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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COÁGULOS DE UM CRIME / Alec Baurer
COÁGULOS DE UM CRIME / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Rue de l’Odéon, Paris.
— Madame Lafayette, bitte.
— Da parte de quem?
— Fëll. Edmund Fëll.
Subiram uma ampla escadaria que levava ao que Edmund Fëll supunha serem os aposentos privados da casa.
Entraram num quarto grande. A coberta da cama era de tecido cor de vinho, e o drapeado de veludo. As cortinas estavam fechadas, os vidros abaixados. Só vez por outra entrava um pequeno sopro de ar fresco.
Os olhos do detetive brilharam de uma forma especial olhando para a senhora sentada diante do cavalete de pintura. A sensação de intimidade que se desprendia daquele olhar fez Madame Lafayette baixar o pincel.
— Monsieur Fëll, Madame — disse o criado.
— Obrigada.
Fëll olhou com interesse e apreciação para Sabine Lafayette. Um tipo de mulher cosmopolita, com os cabelos curtos muito loiros e lambidos. Tão cosmopolita que usava um elaborado vestido de noite feito de chiffon verde-musgo.
A dama de ouro no topo de seu palácio de cristal.
Sabine Lafayette tinha a cabeça bem-posta sobre os ombros, enquanto a boca e os lábios cheios e sensuais pareciam ter sido desenhados a lápis e pintados com giz de cera.
Uma frase ressoou nos ouvidos do detetive numa espécie de excitação impetuosa:
— Entre, Herr Fëll.
Edmund Fëll obedeceu como se o tivesse recebido um empurrão. Quando se adiantou para cumprimentá-la, notou que os olhos cinza-escuros o escrutinavam com muita curiosidade.
Fëll dirigiu-se a ela e penetrou na luz.
— Está tudo bem, Madame?
— Perdão?
— Perguntei se está tudo bem.
— Ah... Não tão bem assim, infelizmente.
— Alguma coisa a aflige?
— Sim. Uma coisa grave me aflige. Não sei o que fazer. Oh! Não sei... O que acho é que devo contar-lhe exatamente o que aconteceu, pois o senhor é a única pessoa que pode saber o que fazer. Ouvi muitas coisas boas a seu respeito. Quando fizeram a recomendação, disseram-me que o senhor é um buldogue do crime. É verdade?

 


 


— Ho-ho! — exclamou o detetive. — Já fui chamado de muitas coisas, mas de buldogue é a primeira vez.

— Independente de quem seja, suplico que o senhor me ouça. Esteve envolvido no recente caso do peixeiro de Bregenz, não esteve?

— Está apelando para a minha vaidade, Madame?

— Talvez esteja. Qual foi o veredito do caso?

— Es tut mir leid, mas, por respeito aos interesses das partes e até mesmo por uma questão de segurança, não posso divulgar o veredito, só podendo afirmar que a condenação foi expressiva, embora menor do que foi divulgado, e o cumprimento da pena se dará numa prisão federal.

Sabine Lafayette sentou-se, muito rígida, e pousou o pincel na mesinha de centro ornada com um falso bronze. O rosto estava duro; somente o pezinho se agitava no ar.

— Veja, Herr Fëll... algumas pessoas tentaram me dissuadir de falar com o senhor. Disseram que é um charlatão... um enganador. Mesmo assim, estou inclinada a confiar em suas habilidades.

— Viele danke — agradeceu o detetive.

Sabine Lafayette inspirou profundamente.

— Eu tinha um irmão — disse. — Algumas pessoas dizem que ele era uma grande estilista. Eu acho que era. Ele sabia como focalizar as coisas, qualquer coisa, como chegar ao âmago delas e, então, achar uma solução. Isso não quer dizer que não fosse durão e arrogante! “Na minha equipe, não quero um robô que simplesmente siga direções”, dizia ele. A equipe de meu irmão era pequena, sem intenção alguma de se expandir, exatamente para garantir exclusividade a seus clientes. As coisas, porém, não estavam indo muito bem. Havia cada vez menos gente com dinheiro para gastar em alta costura. Excelentes estilistas apareciam, eram aclamados por algumas temporadas e, depois, simplesmente desapareciam. Eu conhecia o mundo da moda suficientemente bem para saber que Alain não tinha mais nenhum contrato que gerasse qualquer renda apreciável. Estava, basicamente, tendo que contar com a boa vontade de parentes e amigos para conseguir manter os negócios em dia. As coisas estavam nesse pé quando em uma manhã de julho, uma quinta-feira, houve um fato que transformou o que era um mero problema familiar numa tragédia que abalou todo o país. Ele foi assassinado. É preciso que o senhor leve isso em conta, Herr Fëll. Alain foi assassinado!

A testa de Fëll se enrugou por um momento de perplexidade. Ele murmurou:


— O que disse o laudo?

A voz da mulher desceu a um tom mais impressivo e suas palavras saíram destacadas e distintas:

— O laudo deu a entender que ele se matou. Suicídio em estado de privação de sentidos! Uma dessas bobagens... Mas eu sei que ele não faria isso. Deve haver uma maneira de descobrir a verdade. O exame post-mortem revelou a presença de uma considerável quantidade de cianeto de potássio em seu organismo. O cianeto, de acordo com a teoria da polícia, teria sido autoministrado. Foram encontradas algumas pastilhas de cianeto no bolso da calça de Alain.

— O laudo diz ter sido suicídio. Mas Madame acha que foi assassinato, não é?

— Sim.

Fëll, que abrira momentaneamente os olhos para observar os efeitos de sua pergunta, tornou a fechá-los.

— Por que motivo?

— Nenhum.

— Nenhum? Madame — sorriu ele com indulgência. — Por que alguém ia se dar ao trabalho de extinguir a vida de um homem cuja morte não lhe traria nenhum benefício?


— Espere... O senhor acha que alguém cometeu o crime porque visava algum... lucro?

— Também. As razões, em si, podem ser as mais variadas. Mas a mais forte delas normalmente envolve dinheiro.

Sabine Lafayette estava de boca aberta e olhos arregalados.

— Mas quem? Não consigo imaginar...

— Por que alguém ia querer matá-lo? Sabe se ele tinha algum inimigo?

— Não! Alain vivia isolado, como todos os que conheceram a época sangrenta do pós-guerra. Ou será que ele foi morto por causa do que ele disse?

Fëll reagiu como um navegante ao ouvir o canto de uma sereia. Inclinou-se para frente, as orelhas em pé.

— O que foi que ele disse?

— Em breves palavras, ele disse que sabia de alguém que estava planejando cometer um assassinato.

— Ele disse que sabia de alguém que estava planejando cometer um assassinato?

— Sim. Durante um baile... terça-feira à noite.

— Madame estava lá? Madame mesma ouviu quando ele disse isso?

— Ouvi.

— Ele fez alguma referência quanto à razão do comentário?

— Não. Absolutamente nenhuma.

— E Madame acha que, por causa disso, ele tenha sido morto?

— Eu sei que parece loucura — disse Madame Lafayette com nervosismo. — E é bem possível, Herr Fëll, que o senhor ache que estou fazendo uma tempestade em torno de algo que não tem a menor importância. Mas...

— Não, absolutamente. Não penso nada disso. Madame não fez nenhuma pergunta na ocasião?

— Não.

— Quando e onde foi que ele morreu? — perguntou Fëll. — Pela manhã, à noite, no sótão, no porão, durante uma viagem?

— De madrugada... no ateliê dele.

— Antes de bater o martelo, há mais coisas que devo saber. Como era o nome completo de seu irmão?

— Alain Evril.

— Alain Evril? — disse Edmund Fëll.

— Sim.

— Evril... acho que já ouvi falar...

Ela fez uma pausa, depois continuou.


— Meu irmão era um homem muito bom. Lembro-me que ele e eu éramos muito apegados. Certa vez, fiquei de cama, com catapora. Toda vez que eu abria os olhos, lá estava ele. Não importava a hora do dia ou da noite que fosse: lá estava ele... sempre. Sentado, de pé, passeando pelo quarto como um animal enjaulado, até que eu abria os olhos; então começavam as ordens: levante-se, sente-se, beba isto, coma aquilo. Tome um banho, vá para a cama, durma. Tem gente... agora... que diz que fui eu que o matei.

— E Madame... o matou?

— Não, claro que não! O senhor tem de entender onde eu entro. Eu tinha dezessete anos na época em que aquilo... aconteceu. Muito jovem para saber qualquer coisa. Eu me lembro de meus irmãos, é claro, e me lembro de termos a visita, naquele dia, de cinco ou seis pessoas. Lembro-me de todos serem muito gentis comigo... e me lembro, muito claramente, de como todos diziam que eu era simpática, essas coisas que as pessoas dizem para uma adolescente acima do peso. Outra coisa de que lembro é de que, naquela manhã, tomei café... um pouco antes de dar uma saída. Quando voltei, já tinham levado o corpo para a autópsia. É claro que eu sabia, qualquer pessoa saberia, que havia alguma coisa errada... mas não sabia o quê.

“Nas semanas e meses seguintes houve o inquérito. Os principais serviços noticiosos transmitiram a história para jornais de todo o mundo. Vários jornalistas, ao redigirem suas reportagens, deram a entender que a história não estava bem contada. Após um tempo, o veredito dado foi suicídio e o caso acabou sendo arquivado. Mamãe era amável comigo, e eu ia à escola e tinha muitos amigos, e assim, com o tempo, acabei esquecendo o ocorrido.

“Mas, quando fiz 38, comecei a fazer perguntas. Sobre meu irmão, quero dizer. Quem ele era e o que fazia?”


— Entschuldigung — interrompeu Fëll, empalidecendo. — Madame disse: quando fez 38, começou a fazer perguntas?

— Oui. Por quê?

— Ora, mas... Então isso já faz... um tempinho.

— Hoje? Trinta e dois anos.


— Trinta e dois? — balbuciou o detetive.

— O senhor disse que já tinha ouvido falar...

Edmund Fëll ficou sentado um ou dois minutos, olhando para ela com um olhar sério, pensativo. Estaria mesmo ouvindo aquilo? Estaria aquela mulher querendo... não, não podia ser!

— Eu disse, é?

— Disse sim — disse ela, inflexível. — Eles não quiseram contar, mas eu insisti, insisti tanto que, por fim, acabei vencendo pelo cansaço, como se diz. Foi... foi horrível. Durante todos esses anos, Alain estava morto... enterrado... e ninguém tinha dito uma única palavra disso para mim.

As faces de Madame Lafayette ficaram vermelhas e em seguida perderam novamente a cor.

— O senhor entende? — ela disse. — Esconderam isso de mim por quase vinte anos! Quando eu descobri, foi arrasador. Mas... apesar disso... continuei levando minha vida. Afinal, como mudar o que passou? Mas agora... de uma hora para outra... surgiram rumores. Rumores que não posso tolerar. Dizendo que alguém matou Alain. Que alguém é o responsável pela morte dele.

— Há alguma prova disso?

— Não, não. São rumores, nada mais. Eu até gostaria que me dessem alguma prova. Mas ninguém me dá nada.

— Entendo — disse Fëll. — O que não entendo é o que Madame quer que eu faça?

— O que eu quero? O senhor já deve ter percebido o que eu quero. Quero que investigue o caso, naturalmente. Essa história precisa de um final, Herr Fëll. E o senhor vai dar o final a ela.

Após um breve silêncio, Fëll prosseguiu:

— Seu irmão tinha amigos íntimos, sócios, parceiros de negócios?

— Lamento, mas isso eu não posso responder, Herr Fëll. Não sei quase nada do trabalho de Alain. É melhor o senhor conversar com o ex-contador dele.

— E quem é o ex-contador?

— Jules. O meu outro irmão.

— Madame, deixe-me dizer uma coisa. Quando há um crime, os detetives vão e interrogam as testemunhas e consultam os integrantes da perícia. Está vendo? Os detetives vão ao local do crime! Mas... no caso em questão...

— Oh! Isso não vai ser empecilho para o senhor, vai? Talvez não tenha estado lá no dia dos acontecimentos... e nem poderia. Mas muitas pessoas estiveram... e elas ainda estão vivas. Ligue... entre em contato com elas. Interrogue-as. Não quero que pense que vou deixar para lá, porque não vou. Tudo bem se o senhor não terminar sua investigação. Não estou dizendo que o senhor deva fazê-la. A vida é sua, e o senhor deve vivê-la como quiser. Mas, a meu ver, o senhor é o único a altura do caso — é simples assim. Então...? Vai aceitar, não vai?

O detetive coçou a nuca. Que embrulhada!

— Não quero constrangê-la, mas vou tornar tudo muito claro — disse. — Fico muito agradecido pela oferta, mas estou pegando firme, no momento, em outro caso. Eu...

Ela cortou as suas desculpas:

— Eu quero... preciso... de sua ajuda, Herr Fëll. Trata-se de um caso de assassinato.

— Ocorrido há trinta e dois anos.

— Mas, mesmo assim, um assassinato. Sou irmã dele. Tenho direito de saber... o que aconteceu a Alain. Não é justo que eu fique na ignorância. S’il vous plaît...

Madame Lafayette sabia exatamente o que queria e quando, e Fëll percebeu que não seria capaz de confundi-la. Felizmente — Fëll acrescentou este parêntese — havia alguns pontos interessantíssimos no caso, por isso disse:

— Muito bem, Madame, caso seja verdade o que contou, vou ajudá-la a encontrar a pessoa que assassinou o seu irmão.


O solar

 

Dois dias depois, o Le Figaro noticiou na primeira página a reabertura do inquérito sobre o suposto suicídio de Alain Evril, ocorrido há mais de três décadas. Segundo os boatos, um detetive estrangeiro havia tomado conta do caso. Alguns se lembraram vagamente que o detetive deixara uma impressão positiva em casos semelhantes.

Enquanto a notícia era ventilada para apreciação do público francês, Edmund Fëll encontrou em sua caixa de entrada um e-mail do promotor Aillevard, que ocupava o ministério público, com uma cópia do inquérito da morte de Alain Evril.

O e-mail parecia ser obra de uma secretária negligente. Boa parte do texto era pura enrolação, e o relato consistia em vastas doses de invenção e especulação do tipo “Acho que...”, “Se não me falha a memória...” Continha poucas informações além das que o detetive já tinha coletado.


“A causa mortis é suicídio mesmo, pelo menos para a imprensa e o público. Oficialmente. Respeito as suas motivações, mas não creio que vá achar um juiz que dê ordem para fazer uma investigação de homicídio ou para exumar o cadáver para uma segunda autópsia.”


Fëll balançou a cabeça. Tudo conforme o esperado.

Logo, estava seguro, tudo se esclareceria. As informações de que precisava viriam, não tinha a menor dúvida quanto a isso.

Hora de visitar a própria cena do crime.

 

 

II


Um chofer alto, de libré verde-oliva, encaminhou-se em direção a Fëll.

— Monsieur Fëll?

— Para Soisy sur Seine, bitte.

— Indo para o solar Oakleight?

— Sim.

Ele pegou a pequena mala de Fëll e abriu caminho em direção a uma Mercedes estacionada no meio-fio. Lá chegando, abriu a porta e acomodou o passageiro.

A viagem durou uns 30 minutos em uma rodovia sinuosa pelos campos, até que, por volta das três horas, entraram numa estrada de terra. Campos de videiras cobriam o solo dos dois lados até se perderem de vista. Quando o carro fez uma curva mais adiante, Fëll pôde ter a primeira visão do solar.

Por um motivo qualquer, esperava um solar simples, no estilo tradicional. Mal conteve uma exclamação de espanto ao ver a fachada com as suas duas altas torres! Eles seguiram através de um pequeno bosque até alcançarem a casa. O chofer saltou mais uma vez, abriu a porta da Mercedes, e Fëll desceu. A porta da frente estava aberta e um mordomo apareceu de imediato no primeiro degrau.

— Herr Fëll? Bom dia.

Fëll entrou no vestíbulo. O mordomo ajudou-o habilmente a tirar o chapéu, e disse-lhe no murmúrio respeitoso:

— Monsieur Jerome está à sua espera, Herr.

Ele conduziu o visitante ao longo do hall e abriu uma porta à direita.

— Monsieur Edmund Fëll — anunciou.

— Ah, sim — disse uma voz masculina lá de dentro.

Fëll olhou para a mão estendida e então para os sorridentes olhos azuis, com uma expressão polida, embora distinta. Monsieur Jerome. O atual proprietário do solar Oakleight.

Monsieur Jerome era escritor, viúvo e vivia sozinho, exceto pelos criados.

— Bendito seja Deus — disse Monsieur Jerome. — Não pode ser, mas é. Sim, deve ser. Tenho ouvido falar do senhor. O senhor é austríaco, não é?

— Ah — disse Fëll —, Monsieur sabe quem eu sou.

— E como não saberia? Os jornais só falam no senhor. Vi a sua fotografia... A sua cruzada solitária cativou a imaginação das pessoas.

— Fazer o quê? — suspirou Fëll.

— O que o traz aqui?

— Assassinato.

Os dedos de Monsieur Jerome se crisparam.

— Ah, puxa! Que coisa. Aquele assassinato. Como o senhor me descobriu?

— Pesquisando — disse Fëll.

— Por mim?

— Pelo solar.

— O solar é do século 18, e a propriedade tem 20 acres — disse Monsieur Jerome enquanto levava o detetive para um passeio informativo. — Veja... Ali, do outro lado, fica o rio com uma ponte de troncos; lá, um bosque um pouco maior. Estou fazendo umas reformas na ala leste.

— O projeto está seguindo dentro do prazo?

— Dentro do prazo dos empreiteiros. Oito meses de atraso! Um excesso de custos de vinte por cento!

— Empreiteiros — disse Fëll balançando tristemente a cabeça. — Monsieur comprou a casa?

— Sim, comprei este lugar num momento de loucura e tenho tentado tirar algum rendimento dele. As terras entraram no negócio, praticamente como brinde, como se diz.

— Alguém do anterior quadro de funcionários continua com o senhor?

— Sim. Porath, o mordomo. Perdão, mas há pouco o senhor mencionou um assassinato...

— Não um assassinato. Um assassinato que aconteceu aqui — em uma propriedade privada —, o que torna o caso muito mais interessante.

— Se o senhor se refere ao que suponho, pois não me lembro de nenhum outro assassinato que tenha ocorrido aqui, e que esteja sendo tão amplamente noticiado, posso perguntar como posso ajudá-lo?

— Vim para cá, Monsieur Jerome, para ver o ateliê.

— Por aqui... — Monsieur Jerome fez um gesto para que Fëll o seguisse. — É ali atrás.

— Danke.

Os dois contornaram a quina do solar. Após alguns metros, Monsieur Jerome deu um passo para o lado e, à maneira de quem faz as honras a um excursionista, abriu uma porta.

— O ateliê — anunciou. — Estava sempre franqueado ao público, mas ultimamente pouca gente vem aqui.

— Mas, por quê?

— Acho que têm medo.

— E por que teriam medo?

— Porque, graças ao senhor, todo mundo acha que alguém foi assassinado aqui dentro — disse Monsieur Jerome, e estremeceu um pouco. — Como pode ver, está tudo em ruínas. Não o tenho usado, pois para mim não tem utilidade.

Fëll acendeu a luz — escondida por trás de um globo de alabastro, pendurado no teto. A peça era grande e numa forma octogonal. Uma porta em arco levava para o quintal dos fundos.

— Então, foi aqui que aconteceu — murmurou Fëll.

— Sim. Pobre Monsieur Evril! Um grande artista, qualificado em processamento e desenho têxtil. Aqui era o seu local de gestação e criação.

Mentalmente, Fëll formou uma imagem do que tinha acontecido ali trinta e dois anos atrás.

— Posso dar uma olhada?

— Fique à vontade.

Monsieur Jerome saiu, fechando silenciosamente a porta atrás de si. Quando o homem se foi, Fëll deteve-se por um instante, organizando seus pensamentos. Olhou em volta.

“Um lugar muito impróprio para um assassinato” disse ele para si mesmo.

O austríaco pôs-se lentamente de joelhos e, com um lenço, recolheu algumas migalhas de cera. Migalhas que deviam estar ali há muito tempo. Erguendo-se, começou a andar de um lado para outro, olhando ora um objeto ora outro. A um canto, uma escada de mão fixa desaparecia num alçapão no teto.

Fëll soltou um gemido meio afogado.

Diante da janela havia uma mesa de carvalho; na mesa, uma pasta e duas ou três tesouras. Na pasta, alguns papéis de reclame com o timbre Ateliê Evril Evril e um envelope azul com as mesmas indicações.

“Nenhum vandalismo” pensou Fëll. “Nem o menor estrago.”

Fëll saiu.

Monsieur Jerome esperava por ele.

— Não há muito para se ver — disse Fëll.

Monsieur Jerome voltou a cabeça e olhou para o ateliê.

— Não parece o tipo de lugar onde ocorreu um crime, parece? — perguntou.

— Não mesmo.

— O senhor quer voltar à sala de estar?

— Não — disse Fëll. Inclinou-se respeitosamente sobre a mão estendida de Monsieur Jerome. — Adeus, Monsieur, obrigado por me haver permitido ver o cenário da triste ocorrência. Já falamos muito e não quero que perca mais tempo.

— Bem, desejo-lhe um bom dia.


Jules Evril

 

— O senhor vir aqui para falar de Alain, eu até compreendo — disse Jules Evril. — O que eu não compreendo é por que quer falar especificamente sobre a morte dele.

— Quer dizer que não se lembra? — perguntou Fëll.

— Tolice. Acha que eu ia poder me esquecer disso? Eu me lembro muito bem. Alain era meu irmão mais velho. Mas isso já faz... quanto?... vinte e nove, trinta anos!

— Trinta e dois, Monsieur.

— Pois aí está. Trinta e dois anos. É muito tempo. Tempo demais.

Jules Evril era completamente diferente de sua irmã, Madame Lafayette. A única semelhança entre eles era o contorno do queixo.

Jules Evril não era nem de longe o homem que Fëll imaginava ser. O nariz era largo e com poros dilatados, os lábios uma linha fina e contínua. A voz soava clara e bem timbrada, mas o olhar... O olhar era fixo, obsessivo, reluzente, quase sinistro.

— Mas me diga... Qual a razão de sua curiosidade no caso?

— Estou só revendo alguns detalhes.

— Revendo alguns detalhes... hum — Jules Evril não parecia muito convencido. — Duvido muito que consiga rever alguma coisa. Devia tentar os registros oficiais.

— Sim, sim... — disse Fëll com a máxima indulgência. — Eu já fiz um pedido formal para a liberação dos documentos. Nesse meio tempo, estou adiantando o serviço, por assim dizer.

— O caso é bastante simples. Meu irmão se matou.

— Mas Monsieur sabe que não havia motivo para ele se matar.

Jules pareceu surpreso. Deu um sorrisinho malicioso:

— Acha mesmo que não havia motivo para ele se matar?

— Bem... pensei que, quanto a isso, houvesse um consenso da família.

— De que diabos o senhor está falando?

— Não lhe ocorre imaginar o que pode ter acontecido?

Jules encarou fixamente o detetive.

— Que importa? Quero dizer... o que isso tem a ver?

Fëll se controlou com muito esforço.

— Sim, Monsieur. Eu sei. Mas, além disso, não lhe ocorre imaginar que seu irmão pode ter sido assassinado?

— Não.

— Não lhe interessa saber?

— Não muito, creio.

— Pois eu fui encarregado de averiguar — disse Fëll.

— Foi mesmo?

— Sim. Não vim com intenções hostis. Só quero apurar o que há de verdade no que me foi dito. Meu propósito é tirar isso a limpo. Monsieur não se opõe, não é?

— Eu... me opor? Claro que não. Eu adoraria se o senhor desse uma checada nesse assunto. Só uma coisa... Acabou de dizer que havia um consenso da família. Quem lhe disse isso?

Sabendo perfeitamente que ia ser inútil mentir sobre sua fonte de informação, Fëll disse:

— A sua irmã me contou.

— Minha irmã?

— Sabine Lafayette. Ela não está satisfeita, não, não está satisfeita mesmo. Ela alega que estão correndo por aí certos rumores...

— Rumores? Que rumores?

Fëll hesitou, debatendo internamente o que poderia revelar dentro da ética. A reabertura do caso da morte de Alain Evril tinha sido noticiada pela mídia. Madame Lafayette não pedira confidencialidade.

— Rumores dizendo que talvez tivesse sido assassinato.

— Sabine disse isso? Ela disse isso para o senhor? Ha! Ha! É engraçado.

— Não percebo a graça...

— Não percebe a graça? Seja lá o que for que Sabine tenha dito, saiba que ela tende a ser um pouco apressada em seu julgamento.

— Apressada? Quer dizer que ela não o avisou sobre suas crenças e suspeitas?

— Acredite, Monsieur Fëll, eu não sei de nada, sou capaz de jurar, e não estou muito interessado em descobrir.

— Mesmo sendo ela a sua irmã?

— Principalmente sendo ela minha irmã. Talvez para Sabine seja uma questão de honra saber a verdade. Para mim... se Alain se matou ou foi morto? Dane-se! Li o laudo oficial que chegou do laboratório. O médico fez o exame de sangue logo depois da autópsia, e mandou as amostras ao laboratório para que as confirmassem. Alain se envenenou.

— Havia pessoas que, porventura, queriam que ele se desse mal?

— Os concorrentes, claro.

— Não estou me referindo a um grupo — disse Fëll. — Eu estava pensando num indivíduo específico.

Jules fez que não com a cabeça.

— Foi o que eu imaginei — disse Fëll. — Havia algo de suspeito no passado dele? Sócios desonestos? Dívidas de jogo? Namorada desprezada?

— Não também.

— Algo que sugerisse comportamento suicida?

— Não. Mas e daí? Mesmo gente sem comportamento suicida pode vir a tirar a própria vida, não pode?

— Quem estava lá no dia?

— Nós estávamos e nossos amigos.

— Amigos a que ponto?

— Próximos.

— O que faziam?

— Ríamos. Dançávamos. Discutíamos. A noite toda, às vezes.

— Monsieur ouviu seu irmão dizer que sabia de alguma coisa relacionada a um assassinato?

— Ah, é a isso que o senhor se refere?

— Sim, é a isso que me refiro — disse Fëll.

— Para ser franco, ouvi sim.

— Acha que ele tinha provas daquilo?

— Não, é claro que não — disse Jules.

— Monsieur acha então que Alain Evril não sabia nada sobre crime nenhum?

— Isso me parece óbvio.

— Ele tinha mania de dizer essas coisas? — perguntou Fëll.

— Oh, ele tinha mania de dizer qualquer coisa — respondeu Jules. — Aposto, porém, que ninguém acreditou nele.

— Monsieur acha que ninguém acreditou?

— Bem, eu o ouvi falando, mas não dei muita importância. Sabine riu, eu também.

— Então, na sua opinião, por que ele disse aquilo?

— Oh! Não quero ser caluniador, porque Alain está morto, e nem seria decente de minha parte, mas ele era um mentiroso incorrigível. Talvez seja covardia dizer isso, mas é verdade.

— Quem acha que matou seu irmão, Monsieur Jules Evril? Monsieur conhecia os seus amigos, devia saber quem não gostava dele.

— Não posso imaginar quem poderia querer matá-lo.

— Não haveria alguém que tivesse discutido com ele ou que não se desse com ele?

— O senhor quer dizer se ele tinha um inimigo? Não, acho que não.

— Pelo modo como fala, julgo que Monsieur fez sua própria investigação na época.

— Sim.

— Pode me contar como fez isso?

— Bem... para começar, revistei o ateliê.

— E o que encontrou?

— Nada. Pelo que vi, estava tudo em ordem.

— Continuo escutando.

— Mas fiz uma descoberta.

— Qual?

— A janela do ateliê que dava para o jardim estava com sua metade de baixo aberta. Geralmente era a parte superior que ficava aberta, presa por um trinco.

— Parece fascinante — disse Fëll sem qualquer entusiasmo.

— É mais fascinante do que supõe — disse Jules seríssimo.

— Acha que o assassino invadiu o ateliê pela janela? Ora, isso não parece fazer muito sentido.

— Não foi o que eu disse! Deixe-me dizer uma coisa. Depois do funeral de Alain, mamãe fez um esforço coordenado para reunir tudo que podia em matéria de evidências. Contratou um sujeito como o senhor, Herr Fëll, um detetive. Pagou-o para que ele encontrasse uma pista, qualquer coisa que comprovasse que Alain tinha sido assassinado. Eu poderia ter compartilhado essa informação com a polícia, mas o senhor sabe o que eles teriam dito? Que mamãe era louca por fazer que meus amigos, ou ex-amigos, fossem perseguidos por um detetive. O que, evidente, ia ser muito verdadeiro! No fim, ela compreendeu que poderia gastar milhares de euros e contratar todos os detetives particulares do mundo, mas nunca teria provas suficientes para convencer ninguém de que tivesse sido homicídio. Olha, não acredito nessa história de assassino. Se tivesse havido um assassino, teria sido muito difícil para ele se safar. O tema da morte de meu irmão foi comentado, debatido e dissecado de forma tão passional e ardorosa quanto a polêmica envolvendo o capitão Dreyfus.

— Qual foi o sentimento geral das pessoas em relação à morte dele?

— Consternação.

— Pode contar qual foi o seu sentimento?

— Oh, golly, não sei se consigo. A morte de Alain foi muito comovente e me assombrou por muito tempo.

— Queria que Monsieur me contasse se, naquelas últimas semanas ou meses, o seu irmão se mostrou incomodado, nervoso, ou se ele, algum modo, estava mudado?

Jules Evril aguardou que Fëll acrescentasse algo mais à pergunta, mas, como isso não aconteceu, fez uma pausa para refletir. Por fim respondeu:

— Não, não me ocorre nada. Passei a vida competindo com ele por uma coisa ou por outra. Quando éramos jovens, competíamos pela aprovação de nosso pai; ainda que todo mundo, incluindo eu mesmo, soubesse que jamais ia ser para meu pai o que Alain era. Alain! O grande Alain! O cara que não se metia em política, que não era afiliado a nenhum sindicato ou coisa do tipo. A única coisa que importava para ele era a linha de roupas para a estação seguinte. Mas, não, ele não estava particularmente nervoso, nem nada parecido.

— Não notou nada de estranho, de diferente, nele?

— Algo estranho? Não. De vez em quando, Alain era dado a ataques de “estrelismo”, mas felizmente se recuperava. Eu aceitava e compreendia a sua instabilidade porque é isso o que um irmão faz, não é?

— Um desentendimento com alguém?

— Não, ele estava como sempre foi. Feliz. Ele...

— O quê?

— Às vezes ele olhava para a gente como se fosse pela última vez. Por uns segundos, naquela tarde de quarta-feira, ele me olhou daquele jeito. Foi só um olhar.

— Já é alguma coisa.

— Isso vai ajudá-lo a achar o suposto assassino de meu irmão?

— Há pouco achei tê-lo ouvido dizer que não acreditava que ele tivesse sido assassinado — assinalou Fëll.

— Bom, é que... — gaguejou Jules.

— Além do olhar, houve outra coisa?

— Gostaria de poder ajudá-lo, acredite. No momento, porém, não me lembro de nada que pareça importante.

Fëll balançou a cabeça; mudou de assunto:

— Eu queria um levantamento financeiro dele. As contas bancárias, a declaração de renda, o patrimônio. Algo a respeito de seus negócios, quanto rendiam por ano.

— Por quê?

— Para ver se estava endividado, para ver se há alguma coisa que justifique o alegado suicídio.

— Ora, posso informá-lo sobre isso. Alain não tinha dívidas. Quer dizer, nenhuma dívida de grande monta. Só as habituais, comuns a qualquer empresário. Ouça, se o senhor não tiver mais perguntas...

Fëll fez um gesto delicado:

— Só mais duas ou três perguntas, Monsieur Evril. Qual era a natureza da sua relação com seu irmão?

— Eu trabalhava para ele.

— Para ele ou com ele?

— As duas coisas, pode-se dizer.

Fëll o instigou com um olhar inquisitivo, e o francês prosseguiu:

— Eu comecei trabalhando para ele, mas, no começo daquele ano, nós combinamos que, em outubro, eu passaria a sócio de seu empreendimento.

— Sócio igualitário?

— Minoritário.

Jules olhou para Fëll.

— Por que o senhor quer saber tudo isso? Sinceramente, não percebo direito as suas razões.

— Eu preciso saber de todos os detalhes sobre seu irmão; onde estudou, há quanto tempo era estilista... uma porção de outras coisas. Enquanto eu não entender quem ele era, não tenho como entender o que aconteceu.

— O senhor está sugerindo que Alain tenha sido assassinado por uma das pessoas que esteve lá com ele?

— Pode parecer improvável — disse Fëll tranquilamente —, mas é possível que Alain Evril, na qualidade de anfitrião, tivesse informações que representavam um perigo para alguém.

— Informações que representavam um perigo para alguém? Quer dizer, um de nossos convidados? É isso que o senhor está sugerindo, detetive?

— É. Acha que um deles...?

— Por Deus não! — disse Jules.

— Ainda que seja só para excluir essa possibilidade, pensei que Monsieur, tendo estado lá, pudesse me fornecer uma lista com o nome das pessoas presentes.

— Não pretende envolvê-las nisso, pretende?

— Garanto que vou fazer o que puder para não constranger ninguém.

Jules fez algumas anotações em um bloco de papel.

— Rabisquei alguns nomes aqui. Vai evitar um bocado de dificuldades, fazendo perguntas por aí. Sete nomes. Sete pessoas. Mas, por favor, tenha em mente que não se trata do tipo de gente que costuma ser objeto de investigação policial.

Fëll estudou a lista. Seu semblante, antes calmo, se anuviou. Em voz alta, leu:

— Gen. Émille Tullet. Jacques Hurwitz. Georges Souchet. Laiane Hambour... — parou, olhou para o francês e repetiu o último nome: — Laiane Hambour.

— Pode ser — disse Jules. — Talvez o senhor consiga alguma coisa aí.

— Por quê?

— Sumiu da noite para o dia, e nunca mais se ouviu falar dela. — Jules pigarreou. — É tudo?

— Sim — disse Fëll. — Havia mais uma coisa, mas acho que nem vale a pena mencioná-la.

— Pois não.

— Madame Heatherston.

— Madame Heatherston... a governanta? O senhor vai vê-la também?

— Sabe onde ela mora?

— Eu só tenho o endereço. Rua Saint-Jacques, na margem esquerda do Sena.

— Irei lá olhar — disse Fëll. — Quem sabe isso me propicie alguma inspiração...

— Se eu fosse o senhor, não deixaria de ir.

Fëll se levantou da poltrona e estendeu a mão.

— Danke. É tudo de que preciso para o momento. Caso se lembre de mais alguma coisa... qualquer coisa, ligue. Mais uma vez, obrigado por ter conversado comigo.

Fëll inclinou a cabeça, o chapéu numa mão, a lista de nome na outra, e se dirigiu para a porta.


A governanta

 

— É muita gentileza de Madame Heatherston concordar em me receber.

— Eu a aconselhei a não fazê-lo — foi a resposta brusca de Monsieur Heatherston. O rosto estava inchado e aborrecido. — Não devia receber ninguém. Mas ela é teimosa!

— Eu não quero incomodar... — disse Fëll.

— Nesse caso, não devia ter vindo — retrucou Monsieur Heatherston. — Aguarde nesta sala — disse, e saiu.

Edmund Fëll ficou imóvel um instante, pensativo. Depois se aproximou de uma das janelas e afastou a cortina. O céu estava limpo e a seus pés as águas do Sena refulgiam à luz do sol. E, estendendo-se até o alcance da vista, casas e prédios de todas as formas e tamanhos.

“Paris! A cidade-luz.”

— Bom dia! — ouviu às suas costas e Fëll se virou para cumprimentar Madame Heatherston.

Madame Shirley Heatherston era uma mulher alta e magra, de cabelos grisalhos e nariz de tucano.

Esbelta e aprumada, ela saudou o detetive com um aperto de mão afetuoso, mas surpreendentemente forte. Os seus olhos intensamente pardos, repletos de serenidade, flutuaram para o marido, e então de volta para Fëll. Eram muito pequenos, úmidos e foscos devido à idade.

— Tenho que ir à loja de ferragens comprar estacas para a plantação de tomates — resmungou Monsieur Heatherston.

Monsieur Heatherston foi para a porta que deixara aberta e se deteve. Ficou um momento ali, imóvel, e, quando a mulher olhou para ele, apontou para as costas do visitante e moveu os lábios, dizendo “Bi-co ca-la-do”. E saiu.

— Não ligue para Remy — disse a velha, levando o detetive a duas poltronas fundas, acomodou-se em uma delas e ofereceu a outra a ele com um gesto. — Remy acha que não se deve remexer o passado. Ah, gente velha é assim mesmo.

Fëll se instalou comodamente diante da velha e presenteou-a com um olhar cativante. O fogo ardia na lareira, e dava para ouvir os estalos dos gravetos recém-adicionados.

— Lamento conhecê-la nestas circunstâncias, Madame. Muito obrigado por me receber.

— Posso servi-lo em alguma coisa? Remy disse que o senhor tinha algumas perguntas a fazer.

— Sim, Madame. Sobre uma coisa que aconteceu muitos e muitos anos atrás.

— Ah! O senhor quer saber uma coisa de mim.

— É para isso que eu vim. Mas agora que estou aqui... Bom, nem sei por onde começar — e Fëll fez um resumo do caso. — Talvez seja difícil para Madame se lembrar, mas qualquer coisa... por pouco que seja... pode ser de ajuda.

— Sim, faz mesmo muito tempo. Mas... sabe... tem certas coisas que a gente nunca esquece. Pauvre garçon! Morrer daquela forma.

— Garçon? — Fëll sorriu. — Creio que ele tinha 35.

— Tinha. Mas, para mim, que cuidei dele, que o ninei quando era bebê, Alain sempre foi e vai continuar sendo meu menino. O velho Evril queria que ele fosse estudar numa universidade, mas, antes de terminar o colegial, Alain decidiu largar a escola e fazer um curso de estilismo.

— E Jules Evril? — perguntou o detetive dando novo rumo à conversa. — Qual era a sua relação ou envolvimento com o irmão?

— Jules era o contador do ateliê.

— Quando o irmão morreu, ele continuou sendo o contador?

— Infelizmente não. Quando Alain morreu, a empresa morreu com ele.

— Oh! — disse Fëll. — Lamento se eu pareço impertinente e importuno, mas preciso perguntar essas coisas para, aos poucos, ir montando o quadro com todos os fatos. Gostaria que me dissesse se Madame consegue se lembrar dos acontecimentos na véspera da morte de Alain Evril.

O olhar da velha senhora ficou enevoado, como se ela estivesse enxergando memórias há muito esquecidas.

— À tarde, eles fizeram um piquenique.

— Tomaram alguma coisa?

— Tequila, licor de cassis, chá.

— Drogas? — perguntou Fëll.

— Não! — disse a velha senhora. — Por Deus, não!

— Todos estavam lá?

— Sim. Por que... Acha que um deles o matou? É isso o que pensa?

— Quantas pessoas estavam presentes na ocasião?

— O senhor se refere ao piquenique e tudo mais?

— Sim.

— Bem... deixe-me contar. Um, dois, três... seis... nove. Acho que eram... sim, eram nove pessoas.

— Algum estranho?

— Não. Só amigos. Alguns mais do que outros. Acho que a maioria tinha sido colegas de escola. Terminado o piquenique, todos se mandaram para casa, onde continuaram a beber. Depois do jantar, eu fiquei acordada para ajudar a lavar a louça. Sabe, havia um bocado de copos sujos, móveis fora do lugar e outras coisas pela casa.

— Madame se lembra de Mademoiselle Hambour?

— Oh! Sim... Lembro-me dela, sim.

— Mademoiselle Hambour era uma moça atraente?

— O senhor quer dizer atraente para homens ou rapazes?

— Não — disse Fëll —, acho que quis dizer... bem... o sentido comum da palavra.

— Era atraente, sim. Mas não acho que fosse uma moça muito confiável. Não era daquelas com quem se poderia manter uma amizade muito sólida. Era a espécie de garota que gostava de se exibir e de se gabar.

— Pelo que ouvi dizer, a sua patroa, Madame Evril, não estava em casa naquela semana.

— Não. Madame Evril estava fora, visitando uma irmã.

— A senhora gostava de Madame Evril?

— Eu estimava muito Madame Evril. — A voz eficiente se suavizou, ganhou calor e sentimento. — Pena que tenha morrido tão jovem! Cinquenta e dois anos... A morte do filho, e tudo o que se seguiu, acabaram com a coitadinha.

— E da filha... Sabine... a senhora gostava da filha?

— Oh, não aguento pensar nisso. Realmente, não aguento.

— Não quero afligi-la — disse Fëll —, nem quero contristá-la relembrando fatos penosos, mas é importante.

Fëll viu-a pensar na pergunta e tentar enunciar a resposta. Notou uma revelação passar de seus olhos aos seus lábios, mas, bem quando ela ia falar, Monsieur Heatherston voltou a entrar no recinto.

— Não me lembro de ter dito ou dado a entender que o senhor era bem-vindo — Monsieur Heatherston pôs as mãos na cintura. — E, mesmo assim, o senhor continua aqui.

— Está tudo bem, Remy — interveio Madame Heatherston, fazendo um gesto conciliador com a mão.

— Eu fiquei ali fora... fiquei ouvindo. O senhor está repetindo as mesmas perguntas que a polícia fez naquela época — rosnou o velho acrimoniosamente. — As mesmas perguntas.

Fëll achou apropriado esclarecer a situação:

— Em primeiro lugar, Monsieur Heatherston, não acho que tenha perturbado a sua mulher. Às vezes, lembranças previamente esquecidas ou detalhes inicialmente considerados irrelevantes vêm à tona, Monsieur. É por isso que preciso fazer as mesmas perguntas que a polícia fez. E em segundo lugar, não posso admitir qualquer tipo de limitação em minha investigação.

— Por favor, detetive, não perturbe mais a minha mulher.

O velho fixou os olhos em Fëll e fez um gesto na direção da porta. Fëll estava sendo convidado a se retirar.

Fëll poderia ter argumentado que Monsieur Heatherston estava interferindo em uma investigação em andamento, e que isso consistia em uma violação da lei. Não parecia ser o momento.

— Obrigado por tudo, Madame — disse Fëll.

Mantendo o sorriso, saiu.

Fëll começava a se perguntar se a suspeita de Madame Lafayette não era mesmo real. Se fosse, a investigação para valer provavelmente havia acabado de começar.


Claude Fichée

 

Edmund Fëll já estivera antes em Madri por motivos profissionais, porém, era a primeira vez que visitava Sevilha, ao sul da Espanha.

Madame Lafayette insistira em pagar-lhe o hotel e se apressara em fazer a reserva. Assim, depois de uma rápida passagem pela recepção, Fëll foi conduzido ao seu quarto.

Depois de ajeitar suas coisas e providenciar um táxi, Fëll percorreu o mais luxuoso bairro da cidade, passando por prédios e casarões majestosos. Finalmente o táxi parou e, em seu espanhol enrolado, ele perguntou ao motorista se poderia vir buscá-lo dentro de duas horas.

Fëll apeou e, sem vacilar, subiu alguns degraus de pedra e tocou uma campainha. Logo ouviu passos se aproximando da pesada porta de entrada.

O mordomo que o atendeu olhou-o com reprovação por alguns segundos. Edmund Fëll disse rapidamente:

— Vim para ver Monsieur Fichée. Ele está?

O homem abriu a porta, permitindo que ele entrasse.

— Queira esperar aqui, Monsieur — disse o mordomo, encaminhando-o para uma sala decorada com móveis europeus. — Vou ver se o Monsieur Fichée pode atendê-lo.

Enquanto esperava, Fëll estudou a sala. Havia um relógio de bronze sobre o console de mármore cinza-esverdeado. No chão, um tapete grosso e estampado por delicados ramos de íris amarelos. “Nada mal!” pensou Fëll.

Logo a porta se abriu e um homem apareceu. À primeira vista, parecia ser um homem tremendamente arrogante. Do alto de seu porte aristocrático, olhou para o detetive, de cima a baixo, com uma expressão de altivez em seus olhos.

“Este homem deve ter caído num pote de gel!” avaliou Monsieur Fichée, detendo o olhar no cabelo do detetive. Além do gel, Fëll usava uma camisa branca e uma gravata de seda escura. Tinha algo nele, talvez a rosa vermelha que levava na lapela, que fez Claude Fichée segurar o ar nos pulmões.

Tudo em Claude Fichée exalava riqueza e prestígio. A julgar pela aparência, devia ter uns cinquenta e cinco anos. Apesar disso, mantinha-se forte, com um ar juvenil, esportivo, realçado por seu paletó de tweed, de corte impecavelmente francês.

“Um símbolo vivo de centenas de anos de tradição e berço”, pensou Fëll.

Com um rápido “Olá”, Monsieur Fichée disse:

— Herr Edmund Fëll, suponho. Sente-se. Um uísque? Ou prefere manzanilla?

— Manzanilla?

— Um vinho espanhol, mais propriamente andaluz. Uísque ou manzanilla?

— Nenhuma das duas coisas. Vim aqui para trabalhar, Monsieur, não para celebrar.

Monsieur Fichée falava um inglês sem sotaque, mas apesar de sua voz polida e controlada, Fëll pôde sentir a contrariedade em seu tom. Por quê? Teria pressentido o motivo da sua visita?

— Perdoe-me por vir sem ser convidado, Monsieur Fichée. Vim vê-lo para...

— O senhor veio para conversarmos sobre a morte de Alain Evril — interrompeu Claude Fichée bruscamente.

— Sim — disse Fëll. — Entenda, Monsieur, que minha participação neste caso é unicamente em benefício de Madame Lafayette.

— Sei, sei, entendo. O senhor quer ser pago e, naturalmente, precisa fingir que está examinando as evidências para satisfazê-la.

Claude Fichée... o primeiro nome na lista do detetive... indicou uma cadeira, prosseguindo em seguida:

— Desde que o senhor surgiu com essa história, a minha vida virou de cabeça para baixo. Sabia que, cedo ou tarde, o senhor viria falar comigo.

— Isso o chateia?

— Bastante.

— Para ser honesto, não esperava que aceitasse minha oferta.

— Do ponto de vista literário, o que o senhor está fazendo é meio clichê, sabe. Já conseguiu alguma coisa?

— Tenho algumas pistas. Agora só preciso saber qual encaixa em qual.

— Vai ver o senhor ainda não adotou a estratégia certa. Eu sei que acha que alguém matou Alain. Mas, para mim, ninguém tinha motivos para matá-lo.

Fëll, que já ouvira a frase um sem-número de vezes, sorriu.

— Então não acha que a teoria seja crível?

— Não, não acho que seja crível.

— Por que Monsieur não conta tudo do seu jeito?

— Do meu jeito — disse Monsieur Fichée. Uma sombra passou pelo seu rosto, mas logo desapareceu, levando consigo parte de seu sorriso. — Certo. Só uma pergunta... Essa sua investigação... É uma recriação imaginária dos eventos, ou é um inquérito?

— Digamos que envolve ambas as coisas — disse Fëll. — Primeiro eu procuro ouvir as pessoas. Aí eu vejo se o que elas dizem é verdade ou não. Há uma série de circunstâncias cujas pontas estou tentando amarrar.

— Muito justo. Bem, se quer fazer alguma pergunta, essa é a hora.

— O que achava de Alain Evril?

— Um ótimo estilista. Não apenas um desenhista de moda, mas um criador. Um criador de vestuários adequados a cada tipo de pessoa. Um criador que fazia de tudo, desde coleções de roupas a acessórios. Na época, os seus figurinos exerciam uma forte influência sobre a maneira como as pessoas se vestiam.

— Era um homem de boa moral?

— Tenho a impressão que estarei sendo cruel em dizer o que vou dizer, mas...

— Não é crueldade se dizer como era a vítima — disse Fëll. — A vítima, sabe, é muitas vezes a causa do crime.

— Bem, suponho que sim, compreendo o que o senhor quer dizer. Bem... a meu ver, Alain era um cara um tanto presunçoso, superior. Sempre quis dirigir os melhores carros, treinar nas melhores academias, comer nos melhores restaurantes e viver nos bairros mais chiques. Se quiser mais informações sobre ele, devia falar com Fernan.

— Quem é Fernan?

— Fernan Rastignac. Programador de informática.

— Por que eu devia falar com ele?

— Bem, cá entre nós, eu vou dizer por quê. Devia falar com Fernan por causa de uma coisa que aconteceu na última noite de vida de Alain e, na realidade, na ocasião não me incomodei com o assunto. Mas a gente fica pensando e procurando alguém com quem possa conversar e falar sobre isso. O senhor sabe, a porta do quarto de Alain abria com facilidade. Não era preciso empurrá-la com força. E, na hora exata em que eu ia entrar — realmente, não estava olhando, se o senhor compreende o que quero dizer...

— Eu sei o que Monsieur quer dizer — disse Fëll, num tom de compromisso.

— Eu vi Alain se levantar da cama e ir até o cofre de onde retirou uma pasta de plástico. De dentro da pasta, sacou um documento que mostrou para Fernan. Fernan passou algum tempo olhando o documento. Chegou a franzir a testa.

— E o que continha o documento? — perguntou Fëll.

— Não sei. Quando eu entrei no quarto, Fernan o dobrou e guardou no bolso.

— Ah, eles dois estavam a sós no quarto.

— Sim.

— Em uma conversa privada?

— Algo assim. Não, não, minto. Acontece que Alain tinha se sentido mal e tinha ido se deitar. Fernan, que entendia alguma coisa de farmacologia, havia levado umas aspirinas para ele.

— Notou mais alguma coisa?

— Sim, enquanto Fernan estava verificando o tal documento. O modo como olhou para ele.

— Como assim? — perguntou Fëll inclinando-se para frente.

— Sei lá. Não chegou a ser um olhar de desprezo, isso não. Olhou como se nunca tivesse visto algo como aquilo. Como se o pedaço de papel fosse uma página da Bíblia de Gutenberg, ou como se tivesse vindo de Marte. Não sei se estou sendo claro...

— Monsieur chegou a detectar algum tipo de surpresa nesse olhar?

— Sim, sim, muita surpresa. Foi justamente isso que eu achei tão curioso. A surpresa... Desculpe. Não consigo explicar.

— Alain Evril viu?

— Sim, viu.

— Quando Monsieur entrou, o que Monsieur Rastignac fez?

— Ele se virou para mim e disse um “Ah, é você!” um tanto... um tanto apressado.

— E em outras ocasiões? Os dois pareciam se dar bem?

— E como!

— Alain Evril mostrou aquele papel para mais alguém?

— Não que eu saiba.

Fëll balançou a cabeça.

— E quanto a Mademoiselle Hambour? O que pode me dizer sobre ela? Monsieur a conhecia, quero dizer, conhecia-a bem?

— Está falando de Marigold?

— Marigold? — perguntou Fëll.

— É assim que chamávamos Mademoiselle Hambour. Por causa dos longos cachos dourados. Não a conhecia de modo algum. Fiquei muito admirado quando ela apareceu por lá.

— Lá, lá onde?

— No solar Oakleight, ora. O senhor já foi ao solar, não foi?

— Não, ainda não — mentiu Fëll.

— Pois devia ir. Fica em Soisy sur Seine, uma cidadezinha situada a mais ou menos cinquenta quilômetros de Paris. Naquele tempo, havia um estábulo com meia dúzia de cavalos, uma área para criação de galinhas e porcos. Havia uma piscina, duas quadras de tênis e um bosque. Claro que, depois, muita coisa foi demolida ou reformada. O solar Oakleight era o que se poderia chamar de Althorp francês, habitado pelos Evril e a criadagem.

— Acha que Mademoiselle Hambour teve algo a ver com o que aconteceu a Alain Evril?

— Talvez tenha sim, mas não diretamente.

— Disse que ficou admirado quando ela apareceu por lá...

— Sim. Foi na segunda-feira... de manhã, acho. Lambert... que estava conosco na sala de estar... levantou-se, inclinando a cabeça como um pássaro desconfiado. “Quero avisar que convidei uma pessoa”, disse ele. “O quê?” perguntou Alain, a cara azeda. “Convidei uma pessoa para vir aqui”, repetiu Lambert. “Não me lembro de ter autorizado que você pudesse convidar alguém para vir aqui!” respondeu Alain. “Será que não se pode mais ter sossego nessa vida?” Apesar de afetado pelas palavras de Alain, Lambert disse: “Só porque nasci no lado pobre da cidade não quer dizer que não posso ter uma companhia feminina.” Alain disse: “Isto não tem nada a ver com a sua origem. Tem a ver comigo, com o que eu consinto que os meus amigos façam.” A coisa teria ficado feia, mas, neste instante, ouvimos uma buzina no pátio. Saímos para ver, e era... ela.

— Mademoiselle Hambour.

— Assim que bati os olhos nela, eu falei para mim mesmo: “Oh-oh! Isso não vai prestar.” Certos tipos de beleza são vulgares. Mas não a beleza dela. Aquela moça não era só bonita. Ela era... como é que se diz?... voluptuosa. Os lábios eram polpudos e bem delineados. As pernas...

Fëll pigarreou.

— Isso é muito poético, Monsieur Fichée. Mas, tirando a parte lírica, sabe dizer quem ela era? Uma moça de família, uma aventureira?

— Francamente, eu nunca soube. O que eu sei é que ela era inteligente, culta, vibrante, espontânea. Foi ela que destruiu Alain. Foi ela que causou a queda dele. O que eu quero dizer é que, a partir do momento em que a viu, Alain teria sacrificado um rim para colocar as mãos nela.

— Prossiga, sim?

— Não há muito a acrescentar. Alain era um cara mimado pela riqueza, que cresceu fazendo tudo o que quis. Queria ser bem-sucedido, ter dinheiro para torrar, e mulheres. Muitas mulheres. Todas as mulheres, se pudesse.

— Tanto quanto Monsieur pode se lembrar, enquanto esteve lá, não aconteceu nada que lhe parecesse, de uma maneira ou de outra, estranho ou significativo? Algo que ninguém mais tivesse notado, mas que tenha chamado a sua atenção?

— Algo como o quê?

— Até agora — disse Fëll —, recebi um e-mail do promotor Aillevard, entrevistei Jules Evril, tive o privilégio de ouvir a opinião da governanta, ouvi todos os boatos que correm por aí... Pelo que averiguei, foi realizado um baile, terça-feira à noite. As pessoas que foram ao baile eram as mesmas pessoas que estiveram ali durante o resto da semana?

— Sim.

— E, segundo ouvi dizer, todos escutaram Alain Evril dizer alguma coisa sobre um certo crime que ia ser cometido dali a algumas semanas...

— Eu não ouvi nada — disse Monsieur Fichée. — Ele disse?

— Oh, estão dizendo que sim — respondeu Fëll.

— Eu não ouvi. Acho que não estava no salão naquela hora.

— Ah! Monsieur tinha saído, talvez?

— Não lembro, mas suponho que... sim.

— Na manhã em que acharam o corpo, quem foi que ligou para a polícia?

— Acho que... sim, sim, foi Georges.

— Georges Souchet?

— Sim.

O tom de Monsieur Fichée tornou-se mais suave:

— Na verdade, o Ten. Tullet (na época, ele era tenente) tinha me comissionado para fazer a ligação. Mas na metade do caminho encontrei com Georges. Confiei a ele minha tarefa e voltei para onde estava Alain. O senhor não vai usar o que estou dizendo contra mim, vai?

— Monsieur Fichée — disse Fëll. — Não estou aqui para discutir o valor jurídico do seu depoimento. Minha única preocupação é poder olhar além das aparências.

Fëll, após algumas palavras formais, retirou-se.

Enquanto esperava o táxi, tirou do bolso a caderneta de anotações. Leu o título no cabeçalho da página: “Suspeitos”. Embaixo Fëll escreveu: “N° 1 — Claude Fichée, possível.”

Folheou até a página seguinte e verificou o próximo nome dado por Jules Evril.

Gen. Émille Tullet.


Gen. Émille Tullet

 

— Gostaria de falar com o senhor, Monsieur Tullet.

— Comigo? — Surpresa. Um pouco de dúvida.

— Eu sinto por isso — disse Fëll —, mas há um pequeno assunto a ser discutido, segundo acho.

O Gen. Émille Tullet hesitou e então se virou e precedeu o detetive até uma pequena sala de estar ensolarada. Visto assim, parecia um homem simples, bem vestido, de aspecto respeitável. Mas...

Mas, infelizmente, as pessoas nem sempre são o que aparentam ser. Quanto a isso, Fëll tinha experiência de sobra.

— Por favor, sente-se — convidou o Gen. Tullet. — Lamento dizer que tenho pouco tempo. Quer dizer, hoje. De modo que vou ficar muito agradecido se o senhor for breve. Do contrário, podemos nos rever amanhã se necessário.

— Não vou demorar mais do que um momento.

— Então o senhor é o sujeito sobre quem os jornais fazem tanto estardalhaço. Bem, o que é?

— Alain Evril — disse Fëll.

— Especificamente?

— Algo sobre o seu caráter. Quem lucrou com a sua morte? Qual era a relação dele com os amigos? E com os clientes? Coisas assim.

O Gen. Tullet sentou-se, inclinando a cadeira um pouco para trás, e, sem piscar, olhou para Fëll.

— Não sei o que espera ouvir de mim. O senhor poderia colher toda informação, com facilidade, ou da polícia ou da própria família.

— É o que eu fiz esses dias todos, general. Hoje é a sua vez. Espero que Monsieur me ajude a saber tudo quanto preciso saber.

— A única coisa que posso ajudá-lo a saber é que o senhor devia ficar longe disso tudo, detetive.

Edmund Fëll olhou para o general e, unindo as pontas dos dedos, sorriu com suavidade.

“Tsc, tsc” pensou ele.

Fëll chegara há quinze minutos na Rue du Moulin.

Aqui morava o Gen. Émille Tullet, em uma casa ampla, moderna, toda de madeira de pinho, com poucas paredes internas e uma vista espetacular para as montanhas. Tudo era tão imponente e sóbrio quando a própria personalidade do general.

No centro da sala havia um espesso tapete, que parecia de pelo de camelo. Havia também peças caríssimas espalhadas por toda a parte, inclusive um armário para bibelôs: xícaras de porcelana, figurinhas de vidro e porcelana, objetos variados de marfim e pau-marfim, pratos pintados, um conjunto francês antigo de saleiro em forma de cisne.

Estava claro para Edmund Fëll que o Gen. Tullet levava uma vida espartana, mas confortável.

— O senhor está querendo reabrir o caso Evril. Um negócio repugnante. É melhor que fique longe disso tudo — o Gen. Tullet repetiu a afirmação, com voz profunda e levemente rouca.

A crença geral era que Edmund Fëll não era frouxo com relação aos princípios morais, e que, quando estava em campo, ia até o fim de uma investigação, sem se importar com as consequências. De certo modo, isso era verdade, pois, em vez de se acovardar com a declaração do general, permitiu que um meio-sorriso voltasse a crispar os seus lábios.

Fëll passou a contar tudo que acontecera entre ele e Madame Lafayette, desde o princípio. O homem de camisa de flanela xadrez ouvia atentamente, e pedia mais detalhes. Depois de ouvir, o Gen. Tullet meneou a cabeça com vigor.

— Interessa-me muito — disse ele — ter notícias daquela mulher... saber como ela está.

— Ela, como muita gente, vive atormentada com as coisas que aconteceram em sua juventude.

— Bom — disse o Gen. Tullet.

— E ela é, devo dizer, uma mulher muito persistente.

O general balançou a cabeça, pensativo. E perguntou:

— Ela é divorciada?

— Acho que sim.

O Gen. Tullet disse secamente:

— Muitas mulheres casadas compõem uma confraria secreta, e mantém silêncio sobre os abusos e a sujeição humilhante a que são submetidas. Outras preferem o divórcio. — Fez uma pausa. Acrescentou: — Pelo seu relato sobre ela, imagino que ela acredite cada vez menos que o irmão tenha tirado a vida.

— Não só isso. Para piorar, parece que, de uns tempos para cá, ela vem achando que ele foi assassinado.

— Papagaio!

— Deveria ouvi-la falando — disse Fëll.

— Eu gostaria muito de ouvi-la. Espanta-me ver como as pessoas chegam a essas conclusões. Alain se matou... todo mundo sabe disso. E tem mais — disse o general com vigor. — Para mim, a opinião de Sabine não representa nada. Acho lamentável que ela dê ouvidos a fofocas sem fundamento.

— Não creio que se trate de fofocas.

— Não dê substância a essas coisas! O senhor vai ver. Não há nada a que se prender! E nada também que saia do comum, a não ser que... Mesmo ela tendo razão...

Fëll não queria lançar-se em deduções engenhosas nem acuar o homem. A hipótese o impressionava, e ele apenas a seguia, curioso para ver onde ia dar.

— Suponha que o que ela falou seja verdade, general. Suponha que aquela historia seja verdadeira.

— Ora vamos, Herr! Essas coisas não acontecem!

— Elas acontecem com muito mais frequência do que imagina — disse o detetive pacientemente. — Agora, ouça. Cada caso criminal tem suas próprias características, que em geral fornecem a chave do mistério. O caso é este: Madame Lafayette contou-me uma história, uma história fantástica, mas não impossível. A evidência está aí: a própria morte de Monsieur Alain Evril.

— Bem — disse o Gen. Tullet. — Cada um diz o que quer.

— Suponho que da última vez que Monsieur a viu ela era muito jovem.

— Tinha uns 15, 16 anos. Uma moça muito bem educada, ou pelo menos era essa a impressão que dava. Avançada, eu diria. Era estudante e dedicava todo o seu tempo à escola. Infelizmente vivia em um lar cheio de dinheiro e sem juízo de valores. Culpa do velho Evril, que sempre prezou mais as coisas materiais do que as espirituais.

— “De que serve o dinheiro nas mãos de um tolo?” — concordou Fëll.

— Sim. Isso não faz bem para uma criança. Daí o velho morreu, e tudo ficou nas mãos da viúva que, coitada, teve um trabalho danado para reparar o estrago. Sabine reagiu muito bem à disciplina materna; os meninos, nem tanto.

— Agora que já falamos sobre Sabine Lafayette — disse Fëll —, isto é, sobre a jovem Sabine Evril, há algo que eu gostaria de perguntar. Se alguém pode explicar isso, creio que é o senhor.

— Sim?

— Que tipo de pessoa era Alain Evril?

O Gen. Tullet, muito sério, sacudiu com a cabeça e encarou o detetive. O que parecia ser uma erupção de emoções reprimidas, era, na realidade, o resultado de um cálculo frio e metódico.

— Não vou responder a isso.

— Está confessando, Monsieur, que não vai me responder?

— Não estou confessando coisa nenhuma! — resmungou o general, as narinas fremindo pela primeira vez.

Fëll teve a impressão de que ele ia explodir.

— Algum problema?

— Nenhum.

— O senhor não gostava de Alain Evril?

— É claro que não gostava. Ele era um rato. Um rato imundo e asqueroso. Nunca aprovei seu comportamento. Se fosse o pai, eu teria dado uma surra nele. Há coisas que nenhum pai deve tolerar.

— Mas Monsieur Evril as tolerava?

— Sim.

Depois de uma pausa, o Gen. Tullet continuou:

— Deixe-me esclarecer a questão. Alain Evril era um sujeito habituado a exercer o poder e certamente tinha todas as condições de exercê-lo. Era o que eu chamo de um cara difícil. Isto é, ele era difícil porque tinha liberdade demais. Sem uma mãe com pulso firme, sem esposa, sem ninguém para impor limites... Passava os dias na Préfecture, ou em algum clube perto dos Champs-Elysées ou mesmo nas boates de Saint-Germain-des-Prés. Daí apareceu a tal loura oxigenada e atrevida, que arruinou com ele de vez.

— O senhor está falando de... Laiane Hambour?

A resposta do Gen. Tullet foi abrupta:

— Exatamente.

— Qual era sua opinião sobre Laiane Hambour?

— Eu não tinha nenhuma opinião sobre ela. Uma jovem sem moral nem fé em Deus. Envergonho-me até de tocar nesse assunto...

— Ela devia ter 17, 18 anos.

— E ele tinha 35.

— Os dois se apaixonaram, suponho...

O general bufou com desdém.

— Aí é que está! Eles se apaixonaram. O que me faz pensar que ela estava no solar naquela semana por alguma razão. Alguma razão que, até hoje, não consegui entender direito. Posso saber por que está interessado nisso? O senhor não estava lá quando se deu a morte.

O cérebro do detetive fervilhava, traçando hipóteses. Deixou de lado o tema da blonds décolorés. Disse:

— Não, eu não estava lá. Madame Lafayette ligou para mim. Estava nervosa, muito nervosa. Queria que eu fizesse algo.

— Compreendo. É sempre a mesma história. Detetive ocioso recebe chamado urgente de mulher em perigo e se mete a herói tentando salvá-la. Por que acha que sei de alguma coisa? Afirmo-lhe que não sei de nada.

— Essa é que não. Monsieur pode contar-me tudo o que sabe sobre o que ocorreu. Parece que ele disse uma coisa duas noites antes de morrer.

— Quem? Alain disse?

— Sim.

O Gen. Tullet inclinou-se para a frente e encarou Fëll inquisitivamente.

— Pode me relembrar o que foi?

Fëll recontou, em poucas palavras e pausadamente, a história contada pelas testemunhas anteriores.

— Compreendo — disse o Gen. Émille Tullet. — Alain disse o quê? Que sabia de alguém que ia cometer um crime? Quando foi isso?

— Duas noites antes de morrer — disse Fëll.

— Gabando-se disso?

— Foi a impressão que teve o irmão dele, Jules Evril. Aparentemente, Alain Evril se vangloriou disso.

— Poderia não ter sido verdade.

— Exato, poderia não ser verdade — concordou Fëll.

— Alain muitas vezes fazia essas afirmações extravagantes quando queria chocar a gente.

— Por outro lado, poderia ser verdade.

— É o que o senhor pensa?

— Não sei — respondeu Fëll. — Um homem diz conhecer detalhes de um crime que está para ser cometido dali a um mês ou dali a semanas. Dois dias depois, esse homem é encontrado morto. Monsieur tem de admitir que há motivos para se acreditar que poderia ser verdade.

— Se for mesmo isso, alguém não perdeu tempo.

— Esse é o ponto — disse Fëll. — Monsieur não estava presente na ocasião em que Alain Evril fez sua afirmação com relação ao crime?

— Não que eu me lembre. Ou talvez sim. É que... o senhor vê... já faz trinta e dois anos! Se pudéssemos pelo menos ter uma ideia do que ele quis dizer...

— Quem foi que encontrou o corpo?

— Creio que foi Trainville... ou Fichée. Um dos dois. Pelo que sei, eram umas nove horas da manhã. Nós tínhamos acabado de tomar o café quando ouvimos o alarme.

— O senhor ficou perturbado com o fato?

— O que o senhor quer dizer com isso, Herr Fëll?

— Estou querendo só saber se o senhor já esperava por aquilo ou se a morte foi uma total surpresa.

— É claro que eu não esperava por aquilo! Veja, na hora eu não achei que ele estivesse morto.

— Não? — surpreendeu-se Fëll. — O que achou, então?

— Sei lá. Achei que ele estivesse em coma alcoólico.

— E ele estava em coma alcoólico?

— O senhor sabe que não — grunhiu o Gen. Tullet.

— E quanto aos outros? O que eles fizeram?

— Nada.

— Resumindo... Ficaram todos lá, olhando para o cadáver.

— Sim. Não podíamos ressuscitá-lo, podíamos?

Fëll ignorou a insinuação.

— Qual foi a reação de Mademoiselle Hambour?

— Aquela moça não esboçou a menor reação — disse o Gen. Tullet secamente. — Muito diferente da governanta gorducha, que fez uma cena histérica e muito desagradável.

— Que tipo de cena?

— Gritou feito uma gata escaldada, um horror.

Edmund Fëll disse, com um tom de insatisfação:

— Pelo que consta, Madame Evril não estava em casa quando isso se deu, não é?

— Não. Ela tinha ido visitar uns parentes do interior, creio eu.

— Que visão ela adotou oficialmente com relação à morte do filho?

— Assassinato. Ela disse, de forma muito segura desde o início, que devia ser assassinato.

— E o que o senhor achou sobre isso?

— Realmente, Herr Fëll, importa o que eu achei?

— Sim, penso que sim.

— Pois eu concordei com ela. Também imaginei, assim como continuo imaginando, que havia sido assassinato.

— O senhor, então, foi solidário a ela.

— Totalmente.

— E contou isso à polícia?

— Não.

— Por que não?

Algo cintilou nos olhos do Gen. Tullet, mas ele manteve a voz baixa.

— Porque se eu contasse, a polícia ia exigir provas. Saber e provar são coisas muito diferentes. Diga-me uma coisa... Sabine está muito determinada a examinar esse assunto, não é?

— Sim.

— Pois faz muito bem. Vivemos uma mentira durante anos, décadas, e é hora de alguém acabar com ela.

— Bem, eu não entendo — disse Fëll. — Há pouco o senhor disse que eu devia ficar longe do caso.

O Gen. Tullet olhou para ele de um jeito muito estranho.

— O senhor não me entendeu, Herr Fëll. Não sou contra a busca da verdade. O que me incomoda é ver um estrangeiro fazendo um trabalho que deveria ser feito pela nossa polícia.

— O quê?

— É verdade. Não estou certo se fiz bem em esconder o que sabia na época... Mas acho que a Gendarmerie nationale devia investigar esse assunto.

De súbito, o Gen. Tullet se pôs de pé. O olhar que endereçou a Fëll não deixava dúvidas: “O senhor tem mais alguma pergunta? Se não tiver, gostaria que se retirasse.”

Fëll sabia que não havia como contrariar aquela indireta. Sentindo-se dispensado, ele guardou a caderneta no bolso, levantou e disse:

— Obrigado pelo tempo que perdeu comigo e pelo que me contou, general.


Jacques Hurwitz

 

O corretor mencionado por Madame Lafayette fora amigo de Alain Evril, mas já fazia uns quinze anos que não morava mais em Paris. Depois de fazer fortuna, tinha estabelecido residência em Calcutá.

Dali a três dias, Edmund Fëll tocava a campainha de uma casa modesta, inteiramente paga e livre de hipotecas, no bairro mais moderno da cidade.

Uma mulher de média estatura, cabelos castanhos ondulados, de uns sessenta e cinco anos, meio vesga, olhou-o através do postigo. Na luz brilhante do sol, sua pele enrugada parecia translúcida como uma chapa de raios-X.

— Guten Morgen — cumprimentou Fëll. — Marquei hora com Monsieur Hurwitz.

— Ah, sim. Meu marido disse que o senhor viria.

— Seu marido? Então a senhora é Madame Hurwitz?

— Sou, sim.

— Ausgezeichnet, Madame — disse Fëll graciosamente. — Estou agindo na qualidade de porta-voz de Madame Lafayette.

— Ah, agora eu me lembro! O senhor é o estrangeiro que... É. Ouvi falar no senhor.

— Alegro-me com isso, Madame.

— Ah, isso faz bem, não faz?

— O quê?

— A fama, os holofotes — a voz da mulher se elevou tom muito severo.

— Eu só faço o meu trabalho — murmurou Fëll, um pouco envergonhado. — Para ser franco, eu estava em um dilema.

— Que dilema?

Fëll repetiu o pedido feito por Madame Lafayette, mas com a desagradável impressão de que não estava se desincumbindo bem de sua missão.

— Madame Lafayette, vejam só — disse Madame Hurwitz friamente. — Foi ela que o mandou vir atrás de Jacques?

— Nein, nein. Vir falar com o seu marido foi ideia minha.

— Hum... Venha comigo.

Madame Hurwitz conduziu-o através de inúmeros aposentos até uma sala cujas portas se abriam para um pequeno pátio. O chão era recoberto de ladrilhos.

Lá, reclinado em uma cadeira de balanço, estava um homem de aspecto sadio e ar viril, com alguns fios de cabelos grisalhos nas têmporas. “Sem gestos sofisticados, nem aparência extravagante”, avaliou Fëll. “Vai ser interessante ver o que vai sair daqui.”

— Visita para você, querido.

— Obrigado, Lucille.

Jacques Hurwitz se levantou, olhou para o detetive e, mordendo os lábios, deu um passo em sua direção.

— Se não me engano, foi o senhor que ligou para mim ontem à tarde — disse Jacques Hurwitz assim que já tinham se sentado. — Como disse que se chama?

Edmund Fëll voltou a se apresentar.

— O senhor é polonês?

— Austríaco.

— Muito bem, Sr. Austríaco. Folgo em conhecê-lo. Ouvi falar muito no senhor.

— É muita bondade, Monsieur — disse Fëll.

Os dois se entreolharam, plenamente conscientes do quanto aquela frase era artificial.

— Pronto para discutir o motivo de sua visita?

Quando soube da razão da visita do detetive, uma exclamação brotou da boca do corretor.

— Isso é sério?

— Muito sério, Monsieur Hurwitz. Isso o assusta?

— Não, claro que não — Jacques Hurwitz estava ao mesmo tempo perplexo e consternado. — Mas não compreendo... Já faz tantos anos!

— Trinta e dois, para ser exato — disse Fëll.

— Pois é, e agora... do nada... aparece o senhor e menciona uma coisa que eu supunha estar esquecida para sempre.

— Esquecida para muita gente... mas não para todos.

— Ah, é?

— Sim.

— O senhor tem algum interesse pessoal nesse caso?

— Nenhum — disse Fëll. — Não é da espécie de caso de que geralmente me ocupo. Olhe, não vou, de modo algum, apressá-lo. Mas eu preciso que me dê algumas respostas, Monsieur Hurwitz.

Jacques Hurwitz deu um gemido estrangulado e tomou fôlego.

— Se não há remédio...

— Não, não há.

— Mas não está achando que eu tenho algo a ver com o que aconteceu naquele dia, não é?

— Bitte, Monsieur — disse Fëll, escandalizado. — Nem por um instante pensei nisso. Tem gente que gostaria de saber o que aconteceu... a sequência dos fatos... essas coisas.

— “Quem foi? Quem não foi? O que cada um fez? O que não fez?” É isso?

— Prioritariamente, sim.

— Vai querer conversar com todos, não vai?

— Decididamente — afirmou Fëll.

— Já falou com alguém?

— Com duas ou três pessoas.

— Quem?

— Com Jules Evril, Madame Heatherston, o Gen. Tullet. Ah, e Monsieur Fichée. Quatro pessoas.

— Como estão eles? — perguntou Monsieur Hurwitz.

— Um bocado bravos comigo — respondeu Fëll.

— É claro — disse Monsieur Hurwitz. — O contrário é que não poderia ser. E o que eles disseram?

— Em linhas gerais, o que foi veiculado através dos jornais. Que Monsieur Alain Evril se matou, tomando cianeto de potássio.

— Coisa com a qual o senhor não concorda.

— Ainda não formei nenhuma opinião, Monsieur Hurwitz. A única coisa que estou tentando fazer, por enquanto, é juntar as peças.

— Pois terá uma úlcera tentando juntar todas as peças.

— Tenho uma série de perguntas a fazer-lhe e espero que tenha a amabilidade de respondê-las.

— E se eu não quiser... ou não estiver a fim de respondê-las?

Fëll sorriu.

— Nesse caso, previno-o de que sou decidido e não meço esforços para conseguir o que quero (e geralmente acabo conseguindo). Se o senhor pudesse cooperar comigo, isto pouparia tempo e aborrecimentos.

Monsieur Hurwitz ergueu os ombros.

— Bem, acho que posso me conformar com isso. Só espero que a coisa não seja tão feia quanto parece.

— Não, não é.

— E então? Como posso ajudá-lo?

— Com relação ao dia da morte, ajudaria se voltássemos ao começo e repassássemos o básico.

— Uma regressão, por assim dizer?

— Jawohl, se for assim que quiser chamar... Monsieur Hurwitz — disse Fëll, inclinando-se para frente. — Conte-me por que estava lá... e o que se lembra daquele dia.

Jacques Hurwitz explicou como viera a conhecer os Evril, qual seu grau de afinidade com eles e, acima de tudo, fez um esboço dos fatos da manhã da morte de Alain Evril.

— Pelo visto, todo mundo achou que Alain Evril tinha se matado — disse Fëll.

— Sim, não me lembro de que se tenha levantado qualquer dúvida a respeito.

— Gostaria apenas de fazer outra pergunta. Ligada a uma afirmação que, dizem, foi feita por Alain Evril. Pode ser que Monsieur reconheça o que vou dizer.

— O que foi que Alain disse?

— Pelo que verifiquei, ele disse que sabia de alguma coisa sobre alguém que ia cometer um assassinato.

— Alain disse isso?

— Sim — disse Fëll.

— Ora, que coisa! — disse Monsieur Hurwitz, o olhar atônito. — A que crime será que ele se referia?

— Bem, todo mundo parece achar que se referia a um assassinato que ia ser executado no mês seguinte: agosto — disse Fëll. — Monsieur se lembra de ele ter dito isso?

— Sobre um suposto plano de assassinato? Alain?

— Convém lembrar, Monsieur — disse Fëll —, que o termo assassinato deve ter sido usado em um sentido muito específico.

— Bem, não me lembro de nada assim.

— Hum — disse Fëll. — Mas talvez tenha falado em outra ocasião. Será que ele não falou com Monsieur alguma vez sobre isso em particular?

— Em particular? Quando?

— Não sei — respondeu Fëll. — Um dia desses, sei lá. Não aconteceu algo de sensacional entre Monsieur e ele de que pudesse se lembrar?

— Oh, não creio. O senhor sabe, sou velho, mas não sou particularmente gagá.

— Mas se ele afirmou taxativamente que sabia de detalhes sobre um crime, Monsieur acha que ele acreditava no que estava dizendo?

— Ele não diria, se não acreditasse, não é? Vamos ser justo. Se Alain disse, talvez fosse verdade, quem sabe? Talvez ele soubesse de alguma coisa. Não tanto quanto disse que sabia, mas alguma coisa.

— E por isso foi morto — concluiu Fëll.

— Quem sabe — repetiu Monsieur Hurwitz.

Ele parou de falar ao ouvir um leve rangido de rodinhas. Em seguida, a vesga Madame Hurwitz apareceu empurrando um carrinho sobre o qual havia café e diversas guloseimas.

— Pode deixar o carrinho ali, Lucille. Tudo parece muito gostoso. Obrigado.

A expressão da fisionomia da mulher valia a pena ser estudada. Era um misto de curiosidade e de acanhamento. Ela olhou para Fëll como se ele fosse um animal pré-histórico.

Na mente do detetive começou a surgir um sentimento indefinido, uma leve suspeita. Por que ela estava olhando daquele jeito? Mas antes que ele chegasse a uma conclusão mais lógica:

— O café está quente, as bolachas e os brioches estão fresquinhos — informou Lucille Hurwitz, voltando a deixar os dois homens a sós.

— Sirva-se — Monsieur Hurwitz gesticulou para Fëll.

— Danke — disse Fëll e, a seguir, perguntou com toda a naturalidade: — E quanto a Mademoiselle Hambour?

O silêncio de Monsieur Hurwitz mostrou que ele já esperava essa pergunta.

— O que tem ela?

— Mademoiselle Hambour tinha algum interesse em Alain Evril?

— Que eu saiba, não, mas é possível que eles tivessem um acordo.

— Que tipo de acordo?

— Secreto, sei lá.

— O senhor a conhecia bem?

— Não, claro que não. Como ia conhecer?

— Pensei que, sendo amigo dele... — arriscou Fëll, concluindo a frase com um gesto da mão.

— Eu era amigo, não alcoviteiro.

— Sim, claro. É que eu imaginei que, devido a sua associação, o senhor tivesse uma ideia sobre isso.

— Não, não tenho. Hum, o café está bom. Para ser sincero, nas poucas vezes nas quais falei com ela, não nutrimos muita simpatia um pelo outro. Para mim, Laiane Hambour era uma destas mulheres meio insuportáveis, extravagantes, maníacas por moda e maquiagem.

— Como Alain Evril e ela se comportavam?

— Como assim? Está se referindo aos modos deles?

— Não, quero saber como eles se comportavam um com o outro.

— Ah, se havia alguma coisa entre os dois?

— Sim.

— Talvez — disse Monsieur Hurwitz e calou-se. Depois de algum tempo, prosseguiu: — Eles se davam muito bem, isso é certo.

— Sabe sobre o que conversavam?

— Não, mas devia ser uma coisa que os deixava muito contentes.

Fëll olhou para ele, com as sobrancelhas levantadas em atitude interrogativa. Monsieur Hurwitz, como de costume, reagiu prontamente.

— Algo mais que eu possa fazer para ajudá-lo?

— Acho que é tudo por ora, Monsieur Hurwitz. Se lembrar de mais alguma coisa e puder me contatar, aqui está o meu e-mail. Agradeço muito a sua colaboração.

Fëll levantou-se.

Como que para comprovar sua boa-fé, Jacques Hurwitz abriu a porta para ele. Eles se despediram, e o detetive foi embora.


Laiane Hambour

 

Fëll teve que bater duas vezes, antes que a porta se abrisse. Mesmo assim, tudo o que ele pôde ver foi a silhueta do mordomo emoldurada pela escuridão que pairava atrás dele.

— Quero falar com Madame Hambour, bitte.

— Quem deseja?

Fëll citou as suas referências.

— Madame Hambour não está em condições de atendê-lo no momento. Se houver algo mais que eu possa fazer...

Fëll examinou a pasta de documentos até achar a folha com o histórico médico de Laiane Hambour. Disse:

— Eu sei que a sua patroa foi operada no baço, mas preciso conversar com ela o mais depressa possível.

— Lamento, mas é impossível, senhor. Madame Hambour está repousando e não pode atender ninguém.

— Eu imagino que ela deva estar convalescendo, e apresento os meus sinceros sentimentos. Mas estou em uma investigação... e o nome dela está em minha lista.

— Espere um momento — disse o mordomo, retirando-se para obter mais orientações.

Dali a dois minutos, ele voltou e apontou a escada que levava ao primeiro andar. Subiram. O mordomo bateu a uma porta, discretamente. Uma voz feminina mandou entrar e ele abriu, dando passagem a Fëll. Fëll entrou e defrontou-se com uma mulher reclinada languidamente num sofá.

Uma mulher de seus cinquenta anos, mas que conservava um olhar sumamente inteligente e vivaz. Olhar este que ela desviou na direção da porta e Fëll teve a satisfação de ver que, por uns breves instantes, um ar de assombro tomou conta de seu rosto.

“A típica dama que não se conforma em aceitar a monotonia de sua existência sem ser o centro das atenções gerais” pensou o detetive. “Mimada, ingênua, mas arrogante por desconhecer a sua própria ingenuidade.”

Junto a ela, uma velha miúda, de avental e touca, servia o café.

Assim que viu o detetive, Madame Laiane Hambour ergueu as sobrancelhas e, com um gesto, dispensou o mordomo e a criada. “Laissez-nous!” Depois, indicou uma cadeira para Fëll.

— Sente-se aqui, por favor.

Surpreso, Fëll olhou para a mulher cuja voz melodiosa soava a seus ouvidos. Laiane Hambour estava tensa e se notavam nela algumas palpitações. Tinha uma testa ampla, e orelhas que pareciam ceder ao peso de duas grandes argolas de ouro.

— Bem — disse ela secamente —, qual é o problema?

— Madame Hambour, que bom que arranjou um pouco de tempo para mim. Peço desculpas por ter vindo sem avisar.

— O senhor trabalha na polícia?

— Não, Madame.

De forma muito simples e natural, Fëll narrou sua conversa com Sabine Lafayette, palavra por palavra, o mais próximo que pôde. Ela ouviu em silêncio, reclinada na poltrona, com a mão sobre os olhos. Quando o austríaco terminou, disse com tranquilidade:

— Então, o senhor resolveu aceitar o caso.

— Sim.

— Pelo dinheiro, garanto.

— A recompensa em minha profissão raramente é monetária — disse Fëll tristemente. — Sei que esta é uma ocasião dificílima para Madame, já que está doente, mas eu tive que vir porque preciso fazer algumas perguntas.

Madame Hambour inclinou a cabeça para o lado, num gesto que pretendia ser ao mesmo tempo de ceticismo e repúdio.

— Suponho que se trate da morte de Alain Evril. Não sei exatamente como foi que o senhor se meteu nisso. Por meio da polícia?

— Não, nada com a polícia. Particularmente, por meio de outra pessoa.

— Deve tomar bastante sol para ter um bronzeado assim.

Fëll ficou meio sem jeito.

— Os dias são... quentes — balbuciou.

— Quais são as perguntas? Algo especial?

— Não, não, Madame. São só sobre alguns aspectos do caso que me incomodam um pouco. Se for do seu agrado, vou direto ao ponto.

— Fique à vontade — disse Madame Hambour.

Fëll limpou a garganta.

— Madame é casada?

— Sou. Mas me separei de meu marido.

— Uma separação judicial?

— Leroy e eu nunca discutimos isso.

— Madame e ele nunca discutiram isso?

— Não. Eu conheço Leroy muito bem e sei qual ia ser a resposta. Não ia concordar, e eu não tenho nenhum motivo para me divorciar.

— Madame está com alguém atualmente?

A resposta de Madame Hambour foi imediata:

— Não.

— Mora sozinha?

— Moro.

— Tem filhos?

— Nunca quis ter filhos. Não sei se devia ter tentado tê-los. Minha saúde nunca foi muito boa. Teria sido quase antiético. — Ela suspirou. — Mas já que não confio nos homens, era muito improvável.

— Tenho pedaços desparelhos de informações — disse Fëll, mudando de assunto. — Madame... Vou fazer-lhe uma pergunta e quero que compreenda que terá de ser respondida com a máxima franqueza.

— Faça.

— Madame nunca desconfiou que a morte de Monsieur Evril pudesse ter sido assassinato?

A resposta custou a vir.

— A polícia não duvidou.

— E Madame?

Laiane Hambour se virou para ele e de novo Fëll detectou em seus olhos a mesma chispa de desdém.

— Sou um pouco excêntrica, bem sei, mas não a ponto de permitir que pensem que matei alguém.

— Eu não disse que tenha matado alguém, Madame. Estou só apurando os fatos. Por exemplo, sabe se ele recebeu alguma visita inesperada na véspera de sua morte?

— Não.

— Ele discutiu com alguém? Queixou-se de alguém?

— Não.

— Ele estava envolvido em algum movimento social?

— A vida de Alain eram os negócios e a família.

O mordomo trouxe um conjunto de porcelana com café fumegante e uma bandeja com bolinhos e biscoitos folheados e amanteigados. Madame Hambour fez um gesto com a mão:

— Coloque ali, obrigada.

— Pois não, Madame — disse ele e, depois, voltou a sair.

— O senhor surpreendeu meu mordomo, detetive — disse Madame Hambour virando-se para Fëll. — Isso não é fácil de conseguir. Sirva-se...

Fëll não tinha a mínima vontade de comer biscoitos e bolinhos. Não outra vez. Mesmo assim, serviu-se de uma xícara de café, antes de acrescentar:

— A verdade, Madame, é que, ao contrário do que foi dito até hoje a respeito da morte de Alain Evril, estou desenvolvendo a teoria de que, em vez de se matar, ele foi assassinado.

— Assassinado?

— Sim.

Fëll olhou para ela, percebendo a transformação repentina na mulher de ar esnobe que, até ali, o havia encarado com tanta arrogância.

— Qual a justificativa para a sua teoria, detetive?

— A justificativa para a minha teoria é a seguinte — e Fëll expôs a história contada por Madame Lafayette. — Se for isso mesmo, Alain Evril foi assassinado pelo fato de ter afirmado que sabia de alguém que estava querendo cometer um assassinato. Pense bem, posso estar errado ao acreditar que esse tenha sido o motivo de sua morte, mas se foi isso mesmo o que ele disse e, perceba, naquelas circunstâncias, existe uma possibilidade de que ele tivesse um dos amigos em mira quando fez o comentário.

— Um dos amigos? — perguntou Madame Hambour. — Presumo que o senhor deva saber quem estava lá.

— Sim, tenho uma lista.

— Vai interrogar todos, um por um?

— Sim.

— Isso pode custar um pouco de trabalho.

— Não são muitos. Sete pessoas.

— Seis sem mim.

— Sim. Excluindo Madame, seis.

— Seis — murmurou Madame Hambour. — Seis pessoas que não gostavam de mim, o senhor sabia? Seis pessoas que falaram horrores sobre mim. Que falaram que eu exerci uma má influência sobre Alain. E coisas ainda piores. Muito piores. Disseram que eu o seduzi. Disseram que eu o seduzi para que pudesse casar com Alain e... e ficar com o dinheiro. Por que eu não devia ter dinheiro, se quisesse? Culpam-me de ter causado a discórdia entre todo mundo e não são poucos os que me julgam culpada pela morte dele. Eu fui boa para ele, eu fui gentil para ele. Por que eu não poderia ter alguma sorte na vida, um pouco de felicidade?

— Ja, ja — disse Fëll, tentando deter o desabafo.

Madame Hambour balançou a cabeça.

— Por que eu não poderia ter casado com ele? Por que eu não poderia ter sido feliz? Feliz, rica e tendo tudo o que quisesse. Que mal foi que eu fiz? Nenhum. Nenhum, garanto. Nenhum.

— Madame...

— O senhor... — disse ela, olhando para o austríaco. — O senhor acha que estou mentindo. Sim, vejo em seus olhos. O senhor também está contra mim. É por isso que veio aqui, não é? O senhor quer que eu diga alguma coisa! O que é? O que é?

— Madame — disse Fëll com renovado vigor. — A única coisa que eu quero que Madame diga é: acha possível que tenha sido assassinato?

— Se acho possível que tenha sido assassinato? Sim... Talvez tenha sido.

— Ótimo. E Madame teria alguma ideia... quero dizer, sobre quem possa ser o assassino?

— Não tenho nenhuma ideia.

— Absolutamente nenhuma?

— Por que tanta insistência nisso? Ouça, eu já passei por tudo isso antes. Aqueles interrogatórios... interrogatórios longos. Aquelas sessões intermináveis e entediantes. Ainda sinto borboletas fazendo cócegas em meu estômago só de lembrar nas tantas vezes em que fui forçada a ir ao Bureau.

— Madame, eu lamento por isso, mas eu tenho que fazer as perguntas, afinal, Madame pode ter visto alguma coisa insignificante... sem importância... mas que, mais tarde... Madame pode ter alguma coisa em mente, algum incidente...

Madame Hambour voltou a balançar a cabeça.

— Não posso imaginar nada que pudesse ter visto — disse.

— Madame está certa de que não houve nada? Algo de inesperado?

— Inesperado? Onde?

— Em qualquer lugar.

— Não vi nada.

— A senhora não teria visto alguém, digamos, saindo do solar, de madrugada?

— De madrugada... Compreendo o que o senhor quer dizer. Sim, eu poderia ter visto — fez uma longa pausa, em seguida encarou Fëll com um olhar firme. — Não vi ninguém sair do solar — disse ela. — Ninguém...

Fëll refletia. A maneira como Madame Hambour torcia as mãos dava a impressão de que não estava falando a verdade. Além disso, ela tinha negado tão vigorosamente. “Vigorosamente demais” disse Fëll. “Terá ela visto alguém ou alguma coisa, talvez a luz acesa no ateliê a altas horas da madrugada? Terá ela visto a silhueta de Alain e mais alguém lá dentro? Alguém por quem ela se interessasse ou, o mais provável, alguém que quisesse proteger?”

— O senhor disse que Alain pode ter sido assassinado...

— Eu sei. Eu sei. É terrível.

— Espere — gesticulou Madame Hambour. — Deixe-me só ver a abrangência de sua teoria. O senhor quer dizer que o assassino poderia ser alguém mentalmente perturbado ou um... psicopata?

— Não — disse Fëll. — Estou querendo dizer que o assassino pode ter sido alguém que quisesse apenas se salvar.

— Se salvar? Oh, o senhor quer dizer...

— Alain Evril se vangloriou, uma noite antes, de saber de alguém que ia cometer um crime.

— Alain — disse Madame Hambour, com serenidade — era muito tolo, às vezes. Falava as coisas por falar.

— Já me disseram isso — acenou Edmund Fëll. — Renovo minhas desculpas, Madame, por estar ressuscitando essas coisas dolorosas em seu espírito. Mas a julgar pelo que Madame Lafayette disse...

— Por que o senhor não procura mais informações com ela?

— Madame quer dizer...?

— O senhor perguntou se eu tinha visto alguma coisa quanto a quem poderia ter matado Alain. E não vi, mas acho que Sabine... Não quero dizer nada... mas... pode ser que ela...

Ela puxou um lenço, com o qual enxugou o canto dos olhos. Fëll viu, na aba do lenço, as iniciais A. E. bordadas em roxo.

— De quem é?

— O quê?

— O lenço...

— É meu.

— E as iniciais?

— Ah! — Ela pestanejou e olhou para o detetive. — São... são...

— Madame o amava, não é?

— Se eu o amava? Sim, eu diria que sim.

— Vocês tinham alguma coisa?

O termo, tão singelo e civilizado, provocou um sorriso em Madame Hambour.

— Francamente, não sei o que tivemos.

— Madame não era correspondida?

— Espero que não esteja muito decepcionado — disse ela no seu invariável tom barítono.

— Decepcionado pelo quê, Madame?

— Por não poder dizer mais nada para o senhor. Eu teria o maior prazer em servi-lo, se pudesse.

— Não faz mal — disse Fëll. — Para finalizar... Madame acha que Alain Evril estava agindo de forma diferente pouco antes de morrer?

— Sim, estava. Ele parecia... inquieto.

— Inquieto? Por quê?

Madame Hambour ergueu as sobrancelhas.

— Não sei. Tudo era melhor antes...

— Antes? — perguntou Fëll.

— Antes de ele morrer.


Georges Souchet

 

Fëll tocou uma antiga sineta de ferro batido e os tinidos pareceram ecoar no interior da casa.

Depois de alguns minutos de ansiedade, surgiu na porta um homem de idade e esquelético. O rosto era delicado, emoldurado por pontas de cabelos grisalhos, reluzentes. Os pelos que cobriam o queixo poderiam ser considerados uma barba bem-aparada, rente ao maxilar.

Georges Souchet — em toda a sua forma e substância.

— Guten Morgen, Monsieur Souchet — disse o detetive.

— Bom-dia — disse Georges Souchet. — O senhor deve ser Fëll. Edmund Fëll.

— Eu mesmo, Monsieur. Como lembrou o meu nome?

— Nada fora do normal — disse Monsieur Souchet. — O senhor, nos últimos tempos, vem sendo muito paparicado pela mídia — observou. — Entre, entre... Pelo jeito, o senhor preza a pontualidade.

— Prezo sim — acenou Fëll. — Tive receio de não encontrá-lo em casa, de que o senhor tivesse saído.

— Isso o teria frustrado, não?

— Muito — disse Fëll. — Precisava falar urgentemente com o senhor, com absoluta urgência.

Depois dos cumprimentos, Georges Souchet conduziu Fëll para a sala de visitas. Na parede, um ventilador roncava com força, abafando os ruídos da rua.

— Toma — disse, oferecendo um copo de licor de menta ao detetive. — Na verdade... — voltou e pegou outro copo —, eu também preciso de um pouco disso — e se sentou junto a ele.

— Danke — agradeceu Fëll. Ele se acomodou melhor e saboreou a bebida com um suspiro de contentamento, cerrando os olhos, pois os últimos dias haviam sido bastante cansativos para ele. — Talvez o senhor já saiba, mas, em todo caso, vou ressaltar, Monsieur Souchet. Sou um detetive.

— E por que eu deveria saber disso?

— Quando eu interrogo as pessoas, quero que elas saibam quem eu sou e quero que elas contem as coisas cientes desse fato. Isso dá a elas a oportunidade de ser cautelosas se quiserem.

— Ouvi dizer que conseguiu reabrir o caso Evril — disse Georges Souchet sugestivamente.

— Temo que sim, Monsieur Souchet.

— Quem envolveu o senhor nisto?

— Prefiro não dizer.

— Prefere não dizer... ou é um capricho pessoal?

— Não pego casos por capricho, Monsieur.

— Alguma expectativa... a longo prazo?

— Por enquanto, estou só procurando — disse Fëll —, seja para confirmar seja para descartar.

— Confirmar ou descartar — disse Monsieur Souchet. — E como é que eu entro nisso?

Sentindo-se ligeiramente pressionado, Fëll preparava-se para entrar em explicações, quando percebeu que Monsieur Souchet não estava realmente interessado em obter informações.

— Na verdade, Monsieur, eu vim vê-lo porque gostaria que contasse para mim o que estava fazendo no solar no dia em que Alain Evril morreu?

— Não quero ser rude, mas me parece que aquilo que eu estava fazendo no solar naquele dia é uma questão pessoal.

— Nada é pessoal em uma investigação.

— Eu tinha feito uma excursão ao Canadá naquele ano... em fevereiro, acho... e Alain viajou no mesmo navio. Ficamos amigos. Enfim, ele me convidou para ir passar uns dias com ele e me disse que ia ser uma festa entre amigos.

— Festa entre amigos, Monsieur Souchet?

— Eu sei que é uma expressão pejorativa, mas foi o que ele escreveu no convite. Quando cheguei lá, vi, de fato, que era o local ideal para uma reuniãozinha inocente de amigos.

— Bem, respeito o seu modo de ver as coisas, Monsieur Souchet — disse Fëll. — Mas não acho que tenha sido uma reuniãozinha inocente de amigos. O anfitrião acabou morto.

— Acabou morto, mas... e daí? Por que está me interrogando sobre isso?

— Porque estou atrás de pistas — disse Fëll.

— Pistas sobre o quê? — perguntou Monsieur Souchet com cautela. — Sobre o suicídio?

— Acha que foi suicídio?

— E não foi? Era nisso que eu acreditava na época.

— E hoje?

— Também — disse Monsieur Souchet com fervor.

— Quem sabe — disse Fëll. — Tem gente que vive com uma crença por tanto tempo que simplesmente acaba se acostumando a ela. Uma crença que, se analisada a fundo, pode não corresponder à verdade. Muitas pessoas só veem o que querem ver. Para saber a verdade às vezes é preciso ir um pouco mais além, Monsieur Souchet.

— É a minha vez de dizer que respeito o seu modo de ver as coisas, mas, para mim, os seus argumentos, por melhores que sejam, não vão mudar minha opinião sobre o assunto. Parece, parece incrível, mas eu estive lá. Eu vi, eu acompanhei os acontecimentos. Tudo estava sob controle. Tudo estava indo bem. Tudo conforme devia ser. Pessoalmente, tenho a impressão de que existiu o que eu chamaria de significado subjacente para tudo aquilo.

— Significado subjacente? — perguntou Fëll.

— É — disse Monsieur Souchet um tanto sonhador. — Sabe, é comum para nós, seres humanos, experimentarmos, pelo menos uma vez na vida, um momento de profundo desespero e de grande falta de esperança. Mas, aos poucos, os nossos sentimentos e ideias se reorganizam. As nossas experiências cotidianas passam a fazer sentido novamente e nós conseguimos restabelecer a confiança em nós mesmos. Descobrimos uma saída, procuramos apoio, encontramos compreensão. Aquele desejo autodestrutivo, aquela vontade de resolver todos os problemas num golpe só, se dilui. E nós seguimos em frente. Muitos, no entanto, não conseguem encontrar uma alternativa. O suicídio, para eles, parece ser a última cartada, o xeque-mate contra o sofrimento, um gran finale para uma vida aparentemente sem sentido, para um presente pesado demais ou para um futuro vazio e amedrontador. Estes acabam se matando. Deve ter sido, só pode ter sido, isso o que aconteceu com Alain.

— Monsieur tem alguma ideia do motivo que levou... — Fëll calou-se um momento em busca da palavra correta — para Alain Evril se matar?

— Não tenho a menor ideia. Quase impossível imaginar que ele pudesse fazer algo assim.

— Estava contando com a sua ajuda para descobrir.

— Nesse caso, suponho que errou o pulo.

— Alguma briga? Algum atrito?

— Nada, absolutamente. O suicídio foi uma surpresa enorme não só para mim, mas para todos.

— Talvez as coisas se tornem mais fáceis de compreender, Monsieur, se eu lhe disser que talvez não tenha sido suicídio... mas assassinato.

— Assassinato? — perguntou Monsieur Souchet calmamente e esforçando-se para não deixar transparecer a menor sombra de preocupação. — O senhor disse assassinato?

— Exatamente.

— Ninguém ganhou com sua morte, ninguém o odiava. Pelo menos, não a esse ponto. Não acha que é uma especulação temerária?

— Não vi nada que exclua essa possibilidade — disse Fëll.

— Acha que há um assassino por aí? — perguntou Monsieur Souchet. — Um assassino que ficou fora do radar por mais de três décadas?

— É possível.

— Tem alguma prova para a sua... alegação?

— É isso que estou averiguando — informou Fëll. Balançou a cabeça e disse: — Mas minha fonte é fidedigna e incontestável.

— E que fonte é essa?

— Lamento, mas não posso revelar o nome da minha fonte. No momento, e até que a minha investigação avance a um ponto satisfatório, prefiro mantê-la anônima. Agora, Monsieur Souchet, o senhor tem alguma suspeita, por menor que seja, de quem poderia querer matar Alain Evril?

Georges Souchet falou devagar e com hesitação, mas com uma ênfase um tanto... incisiva:

— Nenhuma.

— Ninguém na época aventou tal hipótese?

— Não sei... acho que sim. Desculpe, mas é que já fazem 30 anos.

— 32.

— 32? Vê? Ora, mas o que é que eu estou dizendo? O senhor não tem o costume de desistir de seus casos, tem?

— Normalmente não.

— Foi o que eu imaginei. Que tal se eu dissesse para o senhor contatar a corregedoria? Divisão de Assuntos Internos... Talvez eles...

— Eu já fiz isso, Monsieur. Achava Alain Evril um homem inteligente, Monsieur Souchet?

— Muito inteligente. Alguém que se fez na vida por si mesmo. Por quê?

— Para ser franco, não estou autorizado a dizer-lhe, Monsieur Souchet. O que posso dizer é que estou atrás de detalhes de sua atividade profissional, seus amigos — de tudo, enfim, que me ajude a saber quem ele era.

— Realmente — disse Monsieur Souchet — não entendo aonde quer chegar. Talvez devesse explicar um pouco melhor.

— Com prazer — disse Fëll. — O que eu quero saber é se Monsieur gostava de Alain Evril.

Georges Souchet deu a impressão de ter achado a pergunta embaraçosa.

— Bem, naturalmente, eu... eu gostava dele. Quero dizer, bem, como a maioria das pessoas.

— Era um bom camarada?

— Não sou de falar mal dos mortos, detetive.

— Morto ou vivo, o que é que muda? É possível que, se ele fosse um bom camarada, ninguém tivesse querido matá-lo, mas, se não era um bom camarada, alguém poderia ter querido matá-lo, e assim...

— Mas não se trata só de uma questão de camaradagem, não é? Tudo indica que foi suicídio.

— Eu sei — respondeu Fëll. — No entanto, eu acho que foi um crime, como a maioria dos crimes, cometido por algum motivo.

— O senhor acha? Por quê?

— Por causa de uma observação feita por Alain Evril; não propriamente na noite anterior à morte, mas na penúltima noite. Ele disse que sabia de alguém que ia cometer um assassinato.

— Oh, aquilo — disse Georges Souchet desdenhosamente. — Ah! Bobagem! Bobagem!

— O senhor ouviu a declaração?

— Se eu ouvi? Por que a pergunta?

— Lamento, mas preciso saber disso para ver se todos os que estavam lá ouviram a mesma coisa ou não. Essa informação, como Monsieur sabe, é necessária em qualquer investigação. Diga-me uma coisa: alguém entre os presentes acreditou na tal história?

— Duvido muito.

— O irmão dele?

— Não, não acho que Jules tenha acreditado.

— Nem Monsieur, não foi?

— Bem, não mesmo — respondeu Monsieur Souchet.

— Foi por isso que pedi este nosso encontro, para ver se o senhor ia me dar alguma informação que julgasse importante sobre aquele dia.

— É? — respondeu o outro. E, com voz neutra, perguntou: — Acha que isso vai ajudar a descobrir alguma coisa nova?

— É essa a minha esperança — disse Fëll. — E quanto à Mademoiselle Hambour? Quero dizer, ela lhe parecia uma boa moça, ou achava que ela fosse dissimulada?

— Eu a achava dissimulada. Para ser sincero, eu não a conheci muito bem. As minhas lembranças dela são meio nebulosas.

— Compreendo — disse Fëll. — Monsieur conheceu um tal de Gen. Tullet?

— Tullet? Tullet? O senhor disse general? Ele era tenente, se lembro bem. Uma noz dura de quebrar, sim senhor! Devia ter cerca de trinta e sete anos e a única coisa nele que sugeria se tratar de um militar era a afetação e a cara fechada. Bem, como já disse, faz muito tempo — disse Georges Souchet. — A única coisa que consigo me lembrar sobre o caso é que encarregaram Monsieur Gaille como juiz de instrução.

Fëll olhou para Monsieur Souchet. Não tinha mais perguntas, pelo menos por ora.

— Bem, fico satisfeito por ter-me ajudado a checar esses pontos. — Tirou um cartão de visita do bolso. — Aí está o meu e-mail. Se Monsieur se lembrar de mais alguma coisa, entre em contato comigo.


Fernan Rastignac

 

— Alô, Monsieur Rastignac?

— Sim? Quem é?

Fëll se identificou.

— Ah, é o senhor. Eu estava esperando seu telefonema.

— Pois é, Monsieur Rastignac, eu preciso falar com o senhor — disse Fëll. — Podemos combinar uma entrevista?

— Onde?

— Onde queira, quando queira e como queira.

— Amanhã de manhã, pode ser? Digamos... às 10h... aqui em casa?

— Então, posso ir?

— Certamente, é claro que pode. Terei prazer em recebê-lo.

— Kombiniert! Fica agendado, Monsieur Rastignac.

Edmund Fëll ouviu o celular ser desligado na outra extremidade da linha.

Pontualmente às 10h da manhã seguinte, Fëll contemplou a casa branca, de telhado escuro. Havia palmeiras no jardim, flores, alguns arbustos...

Um marroquino velho e de expressão sombria o atendeu, pedindo-lhe que esperasse no vestíbulo enquanto avisava o patrão.

Finalmente, o marroquino retornou e, fazendo um gesto para que o austríaco o seguisse, atravessou o vestíbulo. Parou diante de uma porta, bateu duas vezes e, sem esperar resposta, girou a maçaneta. Era a sala de estar. Lá estava Fernan Rastignac, junto a um armário de bebidas, inclinado para pegar alguma coisa lá dentro. Fëll entrou.

Monsieur Rastinganc se virou ao ouvir o ruído da porta às suas costas. Tinha na mão direita uma garrafa de vermute e dois cálices pequenos na esquerda.

— Toma alguma coisa?

— Um xerez, seco — disse Fëll, por puro reflexo.

— Muito bem, xerez seco.

Monsieur Rastignac apontou para o outro lado da sala de estar, onde havia duas poltronas e, entre elas, uma mesa baixa de pés curvos.

Tendo servido a dose de xerez, levou-a para lá. Edmund Fëll aceitou o cálice, agradeceu, mas só quando o anfitrião se acomodou foi que se sentou na outra poltrona.

— Já me falaram do senhor — disse Monsieur Rastignac.

— É mesmo?

— Já me falaram do senhor — mas sob um ponto-de-vista um pouco negativo.

— Negativo?

— Sinto-me no dever, mais do que qualquer outro, de dizer o que penso. Isso o que o senhor está fazendo talvez seja... como é que eu vou dizer?... um apito para cães.

— Apito para cães?

— É. Ninguém dá a mínima, se é que me entende. Aliás, não se ofenda, mas eu vou perguntar mesmo assim. Isso... essa investigação... está sendo feita dentro da legalidade?

Fëll sacou sua credencial e mostrou-a ao emérito cavalheiro, dizendo:

— Monsieur Rastignac, deixe-me explicar uma coisa. Acredito que o caso envolvendo a morte de Monsieur Alain Evril tenha sido encerrado indevidamente, já que, na época, ninguém foi responsabilizado.

— E o senhor... depois de todos esses anos... acha que pode encontrar o culpado?

— Supondo que exista um culpado!

— E também, supondo que não tenha sido suicídio, é isso o que está querendo dizer?

— É exatamente isso o que estou querendo dizer.

— No caso, a sua intenção é demonstrar que a polícia talvez tenha errado.

— Talvez...

— Ora, e eu que achei que a prescrição máxima desses fatos fosse de vinte anos!

Edmund Fëll balançou a cabeça.

— Sim, e é. Acontece que eu pedi o desarquivamento do caso, Monsieur Rastignac.

— Sob que alegação?

— Sob a alegação de que surgiram novas provas.

— Novas provas... — pigarreou o francês. — E surgiram novas provas?

— No atual estágio da investigação, eu não saberia dizer nem que sim nem que não. Ainda estou tentando ligar os pontos.

— Fico imaginando... Por que um homem como o senhor comprou essa briga? Pela minha limitada visão do mundo, as coisas não funcionam assim.

— Acha que fiz mal?

— Não foi o que eu quis dizer. Não se pode ser negligente, se for verdade o que está sugerindo. Ainda assim... Por que o senhor se meteu nessa? Por causa de Sabine, acertei? É, eu sei. Sabine quer a verdade. E ela está certa, sabe? Mas será que ela avaliou o custo em perdas e danos?

— O que perturba Madame Lafayette não é o custo em perdas e danos, mas a dúvida.

— Que dúvida?

— Sobre o que aconteceu ao irmão dela. Ele se matou? Ou, contrário à crença geral, ele foi assassinado?

— E é por isso que o senhor quis me ver.

— Sim, Monsieur Rastignac. Não acho que haja necessidade de perder tempo fazendo perguntas cujas respostas eu já sei. Aconteceu algo naquela noite do baile que chegou ao meu conhecimento.

— Ah! O baile — disse Monsieur Rastignac.

— Monsieur estava no baile?

— Sim, estava.

— E o que aconteceu?

— O senhor quer saber se há alguma coisa que eu tenha observado ou que pense ser de certa importância para contar ao senhor, não é?

— Sim.

— Não observei nada.

— Não observou nada?

— Fundamentalmente, não. A única coisa que posso dizer a respeito do caso todo é que não foi suicídio.

Fëll não coube em si de espanto.

— Não foi suicídio? Estava achando que ninguém fosse me dizer isso.

— Oh, não. O senhor fez a coisa certa reabrindo o caso. Assim que chegaram, os peritos recolheram detalhes sobre o corpo, sua posição e condição, a distância dos objetos em volta... E algo mais. Alain ainda vestia o pijama de dormir. O pijama de dormir. Muito significativo, não? Toda a cena foi montada para corroborar a teoria de suicídio. Há elementos que reforçam essa teoria. Foi homicídio, disso eu tenho certeza.

— Alguma ideia de quem seja o assassino?

— Quem dera! Ouça... Quero fazer o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo a identificar o assassino. Se eu contar a minha versão dos fatos, eu posso me complicar com isso?

— Dificilmente — disse Fëll. — Nada que o senhor diga tem peso jurídico.

— Então, espere... Tenho uma coisa que o senhor pode querer ver.

Monsieur Rastignac deixou a sala de estar e foi até a escada que levava ao piso superior. Voltou dali a dois minutos trazendo um papel dobrado, que entregou ao detetive.

— O que é isto, Monsieur? — perguntou Fëll.

— É um mapa.

— Estou vendo...

— Eu acredito que essa seja razão de Alain Evril estar morto. Ele disse que estava em perigo. — Fernan Rastignac apontou para o mapa. — Disse que se alguma coisa fosse acontecer a ele ia ser por causa disso.

— Por causa de um mapa de Paris?

— Sim. Por causa de um mapa de Paris. Áreas, bairros, atrações e marcos da cidade. Está tudo aí!

— E o que foi que Monsieur fez quando ele mencionou isso? — perguntou Fëll.

— Não fiz nada — disse Monsieur Rastignac, envergonhado. — É isso o que me deixa louco... Não entendi logo o que estava acontecendo. E, depois, nunca mais pensei nisso. Não, mesmo, nunca pensei. Mas, quando surgiu o rumor de que um cavalheiro estava reabrindo e revendo o caso, bem, eu... — e se interrompeu.

— Mas, então...

— Sim, é lamentável, mas é. Eu não sei qual a utilidade ou finalidade deste mapa. No início, admito ter ficado curioso. Afinal de contas, a gente precisa saber, quando recebe alguma coisa, o que está recebendo, não é mesmo? Mas, o tempo foi passando e, bem...

— Monsieur Evril receava que a vida dele estivesse em perigo?

— Sim. Alain disse que se isso se tornasse público causaria um estrago e tanto.

— Que tipo de estrago?

— Olhe, eu não sei o que ele quis dizer.

— O senhor acreditou nisso?

— Acreditar nisso? Não, não acreditei nisso, mas o que eu ia fazer? Não sei. Eu só concordei em ficar com o mapa.

— Essa foi a sua única incumbência?

— Sim.

— Por quê?

— Tantos “porquês” — disse Monsieur Rastignac. — Por que Alain insistiu para que eu ficasse com ele? Por que eu consenti? Para ser franco, nem eu sei. Conforme o tempo foi passando e ninguém, ninguém mesmo, pareceu se interessar pelo mapa, achei melhor deixá-lo de lado. Estou certo de que o senhor, sendo um homem que conhece as coisas, deve saber porque eu nunca falei nisso... Quero dizer, tudo que eu fiz...

— Tudo o que Monsieur fez foi não dizer nada — completou Fëll. — Vou fazer-lhe outra pergunta — disse Fëll, em seguida. — Pense bem antes de respondê-la. Monsieur acha que este mapa... ou o que quer seja... possa ter relação com um plano para algum assassinato?

— Acho que sim — respondeu Monsieur Rastignac. — Na ocasião, julguei que ele estivesse... sei lá... paranoico... ou ficando maluco. Mas depois... ao relembrar os fatos... foi que eu reparei.

— Reparou? Reparou no quê?

— Que Alain estava com medo.

— Medo?

— Sim. Medo de ter descoberto alguma coisa.

— Alguma coisa envolvendo um de seus amigos?

— Pode ser.

— Monsieur acha que foi um deles que o matou?

— O senhor crê mesmo que eu vá ou que eu possa responder a essa pergunta? Eu teria de ter alguma prova, não teria? Teria de estar seguro.

— Monsieur poderia dar um chute — disse Fëll.

— Qualquer um pode dar um chute.

— Monsieur tem algum palpite?

— Palpite? — perguntou Fernan Rastignac espaçando bem as sílabas. — Não, acho que não tenho nenhum palpite.

— Conforme eu soube, na noite do baile Alain Evril disse saber de alguém que ia cometer um assassinato. Quer saber o que eu acho, Monsieur Rastignac? Eu acho que, quem quer que fosse esse alguém que supostamente ia cometer o tal crime, esse alguém estava em meio ao grupo de pessoas que se encontrava lá. Caso contrário, não teria havido razão para Alain Evril mencionar isso naquelas circunstâncias, teria?

— Por alguém o senhor quer dizer um assassino? É isso? Um assassino se encontrava ali entre nós, é isso? Perdão — balbuciou Monsieur Rastignac —, mas... é aí que o senhor quer chegar? Uma motivação, uma razão?

— Sim, aí mesmo. Monsieur não tem pessoalmente qualquer suspeita? Não existe crime sem um criminoso.

— Não, não tenho nenhuma suspeita.

— Disse para a polícia o que acabou de me contar?

— Nunca — estremeceu Fernan Rastignac. — Não havia razão... principalmente porque... bem, desde o início, o veredito foi de suicídio. Eu só me lembrei disso de novo quando li que alguém estava bisbilhotando o caso. Bom, talvez não seja nada... Ora, que tal se eu ligasse para o senhor caso me lembre de qualquer coisa? Talvez... com calma... eu consiga montar um relato melhor e mais detalhado.

— Mas isso seria ótimo! — disse Fëll, entusiasmado.

— Então, ficamos combinados. O que o senhor quer que eu inclua?

— Nada demais. Faça um relato do que se lembra daqueles dias, algumas palavras sobre o assassinato e das circunstâncias em que ele aconteceu.

Fernan Rastignac balançou a cabeça.

— É bom saber que contribuí de alguma forma para a sua causa. Espero do fundo do coração que consiga esclarecer esse grave episódio criminoso. Quero que o assassino de Alain seja levado à Justiça. E, por favor, mantenha-me informado.

— Farei isso.

— Merci.

Fëll disse adieu e se retirou. Perguntas giravam na sua cabeça. Ele tentou organizá-las numa progressão lógica.

O mapa dado por Fernan Rastignac realmente era a chave para chegar à identidade do assassino de Alain Evril?

Se a resposta fosse sim, o mapa devia ter um significado. Mas qual?

Se a resposta fosse não, por que Alain Evril tinha sido morto?

Outra pergunta...

Quem mais sabia dele?

Era possível conjurar algumas possibilidades para essa última pergunta. Mas qual delas era a certa?


Lambert Trainville

 

Olhos castanhos e boca com a delicadeza de um Dachshund. Magro, nariz adunco, gestos indolentes... Em poucas pinceladas, era esse o quadro anatômico de Lambert Trainville.

— Muito obrigado por me receber — disse Fëll amavelmente. — Pensei em dar um pulo até aqui e perguntar se o senhor poderia me dedicar um pouco de atenção.

— Vamos para o meu escritório.

O escritório de Lambert Trainville ficava no fim de um corredor aparentemente interminável e consistia, conforme Fëll constatou, de uma única sala interna.

— Entre aqui — convidou Monsieur Trainville, entrando pela porta aberta. — Por que não sentamos e tomamos um drinque enquanto conversamos? Talvez possamos entrar em algum tipo de entendimento.

— Que tipo de entendimento? — perguntou Fëll.

— Se não me engano o senhor é o detetive, não é? Que investiga sobre crimes e assassinatos e coisas assim, não?

— Sim, sou eu mesmo.

Monsieur Trainville sentou-se na cadeira de espaldar reto atrás da mesa, cruzou os dedos e olhou para o austríaco.

— Suponho que tenha estado com Jules Evril — disse em um tom de voz mais baixo.

— Estive.

— Jules o enviou até aqui?

— Não.

— Vamos ser práticos. Gostaria que me ouvisse até o fim antes de tirar uma conclusão.

— Está bem.

Fëll cruzou os braços e esperou.

— Ah, sim. — Monsieur Trainville pareceu ter perdido o curso dos pensamentos ao ver a atitude do detetive. — Eu sei por que veio aqui. Ouça... Acho que o senhor não devia se importar com...

Fez uma pausa, indeciso em como prosseguir.

—... com algo que aconteceu há trinta e dois anos? — completou Fëll. — É isso o que quer dizer?

Monsieur Trainville baixou ainda mais o tom de voz.

— Devem ter contado histórias a meu respeito, não foi? Muitas histórias. Acreditou nelas?

— Deveria acreditar?

— Tem de decidir se vai acreditar em seus olhos e ouvidos ou no que os outros contam. Não precisa reagir como se acabasse de receber uma proposta indecorosa. Pedi para não tirar uma conclusão precipitada, não pedi? Para mim, o senhor é um operário das causas perdidas. Quero que saiba que considero a sua investigação desprezível, tola e completamente inútil, ouviu?

Fëll deu um sorriso estático e quase indecente.

— Pode ser que tenha razão, Monsieur Trainville.

— Sabe no que está fuçando?

— Deveria saber?

— Deus do céu, o que o senhor acha? Acha que isso vai trazer algum benefício para alguém?

— Se houve assassinato, sim — disse Fëll.

— Eu acho que não vai.

— Deixe-me dizer uma coisa, Monsieur Trainville. Todos os dias nós enfrentamos alternativas. Alternativas como: ou falamos ou ficamos calados. Nosso silêncio pode não afetar ninguém, mas também pode afetar. Às vezes, pode mesmo alterar o rumo de uma história. Não se pode ficar calado em um caso de assassinato.

— Quem disse que foi assassinato? Vou dizer isso uma vez só. Não quer escrever? Alain se envenenou. Penso que, quanto a isso, nunca houve dúvidas.

— Notei uma pontinha de nervosismo em sua voz, Monsieur Trainville. Pelo que sei, nem todo mundo simpatizava com Monsieur Alain Evril. Nem todo mundo aprovava as suas maneiras, o seu jeito de fazer as coisas. Parece que o senhor também não.

— Não mesmo! — disse Monsieur Trainville. — Alain era egoísta, egocêntrico, rude, arrogante. Era ele quem fazia as regras. Era ele quem dizia quem estava dentro e quem estava fora. Uma criança buscando consolo, um menino chorão.

— Um manipulador?

— Sim. Isto e muito mais. Mas e daí? Por quê, Herr Fëll? Por que desencavar o passado?

— Porque eu suspeito que algum desafeto, irritado com ele, tenha resolvido... ir um pouco além do que devia ir, se é que me entende.

— É nisso que está apostando? Ah, vá! O senhor não acha que...?

— Meu caro Monsieur Trainville... Devia saber que não é preciso muito para que uma versão nova dos fatos caia no gosto popular.

— Uma versão nova dos fatos — disse Lambert Trainville, parecendo subitamente preocupado. — Meu Deus, como o senhor é ortodoxo. O senhor acha mesmo... mas é impossível... é impossível. A mera hipótese é um absurdo.

Preferindo não responder, Fëll disse:

— Absurda ou não, o senhor tem que reconhecer que minhas perguntas sobre suas relações com ele não são totalmente irrelevantes. — Fëll fez uma pausa sugestiva; daí, tirando uma coisa do bolso, acrescentou: — Monsieur já viu isto?

— Não. O que é isto?

— É um mapa do centro de Paris.

— Quem o deu ao senhor?

— Um homem chamado Rastignac.

— Fernan Rastignac? Fernan, Fernan... Há quanto tempo não o vejo! Mas o que significa?

— Ele acha que é a razão pela qual seu Alain Evril está morto.

— E o que isso quer dizer?

— Ele acha que é a razão pela qual Alain Evril está morto — repetiu Fëll. — Essa é a teoria.

— Fernan acredita nessa teoria maluca?

— Sim.

— Mas este mapa tem mais de quarenta anos! Provavelmente não quer dizer nada.

— Quando alguém diz que isso causou uma morte, algum significado deve ter.

— Provavelmente tudo bobagem. Mas o senhor não vai ignorar isso, vai?

— Acho que não.

— Tenho certeza de que deve estar ansioso para deslindar o caso. Bem — disse Monsieur Trainville, reticente. — Nisso não posso ajudá-lo.

— Monsieur lembra-se de uma moça chamada Laiane Hambour?

Os sulcos nos cantos dos olhos do homem se aprofundaram. Os lábios enrugados se contraíram.

— Esse nome quer dizer alguma coisa para o senhor, Monsieur?

— Lembro-me sim de uma moça chamada Laiane Hambour. Laiane! Ah, Laiane! Uma moça tão inteligente e que, via de regra, sabia das coisas. Mas acho que, naquele dia, ela estava jogando um jogo errado.

— Errado em que sentido?

— Não sei. Errado...

— É mesmo? — Fëll manteve a expressão neutra.

— Eu a conheci semanas antes de Alain morrer.

— Em que dia?

— A morte foi em uma quinta-feira do mês de julho... Creio, sim... creio que foi em fins de maio.

— Manteve contato com ela?

— Casual. Ela... — Monsieur Trainville pigarreou — ela está envolvida nisso, de alguma forma?

— Não. Só estou repassando nomes. O senhor sabe onde Madame Hambour mora agora?

— Não vejo Laiane há anos. Eu diria que não a vejo desde que a calça boca de sino estava na moda.

— Fiquei sabendo que, em sua penúltima noite de vida, Alain Evril teria falado a propósito de alguém que ia cometer um assassinato.

— Oh! Aquilo... Sim, agora que o senhor mencionou, lembro-me disso. Foi uma jogada de marketing e tanto.

— Jogada de marketing?

— É. O que ele disse... e daquela forma... valeu por todo um drama de Molière. A que assassinato Alain poderia estar se referindo? — perguntou Monsieur Trainville. — Nenhum — disse, com firmeza.

— Não houve nenhum crime em agosto daquele ano de que Monsieur se lembre? Ou que, de alguma forma, tenha chamado a sua atenção?

— É evidente. Os casos convencionais: assassinatos, estupros, roubos, e assim por diante...

— Nada fora do comum ou não esperado?

— Bem... — Monsiuer Trainville hesitou. — Talvez tenha havido alguma coisa, mas quem é que vai saber?

— E depois de ele ter falado... Qual foi a reação?

— Continuaram a perguntar por que ele não ia à polícia, e ele disse: “Porque até hoje eu não sabia que aquilo tinha a ver com um crime.”

— E isso não o preocupou?

— Não, não me preocupou, pelo menos não na hora.

— Mas hoje Monsieur pensa de outra maneira?

— Dizer aquelas coisas, dizer que sabia de algo sobre um crime... Foi uma loucura! Uma loucura.

Fëll balançou a cabeça.

— Talvez não, Monsieur Trainville. É por isso que vim procurá-lo, pois a única maneira de se explicar sua morte é admitir a existência de um crime que ele suspeitava que ia ser cometido.

— Isso implicaria algumas coisas.

— Implicaria — disse Fëll suavemente. — Implicaria que um dos presentes na tal festa entre amigos tinha planejado um crime, ou estava de conluio com alguém que tinha planejado.

— O senhor não acha que isso pode ser só fruto de sua imaginação?

— Um homem morreu, Monsieur Trainville. Provavelmente assassinado. Assassinado por alguém sem escrúpulos. Alguém que se sentiu ameaçado, que viu que Alain Evril tinha se tornado um empecilho para a concretização de seus planos e que, por isso mesmo, tinha que ser morto.

— Está dizendo que um de nós... lá presente... sabia do que Alain estava falando?

— Sim — disse Fëll — é isso o que estou dizendo. Alain Evril descobriu um complô para um assassinato e possivelmente até mesmo sabia quem estava envolvido nele. Pode ser que alguém que estivesse lá e que tenha ouvido as palavras de Alain Evril soubesse do crime, soubesse quem ia cometê-lo e, talvez, estivesse profundamente envolvido com o assassino... ou fosse o próprio assassino. Ou pode ser que esse alguém acreditasse ser ele o único a saber do que um colega iria fazer, ou seu irmão ou seu sobrinho ou seu tio. Alguém que pensasse que ninguém mais soubesse. E, então, Alain Evril começou a falar...

— E então...

— Alain Evril teve de morrer. Quando o encontraram morto, não pressentiu que ele poderia estar dizendo a verdade?

— Não, sinceramente não — disse Monsieur Trainville. — Mas, sabe, achei aquilo estranho e confesso ao senhor, que sabe como são essas coisas, que eu sempre tive vontade de saber a verdade por trás dessa história.

Fëll tornou a guardar o mapa e levantou-se.

— Bom, acho que isso é tudo. Perdoe-me por ter despejado tantas perguntas sobre Monsieur assim, em cima da hora.

 

 

Relato da governanta

 

Madame Heatherston. Meu nome é Andrew Coleman. Eu sou comissário de Polícia. Estou empenhado em investigar as circunstâncias relacionadas com a morte de Alain Evril. Boa tarde.

Boa tarde.

Madame Heatherston, conte-me quais são suas funções no solar Oakleight, oui?

Monsieur Evril me contratou para ser a empregada encarregada de fazer as camas, espanar o pó, servir a mesa e preparar as bebidas. Mas, após nove anos, eu assumi o papel de governanta, o que colocou os outros funcionários sob a minha autoridade.

O corpo da criadagem é composto de quanta gente?

De cinco pessoas: o velho Chaillet, que cuida do jardim e corta a lenha; o jovem Martin, chofer; o tunisiano Lahouaiej, o cozinheiro, que vive bebendo, e gastando todo o salário em vermute; e Madeleine e Natalie, as outras duas empregadas.

Tudo na casa passa por sua supervisão?

Sim. Madame Evril sempre me consulta sobre tudo. “O que faremos para o jantar de hoje, Shirley? Temos bastante farinha, mas a manteiga está no fim e só sobrou um pouco de açúcar do café da manhã.” Ou: “Shirley, me diga se eu coloquei muito fudge na caçarola de atum.” Bem, acho que agora já sabe tudo que precisa saber sobre mim, comissário.

Obrigado, Madame Heatherston. Agora, Madame Heatherston, conte-me como era Monsieur Alain Evril.

Estritamente falando, sou apenas a governanta, mas ele sempre me tratou como uma tia ou irmã mais velha. Só há uma coisa que se pode dizer dele: ele era um homem muito gentil e, quaisquer que fossem seus defeitos, eu não gostaria... bem, não gostaria de induzi-lo a preconceito em relação a ele. Um dia eu estava esquentando o ferro de passar roupa sobre as brasas do fogão. A maioria tinha ido descansar após o almoço, e só eu estava na cozinha. Distraída, não percebi a porta se abrir e assustei-me ao ver o moço Alain olhando para mim. Ele disse:

— Pobre Shirley! Todo o trabalho fica sempre para você, hein?

— A sua mãe gosta da roupa bem passada — respondi.

— Minha mãe, é? — disse Alain. — Depois que papai morreu, ela passa a maior parte do tempo viajando. Mas ainda bem que temos você, Shirley. Ainda bem que temos você.

Um rapaz agradabilíssimo... Modesto e despretensioso, com quem se podia conversar sobre qualquer coisa, mas sempre metido em dívidas e complicações financeiras.

O irmão, Jules Evril, alguma vez chegou a socorrê-lo com dinheiro?

Imaginei que o senhor fosse me fazer perguntas sobre isso. Jules socorreu Alain com muito dinheiro, muito dinheiro, mesmo, não uma, mas duas ou três vezes. E eu sei muito bem as coisas terríveis que as pessoas fazem por causa de um monte de dinheiro. Outro dia, ouvi quando ele e Alain estavam tendo uma conversa muito séria. Jules disse: “Não quero nem pensar que você esteja fazendo isso!”, e Alain (ele era muito calmo, sempre, sabe?) respondeu: “Ora, irmãozinho, o que é que você queria que eu fizesse? Fique sossegado... Quando eu tiver morrido, todo o meu dinheiro será seu. Com ele, você vai poder devastar a Bolsa.”

Fale-me das moças, Madame Heatherston.

Moças?

Mademoiselle Sabine Evril, a filha de sua patroa, e Mademoiselle Hambour.

Isso vai ajudá-lo em quê, comissário?

Vai me ajudar a descobrir se as pessoas são o que dizem que são.

Oh! Se o senhor diz... Sabine é uma moça cordial, esperta, discreta e muito boazinha. Tem uma saudável e tradicional pose francesa. Ela é bonita, sim, mas menos bonita do que Mademoiselle Hambour. Mademoiselle Hambour é mais loira. Um pouco mais magra. Um pouco mais alta. Seus olhos são um pouco mais vívidos em cor, muito atraentes quando se comparam com os de qualquer outra mulher.

Mademoiselle Hambour tem... bom, uma postura de femme fatalle... Mas também consegue ser muito amável, quando quer.

Quando foi que Mademoiselle Hambour chegou ao solar?

Na manhã de segunda-feira. À tarde, as duas já eram unha e carne, passeando a cavalo pela propriedade. Achei uma coisa tão bonita, as duas se tornarem tão amigas. Uma amizade; é raro isso hoje em dia.

Gostaria que pensasse seriamente antes de dar a próxima resposta, Madame. Mademoiselle Hambour estava apaixonada por Alain Evril?

Tenho certeza que sim. Houve um baile... terça-feira à noite. Eu não fui ao baile. Mas, na quarta-feira de manhã, vi imediatamente que ela estava caidinha por Alain e que, embora ele não demonstrasse que retribuía o sentimento, não fazia nada para desencorajá-la. Por que está a pergunta, comissário? O senhor acha que... ela... o matou?

Ainda é muito cedo pra saber. Precisamos averiguar todas as possibilidades. Há, naturalmente, o irmão herdeiro. Um pouco óbvio demais, talvez. E depois, existe todo o mistério em torno dos acontecimentos de quarta-feira. Tenho a impressão de que Alain Evril passou mal, não foi?

Sim.

Na tarde daquele dia, todos saíram para um piquenique e só voltaram por volta das 5h. Reclamando de enxaqueca, Alain subiu direto e foi para o quarto. Perguntei-lhe se queria que eu fizesse um chá, mas ele respondeu que não, que já ia passar.

A noite estava quente e abafada. Ao longe, ouviam-se estrondos de trovões. Às 11h, deitei-me. Fiquei muito tempo acordada. Ouvi baterem as onze, as onze e meia. Depois, devo ter dormido.

O dia amanheceu chuvoso. Enquanto Madeleine, Natalie e eu ajeitávamos as coisas na cozinha, podíamos ouvir os rapazes falando alto na sala de jantar.

— Tudo aqui é tão bonito... — disse um. — Como pôde ir embora para a Inglaterra, Jules?

— Eu não quis ir — disse Jules, em resposta. — Fui expulso.

— Aos dezoito anos?!

— Papai e eu tivemos uma briga besta. Eu jamais poderia me desculpar pelas coisas que falei, e nem ele. Éramos muito parecidos: impacientes, explosivos, autoritários e orgulhosos.

— O que você fez?

— Era óbvio que ninguém me queria aqui — disse Jules. — Meu irmão era o único que conseguia agradá-los. Peguei minhas economias e fui embora para a Inglaterra. Eu falava bem inglês, e logo arrumei trabalho em uma vinícola. Só voltei para casa quando meu pai morreu.

Por um instante, julguei que iriam continuar aquele assunto, mas então o telefone tocou.

— Pode deixar que eu atendo — disse Jules. Depois de um minuto, ele disse: — Sim, ela está aqui. Sabine! — chamou. — É para você.

— Para mim? — sussurrou Sabine, enquanto pegava o fone. — Alô. Oi! Como vai? Espere um segundo, Monsieur Highlaw, vou checar minha agenda — falou. — Tudo bem, eu passo aí. Sim, Monsieur Highlaw. Hoje de manhã...

Sabine pousou o telefone e virou-se para Jules.

— Monsieur Highlaw quer que a gente pague as verduras.

— Ah! E você vai?

— É claro. Martin vai me levar até lá.

— Quer que eu vá com você? — ofereceu-se a menina Laiane.

— Não, não — disse Sabine. — Eu vou e já volto.

Imediatamente, ela pegou a bolsa e começou a se pentear no espelho do hall. Sempre vou me lembrar de como ela estava naquela manhã. Numa posição rígida, com uma saia escocesa, blusa branca esportiva e um casaco amarelo. Queixando-se do vento forte, Sabine saiu, fechando a porta atrás de si.

— Pobre Sabine — disse Jules, empunhando seu cálice.

De repente, a porta se abriu de novo, e apareceu aquele rapaz... Claude alguma-coisa. Seus olhos, normalmente penetrantes, estavam arregalados. Sua expressão era tanto de espanto como de medo.

Não preciso explicar que esse foi o início do caos.

Depois disso, fomos todos para o ateliê. Quando meus olhos passaram sobre a cena, e eu o vi... eu soube. Soube que ele estava congelado... imóvel... morto.

Fiquei lá parada, tentando entender... entender tudo aquilo.

— Madame está se sentindo bem? — perguntou Porath, olhando para mim com a cara assustada.

Não me lembro do que aconteceu em seguida.

Oh! Se houvesse alguma maneira de lidar com a perda... mas não há! Há apenas uma tonelada de dor para carregar — um fardo permanente e medonho.


Relato de Jules Evril

 


Desculpe perturbá-lo em um momento tão difícil, Monsieur Evril, mas fui encarregado do caso e preciso fazer-lhe algumas perguntas, para ajudar na minha investigação.

Tudo bem, comissário.

Pode começar me dizendo como era seu irmão?

Alain era um cara de manias. Não admitia tapetes no quarto; exigia que a roupa, incluindo os lençóis e colchas, fosse lavada a cada três ou quatro dias. E regularmente ia a Paris, consultar um médico, não sei pra quê. Cheguei a me mostrar irritado a princípio, mas ele me dobrou. Sempre conseguia me dobrar. Prometeu que aquilo não continuaria por muito tempo e que ele ia porque era um caso de necessidade.

O senhor quer respostas? Então ouça... Eu vou contar o que sei.

Ainda posso rever Alain... acho que era domingo à tarde. Ele olhava pela janela, o retrato do tédio. Há algum tempo eu estava tentando convencê-lo a testar uma linha mais jovem e descontraída, para a qual poderíamos usar tanto o couro quanto a camurça.

— O que está fazendo?

— Nada.

— Não tem que escolher as cores para sua coleção?

— Tenho.

— E já fez?

— Vou fazer.

— Por que não faz de uma vez?

— Não é muita coisa. Faço em um dia.

— Se é pouca coisa, por que você não se livra disso logo? Você não está nada fazendo agora. Para que esperar? Por que não faz isso de uma vez?

— Amanhã eu faço.

Assim era Alain. O maior procrastinador do mundo. Amanhã eu faço. Seu lema. Tenho certeza de que as pessoas até mesmo se condoíam de mim, na crença de que eu devia me sentir inferior a ele. E eu me sentia. Alain amava profundamente e generosamente e era ferozmente leal àqueles de quem gostava. Podia ser tão silencioso e reservado que, para os que não o conheciam bem, talvez parecesse distante ou indiferente. Mas, se você conseguisse envolvê-lo numa conversa, ficaria surpreso com seu grau de percepção de tudo quanto se passava. Queria ter sido igual a ele. Mas não fui. Nunca vou ser.

Laiane Hambour! Que garota diabólica. Tão linda por fora e... tão má por dentro. Consigo lembrar muito bem dela, na segunda-feira, durante o jantar. A carne estava boa; a bebida também; mas Laiane, num vestido de seda muito vermelho e justo, roubou toda a cena. Ela dava uma bicadinha na comida, tomava um gole de vinho e... sorria. Sim, sorria. Como se... em seu coração... soubesse que... nós, os homens... estávamos todos com os olhos grudados nela. A pequena feiticeira!

Sim, eu percebi logo a mudança de atitude em Alain. Alain, de uma hora para outra, se fechou como uma ostra. Resolvi conversar com ele. Eu me perguntava: “O que eu vou dizer para ele? Ele deve saber o que está fazendo. E se ele ficar irritado?” Mas eu pensei em nossos laços sanguíneos e... Afinal, Alain já tinha me ajudado tantas vezes e eu não conseguia vê-lo tão pra baixo. Eu me preocupava com ele, tinha que fazer alguma coisa.

— O que está acontecendo, Alain? — perguntei a ele. — Pelo amor de Deus, diga o que está acontecendo.

— Lambert me odeia — disse ele, inflamado de raiva. — É isso o que está acontecendo. Lambert me odeia. Desgraçado!

— O que é que você queria? Já pensou o quanto você está humilhando Lambert? Você e o seu patético flerte com a namorada dele!

— Acha que ele sabe que eu me interessei por Laiane?

— Sim. Qualquer um teria percebido pela maneira como você olhava para ela.

— Grande coisa! — retrucou Alain, irritado. — Se quiser censurar alguém, censure Jacques, nosso primo. Ele está fazendo uma coisa muito pior do que eu.

— O que Jacques está fazendo?

— Nosso primo está dando em cima de uma ricaça da Rue de la Harpe, ele não contou a você? Mas ela é casada, Jules. Casada!

— Tá, tá — disse eu. — Deixe Jacques pra lá. Você sabe que flertar é tão fácil quanto respirar para Jacques. Minha preocupação é com você, oui? Você.

Ele passou uma mão pelo cabelo e saiu da sala. Foi então que me dei conta de que as coisas não andavam boas para ele, mas... não acredito que ele fosse se matar por causa disso. Alain jamais faria algo assim. Jamais! Não seria o seu tipo.

Se não quer arriscar conjeturas, Monsieur Evril, permita-me fazer três perguntas.

À vontade, comissário.

Primeira pergunta: eu soube que aconteceu uma coisa durante o baile, terça-feira à noite. O seu irmão... corrija-me se eu estiver errado... disse que sabia de alguém que ia cometer um assassinato.

Sim, sim...

Monsieur acreditou no que ele disse?

Deus me livre, eu não! Nem sempre ajuda abrir demais a boca. Alain era meio exibido.

O que é que Monsieur quer dizer com isso: Alain era meio exibido?

Contador de lorotas. Tinha o prazer de contar fosse o que fosse, sabe, para se mostrar.

Monsieur acha que Alain Evril estava se vangloriando de saber sobre um assassinato só para se mostrar?

Exatamente.

A quem ele ia querer impressionar?

A qualquer um dos que estavam lá na ocasião, é evidente. Por exemplo, Claude Fichée. Claude é marxista. Dedica-se a escrever teses sobre o socialismo e mantém contato com o movimento operário europeu. Ou talvez Alain estivesse querendo impressionar Georges Souchet. Georges é formado em ciências contábeis, filho de um antigo deputado. Ou, quem sabe, Fernan Rastignac. Fernan não pertence ao nosso mundo; ele é de outra esfera, um nível acima do nosso, e eu sei que Alain sempre nutriu um pouco de inveja disso.

Fale-me um pouco sobre Monsieur Hurwitz.

Não há muito a dizer. Jacques, como eu disse, é nosso primo, o único filho da irmã de papai. É simpático, mas tímido. Viveu sempre com mãe, uma mulher bastante rabugenta e ignorante. Do tipo mandona. Talvez seja por isso que Jacques está se relacionando com uma parisiense mais velha do que ele. Coitado!

Diria que algum deles...?

Não, não mesmo! Alain era querido e admirado por todos eles. Recebia a cada um com igual cortesia e o solar vivia cheio de gente que vinha em busca de gandaia ou algum favor especial. Se bem que... O senhor deve reconhecer, comissário, que eu não sou a pessoa indicada para falar sobre isso. Li o que saiu nos jornais... e só. Todas essas coisas estranhas que as pessoas dizem... e pensam. O que elas veem... ou pensam que veem.

O que eu vi, e confirmo, é que Alain estava babando por Laiane Hambour. Ora... entenda, comissário... O fato é o seguinte... é claro que eu posso explicar tudo... sei muito bem que não precisava ter feito aquilo... mas achei que seria oportuno, que não teria importância. Quando compreendi o que estava se passando com Alain... Enfim, eu achei que a única coisa a fazer seria confrontar Laiane. Armei-me de coragem e fui falar com ela.

— Colocando as coisas claramente, Mademoiselle Hambour — disse eu — depois de ver tudo com os meus próprios olhos — disse eu —, percebo que é uma moça que gosta de roupas caras, e, apesar da sua petulância em vir até aqui, simplesmente não vou permitir que arruíne a vida de meu irmão.

Ela ficou de olhos arregalados. Minhas palavras, vi, tinham doído nela.

— Não é nada disso... — quis argumentar ela.

— Pelo contrário, entendo tudo muito bem — disse eu. — Você deve ter se julgado muito sortuda por enganar um cara rico e desprevenido como Alain. Infelizmente para você, eu sou o contador dele e pode ter certeza que vou fazer tudo ao meu alcance para livrá-lo de suas garras.

— Não, não...

— Está apaixonada por ele?

Ela olhou para mim, aturdida.

— Sim — disse, por fim.

— E por acaso quer se casar com ele?

— Sim. É o que eu quero. É o que ambos queremos.

— Mas ia ser um desastre!

— Minha vida já é um desastre.

Que monte de mentiras. Ela estava apaixonada por Alain e queria casar com ele e ela nem sequer o conhecia há mais de dois dias!

— Mas Alain nem gosta de você! — disse eu, chateado. — Até me disse que tinha um pouco de medo de você! Ele deve ter dito a você que mamãe tem planos de vê-lo casado com a filha de um grande amigo nosso. Ocorreu-me agora que talvez você esteja querendo tirar partido da situação. Coisa engraçada você não admitir que está à procura de um homem para sustentá-la.

— Que coisa ridícula!

— Talvez para você. O nome Evril significa muito para mim e não posso consentir que seja jogado na lama simplesmente porque uma garota gananciosa como você tentou fazer chantagem para forçar meu irmão ao casamento.

— Acha que eu estou querendo chantagear Alain? Acha que vim aqui para... para...

— Ele tem quase o dobro de sua idade. Mamãe nunca iria concordar com esse compromisso, Laiane, por isso é melhor irmos direto ao assunto.

— Se está pretendendo me pagar para esquecer qualquer reivindicação que tenha com relação ao seu irmão, está perdendo seu tempo!

Laiane deu as costas e, furiosa, saiu.

Aí vai a segunda pergunta. O que aconteceu quarta-feira à tarde, o dia do piquenique?

Ah! O piquenique. Isso foi ideia de Jacques. Nosso primo adora esses eventos ao ar livre. E, naquele dia, por uma razão qualquer, todos toparam participar da aventura. A parte difícil foi chegar ao local intencionado! Fica no fim da trilha dos carvalhos — caso o senhor conheça a configuração do terreno —, debaixo dos ipês, onde, muito tempo atrás, havia alguns jardins e uma pequena casa de plantação.

Eu sei que suamos um bocado para chegar lá! Enquanto eu ia tirando da cesta os talheres e os pratos cobertos, Laiane, já sentada na toalha, disse:

— Bebida sem álcool. Que capricho!

— Acredite ou não, sou um homem de princípios — disse eu.

Mais ou menos duas semanas antes, Sam Corwin, um de nossos vizinhos, havia sido encontrado morto no sótão da casa. Dei um jeito de mencionar casualmente o fato, e Georges Souchet, que estava em condições de explicar todo o assunto, logo disse:

— Deixe-me ver. Sim, sim... Eu conheci Sam Corwin. Ele era biólogo marinho, não era?

— Esse mesmo — disse eu.

— Bem, eu sei alguma coisa a respeito disso. Isso aconteceu faz duas semanas. Dizem que foi envenenado com 10% de cianeto de hidrogênio na água. O cianeto, como sabem, causa saturação de oxigênio. Em casos severos, evolui para coma, convulsões, colapso cardiovascular e edema pulmonar. Dependendo da dose e da constituição da pessoa, é extremamente letal.

— A motivação do crime foi passional, não foi?

— É que dizem. A mulher de Sam é Ph.D. em matemática. Parece que ele caiu no erro de cortejar uma jovem, ou mais de uma, como se diz. Era muito mulherengo.

— Pelo jeito, a mulher descobriu...

— Sim, para azar dele — disse Georges. — Sam tinha as suas virtudes. Tratava bem os clientes e cuidava de seus contratos. Se ele tivesse se preocupado mais consigo mesmo e mantido um bom padrão de comportamento nada disso teria acontecido. Houve uma briga uma noite, e a única coisa que se sabe é que Sam amanheceu morto no sótão.

— A teoria é que a esposa foi a responsável?

— Diz a lenda que a polícia acredita ter sido uma questão de ciúme. Mas não havia vestígios. Nada. Mulher quando fica brava, fica mesmo! Bem, Sam era um sujeito de caráter muito estável. Bem-educado. A mãe, uma senhora muito distinta, era viúva. Mas o fato é que Sam vivia andando com gente de má reputação.

— “Quem se junta com tolos acabará mal.” Está na Bíblia.

— É muito possível que tenha sido esse o caso.

— Ninguém testemunhou o crime?

— Não — Georges balançou a cabeça. — Ninguém viu nada. Caso tenha sido ela mesma que fez o serviço, tomou todas as precauções. Álibis no tempo e no local adequado...

— Uma mulher com ódio, mas controlada o bastante para se proteger, removendo do local todas as provas... Nada mal!

— Isso é incrível — disse Alain, a essa altura. — Uma ratazana assassina mata o marido e vocês transformam o crime em um maldito conto sentimental.

Quando voltamos para casa, Alain virou-se bruscamente para mim e disse:

— Se não se importar, quero ir ao escritório. Gostaria de me certificar de uma coisa.

Ele veio para fora dali a dois minutos. Estava muito pálido e preocupado.

— É a coisa mais extraordinária.

— O que é extraordinário? — perguntei.

— Venha comigo um instante.

— O que é?

— Lembra-se de quando lhe mostrei aquele vidro com as pastilhas de cianeto?

— Ah, sei — disse eu.

— Estava nesta gaveta, não estava?

— Estava — eu acho.

— Você não mexeu nelas?

— Ah, imagine! Por que é que eu iria mexer em suas pastilhas de cianeto?

— Será que Porath...?

— Ah, não, de forma alguma. Porath não faria uma coisa dessas. Quer que eu pergunte?

— Não... é melhor não. Deixe quieto! Diga uma coisa, você se lembra quando foi que lhe mostrei o cianeto?

— Ah... há uma semana, mais ou menos — disse eu. — Estava ali no fundo, e eu perguntei o que era.

— É, foi isso mesmo. Mais ou menos uma semana. Não se lembra do dia?

— Claro — respondi. — Foi sexta-feira.

— Hum... tem certeza de que não foi antes? Na quarta-feira? Ou quinta, ou na semana anterior?

— Não — respondi. — Lembro-me muito bem. Foi sexta-feira, dia 15.

— Ah! — disse Alain, preocupado. — Meu Deus! Veja... o vidro está quase vazio.

— E daí?

— Daí que ele devia estar cheio!

Confesso que nunca tinha visto Alain tão perplexo. Seu nariz tremia, pelo que dava para calcular o grau de sua preocupação.

Caminhávamos na direção do solar enquanto falávamos. Havíamos rodeado o canto da casa, e subido a varanda, quando nos tornamos espectadores de um novo drama. Vimos, pelas guarnições estreitas de vidro que ladeavam a porta, dois vultos na sala de estar. Lambert Trainville, o peso pesado e Laiane Hambour, o peso pluma...

Laiane estava parada junto à porta interna, quando Lambert se virou e olhou para ela.

— Por que Alain quis dançar com você ontem à noite?

— O quê? — perguntou ela.

— Não faça isso, você entendeu a pergunta — respondeu ele. — O que ele quer? Ser o seu namorado?

— Meu namorado? Ele dançou comigo por mera educação.

— Por que ele está arrastando a asa para você? O que está havendo entre vocês?

— Não está havendo nada entre nós — explodiu Laiane.

— Não? Bem, talvez eu deva falar com ele, já que você está tão confusa.

— Não estou confusa! Estou indignada!

— Com quem?

— Com quem?! Espere um minuto. Você acha que estou tentando seduzir Alain Evril? Que bobagem!

— Ah! — disse Lambert por entre os dentes. — Você não está tentando seduzir Alain e, no entanto, ele a tirou para dançar, e a abraçou como se você fosse a única mulher do mundo. Ouça, eu não sou um gigolô, está bem?

De pé do meu lado, Alain fez uma careta, mas não disse nada. Dei um tapinha em suas costas, e disse:

— Está vendo? A ferida está aberta. Saia dessa, se puder.

Alain sorriu meio sem graça e entrou, usando a porta lateral.

Aquela cena, senti, afetou o seu estado psicológico. Pude ver isso na última conversa que tive com ele, mais tarde, naquela noite.

Eu estava procurando por Alain. Olhei e não o vi em nenhum dos cômodos de baixo, por isso subi correndo a escada, e o encontrei no quarto.

— Oi...

Alain tossiu e abriu devagar os olhos.

— A gente tem que conversar.

— Sobre o quê?

— Sobre o quê? Que pergunta é essa, Alain? Sobre você... aquela garota... tudo. Está todo mundo meio maluco. Fale com ela.

— Ela quem?

— A sua... amiga.

— Por quê? Laiane está incomodando alguém? Estou pouco me lixando! Se você tem alguma coisa contra ela... Não! Melhor. Se alguém, não importa quem, tem alguma coisa contra ela, que venha falar comigo.

— Qual é. Eu estou do seu lado. Não vou me opor mais a ela. Eu quero inclui-la... fazer com que se sinta parte da família. Na boa. Mas esse clima... nada disso é bom nem para você nem para ela nem para ninguém. Fale com ela.

— Isso não vai rolar. Eu já disse. Estou pouco me lixando.

— Só me diga uma coisa... Vai ficar com ela?

— Do que está falando?

— Vai noivar com ela? Casar? Cara, quanto tempo acha que isso vai durar?

Essa foi a derradeira conversa que nós dois tivemos sobre o assunto. E também foi a última vez que o vi com vida.

Terceira pergunta... Acha possível que seu irmão tenha sido assassinado?

É claro que é possível. Nesse caso, a pessoa que o matou devia ter motivos... motivos de sobra, imagino. E se tiver sido assassinato, a pergunta é: o que eu, Jules Evril, tenho a dizer em minha defesa? Uma única coisa: que eu não sou o tipo de homem que teria coragem para isso. Outra coisa: Eletrocutar alguém vai devolver a vida a Alain? Não vai. Desejo-lhe o maior sucesso do mundo, comissário.

Monsieur, eu preciso mais que bons votos. Preciso de respostas. Quem fica com a firma, agora que seu irmão morreu?

Eu e mamãe. Ele deixou também alguns móveis e uma pequena renda anual para Sabine. Alain tinha alguns títulos alemães e italianos; mas, com os impostos e pequenos dividendos que estão sendo pagos hoje em dia, posso lhe garantir que a morte dele não valeu grande coisa para nenhum de nós.

Seja como for, Monsieur herdou alguma coisa.

E, por isso, eu planejei o assassinato? Sabe, comissário, nos primeiros tempos, Alain esteve à beira da ruína total. Era uma questão de alguns mil francos em dinheiro vivo. Eu o socorri; tinha algumas economias e acreditava nele. Vendi tudo o que tinha e dei o dinheiro. Depois disso, ele sempre me tratou como uma espécie de sócio. Ah, foi um período muito sofrido. Ganhamos muito dinheiro trabalhando juntos, e, sinceramente, não esperava que eu herdasse muita coisa, mas fiquei comovido, sim, e orgulhoso, quando soube que eu herdaria a firma.

Eu gostava de Alain. Sério. Mas... ora, quer saber? Alain não foi morto por ninguém, não. Foi ele mesmo quem de fato pegou o cianeto de seu escritório. De alguma forma, foi aquilo... aquela mistura de coisas... que o impeliu a tirar a própria vida.

Por quê? Não sei.

Por quem? Não sei.

Então, havia alguma coisa de errado. O que era?

Pois é: eu não sei.

Mas achou que houvesse alguma coisa errada, não?

Bem... é... achei... Mas não tenho nada de concreto. Gostaria de compensar o que aconteceu... dizendo que sei. Mas... não dá. Não mesmo.

Talvez ninguém jamais saiba.

Eu lhe agradeço, Monsieur Evril. Agora, se me permite, entrevistarei a sua irmã.

Quer que a chame?

Não, não. Falarei com ela lá embaixo.


Relato de Laiane Hambour

 

Nós nos falamos pelo telefone, comissário. Meu nome é Laiane Hambour.

Sim, eu sei. Sente-se, Mademoiselle Hambour.

Por que me chamou aqui?

Estou tentando descobrir a verdade sobre a morte de Alain Evril. Não quero que sofra mais do que já está sofrendo, mas é o que fazemos em casos como esse. Eu gostaria de fazer algumas perguntas sobre o seu relacionamento com a vítima.

O que o senhor quer saber?

Vocês eram próximos?

Não.

Mas Mademoiselle estava no solar?

Estava.

Mademoiselle não armou uma cilada para ele, armou?

O quê?

Isso mesmo que Mademoiselle ouviu.

Não, comissário. Não armei cilada nenhuma.

Então por que estava lá?

Foi Lambert quem ligou para mim. Queria me encontrar.

Está falando de Lambert Trainville?

Sim.

Ele queria encontrá-la?

Disse que queria me ver.

Mademoiselle tem a intenção de mudar o seu estado civil?

Não entendi a pergunta.

Pretende se casar com ele?

Não.

Mas vocês saíram algumas vezes...

Saímos... isto é... saímos, sim. Lambert é muito educado, e sabe como... ora... como tratar as mulheres. Sempre os melhores lugares no restaurante, e até flores ele me dava, às vezes. Mas é só isso. A gente bebia. Essas coisas. Lambert é um sujeito engraçado. Tem uma atitude muito descontraída.

Descontraída como?

Como se já tivesse visto tudo na vida, como se não valesse a pena ficar nervoso à toa. E pensar que... Não posso acreditar que Alain morreu. Queria saber o que aconteceu.

É disso mesmo que quero falar com Mademoiselle. Quando e como acha que tudo começou?

Não estou bem certa nem de como nem de quando tudo começou. Só sei que eu estava feliz. Muito feliz. Acabei de fazer dezoito anos no mês retrasado. Após uma vida inteira no cárcere, finalmente ia poder ir aonde quisesse, com quem quisesse. Ia conhecer o mundo que minhas amigas conheciam e do qual só tinha ouvido falar pela boca delas. Ia ser como elas.

Ia ser livre!

Cheguei ao solar numa segunda-feira.

Apeei do carro e vi que o pátio estava cheio de gente. A maioria, homens. Vi como olharam para mim. Vi o que pensaram...

Até aquele momento eu tinha sido uma Hambour, de pai francês e mãe húngara, orgulhosa da mistura de meu sangue porque jamais tinham feito eu me sentir de outra maneira... Ali, pela primeira vez na vida, experimentei o preconceito, vendo aqueles homens me avaliando... julgando quem eu era... de onde vinha... o que eu queria.

E ali, no meio deles, estava Alain. Assim que bati o olho nele, eu soube que alguma coisa iria acontecer entre nós. Eu soube. Imediatamente. Ainda agora posso ver a imagem de seu rosto... zangado e, ao mesmo tempo, tão suave.

Nessa hora, Lambert se jogou em cima de mim e, dando-me um abraço, disse:

— Laiane! Achei que você não viria.

— Você não me disse que haveria tanta gente aqui, Lambert querido.

— São colegas de trabalho e amigos — disse Lambert, envergonhado. — Os negócios e a amizade tendem a unir-se em nosso nível social.

Ele fez as apresentações e apertamos as mãos uns dos outros. Por último, fui apresentada a Sabine, irmã de Alain. Sabine sorriu e se inclinou educadamente.

— Prazer, Laiane — disse ela. — Espero que se divirta em sua estada aqui.

— Desculpe-me por vir assim — disse eu. — Lambert me convidou e... achei que faria bem tirar uma folga e passar uns dias com vocês.

— Deixe isso pra lá — disse Sabine. — Venha, eu mostro o lugar para você.

Sabine era falante e, enquanto me guiava pela casa, começou com um verdadeiro bombardeio de perguntas.

— De onde você é? Quem são seus pais? Eles estão vivos? Voilà! Meu humilde quarto. — Ela me arrastou para dentro e balançou a cabeça. — O que acha? Fiz tudo sozinha, sabe? Você precisava ter visto isto dois anos atrás: era muito sem graça e feioso. Mas é impressionante o que um pouquinho de cor pode fazer.

— É muito legal — disse eu.

— Tenho um pequeno vício por roupas — e ela se enfiou no closet e começou a tirar vestidos. — Aqui. Escolha um. Nunca usei a maioria destes.

Simpatizei logo com ela. E acho que ela também simpatizou comigo. Sabine tem muito tato e bom-senso e, além do mais, é tão simpática. Não gosto de aparentar o que não sou, comissário. Sou uma pessoa comunicativa; gosto ou não das pessoas logo à primeira vista. Assim que vi Sabine, disse a mim mesma: “Quero ser amiga dela”. Fazia muito calor, e fiquei feliz quando à tarde ela me convidou para um passeio a cavalo.

E os outros? Como a trataram?

Os outros ficaram se esquivando... olhando para mim com olhos tortos... como se eu tivesse uma doença contagiosa. De todos eles, o mais carrancudo era o Ten. Tullet.

— Por que me despreza tanto? — perguntei uma tarde em que fiquei a sós com ele. — Por causa do que eu sou, ou por causa da minha mistura de sangue?

— Como? — rugiu ele. — Eu ouvi bem? Está me acusando de racismo?

Não tinha pretendido ofendê-lo, mas parecia que ele tinha ficado bem ofendido!

— Que outra coisa quer que eu pense, tenente?

— Isso não! Realmente acha que sou porco o bastante para descriminá-la só porque é de outra raça?

Era evidente que era difícil para ele digerir isso. Ele me deu as costas e se afastou. Não sei definir com quem fiquei mais furiosa — com ele ou comigo mesma!

Quando eu disse a Lambert que estava chateada por causa do que tinha acontecido, ele se sentiu péssimo.

— Não foi culpa sua; mas minha — disse eu.

— Mas fui eu quem a chamei para cá — disse ele. — Fui eu que a expus a isso. Sinto muito. As coisas não deviam ser assim. Devo uma a você, então, me deixe ajudá-la a passar por isto com um pouco de dignidade. Venha cá... — e Lambert me abraçou.

O único que, desde o início, me levou na palma da mão foi Monsieur Souchet. E olha que ele nem é atraente! Ao menos não no sentido clássico do termo. Monsieur Souchet sempre se portou como um verdadeiro gentleman.

Naquela noite de segunda-feira, depois de ficar muito tempo rolando na cama sem conseguir dormir, coloquei um penhoar e desci para ir à biblioteca. Ao abrir a porta da sala, vi Alain estirado no sofá, com uma garrafa de vinho na mão.

— Oi, Mademoiselle Hambour — cumprimentou ele. — Veio beber comigo?

— Não devia ficar sentado no escuro, Monsieur Evril — disse eu.

— Oh! É mesmo? Que doce...

Eu não entendi por que ele, já vestido para dormir, tinha voltado à sala. Inexperiente em relação a essas coisas, eu não sabia como agir diante de um homem semiembriagado. Tive o impulso de fugir, mas viera apanhar um livro e era isso o que eu iria fazer.

Cumprido o objetivo, já caminhava em direção à escada quando ele me puxou pelo braço.

— Aposto que quer saber por que estou bebendo, não é? — disse ele com a voz pastosa. — Não adivinha o motivo?

— Por favor, Monsieur! Deixe-me ir embora... Tome a garrafa inteira se quiser, mas largue-me, por favor!

— Ah! Não! Você vai ficar comigo — ele apertou o meu braço. — Afinal, nós temos direito a um pouco de diversão, não temos?

— Está bêbado, Monsieur Evril!

— Posso dizer uma coisa? Você é a garota mais linda que eu já vi.

— Isso é para ser um elogio?

— Pode apostar que sim.

— Sei que não sou linda nem nada.

— Você é — disse ele.

— Mas não estou causando boa impressão a vocês.

— Não devia se importar com isso — disse ele. — Aposto que está se perguntando o que estou fazendo aqui... no meio da noite... bebendo. Você sabe, quando eu era pequeno, sempre imaginei como eu ia ser, ou onde eu ia estar, ou o que eu ia ter... quando crescesse. Você sabe, coisas normais. Ia ter uma casa, uma família e coisas assim. Não que eu esteja me queixando ou algo assim, porque... eu tenho minha mãe, uma casa... e isso já é alguma coisa. É que... eu nunca encontrei ninguém com quem pudesse rir junto. Sabe? Você acredita em amor à primeira vista? Não, aposto que não. Você deve ser sensível demais para isso.

Alain olhou em volta, baixou a voz e, em um sussurro, disse:

— Espere... Quero que você veja uma coisa.

Ele saiu e retornou empunhando uma lanterna.

— Seja corajosa e faça exatamente o que eu disser — disse ele, e me arrastou para fora de casa.

Segurando minha mão, levou-me até o estábulo.

— Há muito tempo era aqui que faziam o vinho — contou ele. Abriu uma porta que dava para um depósito. Vi que lá havia alguns tonéis antigos e vários barris. — É aqui, venha!

Ele abriu outra porta. Entramos num compartimento retangular, quente e abafado, iluminado por uma lâmpada.

— Ninguém nunca vem aqui. Há muito tempo isso era usado para guardar os barris.

Eu estava com medo.

Eu estava atônita.

Eu estava totalmente desconcertada.

— Sou um pouco claustrofóbica — expliquei. — Não deveríamos estar aqui. E se alguém nos vir? E se...

— Confie em mim. Confie em mim... Olhe, olhe.

— O que é que há aí dentro?

Alain me mostrou um mapa, ou alguma coisa assim. Vi quadras, ruas...

— O que é isto aqui?

— É uma seta.

— Uma seta?

— É. Feita com lapiseira.

— Eu sei que foi feita com uma lapiseira. Mas por que está aí?

Alain assumiu um ar pensativo, mas os seus olhos estavam... sei lá... fixos em mim:

— Você já ouviu falar em conspiração, minha querida?

— Conspiração?

— É... — Ele fez uma pausa e acrescentou: — É tipo um acordo, ou combinação, de um grupo de pessoas para lesar outras pessoas.

— ‘Tá. E daí?

— Daí que é isso.

Olhei para o mapa.

— Que rua é esta daqui?

— A rua Faubourg St. Honore.

— De Paris?

— Sim.

Suponho que devo dizer que voltamos a falar regularmente sobre o mapa e que, de certo modo, aquilo acabou se tornando o nosso segredinho a dois. Mas não. Aquela foi a única vez que ele tocou naquele assunto comigo.

As consequências de nossa aventura noturna foram imediatas. Já na manhã seguinte ouvi Lambert discutindo com Alain a meu respeito.

— Eu não sou cego — disse Lambert. — Acha que eu não vi vocês? Se esgueirando por aí na calada da noite! Aja como um homem. Admita.

Como eles estivessem trancando a passagem pela porta da frente, tive que fazer a volta e entrar pela porta dos fundos. Pouco depois Alain veio bater na porta de meu quarto.

— O que você quer? — perguntei.

— Falar com você.

— Sobre o que quer falar?

— Vai me convidar para entrar, ou quer ficar no corredor?

Alain passou por mim e fechou a porta.

— Deus meu... — disse eu, como se uma ideia repentina acabasse de me ocorrer. — É Lambert, não é?

— O quê? Que droga. É claro que não.

— Cale-se! — disse eu. — Eu deveria ter imaginado! Seu... seu verme maldito! Seu hipócrita!

Aquelas palavras tiveram o efeito mais incrível sobre ele. Seus olhos se voltaram para mim, e eu vi neles uma raiva que nunca tinha visto.

— Hipócrita? Eu?

— Eu ouvi vocês dois falando de mim! — acusei.

— Quando?

— Ontem? Hoje? Há pouco? Isso importa?

Alain deu um passo na minha direção.

— Não tenho dúvidas de que isso não importa para você, mas, infelizmente, para mim sim.

— Deixe-me sozinha — respondi.

— Então é isso, não é? — disse ele. — Esse é o verdadeiro problema... não se trata de mim e você, mas de Lambert.

— Quer fazer o favor de sair?

— Não até que me diga a verdade!

Meu coração doía a cada batida... e eu desejava tanto abraçá-lo... Abraçá-lo e me perder naquela bendita ilusão.

Mas foi Alain quem fez isso por mim. Foi ele quem me abraçou.

— Quero a verdade! — disse ele. — Está chateada por causa de Lambert, não é?

— Sim! — gritei. — Sim, sim... mil vezes sim.

— Esqueça isso e vá, se apronte — e Alain me lembrou do baile programado para aquela noite. — Eu quero que você vá, Laiane.

Era surpreendente — quase inacreditável — que ele quisesse que eu fosse ao baile.

— Não! — protestei. — Eu não vou.

— Sim, vai.

— Por quê? — gritei. — Por que quer que eu vá se não é a mim que você quer?

— Você não sabe que é o que eu quero — disse ele. —Apronte-se, porque você e eu vamos juntos. Mesmo que eu tenha que levá-la gritando e esperneando. Não aceito recusas — disse ele.

— Está bem — acabei cedendo.

Ele saiu. Fechei a porta, mas dali a pouco ouvi baterem de novo. Abri. Era Lambert.

— Oi. Vai ao baile esta noite? Você dança bem, pensei que fosse.

— Acha que danço bem?

— Não seja modesta — disse Lambert. — Todas as garotas de Paris dançam bem.

— Talvez vá, por quê?

— Bem... pensei que poderíamos dançar juntos.

— Tem certeza de que quer ser vista em público comigo?

— Por que não?

— Posso comprometer a sua imagem — disse eu.

— Não diga bobagens — disse Lambert. — A gente se vê lá embaixo.

Cheguei ao salão às 9h. Eu e Lambert estávamos na segunda dança quando, de repente, ouvimos uma voz ao nosso lado:

— Com licença, posso interromper?

Ali, olhando para nós, estava Alain.

— Posso roubá-la de você uns minutinhos? — perguntou ele para Lambert.

— Está brincando! — Lambert arregalou os olhos. — Não vá dizer que quer dançar com ela!

— Não estou brincando — disse Alain.

— Fala sério?

— Lógico.

Quando a música terminou, Alain me acompanhou de volta à mesa onde Lambert me esperava, agradeceu e se retirou.

Lambert ficou calado por alguns instantes, tamborilando os dedos na mesa.

— Laiane?

— Sim?

— Por que ele quis dançar com você?

— Por que não deveria?

— Por que pensei... bem, com tudo o que já aconteceu entre você e eu... pensei que não ia dançar com mais ninguém.

— Que bobagem, Lambert. Dancei com você antes dele.

— Não daquele jeito!

— Que jeito?

— Ora, vamos! Você não se pendurou no meu pescoço.

— Não me pendurei no pescoço dele. Apenas dancei com ele — ri e comecei a falar sobre outras coisas. Eu esperava que ele não fosse mais se preocupar com a questão.

Na manhã seguinte, sua aparência era bastante normal, nem preocupado nem incomodado com nada. Imaginei que tudo estava bem. Eu mesma esqueci tudo sobre aquele assunto.

Sempre vou me lembrar daquela quarta-feira. Primeiro, por causa daquele piquenique idiota no meio do mato! E depois porque Alain acabou me passando a perna: nós íamos jantar todos juntos naquela noite, e ele mandou dizer que não estava se sentindo bem, e eu fiquei louca da vida, afinal de contas, achei que fosse mentira, e eu não gosto que me passem a perna. Ele disse que não era sua culpa, e eu disse que com certeza não, e então ele acabou dizendo para não contar a ninguém, mas ia jantar comigo um dia desses, só nós dois. Naturalmente, eu respondi que não confiava nele... e aí nós discutimos um pouco, mas acabamos fazendo as pazes.

Ele não falou muito. Disse apenas que estava zangado, mas que pelo amor de Deus eu não falasse sobre isso com ninguém.

Ele disse:

— E hoje, teremos ainda uma pequena surpresa.

Lá fora, estava soprando um vento úmido e quente. Fui fechar a janela. Quando me virei Jules estava lá. Suponho que ele queria que Alain descesse para jogar pôquer.

Foi então que Alain disse que estava com fome e queria comer alguma coisa. Disse que tinha comido alguns bombons, mas que isso não servia para “forrar o estômago”.

Jules brincou e disse que mandaria a cozinheira recolher algumas sobras. Uns vinte minutos depois ele trouxe um prato com ovos mexidos e torradas, e uma garrafa de vinho de gengibre com Scotch. Alain apanhou um copo e bebeu do modo como costumava beber vinho, de um gole só.

— Um copo de vinho, e uma estimulante dose de ódio e desprezo. O que pode ser melhor?

Quando viu que ele estava comendo, Jules se retirou.

— Vá se deitar — disse Alain para mim.

— Eu queria tanto ficar aqui... com você — eu não afastei os olhos dele. — Você não é como os outros.

— E como são os outros?

— Eles não têm olhar como o seu, nem se comportam como você. Vivem dizendo coisas, estão sempre falando mal de mim.

— Em resumo, você veio me ver porque eu não falo mal de você.

— Não, não. Eu vim porque gosto de estar perto de você. Se pudesse, ficava todo tempo ao seu lado, olhando você, cuidando de você.

— Bem, Mademoiselle, boa-noite e obrigado — disse ele, por fim, indicando a porta.

Eram onze e dez quando deixei o quarto e garanto que, nessa hora, Alain estava vivo... bem vivo. O senhor compreende, não compreende? Que, no outro dia, quando Monsieur Fichée veio dizendo que uma coisa tinha acontecido com Alain, bom, eu fiquei fora de mim.

— Ele está ferido? — perguntei.

— Não, não... — balbuciou Claude. Falava muito rápido e sibilando e eu não conseguia entender direito o que ele dizia. — Não... Está morto — acrescentou.

Aquela palavra parecia tão extraordinária que fiquei olhando para ele, aturdido, em silêncio, por um minuto. Só depois é que perguntei:

— Morto?

— Sim...

Saímos rapidamente e cruzamos o jardim, ignorando a chuva pesada, e fomos para o ateliê. Fiz o que pude para andar com firmeza, mas estava tão aterrorizada que não conseguia me equilibrar.

— A gente não deveria entrar aí — disse o tenente.

Mesmo assim, entramos.

Todos olhavam uns para os outros, esticando o pescoço para um lado e para o outro, nervosos. Tudo aquilo parecia tão... tão inacreditável.

Eu queria chorar, mas não pude. Queria espernear, gritar, soltar toda a dor e a ira que me saturavam por dentro, mas não consegui. Só o que fui capaz de fazer foi ficar ali... olhando para Alain... para o corpo dele, esparramado na cadeira, os braços abertos.

Quem Mademoiselle acha capaz de tê-lo matado?

Está dizendo... que pode ter sido assassinato, comissário?

Não acha isso, Mademoiselle?

Mas... quem? Quem?

Lambert Trainville estava com ciúmes, não foi o que disse? Eu poderia chamar isso de um excelente motivo para assassinato.


Relato de Georges Souchet

 

Antes de começarmos, Monsieur Souchet, tenha a bondade.

O que é isto?

Gostaria que Monsieur escrevesse aqui os seus dados: nome, cargo, endereço comercial, endereço residencial, telefone... enfim, tudo o que puder ajudar o oficial de justiça.

Muito bem. E agora?

Agora vou fazer algumas perguntas, Monsieur Souchet.

Não há muita coisa para perguntar, comissário. Alain foi morto, só isso.

Acha que foi assassinato, Monsieur Souchet? Por quê?

Para começar, o que é muito significativo, é nisso que Jules acredita. Ele era irmão de Alain. Se Jules julga que Alain não se matou, então talvez a teoria de assassinato deva ser levada em conta, não importa o que se pense ou se diga sobre isso.

Lembra-se de alguma coisa que aconteceu naquela semana?

O senhor ainda não sabe o que aconteceu?

Quem faz as perguntas sou eu, Monsieur Souchet.

Lembro-me de várias coisas. Lembro-me que, domingo de manhã, um motorista de uniforme azul-marinho atravessou meu gramado, com um bilhete surpreendentemente formal de Alain: seria ótimo, dizia o recado, se eu comparecesse a sua “pequena festa” naquela noite. Bebida de graça! Comida de graça! Só uma pessoa tão popular e autoconfiante como Alain Evril distribuiria um convite assim. Por que eu? Eu já tinha falado com ele inúmeras vezes e queria tê-lo visitado havia muito tempo, assim não hesitei em aceitar a proposta bastante sedutora.

Cheguei ao solar pouco depois das sete da noite, e perambulei constrangido em direção ao jardim. Fiquei imediatamente impressionado com a quantidade de pessoas que estava em volta de uma mesa. Um pouco mais de meia dúzia. Só um pouco mais de meia dúzia. Já estavam servindo o jantar e Alain me chamou para juntar-me a eles. Alain os apresentou um por um (o Ten. Tullet, o tal Fichée, e os outros), e disse:

— Cavalheiros, este é Georges Souchet. É a primeira vez que Georges vem aqui. Sejam legais com ele. Talvez isso o convença a vir mais vezes.

— Olá! — disse eu.

Todos sorriram de forma compreensiva e indulgente, como se eu devesse mesmo me sentir bem-vindo. Foi uma coisa rara, do tipo que você só vive umas quatro ou cinco vezes na vida.

Mademoiselle Hambour já estava lá?

Não, não. Mademoiselle Hambour só veio na manhã seguinte. E veio em alto estilo!

Lembro-me que estávamos na sala de estar quando ouvimos um automóvel vindo pela alameda do parque. Fomos todos para o pátio. O automóvel veio e parou em frente ao solar. O motorista fardado desceu e abriu a porta traseira. Primeiro surgiu uma mão pequena e enluvada. Depois um pé, calçado com botinhas de cano curto. Em seguida, um pedaço de saia de seda azul. Quem apeou foi uma moça elegante, no auge da felicidade.

— Obrigada.

Eu ainda não conhecia a moça, mas todos, a começar por Alain, inclinaram a cabeça como se uma deusa tivesse acabado de pisar em terra.

— Que moça! — Alain virou os olhos e estalou os dedos. — Está vendo o que eu vejo, Georges?

Alain era muito sensível a este gênero de fascínio. Nesse instante, o seu destino foi traçado! Nesse instante ele se tornou escravo de Laiane Hambour, aquela fada, aquela criatura à qual ele se sentiu impelido irresistivelmente, antes mesmo de dirigir-lhe a palavra.

— É um anjo — disse eu.

— O quê?

— Estou dizendo que você vê o que eu vejo, se estiver vendo um anjo — disse eu.

— Aí vem ela — murmurou Lambert.

Ela veio, sorrindo para nós. Juro ter ouvido um suave toque de trombetas celestiais quando a vi. A pele parecia uma mistura bem dosada de morangos e chantilly e os lábios que sorriam eram cheios e rosados. Os seus olhos moviam-se para todos os lados, sem pressa, como... como se fossem capazes de ver tudo.

— Lambert! — exclamou ela.

— Alô — limitou-se a dizer ele. — Fiquei com medo de que não viesse.

— Cadê o fosso com os peixes?

— É só por isso que veio?

— Bobinho — ela entrecerrou as pálpebras. — Não está contente por me ver?

— Estamos todos contentes, não é mesmo, cavalheiros?

— Estamos contentes — respondemos nós, sem saber o que mais deveríamos dizer.

Lambert se voltou para passar um braço pelos ombros da moça e guiou-a para o andar de cima. Foram direto para um dos quartos vagos, onde encontraram Jules, que Lambert tratou de apresentar a Mademoiselle Hambour.

— Direi a Sabine que Mademoiselle está aqui — disse Jules.

Sabine subiu dali a pouco.

Naquela tarde, Alain nos convidou para conhecer o ateliê. Era a primeira vez que tínhamos acesso ao seu santuário.

— Sintam a maciez desta camurça. Parece seda. Vejam isto aqui! A lã deste tweed vem da América do Sul. Ao terminar a faculdade, fui atrás de um emprego de desenhista numa indústria têxtil. Mas não foi fácil. Normalmente, as firmas promovem e treinam sua própria gente. Assim, tive que abrir o meu próprio negócio. Venham... Aqui é o laboratório, onde faço os experimentos com as tintas.

O laboratório, cuja porta estava trancada, localizava-se nos fundos do ateliê. Alain contou que, por causa das tintas e dos processos, as pessoas geralmente não tinham permissão de entrar ali.

— Estou trabalhando no momento numa nova gama de tintas, quase que inteiramente feitas de substâncias naturais.

As mulheres, claro, ficaram deslumbradas (“Que classe! Que cores!”), enquanto Alain falava do tingimento dos tecidos.

Por fim, ele nos encaminhou para o escritório. Alain destrancou uma das gavetas do arquivo e tirou alguns desenhos e amostras de tecido, mostrando-as para nós.

— Estas são as cores que espero fabricar para a próxima estação: preto, petróleo, cinza, malva e azul-turquesa.

— O que é isto? — perguntou Laiane, apontando o fundo de uma das gavetas.

Alain estremeceu, como se tivesse sido golpeado fisicamente.

— Mademoiselle, isto são pastilhas de cianeto.

— Pastilhas de cianeto? Para que servem?

— Eu os uso para caçar ratos. É. Para caçar ratos. — Então, antes que ela fizesse outra pergunta, ele disse: — Vou dar um jeito de apressar o jantar. Vocês podem ir se trocando. Chamo quando estiver na mesa.

Cianeto para caçar ratos? Que grande besteira! Foi a coisa mais mal explicada que eu já ouvi.

O jantar, que era sempre uma ocasião formal, foi muito animado nessa noite. Mas o que aconteceu no baile, na noite seguinte... Ah! Aquilo foi muito louco. Quando penso no que ele disse... na afirmação que ele fez...

Afirmação que ele fez? Que afirmação?

Eu já chego lá, comissário. Eu já chego lá. O baile foi realizado no salão-sul. Parecia ser um bom lugar para uma festa, pelo nível do chão, a vista ao lago, e o espaço para as cadeiras.

Estávamos todos, sabe, reunidos, dançando. De repente, do nada, Alain disse para todo mundo ouvir: “Eu sei de alguém que quer cometer um assassinato” e sua irmã ou alguém respondeu: “Não seja bobo, Alain!” E um dos outros disse: “Você está inventando isso.” Ao que Alain respondeu: “Eu sei sim! Eu sei de alguém que quer cometer um assassinato.”

Monsieur ouviu isso mesmo?

É claro que eu ouvi, comissário.

Acreditou nele?

É claro que não. Era muito ridículo para se dar crédito. Além do mais, teria sido um tanto abaixo de mim levar tais coisas a sério.

Entendo. Ele deu detalhes, algum nome? Alguma ideia de quem poderia ser esse alguém que, supostamente, ia cometer o tal crime?

Não.

Ah! Ele disse quando esse crime ia ser cometido?

“Daqui a algumas semanas”, ou algo assim. “Por que você não vai contar à polícia?” perguntei.

E o que foi que ele respondeu?

Alain disse:

— Porque até hoje eu não sabia que era o plano para um crime.

— Será que estou ficando louco? — brinquei.

— De maneira alguma. É isto mesmo o que vocês ouviram.

— Você é mesmo muito ousado! — disse Jules, o irmão. — Tem certeza do que diz?

— Tenho.

Depois de dizer aquilo, Alain fez um gesto para os músicos, que imediatamente começaram a tocar uma valsa.

Por que acha que Alain Evril diria aquilo?

Bem, Alain era um mentiroso crônico. Metade das coisas que ele dizia não era verdade.

Onde Monsieur estava, quando isso aconteceu?

Quando ele disse aquilo? Ora, em pé por aí, sabe como é... perto do tablado da orquestra, acho.

Estava todo mundo no salão?

Quase todo mundo estava lá.

Quase?

Ora, como é que eu vou saber. Não estava olhando para os outros, mas para ele.

Onde quero chegar é a isto: Monsieur acha que ele falou aquilo de propósito... como se quisesse atingir alguém que estava lá, presente na ocasião?

Não tenho a menor ideia. Foi tudo tão teatral. Francamente, eu pensei que fosse uma brincadeira estúpida... Eu diria que ele se divertia mentindo para nós.

O tipo de homem em cujas palavras não dava para confiar?

Inventar histórias... ah! Nisso Alain era bom.

Acha, então, que tudo o que ele dizia envolvia alguma parcela de exagero?

De modo geral, sim.

Quer dizer que, se Alain Evril viesse com uma insinuação extravagante de que sabia de alguma coisa sobre um crime a ser cometido em uma data futura, Monsieur não acreditaria na autenticidade da insinuação?

Isso mesmo.

Monsieur não está fazendo um mau juízo dele?

Se for, sinto muito. Mas pergunte a qualquer pessoa que tenha conhecido Alain! Pergunte... O exagero era o ponto fraco dele.

Então Alain Evril disse que sabia de alguém que tinha planejado um assassinato.

Sim. Mas, como disse, não acreditei naquilo. Sabine mandou-o calar a boca, e com razão. Era o tipo de gabolice que Alain gostava de inventar. Ele era cheio de nove-horas. Queria a casa sempre arejada e limpa e, ao limpá-la, a pobre empregada precisava usar panos úmidos em vez de vassouras. Essas coisas.

E quanto à quarta-feira de tarde? Monsieur foi ao piquenique?

Fomos todos ao piquenique. Era um lugar para se ver.

Enquanto Alain falava ora com um ora com outro, Laiane manteve-se estranhamente quieta, lançando um olhar vago para o céu.

Ouvi dizer que Monsieur contou uma história... Sobre a morte de certo Sam Corwin.

Contei, sim. Mas só porque sei-lá-quem insistiu. Por mim, eu não teria dito nada. Mas o que isso tem a ver? Estou aqui por causa de Alain e, para mim, ele foi assassinado.

Algum suspeito?

Jules. Sim, Jules é um bom suspeito. Uma manhã, Jules teve uma discussão com Alain. Eu ouvi a maior parte do que eles disseram do lado de fora, no terraço. Alain estava furioso! Acusou Jules de ter encerrado a sua conta no banco e de ter cortado os seus créditos. Ele disse:

— Você não pode fazer isso!

Jules disse a ele:

— As suas extravagâncias nos deixaram com dívidas, Alain. Precisamos viver. E as chances estão aí. Estou cansado de dizer que é preciso abrir o caminho para a sorte. Se eu não fizesse isso, você teria controlado os seus gastos? Você desonra o nome dos Evril, enchendo-se de dívidas!

Alain disse:

— Foi você quem desonrou nosso nome, há muito tempo, ao fugir de casa. Aquilo acabou com papai, para não falar do orgulho da família... Eu amo Laiane e vou me casar com ela!

Jules disse, irônico:

— Casar, uma ova! Você precisa de uma mulher decente, que seja boa mãe e que faça jus ao nosso nome. Não somos gente comum, Alain. Somos os Evril!

Alain riu e disse:

— Evril! Evril! Você é um esnobe. Vou me casar com ela.

Então, Jules disse:

— Essa garota é uma caçadora de dotes, irresponsável e sem nenhum senso de obrigação. Estou tentando salvá-lo de um casamento desastroso. Laiane não tem classe, é desmazelada e imoral. Veja a maneira como ela se veste! Aquelas saias justas e curtas... Não viu como ela veio para baixo, na primeira noite que passou aqui?

Bem nesse momento, o Ten. Tullet apareceu no terraço. Eu me levantei e fui encontrá-lo. Não queria que ele ouvisse o que os irmãos falavam.

Por falar em Ten. Tullet, comissário, ouvi dizer que, certa vez, ele matou um homem. Quem me contou foi um sujeito que sabe tudo sobre ele.

O tenente matou um homem, Monsieur Souchet? Se tivesse feito isso, ele teria sido preso, não teria?

Ninguém conseguiu apanhá-lo. Não havia provas. É só olhar bem para ele quando acha que ninguém está reparando. Ele tem cara de assassino, tem sim!

Há outra coisa de que me lembro. Antes do meio-dia, quarta-feira, eu estava conversando com Mademoiselle Hambour quando, de repente, Alain apareceu ao nosso lado.

— Laiane? — disse ele. — Por gentileza, posso falar com você em particular.

Ela se levantou devagar, erguendo as sobrancelhas com espanto, e foi atrás dele. Não sei o que se passou entre eles, mas quando ela reapareceu, dali a meia hora, parecia angustiada.

Senti muita pena dele.

— Sinto muito — disse ela meio sem graça.

Às sete horas da noite, como sempre, tocou a campainha do jantar. A maioria de nós apareceu, menos Alain, lógico. Laiane, muito atraente num vestido com alças, estava muito bem disposta. Claude Fichée, em contrapartida, tinha um ar melancólico e sonhador.

Depois do jantar, o tenente e Fernan Rastignac foram juntos ver Alain. Quando o tenente voltou, começamos uma partida de pôquer. Laiane foi uma jogadora aplicada, mesmo sabendo muito pouco a respeito do jogo.

Claude Fichée, no outro lado do salão, tinha uma revista nas mãos e parecia bastante absorvido na leitura.

Depois de um tempo, pedi para ser substituído e subi para o quarto de Alain.

Encontrei-o sentado sob o círculo de luz produzido pela única lâmpada que estava ligada.

É muito difícil saber agora se eu devia ter suspeitado de alguma coisa. A voz dele, estou quase convencido, era perfeitamente normal. Mas devo admitir que Fernan Rastignac estava lá, ao lado da cama, e eu fiquei chocado de ver que ele parecia vermelho e bastante abobalhado.

Quando acordei, na manhã seguinte, chovia. O céu estava escuro, completamente nublado. O vento fazia bater as persianas do primeiro andar. Havia luz no andar de baixo, e o relógio de cabeceira marcava quase sete e quinze.

Levantei-me. Caminhei na ponta dos pés até a grade do mezanino e espiei para baixo.

Foi então, enquanto estava ali, que vi Mademoiselle Hambour saindo da cozinha lá embaixo, trazendo uma bandeja com um bule e uma xícara. Ela ficou em pé no ângulo da sala, fazendo uma pequena pausa antes de sair. Estava olhando para cima pelo vão da escada. Não era na minha direção. Olhava para a minha esquerda, onde havia a porta que dá para a biblioteca. Fica exatamente do outro lado, correspondente à porta que dá para os quartos.

Como eu dizia, ela estava olhando assim, e fez uma pausa antes de sair. Dava a impressão de estar mudando um pouco a posição do bule, como se estivesse mal equilibrado. Mudava cuidadosamente de posição, de modo que pudesse sustentá-lo com um braço e com o outro abrir a porta. Daí, fez um movimento súbito e, abrindo a porta, saiu.

Refletindo, depois, achei que ela não queria ser vista. Uma porta poderia se abrir. Uma pessoa poderia aparecer. Eu a vi e... sei lá... e parte de mim dizia: “O que ela está fazendo a esta hora da manhã?”

Talvez se eu tivesse me adiantado... se eu tivesse falado com ela. Talvez... se eu tivesse feito isso... aquilo não teria acontecido. Não era para aquilo ter acontecido.


Relato de Jacques Hurwitz

 


É a quinta vez que sou interrogado, comissário!

Ah, é?

É sim. Já me fizeram mil perguntas sobre o meu passado, interessaram-se por meus pais e meus avós. Até quiseram saber o que eu faço, de onde venho e para onde vou. Isso já é abuso!

Muitas testemunhas esquecem detalhes ou omitem coisas, Monsieur Hurwitz. As perguntas, nessas horas, são bastante cabíveis.

Posso sentar?

Sim, claro.

Eu sei que as pessoas não se matam sem motivo. Qual foi o motivo de Alain? A julgar pelas aparências, ele estava sendo pressionado. Principalmente pelos curtos prazos impostos pelas grifes.

Talvez, e repito, talvez isso tenha sido demais para ele.

Dizem que muita coisa depende do caráter de uma pessoa.

Como acabou no solar naquela semana, Monsieur Hurwitz?

Alain era, segundo todos, um típico francês, muito badalado e sempre cercado de amigos. Folgo em dizer que eu era um deles. Volta e meia, era convidado a comparecer em sua casa. Em verdade, na casa da família. Afinal, além de amigos, éramos primos. Isso explica minha presença lá naquela semana. Assim como os outros, eu tinha recebido um convite para passar alguns “dias esplendorosos” em companhia de pessoas que eu conheço e aprecio.

Se eu tivesse entendido o que estava acontecendo, e por que, talvez eu pudesse ter feito alguma coisa por ele.

O que eu vi, o que Alain permitiu que eu visse... Eu não soube... eu não sei nem hoje... o que estava se passando com ele.

A primeira cena que me vem à mente tem a ver com uma discussão que presenciei entre Alain e Jules. Alain estava sentado em uma cadeira de couro, escutando Jules que, devo dizer, estava de pé, aproximadamente a um metro de distância, falando sobre algo ou alguma coisa. Algo ou alguma coisa, eu acho, relacionada à compra indevida de alguns produtos têxteis.

— Que ideia é essa, Alain? — disse Jules em uma voz seca. — Como é que você quer que isto aqui dê lucro se vive gastando tudo? Se você não pensa nos negócios, eu penso. Por Deus! Você iria à falência amanhã se não fosse eu. Preciso ficar atrás de você como se você fosse uma criança. Não pensa, não? Perdoe-me por falar desta maneira, mas você concorda comigo, não é?

— Um grande espírito não se importa com essas coisas.

— Por Deus, homem — disse Jules. — Você escutou o que eu disse? Você contraiu dívidas! Dívidas demais. Temos que dar um jeito nisso. A nossa firma precisa de...

—... diligência — disse Alain, enquanto balançava a cabeça com o que eu julguei ser um gesto de pouco caso. —... direção.

— Isso mesmo. Diligência e direção...

— É claro — disse Alain. — Não diga mais nada. Algo deve ser feito. Algo vai ser feito.

Assim era Alain. Sempre tapando o sol com a peneira, por pior que fosse a situação. Oh! Que sujeitinho intratável! Acredite, comissário, frequentei a casa por anos; Alain podia ser extraordinariamente difícil quando queria. Costumava ter acessos infantis de raiva e destratar qualquer pessoa que o contrariasse. A essa altura, eu já estava acostumado e não dava a mínima importância a tudo isso. A bem da verdade, ele não era má pessoa, mas às vezes seus modos eram extremamente tolos e irritantes.

Talvez o senhor me fale um pouco sobre a garota, Monsieur Hurwitz.

Que garota?

Mademoiselle Hambour.

Que interessante! O senhor querendo que eu fale de Laiane Hambour. Mademoiselle Hambour, a causa da perdição de Alain. Ainda consigo ver... naquela noite... Lambert Trainville e Laiane lá... dançando. Ainda consigo ver — foi quase surreal! — quando Alain se aproximou dos dois e fez a coisa mais assombrosa do mundo. Pediu para dançar com ela. Sim. Pediu para dançar com ela! Não só. Antes de levá-la para a pista, inclinou-se e beijou sua mão. Na frente de Lambert... na frente de todo mundo. Ah! Foi muita coragem. Muita mesmo.

Então Alain Evril estava interessado nela...

Francamente, comissário... é claro que Alain estava interessado nela! Uma garota atraente... cabelos longos e soltos... um sorriso encantador... e tão imatura! Bem, mas o que esperar de uma moça de 18 anos, mimada, naturalmente, sem muita educação?

Foi aí que aconteceu. Foi tão rápido, tão audacioso, que nem sequer nos demos conta do que tinha acontecido. Só sabíamos que em um instante estávamos rindo e, no seguinte, Alain pediu a palavra e, num tom de voz alto o suficiente para que todos o entendêssemos, disse:

— Eu sei de alguém que quer cometer um assassinato.

Acha que as palavras foram ditas às cegas ou dirigidas contra uma pessoa em particular?

Como é que eu vou saber, comissário? Alain fez com parecesse tão comum, tão esperado, como se fosse tão natural! Naquela fração de segundos, nenhum de nós percebeu exatamente o que estava acontecendo.

Em que parte do salão estava, Monsieur Hurwitz?

Ora, deixe-me ver... Estava conversando com Georges Souchet. Estávamos perto do tablado da orquestra.

Não se recorda se estava sentado ou de pé?

Faz muita diferença, comissário? De pé, acho.

Quanto aos outros? Estavam na parte principal do salão ou havia alguém do outro lado do arco?

Claude Fichée tinha passado para o lado de lá, acho eu. Lamento, mas não me lembro de muita coisa. Sei que é uma estupidez de minha parte. É a mesma coisa com a tarde do piquenique. Não me lembro de quase nada daquele dia, embora me lembre de Jules contar alguma coisa sobre a morte de um amigo que era botânico ou zoólogo. Eu nunca tinha ouvido qualquer menção ao fato. Lembro-me de ele estar falando, mas não de como a morte aconteceu.

Também não me lembro de muita coisa daquela noite, embora tenha pensado muito sobre isso. Tenho a vaga sensação de que Alain não apareceu para jantar, e acho que me lembro de ter havido um rebuliço por causa disso.

Sei que, após termos comido, eu e o Ten. Tullet fomos juntos ao quarto de Alain. O tenente ficou pouco tempo e eu, pensando que talvez fosse incomodar Alain, o que só agravaria seu estado, saí quase que em seguida. Hoje acho que devia ter ficado um pouco mais e ter conversado mais com ele. Se eu tivesse feito isso, possivelmente as coisas teriam sido diferentes.

A única coisa que posso dizer é que vi Alain descer para o térreo às quatro horas da madrugada.

Monsieur o viu?

Não nitidamente. O corredor estava às escuras. Mas acho que era Alain, sim.

Acha?

Sim.

Em nenhum momento Monsieur viu o rosto dele?

Não.

Então como sabe que era ele?

Pela altura, o porte. O jeito de andar. Não que eu tenha pensado muito no assunto, naquela hora. Mas realmente me ocorreu a ideia de que alguma coisa estava errada, e pensei se não seria melhor eu ir atrás dele. Ia acender a luz mas, por azar, derrubei uma cadeira. É claro que voltei para a cama imediatamente.

Isso não é suficiente. Mas vamos deixar isso para lá. Qual é a primeira coisa de que consegue se lembrar da manhã de quinta-feira?

A primeira coisa? Deus do céu... É tudo tão vago e confuso! Eu me lembro que o café estava bom naquela manhã, o que nem sempre acontece. Laiane estava o tempo todo olhando pela janela. Não sei por quê. Depois apareceu Georges.

— O tempo lá fora está péssimo — disse ele, respirando fundo —, frio e com vento.

Lembro-me também que às oito e meia, Sabine disse que ia dar uma saída.

Dizendo que precisava telefonar, Jules seguiu para a biblioteca.

Vendo a sala de jantar quase vazia, fui para a sala de visitas. Quando cheguei lá, a porta da frente se abriu e Claude Fichée entrou cambaleando pela porta adentro, a boca entreaberta, e o rosto, em choque.

— Aconteceu! — exclamou Claude.

O que aconteceu? Uma coisa terrível. Caramba! Que houve?

— Está morto — disse Claude.

Por meio minuto, não houve ruído algum. Então ouvi um murmúrio abafado, seguido pela voz do Ten. Tullet em tom claramente artificial:

— Morto?

— Sim — disse Claude.

O choque que se seguiu a essa declaração ganhou corpo num prolongado “Aaahh”.

Todos nós olhamos para ele espantadíssimos, sem entender nada.

— Quem está morto? — perguntou Lambert, que era o mais calmo do nosso grupo.

— Alain... está morto! — disse Claude.

— Morto — como assim? — perguntei.

— Foi envenenado. Venham ver...

Olhamos uns para os outros e, depois disso, todos nós saímos correndo, enquanto eu repetia para mim mesmo: “Alain está morto”. Chegamos ao ateliê e, com muita desconfiança, entramos.

Por mais que me esforce, nunca vou conseguir tirar aquela cena de minha memória. Alain... Alain... com a cabeça tombada de lado... uma mancha azulada em volta dos lábios.

O fato era infinitamente espantoso.

— Não mexam em nada, vamos chamar a polícia — disse o tenente, e logo alguém saiu correndo para fazer a ligação.

— Como foi que isso aconteceu? — perguntou Lambert.

Claude deu de ombros.

— Não entendo nada de medicina — disse ele.

— Mas como aconteceu?

— Nem me pergunte — disse Claude. — Aconteceu, é tudo o que sei.

Um silêncio espantado caiu sobre todos nós; tudo se congelou. Ninguém parecia respirar, como em um quadro. Foi quando a governanta começou a gritar. Parecia que estavam matando uma galinha. Felizmente, Porath teve presença de espírito e a levou imediatamente para fora.

Olhei para Jules. Ele estava com as mãos apoiadas na mesa, pálido, visivelmente enjoado.

— Não posso ver isso — disse, desculpando-se.

— Jules, deixe-me dar-lhe um estimulante — disse Fernan. — Você não parece estar muito bem.

— Estou bem.

Lembro-me que o médico foi o primeiro a aparecer. Os peritos vieram em seguida, recolhendo todas as provas possíveis, etiquetando-as, registrando-as e embalando-as para que permanecessem intactas até chegarem ao laboratório. Mademoiselle Hambour ficou ocupada cuidando da governanta. O Ten. Tullet ia de um lado para o outro, bastante desanimado. Experimentei uma ou duas reflexões de ordem geral, mas todos respondiam distraidamente. Às dez horas, o corpo foi removido com uma maca e a paz voltou a reinar no ateliê.

Mais tarde fui falar com Jules, para ver se queria que eu tomasse alguma providência. Mas ele mostrou-se contraditório. Em parte, parecia estar querendo a minha ajuda. E, em parte, se fechava e não dizia nada.

— Eles... eles já o levaram? — perguntou aflito.

— Sim.

— Alain! Alain! Que estrago, meu Deus.

Lembro-me de vê-lo abrindo a boca para dizer mais alguma coisa quando uma voz tremulou por trás dele. Ele voltou o rosto para olhar por cima do ombro.

— Onde está Sabine? — perguntou Mademoiselle Hambour, juntando-se a nós dois. Ela parecia muito pálida e doente.

Jules disse que a irmã tinha ido pagar umas contas na mercearia, acho. A linda e infeliz moça acenou e... isso é tudo de que me lembro.

Então Monsieur acha que foi suicídio mesmo?

É bem provável. O senhor vai me colocar na sua curta lista de suspeitos?

Deveria?

Vai adiantar se eu disser que não?

Não muito.

Tem mais alguém na lista?

Todos com quem eu falei até agora.

Hi, pelo jeito a coisa está feia. Deixando de lado o caso aparentemente óbvio do Ten. Tullet, que deve ter treinamento para matar, eu não consigo pensar em mais ninguém que pode ter assassinado Alain.


Relato de Claude Fichée

 

Vejamos o que tem para mim, Monsier Fichée.

Não sei. Pensei que pudesse me dizer. O caso está encerrado, não está?

Não se for assassinato, Monsieur Fichée.

Assassinato? Ou-ou, comissário. Eu leio muito, mais do que muita gente imagina, e eu li nos jornais que foi suicídio!

O fato de estar escrito nos jornais não torna algo verdade, torna?

Ah, entendi. O senhor é prudente, comissário. A gente nunca sabe em quem pode confiar. Ou não pode, não é? Confesso que sou um covarde, comissário. Vivo com medo. Medo de ficar louco. Antigamente eu me ocupava da venda de terrenos. Hoje, não tenho nada. Meus pais gastavam muito, embora não fossem ricos. Fui casado. Minha mulher pediu divórcio, queria um homem animado de ambições mais altas.

Desculpe interromper, Monsieur Fichée, mas...

Sim, sim, erro meu. O senhor está com pressa. Pois bem. Em que posso servi-lo?

É preciso que me conte algumas coisas, Monsieur Fichée. Depois de o corpo ser achado, a primeira coisa que fizeram, quero crer, foi avisar um médico. O que foi que o médico disse?

Que havia sido envenenamento. Como vê, a coisa foi muito simples.

Pode ser e pode não ser.

O senhor se importaria se fôssemos mais devagar, comissário, um passo de cada vez?

Um passo de cada vez. Pois não. O senhor acha que Alain Evril se envenenou.

Correto.

Então me diga: que prova Monsieur pode me dar de que ele fez isso mesmo?

O senhor talvez ache que foi assassinato, mas, para o bem ou para o mal, Alain se matou. Ele estava sob muita pressão e... Talvez se sentisse desiludido, ou coisa parecida. Mesmo agora, não acho que eu tenha sido injusto de pensar que ele sabia algo que, de um modo ou de outro, queria que eu também soubesse. Pensando bem, vejo-me inclinado a atribuir parte de sua perturbação à história contada por Georges Souchet, uma história tão sinistra e tão trágica que poderia facilmente abalar a mente de uma pessoa já fragilizada emocionalmente.

Que prova eu posso dar disso? Nenhuma. Chame de intuição, se quiser. Havia uma tristeza nele, nos olhos dele. Nenhum de nós deseja achar que ele tenha sido capaz disso. Nós... bem, para ser claro, não pensávamos que ele fosse capaz de tal coisa, comissário. Mas o temperamento dele era um tanto impetuoso, não é mesmo?

Tudo bem. Próximo passo. Ouvi dizer que, terça-feira à noite, Alain Evril disse saber de alguém que estava para cometer um crime.

O quê, comissário? Não sei nada sobre isso.

Não sabe, Monsieur? Quer dizer que Monsieur não chegou a ouvir Alain Evril dizendo que sabia de alguém que ia cometer um crime?

Não, não ouvi.

Onde é que Monsieur estava nessa hora?

Ah, meu Deus. Mas é claro, eu devia estar preparado. Um álibi. Deixe-me pensar... ora, eu estava junto com os outros.

Alguém me disse que não. Que Monsieur tinha saído do salão.

É? Bah! O senhor tem razão, toda razão. Eu tinha ido para a varanda, pegar um ar fresco. E, de repente, aconteceu aquilo; só que eu não ouvi nada. Percebe? Não ouvi nada.

Apurei que vocês fizeram uma espécie de piquenique, quarta-feira à tarde.

Sim, foi mesmo.

Monsieur não se lembra de nada em particular, alguma coisa? Alain Evril estava preocupado ou chateado, qualquer coisa assim?

Estava mais calado que de costume, mas talvez fosse pelo excesso de trabalho. Disse mais de uma vez que andava muito ocupado.

Não mencionou nada mais?

Não. Quando estávamos voltando para casa eu disse a Alain:

— Eu sei que você anda estressado, mas fique calmo, está bem? As coisas vão se ajeitar, elas sempre se ajeitam.

Ao ouvir a minha afirmação, Alain ergueu bruscamente a cabeça e, a seguir, como que às voltas com o eco de minhas palavras, desviou a vista sem dizer nada.

Eu não gostei daquele silêncio. Vendo-o assim, desprevenido, tive a impressão de que ele era um homem profundamente infeliz. Chegamos ao solar e subi imediatamente para o meu quarto. Eu sei que, dali a pouco, o gongo anunciou que era hora de nos vestirmos para o jantar.

Quando voltei para a sala, os outros já estavam lá, menos Alain. Alguém disse que ele tinha se sentido mal e que não ia descer. Perguntei diretamente a Sabine o que tinha acontecido a ele. Eu me lembro da resposta de Sabine como se a ouvisse agora. Ela balançou a cabeça e respondeu com a maior franqueza possível.

— Alain tem uma coleção para aprontar. Desenhos tem que ser feitos. Cortes e cores tem que ser escolhidos. É muita coisa para ele!

A explicação era bem articulada e englobava todos os detalhes. Agradeci a ela, e fomos todos para a mesa. A morte parecia estar a quilômetros de distância de nós. Era algo que achávamos que só acontecia com os outros.

Cerca de quinze minutos depois, ouvimos a campainha de Alain tocar violentamente, e Porath veio dizer que Alain queria que Fernan fosse vê-lo imediatamente. Fernan foi lá para cima e voltou uns dez minutos depois, perguntando se alguém tinha algum medicamento para dor-de-cabeça.

Mais tarde, fui eu mesmo falar com Alain. Mal cheguei na porta, observei que Fernan ainda estava lá.

Alain falava e Fernan escutava. Pedi licença e entrei.

Ficamos ali conversando por algum tempo. Alain parecia ter se animado.

Depois de desejar boa noite, Fernan e eu saímos juntos. Quando descíamos as escadas, Fernan disse bruscamente:

— Pobre Alain!

Julguei que pudesse haver algo de muito interessante no que ele dissera.

No andar de baixo, encontramos o Ten. Tullet, que nos propôs uma partida de pôquer. Desculpei-me com o pretexto de que ia me deitar cedo.

Devo ter adormecido por volta das onze e meia. Às três e meia ouvi um grito e, um ou dois minutos depois, ouvi o que me pareceu ser a voz de Alain. Distingui uma ou outra palavra, mas não o suficiente para entender o que se passava. Pensei logo que alguém devia estar ferido. Levantei-me mecanicamente e fui depressa para a porta. Escutei. Mas, por mais que afiasse as orelhas, não ouvi mais nada. Eu estava com sono... com muito sono. Minhas pálpebras estavam pesadas, fechando... fechando... e voltei para a cama.

Traga a sua memória para a manhã fatal, Monsieur Fichée. Lembra-se de algum detalhe, de algum pequenino acontecimento?

Lembro-me de muita coisa.

Monsieur foi a primeira pessoa a ver Alain Evril sem vida, não foi?

Fui.

Eram, aproximadamente, nove horas quando Monsieur entrou no ateliê.

Deve ter sido em torno disso.

As luzes estavam apagadas ou acesas?

Acesas. Nada daquilo me agradava, mas o que eu podia fazer?

Então o que Monsieur fez?

Bati à porta.

Alguém respondeu?

Não. Mas, dadas as circunstâncias, teria sido meio difícil que alguém respondesse, não acha?

E o que Monsieur fez em seguida?

Pensei ter ouvido um murmurinho dentro do ateliê.

Monsieur pensou ter ouvido um murmurinho! Prossiga, Monsieur Fichée. O que foi que Monsieur fez?

Girei a maçaneta. A porta estava destrancada, então eu a abri.

Abriu? E por que Monsieur faria isso?

Estava preocupado.

Com o quê?

Que tivesse acontecido alguma coisa.

Verdade? A sua preocupação era que tivesse acontecido alguma coisa?

Mais ou menos isso, sim. Como já disse, não gostei nada daquilo. Mas àquela altura não havia como voltar atrás. Eu sabia o que precisava fazer. Entrei.

Sua intenção era salvar a vida de Monsieur Evril, se fosse preciso, é isso?

Se fosse o caso, sim.

Entendo. Mas o que aconteceu depois que Monsieur entrou no ateliê?

Não aconteceu nada. Para falar a verdade, surpreendi-me ao vê-lo morto. Toquei nele, mas a pele estava fria e seca.

Tocou nele?

Só com o dorso da mão. Pensei que podia ser importante saber se ainda estava quente. Não estava. Surpreendi-me muito mesmo.

Não havia ninguém lá? Vivo, quero dizer...

Não.

Ninguém mais além de Monsieur Evril?

Ninguém.

E o tal “murmurinho” que Monsieur pensou ter ouvido?

Não sei. Deve ter sido a cortina roçando na sanefa.

Bem, e depois? O cadáver estava na parte de trás do ateliê. Monsieur conferiu todos os cômodos ou foi direto para lá?

Conferi apenas os cômodos que estavam com a luz acesa.

Diga-me, Monsieur Fichée, o que fez depois de constatar que Monsieur Evril estava morto?

Voltei para fora e fui avisar os outros.

A polícia apareceu logo?

Sim. Em menos de meia hora. Bom... foi assim que as coisas aconteceram.

Supondo que foi assassinato, quem acha que seja o assassino?

Considerei Jules... Não que eu tenha algo em que me basear. Só que ele me parece mais suspeito do que os outros. É um sujeito bastante discreto, e... Bem, de qualquer maneira, Jules é meu único suspeito.


Relato de Fernan Rastignac

 

Identifique-se, por favor.

Fernan Rastignac.

Idade?

Vinte e nove anos.

Endereço?

Antes de dar meu endereço, pode me dizer uma coisa?

Sim?

Fiquei sabendo que vocês prenderam Laiane Hambour.

Ficou sabendo por meio de quem?

Ouvi por aí, comissário.

Pois está enganado, Monsieur. Não prendemos ninguém. Foi apenas um interrogatório.

Ela não foi detida?

Não, não tínhamos nada contra ela.

E agora?

Agora continuamos a investigar. Endereço?

Rue de Rivoli, perto da ótica.

Fale-me do baile, terça-feira à noite.

O baile! Este é um assunto interessante. Sim, muito interessante. Pelo jeito, o senhor quer que eu fale sobre o que Alain disse. Pois bem, lá vai.

A noite já tinha caído quando fomos para o salão de festas.

Depois da quarta ou quinta música, Alain voltou para a mesa.

— Quero fazer um anúncio, minha gente — disse ele, então.

Todos se voltaram para ele. Havia um leve rubor em seu rosto e a luz do lustre faiscava em seus olhos.

— Senhoras e cavalheiros — disse Alain. — Eu sei de alguém que quer cometer um assassinato.

Foi como uma cena de um filme noir onde a multidão se congela de repente. Todas as atenções se fixaram nele, na expectativa. Estávamos todos espantados. Finalmente, Sabine disse:

— Cale a boca, Alain — ou algo assim. — Não diga tolices.

Alain apenas deu de ombros:

— Mas eu sei — disse.

— Quer dizer que você realmente sabe — perguntou Laiane Hambour, os olhos esbugalhados — de alguém que quer cometer um assassinato de verdade?

— É claro que ele não sabe — disse Sabine. — Alain, pare já com isso.

— Eu sei de alguém que quer cometer um crime de morte. Eu sei!

— Você está inventando, Alain — disse Jules.

— Não estou — disse Alain.

— Se sabe, por que não conta à polícia? — disse eu.

— Porque até hoje eu não sabia que era um plano para um assassinato. Mas agora, pensando no que eu vi, foi que compreendi que deve se referir a um crime.

— Um plano para um assassinato? — perguntou Laiane, cada vez mais pálida.

— Para quando? — perguntou o Ten. Tullet.

— Mês que vem — respondeu Alain. — Agosto — acrescentou.

— Quem vai matar quem? — perguntou Lambert.

Justo nesse momento, Jules levantou a garrafa de uísque, perguntando quem queria um drinque.

Alain era meio sensacionalista. Inventava, contava uma história mais de uma vez e, o que é pior, sua memória era tão ruim que ele contava, como se fosse sua, uma história que leu em algum lugar!

Sem querer ser maldoso, devo confessar que, na manhã seguinte, uma coisa me deixou vagamente inquieto. Eu estava rodeando o canto do estábulo, e ouvi a voz de Alain.

Pensei que talvez estivesse ocorrendo uma briga, mas na verdade era com Jacques Hurwitz que ele estava discutindo. Alain disse: “Livre-se dessa mulher. Ela vai acabar desgraçando a sua vida”. E Jacques replicou: “Olhe só quem fala!”.

Então a porta do estábulo se abriu bem quando cheguei diante dele. Jacques pareceu um pouco surpreso de me ver. Alain estava saindo. Ele disse:

— Olá, Fernan. Eu estava discutindo com Jacques a questão do mais recente romance dele. Uma mulher casada de Paris, não é demais? Jacques é dado a esses sentimentalismos bobos. Diz que a mulher é... maravilhosa, doce, simpática e culta. Já namorei mulheres bonitas, mas essa, essa misteriosa amada de Jacques, supera todas elas! Tão doce, tão alegre, tão suave, tão terna...

Jacques disse:

— Eu a amo, e isso basta. Da mesma forma que você ama a doce, alegre, suave e terna Laiane Hambour.

Alain bufou, mas, antes que a coisa ficasse feia, Jacques tomou o caminho em ziguezague e foi para o pomar. Alain resmungou:

— Vá, pode ir. É você que vai se dar mal, não eu.

Não consigo me lembrar com muita clareza dos acontecimentos daquela tarde. O piquenique, em si, não foi lá grande coisa. Lembro-me que Georges Souchet contou uma história revoltante. O caso de um sujeito, seguro se si e tal, que estava traindo a esposa com uma mulher mais jovem. O romance terminou em tragédia, com o fulano tirando a própria vida com uma dose de arsênico, ou algo parecido.

Mas o que aconteceu antes do jantar... ah, disso eu me lembro bem! A maioria de nós estava na sala de estar quanto, do nada, uma campainha tocou e logo Porath veio dizer que Alain queria falar comigo. Subi. Assim que entrei no quarto, Alain me tomou pelo braço e, perto da janela, me disse:

— Posso falar com você um instante, por favor?

Fiquei chocado com o aspecto dele. O rosto tinha uma cor cinza-esverdeada, e a expressão era de extrema gravidade.

— Claro que sim — respondi. — O que foi? Sabe, acho que você devia ir para o hospital — brinquei.

Ele engoliu em seco.

— Ah, não! Quer me meter em uma psikhushka? Não, não, tudo menos isso.

— Espere aqui, eu já volto.

Saí, e busquei algumas aspirinas para dor-de-cabeça. Alain tomou obedientemente uma aspirina e, já deitado, disse:

— Um assassinato pode acontecer a qualquer momento, Fernan.

— O assassinato de alguém desta casa?

— Sim, o assassinato de alguém desta casa. O meu assassinato, Fernan.

— Você está em perigo, Alain?

— Sim. Perigo de morte. Espero algo assim, esta noite.

— Espera o quê?

— Ser assassinado, Fernan.

— Ora, ora! Está brincando, Alain?

— Não, não estou.

Parecia ao mesmo tempo confuso e aflito.

Quando ia me retirar, ele foi até o cofre e pegou alguma coisa... Bem, isso não vem ao caso, comissário. Daí a pouco, apareceu Claude Fichée trazendo uma caixa com bombons de cereja. Alain disse que estava de dieta, mas Claude disse:

— Um só não faz mal.

Dali a pouco, Claude e eu descemos e, quando vi que os outros estavam absortos em uma partida de pôquer, fui dar uma caminhada no jardim. Estava tão abafado! Achei que logo ia cair um temporal.

Desci tarde na manhã seguinte. Todo mundo já estava na sala de jantar. Pela porta de vidro via-se a chuva torrencial.

— Um tempo ruim, não?

— Não faz mal — disse o tenente, secamente. — O mundo é uma festa para quem sabe manter-se ocupado.

Nesse momento, Claude Fichée entrou, com o olhar mais apavorado do mundo. Estava ofegante e sua voz soou em um tom claramente artificial quando disse:

— Alain morreu!

Todos nós olhamos para ele. Tive uma espécie de pressentimento e senti um arrepio correr a espinha. Saímos correndo e fomos os primeiros a chegar ao ateliê.

Fiquei meio fora de mim, paralisado, sem conseguir me aproximar. Georges, porém, já estava ao meu lado e foi ele quem se agachou sobre o corpo.

Quando tornou a erguer a cabeça, seus olhos tinham uma expressão atônita.

— Meu Deus! — disse. — Está mesmo morto!

Ele disse mais alguma coisa, mas eu só ouvi um murmúrio indistinto.

Acha que Alain Evril foi assassinado, Monsieur Rastignac?

Sim. Acho que sim. O problema é que eu não sei direito por que alguém iria matá-lo. Jules, por exemplo, e Sabine... Que motivos comuns eles poderiam ter para matar Alain? Dinheiro? É. Parece pouco provável, mas é um ponto a ser investigado. Alain, de fato, deixou boa parte de seu dinheiro para o irmão, nomeando Jules como herdeiro universal de seus bens. Isso, somado a todos os outros benefícios financeiros, depõe fortemente contra Jules. Ou talvez Jacques Hurwitz que, por ser parente em primeiro grau, também tem direito a uma parte da herança. Pouco provável, mas possível. Essas possibilidades parecem esgotar o motivo “dinheiro”. Ou que tal uma possibilidade mais romântica? Lambert Trainville. Ele gosta de Laiane, e Laiane, como sabe, estava sendo paquerada por Alain. Lambert teve os meios e a oportunidade. Ou, como acontece muitas vezes nos livros e seriados, pode ser que Alain soubesse demais...

E isso fez com que ele fosse morto?

Talvez.

Pode ser tudo coincidência.

Pode ser. Mas não creio que seja.

Bem, eu agradeço o trabalho que Monsieur teve para vir.

Não fiz mais que a minha obrigação.

Mesmo assim, fico muito agradecido.


Relato do Ten. Tullet


Primeira intimação

Gostaria que seu cliente prestasse depoimento, advogado.

O que vocês têm contra o Ten. Tullet, comissário?

Temos provas materiais que o ligam à vítima. Por isso intimamos o Ten. Tullet para vir aqui. Para que ele explique qual é sua participação nisso tudo.

Comissário Coleman... Meu cliente é um chefe de família, um militar respeitado, sem nenhum antecedente criminal. Quando tiverem os testes preliminares, nos avisem.

 

 


Segunda intimação

Ten. Tullet, compreende todos os seus direitos e deveres com relação a esta entrevista?

Perfeitamente. Antes de mais nada, deixe-me dizer que estou cheio de remorsos pelo impasse da semana passada. Percebo agora o quanto fui descuidado e tolo ao tratar o senhor daquela forma.

Esqueçamos isso, tenente. O importante é que o senhor voltou. Se quiser, seu advogado pode estar presente.

Não, não... Nada de advogado desta vez. O que senhor quer saber?

Quero a sua versão do que aconteceu no solar.

O senhor sabe muito bem o que aconteceu.

Mas quero a sua versão.

Sobre o quê?

O assassinato de Alain Evril.

Assassinato, comissário? O senhor acha que foi assassinato?

A opinião das pessoas sobre a morte de Alain Evril varia bastante, tenente. Estou atrás de algo grande que possa ser crucial para o caso.

Quer que eu descreva tudo em detalhes, minuto a minuto?

De preferência.

A morte ocorreu há mais de um mês, e só o que sei é que a minha vida está do avesso desde então. Felizmente recebi um telefonema e voltei à ativa no início de agosto. Um consolo, enfim!

Conheci Alain na faculdade. Tinha uma mente curiosa e lia muito. Ele não era avarento, nem esbanjador; apenas achava que a vida era uma só e precisava ser aproveitada, que o sentido da existência era a busca da felicidade, em todos os aspectos, e não juntar dinheiro, sem nenhuma perspectiva, como muitos fazem.

Aos vinte e seis anos, perdeu o pai em um acidente.

Naturalmente Alain não dizia nada, mas eu podia ver que ultimamente ele estava muito perturbado e infeliz. E, conforme já vi acontecer em outros casos semelhantes, em vez de melhorar, as coisas descambaram de vez para o desastre. Caso o senhor já tenha terminado...

O senhor está com pressa? Sente-se mais um minuto, eu lhe peço. Tenho outras perguntas, Monsieur Tullet.

Que pena...

Não lembra se ele se desentendeu com alguém?

Lembro sim. Aconteceu na quarta-feira, após o almoço. Alain estava sozinho, e eu me surpreendi ao ver Lambert Trainville se aproximar para falar com ele.

“Ih, lá vem bomba!” pensei. Dei alguns passos para junto dos dois. Chamei:

— Lambert?

Lambert já estava a poucos centímetros de Alain quando virou a cabeça em minha direção.

— Algum problema? — perguntei.

— Nenhum — disse Lambert.

— Só íamos bater um papinho amigável — disse Alain.

Ele cravou os olhos em Lambert. Eu, mais uma vez, não gostei do que vi.

— Bem, Lambert, se for só isso... — disse Alain.

Lambert não respondeu. Alain deu as costas e saiu. Eu me aproximei de Lambert. Perguntei se precisava de ajuda, e ele disse que não. Daí, referindo-me a amiguinha que ele tinha trazido para a casa, acrescentei:

— Você, como padrinho dela, deve dar um jeito nessa menina.

Lambert levantou a cabeça, como para ouvir melhor. Por um momento, ele me olhou com ar compenetrado, depois, com a magnífica indiferença de um rei, disse:

— Ela não é uma menina.

— Para mim é — disse eu.

— Pois pense o que quiser — disse ele.

Quando posto em frente a uma coisa estranha, um animal selvagem em geral reage com hostilidade. Achei que, naquela hora, Lambert estava reagindo da mesma forma.

— Ouça — disse eu. — As ondas estão prestes a engoli-lo. Estou jogando um salva-vidas. Aceite-o. Você gosta dela, eu sei. Ela é sua amiga, eu sei. Não sou contra isso. Eu só quero que fale com ela, oui?

— Falar com ela? — perguntou ele. — Falar o quê?

— Que modere a linguagem... que se comporte melhor. A verdade é que você a superprotege. Ela é mimada demais e abusa.

— Sei que ela é meio voluntariosa...

— Voluntariosa? Teimosa como uma mula, isso é que o que ela é!

Deixe-me tomar nota, tenente. “Monsieur aconselhou Monsieur Trainville a falar com Mademoiselle Hambour.” E ele fez isso?

Qual o quê, comissário! Fez nada.

E sobre quarta-feira à noite... Aconteceu algo fora do comum?

Está se referindo ao fato de Alain não ter descido para jantar? Pois é, acho que foi uma congestão... ou alergia. Ele ficou em cima, no quarto, enquanto que nós, os demais, jantamos no térreo. A comida estava deliciosa e a seleção musical irrepreensível, mas foi difícil ficar à vontade.

Eu sei que, a dada altura, Jules tocou a campainha para chamar Porath.

— Vá lá ver se Alain já melhorou.

Porath saiu. Em vez dele, porém, foi Fernan quem veio para baixo após alguns minutos.

— Está feito, senhores — informou ele. — Agora que a febre baixou, acho que ele logo ferra no sono.

Alguém já contou sobre o mapa, comissário?

Que mapa?

O mapa que Alain apresentou para mim. Disse que achava ser meu, e que eu tinha formulado um plano de assassinato, qualquer coisa assim.

Que mapa era esse?

Foi exatamente a pergunta que eu fiz a ele. Foi assim... Após o jantar, Jacques Hurwitz e eu fomos ao quarto dele, ver como iam as coisas. Alain estava recostado no travesseiro, de um jeito sonhador. No colo, uma bomboniere de vidro com bombons de chocolate. Reparei na bomboniere porque era de fato bonita. “Querem um bombom?” perguntou ele; “sou meio avesso a um manancial de calorias.” “Aceito”, disse eu. Ele me deu um bombom; daí, disse:

— Bem, não quero que você tenha uma ideia errada de mim a partir do que contam por aí.

— Ei, nem se importe com isso — disse eu. — Eu não ligo para o que falam.

— Devo dizer que estou surpreso com você — disse Alain.

— Por quê? — perguntei.

— Pelo que fez, Émille — disse ele.

— E o que eu fiz? — disse eu.

— Um plano — disse então.

— Um? — disse eu. — Para o quê?

— Assassinato — disse ele.

Eu achei engraçado!

— Assassinato?

— Sim — disse Alain.

— De quem? — disse eu.

— Daquele engravatado... você sabe — disse ele.

Mas, é claro que eu não sabia.

— De quem está falando? — ri.

— Não se faça de desentendido, Émille. — Ele tirou do bolso uma folha de papel. — Eu vou refrescar a sua memória. Veja isto — disse.

Contra a minha vontade, peguei o papel. Era um tipo de mapa, dava para ver as quadras e as ruas de Paris.

— O que é isto? — disse eu.

— Não reconhece? — disse ele. — Veja a letra... a sua letra.

— Ora, vamos lá — disse eu —, não espera que eu acredite nisso!

— Bem, Émille. Se você nega, deixe isso para lá.

Um sorriso tímido aflorou em seus lábios e provou que Alain sabia compreender a situação e se adaptar a ela. Mesmo assim, ouso jurar que ele continuava preocupado e ansioso. Demorei ainda certo tempo e então saí, deixando Jacques e ele a sós.

Acordei com a luz do dia entrando pelas vigias, e olhando o relógio vi que já eram sete e meia da manhã. Desci para tomar o café e lembro-me que estávamos na sala de jantar quando, sem aviso, Claude Fichée irrompeu pela porta.

Claude olhou para nós, e logo vimos que alguma coisa não ia bem.

— Alain se foi — disse ele.

Pelo silêncio comovido, compreendi que, qualquer que fosse minha ideia, “Alain se foi” não era a frase que eu queria ouvir.

— Alain morreu — explicou Claude.

— O que você está dizendo? — perguntou Laiane Hambour. — Oh! É impossível! Onde está o Alain?

Lembro-me de ter pensado: “Será que Alain está mesmo morto?” Talvez estivesse só machucado, ou tivesse levado um tombo. Fomos para o ateliê. A luz estava acesa. Alguém empurrou a porta e, neste instante, ouviu-se um tremendo estouro de trovão. Quando a porta enfim se abriu, fez-se um silêncio fantasmagórico. Então, de forma gradual, todos entraram no ateliê.

Claude enxugou com um lenço a testa molhada da chuva, e estendeu a mão cautelosamente na direção do corpo.

— Você não deve tocar nele — disse eu severamente. — Vá, ligue imediatamente para a polícia. Informe-os do que aconteceu.

Claude se virou e saiu.

Ouvi então, do lado de fora, a voz da governanta, carregada de horror e incredulidade.

Ela apareceu impetuosa na soleira da porta, e parou, com o rosto muito pálido. Uma mão a empurrou, e Jacques Hurwitz passou por ela entrando no ateliê.

— Meu Deus! — disse Jacques.

Ele veio direto até chegar à cadeira. Inclinou-se sobre Alain, e pensei que, como Claude, ele iria tocar nele. Eu o afastei com a mão.

— Não faça isso — expliquei. — A polícia deve encontrá-lo exatamente como está.

Jacques balançou a cabeça, concordando. Estava muito nervoso e perturbado, parecendo mesmo desesperado. Lambert se juntou a nós, e ficou de pé atrás de mim espiando o corpo sobre o meu ombro.

— Que tragédia — disse em voz baixa.

Não acho que valha a pena contar o que aconteceu depois disso. Talvez as pessoas digam: “Se eu estivesse naquela situação, teria agido assim ou teria agido assado.” É fácil falar na teoria.

O corre-corre, todo mundo querendo informações, os paramédicos vindo e transportando o corpo, o tumultuado inquérito que se seguiu, etc. etc.

Sempre existem danos colaterais quando alguém se suicida, e, a meu ver, a pessoa que comete suicídio pode não perceber quanto a sua morte vai afetar as pessoas que ela ama e que não queria magoar. Alain não percebeu. Ele fez o que fez... mesmo que injustificadamente... Por maior que fosse a sua fama, e a fama de suas coleções, no fim o que sobrou foi um homem, mortal como todos os outros, tolhido pelas consequências de suas próprias ações. O que nós temos que fazer é aceitar o fato e... me perdoe a crueza da palavra... seguir em frente.

Terminou, comissário? Posso ir?

Suponho que não verá inconveniente em assinar a declaração que acaba de me fazer.

Se estiver pedindo, por que não?


Relato de Lambert Trainville

 

Lamento incomodá-lo, Monsieur Trainville.

Ora, não importa. Já soube que o inquérito foi adiado por mais uma semana; imagino que o senhor esteja tentando conseguir mais provas, não?

Sim. Há alguns aspectos do caso que eu gostaria de esclarecer. Por exemplo, o quanto conhecia Alain Evril?

Estudamos por dois anos na mesma classe.

Conhece, creio, Mademoiselle Hambour?

Realmente.

O senhor sabe de alguma coisa sobre a família dela, de onde ela veio?

Os pais dela são de Lausanne, creio eu. A bem da verdade, não sei muita coisa a respeito deles, mas percebe-se logo que Laiane é uma dama, não é mesmo, comissário?

Oh, perfeitamente, perfeitamente.

É claro que eu mesmo não sou um marquês. Sei disso, todos sabem, mas também não sou nada mesquinho. Eu sei apreciar uma coisa bonita quando a vejo, e ninguém poderia ter sido mais bondoso para Laiane do que eu.

Gostaria de perguntar, com franqueza, se Monsieur pretende casar, em breve, com ela?

O quê? Eu... casar com Laiane? Comissário, o senhor está sendo impertinente.

Ouvi dizer que gosta dela, Monsieur Trainville.

Eu gostei dela, conjugação no pretérito. O que Laiane possui de beleza sobra em teimosia. Quando ela diz qualquer coisa, tem que ser aquilo, e simplesmente se recusa a ouvir quaisquer argumentos. Isso não serve para mim. Sou um homem de hábitos. Não posso me casar com uma vagabunda histérica problemática.

Parece que seu amigo também gostou dela.

Alain tinha dessas. Não posso imaginar o que foi que ele viu nela.

Poderia relatar-me, sucintamente, os acontecimentos daquela semana, Monsieur Trainville?

Com muito prazer. Cheguei ao solar Oakleight à meia-noite de domingo, uma noite quente e sem chuva. O solar possui um encanto especial. Principalmente, na primavera. Um belo sonho, como sempre...

Como combinado, Laiane apareceu na manhã de segunda-feira, por volta das onze horas. A alegria do encontro foi mútua, e fiquei feliz de ver que ela mantinha por mim o mesmo afeto de antes.

Naquela noite, porém, por volta de uma da manhã, quando todo mundo dormia, aconteceu uma coisa que jamais vou esquecer. As luzes de fora foram acesas e, no pátio, vi Alain e Laiane indo para o ateliê.

Dali a meia hora os dois voltaram e os ouvi entrando na sala de estar. Desci.

Alain, as mãos nos bolsos, estava reclinado sobre o consolo da lareira em uma atitude de quem aparenta estar à vontade. Laiane estava sentada, assustada, porém graciosa, na poltrona.

— Olá, Lambert — disse Alain.

— Vim pegar meu livro. Eu o estava lendo antes do jantar.

— O seu livro? — perguntou Alain, imediatamente alarmado. — Preciso falar uma coisa com você antes.

Ele me seguiu precipitadamente até a cozinha, fechou a porta e murmurou: “Oh, meu Deus”, de um jeito infeliz.

— O que foi?

— O que está fazendo? — perguntou ele agressivamente.

— Nada. Por quê?

— Nada? Não vem com essa. Você veio nos espionar, não veio?

— Não fale tão alto.

— Responda!

— Você está agindo como um garoto — disse eu impaciente. — Não só isso, mas está sendo grosseiro. Deixou sua namorada sozinha na sala.

Alain estava de pé no meio da cozinha, numa postura que só podia ser interpretada como agressiva.

— É melhor que me explique o que é tudo isto, e é melhor que seja uma explicação muito boa, Lambert — disse ele.

— Não consigo ver vocês dois me traindo desse jeito — disse eu.

— É isso o que acha que estamos fazendo? Traindo você?

— Sim.

Aquilo o surpreendeu muito, e ao mesmo tempo o obrigou a olhar para mim, mas olhar para valer, com atenção, e eu desejei ter-me contido, porque soube verdadeiramente que ele estava vendo a minha palidez.

— Tem certeza de que sabe do que está falando?

— Sei. Você gostou de Laiane. Mas, meu caro, isso não vai dar em nada.

— Talvez eu saiba disso tão bem quanto você.

— Não sabe não. Não tem como. Não há futuro nenhum nessa relação.

— Não sabia que você era vidente!

— Desista, Alain. Desista disso. Ela não é para você.

— Quem disse que não?

— Não, Alain. Eu imploro...

— Como você ousa dizer isso? — disse ele com uma fúria vingativa. — Nunca mais toque nesse assunto comigo, ouviu? Não tem nada com isso.

Com a mão firme, afastou-me de seu caminho e passou por mim, furioso.

Na manhã seguinte, saí para um passeio e, quando voltei, vi Sabine sentada na varanda. Estava tão entretida na leitura de um livro que não me viu até que eu chegasse a menos de dois metros de distância.

— Olá, Lambert — disse ela. — Por favor, venha cá.

Senti-me lisonjeado por ela querer falar comigo.

— Alain falou alguma coisa sobre Laiane? — perguntou Sabine.

— Não, absolutamente nada.

— Arre! Ele está com um péssimo humor hoje, hein?

— Alain está cansado — disse eu. — É muito trabalho.

— Quem sabe o que pode acontecer! — disse Sabine, após um minuto.

— O que é que poderia acontecer?

— Não sei. Qualquer coisa.

Andei de um lado para o outro, cada vez mais angustiado. A parte da varanda em que nos encontrávamos fica do lado de fora da sala de estar. A janela estava aberta e vi Laiane lá dentro.

Fui falar com ela.

— Não gosto do que Alain está fazendo — disse eu.

— Eu gosto — disse Laiane. — Acho-o muito inteligente.

— Ah, inteligente... talvez — acenei.

— E muito bem-apessoado. Qualquer mulher acharia isso. Os homens, evidentemente, não veem.

— Evidentemente — falei e, sem nenhum tato, acrescentei: — Eu vi vocês juntos lá fora, ontem à noite...

Laiane, a minha querida Laiane, não me deixou terminar. Furiosa, disse:

— Sério, Lambert? Você nos viu? É a minha vida, entendeu bem? A minha vida, e não sua! E não adianta me censurar. Você não pode me impedir.

Sentindo a garganta seca, a língua áspera como uma lixa, eu fiquei olhando para ela sem saber o que dizer.

No outro dia, à tarde, fizemos um piquenique. Fiquei muito aliviado ao perceber que Laiane, gentilmente, se sentou comigo, como se tivesse esquecido o episódio da véspera.

Enquanto eu falava com ela, notei que, pleno de segundas intenções, Alain ia e vinha em torno de nós, como um abutre, farejando, os olhos fixos nela.

Não sei muito bem por quê, mas falei:

— Desculpe-me, Laiane, por ontem. Eu não queria...

Ela me interrompeu.

— Tudo bem. Vamos esquecer esse assunto. Não aconteceu nada.

— Nada. Nem deve acontecer — respondi, sentindo-me muito melhor.

Infelizmente, eu estava completamente enganado. Porque acabou acontecendo algo naquela noite. Eu a vi. Eu a vi! Maldita seja!

Viu quem?

Laiane. Falando com Alain. Falando não... rastejando na frente dele. Lembro-me que ela caiu de joelhos, atirou-se, na verdade, aos seus pés, estendendo-lhe os braços. Ele ignorou-a, evitou-a, e ela já não estava de joelhos, mas quase de bruços, os braços no ar, implorando. Alain caminhava de um lado para outro. Aproximava-se, afastava-se de novo.

A situação era muito pior do que eu imaginava. Ela estava totalmente louca de paixão.

Acho que nunca sofri tanto quanto naquela hora...

Eu ia dar um passo adiante quando senti alguém me puxando para trás. Era Jules.

— Você não pode... — sussurrou ele.

— Posso sim — respondi. — E vou.

— Não vai adiantar. Sei que isso é chato. Sei como você deve se sentir impotente e revoltado, mas é melhor se acalmar antes de fazer qualquer coisa, Lambert.

— O que você acha melhor eu fazer?

— Não faça nada — disse Jules, convicto.

— Ah, mas...

— Vá por mim. Você causará menos estrago se não interferir.

— Se eu atacasse os dois...

— O que você pode dizer ou fazer? Laiane já tem dezoito anos e é dona de seu próprio nariz.

Foi um conselho inesperado, mas que me trouxe um certo conforto. Quase imediatamente, ele provou ser valioso.

Dentro do quarto, Alain ajudou Laiane a se colocar de pé e pediu que ela se retirasse. Ela saiu, a contragosto, mas saiu.

Quando Alain me viu no corredor, disse:

— Vamos, homem, entre!

Fiquei surpreso com o convite não solicitado.

Sem me dar tempo para objeções, ele disse:

— Não se deixa abater: se você a ama, fique com ela.

— E quanto a você? — perguntei, desconfiado.

— Não se preocupe. Há muitas moças desimpedidas por aí. Eu arranjo uma. — Alain levantou o copo e disse: — À saúde da bela Laiane!

Eu curvei a cabeça, e ambos selamos o acordo com um aperto de mão.

— Vá, meu caro — disse Alain —, seja feliz.

Saí, portanto, e desci as escadas.

Que louco e desesperado eu tinha sido! Julgara, convicto, que Alain estava obcecado por Laiane. Mas, na verdade, eu jamais o tinha visto fazer alguma coisa indecente. Não, ele era astuto demais para cair nessa.

Devo ter me comportado naturalmente, porque, quando cheguei embaixo, ninguém pareceu notar nenhuma diferença na minha atitude.

Tinham acabado uma partida de pôquer na sala de estar e me convidaram para entrar na próxima. Aceitei. Georges saiu, e me sentei com o tenente, Sabine e Laiane.

— O que me diz, tenente? — disse Sabine. — Vamos enfrentar esses dois? Vencemos todas até agora.

O tenente sorriu. Laiane e eu jogamos contra ele e Sabine. Reparei que Laiane não estava muito contente. Ela mordia o lábio, como se estivesse com os pensamentos em outro lugar. Uma situação constrangedora e ridícula! Fiquei aliviado quando a partida acabou.

Pedi desculpas por não jogar outra partida, por ser tão tarde, e dizendo que queria acordar cedo, fui me deitar.

Remontei diversas vezes os acontecimentos da manhã seguinte, tentando me lembrar de alguma coisa, algum pequeno incidente... Minhas lembranças são bastante vagas, mas sei que, às nove horas, estávamos todos no refeitório, exceto Alain, que, pelo que imaginávamos, já devia estar no ateliê. Jules sentara-se na ponta de lá da mesa e ia passando as xícaras que a irmã enchia de café.

Lembro-me que eu comentei:

— Ah, nada melhor do que um dia de chuva.

Sabine desculpou-se por ter de retirar-se. Contou-nos que teria que ir à Soisy sur Seine fazer algumas compras. Como se não bastasse, recebera uma ligação do verdureiro, cobrando a conta do mês.

— Em vez de ficar em casa vou ter que correr por aí para pagar contas atrasadas!

Não era uma perspectiva muito agradável.

Georges comentou, de maneira cômica:

— Malditas contas, não?

Notei que Claude Fichée estava calado, cabisbaixo, com a testa franzida. Olhei para ele com súbito interesse. Perguntei-lhe se havia recebido alguma notícia ruim, e ele disse que não. Foram as únicas palavras que ouvi de sua boca porque, daí a pouco, ele se levantou, com o pretexto de que ia dar um pulo no ateliê.

Dali a alguns minutos, Laiane foi até a janela. Por cima do ombro, disse:

— Meu Deus, que dia melancólico!

Georges juntou-se a ela, e os dois ficaram contemplando a chuva, soltando exclamações. O Ten. Tullet foi para a escada, mas não chegou a subir.

Foi nessa ocasião que Claude reapareceu... e o resto, o senhor já sabe. Talvez, se eu tivesse feito mais, as coisas não teriam ido tão longe.

Sim, se eu tivesse feito mais. Mas... naquela noite...

Como dar ajuda para alguém que não pediu ajuda? Não dava para afirmar no que Alain estava pensando. Talvez eu devesse ter dito: “Eu estou com você, e vamos achar uma saída juntos.” Mas... não foi o que eu fiz.

Se pudéssemos sempre saber que impacto nossas ações têm sobre as outras pessoas, as consequências que resultam disso! Mas, o fato é que nem sempre sabemos.

Acha que Alain Evril se matou?

Sim. Mas também acho que nós o ajudamos a se matar.

Alguma coisa que se esqueceu de mencionar, Monsieur Trainville?

Nenhuma, que eu me lembre. Alguma coisa o preocupa, comissário?

De certo modo.

Eu sei o que é. Ouvi dizer que a polícia está jogando a toalha.

Não estamos. Mas o alto escalão não tem nenhum interesse em levar esse caso adiante. Eles afirmam que é melhor engavetar o caso, então vamos engavetá-lo.

Puxa! Que desfecho, hein?

Um desfecho ideal para muita gente.

 

 

As primeiras conclusões

 

— Então o senhor voltou, Herr Fëll?

— Voltei, Madame.

— Estou muito feliz — disse Madame Lafayette — que tenha vindo. A sua ajuda tem sido valiosa nesse terrível acontecimento.

— Esteja certa, Madame, de que estou fazendo o que posso.

— Viajando por aí e conversando com os amigos de Alain, procurando saber se são pessoas boas ou más?

— Fiz uma maratona para falar com todos eles — disse Fëll.

— E aí, como foi? — perguntou ela quando Fëll se instalou ao seu lado. — Como vai o caso?

— A passo de tartaruga, Madame. Mas vai indo.

— Receei que dissesse isso mesmo. Desde que toda a história foi trazida à tona, eu quase não saio. “Sabine Lafayette, a mulher reclusa em sua própria casa.” Não é irônico?

Madame Lafayette sorriu debilmente.

Ele também sorriu. Era algo estranho, algo que ela não tinha visto antes e que mudava completamente a estrutura de seu rosto, suavizando suas linhas masculinas e adicionando uma nova dimensão a sua pessoa tão austera. A sua expressão facial não revelava nada, como era habitual nele. No entanto, havia uma luz diferente em seus olhos castanhos. Até o seu aspecto era diferente, mais amável.

— O senhor está bem?

— Ich fühle mich sehr gut, Madame.

— E o que é que já apurou?

— Circunstâncias — respondeu Fëll. — Circunstâncias que vão ter de ser fixadas em seus devidos lugares e em suas devidas datas. Madame disse achar que seu irmão foi assassinado. Mas, tanto nos depoimentos que colhi quanto nas transcrições a que tive acesso, quase todo mundo tratou o caso como suicídio.

— Oh! Suicídio! Suicídio! — disse ela. — Então Alain escolheu se matar porque achou que a vida de todos seria melhor sem ele? Quanta bobagem!

— Ainda não formei um quadro do caso — disse Fëll. —, mas uma ou duas coisas parecem ser unânimes. Estive no solar e, efetivamente, só há um funcionário dos velhos tempos que ainda trabalha lá.

— Porath, aposto.

— Lembra-se dele?

— Oh! Sim. Eu lembro que não simpatizava muito com ele. Mamãe devia a Porath. Dois ou três meses de salário. Para os valores da época, uma bela quantia. Mamãe tinha dado uma promissória... e, um dia, Porath protestou o título. Pobre mamãe! Sofreu muito nas mãos dele.

Fëll pegou a lista de pessoas com que tinha falado. Atrás de cada nome invariavelmente constava a mesma palavra: “Suspeito.” Virou uma página e, em outra coluna, estava o resumo minucioso de suas ações.

— Primeiro visitei e consultei seu irmão, Jules.

— O senhor visitou Jules?

Fëll fez que sim com a cabeça.

— O senhor não me disse que ia.

— Mil perdões, Madame, pelo meu erro, deveria tê-lo feito.

— O que o senhor quis com ele, Herr Fëll? Suponho que agora já possa me dizer.

— Queria saber se ele podia me contar algo sobre o irmão, algo que me interessasse saber. Pedi-lhe para me dar, também, algumas informações que de outro modo não seriam fáceis de ser obtidas.

— Bem — disse Madame Lafayette —, o que foi que o senhor disse e o que foi que ele respondeu? Que pensa ele de tudo isso?

— Madame, o que seu irmão disse foi: “Para mim... se Alain se matou ou foi morto? Dane-se!”

— O que mais?

— Só isso. Ele não contou mais nada, e não acho que dê para inferir muita coisa.

— Chegou a falar com Laiane?

— Sim. Eu tinha que entender a razão para a presença dela no solar.

— O que ela disse?

— Madame Hambour disse ter ido a convite de Lambert Trainville. Disse também que, apesar de todas as boas intenções dele, foi duramente hostilizada pelos demais membros masculinos presentes na casa.

— É verdade, tinha me esquecido disso. Lembro-me que, uma noite, fui bem direta com ela. Ela estava muito mal. Triste. Deprimida até. Aproveitei um momento em que Alain estava do outro lado da sala falando com o tenente para segurá-la pelos ombros e obrigá-la a olhar em meus olhos. “Escute-me bem” disse eu. “Se precisar, seja para o que for, não hesite em me chamar. Entendido?” Laiane fez que sim com a cabeça. “Obrigada” disse, e me beijou na bochecha. “Não se preocupe, querida. Alain vai cuidar de mim.” “Mesmo?” perguntei. “É melhor que seja assim, ou ele vai ter que se ver comigo.”

— Isso confirma outra coisa que ela disse. Que Madame e ela tinham sido boas amigas.

— Sim, fomos.

— Como Madame vê, a coisa progrediu alguns milímetros — disse Fëll amavelmente. — Como já falei, comecei mencionando a teoria de suicídio, teoria esta que foi aceita e endossada quase que por todos. A seguir, sugeri a possibilidade de assassinato. Salvo uma ou duas exceções, a maioria jamais pareceu ter ouvido ou ter pensado em semelhante coisa.

— Achei que mais gente pensasse como eu.

— À falta de um motivo, era pouco provável que pensassem. Fernan Rastignac foi um dos poucos e únicos que não se opôs à nossa teoria. O Gen. Tullet, desde o início, pareceu indiferente. Mas, quando falei em homicídio, ele ficou sinceramente abalado. Tive a impressão de que ele não gostava muito de Monsieur Alain Evril, mas que ficou chocado com a hipótese de assassinato.

— Pelo que lembro, eles não se davam bem. O que ele disse?

— No fundo, pouca coisa — explicou Fëll. — O que mais me chamou a atenção foi o que ele não disse: que foi uma perda terrível, e que ele lamentava que aquilo tivesse acontecido.

— E Claude Fichée?

— Monsieur Fichée ficou zangado — disse Fëll. — Bastante zangado, eu diria.

— Claude é rico, e o título de nobreza remonta de séculos atrás. Talvez seja por isso.

— Naturalmente o que ele quis foi aplacar a consciência. Eu gostaria de trazê-lo de volta para a França.

— Isso pode ser feito?

— Se ele quiser vir. Ou se tivermos uma acusação contra ele. Então poderíamos requerer formalmente uma extradição através do pessoal das relações exteriores espanhol.

— O senhor... vai... acusá-lo?

— Não tenho o suficiente para isso.

— Ele iria negar, de qualquer forma.

Fëll virou para Madame Lafayette, o rosto congestionado de excitação.

— Apurei uma coisinha que vai interessá-la, Madame.

— O que é?

— Eu já tinha interrogado quase todas as testemunhas da minha lista quando descobri um fato perturbador. Descobri, Madame, que seu irmão não foi o único a morrer naquele ano sob circunstâncias misteriosas. Houve outro assassinato. Madame, acho que está na hora de introduzir um novo personagem na drama.

— Um novo personagem? Eu o conheço?

— Talvez. Mas ele já morreu.

— Oh, quando morreu?

— Há trinta e dois anos... no mês de agosto. Um homem do alto-escalão francês e que tinha seu endereço residencial em Paris. O Ministro Rodinsky.

— Rodinsky? Rodinsky?

— A morte, como disse, aconteceu em agosto... Foi alvejado durante um passeio de carruagem e morreu. Muitas vezes, incidentes isolados estão mais intimamente relacionados do que a gente pensa.

— Eu não entendo...

— Nem eu ainda — disse Fëll. — Mas acho que a chave de tudo reside aí. Certas circunstâncias... onde as pessoas estavam, o que aconteceu a elas, o que estavam fazendo... podem ser muito úteis para sincronizar a ordem dos fatos.

— Bem, o senhor acha que há relação entre os dois crimes?

Fëll respirou fundo antes de responder.

— Sim, Madame. Acho que sim.

— Mas por quê?

— Por duas razões. Primeiro porque Alain Evril afirmou saber de um assassinato que ia ser cometido em agosto daquele ano. E segundo, por causa disto aqui — e Fëll tirou do bolso o famoso mapa.

— Um mapa!

— Sim.

— De Paris?

— Aparentemente.

— E o que significa?

— De acordo com a minha pesquisa, como Madame pode ver, este mapa esboça todo o itinerário que o Ministro Rodinsky fez no dia em que foi morto. Aqui diz: “5h... Carruagem vai estar neste ponto.” Outra nota: “Rue du Faubourg.... x — emboscada” e: “Calçada com pedestres.” Está percebendo? Um território, um método e... perceba aqui no cantinho: “Alvo: Ministre R.”

— Acha mesmo que os fatos estão interligados?

— É provável. A senhora compreendeu o meu raciocínio?

— Sim, compreendo o que o senhor quer dizer — respondeu Madame Lafayette, hesitante. — Mas não acha que está se concentrando no caso errado? Investigando sobre um homicídio que aconteceu sei-lá-onde em vez de procurar o assassino de meu irmão?

Ela parecia disposta a querer esclarecimentos, mas Fëll balançou a cabeça negativamente.

— Não posso responder a isso agora. Preciso aclarar minhas ideias um pouco mais. Não quero expor nenhuma teoria sem ter nada que dê embasamento a ela.

— Pelo visto o senhor andou fazendo seu trabalho com muita competência, Herr Fëll.

— Investiguei tudo que pude.

— Nem preciso dizer que estou muito grata.

Fëll pôs suas anotações no bolso e, olhando para o relógio, disse determinadamente:

— Bem, hora de falar novamente com o Gen. Tullet. Auf wiedersehen, Madame.


O inspetor Bassell

 

— Oh, desculpe-me por fazê-lo esperar.

O tom do Gen. Tullet era de impaciência.

— Não seja por isso, general — disse Fëll, humildemente. — Eu que agradeço por concordar em falar comigo.

— A que devo a nobre visita?

— Eu queria discutir umas coisas com Monsieur. Sobre outro caso antigo, se não se opõe.

— Outro caso antigo?

— Sim.

— A que caso se refere? Se o senhor me contar do que se trata, eu vejo se posso ajudá-lo.

Fëll abriu o caderno de anotações a fim de mostrar a seriedade com que pretendia travar aquela conversa.

— O caso do assassinato do Ministro Rodinsky — disse Fëll, espaçando bem as palavras.

— Não sabia que alguém ainda se interessaria nisso. Por que está perguntando sobre esse homem? O Ministro Rodinsky?

— O nome dele veio à tona.

— Em sua investigação?

— Sim. Tudo o que posso dizer é que estou em um caso maior do que julguei a princípio. De alguma maneira, o caso Rodinsky tem conexão com alguns fatos que estou investigando.

O Gen. Tullet olhou diretamente para o austríaco, sem pestanejar. Pareceu ligeiramente contrafeito e, logo depois, os lábios carnudos se transformaram em uma careta, que sugeria tanto decepção quanto aborrecimento.

— Eu sugiro que fale com o inspetor Bassel.

— Quem?

— Inspetor Bassel. Foi ele quem cuidou do caso Rodinsky.

 


II

 

— Não sei por que me procurou — disse o inspetor Bassel. — Não tenho nada a ver com a polícia hoje em dia. Há muito tempo que não exerço qualquer atividade policial.

— Sim, mas Monsieur está por dentro dos fatos. Quero ouvir o que pensa ou imagina ou sabe.

Monsieur Bassel suspirou.

— Sente-se, por favor.

— Gut — agradeceu Fëll. — Houve um crime — acrescentou: — um crime envolvendo um político conceituado, e Monsieur sabe como tudo aconteceu.

— Já faz trinta anos. Quem liga para aquilo?

— Eu ligo, Monsieur.

— Não sou de recordar os velhos tempos.

— Nem quando necessário?

— Devia ler os relatórios... Está tudo nos relatórios.

— Nem tudo é acessível sem mandado judicial — disse Fëll com pesar. — O Ministro Rodinsky foi assassinado em agosto. Mas um sujeito apareceu semanas antes com este mapa aqui — e Fëll levou a mão ao bolso.

Monsieur Bassel arregalou os olhos ao ver o pedaço de papel amarelado.

— De onde conseguiu isso?

— Com um homem chamado Rastignac — disse Fëll. — O senhor conhece Monsieur Rastignac?

— Poderia descrever esse cavalheiro?

Fëll descreveu.

— Não conheço. Essa descrição corresponde a muita gente. Como o senhor chegou até mim?

— Pelos registros da Polícia Judiciária.

— Quer dizer que andou fuçando minha vida pessoal! Achei que alertar um colega fosse uma questão de cortesia profissional... — Monsieur Bassel parou de falar, hesitou por um instante. Por fim continuou, com evidente dificuldade: — Pelo jeito, o senhor está tão envolvido em sua vendeta particular que não se conteve em xeretar o meu trabalho.

— É um direito meu, Monsieur. Assim como também é meu direito, na condição de investigador de um assassinato, perguntar o porquê de o senhor ter deixado o seu relatório pela metade.

— Ter deixado o meu relatório pela metade?!

— Mais uma coisa... Os registros dizem que Monsieur foi acusado duas vezes de tentativa de contrabando. Não foi possível a apresentação de provas, motivo pelo qual não foi preso.

— Deslavada calúnia! — latiu Monsieur Bassel.

— A dedução clara e coerente que resulta daí é que Monsieur já burlou a lei algumas vezes — disse Fëll, impassível. — A escolha é sua: ou conversamos aqui ou na Central de Polícia, conforme preferir.

Muito pensativo, Monsieur Bassel olhou para o detetive. Vendo que ia ser obrigado a contar a sua história, suspirou:

— Bem, vou dizer o que sei, se isso o faz feliz — disse, mudando o tom de voz. — Mas, desde já, aviso que meu relato é longo e complicado.

— Abrevie e simplifique. O Ministro Rodinsky sofreu um atentado, não sofreu?

— Meteram duas balas nele.

— Na rue du Faubourg Saint-Honore.

— Sim.

— Quem foi?

— Nunca soubemos. Aconteceram coisas estranhas naquele dia... coisas que nem eu, nem meus agentes, compreendemos muito bem. Mantivemos um suspeito sob vigilância por um tempo, mas sem sucesso. Pedimos instruções a Corregedoria Central, mas, no fim, tudo deu em nada.

— Quais foram as instruções?

— Não houve instruções. Quando se trata de um assunto desta espécie, só se pode lançar mão de gente especializada.

— Encontraram alguma prova material?

— Encontramos a arma do crime — respondeu o inspetor secamente. — O revólver.

— Quem dirigiu a busca?

— Eu. Fui o primeiro a chegar. Eu estava perto dali quando recebi a chamada.

— Que dia e data foi que isso aconteceu?

— Era sexta-feira... não lembro a data... Nos jornais, notícias de primeira página diziam que o sujeito que baleou o Ministro Rodinsky era um fascista, a soldo de uma organização neonazista turca. Outros diziam que era um alucinado, com tendência direitista e que tinha agido por conta própria. Nunca pudemos comprovar tais teorias, uma vez que não conseguimos prender qualquer suspeito.

— Deduzo que Monsieur deva ter a sua própria teoria.

— Sim. Posso estar errado, mas... sempre achei que aquilo... aquela morte... havia sido um trabalho interno.

— Interno?

— É — disse o inspetor Bassel. — Ao longo dos meses de investigações, acabei por constatar que existiam provas de que o assassino provavelmente fora pago por Madame Rodinsky para matar o marido.

— Por Madame Rodinsky, a viúva?

— Sim. E, por causa de uma bobagem que se poderia chamar de ciúmes de mulher e de várias emoções. O fato, porém, é que, por negligência, insensatez ou indiferença, os guardas que a vigiavam dormiram no ponto e... puf!... a mulher sumiu sem deixar vestígios.

— Ela estava na carruagem na hora do crime, não estava?

— Sim. Ao lado do marido. E meu instinto me dizia que ela era a mandante do crime. O que complicou tudo foi que, segundo o depoimento de testemunhas, havia um homem não identificado com eles.

— Não identificado — como?

— Um homem que Madame Rodinsky alegou nunca ter visto antes. Disse ela que, logo após o disparo, ele abandonou a carruagem e saiu correndo.

— Foi ele quem atirou, foi? — perguntou Fëll.

— Sim. Era um tipo “caucasiano, alto, bem-apessoado, de uns trinta anos”. Foi visto fugindo em meio à multidão. Com base em indicações, foi feito um retrato falado que, no fim, não ajudou em nada, uma vez que houve divergência nos depoimentos. Sem assassino, dois meses mais tarde, o juiz, em sua sentença, referiu-se a “forças ocultas” e “à existência de uma conspiração em alto nível” para a causa da morte. Idiotice! O homem morreu a mando da mulher!

 

 


III

 

Edmund Fëll percorreu, por ordem cronológica, as diversas notícias divulgadas na imprensa sobre o caso Rodinsky, dia após dia. Começou nas reportagens sobre o assassinato e foi avançando metodicamente. O caso era mencionado na imprensa quase todos os dias durante um longo período. Havia análises sobre as razões do crime (incluindo uma história sobre uma suposta conspiração que envolvia altos figurões do parlamento que se opunham ideologicamente ao ministro), comentários dos colegas de partido... e assim por diante.

Seguiu folheando um pouco mais.

Clique. Clique. Clique.

Duas fotos coloridas mostravam uma rua, homens e mulheres de pé, olhando para um coche. Fëll se deu conta de que essas fotos tinham sido tiradas logo após o atentado. Um jovem inspetor de polícia, Frontin Bassel, dava instruções a um grupo de policiais uniformizados.

Clique.

Uma fotografia, de corpo inteiro, do casal Rodinsky. O ministro, com uma capa de chuva que descia até os joelhos e um chapéu-coco de aba larga. Ao seu lado, em um vestido regatado, a mulher, que olhava para a câmera fotográfica.

Edmund Fëll viu algo que o fez engasgar-se com o chá. Tossiu e endireitou-se na cadeira.

A mulher olhava para a objetiva da câmera fotográfica com ar perturbado e um pouco inquieto. Olhava sim, mas só em partes. Havia alguma coisa errada com seus olhos.

Os olhos... Os olhos...


De volta ao solar

 

— Alô!

— O seu solar tem condições de receber hóspedes, Monsieur Jerome?

— Tem sim. Todos os meus amigos, meus conhecidos ou mesmo os primos de segundo grau vivem me perguntando se não me incomodaria de alojá-los só por uma noite. Eles vêm e ficam comigo. As pessoas que realmente me agradam, mas as outras, não, não atendo.

— Entendo...

— Por que está me perguntando?

— Se surgisse uma necessidade, Monsieur poderia receber uns sete ou oito hóspedes?

— Poderia. Quem o senhor quer me mandar como hóspede?

— Lembra-se que eu estive aí, vendo o ateliê onde Alain Evril morreu?

— É claro que sim.

— Quem virá são os meus suspeitos.

— Alguém vai ser assassinado?

— Espero que não e rezo para não ser.

 


II

 

Dois dias depois, às seis e meia, a maioria já tinha chegado ao solar Oakleight, na seguinte ordem: Claude Fichée, Lambert Trainville, o Gen. Émille Tullet, Fernan Rastignac, Jacques Hurwitz e Georges Souchet.

No salão, já tomando o café, Georges Souchet foi o primeiro a entrar no assunto.

— E aí? — perguntou. — O que é tudo isto? O que acham que esse detetive quer de nós?

— O que ele quer é provar que nós não somos nada além de um bando de esnobes — disse Lambert Trainville. — E que as coisas não são como a gente pensava que fossem. Melhor dizendo, podem não ter sido como a gente pensava que fossem.

— Para falar a verdade — disse Claude Fichée — prefiro assim. Não é mesmo, Lambert?

— Deus me livre! — disse Lambert Trainville.

— De qualquer modo, não é a primeira vez que viemos para cá — comentou Fernan Rastignac.

— Claro que não... Mas não dessa maneira. Antes nós vínhamos por prazer.

— Bom — sorriu Claude Fichée —, não há nada que nos impossibilite de nos divertir, Lambert. Por exemplo: amanhã cedo quero um de vocês na quadra de tênis... Um adversário digno, hein! Você, Georges?

— Receio que vou dormir até as onze. Toda essa história já me roubou umas boas horas de sono.

— Eu aceito o desafio — disse o Gen. Tullet.

— Que me diz de dez games? — perguntou Claude Fichée.

— Ótimo — disse o general.

— Também poderíamos organizar duplas... Alguém mais quer fazer um pouco de esporte?

— Amanhã a gente vê — disse Fernan Rastignac. — Eu estou nas mesmas condições de Georges. É tanta preocupação que não tive muito tempo para dormir.

— Algo deve estar acontecendo, suponho — disse Georges Souchet, retomando o assunto pendente.

— Já pensei sobre isso. Em primeiro lugar... — Claude deteve-se de súbito e olhou para Porath, que permanecia junto à mesinha de serviço. — Para onde disse que seu patrão viajou, Porath?

— Monsieur Jerome foi para Zurique.

— Por quê?

— Compromissos sociais, Monsieur.

— Quer nos servir o conhaque, por favor?

— Oui, Monsieur.

Porath serviu os seis copos, sentindo fixos nele os seis pares de olhos. Porath indicou o cordão de seda, a um lado da parede.

— Se precisarem de mim...

— Não, não. Pode retirar-se. É só, por esta noite.

— Bon soir, messieurs.

— Bon soir... Tenha a bondade de fechar a porta.

Porath saiu do salão. No momento, não lhe ocorria nem remotamente qual daqueles seis homens pudesse ser um assassino.

O Gen. Tullet disse:

— Isso tudo é uma palhaçada tão grande que, em outras circunstâncias, eu nem teria vindo.

— Eu também.

— Quer dizer, de onde foi que esse detetive tirou coragem para nos intimar? — o Gen. Tullet fez uma pausa. — A não ser que ele tenha descoberto alguma coisa.

— Acho que não foi isso.

— Então só pode ser algum fato novo.

— A transcrição de nossos depoimentos?

— Não seria o bastante — Georges Souchet hesitou.

— Por que, então, estamos aqui? Alguém faz alguma ideia?

— Não faço a menor ideia.

— Nem eu.

— Tudo bem. Aguentem firme. Não vamos dar mole para esse cara.

— Sou de opinião de que devíamos confiar nele — disse Fernan Rastignac. — Vocês sabem por que estamos aqui. Alan foi assassinado. E, provavelmente, por um de nós.

 

 

III


Parado na soleira da porta, Edmund Fëll jogou para trás o capuz da capa de chuva bege.

— Só queria avisá-los, cavalheiros, que é possível que amanhã de manhã eu possa apresentar algo que vai esclarecer o nosso pequeno mistério.

— O que é?

— Uma testemunha ocular.

— O senhor quer dizer...

— Uma testemunha ocular do crime.

Todos olharam para Fëll com crescente ceticismo.

— Onde se encontra essa testemunha agora? — perguntou Jacques Hurwitz.

— Vindo para Paris, espero e confio — disse Fëll. — Gute Nacht, cavalheiros.

 


IV


Tarde da noite, Edmund Fëll entrou com seu passo macio na sala de estar. Fernan Rastignac estava de pé, olhando pela janela. Voltou-se subitamente para o detetive.

Fëll encarou-o.

— E então, Monsieur Rastignac?

Fëll conservou a voz serena e cortês.

— Desde que o vi — disse Fernan Rastignac —, refleti com muito cuidado sobre a solução alternativa apresentada pelo senhor. Ou seja, que Alain tenha sido assassinado. Embora na época do julgamento essa hipótese tenha sido descartada logo de cara, considero correto ter a mente aberta a novas opiniões e possibilidades.

Fëll estranhou a abordagem.

— É muito gentil de sua parte — murmurou ele. — Mas acho que não entendi.

— Para ser franco, eu preciso de sua confirmação... mesmo que confidencialmente.

— Confirmação?

Edmund Fëll mostrou-se um tanto surpreso.

— Isso não é muito próprio do senhor, Monsieur Rastignac. Não está em geral sempre satisfeito com suas próprias opiniões?

— Sim, estou satisfeito com minhas opiniões, mas seria para mim conforto e apoio se a sua opinião concordasse com as minhas.

Fëll não disse nada. Olhou para o francês com uma expressão inquisitiva.

— Eu sei quem matou Alain — disse Fernan. — E estou certo de que o senhor também sabe.

— Eu não disse isso.

— Sim, o senhor não disse. Mas eu sei que sabe.

— Ah! Enfim, um palpite?

— Eu preferiria não usar essa palavra.

— Está bem.

— O que gostaria de fazer, Herr Fëll, é escrever um nome neste pedaço de papel. Depois o senhor me diz se estou certo ou não.

Fernan tirou a caneta do bolso. Escreveu no papel, dobrou-o e o passou ao detetive. Este o recebeu, abriu-o e o segurou na mão, lendo-o.

— De acordo?

— Concordo, sim.

— Alguma prova definida?

— Acho que sim.

 

 


V

 

Na manhã seguinte, já estavam todos acordados, tomando café, quando o austríaco apareceu.

— Venham, cavalheiros. Temos alguns fatos para reconstruir.

— Com base no quê?

— Com base nos depoimentos dados ao comissário Andrew, eu projetei uma linha do tempo. Vamos reconstituir todas as coisas que aconteceram naquela última noite.

— Ah, entendi! — disse Georges Souchet. — O senhor quer mergulhar na cena do crime, por assim dizer.

— Mergulhar no panorama do crime talvez fosse uma expressão mais exata.

— Acho que isso não vai dar em nada. Essa reconstituição dos fatos já foi feita. Trinta anos atrás.

— Trinta e dois anos — disse Fëll distraidamente. — Talvez não adiante muita coisa. Em todo caso, não custa reencenarmos as coisas. Precisamos reconstituir os acontecimentos da noite de quarta para quinta-feira. Não deve ser muito difícil. Segundo a transcrição de seu relato, o senhor, Monsieur Souchet, disse: “Caminhei na ponta dos pés até a grade do mezanino e espiei para baixo. Foi então, enquanto estava ali, que vi Mademoiselle Hambour saindo da cozinha lá embaixo, trazendo uma bandeja com um bule e uma xícara.” Confere?

— Se está nos registros, deve conferir — retrucou Georges, surpreso com a objetividade do austríaco. — Eu ainda consigo vê-la... ali no hall... quando fecho os olhos.

— Ali onde?

— Na porta, ora!

— Acha que ela fez alguma coisa com Alain Evril?

— Não sei.

— Mas se tivesse que adivinhar, Monsieur diria o quê? Fez ou não fez?

O homem refletiu antes de responder:

— Não. Não acho que ela tenha feito nada.

— Por que não?

— Sei lá — disse Georges Souchet, e parou de falar quando a porta se abriu e Porath anunciou Madame Hambour.

Bem-vestida, as mãos metidas em luvas de algodão muito limpas, Laiane Hambour entrou envolta em um redemoinho de garoa e neblina. Depois de entregar o guarda-chuva para o mordomo, ela adiantou-se dois ou três passos. Primeiro olhou friamente para Georges e o general e, em seguida, fez um aceno de cabeça para Lambert. Deu mais alguns passos e deixou-se cair pesadamente na poltrona no centro da sala — era uma cena para se ver! Olhou por um ou dois minutos para Fëll. Fëll retribuiu o olhar, procurando decifrar a expressão dela, mas o rosto de Madame Hambour não revelava nada. Aquela mulher era um enigma. Um completo enigma.

— Desculpe se estou atrasada, Herr Fëll — disse Laiane. — Oh, droga! Veja meus sapatos novos! Estão ensopados! Aposto que a chuva os estragou.

— Tire-os. Talvez eu possa dar um jeito neles — argumentou Lambert Trainville.

Ele se ajoelhou diante da mulher e tirou-lhe um sapato com facilidade, envolvendo o pé gelado com as duas mãos.

— Você parece mais velho... Lambert — disse Laiane.

— Você continua igual — murmurou ele.

Não era a melhor hora para romantismo, por isso Fëll virou-se para Laiane Hambour.

— Foi muito bom Madame ter vindo. Estávamos justamente relembrando algumas coisas que aconteceram no dia da morte de Alain Evril. Reflita agora, Madame. Na manhã daquela quinta-feira, Madame levou uma bandeja de café para o ateliê. Ao sair pela porta, lembra-se de ter visto Monsieur Souchet lá em cima, no mezanino?

Madame Hambour franziu a testa muito lentamente e olhou para cima.

— Não. Não me lembro. Mas vi outra coisa.

— Pode me contar o que foi?

— Sim, eu vou contar. Foi para isso que vim aqui. Eu disse que não tinha visto nada, o senhor compreende, pensava... — e Madame Hambour parou.

— O que foi que a senhora viu?

— Eu devia ter lhe contado. Eu olhei para cima e vi a porta da biblioteca se abrir lentamente, e, em seguida, ela saiu. Pelo menos, não saiu de todo. Ela ficou apenas no vão da porta e depois a fechou rapidamente e voltou para dentro.

— Ela? Ela quem?

— Sabine. Sabine. Eu pensei que... oh! Que coisa, que coisa terrível.

— Madame pensou que Sabine Lafayette tivesse matado o irmão? — perguntou Fëll. — Foi isso que Madame pensou?

— Sim, foi o que pensei. Não no momento, é claro, porque eu não sabia que Alain estava morto. Mas Sabine tinha um ar tão... tão intenso. E pensei: “Por que Sabine está saindo dali em vez de estar em seu quarto?” Eu pensei: “O que ela está fazendo?” E depois, bem, depois não pensei mais nisso, mas suponho, a maneira como Sabine olhou para baixo ficou gravada em minha mente. Quando eu soube da morte, eu pensei...

— Que ela o tivesse matado.

— Exatamente. Achei que isso explicava o olhar dela. Pensei nisso a vida inteira. Eu posso estar errada... Talvez ela tenha entrado no ateliê onde o encontrou... morto... o que a deixou terrivelmente aterrorizada. E por isso quis voltar para o quarto sem que ninguém a visse e suponho que, ao ouvir ruídos, acabou se escondendo na biblioteca, de onde espiou para fora e me viu, por isso voltou para dentro, fechou a porta e esperou que o corredor estivesse vazio para sair. Mas não porque o tivesse matado. Não.

— E, mesmo assim, Madame não disse nada?

— Não. Oh! Eu não podia. Sabine era... era tão jovem... e era minha amiga. Boas amigas não se traem. Sim — disse Laiane —, foi isso o que fiz. Porque, o senhor compreende, a razão de sua perplexidade deve ter sido o fato de ter visto o irmão morto, e de ter achado que, se fosse vista, alguém poderia achar que ela o tivesse matado.

Porath anunciou:

— Jules Evril.

Fëll foi recebê-lo. E disse:

— Foi simpático de sua parte atender meu convite, Monsieur Evril.

— Espero que não tenha sido à toa — cochichou Jules.

— Talvez seja um pouco trabalhoso, mas vamos fazer valer a viagem.

Jules foi cumprimentar os amigos.

— Olá, gente. Há quanto tempo estão aqui?

— Desde ontem à tarde — disse Jacques Hurwitz.

— Que azar, hein, primo?

Seguiu-se uma pausa. Fëll balançou a cabeça.

— Como devem imaginar, ao ler as transcrições, detectei algumas inconsistências nos depoimentos. Vou dar dois exemplos. Monsieur Fichée disse ter ouvido um murmurinho naquela manhã, antes de entrar no ateliê. Uma cortina roçando na sanefa? Impossível. Eu estive no ateliê. A janela, constatei, quando fechada, abafaria qualquer som vindo de dentro. Além do mais, havia o ronco de trovões... Sim, sim, eu sei. A menção do murmurinho pode ter sido só força de expressão. Outra inconsistência. Mademoiselle Hambour disse que, no dia em que chegou ao solar, foi recebida efusivamente por Lambert Trainville. Mas, em seu relato, Monsieur Souchet disse que as boas-vindas, longe de serem efusivas, foram muito moderadas. Ele disse: “Ela veio, sorrindo para nós. Os seus olhos moviam-se para todos os lados, sem pressa... ‘Lambert!’ — exclamou ela. ‘Alô’ — limitou-se a dizer ele.” Notaram a discrepância? Notaram? Mas essas discrepâncias, até certo grau, são compreensíveis. Os depoimentos não foram recolhidos na hora. Depois de um tempo, as memórias começam a se deteriorar. Coisas são esquecidas. Outro exemplo. Em sua história da tragédia, Jules Evril disse ter falado uma única vez com o irmão na noite de quarta-feira. Por volta das 7h. Mas, basta ler outros depoimentos e se verá que ele esteve uma segunda vez no quarto, vez esta em que providenciou algumas torradas e a garrafa de vinho de gengibre com Scotch.

— Juro por Deus, Monsieur Fëll — disse Jules, — eu não matei meu irmão.

— Sei que não matou — replicou Fëll. — Menciono essas questões só como inconsistências, embora elas tenham seu peso no que aconteceu. Esse é o prólogo. O resto do drama ainda está por vir.

Claude Fichée se remexeu.

— Bem, Herr Fëll. Se puder adiantar as coisas... Eu e o general marcamos uma partida de tênis.

Fëll fez um gesto com a cabeça.

— Um pouquinho de calma, cavalheiros. Falta uma pessoa. E... pelo som da campainha... ela acaba de chegar.


Explicações

 


Porath saiu da sala e voltou conduzindo Madame Lafayette.

Sabine Lafayette entrou, largou a bolsa na mesa, descalçou as luvas e sondou o pequeno grupo em silêncio.

Fëll perfilou-se e tomou a mulher pela mão.

— Sente-se aqui ao lado de seu irmão, Madame Lafayette. Mas, antes de qualquer coisa, desejo fazer-lhe algumas perguntas. Diz respeito a algo que Madame ouviu... há trinta e dois anos. Madame contou isso para mim e, segundo consta, outros de vocês ouviram a mesma coisa. Pode ser, Madame?

— O que o senhor quiser.

— O que foi que Alain Evril disse naquela noite de terça-feira, durante o baile?

— Que sabia de alguém que ia cometer um assassinato.

— De onde acha que ele tirou isso?

— O senhor sabe, Alain bisbilhotava a vida de todo mundo. Coisas assim. Gostava de saber dos segredos dos outros.

Sabine Lafayette acomodou-se ao lado de Jules e ergueu a cabeça, dando-se conta, pela primeira vez, que estava na sala onde vivera a maior parte de sua infância. As mesmas paredes cobertas por estantes, exibindo os mesmos livros encadernados em couro e enfileirados em ordem alfabética. Agora se assemelhava mais a um cenário cinematográfico do que a sala de um solar. Baixando os olhos, ela estudou os rostos à sua volta. Conseguia ver alguma dessas pessoas cometendo um assassinato? O seu primo Jacques, o garboso general sexagenário, o surpreendentemente calmo e gentil Georges Souchet, o sempre arrogante Lambert Trainville, o estranho e misterioso Fichée?

Poderia ela visualizar um deles matando alguém? Nunca antes passara por essa experiência e nem podia imaginar que um deles pudesse ser tão maldoso. Mas têm pessoas que matam porque querem, porque podem. Ela podia imaginar Claude Fichée, fulo de raiva, esganando um sócio relutante; sim, ela podia imaginar isso... E podia imaginar Jacques Hurwitz atropelando uma criança em idade escolar e fugindo sem prestar socorro. E podia imaginar Fernan Rastignac usando o taser contra um gato que estivesse bagunçando seu quintal. E Laiane... Ah, Laiane! Tão doce, uma pétala de lírio. Mas talvez também perigosa, com um gostinho especial por coisas desagradáveis — quem é que ia saber?

Um deles tinha ido longe demais para voltar atrás. Um deles tinha matado o seu irmão!

“Meu Deus, no que é que eu estou pensando?” Franzindo a testa, Madame Lafayette voltou a concentrar a atenção no detetive.

— Serei franco e irei direto ao ponto, o que será conveniente para todos — disse Fëll. — Não vou detê-los um minuto a mais do que o necessário. Fatos curiosos foram submetidos à minha análise, fatos que, ao longo de cinco semanas, originaram especulações de caráter muito genérico. Procure a quem o crime beneficia, não é o que dizem? Foi isso o que eu fiz, procurei a quem a morte de Alain Evril beneficiou, e foi a partir disso que elaborei uma teoria muito precisa e detalhada.

— Quer dizer que o senhor tem um veredito? — exclamou Georges Souchet.

Fëll balançou a cabeça afirmativamente. Tirou do bolso um caderninho de anotações, virou umas folhas e prosseguiu:

— Não só tenho um veredito, como é um veredito que contraria as conclusões a que a polícia chegou três décadas atrás.

— O senhor não resiste a um desfecho dramático, não é?

— A verdade talvez não seja a mais dramática das versões, ou a melhor, nem a pior. Mas é a verdade. Pessoas comuns pensam no macro. Detetives pensam no micro. Estou atrás do lobo no galinheiro, cavalheiros e senhoras. Um lobo que está aqui, agora. — E, em poucas palavras, Fëll esboçou o apelo de Madame Lafayette a ele. — A princípio, não pus muita fé no caso. Afinal, já se tinha passado tanto tempo. Mas, dada a sua sensibilidade, decidi aceitar o desafio. Resolvi olhar tudo um pouco mais de perto. Isso colocou em xeque tudo o que eu tinha lido sobre o caso.

Fëll se dirigiu até a janela, olhou lá para fora, atravessou outra vez a sala e parou no sopé da escada.

— Era lá em cima que Monsieur estava parado naquela manhã, não era? — disse Fëll para Georges Souchet, apontando com a mão para o mezanino, metros acima.

— O quê? Ah, sim. Era ali mesmo.

— E viu Madame Hambour... aliás, Mademoiselle Hambour... sair pela porta da frente carregando a bandeja com o bule de café?

— Vi.

— E enxergou o rosto dela?

— Enxerguei.

— Então, com o relato que fez para o comissário Coleman, Monsieur quis dar a entender que o bule talvez contivesse o cianeto que acabou ceifando a vida de seu amigo. Monsieur quis dar a entender que, hipoteticamente, Mademoiselle Hambour poderia ser a assassina. Devo lembrá-lo, porém, que pela perícia Alain Evril já estava morto muito antes de Mademoiselle Hambour chegar ao ateliê. Estou certo, Madame?

— Está... sim — gaguejou Madame Hambour.

— Deve ter sido um golpe e tanto para Madame — observou Fëll voltando-se para ela com surpreendente simpatia.

— Oh! Foi sim. Fiz a gentileza de levar o café... eram umas 7h30... e encontrei-o sentado na cadeira, dormindo, pensei. Larguei a bandeja na bancada. Cutuquei-o no ombro. Ele... ele escorregou um pouco para o lado. Percebi... percebi que o jeito que ele estava sentado não era natural. Percebi que algo de trágico havia acontecido. Não sei como consegui, mas dominei meus nervos e agachei-me ao lado dele. Vi logo que estava morto; também vi que devia estar morto há muito tempo; toquei a mão dele e estava... estava tão gelada!

Ela estremeceu à lembrança, os olhos cheios de lágrimas.

— Sim — disse Fëll delicadamente. — E depois?

— Depois... — a mulher escancarou a boca. — Eu fiquei lá parada, feito uma idiota.

— Não por muito tempo, imagino.

— Não, mas mesmo assim... Sei... eu sei o que vocês estão pensando. Por que eu não dei o alarme para avisar todos da casa? Era o que deveria ter feito, eu sei, mas tudo me surgiu num relance. Eu fiquei lá agachada... Não sabia o que fazer. Aí me ocorreu que, se fosse vista ali, se soubessem que eu tinha estado ali... Oh! O que ia ser de mim? O que ia ser de mim? Pela manhã, fingi estar surpresa e horrorizada, como todos os demais, quando Claude descobriu o corpo.

Ela parou e olhou para Fëll, suplicante.

— O senhor acredita em mim, não é? Oh, por favor, diga que acredita em mim!

— Acredito, sim, Mademoiselle — disse Fëll. Voltou-se para Georges Souchet, pensativamente: — Monsieur Souchet, o senhor, de má-fé, me contou ostensivamente uma história que qualquer aluno de ensino médio consideraria forçada e tendenciosa. É como se, nas entrelinhas, o senhor dissesse: “Olhe para essa fulana! Ela acordou antes do sol raiar... fez café, foi e o levou para o homem que, dali a uma hora, estava lá... morto! Percebe?” Oh! Que manobra tão óbvia... infame. Monsieur quis envenenar e indispor o meu espírito contra, a hoje, Madame Hambour. Foi ou não foi?

— Caracoles — resmungou Monsieur Souchet, com o rosto mortalmente desfigurado. — Eu não...

— Não? Eu só não o condeno, Monsieur, porque, a bem dizer, toda essa história, de cabo a rabo, é condenável e sem sentido. É incrível que praticamente todo mundo que está aqui tenha aceitado tão bem o veredito de suicídio! É incrível, mesmo. Madame Lafayette? — Fëll voltou-se pela segunda vez para a velha senhora. — Quero fazer-lhe outra pergunta.

— Pois não?

— Gostaria que nos contasse, em suas próprias palavras, o que Madame foi fazer na biblioteca bem cedo, naquela manhã.

O busto de Sabine se agitou.

— Na biblioteca?

— Sim.

— Quem... quem disse isso?

— Eu — interveio Laiane Hambour, com franqueza. — Desculpe-me, querida, mas eu... vi.

Fëll olhou para ela. Era claro que, em sua opinião, aquela intervenção representava uma nota discordante, fora de propósito, naquela inquirição oficial.

— Sim, eu estive na biblioteca — disse Sabine Lafayette. Virou-se e olhou para o irmão. — Eu tenho, sempre tive, muita afeição por você, Jules. Mas todos sabem que você é meio difícil às vezes. Deixe-me terminar... Lembro-me que, quando mamãe ia viajar, você me proibia de ficar ligando para ela. Uma proibição boba, mas uma proibição. Assim, para falar com ela, eu era obrigada a usar o telefone da biblioteca.

— Era, pois, isto que Madame estava fazendo na biblioteca? Ligando para a sua mãe?

— Sim.

— Ah! — exclamou Fëll. — Fico contente em saber disso. Creio que isso encerra a questão. Vou propor agora uma ilustração. Quando se quer visitar alguém pela primeira vez, se pega o guia de ruas, localiza-se a endereço e, depois, a partir do ponto em que está, traça uma rota para chegar ao destino. Em uma investigação, para ser bem-sucedido, também é preciso ter um endereço (destino final) e, depois, sabendo onde você se encontra naquele momento, traçar um plano de ação que o leve aonde você quer ir. Entre o embarque e o destino final existem várias paradas. Às vezes você tem que fazer uma baldeação aqui, outra baldeação ali. Se você pular uma baldeação corre o risco de embarcar em uma viagem sem fim que conduz a lugar nenhum. Vamos fazer umas baldeações analisando alguns fatos de trinta e dois anos atrás, mas com a cabeça de hoje. Alain Evril, com absoluta falta de discrição, chegou ao cúmulo de anunciar que sabia de alguém que ia ou, pelo menos, pretendia cometer um assassinato. Não é só uma pessoa que ouve isso. O Gen. Tullet escuta, Madame Lafayette escuta, Jules Evril escuta, além de outra dezena de pessoas. Na noite seguinte, Alain Evril está com dor de cabeça. Fernan Rastignac, a pessoa com quem ele mais se dá, vai até o quarto e, para seu espanto, recebe dele um mapa. “Se acontecer alguma coisa comigo” diz Alain Evril, “saiba que aqui está a razão.” A previsão se confirma já na mesma noite, e, agora, a minha pergunta é: “Que mapa era aquele?” O mapa de uma jazida petrolífera, de um tesouro cartaginês? Felizmente, não precisamos especular a este respeito. Não, se tivéssemos que especular iríamos ficar dias propondo hipóteses. Tenho o mapa. Este! O que veem nele? Podem falar...”

— É a planta cartográfica de uma cidade — sugeriu Monsieur Souchet.

— Absolutamente certo — exclamou Fëll. — Qual cidade?

— Johannesburgo?

— New Brunswick?

— Holbeach?

— Não — disse Fëll. — É a representação de Paris naquela época. Veem algo mais?

— Rabiscos — disse Monsieur Hurwitz.

— De fato — concordou Fëll. — Rabiscos, setas e um X — frisou —, cujo significado me esforcei em decifrar. Retornarei mais tarde a isso, mas primeiro tratemos das origens, das motivações por trás do assassinato de Alain Evril. Sim, porque é disso que se trata: assassinato.

“Quanto à oportunidade, qualquer pessoa nesta sala poderia ter cometido o crime. Sabemos que algumas pastilhas de cianeto foram encontradas no bolso da calça da vítima. E a morte foi causada por envenenamento, o que simplifica as coisas — disse Fëll. — Agora ouçam. O cianeto de potássio é tóxico por ingestão, inalação de pó e os vapores de solventes. Quando ingerido, reage com a acidez do estômago e gera gás cianídrico, o que provoca ardência na boca, rigidez do maxilar inferior, constrição da garganta, salivação, náuseas e vômitos. Se o indivíduo for envenenado, sua pele torna-se rosa ou, caso sofrer de falta de oxigênio ou outro problema físico, a cor da pele pode ser azulada. Olhos vermelhos e dilatação das pupilas também são sintomas de intoxicação. Esse composto químico era usado na Segunda Guerra Mundial pelos soldados para cometer suicídio. Quando o cianeto de potássio dissolve em água, ocorre uma suave reação e algum gás venenoso de cianeto de hidrogênio é desprendido. Este gás não é perigoso, exceto em áreas fechadas. O cianeto de potássio também pode se converter em gás cianídrico, altamente tóxico, como já disse, se tiver contato com qualquer ácido. O ácido cianídrico é um gás incolor que mata imediatamente se inalado numa concentração superior a 300 mg/m³ de ar. Outro tipo de gás tóxico a base de cianureto, conhecido como Zyklon B, foi criado originalmente como um pesticida para a eliminação de piolhos e pulgas, mas acabou sendo usado para o extermínio de seres humanos nas câmaras de gás da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Bem, ouso dizer que todos aqui poderiam ter entrado no quarto da vítima naquela noite e ministrado o veneno. Mas a pergunta é: Alain Evril ingeriu o veneno, conforme parece ser crença geral, ou ele foi intoxicado de outra forma? Voltaremos a esse ponto mais adiante. Dito isso, vamos ao motivo. A começar por Lambert Trainville.

Lambert lançou-lhe um olhar de espanto.

— Suas palavras parecem bastante patéticas — disse.

— Nem patéticas, nem absurdas. No fim das contas, a vida é principalmente sobre se as pessoas estão apaixonadas e por quem, se elas juntaram dinheiro suficiente ou se os filhos delas estão indo bem. Acho que isso contempla 75% daquilo com o que nos preocupamos todos os dias. E o senhor, Monsieur Trainville, estava apaixonado por Mademoiselle Hambour. Oh! Sim. Para Monsieur, Mademoiselle Hambour era le Visage du plaisir (O rosto do prazer). Mas aí Alain Evril começa a flertar com ela. Alain Evril, na gíria tão comum hoje em dia, começa a dar em cima dela. E ela, em vez de repeli-lo, condescende com os avanços dele, e até os estimula. Eu pergunto: “Que homem gosta de ver a si mesmo sendo substituído por outro na escala de preferências de uma mulher?” Poucos, eu diria, ou nenhum. Isso foi duro, não foi?

Quando Lambert falou, sem tom era tenso.

— É o senhor quem diz!

— Sim, eu digo.

— Para mim, tudo isso não passa de uma armadilha. Conheço muito bem os detetives e seus truques baratos.

— Acha que isto é uma armadilha? — perguntou Fëll.

— Pode ser.

— Não é. Quando queremos, sempre achamos alguma coisa...

— Ah! É assim? Quando o senhor quer, sempre acha alguma coisa? Isso é fantástico! Quer dizer que o senhor pode simplesmente incriminar alguém, só porque não vai com a cara da pessoa?

Incrivelmente calmo, o olhar de Fëll se deteve longamente em seu interlocutor.

— Estudei cuidadosamente as transcrições dos depoimentos que obtive nos arquivos policiais. Eu tinha de saber as opiniões das pessoas quanto ao que Alain Evril pensava e sentia. Também tinha que saber certos fatos que tinham sido involuntariamente omitidos da polícia. Com base nesse material tão valioso, eu tive condições de concluir uma coisa. Eu concluí que Alain Evril era asmático.

“A asma é uma doença que se caracteriza por uma maior sensibilidade do sistema respiratório. Isso explica porque ele ‘queria a casa sempre arejada e limpa e, ao limpá-la, a empregada precisava usar panos úmidos em vez de vassouras’. Isso também explica porque ele tinha tanta aversão a tapetes. Cerca de 80% das pessoas com asma sofrem crises quando expostas a alguma substância transportada pelo ar, como ácaros e poeira, pólen, poluição, mofo, pelos de animais, fumaça de cigarro e partículas de insetos. Percebem por que ele mantinha fechadas as janelas durante a maior parte do tempo? Ou por que ele mandava lavar roupas, cortinas e lençóis de cama com tanta frequência? Percebem? Para evitar o acúmulo de poeira e de outras substâncias. Percebem por que ele relutou em ir ao piquenique naquela tarde? Era primavera. Primavera, a época de maior polinização. A época em que as pessoas mais afetadas com alergia ao pólen devem evitar fazer atividades ao ar livre. Lembro-me que, em seu depoimento, um de vocês afirmou que o piquenique foi feito debaixo de um ipê, justamente um dos principais vilões para a asma. Outra coisa. Mais tarde, uma alteração de estado de espírito muito estranha pareceu ter tomado posse de Alain Evril. Ele estava agoniado, estava seriamente preocupado, quieto, e por isso foi direto para o quarto.

Jules Evril exclamou:

— Alain... asmático? Asmático? Ora... Por que eu nunca soube de nada?

— Não soube, Monsieur Evril, porque a maioria das pessoas com asma fica longos períodos sem sintomas, intervalados com as crises quando expostos a algum agente. Só algumas pessoas têm a deficiência respiratória quase que cronicamente, com alguns episódios mais graves em determinados períodos. Quer ver como o que eu estou dizendo é verdade? Os sintomas da asma incluem respiração ofegante. Lábios e rosto de cor azulada. Nível diminuído de agilidade, com sonolência grave ou confusão. Não foram exatamente esses os sintomas apresentados por seu irmão naquela noite?

“Para conviver com as crises, a pessoa geralmente ministra a medicação por meio de inaladores — o mais comum é o nebulímetro, a popular bombinha de asma.”

— Está sugerindo que o assassino pôs o cianeto — perguntou Claude Fichée — na bombinha de asma?

— Não. O cianeto, de acordo com a autópsia, estava concentrado no estômago... não nos pulmões. Misturado aos bombons de cereja? Não, porque mais pessoas comeram dos bombons. No vinho de gengibre? Nas torradas? Também não, já que a morte ocorreu de madrugada, horas depois, portanto, de sua ingestão.

“A justificativa de alguns de vocês talvez seja: “Eu não tinha motivos para assassinar Alain Evril.” Vale lembrar, porém: o assassino tinha um motivo. Um motivo intrinsicamente associado ao carro-chefe de todo o drama: este mapa. Vamos, portanto, dar ao mapa um capítulo à parte.”


Mais explicações

 

— Mais propriamente a: por que Alain Evril entregou o mapa para Monsieur Rastignac?

Fëll fez uma pausa. Depois, com um sorriso que ergueu um dos cantos da boca ávida, acrescentou:

— Tendo analisado todos os elementos, e ouvido todas as testemunhas, fica claro que o motor do crime foi o fato de Alain Evril saber de uma coisa que poderia constranger o assassino. No momento anterior ao crime, houve o que podemos chamar de “intimidação”. A pressão acumulada fez o resto, desencadeando um furacão emocional que anulou os processos inibitórios, obscureceu a consciência e precipitou o crime. Sob o ponto de vista humano, a situação evoluiu de forma extremamente rápida e chocante. A questão é: Quem esteve com Alain Evril naquela madrugada? Quem discutiu violentamente com ele?

— Discutiu com ele? Mas, homem, se alguém tivesse discutido com Alain, nós teríamos ouvido.

— Não, general, não teriam ouvido. Chovia. E trovejava. E, não preciso lembrá-los disso, as paredes dos quartos são grossas.

— O que o senhor está dizendo? — perguntou Jules. — Eu não entendo...

— Estou dizendo que alguém discutiu com Alain Evril naquela noite — continuou Fëll, em tom pensativo. — Alguém que o deixou pálido de ódio. Conforme prometido, vamos recorrer novamente ao mapa. Pode me dar uma ajuda, Madame Lafayette? — Fëll apontou para o canto inferior esquerdo do papel. — Madame pode ler o que está escrito aqui?

Sabine Lafayette soletrou lentamente:

— Minister R.

— Ouviram? Minister R. É uma anotação enigmática, não é? De início, não fiz a menor ideia do que pudesse significar. Mas, com paciência, procedendo de maneira sistemática e científica, coletando todas as informações que consegui encontrar, cheguei a um nome: Ministro Neville Rodinsky. A pergunta óbvia foi: por que o nome do Ministro Neville Rodinsky teria sido grafado no rodapé de um mapa cartográfico de Paris? Para saber isso, tive que fazer uma pesquisa radical e em profundidade sobre a vida e, mais especificamente, sobre a morte, do mencionado ministro. E o que descobri foi muito esclarecedor. Descobri que o Ministro Rodinsky havia morrido em agosto do mesmo ano da morte de Alain Evril, e justo no local demarcado com este x.

“Acompanhem comigo o que aconteceu naquele dia, a partir das 4h30 da tarde. Partindo da Torre Eiffel, o Ministro e a esposa começaram um tour pela cidade. Em trote lento, o cavalo atravessou a Place Vendome, a Place de la Concorde, os Invalides. Mas, assim que chegou à rue du Faubourg Saint-Honore, dois tiros abateram o iminente político. (Uma morte muito semelhante a do príncipe herdeiro da Áustria, o Arquiduque Francisco Ferdinando. A diferença é que aqui o assassino não atirou misturado à multidão.) Os pedestres examinaram o interior da carruagem e, após ver o sangue empoçado e o cadáver no banco, chamaram a polícia. Esta, ao chegar, isolou a área e começou a procurar pistas do assassino ou dos assassinos. Com muito cuidado, a equipe de criminalística examinou a área ao redor da carruagem e, depois, quando ela foi levada à garagem da polícia, vistoriou-a em busca de fibras, fios de cabelo e quaisquer outras partículas capazes de informar alguma coisa sobre o misterioso terceiro passageiro. Mas nada foi encontrado. Toda essa série de eventos foi amplamente divulgada pelos jornais da época. No relato, duas coisas são essenciais. Primeiro, fontes afirmaram que o tour havia sido organizado e bancado pela viúva do finado ministro que, um mês após o crime, simplesmente sumiu da esfera pública, sem atualizar o endereço de seu novo paradeiro. Segundo, a carruagem tinha capacidade para levar até 4 passageiros, assim havia um terceiro passageiro a bordo. Esse terceiro passageiro, de acordo com o depoimento do inspetor Bassel e a transcrição do boletim de ocorrência descrevendo os eventos do dia, era o assassino que, para cometer o crime, levava uma gaiola de canários com uma pistola em um fundo falso.

— Pelo visto — disse Jules —, o senhor está sugerindo que, de alguma maneira, meu irmão descobriu e se apropriou da guia do plano referente ao atentado contra esse tal... Rodinsky.

— Sim, é isso o que estou sugerindo.

— Então, a verdade é que...

— Alain Evril causou o seu próprio assassinato — disse Fëll.

— Ora essa — comentou Fernan Rastignac. — Pelo que o senhor diz, Alain sabia quem era o dono do mapa.

— Sabia, sim.

— Mas por que, então, ele não desmascarou a pessoa por nome?

— Muito simples. Ele não desmascarou a pessoa por nome porque a sua intenção, ao fazer o anúncio na noite do baile, era só dar um gelo nela, por assim dizer. Foi um passo em falso. Há gente que planeja matar alguém, mas, na última hora, desiste. Mas há gente que vai em frente, apesar dos alertas da consciência. Quando todos foram dormir naquela noite, e as luzes se apagaram, o assassino só teve que atravessar alguns metros de um corredor às escuras para calar Alain Evril de uma vez por todas.

— Sem que alguém visse, ouvisse ou percebesse?

— Sem que alguém visse, ouvisse ou percebesse.

— E o senhor acredita que uma dessas pessoas, essa gente boa e comum que são os meus amigos, esgueirou-se até o quarto de meu irmão e, sei lá como, o envenenou? Mas, por quê! Pelo amor de Deus, por quê?

— Tenho a impressão de que Monsieur deve saber a resposta a essa pergunta, Monsieur Evril.

— Mas eu não sei. Garanto, detetive, que não sei.

— O seu falecido irmão tinha lá o seu temperamento. Suponha agora que ele tenha entrado em confronto com um outro, cujo temperamento fosse pior do que o seu? As consequências iam ser trágicas, não iam?

A essa altura, o suspense já estava cimentado. Depois de um minuto de reflexão, o Gen. Tullet inclinou-se para a frente.

— Quem é a testemunha ocular da morte de Alain Evril?

— Entschuldigung? — disse Fëll.

— O senhor disse...

— Eu disse? Quando?

— Ontem à noite — Georges Souchet apoiou o general. — Eu também ouvi.

— Eu também.

— Todos nós ouvimos.

— Acho que deve haver algum engano — disse Fëll. — Quando eu falei aquilo, eu estava querendo dizer outra coisa.

— Ora, francamente, Herr Fëll! Quer dizer que não existe testemunha ocular nenhuma... nada?

— Existe, existe sim! — exclamou Fëll. Fëll virou-se para a porta e, empostando a voz, chamou: — Pode entrar, Madame.

O farfalhar de seda e uma nuvem de perfume adocicado invadiu o ambiente quando uma mulher idosa entrou. Os olhos escuros e miúdos eram levemente vesgos.

— Quem é ela? — perguntou Sabine Lafayette.

— Ela é a testemunha ocular da qual falei. A viúva do Ministro Rodinsky. E, por sinal, a atual esposa de Monsieur Jacques Hurwitz.


Detalhes do crime

 

Por uns segundos, um pesado silêncio cobriu todo o recinto, um silêncio rígido e estoico. Lá fora o Sol brilhava no céu límpido; era mais um dos célebres dias de verão de Paris. Aquilo tudo parecia um pesadelo um tanto obscuro e materialmente inacessível às mentes comuns. Depois, vozes.

Jacques Hurwitz balançou a cabeça e fechou os olhos.

— Podem sair alguns minutos, por favor?

Ele ficou sentado imóvel até que a porta se fechou atrás deles. Então deu um pulo da cadeira, como se estivesse sentado em cima de pregos pontudos.

— Lucille! Oh, Lucille! O que está fazendo aqui?

— Recebi um telefonema... — ela apontou discretamente na direção do austríaco. — Ele disse... sabe o que nós fizemos, Jac. Oh! Eu sinto tanto.

Jacques lançou um olhar de recriminação a Fëll.

— Eu não fazia ideia — murmurou. — Devia ter me avisado. — Sentou-se, de lábios cerrados. — Não compreendo — objetou — por que Lucille está aqui. Nada disso tem a ver com ela.

— Tem, tem sim — afirmou Fëll, com toda delicadeza. Ele se lembrava do rosto enrugado da velha senhora parada atrás do postigo, em Marrocos. E de seu olhar ao trazer o carrinho com as guloseimas. Um olhar curioso, amedrontado, mas também muito impressionante. — Ela e o senhor conspiraram para assassinar o marido dela.

— Não, não. O senhor está equivocado. Lucille não fez nada. Que diabos, ela é minha esposa.

— Bem por isso — observou Fëll secamente.

O contador teve um sobressalto.

— Como o senhor se atreve?! — seus olhos pareciam que iam saltar das órbitas. — Ela não tem nada a ver com o crime.

— Não, não. Não há dúvida de que ela esteve metida nisso. No segundo crime, quero dizer.

— Que segundo crime?

— A morte do marido, já disse. Sabe que nome consta na última página desta caderneta, Monsieur Hurwitz? — perguntou Fëll.

— Não sei não.

— O seu!

Jacques Hurwitz estremeceu. Perplexo, se deu conta de que o olhar do detetive convergia para ele.

— O meu?

— Sim, Monsieur, o seu! Está tudo aqui, todos os detalhes sobre os seus dois assassinatos. Calma, Monsieur controle a sua ansiedade. Deixe que eu chego lá. Está tudo aí: os fatos reais sobre o assassinato do Ministro, o que acabou deixando Lady Lucille Rodinsky livre do jugo de um marido violento e opressivo e, principalmente, livre para se casar outra vez.

— Mas o senhor... o senhor não tem nada contra mim.

O austríaco encheu o peito.

— Tenho tudo contra Monsieur. Eu mesmo examinei as evidências. Eu tenho, veja, o depoimento do Ten. Tullet. Ele afirmou ter falado com Alain Evril naquela última noite e que se sentiu insultado quando, a certa altura, Alain Evril acusou a ele, o tenente, de ter formulado um plano de assassinato. “Veja a letra... a sua letra”, teria dito ele. Mas esse relato contém um detalhe muito valioso. Não era só o Ten. Tullet que estava lá naquela hora. Monsieur também estava. Foi para Monsieur que o seu primo se arriscou a dizer aquelas palavras ambíguas, pois talvez não tivesse outra chance. Além disso, eu tenho o depoimento de Jules Evril que disse que cianeto de potássio tinha sumido do escritório do irmão. Não adianta negar, Monsieur Hurwitz. Eu sei o que aconteceu. Eu sei. Veja você que, finalmente, encontrei o que procurava desde o início. Tenho aqui, entre o meu polegar e o indicador, outra prova. Eu vou ler... Em seu depoimento, Monsieur disse: “A única coisa que posso dizer é que vi Alain descer para o térreo às quatro horas da madrugada.” Sabe o ponto interessante? Monsieur foi o único que fez alusão a esse episódio. O único. Isso, fora o resto, já seria muito suspeito.

— Não, o senhor vai ter que me ouvir. Eu...

— Jac — interveio a ex-Madame Rodinsky, as pálpebras vermelhas. — Jac querido, nada disso. Não, não. Já chega. Eu insisto. Pare! Não estou brincando. Pare de uma vez. Eu lhe peço. Conte a verdade. Conte...

Jacques olhou para ela. Suspirou.

— Creio que tem razão — disse. — O que o senhor quer saber?

— Quero saber por que matou Alain Evril. Eu já expus os meios, passemos aos motivos.

— Alain era um babaca arrogante e presunçoso.

— Julga que ele era um babaca?

— Não julgo, afirmo. Um cara de gostos bizarros, sim senhor. Ele sabia que eu estava apaixonado por uma mulher mais velha do que eu, sim, uma mulher casada, sim, mas uma mulher casada com um cretino, um cretino que a tratava como um bicho. Meu erro foi ter deixado este mapa, este maldito mapa, sobre o criado-mudo, à mostra de todos. Alain entrou, o viu e o surrupiou. Não por maldade ou por despeito... não, nada disso. Por diversão. Pelo prazer de tirar um sarro da minha cara. Os rabiscos, as setas... não foi difícil para ele adivinhar o que significavam. Até aí, tudo bem. A coisa passou da conta na noite do baile. O senhor entende o que aquilo fez comigo? Um dia em que estávamos a sós, Alain me pressionou, dizendo para esquecer Lucille. “Essa mulher ainda vai desgraçar sua vida”, foi bem isso o que ele disse. Justo ele — ele que parecia um bezerro apaixonado, seduzido pelos encantos de Laiane Hambour, a virgem. A virgem — era dessa forma que a chamávamos. Possivelmente fosse tolo. Possivelmente estava louco. Provavelmente ambas as coisas.

“Naquela noite, fui para o meu quarto, mas não me deitei. Pelo contrário, esperei até o momento em que eu achava que todos estavam dormindo, e, silenciosamente, voltei para o quarto dele. É claro que, por causa de sua crise de asma, que o senhor parece ter descrito tão bem, Alain também estava acordado. E bêbado. Ele tentou me intimidar. Sim, discutimos.”

— A propósito de quê?

— M... m... muitas coisas. Começou com Lucille. Alain estava de marcação comigo e queria que eu rompesse com ela, que jurasse que iria romper com ela. Eu disse que ela era uma mulher muito boa e que a amava. Então ele começou a berrar comigo, o que eu achei o cúmulo, e disse-lhe tudo o que achava dele. Dissemos coisas horrorosas... nós dois. Depois foi mais além do que tinha direito, e falou que, se eu não reconsiderasse, iria entrar em contato com o ministro. Meu Deus! Fiquei transtornado, e o peguei pela cola. Isto fez com que ele se calasse. Alain tinha um pouco de medo de mim, quando me via naquele estado. Ele esticou a mão na direção do frasco de comprimidos. Mas eu fui mais rápido. Tirei o frasco dele e, no lugar do comprimido, dei-lhe uma das pastilhas de cianeto que tinha pegado em seu escritório.

— Monsieur Hurwitz — disse Fëll —, pedir a alguém para fazer uma coisa, uma coisa que a pessoa não quer fazer, é uma operação delicada. Requer astúcia. Monsieur foi habilidoso. Muito habilidoso. Como fez para que Alain Evril engolisse a pastilha de cianeto?

— Nada. Ele estava tão bêbado, tão alto, que engoliu, engoliu sem desconfiar de nada.

Subitamente Jacques se descontrolou. Afundou na cadeira soluçando, o rosto enterrado nas mãos.

— Eu estava louco — gemeu — eu estava louco. Mas, oh meu Deus, ele me insultou e me humilhou além dos limites. Eu o detestei, eu o odiei. Ele parou na minha frente... meio atrapalhado... Acho que ali, naquela hora, Alain desconfiou de mim... do que eu tinha feito. Notei que ele ficou abalado. Tão abalado que foi se arrastando em direção à porta, e tive que ajudá-lo. Ele se apoiou em mim para descer as escadas. Ofegava. Chegamos à porta do ateliê. Ainda ajudando Alain, entramos. Ele parecia muito mal, pálido e frágil, de olhos fechados. “Jacques... Jacques” disse, quase sem voz. Ele deu uns passos adiante e sentou-se. “Jacques” repetiu. Olhando para ele, vendo seus olhos ligeiramente anuviados, pensei em nossa mórbida briga. Ele se mexia, cambaleando... cambaleando... uma expressão de horror no rosto. Eu fiquei lá, vendo, vendo-o morrer. Nunca me senti tão vivo, tão exultante, tão poderoso. Eu assisti à morte dele... Depois, sem ninguém perceber, voltei lá para cima... Com um lenço de seda enrolado na mão, limpei o frasco cuidadosamente. Não podia deixar impressões digitais em lugar nenhum. Só então voltei para o meu quarto e fechei silenciosamente a porta.

— Ou seja — disse Fëll —, houve um motivo para o crime, houve uma oportunidade e, o mais importante, houve os meios. A minha pergunta é: como fez para ser admitido no coche do ministro, Monsieur Hurwitz?

— Ah, precisei inventar que era vendedor e negociante de pássaros. Sim — disse Jacques Hurwitz, impassível. — Eu sou responsável pela morte do crápula. Mas o senhor está focando a atenção em um fato, um fato isolado. Devia focar em Lucille. Lucille — um ser humano mergulhado em uma terrível tragédia pessoal. Lucille sofreu nas garras dele, sofreu como uma condenada. Ele era um demônio! A coisa ficou além de qualquer controle. Não há tensão maior do que a que ela suportou durante anos, não há ressentimento maior do que aquele que vai se acumulando... lentamente. Mas chega um dia em que a tensão atinge o limite. Alguma coisa se rompe! Foi o que aconteceu naquela tarde. Sim, eu planejei tudo... eu fiz os disparos.

— Depois, o senhor casou-se com a viúva e com o dinheiro dela compraram a casa no Marrocos e foram para lá.

Lucille Hurwitz balançou a cabeça.

— Bem, o que vai acontecer comigo?

— Diga-me uma coisa, Madame. — Fëll se calou. — Não lhe ocorreu que seria errado matar seu marido?

— Não foi errado. Nunca questionei isso, nunca. Ele merecia morrer. Ele... não iria mudar. Nunca iria mudar. Considero minha ação justificada. E, antes que o senhor pergunte, a resposta é sim: eu o mataria de novo. Fala-se muito em violência doméstica e em crimes contra as mulheres. Muito blablablá e muitos discursos nobres, mas essas coisas continuam acontecendo.

— Poderia ter feito uma queixa.

— É justamente isso que estou tentando dizer. Se eu fizesse uma queixa, o que aconteceria? Alguns meses de prisão, e depois? Uma fiança? Um ano de reclusão? Dois? Ia ser pouco em comparação ao que ele fazia comigo!

— Não achou que, cedo ou tarde, acabaria sendo descoberta?

— Não sei. Não pensei nisso. Mas, no dia em que o senhor apareceu lá em casa, eu fiquei curiosa. Como o senhor me relacionou ao caso?

— Lendo as transcrições, notei várias coisas — disse Fëll. — Dentre elas, li que, de acordo com os boatos que andavam circulando, Monsieur Hurwitz estava se relacionando afetivamente com uma mulher residente na Rue de la Harpe. Era lá que Madame morava, não morava? Houve também uma fotografia. No artigo de jornal sobre o assassinato de seu ex-marido. Reconheci Madame, com o perdão da palavra, pelo seu pequeno problema de visão.

— Eu vou ser presa?

— Essa não é a minha função. A polícia assume a partir daqui.

— O que o senhor espera que a gente faça? — perguntou Jacques. — Confesse para a polícia? Vá esquecendo! Lucille e eu não vamos admitir nada. Se for assim que quer nos pegar, vai ter que fazer melhor do que isso. Quem é que vai acreditar nessa história?

— Talvez a história não satisfaça a todos — disse Fëll. — Mas não retoquei os fatos, não os distorci e nem os alterei de nenhuma forma. Foi o que aconteceu e como aconteceu.

— Está nos ameaçando?

— Não. Estou apenas tentando fazê-lo ver a precariedade de sua situação.

— E agora, Herr Fëll, quero saber o que o senhor vai fazer.

— Ir a Paris, ver o Inspetor Bassel. Vou expor minha conclusão às pessoas necessárias.

— E depois?

— Depois — disse Fëll —, veremos.

Foram até a porta. Jacques disse:

— Faça como quiser...

Jacques abriu a porta e os dois saíram. Seus passos foram morrendo do lado de fora.

 

 

II

 

Madame Lafayette soluçava. Fëll, desajeitadamente, dava-lhe tapinhas no joelho, para acalmá-la.

— Espero que me perdoe, Madame, por não informá-la do rumo tomado pela investigação.

— Oh! Estou grata, tão grata, Herr Fëll — dizia ela. — O que o senhor fez foi... foi... não tenho palavras... foi maravilhoso!

Jules sacudiu a cabeça, com irritação.

— Jacques. Jacques. Que desgraçado! Mentiu para nós todo esse tempo — durante todos esses anos? É difícil acreditar que ele tenha tido — como é mesmo que se diz? — estômago para matar o próprio primo.

— Pelo contrário — disse Fëll. — Pegue um sujeito fraco, jovem e apaixonado e, de uma hora para outra, ele se transforma num valentão.

— Bem, isso é verdade.

— Monsieur Hurwitz ficou cheio de coragem. Foi lá e disse para Monsieur Evril tudo o que achava dele. Ambos se insultaram e como Monsieur Evril se mostrasse irredutível, Monsieur Hurwitz fez o que tinha ido fazer.

Com a voz mais tranquila, Sabine resumiu o sentimento geral.

— Da maneira como as coisas correram, agradeço ao senhor, Herr Fëll, pois foi o único que, no auge do mistério, conseguiu perceber a ligação entre os fatos.

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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