- Também pode registar “ferimentos na cabeça em consequência de uma queda”. O que até é verdade. Nem sequer precisa de mentir.
- A Polícia já tem conhecimento dos factos.
- Deu-lhes a minha morada?
- Não. Também ainda não sei qual é. Só sei o seu nome.
- Pouco pode fazer com isso, Doutor. Deixe-me ir embora. Por favor...
- Está a pedir-me que cometa uma infracção.
- Não. Estou só a pedir-lhe que seja humano.
- Discutir consigo, Herta, é trabalho difícil. Vou falar com o meu colega, Dr. Grãfe, e calculo que ele a deixe ir para casa de ambulância.
- Obrigada, Doutor! - estendeu os dois braços na direcção dele. - O senhor é maravilhoso.
Pegou-lhe nas mãos, beijou-lhas e saiu rapidamente da sala. Deve haver mais doidos como eu, pensou, mas muitas vezes os sentimentos são mais fortes que a inteligência, embora esta seja poucas vezes chamada ao assunto. É uma sorte aqui na clínica sermos um bando de conspiradores... para ser exacto, não procedi muito correctamente neste caso.
Meia hora mais tarde a ambulância levava Herta Frieske até uma casa num bairro próximo de Bad Schwalbach.
Depois de tocar a campainha, ouviu dentro de casa as vozes dos filhos.
Então encostou a testa ferida ao aro da porta e começou a chorar. Contudo, eram lágrimas completamente diferentes das que chorara durante a sua tentativa de saltar para a morte...
A enfermeira Britte Happel estava nervosa.
Havia algum tempo que o Dr. Grãfe o notara... enquanto se ocupava de um passageiro subitamente atacado de cólica renal e que se torcia com dores dizendo repetidamente: “Agora já não posso ir para Milão, Doutor! Tenho de estar amanhã em Milão senão perco um born negócio. Sou comerciante de têxteis e se a concorrência me rouba o negócio, fico nu. Tenho de ir a Milão, Doutor!”
- O avião já partiu - disse o Dr. Grãfe. Tinha dado ao homem uma forte injecção contra as dores que faria efeito dentro de dez minutos. Mas a injecção não passava de um paleativo. O doente tinha de seguir tratamento num hospital.
- Então tenho de seguir no próximo avião, Doutor. Há um avião para Milão que parte tarde.
- Vejo o caso muito negro.
- Porquê? Já me deu a injecção e dentro de meia hora estou bom! O senhor não percebe: eu tenho de ir a Milão. Se não estiver amanhã na apresentação fico com os restos dos tecidos. Pode ser a minha ruína.
- Os melhores tecidos não lhe vão servir de nada se estiver estendido numa caixa estreita! - respondeu o Dr. Grâfe com uma certa rudeza. Voltou a olhar para Britte; estava novamente a olhar para o relógio, inquieta. Estava a cortar um grande pedaço de compressa, certamente destinada ao jovem deitado sobre a marquesa. A polícia do aeroporto tinha-o trazido completamente bêbado; tinha ferido o braço não sabia onde. O olho esquerdo inchado indicava que também tinha andado à pancada.
- Esta não é a minha primeira cólica renal - disse o negociante de tecidos.
- Exactamente! - disse o Dr. Grãfe acenando. - É por isso que vou mandá-lo imediatamente para o hospital. Já telefonei para o Hospital de Santa Isabel onde ainda têm camas vagas.
- Nem pensar!
O doente levantou-se, quis andar mas não conseguiu. A injecção começava a fazer lentamente efeito, as dores começavam a abrandar.
- Só narcotizado me levam para o hospital.
- Também o podemos fazer. Se eu o deixar ir embora, tem de assinar uma declaração dizendo que sai por sua conta e risco.
- Assino tudo o que quiser desde que possa ir para Milão!
- Como quiser...
O Dr. Grãfe deixou-o sozinho e dirigiu-se à enfermeira Britte Happel. Como sugeria o seu nome nórdico, também assim era o seu aspecto: grande, magra, loura, de compleição atlética. Uma rapariga que parecia saída da frescura do mar ou de um campo de trigo maduro. Que ela e o Dr. Gráfe se amavam ainda era segredo. Durante o trabalho na clínica portavam-se com toda a correcção e de forma impessoal, exceptuando algumas graças como era habitual todos fazerem.
- Que se passa afinal contigo? - perguntou em voz baixa, colocando-se ao lado de Britte.
- Nada.
- Hoje estás muito inquieta!
- Não é realmente nada, Rolf.
- Mas eu estou a ver. Passa-se qualquer coisa que te põe nervosa. Diz-me o que é! Se puder ajudar-te... Discutiste outra vez com o teu padrasto?
Ela abanou a cabeça demasiado depressa para poder ser credível.
- Talvez seja... por não estares comigo há três dias... - disse ela. - Pode muito bem ser por eu ter saudades tuas...
- Então hoje à noite vamos sair juntos. Estamos ambos de folga. Vamos até à Alsácia, comemos uma refeição maravilhosa e depois dormimos numa cama celestial. Combinado?
Acenou que sim e dirigiu-se ao bêbado com o braço ferido. O Dr. Grãfe sentou-se à secretária e preencheu o formulário para o comerciante de tecidos.
“Deve estar a aterrar”, pensava Britte, enquanto ligava o braço do homem. O avião da Qantas, de Sydney, tinha feito escala em Bombaim e encontrava-se agora de certeza a entrar no aeroporto. Nesse avião vinha Hubert Lawinsky, um dos mais queridos comissários de bordo da companhia aérea australiana. Um tipo inteligente, parecendo mais novo que os seus quase 40 anos, sempre elegante, mesmo depois de trocar o uniforme pelo seu fato de civil. Um homem do mundo, com boas maneiras, gostando de se divertir e tendo sempre uma surpresa. Da última vez trouxera um pedaço de madeira, pintado com as figuras mágicas dos aborígenes, os primitivos habitantes da Austrália que ainda viviam nas enormes planícies e para quem a terra era o pai e o céu a mãe.
Lawinsky era muito diferente do Dr. Grãfe. Não planeava nada, não organizava a sua vida, vivia simplesmente cada dia. Aceitava tudo conforme lhe aparecia e tirava disso o maior partido. Parecia desconhecer as preocupações. Desgosto, era uma palavra desconhecida para ele. Estava sempre bem disposto; era um homem alegre, cujo sorriso contagìava todos. Era o comissário querido dos passageiros da Qantas. Ele sabia-o, servia-se disso para estabelecer contactos e tinha construído com o decorrer dos anos um círculo de relações que ia dos industriais aos magnatas do petróleo. Um grande número de passageiros habituais cumprimentavam-no já como a um velho amigo. Uma estrela de cinema de Beverly Hills tinha-o convidado uma vez para o seu castelinho branco, onde ele permanecera uma semana tendo diariamente amado uma outra beleza de Hollywood. Ter um pouso em todos os sítios do mundo fazia parte da alegria de viver de Hubert Lawìnsky.
Britte tinha-o conhecido na clínica do aeroporto quando ele lá levara, para ser radiografado, um passageiro que caíra das escadas rolantes tendo feito algumas contusões.
Logo à primeira troca de olhares com Britte, Lawinsky ficara a perceber que pelo menos tinha conseguido despertar o interesse da loura enfermeira. Para um mestre do contacto silencioso e discreto tinha sido fácil perceber a situação.
A confirmação tivera-a quando a loura enfermeira acabara o seu dia de trabalho na clínica. Lawinsky estava na entrada e dirigiu-se a ela como se tivesse estado sempre à sua espera.
- Tenho de voltar a vê-la - disse com um cativante ar arrapazado. - Desculpe-me...
Britte reagiu fazendo um ar ligeiramente distante mas isso não incomodou o experiente querido das mulheres.
- Por que razão quer voltar a ver-me? - perguntou Britte. O facto de não ter seguido o seu caminho já era em si uma vitória. Lawinsky atirou a sua primeira seta:
- Porquê? Basta olhar-se ao espelho para perceber.
Britte procurou uma resposta mas não conseguiu nenhuma. Em vez disso respondeu:
- O acidentado está bem. Foi mandado para casa. Não tinha mais que algumas amolgadelas e um joelho esfolado.
- Tenho estado a pensar no que hei-de fazer para poder dar entrada na sua clínica e ser tratado por si. Basta que tenha um galo?
- Não. - Teve de rir-se, e quem se ri perde as defesas. - É preciso mais que isso. Qualquer coisa partida, um enfarte, um ferimento grave...
- Não posso dar-me ao luxo de ter isso tudo.
- De vez em quando também temos um parto prematuro... - disse Britte.
- Também não posso servir-me disso, verdade que não. - Lawinsky fazia o seu irresistível sorriso. - Mas posso fingir um colapso.
- Os nossos médicos davam logo pelo truque, quanto mais não fosse pelos valores da tensão arterial.
- A minha tensão sobe a 220 quando olho para si.
- Nesse caso dão-lhe uma injecção e fica a descansar num gabinete durante algum tempo. Aí ficará sozinho.
- Não tenho hipóteses?
- Não.
- E se eu a acompanhar até ao seu carro?
- O Dr. Grafe leva-me a casa. Está à minha espera na porta 32.
- O Dr. Grafe leva-a todos os dias a casa?
- Só de vez em quando.
- Então amanhã?
- Não está de serviço?
- Acabo de chegar da Austrâlia e agora tenho dois dias livres.
- Austrália? - Britte levantou as sobrancelhas. - Gostava de lá ir. E à Nova Zelândia... Deve ser maravilhoso.
- Uma terra como veludo e seda. Se não der um pontapé nas canelas de Hubert Lawinsky... é o meu nome... esses sonhos podem tornar-se realidade. Posso voltar a vê-la? Certamente tem telefone.
- Talvez...
- Talvez é meia vitória.
Lawinsky sabia-o e a sua experiência também desta vez se confirmou. Britte Happel rabiscou o seu número de telefone numa folha do bloco de receitas.
Firmemente e com o motor roncando suavemente, um BMW preto seguia pela auto-estrada A43 em direcção ao norte. Embora o aeroporto de Frankfurt em Main fosse o centro do tráfego aéreo na Europa, bombeando para todos os outros países um sem-número de aviões, como se fosse um poderoso coração, o condutor do BMW deixou-o ficar para trás. O Dr. Fritz Hansen ia para casa. Devagar, como sempre, quando saía do serviço. Para ele era quase um ritual: logo que terminava a batalha, passava em revista, em pensamento, os principais acontecimentos do dia. Era uma forma de se proteger do ritmo demasiado cheio do seu dia-a-dia na clínica. Manter a cabeça levantada, não se deixar abater, era o seu lema.
Nesse dia, por exemplo, às oito horas já estava sentado à secretária, tentando preparar pelo menos as notificações mais importantes a mandar às famílias e não conseguira senão despachar metade. De repente começara o pandemónio. Tinha ido à sala de operações pelo menos seis vezes para tratar dos casos mais complicados: uma aspiração brônquica num senhor de idade que de puro medo de voar tinha vomitado, deixando que lhe entrasse no aparelho respiratório uma parte do que tinha no estômago com as consequências habituais no sistema circulatório, cólicas de estômago e de rins. E, para acabar, a coroar tudo aquilo, a suicida a quem fizera um sermão sobre o sentido da vida.
- Devia ter sido padre... - tinha ela dito, e fora a expressão da mais pura ironia. No entanto mais tarde tinha-lhe agradecido. “Onde foste tu, afinal, buscar aquelas palavras?” perguntava a si mesmo. Um tanto patéticas, é certo, mas com elas tinha encontrado o caminho para o ponto que de novo a trazia ao de cima. Assim, tinha sido um bom final para um dia mau. Pois bem! E para além disso ainda havia outra recompensa: Evi, a jovem hospedeira ruiva.
Deitou uma olhadela ao relógio do painel de comandos e num gesto reflexo carregou no acelerador. Raios, com certeza já estaria à porta à espera. Não tinha a chave de casa, pois partilhar a chave poderia ser muito perigoso!
Voo LH637, Carachi - Teerão - Ankara - Frankfurt. São mais de quatro mil quilómetros. Mais de sete horas de tempo de voo a dez mil metros de altitude por cima de dois continentes, sobre montanhas, florestas, cidades, campos. Por um lado, andar à frente do tempo, por outro combatê-lo-umas vezes és mais novo, logo a seguir mais velho. Os mapas de fusos horários mostram-no bem. O sistema horário do mundo obedece a regras sempre iguais. Tudo foi pensado e calculado, pois o corpo tem as suas horas e as suas regras próprias. No primeiro ano não se dá por isso, só às vezes um ligeiro mal-estar e depois o sono que se sente na ponta dos dedos e no peso das pálpebras. No segundo e no terceiro ano pode tornar-se um problema. Muitos não conseguem suportar mais tempo e saem. E os outros? Bem, esses já se habituaram, dirão. Mas o que realmente acontece, quem o sabe? Em qualquer altura e em qualquer lugar, o corpo estabelecerá a fronteira.
Evi Borges sentia-se desfeita e morta de cansaço quando retirava as suas malas do cacifo da frente e as colocava no carrinho de transporte.
O avião só trazia metade da lotação tendo voado abaixo da sua linha de rentabilidade. A tripulação sentia-se desgostosa com isso; para o pessoal de cabina, comissário de bordo e as suas onze hospedeiras, tinha sido um voo muito agradável: só tinham tido de controlar metade dos cintos de segurança, fornecer metade dos jornais, comprimidos para as dores de cabeça e refeições. Tinham tido as habituais reclamações, as habituais perguntas estúpidas e os habituais cumprimentos, embora o cartão de visita de um senhor Alyen Singh, presidente das Construções Singh, fosse um pouco diferente: “Você é muito linda, senhora, com o cabelo magnífico. vou estar muito só em Frankfurt. Não sabe uma sugestão?”
Evi tinha abanado a cabeça e como uma hospedeira deve ser bem educada em todas as situações, tinha devolvido o cartão ao “presidente”, dizendo: “Desculpe, não.”
Mas agora tinha acabado. Já tinha a mala que atirou para o carrinho, empurrando-o até à Alfândega. E enquanto assim seguia, alta, o cabelo ruivo preso com uma fita verde em rabo de cavalo, cansada, mas, apesar disso, mantendo no rosto claro e bonito um ar decidido, os olhares gulosos dos passageiros masculinos continuavam a segui-la. Meu Deus, tinham tido tempo suficiente para a perseguir! E agora? Não tinha dado resultado? Não podia ser verdade. . .
Como sempre e desta vez de consciência totalmente tranquila, Evi dirigira-se para a zona verde da Alfândega onde passava quem nada tinha a declarar. Mas o tipo da Alfândega que fazia o controlo parecia não estar satisfeito. Fez-lhe sinal para parar.
- Não! - disse Evi. - Tem mesmo de ser?
- Às vezes tem de ser. Não sabe isso?
Para manter o prestígio, mas também para não colocar em situação desagradável os passageiros saídos de um longo voo, junto ao balcão da Alfândega havia uma sala bem conhecida da maior parte das tripulações e a que chamavam “a cave”. Aí, sob a luz fria do néon, Evi colocou a mala e o saco de viagem sobre a mesa ficando a ver, impotente de raiva, o horrível agente de alfândega a remexer na sua roupa interior.
- Estou a dizer-lhe: não há aí nada que possa interessar-lhe verdadeiramente nada.
- Não? Então o que tem aí na carteira?
- Um elefante.
Manteve a cabeça inclinada; era novo, tinha olhos cinzentos como um peixe e borbulhas na testa.
- Gosta de contar anedotas, não é?
Teria gostado de lhe responder “ anedota é você”, mas não o fez para evitar mais problemas.
O fecho de correr estava aberto, a mão do fiscal remexia lá dentro e a testa encheu-se-lhe de rugas quando tirou para fora o elefante de ébano preto decorado com incrustações de madrepérola. Oito horas antes Evi tinha-o adquirido num antiquário de Karashi, depois de muito regatear.
- Para que é isto? É para vender?
- Meu Deus! - replicou Evi zangada: - É um presente. É para o caso de estar interessado: trouxe-o para um homem que gosta de elefantes mas não se comporta como um deles.
O rapaz fez-se vermelho mas recebeu o remoque em silêncio. Até lhe abriu a porta dizendo:
- Tudo esclarecido. Então, até à próxima...
Hansen gostava da sua casa com as velas acesas. Também ele se deixava incendiar sempre que tinha de passar um serão sozinho em casa. Durante o dia poucas vezes se encontrava em casa, no seu apartamento da Rua Waldhaus. Mas à noite gostava de ouvir através do seu altifalante As Quatro Estações de Vivaldi. A luz reflectia-se nos copos de cristal e em todos os quadros que decoravam as altas paredes a que se encostava uma galeria.
Hoje, para receber Evi, tinha arranjado muito bem a mesa. Numa jarra em forma de taça floriam duas rosas. O ambiente estava quente e confortável, pois Fritz Hansen sabia criar a atmosfera própria ao amor. Era assim que já nos seus tempos de estudante em Gtittingen era conhecido pela alcunha “Fritz Bonitão”. Como se pretendesse sublinhar o facto, trazia vestido um roupão de seda. Não era só ele, mas tudo naquela sala parecia esperar pela fenomenal ruiva, Evi, que acabava de tocar à porta.
“A pontualidade”, pensou Hansen, “faz parte da formação das boas hospedeiras”, e por isso as velas ainda estavam frescas.
Foi abrir.
A primeira coisa que viu foi um elefante. Posto directamente sob o seu nariz. E que exemplar!
- Caramba! - exclamou ele. - Caramba, Evi, que classe... _ Um beijo!
Hansen beijou-a, ou melhor, tentou beijá-la.
- No elefante, palerma. Foi por um fio que um idiota na alfândega não ficou com ele. Pronto, agora deixa-me finalmente entrar.
O Dr. Hansen levou o elefantezinho para a sala e colocou-o com muito cuidado sobre o aparador de madeira onde já se encontrava uma manada completa de elefantes: elefantes do Uganda, do boméu ou da Tailândia. Até elefantes da China; pequenas maravilhas de marfim branco-mate. O novo não era o maior, mas com a luz a bater-lhe em cima, os embutidos brilhavam como prata e os arreios de cobre pareciam ouro puro. Sobressaía de todos os outros.
Evi, a sua Evi...
Virou-se para ela. Ali estava ela. Fundas olheiras, pálida, exausta depois do voo. Já conhecia a situação. Em breve entraria na banheira, ele iria massajar-lhe os ombros e seria talvez como em muitas das outras vezes quando regressava: meter-se-ia na cama cambaleante e calada, tropeçando como se fosse cega.
- Que te parece um copo de champanhe? - perguntou ele. - Agora não há nada mais importante que pôr a circulação de novo a funcionar.
Mas ela não se sentou. Olhou à sua volta, agarrou com as mãos as costas de um cadeirão como se tentasse sair de um sonho e enfrentar uma nova realidade.
- Bastante cansada, pobrezinha, não estás?
- Cansada? Estou morta!
- Tens fome? Olha para o que preparei.
Embora sorrisse, abanou a cabeça negativamente.
Portanto, o jogo estava a ser jogado contra as regras. Que se passava com ela hoje novamente? Traz um presente e fica a olhar para mim como se eu fosse um pedaço de madeira ou nem isso, como se fosse uma sombra.
Desde que a conhecia que se interrogava a seu respeito sem perceber muito bem a sua maneira de ser.
Havia oito meses aparecera subitamente de ambulância, alta e tão bonita que até os olhos lhe doeram. com aquela cabeleira parecendo chamas a arder. As pessoas ficavam a olhar para ela. Ele também. Ficara simplesmente enfeitiçado. A beleza feminina tal como ela a encarnava provoca na maior parte dos seres humanos uma incrível admiração ainda antes de provocar desejo. Uma admiração que provoca acanhamento e, por assim dizer, durante muito tempo só deixa ver a perfeição.
- Desculpe-me, Doutor, por aparecer assim de repente - tinha ela dito -, mas poderia observar-me?
- com todo o gosto. É essa a minha função.
Uma pequena mentira, pois habitualmente os primeiros contactos eram feitos pela enfermeira de serviço ou pelo assistente mas seria preciso dizer-lhe isso?
Tinha a palma da mão direita muito inchada. Evi acabava de chegar de um qualquer sítio em África, Joanesburgo, ou talvez Pretória. De qualquer modo, uns amigos tinham-na convidado para sair e, como recordação, trazia espetados na mão grossos picos de cacto, que tinham provocado uma tal inflamação, que já não conseguia mexer os dedos. Existia o perigo de a infecção se espalhar. Os gânglios das axilas já estavam inchados. Quando Evi tirara a blusa da Lufthansa para ser examinada, Hansen ficara perante uma visão que quase o fizera esquecer a sua estrita obrigação de médico.
Ela pareceu ter dado por isso. Um rápido e inquiridor olhar dos sérios olhos verdes fez que ele se envergonhasse um bocadinho.
- Sabe, Doutor, isto já me dói muitíssimo e tenho medo de não conseguir chegar a casa. Ainda tenho uma hora de caminho com o carro.
- Onde mora?
Estavam no serviço nocturno e passava um pouco das onze horas. O local que ela indicara - Dieburg - ficava a cerca de quarenta minutos de Frankfurt na direcção de Darmstadt.
- Tem razão. com essa mão não pode nem deve guiar. Primeiro vou dar-lhe uma injecção, depois faz-se uma incisão e tira-se a porcaria toda para fora. Não podemos esperar. Não há que hesitar, temos de proceder imediatamente.
- E depois?
- Bem, depois - riu-se -, depois vamos ver...
Não era difícil chegar a Dieburg com uma mão ligada desde que bem tratada. A Lufthansa também cuidava dos seus funcionários e havia a sede da companhia em Frankfurt assim como vagas no hotel. Ficou, portanto, surpreendido por ela aceitar a sua oferta de a levar para casa dele, que ficava perto, e onde tinha uma cama disponível para os amigos, sem mais que um aceno de cabeça.
Nesse dia, tal como agora, fora primeiro ao frigorífico buscar uma garrafa de champanhe. E tal como agora, ela recusara. A única coisa que pedira fora um copo de leite. Por fim, tinha-a levado para a cama do pequeno quarto de hóspedes. Tinha dito “obrigada”, tinha-se deitado, fechado os olhos e virou-se para o outro lado. A única coisa que no dia seguinte o fazia lembrar-se dela era o bilhetinho sobre a mesa: “Obrigada. Dormi maravilhosamente. Talvez voltemos a ver-nos.”
Tinham realmente voltado a ver-se. Ainda não tinham passado duas semanas quando ela aparecera na clínica. No embrulho que trazia debaixo do braço encontrava-se um pequeno elefante africano maravilhosamente talhado. Desde aí a fila de elefantes fora-se tornando cada vez maior e o Dr. Fritz Hansen já pensava em mandar fazer outra prateleira para colocar a sua manada de elefantes. Mas hoje não lhe ia dar leite, e o quarto de hóspedes havia muito que estava fora de moda. Ao menos isso tinha conseguido. Graças a Deus...
Os faróis atiravam a sua luz crua para o chão arenoso, e como de vez em quando as luzes falhavam, as sombras tornavam os obstáculos ainda mais ameaçadores do que já pareciam ao Dr. Grafe, montado numa motocicleta. Tinha mandado gravar o número quatro na máquina, uma moto de competição que deixava um rasto atrás de si. A rampa de saltos parecia surgir do negro céu da noite.
À sua direita, a uma distância de talvez um metro, viu Beni Radek. O blusão de cabedal brilhava e com o polegar esfregava o rosto escuro. Grafe observava-o e a toda a cena como se estivesse a observá-la através dos raios-X. Subitamente toda a excitação desaparecera dando lugar a uma quase espantada timidez e voltou a interrogar-se: “Raios, que procuras tu aqui? Não tens já que chegue? Em vez de desfrutares de um belo serão depois de dez horas de serviço na clínica, ou de simplesmente te deitares no sofá do teu apartamento, sozinho ou acompanhado, arriscas os ossos nesta malvada pista de competição deixando que um troglodita como o Beni Radek faça de ti parvo. Porquê, afinal? Que pretendes esquecer nesta pista de merda?”
Aproximava-se agora do ponto de salto. AHonda deixou de roncar, hesitante.
- Vá lá, Doutor, mostre o que vale - berrou Radek.
Gás! Suave, agora a segunda, não muita força, senão as rodas patinam e perdes aderência - não, agarrava-se impecavelmente, a todo o gás...
Sentia o fresco do vento da noite através do blusão de cabedal e acelerou ainda mais. O obstáculo crescia à sua frente, já não subida, já não rampa mas uma parede escura...
O coração de Grafe batia com força. Quem disse que nestas alturas Se fica absolutamente calmo? Para onde vai toda aquela adrenalina? Qual calma! Mas a máquina manteve-se na pista, o estômago apertou-se-lhe e então o homem e a máquina voaram por cima da ala, elevando-se, em pé sobre os estribos. Sentiu a roda traseira tocar no chão, sentiu-se orgulhoso, exultante, mas só por uma fracção de segundos. Tentou readquirir o equilíbrio, subir outra vez a roda da frente mas em vão. Nada resultou, nem truques nem qualquer outra tentativa.
Rolf Grafe voou pelos ares, bateu com os ombros e as dores atravessaram-lhe o corpo. Fechou os olhos, enrolou-se no chão sobre si mesmo e ficou quieto enquanto a máquina continuava a trabalhar sobre a areia. Levantou-se. Entre os seus dentes qualquer coisa rangia; cuspiu. Porcaria e areia. Tentou pôr-se de pé. Ainda conseguiu, mas o pior era o ombro! Os chumaços cosidos no fato de piloto mal tinham amortecido a pancada.
Radek berrava:
- Homem! Rolf, que merda arranjaste agora? Está tudo em ordem?
Grafe acenou que sim, mas nada estava em ordem. E Radek tinha absoluta razão: voltara a fazer merda...
Veio-lhe à memória o que Fritz Hansen lhe tinha dito na semana anterior:
- Motocross e corridas de obstáculos? Estás a ficar maluco, Rolf? Por mim podes bem ir jogar para os casinos ou para os bares, vai pescar enguias nos aquários, mas motocross e obstáculos... e ainda por cima sendo tu cirurgião? Que nós, os cirurgiões, somos malucos, sei-o melhor que ninguém, mas entre a maluquice e a fraqueza de espírito ainda existe uma certa diferença. Sim, tens bem a consciência de que de cada vez que o fazes colocas tudo em jogo?
Tinha bem a consciência disso. Na semana em que tivera a discussão com Fritz Hansen, não tinha ido à sala de operações por ter magoado o pulso direito.
E hoje? com cuidado, muito cuidado, Rolf Grafe mexeu os dedos da mão esquerda. Conseguiu. Bem, graças a Deus não estavam partidos. Só tinha o ombro magoado. Uma massagem com Mobilat, talvez também uma injecção de Novocaína e então ficava bem...
Radek veio a correr:
- Vieste por aí abaixo como um barril. Não mantiveste o peso em equilíbrio, Doutor.
- Ora! Ajuda-me a levantar...
Grafe dirigiu-se ao café. O telefone estava ao lado de uma caixa de uísque onde Radek colocara uma dúzia de velas. Doía-lhe a mão ferida enquanto marcava o número de Britte. Doía-lhe bastante. E se não ficasse bem até ao dia seguinte de manhã? Que aconteceria? Muito simples: voltava a haver zaragata...
Na bonita água-furtada pintada de cor-de-rosa de um velho edifício da Rua Schongauer, em Frankfurt, Britte Happel, a segunda enfermeira da sala de operações da clínica do aeroporto, acabava de colocar o telefone no descanso, sem zanga mas muito decidida.
- Que se passa agora?
A pergunta veio da cozinha onde Elli Wondrasch, a amiga de Britte que com ela partilhava o apartamento, remexia na frigideira qualquer coisa a que chamava “tortilha”. Havia quatro dias que Elli regressara das suas férias em Ibiza, queimada e arranhada, e desde então para ela só existia vinho espanhol, conhaque espanhol, pratos espanhóis e recordações de homens espanhóis.
- Ouve lá, não queres que te ponha no prato um pedaço para ti?
Apareceu com um tabuleiro. Era verdade: vinho espanhol! Mas o facto não melhorou a disposição de Britte.
- Então, que se passa?
- Rolf telefonou. Ia levar-me a um restaurante italiano. E agora, agora está ainda no seu malvado clube de motociclistas porque parece que qualquer coisa voltou a correr mal.
- Ah, sim?
- Que quer dizer “ah, sim”?
- Ah, sim, expressa uma suave forma de espanto, se é que queres saber. E principalmente espanto por deixares que esse rato Mickey desse cirurgião te faça tudo o que lhe apetece.
Rato Mickey?
Britte franziu a testa.
- Anda lá, come qualquer coisa.
Britte olhou para a massa castanha e queimada que deveria ser uma “tortilha” ou o que quer que fosse.
- Que ideia é essa de rato Mickey?
- Bem, ele não é propriamente alto. Quero dizer, no que respeita a altura, fica meia cabeça abaixo da tua.
- Não é por isso que precisas de chamar Rato Mickey ao Rolf. Que culpa tem ele do meu metro e setenta e nove? É um tipo decente. E um excelente médico. E se é meio maluco, qual destes tipos não é também um pouco louco? Conheces algum?
Elli concordou que nisso ela tinha uma certa razão. Espetou o garfo na tortilha, cortou um pedaço que colocou na boca. Estava deliciosa, mas que estava Britte a dizer?
- Talvez até tenhas razão. - Ouviu espantada as palavras de Britti - Realmente não preciso que me façam favores. Por que havia de precisar?
Agarrou num cigarro, acendeu-o e deixou-se cair numa cadeira de lona. Tinha vindo de Freudenstadt na Floresta Negra para este mundo louco de Frankfurt. Estava tão satisfeita com a sua formação feita em Túbingen e com os conhecimentos que tinha como com o seu aspecto físico. Apesar da altura tinha um corpo perfeito, cabelos louros compridos e lisos e um rosto juvenil e vivo. Tinha quase perdido a pronúncia suábia mas não conseguia sair muito para conhecer melhor a cidade. Tinha-se concentrado na clínica.
Chegou o aparelho para Britte e com a outra mão fez o sinal da cruz. Britte teve de se rir.
- Está muito bem disposta - ouviu no auscultador. - Por minha causa, espero bem. Como é connosco? Também gostava de me pôr mas o meu estômago está a dar horas. Vamos jantar os dois? A qualquer lado onde seja acolhedor e onde haja qualquer coisa realmente boa para comer? Que lhe parece?
__ Bem - disse Britte. - Muito bem mesmo...
- Isto aqui não é uma clínica, mas uma prisão, rapariga! tinha-lhe dito Rolf Grafe logo ao princípio. - Mesmo depois de teres acabado a ronda dos ossos, a dança continua. Não podes simplesmente comportar-te como os seres normais. Precisas... tens de fazer qualquer coisa. A maior parte das vezes vai apetecer-te fazer qualquer coisa muito especial.
Assim como ele? Um cirurgião que fora das horas de serviço saltava obstáculos em cima de uma moto todo-o-terreno...
Gostava de Rolf Grafe. Parecia bastante reservado mas às vezes conseguia ser terno e incrivelmente divertido. Mas agora? Encomendado e não recolhido? Que se trame!
- vou sair para jantar com aquele tipo da Qantas - informou ela.
Elli levantou a cabeça.
- com quem?
- Um comissário de bordo da Qantas.
- Que é isso da Qantas?
- A linha aérea australiana. Disse que telefonava às nove horas. Cabelos pretos e olhos verdes... mais alto que eu um palmo. O homem é um espectáculo!
- Comissário de bordo? Isso que é?
- Chefe do pessoal de cabina, hospedeiro-chefe, ou lá o que é.
- Esses são todos uns vaidosos, meu tesouro. É melhor deixares-te disso.
- Vaidoso? Ele? Ele não!
- Australiano? E tu com o teu inglês?
- O meu inglês não é assim tão mau como isso. Mas ele fala fluentemente alemão. Chama-se Hubert e a mãe é alemã.
Olhou para o relógio.
- Se o telefone tocar e for o Rolf, diz-lhe que saí. No caso de ser o outro...
O telefone tocou. Elli bebeu um golo do seu vinho espanhol, soltou um gemido, dirigiu-se ao aparelho e levantou o auscultador.
- Sim? Quem? Ah! Sim... um momento por favor... Sim, ela está.
Tinham-no apanhado! Já não conseguia sair dali. Sem dúvida que o tipo estava pronto. Já estava meio metido na máquina trituradora. Nem sequer sabia até que ponto já estava morto. Ainda pensava que talvez fosse possível safar-se uma vez que o eléctrico seguia bastante depressa. Pois sim!
- Sempre com toda a calma! - Tacker fez uma careta. Parecia ter três olhos, pois o tipo tinha-lhe dado um murro. Em pleno parque de estacionamento. Em frente de toda a gente. Tacker não podia esquecer uma coisa daquelas.
- Somos bons cidadãos - disse Tacker. - Sobretudo no eléctrico, um transporte público. Comportamo-nos de acordo com as regras.
- Sempre na linha! - berrou o seu companheiro. - Sempre na linha, em todas as situações!
- Tem de ser posto fora - acrescentou o terceiro do bando. - Tem de ser posto fora do eléctrico.
- E depois - disse Tacker enquanto olhava pelo olho negro para as argolas de ferro que acabara de enfiar nos dedos -, depois vamos tratá-lo muitíssimo bem...
O tipo aproximava-se novamente. Então, ficou cheio de medo.
- Sempre na linha, em qualquer situação! - berravam todos. E as Pessoas olhavam aterrorizadas.
O jogo de futebol no estádio da Floresta Negra tinha sido um fracasso. O seu clube tinha perdido. Mas agora, quando agarrassem aquele menino condutor de Alfa Romeu, aqueleyuppie ou lá o que era, a viagem de Dortmund até Frankfurt teria talvez valido a pena... As luzes passavam a correr. O carro eléctrico roncava através do túnel. Thilo Reinartz percebia perfeitamente que os três tipos o observavam e falavam dele. Forçou-se a aguentar os olhares. “Porcos, pensava ele, escumalha, zombies do futebol, assassinos”.
Thilo Reinartz dirigiu-se para a argola redonda do sinal de alarme.
Descobrira a a solução? Ninguém iria ajudá-lo. Era isso... Mas, por que lhe dera na cabeça para estacionar o carro no parque de estacionamento do estádio? Como se não soubesse o que ali se passava depois de um jogo. Vê-se na televisão, lê-se nos jornais disputas, pancadaria, linchamentos. E ainda por cima mesmo no centro da agitação! Já lhe tinham arrancado a antena. Depois tinham tentado riscar o Alfa. E ao dar um murro no tipo mais atrevido que lhe tinha arrancado a antena num gesto reflexo de defesa cometera um erro terrível.
Tinham-no perseguido pelo parque de estacionamento todo. Ainda tinha pensado que podia salvar-se entrando no carro eléctrico, mas também isso fora uma ilusão. As pessoas ficavam a olhar e não mexiam um dedo.
Thilo Reinhartz sentia o medo amolecer-lhe os joelhos. Levantou o braço. O desconhecido que se encontrava a seu lado levantou para ele a sua cara gorda olhando-o através dos óculos grossos. De olhar espantado perguntou-lhe:
- Que é que quer?
- Oiça, quero puxar aquela coisa ali.
- Aquela coisa? Aquilo é o alarme. Homem, uma coisa dessas pode ser perigosa. Embatemos todos uns contra os outros. Endoideceu?
- Eu não, aqueles ali!
Thilo Reinartz apontou com o queixo para o bando mal-encarado ao fundo do carro eléctrico.
- Aqueles é que são loucos. Querem dar cabo de mim. Já o tentaram no parque de estacionamento do estádio. E agora estão aqui dentro do carro.
- Oiça lá, por que é que se mete com tipos como aqueles? Não tem ar de ser como eles.
- É isso mesmo... porque não sou como eles! Arrancaram-me a antena do carro. Depois começaram a raspar a pintura. E depois viraram-se contra mim.
- Que tempos estes! - O homem ficou a olhar para ele de sobrancelhas franzidas como se ele fosse o responsável pelos tempos que corriam.
- Escute, estamos a chegar ao aeroporto. Há polícias por todo o lado. Faça-lhe queixa. Eles não se atrevem a ir até lá.
Thilo respirou fundo e pensou: “Esperemos que não...”
- Próxima paragem, aeroporto - ouviu-se através do altifalante situado por cima da sua cabeça.
O comboio eléctrico parou, as portas abriram-se. Logo que tinham começado a entrar na grande estação, começara a procurar ansiosamente com os olhos um uniforme de polícia por entre os muitos civis que ali se encontravam.
Nada. Nem um só agente. Quando fazem falta...
Estava na plataforma da frente da carruagem, o que significava algum avanço. Não deixaria que aqueles porcos de lixo acabassem com ele.
Thilo saltou para fora procurando avançar a toda a velocidade. Talvez eles tivessem desistido - mas não, ouvia-os atrás de si, mesmo antes de se virar e de os ver aproximando-se.
Pronto, agora era correr! Thilo Reinartz tinha 28 anos de idade. Jogava quase duas vezes por semana. Para se manter em forma, já que o seu trabalho na Bolsa assim o exigia.
Thilo corria.
E era como tinha sido no parque de estacionamento: olhos que olhavam, caras que se viravam, uma velha senhora com a mão tapando a boca. Homens que se deixavam ficar de braços caídos, e ninguém, absolutamente ninguém que o ajudasse!
Ao pé de si havia uma sombra.
A escada rolante. E o tipo tentou agarrar-lhe uma perna. Via-se uma qualquer coisa vermelha. Um desses lenços amarrotados, de pirata, que ele tinha amarrado à volta da cabeça. Thilo deu-lhe com o tacão do sapato uma pancada na cabeça, ouviu um berro e continuou a correr para cima!
Um homem gordo meteu-se no seu caminho. Empurrou-o para o lado.
- Deixe-me passar!
- Está louco?
Também este? Depressa... mais depressa. Estão atrás de ti. O lenço vermelho. O bando todo. Ouvia-os respirar. Deve ser esta a sensação que se tem quando os lobos nos perseguem, sem ruído, só se ouvindo a respiração. E o barulho dos sapatos... E as mulheres e os homens que se afastavam para o lado cheios de medo.
Estava no nível das chegadas. Certamente aí, nalgum sítio deveria haver...? Ninguém. Na sua direcção vinham dois pilotos, de uniforme completo e arrastando a bagagem. Mas naturalmente não passavam de comissários de bordo. Mesmo assim pararam ficando a olhar. Nada. Não reagiram.
Orientava-se bem no aeroporto. Havia pouco que se tinha despedido de Uschi no bar em frente. E o piso das lojas: aparelhos eléctricos, artigos para casa, supermercado... luzes ... reclames... e sempre aquela correria atrás de si!
O coração de Thilo quase parava. Faltava-lhe o ar. Os outros emPurravam as pessoas para o lado, atiravam-nas ao chão, ganhavam terreno.
Uma loja de perfumaria. Guerlain e Lanvin e também Balmain... Tudo cor-de-rosa e azul-claro. E uma mulher, possivelmente a empregada, que de braços abertos e olhos espantados impedia a e^ trada.
Mesmo ao lado havia outra porta.
Thilo abriu-a com um empurrão: foi recebido por azulejos, lavatório e espelho. Agora não podia voltar para trás, não podia fugir e não podia continuar a correr. A ratoeira era ali. com as pernas a tremer, ofegante, encostou-se à parede de azulejos.
Aí estavam eles...
Um homem qualquer de pele escura limpava as mãos a seu lado cheio de pressa.
- Desaparece, preto! - ouviu-os dizer.
O homem passou por eles e desapareceu. Thilo virou-se. Nunca na vida se tinha sentido tão sozinho.
O primeiro a chegar-se a ele foi o porco que lhe arrancara a antena do carro; com aquele olho negro ainda estava mais horrível que no estádio.
- Oiçam - disse Thilo ofegante -, podemos tratar do assunto. Quer dizer, posso pagar no caso de haver qualquer prejuízo...
- Tu? Tu não pagas nada. Agora quem paga sou eu, amigo...
Qualquer coisa brilhou em frente dos olhos de Thilo quando o outro levantou o punho. Dobrou-se e numa fracção de segundo pensou: “Tem argolas de ferro nos dedos... tem argolas de ferro!”
Sentiu a dor no ombro. Ainda procurou fugir com o esquerdo. Desta vez fora atingido no queixo, sentindo a pancada como se de um martelo se tratasse. Deixou de sentir fosse o que fosse, até mesmo a dor. Thilo Reinartz vergou os joelhos e caiu.
Então os outros caíram sobre ele...
A enfermeira Britte Happel e Hubert Lawinsky da companhia aérea australiana Qantas estavam sentados num recanto do “Forninho”, uma pequena e confortável lojinha de vinhos nos arredores de Frankfurt. Já tinham jantado; Britte sentia como o vinho punha cor nas suas faces, o que até era agradável; não, não tinha nada contra isso. Os seus olhos eram verdes como um lago das montanhas e riam expectantes, ficando com a mesma cor, com o mesmo verde das pedras que ele lhe mostrava: eram cinco turquesas. Estavam cravadas numa pesada argola de prata, que ele, sem qualquef comentário, tirara da algibeira do elegante casaco de linho e colocara sobre a mesa.
- Agrada-te?
Ela acenou afirmativamente.
- Então deixa ver como te fica. Vá lá, experimenta!
pegou-lhe na mão e ela sentiu a pressão dos dedos dele sobre a palma Acompanhada daquele sorriso e do contacto fresco da pesada argola de prata sobre o pulso.
- Ena! Parece que foi feita para ti. Sabes, em La Paz existe uma enorme quantidade de fancaria para turistas. Muitas vezes até falsificam a prata. Utilizam simplesmente chumbo a que dão um banho. Mas esta coisa aqui é mesmo de um artista, de um velho mestre índio. Conheço-o há muito tempo. Faz trabalhos maravilhosos.
- Para quem é isto?
- Para ti.
Sim. Olhos como turquesas! E o riso neles. Era incrivelmente perigoso. Mas mesmo assim, sabia bem. Não, aumentava a excitação que já sentia. Uma tensão que era nova e desconhecida para ela. O formigueiro do perigo...
- A mulher a quem queria dá-la também era loura - riu-se ele -, loura e casada. Contou-me uma quantidade de histórias. Não lhe posso levar a mal. É o que a maior parte das mulheres fazem. Estão no seu pleno direito, mas devem, apesar disso, manter um pedacinho de verdade...
Uma voz interior avisava Britte Happel: “Tira a pulseira do braço. Devolve-a. Se for caso disso, mete-a na algibeira do elegante casaco. E depois manda-o para o diabo, para La Paz, Honolulu, Nova Deli, Lima ou seja lá para onde for. Principalmente que te deixe em paz mais as suas intermináveis fanfarronadas!”
Em vez disso riu-se, a pulseira brilhou e Hubert Lawinsky serviu-lhe outro copo de vinho...
Foi a última coisa de que Britte teve clara consciência.
O que depois aconteceu ficou indefinido como um sonho. Só sabia que tinha atravessado uma fronteira e que não queria voltar atrás. A empregada trouxe a conta e guardou sem pestanejar dez marcos de gorjeta. Dez marcos! Depois a viagem de táxi. Até onde? Era indiferente, tudo era indiferente...
Britte mantinha os olhos fechados e saboreava a sensação dos longos, morenos e experientes dedos que já anteriormente admirara a fazerem-lhe festas na nuca, durante a viagem de táxi. Depois uma recepção de hotel. E que entrada! Mobília reluzente, gente elegantemente vestida, um porteiro de bochechas cor-de-rosa para quem ela não olhou uma única vez quando este disse empurrando a chave do quarto por cima do balcão:
- Faça favor, Sr. Lawinsky.
A silenciosa subida no elevador, o sorriso interior, o pulso acelerado pela expectativa e, finalmente, o quarto.
Era um quarto grande. A cama encontrava-se no canto ao fundo, do lado direito, e o chão estava coberto com um espesso tapete cor de malva.
Mais uma vez, Britte sentiu dentro de si um sinal de alarme, trémulo e inseguro. “Que fazes aqui? Que será tudo isto?” Mas já era demasiado tarde. Nem sequer chegaram à cama. Ouviu o ruído do fecho de correr do seu vestido de noite negro-prateado quando ele com um puxão o abriu. Até ao cinto. Não ia até mais abaixo. Ela soltou a fivela do cinto. Então ele puxou-o até abaixo, cheio de força impaciente, arrastando-a para o chão. Não protestou nem se recusou. Ele queria amá-la ali mesmo e fá-lo-ia ali sobre aquele mar cor de malva que a afogava.
Quando ele finalmente se colocava sobre ela, algures por cima da cidade, muito alto, ouviu-se o ruído de um avião trazendo-lhe à memória a clínica e fazendo-a questionar muito debilmente o que seria que Rolf...
Mas isso era indiferente. Tudo era indiferente.
As velas à sua frente ainda estavam acesas. Pela sala de tecto alto com uma galerìa à volta pairava a músìca de Vivaldi. Sobre a mesa estavam todas as especialidades que Fritz Hansen encomendara na charcuteria para receber Evi, e que arranjara com todo o cuidado. Não só ele, mas toda a sala parecia esperar por Evi.
Mas ela ainda se demorava na casa de banho.
Enervado, Hansen tirou o arame e a cápsula de chumbo da garrafa de champanhe fazendo a rolha saltar pelo ar até ao tecto. Depois encheu os copos.
Não esperou mais tempo. Pegou no copo: à tua saúde Fritz, à saúde do teu serão todo especial! Aí tens essa brasa loura-arruivada dentro de casa e mais uma vez põe em causa as tuas comprovadas fórmulas de êxito. E ainda dizem que não existe nada de mais belo que o amor livre entre dois adultos que o desejam! A Lucrécia, por exemplo, entra em casa, vê a luz das velas, vê o champanhe, fareja o ambiente e começa logo a desabotoar a blusa. Então começa a festa. Amor como necessidade da natureza, sexo como happening.
com ela é tudo diferente. É certo que por vezes se mostra suave, meiga, dócil e amorosa. Mas a maior parte das vezes era como naquele dia.
Uma mulher de outro planeta. Separado dela por qualquer coisa ao a que não conseguia dar nome. Sempre de algum modo afastada. Mesmo quando a tinha nos seus braços, ficava sempre a sensação de nunca a possuir completamente...
Fritz Hansen bebeu o copo de champanhe todo. Não lhe soube bem.
A comida sobre a mesa, rolinhos de presunto, salada de maionaise, torradas, as tapazinhas de caviar, tudo parecia arranjado como para uma peça de teatro: seria a sala toda um cenário?
Talvez fosse chegada a altura de rever as suas fórmulas de sucesso e de encarar a realidade. Um agarra numa moto Honda todo-o-terreno, como Rolf Grãfe e dispara com ela por qualquer malvado descampado para se libertar do stress. Outro agarra na garrafa do uísque. Tu precisas da ternura, do calor de uma mulher...
Ouviu o trinco da porta da casa de banho a abrir-se. Ainda por cima fechava-se à chave? Deus do céu, que se passava com ela? Vinha descalça. Ali estava com o seu roupão de banho demasiado grande, uma toalha à volta da cabeça. De olhos cansados... muito cansados.
Ofereceu-lhe o outro copo de champanhe.
- Vá lá, à tua! À mais bonita criada voadora de todo o universo. À nossa!
- Bebe só por ti, Fritz.
- Já o fiz.
- Então bebe outro copo... mas eu não aguento mais. Verdade.
Acabou por beber um golinho, olhou-o por cima da borda do copo, sorriu resignada para a mesa dizendo:
- Fizeste tudo com tanto cuidado. Mas amanhã também é dia. Só que hoje estou no fim.
Olhou para ela, observando a forma como ela media a enorme sala com o olhar para desaparecer depois no quarto de dormir. Tinha atrás de si seis mil quilómetros de voo, pensava ele, sem parar, atravessando fusos horários e climas diferentes. Alguns não se importavam nada com isso, outros desistiam e então na sua ficha pessoal ficava registado “doença do sistema neurovegetativo”. Liberdade acima das nuvens - pois sim!
Dez minutos depois abriu com todo o cuidado a porta do quarto. Depois de os olhos se habituarem à escuridão, viu os ombros redondos e brilhantes. A coberta tinha escorregado de cima do corpo. Levantou-a e estendeu-a sobre Evi e alisou-a com a mão.
A noite mal tinha começado. Lentamente ia cobrindo a grande cidade de escuridão. Vindo de fora, como que às ondas, o ruído do tráfego enchia a sala, coberto pelo roncar cantante dos aviões a jacto que aterravam ou partiam.
Ao ver Evi ali deitada, Hansen sentiu-se envolvido numa onda de ternura. Ficou a ouvir a sua respiração, sentiu o seu calor; estendeu o braço para lhe afagar o cabelo e o rosto e ali estava uma coisa que havia muito não sentia: um contentamento que valia mais que a felicidade. Muito mais.
Contudo, por quanto tempo aguentaria?
Voltou para a porta fechando-a tão silenciosamente quanto possível.
Depois, novamente sentado no cadeirão, o copo vazio à sua frente, naquele agora estranho silêncio, teve a certeza de que alguma coisa teria de se alterar; sim, que alguma coisa já se alterara. De outro modo não teria ficado a pensar na forma de evitar que Lucrécia o fosse visitar nos dias que se seguiam. Que táctica, que palavras seriam as correctas? Que mentiras?
Mentiras. Porquê? Sempre se orgulhara da sua franqueza e da sua correcção na relação que mantinha com as mulheres. Agora percebia que eram só mentiras. Mentiras para consigo próprio, para com os outros, mentiras e egoísmo... Ou seria por sermos todos escravos do nosso trabalho, mesmo quando este nos destrói? E, por neste vai-vem não existir outro remédio contra a solidão senão aquilo a que chamamos “amor”? Fechou os olhos e viu como que em sonhos outro rosto de mulher. Também este rosto era bonito, mas coberto de sulcos de sangue seco. Parecia-lhe ouvir a voz, aquela voz baixa, quebrada: “Fui até ao terraço, ao sítio onde sonhara com o meu grande amor. Era ali que queria morrer... É assim tão difícil de perceber?”
Também aquilo fora em nome do amor? Amor. Que tinha ele a ver com a maldita palavra? Quantos significados tinha? E que coisas podia fazer a um ser humano?
Hansen levantou-se a apagou as luzes.
Cadeiras de rodas. Naquele dia no aeroporto só pediam cadeiras de rodas. Cadeiras de rodas para os aviões, para as paragens dos autocarros, para as portas de saída - mesmo durante a noite os ajudantes e os estudantes que estagiavam na clínica tinham tido as mãos cheias de trabalho. Tinham empurrado passageiros de idade ou diminuídos por intermináveis corredores, pelas passagens que ligavam os aviões uns aos outros, de saídas para entradas e de entradas para saídas, da Alfândega para a chegada das bagagens e? finalmente, para a rua.
O médico de serviço na clínica, o Dr. Walter Hechter, estava confortavelmente sentado na sala dos médicos, bem reclinado e com as mãos cruzadas sobre a barriga. Em posição de repouso. Calmo como um lago, aquele serão. Para além de três casos com problemas de circulação e um de envenenamento alimentar que necessitou de uma lavagem ao estômago, nada lhe tinha surgido no caminho durante as últimas horas. Tinha valido a pena substituir o Rolf Grãfe.
O Dr. Waler Hechter era conhecido na clínica pela calma que conseguia manter fosse qual fosse o caos, nunca se desviando do que planeara. Tinha a exactidão de um administrador de caminhos-de-ferro, sendo por isso conhecido entre o pessoal pelo “ Barrete Vermelho”. Sempre que Rolf Grãfe era atacado pela loucura da moto, ficava gostosamente a fazer algumas horas de serviço nocturno. As migalhas também são pão. Aquelas horas somavam qualquer coisa. De qualquer modo este ano iria com Annie e os gémeos fazer umas férias prolongadas enquanto o pobre colega Grãfe provavelmente teria de ficar a olhar por um canudo.
Desligou a porcaria do concurso que estavam a transmitir na televisão colocada sobre a mesa, na sala dos médicos, e voltou a folhear os prospectos que estavam na secretária. Casas para alugar. De todos os tamanhos cores e preços.
- Bonitas, não são? - O enfermeiro-chefe Fritz Wullemann acabava de entrar. Walter Hechter não o tinha ouvido bater, tão fascinado estava com as imagens que observava. -Mas muito caras. Hechter virou a cara magra e com óculos.
- Conclusão errada, Sr. Wullemann. Quando se tem uma família de três cabeças como eu e de cada vez que se vai de férias só em hotéis...
- Eu tenho seis cabeças - disse Wullemann. - E meter-me nà auto-estrada para fazer férias? Comigo não. Prefiro ficar no meu jardim.
- Mesmo assim, Sr. Wullemann...
A voz no altifalante pôs fim à conversa.
- Dr. Hechter! Uma urgência.
- Que se passa?
- Estão aqui também dois senhores da Polícia, Sr. Doutor.
Como se isso explicasse fosse o que fosse... A noite tinha-se apresentado tão agradável. E agora? Toca a correr. E só o diabo sabia quem é que lhe tinham trazido para ali.
Tratava-se, como acabou por verificar, de um jovem magro, com cerca de 30 anos que se encontrava deitado sobre a maca. Para ser mais preciso, tratava-se do que restava de um jovem magro, com cerca de 30 anos. O cabelo castanho estava empastado em sangue e a cara transformara-se numa máscara pavorosa, inchada, golpeada e cheia de nódoas negras.
Tina Zander estava já a cortar-lhe a camisa com uma tesoura, uma camisa cara, de seda rosada com monograma bordado. E à medida que arrancava do corpo os pedaços de tecido, ia ficando à vista toda a extensão dos ferimentos: para onde quer que se olhasse só se viam hematomas e lesões! Tinha o ombro direito completamente deformado, muito provavelmente com a omoplata partida. O braço direito também estava aparentemente partido... Os pulsos, as mãos, o pescoço, tudo apresentava os inchaços arredondados, negros, característicos dos pontapés. E mais ainda: fractura das costelas!
- Que foi que aconteceu ao homem? Quem... quem o maltratou desta forma?
- Não foi só um, Sr. Doutor - disse o mais alto dos dois agentes da Polícia que se encontravam impassíveis encostados à parede junto à porta. - Foi um bando completo. Só queriam divertir-se um bocadinho. Estavam grossos.
- Aqui no aeroporto?
- Aqui no aeroporto. Perseguiram-no desde o comboio eléctrico até o meterem numa casa de banho onde o espancaram.
Walter Hechter pôs o estetoscópio para auscultar os pulmões. Parecia que estavam a funcionar. Pelo menos isso... O homem ainda se encontrava em estado de choque. Tinha de ser entubado para garantir a admissão de oxigénio.
- Já lhe deu alguma coisa, Tina?
- Sim. Adrenalina e um combinado para a circulação e para as dores.
- Leve-o imediatamente para a sala de operações 2. Precisa de um tubo para receber o oxigénio.
- Mas não pode ser aplicado na traqueia - disse Tina, a mais velha e mais experiente enfermeira da clínica. - Julgo que também tem o maxilar partido.
- Parece impossível. - O Dr. Walter Hechter encarou os dois policiais. - Que espécie de criaturas horríveis eram essas? Um bando de assassinos?
- Adeptos do futebol - disse o polícia. - Nada mais que adeptos do futebol de Dortmund...
Trabalharam durante uma hora e meia.
O oxigénio foi administrado através de um tubo colocado na narina - um fino tubo de borracha que entrava pela narina até à traqueia, assegurando uma respiração regular.
O mais difícil era lutar contra o choque provocado pelos ferimentos que tinham atingido órgãos vitais. Para isso tinham de controlar a tensão arterial e todas as outras funções de forma exacta. E era preciso evitar o risco ainda possível de uma trombose - qualquer coagulo de sangue de uma das múmeras feridas poderia bloquear alguma das artérias vitais.
As radiografias tinham afastado, graças a Deus, os piores receios do Dr. Hechter. Não havia fractura craniana.
O que o preocupava era a tensão ao nível das ancas e o inchaço à volta dos rins. Mas a observação da bexiga não mostrou qualquer sinal de sangue na urina. Parecia, portanto, que os rins não tinham sido afectados.
O doente, um tal Thilo Reinartz, de acordo com os papéis que se encontravam na sua carteira, empregado bancário, que trabalhava na Bolsa de Frankfurt, tinha, por puro instinto, conseguido defender com os braços e as mãos as regiões do ventre e do baixo ventre. De uma maneira geral parecia ter conseguido.
A cura dos hematomas e luxações ainda levaria muitos dias e provocaria ainda muitas dores. Os monitores indicavam uma estabilização da situação cardíaca. Hechter conseguira com o auxílio dos raios-X reduzir as fracturas de forma a que os ossos voltassem a soldar. Quando estava a engessar a fractura do braço, o doente abriu os olhos: olhos azuis nos quais só existia espanto...
- Que é? Que foi que...
- Ora, nada, Thilo - riu-se Fritz Wullemann com ar de superioridade -, nada de importante. Continua a dormir.
De facto, ele fechou os olhos...
Costelas, braço e omoplata, o que havia a fazer tinha sido feito. A mão seria certamente tratada cirurgicamente e curada na clínica. Mas no geral, o mais importante tinha sido feito!
- Pronto, agora vamos... - Fritz levantou Thilo Reinhartz com os seus braços possantes, deitando-o na maca que iría transportá-lo à grande enfermaria para um dos quartos dos doentes.
Levou a sua carga até ao corredor. Aí parou pela primeira vez.
- O Dr. Grãfe. Estou a ficar maluco! Que foi que lhe aconteceu? Voltou a levar uma tareia?
Grãfe sorriu com a sua boca inchada, cheia de sangue. Então reparou na maca com o suporte do soro:
- Que é isto?
- O nosso programa da noite, Doutor. Uma história grave.
- Bem, já me livrei de qualquer coisa - disse Grãfe rindo.
- Bem pode dizê-lo - respondeu o Dr. Hechter que acabava de chegar ao pé deles enquanto Wullemann continuava a empurrar a maca para o quarto dos doentes.
- Receio que de qualquer maneira não lhe pudesse servir de muito, colega. - Grãfe levantou a mão inchada e coberta de adesivos.
O rosto do Dr. Hechter ensombrou-se. A sua expectativa de uns dias de férias ganhos com o trabalho extra parecia irremediavelmente gorada.
- com isso não teria sido possível ficar de serviço nocturno...
- Exactamente - respondeu Grãfe com simplicidade. - Lamento. Mas fico ao pé de si. Quanto mais não seja por solidariedade. Além disso, não tenho a mais pequena hipótese de voltar agora para a minha barraca. Afinal, que aconteceu com o homem?
Hechter deitou uma olhadela para a entrada da sala de espera. Alguns polícias cercavam um grupo de aventureiros de casaco de cabedal.
- Vamos já saber o que se passou.
Um civil veio para junto deles:
- Boa noite, meus senhores! Sou o inspector Hermann do vigéssimo sexto distrito criminal. O que nos faz falta para estes chamados amantes de futebol de Dortmund são algumas análises de sangue. Imaginam porquê?
- E de que maneira! - disse Hechter irritado. Agitação.
- Sempre na linha através de... - gritou uma voz jovem.
- Bico calado! - exclamou um dos agentes.
Depois de algumas idas e vindas e alguns insultos de parte a parte, fez-se finalmente silêncio.
- Bem, inspector, traga-os para a sala de espera. Não quero vê-los na minha recepção.
- Entendido. - O inspector acenou com a cabeça. Fritz Wullemann voltou para trás.
- Sr. Wullemann, se quiser fazer o favor de os levar às análises...
- Mas com todo o gosto. com certeza, Sr. Doutor. Vamos levá-los para lá.
Então eles apareceram! Os lenços de cabeça vermelhos tinham desaparecido. Restavam rostos pálidos, bestializados, de jovens entre os 18 ou talvez 19 anos, de cabeças totalmente rapadas. As algemas tilintaram, as protecções dos braços foram tiradas e sempre que a seringa na mão de Wullemann furava uma pele, ouviam-se gritos de dor. Também podia ser por até ali nunca ninguém na clínica ter visto Wullemann manejar uma seringa com tanta falta de jeito.
Quando chegou a vez do último de Dortmund - era Tacker -, surgiu mais outra dificuldade. Primeiro esfregou o pulso, devagar, lentamente, pensativo, enquanto olhava para o agente da Polícia; como se tivesse estado agrilhoado durante anos. Finalmente, virou-se para Wullemann. Tinha um rosto de ossos largos parecendo achatado sob o nariz. Também o olho negro, aparentemente resultante de uma pancada recente, não o tornava mais bonito.
_- OK, avôzinho! Pega lá nisso.,. mas digo-te já, comigo vai ser diferente!
- Que é que vai ser diferente?
- A picada. Deixa-te de gracinhas, senão ...
- Senão o quê?
- Senão, avôzinho, dou-te um pontapé nos tomates - berrou Tacker.
- Sim? Se é isso...
Wullemann voltou a colocar a seringa no suporte dos instrumentos sobre a mesa e pôs-se a coçar o pescoço. O que se passou a seguir aconteceu tão depressa que nenhum dos homens na sala poderia relatar os pormenores. Wullemann dobrou-se, o seu braço avançou, puxou o outro para si, deu uma volta sobre si mesmo e Tacker voou pela sala caindo aos pés dos seus amigos, onde ficou estendido.
Estes ficaram siderados. Nenhum disse nada. Só Wullemann disse com secura: .
- Podia ter-te quebrado o pescoço. Mas seria isso uma desgraça?
Depois de tudo ter acabado e de se encontrarem novamente sozinhos, Fritz Wullemann disse mais outra coisa. Disse-o a Rolf Grãfer:
- A gente com que nos vemos envolvidos, não é, Doutor? Mas, afinal, todos somos seres humanos. Tenho isso sempre presente. Ou é unicamente o animal que há em nós? Será que queremos ofender os pobres dos animais? Não, esses não têm culpa nenhuma. Os animais realmente somos nós...
O Dr. Rolf Grãfe abanou a cabeça comovido, cheio de admiração.
Quando Britte Happel acordou no dia seguinte não sabia onde se encontrava. Quem era o homem que estava a dormir ao seu lado? Um braço escuro musculado estava pendurado da cama. Viu um cabelo , , negro desalinhado e espalhados pelo chão o seu fato, a roupa interior, as sapatilhas... “ Meu Deus, o australiano”, pensou ela e, merda de um raio, dentro de meia hora tinha de entrar ao serviço! “Queres ir para a clínica com essa roupa esfarrapada? Que diria Rolí? Ou os outros? Hansen, o `Frìtz Bonìtão’...”
Ir a casa mudar de roupa? Já não tinha tempo para isso.
Numa loja de jeans perto do hotel, Britte tirou umas calças da prateleira, comprou uma camisola a condizer, deixou o elegante fato de calça e casaco com o cinto dourado juntamente com uma certa dose de má consciência junto da caixa, chamou um táxi, implorou ao condutor que a deixasse no aeroporto antes das nove horas; ainda faltavam cinco minutos para as nove.
- Tanta pressa? Vai para onde?
- Para o meio da rua se o não conseguir. Corro o risco de perder o emprego.
O homem nem abriu a boca, fazendo o que podia a 150 km/h pela auto-estrada do aeroporto. Foi então que ficou retido num engarrafamento e Britte chegou realmente atrasada.
A enfermeira Bãrbel Rupert a quem o chefe tinha, aparentemente, designado como substituta já se encontrava na casa da desinfecção a esfregar as mãos. Virou a cabeça para Britte. O rosto jovem estava contraído com o medo e o nervosismo que sentia.
- Caramba, Brìtte! Que medo eu tìve... Onde te meteste? O velho já está furioso. É uma sorte teres chegado.
- Afinal, que se passa?
Britte deitou uma olhadela através da janela da sala de operações e ficou siderada. A sala parecia inundada de sangue. Os focos sobre a mesa de operações acentuavam ainda mais o dramático impacto do pavoroso lamaçal vermelho. E sobre a mesa estava deitado um corpo inerte sobre o qual se debruçavam três pessoas de bata operatória e máscaras esterilizadas.
Que se tinha passado? Ninguém sabia. Antes de mais nada, ninguém fazia ideia de quem era a vítima. O homem trazia jeans desbotados, nos pés um par de sapatos de jogging cinzentos e esburacados e por cima da camisa de quadradinhos azuis tinha enfiado um daqueles coletes de caçador de que os jovens tanto gostam e que por isso já se podiam encontrar à venda em qualquer armazém.
Era bastante magro, louro e jovem. Trazia pregado no colete o seu cartão de identificação de trabalho: “Werner Roser, Frankfurt Bockenheim, Falkstrasse 24, electricista.” O cartão continha, segundo todas as regras, todos os restantes dados, tais como nome da entidade patronal e grupo sanguíneo, autenticado pelas autoridades do aeroporto e com o selo do Departamento de Construções.
O azar fora ter deixado o colete sobre um dos inúmeros carrinhos de transporte do pavilhão número cinco. Daí dever-se-ia ter perdido no meio da confusão, pelo que ninguém o tinha encontrado?
Eram oito e quarenta quando Werner Roser chegou ao seu encontro com a morte.
No pavilhão cinco havia àquela hora a confusão normal. O pavilhão cinco da companhia nacional alemã Lufthansa era o coração do conjunto de pavilhões de manutenção dos aviões e era conhecido em todo o lado não só devido ao seu luxo tecnológico e à qualidade do trabalho ali executado mas, sobretudo, devìdo às suas inacreditáveis dimensões: um edifício bizarro de utópica construção, uma verdadeira catedral da tecnologia, com trezentos e vinte metros de comprimento e cem de largura. Só uma das portas de entrada que se movia com o carregar de um botão, tinha vinte metros de altura, de forma a que um pássaro gigante como um Boeing 747 com a altura de um prédio de seis andares nele pudesse entrar sem qualquer problema. Iluminado por holofotes potentes, podiam decorrer naquele pavilhão quatro jogos de futebol simultaneamente, não precisando a assistência nem os jogadores de se preocupar com o vento, chuva, frio ou calor. Qualquer ruído parecia perder-se na distância. As pessoas - e muitas vezes aí se encontravam a trabalhar milhares de mecânicos, engenheiros, empregados - pareciam pequenos como insectos.
Naquele pavilhão fazia-se sobretudo a manutenção dos Boeing 747, dos 727 e dosAirbuses. Junto ao pavilhão dos Jumbos, a oeste dos edifícios das oficinas, ficava ainda o pavilhão seis com medidas semelhantes; servia para a manutenção dos DC-IO e dos Boeing 737. A terminar, havia ainda um outro pavilhão para aviões mais pequenos: o pavilhão três.
Na parte sul do pavilhão cinco, na secção F12, encontrava-se naquela manhã um grupo de mecânicos a recolocar o terceiro reactor de um Jumbo. Tinham-no retirado para reparação e para ser testado. O 745 200 era propriedade da companhia grega Olimpic Airways. Tratava-se, portanto, de um trabalho de encomenda e também de um trabalho arriscado, pois a operação da grua e a remoção das turbinas enormes exigiam dos homens sobre a elevada plataforma uma concentração total.
Era, portanto, de calcular que ninguém prestasse muita atenção ao jovem electricista que se encontrava em baixo, substituindo na parede um módulo de interruptores defeituoso.
Nem mesmo o condutor do carrinho amarelo do material eléctrico, que seguia lentamente em marcha-atrás dentro da oficina, poderia ter sentido o perigo.
Entrara pela porta dois e tinha de transportar para a zona de trabalho uma carga de ferro de 18 mm para betão.
Como tinham construído nesse local uma rampa para o empilhador, deu com um enorme compressor que fornecia a energia para a máquina lubrificadora a tapar-lhe o caminho, pelo que pensou atingir a sua meta dando a volta pelo lado sul. Talvez tivesse sido então que o suporte da plataforma ou a própria carga lhe tivessem tirado a visibilidade, ou talvez tivesse adormecido durante um segundo. Fosse como fosse, a catástrofe surgiu inesperada como sempre.
Nem reparou que ao fazer marcha-atrás batera num obstácu_ lo qualquer. Também não ouviu nenhum grito nem qualquer aviso. Enquanto voltava a meter a mudança para avançar, virava o volante para a direita.
Nesse momento as pontas dos ferros para o betão, colocados sobre o carrinho, brilhavam vermelhos sob as luzes. No chão caíam pingos escuros formando um rasto de sangue sob o carro...
Não tinham decorrido ainda dez segundos depois de tudo isto acontecer quando o chefe da equipa de manutenção, um jovem engenheiro chamado Ridet, ao olhar casualmente para a parede e para o chão do pavilhão, ficou siderado.
Junto às ferramentas estava um homem caído. Estava ali caído como se fosse um monte de roupa velha deitada fora. À sua volta via-se sangue. Tanto sangue! Uma poça escura que ia aumentando sempre.
- Merda! - exclamou o engenheiro.
O mecânico que se encontrava a seu lado levantou os olhos, atirou fora as ferramentas que tinha na mão fazendo um ruído estridente ao cair no chão e correu para as escadas.
- Haller, idiota! Deixa ficar aqui o telefone!
O mecânico tinha o telefone preso ao cinto. Arrancou-o e deu-o para a mão do engenheiro Rieder. Este deitou um rápido olhar para o autocolante com o número das urgências marcando-o depois com incrível rapidez. O número das urgências da clínica do aeroporto.
Mal tinham passado oitenta segundos depois do acidente ter sido detectado, quando soou o alarme na clínica. Por um feliz acaso, o cirurgião Dr. Fritz Hansen estava nesse momento na central.
- Que está a dizer? - perguntou incrédulo. - Ferro para betão? Que furou o peito do homem? Que quer dizer com furou?
- Furar quer dizer furar! Homem! Buracos no tronco. Foi um carrinho eléctrico, ainda consegui vê-lo, fazia marcha-atrás e depois... depois deixei de o ver. Mas podia muito bem ver-se o rasto de sangue. De qualquer maneira, as pontas do ferro furaram o tronco do pobre diabo. Está caído no chão e está a despejar-se como uma bilha. Os meus homens já estão ao pé dele. Mas que podem eles fazer com tanto sangue? Como? Sim, está vivo. Vejo a mão dele a meXer_se. Ainda está vivo. Mas por quanto tempo...
- Deite-o sobre o lado ferido - disse o Dr. Hansen. - Diga ao socorrista aí do pavilhão para o fazer. Vamos já para aí.
Enquanto disparava o alarme para a ambulância, procurava rapidamente fazer uma avaliação da situação: a clínica dispunha de, juntamente com as cadeiras de rodas para os doentes e deficientes, duas ambulâncias prontas a entrar em acção. A ambulância conseguia percorrer a distância até ao pavilhão do acidente em três ou quatro minutos.
Mas que situação iriam aí encontrar? Tórax perfurado? Os ferimentos na cavidade torácica faziam parte dos acidentes mais temidos, uma vez que os órgãos vitais é aí que se encontram situados, podendo, portanto, haver imediato perigo de vida. Trauma torácico? Perfuração da parede do tórax? Se assim fosse, o ar entraria na cavidade torácica havendo o perigo de colapso de um dos pulmões ou mesmo de ambos... Bem, as perspectivas eram uma beleza!
Estava a pensar se deveria mandar imediatamente Rolf Grâfe com a ambulância, mas decidiu não o fazer. Rolf e ele tinham de se preparar para a operação. Uma correcta esterilização era fundamental numa operação aos pulmões.
Portanto seguiria o carro nº 2 com o jovem Fred Wicke como auxiliar médico.
- Carro nº 2 - berrou ao microfone, dando as últimas instruções através do telefone já para a ambulância disparada a grande velocidade, de sereia aberta e luz azul acesa.
Depois correu para a sala de operações. Se ao menos Fritz Wulemann lá estivesse, mas logo havia de estar de folga. Estamos bonitos... E onde se meteu a Happel? Devia estar de serviço à sala de operações. Brãbel Rupert, a pequena e nervosa estagiária, foi ao seu encontro. Que situação mais idiota, não, que situação mais diabólica..,
Dois seguranças protegendo a área, um círculo de trabalhadores calados e ali no chão...
Os homens afastaram-se em silêncio. Wicke, acabado de chegar da clínica do aeroporto, examinava o doente. Os socorristas tinham já tentado fazer estancar o sangue com compressas e isso estava em ordem, mas a pele já estava a ficar cinzenta e mal se sentia o pulso. A circulação podia ser interrompida a todo o momento. Wicke voltou o homem desmaiado um pouco de lado, encontrou uma veia onde introduziu a agulha para repor a perigosa quantidade de san?e que entretanto perdera. Meu Deus, quantos ferimentos! E que quantidade de sangue!
Quando se debruçou um pouco mais sobre o doente, ouviu o silvo típico do ar a entrar a cada movimento do diafragma: o pulmão esquerdo tinha sido atingido e a cavidade, a pleura, estava inundada de sangue.
- Pronto, vamos, depressa!
Fred Wicke corria ao lado da maca até à ambulância, mantendo alto o frasco do plasma do qual corria o líquido salvador para dentro do corpo inerte.
- Entubar imediatamente - tinha-lhe dito o chefe através do telefone. - Espero que o consigas.
Claro que conseguia, e de que maneira! Fred Wicke tinha acabado de fazer os últimos exames. O que estava a acontecer ali fazia parte do “alargamento da experiência”. E, santo Deus, aqui aprendia-se mais em alguns minutos que num mês de aulas... Deitou um olhar para o rosto desfigurado do ferido. Também ele um tipo muito jovem. As pálpebras tremiam-lhe mas o plasma parecia ter feito um certo efeito. A cor branco-acinzentada da pele parecia ter estabilizado.
Wicke abriu a boca do ferido com o polegar, meteu a espátula para ajudar a introdução do tubo que foi empurrando com cuidado e abriu o oxigénio. O toráx contraiu-se um pouco. Aí estava! As feridas sangraram mais e ele colocou-lhes novas compressas em cima. Faltavam poucos minutos, em breve o homem estarìa sobre a marquesa na sala de operações.
- Havemos de conseguir- - segredou Wicke. - Vais ver, havemos de conseguir!
O Dr. Fritz Hansen olhou para a maca que era empurrada em passo de corrida para a sala de operações:
- Vamos lá, depressa, ponham-no sobre a mesa!
Estava tudo pronto, até Berta Maier-Blobel se encontrava junto ao médico anestesista. Mas onde se metera a enfermeira da sala de operações, raios? Também Grãfe olhava para a porta.
- Pronto, vamos embora - disse Hansen por trás da máscara. - Destapar, máscara, desinfecção.
Juntamente com o oxigénio era agora ministrado ao doente um anestésico. A anestesista ia murmurando os valores da tensão arterial, que eram devastadores. Entretanto, no laboratório determinava-se o grupo sanguíneo. As radiografias não seriam mais que perda de tempo e o tempo ali media-se por segundos. Neste caso só a capacidade de decisão contava. Tratava-se de uma emergência e nenhuma das outras clínicas com as suas secções especiais poderia fazer mais. O corpo fraco e esgotado pelas hemorragias não resistiia a uma transferência. Era uma questão de segundos, de decisão, de competência.
Os pulmões pareciam cheios. Portanto, será preciso... Novo olhar para a porta. Finalmente ali estava a Happel. E não só ela; por vezes acontecem milagres e aquele pobre tipo franzino deitado sobre a mesa talvez tivesse um acordo especial com o céu. Atrás do vulto alto vestido de verde de Britte Happel, aparecia uma segunda enfermeira, franzina, magra, quase minúscula ao pé de Britte, e de ombros levantados como habitualmente: Tina Zander, primeira enfermeira de cirurgia, a pérola dourada de Fritz Hansen. Tinha conseguido manter Tina na clínica do aeroporto fazendo-lhe toda a espécie de promessas do mundo mais o azul do céu. Pronto, agora já se sentia melhor!
- Tina, caramba!
- Só passei por aqui por causa dos meus documentos de caixa e então...
- Não interessa a razão por que passaste por aqui. O importante é que estás cá. Depressa, já percebeste a situação. Prepara o dreno. Os pulmões devem estar alagados. Mas para poder fazer qualquer coisa tenho primeiro de ver.
O Dr. Fritz Hansen fez a incisão, abriu, o sangue voltava a gotejar. No entanto, quando Rolf Grãfe, que assistia do outro lado da mesa, lhe chegou a primeira pinça, a intuição de Hansen voltou a fazer-se sentir: que se passava com Rolf? Que posição de braço era aquela? E a pinça? Rolf Grãfe não só era bom como assistente, mas era também um excelente operador. Por isso o tinha levado para ali; mas agora? Agora comportava-se como um estagiário! E isso logo com as pinças que deveriam estancar a hemorragia. Há quanto tempo duraria aquilo?
Hansen engoliu a sua zanga. Naquele momento já tinha bastante que fazer. Tecidos dilacerados, vasos sangrando por todo o lado. O esterno parecia estar em ordem. Aquela costela estava partida, tinha de tratar dela imediatamente. Mas, santo Deus, que fazia Rolf a andar para ali sem sentido? Que se passava com a mão dele? Nem sequer conseguia colocar uma ligadura!
Pelo menos a drenagem funcionava. Mais tarde havia de apertar com Rolf, e de que maneira! Depois de ter tratado deste assunto, mesmo que tudo corresse bem. E parecia que tudo estava a correr bem, pois os valores que a Blobel indicava pareciam estar a melhorar. Portanto depois de ter de uma forma ou de outra tratado daqueles malvados tecidos inundados de sangue, agarraria Rolf pelo pescoço e... não só Rolf mas a sua namorada também...
- A respiração melhorou consideravelmente!
O aparelho mostrava os valores da actividade respiratória e o funcionamento dos pulmões, novamente encerrados na caixa torácica.
- E o pulso está relativamente estável!
Hansen levantou a cabeça e dirigiu o olhar para o monitor principal como se quisesse confirmar a veracidade das informações. Depois respirou fundo, deixando o ar sair lentamente.
- E esta? Quem diria?
Lentamente, quase com ternura, testou a posição dos tubos de drenagem que retiravam da cavidade torácica os últimos restos de sangue.
Então, enquanto a maca com o ferido era levada da sala de operações para a unidade de cuidados intensivos, puxou a máscara para baixo. Olhou para Rolf Grãfe:
- Ora bem...
Todos os que estavam ainda na sala sentiram o modo como aquele “ora bem” tinha sido dito e perceberam o seu significado.
- Rolf! Quero falar-te imediatamente no meu escritório, e a si também, Menina Happel!
Britte seguiu calada atrás de Rolf Grãfe pelos corredores. Também ele não disse palavra.
Ela reparou que ele arrastava ligeiramente o pé. Coxeava. E qual a razão daqueles movimentos lentos e difíceis durante a operação, de tanta insegurança? Tinha tido dificuldades com a mão. Mas por que razão mesmo assim tinha operado?
Podia ter-lhe perguntado, mas tinha medo da sua reacção. Rolf era imprevisível quando se tratava das suas loucas correrias de moto. E depois, seria que ainda valia a pena? Já nada tinha importância. A única coisa importante era conseguir passar aquele dia. Que ninguém reparasse na sua disposição, na forma como se sentia acabada e desfeita.
Enquanto ela ali se sentia mal, Hubert Lawinsky ainda estaria certamente deitado na cama a preguiçar. “Que te trouxe ele”, pensava Britte. “O gosto a cinza das coisas passadas. Dúvida e insegurança.” E também qualquer coisa como um triunfo secreto.
Tinha sempre sonhado com uma “aventura”. Agora tinha-a vivido. E ainda bem!
Mas sentia ainda uma outra coisa. Havia pouco, durante a operação, ao ver aquele corpo lacerado, o sangue, sentira-se agoniada pela primeira vez em muito tempo. Receara ter de vomitar. Percebera imediatamente o significado desta indisposição. Não era possível ultrapassar essa certeza com um “ainda bem” ou com uma
estúpida palavra como “aventura”. Tinha acontecido qualquer coisa que iria modificar muita coisa ou talvez tudo...
- Chega aqui!
Rolf Grãfe abrira a porta da sala de tratamentos com um empurrão e fazia-lhe sinal para que entrasse. Ali estava ele; ali estavam os olhos escuros que olhavam para o seu rosto. Mas pareceram-lhe estranhos. Repletos de fúria.
- Agora conta lá: que se passa afinal contigo? Primeiro chegas atrasada e ainda por cima com um acidente daqueles. E depois, depois...
- Depois o quê? E tu?
- Caramba, Britte! Já sei que não dei hoje um espectáculo muito correcto. Voltei a cair na pista de obstáculos. Mas tu, estavas para ali a tremelicar como a última das principiantes.
- Eu? Sim, que queres dizer...
- Que quero dizer, que quero dizer? O tubo de drenagem errado. As pinças erradas. Quando o Fritz precisou da tesoura e depois das pinças de laquear também não percebeste.
Tinha a boca seca. A fraqueza impedia-a de lhe dizer tudo aquilo que pensava. Que era injusto, naquela situação, querer atribuir-lhe todas as culpas. Que não tinha sido ela, mas ele, a falhar. E porquê? Como se atrevia ele a fazer-lhe acusações? Precisamente...
O seu rosto tinha-se descontraído:
- Estás com um ar cansado, Britte. Tens a ponta do nariz tão pálida.
- Ainda nem sequer tomei o pequeno-almoço - ouviu-se responder.
- Deixaste-te dormir?
Acenou que sim pensando: “Também se pode chamar assim...”
- Pronto. - O Dr. Rolf Grãfe sorriu e pousou-lhe a mão conciliador, sobre o braço: - Durante o naufrágio a tripulação não deve zaragatear. Seria demasiado perigoso... Portanto, vamos lá rapariga! Vamos ao encontro do grande Fritz. Para tomar o primeiro duche da manhã!
- Hoje - disse o médico-chefe Dr. Fritz Hansen -, hoje voltei a perceber o que é o pânico na mesa de operações. Mas o causador não foi aquele pobre jovem que quase nos escapava. Não, foram vocês os dois, a fazer que o sentisse.
Tinha-se sentado no canto da secretária, as mãos levemente cruzadas, os olhos claros parecendo muito calmos. Mas, tanto o Dr. Grãfe como Britte sabiam muito bem que esta calma era estudada. Conheciam-no bem. Sabiam o que significavam as duas manchas vermelhas na testa e o que se seguiria às críticas feitas tão suavemente, quase com amizade. O grande Zampano falava e os outros ouviam. Subitamente acabava-se a calma de Hansen.
Levantou-se da mesa e endireitando-se em toda a sua altura.
- Chamei-os aos dois, apesar de isso ir um pouco contra as regras da clínica. Primeiro o colega, depois a enfermeira, não é verdade? Mas quando o caro colega e a enfermeira trabalham ao mesmo deplorável nível e ainda por cima estão ligados um ao outro - não tenho nada com isso, mas é assim, não é verdade -, então é preferível passar a descompostura aos dois ao mesmo tempo.
- Ouve lá, Fritz, realmente não sei...
- Que é que isso tem a ver com o caso? Eu digo-te. Mas primeiro a Britte: uma coisa tão sem importância como chegar a horas ao serviço, já não faz parte do seu programa, Menina Happel? Ou como devo entender o facto?
- Sr. Dr. Hansen, tenho sempre chegado a horas ao trabalho. Sabe-o muito bem. Em todos os meses que aqui trabalhei, foi hoje a primeira vez...
- Certo, enfermeira. E que acontece? O caos total. Fritz Wullemann estava de folga, Tina também. O simples facto de ela ter aparecido por acaso, salvou a situação, pois a enfermeira de serviço à sala de operações Britte Happel também não estava presente. E a meu lado tinha um senhor que não conseguia entender-se com os próprios dedos por os ter partido mais uma vez.
- Eu...
- Um momento, Rolf! Ainda estou com a Britte. Mas o que tenho para lhe dizer também serve para ti. Pela primeira vez, disse ela. Pela primeira vez chegou atrasada. Peço a ambos que percebam que trabalhamos numa profissão em que a primeira vez pode facilmente transformar-se na última. Sobretudo quando um pobre diabo como este, como era o nome dele? Roser, parece-me. Sim, era Roser. Portanto, quando um ser inocente que temos entre mãos corre o risco de ficar na mesa de operações...
- Tu evitaste que isso acontecesse. - A voz de Grafe tinha um tom azedo. Hansen olhou-o.
- Certo. Eu. Tu hoje só me estorvaste, Rolf. E agora mostra lá.
Antes de Rolf Grafe o poder evitar ou mesmo fazer qualquer gesto, Hansen agarrou-lhe a mão, levantou-a, girou-a sobre o pulso, apalpou-a e depois dobrou-lhe os dedos rápida e energicamente.
Grafe gemeu. Não conseguiu evitá-lo. Tinha os olhos brilhantes de dor e raiva.
jansen deixou cair a mão.
- Bem, estás a ver, eu já calculava. E se agora te fizer mover o braço, vais berrar com dores, porque também tens qualquer coisa no ombro. És um bom operador, Rolf. E é uma vergonha a maneira como te comportas. Ontem, não é verdade, confessa lá, ontem voltaste a esmurrar o focinho?
Grafe ficou calado.
- Tal e qual como da última vez - disse Hansen com amargura. - Ontem foi o braço direito. - Grafe sorriu mas a sua observação soou a falso.
Britte viu como inchavam as veias das têmporas do seu chefe e teria naquele momento saído da sala com todo o gosto. Que queria aquilo tudo dizer? Por que razão queria Hansen que ela fosse testemunha daquela discussão? Por que razão quereria que ela assistisse à maneira como estava a tratar o seu melhor amigo e colega?
- Rolf, agora não é altura para te fazeres engraçado. Raios, fazias muito melhor se levasses a sério o que acabo de dizer-te. Sim, precisas mesmo que te explique não só o que está em jogo para ti mas para todos nós?
- Fritz, agora ouve tu...
- O diabo é que ouço! Se há aqui alguém que tem de ficar de bico calado a ouvir, esse alguém és tu. Já alguma vez percebeste a situação em que te encontras? Já perdeste um bocado a pensar nisso?
Hansen fez um gesto zangado. Uma luz esverdeada iluminava a sala. As persianas da única janela estavam descidas e os grossos vidros duplos abafavam qualquer ruído; apesar disso, ouvia-se qualquer coisa: o zumbido abafado do aeroporto, por vezes ligeiramente mais forte quando os motores das máquinas começavam a funcionar. Um emaranhado de sons tão incómodos como inevitáveis. A teia em que todos eles se debatiam.
- Aeroporto de Frankfurt am Main! - as palavras caíam como chumbo no meio do silêncio. - Encruzilhada da Europa, não é assim que lhe chamam? Mas, independentemente do que esses publicitários ganham com isso, sabes tão bem como eu qual é a realidade. Talvez a tenhas esquecido ou ignorado. A rotina adormece tudo, concordo. Mas Se agora falo nisso não é por ser um chato qualquer a fazer-se importante. Espero de ti que voltes a ter presente a razão por que nos encontramos aqui. Em situações normais, Rolf, passam por aqui cento e vinte mil pessoas ou mais por dia. Corresponde à população de uma cidade média alemã. Mas aqui não estão confortavelmente sentados num escritório nem em frente do televisor de mãos Cruzadas a rodar os polegares. Não, visto sob o ponto de vista do stress, todos eles se encontram em situações de excepção, com os consequentes enfartes e colapsos. Será que preciso de dizer-te isto caramba, logo a ti?
Deu a volta à secretária, abriu a gaveta, viu um maço de cigarros que agarrou mas estava vazio.
- Estás a ver, cá estou eu outra vez. Meto cá para dentro estes malditos cigarros... Bem, que estava eu a dizer? Cento e vinte mil E não é tudo. Temos ainda os funcionários do aeroporto como prováveis candidatos ao esgotamento, muitos deles em profissões de risco de elevado índice de acidentes. Acabámos de ter a prova disso. bom. E somos nós os responsáveis pelos cuidados médicos a toda esta população. Nós, Rolf, que somos aqui o lazareto da frente de batalha. E tu julgas...
Tinha falado baixo mas numa crescente excitação. Agora calava-se deixando a frase em suspenso, terminando-a com um resignado gesto de mão.
Britte sentiu o calor subir-lhe pelas costas. Tinha os lobos das orelhas vermelhos. O cansaço tinha desaparecido e agora ouvia Rolf Grafe responder:
- Que esperas que te responda? Bato os tacões em sentido? Digo “sim senhor, doutor chefe! Palavra de honra, doutor chefe! Nunca mais ando de moto! vou desfazer-me da minha Honda! É isso que queres?
Hansen deixou-se cair na cadeira da secretária, contemplou as suas unhas cortadas rente, olhou depois para cima contemplando Rolf Grafe como se o visse pela primeira vez:
- Teimoso, não és?
- Teimoso não. Amargurado.
- Ainda mais essa. Óptimo. Mesmo assim, Rolf, exijo de ti agora a resposta a três perguntas. Primeiro: que benefícios colhes dessa tua louca puberdade tardia? Que significa isso de em todas as ocasiões possíveis ou impossíveis arriscar a capacidade de trabalho e o emprego disparando em cima daquela macacada por um descampado qualquer? Segundo: já que o fazes, achas correcto aparecer na sala de operações com uma mão inutilizada pondo em risco não só a vida do paciente como também o bom nome da clínica? Isto para não falar na situação em que colocas o operador. E, para acabar, a última pergunta: Que farias tu se estivesses aqui sentado na minha cadeira? No meu lugar, como reagirias tu Rolf? Diz a verdade..
- Mas não estou sentado na tua cadeira.
- Isso não é resposta.
O Dr. Grafe deu meio passo em frente. Britte viu como cerrava os punhos. O coração apertou-se-lhe de medo. Se ele agora o agride, que vai acontecer? Nunca o tinha visto assim, com o rosto cheio de raiva.
- A resposta é: também sou um ser humano. E um ser humano comete erros. Até tem o direito de os cometer.
- Nós não temos esse direito.
- Ah! Não temos? E tu com as tuas histórias de mulheres? Quando te pões a armar em professor sem mácula, dá-me vontade de vomitar. E ainda te digo outra coisa...
O Dr. Hansen reclinou-se na cadeira e fechou os olhos.
Não digas nada, Rolf. Vai-te embora daqui. Não da clínica, mas da minha sala. E já.
A porta bateu. Saiu com tanta pressa que Britte nem teve a oportunidade de tomar qualquer decisão. Ficou ali como que paralisada olhando para a cara severa de olhos fechados que se encontrava atrás da secretária.
- Desculpe, Sr. Doutor - disse baixinho. - Tenho muita pena... E não volto a chegar tarde ao serviço, verdade, juro, nunca mais...
- Está bem - mormurou Hansen.
Britte foi-se embora. Ouviu o bater suave da porta. Pôs-se de pé. Tinha o corpo pesado. E o dia nem sequer tinha começado.
No suporte onde guardava os lápis em cima da sua secretária, encontrou um cigarro. Acendeu-o e inalou o fumo contemplando depois através da fina e ondulante nuvem de fumo, o quadro pendurado na parede. Ele mesmo o escolhera. Era uma reprodução do pintor russo Marc Chagall representando um jovem de braços abertos e rosto radioso que, de rosa na mão, corria através de campos e árvores de uma paisagem de sonho ao encontro da lua cheia.
Não era só o jovem voando com uma rosa na mão que aumentava a melancolia de Fritz Hansen, eram também as árvores, o verde das colinas... Ir-me embora, pensou ele, para qualquer sítio onde houvesse qualquer coisa que se pudesse cheirar, que se pudesse agarrar. Para fora daquela montanha de betão. Em vez das luzes de néon, ter o sol sobre a pele. Cá por mim, também podia haver vento, chuva ou neve. Mas sair daqui...
Na longínqua América do Sul, em Villaverde, na Colômbia, Ramon Garcia cuspiu o cigarro pisando-o sobre o saibro do caminho, tinha um gosto estranho na boca e sabia exactamente de onde vinha: era medo. Puro medo estuporado! Quando tinha sido a última vez que sentira uma coisa assim? Tudo acontecera há um ano e meio quando, subitamente, na íngreme encosta coberta de ervas escorregadias, Uln dos gémeos começara a resvalar e ele correra atrás dele agarrando-o quando ele, mesmo já escorregando, conseguira chegar ao pé dele e os dois, desesperadamente agarrados um ao outro se dirigiam descontroladamente para o abismo. Só mesmo no último momento conseguira segurar o António e agarrar-se a um ramo. No entanto, dessa vez fora o medo por causa do António. Agora tinha medo por si mesmo.
- Tens de ir para o estrangeiro, Ramon - dissera José ao telefone. José César Rigiera Forras, o primo da sua mulher.
- Para onde?
- Para a Alemanha.
Alemanha? Era uma viagem à volta de meio mundo. E não podia recusar. Não, não podia, pois José apresentara-lhe a sua prima Maria. Quando ela ainda tinha 17 anos e ele, Ramon, acabara de fazer 23. E José até tinha pago o casamento e arranjara-lhe o emprego de agrimensor ali em Villaverde. José tinha acesso a tudo, conhecia todos, sabia tudo. E agora falava de uma viagem à Alemanha como se se tratasse de um piquenique de família em Antioquia ou junto ao rio.
Ramon deitou um último olhar à sua horta com tomates, bananas, pêssegos e pimentos que já estavam maduros. Depois entrou em casa para verificar se a mulher, Maria, já tinha a mala feita.
A mala estava em cima da cama e já estava fechada. Maria estava ajoelhada a um canto em frente da imagem de Nossa Senhora e rezava. Pôs-lhe a mão no ombro e disse-lhe o mesmo que José lhe tinha dito ao telefone havia duas horas:
- Agora não fiques preocupada - disse ele. - Afinal, que mal tem? Não passa de uma pequena viagem de férias à Europa. E ainda por cima paga por outros. Quem é que tem assim tanta sorte?
“À custa de outras pessoas? pensou ele. Para o diabo com as outras pessoas!
Meia hora depois já Ramon e José se encontravam sentados num Nissan todo-o-terreno, novo, vermelho e pecaminosamente caro, descendo a colina, deixando o vale, e só então José começou a falar dando a Ramon as primeiras informações precisas.
Tinham, como dizia José, “um pequeno problema de transporte a resolver.
- Muita coisa depende disso, Ramon. Por isso puseram o assunto nas minhas mãos. Então eu pensei: “Tenho o meu amigo em Villaverde. E ele há muito que me deve um favor, não é verdade?
Ramon fez um aceno de assentimento. Que outra coisa podia fazer, Podia muito bem imaginar o que iria transportar. Aquele Nissan e o BMW que José tinha no seu luxuoso chalet de Medellin, a piscina e as roupas caras da sua mulher, as aulas no liceu da filha Mercedes, todos aqueles dólares, francos suíços ou marcos alemães com os quais José pagava todo aquele aparato... Ramon sabia de onde vinham. Também sabia que José era o encarregado de fazer circular os dinheiros. Tratava-se de milhões, de mil milhões... Como tinham dito recentemente num jornal: “A indústria columbiana de cocaína ocupa o sétimo lugar entre as maiores indústrias do mundo. Trata-se de um império.
O império da “deusa branca, a deusa da cocaína, abarcando todos os dependentes do mundo inteiro. Esta sétima posição tinha, ano após ano, custado à Colômbia milhares de mortos, tendo mergulhado o país inteiro durante os anos da “violência num mar de sangue. Na guerra do Estado contra os barões da droga não havia misericórdia.
- Mas porquê eu? - protestou Ramon. - Deus meu, por que razão te lembraste de mim?
- Não te passava pela cabeça, pois não? - José riu-se: - Está bem, primeiro fiquei indeciso. Conheço bem a Maria. Enerva-se facilmente. Mas não tinha outra solução. Não encontrei mais ninguém. É um assunto muito importante.
- Então decidiram-se por mim?
- Claro. Conheces alguém melhor? - José tinha uma cara redonda e gordinha mas a sua boca tornara-se subitamente fina e os olhos duros. - Não vais ter qualquer problema. Foi tudo pensado umas cem vezes. Até ao mínimo pormenor. Também não se trata de nenhuma tonelada, são apenas alguns gramas.
Alguns gramas? Mesmo assim era perigoso, pensou Ramon exclamando:
- Não vás tão depressa!
Mas José não lhe ligou, continuando a guiar a toda a velocidade. O ponteiro do conta-quilómetros estava como colado nos cento e cinquenta. Na rádio estavam a transmitir uma reportagem de uma tourada na “Macarena em Medellin. A voz do locutor não era forte mas assemelhava-se ao som da broca de um dentista. José desligou.
- Não precisas de saber muita coisa. Só poderia pôr-te em Perigo. Só uma coisa: a encomenda é importante porque o chefe tem um novo cliente que pretende fornecer não só a Alemanha como também a Holanda, a Áustria e a Itália. O sistema que vamos passar a utilizar já está combinado. Segue tudo de barco. Mas o homem quer saber a qualidade do fornecimento antes de fazer o contrato, está no seu direito. No entanto, nestes testes feitos ao produto já por duas vezes que nos espetamos.
. Fez uma pausa. Talvez queira que agora lhe responda qualquer coisa, pensou Ramon dizendo simplesmente:
- Estou a ouvir!
- Estás a ouvir? - exclamou José divertido -, está bem, então ouve! Espetámo-nos. E porquê? Porque eles apanharam os correios. Já os tinham registado nos computadores. Caras marcadas terras queimadas! Bem e qual foi a saída? Vá lá, adivinha, podes muito bem acrescentar qualquer coisa à conversa.
- O marido da tua prima, o campónio de Villaverde que ninguém conhece, seria o correio ideal... É isso?
José voltou a rir-se.
- Não precisas de te fazer pior do que és, Ramon. Não és nenhum campónio. És agrimensor e sabes do assunto. E, por ser assim, até podes ir a qualquer colóquio na Alemanha, se te apetecer. Sobretudo em... em... sabe o diabo como se chama o raio do lugarejo, estes horrorosos nomes alemães que nem sequer conseguimos pronunciar. Avança, Ramon, ouve com atenção e vê o que fazem os teus colegas, adopta para ti mesmo os parâmetros internacionais. Alemão já tu sabes falar. Aprendeste no Instituto, não aprendeste?
- Eu? Meia dúzia de palavras...
- Está bem. Mas inglês aprendeste.
Por isso, pensou encostando a cabeça para trás.
- Não tenho alternativa, não é?
- És inteligente, Ramon. É verdade. Não tens alternativa.
- E quanto fica para mim?
- Estás a falar a sério? Nada, naturalmente. Para além das despesas. Olha. Posso dar-te já.
José tirou do bolso um sobrescrito.
- Estão aqui dentro dois mil marcos e trezentos dólares. com isto podes ir não só para o melhor hotel de Frankfurt como também visitar o melhor bordel. Chega-te?
A estrada tinha passado a auto-estrada, três pistas à esquerda, três pistas à direita, e assim, metidos na corrente dos outros carros, iam-se aproximando da grande cidade que surgia com os seus arranha-céus iluminados do meio do nevoeiro da poluição. Medellin, a segunda maior metrópole da terra, com mais de dois milhões de habitantes. Medellin, rodeada por todos os lados por encostas íngremes, a cidade das rápidas fortunas e das mortes súbitas, coração do império da cocaína. Como senhores feudais, os barões da droga governavam a cidade do cimo das suas vivendas fortificadas. Aquando da “violência tinham posto a ferro e fogo bairros inteiros, quartéis de Polícia e edifícios administrativos. Os jornalistas, os políticos, os juizes de que não gostavam, ou os rivais tinham sido assassinados.
Mas tudo isso tinha passado. Agora eram eles que estavam em apuros.
Na grande tabuleta por cima da auto-estrada via-se um aviãopreto num quadrado branco, indicando o aeroporto:
Aeroporto de Olaya Herrera - 8 km.
Primeiro voas até Bogotá. A partir daí continuas com a Lufthansa.
Ramon escorregou ainda mais pelo banco. “Já viajei de avião duas vezes, pensou agoniado. “Uma vez Medellin-Bogotá ida e volta e outra vez, quando a minha irmã morreu, até Santo André... E agora? Devia dar um encontrão a este idiota do José, tirar a chave da ignição, arrancar a pistola àquele saco de gordura deixando-o depois em qualquer valeta à beira da estrada.
Mas não fez nada deixando-se ficar de olhos fechados e sentindo o carro virar para fora da auto-estrada. Só voltou a levantar as pálpebras quando sentiu o cascalho a bater na chapa do fundo do carro.
Seguiam por um caminho ladeado de altos e sombrios eucaliptos. Ao fim do caminho Ramon podia ver uma casa: baixa com telhas de ardósia preta.
Uma casa? Era antes um bungalow de luxo.
José parou o Nissan em frente do edifício da garagem, tirou uma caixinha chata do porta-luvas e premiu um botão. A porta da garagem abriu-se sem um ruído. Havia espaço para muitos carros mas a garagem estava vazia. A porta fechou-se atrás deles. Estava escuro e cheirava a gasolina e pó.
- Anda!
Entraram num pequeno corredor através de uma porta de ferro indo parar depois a uma cozinha. As paredes eram de betão desguarnecido e o equipamento compunha-se só do indispensável. Ao lado do armário estava pendurada uma imagem do Coração de Jesus e um relógio de cuco. Deveria ser a cozinha do pessoal.
- Senta-te!
José voltou a premir um botão. Desta vez encontrava-se na Parte inferior da chaminé do fogão da cozinha. Uma tira de betão estreita deslisou sem ruído para trás deixando a descoberto uma espécie de câmara para onde José entrou. Quando voltou, trazia roupas penduradas no braço esquerdo. Na mão direita trazia uma caixa de plástico redonda com cerca de quinze centímetros de altura.
- Vamos. Veste isto.
- Para quê?
- Não estejas sempre a perguntar como e porquê. Faz o que te digo.
Era um fato leve azul-escuro, igual aos que usavam os homens de negócios que se encontravam à noite no clube “El Rodeo ou no “Union Club de Medellin.
- Toma, sapatos. Tamanho quarenta e dois, não é? Pelo menos! foi o que a Maria me disse. Espero que te sirvam. A gravata foi escolhida por mim. Vês? Preocupo-me contigo como se fosse teu pai. De seda. Italiana. Tens alguma coisa a dizer?
Era uma gravata cinzento-escura com pássaros rosa-avermelhado. José colocou-lha sob o nariz.
- Vá lá, despacha-te. Não temos assim tanto tempo.
O ponteiro do relógio da cozinha avançava inexoravelmente. Ramon trocou de roupa enquanto José, um cigarro ao canto da boca, o observava com ar crítico.
- Pronto. Agora começas a parecer-te com um ser humano. Como imagino o Joaquim Caldas. Vais passar a chamar-te assim. Caldas é um agrimensor superior da província de Antioquia. Toma, o teu passaporte com este nome. Até te arranjei documentação técnica com a qual podes apresentar-te aos teus colegas da Alemanha em posição de superioridade.
Ramon tentou dar o nó na gravata. Não conseguiu. José deu-lhe uma ajuda.
- Homem! Tens as mãos a tremer. Sossega, rapaz! Volto a dizer-te: é canja. Daqui a quatro dias estás de volta.
Daqui a quatro dias...
José agarrou na caixa de plástico que estava em cima da mesa e desapertou a tampa. Depois dirigiu-se ao frigorífico, tirou para fora uma garrafa de leite, pegou num copo que encheu.
- Vá lá, bebe.
- Que é isso? Leite?
- É saudável. Depois tomas este comprimido e outro golo de leite.
- Um comprimido para quê?
- Para não vomitares.
Ramon olhou para José e depois para o copo. Não se mexeu.
- Vamos, depressa!
Ramon verificou que a caixa de plástico continha muitas bolinhas acastanhadas. Demasiadas bolinhas. Medindo cada uma cerca de um centímetro. Voltou a olhar para José. Começava a antever o que José iria pedir-lhe a seguir.
- Isso por acaso será...?
- Isto são flocos peruanos. Acabados de chegar do Peru. “Rainha branca. O melhor de entre os melhores. E ainda por cima embalada em lindas cápsulas plásticas.
- E onde é que vou...
- Muito simples - José apontou para o estômago de Ramon: - Aqui dentro.
Já tinha ouvido falar nisso. Até já tinha pensado como é que os camelos se sentiriam. Chamavam “camelos aos correios da droga, e tinham razão, caramba! Estafetas desconhecidos que tinham de engolir o produto dentro de uma embalagem qualquer. As mulheres muitas vezes escondiam-na na vagina, os homens no estômago, a maior parte das vezes embalada em preservativos. Mas ter de ser ele mesmo...
A raiva tomou conta dele.
- Nunca! - gritou.
- Que significa isso?
Que não podes pedir-me uma coisa dessas.
- Não? - José tinha uns lábios grossos, protuberantes, que estavam sempre a sorrir, lábios de mestiço. Agora também sorriam. Mas os olhos permaneciam duros. com um movimento rapidíssimo fez surgir do casaco uma pistola. Levantou a arma à altura da anca, onde vibrava como a cauda de uma cobra. - Não estou a pedir-te nada, rapaz. Nesse aspecto não me fiz entender. Só digo o que tens de fazer. Casaste com a minha prima. Bem. Muito bem. Tens filhos dela de que muito gostas? Ainda melhor. E eu tenho o meu trabalho! Se cometer um erro, nem que seja o mais pequeno dos erros, ninguém se interessa pela minha família. Nem um bocadinho. E o mesmo se passa agora contigo. Lamento, mas é melhor veres as coisas como são... Pronto, agora toca a andar! Tens de beber sempre um golo de leite no meio de cada cápsula.
Ramon agarrou na caixa de plástico, tirou a primeira bolinha e meteu-a na boca...
O enorme pássaro brilhante avançava sempre para norte.
Voava a uma altura em que as pessoas já não conseguiam respirar e onde o frio cortante as mataria imediatamente: doze mil metros acima da terra, na fronteira entre a atmosfera e a estratosfera. Tinha ultrapassado as mais altas cordilheiras e montanhas do mundo. E aquelas montanhas dos Andes sempre cobertas de neve Pareciam aos passageiros que espreitavam pelas vigias do Boeing 747 extremamente longínquas, quase como que brinquedos. A máquina, que tinha impresso na cauda o símbolo da Lufthansa com um grou a voar, havia seis horas que se encontrava no ar.
. Tinha partido ao fim da manhã do aeroporto de La Paz, na Bolívia. tinha feito escala em Bogotá, na Colômbia, depois tinha voado cem mil quilómetros até Caracas, Venezuela, onde tinha trocado de tripulação, abastecido os enormes tanques com cem mil litros de combustível, tendo finalmente iniciado o longo troço de oito mil quilómetros até ao aeroporto-base de Frankfurt am Main. O Boeing era demasiado caro para poder ser mantido no chão. No caso de tecnicamente tudo se encontrar em ordem, na manhã seguinte levantaria voo do aeroporto de Joanesburgo, na África do Sul, desta vez com o número de voo LH571. Mas naquele momento o Hessen encontrava-se na zona aérea de Bogotá e não passava de um sinal verde-brilhante no visor circular do aparelho de radar da torre de controlo do aeroporto de El Dorado. Um ponto minúsculo que, len tamente, se aproximava do centro do visor de luz verde.
Vinte minutos depois, a aterragem! O trem de aterragem de dezasseis rodas bem cheias já tinha sido accionado, o comandante Wehrmann meteu os motores em marcha-atrás e accionou os travões de pé. Meia hora de atraso? Wehrmann lembrou-se das informações que havia pouco tinha enviado para a meteorologia, vento sudoeste de 23 nós lá fora. Se não houvesse muita carga em Bogotá, se conseguisse fazer a escala sem demoras, ainda tinha possibilidades de no troço até Caracas recuperar uma parte do atraso.
A paragem, acabou por ser mais curta que o esperado por Wehrmann. A bordo só entraram onze novos passageiros. O último a cumprimentar o comissário de bordo era um homem forte de fato azul. No computador da Lufthansa e no bilhete constava o nome de Joaquim Pedro Caldas. O passageiro Caldas ficou na zona dos fumadores na business class, no lugar 15H.
Então o Hessen foi novamente encaminhado pelo carrinho piloto, os reactores começaram a vibrar, o comandante Wehrmann colocou-se em posição de arrancar a todo o gás. Os reactores roncavam, O avião ganhou altitude por cima da cidade de quatro milhões de habitantes, no planalto dos Andes tomando o rumo de noroeste.
Pouco passava da meia-noite quando o Hessen aterrou no aeroporto de Maiquetia, em Caracas. A luz dos holofotes os autotanques e os carros da manutenção moviam-se à volta do Jumbo como uma armada de anões. Um grupo de mulheres da limpeza fez uma rápida passagem pelo avião. E o comandante Wehrmann, bastante satisfeito consigo próprio - acabara por recuperar vinte minutos do atraso que trazia - entregou a máquina ao colega Rolf Andersen e à sua tripulação.
Meia hora depois, o Hessen voltava a subir. Para o último longo percurso sobre o Atlântico, rumo à Europa.
Sorrir. Sempre a sorrir. A hospedeira Evi Borges estava novamente de serviço. Estava à entrada controlando cartões de embarque, indicando lugares. Sim, de serviço; no entanto, o sorriso não lhe pertencia. Parecia pertencer a outra pessoa muito diferente, dava informações, abria bagageiras, arrumava casacos. Alguém que fazia um esforço para conseguir sorrir.
Evi Borges tinha chegado nessa manhã de umas curtas férias na costa este de Caracas. Aí fora contactada para fazer parte da tripulação do comandante Andersen no voo 547 da Lufthansa para prankfurt.
As hospedeiras das grandes companhias de aviação havia muito tempo que escolhiam para as suas férias os sítios mais longínquos, mais exóticos. As viagens eram para elas muitíssimo baratas, bem como para os cônjuges ou acompanhantes.
O globo terrestre é o nosso lar!
Pois é, e assim Evi Borges nos últimos dois anos ia sempre que possível para Connors Hill, uma pequena e esquecida praia entre Los Angeles e San Diego.
Agora fora a última vez. Nunca mais veria o mar da varanda de Chris, nunca mais correria pela praia. Nunca mais... acabara-se!
- O que acontece é bom - tinha dito Chris.
Tinha razão. Só que não sabia se devia sentir alívio ou somente tristeza. Parecia separada de si mesma. Sorrir! Que outra coisa podia fazer? com o seu sorriso gelado no rosto, levou um jornal ao passageiro Joaquim Caldas, no lugar 15H, junto à janela.
Não havia nada de especial naquele homem. Talvez parecesse um pouco fechado e ensimesmado. Mas tinha um rosto simpático, queimado pelo sol e agradeceu com um amável gracias.
O lugar ao lado do seu fora ocupado em Caracas por uma senhora de idade. No bilhete estava escrito “Mathilde Werner. Tinha um ar sério, amável, descontraído; como as senhoras de idade que viajam muito.
- Não se incomode, minha querida - disse à hospedeira -, eu mesma trato da minha tralha. Sabe, faço isto duas vezes por ano. Os meus filhos e os meus netos vivem em Caracas. Quer que lhe diga há quanto tempo? Nem vai acreditar! Desde 1961. Isso é que eram tempos.... Nessa altura ainda tínhamos serviços de porcelana. Os aviões eram Constellations, íamos conhecer Lisboa e os Açores. Um voo desses demorava vinte e quatro horas. Era tão confortável! Mas
nessa altura você ainda não tinha nascido...
E Evi Borges acenava que sim. Estava numa disposição em que diria a tudo que sim. E continuaria a sorrir.
O homem à janela também sorria. Depois fechou os olhos e recostou-se. De facto não tinha nada que chamasse a atenção.
O painel de projecção de filmes a bordo iluminou-se. Àquelas horas da noite, quem é que queria ver filmes? A tripulação servira uma refeição leve. Alguns pontinhos de luz das lâmpadas de leitura cortavam a meia escuridão da cabina. Na parte da frente, na business class, ainda havia um grupo de inveterados jogadores a jogar as cartas. Alguns tinham encomendado vinho tinto para ficarem mais rapidamente com disposição para aquilo que no avião se chamava dormir. Finalmente, reinava o silêncio.
Evi Borges estava sentada no seu lugar, na passagem onde se encontrava um dos seis grandes contentores de provisões que dividiam a cabina de quase sessenta metros de comprimento. Não conseguia dormir e só conseguia pensar num nome: “Chris! Pobre querido Chris... Porquê? Então voltou a repetir para si mesma. “É bom assim. Tudo o que acontece é bom...
Evi Borges ainda disse mais outra coisa para si mesma: “Agora, em Frankfurt, já podes falar à vontade com o Fritz Hansen acerca de Chris. Ou pelo menos tentar fazê-lo. Se existe alguém que se possa sentir facilmente ofendido com o sucedido, esse alguém é Fritz!
- Chris teve uma morte linda - tinham-lhe dito em Los Angeles.
- Esteve a sorrir o tempo todo. E esteve sempre a falar de ti...
Entre as estrelas e o mar, o Hessen seguia o seu rumo nocturno. Nordeste, Atlântico, Europa...
Pouco passava das quatro horas quando Mathilde Werner acordou de um sonho estranho: Uma igreja. Ela era ainda uma rapariga nova. E alguém estava a falar. O padre? Um leve murmúrio... depois agitação... Deu um salto assustada.
Tinha sentido um ligeiro toque no ombro. Se calhar tinha sido o homem que já em Caracas se encontrava sentado no avião. Falava espanhol, devia ser sul-americano. Na sua bagagem de mão tinha lido “Bogotá. Colombiano, portanto?
Mas que se passava com ele? Que língua falava agora que não era espanhol? Era latim, aos safanões, rapidamente. O homem estava inclinado para a frente no seu lugar...
- Ave-Maria - ouviu Mathilde Werner.
Depois...
- Ia benediction dei nuestro Senor Jesus... - Estava a rezar-
- Oiça. Desculpe. Escute...
Após trinta anos de visitas à América do Sul fica-se a saber espanhol-
- Está a ouvir, senhor? Posso fazer uma pergunta? Talvez não se sinta bem?
Não obteve resposta.
Não quero parecer intrometida, mas talvez seja a primeira vez que voa? Sei o que isso é. Chamamos a hospedeira?
Gracias - ouviu-o dizer. - Obrigado.
Certamente não se lembrou de mais nada para dizer. Estava a tremer muito e tinha a mão sobre o estômago, o pobre homem!
- Sabe, eles têm tudo a bordo. Medicamentos, tranquilizantes, comprimidos para dormir ou para tirar as dores. Para as cólicas, por exemplo. Está com cólicas?
Voltou a não obter resposta. O homem encostou-se para trás. Ela via-lhe o perfil. Tinha um aspecto realmente simpático. De meia idade. Seria que realmente se sentia mal? Quem é que o poderia dizer, naquela escuridão?
- Veja lá se quer alguma coisa.
- Gracias - disse baixinho.
“Está bem, pensou Mathilde Werner reclinando-se e fechando os olhos, “nunca se deve obrigar ninguém...
Eu sabia! Evi Borges pensava na semi-obscuridade da cabina. Sabia-o com a mais absoluta certeza. Quando desci o caminho para a praia e vi a casa de Chris, já o sabia.
No entanto, estava tudo como habitualmente. O vento sacudia as ervas nas dunas. Mais à frente, na costa, as ondas rebentavam contra as rochas. Viam-se os barcos cá fora. Em frente da casa de Chris, o Pacífico espraiava-se calmo, deixando barrinhas de espuma branca sobre a areia.
A casa dele era de madeira, como a maior parte das casas de praia anorte de San Diego. O vento e o sal tinham-na tingido de cinzento, havia quatro anos, quando Chris fechara o seu primeiro grande contrato discográfico, comprara a casa a um empreiteiro. Devia ter sido um industrial de muito bom gosto pois as fundações de pedra pesada, madeira e o vidro e a longa varanda coberta faziam da casa uma maravilha.
A doença ainda não tinha deprimido nem atirado Chris para a cama. De todas as vezes que ela vinha da Alemanha, ele estava ali em cima à sua espera. A varanda pareceu-lhe enorme e horrivelment abandonada...
Gaivotas voavam por cima do telhado. Cá fora um corvo-marinho levantou voo levando atrás de si um rasto de espuma. Mas Chri não estava à vista. Evi mal podia mexer as pernas. “Acabou-se pensou ela, “deixou-me para sempre.”
A doença fora prolongada. Primeiro tinha poupado o seu rosto magro e sensível, depois cobrira-lhe o corpo de manchas negras e finalmente, atacara-lhe os pulmões e os intestinos.
- Se ao menos lhe dessem outro nome, Evi... um nome mais poético... “a zanga dos anjos ou qualquer coisa assim. Mas Sida ou, simplesmente, imunodeficiência adquirida? Diz lá gostas do nome?”
E ainda se tinha rido.
Calma... gritos de gaivotas...
Foi andando lentamente pela areia. Ao subir a escada, ouviu como sempre o terceiro degrau que estalava.
- Sê boazinha, Evi - dissera ele da última vez -, vem ter comigo quando estiver a acabar. Pelo menos, tenta vir.
Ela tinha ido. Demasiado tarde.
As cortinas nas janelas estavam todas corridas. No entanto, junto da entrada havia uma fresta através da qual podia ver o interior da sala: o largo sofá estava levantado e as cinzas tinham sido retiradas da lareira. Até o maravilhoso tapete indiano vermelho-escuro tinha sido retirado. Tudo vazio. Como o seu coração.
Automaticamente levou a mão ao esconderijo onde Chris deixava a chave quando saía.
Não estava lá nenhuma chave...
Virou-se. O vento refrescou-lhe o rosto, bateu-lhe no cabelo revolvendo-o. E as ondas diziam-lhe:
- Não é assim tão grave. Repara, ainda aqui estou... Não me sentes?
- Talvez. Mas cheguei demasiado tarde.
- Nós já sabíamos. Também, que teria isso alterado?
- Prometi-te, Chris. E isso é o que conta...
Fez o caminho de regresso voltando a subir as dunas até à casa de Miss Lane que tinha uma bomba de gasolina no cruzamento e uma loja que fornecia as poucas casas de Connors Hill. Quando os amigos de Chris não estavam ao pé dele, era ela quem de vez em quando ia vê-lo à casa da praia.
Mary Lane estava a dar o troco a um cliente da bomba de gasolina; Deixou-o ali plantado e correu ao encontro de Evi. Era uma mulher grande e ossuda, tendo um rosto duro, quase masculino. No entanto, a ternura maternal de que era capaz se reflectia agora nos olhos escuros’
- oh! Evi... - Abraçaram-se caladas e Evi sentiu-se bem com mãos que a agarravam. Ainda não conseguia chorar.
- Quando? - perguntou simplesmente -, quando, Mary?
Há quatro dias. Na quinta-feira. Ainda o levaram para a clínica da comunidade. Sorriu quando estavam a metê-lo no carro, sorriu mesmo. Nessa altura já estava certamente inconsciente... para a clínica da comunidade. Era o hospital da organização de que Chris lhe falara muitas vezes.
- Cheguei demasiado tarde, Mary...
- Que teria isso alterado, querida? Quero dizer, que poderias tu fazer?
Estar ao pé dele. Tinha-lho prometido.
- E depois? - perguntou Mary Lane, olhando-a. - Anda, vamos para dentro! Ainda tenho de acabar aqui umas coisas. Depois vamos beber uma chávena de café.
A loja estava vazia. Mary Lane ligou a máquina do café, abriu uma gaveta, tirou de dentro um pequeno embrulho que entregou a Evi.
- É para ti. Deu-mo a semama passada. Certamente previu o que iria acontecer.
Evi abriu o embrulho em silêncio. Viu um pedaço de osso com o comprimento aproximado de um polegar no qual estava gravada metade da armação de um veado. Um amuleto índio. Chris era natural do Arizona e tinha-se interessado muito pelas tradições e pela arte dos índios. Usava o amuleto como talismã. Quando tocava, colocava-o sobre o piano.
- Obrigada, Mary.
Mary Lane levara Evi uma hora mais tarde até à clínica da comunidade. Aí falou com um jovem médico, um dos amigos de Chris que ela já tinha encontrado em Connors Hill.
Chris tinha morrido sem dores, numa espécie de calma feliz, dissera Freddy Wilbroke, mas ainda falara nela.
Evi passou os dois dias seguintes quase sempre metida no quarto do hotel. Depois apanhou o avião da Varig para se apresentar ao serviço em Caracas.
Sol. Sol sobre as nuvens. Pouco depois das dez da manhã os duzentos e setenta passageiros do Hessen baixaram as mesas à sua frente para tomarem o pequeno-almoço que o pessoal de cabina começara a distribuir.
Também o pessoal do cockpit recomeçava a sua actividade. O Hessen aproximava-se do Velho Continente pela rota do meio, das três que ligavam o troço Caracas-Europa. Já tinha sobrevoado Ponta Delgada, a ilha dos Açores, e os vinte graus de latitude encontrando-se agora sobre as luzes de La Corunha, cidade no oeste de Espanha.
O comandante Andersen releu mais uma vez o boletim da meteorologia que acabara de pedir. Parecia tudo muito bem. Tommi Willstett, o seu co-piloto, mexia no computador para testar uma vez mais a correcção da rota. Berghan, o mecânico de voo, controlava pela enésima vez o indicador do motor três. De manhã tinha indicado uma ligeira queda de potência mas acabara tudo por se normalizar por si. Tudo em ordem. Se no espaço aéreo da Europa não houvesse nenhum problema por causa dos inúmeros voos de férias e se a situação em Frankfurt também fosse normal, então às quinze horas e dez minutos tocariam o chão e o atraso teria sido recuperado.
A carlinga do avião 747 era na ponta do piso superior, à frente dos vinte lugares da primeira classe, bem alinhados aos pares e confortáveis. Junto aos sanitários havia uma escada que levava à passagem e à antecâmara da business class.
Era aí que se encontrava Evi Borges ocupada a encher os termos com café fresco. Não muito longe dela, a duas filas de distância, uma senhora de idade cortava ao meio um pãozinho e barrava-o com manteiga. Ah! Aquele pequeno-almoço depois de uma noite a bordo! E os pãezinhos estavam verdadeiramente estaladiços. Como é que eles conseguiam uma coisa assim? Mathilde Werner sempre tinha gostado do pequeno-almoço a bordo e das simpáticas hospedeiras. Tinham tudo muito bem embalado: salsichas, compota, manteiga, queijo. E o manejo da loiça minúscula, num espaço tão apertado...
Claro que o pequeno-almoço em casa também podia ser muito agradável, mas no avião era, sobretudo, muito diferente. Naquele dia tinha voltado a apreciar verdadeiramente a refeição.
Se não fosse...
Lá voltava das casas de banho aquele pobre homem! Tinha voltado a sentir vontade. E também voltava a ter a mão sobre o estômago. Bem, é preciso ser tolerante quando alguém se sente mal.
Mathilde Werner afastou-se com cuidado para o deixar passar para o lugar ao seu lado, saindo para o corredor. Conseguiu não tocar no tabuleiro ao entrar para o seu lugar. Não tinha tocado no pequeno-almoço. Nem mesmo no café. Só bebia água mineral e já ia na quarta garrafa. Tinha a cara verde. No jantar da véspera também não tinha tocado... Agora estava sentado no seu lugar e tinha os olhos fechados.
A velha senhora decidiu tentar mais uma vez:
- Não se sente melhor? Eu não tenho realmente nada com isso, mas já lhe disse uma vez, senhor, penso que devia fazer qualquer coisa.
O tipo nem sequer deu resposta. Por outro lado, não era de admirar, se se sentia assim tão fraco.
.- Sabe, vou falar agora com a hospedeira.
.- Senhora - falava muito baixinho, não era mais que um sopro de sofrimento -, senhora, deixe-me em paz de uma vez por todas...
O pequeno-almoço já não sabia bem a Mathilde Werner. Não, ao lado de uma pessoa assim. Resignada, entregou o tabuleiro à bonita hospedeira ruiva que nesse momento empurrava o carrinho pelo corredor. E lá fora havia sol e céu e por baixo certamente havia mar. Mathilde Werner decidiu passar ainda pelas brasas. Quanto tempo esteve assim, não sabia. Só sabia uma coisa quando acordou em sobressalto: que qualquer coisa grave, muito grave, deveria ter acontecido. Havia um ruído, não, um gemido leve e tão cheio de dor que lhe foi direito ao coração.
Endireitou-se. Ele... quem mais poderia ser? Ali estava sentado, todo dobrado para a frente, com a cabeça a bater nas costas do banco da frente e a tremer... sim... a tremer.
- Senhor? Está a ouvir, senhor... - Agarrou-lhe no braço, queria endireitar-se, não, queria levantar-se e chamar a hospedeira e então aconteceu. E aconteceu sem aviso, mais depressa do que Mathilde Werner pudesse compreender o que se passava e de onde vinha aquela dor horrível que lhe apanhava a cabeça. Uma sombra, sim, isso ainda conseguira ver, uma sombra em frente dos olhos. E aquele silvo. E a pancada que a atirara de encontro às costas do assento... e o gosto de sangue na boca. E as luzes que na escuridão dançavam à sua frente. Precisava de engolir, de estar sempre a engolir o próprio sangue...
Tentou respirar fundo. Abriu os olhos. Agora queria gritar e não conseguia.
Viu uma cara. A cara do homem que tinha querido ajudar. Mas não era uma cara. Era uma máscara horrível. com os músculos a dançar como que puxados por cordelinhos. As pupilas estavam minúsculas, como cabeças de alfinete. E os dentes... aqueles dentes! O rosto de um demónio. Não era a cara de um ser humano...
Tinha acontecido tudo tão depressa que nem os passageiros das outras filas percebiam o que se tinha passado. Tinham acabado de desdobrar os jornais, acendido os cigarros ou cachimbos para se reclinarem comodamente quando o grito os assustou a todos: a senhora de idade ali? Oh, Deus! O sangue corria-lhe pela cara. A cabeça inclinava-se para o lado. E aquela pessoa, aquele tipo, aquele louco, inclinava-se para ela, segurava-a pelos ombros e sacudia-a como se fosse uma boneca.
A hospedeira ruiva veio a correr. Levou um estalo que a deitou ao chão.
O primeiro a sair do espanto foi Luis Schober, um engenheiro de Munique, de ombros largos, que tinha ido à Venezuela em serviço da sua firma. Schober correu pelo corredor e levantou o homem enraivecido pelos ombros:
- Cão malvado! Agora vais ver como te mordem!
Mas foi Schober quem teve a surpresa da sua vida: conseguira atirar o homem ao chão, mas este deu-lhe com os pés na barriga com tanta força que Schober voou por cima dos assentos mais próximos. E o louco voltou a berrar. Não, não era um berro; era o urro rouco de um animal selvagem preso na jaula.
Dois outros passageiros vieram ajudar Schober procurando segurar o louco. A hospedeira-chefe correu para o telefone. Mas o louco voltou a manifestar uma força tal que conseguiu libertar-se dos braços que o agarravam, tentou levantar-se cambaleante e então, de boca aberta, caiu redondo.
O comandante Andersen apareceu ao cimo das escadas. A hospedeira-chefe correu ao seu encontro.
- Que se passa aqui?
- Também gostava de saber, Robert. Está ali um completamente passado.
Fazia parte das obrigações da tripulação manter os passageiros a bordo tão confortáveis e satisfeitos quanto possível. Claro que existiam limites. E eles tinham perante si um desses limites.
Arrastaram o homem sem sentidos para a cabina a estibordo da business class e ocuparam-se primeiro da sua vítima, a senhora de idade a quem ele aparentemente partira a cana do nariz. Mas ela já estava bem, não sangrou durante muito mais tempo, tinha uma compressa molhada sobre a cara e Evi Borges deu-lhe um comprimido para as dores. O homem, verificavam agora, estava muito pior.
“Ainda vai levantar-nos problemas”, pensou o comandante Andersen, inclinando-se sobre o corpo no chão.
Tinha a cara azulada e a respiração entrecortada. Evi Borges ajoelhou-se ao seu lado tomando-lhe o pulso. Ingrid Bohm, a chefe de cabina, estava a seu lado, pequena, delicada e como sempre completamente calma.
Andersen conhecia Ingrid havia muitos anos e tinha voado com ela Por todo o lado, Por isso ela era a única que se permitia tratá-lo familiarmente por tu.
- Homem, Robert, isto é cá um caso!
- Que tal está ele? - perguntou Andersen.
Evi olhou para cima:
- Uma merda. Mal se apanha o pulso. Mas está sossegado. E de que maneira! Olhem para a cara do homem: já está a ficar azul. É por causa da falta de oxigénio... Meu Deus, onde está a máscara?
- Vai já, Evi!
Andersen afastou a cortina com que separavam a passagem da cabina. Ao menos assim ficavam protegidos dos olhares espantados, ou antes, os passageiros ficavam protegidos daquele espectáculo deprimente.
Finalmente! Ingrid chegava com a máscara. Evi colocou-a sobre o rosto desfeito. Ficou durante muito tempo a apalpar a veia do pescoço.
- Parece que o oxigénio começa agora a fazer algum efeito.
- Óptimo. Esperemos que continue durante muito tempo! - Andersen olhou para o relógio... - Mais uma hora e aterramos em Frankfurt e ficamos livres deste louco.
Levou Ingrid para junto da escada:
- Ouve lá, Ingrid! A Borges faz aquilo muito bem. Mas tu não tens mais experiência?
Pela primeira vez, desde que a conhecia, viu medo no seu olhar. Abanou a cabeça.
- Ela é a melhor nisto. Evi sempre se interessou pelo tratamento de doentes. Em Los Angeles...
Calou-se. Robert Andersen não tinha nada com o que se dizia.
- Então está bem - disse ele -, vou falar com aquela gente...
Agarrou no microfone da instalação sonora da cabina e falou com a sua voz simpática, eficiente, máscula:
- Minhas senhoras e meus senhores! Alguns de entre vós acabam de ser testemunhas de um episódio lamentável. Tenho, nesta ocasião, de agradecer aos senhores que me ajudaram a manter a situação sob controlo tão depressa. Um dos nossos passageiros foi vítima de um acesso. Não podemos chamar-lhe outra coisa. Encontra-se mal, como é normal nestes casos, pelo que peço o favor de me dizerem se entre os Senhores passageiros se encontra algum médico. No caso de assim ser, peço-lhe que me acompanhe até à passagem para o piso superior. Obrigado!
Não houve qualquer resposta. Nenhum braço se levantou. Ninguém saiu do lugar. Só se ouvia falar baixinho.
Andersen suspirou e voltou a colocar o microfone no lugar.
- vou telefonar agora para Frankfurt. Já ficam a saber o que devemos fazer.
Na clínica do aeroporto de Frankfurt eram agora catorze horas e para o médico-chefe Dr. Fritz Hansen ainda era tempo de passar alguns papéis em revista. Que tinham ali? Duas comunicações do Departamento de Saúde. Podia esperar... Uma relação de custos de transporte da Cruz Vermelha. Empurrou-a para a secretária.
- Toma lá, Schmidtzinha. Trata tu disso! Uma carta:
“...e temos o prazer de o convidar para a conferência do Professor Hubmann sobre terapia intensiva dos grandes queimados.”
- Pois sim, se eu tivesse tempo para isso! Finalmente o protocolo referente ao dia anterior.
Cento e catorze entradas. De entre elas vinte e três casos graves de abuso do álcool. Um dos bêbados teve de ser adormecido pois atacara o chefe do pessoal de voo. E de onde vinham as excelências? Doze escandinavos. A esses já eles estavam habituados. Mas ainda havia dois ucranianos e um russo. Bem-vindos ao grande clube ocidental dos bêbados! Adiante: três casos graves de angina de peito. Uma cólica de vesícula. O número normal de desorientados. Um epiléptico. Uma omoplata inchada devido a queda nas escadas rolantes. Um osso partido que fora engessado. Corpos estranhos nos olhos, úlceras de estômago. Os dois médicos Dr. Walter Hechter e o jovem Dr. Olaf Honolka tinham passado um dia de serviço calmo, muito calmo...
Fritz Hansen largou a caneta esferográfica. Abriu uma das gavetas da secretária. Ainda havia cigarros ali em qualquer lado, um maço meio aberto...? Cheio de má consciência voltou a fechar a gaveta e levantou-se. Fez um aceno à secretária e saiu da sala. E quem encontrou ele lá fora, entre o laboratório e as radiografias? Quem estava a empurrar uma cadeira de rodas? Exactamente a enfermeira Lucrécia! E o lindo rosto cheio de personalidade, de boca vermelha e olhos negros brilhantes, olhou para ele de maneira tão radiosamente espontânea que parecia ter um interruptor para a felicidade. Da sala da radiologia saía o oposto: Rolf Grafe com um sobrescrito grande debaixo do braço, os cantos da boca puxados para Baixo, o olhar fixo como no dia em que, devido à sua mania das motas se tinham zangado.
Hansen fez o seu mais lindo sorriso de médico-chefe:
- Meninos, de momento não temos nada para fazer. vou estender um bocado as pernas. Se acontecer alguma coisa, já sabem...
Bateu com a mão no receptor que trazia no cinto e quando se ia virar, a Schmidt saiu correndo da sua sala para o corredor:
- Sr. Doutor, pedem-lhe que vá imediatamente à torre. Um acidente num avião que está para aterrar. Um tal senhor Marain telefonou. Está à sua espera.
- Que é que se passa agora, caramba! Ele disse alguma coisa?
- Não.
- Então está tudo esclarecido. Diga a Wullemann para preparar a ambulância.
- Está bem, doutor.
- E Rolf, ficas de serviço para o caso de eu precisar da sala de operações.
Grafe acenou afirmativamente.
Ao chegar à torre, lembrou-se da primeira vez que ali estivera; era a mesma sensação, o mesmo panorama: paredes arqueadas semeadas de janelas circulares. Homens lá dentro. Vozes abafadas. E no lado oposto, um pouco à parte, uma pequena cabina onde se sentava Edwald Marein, o controlador aéreo de serviço. Ao seu lado estava um dos directores técnicos da Lufthansa. Lembrava-se da cara dele mas não do nome.
- Entre, Doutor - disse Marein. - Oiça isto. Foi o seguinte: no voo LH547 vindo de Caracas, parece que um dos passageiros se passou, tendo ferido uma das passageiras. O homem responsável pela “barraca parece estar gravemente doente. Durante a viagem já tinham reparado que ele padecia de dores.
Hansen fez um aceno. Caracas? O voo 547 Não era o voo de Evi?
- O homem é colombiano - continuou Marein. - Entrou em Bogotá. Segundo os dados do passaporte trata-se de um Joaquim Caldas, agrimensor, de 38 de idade, e mora em Antioquia, Colômbia.
Em circunstâncias normais seria perfeitamente indiferente o sítio de onde o homem vinha, se é que neste mundo ainda existem “circunstâncias normais. Mas uma palavra tinha ficado: “Colômbia! Agora Hansen percebia também o rápido e intencional olhar que o chefe de cabina lhe lançara enquanto a mencionava.
Marein meteu na mão de Hansen um microfone:
- Aperte o botão. Está em comunicação com o piloto, o comandante Andersen.
- Daqui fala Hansen, o médico de serviço na clínica do aeroporto.
- Até que enfim, Doutor! Certamente já o informaram do que se passa? Estamos a dar oxigénio ao homem. Também pensámos dar qualquer coisa para a circulação, mas preferimos esperar pela sua opinião.
- Como é que ele está agora?
- Agora já nem se mexe. O homem está azul, quase cinzento. o pulso muito rápido, a testa húmida, as mãos geladas. Tudo o que se espera. Doutor, eu nunca aterrei com um cadáver. Faça tudo para que não seja hoje a primeira vez!
- O homem atacou uma passageira?
- Certo! Uma senhora de idade que estava sentada ao seu lado. Partiu-lhe a cana do nariz. Parecia o ataque de um louco.
- A crise surgiu assim de repente? Ele disse alguma coisa durante o ataque?
- Se disse alguma coisa? Berrou como um touro raivoso. Escute, Doutor, sei tudo isto pelos outros. Eu tenho um avião para pilotar. Isto significa que vou sentado à frente e, nos Jumbos, ainda vou em cima. vou passar-lhe a hospedeira que o assistiu. Disse-me que o conhece.
Afinal era verdade! Evi... Havia onze hospedeiras a bordo. As hipóteses eram de uma para onze. No entanto... Tinha o coração aos saltos.
Evi apresentou-se muito simplesmente e descreveu o comportamento do passageiro, os seus movimentos curtos e espasmódicos antes de desmaiar... como esperneava e esbracejava simultaneamente.
- Mas o mais impressionante era a cara dele - disse para terminar o seu relatório.
- Tinha a pele avermelhada?
- Também tinha. A seguir. Mas os olhos, com as pupilas minúsculas! Tinham um aspecto horrível. E ficou com uma força inacreditável... Agora as pupilas estão enormes.
A voz de Evi perdeu por momentos a sua calma objectiva. Deixava transparecer não só a tensão como também a excitação com tudo o que se passara.
- Três, quatro passageiros tentaram agarrá-lo. Eram homens fortes e ele não é muito grande.
- Que peso tem, mais ou menos?
- Talvez setenta quilos, no máximo oitenta. Mas parecia ser mais forte que todos os outros.
Enquanto Evi falava, Hansen analisava todas as suas palavras e todas as consequências do que relatava, avaliando rapidamente todas as hipóteses possíveis. Tinha de fazer um diagnóstico rápido, Precisava de encontrar a razão do distúrbio físico e talvez psíquico que tinham provocado o ataque. E depois o paciente precisava imediatamente dos tratamentos adequados. Mas quais?
- Meu Deus. - As palavras saíram-lhe da boca sem que as tivesse pensado. - Meu Deus, Evi, como gostava de estar agora ao pé de ti.
- Sim - ouviu ele -, também seria tudo mais simples. Era-lhe indiferente que os outros tivessem ouvido. Mas, raios, que se passaria com o homem? Todos os sintomas que Evi tinha descrito indicavam um grave, talvez fatal, problema no estômago e na zona dos intestinos. Mas que tipo de problema? As possibilidades eram infinitas. Uma peritonite súbita, uma úlcera de estômago rebentada, tudo era possível. Até podia ser um envenenamento...
E certamente era isso mesmo! Não podia deixar de fora nenhuma das outras hipóteses, mas a suspeita que sentira logo ao princípio quando ouvira a palavra “colombiano, fez que passasse por cima de todas as outras possibilidades: o aspecto das pupilas, a actividade motora simultânea, a excitação? Cocaína. Que outra coisa poderia ser?
Um envenenamento por cocaína que tinha conduzido a um estado alucinatório. Finalmente, a extraordinária força que Evi tinha descrito. Antes da grave exteriorização da doença, o homem não tinha parado com dores. Mas a droga venenosa devia ter atingido o sistema nervoso central provocando o ataque de loucura antes do desmaio.
- Como está agora a respiração dele?
- Muito rápida. O pulso também está cada vez mais rápido e fraco.
- E a cor do rosto?
- Não sei, cinzenta...
- Repara bem, Evi. Cinzenta ou azulada?
- Mais para o azulado.
-- E as pupilas, que aspecto têm agora? Observa também os músculos.
- As pupilas agora estão dilatadas. Enormes. As pernas estão rígidas.
Um espasmo. Cãibras. Provocadas pela falta de oxigénio. Isso Seria em breve ultrapassado. E depois? A falta de oxigénio representava o perigo maior. A droga tinha atingido o sistema nervoso central e poderia paralisá-lo a qualquer momento, oitocentos a mil e duzentos miligramas de cocaína era o máximo que um organismo humano poderia tolerar. Estes números tinha ele mesmo indicado aos funcionários da segurança e da Alfândega durante uma sessão de esclarecimento no aeroporto. Tudo o que ultrapassasse estes valores seria morte certa.
O diabólico produto não chegava só em contentores dos aviões ou em esconderijos de barcos. Os correios da droga tentavam constantemente uma luta solitária. Escondiam a droga nos cosméticos, nas bonecas, nas máquinas fotográficas ou em fundos falsos das malas, pregavam-na aos fatos ou às perucas. Os mais desgraçados de todos os desgraçados eram os que, com medo de ser descobertos, a transportavam dentro do próprio corpo: no ânus, na vagina, até no estômago. Não tinham a noção do perigo mortal que corriam.
Um preservativo corroído pelos ácidos gástricos. Se fosse esse o caso era uma maravilha o homem ainda respirar.
De qualquer forma não tinha muitas hipóteses. O comandante Andersen teria provavelmente de aterrar com um cadáver... E Evi?
- Evi, tenho muita pena que...
- Não digas isso. Ainda não...
Era verdadeiramente corajosa. Tanto melhor. Falou cheio de pena e admiração:
- Evi, ouve com atenção: trata-se da respiração. Ameaça parar completamente. Temos, antes de mais nada, de fazer que continue a respirar. Só o conseguimos através da circulação.
Falava devagar e com clareza, como se a situação não fosse real mas antes um exercício, durante uma das lições que costumava dar.
- Temos de tentar com meios mecânicos. E com medicamentos.
- Meios mecânicos? Queres dizer uma massagem cardíaca?
- Certo. És capaz de a dar?
- Claro... aprendi a fazer isso. Nos últimos tempos tenho-me treinado bastante.
Ficou a pensar: treinado bastante? Onde, com os diabos, tinha ela treinado? E em voz alta disse:
- Tanto melhor, Evi. Tens uma lista de medicamentos?
- Sim. Aqui... A injecção de atropina já aqui está.
- Óptimo! Atropina era bom. Mas não têm também Dopamina a bordo?
- Espera... sim, está aqui.
- Ouve: oitenta miligramas de dopamina e intravenosa.
Já nem perguntou se aquele fenómeno ruivo a bordo do super-Jumbo também dominava a técnica das injecções. Partiu do princípio que sim.
A resposta não se fez esperar. ,
- Tudo bem - disse ela. Nada estava bem, caramba...
- bom, Evi. Pega na Dopamina. Dentro de quinze minutos dás-lhe outra injecção e dentro de meia hora dás-lhe uma terceira. Nos entervalos tens de lhe fazer uma massagem cardíaca. Sabes como se encontra facilmente o ponto de compressão?
E voltou a acontecer:
- A mão esquerda sob o terço inferior do esterno, à direita… Mas agora tenho de me despachar.
- Faz isso, menina! Já sabes, estou aqui…
Ruídos. Os ruídos atmosféricos tinham-se tornado mais fortes no microfone, mas Hansen julgava ouvir respirar. E depois, muito nitidamente, o ruído ritmado de uma respiração. Não era o paciente que assim respirava. Devia ser Evi que começara a massagem cardíaca…
Marein olhou para ele.
- Que rapariga incrível! - disse ele.
“Sim, pensou Hansen, “uma rapariga incrível...”
Durou só uma fracção de segundo mas parecia uma eternidade. Uma onda de ouro líquido e luminoso, um calor insuportável a percorrê-lo, correndo-lhe pelas veias até ao último dos nervos, conferindo a Ramon um poder divino: anulava as figuras diabólicas que caíam sobre si, destruía-as, exterminava-as e, no entanto, o círculo de fogo na sua cabeça girava cada vez mais rapidamente, rebentando num turbilhão escuro que o atirava para o abismo.
Evi retirou a agulha da injecção de Dopamina.
Era a terceira.
Pegou na lanterna que fazia parte do equipamento de socorro e fez incidir a luz velada sobre os olhos muito abertos de Ramon. Antes... as pupilas não se tinham modificado? Evi tinha a certeza que sim.
A mão tacteou-lhe a artéria do pescoço. Era muito difícil dizer se a pulsação estava mais forte.
Voltou a pegar no transmissor que, através do sistema de bordo, a ligava à torre de controlo em Frankfurt.
- Houve alguma alteração? - perguntou o Dr. Hansen
- O tórax está a mexer-se - respondeu Evi. - A respiração Parece um bocadinho mais forte. E há pouco tive a impressão de que tinha acontecido alguma coisa com as pupilas, mas e agora? Já lhe dei a terceira injecção.
. - Consegues aguentar isso tudo? A massagem cardíaca é muitíssimo cansativa.
- Acho que sim.
- Só mais vinte minutos, Evi. Qual quê, talvez quinze. Não tens alguém que te possa render? Deves estar exausta.
Evi voltou a levantar-se, empurrou as mãos contra esse osso elástico do meio do tórax, fez força na vertical de cima para baixo como tinha aprendido, absolutamente na vertical, aplicando todo o seu peso, coordenando a respiração com o esforço que fazia, regular, ritmado: em cima, para baixo... aguentar... conseguir aguentar!
“Chris, pensava ela, gritando por dentro, “Chris, ajuda-me!
Tinha guardado o pequeno talismã de Chris no bolso esquerdo da blusa. Sentia o volume contra a pele quando assim se mexia, como naquele momento, e era como se uma corrente de força se desprendesse dele.
“Não me deixes sozinha! Ajuda-me Chris, sim?... Não me deixes sózinha. Não posso voltar a falhar...”
E mais... e outra vez... Um corpo rígido, um corpo inerte. Mas um corpo que ainda vivia. Um corpo como o de Chris. Um corpo que tinha de continuar a viver. “Continua vivo, por favor! Por favor, respira,, respira... Senhor Deus, mais uma vez...
E Evi continuou com a sua luta.
O capitão Andersen tinha conseguido ouvir através do sistema de bordo, parte da conversa entre Hansen e Evi Borges. Mas agora tinha outra coisa para fazer. Do departamento que controlava o espaço aéreo até à fronteira com a Suíça, tinha acabado de chegar um aviso para mudar para a frequência 120.8 e contactar o controlo das chegadas.
O co-piloto tinha o microfone na mão:
- Chegada a Frankfurt, voo Lufthansa 547. Altitude de passagem 100 para uma altitude de voo de 90.
- Entendido - foi a resposta.
Um longo-curso DC-10 da British Airways, um Fairchild da Cross-Air e um Lockheed da Air Granada tinham sido entretanto enviados para a rota de espera para deixar livre a pista para o D-ABY2.
O gigantesco pássaro preparou-se para perder altura atravessan do a montanha de nuvens que cobria a terra.
Em baixo, na pista onde o Hessen deveria aterrar, já se encontrava preparado um carro especial de socorro da clínica do aeroporto.
O elevador hidráulico estava pronto para fazer subir o carro com o pessoal médico e o equipamento técnico em poucos segundos, até altura do porão de carga do avião. .
- Cuidado - acabara de dizer o enfermeiro-chefe Fritz Wullemann.
- O cuidado é mãe da chávena de café. Como fazemos-
É melhor aproximarmo-nos mais para daqui a bocado não termos de dar tantas voltas. Doutor, vamos...
Hansen fez um sinal de assentimento e Wullemann deu indicações ao condutor para se aproximar do local de paragem. Lá fora reinava a habitual agitação: os carros follow-me, os contentores para os dejectos, os rebocadores, o pequeno autocarro do chefe de Pista, mecânicos e o carro dos técnicos de serviço. Nada disso interessava ao pessoal da clínica.
- parece-me que já aí vem. Como era o número, Doutor?
- D-ABY2 - disse Hansen sentindo a excitação crescer dentro de si.
Realmente, saindo das nuvens baixas surgia um Boeing 747, voando baixo acima do trevo do nó da auto-estrada; sobrevoou os limites da estrada secundária e pousou na pista com as abas das asas totalmente abertas a fazerem pressão contra o vento. Depois tornou-se mais lento, rolou para a direita da pista e seguiu com os motores a roncar até ao terminal, onde parou.
- Vamos, depressa, Otto! - gritou Wullemann para o motorista. Enquanto colocavam a escada para os passageiros na saída traseira, o pronto-socorro dirigia-se para a abertura dianteira. Esta abriu-se.
Wullemann também tinha aberto a porta de correr da ambulância.
- Depressa, Edi, iça esta coisa para cima! - gritou ao enfermeiro.
O Dr. Fritz Hansen já tinha visto Evi. Um rosto que parecia apático e estranho devido ao esforço das últimas horas. E viu o corpo no chão, a máscara de oxigénio, o homem que ali se encontrava de calças de uniforme e camisa de aviador olhando para ele de sobrancelhas erguidas.
- Evi, já cá estamos. Evi, és uma heroína!
Foi a única coisa que Hansen conseguiu dizer enquanto a ponta dos seus dedos tacteava a artéria do pescoço do homem sem sentidos. Completamente imóvel. Nem um movimento na carótida.
- Mas ele estava vivo, Fritz! - Era como que um grito abafado. - E as pupilas também se alteraram. O tórax mexeu-se. Estava vivo, acredita-me...
- Claro, Evi. E vai continuar a estar, espero. Anda Fritz...
Wullemann, que reparara no seu olhar espantado, fez um largo sorriso:
- Também me chamo assim, menina: Fritz. Há por aqui muitos... Bem, então vamos a isto!
Levaram a maca para o carro. A porta fechou-se...
Estava vivo, acredita-me!... Hansen não conseguia esquecer o grito de Evi depois de terem aterrado. Claro que o homem tinha estado vivo e estava... ainda. com os diabos, agora não podia esticar o pernil. Temperatura do corpo? A pele húmida e fria, certo, mas não como a de um morto. Mas não se encontrava o pulso! Não se sentia nada, absolutamente nada...
Não valia a pena procurar no braço uma veia para lhe dar uma injecção. Neste caso só interessava o caminho principal de uma das grandes artérias do corpo. Aqui... a subcava, sim, sente-se!
Tinha sobrevivido... mas certamente, Evi. O que estamos a fazer é uma espécie de corrida de estafetas contra a morte. No fim veremos quem ganha.
Não tinha a certeza de ser ele a ganhar. Não, não tinha mesmo
- O tubo, Fritz!
- Adrenalina, Doutor? - perguntou Wullemann.
Hansen fez sinal que sim. Um ás, este velho berlinense. Devia ser nomeado “professor de primeiros-socorros em casos de acidente. Só precisava de andar mais bem barbeado. Óptimo, o homem já estava entubado. Oxigénio. Depois a adrenalina...
E, mesmo assim, ainda não se movia. Já devia ter respirado, mesmo que a intervalos. E agora? Colapso circulatório. Ou seria paragem cardíaca?
O pronto-socorro tinha sido descido e lançava-se ao caminho. Finalmente! “Leva dois minutos até chegarmos à entrada, pensou Hansen, “e mais dois até termos o homem sobre a mesa. No mínimo... É muito tempo, demasiado tempo! Wullemann já tinha ligado o aparelho de electrocardiogramas que mostrou o que de mais temível podia apresentar: uma linha recta, só muito ligeiramente ondulada de uma assistolia. O sinal da morte!
- Ainda estava vivo, Fritz! Sim, raios o partam. Mas agora?
Wullemann tinha no olhar a mesma inconformada decepção que ele próprio sentia. A falta de oxigénio estabelecia uma fronteira inultrapassável: três minutos até que ocorresse a morte cerebral. Mesmo que o corpo aguentasse ainda mais dez minutos, de que serviria isso, que alteraria isso?
Hansen levantou os punhos. Uma medida de desespero mas neste jogo de lotaria entre a vida e a morte por vezes resultava: um murro dado exactamente da altura de vinte centímetros para o meio do externo. , ;
Nenhuma reacção.
Sentia o suor escorrer-lhe da testa.
- O defibrilador, Doutor?
Claro. Rápido, dá cá!
O carro deu um solavanco.
- Raios o partam! Aquele idiota lá à frente não pode ter cuidado?
Finalmente paravam. A porta foi aberta. Vozes, batas brancas,
Hansen limitou-se a abanar a cabeça:
Deixem-nos em paz!
Tinha nas mãos os cabos dos dois eléctrodos redondos do defibrilador cujas descargas eléctricas poderiam voltar a activar o coração. Wullemann tinha colocado o indicador de potência nos 200 Joule de descarga inicial.
- Agora - comandou Hansen.
O horrível traço verde ficou parado.
- Outra vez, Doutor?
- Sobe para trezentos!
- Trezentos - repetiu Wullemann dando mais uma volta ao comutador.
A estreita linha verde do monitor tinha-se alterado ligeiramente, parecia mais larga, menos regular.
- Trezentos e sessenta. Agora!
Mas o coração continuava sem trabalhar nesses momentos em que Hansen mais que nunca precisava de lutar contra o paralisante desespero da passagem do tempo que traria a morte.
- Adrenalina. Um miligrama. Misturada com bicarbonato de sódio, senão a adrenalina não faz efeito...
Havia muito que Wullemann tinha retirado a ampola do estojo e colocava-a agora rapidamente no catéter.
- Outra vez trezentos e sessenta - indicou Hansen depois de ele acabar e rezou: “Meu Deus... Vamos lá agora, Senhor dos Céus! Reage agora!
Também aquela descarga não deu resultado. O ponteiro do aparelho de electrocardiogramas marcava cruelmente os segundos, adicionando-os até à iminente catástofre. Já não tinham muitas hipóteses. Se agora não desse resultado e o próximo choque voltasse a cair no vazio, então os três minutos ter-se-iam quase esgotado.
- Novamente trezentos e sessenta, Wullemann...
Veio o choque. E, finalmente, sim senhor, céus... finalmente a horizontalidade mortal da horrível linha no monitor, tinha-se quebrado.
- Estás a ver, Doutor? Estás a ver? - exclamou Fritz Wullemann. - Ora ainda bem!
Muito bom aspecto não tinha ainda: do monitor saía um som descompassado e entrecortado.
- Rebate falso - exclamou Hansen aborrecido. - Ainda Por cima.
- Não devemos ser mal agradecidos, Doutor. Afinal ele me xeu-se.
E tinha razão. O coração, e com ele todo o corpo inerte e pálido lutavam pela sobrevivência. O coração não estava ainda em condições de poder fornecer o oxigénio indispensável ao cérebro e a todos os outros órgãos mas as hipóteses tinham aumentado.
- Lidocaína - disse Hansen. - Rápido! Um miligrama. E depois novamente trezentos e sessenta Joule.
O produto foi ministrado, Fritz Hansen voltou a pegar nos cabos dos eléctrodos apertando-os com a força da raiva e voltou a enviar um pedido de socorro aos Céus para que fosse finalmente atendido.
Então aconteceu: no monitor começaram a aparecer os primeiros ziguezagues, primeiro os mais pequenos, os segundos e novamente outro...
Hansen e Wullemann sustiveram a respiração ao mesmo tempo.
Mas a linha voltou a ficar contínua, indicando fibrilação ventricular. Outra vez: corrente! E mais uma vez... e, finalmente, o coração batia! Depois de toda aquela tortura que o corpo tivera de suportar, até batia com bastante força. Por vezes falhava, mas retomava logo o seu funcionamento; o ritmo parecia estabilizar e o tórax mexia. E agora, toca a sair!
Os enfermeiros tiraram a maca do carro e correram para a sala de operações. Wullemann corria atrás deles seguido por Fritz Hansen.
- Então, Doutor - ouviu ele Wullemann dizer -, uma emoção destas tem a sua beleza, não tem? Sempre é bom fazer qualquer coisa contra a rotina. Sim, safar um gajo. O pássaro que vamos fazer voar outra vez, não é?
Mas o trabalho recomeçava.
O efeito do veneno permaneceria por muitas horas. O que o corpo absorvera e enviara para o sistema nervoso central, voltaria a produzir os seus efeitos. Levaria um certo tempo. A droga que ainda se encontrasse no estômago e nos intestinos tinha de ser rapidamente retirada. Primeiro seria necessário aplicar um antídoto que anulasse os efeitos mortíferos do perigoso alcalóide. E o mais urgente seria manter o sistema respiratório em funcionamento.
A anestesista estava junto do ventilador para comandar e controlar o ritmo respiratório.
Hansen pensava. O rosto tinha entretanto perdido a cor azulada mas o funcionamento cardíaco era ainda muito frágil.
Wullemann fez espaço para Lucrécia Bonelli que acabava de chegar com uma sonda através da qual seriam conduzidos os líquidos que iriam lavar o veneno do estômago.
- Tudo pronto - disse Hansen. - Depois de termos acabado isto ministramos imediatamente sorbitol.
Wullemann fez um sinal de assentimento ao mesmo tempo que torsia o nariz. O sorbitol faria que os intestinos se esvaziassem rapidamente.
- Então baixa-lhe as calças, Luzi. - Fritz Wullemann nunca se tinha habituado ao nome de Lucrécia. Para ele, Lucrécia seria sempre Luzi. - Fazes isso com a maior limpeza. És especialista no assunto, ou estou enganado?
Lucrécia atirou-lhe um olhar cheio de raiva mortífera. Até Hansen achou que daquela vez Wullemann tinha exagerado. Os seus dedos voltaram a percorrer o tronco coberto de suor do paciente. A impiedosa luz da sala de operações acentuava cada um dos pormenores: um corpo musculado de um homem bem treinado de trinta e muitos anos, pele de uma cor barrenta e clara. Uma cicatriz de operação ao apêndice, uma outra cicatriz no ombro, talvez de uma facada. O cabelo escurecido pela transpiração, já grisalho nas têmporas. E depois aquele rosto de índio. Os malares largos, faces descaídas, olhos de órbitas fundas.
Hansen sentia uma coisa que ele em situações semelhantes nunca tinha sentido e que na sua profissão era proibida: ódio! Sim, uma profunda e relutantemente contida raiva. Vinha-lhe à memória uma outra imagem. Uma vez tinha tido sobre a mesa um outro corpo, pequeno, frágil. O corpo de um jovem com menos de 18 anos. O que nessa altura tinham cosido! Vinte e sete golpes de facadas. O sangue pingava da mesa e Grafe e ele davam ponto sobre ponto, tratavam osso sobre osso. Nunca mais acabava.
E depois a voz juvenil e fraca que tentava lutar contra a anestesia:
- ... Havia árvores por todo o lado, Sr. Doutor. E as árvores cresciam, cresciam, cresciam do chão, em cima das mesas, pelo meio das Pessoas, até ao pé das máquinas dos flippers. Mas nos ramos tinham mãos. E essas malditas mãos queriam agarrar-me, arrastar-me, Prender-me... Então comecei a correr, Sr. Doutor. Não vi o vidro... só queria uma coisa, fugir, fugir, fugir... Foi uma verdadeira viagem de horror.
- Por um fio, tinha-se ido embora para sempre. Um estilhaço de vidro tinha-lhe furado as axilas.
„ Tinha sido realmente uma viagem de horror pois com o jovem não era a cocaína mas sim a heroína. E depois? Onde estava a diferença quando explodiam com um alcalóide qualquer?
O jovem de corpo retalhado tinha feito tudo para conseguir droga. Tinha assaltado, roubado, tinha-se prostituído.
Muitos desses pobres diabos vagueavam pelo aeroporto, correu muitas vezes perigo de vida.
Mas um como aquele ali, esse Joaquim Caldas, da Colômbia transportava o veneno atravessando milhares de quilómetros desde a América do Sul até à Alemanha e daquela vez tinha tido azar. Evidentemente que seria salvo, haviam de o reanimar. Para quê? Para voltar a tentar fazer o mesmo? Era assim que as coisas aconteciam...
Fritz Wullemann preparou o purgante enquanto Lucrécia tirava as calças ao homem inconsciente.
- Cuecas vermelhas - disse Wullemann. - Já tinhas visto umas assim?
Pelo autifalante alguém falava. Era da recepção.
- Sr. Dr. Hansen! Sr. Dr. Hansen! Caso tenha um momento livre. Estão aqui dois senhores da Polícia à sua espera.
Hansen fez um sinal de assentimento. Deitou um olhar aos mostradores. Os valores estavam a melhorar consideravelmente.
- Volto já - disse ele deixando a sala. Lá fora, ao virar a esquina do corredor, começou a andar muito devagar.
Ali, à porta da recepção, um uniforme, um rosto pálido, um cabelo luminoso!
Evi...
Ela foi ao seu encontro, correndo os últimos metros que os separavam. Ele abriu os braços, apertou-a contra si, afagou-lhe as costas, segurou-a com firmeza. Sentia que era disso que ela necessitava.
- Foste muito valente... toda a gente te admirou.
- Que se passa com ele?
- com quem? Aquele safa-se. Tipos como ele safam-se sempre.
- Obrigada - julgou ele perceber. E depois, não mais que num sussurro: - Graças a Deus...
Continuava a afagá-la e perguntava-se o que significaria aquele homem para ela. Mas seria a resposta muito difícil? Não tinha ela, durante quarenta minutos, estado ajoelhada no chão do Jumbo, algures no ar, lutado pela vida dele, as palmas das mãos comprimindo-lhe o tórax, dando até ao esgotamento as forças que tinha, correndo o risco de tudo ter sido em vão?
Fez-lhe festas no cabelo cheio de ternura.
- Vai tudo correr bem, acredita-me!
Ela assentiu com um gesto de cabeça.
- Sabes o que vais fazer agora, Evi? - Deitou um olhar através da porta aberta para a recepção. Ali estavam sentados os senhores da Polícia. - Vais pegar no carro. Aqui tens as chaves.
- Que chave?
- Qual? A do meu apartamento.
Olhou para ele. Nos olhos bonitos e cansados brilhou uma luz. Sim, parecia cansada até à exaustão mas guardou a chave com um à-vontade que o espantou um pouco. A sua bendita chave! A sua segurança contra surpresas e outros perigos. O símbolo da sua liberdade e independência. Ter-lha dado já era por si uma decisão. E, possivelmente, uma decisão muito séria. Mas Evi? Que significado tinha ela para Evi?
- Vais agora, tomas um banho e deixas-te ficar confortavelmente. Ouve uns bons discos e para comer tens o suficiente. Depois fechas os olhos e esqueces tudo o que aconteceu. Prometes? Vais ver, resulta. Quando te apetecer, telefonas-me para aqui. Ou melhor ainda: assim que tenha uma aberta, apareço. Certo?
- Certo.
- bom, agora toca a andar para casa.
- Para casa? - Um ligeiro sorriso interrogador iluminou-lhe o rosto.
Ele olhou-a nos olhos, longa e definitivamente:
- Sim, Evi. Para casa!
Um chamava-se Brunner e o outro apresentou-se como sendo o inspector Niebhur.
Tinham-se levantado quando Hansen entrara na recepção. Fez-lhes um gesto para que o seguissem até ao secretariado e fechou a porta.
Brunner era um homem grande, corpulento, de cabelos grisalhos cortados curtos e um rosto aberto e simpático.
Foi ele quem conduziu a conversa:
- Pertenço ao corpo de Polícia de Segurança do aeroporto, Sr. Doutor. O Sr. Niebhur, por seu lado, é inspector da Brigada de Narcotráfico.
- Oh! - Hansen procurou disfarçar o seu sorriso irónico. Não que tivesse alguma coisa contra a Polícia de Segurança, especialmente no Aeroporto eram bastante úteis, no entanto, a maior parte das vezes ficavam a atrapalhar-lhe o caminho e a fazer perguntas difíceis sempre que surgia um caso urgente.
- E a que devo a honra?
- Pensamos que já deve calcular do que se trata, Doutor.
Fora Niebhur a falar. Era um homem novo, lacónico, vestindo calças e blusão de ganga. Tinha o braço pousado com desplicência sobre as costas da cadeira. O rosto podia ser o de um professor de Educação Física que troçasse do trabalho de um aluno. “Começa bem, pensou Hansen mal disposto.
- Portanto, é assim, Sr. Doutor - intrometeu-se Brunner. - O Sr. Marein mandou-nos uma comunicação dizendo que a bordo do Voo da Luftansa vindo de Caracas talvez se encontrasse um correio de droga. Terá sido o senhor mesmo a chamar a atenção do Sr. Marein para essa possibilidade.
Fritz Hansen fez um gesto de assentimento.
- É verdade. E então? Tenho realmente de os felicitar: Vocês são muito rápidos. E realmente até ouvem a relva crescer!
- Pois é. Afinal, temos o nosso trabalho, não?
- Que querem agora de mim?
- É simples, Doutor. O senhor tem o homem ao seu cuidado...
- Não o tenho ao meu cuidado, está aqui sobre a mesa de operações. E está muito mal, disso podem vocês ter a certeza.
- Mesmo assim.
- Mesmo assim, o quê?
- Mesmo assim temos de assegurar-nos de que não desaparece no ar logo que esteja melhor. Temos, portanto, de o manter sob vigilância, para depois o levarmos sob prisão preventiva para ser interrogado. Isto é, se o homem for realmente um correio de droga...
- Exactamente. Também estou convencido que é, mas primeiro temos de esclarecer esse assunto. Depois, talvez fosse bom obterem uma coisa sem importância chamada mandato de captura. Não lhes parece?
- Não se preocupe com isso, Doutor. Arranjamos isso num instante.
- Nesse caso - disse Hansen -, volto para o meu local de trabalho.
Levantou-se.
- Isto é, vocês podem já vir comigo. Talvez entretanto se descubra o que se passa com o homem. E se realmente contrabandeou essa merda.
Estava na sala não esterilizada mas Hansen fez com a mão um gesto que os obrigava a esperar à entrada.
Fechou a porta atrás de si, foi até ao meio da sala onde pairava um leve cheiro a desinfectantes e a secreções.
Wullemann estava ao lado do corpo coberto com um lençol e olhava para a arrastadeira metálica que segurava na mão esquerda.
- Já tenho! Já tenho tudo, Sr. Doutor.
Hansen não percebeu logo. Dirigiu-se ao espirómetro onde Berta Maier-Bobel estava a testar as funções respiratórias.
- a respiração restabeleceu-se. Está óptima - disse ela. - Mas quanto ao resto, é tudo um bocado maluco, não acha? Veja o que o Wullemann tem na mão!
- Mostra lá!
Fritz Wullemann sorria cheio de orgulho e Lucrécia Bonelli, que acabava de deitar um esfregão para dentro do balde do lixo, também sorria abertamente.
Hansen viu umas bolas redondas e pequenas. Muitas, muitas bolinhas. .
- Que é isso?
- Bem, Doutor - Wullemann parecia falar muito a sério. - Como nós aqui na sala de operações não temos nenhuma cabra, embora pareça que sim, julgo que as bolinhas têm a ver com outra coisa. Dou-lhe três tentativas para adivinhar...
Não havia nada para adivinhar. Hansen deixou que Lucrécia lhe enfiasse nas mãos um par de luvas de borracha novas. Apalpou uma das bolas. O revestimento era elástico. O tamanho, cerca de um centímetro.
- Olhe aqui! - Wullemann apontou para um pequeno recipiente de vidro. - Isto também estava lá dentro. Aqui está o corpus delicti ou lá como é que isso se chama.
Aquela bola estava aberta. As duas metades tinham-se separado e despejado o seu conteúdo para o estômago pondo o homem às portas da morte.
- Duzentas e dezasseis bolinhas, imaginem só!
Cada uma daquelas bolas continha, calculou Hansen, um grama ou mais. Talvez os expedidores tivessem sido espertos e no caso do colombiano seguir pelo seu próprio risco, teria tido bons conselheiros: a tolerância à absorção de cocaína era entre oitocentos e mil e duzentos miligramas. Mais que isso significaria morte certa...
Parecia mais provável que os expedidores estivessem tão seguros do que faziam que não se tivessem dado ao trabalho de fazer todas aquelas contas.
Fosse como fosse, aquele colombiano, esse Joaquim Caldas, parecia forte e robusto. O facto de ter estado por um fio entre a vida e a morte significava que tinha tido no estômago entre um e um grama e meio de cocaína.
- Está bem, então dá cá isso - disse o médico-chefe Dr. Fritz Hansen pegando no recipiente e colocando-o sobre as bolinhas. - vou Mostrar o vosso achado aos nossos amigos da Polícia.
- O revestimento é de látex - explicou o inspector Niebhur dois minutos depois de Hansen ter entrado no secretariado com os polícias e ter colocado as bolinhas sobre a secretária. - Bem pensado! Este tipo de bolas são muito mais seguras que os preservativo cheios de cocaína. Se um deles se estragar, passa para o estômago. Temos três ou quatro casos desses nos nossos ficheiros.
- Sinceramente, os meus parabéns, Doutor - disse o homem forte e grande de cabelos grisalhos, que dava pelo nome de Brunner
- Parabéns porquê?
- Porque manteve o homem vivo podendo assim cuspir algumas informações.
- Por essa razão, terá de dar os parabéns a outra pessoa - Hansen pensava em Evi. - Que se passa agora a seguir?
- Bem, vamos ter de esperar até o colombiano estar em condições de ser transportado. Até lá colocamos um dos nossos homens aqui na clínica ao pé dele. - Brunner levantou a mão num gesto tranquilizador ao reparar no olhar de Hansen: - Não tenha receio, Sr. Doutor. Estará vestido à civil!
- O melhor é combinarem isso com o Dr. Grafe - disse Hansen. - É ele o primeiro a ficar de serviço hoje à noite.
Estava contente por se ver livre daquela gente e por Rolf Grafe ir ocupar o seu lugar. Como se dizia habitualmente, as coisas agora seguiriam o seu curso normal...
Voltou a pensar em Evi. Já tinha pensado nela muito mais vezes durante o tempo todo. Assim que tivesse um momento livre iria telefonar-lhe.
Mas para o médico-chefe o dia ainda não tinha acabado. Não teve qualquer dúvida a esse respeito quando uma hora mais tarde abriu a porta do seu escritório e viu a visita que aí o esperava: Lucrécia! A enfermeira Lucrécia Bonelli.
Estava sentada no sofá. Assim que ele entrou, levantou-se rapidamente e a excitação no seu rosto moreno não deixava adivinhar nada de bom.
- Não tenho nada contra o facto de esperares aqui dentro - disse numa tentativa de minorar a primeira agressão -, mas é um bocadinho contra as regras da clínica, não achas?
- Regras da clínica? Ai sim? E contigo como é? Podes explicar-me. As tuas regras permitem que afagues uma fêmea qualquer no meio do átrio e ainda por cima com toda a gente a ver?
Ficou tão surpreendido que nem encontrou palavras para responder. Só sentiu um calor súbito e violento a subir-lhe à cabeça.
Passou por ela dando a volta à secretária como se esta pudesse ser uma protecção contra a raiva ciumenta que lhe alterava o rosto. Lucrécia nunca tinha conseguido esconder o que sentia; em vez disso, conseguia ler-se nos seus olhos e no seu rosto aquilo que sentia por dentro. Tinha sempre achado isso fascinante, sim, até a amara por isso, mas agora assustava-se.
- Precisas de uma secretária, não é? - gritou ela. - bom, se Te sentes assim melhor... Mas exijo uma resposta, senhor médico chefe! Estou à espera.
- Pensa o que quiseres. Mas aqui não é o local adequado para se discutirem assuntos privados.
- Mas o corredor em frente à recepção é?
- Estás muito enganada. Evi Borges foi a rapariga que a dez mil metros de altitude, nas mais difíceis condições, seguiu as instruções que eu lhe dava a partir da torre, de forma a que o sul-americano...
- Esse raio desse cagador de bolas...
- ... de forma a conseguir reanimá-lo. Acho que isso foi obra. E quando há bocado encontrei a Evi, ela estava física e espiritualmente esgotada. Qualquer pessoa que tenha um pouco de inteligência na cabeça o pode perceber.
- Estás a referir-te naturalmente a mim?
- Só queria esclarecer as coisas.
- Esclarecer? Então também vou esclarecer uma coisa: Pode ser que as hospedeiras sejam campeãs na cama...
- Acabou! - disse-o baixo mas, apesar disso, cortante como uma faca.
- Sim senhor! - Virou a cabeça com tanta força que a cabeleira negra voou. E os olhos! Estreitos como seteiras tendo por trás o fogo do seu temperamento ardente. - Já acabei!
Dirigiu-se para a porta, virou-se novamente e gritou:
- Acabou, senhor médico-chefe! Ainda vais saber o que isso significa.
A porta bateu atrás de si.
Ele ficou a olhar para a superfície branca, abanando a cabeça lentamente. Aquela cena, o dia todo, tudo lhe pareceu irreal. Teatro, opereta, comédia italiana... não, ela falava muito a sério! Agora lamentava tê-la deixado sair. Deveria ter-lhe dito a verdade. A verdade toda.
Mas, fosse como fosse, já tinham falado no assunto...
Números brancos sobre fundo negro. Oscilavam, davam lugar a outros números, preenchiam espaços e voltavam a desaparecer. Às vezes, do lado direito apareciam duas luzes verdes - principalmente quando lá fora na pista acabava de aterrar um avião.
Aqueles números bailavam em todo o lado. No piso das chegadas e partidas. Nos átrios dos balcões de atendimento. Por cima do acesso às salas de espera. Nos andares por cima dos acessos aos aviões Nas salas de trânsito.
- MOSCOVO: HORA DE CHEGADA PREVISTA 17h. 30m. – dizia o quadro das chegadas e partidas dos voos. E a seguir:
- ATRASADO PARA AS 24h.15m.
- DALLAS-LONDRES: 23h.30m. -ATRASADO.
-SALONICA, BOMBAIM, ANKARA, ROMA...
Os números voltavam a desaparecer. Sempre a desaparecer Sobre os quadros apareciam manchas escuras, as pulsações tornavam-se escassas: meia-noite no aeroporto de Frankfurt...
Quem àquela hora atravessava o imponente labirinto de betão tinha a maior parte das vezes uma meta a atingir: a garagem.
Os transeuntes eram raros. No entanto, o Dr. Rolf Grafe gostava daquela hora; depois do serviço nocturno ia muitas vezes pelas galerias abandonadas, pelos corredores sem fim iluminados pelas luzes dos reclames. Ainda sentia a tensão do trabalho e queria libertar-se dela. Não conhecia maneira melhor.
As escadas rolantes chiavam. Grafe seguiu até ao nível B, o piso das chegadas, esse enorme panelão onde se juntavam os passageiros vindos de fora. Tinha a sensação de se movimentar num sonho. No meio das pessoas. Por entre rostos alegres e sorridentes. Por que razão não estaria ele também descontraído? Quando queria qualquer coisa como calor humano e companhia, procurava sempre as mulheres. Durante muitos anos tinha sido Olga, a recentemente divorciada mãe de uma criança de 6 anos. Depois Olga voltara para o marido e surgiu Britte...
Britte!
Por que razão o nome não lhe saía da cabeça? Por que estava sempre a lembrar-se dela? com Britte estava tudo acabado. Britte... já era passado. Nada mais que um nome.
Rolf Grafe entrava agora na garagem do pessoal, pegou na sua moto e pô-la a funcionar. Lentamente levou a Honda para fora daquele local seco, ouvindo imediatamente o ruído.
Raio de chuva!... Mas, afinal, raio porquê? Talvez a chuva fosse o melhor antídoto para os seus pensamentos negativos. Talvez conseguisse afastar o que o perturbava lavando toda a porcaria de cima de si...
Quando a máquina passava pelo parque de estacionamento virando para a saída, o tempo piorou: bátegas de água cinzenta, sombras cinzentas de edifícios tendo por trás o azul-pálido das luzes da estrada. Os táxis que passavam por ele espadanavam água, molhando-o todo.
Bolas! Já vos mostro como é!
Grafe deu gás ao motor, e a Honda disparou no meio de gargalhadas, atrás de táxis e camiões, meteu a mudança e ultrapassou-os à velocidade máxima!
A chuva batia-lhe na cara, entrava pela gola do casaco de cabedal molhando-lhe as costas, as luzes passavam correndo. Deixando atrás de si uma nuvem de lama, seguida por irritados sinais de faróis, a moto corria através da noite.
Rolf Grafe sentia-se livre.
Durante quanto tempo conduziu assim, em que sítio se encontrava, havia muito que não o sabia. Em qualquer altura, em qualquer sítio, deixou a Honda seguir devagar. À sua volta via paredes escuras de casas. À sua frente, à esquerda, um reclamo de néon de luz amarelo-avermelhada lutava para ser visto através da neblina.
Grafe parou, desmontou, travou a moto. Tinha sede. Olhou para o relógio: pouco faltava para a uma hora. Ainda bem que aquela tasca ainda estava aberta.
Sacudiu-se como um cão molhado, passou a mão esquerda pelo cabelo e passou o corpo possante através de uma espessa cortina de feltro.
Um saxofone chorava pelo altifalante por cima da sua cabeça. Blues. Um blue quente e bonito. Luzes veladas. Os quebra-luzes dos candeeiros sobre as pequenas mesas espalhavam pela sala uma luz cor de mel. Um sítio bastante estranho. Mas, pelo menos tinha um balcão. E, certamente, também uma cerveja.
Grafe sentou-se num banco do bar. Ao balcão já se encontrava alguém, com os cotovelos afastados. Virou a cara para Grafe. Tinha um nariz largo, sobrancelhas negras e espetadas, quase careca. “Um motorista de longo curso, pensou Grafe, “pelo menos tem ar disso. E nem sequer era antipático.
- Uma cerveja branca.
A loura virou para ele uns seios fartos que por pouco não saltavam da bata verde.
- Lamento, mas não servimos cerveja sozinha.
- Como?
- Também não sabia - disse sorrindo o motorista. - Mas são os hábitos aqui. Só te dão uma cerveja acompanhada com um piccolo.
- Ah! - espantou-se Grafe.
A loura atirou-lhe um olhar rancoroso e pegou nos copos.
- Aqueles podem permitir-se isso. - O motorista apontou na direcção das mesas. Ainda havia algumas pessoas sentadas. Exclusivamente homens. E quase todos de idade madura.
- Isto aqui já foi uma tasca muito boa, camarada. Digo-te eu. Havia sempre alguém para um jogo de cartas. E tiravam uma impecável cerveja. Sim, encontrava aqui muitos colegas. Além disso, faziam uma excelente salada de batata com salsicha. E também havia...
Grafe não percebeu muito bem o que é que também havia. A música estava muito alta e, do outro lado, um holofote incidia sobre um pequeno palco. A luz era cor-de-rosa.
- Na estação - disse o seu vizinho -, abrem bordéis uns atrás dos outros. E depois surge um estupor de um arranha-céus com um estupor de um banco qualquer lá dentro e os chulos agarram nas suas raparigas e mudam-se para os arredores. As coisas estão assim...
Grafe fez um gesto de assentimento. A ele tanto lhe fazia. De facto, naquele momento tudo lhe era indiferente. Levantou o copo:
- Saúde!
- Saúde, camarada. Mas espera até veres a conta. Há uma coisa que eles têm aqui: raparigas fantásticas, verdadeiramente sensuais...
O saxofone começou a tocar mais baixo uma música ainda mais absorvente, mais lenta, sensual e então... Grafe levantou a cabeça.
Uma trémula voz de mulher. Gemia. Aquele gemido especial, inconfundível... e depois: “Sim, sim... por favor, querida... Oh! outra vez... outra vez... por favor.
Aí, Grafe voltou a virar-se para o palco.
Não era uma, eram duas mulheres. Ambas usavam sandálias douradas de saltos altíssimos e nada mais.
Uma das duas mulheres que ali se abraçavam era loura, a outra morena. Tinham rapado os pêlos do púbis, pelo que os seus corpos lisos, sob a luz rosada se assemelhavam a estátuas.
A loira era alta, muito alta. Magra e linda. Tinha os seios pequenos, espetados para cima e cabelo comprido e liso. Contudo, a boca, estava aberta como que excitada. E as ancas moviam-se. “Mais ainda... querida... é tão bom...
O cabelo cor de trigo balançava de um lado para o outro quando, num êxtase fingido, atirava a cabeça para trás e a boca da outra lhe percorria os mamilos, a pele, as ancas...
Grafe sentia um nó na garganta. Não pode ser! pensava ele. Uma coisa assim não podia acontecer... aquilo era... Britte era assim!
Não, não era Britte, mas um retrato exacto, uma gémea, uma cópia fidelíssima.
Entornou o copo com o cotovelo. Escorreu pelo balcão e caiu no chão. A rapariga do bar apareceu imediatamente com um esfregão.
- Oh! Não. Não, não, por favor não... - balbuciavam no palco. - Sim, faz isso, sim!
DOS cotovelos de Grafe pingava cerveja.
Estás nervoso, camarada? Que é que tens?
A conta! - disse Grafe tirando do bolso de cima do casaco uma nota de cinquenta marcos, atirando-a por cima do balcão, sem esperar resposta ou troco.
- Outro maluco! - ouviu dizer, e depois encontrou-se na rua. Encostou as costas à parede de uma casa, ficou a olhar para a chuva sentindo-se impotente nos seus sentimentos de fraqueza e solidão.
Britte! Aquele pescoço esticado para trás, o rosto em êxtase. Era exactamente assim o seu aspecto quando faziam amor. Exactamente assim...
E agora? Para ele já não havia mais nada. Agora para Britte existia Lawinsky. Hubert Lawinsky. Bem vestido, meio maricas, um porco de um comissário. A ele tinha-o despedido, com poucas palavras, como que com um corte de bisturi. com toda aquela decisão de que só as mulheres são capazes:
- Tenho muita pena, Rolf, mas sempre tens a tua moto...
Certo. Tinha. Montou-se no selim. Pôs o motor da Honda a trabalhar, levou-a de volta para a estrada, deu a volta, disparou como um louco pela rampa acima, acelerou a Honda cada vez mais, sempre a subir, cento e quarenta, cento e cinquenta, sempre mais depressa, cento e setenta, cento e oitenta... “Olha, estás a ver! poderia ter gritado, “cá vamos novamente!
Então, da profunda e húmida escuridão, indo ao seu encontro, surgiu qualquer coisa. Só viu as luzes de aviso quando já era demasiado tarde. Ainda viu um “Atenção - Trabalhos. Viu tábuas pintadas de vermelho e branco e atrás a parede escura e húmida de uma tenda de pano. E um veículo de construções.
Rolf Grafe sentiu-se voar como se um soco de gigante o tivesse atirado através da noite. Esse voo pareceu-lhe durar tempos sem fim, sentindo ao mesmo tempo uma estranha satisfação. Depois caiu.
O corpo rolou meia dúzia de vezes sobre si próprio, deslizou pelo asfalto ao longo dos carros, bateu nas pedras da berma da estrada, Deslizando sempre para mais longe. Quando finalmente tudo acabou, Rolf Grafe estava apesar de tudo consciente. “Aí tens! pensou ele. Tinha de acontecer. Merda de lugarejo! Mundo de merda este! Gente de merda! Todos te atraiçoaram. Primeiro Fritz, depois Britte...
, Então surgiram as dores, disparadas da perna direita até ao cérebro, fazendo-o gritar. Rolf Grafe gritou alto e durante muito tempo. ouvia os gritos, mas com certeza que não eram dele...
A cabana de caçador estava escondida sob grandes áceres avermelhados.
Quando Hubert Lawinsky, comissário da companhia aérea Qari tas se dirigiu ao terraço, inspirou profundamente o ar fresco e limpo. O lago com as suas ilhas de juncos era realmente maravilhoso! Lá atrás, ao longe, a cordilheira dos Apalaches.
Habitualmente, Hubert não ligava à beleza de uma paisagem nem, de uma maneira geral, às belezas da Natureza. Muitas vezes nem sabia exactamente onde se encontrava. Era sempre a mesma coisa: depois de uma aterragem, uns amigos vinham ter com ele e arrastavam-no para qualquer lado. Sítios bonitos havia-os em todo o lado. Mas aquela casa de madeira que Mortimer Barry mandara construir no sudoeste da Flórida para fugir ao stress e ao calor dos arredores de Miami impressionava-o bastante.
Mortimer vinha a chegar com um enorme Martini na mão.
- Também queres um, Hubert?
- Ouve lá, meu velho, quais são as tuas intenções? Ontem estivemos a encharcar-nos até às três da madrugada.
- Por isso mesmo. Para combater a ressaca. Lawinsky riu-se.
- Combate-a tu sozinho. Eu não posso dar-me a esse luxo. O meu pássaro parte hoje à tarde para Washington. E depois outra vez sobre o Pacífico, até Tóquio...
O construtor civil Mortimer Barry tinha conhecido Hubert Lawinsky num dos hotéis-casino de Miami Beach. Tinham-se entendido bem logo à primeira vista, sobretudo porque Hubert conseguira, logo na primeira noite, apresentar a Barry uma das mais bonitas raparigas da Qantas: Florence Winters. E Florence representava os seus joguinhos de cama com uma eficiência altamente profissional. Hubert sabia-o, pois ele próprio já os tinha jogado com ela.
De uma forma geral, Florence dava preferência a parceiros ricos, mostrando assim possuir um sentido prático da vida. A sua apresentação a Barry por Hubert foi muito útil à amizade de ambos, tendo atingido o seu ponto mais alto nos jogos de golfe ou de poker, nas festas de sexo e nas saídas em conjunto.
Então surgiu para Lawinsky a oportunidade de obter lucros extra. um amigo de Barry, Ricco Martin, pretendia passar dinheiro para a Europa. Era um negócio que valia sempre a pena.
- Onde está Ricco? - perguntou Lawinsky. Mortimer apontou com o copo para a floresta:
- Aí vem ele. Pontual, como sempre.
Um Continental pesado e silencioso acabava de surgir de entre os arbustos que bordejavam o caminho da floresta. De dentro dele saiu um homem: moreno, cabelo penteado para trás, óculos de sol no rosto queimado pelo sol, relativamente magro, um nariz saliente.
- É aquele?
Mortimer fez um gesto afirmativo.
- Tem ar de mafioso.
- Ora - Barry sorriu -, não somos todos nós um pouco mafiosos?
Ricco Martin tinha pressa. A conversa entre os três homens não durou mais de dez minutos. Tratava-se de uma importância de cento e trinta e cinco mil dólares que deveriam ser levados para Frankfurt e aí depositados num Banco. Hubert não precisava de ir pessoalmente fazer esse depósito; só tinha de entregar o sobrescrito com o dinheiro a um certo homem. Dinheiro sujo, certamente. A isto chamava-se habitualmente “branqueamento de dinheiro. com a transacção iria receber cinco mil dólares para si. Cinco brasas pelo simples transporte de um sobrescrito! Nada mau. Era mesmo fantástico!
- Você tem uma grande confiança em mim - disse Hubert Lawinsky impressionado.
- Absolutamente nenhuma. Não confio em ninguém. Só jogo pelo seguro. - A boca de Martin tornou-se ainda mais fina do que já era. - Nunca trabalho sem uma garantia.
- Ah! Sim?
- A garantia sou eu, meu velho - disse Mortimer Barry. - Por isso, para a próxima tens de arranjar-me outra Florence. E assim o nosso negócio.
Riram-se todos. Até o Ricco.
Mais tarde, dentro do avião que levaria Lawinsky de Atlanta para Washington, tirou da carteira o papel com a morada que Martin lhe tinha dado.
- Hotel Merlin - leu. - Em Frankfurt. E um nome: Stephan Radonic.
Hubert Lawinsky olhou para cima, para Britte. Tinha no rosto uma expressão deliciada de puro prazer. Ele por baixo, ela por cima. Ele o cavalo sob a amazona que o fazia correr cada vez mais de pressa, arfando exactamente como ela gostava. O cabelo, que naqueles loucos movimentos se desmanchara, fazia lembrar asas douradas. Aí estava! Oh! Sim. Tinha sido sempre assim e assim continuaria a ser... agora, agora... não, ainda não, não quero ainda vir-me, pensa noutra coisa, qualquer coisa que te segure, pensa em qualquer coisa desagradável!
E Lawinsky reviu em pensamento a cena das últimas semanas na cabana de caça na Florida. A cara de pássaro de Ricco Martin. Os óculos de sol. Os lábios finos. A frase que dissera: “Não confio em ninguém. Nunca trabalho sem garantias...
Não, não serviu de nada, já não conseguia. Nem Ricco Martin conseguia ajudá-lo a retardar o orgasmo. Hubert gemeu, explodiu com um fogo-de-artifício, com milhares de estrelas coloridas que depois se foram lentamente apagando... e Britte cobriu-lhe o rosto, o pescoço, os ombros, com milhares de pequenos beijos rápidos.
- Hubert, meu querido, ainda me enlouqueces... uma coisa assim... nunca tinha imaginado que fosse possível uma coisa destas
Ele sorriu e espreguiçou-se na cama. Saboreava as palavras dela embora já as conhecesse. Eram as mesmas em todo o lado. Quantas vezes as não ouvira, aqui, ali, espalhadas pelo globo, de todas as suas mulheres, ditadas por toda a sua dependência...
Ricco Martin que fosse para o diabo!
Mas, com o declínio que se segue a todos os momentos altos veio a moderação.
Hubert desprendeu-se suavemente do seu sorridente e louro cordeirinho alemão, tirou os cigarros de cima da mesa ao lado, acendeu dois, meteu um entre os lábios carnudos de Britte, aspirou o dele profundamente e fechou os olhos.
Ricco Martin que fosse para o diabo.
“Não tenhas ilusões, o tipo é perigoso. Tens de fazer a entrega... ainda hoje...
- Que é, tesouro?
As unhas de Britte bincavam com os cabelos encaracolados do seu peito. Gostavam daquilo. As mulheres faziam-no sempre...
Tinha decorrido uma semana desde a conversa na cabana de caça. Era para Hubert Lawinsky pura e simplesmente demasiado tempo, pois demasiado tempo para ele significava demasiadas oportunidades perdidas de, por exemplo, ganhar dinheiro.
Ou perder, como naquela porcaria daquele jogo de poker no Hilton de Tóquio a semana passada... Tinha estado tão seguro de si por ter um royal flush. Mas Freddy Heller tinha-o feito passar por baixo da mesa. A brincadeira tinha custado onze mil dólares. Ora, bastava-lhe deitar a mão ao sobrescrito e depois ganhar.
Mas voltou a perder. Dinheiro que não lhe pertencia.
Por isso, Hubert Lawinsky só tinha um problema ali em Frankfurt. Bastante grande, aliás.
Levantou-se, estendeu a mão e brincou com o cabelo de Britte.
- Ouve lá, rebuçado, tenho uma pequena dificuldade...
- Sim?
- E tu podias ajudar-me. Queres?
- Claro. Se puder.
Olhou para ele com aquele olhar de cordeiro, cheio de entrega.
elas tinham esse olhar depois do sexo. Bem, tanto melhor...
- É uma falta - fez-lhe festas na coxa -, mas tem de ser remediada depressa. Só tinhas de ir ao centro da cidade... espera... - Pegou na carteira, - à Rua Furstenberger, ao hotel Merlin e levar Um sobrescrito a um tipo, um jugoslavo, penso eu, a um Sr. Radonic... sim, chama-se Stephan Radonic.
- Claro - sorriu. - Se é só isso. E quando?
Lawinsky olhou para o calendário do relógio.
“A entrega tem de ser feita entre o dia vinte e um e o dia vinte e três”, tinha dito Ricco. “Radonic está nesses dias entre as sete e as dez horas no hotel. Ele espera aí por si. Fui claro?”
Estavam a vinte e dois. E eram sete horas. Que diria ele quando visse aparecer uma rapariga com onze mil palecas a menos no sobrescrito?
Bem, mais tarde pensaria numa desculpa. Tinha de arranjar o dinheiro. Certo só havia uma coisa: tinha de acontecer qualquer coisa. E imediatamente! De outro modo nunca mais poderia aparecer em Atlanta ou, possivelmente, em qualquer outro lugar dos E. U. A. “Todos fazemos um bocadinho parte da Mafia tinha dito Mortimer. OK. Por isso tenho de ir enforcar-me na primeira árvore que encontre ou no guarda-fatos da Britte? Seria uma pena.
Britte tinha-se levantado e olhava para ele cheia de inocente confiança. com um olho. O outro estava tapado com os cabelos. Era amorosa, realmente...
Lawinsky fez-lhe cócegas com o dedo indicador na ponta do nariz:
- O melhor é ficarmos já livres do assunto. Que achas, miúda? E à noite, depois de voltares, vamos para a paródia. Vamos a... como se chama aquele sítio onde acontecem sempre coisas?
- Sachsenhausen - disse ela. - É ao voltar da esquina.
- Sim, vamos a Sachsenhausen. Ou a uma discoteca. Ou a um restaurante elegante. O que tu quiseres. Podes escolher. E amanhã também vais ter uma recompensa. Que achas de um anel?
- Óptimo! - Estava radiante, mas admirou-se um pouco por ele fezer um espectáculo tão grande só por causa de um favor tão pequeno. Levantou-se, foi tomar um duche, secou-se, atou um lenço a volta do cabelo molhado, enfiou o fato de calças e casaco; era o mais Prático e o mais rápido. Passados cinco minutos já estava pronta.
- Então, que achas? Recorde do mundo, não é? Que tal estou? - virou-se, coquete, fazendo ao mesmo tempo uma cara mimada - Ora, tanto faz. Para Stefan Radonic deve chegar.
- Para um Stefan Radonic estás bonita de mais - respondeu ele. - E agora toca a andar! Isto é, dá-me cá primeiro um beijinho.
Deu-lhe um beijo. Ele segurou-a:
- Ouve lá, miúda, se esse Radonic perguntar por mim, tu não me conheces; diz-lhe que para ti não passo de um vago conhecido que encontraste durante o teu trabalho no aeroporto. Um comissário a quem uma vez prestaste cuidados médicos e que te pediu um favor por não conhecer Frankfurt. Certo?
- Certo - confirmou, soltando-se dos seus braços e saindo. Quando na rua punha o seu velho e amachucado Golfa trabalhar, voltou a deitar um olhar para o terceiro andar, como se ele devesse estar lá em cima a dizer-lhe adeus.
À janela não estava ninguém. Tudo bem, a casa em breve seria para ela e para a sua vida puramente passado. Pensou em Hubert e voltou a tentar libertar-se imediatamente da espécie de transe louco de ternura em que a presença dele a mergulhava. Logo que ele se fosse embora - o que acontecia frequentemente -, tudo nela gritava por ele. E quando ele ia ao seu encontro no seu impecável uniforme, com aquele olhar atrevido nos olhos verdes, nela tudo se derretia de felicidade. Manter essa felicidade para sempre, como é que se fazia? Como é que se podia transformar isso em realidade?
Elli, a amiga com quem partilhava o apartamento, era suficientemente sensata para se mudar para casa do seu namorado Ewald enquanto Hubert estivesse em terra, em Frankfurt. Mas era uma situação que não poderia durar sempre.
Era preciso ter um apartamento só para si. Muito melhor seria mudar-se para a Austrália para junto de Hubert, para a terra das grandes e solitárias praias de que ele constantemente falava. Para a pequena casa de férias, por exemplo, que os pais dele possuíam em Brisbane...
Sonhos... mas poderiam estes realizar-se? Nunca mais mudar ligaduras, nunca mais ver a Lucrécia Bonelli nem o Hansen. Austrália! Ia pensando assim cheia de sonhos, até que de repente se encontrou na Rua Fúrstenberger, onde deveria encontrar-se esse hotel Merlin.
Até já conseguia ler o letreiro: MERLIN.
Britte conduziu o carro até ao parque de estacionamento e entrou no átrio que, com as suas duas poeirentas árvores da borracha e os sofás forrados de napa muito usada, tinha um aspecto bastante sórdido A um canto estava sentado um homem franzino, de óculos, olhando Para a televisão. Estavam a dar um velho filme de Kung-Fu no qual um xerife preto estava nesse momento a dar com a coronha da pistola no herói. E o herói nem gemeu nem pestanejou. Riu-se.
O homem junto da televisão reparou então na mulher que acabava de entrar, levantou-se de má vontade e dirigiu-se para ela. Mostrou a dentadura defeituosa perguntando:
- Posso ajudá-la em alguma coisa?
Sim. Seria muito simpático. Procuro um Sr. Radonic, um Sr. Stefan Radonic. Está aqui hospedado?
- Sim.
- Posso falar com ele? Tenho de entregar-lhe uma coisa.
Britte meteu a mão no bolso direito das calças. Fê-lo automaticamente, mas ficou contente por sentir lá dentro os contornos do sobrescrito. A carta era bastante espessa.
Quarto n.o 24. Quer dizer, primeiro vou ligar para o Sr. Radonic.
- Por favor - disse Britte.
O homem foi atrás do balcão da recepção e pegou no auscultador:
- Sr. Radonic, está aqui uma pessoa que traz uma coisa para si...
- Está bem. Eu digo-lhe. - Desligou e disse-lhe: - Ele já aí vem.
E veio. Passados dois minutos abriu-se a porta do elevador do átrio. Britte susteve o ar, surpreendida. Fosse o que fosse que tivesse esperado de um jugoslavo com o nome de Stefan Radonic, não tinha esperado aquilo. E também não naquele sítio. A primeira coisa que quase a assustou foi a sua enorme corpulência. Também era alto. De um lado e outro da cara gorda pendiam caracóis em saca-rolhas por cima das orelhas, caindo sobre os ombros de um elegante fato azul-acinzentado que dava à gorda barriga do homem um ar de dignidade. As muitas pregas do duplo queixo caíam sobre uma impecável camisa branca engomada. Na mão que levantava num semicumprimento brilhavam anéis. O rosto parecia esculpido em gordura. Quase hirto. Não mostrava qualquer sentimento.
- Faz favor?
- O Sr. Hubert Lawinsky mandou-me cá - disse Britte ficando aborrecida com a sua voz que, subitamente, lhe soou insegura e tímida. - Ele infelizmente teve um impedimento. Como sabe é comissário de bordo. Mas tenho uma coisa para lhe entregar.
- Ah! Sim, sim, estava à espera do Sr. Lawinsky. - Voltou a abrir a Porta do elevador e fez com a mão um elegante gesto fora de moda: - Queira fazer o favor...
Subiram. Ele resfolegava um pouco, mas não disse nada. Voltou abrir uma porta, a porta do quarto 24.
- Faz favor.
Ela entrou e ouviu atrás de si a chave a dar a volta à fechadura. O seu mal-estar aumentou.
- Faça o favor de se sentar. Posso servir-lhe uma bebida?.
- Obrigada.
Meteu a mão no bolso das calças e puxou o sobrescrito para fora
- Tome. Trago-lhe isto. É para si.
Ele fez um gesto afirmativo, rasgou o sobrescrito, tirou as notas de dentro e começou a contá-las ainda em pé. Fazia-o com a habilidade de dedos de um ilusionista. Britte nunca tinha visto na sua vida ninguém a contar dinheiro com tanta velocidade.
Depois ele voltou a meter as notas no sobrescrito atirando-o para cima da pequena secretária.
O rosto continuava hirto como até ali. A sobrancelha direita subiu ligeiramente e nos olhos escuros apareceu um brilho perigoso.
- Faltam onze mil dólares.
A voz parecia completamente calma.
- Como?
- Disse que faltam onze mil dólares.
- Lamento imenso.
- Sim? Lamenta muito? Ah! Eu também... Onde está o Lawinsky?
- Já lhe disse...
- O que disse não me interessa. Pergunto, onde está ele? Agora. Tenho de falar com ele. Imediatamente.
- Certo, mas sabe, não posso ajudá-lo... - a voz tremeu-lhe e ela sentiu-o. - Quer dizer, como hei-de saber? Mal conheço o Sr. Lawinsky e ele pediu-me este favor. Nem sabia o que estava no sobrescrito... Realmente, não sei onde está agora. Talvez já tenha voado outra...
Britte não conseguiu dizer mais nada. Em dois rapidíssimos passos de que ela nunca o julgaria capaz, aquele homem gordo estava a seu lado, agarrou-a pelos braços, arrastando-a.
- Maravilhoso, não sabes onde está? Não sabes nada, pois não?
Então sentiu uma dor no braço quando ele a arrastou para junto da cama e com um único empurrão a atirou para cima dela.
- Portanto, não sabes? Esse tipo deu-te para cima de cem mil dólares, minha rameira. Mas claro que tu mal o conheces. Um breve conhecimento, não é? Deixa-me rir!
Queria levantar-se, queria gritar, queria pedir socorro, mas a sua mão larga espalmava-se na cara dela cortando-lhe o fôlego. Estava tudo a ir muito depressa. Ela entrou em pânico, vendo-o com olhos esbugalhados tirar da mesa de cabeceira um rolo de adesivo largo, rasgar um pedaço e colocá-lo atravessado sobre os seus lábios.
Bateu com os pés na direcção dele. Foi um último reflexo, quase instinto, pois ele tinha uma tira de adesivo na mão e um minuto depois ela estava amarrada. Amarrada de mãos e pés, sem fala, entregue àquele monstro gordo.
Completamente à sua mercê. O rosto de pálpebras e bochechas flácidas inclinava-se sobre ela. Toda a imobilidade inicial parecia ter-se desvanecido, os olhos brilhavam, a boca abria-se num riso meio untuoso, meio satisfeito.
- Assim... assim é que eu gosto. A cama é confortável? Claro que não podes falar mas também não é preciso.
Um aceno também serve, não achas?
Os seus olhos revelavam medo. Isso parecia agradar-lhe, pois o sorriso tornou-se mais aberto. Então pôs-se em pé, andou de um lado para o outro no quarto, quase alegremente, movendo-se gingão, quase dançando.
- Pensou que era assim tão simples? - ouviu-o dizer. - bom rapaz, o teu amigo. Verdadeiramente amoroso. Fica com onze mil dólares em dinheiro, depois manda uma rapariga que diz não o conhecer, tendo-o visto só de passagem. Não passa de um pequeno, inofensivo comissário da Qantas... É isso? Fantástico!
Radonic riu-se. Apesar do seu porte e do seu tamanho, tinha uma voz fininha e um tanto aguda, quase como a voz de uma mulher:
- Fantasias, foi o que construiu. Muitas fantasias. Gosto de fantasia. Também sou fantasista.
Então, deu três passos e voltou para junto dela olhando-a fixamente:
- Queres que te prove o que digo? Nem imaginas o que se pode fazer com um bocadinho de fantasia.
com um puxão abrira a gaveta e tinha agora na mão uma tesoura que abria e fechava, levantando-a contra a luz, fazendo ressaltar os seus reflexos azulados.
Britte não conseguia tirar os olhos da tesoura; aquela visão punha-lhe o coração aos pulos. O tipo é um sádico. E de que maneira! com certeza que não vai...
Continuava ali a olhar para ela. E mantinha o sorriso satisfeito nos cantos da boca.
- Tens uns lindos olhos. Muito bonitos... esse azul não se chama azul de flor do lóio?
Até ali tinha falado quase sem pronúncia. Mas agora podia perceber a sua origem através da forma como dizia os rr. Sérvio... de qualquer modo, eslavo.
- Azul, cor da flor do lóio. Azul como uma flor. Uma vez conheci uma rapariga...
Calou-se ficando a olhar pensativo para a ponta da tesoura.
Depois voltou a virar a cabeça, fazendo que os caracóis pendessem para a frente quando se deixou cair na beira da cama.
- De que olho gostas mais, menina? Do direito? Do esquerdo?
Ela tentou respirar fundo, susteve o ar no peito, fechou os olhos
mas de que servia isso agora? Continuou a ouvir a voz dele.
- Vamos então começar! Sou paciente. Qual deles primeiro? Diz lá! O direito? Podes fazer um aceno. O esquerdo? Preferes? Como queiras... mas vais perder uma das flores de lóio. Talvez te faça doer. Deve mesmo fazer. Mas disso não morres tu. Só uma picada rápida. Então?
Tentou levantar-se mas a sua mão possante empurrou-lhe novamente os ombros contra a cama.
- Abre bem os olhos, enquanto ainda tens os dois.
Como que hipnotizada abriu os olhos para deparar com os bicos brilhantes da tesoura que baloiçava mesmo em frente da sua cara, a menos de quatro centímetros de distância. Atirou a cabeça para trás. Ele riu-se.
- Ah! Preferes o pescoço? Vamos lá experimentar... Sentiu uma dorzinha. O sangue espirrou; tinha-lhe feito um arranhão no pescoço.
A dor abrandou.
- O corpo de uma mulher é bonito - cantarolou a voz do sádico. - Totalmente convidativo para uma tesoura, não achas?
Tacteou-lhe o pescoço, puxou o fecho de correr para baixo. Voltou a sentir o aço pontiagudo, desta vez sob o seio esquerdo. Depois no estômago, pressão atrás de pressão, cada vez com mais força, picada atrás de picada.
-• Um joguinho bem divertido, não é? - riu-se ele. - Agora vamos a isto. Já fiz este número algumas vezes mas nunca com tanto gosto como hoje. No fundo não sou nenhum sádico. Mas contigo, não sei, poderia transformar-me num.
Abanou a cabeça de modo a que os seus gordurentos caracóis esvoaçassem e a expressão dos seus olhos ainda era pior que a tesoura que cada vez mais se lhe enterrava na carne.
- Até agora foi só a brincar. Agora é a sério. Que se passa com Lawinsky? Onde está escondido? Vamos... Preciso do dinheiro. Preciso dele e já. Onze mil dólares. Sim, que foi que vocês imaginaram? Que pensas tu? Que eles pura e simplesmente deixam passar isto? E o tipo já recebeu cinco brasas como pagamento. No total Já são dezasseis. Agora vou dar-te um bloco para tu escreveres o número do telefone e a morada. Depois vamos até lá. Certo?
Não conseguia tirar os olhos dele. Que poderia fazer? Nem comseguia pensar. Sim, conseguia pensar numa coisa: “Este tipo vai matar-me!”
- Pronto, aqui tens um bloco e um lápis. Escreve a morada onde Posso encontrá-lo.
O lápis tremia na mão dela. “Não sei”, escreveu.
- Estás a brincar? Gostas da brincadeira? São divertidos, esses joguinhos? Então...
A horrível pressão aguda contra o seu ventre tornou-se mais forte. Depois uma dor. Tinha cortado a pele. E agora ele faria...
Mas não o fez.
Levantou a tesoura ficando a olhar para ela.
- És muito obstinada, não és? - suspirou deixando subitamente cair a tesoura como se fosse um inseccto incómodo. - Não sabes nada? Nem vais saber mais nada? Onde moras?
Tentou escrever no bloco “Schongauerstrasse” mas as letras baralharam-se.
Ele olhou para o papel e o rosto retomou a expressão anterior, parada, fixa, calma.
- Ele está lá?
Ela sacudiu a cabeça.
“Não posso atraiçoar-te”, pensou ela. “Não o farei, Hubert. Nem mesmo que morra. Não o farei...”
- E os meus dólares onde estão? Parece-te certo que eu aceite uma coisa dessas? E parece-te que aceito?
Agarrou-lhe o pulso levantando-a com um puxão. O fato escorregava-lhe dos ombros e ela procurou segurá-lo. Então ele endireitou-lho, puxando o fecho para cima.
- Hei-de descobrir. Já descobri muitas outras coisas. E alegra-te por estares a lidar comigo. De qualquer modo vamos apanhar o Lawinsky. Podes ter a certeza disso. É tão absolutamente certo como o “ámen” na igreja. Se não for aqui, será noutro lado... Pode ser comissário centenas de vezes e andar a esgueirar-se por aí, mas nós apanhamo-lo. Pronto, isto é uma das coisas. Agora o passo seguinte.
com um puxão retirou-lhe o adesivo da boca, o que lhe provocou uma dor terrível. Começou a chorar. Finalmente! As lágrimas corriam-lhe dos olhos pelas faces até à boca cheia de cola.
Ele deu-lhe um estalo e ela gritou. Já não conseguia pensar. Não tinha já qualquer reacção. Toda ela era medo.
Ele desamarrou-a:
- Ali em frente está um lavatório. Limpa essa porcaria da cara. E as lágrimas também. Acabou-se a choradeira, certo?
Acenou calada.
- Vamos sair do hotel e vamos a tua casa. Não dizes nem uma palavra. Se te fazes esperta ou se tentares qualquer movimento falso, estás arrumada. Despacho-te de verdade, rapariga. Não tenho nada contra ti, mas trata-se de um contrato, e eu cumpro Os meus contratos. Percebeste bem?
Sentia-se como se fosse uma marioneta enquanto ele a guiava até ao átrio de entrada do hotel. Fez um sinal ao porteiro, deixou que este lhe abrisse a porta e agradeceu. Durante todo o tempo ela seguia calada a seu lado.
Lá fora teve de entrar num grande Citroen. Ele pôs o motor em funcionamento e conduziu pela cidade com relativa segurança, sem necessitar que ela lhe desse qualquer indicação.
Ao estacionar em frente da casa em que ela morava, voltou a deitar-lhe um dos seus longos olhares fixos. Não revelavam qualquer ameaça, nada a não ser um frio e austero pragmatismo.
- Onde é?
- Quarto andar - disse ela. Já não tinha forças para continuar a proteger Hubert.
- bom. Agora vamos subir. Tu abres a porta. Não dizes nada. Comportas-te com tanto juízo como qualquer outra pessoa na tua situação, certo? As minhas brincadeiras não são só com tesouras. Tenho outros meios mais eficientes. Aqui, por exemplo...
Bateu com a mão no seu largo casaco de malha. Depois saiu e deixou que ela saísse do carro. Em silêncio, sem uma palavra, dirigiu-se para casa, já mais controlada. Não estava a viver realmente nada daquilo, tudo lhe parecia um sonho horrível. Então, quando lá em cima no apartamento verificou que Hubert se tinha ido embora, sentiu-se tomada de tonturas e caiu numa cadeira tremendo e chorando. Chorava de alívio.
Radonic percorreu as divisões do apartamento, espreitou até mesmo na casa de banho, deu a volta à cozinha, voltou para trás e encarou Britte:
- Pôs-se a andar, não foi rapariga?
Estava sentada toda enrolada numa cadeira junto do televisor e limitou-se a encolher os ombros.
- Tens uma sorte dos diabos, olhos azuis de flor do lóio. Sabes isso? Talvez hoje eu esteja num dia sentimental... Seja como for, agora vou-me embora. Depois podes chorar mais um bocadinho antes de te dirigires ao telefone para chamar a Polícia. Como queiras. Não me preocupam as camisas que deixei no hotel. Mas talvez eu não saia completamente da tua vida. É possível que voltemos a ver-nos brevemente. E até é bem provável, se tu continuares por aqui a ser a putazinha desse cão ranhoso do Lawinsky. Podes ter a certeza de que o apanho, acredita-me. Tira-o da tua ideia. Estou a dar-te um bom conselho...
passos pesados. A porta bateu. E aconteceu exactamente como o monstro tinha previsto: ela nada podia fazer, não podia evitar as tremuras que lhe tolhiam o corpo todo, não conseguia fazer desaparecer aquele nó na garganta. Começou a chorar.
Mas não se dirigiu ao telefone. Primeiro tinha de pensar muito bem em tudo aquilo.
Britte não sabia quanto tempo estivera assim sentada. Num determinado momento ouviu bater à porta. Deu um salto de susto. O medo subiu-lhe à garganta. O gordo, o monstro, teria voltado?
Voltaram a bater. Tinha o coração aos saltos. E então ouviu uma voz baixa, reprimida:
- Britte? Britte, abre a porta... Hubert!
Era a voz de Lawinsky!
Dirigiu-se à porta sentindo os joelhos fracos. Puxou o trinco. E ali estava ele à sua frente, sorridente, empurrando-a para dentro do quarto, trancando a porta, olhando para ela com aqueles olhos verdes onde ela podia ver uma expressão de triunfo.
- Fartei-me de esperar. Já tinha pensado que alguma coisa tinha corrido mal.
- Sim? - disse ela regressando à sala de estar. Voltou a deixar-se cair na cadeira onde ficou sentada com as pernas dobradas para cima.
- com certeza. Demoraste tanto tempo a voltar. Então disse cá para comigo: “Homem, Hubert, agora tem cuidado!” Claro que nem me passava pela cabeça que te tivesse acontecido alguma coisa, mas de qualquer modo...
“De qualquer modo”, pensou ela, “ele sabia perfeitamente que espécie de perigo eu podia correr junto desse Radonic.”
- Andei a bisbilhotar um bocadinho por aqui - continuou a contar. - No sótão lá em cima existe uma divisão. A porta estava aberta e através da clarabóia podia ver a rua. Instalei-me aí e vi vocês os dois chegarem.
- Muito esperto!
- Não é verdade? - Não percebeu o sarcasmo na voz dela. - Aquele gordo... afinal que se passava com ele? Por que veio ele contigo?
Britte contou com todos os pormenores o que se tinha passado no hotel. Hubert dava saltos de bem representada raiva, com a cabeça atirada para a frente como um tigre enjaulado.
- Ameaçou-te com uma tesoura?
Ela ficou calada. Fechou os olhos. Desejava que aquele pesadelo acabasse. Agora também Hubert fazia parte dele...
- Pobre Britte! Caramba, meti-te numa linda situação... Desculpa! Tenho realmente muita pena. Sabes uma coisa? Para a próxima não é só um anel, trago-te também...
- Podes ficar com eles. Acaba com isso!
Ficou tolhido de surpresa. Depois acenou distraído. Tinha o olhar noutro sítio muito diferente.
- Estes montes de lixo! Mafiosos, é o que são. Fui muito imprevidente.
- Também me parece - disse ela.
- Bem, de qualquer maneira, agora safo-me melhor. Sabe o diabo do que eles ainda se vão lembrar. Talvez aquele porco já ande a vigiar a casa... Existe outra saída?
- Lá em baixo, na cave das lavagens existe uma saída para a outra rua.
- Fantástico! Assim é melhor. Nos próximos dois dias não nos encontramos. vou para casa de um colega que tem uma mulher aqui nas redondezas. Mas volto a dar notícias. Em breve.
Sentiu um beijo nos cabelos, a sua mão na mão dele numa carícia fugidia, voltou a fechar os olhos e voltou a ouvir a porta bater.
Então fez-se finalmente silêncio. Levantou-se. O apartamento pareceu-lhe estranho, quase irreal. Foi para a cozinha, abriu o frigorífico, pegou numa garrafa de água mineral e encheu um copo até acima. Apesar de se ter sentado num banco, tinha a mão tão insegura que virou o copo em cima da mesa e a água escorreu molhando-lhe os joelhos. Apesar disso, ficou sentada sem se mexer.
O telefone começou a tocar e ela deixou que tocasse.
Hubert era o homem com quem querias ir para a Austrália? Não existem sonhos que se realizem, nem fugas possíveis, nem milagres.
O teu homem maravilhoso não passa de um porco pequeno, mesquinho, sujo e egoísta. Sim, senhor! Um metro e oitenta e olhos verdes! Esquece-o! Dar-te-á um anel, dar-te-á isto e aquilo, fingirá que te quer ver feliz e depois deixa-te cair numa armadilha sem mesmo se desculpar no fim! Um egoísta. Não, muito mais que isso. Alguém que só se conhece a si mesmo, não se importando de espetar uma faca nos outros sem ao menos pestanejar.
Lá estava outra vez aquele aborrecido telefone. Britte levantou-se lentamente, dirigiu-se ao telefone e levantou o auscultador.
Era Barbei Rupert, a enfermeira estagiária da clínica do aeroporto.
- Britte, és tu?
- Sim.
- Britte, aconteceu uma coisa. Uma coisa grave. com Rolf
- Grafe.••
- Sim? - Apertou o auscultador com a mão.
- Só te queria dizer: ele teve um acidente. Hoje à noite. O móvel da clínica acabou de ligar para cá. Estiveram todo o dia à volta dele. por isso é que só avisaram agora...
- E então? - quase não conseguia formular a pergunta. - Como estão as coisas?
- Espalhou-se com a moto. Tem qualquer coisa no joelho, na perna e sabe o diabo que mais. Ainda não sabem muito bem.
- Obrigada. - Britte desligou e ficou a olhar para as mãos. Estavam a tremer.
Passou por mulheres paquistanesas de rosto tapado que se recostavam, cansadas, em cadeiras de repouso. Por homens escuros doDubai ou do Ghana. Pelas montras das lojas de recordações, pelas boutiques, por lojas de cosméticos e de flores. No bar “Leonardo da Vinci” estavam algumas raparigas sentadas ao balcão do bar, que viraram a cabeça para ele, por cima dos copos, numa tentativa de arranjar cliente; a hora do aperitivo era a melhor para isso. No restaurante de grelhados, um político qualquer dava uma improvisada conferência de imprensa. No Bistro, homens de negócios conversavam animadamente com as cabeças quase encostadas. Sabia bem descontrair-se naquele ambiente. Dentro de cinco minutos tinha de estar sem falta de regresso à clínica, ele, o médico-chefe Dr. Fritz Hansen.
Passou por estofos de napa enfeitados com botões, por cima de elegantes pavimentos de mármore, sobre tapetes azuis, cinzentos e verdes, tendo subitamente a sensação de ter estado a ser seguido durante todo o tempo.
O tipo ali em frente, não o teria visto já na tabacaria? Que quereria ele? Por que o perseguia?
Era um homem vulgar, de calças castanhas de bonbazina e um estafado e fora de moda blusão aos quadrados. Tinha as mãos nas algibeiras. O rosto, sob os cabelos louro-acinzentados, parecia Pálido e cansado.
E depois? Andava muita gente por ali...
O Dr. Hansen seguiu o seu caminho esquecendo-se da sua sombra.
Entre as colunas da galeria das lojas deixou-se ficar em frente da montra da moda para homens a olhar absorto, encantado, para um Par de sapatos de noite pretos; não que se interessasse especialmente por sapatos de noite, ou por não ter nenhuns, mas porque, eles lhe faziam lembrar-se de há quanto tempo não ia à ópera ou a um concerto. Do lado direito da montra um atraente cartaz chamou-lhe a atenção. Mostrava uma praia com barcos de pesca em frente de uma branca aldeia grega.
“Férias!” pensou Fritz Hansen. Voltar a fazer férias, fosse onde fosse! Mas como? Embora estivesse sempre a sonhar com férias acabava sempre no mesmo: não tinha tempo para as coisas que mostram poder ser a vida alegre e descuidada. Encontrar-se a si próprio, estar alegre, ser um homem livre, pegar na mão de Evi correr pela praia, atirá-la para a água, amá-la sobre a areia... Senhor, começavam a ser horas!
Uma sombra reflectida no vidro. E depois uma voz:
- Sr. Hansen? É o Sr. Dr. Hansen?
A voz era alta, áspera e desagradável.
Fritz Hansen virou-se.
Ali estava ele outra vez, o que o seguia. Devia ter entre 40 e 50 anos. Tinha os lábios contraídos. Tinha um queixo forte e as sobrancelhas lisas e ameaçadoras. O olhar com que encarava Hansen era fixo, directo e flamejante: os olhos de um homem excitado. Os olhos de um fanático.
Fritz Hansen fez um gesto afirmativo.
- Sim. Deseja alguma coisa?
O canto direito da boca tremeu. As palavras saíram rápidas e abafadas:
- Que se enforque, Sr. Doutor! Seria o mais simples. Enforque-se! Evitava a todas estas lojas daqui uma enorme maçada.
- Como?
- O quê? Ainda pergunta?
- Não percebo nem uma palavra.
- Já ouviu alguma vez o nome Roser?
O homem era desagradavelmente impertinente. Pior ainda: parecia perturbado. Hansen só queria deixá-lo ali. No entanto, aquele nome... Roser? De qualquer modo parecia-lhe familiar. A memória de Fritz Hansen apagava os nomes. Nomes de doentes. Em voz alta disse:
- Não sei o que pretende nem por que razão a sua pouca vergonha. ..
- O que pretendo? - A boca do outro ficou então ainda mais fina e branca: - Então vá ao hospital da Cruz Vermelha, na Rua Kõnigswarter, quarto 324. Ainda aí encontra um que o pode esclarecer. NO caso de estar em situação de poder falar. É aí que está o meu filho Werner. Werner Roser! Sim, já se vai fazendo luz? O jovem que o senhor tem na sua consciência, que todo o pessoal da clínica do aeroporto tem na consciência! Há dias que luta com a morte.
Koser? Werner? Esse era... sim, o trauma torácico. O acidente no pavilhão cinco no aeroporto. Pneumotórax, ferros para a construção espetados no peito... a operação. Depois uma noite nos cuidados intensivos até poder ser transportado para a Cruz Vermelha na Rua Kõnigswarter. A situação parecia ter entretanto piorado e aquele homem ali, seria o pai?
- Oiça, Sr. Roser! Agora já sei do que se trata. Também percebo a sua excitação. Mas seria mais claro e mais útil se me contasse de forma exacta...
- Útil? - Da maneira como o homem a disse, já não era uma palavra. Não passava de um som sibilante. Aos cantos da boca tinha bolinhas de espuma. Olhava realmente como se estivesse louco. - Mais claro, diz você? Já decidi eu mesmo o que está claro. Sei-o até à ponta dos dedos, sim, até ao mínimo pormenor. Atirar com as lojas todas ao ar, é isso que está claro. Você, a sua clínica de merda! Isto tudo aqui! Sim, tudo, tudo...
Que se passava com ele? Estaria a ficar louco? Aquele olhar... e então, então fez um gesto curto e nervoso:
- Fazer tudo isto ir pelos ares!
Antes de Fritz poder realizar o que significava “tudo”, do movimento da mão saiu o estalo. Surgiu completamente de surpresa e apanhou o rosto de Hansen de lado entre o maxilar e a maçã do rosto. E foi tão violento, com uma força tal, que o atirou contra o vidro da montra. A face ardia-lhe. Só dificilmente readquiriu o equilíbrio baixando o braço que tinha levantado a proteger o rosto. Olhou à sua volta: Roser tinha desaparecido...
Só ali estava uma senhora de idade segurando a mala com força de encontro ao peito.
- Oiça, senhor - disse ela -, fui testemunha. Se quiser vamos à Polícia. Bater assim sem mais nem menos...! Não sei o que se passa entre si e o outro senhor, mas isto... não, não deixaria que as coisas ficassem assim!
Hansen esfregou a face dorida. O lábio estava um pouco inchado e sentia-se surdo. Apesar disso procurou sorrir:
- Tem toda a razão. Eu também não vou deixar. Muitíssimo obrigado!
Depois virou-se para a saída deitando ainda um olhar ao atraente cartaz: céu azul. O mar grego. Barcos de pesca...
Ao atravessar o átrio até ao seu escritório na clínica, ia de cenho franzido, atirou com a porta e deixou-se cair numa cadeira.
Grande merda! Que queria ele dizer com “vocês têm-no na vossa consciência?” Mas porquê, santo Deus? Sabia Bem, nesse dia muita coisa correu mal porque Rolf Grafe não estava em condições. Mas no fim tinham acabado por conseguir , a hemorragia parara. E nessa noite, não, na manhã seguinte, tinham podido transferir o jovem Roser dos cuidados intensivos para o Hospital da Cruz Vermelha. Aí, talvez eles...
Fritz Hansen pegou num cigarro. E mais uma coisa, pensou enquanto acendia o cigarro: que significaria aquela ameaça? Estão todos incluídos. A clínica, as lojas todas, vai tudo pelos ares
Um louco? Um ataque de depressão? Um ataque de raiva descontrolada? Diz-se muita coisa... e, no entanto, a senhora de idade não teria tido razão ao dizer que ele devia chamar a Polícia?
A quem devia telefonar primeiro? À Cruz Vermelha ou à Polícia de Segurança?
Ora, disparates! Estás novamente a ver fantasmas!
Levantou o auscultador:
- Ligue-me ao Hospital da Cruz Vermelha da Rua Kõnigswarter.
- Hospital da Cruz Vermelha, fala da central-informou uma voz de homem.
- Daqui fala Hansen, da clínica do aeroporto. Escute, transferimos para aí um caso, um certo Werner Roser... Tanto quanto sei, o homem está no quarto 324. Posso falar com o colega de serviço?
- É o Dr. Schumann. Um momento.
- Schumann. - A voz que apareceu era bastante jovem. Aparentemente um assistente.
- Hansen. Escute, Sr. Schumann. Há dez dias que lhe enviámos daqui da clínica do aeroporto, já não sei bem o dia, um acidentado grave. com trauma torácico bastante mau. O homem apanhou com uns ferros para a construção no peito. Prestámos-lhe aqui os primeiros socorros, fizemos estancar a hemorragia e depois mandámo-lo para aí. O homem chama-se...
- Roser. Werner Roser.
- Certo. Conhece o caso?
- E de que maneira! Esse Roser já nos deu mais trabalho que o resto do posto todo. Tanto quanto sei foi-lhe enviado um relatório, Sr. Dr. Hansen.
- Um relatório? - Hansen puxou o fumo do cigarro. Não o tinha visto ou não lhe tinha ligado. Naquela confusão de horrores, muita coisa escapava. - Lamento, colega. Não consigo lembrar-me. Sabe, aqui acontecem sempre muitas coisas.
- Era só uma coisa de rotina. - A voz jovem do outro lado soava apreensiva. - Mas para lhe dar uma rápida ideia: surgiram complicações. E as piores que nestes casos por vezes surgem. Bem, bem, ultrapassar os danos de alguns ferros para a construção enfiados no peito não é assim tão simples.
- Septicemia?
- Certo! E mais uma infecção generalizada. Sabe muito bem como uma coisa destas pode acontecer num caso de tórax aberto. Fizemos lavagens, bombeámos com os produtos mais fortes...
- E o bacilo?
- Um estreptocus epidermidis. Poli-resistente.
- E podendo afectar os rins - disse Hansen. - Muito obrigado.
- Ah! Ainda mais uma coisa: O pai dele esteve convosco?
- Todos os dias, homem, todos os dias faz aqui um espectáculo. Não há maneira de o parar. E a si... a si atribui-lhe toda a responsabilidade, enquanto...
- Enquanto pode espalhar o bacilo por todo o lado - até na vossa casa... - terminou Hansen.
- Assim é. No meio de nós, certamente.
- Uma vez mais, muito obrigado. - Hansen desligou, esticou os dedos e encostou o queixo à mão. Estamos bonitos... Aquele Dr. Schumann, embora muito novo, parecia bastante competente. E optimista. E um pai, numa situação daquelas perder a cabeça, era compreensível. Portanto, toca a esquecer o assunto! Enterra-o. Acabou.
Levantou-se, dirigiu-se ao espelho e ficou a contemplar o seu rosto. Um pequeno alto avermelhado; seria tudo o que restaria do incidente.
O rapaz há-de salvar-se... Havemos de tratar disso. Seria bonito se...
Mal Hansen metera a chave na fechadura do seu apartamento e já a porta se abria por dentro. E ali estava Evi.
- Homem, que sorte chegares! - exclamou ela. - Ia agora mesmo telefonar-te.
- Outro acidente? - Sorriu: - Deixa-me ao menos descansar.
- Qual deixar-te descansar. Acidente tenho eu na cozinha. A minha refeição...
Tinha os olhos brilhantes de excitação. Os olhos de uma Evi que, pés nus, pernas nuas, e unicamente vestida com a sua velha camisa de ganga, corria à sua frente, em direcção à cozinha, da qual saía um aroma bastante exótico.
- Raios! E o meu beijo? Isso são maneiras de cumprimentar teu homem?
- Depois - gritou ela. E logo: - Uau! -Aparentemente tinha-se queimado - Céus! Espero que esta coisa não se tenha queimado!
- Cá por mim tanto faz. - Hansen sorriu. Estava satisfeito. Não mais ainda, mesmo que a palavra soasse demasiado pomposa: estava feliz, completamente feliz. E isso apesar de uma fêmea estar a virar-lhe de pernas para o ar a sua cozinha de solteirão, ainda por cima dando-lhe ordens.
Ah! Evi... Ao pé dela era fácil habituar-se às coisas mais difíceis. Apetecia-lhe abraçá-la...
- O arroz! - gemeu ela. - Depressa, mexe-o. Hansen mexeu-o.
- O tabuleiro!
Hansen deu-lhe o tabuleiro. Pronto, sempre era preciso treinar Havia de ser assim no futuro. Ou pior.
- Mas que prato é esse?
- Aprendi na Tailândia. Peixe com manga e caril.
- Se agora me disseres que tenho de comer com pauzinhos, desato aos gritos.
- Tens direito a uma colher. - Olhou para ele radiante e, de repente, atirou-lhe os braços ao pescoço, pretendendo beijá-lo.
Mas não o fez. Atirou a cabeça para trás ficando a observá-lo com os olhos semicerrados e interrogativos:
- Que te aconteceu? Que é isso aí? Estás todo vermelho e tens o lábio inferior inchado! Tropeçaste ou foi alguém que...
- Foi alguém - disse ele sorrindo.
- Não! A ti?
- Sim. A mim!
- Quem?
- Um maluco. O mundo está cheio deles. Andam para aí à solta. De todos os géneros.
- Pobrezinho... - tocou-lhe com muito jeito na face direita. - Nem consigo imaginar. Bater num senhor tão bonito, tão fino, com tão bom aspecto! Ainda por cima médico, um protector da humanidade! Francamente! Agora conta lá tudo.
- O diabo é que conto! Queres que perca o apetite em relação à tua descoberta tailandesa?
- Não é nenhuma descoberta. É um prato original.
Era verdade que sim, e sabia maravilhosamente, embora tão picante que era preciso estar sempre a beber.
Meu Deus! Hansen reclinou-se, satisfeito e feliz. Foi ela quem também levantou os pratos... Um sonho maravilhoso, a minha Evi e ainda por cima dona de umas pernas também de sonho! Em breve vamos levar aquelas pernas a passear por outras paragens. Numa praia grega ou na Tailândia... Como era o nome daquela estância tão conhecida? Sempre tiveste vontade de lá ir. Phuket, claro. Era bem isso? E como acompanhante de uma hospedeira da LH, só pagaria dez ou quinze por cento, mesmo sem serem casados. Embora essa ideia não fosse completamente má...
Então, como foi isso? - Atirou o cabelo para trás fazendo um ar muito decidido. - Agora quero saber tudo. Agora contas tu.
Ele contou, em poucas palavras, irónico, e quando falou na senhora com a mala de mão que achava dever ele chamar a Polícia, o estalo que levara pareceu-lhe mais cómico que grave.
- Ainda por cima salvaste a vida ao rapaz ou não?
- Sim, pode dizer-se que sim.
- Nada disso me agrada, mesmo nada... Está bem, o homem devia estar excitado, a ficar maluco, mas essas ameaças? Fazer ir pelos ares não só a ti, não só a clínica? Que quereria ele dizer com isso?
- Não faço ideia. Também gostava de saber. Mas não é por isso que vou dar cabo da cabeça.
Ela sentou-se no sofá com as pernas dobradas debaixo dela, colocou as mãos nos joelhos e dobrou-se para a frente para olhar bem para ele, longamente, seriamente.
- A mulher tinha razão. Portanto, se me perguntas, acho que devias realmente ligar para a Polícia e dar conta do caso. Eu própria estive lá hoje...
- Tu? Porquê?
- Também por causa de um caso da clínica. O nosso caso.
- O columbiano? Esse Caldas?
- Não se chama Caldas. Esse nome só constava no passaporte. Na realidade chama-se Ramon. Ramon Garcia.
- E?... Por que razão tiveste de ir à Polícia?
Ela voltou a olhar para ele. com o mesmo olhar insistente, quase recriminador.
- Ainda perguntas? Porque quero ajudá-lo. Não passa de um pobre diabo. Tem dois filhos lá na terra. Um pobre geógrafo. Ama a mulher e a família. Entrou nesta história contrariado.
- Sim? Contrariado? - Que interesse tinha ela no Ramon Garcia? A esse correio de droga tinha conseguido salvar. Mas o outro, o pequeno Roser... uma septicemia, uma infecção geral que afectara os rins... Foi culpa minha, meu Deus? Num trauma torácico por acidente daquela gravidade? Mas na Cruz Vermelha haviam de conseguir...
- Tenho de o ajudar - ouviu Evi dizer. - Arranjei-lhe um advogado. Percebes isto, não é verdade?
- Estou a tentar.
- Tu percebes.
Fez um gesto afirmativo e só queria ver-se livre de sombras. Lembrou-se de repente do que Evi lhe tinha contado no dia anterior. Também ela sentia qualquer coisa como culpa sem que fosse culpa dela. No caso dela tratava-se de um morto a pesar-lhe na alma. Um homem na Califórnia que ela tinha amado sem se ter tornado sua amante. Um noivo de quem estivera muito próxima. Alguém que a tinha compreendido como mais ninguém. E esse Chris, cuja existência ela lhe ocultara, tinha morrido sozinho, sem a presença dela, sem a sua ajuda...
- E quando na viagem de regresso a Frankfurt me ajoelhei ao pé do columbiano, aquela criatura totalmente desconhecida, procurando fazer que o seu coração batesse novamente, era para mim como se de algum modo Chris ali estivesse. Ambos se tornaram subitamente num só. No entanto, ao mesmo tempo era como se Chris estivesse a meu lado e me ajudasse sempre que estava para desistir. Consegues perceber isto?
Ele percebia. Ele próprio tinha sentido que as pessoas por vezes se culpam de coisas pelas quais não são absolutamente nada responsáveis.
- Ora, Evi - disse levantando-se -, vamos, vou buscar um uísque para nós. Depois bebemo-lo até ao fim.
No entanto, ela abanou a cabeça:
- Não pode ser. Nem sempre dá resultado e, no que respeita esse homem que te bateu, leva isso a sério! Não é como o Ramon Garcia. Não. E não sei porquê tenho a sensação de que é perigoso...
Não era que tivesse dores, era mais como se uma força estranha estivesse a apertar-lhe a barriga. Duas mãos que lhe apertavam as costas e se apoderavam das suas entranhas. Maria Schuster cerrou os punhos. Não queria gemer. Não ficava bem. Muito menos ali, no aeroporto de Frankfurt, onde tudo era terrivelmente elegante e caro. As pessoas, as roupas que vestiam! Tudo gente rica.
Em casa, na Ucrânia, e também nos outros lados onde tinham de ir para tratar dos papéis para viajar, cada qual vestia o que tinha.” mas aqui? Tinham ar de milionários. E o aeroporto! E aqueles assentos pretos macios como penas! Ali não podia... oh! Deus!
Agora vinham as dores. Numa só onda enorme... boca calada! Tinha de ficar quieta!
Mas gemeu.
O homem sentado à sua frente baixou o jornal e endireitou os filhos. A mulher a seu lado sentou-se subitamente, muito direita, as duas crianças, que deviam pertencer ao casal, tinham as bocas abertas. Ela já não conseguia voltar atrás. Como seria isso possível? Já nada poderia ser alterado. Maria tinha agora as duas mãos apertadas contra o seu vestido de grávida, fechou os olhos e mordeu os lábios até os ferir.
- Precisa de alguma coisa? - perguntou o homem ainda jovem que se encontrava a seu lado. Ela queria abanar a cabeça, queria explicar, mas como poderia fazê-lo? A dor era demasiado forte, era como uma onda que a levantasse ao ar. Então... não! Não!... entre as coxas corria-lhe qualquer coisa quente, molhando o estofo, formando uma poça no chão.
As águas tinham rebentado! Deus do céu...
- Maria? - ouviu chamar. Graças a Deus. À sua frente apareceu Hemrich a correr, o marido dela. Fazer-lhe uma coisa daquelas, fazê-lo passar por aquilo! Depois de tudo o que já tinham passado... e até ali tudo correra bem. Tinham atrás de si uma distância tão grande. De Kalanow - a aldeia onde moravam - primeiro até Saporoschje, de Saporoschje até Kiev, de Kiev a Moscovo, de Moscovo a Leipzig, nessa terra especial a que só os idosos chamavam “a velha pátria”. Sim, e ainda tinham ido mais longe: de Leipzig a Frankfurt. Era ali nas proximidades que deviam arranjar habitação e também algum trabalho.
Mas agora... agora chegava a criança...
- Por favor, Heinrich. Ajuda-me!
l, Fez um gesto afirmativo. Deitou um olhar ao que estava no chão, ficou a olhar para ela sem saber bem o que fazer, olhou para as outras pessoas, inclinou-se para ela e segredou-lhe, como se tivesse receio de ser ouvido por aquela gente estranha:
- Consegues andar? Ali à frente há uma casa de banho.
- Julgo que sim - respondeu baixinho.
- Então tenta. Eu amparo-te. Ela voltou a cerrar os dentes quando ele a levantou, mas conseguiu. Deus do céu, parecia-lhe andar por entre filas de olhares e os olhares eram como chicotes que a flagelavam. Por que razão ninguém a aJudava? Onde estava a senhora simpática dos Serviços Sociais da Igreja? Tinha-lhes dito para esperarem ali. E que até lhes arranjaria no restaurante qualquer coisa para comer antes de entrarem no autocarro. ;]
- Oiçam, vou chamar o médico das urgências - ouviu-se uma voz dizer. - Onde é que vai? - Era o homem ainda jovem.
- Ali! - Heinrich levantou a mão apontando para a placa com a indicação em fundo verde. Mostrava a silhueta de uma mulher. - À casa de banho. A que outro sítio podemos ir?
Na clínica do aeroporto foi o enfermeiro-chefe Fritz Wul. lemann quem levantou o auscultador, quando uma das meninas das informações fez a chamada, calma, profissional:
- Temos aqui um problema um tanto invulgar. Está aqui uma mulher que vai ter uma criança.
- Que tem isso de invulgar?
- Não estou com disposição para graças. ;,
- Onde está ela?
Ouviu-se um leve sussurro e depois a resposta:
- Tenho aqui um jovem que veio dar-nos a informação. Parece que a senhora se mudou para a casa de banho das senhoras que fica ao pé da saída das bagagens dos voos domésticos.
“Mudou-se”, pensou Fritz Wullemann, “mudar-se é como ela chama a isto, a cabra estúpida!”
Atirou o auscultador para o descanso e virou-se:
- Rápido! Vamos, vamos.
Sim, mas quem? Nesse momento o bom Deus teve um rasgo de bondade: o jovem médico Olaf Honolka meteu a cabeça pela porta.
- Bem, graças a Deus!
- Onde está o chefe? Uma mulher vai ter uma criança.
Honolka esbugalhou os olhos: :
- O quê?
- Não me pergunte nada, Doutor. É só assim.•.
- Sim, mas eu tenho...
- Também não precisas de ir, doutorzinho... Quando aparecesses com os teus caracolinhos na casa de banho das senhoras, elas fugiam aos gritos. Até a grávida. Onde está o chefe?
- No gesso.
- Então vai buscá-lo. Corre!
O espectáculo que se apresentou a Wullemann e ao médico-chefe Dr. Hansen, quando chegaram, era mais cómico que aflitivo: ali estava uma mulher alta, de cabelos grisalhos, o destintivo do serviço social da igreja na lapela do casaco bem cortado, afastando com os dois braços algumas mulheres que ou protestavam ou ficavam a olhar para ela sem acreditar no que viam.
- Sejam compreensivas. Há mais casas de banho aqui no aeroporto.
- A senhora disse uma criança?
- Sim. Eu disse uma criança.
- Ai meu Deus, a pobrezinha!
- Podemos passar? - Hansen e Wullemann abriram a porta e entraram na divisão fresca e repleta de lavatórios, ouvindo imediatamente os gemidos. Os mosaicos reflectiam a luz. E ali, no chão... um homem inclinado sobre a mulher que ali se encontrava deitada de costas, os joelhos levantados, as mãos no ventre, o rosto crispado, na posição típica das parturientes.
O homem amparava-lhe a cabeça, que balouçava de um lado para o outro. Ao lado do casal estava roupa suja de sangue. Um líquido ensanguentado escorria pelos mosaicos do chão.
- Bem, espero que não tenhamos chegado demasiado tarde, Doutor - disse Wullemann.
Não tinham chegado demasiado tarde. O período de expulsão tinha começado, sem dúvida. O pulso estava regular, normalíssimo. A mulher deveria estar nos 40, se não mais, tanto quanto se podia avaliar na situação em que se encontrava.
- Que idade tem ela?
- 41 - disse o homem a seu lado com voz trémula.
- Não precisa de ficar aqui.
- Mas tenho de ficar. Não posso deixar a minha Maria sozinha.
Falava um alemão estranho, com pronúncia suaba, mas não era natural da Suábia. Via-se. Mas sabia Deus que não era importante conhecer o sítio de onde vinha.
Dois minutos depois veio a segunda contracção. Naquela altura não era possível transportá-la dali. Fez força. Do corpo saía já, escura e molhada, a cabeça da criança.
- Respire fundo! - Hansen inclinou-se sobre o rosto dela.
Sorriu.
- Está a ir lindamente, vai ver. Chamo-me Hansen e agora fico aqui ao pé de si. O seu marido também está aqui, Maria... Pronto, agora encoste o queixo ao peito, sustenha a respiração e empurre com toda a força. bom, assim está certo, outra vez empurrar com toda a força.
A mulher olhou para ele. Tinha olhos cinzentos. Sorriu-lhe e colocou-lhe a mão suavemente sobre a barriga.
- Respire, Maria... como eu faço... assim... muito bem... faça ao mesmo tempo que eu... Para dentro, pelo nariz e para fora, pela boca...
Ela sorriu. De facto. Apesar das dores.
- Maravilhoso, Maria. Respire fundo outra vez, fundo. Respire com a barriga sempre que lhe for possível... a nossa criança tem de receber ar. Quando respira fundo, ela também respira e então recebe oxigénio, percebe?
- Oh! Sr. Doutor, ainda vai durar muito?
- Não.
A cabeça da criança tinha-se libertado e já se via o ombro. Com cuidado, com muito cuidado, Hansen agarrou-o.
- Mais uma vez, Maria. O seu filho já cá está. Empurre!
Um grito.
Tinham conseguido. Tinha tudo corrido maravilhosamente. O perineu nem sequer se tinha rasgado.
- Trabalhámos muito bem, não? - disse Wullemann radiante.
O homem, com a mulher a seu lado, limpou o suor do rosto magro e fez um gesto de agradecimento.
- Vai ver se a maca está lá fora!
Wullemann correu para a porta. Devido ao perigo de hemorragia tinham decidido tratar do umbigo e prestar os cuidados pós-parto na clínica.
Hansen já tinha preparado uma injecção de Oxytocina, um medicamento que ajudava à descolagem da placenta e evitava grandes perdas de sangue. Deu-lha sem que Maria Schuster desse por isso. Então chegou a maca de rodas.
- Pronto, Maria, agora estamos quase numa cama. No meu hospital.
- Obrigada, Doutor. Muito obrigada.
- Não, foi você quem fez tudo! E devo dizer que de uma forma impecável.
As pálpebras esconderam-lhe os olhos.
Levantaram o corpo, colocaram-lhe a criança embrulhada em panos esterilizados sobre o ventre, puseram um cobertor por cima e empurraram a maca para fora.
- Uma coisa assim! As coisas que aqui acontecem. Até o nascimento de uma criança!
A mulher lá fora, em frente da porta, tinha os olhos espantados.
- Então, tudo faz parte da humanidade, minha senhora - disse Fritz Wullemann. - Que outra coisa poderia ser?
Karl Roser ouvia o televisor já no patamar da escada e sabia o que o esperava: a mulher, Pia, estaria deitada no sofá, sofredora, uma cerveja a seu lado e olhando para a televisão. Ir para casa? Nem isso já era simples. Nada era simples. Mas a desgraça em breve teria um fim...
Meteu a chave na fechadura.
Mais uma vez acertara: ela estava deitada no sofá, meia garrafa de cerveja à sua frente e, no televisor, o locutor encarava-a radiante. Era ainda pior: continuava de roupão vestido! Quando ele entrou, soergueu-se:
- Tive tantas dores hoje, Karl. Mal podia mexer-me. As minhas cruzes dão cabo de mim... Como é? Trouxeste alguma coisa para comer?
Ele sacudiu a cabeça. Ela baixou o som, pois agora o homem estava a cantar.
- Estive com o Werner. No hospital.
- Santo Deus! Meu pobre pequeno... - A voz faltou-lhe, em breve começaria a rezingar e, se possível, a lamuriar: - E então? Como estava ele hoje?
- Como sempre.
- Por que fomos tão castigados, Karl? Sabes porquê? Primeiro deram-lhe cabo do peito - soluçou - e agora foram os rins... Era só o que nos faltava. Pobre pequeno...
O “pobre pequeno”? Karl Roser ficou a olhar para o homem na televisão, olhos brilhantes, boca bem aberta e pensou na cara emagrecida do filho, nos tubos que lhe enviavam para os rins doentes o líquido que o devia salvar... E depois no rosto da mulher, velha, inchada, gasta. E por cima de tudo isto via pendurada atrás da cabeça dela a fotografia do casamento: ele de farda de tenente da aviação, ela de vestido branco. Por Deus, Pia tinha sido bonita! Loura e magra, já nessa altura um pouco mandriona, mas riam-se tanto...
Tinha a boca seca. “Que mais te vai ainda acontecer?” pensou ele. E depois: “A vida, por que passa ela a correr sempre depressa, cada vez mais depressa? Se não fizeres nada agora, fica tudo estragado...”
- O correio está ali, Karl. Nem o abri.
Ele assentiu e sorriu com amargura:
- Também não é preciso. São só contas e reclamações.
- Ainda há pãezinhos. Queres?
Ele acenou que não.
- Já não há cerveja no frigorífico. Nem vale a pena ires ver.
- Faço um chá e vou para a oficina...
A oficina ficava um andar abaixo, num anexo. O anexo estendia-se para o pátio das traseiras onde crescia uma cerejeira raquítica.
Karl Roser tinha deitado o chá numa garrafa-termos. Segurava-a com a mão esquerda enquanto puxava a chave e deitava uma olhadela para a tabuleta que, havia anos, depois de ter saído da associação, montara sobre a porta:
KARL ROSER – SISTEMAS ELÉCTRICOS E TRABALHOS EM LATÃO
A tabuleta era de latão e brilhava como nova por estar sempre a ser polida. Mas quem é que a lia? Dantes, há dez anos, quando tomava conta das encomendas do aeroporto, tinha tido de recusar todos os outros clientes. Dantes, estava cheio de trabalho e agora, agora não aparecia ninguém.
Pois era, mas em breve não precisaria de clientela.
Ligou o interruptor. A luz fluorescente tremeu na grande divisão deitando os seus raios frios sobre as ferramentas, banca de trabalho, os sítios onde trabalhavam. Tudo vazio. Ali naquele canto tinha-se sentado o seu filho Werner. Tinha posto um cartaz sobre a sua mesa com uma loura de calças de ganga, tronco e seios nus, com as calças já meio abertas. A zaragata que tinham tido quando lhe dissera:
- Tens de tirar essa coisa daí!
- Passas a vida a mandar em mim - protestara Werner. - Se quiseres, também me posso pôr a andar daqui, paizinho! Ficas a saber, desapareço logo.
Agora tinha-se mesmo ido embora. E como as coisas se apresentavam, possivelmente para sempre...
Karl Roser colocou a garrafa-termos sobre a secretária, serviu-se de uma chávena, dirigiu-se ao seu velho cofre e tirou de dentro os esquemas das ligações. “Absolutamente secreto”, percebia-se porquê. Quando os construtores do aeroporto o tinham contratado, havia dez anos, tinham ficado doidos de alegria por terem encontrado um técnico de sistemas formado na associação e que percebia do seu ofício. Assim, deram-lhe sem qualquer problema os documentos e os esquemas de segurança. Um conjunto de desenhos bem poderia ter ficado esquecido. Nem tinham dado por isso.
Roser acendeu o cachimbo e inclinou-se sobre o labirinto de linhas e dados técnicos.
Os sítios onde colocaria os detonadores e as cargas explosivas tinham sido marcados com cruzinhas vermelhas.
Não iria ser a grande explosão, não. O terror deveria surgir passo a passo. Bem devagarinho. Queria ir apertando o parafuso a pouco e pouco. Durante dias, semanas, sempre que calhasse. Primeiro a carta. Depois desligar o sistema informático. Fase dois: veículos da clínica. Fase três: centro de carga. Quatro: a sala de embarque... golpe após golpe, sim senhor. Eficiente, ordenado, limpo.
Antes teria de destruir os planos. Claro. Mas para isso ainda havia muito tempo...
Suspirando sentou-se ao computador, ligou-o e começou a escrever a primeira carta.
“O que hoje se passou”, escreveu Karl Roser “foi um aviso e serviu para lhes mostrar que estou a falar a sério...”
- Que tens tu, Oscar? Não te sentes bem?
- Não, meu amor, não é nada. Onde é que estão as malas?
- Lá está, ali no quadro: Cairo. LTU. Somos nós.
- Ah! Sim?
A fita transportadora começou a rodar. Era tudo realmente muito prático. As primeiras malas estavam a aparecer. Uma coisa qualquer vinha a balançar. Era um cestinho.
- Achas que Júrgen vai ficar contente com o prato?
Era um maravilhoso prato de prata que traziam na bagagem. Por fora tinha uns estranhos sinais gráficos. Árabe. O vendedor no bazar tinha dito que era um verso do Corão e que o prato era de prata verdadeira. Uma prata muito verdadeira não devia ser, já que fora tão barato.
- Oscar, devíamos ter trazido para os pequenos a sela de camelo. Mas, infelizmente, era muito pesada. Tinha sido tudo tanto e tão desconcertante, afinal toda a viagem o tinha sido, embora a intenção dos filhos tivesse sido boa. Tinham sido amorosos em oferecer-lhes nas bodas de ouro uma viagem ao Nilo. Sim, o Nilo: palmeiras, pirâmides, Assuan, os túmulos dos reis, até tinham andado de camelo... E toda aquela gente escura... embora um pouco pedinchões, eram simpáticos.
Depois, o voo de regresso sobrevoando montanhas e oceanos. De repente tinha ficado tudo verde e uma voz dissera:
- Acabámos de sobrevoar Frankfurt. Dentro de momentos aterraremos no aeroporto de Frankfurt, pelo que agradecemos que apertem os cintos.
- As crianças com certeza que vieram esperar-nos, Oscar - disse então Wilma Koch.
- Achas que sim? - duvidou o marido.
Wilma ficou um tanto preocupada pois o marido estava um pouco pálido sob o queimado do sol. Por que razão tinha tantas olheiras? Talvez não fosse de admirar se se pensasse que em poucas horas tinham ido de um continente para outro, e isso aos 76 anos...
- Ali vem a mala! - Ali estava. Oscar até tinha sido o primeiro a vê-la.
- É a minha - disse ela. - E a tua vem logo a seguir. A verde.
- Sim - disse ele -, é verdade!
As pessoas inclinavam-se para o tapete, mãos agarravam as malas. Os rostos queimados do sol estavam imóveis e tensos. Wilma Koch reconheceu muitas daquelas caras. Tinham vindo no mesmo autocarro, tinham estado no mesmo barco, no Nilo, encostados à amurada olhando juntos para a margem. Dragas, pirâmides, fortalezas antigas e em ruínas, pequenas aldeias, tudo isso passava por eles. E nas aldeias das margens havia crianças a brincar. Tinham em conjunto admirado isto e aquilo, tinham tirado fotografias e tinham-se sentido felizes... Agora estavam ali como gente estranha que procurava a sua bagagem. Por todo o lado betão, luz, ordem e organização: a pátria tomava novamente conta deles! Até ela pensava se a Sr.- Scheuer lhe teria regado os gerânios e se não se teria esquecido de dar duas voltas à chave do apartamento...
- Ai, Wilma! - A mão dele procurou a mão dela. - Não é verdade que foi muito bonito, tão maravilhoso! Havemos de voltar ao Egipto...
Virou-se rapidamente, profundamente alarmada.
- Oscar, que se passa?
Tinha os olhos muito abertos de espanto.
- Não! - gritou ela. - Não...
Teve de o amparar. Ele era tão alto! Sempre tinha sido alto e ossudo, como é que ela podia... ele caiu, caiu para cima da correia transportadora, para o meio das malas, e então apareceu gente e vozes a chamar, alguém a segurou e deitaram Oscar no chão.
- Oh! Oscar, meu pobre e querido Oscar...
- Compras-me um gelado, Papi? - perguntou o rapazinho.
- Não há gelados! Não temos tempo. E tem cuidado com o ramo de flores, caramba!
- Ouve lá - disse Traudl Koch irritada -, que é que tu tens? O avião do Cairo acaba de aterrar. Até os pais passarem a Alfândega e pegarem nas malas... Não percebo por que razão estás tão nervoso. Que é que se te meteu na cabeça?
Então Júrgen deitou-lhe um dos seus olhares mais tranquilizadores. Afinal, que é que lhe tinha dado? Os aeroportos para ele não tinham segredos. Já tinha voado muito, viajava com frequência. A empresa mandava-o para todo o lado. Conhecia as rotinas de voo em qualquer parte do mundo. E agora que o pai e a mãe acabavam de aterrar comportava-se como uma noiva excitada. Aquela história toda tinha-lhe custado uma data de dinheiro. Como se um qualquer bonito presente não tivesse sido suficiente para as bodas de ouro. Não, tinha tido de ser uma viagem ao Nilo! E tinha pedido o dia na firma para estar ali.
- Eh! Não corras assim!
- Venham depressa.
Troudl Koch trotou atrás do marido e do filho. A pouco e pouco começava a sentir-se farta. Francamente...
- Não pode despachar-se um bocadinho?
Estava sentado num banco na sala dos gessos e o rabo ocupava um espaço bastante grande. A única coisa fina que tinha eram os lábios e os aros de ouro dos óculos.
Trazia uma gravata de seda italiana aos quadrados grandes e estava em cuecas, uma vez que tinha de ter as pernas nuas. A perna direita estava levantada enquanto o jovem médico Dr. Olaf Honolka lhe engessava o tornozelo.
- Caramba, isso não fica pronto hoje? - continuou a berrar. As suas mãos fortes seguravam a bolsa apertando-a com força.
- Que quer dizer “hoje”? - perguntou Honolka.
- Homem, daqui a quarenta minutos sai o meu avião!
O médico deitou uma olhadela à ficha.
- Sr. Piess!
- Priess, não é Piess.
- Ah! Sim? Pelo menos uma vez entendamo-nos!
Da mesa onde o chefe Fritz Wullemann ainda estava a mexer o gesso, veio uma careta de cumplicidade.
- Entendemo-nos!? Parece que não nos entendemos mas é nada. Perguntei-lhe quanto tempo é que isto ainda ia levar.
- Daqui a dez minutos está o gesso posto. Mas é melhor esquecer o seu voo.
- Porquê? Que quer dizer com isso?
- Que vai ficar aqui com uma fractura muito recente.
- Está doido? Sabe do que se trata?
- Isso interessa-me muito pouco.
- Calculo. Trata-se de milhões, homem!
- O meu nome é Honolka - disse ele. - Dr. Olaf Honolka.
- Tanto melhor. vou tomar nota do nome. Talvez quando regressar possa responsabilizá-lo por este... por este tratamento.
- Levante-se.
- Como?
- Tem de se levantar. E caminhe com bastante força, sim? Para que faça doer bastante. Não quero retê-lo por mais tempo. A porta é ali!
- Você é doido. Exijo que faça o tratamento...
- Aqui você não exige absolutamente nada, que fique bem claro. Foi trazido para aqui. Aqui foi radiografado! - Honolka levantou ao ar uma radiografia. - Olhe bem para ela. O pericárpio partido em dois sítios. E quer pura e simplesmente...
O homem caiu em si. Depois fez um gesto de concordância.
- Desculpe-me por favor, os nervos... Sabe, esta pressão constante...
- E os milhões, não é? - perguntou Fritz Wullemann. - Afinal onde quer ir?
- ADresden.
- Já calculava. Naturalmente... Onde é que hoje em dia se arranja carvão? Nos nossos amigos do Leste.
- Você não percebe nada. Que sabe você dos riscos que corro? Entrei nisto até ao fundo. E se nisto posso ganhar um milhão é só porque...
- Por causa da construção, não é?
- Não estou interessado em discutir consigo. Só quero saber como hei-de chegar ao meu avião. Certamente têm aqui cadeiras de rodas.
- Nós temos, mas se acha que sou eu que a vou empurrar...
- Eu não espero nada. Não exijo nada. Eu pago.
- Então pague, homem. Espalhe à vontade...
O altifalante interrompeu-os.
- Acidente. Piso das chegadas. Saída de bagagens número catorze...
Honolka fez um sinal a Wullemann. O gesso escorria-lhe das mãos. Estava a fazer o gesso para a última ligadura.
- Informa-te, Fritz. Estamos quase prontos. Neste momento não podemos contar com o chefe. Está a operar.
Fritz Wullemann já tinha o auscultador na mão.
- É grave? - perguntou ao telefone.
- Um senhor de idade. Aparentemente trata-se de um ataque cardíaco.
- Ainda se pode mexer?
- Não. Está totalmente tolhido.
Médico e enfermeiro olharam um para o outro. Honolka suspirou.
- Bem, então não há nada como irmos já!
- Vamos no carro. É na chegada das bagagens dos voos internacionais. Chegamos lá num instante. Não é longe - disse Wullemann.
- Oiçam-lá - interrompeu o gordo -, que quer isso dizer?
- Que quer dizer? - Honolka olhou para ele, e o seu olhar percorreu o homem desde os dedos do pé engessados até aos raros cabelos da cabeça. - Isto quer dizer que existem mais pessoas no mundo sem ser você! Quer acredite quer não... Vamos Fritz!
- Sr. Doutor - chamou o homem deixado para trás. - Não pode fazer uma coisa destas comigo! Sr. Doutor, escute-me! Seja sensato... posso pagar-lhe uns honorários especiais ou fazer um donativo à clínica...
Mas Honolka e Wullemann já se encontravam lá fora, correndo pelos corredores com o equipamento dos acidentes e catástofres, até a rampa de acesso, e daí até ao parque das viaturas. O carro estava à espera em frente da porta.
- Pronto, vamos embora! - Wullemann atirou-se para o assento, Honolka sentou-se a seu lado.
- Meu Deus, Doutor, por que razão não lhe enfiou o gesso pela boca abaixo? Um idiota daqueles! Até deprimem, não é? Pobre presden!
Olaf Honolka nem ouvia. Pensava no que o esperava. Tolhido de ambos os lados? E ainda por cima de idade avançada? Significava um bloqueio na irrigação do cérebro. Ou talvez a carótida ou a artéria cerebral estivessem bloqueadas... Coagolantes? Bem, talvez dessem resultado. Céus, era caso para Hansen, mas ele estava com aquela ruptura do esófago.
O seu nervosismo crescia. Depois foi como sempre: tinha de diagnosticar, tratar. As pessoas tinham de ser afastadas, gente que ria e gritava, satisfeita consigo própria. Eram pessoas em férias, homens de negócios, gente em viagem de turismo. Uns queimados do sol e alegres, os outros preocupados ou concentrados.
O homem estava deitado de costas, os braços afastados do corpo, as pernas juntas como um crucificado. Sobre ele inclinava-se, de costas dobradas, uma frágil mulher, de cabelos brancos e já de idade, que lhe amparava a cabeça.
- Meu Oscar... - dizia-o repetidamente, em voz sumida; contudo, para Honolka soava mais alto que o ruído das vozes no átrio barulhento. - Meu querido, por favor fica. Fica comigo...
Depois olhou para cima. Tinha uns olhos escuros cheios de lágrimas.
- Posso? - Honolka afastou-a suavemente para o lado. Pousou as pontas dos dedos sobre a artéria do pescoço.
- Ainda está vivo, não está, Doutor?
Honolka fez um aceno afirmativo. Ainda se sentia o pulso, mas por quanto tempo? Estava muito fraco. E um só olhar para os músculos contraídos da face bastava para se perceber que em breve estaria tolhido dos dois lados. Uma síncope assim súbita indicava que se tratava de uma embolia cerebral, portanto um caso fatal. Mas se se tratasse de uma hemorragia? Nesse caso os anticoagulantes iriam agravar a situação... Raios, como é que podia tomar uma decisão ali?
Era uma decisão a tomar na clínica. Se ao menos Hansen...
- Fritz! Glucose! - Cuidadosamente, tão cuidadosamente quanto a situação o permitia, enfiou a cânula pela qual iria administrar a glucose. Depois fez sinal aos maqueiros para aproximarem a maca.
- Posso ir também? - perguntou a frágil senhora. - Por favor, Sr. Doutor!
- Mas claro que pode. Venha.
Pousou-lhe a mão no ombro e depois seguiu atrás da maca. As pessoas que ali tinham ficado paradas cheias de curiosidade afastavam-se para os deixar passar até ao carro. Por entre fileiras de pessoas
Ajudou a senhora a entrar.
- Aqui. Pode sentar-se aqui.
O carro arrancou. O enfermeiro-chefe já tinha colocado os eléctrodos e observava no monitor juntamente com o Dr. Honolka, a luta do coração que se ia tornando mais fraco, cada vez mais fraco...
O carro oscilava. Wullemann tirou do estojo uma seringa, sem dizer palavra. Olhou para Honolka e leu a resposta no seu olhar. Os acidentes na curva cardíaca eram cada vez mais pequenos e irregulares. Voltar a colocar o coração em funcionamento com as hormonas e adrenalina - para que serviria isso. Só levaria a maiores perturbações. Adiaria uma decisão do destino contra a qual não existia veto.
E já estava a acontecer; a morte cerebral já de vi a ter ocorrido: um leve apito e depois a longa, recta, assustadora linha... paragem cardíaca.
O rosto da velha senhora estava agora composto e sossegado. O seu olhar ia de Wullemann para o Dr. Honolka, fixando-se depois no monitor.
- É o... é o fim, não é verdade?
O Dr. Honolka acenou que sim.
O carro parou. Ela levantou-se, Fritz Wullemann amparou-a. Dirigiu-se à maca, abriu os braços e encostou a cara ao rosto sobre a maca. Ficou assim durante muito tempo.
Olaf Honolka saiu do carro. Wullemann pigarreou; quando a senhora finalmente se endireitou, segurou-a com cuidado, com infinito cuidado e dirigiu-a para fora:
- Sente-se bem?
Ela fez um gesto de assentimento.
- Tem de ser... Tenho de continuar, não é verdade?
- É muito corajosa - disse Fritz Wullemann abraçando-a com força.
O Dr. Honolka, depois de ter tratado com o pessoal indicado dos assuntos relativos ao óbito, voltou a encontrar-se com a velha senhora e com os seus familiares. Estava sentada muito direita numa cadeira, o olhar perdido na distância. Um rapazinho estava de Pé a seu lado. No colo tinha um grande ramo de rosas. Encostada à parede estava uma mulher muito jovem, elegantemente vestida com um casaco largo de seda. Tinha cabelos ruivos e estava talvez demasiado pintada, mas talvez fosse só por o vermelho dos lábios não condizer com a situação; não estava de acordo com a morte nem com o homem pesado, trémulo e pálido a seu lado que só dificilmente dava algumas respostas.
Nem com a senhora de idade com a sua expressão distante, como que ausente.
- Era a nossa viagem de lua-de-mel, Doutor - disse ela. - A nossa viagem de lua-de-mel nas bodas de ouro do nosso casamento, foi aqui o Júrgen quem nos fez essa oferta.
O rosto de Honolka revelava a tristeza de circunstância que os médicos mostram nestas ocasiões. Santo Deus, não se pode sentir todas as tristezas, chorar todas as mortes... Cumpria a tradição. Depois a vida continuava. Mas a velha senhora tocava-lhe realmente o coração. Além disso admirava-a.
- Estivemos no Egipto. No fundo, ainda me sinto lá. Deveríamos ter lá ficado, não é verdade, Júrgen?
Júrgen não respondeu. Voltou a limpar as lágrimas dos olhos vermelhos. O homem tinha realmente amado o pai, pensou Honolka.
- Têm lá túmulos muito bonitos - disse a velha senhora. - Túmulos maravilhosos. Enormes. Mas nós estávamos vivos e alegres. Talvez ele tenha lá ficado, Júrgen. Que te parece? Talvez eu deva voltar para lá...
- Sim, mãe.
- Estou realmente a pensar nisso. E querem saber qual foi a última coisa que disse: “Foi bonito... tão maravilhosamente bonito...” E ria ao dizer isto...
As pessoas no Hospital da Universidade tinham realmente classe! Não havia nada a dizer. Tinham tido o maior dos trabalhos: tinham aparafusado, pregado e sabe o diabo que mais, tinham fechado e novamente aberto voltando a fazer correcções, trabalhando de Acordo com todas as regras da arte. Mas não fora só o cirurgião chefe; um professor e um ortopedista tinham estado sempre a seu lado. Possivelmente, pensava o Dr. Rolf Grafe, gravemente ferido no acidente com a moto, tinha sido Fritz Hansen quem lhes tinha dado uma emsaboadela. Pois, colega ou não colega, não se devia à sua Pouca importância o aparato à sua volta.
Até ali correra tudo bem. Já se sabe que de uma maneira ou de outra as coisas sempre acabam por se remediar. Contudo, ficam sempre uns restos, umas coisas aparentemente sem importância com nomes especiais, tais como coração, alma, vontade de viver sobretudo razão de viver... e por aí fora, por aí fora... Rolf Grafe olhou para cima, para o tecto do quarto.
- Que se passa, Sr. Doutor? Já está outra vez a fazer uma cara como se estivesse a ser arranhado por gatos assanhados.
A jovem e bochechuda bávara que se encontrava junto à cama verificando os aparelhos que mantinham a perna esticada olhou para ele com ar zangado. No fundo, Grafe gostava dela, mas também acontecia ser capaz de dar cabo dos nervos com a sua permanente e activa boa disposição.
Como naquele momento, em que andava a saracotear-se pelo quarto!
- Que se passa com as lindas rosas, lá fora, em frente da porta? Umas rosas tão bonitas e postas para ali no escuro!
- Não preciso delas.
Não, Rolf Grafe nem podia olhar para as rosas. Tinha imediatamente queimado no cinzeiro o cartão que as acompanhava com a frase: “Penso em ti. B. Por que razão não o deixava Britte em paz? Além disso, tinha ali estado duas vezes, e duas vezes tinha dado ordem à enfermeira de serviço para a mandar embora. Já o mesmo não tinha conseguido com o médico-chefe da clínica do aeroporto, Dr. Fritz Hansen. Na semana anterior, a porta tinha-se simplesmente aberto e Fritz Hansen entrara no quarto.
- Ouve lá, que quer isto dizer? Dizem-me que não recebes visitas.
- Dizem a verdade.
- Isso também é para mim?
A resposta “para todos” tinha-lhe saído com dificuldade. O seu presente aceno de cabeça fora um esforço de diplomacia.
Hansen sentara-se no banquinho e examinara a perna de Grafe e depois as radiografias que o ortopedista, Prof. Wollgiebel, tinha deixado em cima da mesa.
- Devem ter-te feito bonitas coisas! - constatou ele.
- Sim. E para dizer tudo de uma vez, Fritz: se agora te atreveres a perguntar-me o que quero provar com isto, mando-te daqui para fora... Não, até posso dar-te já a resposta. Queria ver até onde podia ir a minha Honda em piso molhado, comigo bêbado sentado no selim-
- Magnífico! E essa é uma resposta muito forte, ou não?
- Aceita-a como quiseres.
Hansen hesitara, acendera um cigarro ficando a olhar para ele longamente, por cima das nuvenzinhas de fumo, com o seu olhar azul e preciso. Mas hesitara.
- E mais uma coisa, Fritz: se me vieres agora com a conversa de quão importante é o meu trabalho na clínica do aeroporto e que ali deixo a tua clínica mal colocada...
- Não é a minha clínica, Rolf.
- Mas comportas-te exactamente como se fosse.
- Tu no meu lugar não terias um comportamento diferente, sabes isso muito bem.
Antes de Grafe poder replicar, Hansen pousou-lhe a mão sobre o braço:
- Caramba, Rolf. Afinal que se passa? Que foi que nos aconteceu? Éramos mais que camaradas ou colegas. Nós éramos amigos verdadeiros.
Grafe fechou os olhos. Amigos? Havia alguma verdade no que ele dizia... Mas agora? Primeiro, ali era Frankfurt e não Hannover. Talvez fosse também a cidade e não só o aeroporto? Talvez fosse sobretudo a cidade, toda aquela maçada? “Raios”, pensou ele, “como odeio esta embriagada de dinheiro, arrogante e gabarola cidade!”
- Vou-me embora, Fritz. Ficas desde já a saber. É melhor que comeces já a procurar um substituto para mim. Não continuo.
- E porquê?
- Fomos amigos, acabaste de o dizer.
- E agora, agora não passo do chefe?
- És simplesmente demasiado bonito para mim. - Grafe procurou sorrir. - Ao pé de ti pareço sempre muito feio.
- Agora nada de gracinhas! A verdade!
- Talvez a cidade me atabafe, Fritz - procurou ele esclarecer; no entanto, enquanto dava aquela explicação, a sua razão parecia ter perdido força. - Não, é o trabalho. Já uma vez te disse. Anda a dar cabo de mim. Este trabalho é uma frustração total. vou procurar outra colocação. O que nós fazemos é um disparate completo. As pessoas entram, são tratadas, trabalhamos que nem negros e depois elas desaparecem. Imagino o meu trabalho de médico de uma forma completamente diferente...
- Acompanhar os doentes até à sua recuperação total, é isso?
Grafe acenou afirmativamente. Fritz Hansen tinha batido no Ponto certo: o trabalho a correr, os rostos permanentemente afogueados, sempre aqueles apertos de mãos... Queria sentar-se ao lado de uma cama e poder dizer a um doente, a uma pessoa: “Pronto, conseguimos. Está novamente cheio de saúde...”
- Isso é bem verdade - respondeu ele. - De qualquer modo, vou Procurar outro lugar.
Fritz Hansen fez um gesto de assentimento, como se Grafe tivesse dito uma coisa pela qual já esperava.
- No fundo, penso como tu, Rolf. Frequentemente, muito frequentemente. Podes acreditar.
- Então por que continuas?
Hansen levantara-se e olhara para ele tendo no olhar uma coisa que Rolf Grafe nunca tinha sentido: melancolia? impotência? Que era?
- Teria muita pena, Rolf... Não preciso certamente de te dizer. Dantes, em Hannover, quando fizemos as malas, nessa altura tambem tinha imaginado muitas coisas diferentes.
- Talvez o problema seja meu, Fritz. Não consigo entender-me com o negócio. E comigo ainda menos. E também não entendo esta cidade... Muitas vezes me sinto perdido.
- Britte?
- Ora Essa! - A maneira como se expressou dava a ideia de desdém. - Brittes encontram-se sempre.
- Talvez, Rolf. - Fritz Hansen encolheu os ombros: - Mas ela agora trabalha até cair. Fica sempre na clínica e faz horas extraordinárias. E aquela história que ela teve com o australiano...
- Também sabes isso?
- Ninguém conseguiu fugir às conversas da clínica, Rolf. De qualquer modo, a história acabou.
- E depois? Que é que isso me interessa?
Mas não era verdade. A informação tinha dado muito que pensar ao Dr. Grafe. Até àquele dia. Mas que iria isso alterar? Perdoar era uma palavra muito forte que não ia até ao fundo da questão. Perdoar é simples, mas confiar? Por outro lado, tinha ele algum direito de esperar lealdade? Alguma vez tinha levado Britte a sério? Sim, tinha, mas quando já era demasiado tarde e o caso chegara ao fim...
Podia-se realmente ter tudo, e principalmente tudo o que havia de melhor: caviar, putas e jóias. Como era com o colar que se encontrava na montra em frente? Eram unicamente setenta e quatro mil marcos em esmeraldas e brilhantes. Mais: flores e cigarros, tabaco ou produtos de perfumaria. O último grito de Itália: talheres de prata e louça nobre.
Como é? Vamos à discoteca? Ao cinema pornográfico? Ou simples’ mente comer? Mas que significa aqui “simplesmente”? Comida chinesa, francesa, italiana? Ou novamente um couscous à moda árabe?
O aeroporto é uma cidade dentro da cidade. E ainda por cima em permanente movimento, basar de sonhos e desejos aberto vinte e quatro horas por dia. Que mais se pode ainda obter? Uma bonita rapariga? Estão sentadas mesmo ali em frente, no bar, e basta ter um cartão de crédito.
Ou uma última noite com a noiva antes de embarcar para Copacabana? Mas com certeza. Para isso o Sheraton do aeroporto tem à disposição a suite das luas-de-mel. Pela bagatela de mil e oitocentos marcos alemães.
Sim, aqui pode-se adquirir tudo. Tudo! As mais exóticas cidades, as mais bonitas praias, as aventurosas selvas - os bilhetes vendem-se ao balcão. O aeroporto é um deus com cinquenta mil seres humanos a trabalharem para ele o dia inteiro. Um deus que une as pessoas, e que, no entanto, parece separá-las daquilo que o mundo realmente significa. Ali reina uma Primavera permanente. Não se sente frio nem calor. O sistema de ar condicionado mantém sempre a temperatura a vinte e três graus.
Como numa cidade utópica sonhada pelos arquitectos dos anos 60, com imponentes edifícios de vidro e betão; como na Lua ou sob os mares, também ali, iluminadas pelas luzes de néon e pelas cúpulas de vidro, os ambientes permanecem eternamente iguais. E os mesmos tipos humanos: pobreza e ostentação, dúvidas, abandonos, solidão... Uns por cima, outros por baixo. Existem trapaceiros e homossexuais, banqueiros e vagabundos.
E aqueles que têm a obrigação de manter tudo isto debaixo de olho.
Quando Friedhelm Brunner deixou o seu posto de vigilante do aeroporto, passava pouco das sete. No gabinete de vigilância, os monitores mostravam as imagens de todos os cantos do aeroporto transmitidas pelas câmaras de vídeo nele instaladas. Mas o controlo electrónico não era suficiente. Os homens tinham de a complementar.
Brunner prendeu o transmissor por baixo do casaco. Como sempre que fazia a ronda, estava vestido à civil. Nem sequer trazia o cartão de identificação. Isso facilitava-lhe a vida junto dos ladrões e ajudava-o a vigiar um pouco os próprios guardas do aeroporto. Não percebiam imediatamente que o chefe se aproximava...
No pavilhão das oficinas encontrou o primeiro par: Walter Scheidt com Greif pela trela. Uma combinação desigual, pois Greif era um pastor-alemão com 6 anos, de olhos inteligentes cor de âmbar e magnífica pelagem acinzentada.
- És o maior!
Brunner fez uma festa na grande cabeça do cão. Era realmente o melhor. Não só por ter sido treinado para encontrar explosivos - em qualquer canto, em cada pacote, em cada mala, sentia o leve cheiro a querosene dos explosivos plásticos - o seu extra-sensível nariz farejava ainda pólvora preta, rastilhos já preparados ou rolinhos de explosivos. Acrescia ainda que era o mais simpático e bem disposto dos vinte animais do canil da Polícia do aeroporto. Greif trazia o levava jornais de um lado para o outro, gostava de toda a gente e deixava que toda a gente lhe fizesse festas...
- Então adeus a vocês dois! - Brunner despediu-se e continuou pela escada rolante. Raios, em frente da sala de filmes pornográficos estavam duas malas sem dono! bom, se os donos eram assim tão descuidados, paciência! As malas não ficariam ali muito tempo.
As raparigas ao balcão do Hotel Continenthal” desviaram rapidamente o olhar quando o viram aproximar-se. Ele conhecia-as e elas conheciam-no... Junto delas estavam dois indianos que não lhe agradaram muito. E em frente, aquele rapaz que se encostava ao balcão dos jornais? Bem, ele que se deixasse estar, mais tarde se ocuparia dele.
Aquele era o território de Brunner e, de certo modo, o seu lar. Conhecia todos os cantos, todas as esquinas e todos os esconderijos, as zonas agradáveis e as zonas escuras assim como se aquela fosse a sua cidade. E o aeroporto era de facto como que uma cidade. Podia-se passar a vida ali e, no fim, pedir ao padre a extrema-unção. Havia ali dois ou três padres e só faltava um cemitério. Mas até isso, pensava Brunner, ainda acabam por instalar um. Para os clientes permanentes.
Ali, ali estava mais outro...
Brunner viu-o de cima, de uma outra escada rolante, ao descer para um dos pisos inferiores. Para o átrio onde as companhias dos E. U. A. tinham os seus balcões.
O “cliente” usava um boné de piloto azul, arredondado, sob o qual aparecia uma coroa de cabelo louro quase branco que caía para cima de um velho casaco de bombazina verde.
Chamava-se Sievers e Brunner dirigiu-se lentamente para ele, pensando se deveria ou não assustar o velho agarrando-o com força pelos ombros. Mas acabou por não o fazer.
- Então, capitão? - interpelou-o.
Sievers devia o seu título de “capitão” ou às vezes “chefe” ao seu sujo boné. Como se tivesse sido picado por uma tarântula, deu um salto, ajeitou os óculos de aros metálicos e ficou a olhar para Brunner com os seus olhos aguados de vagabundo. Apesar de tudo, reparou Brunner, tinha feito a barba. Mas aqueles ossos e a pele transparente? “Cirrose hepática”, tinha ele dito uma vez. Mas tinha o olhar novamente alegre. Eram olhos que nunca desistiam-
- Buona será, comandante - retorquiu Sievers.
O tipo era verdadeiramente um personagem: falava cinco línguas, tinha dado a volta ao mundo como contramestre de um navio e fora cair naquilo que vulgarmente se designa por “maus caminhos” devido a um casamento falhado.
Ele próprio não sentia as coisas assim.
“Sinto-me bem na minha pele, enquanto ela aguentar” era o seu lema - Contudo, agora parecia um pouco inseguro.
Queres certamente correr comigo, não é comandante? Como fizeste na quinta-feira passada? E sabes o que me sucedeu no eléctrico? O revisor apanhou-me. Bem, foi cá um espectáculo!
- Que queres dizer com isso de espectáculo, chefe? Tinha sido óptimo, podias ter ido novamente para a choça. Cuidavam de ti.
- Para tanto já não basta um bilhete de eléctrico, comandante. Nem te passa pela cabeça. Isso foi nos bons velhos tempos. Mas hoje...
Hoje? Essa era exactamente a questão e o problema. Sievers era expulso do aeroporto em média, duas ou três vezes por semana. Quando Brunner o agarrava, dizia sempre a mesma coisa. Mas nalgumas coisas era como com os ratos, os grilos e as baratas que, apesar do exército de mulheres da limpeza e desinfestadores, se agarravam às fendas do betão e aos cestos de papéis; até conseguiam atirá-los fora, mas voltavam sempre a entrar pelas portas das traseiras.
Ninguém conseguia ver-se livre dos vagabundos da cidade, embora estes dificilmente se enquadrassem na imagem querida dos directores do aeroporto a quem chamavam a “porta giratória da Europa”.
- Então, comandante, sê gente - recomeçou Sievers. - Hoje faço anos.
- Isso foi o que disseste da penúltima vez.
- Mesmo assim... - Sievers não se lembrou de mais nada para dizer fazendo um olhar suplicante. Brunner era boa pessoa, mas tudo estaria perdido se o chefe da Polícia de Segurança, raios o partissem, se lembrasse de mandar abrir a sua mochila. Então, diabos o levassem, encontrariam primeiro a metade de um pão, a garrafa de aguardente e por baixo, a carteirinha de crocodilo que roubara...
bom Deus, faz que o espantalho do polícia se vá embora! Não tinha sido um grande golpe, a carteirinha. Setenta marcos e seis dólares, isso que é? E tinha esperado muito mais da rica mulher árabe a quem a tinha roubado. E Brunner? Talvez fosse a única pessoa sensata no meio dos espantalhos da Polícia de Segurança que lhe faziam a vida negra, mas não achavam graça nenhuma a carteiristas.
- Então, Sievers - disse ele -, sabes uma coisa, vou dar-te um conselho: até às oito horas ainda ficas e depois evaporas-te, desapareces daqui.
- Certo - apressou-se Sievers a concordar. - Prometido!
O homem alto sorriu levemente, levou a mão à testa num cumprimento e continuou a andar.
Sievers ficou a olhar para ele. Uma pedra, uma autêntica montanha, saiu-lhe de cima do coração. Tivera sorte... e agora bem, agora, uma deliciosa, fria, excelente cerveja! No bar não o serviam, mas no supermercado até era mais barata. E depois, toca a andar para a estação do aeroporto!
Começava sempre por um ligeiro tremor. Sentia-o na planta dos pés. E da tremura crescia o barulho, um rugido escuro que se aproximava cada vez mais e fazia sair da negra entrada do túnel uma corrente de ar frio. Então, como dois olhos de feras, apareciam os faróis do comboio.
Karin tinha-o observado pela décima, talvez pela décima segunda vez. Tinha registado tudo e não se mexera. Estava sentada num dos bancos, segurando a carteira de pendurar ao ombro com as mãos crispadas.
Outra vez. Agora era o expresso da Lufthansa.
O focinho era de um amarelo-vibrante como o de um comboio rápido. Trazia poucas carruagens. Viu criados vestidos de branco e copos sobre as pequenas mesas onde luziam candeeiros. Embarcaram cerca de uma dúzia de pessoas. Depois o comboio avançou, ganhou velocidade e desapareceu. O túnel voltou a estar vazio e escuro.
Guardou a imagem dentro de si. Quase como se observasse um filme na televisão. Era tudo irreal. Irreal e sem importância. Agora que tomara uma decisão sentia um estranho alívio. Não era um sentimento de despedida, não. Sobretudo, despedida de quem? De toda aquela merda de confusão? Da maldade a que chamavam vida?
Seria muito simples. Muito, muito simples... bastavam alguns passos. Nem era preciso coragem.
Pensou no seu companheiro de liceu de outros tempos, Matis Górris. Tinham falado muitas vezes no assunto. Na aula também eram de opinião que não devia ser assim tão difícil. Matis tinha tomado comprimidos para dormir. Fora um tanto ridículo, incompreensível que o tivesse feito. Não havia qualquer motivo. Um cinco a Alemão, um trabalho de Física estragado e depois a zaragata com os pais por ter pegado no carro...
com ela era diferente. E também não ficaria calmamente deitada na cama. com ela seria horrível: nada mais que pedaços de carne... mas não haviam de descobrir nada, mesmo nada. Sabia isso agora, olhando para os comboios. E também tinha coragem para o fazer.
Nami seria a última a saber... mas a Polícia iria ter com a Vera e com o pai. E o pai havia de tomar nos braços a sua querida Vera, essa porcaria, e consolá-la-ia. Mas a ela, quando é que alguma vez o fizera...? Agora tinha mais um motivo para se preocupar com a Vera!
Karin olhou para as pessoas espalhadas ao longo do cais de embarque esperando o metropolitano para sair do aeroporto. Eram funcionários. Ou turistas sem dinheiro. Pareciam-se todos uns com os outros... E aquele velho ali em frente com o estafado boné de marinheiro? Estava ali sentado muito confortavelmente, saboreando o conteúdo da garrafa que de vez em quando levava à boca. Um vagabundo. Mas, de qualquer modo, tinha ar de ser o único ser humano no meio da multidão.
Abriu a mala. Tinha de a deitar fora dentro de pouco tempo senão também seria esmagada pelas rodas.
Tinha escrito a carta de despedida lá em cima num bar, pouco depois de Tommy ter amuado falando de nariz torcido.
- Se julgas - tinha ele gritado - que com essa tua permanente lengalenga contra a tua estúpida madrasta consegues estragar-nos as férias, enganas-te redondamente, Karin!
- Então vai sozinho - respondera ela. Então ele levantara-se sem dizer palavra e fora-se embora. Tommy também fazia agora parte do quadro. Era igualzinho aos outros...
E era isso o que mais magoava!
Desdobrou o pedaço de papel. Tinha escritas três frases:
Foi assim que vocês todos quiseram! Pois bem, pensei nisso e faço-vos esse favor.
KARIN
Tinha desenhado ao lado uma pedra tumular com uma cruz em cima. E uma pequena rosa.
Era tudo. E devia chegar. Também aliviava.
Outro comboio. Um metropolitano. O próximo seria dentro de dez minutos. O próximo? O último...
Levantou-se. Não conseguia suster as lágrimas; saltavam-lhe simplesmente dos olhos. Não tinha importância, mesmo que aqueles idiotas ficassem a olhar para ela.
Foi para a beira do cais de embarque sentindo-se orgulhosa por ter as pernas tão firmes. “Não vai ser difícil”, pensava ela. “Tens de aproximar-te mais um bocadinho. Mais dois passos.” Agora teria fumado com todo o gosto um outro cigarro, mas não o fez. E então.
Novamente o tremor sob os pés; novamente o ruído que se tornava cada vez mais forte; novamente a deslocação de ar. As luzes estavam quase a aparecer... Karin respirou fundo, inclinou-se e saltou...
Não queria saltar, mas recebeu um encontrão de lado que a deixou a cambalear. Não percebia que gritava. Agora! pensava ela. Agora...! Depois sentiu uma pancada, uma dor forte na nuca. Depois ficou tudo escuro...
Sievers não conseguia respirar. Essa era a primeira coisa: onde ir buscar o ar? Tossiu. Os outros tipos que agora se aproximavam correndo...
- Oiça lá, você é doido? Por que é que agrediu esta menina? Já se está a ver, mais um vagabundo! Que é que ele julga, afinal?
Sievers não respondia. Primeiro sentou-se no chão. Já se sentia melhor. Depois levantou a mão:
- Alguém vá chamar a Polícia.
Ignorantes, pensava Benno Sievers. Ignorantes como sempre! Cegos de estupidez.
- Ela queria matar-se - disse-o mais para si mesmo olhando para a rapariga.
Loura e bonita, e assustadoramente pálida. Loura e bonita como a sua própria filha já tinha sido.
Tinha os olhos fechados mas respirava. Debaixo do comboio nunca mais teria respirado. Afagou-lhe o ombro com muita suavidade. Depois olhou finalmente para cima. Deu com os olhos em rostos empedernidos. Mas também no rosto de uma senhora que estava a dizer:
- Vi tudo. Este homem salvou-lhe a vida. Ela queria matar-se mas ele meteu-se no meio e empurrou-a para fora da beira do cais. Ela caiu e bateu com a nuca.
Sievers assentiu.
- Agora chamem finalmente um médico! Não está aqui ninguém que queira ajudar?
Na esquina da estação dos correios, Brunner viu um dos seus homens da Polícia de Segurança junto de um jovem que gesticulava excitado e aproximou-se estugando o passo.
O agente de segurança do aeroporto parou.
- Que se passa, Abner?
- Este senhor - disse Abner ajeitando a metralhadora -, este senhor aqui anda à procura da namorada.
O senhor? com 18 ou 19 anos de idade, calculou Brunner, talvez mais 18 anos. Uns pêlos de barba no queixo, rosto excitado e olhos castanho-escuros sob o cabelo loiro.
- Tenho andado o tempo todo à procura dela - disse, ofegante. - Mas como é que se pode procurar aqui? Procurar mesmo é impossível. É de dar em doido... Ando para aqui de um lado para o outro, corro o raio da estação toda, pergunto às criaturas das informações e nada. Ainda por cima o nosso avião parte dentro de vinte minutos.
- Que avião?
- Ibiza. Neckermann.
- E perdeu a sua acompanhante?
- Perdi? Sim, pode dizê-lo. O cartão de embarque sou eu que o tenho. Aqui. - Bateu com a mão no casaco de camurça fina.
- Então vá para o balcão da saída para embarque que ela certamente vai lá ter.
- Já lá estive durante este tempo todo. Já fizeram a terceira chamada. Mas nada... Karin não aparece!
Aí também Brunner começou a achar o caso um pouco estranho. Talvez a pequena - devia ser muito jovem a avaliar pela idade dele -, talvez no último momento se tivesse arrependido?
- Como se chama ela?
- Karin.
- Isso já eu tinha percebido. - Brunner riu-se: - Refiro-me ao apelido, evidentemente. Naturalidade, idade? E também tem de fornecer-nos uma descrição dela.
- Andersen - respondeu o rapaz - Karin Andersen. Natural de Stade. 17 anos. Um pouco mais baixa que eu. Eu tenho um metro e oitenta, portanto, ela deve ter, digamos, um metro e setenta e cinco. Loura, cabelos curtos.
Brunner fez um gesto de assentimento, deu alguns passos para o lado e transmitiu o nome e a descrição bem como o código do departamento de pesquisas rápidas para o centro de transmissões da Polícia de Segurança do aeroporto. O pedido passaria agora com prioridade total pelos serviços da Polícia, pela vigilância do edifício, pela Polícia da Alfândega e também pelos serviços sociais e pela clínica.
Desligou o aparelho e dirigiu-se ao jovem:
- A sua Karin é saudável, não é verdade?
- Que quer dizer com “saudável”?
- Saudável quer dizer saudável. Imagina as coisas que se passam aqui no aeroporto? Temos uma quantidade de gente com problemas de droga. E depois há os desorientados, pessoas com problemas de medo, depressivos.
- Depressivos? - disse o rapaz. Mordeu o lábio inferior. ]no entanto, antes de Brunner poder continuar a fazer perguntas, ouviu-se o receptor de rádio.
- Clínica do aeroporto - disse a voz impessoal do recepcionista da noite. - Acabou de dar entrada uma rapariga que corresponde à descrição. Loura, cabelo curto, cerca de um metro e setenta e cinco Aparentemente uma tentativa de suicídio no metropolitano.
- E? - perguntou Brunner sustendo a respiração.
- Nada. Foi empurrada para trás e caiu fazendo uma ferida na nuca.
Brunner pousou o auscultador. O rapaz olhou para ele com os olhos muito abertos numa interrogação.
- Venha comigo! - disse Brunner. - Parece que temos a sua Karin.
- Teerão? - O médico-chefe Hansen suspirou. - Que estás tu a fazer em Teerão?
- Isso também eu queria saber. - A voz de Evi ouvia-se com toda a clareza, quase como se ela estivesse afastada umas poucas centenas de metros e estivesse a telefonar de um dos átrios do aeroporto. Uma ligação por satélite, as maravilhas da técnica! Mas eram exactamente elas que estavam sempre a levar-lhe a sua namorada para longe. - Está aqui muito quente. Quente e poeirento.
- E as mulheres? Andam todas de véu na cara?
- É verdade que andam. Mas eu mal ponho o pé fora do aeroporto.
Procurou imaginar a situação. Para ela era sempre o mesmo, tanto fazia ser Teerão como Dállas. Quartos de hotel, as mesmas conversas em todo o lado. Muitas vezes se queixara disso. Trabalho de sonho? Uma treta!
- Tenho saudades tuas. - A frase saíra-lhe espontaneamente, pois não gostava de dizer aquelas coisas ao telefone.
- Não comeces com isso, por favor...
- Põe também um véu na cara, Evi. Prometes? Pelo menos livro-me de imaginar que um qualquer arabita te rapte mal te veja.
Ela riu-se.
- A mim basta-me que sejas tu a raptar-me. Não preciso de nenhum arabita. A propósito, Fritz, tenho estado a pensar em ler um pouco melhor o meu contrato de trabalho. No nosso serviço temos alguma influência. vou sugerir que me coloquem mais vezes no médio curso. Assim, de três em três ou de dois em dois dias estava em Frankfurt. Seria só por uma noite ou por um dia, mas duas ou três vezes por semana. Começo a estar farta.
- Santo Deus - lamentou-se ele -, por que não admites a verdade? Por que não dizes pura e simplesmente: “Fritz, não consigo estar sem ti tanto tempo”? Nem imaginas como isso me caía bem!
Ouviu-a rir-se; um riso breve, suave, um tanto rouco, de que ele tanto gostava.
- Está bem. Não consigo estar tanto tempo longe de si, Sr. Doutor!
- Está a caminho da cura total, excelentíssima senhora. - Depois lembrou-se de mais outra coisa. - A primeira viagem de médio curso será feita por nós dois em conjunto. Voamos até à Grécia. Estou a planear as minhas férias, e então...
A porta abriu-se. Barbei Rupert meteu a cara excitada pela frincha.
- Sr. Doutor, a recepção precisa de si. É urgente.
Hansen fez um gesto de assentimento.
- vou já.
Depois voltou-se para a janela como se não quisesse ver mais nada e nada tivesse a ver com ele.
- Merda de loja! Mas hei-de ter as minhas férias. Juro-te... mas agora, pequenina, vai recomeçar a função. - Deitou uma olhadela à agenda em cima da secretária. - Ficas no hotel? Volto a telefonar-te. Depois conto-te tudo. E tu vais dizer-me que não existe nada de mais bonito que correr comigo pela praia... por uma praia grega.
- Posso dizer-te já, Fritz. Não há nada mais bonito!
Desligou. “É bom ouvir esta voz”, pensou ele. “Como seria se não tivesses a Evi... mas Teerão? Santo Deus! Quando vier a conta do telefone vais sentir-te mal.” Amar uma Evi Borges, nada mais fácil! Mas quem é que pagava o raio dos telefonemas?
A maca estava na sala dos curativos. A doente, uma jovem de rosto pálido, olhos abertos, as pupilas ligeiramente dilatadas. Aparentemente, desmaiada ou em estado de choque.
A enfermeira Britte Happel estava nesse momento a virar-lhe a cabeça para o lado.
- Uma lesão na nuca - disse ela. - Caiu.
- Sim, na estação - acabou de dizer uma voz -, o comboio estava a chegar e ela queria atirar-se para debaixo das rodas. Foi assim!
Hansen virou-se. Um homem com um aspecto estranho estava sentado encostado à parede: rosto de alcoólico, cabelos desgrenhados, as mangas do casaco esfiapadas, uma mochila pousada ao pé (do banco. E um par de olhos de doninha, inteligentes, azuis, sob um par de óculos.
- O senhor estava lá?
- Certo. Chamo-me Sievers, se me permite que me apresente.
- Deixe-se estar sentado, Sr. Sievers. E depois?
Hansen tinha entretanto chegado ao pé da maca, tomava o pulso e dava início ao exame.
- Pode continuar a falar.
Mas Sievers não o fez. A porta abrira-se e na soleira encontrava-se o alto e grisalho Brunner da Polícia de Segurança.
- Tu aqui, Chefe? Bem, que se passa agora?
- Estou à espera da minha medalha. Sou o salvador.
- O quê?
Agora aparecia também um jovem louro que afastou Brunner para o lado exclamando:
- Karin...
Hansen já tinha que chegasse. Esticou-se com toda a sua altura e abriu os braços:
- Agora todos lá para fora, se fazem favor. Isto não é um circo. Estou a fazer um exame. Portanto, meus senhores...
- Karin? - O rosto do rapaz estava desfeito. Corriam-lhe lágrimas dos olhos. - Sr. Doutor, eu sou...
- Quem o senhor é, neste momento não interessa. Por favor!
A porta fechou-se. O Dr. Hansen pôde então concentrar-se.
A paciente tinha um risco de sujidade na testa mas as cores estavam a voltar. E se não se enganava... sim, as pálpebras tremiam.
- Está a ouvir-me?
Nada.
Para Hansen, depois da observação que fizera, não restavam dúvidas: tratava-se de uma comoção cerebral, um traumatismo craniano. Se havia fractura de crânio ou não, só os raios-X o podiam certificar. Mas mesmo uma lesão ligeira como aquela poderia trazer complicações.
- Britte, precisamos de Fortecortin. Se não tiveres aí à mão, dexametasona também serve. Em qualquer dos casos é bom para o edema do cérebro, percebes?
Ela acenou afirmativamente. Durante os últimos dias tinha vindo a encontrar cada vez mais qualidades no trabalho de Britte. Trabalhava em silêncio, com a maior concentração, tomava conta de tudo e trabalhava até cair. Ele mostrava o seu reconhecimento dando-lhe sempre a explicação das terapias que utilizava.
- Pronto, agora o martelinho. Vamos examinar os reflexos.
A paciente reagiu claramente, os reflexos estavam presentes e suficientemente fortes. Tinha dúvidas de que o seu estado, aquela espécie de prostração, se devesse realmente a um desmaio. Também podia ser psicossomático. Sim, possivelmente encontrava-se numa espécie de estado de choque.
Duas tentativas de suicídio num mês e de ambas as vezes se tratara de mulheres. Mas que mulheres? A que estava ali à sua frente não passava de uma criança... Que se passa com este mundo em que crianças tentam atirar-se para debaixo de um comboio?
Inclinou-se sobre ela. Sorriu.
- Karin? Está a ouvir-me?
Procurou a mão dela e passou-lhe suavemente os dedos pelas costas da mão, com ternura, longamente, como se faz com as crianças.
- Karin... aqui ao pé de mim estás em segurança. Aqui é tudo bom. Não precisas de te preocupar mais.
As pupilas dela voltaram-se para ele. Suspirou baixinho, depois mexeu a mão direita que pousou sobre o estômago.
- Britte! - chamou Hansen.
A doente vomitou para a bacia. Hansen pegou numa compressa e limpou-lhe cuidadosamente a boca.
- Um copo de água, Britte. Agora estás com sede, não é verdade? Um aceno. A primeira reacção. Portanto, ela percebia as palavras dele.
- Dói-te alguma coisa, Karin? A cabeça, não é?
- Sim... horrivelmente.
- E também estás com tonturas?
- Sim.
- Pronto, já não será por muito tempo. Vai passar, vais ver...
Voltou a deitar a cabeça de lado contra a almofada para evitar as dores na nuca e fechou os olhos. As lágrimas corriam-lhe através das longas pestanas pelas faces pálidas. Diz qualquer coisa! pensou Hansen. Lembra-te de qualquer coisa. Da última vez tiveste muito jeito com... como era o nome dela? É verdade, Herta. Certo, Herta Frieske... Mas Herta era uma adulta e, possivelmente, também culpada da encenação a que se chama “destino”. Mas esta... Uma criança!
E ainda por cima uma criança de que não sabia absolutamente nada...
- Karin? - Pegou na mão magra e suja que pendia a seu lado. Apertou-a levemente: - Karin, quando te trouxeram para aqui apareceu também um jovem a correr. O teu namorado, não é ver dade?
Ela ficou calada. Só moveu os lábios ligeiramente.
- Também ele chorou, Karin. Estava completamente transtornado.
E então fez a pergunta que o seu instinto médico lhe ditava:
- Foi difícil lá em baixo na estação, não foi? Mas não estás contente por estares agora aqui?
- A estação - disse ela e a mão crispou-se. - A estação, sim.
- O comboio?
- Não sei... realmente não sei nada.
Esperava esta resposta. Não era choque psíquico o que a abatia; era uma amnésia retrógrada. No mapa da sua memória tinha ficado um espaço em branco. Não se lembrava. Nunca voltaria a lembrar-se. O que naquele caso era muito bom.
- Karin, ainda temos de fazer umas radiografias. E depois vais dormir. Durante muito tempo, está bem?
Ela voltou a olhar para ele. A súplica nos seus olhos era quase intolerável.
- Escuta, Karin - começou Hansen, mas lá fora ouviam-se vozes. Levantou a cabeça. Também Wullemann aparecia ali.
- Sr. Doutor, se ja acabou aqui... está um lá fora no terminal de carga que caiu de um andaime. Uma fractura exposta. Tíbia, ou qualquer coisa assim. Da cabeça também não está bem, está desmaiado.
- Trá-lo para a sala de observações.
Voltou-se novamente para o pálido rosto da rapariga.
- Estás a ver, Karin. Ainda há coisas muito piores. E ele não pôde evitá-las...
Jan Puschinsky, 32 anos, dizia a ficha que o enfermeiro da recepção tinha preenchido. Polaco. E não tinha nada bom aspecto, Jan Puschinsky. Nada mesmo. O seu estado parecia ser bastante grave. Mais tarde os colegas haviam de contar como tudo se tinha passado. Como ao carregar um contentor a palette balouçara e o atirara do andaime como se fosse um trapo velho. O modo como caíra, ficando primeiro a balouçar na trave caindo depois sobre a balança e a seguir sobre a forquilha da empilhadora. A seguir? Se para ele houvesse alguma coisa a seguir. Se conseguisse escapar...
Agora não passava de um corpo sem vida coberto de sangue e feridas deitado na mesa da sala de observações. O Dr. Olaf Honolka estava lá. E a enfermeira Britte Happel, a “mulher de ferro” que dava instruções aos outros em frases curtas. Mais afastada, a anestesista e o enfermeiro-chefe Fritz Wullemann. Para estes casos de politraumatizados, de vários ferimentos, era necessário um grande número de auxiliares.
Enquanto preparavam o paciente e o plasma restabelecia o equilíbrio depois das perdas de sangue, enquanto o oxigénio que o anestesista ministrava estabilizava a respiração e enquanto através da cânula eram ministrados medicamentos para aliviar as dores, Descontrair o doente e melhorar a circulação, o Dr. Hansen decidia sobre o modo como iria actuar. Os tratamentos de choque e a reanimação estavam em curso. Sobre a mesa estava um homem novo, um polaco, e segundo indicação dos aparelhos, um indivíduo com a constituição de um touro.
No entanto, para aquele caso necessitava da elevada tecnologia, da quantidade de especialistas de uma grande clínica. Isso era facto assente. O que ali estava em questão eram os primeiros cuidados inadiáveis. Olaf Honolka estava a tentar estancar a hemorragia laqueando os pequenos vasos das feridas abertas. O inchaço fazia pensar numa ruptura do baço; contudo, a cápsula envolvente não parecia estar ferida. A continuação do tratamento dos órgãos afectados teria de ser feita no hospital. Que mais? A perna direita: fractura exposta da tíbia. Os estilhaços de osso saíam pelos bordos da ferida aberta. Aparentemente uma fractura em espiral e ainda por cima em aresta viva. Uma fractura semelhante à que Rolf Grafe fizera. Rolf... não conseguia tirá-lo do pensamento. “O que fazemos é uma loucura completa. Este trabalho é uma frustração total...”
Loucura? Talvez. Mas agora fazias-me falta, homem!
E ali: o ombro completamente desfeito, a omoplata também e, ainda por cima, com hematoma. Uma veia ainda sangrava.
- Vamos já estancá-lo. Preciso da alavanca. Tira a alavanca de pontas curtas.
- Sim, a curta.
- E... Olaf! Temos de reduzir a fractura da perna. Trata tu disso. E depois fixas com a tala pneumática.
- OK. Faço isso.
O trabalho começou. Era um trabalho desgastante, de dar cabo dos nervos, feito sob a maior tensão. Um ombro desmanchado, fracturas na tíbia, fracturas nas costelas e ainda fractura no maxilar inferior e ferimentos na boca...
No Hospital da Cruz Vermelha a equipa dos acidentes já se encontrava a postos. Passados quarenta minutos estavam em condições de considerar Jan Puschinsky apto a ser transportado para a ambulância em que faria a viagem para outra sala de operações...
Hansen lavou as mãos. Sentia-se mortalmente cansado, embora fossem só quatro horas e o circo continuasse sem intervalos. Esperava que não lhe trouxessem mais nenhum desgraçado como aquel polaco...
Impossível.
Esfregou as têmporas para acalmar as dores permanentes que nelas sentia.
Evi estava à espera no seu hotel? Teria de continuar à espera. Endireitou-se e ficou de pé. Em Hannover, depois de situações igualmente cansativas, dava um passeio no jardim. No jardim havia lilases, cresciam amores-perfeitos, narcisos e túlipas. Todas as espécies de ramos floridos. E ele ficava a olhar para as flores e a sentir a sua calma interior a restabelecer-se. Mas aqui? Clínica do aeroporto: lá fora, em frente da porta apinhavam-se os criadores de tensões. Bem, ainda havia a porta das traseiras. Podia dar uma volta no parque de estacionamento no meio do ruído ensurdecedor dos jactos e do roncar dos motores dos aviões que na pista se preparavam para levantar voo...
Tomou um comprimido. Aquele era o dia dos comprimidos para as dores de cabeça.
Na entrada dos doentes estava junto a uma das portas um homem novo, com um fato desportivo verde-azeitona, louro, alto, magro, mais um rapaz do que um homem feito... Ah! Sim. Hansen lembrou-se: era o viajante para Ibiza, o namorado de Karin!
- Sr. Doutor, ainda bem que chega. Tenho de conseguir falar com a Karin. Tenho de falar com ela sem falta. Mas não me deixam entrar.
- Eles têm razão.
- Sim, mas...
- Está bem, Thomas, venha comigo até ao meu escritório. Aí me contará o que afinal se está a passar.
- Mas eu...
- Mas nada. Venha daí comigo!
Então ele sentou-se na cadeira das visitas, os joelhos levantados, os dedos cruzados sobre o colo fazendo estalar as articulações. Tinha ainda o rosto angustiado e os olhos muito abertos. Uns olhos azuis-acinzentados olhavam espantados para Hansen enquanto explicava.
- Percebe, Sr. Doutor? A madrasta de Karin, a Vera, não é mãe nenhuma! Ainda é muito nova para isso. 24 anos, só sete anos mais velha que ela. Ainda por cima irracionalmente ciumenta. A verdadeira mãe de Karin há anos que se safou para França com outro. Que pode a Karin fazer? Percebe por que é que ela de vez em quando se passa?
Hansen pensou numa resposta lembrando-se que ele mesmo nos tempos do seu casamento tinha desejado um filho. E que depois desistira da ideia. Não só porque dificilmente se entendia com Úrsula, mas também porque havia a profissão, e ainda pelo receio de que sucedesse o mesmo que via à sua volta com os colegas e amigos: crianças que eram mantidas na ordem com sentenças e compradas com dinheiro ou presentes para estarem sossegadas. Pois, não é verdade, o tempo nunca é suficiente! O chefe, a carreira, o trabalho! Mal se consegue dar a volta a tudo. Não, para muitas... demasiadas crianças, não sobeja nada. Nem mesmo uma explicação... Como é que no seu caso poderia ser diferente?
- Uma história triste, muito triste - disse ele sentindo novamente vontade de fumar um cigarro.
- E tu pensas, Thomas... desculpe, você pensa...
- Pode tratar-me por tu e por Thomas.
- E tu pensas que não há qualquer hipótese de entendimento com essa Vera? Uma base qualquer sobre a qual possa construir-se uma relação?
Thomas abanou a cabeça.
- Por que não? O facto de ser tão jovem pode falar a seu favor, não te parece?
- Às vezes as coisas acertam. Mas ela está permanentemente a fazer as piores zaragatas com Karin e entra em órbita sempre que ela faz qualquer coisa que no seu entender é demasiado engraçada. Karin está farta dela.
Hansen fez um gesto de assentimento.
- Por isso, a Karin foi sempre má na escola - continuou Thomas. - Nunca conseguirá acabar o liceu. Pelo menos em Stade.
- Então onde?
Thomas encolheu os ombros.
- Que sei eu? Talvez num colégio interno. Mas isso fica muito caro aos velhos...
Rõmer, lembrou-se Hansen de repente. Bernhard Rõmer. Era um dos directores da escola de Odenwald, e esse internato seria exactamente o sítio certo para uma rapariga como Karin começar de novo. Uma escola em que o corpo de professores construíam a noção de família e em que os jovens eram educados não só para obterem uma nota qualquer mas para formarem a sua personalidade. Além disso, a escola de Odenwald não ficava muito longe dali e podia talvez já no dia seguinte lá ir pessoalmente... Mas era melhor abandonar a ideia. Não tinha tempo.
- Então não percebo como é que o pai lhe deu dinheiro para uma viagem a Ibiza - disse lentamente.
- Deu? Deu, coisa nenhuma! Fui eu quem pagou tudo. Queria simplesmente tirá-la daqui. Amo-a de verdade. A Karin é uma rapariga fantástica. E o facto de ter perdido a coragem e se ter tornado verdadeiramente depressiva, tem a ver com aquelas cenas permanentes. Não é coisa que esteja nela. E eu, idiota, nem pensei nisso...
- Não pensaste em quê?
- Bem, quando estávamos para embarcar, deixei sair uma frase idiota, disse que ela não podia estragar-nos as férias ou então não íamos.
- Ah! Bem - disse Hansen pegando num cigarro. - Também fumas?
Thomas abanou a cabeça.
- bom. E agora? - perguntou com cuidado. - Agora que ela está aqui na clínica, que vamos fazer? Vais viajar sozinho?
- Eu? Como pode pensar isso, Doutor? Nem pensar nisso. Fico ao pé dela. Não sou nenhum porco que vá deixar a minha Karin em em má situação.
- Bem, se assim é, talvez eu tenha uma sugestão.
- A sério?
- Sim. E tenho muita esperança nela - começou ele. - Tenho um conhecido na escola de Odenwald...
Hansen deu os pormenores e pediu a Thomas que fosse ter com ele ao fim do dia para poderem combinar tudo. Riscou a sua morada numa folha de bloco.
- Se não encontrares aqui nenhum hotel, podes ficar esta noite em minha casa.
- Tenho uma tia em Frankfurt. Posso ficar em casa dela.
- Então tanto melhor...
Hansen levou-o até à porta e enquanto o via partir, taciturno e abatido, pensou: um filho, um rapaz como Thomas, talvez não fosse uma ideia tão má como isso...
Quando mais tarde seguia pelo corredor em direcção ao quarto 12 para ver a doente, uma voz chamou-o:
- Sr. Doutor!
Lá vinha outra vez o homem da Polícia de Segurança. O chefe de serviço, ou lá como lhe chamavam. O nome? Ah! Sim. Era Brunner.
- Você outra vez? - suspirou Hansen.
O homem alto riu-se.
- Não sei, Sr. Doutor, não sei porquê vou criando a impressão de que não gosta de nós.
- É só impressão, Sr. Brunner - disse Hansen sorrindo também -, nada mais que isso.
- Bem, tanto melhor. Mas, de qualquer maneira, tem cinco minutos para me ouvir?
- Tenho. Cinco minutos! É preferível irmos para ali, para o escritório.
Uma vez aí, instalou Brunner no canto das visitas. Depois, deixou-se ele mesmo cair numa cadeira, cruzou as pernas e ficou a olhar para o volume no casaco de couro de Brunner. Também andava por ali com um canhão? Era evidente que tinha de ser...
- Então? Outra vez o mesmo? Como há três semanas?
- Exactamente. Já vai entrando na rotina. O segundo caso de suicídio num mês.
- Esperemos que fique por aí até ao fim do ano... Os suicidas não são exactamente o meu género preferido. E no que se refere à rotina: [de mim vai obter exactamente a mesma resposta. Sou contra os inter[namentos. Especialmente neste caso.
- Eu só queria falar consigo sobre esse assunto. - A voz de Brunner era apaziguadora. - Faz parte das minhas funções.
- E das minhas faz parte explicar-lhe as implicações da Lei.
- Ai, sim?
- Sim. De um modo geral, assim diz o legislador, deve sempre procurar-se obter o acordo do doente. Como isso de momento não é possível, o assunto está fora de questão. O estado da paciente não o permite ainda. Mais: se podemos designar a rapariga por “doente” só porque tentou atirar-se para debaixo de um comboio, ainda é uma questão a esclarecer.
“Um chibo duro, este doutor”, pensou Brunner, “só que agora também eu lhe posso atirar com a Lei.”
- A hospitalização é lícita quando existem indícios de distúrbio mental e, em consequência disso, ocorre a autodestruição. A autodestruição através do suicídio é reconhecida entre nós, em Hessen, como motivo de internamento.
- Vocês e os vossos internamentos! Mas está bem, nesse caso estamos um a um e ficamos empatados.
- Eu estou aberto a seguir os seus argumentos, Sr. Doutor, se percebesse exactamente o que se passa. Tudo o que sei foi através do “Chefe”, um vagabundo.
- O homem que estava presente quando a doente entrou?
- Certo. O homem que salvou a rapariga. Foi certamente uma grande coisa, mas agora ainda me vai ser mais difícil tirar o “Chefe” do aeroporto. Quer receber a sua condecoração. Ou, pelo menos, que eu o deixe em paz. São assim os problemas com que tenho de me haver.
- Bem, se não tiver nenhum mais grave - riu-se Hansen. - E esse tipo, esse “Chefe”, até me causou muito boa impressão.
- Boa impressão? Sim, ele até é simpático...
- Mas voltemos ao nosso caso. - Hansen fez o seu relato dizendo a finalizar: - No que respeita à sua condição psicológica, o senhor esqueceu-se das condições em que as leis podem ser aplicadas. Dizem assim: “O internamento de um doente mental só é devido quando o perigo não se puder evitar de outra maneira...”
Os olhos de Brunner estavam quase cerrados. No fundo, é como se fosse um desafio, pensou Hansen. Daqui a pouco vai devolver-me a bola. E ela veio logo a seguir:
- Em todas as razões para internamento surge em primeiro lugar a afirmação de que em casos urgentes todas as condições são iguais. E elas indicam: internamento.
- Ora, Sr. Brunner! - Hansen olhou para o relógio e levantou-se.
- Não vamos discutir. Seja sensato. Contei-lhe a hstória toda. Não consegue perceber o que se passa com esta rapariga? - Não esperou por resposta. - Claro que consegue. Então por que estamos para aqui a discutir parágrafos sem interesse? Fiquemo-nos por esta condição: “Se o perigo não puder ser evitado de outra maneira...”
Brunner também se levantara.
- E pode garantir que o perigo já foi afastado?
- Sim - respondeu Hansen. - Já desenvolvi a minha teoria. E vou proceder de acordo com ela. Karin... é o nome da miúda, já passou um mau bocado. Não é nossa intenção levantar-lhe mais problemas desnecessários, não é verdade? vou fazer que fique aqui nas proximidades de Frankfurt num colégio interno onde ficará ao cuidado de um bom amigo meu. Ainda hoje vou tratar do assunto. Pode ficar descansado, Sr. Brunner. E agora peço-lhe que me desculpe...
Apertaram as mãos e Hansen manteve a enorme mão de Brunner na sua durante alguns segundos:
- Sr. Brunner, já lhe tinha dito isto antes, mas uma primeira impressão pode ser enganosa: se neste caso surgir o mais pequeno problema, qualquer problema real, fique certo de que o notificarei imediatamente.
- Isso é uma promessa... - Brunner sorriu.
- E assim se manterá, Sr. Brunner.
- Pollack! - disse Pollack. - com cê kapa e dois eles. Plantou-se em frente do balcão da companhia de aviação.
Que se passava agora? Aquela rapariguinha de uniforme olhava para ele de forma estranha, não, de uma maneira desconfiada. Que é que ele tinha?
- Veja, os bilhetes. - Paul Pollack empurrou os bilhetes por cima do balcão.
- O senhor chegou demasiado cedo, Sr. Pollack.
- Eu o quê? - Pollack começava lentamente a ficar azedo. nunca se chega demasiado cedo.
- Mas este não é o voo para Djerba. Este avião vai para Atenas.
- O quê? Estou aqui há horas na fila e você vem-me com uma dessas?
- Eu não venho com coisa nenhuma. Estou só a dizer que este voo é para Atenas e não para Djerba.
Agora revirava os olhos e os idiotas ali ao lado começaram a sorrir. Incrível...
- Incrível! - disse Pollack.
- O check-in para Djerba começa daqui a uma hora e meia - esclareceu a rapariga. - Volte nessa altura.
Volte nessa altura... Paul Pollack sentiu a cabeça a arder. As orelhas e o pescoço também... Não admirava, até sentia falta de ar com uma organização daquelas!
- Anda, Lieschen, pega nas crianças. E nas malas. Que me dizes a este caos?
Lieschen evidentemente que não respondeu. Era coisa que nunca fazia. E mesmo que o fizesse, de que serviria? Era sempre Paul quem planeava tudo. Tudo, a vida toda. Especialmente uma viagem daquelas ao estrangeiro. O primeiro voo ainda correra menos mal. Sim, Paul fora perfeito em todas as situações, mas isto aqui...
- Que se passa, Paul?
- Nada - respirava verdadeiramente com dificuldade.
- Anda, Paul. Ali em frente há lugares para nos sentarmos.
- Lugares como? E onde guardamos as bagagens todas?
- Ao nosso lado - disse Lieschen. Bem, podia ser que desse resultado...
- Mas mantém as malas direitas, Bert! - berrou Paul para o filho de 10 anos. - Como te ensinei. Senão, ainda escorrega.
Finalmente sentou-se numa cadeira. Claro, era confortável, mas todo aquele tráfego ali? Pior que numa festa de igreja em Rotstetten. Pior que na festa de Outubro. Só que ali não se bebia nada. Era só o que faltava.
- Papá? - chamou a sua filha de 7 anos de idade, Greti, com ar assustado. - Papi, tenho tanta sede. Não posso beber uma Cola? Ali em frente, no restaurante...
- Aquilo não é um restaurante, Greti. É um bar. E não há Colas. Nem sabes o que as coisas aqui custam. Temos de poupar o nosso dinheiro das férias.
Aquela era a questão: se não começasse logo do princípio a poupar todos os tostões, aquelas férias tornar-se-iam numa catástrofe.
- Lieschen, tens um lenço?
- Toma, Paul.
Paul Pollack limpou o suor da testa. Achava que era bastante suor. A camisa também já estava toda molhada. Como seria quando estivessem na Tunísia, raios? Nunca teria planeado ir para um sítio qualquer, para junto de uns indígenas quaisquer se a oferta não tivesse sido tão aliciante. Por aquele dinheiro, ficar num hotel de luxo com piscina, era uma verdadeira pechincha. Aquele dinheiro gastavam eles mesmo em casa.
Paul Pollack desapertou o botão do colarinho. Inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos. Portanto, de avião até aos tunisinos... e havia palmeiras... e camelos... que lhe interessavam os camelos? Esperava que ao menos tivessem uma boa cerveja... Djerba era uma ilha? Assim haveria todo o mar que quisessem. E de certeza muito sol? De qualquer modo não poderia... Lentamente as ideias começavam a ficar-lhe difíceis. Um avião? Como poderia isso ser? Fecham-te numa caixa de folha e depois atiram-te lá para cima. A mais de dez mil metros, lera ele em qualquer lado, a meia distância da Lua... Ai, o meu peito! Que é isto? Sentia formigueiros...
- Lieschen? - disse baixinho. - Diz lá, queremos mesmo fazer esta viagem de avião?
- Mas nós já temos os bilhetes! Está tudo pago.
Era mesmo isso: estava tudo pago... De certeza nem sequer tinham no avião um pára-quedas para o caso de acontecer alguma coisa. De certeza que iria acontecer alguma coisa. Paul Pollack tinha a impressão de que um punho de ferro lhe comprimia o peito, sem pausa, sem piedade, cada vez com mais força, depois cada vez pior e, finalmente, quando queria levantar-se para lutar contra aquele aperto, ao exclamar “Lieschen” com voz sumida e as crianças andavam por ali a correr, explodiu dentro dele uma horrível dor e perdeu os sentidos...
A enfermeira Lucrécia Bonelli tinha o bonito nariz cheio de pequeninas rugas. Apareciam sempre que alguma coisa a contrariava. Como é que a mulher entrara por ali dentro, santo Deus? E que faziam ali as crianças?
- Acaba tu isso, Agnes! Eu ocupo-me desta gente!
Lucrécia e Agnes tinham estado ocupadas a cuidar de um passageiro sul-americano que tinha feito uma enorme ferida na cabeça no autocarro dos passageiros. Por gratidão ou sabe-se lá por que outra razão, queria convidá-las a sair. Para irem a Frankfurt, até ao hotel onde se alojava. E não era tudo. Também queria levá-las até ao seu rancho na Argentina. Na América do Sul davam-lhe o nome de hacienda.
Lucrécia ficou satisfeita por finalmente se ver livre dele.
- Escutem! Não podem ficar aqui - disse para a mulher, enquanto sorria para as crianças que eram realmente bonitas e olhavam espantadas para as ligaduras ensanguentadas do doente e para o armário branco dos instrumentos cirúrgicos. - Que é que vocês querem, afinal? Saiam lá para fora para o corredor.
- O meu homem... - murmurou a mulher. Era redonda, gordinha e era certamente camponesa, pelo menos a julgar pela roupa que vestia. - O meu homem está aqui. Ele está... nós queríamos despachar a nossa bagagem, íamos para Djerba. O nosso avião parte dentro de uma hora. E agora este atraso. Estava muito excitado e depois... depois...
- Como é o nome?
- Pollack - disse-o tão baixinho que Lucrécia teve de perguntar duas vezes até conseguir perceber.
- Um momento. - Dirigiu-se à recepção e voltou imediatamente. - Sim, o seu marido está aqui no posto.
- Mas que tem ele, afinal?
- Teve um enfarte, Srª Pollack. - Lucrécia fez uma festa nos cabelos da rapariguinha, que olhou para cima pálida e como que paralisada, agarrando depois, subitamente, a mão de Lucrécia.
- Anda. Como te chamas?
- Greti.
- Anda, Greti, vamos para a sala de espera. Lá dão-te livros bonitos e revistas, está bem?
A mulher tremia; estava tão pálida que Lucrécia ficou a pensar se ela não precisaria de qualquer medicamento. Mas depois deixou-se conduzir até à sala de espera.
- Ele vai morrer, não vai? O meu pai também morreu com um enfarte. Meu Deus... por que nos metemos nisto? Ele tem medo dos aviões. Se calhar foi por isso. Ele nunca admite nada, enfermeira, mas eu pressinto qualquer coisa, pressinto com toda a certeza. Agora vai morrer.
- Acabe lá com isso de estar sempre a falar em morrer. - Lucrécia Bonelli falou com convicção: - Quantos enfartes é que julga que entram aqui? Alguns por semana. Este foi de certeza muito ligeiro. Disseram-me ali que já consegue falar outra vez.
Paul Pollack não conseguira só voltar a falar como tentava mesmo berrar. Mas não o conseguia muito bem. Assim que tentava elevar a voz, a dor voltava. E com a dor, aquele medo malfadado. E depois faltava-lhe o fôlego.
- Já lhe disse pela quinta vez - dizia ele -, e agora faça finalmente o que lhe peço. Traga-me aqui a minha mulher, imediatamente!
- Oiça lá, tem de estar sossegado. Sossegado com S grande! E sobretudo tem de estar calado. Tem de descontrair-se. Isso agora é o principal.
- Não recebo ordens suas!
Fritz Wullemann abanou a acabeça de puro espanto. Conhecia bem os seus clientes. Estava habituado a doentes queixosos e excitados de toda a espécie e em todos os graus. Fiel à sua divisa “as pessoas são mesmo assim” aceitava as coisas descontraidamente. Mas este tipo, este polaco? Tinha sido tratado, tinham-lhe feito uma transfusão, tinham-lhe dado toda a espécie de injecções e, no entanto, nem os sedativos faziam efeito. O homem estava sempre a excitar-se, procurando dar ordens a toda a gente.
- Homem, agora deixe-se finalmente adormecer. Senão volta tudo outra vez.
- Dormir? - berrou Pollack. - Acho-lhe uma graça! Quero a minha mulher!
- Não precisa de fazer o seu testamento, Sr. Pollack. Ainda é realmente muito cedo para dizer as últimas palavras... Não passou de uma ligeira lesão do miocárdio. Possivelmente excitou-se tanto como agora, só que não tinha nitroglicerina à mão. Quer que o acidente se repita?
- Pois é, ainda não percebeu? Não quero... não quero fazer o testamento... quero que ela embarque... e o avião para Djerba parte dentro de quarenta minutos.
- Embarque? - Wullemann parecia esforçar-se por falar baixinho. - Quer que a sua família embarque, agora que acabou de sofrer um enfarte?
- Isto já passa. Mas o dinheiro? São três mil e duzentos marcos! Não suporto isso. Os meus setecentos já lá vão pelo cano abaixo...
- Agora não fale tanto, homem!
- Pelo cano abaixo - disse Paul Pollack voltando a apertar o peito. - Ao menos, eles têm... têm de aproveitar qualquer coisa. Não consigo conformar-me com a satisfação daqueles nativos do hotel, eu não mandei o meu dinheiro àqueles bandidos da agência de viagens... está agora a perceber? Portanto, por favor, vá ter com a minha mulher e diga-lhe que ela tem de embarcar... diga-lhe... diga-lhe que o Paul lhe manda saudades e um beijinho... mas que ela tem de se divertir.
Divertir? Fritz Wullemann abanou a cabeça meio incrédulo meio impressionado e virou-se para a enfermeira que ainda se encontrava no quarto.
- Fica atenta, Agnes. Eu volto já.
E Fritz Wullemann assim o fez. Aproximou-se depois da cama donde Paul Pollack olhava para ele um pouco ansioso.
- Ela fica aqui, mandou-me ela dizer. E as crianças também. Afinal, vocês são uma família, e não podem, por isso, deixar o pai sozinho. Você tem uma boa mulher, Sr. Pollack. Mas tenho de dizer-lhe uma coisa: quando olho para si, penso que se fosse comigo, ia-me embora. E há muito tempo que o tinha feito...
Paul Pollack não ouviu esta última frase. O nariz afilara-se ainda mais, os olhos estavam mais encovados.
- Isso vai? Ou tem dores?
Acenou que sim e, subitamente, riu-se:
- Tem razão. Tenho uma boa mulher. E, quando penso no assunto, acho que tem razão: sou um perfeito idiota.
- Agora é que falou bem. - Wullemann disse-o quase alegremente, acrescentando: - A sensatez nunca chega demasiado tarde...
Evi Borges e o Dr. Fritz Hansen estavam deitados ao sol na varanda. Evi sob o guarda-sol, com um livro na mão. Hansen sorrindo feliz e descontraído.
Já tinham tomado o pequeno-almoço. E que pequeno almoço Evi tinha preparado! Era perita nisso. A vida com uma hospedeira podia ser por vezes cansativa e era sempre excitante, mas tinha, graças a Deus, os seus lados positivos.
Hansen arriscou uma olhadela para debaixo do guarda-sol.
Ali estava ela deitada, como uma deusa, e bonita, e ainda por cima queimada pelo sol de um país exótico qualquer. Mas ele? Hansen contemplou, melancólico, as suas pernas brancas.
Pássaros cantavam. À volta deles reinava a calma que em Frankfurt se descrevia como estando longe do ruído e do roncar dos motores dos aviões ao levantar voo, bem como do tráfego da auto-estrada, ouvindo-se em fundo um barulho como que o marulhar das ondas na praia.
Corfu, pensou Hansen mais uma vez. Raios, por que não se tornava isso realidade? Porque tu, desde que Grafe caiu, nunca conseguiste arranjar tempo para umas férias.
- Embarco contigo para Corfu - ouviu-se dizer. - E muito... Muito brevemente. Só preciso de arrumar a loja e depois ...
- Embarcar? - disse suspirando.
- Como?
Ela virou a cabeça para ele e empurrou os óculos para a ponta do nariz.
- Corfu ou outro sítio qualquer. Se queres saber, estou contente por estar em Niederrad. Aqui também se está bem.
- Grandes palavras para uma dama tão viajada como tu - disse Hansen surpreendido. - Onde é que Evi Borges, a maravilha das maravilhas, encontra a satisfação dos seus desejos, o seu grande sonho pessoal? Numa estúpida varanda em Frankfurt. Ao pé de mim.
- Mentiroso! - Baixou o livro e olhou para ele com os seus severos olhos verdes. - Incorrigível fanfarrão...
- Fanfarrão? Isso não passa de uma noção pobre e errada. - Deu uma dentada na direcção dos pés dela. - Existe este fanfarrão e outros tipos de fanfarrões. Ainda não percebeste isso com a tua experiência em homens voadores? Não? Bem, então escuta: há os que são fanfarrões com motivos para isso, especialmente porque os seus desejos nunca se realizam, e existem os outros fanfarrões que não produzem mais que vento.
- E tu és um dos da primeira espécie?
- E de que maneira! - endireitou-se. - Que me dizes se eu agora disparar e te contar...
Não lhe contou nada. Acabara de se lembrar de uma coisa e, com os diabos, o seu relógio marcava já onze e meia. A visita a Rõmer, na escola de Odenwald! Esquecera-se completamente. Além disso, agora apetecia-lhe mesmo sair da varanda e ir pelos campos com Evi.
- Acabou-se. Fecha o livro.
- Que se passa agora?
- Um passeio ao campo. Pela floresta. De mochila às costas. Gelado de morangos.
- Não gosto.
- Então limonada e salsichas - decidiu ele. - Muito importante: levantas o teu lindo rabinho e vestes qualquer coisa com a qual possas aparecer às pessoas.
- E para quê, para onde e porquê?
Contou-lhe em três frases. Ela assentiu compreensiva, mas ao mesmo tempo abanou a cabeça com pena.
- Gostava de poder ir, mas infelizmente não posso. Tens de ir sozinho...
- E porquê?
- Estou em stand-by - disse ela. - O dia todo.
Ainda mais essa! Stand-by era um dos tormentos das hospedeiras.
Se uma das raparigas estava em stand-by, tinha de ficar todo o dia durante vinte e quatro horas ao pé do telefone até que uma qualquer instância no olimpo da Lufthansa, que também tinha o nome de “direcção de planeamento”, se lembrava de chamar a que estava à espera para a incluir numa tripulação qualquer, por ter acontecido qualquer coisa e ser preciso uma mulher. Se a chamada fosse feita, ela só teria uma hora para se apresentar no aeroporto.
- Raios partam - rezingou Hansen. - De que me serve seres tão bonita se não posso mostrar-te em lado nenhum? E para que servem todas essas viagens com dez por cento de pagamento se nunca faço nenhuma? Afinal, que vida é esta para nós os dois?
- Pobre Fritz! - Tinha-se levantado e tirara os óculos de sol para lhe dar um beijo.
Mas a ele, ja não lhe apetecia.
- Agora tenho de telefonar ao Rõmer para Odenwald. Raios. Em princípio o assunto de Karin resolve-se bem. Pelo menos foi o que ele disse. Só que quer falar comigo outra vez...
- O telefone está ali.
Nesse momento o telefone começou a tocar. Ficaram parados muito direitos a olhar um para o outro.
- Para ti...
- Ou para ti?
Era da clínica do aeroporto. E ainda por cima Lucrécia Bonelli...
- Sr. Doutor? - perguntou ela. - É muito urgente.
- Sim, que é? Quem é que precisa de mim outra vez?
- Eu não, Sr. Doutor. Estou a falar em nome do Dr. Honolka. Temos aqui uma hemorragia, Olaf Honolka disse que é perigosa e que não consegue desenvencilhar-se sozinho e por isso...
-Está bem, está bem. - Hansen respirou fundo. - Lucrécia! Desculpa se fui um pouco brusco. Mas sabes como é, quando não se está de serviço...
- Não me interessa como é - respondeu ela do outro lado do fio. Hansen desligou.
- Quem era? - quis Evi saber.
- Ora, quem havia de ser... - suspirou Hansen indo procurar as calças.
Eva Maria Kanitz ficou a observar ao espelho as duas mãos morenas, com pêlos escuros, mãos de homem, que lhe afagavam os seios nus. E quando os dedos brincavam com os bicos do peito, voltou a observar. Que visão excitante! Mais excitante que tudo o que vivera Daquela noite. Excitante sobretudo porque as mãos dele encaixavam Perfeitamente nos seios dela. Talvez os seus seios não fossem já dos mais jovens, mas eram perfeitos. “Como que talhados em pedra”, Dissera o cirurgião plástico depois de ter acabado a operação.
Sim, como que talhados em pedra. E ele, Peter Straub, afagava-os, brincava com os mamilos.
- Meu Deus - sussurrou ela. - Peter... não aguento mais...
Era verdade. Aquela boca cheia de desejo reflectida ali no espelho
era a boca dela. Os olhos perturbados eram os olhos dela. E o seu rosto estava encostado ao ombro dele! Toda a imagem se tornava ainda mais suave e subtil na luz rósea com que o decorador do complexo Sheraton tinha equipado a casa de banho dos apartamentos de luxo.
- Tira daí as tuas mãos miseráveis... deixa de estar para aí a brincar comigo, senão...
- Senão o quê?
Tinha uns dentes brilhantes de brancos e olhos pretos impressionantes. O seu olhar era tão conhecido como a covinha do seu queixo quando se ria. Sim, senhor! Conhecido e amado por milhões de espectadores de televisão.
Talvez fosse isso que tornava tudo tão louco e excitante para Eva Maria: milhões de mulheres desejariam estar numa situação como aquela. Sonhavam estar a ser, exactamente assim, afagadas por Peter Straub.
- Tira as mãos, meu animal - disse ela ofegante. - Senão começas outra vez! Agora...
Os seus lábios percorreram-lhe os músculos do pescoço. Enquanto o fazia, olhava imperturbável para o espelho.
- Vem - sussurrou ela -, vem, por favor... vamos fazer outra vez.
Riu-se com os dentes brancos à mostra.
- Agora temos de ter juízo, meu tesouro.
- Ter juízo? Sim, mas como? E porquê?
- Ter juízo é ter juízo, não há explicações para isso - riu-se ele largando-a e dando um passo atrás. - Dentro de duas horas parte o meu avião para Salzburgo. Nessa altura tenho de estar a bordo. A vida é assim.
Dirigiu-se ao lavatório e lavou a cara. Primeiro os olhos e depois as faces.
- Ter juízo é, por exemplo, não se deixar destruir por uma mulher antes de uma estreia.
Atirou água para a cara e espirrou. A toalha de mãos. E depois outra massagem. Depois uma qualquer loção para a barba, e ela... ela estava ali calada e desiludida.
- Vamos lá, Eva Maria! Que coração humano, para fazer inveja aos deuses...
- Cala-te lá com as tuas citações dos clássicos.
- Isto é Schiller.
- Para mim são disparates.
Olhou para si mesma: as pernas altas, as unhas dos pés pintadas, as cuequinhas em tanga. Tinha esperado tanto... Bem, pelo menos um segundo pequeno-almoço, ou dar um passeio, deixar que as coisas fossem acabando devagar, e agora?
- Merda de estreia! - disse com amargura. Ele fez um gesto de concordância.
- Nisso, por Deus que tens razão!
Depois deixou-a ali plantada, dirigiu-se ao roupeiro do quarto de vestir, retirou o fato, vacilou na escolha da camisa - tal qual Heinz quando ia a uma das suas reuniões importantes ou se preparava para uma viagem de negócios. E ela, ela estava para ali nua e observava...
- Sabes, Eva Maria, acho melhor que daqui a bocado te deixes ficar no hotel.
- vou levar-te ao aeroporto, Peter.
- Ouve lá, uma mulher como tu, uma... como devo dizer, uma mulher tão bonita... com a tua posição, não deve correr riscos desnecessários. Não posso alterar o facto, mas sou tão conhecido como um cão colorido. E uma coisa destas aparece nos jornais de mexericos antes de poderes dizer ai.
- O Heinz não lê jornais de mexericos. Só lê as páginas de economia e da bolsa. E é tudo.
- É por isso? - Riu-se e fez-lhe uma festa no queixo com o dedo indicador. - Por isso mesmo, não é verdade? A secção da bolsa é muito grande.
Nesse momento odiou-o. Liz afinal tinha razão:
- Nem tudo o que reluz é ouro, minha pobre querida - tinha dito Liz. - Os actores e especialmente estrelas como Peter Straub não passam de exibicionistas. Isto significa que se espera deles mais do que nos podem dar.
Liz tinha razão em todos os sentidos. Tinha a obrigação de o saber. A sua chafarica cheia de brilhos e penduricalhos na avenida principal de Dússeldorf era o ponto de encontro de todas as pessoas importantes. Fora ela quem lhe apresentara Peter. “Um casamento desfeito em cada trimestre”, dizia Liz também, “mantém o ego e afasta as rugas!” Certo. E ela sabia bem o que Heinz fazia durante as suas viagens de negócios...
- Bem, se fazes questão em exibir-te - disse Peter rindo -, o risco é teu.
Era de esperar...
“Todos muito gratos, Sr. Straub!” e “dê-nos a honra novamente” e os olhares disfarçados, curiosos. Bastava-lhes atravessar a rua para voltar a entrar no repousante anonimato do aeroporto.
Também ali se voltavam as cabeças, pessoas ficavam paradas a olhar para eles. Também ali o homem alto, de rosto queimado pelo sol e perfil romano era reconhecido:
- Aquele não é o Straub? Claro, é ele!
Mas as pessoas tinham mais que fazer, estavam com pressa ou deixavam-se ficar exactamente como estavam, apáticas por detrás de um jornal, sentadas nas cadeiras à espera da chamada.
Eva Maria Kanitz e Peter Straub atravessaram o ponto de encontro. Um curto e agonizante baque no coração fez Eva Maria estacar de repente,; depois começou a bater acelerado. Atrás das colunas, do outro lado, estava um homem de fato escuro. Os ombros largos, a cabeça redonda... não era Heinz?
- Que se passa? - perguntou Straub sorrindo-lhe.
- Nada. Mas talvez esteja um pouco cansada. Já vejo fantasmas
- Como?
- Ora, nada. Anda, vamos tomar um café ali em frente. Agora ainda temos alguns minutos...
- Mas com certeza.
Deve ter sido engano, pensava Eva Maria, que outra coisa poderia ser? Heinz estava em Nova Iorque. Na quinta-feira voaria no Concorde até Paris e depois com a ligação da Lufthansa até Dusseldorf. vou esperá-lo ao aeroporto de Dusseldorf. Foi assim que combinámos, é assim que vai ser.
Não podia, portanto, estar no aeroporto de Frankfurt. Que estaria ele ali a fazer quatro dias antes da chegada planeada?
Além disso, homens de fato escuro com riscas finas azuis e cinzentas andavam pelo aeroporto às centenas. Frankfurt era a cidade dos banqueiros, e Heinz tinha exactamente ar de banqueiro. Não tinha ele um Banco dele num sítio qualquer?
-Vamos, queridinha, senta-te. - Straub tinha puxado a cadeira para trás e empurrava Eva com suavidade para que se sentasse.
- Um café? - Fez sinal ao criado.
Ela fez que não com a cabeça.
- Agua mineral?
- Agua mineral? Estás tonto? Já que é uma despedida, façamo-la com estilo. Faz favor, dois mini-champanhes!
O Dr. Heinz Kanitz tinha na bagagem os brincos para Eva Maria.
O dono da Kanitz, SÁ - Equipamentos Industriais deixava a vida correr ao sabor dos seus negócios. De outro modo, que conseguiria? Onde iria ele arranjar tempo?
Desta vez até tinha conseguido ganhar algum tempo. As suas negociações com o Chase Manhattan Bank em Nova Iorque tinham tido o maior êxito logo à sua chegada. O contrato tinha sido assinado, restando apenas as conversações com os directores das suas empresas.
Para além disso... bem, em Nova Iorque era sempre a mesma coisa: as reuniões de negócios, a partida de golfe com o seu velho amigo gobby Heller em Nova Jérsia e, para finalizar, a compra de um presente para Eva Maria. Numa pequena loja de que Kanitz gostava especialmente: Liebstock, Park Avenue, 22.
Não fazia as suas compras nem no Tiffany nem no Van-Cleef. Gostava de ser atendido individualmente e ninguém o fazia melhor que o velho Liebstock. Desta vez tinham sido uns brincos, verdadeiramente bonitos, esmeraldas com uma roseta de brilhantes... E se Eva Maria não gostasse deles, o problema era dela. Ele de qualquer modo tinha-se divertido. A pequena ruiva que Heller lhe tinha mandado à suite do hotel era simplesmente de primeira classe.
Queixo levantado, em passos curtos e seguros como sempre, Heinz Kanitz seguiu o motorista que o Deutsche Bank lhe tinha mandado ao aeroporto. Faltava ainda a reunião com Wilms sobre o projecto de Bilbao e talvez ainda fosse a tempo de apanhar o avião das dezasseis e cinquenta. Estaria às cinco e meia em Dússeldorf e, com um pouco de sorte, às seis estaria em casa.
Eva Maria ficaria espantada...
Naquele momento Heinz Kanitz ficou parado, como que fulminado por um raio. Era ele quem se espantava.
Logo na primeira mesa do café, a não mais de vinte metros. Um casaco largo de seda cor-de-rosa. Um braço que se levantava, igualmente envolvido em cor-de-rosa. Uma mão que fazia festas no rosto de um homem...
Eva Maria...?
Sim, era ela! O casaco tinha sido comprado pelos dois em conjunto... Mesmo conseguindo unicamente ver-lhe a nuca, o pescoço delgado com cabelos escuros virados para cima, era ela! E namoriscava. .. nem era namoriscar... estava embrulhada com aquele tipo ali.
- Desculpe, Sr. Doutor - o motorista do Banco olhou admirado para Kanitz -, passa-se alguma coisa?
Passa-se alguma coisa, perguntava aquele. Oh! Sim. Passa-se alguma coisa: a minha mulher!
Era realmente ela, via-a agora de perfil. Eva Maria em flagrante, e que flagrante! Como se pegava àquele homem! E ainda por cima em público. No meio do aeroporto, naquele palco gigantesco onde se moviam certamente milhares de pessoas: banqueiros, jornalistas, dirigentes superiores, muito provavelmente pessoas do ramo, felizes com o falatório, gozando o escândalo!
- Se quiser agora, Sr. Doutor...
- Um momento, um momento... deixe-se ficar aqui e espere por mim. Tenho um assunto a resolver.
Heinz Kanitz avançou. Ao andar descontraiu os ombros. Havia dois anos que fazia boxe, às quintas-feiras de manhã cedo, antes de ir para o escritório. Agora estava satisfeito por isso.
Estavam a beber champanhe, faziam uma saúde! Ainda por cima ele pegava na mão dela. Em frente de toda a gente. Fazê-lo cair no ridículo? Estragaria o seu bom nome. Bem, se era escândalo que queriam tê-lo-iam.
Kanitz andava agora um pouco mais devagar. Mais dez... cinco passos. Conhecia a cara do amante. Certo, era aquele pedante daquele actor, aquele lindinho que tinha feito uma conferência na galeria de arte de Dússeldorf. Ainda por cima actor, tão profissional como uma puta.
De tal forma súbito e inesperado fora o aparecimento de Heinz Kanitz atrás da cadeira de Eva Maria que esta nem conseguiu reagir.
- Tu? - murmurou simplesmente.
- Sim, eu...
O tipo ainda segurava a mão dela, ou melhor, apertava-lhe a mão. Então levantou-se.
- Straub - um sorriso arrogante -, e o senhor quem é? Não podia comportar-se de forma mais agradável, em vez de estar a espiar-nos?
- Lá isso podia - ouviu-se Kanitz responder -, só que não tenho motivos para isso.
- Sim? Então experimente lá.
O que se seguiu aconteceu sem uma única hesitação. Kanitz já tinha, evidentemente, tomado uma decisão, mas que acabasse por ser tão fácil com um merdas daqueles, um magricela assim, nem lhe tinha passado pela cabeça.
Foi uma agitação. Kanitz atirou com o peso todo do seu corpo para a frente e bateu sem falhar. com a maior precisão atingiu-lhe o lado direito do queixo... O homem foi positivamente atirado ao ar, voou pelos ares e caiu de braços abertos sobre a mesa mais próxima. Na qual, graças a Deus, não se encontrava ninguém...
Uma mulher gritou. Não era Eva Maria.
- Agora acabou-se! - disse o criado que apareceu correndo. Kanitz meteu a mão no bolso do colete e retirou um cartão de visita.
- Aqui está a minha morada. Dirija-se ao meu escritório para eu lhe pagar os prejuízos, caso tenha havido alguns.
No balcão do bar, atrás do bar, nas outras mesas, no átrio, em todo o lado havia gente parada. Não sabia porquê mas até era divertido. Parecia uma fotografia com flash: estavam todos de pé a olhar fixamente. E todos tinham a mesma expressão.
Além disso, o motorista de Wilms também apareceu a correr.
Mas Eva Maria? Essa ainda estava sentada. Branca como um fantasma. Só que isso não interessava. Era como se Eva Maria já não existisse. Só que ela ainda não o sabia.
Kanitz virou-se esfregando as doridas articulações da mão.
- Você é casado? - perguntou ao motorista.
- Como? - perguntou gaguejando. - Sim, Sr. Doutor... sou, sim, senhor.
- Bem, eu já o fui. E a si, meu caro, daria de conselho... mas deixemos isso! Leve-me junto do Sr. Dr. Wilms. Ele não merece que eu o faça esperar.
A primeira coisa que Peter Straub viu quando voltou a si foram pernas de mesa. Não conseguia deixar de sentir as dores que tinha na boca. Não eram só as dores, era também aquele horrível enjoo, as cãimbras no estômago, no esófago... Os seus nervos rebelavam-se exigindo uma única coisa: ar, ar! Preciso de respirar, ar... socorro, sufoco!
Peter Straub viu tudo negro à sua frente. A sua mão, tacteando, puxou para o chão uma toalha de mesa. com um resto de forças, tentou erguer-se, mas o corpo parecia feito de cimento, não conseguia... já não conseguia nada... estava tudo preto! Num último momento de lucidez viu à sua frente o rosto de uma rapariga. Sentiu uma mão que lhe levantava a cabeça. Uma outra mão que lhe abria a boca e lhe afastava os maxilares.
Agora podia respirar... sim! ”;
Como se fosse uma corrente de água prateada, o oxigénio entrou-lhe nos pulmões, fazendo que o coração lhe desse alguns saltos de felicidade. Mas depois voltaram-lhe os enjoos, o estômago andava-lhe às voltas, tinha contracções.
“Isso não!” Pensou-o e fez os possíveis para dominar os vómitos.
Straub, o grande Straub, ali estava ele deitado no chão sujo depois de ter sido posto fora de combate... ali estava vomitando para cima das pernas das mesas... e porquê, porquê?
Sentia-se agoniado. com um resto de clareza viu-se como sempre observado e admirado pelos outros. E a peça era uma porcaria, a encenação uma catástrofe... Cortina!
Mas aqui não havia nenhuma cortina.
Peter Straub só via uma saída: um desmaio salvador e consentido...
- Que queres dizer com essa de “sensação”? - protestou Britth Happel. - Não podes pura e simplesmente agarrar-me pelo braço! Estou aqui sentada a beber o meu batido de leite, entra uma tiazinha com um tipo de cabelo aos caracóis...
- Que é isso de tipo com caracóis? - Os olhos de Lucrécia ainda se tornaram mais redondos. - Britte, não o reconheceste imediatamente!
Ficou a olhar para Britte como se tivesse à sua frente um animal raro do jardim zoológico.
- Sim, quem é? Nem sequer olhei bem. O meu batido de leite é para mim mais importante. E depois, quando começaram...
O enfermeiro-chefe Fritz Wullemann chegou-se à mesa da cantina da clínica do aeroporto trazendo nas mãos um tabuleiro com uma cerveja para si e outra para o jovem médico Dr. Fred Wicke e café para Lucrécia e Britte.
- O teu cafezinho, Britte. Oferta da casa. Ou, melhor ainda: oferta de Wullemann. “Enfermeira do aeroporto salva a vida a uma estrela mundial durante a pausa para o café.” Não é assim? Tens ao menos um autógrafo?
Britte sacudiu a cabeça numa negativa.
- Mas eu tenho!
Fritz Wullemann meteu triunfante a mão no bolso da bata de serviço retirando uma fotografia. A fotografia mostrava um rosto radioso e por baixo, na oblíqua, escrito até à altura do peito: PETER STRAUB.
- Que dizes a isto? - perguntou orgulhoso.
Britte não disse absolutamente nada. Abriu o pacotinho de açúcar deitando o conteúdo no café. O que lhe apetecia era levantar-se e levar o café com ela. Aquelas conversas parvas! Que lhe interessava o Peter Strub? Começava a estar farta...
- Ele disse que ia convidar-te. Estava completamente bêbado de gratidão. E queria saber onde te escondes. Mas estavas na sala de observações, não estavas?
Britte confirmou.
- Pois bem. Amanhã vais receber um bilhete. Para Salzburgo. É para onde ele tem de ir. Acabou agora de lavar a sua carinha valendo milhões, pediu-me um pente e desatou a correr para o avião.
- Sim e a mulher? E, principalmente, Britte, por que não contas nada do que se passou?
Os olhos de Lucrécia Bonelli brilhavam de excitação.
- O Straub! Meu Deus, quando penso que ele... quer dizer, quando o Straub... bom, como foi aquilo com a gatinha dele?
- Foi-se embora. Imediatamente.
Britte bebeu o café. Estava muito quente e ela pousou-o imediatamente no pires.
- E o vosso Straub esteve quase a ir para os peixinhos - esclareceu o jovem Wicke. - Uma coisa daquelas pode tornar-se muito perigosa. O homem quase sufocou com os dentes postiços.
- O quê? O Straub tem dentes postiços...?
Agora não eram só os olhos de Lucrécia que estavam redondos, a boca também parecia um círculo.
- Claro que tem. Quase todos os têm. E os actores ainda os têm mais cedo. E esses não os vão colocar ao dentista da Caixa...
- Os de cima são prótese total - completou o jovem Wicke -, mas em baixo só tem uma ponte. Os caninos... E então pumba, só assim, deve ter sido um soco fabuloso, e o desgraçado fica com a ponte alojada no esófago, o pobre.
- Podes dizer canal da comida. Aqui todos sabem que dentro em pouco andas por aí a passear um título de doutor.
- Está bem, canal da comida! Mas a coisa, a prótese, ainda lhe bloqueou a tra... o canal do ar e a garganta. Aí tornou-se complicado para o pobre Straub; então ficou com um problema: a admissão de ar ficou bloqueada e quando acontece durante muito tempo, não é nada bom. Mas sabem, o auxílio estava próximo! - Wicke fez um gesto elegante com a mão. - Quem estava a beberricar um batido de leite a dez metros de distância? Quem o deixou de lado para ir sem demora arrancar a prótese à nossa estrela tendo assim, sempre que o vosso ídolo estiver a representar, bilhetes à borla?
Wicke bebeu um grande trago de cerveja.
- É pelo menos o que penso. À saúde dele...
Britte acabou de beber o café e levantou-se.
- Bem, então até depois.
Ficaram a olhar para ela enquanto se dirigia para a porta.
- Que é que ela tem? - perguntou Wicke. - Que se passa ultimamente com ela?
- Faz-me outra pergunta mais fácil - respondeu Wullemann. - Mas, assim ou assado, gosto dela...
- Daqui fala Eva Maria Kanitz. Tanto quanto sei, o meu marido tem um encontro com o Dr. Wilms. Preciso de falar com ele urgentemente e gostaria de saber se ele ja aí chegou?
Eva Maria Kanitz encostou-se à parede metálica da cabina telefónica do restaurante passeando os dedos pelo fio. Agora já vamos ver. l Naturalmente vai tentar evitar-me, mas de que lhe serve isso?
- É verdade, Srª Kanitz. - A voz educada e controlada da mulher ao telefone não mostrou qualquer surpresa. A “tiazinha” do escritório de Wilm? Ora, eram todas iguais...
- Estamos à espera do seu marido a todo o momento, Srª Directora. O Sr. Wilm mandou o carro ao aeroporto para o ir buscar. Mas infelizmente... um momento. Parece-me que está a chegar.
bom, tanto melhor.
Ouviam-se vozes. Depois um riso ao telefone. Era certamente a voz de Wilm a cumprimentá-lo e, pelo meio, a voz de baixo de Heinz: “Como?”
Podia ver a cena à sua frente: o rosto irritado dele, a boca que se tornara mais fina. Ainda bem que conseguira apanhá-lo. Em frente de Wilm não pode simplesmente despachar-me. Se a reunião já tivesse começado, teria sido diferente.
E ali estava ele:
- Kanitz.
- Ouve, Heinz! Não cometas agora o erro de desligar antes de eu falar.
- Como? Hum...
-Agora também não podes responder-me, quero dizer, nestas circunstâncias.
- Podes dizê-lo.
- Então está bem. Mesmo assim, não voltarei a telefonar-te tão cedo. Portanto escuta: da próxima vez será o meu advogado a contactar-te. A tua visão do problema já eu conheço.
- Ah! Sim?
- Ponto número um, meu caro: o homem que agrediste foi parar ao hospital.
- Era o que ele estava a pedir.
- Sim?
A resposta dele obrigou-a a tomar uma decisão. Tinha de pensar com clareza, como nunca na sua vida toda. Eva Maria observou três crianças que corriam lá fora à volta da cabina. Meu Deus, pensava ela, porquê tudo isto? Afinal, que tinha acontecido? E Straub, um idiota que perdia os dentes logo à primeira, os dentes postiços. Quem teria imaginado que tinha dentes postiços... E eu? Eu... Domina-te, pelo amor de Deus!
- Heinz - disse ela -, tens sorte de não ter ido parar à cadeia e de não seres preso aí no teu Deutsche Bank.
- Eu?
- Sim, tu. O homem foi por pouco que não sufocou. Já tinha a cara toda azul. Só foi salvo mesmo no último instante. Podes calcular que dentro de pouco tempo ele também apresenta queixa contra ti.
- Não estou nada preocupado. Mas que queres dizer com isso de “também”? - continuava cheio de frieza. Uma pedra, era o que ele era. Não, um monstro!
- com isto chegamos ao ponto dois, Heinz - disse Eva Maria. - Não pretendo de modo nenhum negar que tive um caso breve e sem importância com o Peter Straub... - Um de entre muitos.
- Exageras. Além disso não podes provar nada, absolutamente Inada... Pelo teu lado, caro Heinz, as coisas são um bocadinho diferentes: tenho o registo limpo de todos os teus desvios e traições ao casamento. Isto desde há anos. Não estou a falar na tua menina da recepção, nem por exemplo das pegas de Nova Iorque que o teu amigo Heller te fornece, embora elas também constem da minha recolha. Não, tenho outras de calibre bem diferente...
Ouvia a respiração dele, ou melhor, o seu resfolegar. Tinha-lhe Icortado a fala. E o que para ele seria o pior de tudo, deixava-o sem se poder defender no meio daquele óptimo escritório. Não havia nada a fazer. Não podia protestar, não podia falar e, sobretudo, não podia berrar.
- Ai, sim? E posso saber de onde vem esse... conhecimento?
- Das pessoas especializadas em coleccionar essas coisas, - respondeu doce como mel. - É um bocadinho caro, mas como se vê, vale a pena. Trata-se de dinheiro bem aplicado, não achas? O meu adevogado brevemente te apresentará a minha colecção. Transformou-se num verdadeiro ficheiro. A imprensa também se divertiria muito com isto. Tenho a certeza absoluta. Até sou capaz de apostar.
A pausa tornou-se demasiado longa.
- Talvez devêssemos falar melhor no assunto - acabou finalmente por dizer. - Querida...
- Vamos com certeza conversar - esclareceu duramente.
- Nós os dois, Eva Maria. Entre os dois.
Então ouviu um suspiro ou seria ele também com falta de ar? Também a ele faltava o ar, ia ficar azul como o Peter?
- Quero dizer... acho que, como devo dizer? Não devemos dra... dramatizar estas coisas.
Para Eva Maria era uma imensa satisfação ouvi-lo gaguejar! Nunca, desde que o conhecia - e já lá iam dezasseis anos -, tinha vivido uma tal situação.
- Por isso sugiro que nos encontremos ainda hoje - disse depois lentamente.
- E onde?
- Em casa, querida. Onde havia de ser? Em casa, naturalmente. Bebemos uma boa garrafa de vinho enquanto falamos. Já conheces o meu lema e filosofia de vida: não apressar nada! E afinal para quê? Se pensarmos bem nisso, não passou de uma bagatela...
O vingador e autor de atentados Karl Roser estava em plena acção. As condutas principais de controlo do aeroporto de Frankfurt estavam alojadas numa caixa no interior das paredes de suporte e protegidas por uma tampa metálica. Tinha sido bem pensado. Mas as condutas tinham zonas em que se faziam as ligações, e aí, onde se encontravam as derivações, podiam fixar-se os dispositivos. Em frente do balcão da Ibéria, por exemplo. Lembrava-se perfeitamente por ter sido ele a montar, nessa altura, as caixas das ligações, voltando a aparafusar as tampas de plástico rígido que as tapavam. E do outro lado, junto às United Airlines, estava mesmo uma espécie de central de comandos onde tinham sido ligados os terminais das câmaras de vigilância.
Portanto, por onde começar? Karl Roser havia muito que tomara uma decisão. O corte de energia para a clínica fazia parte da “operação número dois”. Começaria por uma operação de aviso. com as câmaras...
Colocou a caixa das ferramentas sobre a plataforma do escadote, abriu-a, procurou as ferramentas apropriadas e começou a desapertar os parafusos. Estava agora completamente calmo e até o coração batia ao ritmo habitual. Dez minutos antes, ao entrar no aeroporto, tinha sido diferente. Nessa altura tinha tido dificuldade em controlar os movimentos das mãos. Mas agora? Era como se de algum modo tivesse conseguido ultrapassar uma última fronteira. Já não podia voltar atrás. Era exactamente essa certeza que lhe dava concentração e lhe devolvia a calma interior.
Era como sempre fora: fazia o que tinha de ser feito...
com uma alavanca levantou a tampa colocando-a a seu lado. Ali estavam os primeiros cabos. Estavam ali parecendo um feixe de nervos. Ao vê-los ganhou mais força na sua decisão e adquiriu novas energias.
Virou-se um bocadinho e viu cabeças... imensas cabeças. E em frente avistou dois uniformes. Fatos de combate. Eram da polícia de fronteiras. com metralhadoras.
Começava a ser interessante...
Karl Roser continuou a desaparafusar calmamente. Que é que as pessoas viam? Um electricista que usava um fato de trabalho igual ao de todos os trabalhadores do aeroporto. No bolso do peito brilhava, envolta em plástico, a sua placa de identificação de empregado do aeroporto. A falsificação do carimbo de segurança no cartão revelara-se fácil; bastou-lhe alterar uma data. Mais difícil fora fabricar uma ordem de trabalho falsa. Karl Roser conseguiu-o fazendo uma cópia da ordem de serviço através da qual o filho tinha sofrido o acidente. Quanta paciência, quantos pedidos e quantos contactos.
- Afinal somos velhos colegas; ao menos dá ao rapaz umahipótese!
Fora o preço a pagar para poder levar do escritório central a ordem de serviço do filho.
Os tipos da Polícia fronteiriça foram-se aproximando. De cabeças inclinadas, olharam para cima. Ainda mais aquela! Bem, ver-se-ia...
- Ouça lá, mestre - disse o mais alto com os galões no braço -, podemos ver a sua ordem de serviço? Já sabe como é...
Se sabia como era!
Fez um sorriso, meteu a mão no bolso das calças e desceu alguns degraus do escadote.
- Tome lá se faz favor...
Sentia as palmas das mãos húmidas. O chefe deitou uma olhadela para cima.
- Está bem - disse com um aceno de cabeça. -Agora veja lá, não caia daí abaixo. Ou será que sabe voar?
O outro riu-se. Ainda achavam aquilo muito divertido, os senhores. Até se espantam quando virem para que pode servir um escadote. Até se aproximar outra ronda teria acabado ali, a não ser que aparecesse a Polícia de Segurança do aeroporto.
Polícia de Segurança do aeroporto, guardas da fronteira, polícias, Alfândega, duzentos macacos velavam ali pela segurança. Até tinham tanques estacionados lá fora. E ele montava calmamente um pequeno detonador nas suas câmaras de vigilância. E nem sequer precisava de explosivo plástico.
Isso seria para depois. Se tudo corresse bem. Então voaria tudo em farrapos!
Mas para a meia dúzia de fiozinhos ali, bastava um detonador...
- Deixe-me ver... - O médico-chefe Dr. Fritz Hansen comprimiu cuidadosamente três dedos contra o corpo do grande homem grisalho que tinha deitado sobre a mesa à sua frente. - Faz-lhe doer?
Friedhelm Brunner, chefe da Polícia de Segurança do aeroporto de Frankfurt soltou um gemido abafado e fechou os olhos.
- E se agora se deitasse um bocadinho sobre o lado... assim. Aqui? E isto?
Brunner gemeu baixinho.
- Sim, senhor - disse Hansen -, tem aqui um lindo hematoma. Mas nada mais grave que isso. Tem uma contusão nas costelas. Mas nos rins não tem nada; reflectirse-ia atrás.
Brunner encolheu os ombros.
- Sente-se, quero voltar a observar-lhe as costas... - Hansen continuou a apalpar, observando Lucrécia Bonelli, que o olhava. Sorriu-lhe. Quando Brunner entrara, fora a primeira a ocupar-se dele e por isso estavam agora a trabalhar juntos.
Lucrécia? Luzi, como lhe chamava o enfermeiro-chefe Wullemann e Hansen recordava-se agora de como a princípio achara bonito o nome “Lucrécia” e de como por vezes o recordava com devoção. Nisso Wullemann tinha razão. Luzi ficava-lhe melhor. Luzi, a simpática e atenciosa que tinha sempre o cuidado de arranjar as coisas de maneira a que não tivessem nunca de trabalhar em conjunto.
- Tudo em ordem! - Hansen apalpava carinhosamente as musculosas e endurecidas costas de Brunner. - Agora os dedos... Ora bem, um inchaço muito lindo. Temos de fazer uma radiografia. Não parecem estar partidos, ainda temos de verificar, mas um entalão destes prejudica a circulação e pode causar complicações. Quer que lhe dê baixa?
- Pois é, o senhor fala bem - disse Brunner -, mas quem é que faz o meu trabalho?
- O senhor parece ser tão idiota como eu.
- com certeza absoluta ainda mais, Sr. Doutor.
- Onde é que foi arranjar isto tudo?
- Onde? - O olhar venenoso que Brunner deitou para a porta abrangia todo o aeroporto. - Gosta de futebol, Doutor?
Hansen abanou a cabeça.
- Mas eu gosto. Sabe do que me lembrei hoje outra vez? Que os homens se dividem em três grupos: primeiro, os idiotas chapados; segundo, aqueles que o fazem a si de idiota e se aproveitam disso; terceiro, aquela meia dúzia de tontos que tem de limpar a merda dos outros.
- Muito bem dito, Sr. Brunner. - Hansen sorriu. - Eu também sou dos que estão sempre a limpar. Mas deixemo-nos de filosofias. Que foi que se passou?
- HSV contra Frankfurt, foi o que se passou! Um jogo amigável. Amigável com letra grande. Logo no estádio começaram à pancada. Depois entrou pelo átrio dos voos domésticos um bando hululante de árabes. E que fizeram eles? Atiraram latas de cerveja uns aos outros, agarraram uma rapariga, queriam tirar-lhe a saia, arrancaram-lhe a blusa. Ainda por cima era uma hospedeira, uma siamesazinha da Thai-Airways... Conseguimos safá-la e os manos piores estão agora na cadeia. Mas até o conseguirmos... bem! - Sorriu para o lado. - Já está a ver.
- Vejo e repito: posso dar-lhe baixa, Sr. Brunner. E com a melhor das consciências.
Em vez de responder, Brunner agarrou no casaco. No momento em que estava a tirá-lo da cadeira, o transmissor que ainda trazia debaixo da camisa, começou a chamar. Era um zumbido forte.
- Está a ver? - Torceu os lábios e pegou no aparelho. - Brunner! Sim. Onde? Certo. Percebido. vou já...
Levantou a mão ligeiramente e disse, sorrindo preocupado:
- Adeus, Doutor. Tenho de... ainda por cima nos terrenos de acesso. Lá fora, digo-lhe eu, está talvez a formar-se um ciclone! Nunca assistiu a um?
- Eu? Eu nem sequer tenho tempo de espreitar pela janela, Sr. Brunner.
- Bem, então continue a limpar! - disse Brunner. - E muito obrigado...
A porta fechou-se. Era demasiado tarde quando se lembrou de que queria ainda falar de uma coisa com o Brunner. De que se tratava? Ah! Sim. Aquela sinistra história com os ferros para betão. Acidente no pavilhão cinco. O jovem, a vítima, ainda estava em perigo. Hansen já se tinha informado três vezes. De qualquer modo, ia andando... Restava a ameaça que o pai dele tinha feito: “Hei-de mandar aos ares esta barraca toda...”
Bem, apesar da costura que tinha no queixo por causa daquela história toda, a ameaça não era para levar a sério. Para que havia de sobrecarregar Brunner com ela. Esse já tinha que chegasse.
Hansen dirigiu-se à janela e olhou para fora para o mau tempo.
Os homens que andavam no trabalho seguravam os bonés. As pernas das calças batiam com o vento. Por cima do betão viam-se nuvens de pó a voar, empurrando farrapos de papel à sua frente.
O ciclone vinha do Nordeste. No centro da meteorologia já tinham assinalado a movimentação das baixas pressões. Anéis quase concêntricos que se moviam do mar do Norte sobre Berlim e Leipzig na direcção da França e, sobretudo, a uma velocidade considerável. Do Departamento de Meteorologia indicavam velocidades de vento ciclónico que iam de cento e vinte até cento e trinta quilómetros por hora, o que significava virem a ter problemas.
Esperava-se que a frente meteorológica fosse por volta das dezasseis horas, portanto, exactamente na altura em que o tráfego aéreo atingia o seu ponto mais alto e o pessoal da torre de controlo se atarefava com a chegada e a partida de algumas dúzias de aviões. Metade correspondia a voos de longo curso que beneficiavam de tratamento prioritário.
Se o ciclone não diminuísse de intensidade e obstáculos como o Harz, a floresta de Thúring ou o Reno não o travassem, haveria problemas em casa: desvios, atrasos, problemas nas aterragens e descolagens. Uma situação daquelas podia alterar por completo o curso da vida daquele monstro de organização tecnológica.
- Agora vai começar! - disse Brunner lá fora aos seus homens Rabe e Scholz.
O céu tornara-se cinzento-escuro. Nuvens imponentes como montanhas corriam a grande velocidade por cima dos fios de alta tensão e dos edifícios. As cores alegres das companhias de aviação, o prateado brilhante das máquinas enormes pareciam sujas e baças. Na varanda dos visitantes corriam as últimas pessoas, dobradas para a frente agarradas aos chapéus, procurando abrigo no edifício.
As partículas de pó que o vento atirava contra a cara de Brunner queimavam como pontas de agulhas. Ainda por cima aquelas dores no dedo inchado, a picada no tórax...
Expulsão de exilados! Meu Deus, como odiava aquelas tarefas! E ainda por cima aquele tempo de merda!...
Exilados? Já ali os tinham tido de todos os países. Indonésios, libaneses, palestinianos, sul-americanos, indianos, jugoslavos, checos, cubanos. Nos últimos tempos até russos e ucranianos. Naquele dia até fora um “bimbo” e o caso era com ele. Tinham-lho passado. Um africano da Nigéria...
Que fazer com um nigeriano, que ainda por cima era um rebelde? pensou Brunner, enquanto as solas dos sapatos mergulhavam em rios de água e a chuva lhe molhava o pescoço.
- É ali em frente no B42 - gritou um dos da patrulha -, mesmo por baixo dos trânsitos, ao pé dos transferes por autocarro.
Já não era chuva, era granizo! Um nigeriano no granizo... Havia milhares daqueles pobres diabos que eram devolvidos para a miséria como encomendas postais pelo paraíso dos marcos e do toucinho.
Mas era mais um, pensou Brunner, que não lhes ficaria muito tempo pendurado na labita...
Fosse qual fosse o ponto de vista sob o qual se encarasse o assunto, seria sempre um trabalho de merda. Deviam ser os carimbadores profissionais com as suas burocracias a meter os pobres diabos no avião! Mas esses não molhavam os rabos.
- Mais para a direita. Para o lado dos transferes por autocarro!
Rabe teve de gritar, e mesmo assim a sua voz mal se ouvia no meio do ruído da tempestade. Scholz, o segundo homem da patrulha, correu para a frente e desapareceu na chuva.
- O nigeriano tirou pura e simplesmente a pistola ao polícia? - gritou Brunner, estando já um tanto sem fôlego. - Como é que ele conseguiu isso?
- Não faço ideia, chefe! O colega devia ser um grande nabo.
- Bem, já vamos ver isso. De qualquer maneira nem toda a trampa nos diz respeito. Somos da segurança e isto é caso para a Polícia. Neste caso, que significado têm os reforços? Para que precisam eles de nós?
- Faz-me demasiadas perguntas, chefe - gritou-lhe Rabe no meio do barulho. - Isso vai?
- Tem de ir!
Um raio, um único risco de fogo branco-azulado, rasgou o céu. Depois o trovão e logo a seguir uma nova chuvada. E de que maneira!
Era uma chuva como aquela que pedia dançando a dança dos antílopes com os seus irmãos de tribo em Zaranda, até que o céu finalmente os ouvia e mandava as suas nuvens...
Namdi tinha-se escondido no canto mais afastado do camião azul. O granizo batia agora nos aviões. O nigeriano estava sentado num caixote. A julgar pela etiqueta, era um caixote de ferramentas. Ferramentas para quê? Não era importante. Nada era importante. Só aquela coisa que tinha na mão, a pistola, era importante! Uma pistola automática de 9 mm com um carregador de doze balas.
Namdi sabia utilizá-la. Antes de os padres conservadores o terem mandado para a escola de engenharia em Kano tinha sido militar. Mas aí tinham-no expulsado por ele pertencer à tribo dos Ibos. Antes dos exames teve de sair da escola. Foi então que começou a sua grande viagem como passageiro clandestino, no porto de Lagos. Mais portos, polícias, às vezes prisões. Depois Espanha, onde com um primo vendia jóias falsas nos mercados da província. E depois sempre para mais longe, pois a Polícia não o largava. França, Suíça. Finalmente a Alemanha com que todos sonhavam e que durante dois anos aparecera ao nigeriano Namdi como um paraíso. Tinha encontrado Anna. Ela recolhera-o, amara-o e tudo parecia maravilhoso...
Até ela dizer:
- Recusaram a tua licença definitivamente. Vêm buscar-te, Namdi. Não posso fazer nada contra isso...
Tinha sido a semana anterior na sua pequena casa em Mannheim. Não tinha acreditado. Não podia acreditar.
Mas tinham lá ido. E ali em frente estava agora o avião para o Laos. Ainda estava à espera. Os outros já lá estavam dentro e a Polícia ainda se encontrava lá fora ...
“Primeiro têm de me matar!” Tinha-o pensado quando a chuva começara a cair e ele assaltara o polícia, lhe tirara a pistola da mão, encarara o rosto molhado do agente e desatara a correr.
Agora segurava na pistola, dava-lhe voltas na mão olhando para o feio buraco preto no cano de metal.
Não, tu não! Os outros é que sim. Não faz doer. Já tantos morreram. Por que não eu? Mas têm de ser os polícias a fazê-lo...
Namdi recostou-se e fechou os olhos. Ficou à escuta. Todos andavam à sua procura. Se ao menos Anna ali estivesse... Mas ela não tinha tido tempo. Também, para quê? Para ver como ele era arrastado para o avião como se fosse um pedaço de carne de bovino? Teria chorado. Ou ralhado com os homens de uniforme, como tinha feito a mãe dela quando tinham ido buscar o pai. Certamente que o teria feito. Então Anna teria sido provavelmente levada para um carro da Polícia, como ele tinha sido... Anna! Querida, querida Anna...
Sentiu que as tremuras voltavam, um tremor vindo de dentro. Apertou os braços contra o corpo, as mãos e esfregou as costas pelo caixote. Namdi cerrou os dentes. Isto não!
As suas mãos, aquelas mãos hesitantes e trémulas, esfregaram a camisa. Estava encharcada. Sentia-se gelado. A carteira? Estava ali! Abriu-a mas estava demasiado escuro para poder ver a fotografia de Anna. Era uma bonita fotografia. Fora feita por um fotógrafo de rua quando andavam a visitar o castelo de Heidelberg. E Anna ria de uma forma encantadora. Naquele momento, teria visto com gosto aquele riso. Ter-lhe-ia dado novas forças.
Através da chuva ouvia-se agora o ronco de um motor a jacto. Depois um segundo, um terceiro, um quarto...
Talvez fosse o avião que partia para Lagos? Não iria certamente esperar por um qualquer Namdi Sokoto. Os aviões alemães partem pontualmente, como os comboios alemães. Talvez...
Namdi deu um salto. Estava alguém no carro onde se encontrava sentado. Sim, claramente. Agora ouvia mesmo uma voz, sentia passos.
Namdi Sokoto sentou-se muito direito e como se tivesse sido tocado pela mão de um anjo, as tremuras e o medo desapareceram. Sim, agora estava absolutamente calmo.
“Venham”, pensou, “venham.” E empunhou a pistola.
Eles foram.
Levantaram o encerado. A primeira coisa que Namdi viu foi uma cara jovem, molhada e espantada sob um boné contra a chuva.
O rosto voltou a desaparecer mas então apanhou em cheio com a luz de uma forte lanterna de mão. Apanhou-o com tanta violência que teve de fechar os olhos.
- Saia daí!
Não era a voz de um jovem, era a voz de um homem de mais idade que sabia exactamente o que dizia.
- Sabe falar alemão, Sr. Sokoto?
A pistola na mão de Namdi vacilou. No entanto, a mira continuava apontada ao alvo.
- Sim, sei - disse ele -, um bocadinho. O suficiente.
- Muito bem - respondeu a voz. - Isto é, bem não está nada. E o que aqui se passa, Sr. Sokoto, pode acreditar-me, é para mim tão desagradável como para si. Mas nenhum de nós pode alterar nada. Por isso, faça o favor, seja sensato...
Namdi sentiu a raiva subir dentro de si. Falavam todos da mesma maneira. Diziam sempre a mesma coisa. Que não podiam alterar nada. Tinham a boca engordurada das mentiras que diziam, de modo que não se percebia as feras que realmente eram.
- Então? - perguntou a voz.
A luz que quase lhe rompia as pálpebras envolvendo-lhe os olhos, numa mancha vermelha tornou-se mais fraca. Namdi olhou para a frente. O encerado estava virado para trás e ele viu um homem de ombros largos e cabelos grisalhos. Tinha ambas as mãos espalmadas sobre o fundo do carro e estava desarmado. Pelo menos não tinha nenhuma arma na mão, segurando só a lanterna cujo foco orientava para o meio do carro.
- Então?
- Então o quê?
- Ainda pergunta? Está a ver, Sr. Sokoto, essa coisa aí na sua mão, esse canhão não lhe pertence. Tirou-a a um dos meus colegas. Por isso, tfaça o favor de a colocar exactamente no sítio para onde tenho a luz apontada. Também a pode atirar. Por favor.
Namdi não se comoveu. Tentava respirar calmamente, coordenar os seus pensamentos.
- E você? - perguntou então -, você não tem medo?
- Ora, Sr. Sokoto. Para que lhe serve uma resposta? Que diferença faz se lhe disser que talvez eu esteja com tanto medo como o senhor?
Mas está a ver... também tenho medo por si. Está aqui um círculo completo de homens que não têm pistolas mas sim metralhadoras. E se nós os dois, ou só um de nós, você ou eu, agora cometermos o mais pequeno erro, então começa a função. Nessa altura eles disparam. Não disparam só para o carro, disparam também contra si transformando-o num crivo.
Namdi acenou como alguém que tivesse obtido exactamente a resposta que esperava.
- Então é isso que eles devem fazer - disse ele.
- Não, não devem. Só depende de si.
- São cobardes - disse Namdi. - Cobardes e mentirosos... o senhor fez o possível... agradeço-lhe... sinceramente agradecido.
Então aconteceu tudo muito depressa. Antes de Brunner poder reagir, Namdi Sokoto esticou as pernas, levantou o joelho esquerdo, encostou a coronha da arma à coxa, fechou os olhos e puxou o gatilho.
A força do tiroteio atirou com ele do caixote abaixo. A pistola caiu no chão do carro com um ruído metálico indo a escorregar na direcção de Brunner. Namdi Sokoto ficou deitado no chão gemendo enquanto apertava as feridas e a luz da lanterna iluminava as poças de sangue que se tornavam cada vez maiores.
- Caramba, que grande porcaria! - murmurou Brunner entrando no carro. - Que lindo serviço, Sr. Sokoto! Dói-lhe muito?
“Que pergunta tão estúpida”, pensou no momento em que a fez. Virou-se para trás e berrou:
- Uma ligadura! Algum de vocês tem aí uma ligadura?
O soro começou a ser ministrado no mesmo instante em que o jovem médico Dr. Fred Wicke parou a ambulância na entrada B42.
Bem necessário era. Aquele pobre desgraçado tinha perdido litros de sangue.
O Dr. Hansen afastou as compressas que Wicke tinha colocado. Era então aquilo. O nigeriano devia ter colocado o cano da pistola mesmo encostado ao corpo. As feridas estavam rodeadas de queimaduras.
- Ferimentos de tiros na parte interior das coxas, a cerca de dez centímetros da articulação do joelho - disse como se estivesse a ditar um relatório. - Percurso transversal. Saída... sim, aqui. Nada mal!
Hansen já tinha visto muitos ferimentos provocados por balas, grandes como punhos, feias crateras. Como, por exemplo, as do polícia que os bandidos de Hannover tinham alvejado...
Era uma pistola de serviço de 9 mm, tinha esclarecido Brunner. Um disparo de uma arma daquelas desenvolvia uma forte energia cinética. Se os ossos tinham ou não sido esmagados só a radiografia o poderia dizer...
- Britte, chega-me a sonda. bom. Agora a pinça.
Começou a observar sentindo a ligeira e involuntária contracção dos músculos do ferido quando metia a pinça nas feridas das balas onde via qualquer coisa mais clara. Um osso? Talvez uma esquírola...
Endireitou-se e ficou a olhar para o corpo escuro e brilhante do paciente, estendido sobre a mesa de observações. Apesar da máscara de oxigénio podia ver que o canto esquerdo da boca estava ligeiramente contraído para cima e que o rosto do africano dava a ideia de estar a sorrir num leve e quase irónico sorriso. Era um rosto bem esculpido. Logo ao princípio Hansen ficara impressionado com aquele rosto comprido, quase nobre, no qual se lia uma calma de pedra apesar de estar a sentir não só o medo do animal selvagem capturado como também as dores provocadas pelos ferimentos.
Comprimiu-lhe ligeiramente as costelas:
- Consegue ouvir-me?
- Não consegue-informou-o a Dr.a Maier-Blobel, a anestesista. .- Dei-lhe uma boa dose.
- Quase novamente normal.
- Penso que devemos baixá-la um bocadinho. A femoral deve ter sido atingida, a artéria principal que percorre a perna. vou agora [laqueá-la. Depois tem de ir para a clínica. Aí prestam-lhe os restantes cuidados. Já fizeram as radiografias?
- Sim.
’, - O importante é que siga depressa. Assim que lá chegar, laqueiam-lhe a femoral e deixam a circulação processar-se livremente. Não conseguem chegar lá antes de uma hora e meia, portanto, toca a andar! Britte, o bisturi...
Hansen deu um golpe nos tecidos queimados pelo disparo e foi mais fundo até encontrar a cápsula azulada da bala. O homem continuava a sangrar. O próprio garrote não fazia mais que alterar muito pouco o afluxo de sangue. As pequenas e difusas hemorragias ali podiam ser facilmente estancadas com as mechas.
- A pinça grande. - Sorriu para Britte que já tinha o instrumento na mão. A rapariga faz-se, trabalha bem, no entanto havia qualquer coisa que não lhe agradava. Tinha de falar com ela... As ideias que vinham à cabeça em tão poucos segundos! Apertou duas ou três artérias médias pela base e atou-as com o fio de catgute. Mais rápido! O homem precisava de um cirurgião vascular. Raios! Ainda por cima tinha de andar à procura! Agora puxar para fora. Finalmente a femural estava livre. Colocou-a cuidadosamente ao lado apertada com uma pinça. Cuidado... - Aqui preciso da pinça de Pott... obrigado.
- Agora! Fio. Agulha. Fazemos uma costura frontal.
Que se seguia? O tempo. Santo Deus! Levara mais tempo do que pensara. Diatermia? Não, com os grampos metálicos é mais simples e mais rápido...
- Grampos! - disse laqueando mais duas pequenas veias que poderiam sangrar. Pronto, pensou, toca a andar com ele! É como na corrida de estafetas. Esta vamos nós ganhar... sem problemas. Além disso, o homem vai chegar ao hospital às mãos dos colegas relativamente bem preparado...
Endireitou-se e olhou para Wullemann que acabava de entrar na sala de operações.
- Toca a andar com ele, Fritz!
Em frente de Hansen, sobre a secretária, estava uma fotografia.
Pegou-lhe e ficou a olhar para ela: a fotografia mostrava uma mulher nova, calculava ele que com cerca de 35anos. Usava uma fita azul larga na cabeça apertando-lhe os muitos caracóis castanhos-arruivados. Olhava directamente para a câmara e ria-se...
A outra cara que espreitava por cima do ombro da mulher era morena, quase preta. Era um rosto que ele conhecia. O rosto do homem que estava na sala de operações. Em segundo plano via-se a silhueta do castelo de Heidelberg.
Hansen lembrou-se da cena anterior, das manchas escuras nas faces de Sokoto, do brilho mortiço dos olhos escuros do nigeriano, das palavras:
- Sr. Doutor, na minha camisa... uma fotografia. Por favor! Pegue nela... tem lá escrito um número de telefone. Senhora Anna Schmidt. Mannheim. Por favor telefone...
Hansen prometera.
Virou a fotografia. Lá estava. Realmente, lá estava em letras bonitas, como que desenhadas, em letras grandes: ANNA SCHMIDT, MANNHEIM-KÃFERTAL. Por baixo o nome da rua e o número.
Pegou no telefone e marcou o número. Levou bastante tempo a tocar. Finalmente, quando já ia a desligar, atendeu uma voz tímida, a voz de uma rapariga muito jovem.
- Faz favor... quem fala?
- Um amigo de Namdi Sokoto.
- Namdi?... Da parte de Namdi?
- Sim. E tu, como te chamas?••.
- Barbei.
- Escuta, Barbei. A mãe está aí? Posso falar com ela?
Ouviu vozes abafadas e ali estava ela, a mãe:
- Schmidt.
- Srª Schmidt! Fala da clínica do aeroporto. Hansen.
Uma funda inspiração e depois baixinho, em voz abafada:
- Sim?
- Infelizmente, aconteceu uma coisa com o Sr. Sokoto.
- Sim?
- O Sr. Sokoto teve... teve um acidente com uma arma de fogo. Provocado por ele mesmo. Sou o médico de serviço. Pediu-me que lhe telefonasse e que a informasse.
Uma longa pausa, interrompida pelo ruído de uma respiração nervosa. Finalmente disse:
- E o avião?
- Como?
- O raio do avião? - quase que gritava. - Ele não partiu no avião?
- Mas como, Srª Schmidt? Estou a tentar dizer-lhe...
- Então ele ainda aqui está?
- com certeza. Está no Hospital da Cruz Vermelha. Posso dar-lhe a morada...
- Não é preciso. Não o quero. Oiça lá: Telefone-lhe! Sabe onde o meteu. Diga-lhe que... diga-lhe que já não posso mais... E diga-lhe ainda que também não quero mais. De outro modo ele não percebe... Ele não percebe nada, absolutamente nada...
- Mas... Srª Schmidt, pelo menos podia...
- Não posso nada e nada farei... O senhor também não me percebe. Ninguém percebe o que isto significa, toda esta chicana, toda esta arrelia. Ele é um tipo amoroso, sim, mas não consigo suportar isto! E, sobretudo, onde é que vou buscar o dinheiro? Tenho dois filhos. Não possso andar com o tipo atrás o tempo todo. Sim, como é que vocês julgam que posso suportar tudo isto?
A última coisa que Hansen ouviu foi um soluço descontrolado. Depois ela desligou.
Pegou num cigarro. Tornara-se fácil. Bastava-lhe levantar a tampa da pequena caixa de madeira que se encontrava do lado direito da secretária. A caixinha era muito bem entalhada. Na tampa dançavam pequenas figuras de mulher com véus amplos. Ao pé delas viam-se flores de lótus, palmeiras e até elefantes. Evi tinha-a trazido da índia.
ELE É UM TIPO AMOROSO MAS Eu NÃO CONSIGO SUPORTAR ISTO...
Naquela situação? Por que razão não procurava aquela mulher ao menos ajudar um pouco? Raio de egoísmo! “Não, ela também tem a sua história pessoal que tu não conheces. Esquece o assunto. Tem finalmente juízo e isso só tem um significado: pensa nas coisas que tens de ser tu a fazer! Ou pelo menos pensa em qualquer coisa agradável. Deve haver ainda qualquer coisa agradável que tenhas de fazer...”
O RAIO DO AVIÃO, ENTÃO NÃO O LEVOU?
Hansen levantou-se e esfregou a ponta do cigarro no cinzeiro até o apagar. Querias comprar rosas! E uma lata de caviar. Mesmo que seja diabolicamente caro e Evi não lhe dê grande importância por estar sempre a servir as bolinhas pretas ou vermelhas aos passageiros de primeira classe. Tu gostas, portanto... E às dezoito horas e cinco ela aterraria. LH 449. De Houston.
NÃO POSSO ANDAR com O TIPO ATRÁS O TEMPO TODO...
Evi é o tema. Concentra-te!
Havia uma pequena dificuldade? Certo. Na tabela de serviço. Uma troca na tripulação de serviço. E por isso, tinha ela dito, até podia nem ser o voo 449, possivelmente seria o 437 no dia seguinte...
- Mas para confirmares é de uma simplicidade infantil.
Só precisava de ligar um desses superinteligentes números da LH que ela lhe tinha deixado.
Onde tinha ele metido o raio do bilhete?
Hansen abriu a gaveta e revolveu tudo à procura. Cartas. Toda a espécie de escritos. Um embrulho com uma máquina de barbear de plástico. Que estava aquilo ali a fazer? E ali, sim, nas costas de um cartão de visita todo rabiscado, foste tu que ...
QUE QUEREM VOCÊS TODOS AFINAL DE MIM?
A mulher tinha mesmo gritado ao telefone. Nada, Srª Schmidt. Mas talvez esteja aí alguém que ele tivesse esperado... Hansen discou o novo número da Lufthansa.
- Posto de atendimento catorze - respondeu uma voz fresca de mulher - Como? Quem? Ah! Sim... Um momento, Sr. Doutor.
Fritz Hansen ouviu o ruído leve do teclado do computador e novamente o falar cantado e seguro, educado e paciente do pessoal da LH:
- Sim, a Evi Borges foi substituída. Chega amanhã no voo LH 437. Hora prevista de chegada...
- Já sei - disse Hansen. - Dez e cinquenta e cinco.
E desligou.
Doíam-lhe as costas.
Deixou-se ficar sentado a contemplar as unhas de cirurgião cortadas rente e a pele rosada pelas muitas lavagens com os produtos anti-sépticos. Acabou por se levantar, saiu da sua sala e encontrou a três metros da porta um homem alto que coxeava ligeiramente.
- Agora não me vá dizer - disse sorridente Brunner dos serviços de segurança do aeroporto -, que só lhe faltava eu!
- Pois - respondeu Hansen com azedume -, é isso mesmo que eu digo.
- Já calculava.
Hansen voltou a abrir a porta apontando para a cadeira das visitas.
- Por favor, pode sentar-se, mas eu fico de pé. Já sei o que se segue: temos de mandar este Namdi Sokoto para África sob prisão. Correcto? Mas não aqui, Sr. Brunner. Já despachei o nosso amigo. Vá ao Hospital da Cruz Vermelha, se não puder deixar de ser.
- Ora, Doutor... - Brunner fechou os olhos. - Tenho tanta pena do desgraçado como o senhor.
Então Hansen sentou-se.
- Acabo de falar ao telefone com a amiga dele. Uma mulher chamada Anna Schmidt. Aqui... aqui está ela.
Empurrou a fotografia para junto de Brunner por cima do tampo da secretária.
- Olhe bem para ela. Essa acaba de gritar comigo. E sabe porquê? Porque o avião não o levou para Lagos ou lá para de onde ele veio.
- Bem Doutor, as coisas são assim...
- Que é que é assim? Nós é que somos assim, Brunner. Nós! Quer que lhe diga uma coisa? Nós os médicos temos um ditado que dizemos sempre antes do trabalho para não cometermos grandes erros. É assim: “Não podemos sofrer todas as dores, morrer com todas as mortes...” E é bem certo. Podíamos só acrescentar, Brunner, “não podemos viver todos os destinos”. Certo. Também está correcto. Mas sempre se podia ter um pouco mais de compaixão e envolvimento pessoal, não acha?
Brunner não disse uma palavra. Estava simplesmente ali sentado a olhar para o médico. Até os seus olhos eram cinzentos. Era a primeira vez que Hansen reparava nisso.
- Pelo menos devia-se tentar, Sr. Brunner. Pelo menos é o que eu penso. Se ao menos o tentássemos, de vez em quando, isto aqui seria bem diferente.
Brunner continuou calado e Hansen pegou noutro daqueles malvados cigarros.
- Dá-me também um? - perguntou Brunner. - A propósito, estou aqui por um motivo muito diferente. Gostava muito que agora me cortasse o dedo. Dói-me horrivelmente.
- Bem, deixe-me ver...
- Tens uns lindos olhos... Como se diz, azul-flor-do-trigo? Qual tiramos primeiro? O olho esquerdo, ou o direito? Uma das flores de trigo vais tu perder. Não passa de uma pequena picada.
Ela deu um salto. A voz estava novamente a seu lado. A voz do monstro desconhecido, do homem de ligação com a Mafia, Radonic. Às vezes no trabalho conseguia fugir-lhe, mas depois voltava a cair nos sonhos. Devagar, baixinho, ameaçador.
Na noite em que a tempestade se abatera novamente sobre Frankfurt, Britte Harppel tinha corrido as gelosias da sua casa e tinha tomado comprimidos para dormir. Era o seu dia de folga depois de uma semana de serviço nocturno. Mas a porcaria dos comprimidos não ajudavam nada. Tomava-os cada vez mais fortes. E durante o dia precisava de toda a sua força, toda a sua vontade para poder aguentar, mesmo assim, durante o trabalho, as mãos tremiam-lhe. Talvez Hansen tivesse dado por isso, os outros não; nunca diziam nada.
Britte sentou-se, tirou as pernas para fora da cama e comprimiu as mãos fechadas contra as pálpebras doridas.
- Só uma picadela? - tinha dito o porco. Tinha a sensação de ter recebido dúzias... centenas de picadelas.
Levantou-se com dificuldade, tentou equilibrar-se dando dois ou três passos inseguros, dirigiu-se à janela e levantou as gelosias. Chuva. Já não tão forte como anteriormente mas sempre a mesma desconfortável e cinzenta humidade. Os carros passavam de faróis acesos. Britte olhou para o relógio: sete horas. Dirigiu-se à cozinha para ir buscar uma água mineral. No corredor passou pelo espelho e viu-se reflectida: aquilo era ela? Olhos inchados, o cabelo desgrenhado e a boca flácida.
Tirou a garrafa do frigorífico e bebeu como se estivesse a morrer de sede. Numa grade, junto ao frigorífico, havia mais garrafas. Garrafas de vinho vazias. Era sempre assim. Quando estava de serviço à noite, Elli dava uma festa no apartamento que compartilhavam. E Ewald, esse pedaço de homem único e incomparável na sua falta de qualidade, passava então essas noites com ela, pois não é verdade? na sua água-furtada era tudo muito apertado e nem sequer tinha uma alta fidelidade... Ewald começava com Tchaikowsky e acabava sempre com soul. Britte assistira uma vez e não conseguira dormir com o barulho que eles faziam.
A mão tremia-lhe novamente. Não, não tomaria nenhum comprimido. A água mineral ajudava um pouco. Ewald que fosse para o diabo. Elli bem podia ir com ele. Rolf Grafe que fosse também para o diabo. E Hubert Lawinsky? Como é que Radonic tinha dito? “Esse pode ser cem vezes comissário de bordo e dar a volta ao mundo - ninguém consegue esconder-se de nós...”
O diabo já tinha tomado conta de Hubert.
Sim, os homens que fossem todos para o diabo...
Bateram à porta. Quem seria? De acordo com as horas, devia ser Elli. Talvez tivesse esquecido as chaves.
Dirigiu-se à porta vestida unicamente com as cuequinhas e uma camisola interior. Movida por um qualquer pressentimento, girou a tampinha metálica do óculo da porta e espreitou para fora. Viu uma gabardine toda molhada e por cima o rosto de um homem. Aquela boca, era... não podia ser!
Na casa de banho puxou o roupão de turco azul do cabide e enfiou-o rapidamente. Hansen? O chefe? Que queria ele dali? Se era realmente ele e a visse daquela maneira...
Apesar disso abriu a porta. Era realmente Hansen com o cabelo completamente encharcado, escurecido pela água e com a cabeça a pingar. No rosto um sorriso meio envergonhado, meio divertido.
- Sr. Doutor!
- Sim senhor. Em pessoa. Estás espantada, não estás rapariga?
Britte apertou o cinto do roupão em volta da cintura.
- Acabei... acabei agora de me levantar... Apeteceu-me dormir mais um bocadinho. Já sabe como é nos dias de folga. Ainda por cima este temporal horrível.
- Bem podes dizê-lo. Temporal horrível. Esteve assim o dia todo.
Hansen olhou por cima do ombro dela para além do corredor.
- Tens isto muito bonito. Bonita passadeira. Muito alegre.
Ela fez um aceno de cabeça.
- Posso entrar?
Ela deu dois passos atrás em silêncio.
- Estou um bocadinho... bem, ainda não estou muito bem acordada. Além disso, pareço um espantalho.
- Tu? Não consegues. - Hansen avançou, passou por ela, meteu a cabeça na sala de estar, depois pela porta entreaberta da cozinha, virou-se e mostrou de repente um rosto sério e preocupado. O rosto de um homem que percebe que está a comportar-se de forma pouco correcta.
- Estou a maçar-te?
- De modo nenhum.
- Vamos, deixemo-nos de cerimónias. Claro que estou a incomodar-te e podes pôr-me na rua. Sabes, só queria saber de ti. Pensei que podia ser muito bom.
Ficou a olhar para ele. Voltou a sentir as estúpidas lágrimas subirem-lhe aos olhos.
- Também tirei um dia de folga. A Evi ficou retida em Houston. Então disse cá para comigo: “Que ficas a fazer em casa? Por que não vais até Sachsenhausen para jantar? Britte mora lá, na Schongauerstrasse. E aí, mesmo à esquina, fica o meu restaurante grego preferido. Portanto, passas por casa dela e perguntas-lhe se ela não quer acompanhar-te.”
Ela continuou calada.
- Então, que achas da ideia?
Tinha estado o tempo todo a tratá-la por tu. Normalmente não o fazia; só quando estavam a trabalhar. Por que o fazia agora? Não por arrogância, não era desse género.
As lágrimas caíam-lhe dos olhos e ela não podia já evitá-las.
Ela voltou-se e tentou ir para o seu quarto, mas ficou parada, encostou-se à parede e disse:
- Estou histérica, Doutor. Eu sei.
- Há razões para tudo, Britte. O caso não tem nada a ver com histeria.
- Sim... fiquei histérica por ainda haver quem se preocupe comigo.
- Mas, menina...
- E porque foi o senhor quem se preocupou.
- Não sejas injusta, Britte! Não fui só eu. Fritz Wullemann também me disse que temos de cuidar de ti. E se não tens nada contra isso...
Agora ela soluçava, tinha as mãos nos olhos comprimindo-os como se desse modo pudesse afastar tudo o que a afligia.
- Britte - disse ele com ternura -, agora vou até ao restaurante Atenas. Espero lá por ti. Fazem lá uma excelente retsina. E pastéis de queijo fresco. E uma coisa qualquer que embrulham em folhas de parreira. Espero lá. E tu agora não te ponhas a lavar o cabelo ou a enfeitar-te de qualquer outra maneira. Podes fazer uma trança, isso podes. Fica-te sempre muito bem. E depois vens mesmo assim. combinado?
Ela acenou com a cabeça.
- Isso é inacreditável! Ele queria com uma tesoura... os teus olhos...?
Britte acenou que sim. Mas agora, olhando para a cara de dúvida que Hansen fazia, também a ela toda a cena aparecia como inacreditável. Radonic, Ubert Lawinsky... no seu subconsciente apareciam como figuras de filme de terror, já não eram gente de carne e osso.
- Um sádico - disse Hansen suspirando.
- Não tenho tanto a certeza disso, Sr. Doutor.
- Não? Mas ele...
- Talvez estivesse só a fazer de conta, penso eu às vezes. Para ele tudo aquilo não passava de uma espécie de rotina.
- Bem, por amor de Deus...
- Rotina fazendo parte do trabalho dele, quero eu dizer. Ele queria saber onde se esconde Lawinsky por ele ter roubado os onze mil marcos da Mafia sul-americana. Como eu não o disse a esse Radonic, ele tentou arrancar-me a informação. com os meios que possui. Não passa de um profissional, um mafioso ou qualquer coisa assim, embora as pessoas os imaginem de outro modo. Tinha mais o aspecto de um professor de música adiposo. Mas sabia o que estava a fazer. Até me deu à despedida alguns bons conselhos. Que deveria deixar o Lawinsky em paz, pois eles ainda acabavam por ter de o matar. Certamente já o fizeram...
- Como sabes isso?
- Encontrei um dos seus colegas, que também é comissário na companhia aérea australiana Qantas. Foi ele quem me disse, quer dizer, tentou dizer-mo com todo o cuidado, mas mal pronunciou as primeiras frases, fiquei a saber o que se tinha passado.
- E que foi que se passou?
- Os pais dele tinham algures em Brisbane uma casa de campo. Falou-me muitas vezes nisso. Certamente tirou férias da Qantas e depois cometeu o erro de ir para lá.
- Assassinaram-no?
Britte abanou a cabeça. Era a primeira vez que falava com alguém sobre estes assuntos. E o bom de tudo isso era que não lhe levantava qualquer problema. Estava a contar as coisas como se as tivesse lido no jornal.
- Um acidente, Dr. Hansen. Ao sair de uma curva da estrada foi cair num barranco. O carro explodiu. Hubert Lawinsky teve morte instantânea. Acidente, de facto? Para mim não foi...
Hansen ficou calado. Já tinham comido, acompanhando a refeição com o retsina e agora estavam a comer metaxa. Sentia o calor do conhaque a espalhar-se pelo corpo aquecendo-lhe a testa. À sua volta havia muita gente sentada, o sítio estava completamente cheio. Clientes, risos, música grega. Sobre as mesas ardiam velas. Todos pareciam alegres e satisfeitos. Só eles os dois, Britte e ele, se encontravam como numa ilha... Santo Deus, o que ela passara.
Pegou-lhe no pulso cheio de simpatia e não voltou a largá-lo.
- Por que razão, com os diabos, nunca disseste nada sobre o caso?
- A quem? - perguntou com simplicidade.
- A Rolf, por exemplo...
Um criado aproximou-se da mesa.
- Posso servir-lhes outra garrafa de retsina? Britte fez um gesto de recusa.
- Pode trazer-me outro metaxa para mim - disse Hansen rindo.
- Assim como assim, vim de táxi... Então, diz lá, por que não a Rolf?
- Por que não a Rolf? Por que não a Rolf? - repetiu impaciente.
- Sim e como? Rolf recusou-se a falar comigo. Nem sequer queria verme. Devo ir a correr ao Hospital da Universidade e berrar-lhe a história ao ouvido?
Hansen esmagava um pedaço de pão branco com o dedo indicador. O criado trouxe o conhaque.
- O nosso amigo Dr. Rolf Grafe é um idiota - disse ele -, ou, o que é pior, um raio de um cabeça de betão. Fecha-se claramente na sua teimosia, magoa os amigos, sofre com isso e acaba por ficar ainda mais casmurro. Rolf é assim.
- Ele sente-se sozinho - respondeu ela -, e não se entende com esta cidade. Sempre a odiou. Tal como eu...
-A sério? - Hansen franziu a testa. - Já alguma vez pensou voltar para a sua terra? Freudenstadt, não é?
- Freudenstadt... sim. - Afastou a torrente de questões que via nos seus olhos. Durante todo o tempo tinha-a tratado por tu e agora que se tratava de um problema aparentemente grave para ele, começa a tratá-la por você. E na clínica? Aí passava-se exactamente o contrário: primeiro começava com um “você” de chefe e depois na sala de operações brincava às cumplicidades.
- Já alguma vez esteve em Freundenstadt? - perguntou ela.
- Uma vez. De passagem.
- Deve ir lá de comboio. Passa pela Floresta Negra, depois por um vale, e lá no fundo fica a terra. Verdadeiramente encantadora. As igrejas, um mosteiro, casas de operários...
Pelos seus olhos passou uma sombra, assim como se passasse pela sua alma as páginas de um livro havia muito esquecido para nelas procurar uma passagem especialmente bonita.
- No fundo tão linda que dá vontade de lá ir morrer. Os montes da Floresta Negra à sua volta são simplesmente demasiado altos e eu...
- Hesitou: - Sempre pensei voltar a Túbingen. Túbingen sempre foi o meu sonho e não Frankfurt.
- Para estudar?
- Sim. Mas não chegou. O liceu sim, mas o dinheiro dos meus pais não. Somos quatro irmãos. Eu deveria ter sido funcionária pública. Então, preferi vir para Frankfurt. Não foi assim uma grande ideia. Que procurava eu afinal em Frankfurt? - A voz tremeu-lhe como no princípio: - Afinal, de que ando eu à procura? Não sirvo realmente para nada.
Pela segunda vez ele agarrou-lhe no pulso.
- Britte! Não volte a dizer uma coisa dessas! Que a impede de voltar atrás? Refiro-me a Ttibingen, aos estudos.
Ela quis soltar a mão, ele manteve-a segura.
- Que idade tem?
- 24 anos.
- Ora então!
- Oiça lá, Doutor. Que quer isso dizer? Certamente não pensa o que está a dizer. Isso é só para me animar. Uma espécie de terapia, o que até está certo. No fundo, há muito tempo que sou um caso para psiquiatras...
- Agora acabou, Britte! Ouça-me com atenção. Todos nós atravessamos crises de vez em quando. Também a conhecida “crise existencial”... Não. Deixe-me acabar, caramba! Tenho andado a observá-la. Já ando a observá-la há semanas. Sei o que pode dar. E isso é excelente. Não pretendo começar pela dedicação que revela. Isso está dentro de si e podia ainda ser melhor se parasse com esses malditos comprimidos.
- Reparou nisso?
- Claro que reparei. Foi também por isso que quis falar consigo,
hoje. Eu não sou cego, Britte. Mas isto não é o assunto principal. O assunto principal é o seu futuro... Aguente-se, Britte. Não estou a fazer-lhe nenhum discurso. Se conseguir manter-se durante mais um pouco prometo-lhe fazer tudo para que entre na Universidade.
- Está... está a dizer isso a sério?
- Claro que estou a falar a sério. Já me conhece há tempo suficiente para saber que estou. Faça favor de levantar essa cabeça outra vez! É uma cabeça bem bonita. Não tem o mais leve motivo para andar com ela baixa!
- Dá mais contraste ao visor, Walter! Isso, assim. Assim está bem. Estás a ver ali em frente, no quadro dos cabos, ao pé da Condor... O tipo de casaco e chapéu branco, é ele.
O chefe de turno Lúbe aproximou da boca o microfone principal da central da Polícia de Segurança do aeroporto de Frankfurt. Enquanto isso, não afastava os olhos da imagem no monitor colocado na parede e que estava a ser captada pelas câmaras. Bem, daquela vez acertariam. Certo como a morte que acertariam.
- Aqui Delta um, estás a ouvir-me?
- Delta quatro. Sim.
- Ouve lá, estás no posto catorze, não estás?
- Correcto.
- Pronto, se agora te virares de lado para o quadro das informações, ficas com os balcões da Lufthansen e da Condor mesmo à tua frente.
- Sim.
-Estás a ver aquele tipo aí à frente? O do chapéu branco? Tem vestido um oleado branco e calças de ganga. Cerca de quarenta anos, isto é, tanto quanto posso calcular daqui. Talvez até mais novo.
- Estou a vê-lo. Apanho-o?
- Não. Só se for necessário. Esperas até a gente do K.K.26 chegar ao pé de ti. Já estão a ir para aí e devem estar a aparecer. Mas aproxima-te mais dele, chega-te bastante perto. O do chapéu fica para o fim. Os seus dois colegas estão a preparar uma nova acção e se quando eles começarem nós já nos tivermos metido de permeio, eles dão por isso. E desta vez temos de os agarrar, estás a ouvir, temos! Fim.
- Fim - respondeu o outro.
Lúbbe suspirou. Quantas vezes já tinha feito o mesmo naquele dia? Quatro, não, cinco vezes. Saberia o diabo o que se estava a passar naquele Verão. Já no ano anterior tinham tido inúmeros roubos durante todo o ano. Mas agora? Os gatunos infestavam o aeroporto como gafanhotos, ou melhor, como formigas. Apareciam de todos os cantos, atraídos pelo brilho dos marcos ou pela fama das riquezas dos alemães... Nos últimos tempos, todo o género de russos, turcos, gregos, até búlgaros, se tinham conseguido infiltrar. A estes juntavam-se os bandos de andaluzes e italianos. Bem, aqueles dois ali em frente pareciam italianos. Trabalhavam sempre com o mesmo miserável truque: empurrar, agarrar, fugir...
Mas não seria por muito mais tempo, pensou Lúbbe irritado. O seu olhar percorreu a parede dos visores até ao primeiro monitor da fila de cima. Ali! Zona 12. Ali estavam eles, ali tinham estado eles.
- Já não tens os dois italianos no visor?
- Não. Mas Losek e Hans Herbst devem chegar. Têm uma senhora de idade debaixo de olho.
- Bem, então... boa sorte! E...
A frase não chegou a sair da boca de Lúbbe. Incrédulo, de olhos esbugalhados, ficou a olhar para os visores. A fila toda, um bloco inteiro, toda a zona C, não passavam de uma chuva cinzenta e antipática!
- Que é isto, santo Deus?
- Interferências! - gritou Walter.
- Que queres dizer com interferências? Isso que é?
- Falta de corrente.
Lúbbe voltou a praguejar. A luz continuava acesa! Estavam todos malucos? Além disso, no caso do abastecimento externo faltar, o pessoal do aeroporto entrava logo em acção. E se, mesmo assim, continuasse a haver interrupção de corrente, os centros nevrálgicos da organização do aeroporto possuíam ainda um gerador de corrente para casos de urgência. A central da segurança fazia parte desse grupo. Tinha sido tudo bem pensado.
- Isto - murmurou Lúbbe - não existe! Não pode simplesmente acontecer. E logo agora! Já os tínhamos praticamente no papo...
Zangado, voltou a pendurar o microfone no gancho, e voltou-se encarando com Brunner taciturno à entrada da porta. Friedhelm Brunner, naquele momento com um ar tão espantado como ele nunca tinha visto.
- Então, chefe. Está de folga, não?
- Deve ter sido um dos cabos.
- Mas esses são regularmente controlados, não é verdade?
- Mesmo assim - disse Brunner.
- Então não será só um cabo. Deve ser uma quantidade deles.
E assim era. Os electricistas do aeroporto meia hora depois já tinham descoberto a avaria: tinha sido num quadro da parede, a sul do escritório da Ibéria. Ao retirar a tampa de um dos quadros verificaram que estava coberto de pontos negros de fogo e por dentro encontraram cabos queimados, alguns em parte arrancados.
- Afinal, que quer isso dizer? - O chefe da manutenção abanou a cabeça sem saber o que dizer.
- Um curto-circuito, que outra coisa poderia ser?
- Um curto-circuito nos cabos das câmaras de vigilância? Esses cabos funcionam quase como antena.
- Talvez estejam em sobrecarga em qualquer ponto? Nenhum deles era muito forte em electrónica. E não tinham sequer reparado nos tubinhos metálicos do detonador. Ao retirar a tampa metálica tinham escorregado pelos lados do quadro e caído para dentro. Puseram-se ao trabalho e, menos de meia hora depois, a avaria estava reparada, e no alto da parede dos monitores voltaram a aparecer as imagens habituais.
- Ainda bem! Era mesmo falta de corrente.
Três horas depois, Friedhelm Brunner recordou-se daquele suspiro de alívio. Uma das secretárias da administração do aeroporto levara-lhe um sobrescrito. Por fora, em caracteres de computador, tinha escrito: A direcção do aeroporto de Frankfurt SÁ - Urgente!!!
Brunner desdobrou a ordem de serviço que vinha agrafada. O sobrescrito já tinha sido aberto. Tirou para fora uma folha A4 dobrada. Estava escrita com os mesmos caracteres de computador do destinatário. Começou a ler:
EXCELENTÍSSIMOS SENHORES,
O QUE HOJE SE PASSOU com AS VOSSAS CÂMARAS DE VIGILÂNCIA NÃO PASSOU DE UM PEQUENO TESTE. SABEM MUITO BEM QUE EXISTEM NO AEROPORTO OUTROS PONTOS MAIS CRÍTICOS E MAIS IMPORTANTES QUE OS VOSSOS RIDÍCULOS OLHOS TELEVISIVOS. BREVEMENTE VOLTARÃO A TER NOTÍCIAS MINHAS. ENTRETANTO TERÃO FICADO A SABER TUDO O QUE PODE ACONTECER NO AEROPORTO DE FRANKFURT. DOU-VOS DE CONSELHO QUE SE LEMBREM DO DIA 18 DE JUNHO...
Ypsilon.
A entrevista com o redactor-chefe teve lugar no princípio da tarde da conferência de imprensa. Aí, na mesa enorme, em frente de toda a redacção, Rúdiger apresentara a sua grande surpresa: uma factura. Grande como uma mancha de óleo sobre uma tela e emitida pelo departamento financeiro do SUBA.
Uma factura de mais de oitenta e quatro mil marcos, quase cem mil macacos! E por baixo a assinatura clara e legível, como que impressa: Martin Reinbacher, Secretário de Estado.
Até Haupt, o chefe de redacção do departamento político, ficara espantado:
- Onde é que foi arranjar isto?
- Grande segredo profissional, Sr. Haupt - dissera Rúdiger, Mas com ela temos o Reinbacher entalado. Desta não consegue ele sair.
Rúdiger olhou de soslaio para a cabeceira da mesa onde estava sentado o chefe redactor Hensche. Como em todas as ocasiões semelhantes, parecia um mandarim mastigando o cano do cachimbo.
- Reinbacher vai certamente dizer - continuou Rúdiger - que entregou os oitenta e quatro mil marcos ao Partido. Mas com essa não se safa. Eles não vão dar-lhe cobertura... E eu tenho indícios claros de que todo o material se destinou à piscina e ao sauna da Vila Honnefer do senhor secretário de Estado do SUBA. Não só temos as guias das paletes como ainda a Margot Hoffmann lhes tirou uma quantidade enorme de fotografias.
- Quer trazê-las agora? Como é que tenciona fazer? - perguntou Haupt.
- Combinamos isso no fim - disse Hensche. - No meu escritório. Rúdiger Gõttner e eu. Certamente já tem muito que fazer, Sr. Haupt.
Foi aparentemente a única frase que o redactor-chefe pronunciou durante toda a reunião.
Também agora, no gabinete do chefe, uma chávena de café à sua frente trazida pela sua secretária, não se mostrava especialmente conversador, repetindo apenas a pergunta de Haupt.
- Bem, Rúdiger. Como é que pensou seguir com este assunto? Nuvens de fumo. Puf... puf... puf...
Rúdiger Góttner deixou-se escorregar na cadeira inclinando-se para a frente. Neste raio desta coisa, quase que te afundas, pensou ele; neste momento precisas como nunca de ter uma boa visão da coisa. Publicidade, era a única hipótese. Já via as letras gordas à sua frente:
“SECRETÁRIO DE ESTADO ENVOLVIDO EM ESCÂNDALO DE CORRUPÇÃO”, por Rúdiger Gõttner.
Primeira página, sim senhor, provavelmente em destaque. A sua sorte estava aí, na revelação!
- Atacar - disse ele. - Nada de entrevistas a sós, Sr. Hensche. Nada em privado. Atacar antes dos outros. De certa maneira, lançar a notícia no mercado. Na agora.
- Na agora? - Hensche riu divertido. - Ainda me vem com tácticas gregas, Rúdiger. Não está a exagerar?
- Talvez eu devesse esclarecer umas coisas no que respeita à minha insignificância, Sr. Hensche... mas não hoje. A questão é a seguinte: Martin Reinbacher segue amanhã de avião para Roma para as negociações sobre a política agrícola. Como vai passar um dia em Frankfurt, vai haver para a querida imprensa do Estado de Hesse uma conferência de imprensa. Na sala das pessoas importantes. Começa às dezasseis horas.
- E aí você pretende...
- O que eu pretendo é o seguinte: primeiro pregar-lhe um susto; depois documentar a sua reacção. É sempre melhor em frente de um grande público.
- Documentar quer dizer fotografar?
- Exactamente.
- As fotos serão certamente feitas pela sua namorada, a Hoffmann?
- Talvez a Margot Hoffmann seja minha namorada, Sr. Hensche, mas é, certamente, a mais rápida repórter fotográfica de toda a redacção.
Hensche continuava a sorrir.
- Como é que vamos conseguir esse choque?
- Tenho o recibo. E algumas cartinhas interessantes. Margot ampliou-me o material todo para 18-36, suficientemente inchado para que até um cego o possa ler. Posso mostrá-lo a toda a gente, posso colocá-lo debaixo do nariz dele.
- Poder, talvez possa, Rúdiger, mas não vai fazê-lo. Sabe porquê? Porque isso não passa de teatro! Comédia torpe. Não é jornalismo. E sem qualquer classe.
Rúdiger Gõttner mordeu o lábio inferior. Trampa! Tinha revisto a cena, não, os efeitos da cena, dezenas de vezes. Mas agora não eram só as dúvidas que o assaltavam; reconhecia muito mais: o velho tinha razão.
- vou pensar noutra coisa qualquer, Sr. Hensche.
- Assim está melhor. Faça isso.
! Hensche olhou para o relógio.
- Poderia, por exemplo, começar por fazer algumas perguntas...
O redactor-chefe reclinou-se, mostrando o seu conhecido e mal afamado sorriso:
- Oiça, Rúdiger! Eu tenho um editor. Já conhece esta frase. Sabe, portanto, o que ela significa. Se quiser fazer o seu jogo com as suas cartas, por mim está tudo bem. Mas se as cartas forem as erradas, é você o responsável, não eu.
- Isso está perfeitamente claro.
- Perfeito. Assim, não quero saber de nada. E você não venha procurar desculpas junto de mim. Também fica esclarecido?
- Sim.
Rúdiger Gõttner quis fazer um sorriso. Normalmente conseguia-o rápida e facilmente. Mas desta vez conseguiu-o com uma certa dificuldade...
Tinham tempo ainda, tempo suficiente. Quando o BMW vermelho de Rúdiger se dirigia para a saída, recomeçou a chover. Era assim havia dias, desde aquele maldito temporal. Chovia, parava, voltava a chover. E o mundo aparecia como talvez na realidade fosse: enlameado, cinzento, sujo.
- Onde vais agora? - perguntou a repórter fotográfica Margot. A saída do parque é ali à frente.
- Já vais ver, menina.
Conduziu o carro com perícia para a entrada de uma garagem. Era a entrada do parque de estacionamento do pessoal do aeroporto.
- Já topaste?
Margot fez um gesto de assentimento.
- Eles atiram-te já daqui para fora.
- É o atiras! Fico no lugar do Herbert. E para que não precises de perguntar, digo-te já: Herbert é aqui engenheiro e ainda por cima meu cunhado. Herbert tem um calhambeque e também é um “verde”. Qual é o “verde” que se lamenta quando tem o carro na oficina? Há três meses que lá está. Não passa de uma pata ferrugenta. Desde então que Herbert anda de bicicleta e sente-se muito feliz. E eu tenho um local de estacionamento e também estou muito feliz. Percebeste?
Ela acenou que sim. Era-lhe indiferente. Este maluco do Rúdiger estava sempre a aparecer-lhe com os seus permanentes truques à Rudiger Gõttner. Acabara por se habituar... mas não percebia muito bem como é que ele iria depois voltar a sair.
- Então - disse Margot -, qual é o programa?
Conduziu o carro até ao estacionamento, agarrou no gravador, empurrou as máquinas fotográficas na direcção dela e esperou pacientemente até ela ter pendurado tudo. Depois fechou o carro.
- Não há programa, Margozinha. Zero. Nada. Temos de deixar que as coisas aconteçam. Já me conheces. Sou campeão do mundo em improviso. Fazemos como habitualmente: sempre que coçar o nariz, carregas no botão.
- OK. - E desandou atrás dele na direcção da saída. A partir daquela garagem era muito fácil chegar ao ponto de encontro, o coração da multidão no aeroporto.
- Onde fica essa sala dos senadores? - perguntou ela.
- Nunca lá estiveste?
Ela abanou a cabeça.
- Bem, então anda!
Acenou. Num gesto mole da mão dobrada. com a outra baixou a popa do cabelo louro que tinha tendência para se levantar como a crista de um galo. Naqueles momentos, gostava mesmo dele. Poderia dizer-se de Rúdiger Gõttner o que se quisesse: a dar espectáculo era sempre bom. O que tornava a vida com ele muito interessante...
Continuava a avançar, inclinado para a frente, dando passadas enormes, as mãos nas algibeiras, os ombros levantados e inclinados para a frente. Como se tivesse de afastar um obstáculo qualquer. Como se marchasse contra a tempestade.
Margot corria atrás dele segurando as máquinas fotográficas.
- Eh! Rúdiger! - disse ela ofegando.
Encontravam-se agora no piso das partidas junto da entrada A dos voos domésticos. “A2”, leu Margot. E depois, de facto, em caracteres elegantes: SALA DOS SENADORES.
- Tens o cartão de imprensa?
Precisavam dele. Em frente, à entrada, tinham-se colocado dois homens da segurança de fronteiras. Ao pé estava ainda um terceiro, sem uniforme, vestindo o corpo gorducho num fato de riscas cinzento-escuro. Um burocrata, membro da equipa do ministro. Talvez um dos informadores. Ali sabiam tudo com a maior exactidão!
Rúdiger Gõttner tirou o cartão de imprensa do bolso da camisa. Calmo, muito calmo. Havia muito que era este o seu lema no trabalho. Mas naquela altura sentia a testa molhada com o suor da excitação e do nervosismo.
“Finalmente!” pensou ele.
Havia três meses que seguia aquele caso. Em Bona. E em Pforzheim onde era a sede do SUBA. Tinha namoriscado secretárias, subornado seguranças, embebedado funcionários ou motoristas para os fazer falar. E tudo isto para confirmar que nem tudo era claro com a construção do novo troço de auto-estrada até Magdburgo. E que o secretário de Estado Martin Reinbacher, o dinâmico executivo de Bona, se deixava aliciar pelos seus protegidos.
Agora, finalmente agora, atingira o que pretendia! Agora, pensava Rúdiger Gõttner, agora sei como se sente o perseguidor no fim da caçada. No momento em que engatilha a arma para obedecer à ordem de atacar.
- Despacha-te - disse para Margot, mostrando o cartão de imprensa e tentando passar entre dois guardas.
- Um momento, por favor! - Um dos agentes pegou no cartão e mostrou-o ao homem do fato cinzento às riscas. Para que seria o espalhafato? Rúdiger deitou uma olhadela para a sala. Não havia muita gente. Talvez meia dúzia de colegas. E ali estava ele: Reinbacher era mais alto e mais novo do que aparentava nas fotografias.
- Lamento, Sr. Gõttner. - O tipo do fato às riscas devolveu-lhe o cartão de dedos muito espetados e sobrancelhas arrogantemente levantadas.
- Lamenta o quê?
- Não podemos e não vamos deixar que entre.
- Não vai deixar?
- Foi o que ouviu.
- O senhor quer... quer que a imprensa na conferência do seu... -A imprensa não, Sr. Gõttner. O senhor! O senhor pessoalmente.
É exactamente por sua causa que estou aqui, para controlar a entrada dos convidados. No que respeita à prática da sua profissão, sabemos como o faz. O senhor secretário de Estado tem andado há algum tempo a seguir os seus... hum... processos. Você tem pressionado secretárias de forma inadmissível para obter correspondência... Mas deixemos isso. Todas estas questões serão ainda esclarecidas pelo nosso advogado. No entanto, aqui, para que fique bem claro, reservamos o direito de admissão. O que significa...
- Significa o quê? - Rudiger Gõttner coçou o nariz com o dedo indicador, o sinal para a repórter fotográfica, enquanto olhava para os outros com um olhar furioso.
Margot percebeu imediatamente. Como sempre. Disparou a primeira luz de flash.
- O seu nome! Diga-me imediatamente o seu nome. Novamente o flash.
- Ah! Não me quer dizer? bom, então vou arrancá-lo ao Sr. Reinbacher. E posso dizer-lhe já uma coisa: esta história não só será entregue ao conselho de imprensa como também ao Governo. Disso trato eu!
Rudiger Gõttner levantou os cotovelos para afastar os dois tipos da segurança que se tinham plantado à sua frente fazendo uma parede:
- Deixem-me passar! - contraiu as costas, reuniu as suas forças todas enquanto rezava para que Margot voltasse a fotografar... Sim! Bem, muito bem!
- Deixe-se de disparates - disse um dos homens. Era louro e jovem e usava um bigode minúsculo por cima do lábio superior. - Estou a avisá-lo!
- Sim, que se lixe - sibilou Gõttner levantando o punho direito para reforçar ainda mais o empurrão. Quem é que se deixaria derrubar por um merdas daquele? Ele não!
Contudo, nesse preciso momento deram-lhe uma pancada que o desequilibrou. Sentiu uma dor aguda; uma dor que queimava como uma chama e lhe subia do braço até ao coração. O cotovelo... Deus do céu, outra vez a articulação... como em Kitzbúhel... oh! Deus. Oh, merda, as dores que aquilo fazia!...
Gritou. E depois berrou:
- O meu braço... vocês estão malucos? Oh! Ui, o meu braço!
- Você estava a pedi-las - respondeu o homem da segurança.
Cotovelo, ainda por cima na articulação. As radiografias que o jovem médico da clínica do aeroporto tinha mostrado confirmavam uma coisa: fractura dupla. Atingira os dois ossos do antebraço.
Rúdiger Gõttner sentia-se abatido e vazio. E não era só pelas dores ou pelos analgésicos que lhe tinham dado - era raiva.
SE JOGAR A CARTA ERRADA GÕTTNER, ESTÁ FEITO...
Talvez tivesse sido a cartada errada, está bem, mas estar arrumado? Não. Uma derrota não bastava para isso. Iria cobrir aquela malta com denúncias. Havia de escrever um artigo, quer dizer, havia de ditar um artigo. De qualquer modo seria um artigo limpo. Já tinha mandado a Margot à redacção com o BMW para levar o chefe ao rubro. E depois daquele espectáculo de macacos ali na clínica ter acabado, o seu braço partido não ficaria mal na redacção do jornal. Pelo menos era uma testemunha da sua força de vontade. Portanto, depois de tudo ter passado, então ele...
A porta abriu-se. A enfermeira entrou com uma tala para o braço.
- Enfermeira, um momento...
Ficou novamente calado. Céus, aquela rapariga, ele conhecia-a? Cabelos pretos. E bonita para onde quer que se olhasse. Olhos escuros, de italiana e aquele lábio inferior! Já tinha sonhado com uma coisa assim. Mas quando? Certo! No baile da Imprensa, havia dois anos. Hoje estava correctamente vestida de branco impecável, mas nessa altura, minha gente! Corpete, meias de rede, ligas. E aquelas ligas tinham-no posto completamente maluco. Também se deixava descascar sem grandes problemas. Já sonhavas com a grande farra do ano mas no carro acabara tudo.
- No banco de trás? - tinha ela dito a rir. - Eu não! Do que eu preciso é de uma cama larga.
Nessa altura não podia fazer-lhe a vontade, pois Margot já se encontrava deitada na cama dele e à sua espera.
E agora? Agora aquela beleza estava simplesmente ali sorrindo e dizendo:
- Ainda bastante confuso, não estás? Engraçado, tu não te modificaste nada. Mas às vezes as coisas correm mal. Agora dá cá o braço!
- Meu raio de luz - disse Rúdiger. - Ontem, hoje, amanhã.
- Quieto!
A sua mão estava fria, nas artérias do seu braço brilhavam minúsculas partículas de água aqui e ali, para o martirizarem. Sentiu a transpiração na testa. Tinha umas dores infernais mas então viu as longas pestanas e a sombra escura sobre o lábio superior dela e tentou, surprendido, afastar-se. Tem classe e ainda por cima é diabólicamente bonita. Aquela penugem fina, quase invisível, certamente que também a tinha na nuca e ao longo da coluna... Dantes tinha mostrado umas magníficas coxas brancas...
- Ui!
- Pois. Ui! Agora já estamos quase prontos, Rudiger. Não é verdade, Rudiger? É esse o teu nome, não é?
Ele confirmou com um aceno.
- E tu?
- Lucrécia. Engraçado, tenho sempre a ideia de que um nome destes não se esquece facilmente.
- O nome talvez se esqueça-disse ele. - Mas uma rapariga como tu? Fora de questão!
De facto aquilo ajudava. Quando as dores queriam voltar, bastava-lhe olhar para os olhos dela, namoriscar só um bocadinho.
- Que aconteceu? - apontou para a tala. - Caíste?
- Fizeram-me cair. Simplesmente passaram-me a ferro. Como é? Bebes um café comigo? Lá fora? Conto-te tudo. Mas se tiveres um assunto melhor, por mim também prefiro.
Por cima do nariz apareceu-lhe uma ruga de troça.
- Está bem, mas café não. Faz-me mais nervosa do que já sou. E isso não é permitido nesta loja.
- Não pareces muito encantada?
Ela não respondeu. Só olhou para ele.
Rudiger Gõttner levantou-se quando a viu aproximar-se. E o braço recomeçou imediatamente a causar-lhe problemas. Trazia-o ao peito, num lenço cinzento-escuro e transparente. Tinha de arranjar uma coisa mais elegante. Acenou-lhe com a mão esquerda. Lucrécia tinha penteado o cabelo escuro que lhe caía macio e brilhante sobre os ombros. E assim vestida, de calças de ganga e blusa azul-forte de ombros largos, parecia-lhe muito mais sedutora que com as roupas sexy do baile da Imprensa.
Disse-lho e obteve simplesmente um desinteressante:
- Sim? Achas?
O criado aproximou-se.
- Martini - disse ela. - Sem gelo, por favor, e muita água. Sentou-se e apontou para o braço dele.
- Então? Como foi que isso aconteceu?
Ele contou-lhe o desentendimento com a gente do secretário de Estado Reinbacher e verificou como à medida que falava a raiva crescia e, com ela, aquelas pequeninas gotas de água voltavam a aparecer, formigando quentes sobre a sua pele.
- Não me importo que saibas - disse irritado depois de acabar. De qualquer maneira, amanhã já se sabe cá fora. Depois o excelentíssimo secretário de Estado estará tão bom como morto. Agora já está, só que ainda não sabe.
- Ah! Sim? - disse ela beberricando o seu Martini. O desinteresse dela aborrecia-o.
- Parece que não te interessas muito por política?
- Achas que é política um tipo roubar oitenta mil marcos, ou lá quanto foi? Aqui ocorrem coisas muito diferentes...
- Aqui? Aqui como? No aeroporto?
Ela voltou a pegar no copo e então ele percebeu o que tornava o seu rosto tão excitante: a perfeita harmonia entre a forma dos olhos e da boca. Em forma de amêndoa. Os olhos, duas amêndoas escuras; a boca, uma amêndoa vermelha, brilhante e húmida. Reparou no seu olhar desdenhoso. Estava a fazer-se interessante. Bem, tanto melhor.
- Então, Lucrécia, não te acanhes. Conta lá!
Lucrécia deixou o sabor agridoce do Martini penetrar-lhe na língua. Estava a pensar. Mas não por muito tempo. Aquele tipo, bem, ela conhecia o género. Havia centenas de Rudigeres por todo o lado e cortejavam-na. Mas de qualquer modo era repórter e isso queria dizer que conhecia Deus e o mundo. Não, o homem não era desinteressante, mesmo nada...
E também não se podia dizer que fosse feio.
- Tenho uma surpresa ali em casa. Nem preciso de me aproximar da porta. Há duas horas que a Polícia está ali na nossa clínica.
- Ah! Sim? Não ligou ao tom irónico.
- Lembras-te que em 1985 explodiu uma bomba mesmo ali?
- 19 de Junho de 1985 - disse ele. - Pavilhão B. Se me lembro! Havia três homens envolvidos.
- Sim, e agora passa-se também qualquer coisa parecida. Ouvi há bocado, o Brunner, um dos chefes da segurança, a falar nisso com o Dr. Hansen. Tratava-se de uma carta com ameaças. Já fizeram um pequeno ensaio. Não percebi muito bem. Mas agora deve explodir uma bomba grande.
Góttner deu um salto. E o facto de ter batido com o braço foi-lhe indiferente. !
- Que dizes? Estás a falar a sério?
Ali estava ela, sentada num banquinho de café, beberricando um Martini, sorrindo com os seus olhos de amêndoa... e a falar de bombas? De bombas e atentados! Nada mais, nada menos... E ele sempre a pensar em Hensche e em Margot, em Reinbacher, o porco corrupto, nos dois guardas de fronteira e naquele rapaz gorducho de fato às riscas.
“O senhor secretário de Estado há algum tempo que anda a seguir as suas manobras.”
Agora, ainda por cima, uma bomba? Quando Hensche souber! Se for verdade... um autêntico espectáculo!
Que raio de dia era aquele?
- Que espécie de bomba? - De repente apetecia-lhe falar. - E a carta com a ameaça? Quem a enviou? Trazia remetente? Foi mencionado algum nome?
- Agora é só assim... ou parece ser. Dás-me lume? Segurava um cigarro na mão. Ele inclinou-se para a frente para lhe dar lume.
- Sim? - disse ele. - Vamos lá! Conta.
- Há quatro ou cinco semanas atrás tivemos um caso grave.
Por que levava ela tanto tempo, caramba!
- Nessa altura houve no pavilhão cinco um acidente. Um jovem electricista estava a montar qualquer coisa e então apareceu um empilhador que o furou com uma carga de ferros para betão no peito e nas costas.
- Grave?
- Praticamente feito num espeto.
- Santo Deus!
- Correcto! Santo Deus!... Mas foi assim. No entanto, o rapaz sobreviveu. Mandaram-no para o Hospital da Cruz Vermelha. Sobrevieram complicações. Apanhou uma infecção, os rins deixaram de trabalhar, teve de fazer hemodiálise e por aí fora... De qualquer maneira, parecia que morria em cada dia que passava. O pai fez uma enorme zaragata; compreende-se que o tenha feito. Mas o mais desagradável de tudo foi ele ter-nos responsabilizado, ao Dr. Hansen e a nós todos que o operámos, pela infecção do filho.
- E que é que se passou já? Que é que já explodiu aqui? - Rúdiger Gõttner estava a tentar compreender a sucessão dos acontecimentos, criar uma ideia através daquilo que Lucrécia estava a contar-lhe.
- Isso não sei. Só assisti a parte da conversa. E mesmo assim porque tive de ir ao arquivo e a porta da biblioteca estava aberta.
- Como se chamava esse rapaz que apanhou com os ferros?
- Roser. Werner Roser.
- Sabes onde está?
- Sim - disse fazendo um gesto de assentimento.- No Hospital da Cruz Vermelha. Temos dois aqui em Frankfurt. É o da Rua Kónigswarter.
- Muito obrigado! - Friedhelm Brunner, da Polícia de Segurança do aeroporto fez um aceno na direcção do agente de segurança que lhe trouxera pessoalmente dos arquivos os registos do pessoal. Eram ainda do tempo em que se tinham celebrado os contratos com as empresas de construção do aeroporto.
- Não tem que agradecer! - O homem dirigiu-se à porta. Brunner e o médico-chefe Dr, Hansen ficaram novamente sozinhos.
- Roser, Karl - leu Brunner no documento que tinha à sua frente. - Nascido... um momento, aqui está: 9-8-1942. Esteve na Força Aérea, esquadrilha de caçadores quatro. Como técnico de sistemas. Chegou a sargento. Tendo nascido em 1942, hoje tem mais de 50 anos. Portanto, uma das velhas raposas dos velhos tempos. Excelentes referências: Boa capacidade de aprendizagem. Pontual e trabalhador. Elevada capacidade de trabalho. Que mais? Um pouco introvertido, dizem aqui. E depois: fim do contrato de trabalho quando o aeroporto foi inaugurado em 1972. O trabalho aqui acabara. O aeroporto já estava pronto. Isto é, espere aí: a firma Técnica de Sistemas recebeu mais algumas encomendas, e precisamente no ano de 67, depois outra em 79 e mais uma em 83. E novamente agora? Certo: firma Karl Roser - Técnica de Sistemas e Medições. Os quadros eléctricos do pavilhão cinco.
- Foi aí que o filho sofreu o acidente - disse Hansen pondo-se de pé. Já não conseguia ficar sentado. Para ter esta conversa tinha cancelado tudo. Era uma conversa bem importante. Imaginar que um louco qualquer andava por ali, tendo começado por fazer explodir as ligações das câmaras de vigilância com um detonador entretanto, descoberto, que esse mesmo homem havia sete anos às ordens dos palestinianos ameaçara fazer explodir uma bomba ou lá o que era isso quando ali na clínica tudo tinham feito para lhe salvar o filho, era simplesmente demasiado!
O gordo indicador de Brunner percorria o documento:
- Introvertido? Isso quer mais ou menos dizer que tem dificuldades em comunicar? Há vinte anos atrás já assim era. Durante esses vinte anos terá possivelmente piorado. Conheço esses tipos. Deixam de conversar e só falam sozinhos. Guardam tudo lá dentro e um belo dia, pumba! A conhecida implosão. Dão a volta!
Inclinou a cabeça de lado:
- Lamento, Doutor. Nessa altura devia ter-me contado logo tudo.
- Ora, você e os seus perfis de personalidade. - Hansen já estava farto. - E que significado tem “dificuldades de comunicação”? A mim } deu-me ele um murro. Essa capacidade de comunicação pelo menos ainda ele conseguiu ter. ;
Brunner fechou a pasta e encolheu os ombros.
- Ouça, Brunner! - disse Hansen aborrecido -, o que estamos a fazer não passa de um joguinho de imaginação. O facto de ter sabido por si do caso das câmaras de vigilância fez que nos lembrássemos do resto. Quem lhe diz que o Sr. “Ypsilon” que assinou a carta ameaçadora é o mesmo Sr. Roser?
- Ninguém, Doutor. - Brunner dirigiu-se para a porta, mas virou-se para trás mais uma vez. - Sabe o que para nós criminalistas significa profilaxia? Exagero. Histeria exagerada ou paranóia... chame-lhe o que quiser. Ou diz simplesmente “já se viram cavalos vomitar”. Porque somos assim e assim pensamos, talvez haja menos cavalos a vomitar. Mas se o Sr. “Ypsilon” e o Sr. Roser têm alguma coisa a ver um com o outro e se, de facto, o caso se liga ao filho, Werner Roser, talvez já possa dizer-lho daqui a uma hora. Adeus!
Na prateleira de cima, as camisas. Tão bem arrumadas como o pai as deixou. Levo a azul. As outras vão para a mala.
Werner Roser despiu o casaco do pijama e sentiu o algodão da camisa fresco e limpo sobre a pele. Que bem sabia! Pegou nas camisas, roupa interior e peúgas e colocou tudo cuidadosamente na mala. Agora o pijama. Os jornais, deixava-os ficar, as laranjas também, o raio dos comprimidos de qualquer maneira ficavam. Como recordação para o doente que a seguir ocupasse aquele quarto do Hospital da Cruz Vermelha.
Às cinco horas estaria na rua. A nota que tinha sobre a mesa de cabeceira seria suficiente para o táxi. Para casa?
Nem pensar! Primeiro iria até ao Tivoli ter com a Rosi e apresentar-se-ia completamente renovado. Curado e com novo gás. Como ela se admiraria!
Começou a abotoar os botões da camisa. Antes disso passou a mão pelas cicatrizes. Tinha-se tornado um hábito, assim como às vezes se toca em coisas para sentirmos que de facto existimos. Depois voltou a sentar-se na cama, afastou a mala para o lado, levantou as pernas e espreguiçou-se. Em frente estava a varanda. Quarto independente. Tudo de primeira classe... Tinham-no tratado desde o princípio como a um doente de luxo, e aos seus olhos, tal era a generosidade dos médicos, de facto era-o. Ele tinha sido para eles um caso interessante. Um caso comentado. Eram esses comentários que eles queriam.•• tinham de evitar, embora fosse difícil e não tivessem qualquer hipótese. Tinha estado para ali deitado na cama como se fosse um esfregão deitado fora, deitado sem saber onde nem de quem era a cama onde se deitava. Através da porta aberta da varanda tinha ouvido os relógios a darem as horas. Mas nunca tinham soado como os que conhecia em sua casa. Os sons surgiam muito mais destacados, singularmente lentos, gastos. Sons abafados, como manchas de óleo na água. E quando ouvia vozes, as vozes das pessoas ao lado da sua cama, era a mesma coisa: indistintas. Tudo esbatido. Até os contornos das coisas eram confusos. Sobre as paredes brancas vira sulcos esverdeados de água e o calendário do hospital, com as suas imagenzinhas e frases conservadoras, não passava de uma mancha preta flutuante.
Mas agora! Hoje? Hoje tinham-lhe servido enormes quantidades de sopa e carne. E até tinham temperado a comida com sal. Tinha-lhe sabido de forma fantástica. Também já não precisava de voltar à maldita diálise lá em baixo na cave.
- Porta-te bem - tinha-lhe dito a assistente, apertando-lhe a mão. - Vem ver-me quando estiveres aborrecido.
Era simpática, a Rosemarie. Até era gira. Mas visitas nunca. Werner Roser sorriu. Depois tirou as pernas de cima da cama, pôs-se de pé e saiu para a varanda para fumar o seu último cigarro no Hospital da Cruz Vermelha.
Quando voltou a entrar, o médico de serviço Dr. Brugge estava no quarto. Era magro, pequeno, tinha o cabelo cor de palha e óculos encavalitados no nariz. As enfermeiras chamavam-lhe o “Elefante Voador” porque tinha umas orelhas muito grandes. bom, e era muito fácil lidar com ele.
- Voltei a falar com o chefe, Werner. Está tudo em ordem. Pode pôr-se a andar. - O “Elefante Voador” olhou à sua volta e ficou admirado. - Já tem as malas feitas? Agora está cheio de pressa, não é?
- E de que maneira!
- Percebo-o muito bem. Foram tempos difíceis. Até para nós.
Werner Roser acenou com a cabeça. Pensou um bocadinho mas acabou por dizer:
- Obrigado, Doutor. Obrigado por tudo.
O médico de serviço sorriu. Depois ficou sério:
- Mais uma coisa, Sr. Roser. Ainda precisa de fazer mais alguns exames. Quanto ao resto... também pode tratar-se em casa. Para isso ! precisava de falar com algum dos seus familiares. A dieta, a quantidade de líquidos, os remédios... Também é preciso controlar um pouco se tem juízo e se cumpre o que lhe prescrevemos. Como é? O seu pai esteve aqui constantemente...
, -Esteve - disse Werner.
O Dr. Brugge levantou as sobrancelhas numa interrogação, mas Werner Roser ficou calado. Imediatamente após o acidente e durante muito tempo a seguir o pai tinha aparecido por ali. Não só uma, mas duas e três vezes por dia. Não tinha tido uma consciência muito exacta disso, mas tinha sentido o olhar dele. Não sabia como. Porque o pai durante todo o tempo não afastara os olhos dele. Muitas vezes falava sozinho, muito baixinho. Directamente ao filho pouco tinha dito, mas quando pensava que este estava a dormir, começava a falar. Consigo mesmo. Como um louco.
- Eu mato-os - dissera ele -, eu mato-os a todos.
Tinha sido numa altura em que Werner fizera de conta que estava a dormir; depois abrira os olhos de repente e perguntara:
- Quem? Matas quem, papá?
Mas não obtivera resposta.
Deveria contar isto ao médico? Porquê? E por que tinha ele de saber a razão pela qual o velho nunca mais aparecera? Fizera na quinta-feira uma semana, sim, nessa quinta-feira aparecera pela última vez.
- Se não voltar a ver o seu pai - dizia agora o médico -, poderia talvez falar com a sua mãe?
Werner abanou a cabeça.
- A minha mãe também está doente.
O Dr. Brúgger suspirou.
- Mesmo assim. Temos de arranjar uma maneira qualquer de resolver o assunto. O chefe foi muito claro na sua exigência. Afinal nós, por Deus, fizemos bastante por si, não acha?
- Claro, claro, isso...
Interrompeu-se porque entretanto a porta se abrira e, de sorriso no rosto, com uma segurança incrível, um tipo louro e alto acabava de entrar dizendo simplesmente:
- Olá!
O Dr. Brúgger levantou-se. Talvez tivesse mais que fazer, talvez pensasse que a conversa não levaria a nada ou talvez não quisesse simplesmente incomodar. De qualquer maneira foi-se embora, dizendo a sorrir:
- Havemos de voltar a falar no assunto.
Talvez Brúgge, pensou Werner, ao ver o homem de braço ao peito tivesse pensado que se tratava de um amigo ali do hospital. Mas não era assim. Nunca tinha visto o homem. Por isso ficou à espera, observando-o em silêncio.
- Você é o Werner Roser, não é verdade?
Werner confirmou com um aceno de cabeça.
- E eu a pensar que você estava muito doente. Afinal está a fazer as malas.
- Estive muito doente.
- Bem, então posso dar-lhe os parabéns.
- Afinal que pretende o senhor?
- Chamo-me Gõttner. Rúdiger Gõttner. Fuma, Sr. Roser?
- Acabo de o fazer. Agora não preciso.
- Posso?
Remexeu com a mão esquerda no bolso do casaco de cabedal, uma peça a cheirar a cara gira. Exactamente como devia ser. Como a camisa de seda que trazia vestida. Ainda por cima calças de ganga de marca.
- Rúdiger Gõttner? - Werner não sabia quem era.
- Sou do Express.
Um repórter? Não sabia que eles se ocupavam da arraia-miúda.
- E então?
Gõttner fez uma careta como se estivesse com dores.
- Dei uma queda. Parti o braço. Poderia ajudar-me? É uma ninharia. Por acaso tem um isqueiro?
Werner rodou a rodinha do seu isqueiro e a chama saltou.
- Obrigado.
O repórter puxou uma fumaça profunda, expeliu o fumo pelo nariz olhando fixamente para Werner através das pálpebras semicerradas.
- Trata-se de um assunto muito sério. Muito sério, acredite-me. Raras vezes exagero. Preciso que me ajude. E que se ajude a si mesmo. Talvez até uma quantidade de pessoas que, possivelmente, irão dentro de pouco tempo dar entrada aqui na Cruz Vermelha... se não forem directamente para o cemitério.
- Que está para aí a dizer? Não percebo nada.
Werner Roser voltou a sentar-se na cama sem entender uma palavra. Que conversa era aquela? O homem seria doido?
- Trata-se do seu pai, Sr. Roser. A Polícia já começou as buscas.
- Isso não é possível e por que razão o senhor...
- Agora oiça-me finalmente com atenção! Acabei de lhe dizer que é extremamente importante. Nesta situação, nós os dois estamos em condições de poder salvar muitas vidas humanas. Você e eu. Como eu estava a dizer, a Polícia anda atrás do seu pai. Ele ja fez no aeroporto um pequeno atentado de aviso, tendo escrito também uma carta com ameaças dizendo que a seguir iria proceder em grande escala. Sabe como é uma coisa dessas? Não, para isso é ainda muito jovem. Não assistiu ao atentado bombista de 1985. Mas eu estava lá. Posso dizer-lhe que havia pedaços de corpos por todo o lado.
Werner engoliu em seco. Por um segundo tinha tido a esperança de que tudo aquilo não passasse de uma história, de uma rábula que o tipo pretendesse fazer, mas agora percebia que era a sério.
- Sim, mas... como? - gaguejou ele -, porquê...
- Pois é. Também fiz a mesma pergunta. Só faz algum sentido, Sr. Roser, por ter sido no aeroporto que se deu o seu acidente e por ter sido, segundo ouvi dizer, tratado na clínica, onde esteve bastante mal...
- Mal? Pessimamente, foi como estive.
- Exactamente! Ele responsabilizou o aeroporto e a clínica pelo seu estado.
Werner sentiu o sangue baixar-lhe até aos pés batendo nas veias e fazendo que sentisse dores nas cicatrizes. Que estava aquele ali a dizer? Era tudo uma loucura! O velho? Então lembrou-se outra vez. O leve murmúrio ao lado da sua cama. A profunda, distante, rouca voz do seu pai repetindo sempre o mesmo: ELES VÃO SABER QUEM SOU. HEI-DE MATÁ-LOS. Pois, AINDA HÃO-DE TODOS ACREDITAR NO QUE DIGO...
- Que acha, Sr. Roser, acha que o seu pai seria capaz de uma coisa dessas?
Werner queria engolir mas tinha a boca seca. Olhou para cima e disse com dificuldade:
- Que resposta quer que lhe dê? Que posso dizer a esse respeito? Isso é tudo uma loucura. Atentado? Bomba?
- Não acredita, portanto, que ele seja capaz?
- Claro que não é.
- Outra questão: teria ele a capacidade técnica para executar uma coisa destas? Quero dizer, para um atentado são necessários detonadores, explosivos, talvez um dispositivo para accionar o detonador. Poderia ele arranjar e montar uma coisa dessas?
- Que sei eu? Poderia, faria... sabia fazer palavras cruzadas. Afinal foi funcionário durante doze anos. Aí aprendeu muita coisa. E trabalhou na construção do aeroporto. Arranjar o material? Ainda tem colegas em tudo quanto é sítio...
Gõttner fez um gesto de assentimento. Era exactamente a resposta que esperara.
- Mas nunca faria uma coisa dessas - acrescentou Werner.
- Sim? Acha? - Os olhos do repórter, olhos verdes-acinzentados queriam captar o olhar de Werner, olhavam-no sugestivamente confiantes. - Onde está agora o seu pai?
- Que sei eu?
- Isso não é resposta, Werner! Já estou... estou a tratar-te por tu! Não me venhas com essa. Já te expliquei há pouco e parece que estamos de acordo: trata-se de salvar vidas humanas! E sobretudo o teu pai. Pensa nisso, talvez tu mesmo sejas apanhado nesta merda, o que não será muito agradável, ou achas que sim?
- De verdade, não sei. Acredite-me. Quando me trouxeram aqui para a Cruz Vermelha e as coisas estiveram realmente feias, entrava aqui no quarto todos os dias. Ficava aí exactamente onde você está. Na mesma cadeira. Nessa altura não se fartava de hospital. Não vinha só uma vez. Chegou a vir três vezes seguidas no mesmo dia.
- E agora?
- É exactamente isso! Silêncio total. De há seis dias para cá. Não ouvi dizer nada, não vi nada. Nem um telefonema. Só um da minha mãe. Nem lhe perguntei por ele.
Gõttner atirou o cigarro para o cinzeiro sem mesmo o apagar, olhou pela janela, virou a cabeça:
- Werner, a morada!
- Da minha casa? A minha?
- Qual havia de ser?
Disse-a e teve também de a escrever. bom. Desde que o tipo desaparecesse!... Um atentado? O velho? Pois, e que mais?
- Volto a dar notícias, Werner. Em breve. E se realmente a coisa explodir, temos de falar nos direitos de exclusivo. Quero dizer os direitos do artigo que eu escrever. Mas isso fica para mais tarde... Daqui a pouco já estou de volta. Agora tenho pressa, percebes?
Werner não percebia absolutamente nada.
Mas Gõttner já estava lá fora.
Não tinha passado um minuto... não, um segundo desde que a porta batera atrás do repórter, o tempo que levara a endireitar novamente a mala e a levantar-lhe a tampa, quando soou uma campainha.
O telefone... Talvez a administração?
Werner levantou o auscultador.
Ouviu um cantar fino e metálico. E depois muito distintamente:
- Werner?
Não conseguiu dizer nada, mal podia respirar e o coração batia-lhe cada vez mais depressa.
- Werner, meu rapaz, como estás?
- Pai?
- Já sei que estavas admirado por não saberes por onde tenho andado. .. eu... eu não pude ir aí. Tive de fazer uma coisa. Acredita-me, era importante. Mas estive sempre a pensar em ti... Werner, filho, diz lá, como te sentes hoje? Tens dores?
- Como estou? Estou bem!
- Verdade? A sério?
- Que queres dizer com isso? A sério e de que maneira! Estou aqui a fazer as malas. A mãe não te disse? Ela telefonou anteontem.
Silêncio. Uma longa... infinita pausa... Era como se de repente a ligação tivesse sido cortada. Mas Werner ouvia-o respirar. Distintamente. Não tinha desligado, não.
- Eh! Pai? Que se passa?
Sempre aquela respiração.
Finalmente:
- Percebi bem? Disseste que estavas a fazer as malas?
- Sim. Que outra coisa poderia ser? Tive alta. Deram-me alta por já estar curado. Sinto-me lindamente. Já me puseram um nadinha de sal na comida. Também consigo urinar. Mijo como um campião do mundo. Os rins funcionam maravilhosamente, agora está tudo bem. Também, já durava há muito tempo, não achas?
- Desculpa... se eu não acho... se eu não acho o quê? Que foi que disseste?
Que se passava com ele? Estava bêbado? Nunca se embebedava. Seria possível que o que o repórter dissera...? Bem, havia algum tempo que não andava muito bem, nos últimos meses simplesmente apagara-se, andava mecanicamente pelo parque durante horas. E conversar em casa? Zero. Fechava-se como sempre na oficina.
Mas que outra coisa poderia ele fazer? Não era de espantar com o palavreado e as resmunguices que ouvia em casa. Mas não era culpa dela, culpa da mãe, ou não era só culpa dela. A razão era a falta de encomendas. O facto de no aeroporto o terem dispensado, era essa a razão. Isso nunca o espantara.
E ainda por cima o acidente com ele. Certo. Mas bombas? O velho não construía bombas? Era uma merda. Bombas, explodem. Voam farrapos. Ouvem-se gritos e morre-se. Corre sangue. Sabe-se como é pela televisão.
O velho pode às vezes ser um pouco tonto, mas é o teu pai. Não é nenhum assassino. Isso é coisa que fazem os estupores da RAF e mesmo esses escondiam o facto. Mas nunca alguém como ele!
- Ainda aí estás, pai? Que se passa contigo, heim? Ainda outra coisa: esteve mesmo agora aqui um tipo. Por tua causa. E ouve bem: era um repórter! Atirou para cima de mim uma merda de uma história.
- Werner, meu filho... Werner...
A voz dele? Passar-se-ia alguma coisa? A voz tinha-se alterado completamente, soava como se estivesse doente... Aquele “Werner, meu filho”, dito como que saído da sepultura; como num dos filmes de terror em que uma porta geme e de uma campa escura alguém te grita: WERNER, MEU FILHO. ..
- Curado? Disseste há bocado que estavas curado? Tão saudável que te deram alta?
- Dentro de uma hora estou em casa. Ou talvez um pouco mais tarde. Ainda quero passar por casa da Lotti.
Desta vez o pai Karl Roser não disse nada. Respirava cada vez mais alto e essa respiração transformou-se num rouquejar que mais parecia um gemido. Um gemido assustador, perturbador, como que um choro... Que se passaria agora? Iria pôr-se a choramingar ao telefone? Mas porquê? Porque tudo tinha acabado em bem? Por reconhecimento ou coisa assim?
- Está tudo bem - disse Werner conciliador, tentando acalmá-lo.
Mas não se tratava de reconhecimento. E não tinha nada a ver com ele. Absolutamente nada.
- Escuta, Werner. - Subitamente conseguia falar outra vez. Em frases curtas e contidas. Aquela maldita voz de comando. O senhor sargento. E o que dizia, dizia-o exactamente no mesmo tom com que dantes gritava aos recrutas, e mais tarde ao filho, quando lhe ensinava o ofício:
- Não dizes nem mais uma palavra, entendido? E toma bem nota do que vou dizer!
- Que é que foi agora?
Mas sabia o que era. Era uma certeza dentro dele e mesmo que assustadora, não podia ignorá-la. Era exactamente como aquele repórter tinha dito, raios o partissem; Gõttner tinha razão... Caramba, o pai tinha feito aquilo!
- Werner! Telefona imediatamente para o aeroporto! Eles têm um número para a Polícia. Encontras facilmente. Fazes isso imediatamente, estás a ouvir?
Tinha-o feito! Estou a ficar doido... não pode simplesmente ser verdade.
- Segundo: Dizes que estás a fazer um aviso de atenta... não, dizes que estás a fazer um aviso de explosão. Dizes que se trata de uma bomba-relógio. E que é meio quilo de explosivo do tipo ZD-4. Material do exército. Entendido?
- Sim, sim. Sim, estás grosso?
- Isso não interessa agora, Werner. Calas o bico. Faz o que te digo. Depois: diz-lhes que é fácil e não tem perigo desactivar a bomba. Basta-lhes cortar o cabo do pólo negativo. Agora, o mais importante. Tens um lápis?
- Não preciso disso, homem!
- Precisas sim! Pega no lápis.
bom. Tinha escrito um postal a Ulf, o seu treinador de basebol e a esferográfica ainda estava em cima da mesa de cabeceira. Pegou nela, agarrou no romance policial que Lotti lhe tinha trazido e rasgou a primeira folha.
- Já está?
- Sim.
- Toma atenção: o sítio fica entre C64 e C65.
- Que é isso?
- Portas de embarque, evidentemente. Que querias que fosse? Não é difícil de encontrar. Existe aí um reclame grande. Escreveste tudo?
- Sim.
- Aí, a cerca de dez ou quinze metros de distância na direcção da saída C65, está escondida a carga. Atrás da caixa. Já está?
- Atrás da caixa... sim.
- Repete tudo.
- Uma merda é que repito! Tenho tudo. E agora toma tu atenção! Estarás tu...
O pai não o ouviu continuando a falar:
- Diz-lhes que a coisa está programada para as dezassete horas. Ainda têm quarenta minutos a partir de agora. É mais que suficiente...
Depois desligou.
Werner Roser ficou a olhar para o auscultador que segurava na mão. Depois deixou-o cair como se nesse momento tivesse queimado os dedos nele.
Então deu um salto e desatou a correr rasgando a folha do livro que meteu no bolso, deixou a porta aberta, disparou pelo corredor em direcção ao gordo com cancro nas cordas vocais que ficou a olhar para ele de olhos muito abertos, pois não podia protestar, já que estava sem voz, continuou a correr sem mesmo reparar que estava descalço, e mesmo que tivesse reparado era-lhe completamente indiferente.
Número da Polícia? Aeroporto...
À entrada da porta do refeitório estava uma jovem enfermeira.
- Que te aconteceu?
- Preciso de uma lista telefónica, Barbei. Vamos, depressa, vocês têm uma, não têm?
- Não sei. Escondem-na sempre. E a enfermeira Telma neste momento não está cá.
Telma, a enfermeira de serviço... que pocilga aquela!
- Merda de pocilga!
- Olha lá, estás maluco?
Mas ele já tinha desaparecido. Mais dois parvos de roupão. Afastou-os simplesmente para o lado...
- Eh!
Então encontrou-se lá fora, ao pé dos elevadores. Ambos tinham a luz de “ocupado”. bom, as escadas... Lá em baixo na recepção certamente haveria listas telefónicas aos montes.
Werner escorregou, sentiu picadas no peito, voltou a equilibrar-se.
- Ainda por cima descalço! - gritou alguém atrás de si. “Sim, meu estúpido. Ainda por cima descalço. Se soubesses porquê, até corrias sem cuecas!”
Chegou à entrada. Estava quase vazia. Mas o casaco de cabedal ali, conhecia-o! E aqueles caracóis também? Era realmente Góttner que estava a falar com a menina da recepção e gritava:
- Pois, e o táxi? Está quase a chegar? Naquele momento ele era o homem certo.
- Sr. Gõttner! - quase não conseguia respirar e voltava a sentir aquelas malvadas picadas... - Sr Gõttner!
- Werner? Que aconteceu?
-Mal o senhor acabara de sair, telefonou ele. Está maluco. De verdade.
- Que queres dizer com isso?
- É como o senhor disse, tal e qual. E a coisa vai rebentar dentro de trinta ou quarenta minutos, foi o que ele disse. Quer que informemos a Polícia. Do aeroporto. Lá em cima não têm nenhuma lista telefónica e por isso...
- Meu caro senhor! - Gõttner meteu a mão no bolso do peito do casaco, tirou uma agenda para fora sem nunca deixar de olhar para ele. - Isso é, bem... inacreditável. Como se... um momento... cá está! Tenho aqui o número: 69014.
Gõttner não se deu ao trabalho de correr para uma das cabinas telefónicas. Já tinha aberto a porta do gabinete da recepção e gritava para a recepcionista. Ela empurrou um telefone na direcção dele. Marcou o número.
-Vem cá, Werner. Agora contas tudo o que ele te disse ao telefone. Cada uma das palavras, estás a ouvir?
- Tenho tudo escrito.
- Bem, tanto melhor. Vamos! Deu o auscultador a Werner.
- Heusch - disse uma voz. - Polícia de Segurança do aeroporto.
O alarme de Werner Roser foi recebido às 16.24 h e imediatamente enviado à central. Três minutos depois, às 16.27 g, Wolters, o segurança de serviço, deu início ao primeiro passo da operação de alarme. Entretanto, tinham decorrido mais dez minutos. com os pulmões a arder e o coração aos saltos, o chefe da Polícia de segurança, Brunner, correu pela escada que subia para a chegada dos autocarros na porta de saída C65, para chegar à zona onde deveriam estar Hallbach e Ott, os dois peritos em explosivos da Polícia Judiciária.
Toda a zona C tinha sido entretanto isolada. Por cima da sua cabeça soavam ainda os altifalantes:
“Devido a uma avaria técnica somos obrigados...” Para evitar o pânico e para não assustar o pessoal e os utentes do aeroporto tinha sido dado ordem para responder a eventuais perguntas com a explicação de que se tratava de “avaria técnica”.
Pretendia-se afastar as pessoas sem nervosismo dos cerca de duzentos metros da zona C. No entanto, o pessoal de voo e assistência estava a par do que se passava. Apesar disso reinava em toda a zona uma calma surpreendente. As indicações eram seguidas rápida e discretamente; por todo o lado se viam os guardas da fronteira velando para que assim fosse. Os carros de abastecimento e assistência continuavam a passar. Dois rebocadores estavam nesse momento a rebocar um Jumbo da Swissair e um DC10 das linhas aéreas do Kuwait retirando-os lentamente da zona de perigo.
Mais abaixo, na zona de entrada da B42, estava um Topolev russo das linhas aéreas húngaras, Malev. Os escapes cuspiam fumo, as turbinas começavam a roncar. O Airbus da Lufthansa, que devia chegar à porta B43, já se tinha afastado no ar. As posições do terminal C estavam nessa altura completamente vazias.
E o raio do helicóptero ainda se fazia esperar? Não, ali vinha ele...
Pousou a pouco menos de vinte metros de Brunner sobre o betão sujo de óleo.
As portas abriram-se. Dois homens saltaram de dentro e correram dobrados na direcção dele. Vinham já vestidos com a roupa de trabalho, umas togas até ao joelho revestidas de um qualquer material resistente que em caso de explosão serviam para proteger o corpo.
Brunner perguntava com os seus botões para que serviria aquilo. Mas as ilusões mais úteis são as que mantêm as pessoas controladas no meio da loucura. O bombeiro mais novo, o que trazia o estojo das ferramentas, devia ser Ott. E o magricela? Era de certeza Hallbach, já uma lenda no mundo do combate ao terrorismo.
O piloto do helicóptero tirou mais uma caixa com ferramentas. Depois a hélice voltou a silvar e, numa curva ascendente, com os motores roncando, o helicóptero da Polícia elevou-se no céu cinzento.
O bombeiro mais baixo ia-se aproximando. Tinha cabelos louros, ralos e um rosto liso, redondo e honesto de um jovem camponês:
- Ott - apresentou-se ele.
- Venha comigo, Sr. Ott. Sr. Hellbach?
- Sim. Já conseguiram localizar?
Brunner abanou a cabeça.
- Estamos neste momento à procura.
Greif, o cão pastor-alemão, reagia sempre da mesma maneira. Assim que o treinador Walter Scheidt lhe dizia: “Greif! Cheira! Agora!” um tremor percorria-lhe o pêlo escuro e brilhante do dorso, as orelhas arrebitavam, a longa e arqueada cauda dava três ou quatro voltas. O animal mostrava nesses momentos uma alegre e excitada concentração. Levantava o nobre focinho, virava-se de lado, para a esquerda, para a direita, o longo nariz sorvia o ar e farejava.
No entanto, até para Greif, a nova situação se apresentava complicada. Primeiro fora treinado para procurar explosivos em bagagens, contentores de carga e recantos dos aviões. E agora? Um edifício longo como um corredor sem fim. No meio, o tapete rolante que, entretanto, tinha sido desactivado. As paredes de betão, vidro, revestimento plástico. O chão coberto com um material plástico reforçado, cheirando a Greif aos milhares de solas que, entretanto, o tinham pisado. Além disso, como iria o cão encontrar o que se escondia a dois, possivelmente três metros acima da sua cabeça, dentro de uma parede?
Brunner observava o trabalho do cão e pensava com amargura:
“Este merdas do Roser. Tinha realmente todos os planos de acesso ao equipamento do aeroporto. Os seus, do trabalho feito anteriormente e ainda cópias dos papéis do filho. Mas se os controladores tivessem inspeccionado tudo com exactidão, teriam podido verificar que alguma coisa estava errada...”
O bombeiro Hallbach tinha umas rugas profundas do lado direito e esquerdo dos cantos da boca. A pele sobre as faces parecia esticada. Mas aparentava ainda uma calma total, olhando de vez em quando para o relógio de pulso, um grande e chato cronómetro de alta precisão. “Bem precisa dele”, pensou Brunner. E ainda: “Que raio de profissão!”
- Ainda temos vinte e dois minutos.
Brunner fez um gesto de assentimento.
- Ou quinze - disse Hallbach.
- Como assim?
- Porque nunca se sabe. Porque os malucos fazem maluqueiras. E muito frequentemente, pode acreditar-me!
Ele acreditou. Mas que se passava com Greif ali?
A CERCA DE DEZ OU QUINZE METROS DO RECLAME GIGANTE NA DIRECÇÃO C65. Era o que dizia na informação.
O reclame gigante estava ali. Estava ainda iluminado. Luzes vermelhas, douradas e brancas: vermelhos os estofos e recepcionistas de um átrio de hotel, brancas as paredes, dourados os lustres, candeeiros e os adornos das colunas. Por cima podia-se ler:
STEINBERGER - UM CONCEITO DE FÉRIAS EXCLUSIVO
Que outra coisa poderia ser? Exactamente o que precisava! Brunner meteu-se ao caminho. Não eram dez e muito menos quinze metros. Nem mesmo metade. O cão tinha começado a raspar com as patas, sentava-se agora nas patas traseiras, os olhos cor de âmbar virados para cima, as orelhas para a frente, e depois saltou. Saltou partindo da posição de sentado. Brunner não sabia que um cão podia fazer, e fazia, uma coisa assim. Saltou contra o revestimento da parede, esticou-se em todo o seu comprimento, ficando da altura de Scheidt, o treinador que, naquele momento levantava a mão na direcção de Brunner num aviso para que o animal não fosse perturbado naquele momento de concentração.
Brunner ficou parado.
Também os outros tinham todos voltado a cabeça. E em todos os rostos havia a mesma expressão de excitada espectativa.
Greif começou a latir. Continuou a arranhar latindo, sentou-se novamente para ladrar com urgência, voltanto a saltar depois contra a parede.
- Muito bem, Greif! Bonito, Greif... és o maior! - Scheidt puxou a trela e levou o cão.
- Aqui! - disse ele levantando a mão.
- Bem, então vamos lá - disse o bombeiro Hallbach.
Não precisaram de mais de cinco minutos para desaparafusar a primeira placa da tampa do quadro. Media um quinto de um metro e estava aparafusada a um suporte de metal leve composto por uma grade de barras em U e continha também as ligações dos reclames luminosos.
- Nada.
- Há, sim! Está aqui qualquer coisa - disse o treinador dos cães. - À direita ou à esquerda, ou talvez mais acima.
Hallbach meteu a cabeça na abertura e procurou com uma forte lanterna no interior do quadro.
- Nada - disse ele. - Pelo menos não vejo nada. Retiramos a outra placa. A de cima.
Montaram a escada.
Brunner deitou uma olhadela ao relógio. Fê-lo disfarçadamente para não provocar nervosismos. Ainda vinte e um minutos. Caramba, aquilo era como num filme. Mas vinte e um minutos deviam chegar.
Olhou por uma das janelas. O terminal B com as suas entradas em forma de estrela estava completamente vazio, exceptuando o Topolev húngaro que ainda se encontrava com os motores em funcionamento em frente da entrada B42. No caso de haver realmente uma explosão, não lhe podia acontecer nada. A distância era demasiado grande.
Junto ao cordão de isolamento viu então um tipo grande e louro com um casaco de cabedal cor de caramelo que olhava para os seus homens. Não conhecia já aquela cara com a divertida popa de cabelo levantada? “Jornalista”, pensou ele. Era isso. Express. Como era o nome dele? Gõtter ou coisa parecida. Depois apareceu a correr um dos guardas de fronteira.
- Sr. Brunner, está aqui...
- Sim. Já sei. Gõtter, do Express.
- Chama-se Gõttner, Sr. Brunner. Diz que foi ele quem conseguiu que o alarme fosse dado imediatamente.
- Ele?
- Sim. E agora quer entrar aqui. Podemos deixá-lo entrar?
- Está maluco? Nunca!
Brunner voltou a olhar para o relógio. 16.44. Era como num jogo. Primeiro o tempo passava mole como borracha e depois desatava a correr.
- Diz que tem uma coisa a dizer-lhe urgentemente.
- Está bem - suspirou Brunner.
O cão pastor começou novamente a ganir. Os dois peritos continuavam em cima da escada e desaparafusavam outra placa.
- Como é que eles se sentirão agora, caramba!
com certeza que aquele jornalista presumido não tinha nada para lhe dizer. Tudo o que soubera dele era que tinha sido ele a dar o número de telefone da Polícia ao filho de Roser no hospital da Cruz Vermelha. Queria era dar-lhe a volta. Se não podia fazer fotografias? E agitou uma máquina fotográfica.
- Comprei-a no quiosque de propósito para isto. Até a minha fotógrafa chegar; bem, o senhor certamente sabe...
- Faça auto-retratos para que não a tenha comprado em vão. Não pode entrar aqui. Nada de fotos. Isto não é nenhuma exposição.
- Eh! Brunner! Afinal tem de me agradecer...
Brunner sacudiu a cabeça. Tipos como aquele confundem a vida toda com uma quermesse de feira. Até em situações como aquela! Correu de volta e verificou de passagem que o avião húngaro já tinha saído do sítio. Rolava lentamente entre os terminais B e C em direcção à pista.
“Parece-se com um 727”, pensou. “Só que mais pequeno...” Depois, Brunner parou. Greife Scheidt vinham ao seu encontro. Scheidt dava palmadinhas no pescoço possante do cão que, orgulhoso, de cabeça e cauda erguidas, trotava a seu lado.
- Encontraram a coisa - disse Scheidt, fazendo um gesto na direcção do cão. - Foi ele quem a encontrou.
- A sério? - Brunner olhou para os dois homens à sua frente. Estavam ainda os dois em cima da escada bem lá no alto. - Como é que ele conseguiu isso?
Brunner fez uma festa na cabeça de Greif.
- Bastam algumas moléculas de cheiro, Sr. Brunner. Se cheirarem a querosene, ele capta-as sempre. Mas agora temos de nos proteger, disseram os peritos. Começaram agora a desactivar a bomba.
O caminho aqui? Acesso aos voos ou lá como é que lhe chamavam, era enorme. Enorme, vazio e duas vezes maior que dantes. Lá ao fundo, atrás do cordão que vedava a zona ainda se viam alguns vultos perdidos.
Horst Ott, o bombeiro mais jovem, virou novamente a cabeça na direcção da escada, olhou para os tacões dos sapatos do colega Hallbach e pensou: “Não gosto nem de voar nem de voadores... Não me sinto seguro. Prefiro ir de férias no automóvel, em vez de me arrastar pelo aeroporto, cheio de malas, e meter-me depois dentro de uma lata de conservas...
“Que prefiro eu, Maiorca ou os E. U. A.? Gosto mais da Torre Eiffel. Ou mesmo da Floresta Negra. A Floresta Negra acaba por ser ainda mais bonita...”
- Dá-me a lima chata, Ott. - Foi arrancado aos seus pensamentos. - A número três.
- Aqui está. Como estão as coisas, Sr. Hallbach?
- Bem. Isto é uma ligação de principiante. Bastante primitiva... Mas o relógio encravou e não consigo chegar-lhe muito bem.
- E a carga?
- Não chega a meio quilo. Conseguimos tirá-la sem qualquer problema.
Sem problemas? Que seriam então os “problemas”? Tinha cá uma calma, o Hallbach. Frio como um arenque. Da última vez, naquele caso da Mafia, uma carga automática e ele a pegar no maçarico manual e a cortar o detonador a três centímetros da carga... E eu? Suei sangue e suor, não conseguia fugir, que situação de susto! Quase que fiz nas calças.
- Passa com a idade - dizia Hallbach a propósito de casos como o dele. Os anos tinha ele conseguido... como é que dizia o padre no baptizado de Benno?
- Rezar ajuda, Sr. Ott. Reze assim: “Senhor, ponho a minha vida nas Tuas mãos, “porque sei que aí estarei protegido...” mas não basta rezar, Sr. Ott! É preciso acreditar, palavra a palavra.
Uma merda é que eu o faço! Quando estoira, não há Senhor nenhum. Que raio de trabalho é este, afinal? De todas as vezes sentes o suor a correr das axilas pelas costelas abaixo.
- Não consigo simplesmente chegar-lhe - disse a voz de cima. Assim? Não, assim também não ...
Então como, Hallbach? Não consegues? O tempo urge. Faltam onze minutos para o desfecho. E se os dados não estivessem correctos?
Tinham de estar. Afinal, tinha o relógio à sua frente. Havia muito tempo que o tinha dito. Caso contrário também já teria fugido.
- Ott?
- Sim, Sr. Hallbach.
- Sobe pelo outro lado, isto é... um momento. Traz o coiso contigo.
O “coiso”. O seu “coiso”. Era uma tesoura especial construída segundo indicações de Hallbach com duas folhas de material plástico, duras como metal, que mantinham pressão igual em todos os seus pontos. Era um caso de mecânica. O “coiso” podia cortar como uma navalha de barba ao mesmo tempo que isolava. Se ele precisava daquilo era porque não tinha desligado o contacto? Começava a ser perigoso... Bem, até ali o “coiso” sempre tinha funcionado. Mas sempre que o utilizava, Hallbach fechava os olhos com força.
Ott sentia picadas na nuca. Depois sentiu calor. Nas palmas das mãos. Calor húmido. Deu um salto:
- Aqui!
Hallbach fez um gesto de assentimento. Agora Ott conseguia ver o ferro em U. E o relógio, um barato despertador doméstico. O porco tinha-o fixado com fita adesiva verde. Lá estavam os fios que faziam a ligação à carga, um quadrado castanho desbotado do tamanho da sua mão.
- Amonal?
Hallbach abanou a cabeça.
- Material experimental. Sobe mais um ou dois degraus. Depois inclina o relógio um bocadinho para a esquerda. Vais conseguir. Já experimentei.
O coração de Ott já não batia tão depressa. Estava incrivelmente calmo, quase dolorosamente lento. Também já não transpirava. Observou as mãos que já não tremiam. Fez o que Hallbach lhe dissera para fazer e sentiu a caixa do relógio na ponta dos dedos. Tremiam.
Hallbach montou o “coiso”, apertou o parafuso de ligação, deu-lhe uma volta, apertou um pouco mais...
Nos filmes de terror em que eles têm de desmontar uma enorme, redonda e brilhante bomba atómica, estão sempre quatro homens à sua volta. Cada um deles segurando um cabo na mão. E o quinto faz a contagem: Três, dois, um.
E depois: Agora!
Hallbach não fechou os olhos.
Cortou.
Olhando bem para o que fazia.
Silêncio. Nada. Só uma sensação de vazio no estômago e cem ratos nos intestinos. Finalmente, o sorriso:
- Bem, Sr. Hallbach. Afinal não foi assim tão difícil...
Hallbach pousou o “coiso” num degrau da escada e olhou para ele pensativo.
- Este fazedor de atentados não passa de um palerma!
- Como? Como diz? - Horst Ott tentou controlar a voz de forma a que soasse tão fria e calma como a do chefe.
- Repara bem, Ott. Até às cinco horas não havia nenhum avião previsto para este terminal. bom, se alguém do pessoal ou algum colega estivessem no tapete rolante, esses apanhavam. Mas com o bocadinho de explosivo aqui dentro, ainda por cima fechado, não seria necessariamente fatal...
E nós? pensou Ott. Nós estávamos sempre dentro...
Foi o seu último pensamento.
Como poderia ele ter-se apercebido do que se passou? Os seus nervos auditivos já não captaram a detonação. Só conseguiu distinguir uma espécie de neblina prateada, nuvens de vidros estilhaçados em milhares de fragmentos, sentindo-se elevado e atirado pelos ares.
Horst Ott também não ouviu o estrondo. Morrera instantaneamente. Partira duas vértebras do pescoço...
A deslocação de ar da explosão atirara a pesada escada como se fosse um brinquedo por cima da passadeira rolante contra a parede do terminal de acesso. O bombeiro Hallbach ficou estendido no chão três metros mais à frente. Procurava proteger-se abanando a cabeça ferida por inúmeros golpes que sangravam.
Na barreira à entrada do terminal ouviam-se exclamações de espanto, gemidos e gritos. A maior parte dos homens que aí se encontravam tinham-se atirado ao chão logo que se dera a deslocação de ar seguida da infernal explosão. Só Brunner e Gõttner que, institivamente, se tinham protegido atrás da saliência da parede de esquina, compreenderam o que se tinha passado.
A explosão não tinha sido no edifício, tinha sido no exterior, no terreiro entre o terminal B e o terminal C.
Mas Brunner tinha conseguido ver antes de as chamas lhe fecharem os olhos: tinha sido o Topolev húngaro.
Tinha estoirado nos ares ...
O Topolev 124A tinha saído de Budapeste em direcção a Hamburgo havia trinta e duas horas para levar um enorme carregamento de medicamentos e produtos medicinais. Organizações das igrejas católicas e protestantes do norte da Alemanha, numa acção conjunta, tinham reunido todo o material de ajuda humanitária para os povos da Bósnia em guerra civil.
Era um voo de aluguer. Não tinha havido hipótese de recrutar um avião nem em Zagreb nem em Ljubljana e assim, com o desenrolar da operação, o enviado do Governo croata tinha optado pelas Linhas Aéreas Húngaras Malev conseguindo alugar um avião a um preço de amigos.
Antes de o avião iniciar a viagem, a maior parte dos assentos tinham sido desmontados para criar espaço para as toneladas de medicamentos e aparelhos médicos.
Na quinta-feira à tarde, um grupo de jovens membros das organizações de juventude da igreja evangélica carregara o Tupolev, enquanto o Sr. Maric e a tripulação húngara, acolhidos por um simpático responsável da igreja, tinham sido convidados para dar uma volta pela cidade de Hamburgo.
Mais tarde, cerca das vinte e uma horas, um camião levara novo carregamento para o avião. Eram outra vez caixotes. Uns estavam marcados com o sinal da Cruz Vermelha alemã, outros tinham como indicação de remetente o nome de uma conhecida indústria farmacêutica. O camião de transporte pertencia a uma empresa internacional de Hamburgo. E, como anteriormente, a Alfândega fez as suas pormenorizadas pesquisas. Resultado: medicamentos.
É possível que os agentes em face de tão grande manifestação humanitária não tivessem sido muito cuidadosos. De qualquer forma, as consequências foram catastróficas. Se na Alfândega tivessem sido rigorosos nas suas buscas, teriam feito, sob uma camada de produtos farmacêuticos, um achado muito mais perigoso: minas antitanque! Às dúzias. Minas antitanque oriundas dos depósitos do extinto exército da RDA.
Cada um daqueles corpos explosivos em forma de prato, feitos de excelente aço, era construído de forma a desfazerem um tanque de sessenta ou setenta toneladas transformando-o em sucata. O Tupolev devia levar a bordo umas cem daquelas diabólicas peças. Assim indicava o resultado das investigações mandadas efectuar depois do acidente.
O avião iniciara às 14.40 h o seu voo para Zagreb. Após uma hora de voo fez escala em Frankfurt para levar os membros de uma organização governamental croata que se encontravam na Alemanha para uma conferência, bem como dois médicos da organização humanitária Médicos sem Fronteiras.
O grande e pesado avião saiu do estacionamento em B42 depois de a torre ter dado ordem de saída quatro vezes.
Testemunhas disseram depois que dois homens, segundo os passaportes, também croatas, mas que, aparentemente, não faziam parte da delegação de funcionários, tinham subido a bordo com livros de registo de carga e outra papelada.
Fosse como fosse, o Tupolev moveu-se sem rebocador entre os dois terminais de embarque e chegou pouco antes das 17.00 h ao fundo em forma de estrela do terminal B.
Também aqui se tinham entretanto ordenado todas as posições.
Fosse quem fosse que tivesse organizado aquele cenário infernal, tinha tido o cuidado de preparar o timing exacto das operações.
Nesse mesmo instante aproximou-se do cruzamento em estrela, vindo do lado ocidental, um dos grandes autocarros do aeroporto. Tinha escrito numa tabuleta ao lado do condutor as palavras “Carreira especial”.
O autocarro estava totalmente cheio. Tinha como passageiros quarenta e dois rapazes e sete raparigas, alunos de uma escola técnica de Hameln, na Vestefália. Ainda aí se encontravam dois professores, uma professora e o responsável pela viagem a bordo.
Os jovens poderiam estar um bocadinho cansados mas estavam de excelente humor. Havia duas horas que andavam em visita de estudo, tinham bebido Cola e comido salsichas, tinham trepado ao avião, tinham estado calados e impressionados no enorme estaleiro da Lufthansa, tinham aprendido coisas sobre os sistemas de navegação, controlo de voos, sinalização para aterragem e características das pistas, observaram antenas de radares e tudo o que respeitava a aterragens e descolagens. Até tinham estado no posto dos bombeiros, no terminal de carga e nos edifícios dos Correios.
Depois a visita chegara ao fim e, então, o avião e o autocarro encontraram-se num último, trágico e fatal encontro...
A sucessão dos acontecimentos, depois de tudo acabado, foi composta como um mosaico pelo relato de milhares de testemunhas. Todos os que tinham vivido o acidente, tinham-no vivido de forma diferente.
A descrição mais exacta foi feita por Sven Bergstrõm, um jovem promotor de viagens que naquelas críticas dezassete horas se encontrava no escritório de um agente de viagens situado em frente da estrela. Apesar do dia mortiço, Bergstrõm trazia óculos escuros pelo que não teve de fechar os olhos perante o clarão da explosão. Além disso, estava um pouco de lado, sob a umbreira de uma porta, e também não se escondeu instintivamente como o tinham feito a maior parte das testemunhas aquando da deslocação de ar provocada pela explosão; todas as testemunhas que se encontravam nos terraços da estrela já tinham sido evacuadas por questões de segurança.
- Pude observar exactamente como o Tupolev tentava rodear uma escada rolante de acesso a bordo e como, ao mesmo tempo, um grande autocarro dava a volta à estrela. Pareceu-me de qualquer modo estranho. O condutor parou o autocarro para deixar passar o Tupolev. E então deu-se a explosão. Uma chama fina como uma lança subiu no ar e nunca mais se apagou. A toda a volta era uma bola de fogo, e à roda da bola de fogo, nuvens negras de querosene. Nuvens imensas. Enormes, gordas e em forma de cogumelo, pelo que num momento de loucura pensei: “Isto é a guerra, lançaram uma bomba atómica. Ou alguém activou uma e nós vamos rebentar todos.”
Claro que não era nenhuma bomba atómica. Era fogo. E o fogo fazia um barulho louco. Roncava como dez Jumbos com os reactores a jacto a funcionar na potência máxima. Mas, mais grave ainda, era aquela enorme nuvem de fumo. E as pessoas que morreram. E aquela pavorosa chuva de destroços que começou a cair...
A monstruosa nuvem lambida pelo fogo ia subindo cada vez mais alto. Levava no seu interior milhares de fragmentos que pareciam dançar lá no alto um bailado assustador: pedaços de alumínio e metal, bocados de assentos rasgados, farrapos de estofos e bocados de instrumentos, bem como pedaços de corpos humanos.
Contudo, na orla inferior do assustador cogumelo, ali onde tocava no chão da passagem, deixando ainda ver o lado esquerdo e o focinho elegante do avião, da gorda e negra nuvem, saíam corpos: gente... gente nova, de braços abertos e de roupa e cabelos a arder.
Friedhelm Brunner também tinha observado a catástrofe. A única coisa que viu foi uma luz branca e crua no sítio em que o Tupolev ainda se movia. Não tinha visto o autocarro.
Rudiger Gõttner, por sua vez, só ouvira o estrondo que quase lhe rebentava os tímpanos. Atirou-se ao chão. Sentiu uma dor no braço tão forte, tão insuportável que começou a gritar.
- O meu braço... raios partam, o meu braço!
Brunner olhou para ele. “Tens de desembaraçar-te sozinho, meu rapaz.” Mas não o disse. Pensou-o. E pensou também no que agora esperava o Dr. Hansen na clínica do aeroporto...
Alarme de grau um!
Depois de ter sido dado o aviso de atentado do Roser, o médico-chefe Dr. Fritz Hansen exigiu que a aplicação do plano de emergência para casos semelhantes previsse que as equipas estivessem sempre a postos. A aparelhagem acessória, incluindo os fatos contra incêndios e as máscaras antifumo, foram colocadas na ambulância. Também os dois grandes carros, verdadeiros monstros de tecnologia com capacidade para acolherem até cento e trinta feridos para os primeiros socorros estavam prontos a funcionar. A ligação permanente com o posto de comando FS2 no quartel dos bombeiros para os casos de catástrofe estava igualmente a postos. Tinha dado tudo certo. E como não? Afinal, ano após ano, exercitavam casos semelhantes em exercícios de rotina. Cada passo, cada acção eram seguidos tal como o estabelecido pelas regras governamentais para os casos de emergência e catástrofe.
Um exercício de rotina só que com pressupostos um pouco mais realistas. Fritz Hansen tinha a certeza disso.
Até a breve reunião para acerto de procedimentos que o chefe do posto FS2, o polícia de serviço, comissário Riedl, bem como o chefe da Polícia de Segurança Brunner tinham tido com ele, davam força à sua atitude. Em dois pontos estavam todos de acordo: o provocador do atentado tinha escolhido o terminal C para actuar e castigar a clínica. Afinal, esta encontrava-se a menos de cento e cinquenta metros das portas C64 e C65. Em segundo lugar, com o seu edifício de construção massiça e à distância que se encontrava, a clínica não podia ser atingida pela explosão, no caso de não conseguirem despoletar a bomba.
O funcionamento da clínica seria, tinha de ser, assegurado.
As instruções de Hansen eram de que se continuasse a proceder como habitualmente...
Contudo, as portas ficaram fechadas. O número das urgências, 690-3000, fora desligado já que, tendo sido evacuada a zona C, ninguém podia aproximar-se da clínica. No entanto, havia muitos doentes para cuidar. Como por exemplo o senhor de idade, com cólicas de fígado, aparentemente devido a um bloqueio da vesícula. Em princípio deveria ter sido imediatamente levado para que os cuidados a prestar pudessem prosseguir, mas enquanto não fosse dado o fim do alarme isso não seria possível. Assim, mantinham-no sossegado com fortes analgésicos e tinham-no levado para um quarto.
Depois estava lá uma mulher que se encontrava sob um forte estado de histeria ou neurose. Tinham-na encontrado numa casa de banho em alto grau de excitação. Uma agente da Polícia que tinha tentado acalmá-la, fora mordida por ela numa das mãos. Ninguém conseguia perceber, através das suas palavras em catadupa e sem sentido que dizia no meio de lágrimas, o que tinha provocado aquele estado tresloucado. Não aparentava tratar-se de uma lesão cerebral, e assim, face à situação de tensão que se vivia, não restou ao Dr. Hansen nada mais que trata-la com fortes tranquilizantes, deitando-a depois num dos quartos da clínica.
O enfermeiro-chefe Fritz Wullemann, que ele tinha chamado devido ao seu instinto de compreensão da alma humana, levou-a até lá.
Hansen pegou no telefone:
- Bem. E que temos nós agora?
- É outra vez aquele rapaz com o ataque de asma. Foi picado por uma vespa... é alérgico. Está com péssimo aspecto.
Olhou para o relógio. 16.50 h.
- Neste momento tenho de ficar disponível. Diga ao meu colega Honolka que faça o favor de tomar conta do caso.
A porta abriu-se. Fritz Wullemann estava de volta.
- Como está ela?
- Como havia de estar? A injecção começou logo a fazer efeito. Tive de ser eu a metê-la na cama. Nem precisei de lhe segurar na mãozinha! Caiu imediatamente no sono. Doutor? Que se passa?
Hansen já não conseguiu ouvir as últimas palavras.
Um imenso e infernal estrondo parecia explodir nos seus tímpanos, um eco no seu cérebro, um estoiro na sala, o chão a tremer, as paredes balouçando.
O médico-chefe deu um salto como se uma força oculta o tivesse atirado para cima. Passado um segundo de silêncio total lá fora, levantaram-se gritos e pedidos de socorro.
E Fritz Wullemann estava ali, olhando para ele e dizendo o que ele mesmo pensava:
- Isto não foi no edifício, Doutor. Isto foi lá fora. E foi muito mais que uma pequena bomba.
Hansen correu para a janela. A clínica estava protegida pelo seu próprio pátio interior, os vidros das janelas tinham ficado intactos mas os caixilhos tinham ficado encravados. Arrancou-os.
Fumo. Uma imensa, escura nuvem de fumo. E agora, por todo o lado, nas varandas, telhados, placas de cimento, um estranho ruído de estalidos e tilintar. Ali, a menos de dez metros da capota do radiador da segunda ambulância, tremia no chão manchado de óleo um enorme pedaço de chapa de metal brilhante: alumínio. com os bordos negros do queimado e toda dobrada.
- Oh, santo Jesus! - gaguejou Wullemann.
- Lá para fora, Fritz!
Desataram a correr. Quando, juntamente com os outros, chegaram ao pátio, o ar estava cheio com o ruído estrondoso de um incêndio que se sobrepunha ao silvo das sirenes dos carros da Polícia e ao toque de alarme dos bombeiros.
Hansen e Wullemann correram para a ambulância para ocuparem as suas posições. O ressalto dos muros, o próprio pátio... Destroços por todo o lado. Os outros três médicos - Walter Hechter, o jovem Fred Wicke e Olaf Honolka -já se encontravam junto da ambulância nº 2. Todos eles, assim como cada um dos vinte enfermeiros e socorristas, sabiam qual o lugar a ocupar. Não havia nada a dizer. O primeiro transporte de doentes passava já por eles a toda a velocidade. Também nas duas ambulâncias grandes, aquelas monstruosas clínicas sobre rodas, os motoristas já tinham posto os motores a funcionar.
- Pronto, vamos embora, Reisser - exclamou Hansen. - Acelera!
O carro deu a volta no pátio. Em frente estava tudo a arder. Devia ser muito próximo da estrela. Nas pistas, nas zonas de estacionamento, até sobre os carros estacionados e sobre os contentores se viam destroços de vários tamanhos. Alguns eram minúsculos, do tamanho de estilhaços.
- Homem! Por amor de Deus, tem cuidado! - gritou Wullemann. O motorista fez com a ambulância uma perigosa curva em ângulo recto. Os pneus guincharam.
Então Hansen também o viu: Sobre as sujas placas de cimento estava caído o torso de um homem. Não tinha cabeça. Os braços e as pernas tinham sido arrancados. Do tronco destroçado escorria sangue...
- Bem, é melhor passar por aqui às sete horas - tinha dito o Professor Wollgiebel ao telefone...
O facto de o Dr. Rolf Grafe já se encontrar na sala de espera do professor dez minutos antes da hora marcada parecia não perturbar a muito atarefada estrela da ortopedia. Grafe tinha sido imediatamente convidado a entrar. E porquê? pensava Grafe. Porque tinha a consciência pesada. Que mais poderia ser? A princípio parecia que tudo corria muito bem com o tratamento depois do acidente, mas depois começaram as complicações: os parafusos das placas dos ossos tinham-se soltado pela segunda vez, a consolidação parecia atrasada, a malvada perna começou novamente a doer-lhe. E ele então, voltava a coxear naquela malfadada sala do chefe e tinha a possibilidade de escolher entre ficar a olhar para as fotografias penduradas nas paredes, com dedicatórias de pessoas importantes, ou para aqueles malfadados exames que o senhor professor estava naquele momento a observar juntamente com as inúmeras radiografias que encostava ao painel luminoso.
Grafe observava as costas do professor e a estreita, nobre e encanecida nuca.
É demasiado velho, é o que é. Devia ter exigido um cirurgião mais novo, mas nunca tive a possibilidade de o fazer.
O Professor Wollgiebel voltou-se.
- Agora chegue aqui ao pé!
E Grafe foi a coxear até ao painel luminoso.
- Está a ver, aqui... vamos conseguir pô-lo bem. Mais três, quatro semanas, não mais. Garanto-lhe.
- Três, quatro semanas? Isso é bastante desagradável para mim, Sr. Professor.
- Não é só para si, caro colega, não é só para si... - Wollgiebel olhou para ele por cima dos óculos, meio desolado, meio acusador. - As dores são assim tão difíceis de suportar, Sr. Grafe?
- Não são as dores. Trata-se do meu novo emprego. Ofereceram-me um lugar de cirurgião numa clínica de Gõppingen. Posso trabalhar aí em completa autonomia, o que para mim se torna bastante interessante. Queria lá ir na próxima segunda-feira. Para a visita de apresentação. As pessoas estão à minha espera.
- Bem, em face das circunstâncias especiais as pessoas certamente serão compreensivas? Certamente poderá adiar isso?
- Tudo se pode adiar, Sr. Professor. Simplesmente...
Não continuou. O pequeno altifalante sobre a secretária de Wollgiebel deu um estalido e depois ouviu-se a voz da sua secretária:
- Sr. Professor! É muito importante. Posso interrompê-lo por um minuto?
Wollgiebel carregou no botão do intercomunicador.
- Que se passa?
- Um horrível acidente no aeroporto, Sr. Professor. Parece que se trata de uma grande catástrofe. Aparentemente, um avião explodiu no meio da pista. Uma bomba. Temos de estar a postos. O alarme foi dado a todas as clínicas. Estão neste momento a dar a notícia na rádio.
Os dois médicos olharam um para o outro. Wollgiebel dirigiu-se à porta sem dizer mais nada. Grafe foi atrás dele coxeando como podia, cerrando os dentes para dominar as dores.
Grande catástofre? Que seria?
A secretária empurrou uma cadeira na sua direcção. Não se sentou. De cabeça esticada e olhos arregalados de espanto, ficou a ouvir a voz do lucutor no aparelho de rádio:
- ...TRATA-SE DE UM AVIÃO DAS LINHAS AÉREAS HÚNGARAS MALEV, ALUGADO PELO GOVERNO CROATA PARA LEVAR BENS DE AUXÍLIO PARA A ZONA DE GUERRA DA BÓSNIA E MONTENEGRO. DADO O ALCANCE E A FORÇA DA EXPLOSÃO, O AVIÃO NÃO TINHA A BORDO UNICAMENTE MEDICAMENTOS MAS TERIA TAMBÉM MATERIAL DE GUERRA E SOBRETUDO EXPLOSIVOS.
A EXPLOSÃO MATOU IMEDIATAMENTE OS QUATRO TRIPULANTES E OS PASSAGEIROS ENTRE OS QUAIS SE ENCONTRAVAM NÃO SÓ CROATAS COMO TAMBÉM DOIS MÉDICOS DA ORGANIZAÇÃO MÉDICOS SEM FRONTEIRAS. ATINGIU TAMBÉM UM AUTOCARRO DO AEROPORTO DE FRANKFURT QUE, POR ACASO, PASSAVA NAQUELA ZONA, ONDE SE ENCONTRAVAM QUARENTA E NOVE ESTUDANTES DA ESCOLA TÉCNICA HAMELN, BEM COMO TRÊS PROFESSORES DA MESMA ESCOLA. O NÚMERO DE VÍTIMAS E DE FERIDOS DE ENTRE OS ALUNOS E PROFESSORES QUE SE ENCONTRAVAM NUMA VISITA DE ESTUDO...
- Meu Deus - murmurou Wollgiebel. - Crianças!
... AINDA NÃO É CONHECIDO. TODOS os HOSPITAIS E CLÍNICAS DA REGIÃO DO RENO E DO MAIN ESTÃO EM ESTADO DE ALERTA DEVIDO À CATÁSTROFE. OS BOMBEIROS JÁ TÊM O INCÊNDIO SOB CONTROLO. O PESSOAL DA CRUZ VERMELHA E AS ORGANIZAÇÕES MÉDICAS AUXILIARES...
O locutor continuou a falar e para Rolf Grafe, cada palavra era uma tortura.
- Um táxi! - gritou ele.
A mulher atrás da secretária, olhou para ele sem perceber nada.
- Um táxi, caramba! Não ouviu? Peça-me imediatamente um táxi.
- Nesse estado certamente que não pode...
- Ai não que não posso! Vamos, depressa. Faça o que lhe digo.
“Em situações destas, em que algumas dúzias de feridos graves se encontram por aí caídos e lá fora continuam a chegar cada vez mais, não queres desatar a fugir dali. E como não sabes nada daquilo, tens a sensação de te afundar. Mas tudo isso desaparece no momento em que te colocam o primeiro sobre a mesa...”
Fora assim que falara o médico do Estado-Maior Jacob Hansen, chefe de um hospital militar na frente de batalha em Estalinegrado.
O pai de Fritz Hansen nunca contara muitas coisas sobre a guerra. Morrera pouco tempo depois de ter sido libertado da prisão russa onde se encontrava. Fritz sempre tinha escutado educadamente; também tinha sempre tentado imaginar tudo aquilo. Mas não tinha conseguido. Mas agora... agora sim! Agora via-o. E lembrava-se do que o pai tinha dito. Lembrava-se palavra por palavra:
“Em situações destas, soa a hora da verdade. Pois nesses momentos sabes com o que tens de lidar. Não só em relação aos outros mas também em relação a ti mesmo. É aí que aprendes a conhecer-te, meu rapaz... O mais importante é uma cama de ferro. Analisar a situação com toda a clareza e friamente, separar o caso nas suas várias possibilidades e manter-se nelas. Não vais conseguir salvar toda a gente. E o tempo que perdes junto de um moribundo está a fazer falta àquele que talvez pudesses salvar. Tens de proceder e pensar como uma máquina. E é isso que nessas alturas somos; nada mais que uma máquina...”
Nada mais que uma máquina?
Que significava isso?
Afastar o terror sentido perante os corpos despedaçados, membros decepados, rostos jovens desfeitos pelo calor, queimados, nos quais os olhos espantados pareciam pedir socorro.
Manter-se dentro das regras que ele mesmo estabelecera para a clínica do aeroporto com uma vontade de ferro.
Neste caso, em que a maior parte dos acidentados sofriam de graves queimaduras, tinham previsto equipar uma das ambulâncias gigantes Alpha com equipamento para primeiros socorros a grandes queimados.
No entanto, as vítimas de explosão não sofriam só de horríveis queimaduras na pele, mas também de outros ferimentos. Walter Hechter, que já tinha passado alguns testes no tratamento de grandes queimados, tomou a responsabilidade da ambulância Alpha. Tinha como auxiliar Dorothee Ôhlers, a nova anestesista, e além dela a melhor enfermeira de cirurgia, a “Tina de ferro”.
Olof Honolka e o jovem Fred Wicke, por sua vez, tinham a seu cargo a segunda ambulância gigante Beta, onde cuidariam dos não queimados.
O médico-chefe Dr. Fritz Hansen e o enfermeiro-chefe Wulleman tomavam conta dos casos mais graves nos dois carros. Isso permitia a Hansen manter o controlo. De momento, andavam de um lado para o outro no meio da fumarada para encontrar e recolher as vítimas.
- Sabe o que isto é, Doutor? - disse Wullemann tossindo. - Dante, é o que isto é. Puro inferno!
E era mesmo.
Hansen tinha os olhos a chorar. Levantou o transmissor:
- 02. Preparar as máscaras! Todas. Precisamos de todo o oxigénio possível. As pessoas estão aqui a morrer envenenadas pelo fumo antes de as conseguirmos meter no carro.
Continuou a andar. Tinha os pulmões a arder. Do meio da cortina de fumo negro e escaldante vinham os gemidos dos feridos e dos moribundos. Não se ouviam gritos, as vozes eram fracas e, contudo, era um coro horrível.
Depois, à sua volta fez-se tudo dolorosamente claro. Também o ruído infernal das chamas passara a ouvir-se baixinho. Os canhões de espuma dos carros dos bombeiros tinham começado a vencer a luta.
Mas então viram! E o coração quase lhes saltou.
- Oh! Deus - gemeu Wulleman. - São crianças. São todos crianças...
À esquerda, um pouco de lado, a menos de cinco metros de distância, a primeira vítima.
- Não, Doutor... meu Deus, meu Deus...
O bom Deus naquele momento não ajudava nada. A visão dos corpos estropiados e queimados ali sobre o betão ensanguentado era quase insuportável. Das pernas das raparigas só existiam as meias. Tinham sido decepadas à altura do joelho. E da carne viva viam-se os ossos a sair. Um blusão de ganga estava em farrapos sobre um corpo. O rosto negro como carvão e nele os olhos! A rapariga ainda estava viva e olhava para Hansen quando este se ajoelhou, tentando mesmo levantar a cabeça de cabelos totalmente queimados.
- Os garrotes, Fritz - disse-o quase automaticamente. - E depois plasma.
O MAIS IMPORTANTE: ANALISAR A SITUAÇÃO com CALMA E CLAREZA...
Afastou cuidadosamente os farrapos de ganga de cima do corpo. A rapariga tentava respirar, agonizava. Não sentia dores, estava em estado de choque. Possivelmente também sofria de envenenamento pelo fumo.
- Temos de a entubar, Fritz. Oxigénio se possível mesmo aqui, Se for possível...
- Socorristas! - berrou Wullemann. - Depressa, aqui! Máscara )e oxigénio!
Chegaram a correr. Um tubo endotraquial? Pelo nariz não podia ser, estava demasiado inchado. Mas a boca e o palato também pareciam estar afectados.
Hansen suspirou: o primeiro caso, a primeira decisão. Aqui parecia fácil. O rosto e os braços com queimaduras graves do segundo e terceiro grau,.acrescidas do choque provocado pelos ferimentos•.• Mas mesmo assim tinha hipóteses. Valia a pena lutar por elas.
Deitou no plasma um medicamento para a circulação.
- Levem-na imediatamente para a mesa de operações doAlpha - ordenou Hansen ao enfermeiro; - E digam ao Dr. Hechter para fazer já uma traqueotomia. é a única forma de a entubar. É uma questão de vida ou de morte para ela. Perceberam?
- Se percebemos, Sr. Doutor!
Os socorristas desataram a correr...
O seguinte, morto. Um rapaz..,., tronco, braços e rosto queimados. Só. os cabelos ainda se apresentavam louros. Tinha o cérebro esmagado.
E mais outra vítima. A menos de dez metros de distância. Hansen rastejava-pelo betão. A sua volta os chamamentos dos enfermeiros. Agora apareciam também guardas da fronteira para ajudar nas buscas. No entanto, o homem que ali jazia... Não se podia já calcular que idade teria. De qualquer maneira já não era jovem. A pele queimada, como que encortiçada, quase não se distinguia da roupa carbonizada.
Hansen procurou-lhe uma artéria no pescoço: Vivia! Ainda...
Mas aquele era um caso típico de queimadura dérmica. O fogo tinha queimado a pele até às camadas inferiores. As veias cutâneas? Não se via sangue, estavam entupidas, trombosadas... Pensou na regra-base: “Calcula a percentagem da superfície queimada e junta os anos de vida do acidentado. Se a soma for superior a cem, o caso é desesperado.”
E era.
- Levem-no para a ambulância grande onde estão os queimados - disse para os dois homens que se encontravam à sua frente com a maca. - E digam ao médico só este número: quatro. Estão a perceber?
- Quatro. Sim, senhor.
QUATRO. Para catástrofes daquele tipo tinham estabelecido quatro categorias: Primeiro os casos que necessitavam de tratamento imediato. Depois os casos que depois de um tratamento na clínica podiam ser transferidos. Em terceiro lugar os casos que não podiam ser transportados e, por isso, necessitavam de cuidados intensivos. Finalmente, a categoria quatro: desesperados... A única coisa que se podia fazer era aliviar um pouco as dores.
Categoria quatro: uma sentença de morte? Não. Não se podia salvar...
Pensava-o enquanto seguia a maca com o olhar e endireitava as costas doridas. Os pares de socorristas corriam por todo o lado levando a maca entre eles. Precisava de regressar para dar os passos mais urgentes na mesa de operações.
Recomeçou a andar depressa, controlando depois os seus passos. CALMA FÉRREA... De que serve estar junto a uma mesa de operações no carro de socorro com um pulso acelerado?
Enquanto assim andava, viu os destroços, estilhaços e ali o avião totalmente queimado cuja cauda tinha sido literalmente despedaçada, bem como o autocarro virado ao contrário e conseguiu mais ou menos reconstituir o que se teria passado. A potente detonação tinha afastado e virado o autocarro. Mas o incêndio não fora provocado como pensara pelo querosene que escorria do avião mas sim pela gasolina do autocarro. E não se devia ter incendiado imediatamente pois as portas de correr estavam abertas e muitos daqueles pobres jovens ainda poderiam ter-se salvo antes de o incêndio deflagrar...
- Meu Deus, Doutor - resfolegou Fritz Wullemann a seu lado. - Quando é que aparecem os outros afinal?
Sim, quando? Quando chegariam finalmente outros médicos? Contra esta imensidão de morte e dor eles não passavam de um pequeno grupo perdido...
O tempo perdera o seu significado. Segundos transformados em eternidade. Minutos que passavam como horas. No carro Alpha, a enorme ambulância onde os casos de queimadura estavam a ser tratados, as paredes laterais tinham sido elevadas e uma lona fora colocada a servir de cobertura. No espaço assim obtido estavam deitadas as vítimas. A maior parte já estava envolvida nas películas metálicas para poderem ser transportados. Os auxiliares corriam ao longo das filas de doentes, refrescando a pele nas zonas queimadas com água destilada, sacos de gelo, compressas geladas e lutavam contra o envenenamento pelo fumo sofrido por muitos dos estudantes, fazendo-os inalar oxigénio. Aplicavam catéteres e sondas, davam fortes analgésicos para evitar as dores insuportáveis e procuravam, com os meios adequados, afastar o choque das queimaduras.
Ali reinava o silêncio. Mas talvez esse silêncio fosse só imaginação de Hansen. Nada mais que vozes veladas, estertores, olhos fechados, rostos queimados.
Dentro de uma das tendas onde se faziam as operações, Walter Hechter estava nesse momento a tratar uma fractura exposta das costelas, pois antes de o queimado poder ser levado para um dos centros de queimados, tinha de receber os cuidados primários mais urgentes. Trabalhava em silêncio, concentrado e eficiente. Lucrécia e Tina Zander estavam a ajudá-lo. As lágrimas corriam pelas faces de Lucrécia.
Santo Deus dos céus, quando chegariam finalmente? Quando chegariam ali os primeiros das outras clínicas?
Hansen dirigiu-se ao carro Beta. Também ali o quadro era o mesmo: socorristas dobrados sobre as macas segurando ao alto sacos de plasma. Ligaduras ensopadas em sangue. Bocas abertas lutando por mais ar e rostos quietos, pálidos, infinitamente jovens...
Na segunda das três mesas estavam Fred Wicke e Olof Honolka a trabalhar. Fred Wicke cosia nesse momento com pontos apressados e incertos uma enorme ferida nas costas, recebia das mãos da enfermeira Barbei Rupert um dreno. Olaf Honolka, no entanto...
Hansen chegou no momento certo.
- Veja isto, Sr. Dr. Hansen! Um trauma no abdómen. E que trauma!
Britte Harpel que estava a assisti-lo tinha nos olhos a mesma expressão de impotência. “Olhos azuis como a flor do trigo”, pensou ele subitamente. Pareciam absurdos num ambiente como aquele.
Uma grave situação de risco de vida, sem dúvida nenhuma. A zona abdominal daquele pobre rapaz tinha inchado consideravelmente. Quando Hansen lhe encostou o estetoscópio ouviu perfeitamente os ruídos nos intestinos. Derrame sanguíneo, certamente. Rebentamento de uma artéria, talvez?
Britte Harpel tinha-se afastado sem dizer palavra indo buscar os instrumentos da lavagem. Admirou-a naqueles segundos. Não havia dúvida de que era necessário introduzir uma cânula, aspirar os líquidos e assim chegar a um diagnóstico correcto. Não havia tempo para mais nenhum exame...
Uma outra mão foi colocar-se ao lado da sua, tacteando a pele tensa e húmida do rapaz.
Fritz Hansen olhou para cima. Olhou para dois olhos escuros e concentrados.
- Tu?
- Sim, eu! - Rolf Grafe permitiu-se uma ligeira careta. - Espanta-te?
Hansen só abanou a cabeça. E não se lembrava de alguma vez na vida ter sentido um tal sentimento de calor e gratidão pela simples presença de uma pessoa.
- Fritz, pode ser uma artéria superior. Mas para mim trata-se de uma ruptura do fígado. De certeza que é. Devíamos abrir imediatamente. A lavagem não passa de perca de tempo.
- Nós?
- Eu - disse Rolf Grafe.
- com isso? - Hansen deitou uma olhadela à perna engessada.
- Sim. com isto. Wullemann consegues levar o doente para ali para a tenda esterilizada?
Wullemann acenou afirmativamente.
- E Britte... bem, Britte! Podes ajudar-me? Isto é, caso ainda me aceites como médico?
Britte acenou afirmativamente, tentou dizer qualquer coisa, hesitou um momento, acabou por o dizer mesmo em frente de todos os outros:
- Não só como médico...
- bom, então está tudo pelo melhor.
Fritz Hansen também achou que sim. Pelo menos naquele minúsculo segundo, por um longo momento de felicidade. Levaram o jovem paciente para o outro lado, para a tenda esterilizada. A mesa de operações já tinha sido preparada para receber o ferido seguinte.
Então uma voz qualquer disse subitamente:
- Estão a chegar! Finalmente... estão a chegar.
Agora também Fritz Hansen ouvia o ruído das sirenes de inúmeros carros de socorro a chegar.
- Vamos lá - disse ele. - O seguinte...
Os barcos dos pescadores eram brancos e elegantes. A maior parte tinha o casco pintado de verde até à linha de água. À frente, na proa, tinham pintados dois olhos pretos. Talvez para afastar os maus espíritos marinhos.
No alto dos montes castanho-avermelhados e cinzentos erguiam-se conventos e capelas. Havia a sombra dos pinheiros mansos e das oliveiras que se agarravam aos sítios mais loucos. E havia a espuma rosada das ondas. E, evidentemente, o mar! Um mar de um azul profundo, eterno e infinito. E ali, onde as ondas rebentavam contra as rochas, brilhava como esmeraldas.
O paraíso do cartaz turístico! Sem sombra de dúvida. Mas o vento que afagava a pele, a calma e o canto das ondas eram verdadeiros.
Hansen podia estar horas deitado na toalha com as sandálias atiradas para trás da cabeça. Não desejar nada, mas, sobretudo, sem pensar em nada. Deixar-se secar pela brisa.
Como todos os paraísos, este também era um paraíso com pequenos defeitos. Ao fim da baía erguia-se o vulto branco de um hotel. Em vez de mar, serviam ali uma piscina. No átrio podia-se assistir à visita do chanceler Helmut Kohl a Mitterrand ou ao último jogo do Campeonato Alemão, pois no telhado, não é verdade? tinham montado antenas parabólicas que captavam aquilo a que chamamos “actualidade”.
Mas a baía era grande e o Tróia Palace Hotel estava longe.
Às vezes Evi ficava com um olhar saudoso; ocasionalmente, levantavam-se ao mesmo tempo, caminhavam pela areia, molhavam os pés na espuma da rebentação, compravam na recepção do Tróia jornais alemães, tomavam uma bebida e regressavam à velha casa de pescadores, à rampa dos barcos e às inúmeras galinhas que debicavam o chão entre a nora e os oleandros.
Às vezes Evi ia sozinha ao Tróia. Não por sentir saudades de um átrio de hotel mas por saber que Hansen ocasionalmente gostava de estar sozinho, esperando a compreensão dela sem ter de o expressar.
Quando nessa tarde regressava, só viu a sua toalha. Uma mancha larga e vermelha na areia branca. Deixara-a sozinha? Onde se metera ele? Finalmente avistou-o. Estava sentado numa das rochas, junto à rebentação. Mesmo a seu lado espelhava-se a sombra violeta dos montes.
Parecia perdido e tão sozinho que o coração se lhe apertou. Tal como no princípio da sua viagem... Tinha desde o princípio insistido em levar o carro:
- Tenta compreender, Evi. Eu não quero e não posso voltar a ver nenhum avião...
Tinham rodado pela Europa durante três dias. Para além de algumas custosas tentativas para ser educado, quase não tinha falado. Sobretudo sobre o que ficara atrás de si.
Também pouca coisa se alterara durante as primeiras semanas na praia.
- Talvez eu não seja agora o parceiro de férias ideal, Evi. Mas vais ver, isto vai modificar-se.
Na terceira noite, antes de irem a Corfu, tinham-se amado. E fora tudo.
Agora, ao vê-lo ali em cima da rocha, perdido e solitário, apeteceu-lhe tirar da bolsa de palha o jornal que comprara no quiosque do “Tróia” e simplesmente atirá-lo fora. Ou queimá-lo. Não o fez. Despiu a camisa e correu para a rebentação, atirou-se para as ondas e o friu envolveu-a com um abraço consolador. Cortou a superfície brilhante das águas claras, mergulhou, respirou fundo e acenou-lhe.
Fritz acenou de volta.
Finalmente!
Deitou-se de costas e deixou-se flutuar. E então fez ainda outra coisa: abriu o fecho da pequena corrente que trazia ao pescoço, levou -a à boca, beijou-a e deixou que a corrente e o amuleto de Chris lhe escorregassem da mão. A corrente brilhou ainda, uma vez antes de se afundar...
Quando regressou à praia, os seus olhos voltaram a procurar Hansen. Sim, ali estava ele! E parecia estar com muita pressa. com grandes passos saltou pelas rochas, dirigiu-se para ela na areia, começou a correr, escorregou e caiu na água de braços abertos.
- Oh!
Ela riu-se dele.
Mas ele estava com um ar muito sério.
-Caramba, Evi, não sei como consegui arranjar uma mulher como tu! Quando te vi ali, como é que se chama... Vénus, a filha da espuma. .. fantástico de se ver como uma Evi Borges encarna uma divindade...
- Não digas disparates.
- Estou a falar o mais sério possível! É pena não ter comigo a máquina fotográfica. Tinha sido uma fotografia excelente. Digna da Vogue! ,
Riu-se. Queimado, dentes brancos, os cabelos também quase brancos do sol. Tinha-o novamente consigo, o velho Fritz!
Agarrou-a pela cintura, enquanto regressavam pela praia e enquanto corriam ia-lhe dando pequenos beijos no pescoço e no cabelo. E as ondas rebentavam como devem rebentar as ondas. Em frente, entre a casa de Gregor e a sua cabana de pescadores, ali onde se encontrava o forno do padeiro, uma fina coluna de fumo subia para o céu. Quase que era demasiado.
- Sabes o que acabo de descobrir, Fritz? Deixa isso... acaba lá com a brincadeira.
- Podem muito bem ver como gosto de ti. Que foi que descobriste?
- Que tenho um novo talento. O talento de libertadora.
- A sério?
- Quando estava ali em frente, no “Tróia”, e vi toda aquela gente nas cadeiras de repouso, disse para comigo: Evi, era isso mesmo. Nunca mais precisar de estar num hotel. Só de livre vontade ou para comprar o jornal. Nunca mais ter de servir o café a um macaco qualquer num Boeing... mas, em vez disso, tomar banhos de mar, fritar peixe, beber vinho. Assim como ontem...
- Certo! - Olhou para ela, transtornado de felicidade. - Nunca mais um hotel, nunca mais um avião, nunca mais uma clínica!
Tinham chegado junto do cestinho de Evi. O seu olhar deu com o jornal.
- Queres mesmo ler isto? É o Frankfurter de ontem.
- Não se trata de querer. Mas devia... Traz alguma coisa?
Ela fez um aceno de confirmação.
- O quê?
- Não li. Só os cabeçalhos da primeira página.
Ele sentou-se ao lado do cesto e ela enroscou-se a seu lado deixando a areia escorrer-lhe através dos dedos.
O vento soprava contra o papel.
Dava trabalho folhear o jornal. Então descobriu o artigo.
Estava na página seis na secção regional. Só tinham passado duas semanas desde a catástrofe do aeroporto e o interesse das pessoas começava a diminuir. As notícias tinham passado das primeiras páginas para as interiores.
Autor do atentado no aeroporto suicida-se, noticiava o título.
Roser...? Pobre diabo. Hansen tentou recordar-se da cara de Roser, daquela cara contorcida pelo ódio. Não conseguiu. Só se lembrava da boca. Dos cantos trémulos da boca onde se formavam bolinhas de cuspo.
O técnico de electrónica de 49 anos de idade, Karl Roser, que na passada semana se entregara à Polícia por tentativa de atentado com uma pequena bomba de relógio desactivada no último minuto, suicidou-se por enforcamento na sua cela da prisão preventiva. Os guardas encontraram o cadáver de Roser durante a sua ronda matinal. Faz parte dos muitos acontecimentos estranhos da catástrofe do aeroporto, o caso dos dois agentes que no momento da explosão do avião húngaro estacionado entre os terminais B e C se encontravam a desactivar a bomba posta por Roser. Um dos agentes teve morte imediata.
A Polícia excluiu qualquer ligação entre os dois acontecimentos como sendo absolutamente impossível. No que diz respeito à explosão do avião Tupolev, citamos oporta-voz do comando da Polícia, chefe da comissão de investigação, o director da Polícia Judiciária do aeroporto Alfred Meisel:
AS VERDADEIRAS RAZÕES DESTE ACIDENTE QUE TIROU A VIDA A VINTE E QUATRO JOVENS NUNCA VIRÃO POSSIVELMENTE A SER CONHECIDAS. PELO MENOS ATRAVÉS DAS INVESTIGAÇÕES TÉCNICAS PARECE NÃO SER POSSÍVEL. SE SE TRATOU DE UM CASO DE NEGLIGÊNCIA - ENTRE AS MINAS DA RDA PODERIA ENCONTRAR-SE ALGUMA NÃO DESACTIVADA OU DE QUALQUER PROCEDIMENTO ERRADO NO EMBARQUE DA CARGA, OU SE A EXPLOSÃO FOI UM ACTO DE SABOTAGEM, SÃO QUESTÕES QUE CERTAMENTE FICARÃO PARA SEMPRE SEM RESPOSTA. COMO CERTO SÓ TEMOS A GUERRA E O ÓDIO QUE NA EUROPA CENTRAL TRANSTORNAM AS PESSOAS.
De qualquer modo, Roser não teve nada a ver com o caso. Segundo relatos dos seus parentes já havia algum tempo que sofria de depressão e era dado a comportamentos descontrolados...
Roser? Não, não quero lembrar-me dele, pensou Hansen, mas o número fica:
VINTE E QUATRO...
Não, Hansen não podia revoltar-se contra este número e também não contra o que com ele estava relacionado e que para ele significava gemidos, murmúrios, olhos suplicantes em caras queimadas, o tilintar dos instrumentos, o pulsar do balão ao ritmo da respiração...
Vinte e quatro!
Cada uma dessas pessoas podia estar sentada a seu lado, correr pela areia, ir à pesca, atirar-se ao mar, mergulhar... Cada um deles.
- Podiam ter morrido mais, Fritz - dissera Rolf Grafe, quando o fora visitar antes da viagem para Corfu -, muitos mais... Que queres, afinal? Valeu a pena o que fizemos. E de que maneira! Por isso eu continuo com vocês...
Hansen olhou por cima da barra de espuma na margem. As ondas iam e vinham e iam. E de todas as vezes que recuavam deixavam na areia pequenos deltas por onde a água escorria para depois voltar...
Evi estava calada.
Ele pôs a mão sobre a dela. Era bom senti-la.
Então reparou no seu pescoço fino e queimado do sol.
- Falta-te uma coisa, Evi. A corrente?
- Não falta nada... - Voltou-se para ele sorrindo. E o vento atirava-lhe os cabelos contra a cara. - Já não preciso mais dela.
- Mas eu preciso de ti-disse ele pondo-lhe o braço à volta dos ombros.
Heinz G. Konsalik
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