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Series & Trilogias Literarias
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MONTANHAS ACIDENTADAS
FOI UMA AVENTURA principalmente para Svetlana, mas na verdade para os três, já que nenhum dos Zaitzev havia jamais tomado um trem para fora de Moscou. Os pátios de manobra na saída da cidade eram comuns: quilômetros de trilhos paralelos, convergentes e divergentes, repletos de vagões-plataforma e vagões de carga, carregando não-se-sabe-o-quê para não-se-sabe-onde. A irregularidade dos trilhos só aumentava a sensação de velocidade. Oleg e Irina acenderam cigarros e observaram com interesse superficial através das janelas amplas, porém encardidas. Os assentos não eram ruins, e Oleg podia ver como as camas desciam da parte superior.
Eles dispunham de duas cabines, ligadas por uma porta interna. O revestimento era de madeira — bétula, pela aparência —, e cada cabine possuía um lavabo próprio; a zaichik teria um exclusivo pela primeira vez na vida, uma novidade que ela ainda ia descobrir.
Cinco minutos depois de deixarem a estação, o condutor apareceu para verificar os bilhetes, que Zaitzev entregou prontamente.
— O senhor é da Segurança do Estado? — perguntou o condutor, educadamente.
Quer dizer que o escritório de viagens da KGB ligou antes para avisar? Gentil da parte deles, pensou Zaitzev. Aquele burocrata devia querer muito as meias-calças para a esposa.
— Não tenho autorização para falar disso, camarada — respondeu Oleg Ivanovich, com um olhar austero, para garantir que o funcionário respeitasse sua posição. Era uma maneira de garantir que prestasse um serviço adequado. Um oficial da KGB não se comparava a um membro do Politburo, mas era muito mais do que um mero gerente de fábrica. Embora não tivessem pavor da KGB, as pessoas não queriam chamar sua atenção de maneira negativa.
— Naturalmente, camarada. Se precisar de algo, me chame. O jantar é servido às dezoito horas, e o vagão-restaurante é o segundo naquela direção.
Ele apontou o caminho.
— Como é a comida aqui? — perguntou Irina.
Ser esposa de um oficial da KGB também garantia suas vantagens...
— Não é ruim, camarada — respondeu o condutor educadamente. — Eu também como lá — acrescentou, o que, tanto para Oleg quanto para Irina, dizia algo.
— Obrigada, camarada.
— Aproveitem a viagem conosco — disse ele, antes de partir.
Oleg e Irina pegaram seus livros. Svetlana apertou a carinha contra o vidro para ver o mundo passar e, assim, a viagem começou, com apenas um deles sabendo qual era o destino final. A Rússia Ocidental era, em sua maior parte, uma região de planícies acidentadas e horizontes distantes, parecida com o Kansas e o leste do Colorado. Era entediante para todos, menos para a zaichik, que achava tudo novo e emocionante, principalmente as vacas, que só faziam mastigar grama. As vacas são bem legais, pensou ela.
EM MOSCOU, NIGEL HAYDOCK, ao lado de Paul Matthews, agradeceu ao burocrata do Ministério dos Transportes pela valorosa ajuda. Eles foram até a embaixada britânica, que tinha um laboratório fotográfico, para onde o fotógrafo seguiu assim que chegaram.
Matthews acompanhou Nigel ao escritório.
— Então, Paul, rende matéria interessante?
— Creio que possa render. É importante sair alguma coisa?
— Bem, é benéfico para mim que os soviéticos pensem que eu posso trazer atenção para as glórias de seu país — explicou Haydock, dando um risinho.
Você é do "Seis", não é?, pensou Matthews, sem revelar a suspeita.
— Acho que consigo publicar alguma coisa. Só Deus sabe como a rede ferroviária britânica precisa de recursos. Talvez isso encoraje o tesouro a liberar mais verbas.
— Não é uma má ideia — concordou Nigel.
Estava claro que seu convidado alimentava suspeitas, mas fazia a gentileza de mantê-las em segredo, talvez até Nigel voltar a ocupar uma mesa na Century House, quando os dois poderiam se encontrar em um pub da Fleet Street.
— Quer ver nossas fotos?
— Importa-se?
— De forma alguma. Como sabe, jogamos a maioria fora.
— Ótimo — disse Haydock. Ele pegou algo coisa no pequeno aparador atrás da mesa. — Aceita um drinque, Paul?
— Obrigado, Nigel. Sim, um xerez cairia bem.
Depois de duas doses, o fotógrafo apareceu com uma pasta cheia de fotos. Haydock pegou-a e folheou o conteúdo.
— Seu trabalho é excelente. Sabe, quando uso minha Nikon, nunca consigo acertar a luz...
Lá estava: uma bela foto de família com o Coelho. E, mais importante, com a Sra. Coelho. Havia mais duas, uma melhor que a outra. Enfiou as fotos na gaveta e devolveu a pasta. Matthews captou a deixa.
— Bem, preciso voltar ao escritório para escrever essa matéria. Obrigado pela dica, Nigel.
— O prazer foi meu, Paul. Consegue achar a saída?
— Sem problema, amigo.
Depois que Matthews e o fotógrafo haviam desaparecido no corredor, Nigel voltou sua atenção para as fotos. A Sra. Coelho era uma russa típica, com um rosto redondo de traços eslavos. Devia ter um milhão de compatriotas idênticas na União Soviética. Precisava perder alguns quilos e passar por uma geral no Ocidente... se chegarem lá, ponderou. Altura: cerca de l,63m. Peso: 64kg. Nada de anormal. A criança, podia notar, era uma gracinha, com olhos azuis cheios de vida e feições alegres. Era muito jovem para aprender a esconder as emoções atrás de uma máscara sem expressão, como faziam quase todos os adultos do país. Não, as crianças eram iguais em qualquer lugar, com sua inocência e curiosidade insaciável. O que mais importava, porém, era que agora tinham fotos nítidas da família Coelho.
O mensageiro estava no andar superior, perto do escritório do embaixador, Sir John Kenny. Haydock entregou-lhe um envelope fechado com um colchete, cola e cera sobre a aba. O endereço indicava a caixa do Foreign Office que seguia direto para a Century House, do outro lado do Tâmisa em relação a Whitehall1. O mensageiro carregava uma cara pasta de executivo com o brasão de armas da Casa de Windsor gravado nos dois lados. Também havia um par de algemas, para que prendesse a maleta ao pulso, apesar das garantias estritas da Convenção de Viena. Um carro aguardava para levar o mensageiro da rainha ao aeroporto internacional Sheremetyevo, onde pegaria um 737 da British Airways à tarde, de volta até Heathrow. Sir Basil estaria de posse das fotos antes de ir embora e, seguramente, alguns especialistas da Century House trabalhariam até mais tarde para analisá-las. Seria a última checagem oficial da autenticidade do Coelho. Seu rosto seria comparado aos de agentes de campo e segurança da KGB. Se houvesse uma confirmação, Ed e Mary Foley estariam enrascados. Mas Haydock não acreditava nessa hipótese. Ele concordava com os colegas da CIA: aquele sujeito parecia ser "quente". Contudo, bons agentes da Segunda Diretoria também pareciam, não? Sua última parada do dia foi na sala de comunicações, para enviar breve nota ao quartel-general do SIS, avisando que uma mensagem importante sobre a Operação BEATRIX estava a caminho por mensageiro. Aquilo deixaria todos ansiosos: um homem do SIS esperaria pelo envelope na sala de correspondência de Whitehall. Por mais lenta que uma burocracia estatal pudesse ser, quando havia algo importante a fazer as coisas costumavam andar depressa, pelo menos no SIS.
O VOO LEVOU DUAS HORAS e vinte minutos até chegar ao terminal 3 de Heathrow.
O atraso tinha sido provocado por ventos desfavoráveis. Um enviado do Foreign Office conduziu o entregador ao centro de Londres a bordo de um Jaguar preto; o mensageiro da rainha completou a entrega e seguiu para sua própria repartição. Antes mesmo de chegar lá, um oficial do SIS já havia coletado e transportado o pacote, atravessando a Westminster Bridge, por cima do Tâmisa.
— Está com você? — perguntou Sir Basil?
— Sim, senhor.
O mensageiro entregou o envelope. Charleston verificou os lacres e, satisfeito por não haver sinal de violação, abriu-o com uma faca de papel. Então, pela primeira vez, viu a aparência do Coelho. Três minutos depois, Alan Kingshot entrou na sala. C passou-lhe as fotos coloridas.
Kingshot pegou a primeira cópia e observou-a demoradamente.
— Então este é o nosso Coelho?
— Correto, Alan — confirmou Sir Basil.
— Parece uma pessoa comum. A mulher também. Mas a menina é muito bonitinha — avaliou o agente de campo. — Estão a caminho de Budapeste?
— Saíram da estação Kiev há cinco horas e meia.
— Trabalho ágil do Nigel. — Kingshot olhou os rostos mais de perto, imaginando que informações estariam guardadas na cabeça daquele homem e se eles conseguiriam fazer uso delas. — Então, BEATRIX continua. Já temos os corpos?
— O homem de York serve. Só temo que precisemos queimar o rosto dele — informou C, demonstrando aversão.
— Não me surpreende, senhor — disse Kingshot. — E quanto aos outros dois?
— Temos dois candidatos nos Estados Unidos. Mãe e filha mortas em incêndio doméstico, em Boston, se não me engano. O FBI está trabalhando no caso neste momento. Precisamos enviar estas fotos agora mesmo para garantir que os corpos sejam compatíveis.
— Posso cuidar disso, se quiser.
— Sim, Alan, faça isso, por favor.
A máquina no andar de baixo transmitia fotos coloridas como as das redações de jornais. Segundo o operador, era relativamente nova e muito fácil de usar. Ele olhou apenas superficialmente para a foto. A transmissão para um aparelho idêntico feito pela Xerox, localizado em Langley, levou menos de dois minutos. Kingshot recolheu a foto e voltou ao escritório de C.
— Está feito, senhor.
Sir Basil fez um sinal para que se sentasse. Ele verificou a hora e calculou que demoraria cinco minutos, pois o quartel-general da CIA era grande, e o pessoal das comunicações ficava no subsolo. Depois disso, ligou para o juiz Arthur Moore pela linha segura exclusiva.
— Boa tarde, Basil — disse Moore através do circuito digital.
— Olá, Arthur. Recebeu a foto?
— Acabou de chegar. Parece uma família simpática — comentou o DCI. — Foi tirada na estação de trem?
— Sim, Arthur, eles estão a caminho neste momento. Chegarão a Budapeste em aproximadamente vinte e duas... não, vinte e uma horas.
— Ótimo. Tudo certo do seu lado, Basil?
— Estará em breve. Há esse problema das pobres coitadas de Boston, porém. Já temos o corpo masculino. Pela primeira inspeção, parece que servirá bem aos nossos propósitos.
— Certo, vou pedir ao FBI que agilize as coisas por aqui — respondeu Moore. Precisava enviar a foto ao edifício Hoover o mais rápido possível. Talvez eu tenha de compartilhar esse assunto macabro com Emil, pensou.
— Muito bom, Arthur. Tentarei mantê-lo informado de tudo.
— Perfeito, Bas. Até mais tarde.
— Excelente. — Charleston desligou o telefone e dirigiu-se a Kingshot: — Mande nosso pessoal preparar o corpo para a transferência a Budapeste.
— Quando será isso, senhor?
— Acredito que em três dias — disse Sir Basil.
— Certo.
Kingshot deixou a sala. C pensou por um instante e concluiu que era hora de avisar ao americano. Pressionou outro botão no telefone. Ryan precisou de apenas um minuto e meio.
— Sim, sir? — disse, assim que entrou no escritório.
— Sua viagem a Budapeste acontecerá em três dias... talvez quatro, mas provavelmente três.
— De onde vou partir?
— Há um voo de manhã da British Airways saindo de Heathrow. Pode ir daqui ou pegar um táxi na Victoria Station. Será acompanhado por um dos nossos no avião. Andy Hudson o receberá em Budapeste. É nosso chefe local. Bom homem. Comanda uma operação pequena, mas muito boa.
— Sim, senhor — disse Ryan. Ele estava sem palavras diante da iminência de sua primeira missão de campo como espião. Mas era hora de fazer uma pergunta: — O que exatamente vai acontecer lá, senhor?
— Ainda não sei ao certo, mas Andy tem bons contatos com contrabandistas locais. Creio que vai combinar uma travessia para a Iugoslávia; de lá, a viagem continuaria em voo comercial.
Ótimo. Mais viagens de avião, pensou Ryan. Não podemos pegar um trem? Contudo, ex-fuzileiros não podiam demonstrar medo.
— Certo, parece uma boa ideia.
— Você pode conversar com o Coelho. Discretamente — alertou Charleston. — Depois, terá permissão para acompanhar nosso interrogatório inicial em Somerset. Vencida essa etapa, creio que você será um dos homens que o levarão aos Estados Unidos, provavelmente em avião da Força Aérea dos Estados Unidos, partindo da base de Bentwaters.
Está ficando cada vez melhor, pensou Jack. Teria que superar a aversão a voar e, racionalmente, até sabia que, mais cedo ou mais tarde, conseguiria. O problema é que não havia acontecido ainda. Bem, pelo menos não teria de ir a lugar algum a bordo de um CH-46 com problemas na transmissão. Aquele seria o limite.
— Qual o tempo total em que ficarei fora de casa?
E dormindo longe da minha mulher, completou Ryan, em pensamento.
— Quatro dias. Mas talvez chegue a sete. Tudo depende de como as coisas sairão em Budapeste — respondeu C. — É difícil prever.
NENHUM DELES SABIA como era comer a quase cem quilômetros por hora. Para a garotinha, a aventura só melhorava. O jantar estava razoável. A carne era condizente com o padrão soviético; portanto, não havia razão para decepções. Os acompanhamentos incluíam batatas, verduras e, naturalmente, uma garrafa de vodca — de uma das melhores marcas, para reduzir o sofrimento da viagem. Rumavam na direção do pôr-do-sol, passando por terras usadas exclusivamente na agricultura. Irina se debruçou sobre a mesa para cortar a carne da zaichik, apreciando seu pequeno anjo comendo o jantar, como a menina crescida que ela garantia ser. Tudo com um copo de leite gelado.
— Está animada com a viagem agora? — perguntou Oleg à esposa.
— Sim, principalmente com as compras.
Claro.
Uma parte de Oleg estava calma. Na verdade, não se sentia tão calmo há semanas.
Estava acontecendo de verdade. Sua traição — como uma porção da sua consciência via aquilo — estava em andamento. Quantos de seus compatriotas, ou mesmo quantos de seus colegas no Centro, aproveitariam a chance se tivessem coragem para tanto? Não havia como saber. Vivia em um país e trabalhava em um órgão em que todos escondiam seus pensamentos. E, na KGB, até o costume russo de consagrar amizades mais íntimas contando coisas que poderiam levá-lo à prisão, acreditar que um amigo de verdade nunca o denunciaria... não, um oficial da KGB não fazia esse tipo de coisa. A KGB se sustentava no equilíbrio dicotômico entre lealdade e traição. Lealdade ao Estado e seus princípios; traição de qualquer um que os violasse. No entanto, como não acreditava mais naqueles princípios, ele havia recorrido à traição para salvar sua alma.
E agora a traição estava em pleno andamento. Se a Segunda Diretoria soubesse de seus planos, teria ensandecido ao permitir que entrasse naquele trem. Ele poderia descer em qualquer estação intermediária — ou simplesmente pular do vagão quando a composição desacelerasse ao se aproximar de uma parada prevista — e fugir para os braços do Ocidente, à sua espera em qualquer lugar. Não, estava seguro, ao menos enquanto permanecesse naquele trem. Podia ficar calmo por algum tempo. Deixaria os dias passarem para ver o que aconteceria. Insistia consigo mesmo que havia tomado a decisão certa, e, disso vinha sua sensação, mesmo que ilusória, de segurança pessoal, Se houvesse um Deus, Ele certamente protegeria um homem fugindo do mal.
O JANTAR NA CASA DOS RYAN foi espaguete de novo. Cathy conhecia uma receita excelente de molho — da mãe, que, aliás, não tinha uma gota de sangue italiano nas veias —, e o marido adorava o prato. Principalmente acompanhado de pão italiano, que a esposa encontrara em uma padaria no centro de Chatham. Como não havia cirurgia marcada para o dia seguinte, tomariam vinho. Era hora de contar a ela.
— Querida, terei de viajar nos próximos dias.
— Aquele negócio da Otan?
— Parece que sim, amor. Três ou quatro dias... talvez um pouco mais.
— É sobre o quê? Você pode dizer?
— Não, não tenho permissão.
— Coisa de espião?
— Isso.
Ele tinha autorização para dizer aquilo.
— O que é espião? — perguntou Sally.
— É o que o papai faz — disse Cathy, sem pensar.
— Espião igual no 0077? — continuou Sally.
— O quê? — perguntou o pai.
— O James Bond diz que é um espião, lembra? — explicou Sally.
— Ah, você quer dizer 007.
Era o melhor filme do ano, para ela, até aquele momento.
— Foi o que eu disse, papai. Como seu pai podia ser tão burro?
— Não, o papai não é um desses espiões — garantiu Jack à filha.
— Então, por que a mamãe disse que você é? — insistiu a menina. Ela tem vocação para agente do FBI, pensou Jack, imediatamente. Era a vez de Cathy tentar.
— Sally, a mamãe só estava fazendo uma brincadeira.
— Ah, tá.
Sally decidiu voltar a dar atenção ao seu paguete. Jack lançou um olhar à mulher: eles não podiam conversar sobre o trabalho dele na frente da filha. Nunca. As crianças não conseguem guardar um segredo por mais de cinco minutos. Assim, aprendera a nunca dizer algo diante de uma criança, se não quisesse ver o assunto estampado na primeira página do Washington Post. Todos em Grizedale Close acreditavam que John Patrick Ryan trabalhava na embaixada americana e tinha a sorte de ser casado com uma cirurgiã. Não precisavam saber que era funcionário da CIA. Curiosidade demais. Brincadeiras demais.
— Três ou quatro dias? — insistiu Cathy.
— É o que me disseram. Talvez um pouco mais, não muito, espero.
— É importante?
Jack percebeu que Sally herdara o espírito curioso da mãe... e talvez um pouco dele próprio.
— Importante o bastante para me botar dentro de um avião.
A resposta bastou. Cathy conhecia bem o medo de voar do marido.
— Bem, você já tem uma prescrição de Valium. Quer um betabloqueador também?
— Não. Obrigado, querida. Desta vez, não.
— Seria mais compreensível se ficasse apenas enjoado.
Ela não precisou acrescentar que era mais fácil de tratar também.
— Querida, você estava lá quando minhas costas foram para o espaço, lembra? Tenho péssimas lembranças de voar. Talvez possamos voltar para casa de navio — disse, com uma ponta de esperança na voz. Não funcionaria daquela forma. Na vida real, nunca funcionava.
— Voar é legal — reclamou Sally.
Aquilo obviamente havia sido herdado da mãe.
AS VIAGENS SÃO SEMPRE CANSATIVAS. Por isso, ao retornar às cabines, a família Zaitzev ficou satisfeita por ver que as camas haviam sido arrumadas. Irina pôs a camisola amarela florida na filha, que deu o habitual beijo de boa-noite nos pais e subiu sozinha na cama — fazia questão de ir sem ajuda —, metendo-se embaixo das cobertas.
Em vez de dormir, apoiou a cabeça no travesseiro e ficou observando os campos que passavam pela janela. Havia apenas algumas luzes, vindas de casas nas fazendas coletivas, mas, mesmo assim, aquilo fascinava a menina.
Seus pais deixaram a porta de ligação parcialmente aberta, para o caso de ela ter um pesadelo ou, por qualquer outra razão, precisar de um abraço reconfortante. Antes de ir dormir, Svetlana olhara debaixo da cama, verificando se havia um esconderijo para um grande urso negro e ficando contente por perceber que não. Oleg e Irina abriram seus livros e gradualmente caíram no sono, ao balanço do trem.
— BEATRIX ESTÁ EM ANDAMENTO — contou Moore ao almirante Greer. — Coelho e família estão a bordo do trem, provavelmente entrando na Ucrânia neste momento.
— Odeio essa espera — comentou o DDI.
Era mais fácil para ele admitir aquilo. Nunca participara de uma missão de inteligência em campo. Não, seu lugar sempre tinha sido atrás de uma mesa, analisando informações importantes. Momentos como aquele lembravam-no do singelo prazer de ficar de sentinela numa embarcação de guerra — em seu caso, quase sempre submarinos —, acompanhando o vento e as ondas, sentindo a brisa no rosto e podendo, com poucas palavras, mudar o curso e a velocidade em vez de esperar para ver o que o oceano ou o inimigo distante lhe fariam. Lá, tinha a ilusão de ser o senhor do próprio destino.
— A paciência é a virtude mais difícil de se conseguir, James, e quanto mais você sobe, mais precisa da desgraçada. Para mim, isso é como estar sentado na tribuna, esperando os advogados chegarem ao ponto que interessa. Pode demorar uma eternidade, principalmente quando já se sabe o que os idiotas dirão — contou Moore.
Ele também já estivera em situação diferente, no campo. Mas grande parte daquilo consistia em esperar. Ninguém controlava o próprio destino, um fato de que só se adquiria consciência com a idade. Tentava-se apenas seguir adiante, de um ponto ao outro, cometendo o menor número de erros possível.
— Já contou ao presidente?
Moore fez um gesto negativo com a cabeça.
— Não há motivo para deixá-lo animado demais. Se ele achar que esse cara tem informações que na verdade não tem... para que decepcioná-lo? Nós já passamos por isso o bastante aqui, não é?
— Arthur, nunca temos informações suficientes. E, quanto mais conseguimos, mais desejamos aquelas de que precisamos mas ainda não possuímos.
— James, meu amigo, nenhum de nós se formou para ser filósofo.
— Isso vem com os cabelos brancos, Arthur.
Mike Bostock entrou na sala: — Mais alguns dias e BEATRIX passará aos livros de história — anunciou com um sorriso.
— Mike, onde você aprendeu a acreditar em Papai Noel? — perguntou o DCI.
— Juiz, a situação é a seguinte: temos um desertor que está fugindo neste exato momento. Temos uma equipe competente para tirá-lo da terra vermelha. Precisamos confiar no pessoal que enviamos para fazer o trabalho.
— Mas não é o nosso pessoal — ponderou Greer.
— Basil comanda uma equipe eficiente, almirante. Sabe disso.
— É verdade — reconheceu Greer.
— Então, Mike, está apenas esperando para ver o que há embaixo da árvore de Natal? — perguntou Moore.
— Mandei minha cartinha para o Papai Noel. Ele sempre atende aos pedidos. Todo mundo sabe disso. — Bostock estava entusiasmado com as possibilidades. — O que faremos com ele quando chegar aqui?
— Acho que o levaremos para a fazenda em Winchester — considerou Moore. — Vamos lhe dar uma chance de se recuperar, deixar que faça algumas viagens curtas para respirar ar fresco.
— Quanto pagaremos? — perguntou Greer.
— Depende — respondeu Moore. Era ele quem controlava aquele tipo de gasto do orçamento clandestino da agência. — Se as informações forem boas... acho que até um milhão. E um bom lugar para trabalhar, depois que arrancarmos tudo dele.
— Onde? — perguntou Bostock.
— Ah, deixaremos que ele mesmo decida.
Era um processo ao mesmo tempo simples e complicado. Assim que chegasse, a família Coelho teria que começar a estudar inglês. E receberia novas identidades. Novos nomes, possivelmente de imigrantes noruegueses, para explicar o sotaque. A CIA podia autorizar a entrada de uma centena de novos cidadãos por ano através do Serviço de Imigração e Naturalização, mas nunca usava toda a cota. O casal Coelho precisaria de números do seguro social e carteiras de motorista — a esposa com certeza, mas provavelmente os dois — emitidas pelo Estado da Virginia. A agência mantinha um relacionamento cordial com o governo estadual que nunca fazia muitas perguntas.
Além disso, havia o apoio psicológico dado a pessoas que abandonavam tudo que conheciam na vida e precisavam se estabelecer em um país novo e radicalmente diferente. A agência tinha um professor de psicologia da Columbia University para cuidar disso. Depois arrumariam desertores mais antigos para ajudá-los no período de transição. Nada daquilo era fácil para os imigrantes. Os russos viam os Estados Unidos como uma loja de brinquedos aos olhos de uma criança que nunca imaginara algo parecido com uma loja de brinquedos: impressionante em todos os aspectos e praticamente sem pontos em comum. Como se fosse outro planeta. Tudo tinha que ser o mais acolhedor possível para os desertores. Primeiro, por causa das informações, e, segundo, para garantir que não quisessem voltar; seria morte na certa, especialmente no caso do marido. Mas o desejo de estar na própria terra era tão forte que aquilo já acontecera.
— Se ele gostar de clima frio, mande-o para Mineápolis ou Saint Paul — sugeriu Greer. — Mas, cavalheiros, estamos nos precipitando um pouco.
— James, você é sempre a voz da sabedoria — comentou o DCI, sorrindo.
— Alguém tem que ser. Não vamos contar os pintinhos antes de os ovos terem sido chocados. E se ele não souber de nada?, pensou Moore. E se for apenas um cara querendo sair de lá? Que merda de trabalho!
— Bem, Basil nos manterá informados. E temos seu garoto, Ryan, cuidando dos nossos interesses.
— Excelente notícia, juiz. — Bostock balançou a cabeça. — Basil deve estar morrendo de rir com isso.
— Ele é um bom garoto, Mike. Não o subestime. Gente que já fez isso está na Penitenciária Estadual de Maryland, esperando a decisão sobre seus recursos — disse Greer, saindo em defesa do protegido.
— Tudo bem, pelo menos ele foi fuzileiro — disse Bostock. — O que digo quando Bob ligar?
— Nada — respondeu o DCI imediatamente. — Até que o Coelho nos diga qual parte das nossas comunicações está comprometida, tomaremos cuidado com tudo que é transmitido. Entendido?
Bostock assentiu como um menino na escola.
— Sim, senhor.
— Pedi ao pessoal da tecnologia que verifique nossas linhas telefônicas. Eles disseram que estão limpas. Chip Bennett continua cuspindo fogo e andando em círculos em Fort Meade.
Moore não precisou dizer que a revelação feita pelo Coelho era a mais assustadora desde Pearl Harbor. Mas talvez conseguissem virar o jogo para cima de Ivan. Como em todos os lugares, a esperança nunca acabava em Langley. Embora fosse improvável que os russos soubessem de algo que a Divisão de Ciência e Tecnologia não soubesse, era preciso pagar para ver.
RYAN ARRUMAVA AS ROUPAS EM SILÊNCIO. Cathy era melhor naquilo, mas não saberia do que ele ia precisar. O que um agente secreto devia levar na mala? Terno? Suas roupas de fuzileiro? Ele tinha tudo guardado, ainda com a insígnia de tenente no colarinho. Sapatos elegantes de couro? Tênis? Aquilo parecia apropriado. Ele acabou se decidindo por um terno sem exageros e dois pares de sapatos, um semiformal e outro informal. E tudo precisava caber numa sacola — uma L.L. Bean de lona, fácil de carregar e pouco chamativa. Ele deixou o passaporte na gaveta da escrivaninha. Sir Basil lhe daria um novo, britânico. Outro passaporte diplomático. Provavelmente com um novo nome também. Droga, outro nome para eu lembrar e ficar atento, pensou Jack. Estava acostumado a ter só um.
Uma vantagem de trabalhar na Merrill Lynch: todos sabiam quem eram. Claro, deixar todo mundo saber que você é um puxa-saco do Joe Muller. Não nesta vida, continuou Jack. Qualquer babaca presunçoso podia ganhar dinheiro. E seu sogro era um deles.
— Pronto? — perguntou Cathy, às suas costas.
— Quase, querida — respondeu Jack.
— Isso que você vai fazer não é perigoso, é?
— Espero que não.
Jack não sabia mentir, e sua incerteza revelou o suficiente.
— Para onde você vai?
— Já disse, para a Alemanha, não lembra? Ah, não. Ela me pegou de novo.
— Assunto da Otan?
— Foi o que me disseram.
— O que você faz aqui em Londres, Jack? A Century House, isso tem a ver com espionagem e...
— Cathy, já expliquei isso. Sou um analista. Analiso informações de várias fontes, tento descobrir o que querem dizer e escrevo relatórios para as pessoas lerem. Sabe, não é tão diferente do que eu fazia na Merrill Lynch. Minha função é analisar as informações e dizer o que significam de verdade. Eles acham que sou bom nisso.
— Mas não envolve armas?
Metade pergunta, metade observação. Jack supôs que era consequência do trabalho na emergência do Johns Hopkins. Em geral, os médicos não apreciavam muito as armas de fogo, à exceção dos que gostavam de caçar pássaros no outono. Ela implicava com a espingarda Remington que ficava no armário, vazia, e mais ainda com a Browning Hi-Power escondida em uma prateleira, sempre carregada.
— Não, nada de armas, querida. Não sou esse tipo de espião.
— Tudo bem — aceitou, hesitante. Não acreditava totalmente nele, mas sabia que ele não podia falar tanto do seu trabalho quanto ela de seus pacientes. Por isso ficava tão frustrada. — Desde que não fique longe por muito tempo.
— Querida, você sabe que odeio ficar longe de você. Não consigo pregar os olhos sem você por perto.
— Então me leve.
— Para você fazer compras na Alemanha? Vai comprar o quê? Saias típicas para Sally?
— Bem, ela gosta dos filmes com a Heidi.
Era uma justificativa fraca. — Boa tentativa, amor. Eu até gostaria que você me acompanhasse, mas é impossível.
— Droga — reagiu Lady Ryan.
— O mundo não é perfeito, querida.
Ela odiava aquela frase. Sua resposta limitou-se a um grunhido. Não havia qualquer outro comentário a ser feito.
Minutos depois, na cama, Jack imaginou o que, afinal, teria que fazer. A razão lhe dizia que não passaria de rotina, em todos os aspectos, exceto pelo local. O problema era que, não fosse um pequeno detalhe, Abraham Lincoln teria pensado o mesmo no Teatro Ford. Jack estaria em solo estrangeiro — estrangeiro e hostil. Já morava fora do seu país; por mais que os britânicos agissem de modo amigável, nada se comparava à sua casa. Além disso, os britânicos gostavam dele, enquanto os húngaros não compartilhariam desse sentimento. Talvez não atirassem nele, mas também não lhe dariam a chave da cidade. E se descobrissem que estava viajando com um passaporte falso? O que a Convenção de Viena dizia sobre aquilo? Ele não podia se acovardar naquela situação, podia? Afinal de contas, era ex-fuzileiro. Esperava-se que fosse corajoso. Ah, claro. A única coisa boa que acontecera em sua casa, alguns meses atrás, havia sido o fato de ter ido ao banheiro pouco antes de os bandidos entrarem sem serem convidados; por isso, não conseguira urinar nas calças quando encostaram uma arma na sua cabeça. Saíra daquela, mas seguramente não se considerava um herói. Dera um jeito de sobreviver, matara o cara com a Uzi, mas se sentira bem mesmo por não matar o maldito Sean Miller. Não, deixaria o Estado de Maryland cuidar dele, por unanimidade, a não ser que a Suprema Corte interviesse novamente, o que não parecia provável naquele caso em particular, com um monte de agentes secretos mortos. Os tribunais não costumavam ignorar policiais assassinados.
Mas o que aconteceria na Hungria? Seria apenas um observador na retirada de um russo iludido que queria sair de Moscou. Maldição, porque esse tipo de coisa sempre parece acontecer comigo?, perguntou-se. Era como ganhar na loteria do diabo. E seus números continuavam saindo. Aquilo acabaria um dia? Ele era pago para observar o futuro e prever, mas, por dentro, sabia que não podia fazer aquilo. Precisava que outras pessoas lhe contassem o que estava acontecendo, para que então pudesse comparar a coisas que haviam acontecido e finalmente combinar as duas categorias, chegando a um prognóstico arriscado sobre o que poderia acontecer. Certo, ele tinha prática no mercado financeiro, mas ninguém morria por causa de algumas ações ordinárias. E talvez, daquela vez, seu rabo estivesse na reta. Ótimo. Espetacular. Ele ficou observando o teto. Por que eram sempre brancos? O preto não seria mais adequado para se dormir? Sempre se podia ver um teto branco, mesmo em uma sala escura. Havia uma razão para tudo aquilo?
Havia uma razão pela qual não conseguia dormir? Por que estava fazendo perguntas sem resposta? A despeito do que ocorresse, tinha quase certeza de que ficaria bem. Basil não permitiria que algo de ruim lhe acontecesse. Langley não gostaria nada, e os britânicos não podiam se dar ao luxo de passar por tamanha vergonha. O juiz Moore nunca se esqueceria, e o episódio entraria para a memória institucional da CIA, o que causaria reflexos pelos dez anos seguintes ou mais. Então, a resposta era não, o SIS não permitiria que nada de mau lhe acontecesse. Por outro lado, eles não eram os únicos jogadores em campo. Como no beisebol, as duas equipes estavam lá para ganhar, e era preciso saber a hora certa de mandar uma bola a 150 quilômetros por hora para os lugares mais baratos do estádio.
Mas você não pode ficar com medo, Jack, disse a si mesmo. Outras pessoas, cujas opiniões lhe eram importantes, ficariam envergonhadas por ele. Pior ainda: ele teria vergonha de si mesmo. Portanto, tinha obrigação de se vestir, ir para o campo e torcer para não deixar a bola cair. Ou voltar para a Merrill Lynch. Não, ele preferia enfrentar baionetas a voltar.
Preferia mesmo, concluiu, com certa surpresa. Aquilo o tornava corajoso ou simplesmente teimoso? Boa pergunta, pensou. Somente outra pessoa poderia responder, alguém que visse apenas um lado da equação. Todos notavam apenas a parte física, nunca o raciocínio que a acompanhava. E aquilo não bastava para produzir um julgamento, ainda que jornalistas e historiadores tentassem retratar a realidade daquela forma, como se realmente compreendessem tudo, mesmo a uma distância de quilômetros ou anos. Claro. De qualquer maneira, as malas estavam arrumadas e, com sorte, a pior parte da viagem seria voar de avião. Por mais que odiasse aquilo, era algo bem previsível... a não ser que uma asa caísse.
— QUE MERDA É ESSA? — perguntou o agente do FBI John Tyler, sem se dirigir a uma pessoa específica.
A mensagem em suas mãos incluía apenas ordens, não as razões por trás delas. Os corpos haviam sido transportados ao necrotério com a recomendação de que não se tomasse qualquer providência. Tyler pensou por um momento e decidiu ligar para o procurador-assistente com quem costumava colaborar.
— Você quer o quê? — perguntou Peter Mayfair, sem conseguir acreditar. Ele havia se formado em terceiro lugar na Escola de Direito de Harvard, três anos antes, e estava subindo rapidamente na Procuradoria Geral. As pessoas o chamavam de Max.
— Você entendeu muito bem.
— O que significa essa história toda?
— Não sei. Só sei que as ordens vêm diretamente do escritório de Emil. Parece coisa do outro lado do rio, mas a mensagem não explica nada. Como podemos fazer isso?
— Onde estão os corpos?
— Acho que estão no necrotério. Há um recado para que não sejam tomadas as providências de hábito. Suponho que estejam na geladeira.
— Quer que permaneçam frescos?
— Sim, congelados e frescos.
Que maneira de colocar as coisas, pensou o agente especial encarregado.
— Há parentes?
— Que eu saiba, a polícia não localizou nenhum até agora.
— Certo, vamos torcer para que continue assim. Se não houver objeção de parentes, declararemos as duas como indigentes e pediremos ao legista que as transfira à custódia federal, exatamente como um bêbado morto no meio da rua. Eles costumam pôr essa gente em caixão barato e enterrá-la em vala comum. Para onde pretendem levá-las?
— Max, eu não sei. Acho que vou responder à mensagem de Emil para que ele me diga.
— Temos pressa? — perguntou Mayfair, tentando descobrir o nível de prioridade daquilo.
— Para a semana passada, Max.
— Tudo bem, se é isso que deseja, vou agora mesmo para o necrotério.
— Nos encontramos lá, Max. Obrigado.
— Está me devendo uma cerveja e um jantar no Legal Seafood — disse © procurador.
— Fechado.
Ele teria de cumprir aquela promessa.
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1 Administração central do governo britânico, incluindo ministérios como o da Defesa.
25
TROCANDO DE TREM
OS CORPOS FORAM POSTOS em caixas de alumínio usadas no transporte aéreo de cadáveres e depois transferidos para uma van do FBI, que seguiu para o aeroporto internacional Logan. O agente especial Tyler ligou para Washington para saber o que fazer em seguida. Felizmente, o rádio de seu carro era codificado.
O diretor do FBI, Emil Jacobs, ainda não havia pensado em todo o procedimento. Teve que ligar para o juiz Moore, na CIA, onde, depois de uma breve discussão, decidiu-se que os corpos seriam embarcados no 747 da British Airways que sairia de Boston para Heathrow. Lá, o pessoal de Basil os recolheria. As providências foram tomadas sem problemas, pois a British Airways cooperou prontamente com as agências policiais americanas. O voo 214 teve início no horário previsto, às 8h10, e logo o avião estava ganhando altitude para a viagem de quase cinco mil quilômetros até o terminal de Heathrow.
ERAM QUASE CINCO DA MANHÃ quando Zaitzev acordou, na cama de cima, sem saber exatamente por quê. Mexeu-se um pouco para olhar pela janela e se deu conta do que acontecia: o trem estava parado em uma estação. Não sabia qual era — não tinha memorizado os horários — e sentiu um calafrio súbito. E se homens da Segunda Diretoria tivessem acabado de subir a bordo? À luz do dia, talvez conseguisse se livrar deles, mas a KGB costumava deter pessoas no meio da noite, quando a possibilidade de reação efetiva era menor. De repente, o medo voltou. Em seguida, ouviu o som de passos no corredor... que logo perdeu intensidade e, momentos depois, o trem voltou a se mover, afastando-se da construção de madeira da estação. Logo tudo o que se via do lado de fora era a escuridão. Por que fiquei tão assustado?, perguntou a si mesmo. Por que naquele momento? Não estava em segurança? Quase, corrigiu-se. A resposta verdadeira era não. Não até pôr os pés em solo estrangeiro. Tinha que se lembrar daquilo: até pôr os pés em solo estrangeiro não socialista. E ainda não estava lá. Com a lembrança bem fresca na cabeça, afastou-se da janela e tentou voltar a dormir. O movimento do trem acabou subjugando a ansiedade, e ele retornou aos seus sonhos, que não eram nem um pouco tranquilizadores.
O 747 DA BRITISH AIRWAYS também cortava a escuridão, com a maioria dos passageiros dormindo, enquanto os comandantes monitoravam os numerosos instrumentos e tomavam café, aproveitando para apreciar as estrelas e observar os primeiros sinais do novo dia no horizonte. Aquilo normalmente acontecia sobre a costa oeste da Irlanda.
RYAN ACORDOU MAIS CEDO que o normal. Levantou-se sem incomodar a esposa, vestiu uma roupa confortável e saiu. O entregador de leite estava entrando no beco sem saída no final do Grizedale Close. Parou o caminhão e desceu com o leite integral — que os filhos de Ryan bebiam como um motor Pratt & Whitney engolia combustível de aviação — e um pão. Já estava a meio caminho da casa, quando percebeu a presença do freguês.
— Algum problema, senhor? — perguntou o leiteiro, imaginando que houvesse uma criança doente, a razão habitual para pais de filhos pequenos estarem em pé àquela hora.
— Não, só acordei um pouco mais cedo — respondeu Ryan, bocejando.
— Deseja algo em especial?
— Apenas um cigarro — respondeu Ryan, sem pensar.
Sujeito às regras rígidas de Cathy, ele não fumava desde que chegaram à Inglaterra.
— Pegue um, senhor.
O homem estendeu um maço, com um cigarro solto na ponta. Ryan ficou surpreso.
— Obrigado, amigo.
Ele acabou aceitando — e o fogo do isqueiro também. Tossiu na primeira tragada, mas se acostumou rapidamente. Uma sensação extremamente reconfortante em meio ao ar parado do início da manhã. A vantagem dos maus hábitos era que retomá-los não demorava nada. Os cigarros eram fortes, como os Marlboros que fumara no último ano de colégio, parte de sua entrada na vida adulta, no fim da década de 1960. Esse leiteiro deveria largar o cigarro, mas provavelmente não é casado com uma cirurgiã do Hopkins, pensou Jack. E também não costumava ter a oportunidade de conversar com os clientes.
— Gosta de viver aqui, senhor?
— Sim, claro. As pessoas daqui são muito amigáveis.
— Tentamos ser, senhor. Bem, tenha um bom dia então.
— Obrigado, amigo. Para você também — disse Ryan, enquanto o homem voltava ao caminhão.
Os entregadores de leite estavam praticamente extintos nos Estados Unidos, vítimas dos supermercados e das lojas de conveniência. Uma pena, pensou Jack. Ele se lembrou do pão Peter Wheat e das rosquinhas cobertas de mel que comia na infância. De alguma forma, tudo aquilo havia desaparecido, sem que percebesse, por volta da sétima série.
Mas o cigarro e o ar tranquilo eram uma maneira agradável de acordar. Não havia qualquer barulho. Mesmo os pássaros ainda estavam dormindo. Ele olhou para cima e viu luzes de aviões no céu. Pessoas viajando para a Europa, provavelmente para a Escandinávia, pela rota que os aviões pareciam estar seguindo — saindo de Heathrow.
Quem são os coitados que têm que acordar tão cedo para participar de uma reunião?, pensou. Ele terminou o cigarro e jogou o resto na grama, preocupado com a possibilidade de Cathy achá-lo. Bem, sempre podia pôr a culpa em outra pessoa. Lamentou-se pelo fato de o garoto do jornal ainda não ter passado. Sem opção, entrou e ligou a TV da cozinha na CNN, bem na hora do bloco de esportes. Os Orioles haviam vencido novamente e decidiriam a World Series com os Phillies. Era uma boa notícia.
Ou quase. Se estivesse por lá, compraria ingressos para assistir a um ou dois jogos no Memorial Stadium e veria os demais pela TV. Mas não este ano. Sua TV a cabo não tinha um único canal que passasse os jogos de beisebol, embora os britânicos estivessem começando a acompanhar o futebol americano. Mesmo sem entendê-lo, por alguma razão eles gostavam de assistir. Com certeza, é melhor do que a programação normal daqui, pensou Ryan, com desdém. Cathy gostava das comédias, mas Ryan não conseguia pegar o espírito da coisa. Os telejornais, no entanto, eram muito bons. Uma questão de gosto. Non est disputandum, como diziam os romanos. Naquele instante, percebeu o sol nascendo, os primeiros sinais de luz no horizonte, ao leste. Ainda levaria uma hora até o dia nascer de fato, porém lá vinha ele, e nem o desejo de dormir mais o impediria.
Jack decidiu começar a preparar o café — uma mera questão de ligar a cafeteira que dera de aniversário a Cathy. Então ouviu o barulho do jornal caindo na entrada e saiu para pegá-lo.
— Caiu da cama? — perguntou Cathy quando ele voltou.
— É. Achei que não tinha sentido ficar rolando a seu lado.
Jack deu um beijo na esposa. Ela fez uma cara estranha, mas não disse nada. Seu nariz detector de tabaco percebera uma leve mensagem, porém o cérebro equivocadamente a descartara, por ser muito improvável.
— Já começou a fazer o café?
— Só apertei o botão — disse Jack. — Vou deixar que cuide do resto.
— O que quer comer?
— Posso escolher? — perguntou Jack, um pouco incrédulo.
Ela recomeçara com a história de alimentação saudável. Nada de rosquinhas.
— BOM DIA, QUERIDA — disse Oleg à filha.
— Papai!
Ela esticou os braços com o sorriso típico das crianças quando acordam. Era algo que perdiam muito antes de chegar à idade adulta e que encantava os pais do mundo inteiro enquanto durava. Oleg a tirou da cama e lhe deu um abraço. Os pequenos pés descalços pousaram no chão acarpetado e ela deu dois passos para chegar ao lavabo. Irina apareceu para deixar suas roupas, e os dois voltaram à cabine dos adultos. Em dez minutos, os três seguiam para o vagão-restaurante. Oleg olhou para trás a tempo de ver um atendente correndo para arrumar suas cabines antes das outras. Sim, havia vantagens em pertencer à KGB, mesmo que só por mais um dia.
Em alguma região, durante a noite, o trem havia parado em uma fazenda estatal e buscado leite fresco, que Svetlana adorava tomar no café da manhã. Os adultos receberam um café no máximo medíocre e pão com manteiga — a cozinha ficara sem ovos. Pelo menos, o pão e a manteiga eram frescos e estavam gostosos. Havia uma pilha de jornais na extremidade do vagão. Oleg pegou um exemplar do Pravda e se sentou para ler. As mesmas mentiras de sempre. Outra vantagem de se trabalhar na KGB era saber que não se podia acreditar em tudo que saía nos jornais. O Izvestia ao menos traz matérias sobre pessoas reais, algumas das quais dizem até a verdade, pensou. Mas um trem soviético, obviamente, só podia levar jornais politicamente corretos. E aquele, que significava "verdade", era um deles.
RYAN LEVOU DOIS JOGOS completos de material de barba e cuidados pessoais, para eventuais exigências da viagem. Sua sacola estava pendurada em um gancho de metal no armário, pronta para o momento em que Sir Basil o despachasse para Budapeste. Ele ficou observando-a, enquanto dava o nó na gravata, imaginando quando partiria. Cathy voltou ao quarto e começou a se trocar. Os dois jalecos, do Hammersmith e do Moorfields, com as identificações correspondentes, estavam pendurados em um gancho na porta do escritório.
— Cath?
— Sim?
— Esses jalecos... você manteve a identificação que usava no Hopkins ou trocou?
Ele nunca se preocupara em perguntar.
— Troquei. Seria muito difícil explicar a todos os pacientes que reparassem. Mesmo assim, alguns perguntavam de seu sotaque ou por que a plaqueta a identificava como Lady Caroline Ryan, Médica e membro do Colégio Americano de Cirurgiões. O "Lady" apelava a sua vaidade feminina. Jack observou-a escovando os cabelos, algo que sempre o agradava. Ela ficaria deslumbrante com o cabelo mais comprido, mas nunca o deixava crescer, argumentando que as toucas hospitalares estragavam qualquer penteado que tentasse. A situação mudaria no primeiro convite para um jantar formal. Logo haveria algum. A rainha gostava dos dois, assim como o príncipe de Gales, e ambos integravam a lista de pessoas importantes. Não se podia recusar um convite daqueles, embora Cathy tivesse uma desculpa, caso fosse operar no dia seguinte. Os espiões, porém, deviam se mostrar encantados com a honraria, mesmo que isso significasse três horas a menos de sono antes do trabalho no dia seguinte.
— O que tem marcado para hoje?
— Vou dar uma palestra sobre o laser de arco de xenônio. Eles vão comprar um em breve, e sou a única pessoa em Londres que sabe usá-lo corretamente.
— Minha esposa, a operadora a laser.
— Bem, pelo menos posso falar do que faço no trabalho — respondeu ela.
— Sim, querida.
Ryan suspirou. Talvez eu devesse colocar minha Browning na mala só para irritá-la.
Mas se alguém percebesse no trem, no mínimo seria visto como "sujo" e na pior das hipóteses seria questionado por um policial sobre a razão de estar carregando aquilo. E nem seu status diplomático o protegeria da confusão subsequente.
QUINZE MINUTOS DEPOIS, Jack e Cathy estavam em sua cabine, a caminho de Londres. Como sempre, ela lia revistas médicas, e ele, o Telegraph. John Keegan, um historiador que Ryan admirava muito como analista de situações complexas, tinha uma coluna no jornal. Ele não entendia por que Basil nunca tentara recrutá-lo para a Century House. Talvez Keegan estivesse muito bem como historiador, disseminando suas ideias para as massas — ou, pelo menos, para os cidadãos mais inteligentes. Fazia sentido.
Ninguém ficava rico no funcionalismo público britânico. E havia a questão do anonimato... de vez em quando, era agradável receber um cumprimento por um serviço especialmente bem-feito. Os burocratas não tinham direito àquilo em lugar nenhum do mundo.
No MOMENTO EM QUE O TREM EXPRESSO passou pela estação de Elephant and Castle, o voo 214 taxiava numa parada extra do terminal 4 de Heathrow. Só depois dela o avião seguiria até o portão, na área em que os ônibus aguardavam para levar passageiros ao serviço de imigração e alfândega. Assim que as rodas foram travadas, o compartimento de carga se abriu. Como haviam sido os últimos volumes embarcados em Logan, os dois caixões foram os primeiros a sair. As identificações nos cantos indicaram aos carregadores para onde deviam seguir. Dois homens da Century House, à paisana, acompanhavam o processo. Colocados num carrinho de quatro rodas, os caixões seguiram para um setor destinado a carros e vans, onde foram transferidos para um pequeno caminhão sem identificação nas laterais. Os dois agentes do SIS subiram e partiram em direção a Londres, sem a mínima ideia do que fosse aquilo tudo. Costumava ser daquela forma.
O caminhão chegou ao número 100 da Westminster Bridge Road em quarenta minutos.
Lá, as caixas foram transportadas num carrinho até o elevador de carga, que as levou ao segundo subsolo. Havia mais dois homens esperando. As caixas foram abertas, e eles agradeceram por haver um farto suprimento de gelo seco no interior, evitando que os corpos exalassem o odor pútrido de tecido humano morto e em deterioração. Usando luvas de plástico, levantaram os cadáveres — nenhum dos dois era muito pesado — e os puseram sobre mesas de aço inoxidável. Os corpos estavam despidos, e, no caso da garotinha, o trabalho era ainda mais deprimente.
E ficaria pior. Depois da comparação com a foto produzida pelo Times, foi decidido que o rosto da criança não era compatível. O mesmo valia para a mãe, embora o tamanho e as características do corpo fossem corretos. Seu rosto praticamente não havia sido tocado pelo fogo que liberara os gases responsáveis por sua morte. A conclusão era de que os dois teriam de ser brutalmente desfigurados para servir à Operação BEATRIX. O serviço foi feito com maçaricos a propano. Antes de começar, o funcionário mais experiente acionou o poderoso exaustor localizado no teto. Depois, ambos vestiram roupas antifogo e ligaram os maçaricos, aplicando-os impiedosamente sobre os corpos.
Nos dois casos, começaram pelos cabelos, que tinham a cor errada. Em seguida, o fogo foi aplicado, a curta distância, nos rostos. Foi rápido, mas não o suficiente para os funcionários do SIS. O responsável pela menina fez várias orações por sua alma, certo de que ela estava no lugar destinado às crianças inocentes. O que restava não passava de carne fria, sem valor para a dona original, porém de grande importância para o Reino Unido — e, sem dúvida, para os Estados Unidos. Do contrário, nem estariam realizando aquela tarefa demoníaca. Quando o olho esquerdo da garotinha explodiu, devido à pressão interna, o responsável pelo tormento teve que se virar e vomitar. Mas era necessário: os olhos eram da cor errada.
As mãos e os pés tiveram que ser bem carbonizados. Em seguida, os corpos foram examinados, em busca de tatuagens, cicatrizes e outros sinais distintivos. Não havia nada. Nem uma marca de cirurgia de apêndice. No total, passaram-se noventa minutos até que o trabalho fosse considerado terminado. Faltava vestir os cadáveres. Roupas de origem soviética foram colocadas nos corpos e depois queimadas para que as fibras se misturassem às queimaduras. Com o sombrio serviço completado, os corpos foram postos de volta nas caixas, que receberam mais gelo seco para retardar o apodrecimento. As duas foram arrumadas ao lado de uma terceira, idêntica, no canto da sala. Era quase hora do almoço, mas nenhum dos funcionários estava muito interessado em comer. Precisavam de mais algumas doses de uísque, e havia inúmeros pubs nas proximidades.
— JACK? — DISSE SlR BASIL, enfiando a cabeça pela porta.
Ryan estava lendo documentos, como devia fazer um bom analista.
— Sim, senhor? — respondeu Ryan, levantando os olhos dos papéis.
— Arrumou suas coisas?
— Estão em casa, mas, sim, senhor.
— Muito bom. Você está no voo da British Airways, saindo do terminal 3 de Heathrow às oito da noite. Um carro vai levá-lo em casa para pegar suas coisas... pode ser às três e meia?
— Ainda não recebi o passaporte e o visto — disse Ryan.
— Receberá tudo depois do almoço. Seu disfarce será de auditor do Foreign Office. Pelo que me lembro, você se formou em contabilidade. Talvez queira analisar uns números enquanto estiver por lá.
Charleston achou o comentário engraçado. Ryan tentou ajudá-lo.
— Deve ser mais interessante que o mercado de ações daqui. Vai alguém comigo?
— Não, mas Andy Hudson o encontrará no aeroporto. Ele é nosso chefe em Budapeste. Um bom homem — garantiu Sir Basil. — Fale comigo antes de partir.
— Pode deixar, senhor.
E a cabeça de Basil desapareceu de volta no corredor.
— Simon, que tal uma cerveja e um sanduíche? — perguntou Ryan ao colega.
— Boa ideia.
Harding levantou-se e pegou o paletó. Os dois foram andando até o Duke of Clarence.
O ALMOÇO NO TREM FOI SABOROSO: borscht, macarrão, pão preto e uma sobremesa apropriada — morangos de uma fazenda próxima. O problema é que Svetlana não gostava de borscht, o que era estranho em se tratando de um russo, mesmo uma criança.
Ela comeu apenas o creme, mas depois atacou o macarrão com vontade e devorou os morangos de fim de estação. Eles haviam acabado de subir as montanhas da Transilvânia, na fronteira da Bulgária. O trem passaria por Sofia, depois seguiria na direção noroeste para Belgrado, na Iugoslávia, e finalmente para a Hungria.
Os Zaitzev demoraram-se no almoço, com Svetlana sempre espiando pela janela, enquanto o trem se aproximava de Sofia. Oleg Ivanovich fazia o mesmo, fumando um cigarro. Ao passar por Sofia, ele se viu tentando adivinhar qual seria o prédio da Dirjavna Sugurnost. O coronel Bubovoy estaria lá, trabalhando no plano, provavelmente ao lado do coronel Strokov? Em que estágio? A vida do papa estaria em perigo iminente? Como se sentiria se o padre polonês fosse assassinado antes de conseguir dar o alerta? Poderia ou deveria ter agido mais rápido? Tantas perguntas e não havia ninguém com quem pudesse se abrir. Você está fazendo o que pode, Oleg Ivanovich, disse a si mesmo. E ninguém pode fazer mais do que isso! A estação de Sofia lembrava uma catedral, uma construção imponente de pedras, que parecia ter um intuito religioso. Por alguma razão, Oleg não mais temia que uma equipe da KGB subisse no trem para prendê-lo. Só pensava em seguir em frente, chegar a Budapeste e ver o que a CIA faria a partir dali... e rezar para que fossem competentes. A KGB poderia realizar aquela missão com total profissionalismo, quase como um número de mágica. A CIA seria tão boa? Na TV russa, eles eram retratados como inimigos perversos, porém desastrados — bem diferente do que se dizia no Centro. No número 2 da Praça Dzerzhinskiy, eram vistos como espíritos do mal, sempre à espreita, astutos como o próprio diabo, os inimigos mais perigosos. Qual seria a verdade? Ele descobriria em breve, qualquer que fosse a resposta. Apagou o cigarro e levou a família de volta às cabines.
— ANSIOSO PELO INÍCIO DA MISSÃO, Jack? — perguntou Harding.
— Claro. E por ir ao dentista também. E não venha me dizer que será fácil. Você também nunca participou de uma ação de campo.
— Não se esqueça de que foi seu próprio pessoal que sugeriu isso.
— Quando eu voltar para casa... se voltar... vou acabar com o almirante Greer — respondeu Ryan, brincando, porém não totalmente. — Não fui treinado para isso, Simon, sabia?
— Quantas pessoas foram treinadas para um ataque físico direto? Você já passou por essa situação — lembrou Simon.
— Tudo bem, fui tenente da marinha por... quanto tempo? Uns onze meses, até o helicóptero se despedaçar em Creta e eu arrebentar minhas costas. Merda, eu não gosto nem de montanha-russa. Mamãe e papai adoravam aquelas drogas. Sempre me levavam ao parque de diversões Gwynn Oak quando eu era criança. Eles esperavam que eu gostasse daquelas porcarias. Papai foi paraquedista na 101ª Divisão Aerotransportada, quarenta anos atrás. Cair do céu não o incomodava muito. — Jack deu uma risada. Uma das vantagens dos fuzileiros navais era não ser obrigado a pular de um avião. Ah, droga, pensou Jack, de repente. Estaria mais preocupado com a missão do que com a viagem de avião? Aquela possibilidade provocou um olhar cabisbaixo e um risinho irônico. — Seus agentes de campo usam armas?
A pergunta causou uma gargalhada.
— Só nos filmes, Jack. Elas são bem pesadas e difíceis de explicar. No SIS, não há agentes com licença para matar. Não que eu saiba. Os franceses matam pessoas ocasionalmente e são até muito bons nisso. Os israelenses também. Mas as pessoas cometem erros, até profissionais bem treinados, e esse tipo de coisa pode ser bem difícil de explicar à imprensa.
— Vocês não podem invocar interesses nacionais?
— Teoricamente, sim, mas pode ser difícil fazer cumprir a ordem. A imprensa tem suas próprias regras.
— O Washington Post também, como Nixon descobriu pessoalmente. Bem, então é melhor eu não matar ninguém.
— Também acho isso — concordou Simon, mastigando seu sanduíche de peru.
BELGRADO — BEOGRAD para os nativos — também tinha uma bela estação de trens. Estava claro que, no século anterior, os arquitetos haviam se esforçado para superar uns aos outros, como fizeram os devotos que construíram catedrais na Idade Média. Zaitzev percebeu, surpreso, que o trem se atrasara várias horas. Não entendia por quê. Não houve qualquer parada imprevista. Talvez não estivesse seguindo na velocidade determinada. Ao deixar Belgrado, andara em ziguezague por montanhas baixas, lentamente. Ele imaginou que aquele país devia ser bonito no inverno. Não ia acontecer uma olimpíada ali perto? O inverno começava provavelmente na mesma época que em Moscou. Estava um pouco atrasado naquele ano, mas a demora geralmente significava que seria particularmente rigoroso quando chegasse. Zaitzev imaginou como seria o inverno nos Estados Unidos...
— Está PRONTO, JACK? — perguntou Charleston, em sua sala.
— Acho que sim. — Jack analisou seu novo passaporte. Por ser diplomático, era um pouco mais ornamentado do que o normal e encadernado em couro vermelho, com o brasão de armas da realeza na frente. Ele virou as páginas para ver que lugares não havia visitado. Tailândia, República Popular da China... Caramba, eu viajo bastante. — Para que preciso desse visto?
O Reino Unido não o exigia de ninguém.
— A Hungria controla as entradas e saídas rigidamente. Eles exigem visto de entrada e de saída. Espero que você não precise deste último — comentou. — Hudson provavelmente vai tirar vocês pelo sul. Ele tem boas relações com os contrabandistas locais.
— Vamos caminhar pelas montanhas? — perguntou Ryan.
Basil fez um gesto negativo.
— Não, não costumamos fazer isso. Creio que viajarão de carro ou caminhão. Não deve haver problema algum, garoto. — Ele olhou para o americano. — É coisa de rotina, Jack, de verdade.
— Se está dizendo, senhor. Para mim, com certeza não é.
Charleston ficou em pé.
— Boa sorte, Jack. Nos vemos em alguns dias.
Ryan apertou a mão dele.
— Entendido, Sir Basil. Semper fi, companheiro.
Havia um carro esperando na rua. Jack ocupou o banco do carona, e o motorista seguiu na direção leste. A viagem demorou cinquenta minutos, graças ao trânsito tranquilo da tarde — quase tão rápido quanto o trem. Ao chegar a Chatham, Ryan encontrou a filha dormindo, o pequeno Jack brincando com os pés no cercadinho — cenas fascinantes — e a Srta. Margaret lendo uma revista na sala de estar.
— Dr. Ryan, eu não sabia...
— Tudo bem. Vou fazer uma viagem de negócios.
Ele foi até o telefone da cozinha e tentou ligar para Cathy. Mas ela estava na maldita palestra sobre o tal brinquedo a laser. Deve ser o que ela usa para remendar os vasos sanguíneos, pensou. Ou alguma coisa parecida. Contrariado, subiu as escadas para buscar a mala. Tentaria ligar novamente do aeroporto. No entanto, por precaução, deixou um bilhete.
De saída para Bonn.
Tentei ligar. Vou tentar de novo.
Com amor,
JACK.
Prendeu-o na porta da geladeira. Agachou-se para dar um beijo em Sally e depois ergueu o filho para um abraço — um bem molhado, por sinal. O garoto estava pingando feito um carro com vazamento de óleo. Precisaria de uma toalha de papel antes de sair.
— Boa viagem, Dr. Ryan — desejou a babá.
— Obrigado, Margaret. Até mais.
Assim que o carro foi embora, ela ligou para a Century House, avisando que Sir John estava a caminho de Heathrow. Depois, voltou para sua revista, a edição do mês da Tattler.
O TREM PAROU EM UM PÁTIO exatamente na fronteira com a Hungria, perto da cidade de Zombor. Como não tinha informação sobre aquilo, Zaitzev ficou surpreso.
Havia guindastes do lado de fora e, assim que o trem parou, apareceu uma multidão de trabalhadores vestidos com macacões. A rede ferroviária húngara operava na medida padrão, com os trilhos separados 1.435 milímetros, distância adotada mundialmente, que remontava à época das carruagens de dois cavalos usadas pelos romanos. Mas a distância empregada pelos russos, por uma razão da qual ninguém se lembrava, era de 1.524 milímetros. A solução era içar os vagões de cima das rodas russas e colocá-los sobre conjuntos diferentes. O procedimento levou uma hora, mas foi realizado com eficiência, diante da complexidade. Aquilo deixou Svetlana totalmente fascinada. Até o pai ficou impressionado ao saber que a tarefa era executada rotineiramente. Uma hora e vinte depois, estavam em movimento, na direção norte, em trilhos mais estreitos e puxados por uma nova locomotiva elétrica, atravessando as terras férteis da Hungria. De repente, Svetlana chamou a atenção para homens com roupas típicas, que passavam andando a cavalo, algo que seus pais acharam bem exótico.
O AVIÃO ERA UM BOEING 737 relativamente novo. Ryan decidiu levar um amigo para a viagem: comprou um maço de cigarros no aeroporto e acendeu um ainda no saguão.
A boa notícia era que estava numa poltrona de primeira classe na janela, 1-A. A vista do céu era a única parte positiva de voar. Além disso, ninguém podia ver o temor em seu rosto, à exceção talvez da aeromoça, que provavelmente sentia o cheiro do medo no ar — exatamente como os médicos. Mas, na parte da frente, as bebidas alcoólicas eram de graça. Ryan pediu uísque. As opções, entretanto, incluíam apenas Scotch (de que ele não gostava), vodca (de que ele também não gostava) e gim (que ele não podia ver na sua frente). Não podia mesmo esperar um Jack Daniel's naquela companhia aérea.
Porém, a carta de vinhos era razoável. Ao alcançarem a altitude de cruzeiro, as luzes de proibido fumar se apagaram, e Ryan acendeu outro cigarro. Não se comparava a um bourbon, mas era melhor do que nada. Pelo menos, permitia que ele se recostasse e fingisse relaxar, com os olhos fechados, abrindo-os apenas ocasionalmente para ver se a paisagem embaixo da aeronave era verde ou azul. O voo foi agradavelmente tranquilo, com poucas turbulências, que o faziam agarrar os braços da poltrona. Três taças de um vinho branco aceitável ajudaram a reduzir a ansiedade. Quase na metade do caminho, sobre a Bélgica, ele voltou a refletir. Quantas pessoas odiavam voar? Talvez um terço ou metade? Quantas detestavam aquilo tanto quanto ele? Provavelmente não estava sozinho. Pessoas amedrontadas tentavam esconder o sentimento, mas uma olhada ao redor revelava rostos bem parecidos com o seu. Aparentemente, não era o único covarde a bordo. E o vinho era agradável e frutado. Se os terroristas da ULA não conseguira despachá-lo invadindo sua casa com Uzis nas mãos, as chances de acontecer algo ali deviam ser pequenas. Então talvez pudesse relaxar e aproveitar a viagem. Afinal, estava preso ali de qualquer maneira, e o Boeing voava a mais de 900 km/h.
Houve algumas sacudidas na descida, mas Ryan se sentia seguro naquela parte, a terra firme. Racionalmente, sabia que na verdade era a mais perigosa, mas seu estômago não via da mesma forma. Ouviu o chiado dos servomotores e o barulho do trem de pouso e finalmente sentiu-se seguro para observar o solo se aproximando. O pouso foi um pouco acidentado, mas Jack ficou satisfeito. Estava de volta a terra, onde podia ficar em pé e caminhar por conta própria, a uma velocidade segura. Ótimo.
ESTAVAM EM OUTRO PÁTIO, cheio de vagões de carga e gado, e o trem se movia para a frente e para trás, passando por desvios e curvas. A zaichik mantinha o nariz encostado no vidro novamente. Finalmente, passaram por uma cobertura de vidro, e o trem parou na estação do Leste. Carregadores semiuniformizados, de péssima aparência, aglomeravam-se perto do compartimento de bagagens. A zaichik quase pulou do vagão para olhar, correndo à frente da mãe, que se esforçava para alcançá-la carregando as bolsas de mão. Oleg foi até o vagão de bagagens e acompanhou a transferência das malas para a empilhadeira. Eles se afastaram do trem, passando pela bilheteria um tanto antiga e malconservada, e chegaram ao ponto de táxi. Havia muitos táxis, na maioria Ladas fabricados na Rússia — a versão soviética de um antigo modelo da Fiat —, e todos da mesma cor, que talvez fosse bege, debaixo da sujeira. Zaitzev deu um rublo do Comecon e supervisionou a colocação da bagagem no carro. O porta-malas do minúsculo táxi era muito pequeno. Três volumes tiveram que ir no banco da frente, e Svetlana foi obrigada a se sentar no colo da mãe até o hotel. O táxi saiu, fez um retorno suave, porém um pouco suspeito, e seguiu em alta velocidade por uma grande rua de comércio.
O hotel Astoria ficava a apenas quatro minutos da estação. A estrutura era impressionante e quase sugeria um grande hotel de épocas passadas. O saguão era pequeno e bem decorado, com muito carvalho trabalhado à mostra. O recepcionista, que já os aguardava, recebeu-os com um sorriso. Logo depois de entregar a chave do quarto a Zaitzev, ele mostrou a Casa de Cultura e Amizade Soviética, do outro lado da rua. Era tão obviamente uma operação da KGB, que não seria estranho se pusessem uma estátua do Félix de Ferro na entrada. O carregador os conduziu até o pequeno elevador e depois ao terceiro andar, virando à esquerda para chegar ao quarto 307 — em uma das pontas do corredor —, que seria a casa dos Zaitzev pelos próximos dez dias. Pelo menos, era o que todos, exceto Oleg, pensavam. Depois de também ganhar um rublo pelo trabalho, o carregador se retirou, deixando a família no pequeno quarto, pouco maior que o espaço das duas cabines do trem. Havia um único banheiro, mas equipado com banheira e chuveiro, algo de que os três precisavam.
Oleg deixou que a esposa e a filha fossem primeiro.
Embora estivesse em mau estado pelos padrões ocidentais, o quarto, para os soviéticos, era quase palaciano. Zaitzev se sentou em uma cadeira perto da janela e observou as ruas, à procura de um agente da CIA. Sabia que era inútil, mas não conseguia resistir à tentação.
OS HOMENS QUE ELE PROCURAVA não eram americanos. Tom Trent e Chris Morton trabalhavam para Andy Hudson. Ambos tinham cabelos pretos e não tomaram banho naquele dia para ficar mais parecidos com trabalhadores húngaros. Trent vigiara a estação de trem e os localizara chegando, enquanto Morton mantivera-se diante do hotel. Com as boas imagens fotográficas fornecidas por Moscou, identificar a família Zaitzev foi uma tarefa simples. Como última verificação, Morton, que falava um russo perfeito, foi à recepção e confirmou o quarto do "velho amigo", em troca de uma nota de vinte florins e uma piscadela. Depois, andou até o bar, analisando o térreo do hotel para referência futura. Até ali, concluíram ao voltar à embaixada de metrô, as coisas estavam saindo muito bem. O trem atrasou, mas as informações sobre o hotel haviam se provado exatas.
ANDY HUDSON TINHA ALTURA e aparência normais, embora seu cabelo ruivo o caracterizasse como estrangeiro, num lugar onde todos eram muito parecidos. Pelo menos no aeroporto eram mesmo, pensou Ryan.
— Podemos conversar? — perguntou Ryan, enquanto deixavam o aeroporto.
— Sim, o carro está limpo.
Como todos os veículos usados por agentes, o carro passava por inspeções regulares e era sempre estacionado em locais seguros.
— Tem certeza disso?
— Os inimigos não violam as regras de conduta diplomática. Sei que soa estranho, mas é verdade. Além disso, o carro tem um alarme bastante sofisticado. Para dizer a verdade, não sei se eu próprio conseguiria burlá-lo. De qualquer maneira, bem-vindo a Budapeste, Sir John.
Ele pronunciou o nome como Byudapesht, diferentemente do que Ryan pensava.
— Então, sabe quem sou?
— Sim, eu estava em Londres em março passado. Estava na cidade quando realizou seu ato de heroísmo... uma idiotice, você devia ter sido morto, se não fosse aquele irlandês estúpido.
— Já disse isso a mim mesmo muitas vezes, Sr. Hud...
— Andy — interrompeu Hudson.
— Certo. Meu nome é Jack.
— O voo foi bom?
— Qualquer voo de que se saia vivo é bom, Andy. Fale-me da missão e de como fará para cumpri-la.
— Coisa rotineira. Mantemos o Coelho e família sob observação; uma vigilância intermitente. Quando for a hora certa, providenciamos sua retirada da cidade, para a Iugoslávia.
— Como?
— De carro ou caminhão. Ainda não decidimos — respondeu Hudson. — A Hungria é o único possível problema. Os iugoslavos não dão a mínima para pessoas cruzando a fronteira. Eles têm mais de um milhão de cidadãos trabalhando em outros países, nas mais diversas funções. E nossas relações com os guardas da fronteira são muito cordiais — assegurou.
— Suborno?
Hudson confirmou, enquanto fazia a curva ao chegar a um parque de tamanho modesto.
— Para eles, é uma maneira de levar produtos interessantes para as famílias. Conheço pessoas que contrabandeiam drogas pesadas... é claro que não faço uso delas. As drogas são das poucas coisas com que os locais ao menos fingem se preocupar, mas os guardas de fronteira são mais abertos à negociação do que os outros... na verdade, acho que todos são, ou quase todos. É incrível o que se consegue em troca de algum dinheiro vivo ou um par de tênis Reebok. O mercado negro daqui é muito ativo, e as autoridades olham sempre para o outro lado, desde que as coisas não passem muito dos limites, entende?
— Então como a base da CIA acabou arruinada?
— Muito azar. — Hudson explicou a história por um ou dois minutos. — É como ser atropelado por um caminhão numa estrada vazia.
— Caramba, esse tipo de coisa realmente acontece?
— Raramente. Talvez seja como ganhar na loteria.
— Só se ganha jogando — murmurou Ryan.
Aquele era o slogan da loteria estadual de Maryland, que não passava de mais um imposto cobrado dos que eram suficientemente estúpidos para participar — a única diferença era ser um pouco mais cínico do que os outros.
— Isso mesmo. É um risco que todos corremos.
— E como isso se aplica à missão de tirar o Coelho e a família daqui?
— Uma chance em dez mil.
Para Ryan, era uma chance parecida com a das apostas, mas havia uma última preocupação.
— Eles lhe contaram que a mulher e a filha dele não sabem a duração real dessas férias?
Aquilo fez Hudson virar a cabeça.
— Está brincando?
— Não. Foi o que ele disse ao nosso pessoal em Moscou. É uma complicação?
Hudson apertou o volante com força: — Só se ela for escandalosa. Creio que podemos cuidar disso, se for necessário.
Mas seu rosto mostrava claramente que era um motivo de preocupação.
— Me disseram que as mulheres europeias não são tão mandonas quanto as americanas.
— É verdade. Principalmente as russas, pelo que sei. Bem, vamos ver — disse Hudson.
Uma última curva, na Harm Utca, e chegaram à embaixada britânica. Hudson estacionou o carro e desceu.
— Aquele prédio é o Budapesti Rendörfökápitanság, o quartel da polícia. É bom estar numa região segura. Eles não representam uma ameaça para nós: a polícia daqui não é vista de maneira muito positiva. A língua é impossível de entender. Segundo os filólogos, é da família indo-altaica. Originária da Mongólia, acredita? Não tem relação com qualquer língua que já tenha ouvido. Poucas pessoas falam inglês, mas o alemão é um pouco mais comum, pela proximidade com a Áustria. Não se preocupe, pois um de nós sempre estará por perto. Vou levá-lo para conhecer a cidade amanhã de manhã. Não sei quanto a você, mas viagens sempre me deixam cansado.
— A mim também. Chamo de choque de viagem.
— Então, vamos até suas acomodações lá em cima. O refeitório da embaixada é razoável, e seu quarto é confortável, embora sem muito luxo. Deixe-me ajudar com a mala.
Dez minutos depois, Jack viu que não podia reclamar da hospitalidade. Uma cama, banheiro, aparelho de TV e videocassete com uma dezena de fitas. Escolheu The Cruel Sea, com Jack Hawkins, e assistiu ao filme até o fim, antes de cair no sono.
26
TURISTAS
OS TRÊS ACORDARAM QUASE na mesma hora. A pequena zaichik foi a primeira, seguida imediatamente pela mãe e, um pouco depois, pelo pai. O hotel Astoria oferecia até serviço de quarto, uma comodidade desconhecida pelos cidadãos russos. O quarto tinha um telefone; Irina anotou o que cada um queria e ligou. A comida chegaria em cerca de trinta minutos.
— Eu faria mais rápido que isso — comentou Irina, com um pouco de mau humor.
Mas ela não podia negar que o fato de não precisar cozinhar já era uma grande vantagem. Assim, os três revezaram-se no banheiro, arrumando-se para o café da manhã.
RYAN TOMOU BANHO e, às quinze para as oito, estava a caminho do refeitório da embaixada. Logo percebeu que os britânicos apreciavam pequenos luxos, a exemplo dos diplomatas americanos. Serviu-se de ovos mexidos com bacon — adorava bacon inglês, embora tivesse certeza de que as salsichas típicas eram enchidas com serragem — e quatro fatias de torradas brancas. Achava que precisaria de uma refeição farta para aguentar o dia inteiro. O café não era mau. Ao perguntar, ficou sabendo que vinha da Áustria, o que explicava a qualidade.
— O embaixador fez questão — explicou Hudson, sentado diante do convidado americano. — Dickie adora café.
— Quem? — perguntou Jack.
— Richard Dover. É o embaixador. Está em Londres neste momento, viajou há dois dias. Uma pena. Ele gostaria de conhecê-lo. É um bom chefe. Mas, então, dormiu bem?
— Não tenho do que reclamar. A diferença de fuso é de apenas uma hora. Posso ligar para Londres? Não consegui falar com minha esposa antes de sair ontem. Não quero que fique preocupada — disse Jack.
— Sem problemas, Sir John. Pode ligar da minha sala.
— Ela acha que estou em Bonn, cuidando de assuntos da Otan.
— Sério?
— Cathy sabe que trabalho para a CIA, mas não sabe exatamente o que faço. Aliás, eu mesmo não sei o que estou fazendo aqui. Sou analista, não um cara de operações — explicou Ryan.
— Era o que dizia a mensagem a seu respeito. Encare isso como uma nova experiência para sua coleção.
— Obrigado, Andy. — Ryan deu um sorriso meio sem graça. — Mas já tenho bastante experiência, amigo.
— Então, na próxima vez que escrever um memorando, entenderá melhor como são as coisas em território inimigo.
— Para mim, está tudo bem, desde que eu não me arrebente num muro.
— Meu trabalho é impedir que isso aconteça.
Ryan deu um longo gole no café. Não se comparava ao de Cathy, mas, considerando-se que era industrializado, estava razoável.
— Quais são os planos para hoje?
— Depois que acabarmos de tomar café, serei seu guia turístico. Quero que tenha uma ideia de como é a cidade; depois, começaremos a pensar em como completar a Operação BEATRIX.
A FAMÍLIA ZAITZEV teve uma surpresa agradável com a qualidade da comida. Oleg ouvira elogios à cozinha húngara, mas a prova final vinha sempre ao se experimentar, e não houve decepção. Ansiosos por conhecer a nova cidade, eles terminaram a refeição, vestiram-se e foram pedir informações. Sendo a mais interessada nas oportunidades imperdíveis, Irina perguntou onde ficava a rua do comércio. O recepcionista informou que era a Váci utca. Podiam pegar o metrô — o mais antigo do mundo, segundo ele. Assim, andaram pela Andrassy utca e desceram as escadas. O metrô de Budapeste, logo perceberam, não passava de um bonde comum só que debaixo da terra. Era feito de madeira, com o mesmo sistema elétrico usado na superfície. Mas estava abaixo da terra, ainda que pouco abaixo, e funcionava satisfatoriamente. Menos de dez minutos depois, chegaram à Praça Vorosmarty, perto da Váci utca. Não perceberam o homem que os acompanhava a uma distância segura — Tom Trent —, que ficou surpreso ao vê-los caminhando bem na direção da embaixada britânica, na Harmincad utca.
RYAN VOLTOU AO QUARTO para pegar a capa de chuva — Hudson aconselhara-o a estar bem protegido na caminhada da manhã — e depois correu até o foyer, de onde seguiram para a rua. O tempo estava nublado, o que indicava chuva mais tarde. Hudson fez um sinal para o guarda do portão e apontou o caminho a Ryan. O agente britânico olhou primeiro para o lado esquerdo, onde ficava o quartel da polícia, surpreendendo-se ao ver Tom Trent a cinquenta e poucos metros... Seguindo a família Coelho?
— Ei, Jack.
— Sim, Andy?
— Ali estão o maldito Coelho, a Sra. Coelho e a pequena coelhinha.
Ryan se virou para olhar e ficou chocado ao ver as três pessoas que conhecia das fotos andando bem em sua direção.
— Que diabos...
— Devem estar a caminho das compras, no próximo quarteirão. É uma área turística, com muitas lojas e outras atrações. Que coincidência estranha — comentou Hudson, tentando entender o que significava.
— Vamos segui-los? — perguntou Jack.
— Por que não? — devolveu Hudson, retoricamente.
Ele acendeu uma cigarrilha e aguardou o companheiro fazer o mesmo com seu cigarro, enquanto a família Coelho passava. Esperaram a passagem de Trent antes de seguir atrás do grupo.
— Isso significa alguma coisa? — perguntou Ryan.
— Não sei — respondeu Hudson.
Embora não estivesse visivelmente apreensivo, o tom de sua voz sugeria que havia algum problema. Eles prosseguiram mesmo assim.
A situação se esclareceu pouco depois. Ficou claro que a família estava indo às compras, com a Sra. Coelho na frente, como costumam fazer todas as mamães-coelho.
Para Ryan, a Váci utca parecia uma rua antiga, apesar dos prédios, que deviam ter sido restaurados depois da Segunda Guerra Mundial. A cidade tinha sido disputada, de maneira impiedosa, no início de 1945. Ryan observou as vitrines e se deparou com a variedade habitual de produtos, porém de baixa qualidade e em menor quantidade do que a encontrada nos Estados Unidos ou Londres. Contudo, pareciam agradar à família Coelho, cuja matriarca gesticulava com entusiasmo a cada vitrine que passava.
— A mulher acha que está na Bond Street — observou Hudson.
— Não exatamente — devolveu Jack.
Ele já havia deixado boa parte de seu dinheiro na Bond Street. Talvez fosse a mais refinada rua de comércio no mundo — para os que tinham condições de caminhar em suas calçadas. Mas como seriam as coisas em Moscou, e como um russo via a área de compras de Budapeste? Jack achava que todas as mulheres se pareciam em um aspecto: gostavam de olhar vitrines até que a pressão de não comprar nada as fazia perder o controle. No caso da Sra. Coelho, a primeira parte durou 0,4 quarteirão, quando ela finalmente entrou numa loja de roupas, arrastando sua coelhinha, enquanto o Sr. Coelho seguia por último, demonstrando clara relutância.
— Isso vai demorar um pouco — previu Ryan. — Já passei por essa situação várias vezes.
— O que quer dizer, Jack?
— Você é casado, Andy?
— Sim.
— Tem filhos?
— Dois garotos.
— Tem sorte. O custo de manutenção das meninas é maior, companheiro.
Eles se aproximaram para avaliar a loja em questão. Artigos para mulheres e meninas. É isso mesmo. Elas vão demorar um pouco, pensou Jack.
— Bem, já sabemos com que se parecem. Hora de ir embora, Sir John. — Hudson apontou em diferentes direções, como se estivesse descrevendo a Váci utca a um visitante recém-chegado a Budapeste, e depois levou o convidado de volta à embaixada, com os olhos vasculhando tudo como um radar. Continuou gesticulando sem qualquer sincronia com suas palavras. — Agora os conhecemos. Não percebi nenhuma cobertura aparente. Isso é bom. Se fosse uma armadilha, não deixariam a isca chegar tão perto de nós. Eu, pelo menos, não faria dessa forma, e a KGB é bem previsível nesse sentido.
— Acha mesmo?
— Sim, claro. Ivan é muito competente, porém previsível. Exatamente como jogam futebol ou xadrez: um estilo bem direto, com excelente execução, mas sem originalidade ou elegância. Suas ações são sempre limitadas. É a cultura deles. Não encorajam as pessoas a se destacar, não é?
— É verdade, mas seus líderes sempre se destacam.
— O último morreu há trinta anos, e eles não desejam outro.
— Concordo. — Não havia sentido em contestar. O sistema soviético não encorajava qualquer individualismo. — Para onde vamos agora?
— À sala de concertos, ao hotel, pontos de interesse. Acho que já tivemos surpresas suficientes esta manhã.
Meninos geralmente odeiam fazer compras, mas o mesmo não pode ser dito das meninas. Certamente não era o caso da zaichik, que nunca vira uma variedade tão grande de roupas coloridas, nem nas lojas exclusivas às quais seus pais passaram a ter acesso recentemente. Com a mãe escolhendo e avaliando, Svetlana experimentou seis casacos, variando de um verde-floresta a um vermelho incandescente com gola de veludo preto. Experimentou mais dois, porém ficou mesmo com o vermelho, que insistiu em usar imediatamente. A parada seguinte coube a Oleg Ivanovich. Ele adquiriu três videocassetes, todos cópias não autorizadas de modelos Betamax da Sony, originários do Japão. A loja se encarregaria de entregá-los no hotel — turistas ocidentais faziam compras ali. Aquilo cuidava de metade da lista de encomendas de colegas do trabalho. Ele decidiu comprar também algumas fitas, do tipo que sua filha não podia ver, mas que fariam sucesso entre os companheiros do Centro. No final, gastou quase dois mil rublos do Comecon, os quais, de todo modo, teriam pouca utilidade no Ocidente.
A expedição de compras prosseguiu quase até a hora do almoço. Foi quando notaram que estavam carregando mais produtos do que conseguiam. Decidiram descer ao antigo metrô e retornar ao hotel para deixar as sacolas, antes de escolher um programa para fazer com a filha.
A PRAÇA DOS HERÓIS fora construída pelos Habsburg para comemorar o domínio real sobre a Hungria no fim do século XIX, com estátuas de antigos reis húngaros, remontando a Santo Estêvão — "Istvan" na língua magiar — cuja coroa, conhecida pelo crucifixo torto, Jimmy Carter devolvera ao país havia poucos anos.
— Eles contam que isso aconteceu quando Estêvão bateu com sua coroa em outra. Devolvê-la parece ter sido uma decisão inteligente da parte de Carter. É um símbolo do nacionalismo, entende? O regime comunista não podia rejeitá-la e, ao aceitá-la, teve que reconhecer que a história do país é muito anterior ao marxismo-leninismo. Não sou exatamente um fã de Carter, mas essa foi, na minha opinião, uma jogada sutil da parte dele. Basicamente, os húngaros detestam o comunismo. É uma nação bem religiosa.
— Realmente tenho visto muitas igrejas — comentou Ryan. Ele havia contado seis ou sete no caminho até o parque.
— Isso também lhes dá um sentido de identidade política. O governo não gosta, mas é algo muito grande e perigoso para se tentar destruir, o que leva à existência de uma paz nervosa entre as duas partes.
— Se tivesse que apostar, colocaria meu dinheiro na Igreja.
Hudson fez a curva.
— Eu também, Sir John.
Ryan olhou ao redor.
— É uma praça gigantesca.
Parecia haver mais de dois quilômetros quadrados de pavimento.
— Ela foi construída em 1956 — explicou Hudson. — Os soviéticos queriam que fosse grande o bastante para receber aviões de transporte de tropas. Dá para pousar um NA-10 Cub bem aqui. Fica mais rápido trazer tropas aerotransportadas, para o caso de os nativos se revoltarem novamente. Seria possível pousar, digamos, de dez a doze Cubs, cada um com 150 soldados. Eles protegeriam o centro da cidade dos contrarrevolucionários e esperariam os tanques vindos do leste. Não é um plano brilhante, mas é como eles pensam.
— E se eles estacionarem dois ônibus aqui e estourarem os pneus?
— Eu não disse que era um plano perfeito, Jack — respondeu Hudson. — Podiam fazer até melhor, colocando minas terrestres. Acabariam matando alguns dos desgraçados e começando um pequeno incêndio. Seria impossível um piloto avistá-las na aproximação. E os pilotos de cargueiro são os mais cegos e estúpidos de todos.
Ivan acredita que pode enviar tropas antes de a situação realmente sair de controle. É, faz sentido, pensou Ryan.
— Sabe quem era o embaixador soviético em 1956?
— Não... espere um pouco, acho que lembro... não era Andropov?
Hudson confirmou.
5 — O próprio Yuriy Vladimirovich. Isso explica por que ele é tão "amado" pelos nativos. Um monte de gente perdeu a vida naquela aventura.
Ryan lembrou que estava na escola primária na época — muito jovem para perceber as complicações. Era o outono de um ano de eleições presidenciais. Ao mesmo tempo, a Grã-Bretanha e a França haviam decidido invadir o Egito para proteger seus direitos sobre o Canal de Suez. Eisenhower estava de mãos atadas, tendo que enfrentar duas crises simultâneas. Mas os Estados Unidos receberam uma grande leva de imigrantes, ou seja, não fora uma perda total.
— E a polícia secreta?
— Descendo a Andrassy utca a partir daqui. Número 60. Fica em um prédio de aparência normal, que ainda parece pingar sangue. Hoje não é tão sinistra como antigamente. O contingente original era formado por devotos do Félix de Ferro, e mais brutal do que a Gestapo de Hitler. Mas, depois da rebelião fracassada, tornou-se um pouco mais moderado e mudou seu nome de Allamvedelmi Osztaly para Allamvedelmi Hivatal. Departamento de Segurança do Estado em vez de Divisão de Segurança do Estado. O antigo chefe foi substituído e, assim, eles ficaram mais corteses. Antes, tinham uma merecida reputação de torturadores. Agora, supostamente, isso é coisa do passado. Mas a reputação, por si, é suficiente para desmontar um suspeito. É conveniente portar um passaporte diplomático — concluiu Andy.
— Eles são competentes? — perguntou Jack, em seguida.
— Patetas. Talvez tenham recrutado pessoas competentes em alguma época, mas isso foi em passado distante. Deve ser uma consequência duradoura das maldades que fizeram nos anos 1940 e 1950. As pessoas de bem não querem trabalhar lá, e não há qualquer benefício do tipo que a KGB oferece a seus recrutas. Na verdade, este país tem universidades magníficas, de onde saem engenheiros e cientistas de alto nível. E a escola médica Semmelweis é de primeira linha.
— Metade dos caras envolvidos no projeto Manhattan era composta de húngaros, não?
Hudson fez que sim.
— Sim, exato, e muitos eram judeus húngaros. Não sobraram muitos, embora na guerra tenham salvado metade dos seus. O chefe de Estado, almirante Horthy, foi provavelmente assassinado por causa disso. Ele morreu sob o que foi chamado eufemisticamente de "circunstâncias misteriosas". É difícil definir que tipo de pessoa era, mas há uma linha de pensamento que o vê como anticomunista fanático, e decididamente sem apoiar o nazismo. Talvez tenha sido apenas um homem que escolheu época e lugar errados para nascer. Talvez nunca venhamos a saber.
Hudson estava gostando de bancar o guia turístico para variar. Uma mudança de ritmo nada desagradável em relação à vida de espião-rei — não, no máximo espião-príncipe.
Mas era hora de voltar ao trabalho.
— Certo, como vamos executar essa missão? — perguntou Jack.
Ele olhava em volta, atrás de uma possível sombra. Se houvesse alguma por perto, era invisível, a não ser que estivessem sendo seguidos por uma frota dos onipresentes — e sujos — Ladas. Hudson teria que cuidar daquela possibilidade.
— Vamos pegar o carro. Temos que ver o hotel.
Foram necessários poucos minutos para descer a Andrassy utca, rua marcada pela arquitetura de estilo francês. Ryan nunca estivera em Paris, mas, fechando os olhos, pensou que podia ter acabado de passar por lá.
— Bem ali — disse Hudson, encostando o carro.
Uma vantagem dos países comunistas: era fácil encontrar vaga.
— Não há ninguém nos observando? — perguntou Ryan, tentando se virar sem chamar muita atenção.
— Se houver, é bem esperto. Muito bem, do outro lado da rua fica a base da KGB. É a Casa de Cultura e Amizade Soviética. Infelizmente, não há muita cultura ou amizade ali. Calculamos que abrigue trinta ou quarenta agentes da KGB. Nenhum interessado em nós — ressaltou Hudson. — O húngaro comum prefere contrair gonorreia a entrar naquele lugar. É difícil explicar o quanto eles odeiam os soviéticos por aqui. Os nativos aceitam o dinheiro deles, e talvez até troquem um aperto de mão depois de recebê-lo, mas para aí. Eles se lembram bem de 1956, Jack.
O hotel pareceu a Ryan saído do que H.L. Mencken chamara de idade das aparências — ambição de beber champanhe com orçamento de cerveja.
— Já fiquei em lugares melhores — comentou Jack.
Não se comparava ao Plaza, em Nova York, ou ao Savoy, em Londres.
— Nossos amigos russos provavelmente não.
Caramba, se conseguirmos levá-los para os Estados Unidos, eles vão se sentir no paraíso, pensou Jack.
— Vamos entrar. Tem um bar legal lá dentro — disse Hudson.
Lá estava, virando à esquerda e descendo alguns degraus, quase como uma discoteca de Nova York, porém não tão barulhenta. A banda não havia chegado e só havia discos tocando. Nada muito alto. Jack notou que a música era americana. Estranho.
Hudson pediu duas taças de tokajy. Ryan experimentou. Não era ruim.
— Acho que também produzem isso na Califórnia. Eles chamam de tokajy, a bebida nacional da Hungria. É uma questão de gosto, mas é melhor do que grapa.
Ryan riu: — Eu sei. Grapa quer dizer "fluido de isqueiro" em italiano. Meu tio Mario adorava. De gustibus, como costumam dizer. — Ele olhou ao redor. Não havia ninguém a menos de cinco metros. — Podemos conversar em segurança?
— É melhor só observar. Virei aqui mais tarde. O bar fecha depois da meia-noite, e preciso saber como são os funcionários. Nosso Coelho está no quarto 307. Terceiro andar, fim do corredor. Acesso fácil pelas escadas de incêndio. Três entradas: pela frente e pelos dois lados. Se houver só um funcionário na recepção, como espero, basta distraí-lo para subir com nossos pacotes e retirar a família Coelho.
— Subir com os pacotes?
Hudson se virou.
— Eles não contaram a você?
— Contaram o quê?
Merda. Eles nunca passam as informações a todo mundo que precisa delas. Sempre a mesma coisa, pensou Hudson.
— Falaremos disso depois.
Epa, pensou Ryan imediatamente. Havia alguma coisa de que não ia gostar. Com certeza. Talvez devesse mesmo ter trazido a Browning. Ai, merda. Ele terminou o drinque e foi procurar o banheiro masculino. Os símbolos ajudaram a achá-lo. Notou que o banheiro não era lavado havia algum tempo e agradeceu por não precisar se sentar.
Andy o esperava do lado de fora, e os dois saíram. Logo estavam de volta ao carro.
— Certo, podemos discutir aquele probleminha agora? — perguntou Jack.
— Mais tarde — disse Hudson.
A resposta deixou Ryan um pouco mais preocupado.
Os PACOTES HAVIAM ACABADO DE CHEGAR ao aeroporto: três caixas grandes com adesivos diplomáticos. Um oficial da embaixada aguardava bem na saída, para evitar interferências. Alguém tomara o cuidado de colocar os corpos em caixas identificadas como de uma empresa de eletrônicos — no caso, a alemã Siemens — para fazer parecer que eram máquinas de codificação ou outros objetos pesados e frágeis. Assim, foram carregados em caminhão da embaixada e levados ao centro da cidade causando pouco mais do que curiosidade. A presença do representante da embaixada evitara que passassem no aparelho de raios X, um cuidado importante. Certamente, o pessoal da alfândega imaginara que a radiação podia causar danos aos microchips no interior das caixas, o que seria informado no relatório ao Belügyminisztérium. Em pouco tempo, seria avisado a todos os possíveis interessados, como a KGB, que a embaixada britânica em Budapeste havia recebido novos equipamentos de encriptação.
A informação seria devidamente arquivada e, depois, esquecida.
— GOSTOU DO PASSEIO? — perguntou Hudson, de volta ao escritório.
— Melhor do que uma auditagem de verdade. Tudo bem, Andy, quer me explicar o que está acontecendo?
— A ideia foi do seu próprio pessoal. Temos que retirar a família Coelho de uma maneira que a KGB ache que estão mortos, descartando a possibilidade de serem desertores propensos a cooperar com o Ocidente. Por isso, precisamos pôr três corpos no quarto do hotel, depois de tirarmos Flopsy, Mopsy e Cotton-tail de lá.
— Certo — disse Ryan. — Simon me falou sobre isso. E depois?
— Depois botamos fogo no quarto. Os três corpos são de vítimas de incêndios domésticos. Devem ter chegado hoje. — Ryan só conseguia sentir uma repulsa profunda, que ficou patente em seu rosto. — Nosso ramo de atividade não é sempre certinho, Sir John.
— Pelo amor de Deus, Andy! De onde vieram esses corpos?
— Isso importa?
Ryan respirou profundamente: — Não, acho que não. E depois?
— Levamos os três para o sul. Vamos nos encontrar com um contato meu, Istvan Kovacs, um contrabandista profissional que será muito bem pago para nos atravessar pela fronteira até a Iugoslávia. De lá, seguiremos para a Dalmácia. Muitos ingleses gostam de pegar um sol por lá. Embarcamos a família Coelho, e você também, em voo comercial para a Inglaterra. Pronto. Para satisfação de todos, a operação estará concluída.
— Certo. — O que mais posso dizer?, pensou Jack. — Quando será isso?
— Acho que em dois ou três dias.
— Você vai levar alguma coisa?
— Quer dizer, uma arma?
— Não, um estilingue — ironizou Ryan.
Hudson mexeu a cabeça negativamente.
— As armas não são muito úteis. Se tivermos problemas, provavelmente haverá soldados treinados, carregando fuzis automáticos. Uma pistola não serve para nada, a não ser fazer com que os inimigos atirem em nós, com uma chance muito maior de nos acertar. Não, se acontecer algo, a melhor saída é tentar o diálogo, usando os documentos diplomáticos. Já temos passaportes britânicos para os Coelhos. — Ele tirou um envelope grande da gaveta da escrivaninha. — Parece que o senhor Coelho fala inglês fluentemente. Deve ser suficiente.
— Está tudo planejado, não é mesmo?
Ryan não sabia se concordava ou não com o que acabara de dizer.
— Sou pago para isso, Sir John.
E eu não tenho autoridade para fazer críticas, percebeu Ryan.
— Correto. Você é o profissional por aqui. Eu sou apenas um maldito turista.
Havia uma mensagem na mesa de Hudson.
— Tom Trent fez um relatório. Ele não viu ninguém seguindo a família Coelho. A operação parece estar caminhando tranquilamente. Eu diria até que vai muito bem. — Exceto pelos corpos carbonizados congelados no subsolo da embaixada, esqueceu de acrescentar. — Foi bom termos visto os três hoje de manhã. Parecem gente comum, o que ajuda muito. Pelo menos, não estamos tentando tirar a Grace Kelly do país. Pessoas como ela chamam atenção, mas não é o caso da Sra. Coelho.
— Flopsy, Mopsy e Cotton-tail... — sussurrou Ryan.
— É só uma questão de trocá-los de viveiro.
— Se está dizendo, cara — disse Ryan, sem convicção. Aquele homem apenas levava uma vida diferente da sua. Cathy também. Ela cortava os olhos das pessoas, o que faria Jack desmaiar, como uma mulher diante de uma cascavel na banheira. Apenas um modo diferente de ganhar a vida. Que definitivamente não fazia o seu gênero.
TOM TRENT ACOMPANHOU os três na longa caminhada do hotel ao zoológico da cidade, um lugar sempre adequado para se levar crianças. O leão e o tigre machos eram bem imponentes, e a casa dos elefantes — construída em estilo árabe e tom pastel — abrigava diversos paquidermes interessantes. Depois de comprarem um sorvete de casquinha para a menina, a parte turística do dia chegou ao fim. A família Coelho caminhou de volta ao hotel, com o pai carregando a filha adormecida pelo último meio quilômetro. Foi o trecho mais complicado para Trent: permanecer sem ser notado em dois quilômetros de campo de pouso desafiava seu talento profissional. Mas a família Coelho não estava tão alerta. Ao chegar ao Astoria, o agente escapuliu para um banheiro e trocou o lado do casaco reversível, de modo que pelo menos a cor da roupa mudasse. Meia hora depois, os Zaitzev saíram de novo; desta vez, porém, entraram no restaurante popular que ficava bem ao lado do hotel. Embora não se destacasse por nada, a comida parecia saborosa e, mais importante, barata. Enquanto ele observava, os três encheram os pratos com a culinária local e se sentaram para comer. Todos reservaram espaço para um strudel de maçã, tão gostoso em Budapeste quanto os feitos na Áustria, mas custando um décimo. Passados mais quarenta minutos, eles pareciam totalmente esgotados e com os estômagos cheios. Sequer deram uma caminhada pelo quarteirão depois da refeição para assentar a comida antes de pegar o elevador até o terceiro andar e, provavelmente, dormir. Trent esperou meia hora para se assegurar e pegou um táxi até a Praça Vorosmarty. Após um longo dia, ainda tinha que escrever o relatório para Hudson.
O CHEFE DA BASE E RYAN tomavam cerveja no refeitório quando o agente chegou à embaixada. Depois das apresentações, ele também pediu uma cerveja.
— Bem, o que acha, Tom?
— Parece que são exatamente o que nos disseram. A garotinha, que o pai chama de zaichik... significa "coelhinha", não? ... é uma criança encantadora. Fora isso, é uma família comum, fazendo coisas comuns. Ele comprou três videocassetes na Váci utca. A loja mandou entregar no hotel. Depois deram uma volta.
— O quê?
— Um passeio, uma caminhada, como os turistas costumam fazer — explicou Trent. — Foram ao zoológico. A menina ficou fascinada com os animais, porém mais ainda com o novo casaco vermelho de gola preta que eles compraram de manhã. No geral, parecem uma família simpática — concluiu o espião.
— Nada de diferente? — perguntou Hudson.
— Absolutamente nada, Andy. E se alguém os estava seguindo, não consegui perceber. A única surpresa aconteceu de manhã, quando eles passaram bem em frente à embaixada, a caminho das compras. Aquele foi um momento tenso. Mas parece que foi pura coincidência. A Váci utca é a área de compras mais procurada tanto por quem vem do Leste Europeu quanto pelos ocidentais. O recepcionista deve ter sugerido que pegassem o metrô até aqui.
— Totalmente trivial, não? — perguntou Jack, procurando a caneca de cerveja.
— Parece que sim — respondeu Trent.
— Certo, quando começamos a agir? — perguntou o americano em seguida.
— Bem, o tal de Rozsa abre a série de concertos amanhã à noite. Que tal no dia seguinte? Daremos uma chance à Sra. Coelho de ouvir sua música. Temos como arranjar entradas para nós? — perguntou Hudson.
— Já está feito — respondeu Trent. — Camarote 6, lado direito do teatro, vista privilegiada do lugar todo. Há vantagens em ser diplomata, não é mesmo?
— Qual é o programa?
— Johann Sebastian Bach. Os três primeiros concertos de Brandemburgo e alguns outros trabalhos.
— Deve ser uma apresentação agradável — comentou Ryan.
— As orquestras daqui são muito boas, Sir John.
— Andy, chega desse negócio de sir, está bem? Meu nome é Jack. John Patrick, para ser mais exato, mas sou chamado de Jack desde os três anos.
— Você sabe que isso é uma honraria?
— Sei, e já agradeci a Sua Majestade, mas isso não existe no lugar de onde eu venho, certo?
— É, carregar uma espada pode ser inconveniente na hora de sentar — brincou Trent.
— E cuidar de um cavalo também deve ser uma chateação. — Hudson deu uma risada. — Sem contar o esforço que se faz nos combates.
— Tudo bem, eu mereci — disse Ryan. — É que só penso em tirar o Coelho daqui.
— Faremos isso, Jack — garantiu Hudson. — E você estará por perto para testemunhar.
— TODOS ESTÃO EM BUDAPESTE — relatou Bostock. — O Coelho e sua família estão em um hotelzinho chamado Astoria.
— Não existe uma região de Nova York com esse nome? — perguntou o DCI.
— Sim, no Queens — confirmou Greer. — O que mais sobre o hotel?
— Atende plenamente aos nossos propósitos — informou o DDO interino. — Basil diz que a operação ainda não entrou na fase prática. Não foram identificadas pessoas vigiando a família. Tudo parece estar dentro do previsto. Acho que nossos primos têm um chefe competente em Budapeste. Os três corpos chegaram lá hoje. Agora é só uma questão de fazer tudo certinho.
— Expectativa de sucesso? — perguntou o DDI.
— Ah, acredito que em torno de 75 por cento, almirante — estimou Bostock. — Talvez mais do que isso.
— E Ryan? — prosseguiu Greer.
— Sem reclamações de Londres. Acredito que ele esteja se comportando.
— É um bom garoto. Tem de ser.
— Imagino o quanto ele está infeliz — disse o juiz Moore.
Os outros dois sorriram e balançaram a cabeça. Bostock falou primeiro. Como todo o pessoal de Operações, ele tinha reservas em relação aos membros muito mais numerosos da Divisão de Inteligência.
— Provavelmente não está tão à vontade quanto em sua mesa, sentado em sua confortável cadeira giratória.
— Ele vai se sair bem, cavalheiros — assegurou Greer, torcendo para estar certo.
— Eu me pergunto o que esse cara terá para nós... — disse Moore.
— Saberemos em uma semana — observou Bostock.
Ele era sempre o mais otimista. E três em quatro era uma boa chance de sucesso.
Principalmente quando não se estava arriscando a própria pele.
O juiz Moore acrescentou seis horas ao que marcava o relógio de mesa. O pessoal devia estar dormindo em Budapeste. E em breve ocorreria o mesmo em Londres. Ele se lembrou de suas aventuras no campo: a maioria consistia em aguardar pessoas para encontros ou preencher relatórios de contato para os burocratas que ficavam em casa — e ainda comandavam a CIA. Não se podia mudar o fato de que a agência era uma operação do governo, sujeita às mesmas restrições e à mesma ineficiência. Mas naquele caso, na Operação BEATRIX, eles estavam fazendo as coisas acontecerem rapidamente, para variar... só porque o Coelho dissera que as comunicações do governo estavam comprometidas. Não porque ele garantira possuir informações sobre uma vida inocente que podia ser perdida. O governo tinha prioridades, e estas nem sempre correspondiam às necessidades de um mundo racional. Ele era o diretor da CIA, supostamente no comando — de acordo com a lei federal — de todas as operações de obtenção e análise de informações do governo dos Estados Unidos. No entanto, fazer aquela burocracia operar eficientemente era equivalente, no aspecto funcional, a encalhar uma baleia e convencê-la a voar. Por mais que se gritasse, não havia como desafiar a gravidade. O governo era uma obra do homem, portanto devia ser possível ao homem mudá-lo, mas na prática não acontecia dessa forma. Enfim, havia três chances em quatro de conseguirem retirar o russo. Teriam oportunidade de interrogá-lo em um lugar seguro, nas montanhas da Virginia. Deixariam que esfriasse a cabeça e talvez descobrissem coisas importantes e úteis. Mas o jogo não mudaria. E, provavelmente, a CIA também não.
— Algo que devamos avisar a Basil?
— Nada de que me lembre, senhor — respondeu Bostock. — Temos apenas que ficar sentados, esperando que o pessoal dele cumpra a missão.
— Certo — disse o juiz Moore.
APESAR DAS TRÊS CANECAS DE CERVEJA escura britânica, Ryan não dormiu bem.
Não conseguiu pensar em nada que estivesse esquecendo. A equipe de Hudson parecia competente, e a família Coelho, bem comum, passeando pelas ruas naquela manhã. Eram três pessoas, uma das quais queria muito sair da União Soviética, um desejo razoável na opinião de Ryan... embora os russos formassem um dos povos mais fanaticamente patrióticos do mundo. Mas toda regra admitia exceções, e estava claro que aquele homem tinha uma consciência e sentia a necessidade de impedir... algo. Fosse o que fosse, Jack não sabia. E Jack não era do tipo que recorria a palpites. Especulações não faziam parte de uma análise, e era por boas análises que ele recebia seu minguado salário. Seria interessante descobrir. Ryan nunca conversara pessoalmente com um desertor.
Tinha lido material vindo de alguns e enviara perguntas por escrito a outros, para obter respostas a questionamentos específicos, mas nunca estivera cara a cara com um, observando seu rosto enquanto respondia. Como em jogos de cartas, era a única forma de saber a verdade. Se não tinha a mesma habilidade de sua esposa — havia algo de especial no treinamento médico —, também não era um menino de três anos, que acreditava em tudo. Não, Jack queria ver o sujeito, conversar com ele e analisar sua mente, para avaliar a confiabilidade do que dizia. Afinal, o Coelho podia ser um golpe. Ryan ouvira dizer que a KGB já havia feito aquilo. Houve um desertor, que aparecera depois do assassinato de John Kennedy, garantindo ao mundo inteiro que a KGB não teve participação na ação. Aquilo, entretanto, era o suficiente para a CIA suspeitar exatamente do contrário. A KGB podia ser muito ardilosa, mas, como todas as pessoas inteligentes e ardilosas, acabava errando a mão, mais cedo ou mais tarde — e quanto mais tarde, pior era a jogada. Sim, eles entendiam o Ocidente e como seus povos pensavam. Mas Ivan não tinha três metros de altura, nem era um gênio em todos os assuntos, a despeito do que alguns medrosos em Washington — e até em Langley — achavam.
Todos estavam sujeitos a cometer erros. Ele aprendera aquilo com seu pai, que passara a vida capturando assassinos, alguns dos quais se achavam muito espertos. Não, a única diferença entre um sábio e um tolo era o tamanho de seus erros. Errar era humano e quanto mais inteligente e poderoso, maiores as consequências de uma falha. Aquele fora o caso de Lyndon Johnson e o Vietnã, uma guerra da qual Jack escapara por pouco pela idade: um equívoco colossal impingido ao povo dos Estados Unidos pelo mais astuto estrategista político de seu tempo, um homem que acreditava que suas habilidades políticas se traduziriam em poder internacional, só para descobrir que comunistas asiáticos não pensavam como senadores do Texas. Todos os homens tinham limitações.
Só que algumas eram mais perigosas do que outras. Enquanto a genialidade conhecia seus limites, a estupidez era irrestrita.
Estava deitado em sua cama, fumando um cigarro e olhando para o teto, imaginando o que viria amanhã. Outra manifestação de Sean Miller e seus terroristas? Espero que não, pensou Jack, ainda se perguntando por que Hudson não teria uma arma por perto para as próximas aventuras. Tinha que ser algo europeu, decidiu. Os americanos em solo hostil gostavam de ter pelo menos um amigo do lado.
27
A FUGA DOS COELHOS
OUTRO DIA EM UMA cidade estranha, pensou Zaitzev, enquanto o sol começava a subir no leste, duas horas mais cedo do que em Moscou. Em casa, ainda estaria dormindo. Ele esperava que, em pouco tempo, pudesse acordar em outro lugar, com um fuso horário totalmente distinto. Por enquanto, apenas apreciava o momento, deitado. O sol mal passara da linha do horizonte. Estava escuro, porém já não era mais noite; clareando, mas ainda não de manhã; o ponto intermediário de um novo dia. Poderia ser um momento agradável. Uma criança apreciaria aquele instante, uma ocasião mágica em que o mundo pertencia somente àqueles que estavam acordados. Todos os outros permaneciam ocultos em suas camas. Uma criança podia andar como um pequeno rei, até sua mãe pegá-la e arrastá-la de volta para a cama.
Mas Zaitzev permanecia deitado, ouvindo a respiração lenta da esposa e da filha, agora totalmente acordado, livre para pensar sozinho. Quando eles entrariam em contato? O que diriam? Mudariam de ideia? Trairiam sua confiança? Por que estava tão apreensivo em relação a tudo? Não era hora de começar a confiar um pouco na CIA? Ele não era um trunfo importante? Não era valioso para eles? Até a KGB, com seu comedimento, dava todo o conforto e prestígio a quem passava para seu lado. Todo o álcool que Kim Philby conseguisse beber. Todos os zhopniki com que Burgess pudesse transar. Em ambos os casos, segundo os relatos, os apetites eram vorazes. Mas histórias como aquelas sempre eram exageradas e advinham ao menos em parte da antipatia dos soviéticos por homossexuais.
Zaitzev não era como eles. Era um homem de princípios, certo? Claro que era. Por princípio, estava fazendo malabarismo com a própria vida. Como o homem que brincava com facas no circo. A exemplo daquele artista, só ele sairia ferido em caso de erro de avaliação. Oleg acendeu o primeiro cigarro do dia, tentando repassar tudo pela centésima vez, procurando uma via alternativa de ação. Ele podia simplesmente ir aos concertos, continuar fazendo compras, pegar o trem de volta à estação Kiev e se tornar um herói para os colegas por levar os videocassetes, as fitas pornográficas, as meias-calças para as esposas e provavelmente alguma coisa para si mesmo. E a KGB nunca ficaria sabendo.
Mas, neste caso, o padre polonês morrerá em mãos soviéticas... mãos que tenho o poder de deter. Se isso acontecer, que tipo de homem você verá no espelho, Oleg Ivanovich?
Tudo acabava sempre no mesmo ponto, não?
Como não havia sentido em voltar a dormir, ele ficou ali deitado, fumando e observando o céu clarear através da janela do hotel.
CATHY RYAN SÓ ACORDOU DE VERDADE quando sua mão percebeu um vazio onde devia estar o marido. De alguma forma, aquilo a fez despertar automaticamente, mas logo ela lembrou que ele estava fora da cidade e do país. E que, consequentemente, estava sozinha. Na prática, uma mãe solteira, o que não esperava quando se casara com John Patrick Ryan. Ela não era a única mulher do mundo cujo marido viajava a negócios. Seu pai vivia fazendo isso quando era criança; portanto, Cathy devia estar acostumada. Mas era a primeira vez de Jack, e a ideia não agradava nem um pouco. O problema não era suportar a situação: ela lidava diariamente com adversidades maiores. Também não se preocupava com a possibilidade de Jack botar as asinhas de fora enquanto estivesse longe. Bastava ter pensado nisso com certa frequência em relação às viagens do pai, que mantinha um casamento complicado com a mãe. Cathy não sabia o que a própria mãe, já morta, pensava sobre o assunto na época. Mas com Jack não havia aquele tipo de situação. Ela o amava e sabia que a recíproca era verdadeira.
Acreditava, porém, que pessoas que se amavam deviam estar sempre juntas. Se tivesse conhecido Jack quando ele ainda era marine, seria um problema com o qual precisaria aprender a lidar. Pior: um dia talvez tivesse que suportar sua presença em lugares perigosos, o que, para ela, corresponderia a um verdadeiro inferno. Contudo, só o conhecera depois de tudo aquilo. O próprio pai a convidara para jantar e, na última hora, tivera a ideia de levar Jack, um jovem e talentoso corretor de instintos aguçados, pronto para sair do escritório de Baltimore para Nova York. Ele acabara se surpreendendo — positivamente, no começo — com o interesse imediato entre os dois. Mas depois viera a revelação de que Jack queria pegar seu dinheiro e voltar a dar aulas de história. Ela lidava muito mais diretamente com a insatisfação do pai, já que Jack mal tolerava Joseph Muller, vice-presidente sênior da Merrill Lynch Pierce Fenner and Smith e qualquer outra empresa que tivessem adquirido nos últimos cinco anos. Joe continuava sendo "papai" para Cathy, e "ele" — que correspondia a "àquele babaca" — para Jack.
No que será que ele está trabalhando?, pensou ela. Bonn? Alemanha? Assuntos da Otan? O maldito negócio da inteligência. Analisar material secreto e fazer observações igualmente secretas que seguiam para pessoas que podiam ou não ler e refletir sobre o assunto. Ela, pelo menos, atuava em um ramo honesto, curando pessoas doentes, ou ajudando-as a enxergar melhor. Não era o caso de Jack. Não significava que o marido fizesse coisas inúteis. Ele explicara no início do ano: havia pessoas mal-intencionadas pelo mundo, e alguém tinha que lutar contra elas. Felizmente, não cumpria seu papel com uma arma carregada. Cathy odiava armas, mesmo as que evitaram seu sequestro e assassinato na casa de Maryland, na noite que acabara abençoada com o nascimento do pequeno Jack. Ela havia cuidado de muitos ferimentos a bala na emergência, durante a residência; o bastante para conhecer o mal que causavam, embora não o mal que talvez evitassem em outros lugares. Seu mundo era um pouco fechado nesse sentido, um fato que apreciava, mas também a razão pela qual permitia que Jack mantivesse alguns daqueles objetos por perto — onde as crianças não pudessem alcançar, nem com a ajuda de uma cadeira. Uma vez, ele tentara ensiná-la a usar uma arma, e ela se negara até a tocar naquela coisa. Algo lhe dizia que talvez estivesse exagerando, mas ela era mulher e pronto... Jack nunca parecera se importar muito.
Por que ele não está aqui?, perguntou-se no escuro. O que poderia ser tão importante a ponto de levar um marido para longe de sua esposa e filhos? Ele não podia lhe contar. Aquilo a deixava realmente irritada. E não havia como evitar. E não era como se estivesse lidando com um paciente terminal de câncer. Como se ele estivesse transando às escondidas com uma prostituta alemã. Mas... droga. Ela só queria o marido de volta.
A MIL E TREZENTOS QUILÔMETROS DALI, Ryan já estava acordado, de banho tomado, barbeado, arrumado e pronto para começar o dia. Havia alguma coisa nas viagens que tornava fácil levantar de manhã. Mas, agora, não tinha nada para fazer até o refeitório da embaixada abrir. Viu o aparelho ao lado da cama e pensou em ligar para casa, mas não sabia usar o sistema telefônico. Provavelmente também precisaria da permissão — e do auxílio — de Hudson para completar aquela missão. Merda. Acordara às três da manhã pensando em se virar e dar um beijo na bochecha de Cathy; era algo que gostava de fazer, mesmo que ela nunca se lembrasse de nada. Pelo menos, sempre recebia um beijo de volta. Ela realmente o amava. Do contrário, não haveria beijo de retribuição. É impossível fingir quando se está dormindo. No universo de Ryan, aquele era um fato importante.
Seria inútil ligar o rádio ao lado da cama. O idioma húngaro — na verdade, o magiar — provavelmente vinha de Marte. Certamente não pertencia ao planeta Terra. Jack não ouvira uma única palavra que tivesse sido capaz de reconhecer como originária do inglês, alemão ou latim, as três línguas que supostamente estudara, em um momento ou outro da vida. Além disso, os nativos falavam no ritmo de uma metralhadora, tornando a compreensão mais difícil para ele. Se Hudson o deixasse em qualquer lugar da cidade, não conseguiria achar o caminho até a embaixada britânica, uma sensação de vulnerabilidade que não experimentava desde os quatro anos de idade. Ele poderia estar em outro planeta, e o passaporte diplomático não ajudaria, pois fora emitido pelo país errado para aquele mundo alienígena. Não havia pensado naquilo direito a caminho de Budapeste. Como a maioria dos americanos, acreditava que, munido de um passaporte e um cartão American Express, poderia viajar em segurança pelo mundo inteiro vestido apenas com uma bermuda. Mas aquele mundo se limitava ao capitalista, onde alguém falaria inglês bem o suficiente para indicar a localização de um prédio com uma bandeira americana no topo e fuzileiros dos Estados Unidos na entrada. Naquela cidade extraterrestre, não. O que sabia não bastava para chegar sequer ao banheiro.
Bem, na verdade, conseguira achar um no bar, no dia anterior. A sensação de impotência vagava no limite de sua consciência como o monstro embaixo da cama. Ele, porém, era um cidadão dos Estados Unidos, do sexo masculino, acima dos trinta, ex-oficial dos fuzileiros navais. Não estava acostumado a se sentir daquele jeito. Assim, ficou acompanhando os números mudarem no relógio digital, aproximando-o de seu encontro com o destino, qualquer que fosse. Um número iluminado de cada vez.
ANDY HUDSON Já ESTAVA ACORDADO e em atividade. Istvan Kovacs preparava um de seus transportes de contrabando, trazendo tênis de corrida Reebok da Iugoslávia. Seu dinheiro ficava em uma caixa de aço embaixo da cama. Ele tomava o café da manhã e ouvia música no rádio, quando uma batida na porta o deixou alerta. Foi atender apenas de cueca.
— Andy! — disse, surpreso.
— Acordei você, Istvan?
Kovacs fez um sinal para que entrasse.
— Não, estou acordado há meia hora. O que o traz aqui?
— Temos que atravessar nossos pacotes hoje à noite — respondeu Hudson.
— Exatamente quando?
— Ah, por volta de duas e meia da manhã. — Hudson tirou um maço de notas do bolso. — Aqui está metade da quantia que combinamos.
Não havia motivo para pagar o que aquele serviço realmente valia. Mudaria toda a equação.
— Excelente. Aceita um café, Andy?
— Sim, obrigado.
Kovacs indicou a mesa da cozinha e serviu-lhe uma xícara.
— Como quer fazer isso?
— Levarei os pacotes de carro até perto da fronteira, e você os atravessará. Suponho que conheça os guardas.
— Sim. Capitão Budai Laszlo. Faço negócio com ele há anos. E o sargento Kerekes Mihály, bom garoto, quer ir para a universidade e se tornar engenheiro. Eles cumprem turnos de doze horas no posto de fronteira, da meia-noite ao meio-dia. Já estarão cansados, Andy, e abertos à negociação.
Ele ergueu a mão e esfregou o polegar e o indicador.
— Qual é o preço normalmente?
— Para quatro pessoas?
— Eles precisam saber que nossos pacotes são pessoas?
Kovacs deu de ombros.
— Não, acho que não. Então alguns pares de tênis. Os Reebok são muito populares. E alguns filmes ocidentais. Eles já têm os videocassetes — explicou Kovacs.
— Seja generoso, mas não generoso demais — sugeriu Hudson. Não queremos que suspeitem de nada, não precisou acrescentar. — Se forem casados, talvez algo para as esposas e as crianças...
— Conheço a família de Budai muito bem, Andy. Não haverá problema. Budai tinha uma filha. Dar alguma coisa para a pequena Zsóka não seria problema para o contrabandista.
Hudson calculou a distância. Precisariam de uma hora para chegar à fronteira com a Iugoslávia àquela hora da noite. Usariam um caminhão pequeno na primeira parte da jornada; Istvan cuidaria do resto com um veículo maior. O húngaro esperava ser morto pelo oficial do Serviço Secreto inglês se algo saísse errado — era uma das vantagens proporcionadas pela série de filmes de James Bond. Mais importante, porém, era o dinheiro. Cinco mil marcos alemães garantiam muitas coisas na Hungria.
— Devo seguir para onde?
— Ficará sabendo hoje à noite — respondeu Hudson.
— Muito bem. Nos encontraremos em Csurgo, às duas e meia da madrugada, sem falta.
— Excelente, Istvan. — Hudson terminou o café e se levantou. — É bom ter um amigo tão confiável.
— Você me paga bem — observou Kovacs, definindo a relação entre os dois.
Hudson pensou em insistir no quanto confiava em seu agente, mas não seria verdade. Como a maioria dos espiões, não confiava em ninguém; não até o trabalho ter sido cumprido. Istvan estaria na folha de pagamento da AVH? Provavelmente não. Nunca poderiam pagar um valor próximo de cinco mil marcos com qualquer regularidade, e Kovacs gostava muito de levar uma vida boa. Se o governo comunista de seu país caísse um dia, ele seria um dos primeiros a ficar milionário, morando em uma bela casa nas montanhas de Buda, no outro lado do Danúbio, com uma vista aprazível de Peste.
VINTE MINUTOS DEPOIS, Hudson encontrou Ryan no começo da fila, no refeitório da embaixada.
— Estou vendo que gosta de ovos — comentou o chefe da base.
— São daqui ou vocês mandam trazer da Áustria?
— Os ovos são daqui mesmo. Na verdade, os produtos agropecuários húngaros são muito bons. Mas preferimos o bacon inglês.
— Também aprendi a gostar dele — contou Jack. — Ei, o que houve?
Os olhos de Andy revelavam uma certa agitação.
— Será hoje à noite. Primeiro, vamos ao concerto. Depois, faremos nossa coleta.
— Mandará um aviso a ele?
Hudson fez um sinal negativo com a cabeça.
— Não. Ele poderia passar a agir de modo diferente. Prefiro evitar essa complicação.
— E se ele não estiver pronto? E se estiver hesitante? — perguntou Jack, demonstrando preocupação.
— Nesse caso, a missão já era. Nós desaparecemos no nevoeiro de Budapeste. E amanhã teremos várias pessoas envergonhadas em Londres, Washington e Moscou.
— Você encara as coisas com muita tranquilidade, cara.
— Neste tipo de trabalho, é necessário lidar com os fatos. Ficar nervoso não ajuda em nada. — Ele deu um sorriso. — Enquanto eu estiver recebendo o dinheiro da Rainha, devo cumprir as ordens da Rainha.
— Sempre às ordens, amigo — disse Jack.
Ele pôs creme no café e tomou um gole. Nada de extraordinário, mas bom o suficiente para o momento.
A COMIDA NO RESTAURANTE ESTATAL ao lado do hotel Astoria também era boa.
Svetlana escolhera e literalmente devorara um doce de cereja dinamarquês, acompanhado de um copo de leite integral.
— O concerto é hoje à noite — lembrou Oleg. — Está animada?
— Sabe quanto tempo faz que não vou a um concerto de verdade? — respondeu Irina. — Oleg, nunca vou esquecer sua gentileza.
Ela ficou surpresa com a expressão do marido, mas não comentou.
— Bem, querida, precisamos fazer mais compras hoje. Coisa para mulher. Você vai ter que cuidar disso para mim.
— Posso comprar algo para mim?
— Temos oitocentos e cinquenta rublos do Comecon só para você gastar — disse Oleg Ivanovich, com um sorriso radiante, imaginando se um único produto que ela comprasse continuaria em uso no fim da semana.
— SEU MARIDO AINDA está viajando a trabalho? — perguntou Beaverton.
— Infelizmente — confirmou Cathy.
Coitada, pensou o ex-paraquedista. Ao longo dos anos, ele se tornara um estudioso do comportamento humano, e a insatisfação dela com a situação era visível. Bem, sem dúvida, Sir John estava ocupado com algo interessante. Beaverton fizera uma pequena pesquisa sobre os Ryan. Ela, segundo os jornais, era cirurgiã, exatamente como lhe contara semanas antes. O marido, por sua vez, a despeito da alegação de que não passava de um funcionário iniciante na embaixada dos Estados Unidos, provavelmente pertencia à CIA. Os jornais de Londres sugeriram tal hipótese na época do incidente com os terroristas da ULA, mas a suposição nunca tinha sido feita novamente. Decerto porque alguém havia solicitado — educadamente — que não fosse repetido. Aquilo revelava a Beaverton tudo de que precisava saber. Os jornais também haviam informado que, se não fosse rico, ele certamente levava uma vida confortável, um fato confirmado pelo Jaguar estacionado na entrada da casa. Então, Sir John viajou para cuidar de algum tipo de assunto secreto. Para o motorista de táxi, não havia sentido tentar adivinhar qual seria. Ele encostou na pequena estação de trem de Chatham.
— Tenha um bom dia, senhora — disse a Cathy.
— Obrigada, Eddie.
A gorjeta de sempre. Era bom ter uma cliente tão fiel e generosa.
Para Cathy, era a habitual viagem de trem a Londres na companhia de uma revista médica, mas sem a comodidade de ter o marido ao lado lendo o Daily Telegraph ou cochilando. Era engraçado como se podia sentir falta até de um homem dormindo.
— LÁ ESTÁ A SALA DE CONCERTOS.
Exatamente como o antigo Volkswagen de Ryan, a sala de espetáculos de Budapeste era bem-feita em todos os detalhes, mas modesta, mal ocupando o quarteirão todo em que se localizava. A arquitetura lembrava o estilo imperial encontrado em versão melhor e mais ampla em Viena, a pouco mais de trezentos quilômetros de distância. Andy e Ryan entraram para pegar os ingressos oferecidos à embaixada pelo Ministério das Relações Exteriores húngaro. O tamanho do foyer decepcionava. Hudson pediu autorização para ver onde ficava o camarote e, por força do seu status diplomático, um funcionário conduziu-os ao nível superior, onde um corredor lateral levava aos lugares. Ryan achou o interior semelhante ao dos teatros da Broadway, como o Majestic: não muito grande, porém elegante, com assentos de veludo vermelho e detalhes dourados nas paredes. Um lugar para receber o rei quando ele concedia a honra de visitar a cidade dominada, distante do palácio imperial, situado rio acima, em Viena. Um lugar para os figurões locais saudarem seu rei e fingir que pertenciam à alta roda, quando tanto eles quanto o soberano sabiam que não era verdade. Apesar de tudo, era um esforço que merecia reconhecimento, e uma boa orquestra compensaria as limitações. A acústica — o que realmente importava — devia ser excelente. Ryan nunca estivera no Carnegie Hall, em Nova York, mas aquele devia ser o equivalente em Budapeste, embora menor e, relutantemente, mais modesto.
Ryan olhou ao redor. O camarote era perfeito para aquele propósito. Podia-se observar praticamente todos os lugares do teatro.
— Onde ficam os lugares dos nossos amigos? — perguntou, em voz baixa.
— Não tenho certeza. Tom os seguirá quando entrarem, para ver onde se sentarão, antes de se juntar a nós.
— E depois? — perguntou Jack.
Hudson interrompeu a conversa com duas palavras: — Mais tarde.
NA EMBAIXADA, TOM TRENT tinha trabalho a fazer. Conseguira dois galões de álcool de cereais com 95 por cento de pureza. Tecnicamente, podia ser bebido, mas somente se o intuito fosse o de ficar bêbado rápida e profundamente. Ele provou uma gota só para se assegurar de que correspondia ao que estava descrito no rótulo; o momento não era adequado para correr riscos. Era um álcool com o máximo de pureza, sem odor distintivo e sabor suficiente apenas para distingui-lo de água destilada. Trent ouvira dizer que se usava Aquilo para "batizar" o ponche em casamentos e outras cerimônias formais... para animar um pouco as coisas. Certamente cumpriria sua função à perfeição. A etapa seguinte era bem mais desagradável: inspecionar as caixas. O acesso ao subsolo da embaixada estava proibido ao resto do pessoal. Trent cortou a fita de segurança e levantou a tampa de papelão...
Os corpos estavam em sacos plásticos transparentes, do tipo com alças, usados pelos agentes funerários para transportar cadáveres. Trent percebeu que tinham até dimensões diferentes, para acomodar crianças e adultos de tamanhos variados. O primeiro corpo que checou foi o da menina. Por sorte, o plástico prejudicou a visão do rosto, ou do que um dia havia sido um rosto. Tudo o que conseguia ver era um borrão escuro, que bastava naquele momento. Agradeceu por não precisar abrir o saco. As outras caixas eram mais pesadas, mas, de algum modo, mais fáceis de encarar. Pelo menos, eram corpos de adultos. Ele colocou-os no chão de concreto do subsolo e, em seguida, moveu o gelo seco para o canto oposto, onde o gás carbônico congelado evaporaria sem causar danos. Os corpos levariam cerca de 14 horas para derreter; Trent esperava que fosse o suficiente. Deixou o subsolo, tomando o cuidado de trancar a porta.
Depois, foi à sala de segurança da embaixada. A missão diplomática britânica tinha um corpo de segurança próprio, composto por três homens, todos ex-militares. Ele precisaria da ajuda de dois deles naquela noite. Ambos haviam sido sargentos do exército britânico e estavam em forma. Chamavam-se Rodney Truelove e Bob Small.
— Pessoal, vou precisar da ajuda de vocês esta noite.
— Qual é o serviço, Tom? — perguntou Truelove.
— Teremos apenas de transportar alguns objetos. Com muita discrição — explicou Trent parcialmente. Ele não se preocupou em acrescentar que era um assunto de grande importância. Para aqueles homens, tudo tinha que ser tratado como assunto de alguma importância.
— Entrar e sair de fininho? — perguntou Truelove.
— Correto — confirmou Trent ao ex-sargento da guarda da bandeira dos Engenheiros Reais. Small era do Regimento Real de Gales, os homens de Harlech.
— A que horas? — perguntou Truelove.
— Sairemos daqui à meia-noite. Não deve levar mais do que uma hora no total.
— Trajes?
Era uma boa pergunta. Não parecia apropriado usar paletó e gravata, mas macacões poderiam ser notados por um observador eventual. Tinham que se vestir de modo que ficassem praticamente invisíveis.
— Roupas casuais — decidiu Trent. — Nada de paletó. Como os nativos. Camisa e calça social. Deve ser o suficiente. Luvas também.
É, com certeza vão querer usar luvas, pensou o espião.
— Sem problema de nossa parte — disse Truelove.
Como soldados, estavam acostumados a cumprir ordens que não faziam sentido e a aceitar as coisas como eram. Trent esperava que ainda fossem capazes de se sentir daquela forma no dia seguinte.
As MEIAS-CALÇAS FOGAL vinham da França. Era o que proclamava a embalagem.
Irina quase desmaiou ao segurar o pacote na mão. O conteúdo era real, mas não parecia ser: tão fina que não passava de uma sombra manufaturada. Já ouvira falar de produtos como aquele, mas nunca os tivera nas mãos, e muito menos os experimentara. E pensar que toda mulher no Ocidente podia possuir quantos pares quisesse. As esposas dos colegas russos de Oleg desmaiariam ao calçá-las, e suas amigas da GUM morreriam de inveja! Com que zelo usariam as meias-calças, temendo puxar um fio e tomando cuidado para não esbarrar as pernas em nada, como crianças machucadas. Aquelas meias eram muito preciosas para expô-las ao mínimo risco. Ela tinha que escolher o tamanho certo para as mulheres na lista de Oleg... e seis pares para uso próprio.
Mas quais seriam os tamanhos? Comprar um artigo de vestuário grande demais era um insulto mortal para qualquer mulher, de qualquer cultura, até da Rússia, onde as mulheres tendiam mais ao rubenesco do que a criaturas abandonadas e famintas do Terceiro Mundo... ou de Hollywood. As embalagens indicavam os tamanhos A, B, C e D. Era uma complicação adicional, já que, em cirílico, o "B" correspondia ao "V" romano, e o "C", ao "S". Irina respirou fundo e comprou vinte pares do tamanho C, inclusive os seis para si mesma. As meias eram absurdamente caras, mas os rublos do Comecon que tinha na bolsa não eram todos seus. Depois de tomar coragem novamente, ela pagou em dinheiro pela pequena coleção, para satisfação da vendedora, que podia imaginar o que se passava ali. Sair da loja com aqueles artigos de luxo lhe proporcionou a sensação de ser uma princesa czarista — uma experiência prazerosa para qualquer mulher do mundo. Agora tinha 489 rublos para gastar consigo mesma. Quase entrou em pânico. Tantos produtos atraentes, tão pouco dinheiro. Tão pouco espaço no armário em casa.
Sapatos? Casaco novo? Bolsa?
Ela deixou as joias de lado, porque aquilo cabia a Oleg. Como todo homem, porém, ele não fazia ideia do que as mulheres usavam. Quem sabe uma roupa de baixo?, considerou Irina. Um corpete Chantarelle? Teria coragem de comprar algo tão elegante? Custaria pelo menos cem rublos, mesmo com a cotação favorável... E apenas ela saberia o que estava vestindo. A sensação de um corpete como aquele seria como a de... mãos. Como as mãos de seu amor. Sim, precisava comprar um daqueles. E cosméticos. Precisava comprar cosméticos. Era a única coisa em que as mulheres russas sempre prestavam atenção. Estava na cidade certa para aquilo. As húngaras também se preocupavam em cuidar da pele. Iria a uma boa loja e perguntaria — camarada a camarada. Os rostos das húngaras anunciavam ao mundo que elas se preocupavam com a pele. Naquele quesito, os húngaros eram quase kulturniy.
Demorou mais duas horas, em total estado de graça, momentos tão prazerosos que nem notou o marido e a filha esperando. Estava vivendo o sonho de toda mulher soviética: gastar dinheiro no... bem, se não era o Ocidente, era quase tão bom. Era maravilhoso. Ela usaria o Chantarelle para ir ao concerto, à noite, ouvir Bach e fantasiar que estava em outra época e outro local, onde todos seriam kulturniy e nascer mulher era bom.
Lamentava que um lugar como aquele não existisse na União Soviética.
DO LADO DE FORA, OLEG APENAS ESPERAVA e fumava, como qualquer outro homem no mundo, profundamente entediado com os detalhes das compras feitas pelas mulheres. Como podiam gostar do processo de escolher e comparar, escolher e comparar, sem nunca tomar uma decisão, atraídas pela atmosfera de estarem cercadas por coisas que não eram capazes de vestir e das quais nem gostavam de verdade? Sempre pegavam o vestido, seguravam-no próximo ao pescoço, olhavam no espelho e diziam nyet, este não. Uma, duas, três vezes, passando pelo pôr-do-sol e invadindo a noite, como se suas próprias almas precisassem daquilo. Oleg aprendera a ser paciente depois de iniciada aquela arriscada aventura, porém nunca aprendera — e nunca pensara em aprender — a assistir a uma mulher fazendo compras... sem desejar estrangulá-la. Estava ali como um animal de carga, segurando os produtos que ela finalmente decidira adquirir, esperando para ver se mudaria ou não de ideia. Bem, não ia durar para sempre. Afinal, eles tinham ingressos para a apresentação daquela noite. Precisavam voltar ao hotel, procurar uma babá para a zaichik, trocar de roupa e seguir até a sala de concertos. Até Irina apreciaria aquilo.
Provavelmente, pensou Oleg Ivanovich, desanimado. Como se não tivesse outras preocupações. Oleg viu, porém, que sua filhinha não estava preocupada com nada. Tomava um sorvete e olhava ao redor, observando tudo naquele lugar diferente, com suas atrações diferentes. Havia muito a se dizer sobre a inocência de uma criança. Era uma pena que se perdesse aquilo. Por que as crianças se esforçavam tanto para crescer e deixar sua inocência para trás? Não sabiam como o mundo era maravilhoso para elas? Não percebiam que, com o conhecimento, as maravilhas do mundo se tornavam apenas fardos? E dor? E dúvidas, pensou Zaitzev. Tantas dúvidas.
Não, a zaichik não entendia aquilo, e, quando percebesse, seria tarde demais.
Finalmente, Irina saiu da loja, sorrindo como não fazia desde o nascimento da filha. Depois, provocou uma grande surpresa no marido, ao correr em sua direção e lhe dar um abraço e um beijo.
— Ah, Oleg, você é tão bom para mim.
E outro beijo apaixonado de uma mulher saciada pelas compras. Na opinião do marido, ainda melhor do que uma saciada pelo sexo.
— Temos que voltar ao hotel e nos trocar para o concerto.
Pegar o metrô, entrar no Astoria e subir ao quarto 307 foi a parte fácil. Lá, decidiram por comodidade levar Svetlana com eles. Arrumar uma babá seria um inconveniente. Oleg pensara em uma oficial da KGB lotada na Casa de Cultura e Amizade, no outro lado da rua, mas ele e a mulher não se sentiam bem com aquele tipo de solução. Portanto, a zaichik simplesmente teria que se comportar durante a apresentação. Os ingressos eram para a fila 6, assentos A, B e C, perto da orquestra e no corredor, onde preferia ficar. Svetlana vestiria suas novas roupas, o que Oleg esperava que a deixasse feliz. Geralmente deixava. E aquelas eram as melhores roupas que já tivera. O banheiro do quarto ficou lotado. Irina se esforçou muito tempo para deixar a maquiagem do jeito que queria. Para o marido, era mais fácil. E mais ainda para a filha: uma toalha molhada no rosto que insistia em fazer caretas foi suficiente. Depois todos puseram seus melhores trajes. Oleg prendeu o fecho dos sapatos pretos brilhantes da filha sobre as meias brancas, pelas quais ela se apaixonara desde o primeiro instante. Em seguida, ela vestiu o casaco vermelho com a gola preta, e a coelhinha estava pronta para as aventuras daquela noite. Eles desceram de elevador até o saguão e pegaram um táxi.
TRENT ACHOU A SITUAÇÃO um pouco estranha. Vigiar o lobby devia ter sido uma tarefa difícil, mas os funcionários do hotel pareciam ignorá-lo. Quando os pacotes saíram, só precisou andar até seu carro e seguir o táxi em direção à sala de espetáculos, um quilômetro e meio adiante, na mesma rua. Chegando lá, parou em um estacionamento próximo e correu para a entrada. Estavam sendo servidos drinques, e os Zaitzev provaram o que parecia ser Tokajy, antes de entrar. A garotinha estava radiante como nunca. Linda menina, pensou Trent. Torceu para que gostasse da vida no Ocidente. Ele acompanhou os três dirigindo-se aos seus lugares e depois se virou para subir até o camarote.
RYAN E HUDSON JÁ ESTAVAM LÁ, sentados nas antigas cadeiras com almofadas aveludadas.
— Andy, Jack — disse Trent, recebendo-os. — Sexta fila, lado esquerdo, perto do centro, bem no corredor.
Então as luzes começaram a se apagar. As cortinas se recolheram, os sons descoordenados dos músicos afinando os instrumentos cessaram e o maestro, Jozsef Rozsa, apareceu à direita do palco. O aplauso inicial foi pouco mais do que educado. Era o primeiro concerto da série, e a audiência não o conhecia. Ryan achou aquilo estranho: ele era húngaro e havia se formado na academia Franz Liszt. Por que a saudação não foi mais entusiasmada? Era alto e magro, cabelos pretos e rosto de esteta. Curvou-se educadamente diante da audiência e se virou para a orquestra.
A pequena batuta — ou como se chamasse aquilo — estava no estrado. Quando ele a levantou, a sala mergulhou em silêncio absoluto, e seu braço direito disparou na direção da seção de cordas da primeira orquestra da rede ferroviária estatal húngara.
Ryan não conhecia música como a mulher, mas Bach era Bach, e o concerto mostrou-se majestoso praticamente desde o primeiro instante. A música, como a poesia e a pintura, era um meio de comunicação. Ele, porém, nunca entendera o que os compositores tentavam dizer. Era mais fácil no caso de uma trilha instrumental de John Williams, que acompanhava a ação do filme de maneira tão perfeita. Mas Bach não conhecia os filmes animados, portanto devia estar "falando" de coisas que seriam reconhecidas por suas audiências originais. Como Ryan não fazia parte delas, teria que se conformar em apreciar as primorosas harmonias. Achou que havia algo de errado com o piano, e só ao observá-lo percebeu que não era um piano, e sim de um antigo cravo, tocado por um não menos antigo virtuose de cabelos brancos escorridos e as mãos elegantes de... um cirurgião, pensou. Jack entendia um pouco de piano. Sua amiga Sissy Jackson, solista da sinfônica de Washington, dizia que Cathy tocava de modo muito mecânico, mas Ryan reparava apenas que ela nunca errava uma nota — dava para perceber —, o que lhe bastava. Esse cara, pensou, enquanto acompanhava suas mãos e captava as notas naquela maravilhosa polifonia, não erra uma única nota. Parecia que todas tinham a intensidade ou a leveza exatas para aquele concerto e uma coordenação de tempo que definia a própria perfeição. O restante da orquestra parecia tão bem ensaiado quanto a equipe de exercícios silenciosos dos fuzileiros navais — tudo preciso como um raio laser.
Uma coisa que Ryan não entendia era o que o maestro fazia. O concerto não estava na partitura? A condução não acabava sendo uma questão de garantir — de antemão — que todos soubessem suas partes e a executassem no momento certo? Teria que perguntar a Cathy. Ela reviraria os olhos e comentaria que ele era um verdadeiro filisteu. Mas Sissy Jackson dissera que Cathy era mecânica no piano, precisando de mais alma. Viu, Lady Caroline! A seção de cordas também era soberba. Ryan não entendia como eles conseguiam obter os sons desejados passando aquele arco nas cordas. Provavelmente o conseguem por dependerem disso para viver, disse a si mesmo, recostando-se para apreciar a música. Só naquele momento reparou em Andy Hudson, que prestava atenção aos pacotes. Jack olhou na mesma direção. A menina estava se contorcendo, esforçando-se para se comportar e talvez acompanhando a música, mas aquilo não se comparava a uma fita do Mágico de Oz. Era inevitável. Mesmo assim, ela estava se portando bem, sentada entre a mamãe e o papai Coelho.
Enquanto a mamãe Coelho assistia ao concerto como em um estado de encantamento, o papai Coelho demonstrava uma atenção educada. Jack pensou que talvez fosse o caso de ligar para Londres e providenciar um walkman e algumas fitas de Christopher Hogwood para Irina... Cathy gostava muito dele e de Nevile Marriner.
Depois de vinte minutos, a orquestra encerrou o minueto e ficou em silêncio. Quando o maestro Rozsa se virou para a audiência...
A sala enlouqueceu com aplausos e gritos de "Bravo!". Jack não sabia o que o maestro fizera de notável, mas obviamente os húngaros sim. Rozsa curvou-se em agradecimento à plateia e esperou até o barulho baixar, antes de se virar novamente e retomar o comando silencioso, erguendo sua pequena batuta branca para começar o segundo concerto de Brandemburgo.
O início foi marcado por metais e cordas. Jack percebeu que estava mais arrebatado pelos músicos, individualmente, do que por qualquer intervenção do maestro. Quanto tempo será necessário estudar para chegar a esse nível?, perguntou-se. Cathy costumava tocar duas ou três vezes por semana, quando moravam em Maryland. A casa de Chatham, para seu desapontamento, não tinha espaço suficiente para um piano de cauda adequado. Ele havia sugerido que comprassem um piano de armário, mas ela recusara, dizendo que não era a mesma coisa. Sissy Jackson, por sua vez, contava que tocava no mínimo três horas por dia. Para ela, no entanto, aquilo era seu sustento, ao passo que Cathy tinha outra paixão um pouco mais imediata em sua vida profissional.
O segundo concerto de Brandemburgo foi mais curto do que o primeiro, com cerca de doze minutos, e o terceiro teve início logo em seguida. Bach devia ser apaixonado pelos violinos, mais do que por qualquer outro instrumento, e a seção de cordas da orquestra era muito boa. Em outra situação, Jack talvez se deixasse levar pelo momento, esbaldando-se na música, porém havia algo mais importante planejado para aquela noite.
A cada poucos segundos, seus olhos vagavam para a esquerda, em busca da família Coelho...
O TERCEIRO CONCERTO DE BRANDEMBURGO terminou em torno de uma hora depois do início do primeiro. As luzes se acenderam, anunciando o intervalo. Ryan observou o papai Coelho e a mamãe Coelho deixarem seus lugares. A razão era simples: a coelhinha precisava ir ao banheiro feminino e, provavelmente, o papai aproveitaria para também usar as instalações sanitárias. Ao perceber, Hudson deu um salto, deixou o camarote e saiu correndo pelo corredor, seguido de perto por Tom Trent. Foram até o saguão e chegaram ao banheiro masculino. Enquanto isso, Ryan permanecia sentado, tentando relaxar. A missão estava em pleno andamento.
A MENOS DE CINQUENTA METROS, Oleg Ivanovich aguardava na fila para o banheiro masculino. Hudson chegou a tempo de ficar bem atrás dele. O saguão estava tomado pelo habitual burburinho das conversas. Algumas pessoas se dirigiam ao bar móvel atrás de mais bebidas. Outras fumavam, enquanto aproximadamente vinte homens esperavam para aliviar as bexigas. A fila andou rapidamente — os homens são mais eficientes nisso que as mulheres —, e logo estavam dentro do ambiente de ladrilhos.
Os mictórios, aparentemente feitos de mármore de Carrara, reproduziam a elegância do lugar. Hudson ficou em pé, como os outros, torcendo para que suas roupas não denunciassem a condição de estrangeiro. Logo atrás da porta de madeira e vidro, ele respirou fundo e, curvando-se para a frente, falou em russo: — Boa noite, Oleg Ivanovich — disse, em voz baixa. — Não se vire.
— Quem é você? — sussurrou Zaitzev em resposta.
— Sou seu agente de viagens. Ouvi dizer que deseja fazer uma pequena viagem.
— Para onde seria?
— Ah, em direção ao Ocidente. Está preocupado com a segurança de alguém, não é?
— Você é da CIA?
A voz de Zaitzev não passava de um sibilo.
— Digamos que trabalho num ramo incomum — confirmou Hudson. Não havia razão para confundir o sujeito naquele momento.
— Então, o que fará por mim?
— Esta noite, você dormirá em outro país, meu amigo — disse Hudson, acrescentando: — Com sua esposa e sua linda garotinha.
O espião britânico percebeu que os ombros de Zaitzev despencaram. Se de alívio ou temor, não sabia. Provavelmente os dois. Zaitzev limpou a garganta antes de sussurrar novamente: — O que devo fazer?
— Primeiro, deve me dizer se deseja levar seu plano adiante.
Houve uma breve hesitação.
— Da. Seguiremos em frente.
— Nesse caso, apenas faça o que veio fazer aqui... — A vez dos dois estava se aproximando. — Depois, aproveite o resto do espetáculo e volte ao hotel. Nos falaremos de novo lá, por volta da uma e meia. Pode cuidar disso?
Um gesto breve e uma única sílaba quase presa: — Da.
Agora, Oleg Ivanovich realmente precisava usar o mictório.
— Fique tranquilo, meu amigo. Está tudo planejado. Vai dar tudo certo — disse Hudson.
O sujeito precisava de convicção e confiança. Devia ser o momento mais assustador de sua vida. Não houve mais resposta. Zaitzev deu os três passos que faltavam até o mictório de mármore, abriu a calça e se aliviou, em todos os sentidos.
Saiu sem olhar para a cara de Hudson.
Trent, porém, pôde ver seu rosto, enquanto tomava uma taça de vinho branco do lado de fora. Se Zaitzev fez algum sinal para um suposto colega da KGB, o agente britânico não percebeu. Nem uma coçada no nariz ou ajeitada na gravata; absolutamente nenhum sinal físico. Ele apenas passou pela porta e retornou a seu lugar. BEATRIX parecia cada vez melhor.
OS ESPECTADORES HAVIAM retomado seus lugares, e Ryan fazia o máximo para parecer só mais um apreciador de música clássica. Foi quando Hudson e Trent reapareceram no camarote.
— E então? — indagou Ryan.
— Música muito boa, não é mesmo? — respondeu Hudson, com naturalidade. — Esse tal de Rozsa é dos bons. É incrível que um país comunista seja capaz de apresentar algo melhor do que a Internationale. Ah, depois que isso acabar, que tal um drinque com uns amigos?
Jack respirou fundo.
— Claro, Andy, acho uma boa ideia.
Filho da mãe, pensou. Isso vai mesmo acontecer. Ele ainda tinha várias dúvidas, mas estas tinham acabado de se enfraquecer um pouco. Embora não fosse muito, já estava melhor do que antes.
A SEGUNDA METADE DA APRESENTAÇÃO começou com outra obra de Bach: a Tocata e Fuga em ré menor. Em vez de cordas, aquela era uma celebração de metais, e o cornetim principal podia até ter ensinado algumas notas a Louis Armstrong. Ryan nunca ouvira tanto Bach em uma única ocasião. O antigo compositor alemão havia sido realmente talentoso. Pela primeira vez, o ex-fuzileiro conseguiu relaxar o bastante para aproveitar o espetáculo. Aparentemente, a Hungria era um país que respeitava sua música. Se havia alguma falha naquela orquestra, ele não percebera.
O condutor agia como se estivesse na cama com o amor de sua vida, tão tomado estava pelo prazer do momento. Jack imaginou se as mulheres húngaras seriam boas naquilo. Elas tinham um olhar mundano, mas não sorriam... Talvez fosse culpa do governo comunista. Os russos também não eram conhecidos por sorrir.
— ALGUMA NOVIDADE? — perguntou o juiz Moore.
Mike Bostock entregou-lhe o breve despacho vindo de Londres.
— Basil diz que seu chefe em Budapeste vai fazer a travessia esta noite. Ah, vai adorar essa parte: o Coelho está hospedado em um hotel bem em frente à rezidentura da KGB.
Os olhos de Moore brilharam por um breve instante. — Você só pode estar brincando.
— Juiz, acha mesmo que eu faria isso?
— Quando Ritter volta?
— Hoje, mais tarde. Está num voo da Pan Am. Pelos relatórios enviados de Seul, parece que tudo correu bem nos encontros com a CIA.
— Ele vai ter um infarto quando souber da Operação BEATRIX — previu o DCI.
— Certamente ficará sem palavras — concordou o DDO interino.
— Principalmente quando descobrir que Ryan está envolvido.
— Pode apostar a fazenda, o gado e a casa nisso.
O juiz Moore deu uma boa risada depois de ouvir aquilo.
— Bem, imagino que a agência seja mais importante que uma única pessoa.
— É o que dizem, senhor.
— Quando saberemos do resultado?
— Espero que Basil nos informe assim que o avião deixar a Iugoslávia. Até lá, no entanto, será um longo dia para nossos novos amigos.
A COMPOSIÇÃO SEGUINTE, também de Bach, foi Mansamente pastam as ovelhas.
Ryan reconheceu porque a melodia tocava num comercial de recrutamento da Marinha. Era uma peça delicada, muito diferente da anterior. Ele não sabia se a apresentação daquela noite tinha o propósito de mostrar a obra de Johann Sebastian ou o talento do maestro. De qualquer maneira, era agradável, e a plateia estava apreciando, reagindo mais intensamente do que à seleção de concertos.
Outra peça. Ryan tinha o programa, mas não se dera ao trabalho de tentar ler, pois estava todo em magiar, e seu domínio da língua marciana escrita era exatamente como o da falada. O último número foi o Cânone, de Pachebel, peça merecidamente famosa, que sempre levava a Ryan a imagem de uma linda jovem do século XVII, rezando e tentando se concentrar em sua devoção em vez de pensar no belo rapaz que morava perto de sua casa de campo. Sem obter muito sucesso.
AO FIM DA APRESENTAÇÃO, Jozsef Rozsa se virou para a audiência, que se levantou novamente e manifestou sua satisfação por intermináveis minutos. O filho da terra partira, mas retornara de maneira triunfal, e os companheiros do passado estavam felizes em recebê-lo de volta. O maestro mal conseguia sorrir, como se tivesse acabado de disputar uma maratona. Jack percebeu que ele suava muito. Conduzir uma orquestra era tão extenuante? Naquele nível, talvez. Ele e seus colegas britânicos estavam em pé, aplaudindo, como todos os demais. Não havia sentido em se portar de modo diferente. Finalmente, o alvoroço parou. Rozsa acenou na direção da orquestra, fazendo com que os aplausos continuassem. Em seguida, apontou para o spalla, o primeiro violino. Pareceu delicado da parte de Rozsa, mas provavelmente era um gesto necessário, se quisesse que os músicos dessem o máximo nas apresentações. Só muito tempo depois o público começou a se dispersar.
— Apreciou a música, Sir John? — perguntou Hudson, com um sorriso dissimulado.
— É bem melhor do que o que toca no rádio — respondeu Ryan. — E agora?
— Agora vamos tomar uma boa bebida em um lugar sossegado — disse Hudson, fazendo um sinal para Trent.
Ryan seguiu os dois. O ar estava fresco no lado de fora, e Jack acendeu um cigarro assim que saiu, a exemplo de quase todos os homens à vista — e a maior parte das mulheres. Os húngaros, aparentemente, não planejavam viver muito tempo. Ele se sentia tão dependente de Hudson quanto uma criança da mãe, mas aquilo acabaria logo.
A maioria das construções da rua era de prédios de apartamentos. Em uma cidade ocidental, seriam condomínios, que sequer deviam existir ali. Hudson gesticulou para que Ryan o seguisse. Eles andaram dois quarteirões até um bar, para onde foram outras trinta pessoas que saíam do concerto. Andy ocupou uma mesa no canto, de onde podia observar o ambiente, e o garçom apareceu com algumas taças de vinho.
— ENTÃO LÁ NÓS VAMOS? — perguntou Jack.
Hudson fez um gesto afirmativo.
— Vamos. Disse a ele que estaríamos no hotel por volta de uma e meia.
— E depois?
— Depois dirigimos até a fronteira com a Iugoslávia.
Ryan não fez mais perguntas. Não era necessário.
— A segurança na direção sul é ordinária. Na direção oposta, é bem diferente — explicou Andy. — Perto da fronteira com a Áustria, há uma vigilância rígida, mas lembre-se de que a Iugoslávia é uma nação-irmã comunista. Pelo menos, é o que dizem ser. Não tenho mais certeza do que a Iugoslávia seja, no sentido político. Os guardas de fronteira do lado húngaro cuidam das próprias vidas. Fazem acordos com os contrabandistas. É uma indústria em crescimento, só que os metidos a espertos não crescem muito. Se isso acontecer, o Belügyminisztérium, o Ministério do Interior, pode reparar. É sempre bom evitar complicações.
— Mas se essa é a porta dos fundos do Pacto de Varsóvia... a KGB deve saber, certo?
Hudson completou a pergunta: — Então por que não acabam com esse caminho? Suponho que possam fazer isso. Contudo, a economia local sofreria um sério prejuízo, e os soviéticos também encontram muitos produtos de que gostam por aqui. Trent contou que nosso amigo fez compras. Videocassetes e meias-calças. As benditas meias-calças. As mulheres russas são capazes de matar por elas. A maior parte, para todos os efeitos, destinada a amigos e colegas em Moscou. Portanto, se a KGB interviesse, ou pressionasse a AVH a fazê-lo, acabaria com uma fonte das coisas que eles mesmos desejam. Um pouco de corrupção não provoca danos mais graves e ajuda a saciar a cobiça do outro lado. Nunca se esqueça de que eles também têm fraquezas. Provavelmente mais do que nós, embora insistam no contrário. Eles querem as coisas que possuímos. Os canais oficiais não funcionam bem, mas os extraoficiais, sim. Gosto muito de um provérbio húngaro: A nogy kapu mellett tnindig van egy kis kapu. Ao lado do grande portão, há sempre uma portinhola. É a portinhola que faz as coisas funcionarem aqui.
— E eu vou passar por ela.
— Exato.
Andy terminou de beber o vinho e decidiu parar por ali. Teria que dirigir naquela noite, no escuro, por estradas em péssimo estado. Para compensar, acendeu um charuto. Ryan também recorreu ao fumo.
— Nunca participei de algo parecido, Andy.
— Está com medo?
— Estou — admitiu Jack, francamente. — Sim, estou.
— A primeira vez nunca é fácil. Eu, pelo menos, nunca tive a casa invadida por homens armados de metralhadoras.
— Não recomendo como um passatempo para depois do jantar — disse Ryan, com meio sorriso. — Mas tivemos a sorte de escapar.
— Não acredito em sorte... bem, algumas vezes, talvez. A sorte não anda por aí em busca de um tolo para ajudar.
— Pode estar certo. É um pouco difícil perceber de dentro da situação. — Ryan rememorou aquela noite sombria novamente. A sensação de estar com a Uzi nas mãos. A obrigação de acertar o tiro. Não teria outra chance. Diante daquilo, havia se apoiado em um joelho, mirado e acertado na mosca. E nunca ficara sabendo o nome do cara que pegou no barco. Esquisito. Se você mata um cara bem na sua casa, deve pelo menos saber o nome dele, pensou. Claro, se tinha conseguido fazer aquilo, também podia lidar com a nova situação.
Verificou a hora. Como ainda levaria algum tempo e ele não ia dirigir, mais uma taça de vinho lhe pareceu uma boa ideia. Mas seria a última.
DE VOLTA AO ASTORIA, OS ZAITZEV puseram a coelhinha para dormir. Oleg pediu vodca ao serviço de quarto. Era a marca genérica que o proletariado bebia: uma garrafa de meio litro fechada com um laminado que, na prática, obrigava a tomar tudo de uma vez. Não seria uma má ideia para aquela noite. A garrafa chegou em cinco minutos, quando a zaichik já estava dormindo. Ele se sentou na cama, e a esposa, na cadeira estofada. Usaram os copos do banheiro para beber.
Oleg tinha uma última tarefa a cumprir. Sua esposa ainda não sabia do plano. Ele não conseguia prever como reagiria. Sabia que ela era infeliz e que aquela viagem se tornara o ponto mais marcante do casamento. Também sabia que ela odiava trabalhar na GUM e que queria desfrutar os aspectos mais requintados da vida. Mas seria capaz de abandonar sua terra natal? A seu favor, havia o fato de que as mulheres russas não gozavam de muita liberdade, dentro ou fora do casamento. Geralmente faziam o que os maridos mandavam. Talvez eles acabassem pagando mais tarde, porém só mais tarde. Ela o amava e confiava nele, e ele lhe proporcionara os melhores momentos de sua vida nos últimos dias. Sim, ela iria junto.
Mas ele esperaria para contar. Por que correr o risco de estragar tudo antecipando o problema? Logo do outro lado da rua, ficava a rezidentura da KGB em Budapeste. E, se eles soubessem de seus planos, Oleg seria seguramente um homem morto.
NA EMBAIXADA BRITÂNICA, os sargentos Bob Small e Rod Truelove carregaram os sacos plásticos até o caminhão não identificado da embaixada — as placas já haviam sido trocadas. Eles tentaram ignorar a carga, depois voltaram para buscar os contêineres de álcool, além de uma vela e uma caixa de papelão. Estavam prontos. Nenhum dos dois havia tomado sequer uma caneca de cerveja, embora ambos desejassem tê-lo feito. Saíram pouco depois da meia-noite, planejando analisar o objetivo antes de estabelecer um plano de ação. A parte difícil seria encontrar o local certo para estacionar; com mais de uma hora para decidir, porém, estavam confiantes de que encontrariam no momento apropriado.
O BAR COMEÇOU A ESVAZIAR, e Hudson não quis ser o último freguês da casa. A conta ficou em cinquenta florins, que ele pagou sem deixar gorjeta, por não ser costume no país — não queria dar razão para ser lembrado. Fez um sinal para Ryan e encaminhou-se para a saída, mas, depois de pensar melhor, decidiu ir ao banheiro. Jack achou que era uma boa lembrança. Do lado de fora, Ryan perguntou qual seria o passo seguinte. — Vamos dar uma caminhada pela rua, Sir John — respondeu Hudson, usando o título só para provocá-lo. — Uma caminhada de trinta minutos até o hotel. Acho que chegaremos na hora exata.
O exercício também lhes daria a oportunidade de se assegurarem de que ninguém os seguia. Se os inimigos estivessem monitorando a operação, não resistiriam à tentação de acompanhar os dois oficiais de inteligência. Com as ruas vazias, não seria muito difícil notá-los no caminho... a não ser que fossem da KGB. Eles eram mais espertos do que os agentes locais por uma larga vantagem.
ZAITZEV E IRINA JÁ sentiam os efeitos das três doses caprichadas de vodca.
Estranhamente, porém, a esposa demonstrava poucos sinais de sonolência. Oleg achou que ela continuava agitada por causa do programa refinado daquela noite. Talvez fosse melhor assim. Era sua última preocupação — além de como a CIA planejava retirá-los da Hungria. Como seria? Um helicóptero perto da fronteira, voando abaixo da cobertura dos radares húngaros? Ele teria escolhido essa opção. A CIA seria capaz de transportá-los da Hungria para a Áustria? Qual seria seu nível de engenhosidade? Permitiriam que soubesse dos planos? Seria algo muito rebuscado e arriscado? E assustador? Daria certo? Se desse errado... bem, as consequências de um fracasso não exigiam muita especulação. Mas ele não conseguia evitar. Não era a primeira vez que Oleg refletia que a aventura poderia resultar na sua morte e em sofrimento prolongado para sua esposa e sua filha.
Os soviéticos não as matariam, mas as marcariam como párias, condenadas a uma vida de amargura. Portanto, elas também eram reféns da consciência dele. Quantos soviéticos teriam desistido de desertar com base naquilo? A traição, lembrou-se, era o crime mais grave, e as punições eram igualmente intimidadoras Zaitzev serviu o resto da vodca e bebeu tudo de uma vez, preparando-se para a última meia hora antes da chegada da CIA, que salvaria sua vida... Ou ... Não sabia o que planejavam fazer com ele e sua família. Não parava de checar o relógio de pulso. Sua mulher finalmente começou a cochilar, sorrindo e murmurando o concerto de Bach, com a cabeça pendendo levemente. Ao menos, ele havia lhe proporcionado a noite mais agradável possível a seu alcance...
HAVIA VAGAS PARA ESTACIONAMENTO perto da porta lateral do hotel. Small seguiu até lá e parou com precisão. Estacionar paralelamente à rua era uma forma de arte inglesa que ele ainda dominava. Os dois permaneceram sentados, Small fumando um cigarro, e Truelove, um cachimbo de urze branca. Observavam as ruas vazias, com alguns pedestres passando à distância. Small manteve um olho no retrovisor, atento a eventuais atividades na residência da KGB. Havia luzes acesas no segundo andar, mas nenhum movimento perceptível. Provavelmente algum funcionário da KGB tinha simplesmente esquecido de desligar a luz ao sair.
LÁ ESTAVA, RYAN VIU, A APENAS TRÊS QUARTEIRÕES, no lado direito da rua.
Hora do show.
O restante da caminhada pareceu passar em um instante. Jack notou que Tom Trent estava perto de um dos cantos do prédio. Havia pessoas saindo, provavelmente do bar no andar inferior que Hudson lhe mostrara. Era mesmo a hora de fechar. As pessoas deixavam o local aos pares ou em grupos de três, nenhuma sozinha. Deve ser um bar para os solteiros daqui, pensou Jack. Uma ajuda para que os solitários terminais consigam companhia por uma noite. Então, aquilo também existia nos países comunistas.
Ao se aproximarem, Hudson fez um gesto com o dedo diante do nariz. Era um sinal para que Trent entrasse e distraísse o recepcionista. Como ele cuidou daquilo Ryan nunca viria a saber, mas, minutos depois, quando entraram, o saguão estava completamente vazio.
— Vamos — disse Hudson.
Ele correu até a escada, que circundava o poço do elevador. Levaram menos de um minuto para chegar ao terceiro andar. Quarto 307. Hudson girou a maçaneta. O Coelho não havia trancado a porta. Ele a abriu lentamente.
Zaitzev percebeu a porta se abrindo. Irina estava dormindo. Ele olhou mais uma vez para confirmar e se levantou.
— Olá — disse Hudson, numa saudação silenciosa. Ele estendeu a mão.
— Olá — respondeu Zaitzev, em inglês. — Você é agente de viagens?
— Sim, nós dois somos. Este é o Sr. Ryan.
— Ryan? — repetiu Zaitzev. — Existe uma operação da KGB com esse nome.
— É mesmo? — perguntou Jack, surpreso. Nunca ouvira falar daquilo.
— Podemos conversar sobre isso depois, camarada Zaitzev. Precisamos partir agora.
— Da.
Ele se virou para acordar a esposa. Ela se levantou abruptamente ao ver os dois desconhecidos em seu quarto.
— Irina Bogdanova — disse Oleg, com um tom de voz austero. — Vamos fazer uma viagem inesperada. Temos que partir imediatamente. Ajude Svetlana a se arrumar.
Os olhos de sua esposa ficaram arregalados de surpresa.
— Oleg, o que é isso? O que vamos fazer?
— Estamos partindo para um novo destino. Você precisa se aprontar agora.
Ryan não entendia as palavras, mas o teor do diálogo parecia bem claro. Ficou surpreso quando a mulher ficou em pé e começou a se mexer como um robô. A filha estava numa pequena cama de criança. Mamãe Coelho pôs a menina em estado de semiconsciência e arrumou suas roupas.
— O que, exatamente, vamos fazer? — perguntou o Coelho.
— Vamos levá-los até a Inglaterra. Esta noite — ressaltou Hudson.
— Não é para os Estados Unidos?
— Primeiro, Inglaterra — disse Ryan. — Depois eu o levarei aos Estados Unidos.
— Ah.
Ryan pôde perceber que ele estava muito tenso, mas aquilo era natural. O sujeito havia colocado a vida na mesa de jogo, e os dados ainda estavam no ar. A missão de Ryan era garantir que não saíssem dois do número mais baixo.
— O que preciso levar? — perguntou Zaitzev.
— Nada — respondeu Hudson. — Absolutamente nada. Deixe todos os seus documentos aqui. Vamos lhes dar novos. — Ele mostrou três passaportes com uma variedade de carimbos falsos no interior. — Eles ficam comigo por enquanto.
— Você é da CIA?
— Não, sou britânico. Ryan é da CIA.
— Mas... por quê?
— É uma longa história, Sr. Zaitzev — disse Ryan. — Neste momento, precisamos partir.
A menina estava vestida, porém ainda sonolenta, exatamente como Sally naquela noite terrível em Peregrine Cliff.
Hudson olhou ao redor, ficando satisfeito ao notar a garrafa vazia de vodca na mesa. Era muita sorte. A mamãe Coelho ainda parecia confusa com a combinação de três ou quatro doses de vodca e do terremoto que havia acontecido a sua volta. Em menos de cinco minutos, todos estavam prontos para partir. Então, Irina viu a sacola com as meias-calças e foi em sua direção.
— Nyet — disse Hudson em russo. — Deixe aí. Há muitas dessas no lugar para onde vocês vão.
— Mas... mas... mas...
— Faça o que ele manda, Irina! — disse Oleg, rispidamente, com seu equilíbrio afetado pela bebida e pela tensão do momento.
— Todos prontos? — perguntou Hudson.
Irina pegou a filha no colo, seu rosto tomado pela confusão, e todos foram em direção à porta. Hudson examinou o corredor e fez um sinal para que os outros o seguissem.
Ryan, que ia por último, fechou a porta, certificando-se de que não ficasse trancada.
O lobby continuava vazio. Não sabiam o que Tom Trent fizera, mas, fosse o que fosse, estava funcionando. Hudson conduziu os demais pela porta lateral até o lado de fora. O carro da embaixada usado por Trent estava lá, e Hudson tinha as chaves de reserva. No caminho, ele fez um sinal para Small e Truelove, no caminhão. O carro era um Jaguar azul-escuro com a direção no lado esquerdo. Ryan orientou os russos a ocupar o banco traseiro, fechou a porta e entrou na frente. Hudson deu a partida no poderoso motor V-8 — o Jaguar era mantido com carinho para situações como aquela — e começou a dirigir.
AS LANTERNAS DO CARRO ainda podiam ser vistas quando Small e Truelove desceram do caminhão, correndo até a traseira. Cada um pegou um saco de adulto e entrou pela porta lateral. O saguão permanecia deserto. Eles subiram correndo pela escada. O corredor também estava vazio, e os dois soldados aposentados moveram-se furtivamente até o quarto. No interior, abriram os sacos e, usando luvas, retiraram os corpos. Aquele foi um momento penoso para ambos. Mesmo sendo soldados profissionais, com experiência de combate, a visão de um corpo humano carbonizado era difícil de suportar sem antes respirar fundo e ordenar que os nervos se controlassem.
Puseram os corpos do homem e da mulher — de diferentes países e continentes — lado a lado na cama de casal. Depois, voltaram ao caminhão, levando os sacos vazios. Small tirou o pacote menor do caminhão e Truelove pegou o resto do equipamento.
O trabalho de Small mostrou-se o mais difícil: remover o corpo da menina do saco plástico era algo que teria de se esforçar muito para apagar da memória. Ela foi colocada no berço — como ele chamava o leito — em sua roupa de dormir quase incinerada. Talvez Small afagasse sua cabeça, se os cabelos não tivessem sido inteiramente queimados com um maçarico. Tudo que pôde fazer foi rezar por sua alma inocente, antes de quase perder o controle do estômago, o que o obrigou a se virar abruptamente.
O EX-ENGENHEIRO REAL também cuidava de seu trabalho: garantir que não estavam deixando nenhum rastro. Dobrou o último saco plástico e prendeu-o ao cinto.
Ambos permaneciam com as luvas nas mãos; portanto, não havia nada a ser esquecido no quarto. Truelove examinou o ambiente por mais algum tempo e gesticulou para que Small saísse.
Em seguida, rasgou a parte de cima da caixa de papelão, que havia passado por limpeza e secagem antes. Acendeu a vela com o isqueiro e deixou pingar uma grande quantidade de cera na caixa, para se assegurar de que ficaria e pé. Depois, apagou a vela e conferiu se estava firme em seu lugar.
SÓ ENTÃO VEIO A PARTE PERIGOSA. Truelove abriu o contêiner com álcool e derramou quase um litro na caixa de papelão, deixando apenas dois centímetros de vela de fora. Depois, espalhou o líquido na cama e no leito da criança. O resto foi entornado no chão, principalmente em volta da caixa de papelão. Ao acabar, jogou o contêiner vazio para Bob Small.
Um galão inteiro de álcool de cereais puro derramado nas roupas de cama, e outro no carpete barato que cobria o piso. Especialista em demolições — na verdade, tinha várias áreas de especialização, como a maioria dos engenheiros militares —, ele sabia que precisava ter cautela na etapa seguinte. Curvando-se, acionou o isqueiro novamente e acendeu o pavio, com o mesmo cuidado de um cirurgião cardíaco em operação de substituição de válvula. Saiu do quarto imediatamente, mas não sem antes verificar se a porta estava devidamente fechada e se o aviso de "não perturbe" estava pendurado na maçaneta.
— HORA DE IR EMBORA, ROBERT — disse Rodney ao colega.
Em trinta segundos, passavam pela porta lateral do hotel, alcançando a rua.
— Por quanto tempo a vela vai queimar? — perguntou Small, no caminhão.
— No máximo, trinta minutos.
— Aquela pobre menina... você acha que...
— Pessoas morrem em incêndios domésticos todos os dias, parceiro. Não é algo feito especialmente para esta missão.
Small concordou com a observação: — É, acho que sim.
Naquele exato momento, Tom Trent apareceu no saguão. Não haviam conseguido achar a câmera que esquecera em um quarto, mas mesmo assim ele deixou uma gorjeta para o recepcionista, pelo esforço. Seria o único empregado no hotel até as cinco da manhã.
Ao menos, é o que ele pensa, disse Trent a si mesmo, subindo no caminhão.
— De volta à embaixada, rapazes — disse o espião aos homens da segurança. — Há uma bela garrafa de uísque escocês puro malte nos esperando.
— Ótimo. Preciso mesmo de um trago — comentou Small, lembrando-se da garotinha. — Ou dois.
— Pode nos contar qual é o objetivo de toda esta aventura? — perguntou Truelove.
— Hoje não. Quem sabe outro dia — respondeu Trent.
28
INTERIOR DA INGLATERRA
A VELA QUEIMOU NORMALMENTE, sem saber do papel que representava nas aventuras daquela noite, consumindo o pavio e a cera em ritmo lento e chegando vagarosamente à superfície estática do álcool. Estava prestes a funcionar como catalisador em um incêndio premeditado. No final, levou 34 minutos para que a superfície do fluido inflamável entrasse em combustão. O que teve início então foi um incêndio classificado de classe B pelos especialistas: incidente com líquido inflamável. O álcool queimou com um vigor quase tão intenso quanto o da gasolina. Por aquela mesma vazão, os alemães haviam usado álcool em vez de querosene em seus mísseis V-2. A caixa de papelão foi rapidamente consumida, derramando no chão o litro de álcool que continha. Aquilo provocou a ignição da superfície encharcada do carpete do quarto. A onda flamejante percorreu o piso em questão de segundos, como um ser vivo, uma linha azul seguida por uma massa branca incandescente, à medida que o fogo subia para consumir o oxigênio disponível no ambiente de teto alto. Mais um instante, e ambas as camas também se incendiaram, rodeando os corpos com chamas e um calor crestante.
Por ser antigo, o hotel Astoria não dispunha de detectores de fumaça ou sprinklers automáticos, para avisar do perigo ou extinguir as chamas antes que elas se tornassem muito perigosas. Assim, o fogo subiu quase imediatamente até o teto branco, marcado por infiltrações, queimando a pintura e o reboco, além da mobília barata. O interior do quarto tornou-se um crematório para os três seres humanos já mortos, devorando seus corpos como o animal carnívoro que os egípcios achavam que o fogo fosse. A maior parte do estrago ocorreu em cinco minutos, mas, embora as chamas tenham se acalmado depois da fúria inicial, ainda não se haviam extinguido.
O trabalho do recepcionista era mais complexo do que se imaginava. Toda madrugada, às duas e trinta, ele colocava uma placa de "volto já" no balcão e pegava o elevador até o último andar, para percorrer os corredores. Naquela noite, vinha encontrando o mesmo de sempre — nada —, até chegar ao terceiro andar.
Já nas escadas, sentiu um cheiro diferente. Aquilo aguçou seus sentidos, mas nem tanto, até seus pés tocarem o piso. Ele virou à esquerda e viu um rastro de fumaça saindo por baixo da porta do 307. Deu três passos, chegando à porta, e tocou a maçaneta. Estava quente, mas não numa temperatura insuportável. Foi quando cometeu seu grande erro.
Tirou a chave do bolso, destrancou a porta e a abriu sem avaliar a temperatura na parte de madeira, para verificar se estava quente.
O fogo praticamente se extinguira, privado de oxigênio, mas o quarto permanecia quente, com as paredes isolando as chamas restantes com a eficiência de uma churrasqueira. A abertura da porta permitiu a entrada de grande volume de ar fresco e oxigênio; ele mal tivera a chance de testemunhar o horror no interior do quarto, quando um fenômeno conhecido como inflamação generalizada aconteceu.
Era o fenômeno mais próximo de uma explosão. O quarto todo entrou em combustão novamente com a rajada de chamas e a entrada adicional de ar. A força foi suficiente para quase derrubar o recepcionista e sugá-lo para dentro do quarto, mas o impulso do fogo empurrou-o no sentido contrário — e salvou sua vida. Batendo com as mãos no rosto queimado pelo fogo, ele caiu de joelhos e, sem fechar a porta do 307, arrastou-se até o alarme manual que ficava na parede perto do elevador. Aquilo acionou sinos em todo o hotel e também enviou um chamado ao Corpo de Bombeiros mais próximo, a três quilômetros de distância. Gritando de dor, ele rastejou até o lobby, onde primeiro jogou um copo d'água na cara e depois discou o número de emergência para relatar o incêndio. Àquela altura, as pessoas estavam descendo pela escada; passar pelo terceiro andar foi uma experiência horrível. Mesmo queimado, o recepcionista pegou um extintor para jogar água nelas, mas não teve forças para voltar e buscar a mangueira de incêndio guardada num pequeno compartimento do andar tomado pelo fogo. Não adiantaria nada.
O primeiro caminhão dos bombeiros chegou menos de cinco minutos depois de dado o alarme. Sem precisar de explicações — o calor do fogo, renovado, havia estourado as janelas do quarto —, abriram caminho por entre os hóspedes em fuga. Um minuto após chegarem, a primeira mangueira de setenta milímetros já lançava água no interior do quarto. Precisaram de menos de cinco minutos para debelar o fogo. Enfrentando a fumaça e o terrível odor, os bombeiros alcançaram o interior do quarto, encontrando o que mais temiam: uma família de três, todos mortos em suas camas.
O tenente no comando dos bombeiros pôs a menina morta nos braços e correu até a rua.
Mas ele sabia que era perda de tempo. A criança havia torrado como um pedaço de carne no forno. Levar seu corpo para baixo só expôs o efeito funesto do fogo num corpo humano. Não tinha mais o que fazer, fora rezar por ela. Irmão de um padre e católico devoto em país marxista, o tenente rezou a Deus que tivesse misericórdia pela alma da menina, sem saber que o mesmo gesto acontecera a mais de seis mil quilômetros, cinco dias antes.
A FAMÍLIA COELHO SAIU DA CIDADE em questão de minutos. Hudson dirigia cuidadosamente, dentro dos limites de velocidade, para o caso de haver um policial por perto. No entanto, o tráfego era praticamente inexistente; apenas um ou outro caminhão de carga, com lonas nas laterais, carregando sabe-se-lá-o-quê para sabe-se-lá-onde.
Ryan ocupava o banco do carona, o corpo virado, olhando para trás. O rosto de Irina era uma máscara de confusão entorpecida, sem compreender a situação a fundo, para que pudesse se sentir realmente assustada. A criança dormia, como a maioria das crianças fazia àquela hora da madrugada. O pai tentava manter o ar de autoridade, ma se podia ver uma ponta de medo em seu rosto, mesmo na escuridão. Ryan tentou se colocar no lugar dele. Era impossível. Trair o próprio país era um exercício de imaginação fora de seu alcance. Sabia que havia pessoas que atraiçoavam os Estados Unidos, especialmente por dinheiro, mas também não tinha intenção de entender suas motivações. Claro, nas décadas de 1930 e 1940, alguns acreditavam que o comunismo era a onda de liderança da história humana. Aqueles pensamentos, entretanto, estavam mortos. Assim como Vladimir Ilyich Lenin. O comunismo era uma ideia à beira da morte, exceto na mente daqueles que precisavam dele como fonte de poder pessoal... E talvez algumas pessoas ainda acreditassem naquilo porque nunca haviam sido expostas a um sistema diferente. Ou porque a ideia havia sido plantada profundamente em sua juventude distante — como um sacerdote ou padre acreditava em Deus. Mas Ryan não considerava as palavras da obra completa de Lenin a Sagrada Escritura. Nunca o faria. Como recém-formado, prestara juramento à Constituição dos Estados Unidos. E, como segundo-tenente dos fuzileiros navais, prometera ser sempre leal e obediente a ela. Era tudo.
— Quanto tempo falta, Andy?
— Pouco mais de uma hora até Csurgo. Não devemos ter problema com congestionamentos — respondeu Hudson.
E não tiveram. Em minutos estavam fora dos limites da capital húngara. As luzes das casas e empresas simplesmente sumiram, como se alguém houvesse desligado a chave de eletricidade da região. A rodovia, asfaltada, tinha duas faixas de rolamento não muito largas. Postes telefônicos, sem separação entre as pistas. E eles consideram isso uma de suas principais estradas?, pensou Ryan. Era como se estivessem dirigindo na região central de Nevada. Uma ou duas luzes a cada quilômetro, casas de fazenda quando se precisava de uma para ir ao banheiro. Até as placas pareciam deterioradas e não muito úteis — nada parecido com a sinalização verde dos Estados Unidos ou a azul da Inglaterra. E não ajudavam em nada aquelas palavras escritas em marciano. No resto, seguiam o estilo europeu, indicando o limite de velocidade em números pretos dentro de um círculo branco limitado por uma circunferência vermelha.
Hudson se mostrou um motorista competente, dando tragadas em seus charutos e dirigindo como se estivesse a caminho do Covent Garden, em Londres. Ryan agradeceu a Deus por ter ido ao banheiro antes da caminhada até o hotel; do contrário, podia perder o controle da bexiga. Torceu para que seu rosto não revelasse o quanto estava nervoso. Repetia a si mesmo que não era sua vida que corria risco, e sim a das pessoas no banco de trás, que eram sua responsabilidade. Alguma coisa dentro dele, provavelmente herdada do pai policial, tornava aquilo uma questão de suprema importância.
— Qual é seu nome completo? — perguntou Oleg, quebrando o silêncio repentinamente.
— Ryan, Jack Ryan.
— Que tipo de nome é Ryan? — insistiu o Coelho.
— É de ascendência irlandesa. John corresponde a Ivan, se não me engano. Mas as pessoas me chamam de Jack, como Vanya, talvez.
— E você é da CIA?
— Sim, sou.
— Que função exerce na CIA?
— Sou analista. Na maior parte do tempo, fico sentado atrás da mesa, escrevendo relatórios.
— Também fico atrás de uma mesa no Centro.
— É oficial de comunicações?
Um gesto com a cabeça.
— Da, essa é minha função no Centro.
Naquele instante, Zaitzev lembrou que suas informações importantes não deviam ser passadas do banco de trás de um carro e voltou a ficar quieto. Ryan percebeu: ele tinha coisas a dizer, mas não ali, e aquilo lhe pareceu justo.
A viagem transcorreu tranquilamente. Quatro charutos para Hudson e seis cigarros para Ryan até chegarem à cidade de Csurgo.
Ryan esperava mais do que encontrou. Csurgo não passava de uma área ampla no meio da estrada, sem um mísero posto de gasolina à vista, e muito menos uma loja de conveniência 24 horas. Hudson pegou uma estrada de terra, e, três minutos depois, avistaram o formato de um caminhão. Era um Tatra com uma lona preta cobrindo a traseira e dois homens parados ao lado, ambos fumando. Hudson contornou o veículo e encontrou cobertura em uma espécie de galpão, a poucos metros, onde estacionou o Jaguar. Saltou e sinalizou para que os outros o seguissem.
Ryan acompanhou o espião britânico na direção dos dois homens. Hudson se dirigiu ao mais velho e trocou um aperto de mão com ele.
— Olá, Istvan. Legal de sua parte nos esperar.
— Oi, Andy. A noite está monótona. Quem são seus amigos?
— Este é o Sr. Ryan. Aquela é a família Somerset. Vamos atravessar a fronteira — explicou Hudson.
— Tudo bem — assentiu Kovacs. — Este é Jani. É meu motorista hoje. Andy, você pode vir na frente conosco. O resto vai atrás. Venham — disse, mostrando o caminho.
A tampa traseira do caminhão tinha degraus embutidos. Ryan subiu primeiro e se abaixou para erguer a menina — lembrava que seu nome era Svetlana. Depois, observou a mãe e o pai subirem. Entre a carga, havia grandes caixas de papelão, talvez para os videocassetes que os húngaros fabricavam. Kovacs juntou-se a eles.
— Todos vocês falam inglês? — perguntou, recebendo respostas afirmativas. — É uma distância curta até a fronteira: apenas cinco quilômetros. Vocês seguirão dentro das caixas. Por favor, não façam barulho. É importante. Entenderam? Sem barulho.
Todos consentiram novamente. Kovacs notou que o homem — podia ver que não era inglês — traduzia as palavras para a mulher e fez questão de levar a menina com ele. Com a carga escondida, o húngaro fechou a tampa e voltou para a cabine.
— Cinco mil marcos por isso, hein? — perguntou Istvan.
— Está correto — confirmou Hudson.
— Eu devia cobrar mais, mas não sou um homem ganancioso.
— Você é um camarada em quem confio, meu amigo — assegurou Hudson, com um desejo repentino de ter uma pistola escondida na cintura.
O motor a diesel do Tatra roncou e o caminhão partiu, retornando à estrada principal, com Jani à frente do enorme volante.
Não levaria muito tempo.
Uma boa notícia para Ryan, agachado dentro de uma caixa de papelão na traseira. Tentava imaginar como estariam se sentindo os russos: fetos no interior de um útero assustador, com armas carregadas do lado de fora. Ryan estava com medo até de fumar um último cigarro, receando que alguém sentisse o cheiro no meio ao intenso odor da fumaça do caminhão, o que seria altamente improvável.
— Então, Istvan, qual é o procedimento? — perguntou Hudson, na cabine.
— Preste atenção. Normalmente viajamos à noite. É mais... dramático? É essa a palavra? Conheço a hatdr rség há muitos anos. O capitão Budai Laszlo é um cara bom para negociar. Tem esposa e uma filha pequena. Sempre quer um presente para a pequena Zsóka. E eu tenho um —informou Kovacs, mostrando um saco de papel.
A iluminação do posto de fronteira permitia que fosse visto a três quilômetros. Não havia muito movimento naquele horário. Jani dirigiu normalmente, reduzindo a velocidade e parando quando o soldado fez um sinal.
— O capitão Budai está? — perguntou Kovacs. — Tenho algo para lhe entregar.
O soldado entrou no posto e voltou rapidamente com um homem mais velho.
— Laszlo! Como está nesta noite fria? — perguntou Kovacs, em magiar, saltando em seguida do caminhão com a sacola de compras na mão.
— Istvan, a noite tem sido monótona — respondeu o jovem capitão.
— E a pequena Zsóka, está bem?
— O aniversário dela é na próxima semana. Vai completar cinco anos.
— Que ótimo! — comentou o contrabandista. Ele entregou o pacote a Laszlo. — Dê isto a ela.
"Isto" era um par de tênis vermelhos da Reebok com fechos de velcro.
— São lindos — disse o capitão Budai, realmente satisfeito. Tirou-os da sacola para observá-los sob a luz. Qualquer menina adoraria calçar aqueles tênis, e Laszlo ficou tão feliz quanto a filha ficaria em quatro dias. — Você é um bom amigo, Istvan. Me diga, o que está transportando esta noite?
— Nada de valor. Mas vou fazer uma coleta em Beograd de manhã. Precisa de algo?
— Minha esposa adoraria algumas fitas para o walkman que você lhe deu no mês passado.
O mais interessante em relação a Budai era que não era um homem muito ganancioso. Por isso, Kovacs gostava de cruzar a fronteira em seu turno.
— De que bandas?
— Acho que ela disse Bee Gees. Para mim, se não se importar, algumas trilhas sonoras.
— Tem preferência? Talvez trilhas de filmes americanos, como Guerra nas estrelas, por exemplo.
— Eu tenho essa, mas não a da continuação, O império contra-ataca.
— Pode deixar. — Eles se apertaram as mãos. — Que tal um pouco de café ocidental?
— De que tipo?
— Austríaco ou americano, o que acha? Há um lugar em Beograd que vende o American Folgers. É muito saboroso — garantiu Kovacs.
— Nunca experimentei.
— Vou trazer um pouco para que possa provar. Cortesia.
— Você é um bom homem — disse Budai. — Tenha uma boa noite. Pode passar — concluiu, fazendo um sinal para o cabo.
Tudo extremamente simples. Kovacs deu a volta e subiu na cabine. E sequer desperdiçara o presente que tinha para o sargento Kerekes Mihály.
Hudson estava surpreso: — Nem verificou os papéis?
— Laszlo só envia o nome a Budapeste pelo teletipo. Também tenho pessoas de lá na minha folha de pagamento. Eles são mais gananciosos, mas não é uma despesa muito grande. Jani, vamos — disse ao motorista, que ligou o motor e atravessou a faixa pintada no pavimento.
E, com aquela facilidade, o caminhão deixou o Pacto de Varsóvia para trás. Na traseira, Ryan pensava que nunca se sentira tão feliz por perceber que o veículo estava se movendo. Ele parou novamente, mas numa fronteira diferente. Para entrar na Iugoslávia, Jani só precisou trocar algumas palavras com o guarda. Sequer desligou o motor, antes de receber autorização para seguir em frente, ingressando no país semicomunista. Dirigiu por três quilômetros até receber ordem de pegar uma estrada vicinal. Lá, depois de alguns solavancos, o caminhão parou.
Hudson acabara de confirmar que a segurança de fronteira iugoslava era inexistente.
Ryan já havia saído da caixa de papelão e aguardava em pé quando a cobertura de lona foi aberta.
— Aqui estamos, Jack — disse Hudson.
— Onde, exatamente?
— Iugoslávia, meu amigo. A cidade mais próxima é Légrád. Nos separamos aqui.
— É?
— Sim, entrego vocês a Vic Lucas. É meu correspondente em Belgrado. Vic? — disse Hudson, acenando.
O homem parecia irmão gêmeo de Hudson, exceto pelo cabelo preto. Depois de examiná-lo novamente, Jack achou que também era uns cinco centímetros mais alto. Ele foi auxiliar os Coelhos a sair das caixas. Tudo foi muito rápido: Ryan ajudou-os a descer, passando a menina — que, incrivelmente, continuava dormindo — à mãe, que tinha expressão cada vez mais confusa.
Hudson conduziu-os a um carro, uma van, que pelo menos ofereceria espaço confortável para todos.
— Sir John... quero dizer, Jack... parabéns e obrigado por sua ajuda.
— Eu não fiz nada, Andy, mas você cuidou muito bem de tudo — disse Ryan, estendendo-lhe a mão. — Vá me visitar em Londres para tomarmos uma cerveja.
— Pretendo fazer isso — garantiu Hudson.
A van era um modelo da Ford de fabricação britânica. Ryan ajudou os Coelhos a entrar e depois ocupou o banco da frente novamente: — Sr. Lucas, para onde vamos agora?
— Para o aeroporto. Nosso voo está à espera.
— Ahn? Um voo especial?
— Não, comercial, mas está enfrentando "problemas técnicos" neste momento. Acredito que será liberado para decolar quando estivermos a bordo.
— Bom saber — disse Ryan.
Melhor que um avião defeituoso de verdade. Mas, então, ele se deu conta de que tinha mais uma aventura apavorante pela frente. Sua aversão a voar havia voltado, de repente, agora que estavam em um país parcialmente livre.
— Certo, vamos embora — disse Lucas, ligando o motor e pegando a estrada.
O tal Vic Lucas devia achar que era o irmão mais rápido de Stirling Moss. O carro disparou pela estrada, cortando a escuridão iugoslava.
— Então, Jack, como foi sua noite?
— Movimentada — respondeu Ryan, verificando se o cinto de segurança estava bem preso.
A área rural dali tinha uma iluminação melhor, e a estrada parecia ser mais bem projetada e receber manutenção mais frequente. Ao menos, era a impressão a cerca de 120 quilômetros por hora — uma velocidade bem alta para se percorrer uma estrada estranha no escuro. Robby Jackson dirigia daquela maneira, mas era um piloto de caça, portanto insuperável no controle de qualquer meio de transporte. Vic Lucas devia se sentir da mesma forma, olhando adiante serenamente e virando o volante em movimentos curtos e precisos. No banco de trás, Oleg permanecia tenso, e Irina ainda tentava encarar aquela nova e incompreensível realidade. A filha continuava dormindo como um pequeno anjo. Ryan fumava um cigarro após o outro, o que parecia ajudá-lo a se acalmar, mas, se Cathy notasse o cheiro em sua respiração, seria um inferno. Bem, ela simplesmente teria de entender, pensou Jack, enquanto os postes passavam como paus de cerca: ele estava cuidando dos interesses do Tio Sam.
Ryan viu um carro da polícia no acostamento, com dois policiais tomando café ou dormindo em serviço.
— Não precisa se preocupar — disse Lucas. — Temos placas diplomáticas. Sou o principal assessor político na embaixada de Sua Majestade britânica. E vocês são meus convidados.
— Se está dizendo, cara. Quanto tempo falta?
— No máximo, meia hora. O tráfego tem ajudado até agora. Está bem tranquilo. Essa estrada costuma ficar cheia mesmo à noite, por causa do trânsito de mercadorias entre as fronteiras. Kovacs trabalha conosco há alguns anos. Eu poderia lucrar muito se fizesse uma sociedade com ele. Ele transporta os videocassetes por aqui. São aparelhos razoáveis e saem praticamente de graça devido ao custo da mão de obra na Hungria. É incrível que não tentem vendê-los no Ocidente, embora talvez tivessem que pagar aos japoneses pelo uso das patentes. Eles não ligam muito para isso lá do outro lado, como pôde ver.
Lucas fez outra curva em alta velocidade.
— Jesus, a que velocidade você anda à luz do dia?
— Não muito mais rápido do que isso. Tenho boa visão noturna, mas a suspensão do carro me atrapalha. Projeto americano... Muito suave para uma direção adequada.
— Então compre um Corvette. Um amigo meu tem um.
— São lindos, mas feitos de plástico.
Lucas balançou a cabeça e procurou um charuto. Provavelmente cubano. Eram adorados na Inglaterra. Meia hora depois, felicitou-se pelo feito: — Lá está. Bem na hora.
Aeroportos são iguais no mundo inteiro. É possível que tenham sido todos desenhados pelo mesmo arquiteto. A única diferença era a sinalização dos banheiros. Na Inglaterra, chamavam-se toaletes, o que Ryan achava um pouco grosseiro, em um país geralmente cordial. Nesse momento, ele se surpreendeu: em vez de seguir para o terminal, Lucas passou pelo portão aberto e foi direto para a pista.
— Tenho um acordo com o diretor do aeroporto. Ele gosta de puro malte — explicou.
Mesmo assim, respeitou a área para carros sinalizada por uma linha amarela, perto do único portão de embarque, no qual havia um avião encostado. — Aqui estamos — anunciou o espião inglês.
Todos desceram do carro, desta vez com a Sra. Coelho segurando a coelhinha. Lucas conduziu-os pelas escadas externas até a área de controle e, dali, seguiram diretamente para a porta da aeronave.
O capitão, sem o quepe, mas ostentando quatro listras no ombro, aguardava em pé.
— É o Sr. Lucas?
— Correto, capitão Rogers. E aqui estão seus passageiros extras — disse, apontando para Ryan e a família Coelho.
— Ótimo. — O capitão Rogers virou-se para o chefe dos comissários. — Podemos iniciar o embarque.
O comissário levou-os aos quatro assentos das fileiras iniciais da primeira classe. Ryan percebeu, surpreso, que estava feliz por colocar o cinto de segurança da poltrona 1-B.
Observou cerca de trinta pessoas entrarem, encerrando a temporada de sol na costa dalmática, um dos programas favoritos dos britânicos ultimamente. Nenhum deles parecia muito satisfeito com o atraso de três horas num voo que já era o último do dia para Manchester. Tudo correu rapidamente depois disso. Jack ouviu os dois motores entrando em operação, e então o BAC-111 — versão britânica do Douglas DC-9 — afastou-se do portão e taxiou em direção à pista.
— O que vai acontecer agora? — perguntou Oleg, em tom quase natural.
— Voaremos para a Inglaterra — respondeu Ryan. — Acredito que estaremos lá em aproximadamente duas horas.
— Tudo tão fácil?
— Você acha que isso foi fácil? — perguntou Ryan, sem esconder a incredulidade na voz.
Naquele momento, o sistema de som do avião foi acionado.
— Senhoras e senhores, aqui é o capitão Rogers falando. Tenho satisfação de informá-los que, finalmente, conseguimos resolver o problema eletrônico. Muito obrigado pela paciência. Assim que decolarmos, serão servidas bebidas, gratuitamente, a todos os passageiros. — O anúncio provocou gritos e aplausos no fundo do avião. — Por enquanto, peço que prestem atenção às aeromoças, que apresentarão os procedimentos de segurança.
Ponham seus cintos de segurança, seus tapados. Para os que são estúpidos a ponto de nunca terem notado que são idênticos aos dos carros que usam, eles funcionam assim. Em três minutos, a aeronave da British Midland abria caminho pelos céus.
Conforme o prometido, antes de chegarem a dez mil pés de altura, o sinal luminoso de proibido fumar se apagou e o carrinho de bebidas começou a passar. Os russos pediram vodca e receberam três garrafinhas da marca Finlândia. Ryan preferiu uma taça de vinho — com a promessa de mais. Ele não dormiria, mas também não se preocuparia tanto quanto o normal. Afinal, estava deixando o mundo comunista para trás. A oitocentos quilômetros por hora.
Ele percebeu que Oleg Ivanovich bebia vodca como se fosse água depois de um dia quente cortando grama. Sua esposa, no assento 1-C, fazia o mesmo. Ryan se sentia um exemplo, degustando seu vinho francês delicadamente.
— MENSAGEM DE BASIL — relatou Bostock pelo telefone. — O Coelho está no ar. Tempo estimado para chegada em Manchester: noventa minutos.
— Ótimo — disse o juiz Moore, demonstrando alívio por mais uma operação clandestina ter dado certo. Melhor ainda: tinham feito tudo sem Bob Ritter, que, apesar de ser um bom homem, não era totalmente indispensável.
— Em três dias, poderemos conversar com ele — disse Bostock. — Aquela casa charmosa em Winchester?
— Vamos ver se ele gosta da vida no campo.
A casa tinha um piano Steinway para a Sra. Coelho e muito verde para a criança brincar.
No MESMO MOMENTO, Alan Kingshot chegava ao estacionamento do aeroporto de Manchester, acompanhado de dois subordinados. Haveria um Daimler espaçoso para levar os desertores a Somerset de manhã. Ele esperava que não se importassem; seria uma viagem de quase duas horas. Passariam o restante daquele dia alojados em uma casa de campo a poucos minutos do aeroporto. Já haviam viajado muito, e outras viagens aconteceriam até o fim da semana. Então, Kingshot começou a refletir: as circunstâncias seriam duras demais para eles? A dúvida serviu para ocupar o tempo em um dos bares do aeroporto.
RYAN ESTAVA MEIO EMBRIAGADO. Talvez fosse a interação do álcool com a ansiedade.
Decidiu ir ao banheiro da parte dianteira e já se sentia melhor ao voltar e apertar o cinto de segurança — quase nunca o tirava. A equipe de bordo serviu apenas sanduíches. Ingleses, com a tradicional — e incomum — fartura de agrião. O que Ryan realmente queria era um belo bife em conserva, mas os britânicos sequer sabiam do que se tratava, achando que não passava de lixo enlatado que parecia comida de cachorro. Na verdade, os britânicos, apaixonados por animais de estimação, deviam dar comida muito mais refinada a seus cachorros. As luzes que se viam lá embaixo confirmavam que estavam sobrevoando a Europa Ocidental; Ryan comprovara que o Leste era mal iluminado ao viajar ao sul de Budapeste.
ZAITZEV AINDA NÃO TINHA tanta certeza. E se aquele fosse um truque elaborado para fazê-lo revelar a verdade? E se a Segunda Diretoria houvesse montado uma enorme cidade maskirovka pata iludi-lo temporariamente?
— Ryan?
Jack se virou.
— Sim?
— O que faremos na Inglaterra quando chegarmos?
— Não sei quais são os planos depois que estivermos em Manchester — respondeu Ryan.
— Você é da CIA? — perguntou o Coelho novamente.
— Sim — confirmou Jack.
— Como posso ter certeza?
— Bem... — Ryan procurou a carteira. — Aqui estão minha carteira de motorista, cartões de crédito, algum dinheiro. Obviamente, meu passaporte é falso. Sou americano, mas eles me arrumaram um britânico. Ah... está preocupado que tudo isso seja uma armadilha?
— Como posso ter certeza?
— Meu amigo, em menos de uma hora, saberá que não é uma armadilha. Veja... — Ele abriu a carteira de novo. — Esta é minha esposa, minha filha e nosso filhinho. Meu endereço nos Estados Unidos está aqui na carteira de motorista: Peregrine Cliff Road, 5000, condado de Anne Arundel, Maryland. Fica em Chesapeake Bay. Levo cerca de uma hora para dirigir de lá até o quartel-general da CIA, em Langley. Minha esposa é cirurgiã oftálmica no hospital Johns Hopkins, em Baltimore. É mundialmente conhecido. Você já deve ter ouvido falar.
Zaitzev fez um sinal negativo com a cabeça.
— Bem, alguns anos atrás, três médicos do Hopkins corrigiram um problema nos olhos de Mikhail Suslov. Soube que ele morreu recentemente. Creio que seu substituto será Mikhail Yevgeniyevich Alexandrov. Sabemos algo a respeito dele, mas não é suficiente. Na realidade, não sabemos o suficiente nem sobre Yuriy Vladimirovich.
— O que vocês não sabem?
— Ele é casado? Nunca vimos fotos da esposa, se é que tem uma.
— É sim, todos sabem disso. O nome dela é Tatiana, uma mulher muito elegante. Minha esposa diz que os traços dela são nobres. Mas eles não têm filhos — concluiu Oleg.
Bem, eis o primeiro factoide interessante fornecido pelo Coelho, pensou Ryan.
— Como é possível que vocês não saibam disso? — perguntou Zaitzev.
— Oleg Ivanovich, há muitas coisas que não sabemos sobre a União Soviética — informou Jack. — Algumas importantes, outras não.
— Isso é verdade?
— Sim, é verdade.
Alguma coisa despertou na mente de Zaitzev.
— Disse que seu nome é Ryan, não?
— Exato.
— Seu pai é policial?
— Como sabe disso? — perguntou Ryan, parcialmente surpreso.
— Temos um pequeno dossiê sobre você. Produzido pela rezidentura de Washington. Sua família foi atacada por bandidos, não foi?
— Correto. — A KGB está interessada em mim, hein?, pensou Jack. — Terroristas. Tentaram matar a mim e a minha família. Meu filho nasceu na mesma noite.
— E você entrou para a CIA depois disso?
— Sim... oficialmente, pelo menos. Faço trabalhos para a agência há alguns anos. — A partir daí, a curiosidade tomou conta de Ryan. — O que meu dossiê diz de mim?
— Diz que você é um riquinho idiota. Foi oficial da infantaria naval. Sua esposa é rica e você casou com ela por causa disso. Para ter mais dinheiro.
Então até a KGB é refém de seus preconceitos, pensou Jack. Interessante.
— Não sou pobre — disse Jack ao Coelho. — Mas casei com minha mulher por amor, não por dinheiro. Só um tolo faria isso.
— Quantos capitalistas são tolos?
Ryan deu uma risada.
— Muito mais do que você possa imaginar. Não é necessário ser muito esperto para ficar rico nos Estados Unidos. — Nova York e Washington, em particular, estavam cheias de idiotas ricos, mas Ryan concluiu que o Coelho precisava de um tempo antes de aprender aquela lição. — Quem produziu o dossiê sobre mim?
— Um repórter do Izvestia lotado na rezidentura de Washington. Iniciante na KGB. Fez o trabalho no último verão.
— E como você ficou sabendo?
— O despacho dele chegou a minha mesa, e eu o encaminhei ao Instituto Estados Unidos-Canadá. É um escritório da KGB. Disso você sabe, não?
— Sim — confirmou Jack. — Esse nós conhecemos.
De repente, Ryan sentiu um estalo no ouvido: o avião estava descendo. Tomou o resto da terceira taça de vinho e disse a si mesmo que tudo estaria acabado em poucos minutos. Havia aprendido uma lição na Operação BEATRIX: aquele tipo de trabalho não era para ele.
O sinal de proibido fumar voltou a se acender. Ryan colocou o assento na posição vertical. As luzes de Manchester apareceram pelas janelas, depois os faróis dos carros, os muros do aeroporto, e em alguns segundos... as rodas tocaram o chão da boa e velha Inglaterra. Não era a mesma coisa que os Estados Unidos, mas servia para o momento.
Ryan percebeu que Oleg espremia o rosto contra a janela para ver as cores na cauda do avião. Havia muitas para que aquela fosse uma base aérea soviética e parte de uma grande maskirovka. Foi possível notar que o Coelho estava começando a relaxar.
— Gostaríamos de lhes dar as boas-vindas a Manchester — disse o piloto, através do sistema de som. — São seis e quarenta no horário local, e a temperatura no exterior é de 54 graus Farenheit. Agradecemos sua paciência e esperamos voltar a nos encontrar em breve na British Midland.
Sim, vá sonhando, comandante, pensou Jack.
Ryan ficou esperando, enquanto a aeronave taxiava até a área de chegadas internacionais. Um caminhão levou a escada à porta dianteira, aberta pelo chefe dos comissários. Jack e a família Coelho foram os primeiros a sair e a descer as escadas, antes de serem conduzidos até os carros, em vez do ônibus comum. Alan Kingshot estava lá para recebê-los.
— Como foram as coisas, Jack?
— Igualzinho a uma viagem à Disney — respondeu Ryan, sem qualquer traço de ironia na voz.
— Certo. Vamos entrar todos nos carros, para que possamos ir para um lugar confortável.
— Para mim, está perfeito. Que horas são, quinze para as sete?
Ryan ainda não havia acertado o relógio. A Grã-Bretanha ficava uma hora atrasada em relação ao resto da Europa.
— Isso mesmo — respondeu o espião.
— Droga — reagiu Jack.
Era muito tarde para ligar para casa e avisar a Cathy que havia chegado. E, de qualquer maneira, ele não estava propriamente de volta. Agora, tinha que bancar o representante da CIA no primeiro interrogatório do Coelho. Sir Basil provavelmente o havia escolhido porque era muito inexperiente para fazer diferença. Bem, talvez ele pudesse mostrar ao anfitrião britânico como era estúpido. Antes, porém, precisava dormir. Aprendera que o estresse era tão cansativo quanto correr — e mais perigoso para o coração.
EM BUDAPESTE, OS TRÊS CORPOS estavam no necrotério da cidade, uma instituição tão depressiva por trás da Cortina de Ferro quanto fora dela. Depois de Zaitzev ser identificado como cidadão russo, a embaixada soviética fora contactada, e logo se concluíra que o homem em questão era um oficial da KGB. Aquilo atraíra o interesse da rezidentura, bem do outro lado da rua em que se localizava o hotel onde ele supostamente havia morrido. Novos telefonemas foram dados. Antes das cinco da manhã, o professor Zoltán Bíró foi tirado da cama pela AVH. Bíró dava aulas de patologia na escola médica Ignaz Semmelweis. Batizada em homenagem a um dos pais da teoria dos germes, que havia transformado a ciência médica no século XIX, a instituição mantinha alto nível, atraindo estudantes até da Alemanha Ocidental.
Mas nenhum deles participaria dos exames post-mortem determinados pelo Belügyminisztérium, que seriam acompanhados pelo médico-residente da embaixada soviética.
O primeiro seria o adulto do sexo masculino. Técnicos retiraram amostras de sangue dos três corpos para análise no laboratório.
— Este corpo é de um homem caucasiano, de aproximadamente 35 anos de idade, cerca de l,75m de altura e 72 quilos de peso. A cor do cabelo não pode ser determinada, devido à extensa carbonização provocada pelo incêndio doméstico. A impressão inicial é de morte pelo fogo... mais provavelmente por intoxicação causada por monóxido de carbono, já que o corpo não traz evidências de que tenha se debatido no momento da morte.
Em seguida, teve início a dissecação, com a clássica incisão em forma de Y para abrir a cavidade corporal e permitir acesso visual aos órgãos internos. O professor examinava o coração — normal — quando os relatórios do laboratório chegaram.
— Professor Bíró, a concentração de monóxido de carbono chegou a níveis letais nos três corpos — informou a voz pelo interfone, fornecendo os números exatos.
Bíró olhou para o colega russo.
— Precisa de mais alguma coisa? Posso fazer uma necropsia completa nas três vítimas, mas a causa da morte está determinada. Este homem não foi atingido por um projétil. Faremos exames de sangue mais abrangentes, claro; mas é improvável que tenham sido envenenados. E, neste homem, não há ferimentos a bala ou qualquer outro trauma por penetração. Todos foram mortos pelo fogo. Enviarei os resultados completos do laboratório hoje à tarde. — Bíró respirou fundo. — A kurva életbe! — concluiu, com um popular epíteto magiar.
— Uma menina tão bonita — comentou o clínico geral russo.
A carteira de Zaitzev, de alguma maneira, escapara do fogo. As fotos de família também. A de Svetlana era particularmente cativante.
— A morte nunca é sentimental — disse Bíró. Como patologista, entendia muito bem do assunto.
— Muito bem. Obrigado, camarada professor.
O russo deixou a sala, já pensando no relatório oficial que enviaria a Moscou.
29
REVELAÇÕES
A CASA, SUNTUOSA, devia ser residência de férias de alguém com muito dinheiro e bom gosto. Pela aparência, havia sido construída no século anterior, com presença de estuque trabalhado e pesadas vigas de carvalho, do tipo usado para construir navios antigos, como o HMS Victory. No entanto, ficava cercada por terra.
Estava na distância máxima da água do mar naquele reino insular.
Alan Kingshot, obviamente, conhecia a propriedade muito bem. Foi ele quem levou os quatro para lá e os acomodou. Ryan achou que os dois empregados que cuidavam da casa pareciam policiais. Provavelmente um casal de ex-integrantes da Força Policial Metropolitana, nome oficial da polícia de Londres. Eles acompanharam os novos convidados, com toda a gentileza, aos seus confortáveis quartos. Os olhos de Irina revelavam admiração com as acomodações, impressionantes até para os padrões de Ryan. Oleg, por sua vez, apenas pôs seu conjunto de barbear no banheiro e se jogou na cama. Entorpecido pelo álcool, dormiu em menos de cinco minutos.
AO FICAR SABENDO, antes da meia-noite, que os pacotes estavam escondidos em local seguro, o juiz Moore também pôde ir para a cama. Só faltava solicitar à Força Aérea que enviasse um KC-135 ou um avião parecido para buscar as encomendas — o que seria resolvido com um simples telefonema a um oficial do Pentágono. Ele tentou imaginar o que o Coelho revelaria, mas não precisava pensar naquilo imediatamente. Ter paciência, depois de superado o perigo, já não era tão difícil para o diretor da CIA. Parecia a noite de Natal: embora não soubesse o que encontraria embaixo da árvore, antecipara que seria algo bom.
AS NOTÍCIAS CHEGARAM à casa de Sir Basil Charleston em Belgravia antes do café da manhã, por mensageiro da Century House. Uma forma muito agradável de começar o dia, pensou. Certamente melhor do que outras que experimentou. Ele foi para o escritório antes das sete, pronto para a reunião matutina em que seria discutido o sucesso da Operação BEATRIX.
RYAN ACORDOU COM barulho de carros. Quem quer que tivesse erguido aquela magnífica casa de campo não previra a construção de uma autoestrada a menos de trezentos metros. Pelo menos, de algum modo, ele não acordara de ressaca, mesmo depois de todos os drinques do voo. A sensação prolongada de agitação fez com que ele se levantasse depois de apenas seis horas e meia de sono. Lavou o rosto e foi até a ampla cozinha, onde se servia o café da manhã. Encontrou Alan Kingshot, que preparava um chá.
— Aposto que prefere café, não é?
— Se houver.
— Só instantâneo — ressalvou Kingshot.
Jack conteve a decepção.
— Melhor do que ficar sem café.
— Ovos Benedict? — perguntou a policial aposentada.
— Em troca disso, sou capaz até de perdoar a ausência de uma filial da Starbucks — respondeu Jack, sorrindo.
Ao folhear os jornais, percebeu que a realidade e a normalidade haviam finalmente retornado a sua vida. Ou quase.
— O senhor e a senhora Thompson mantêm esta casa para nós — explicou Kingshot. — Nick era detetive da homicídios na Yard, e Emma trabalhava na administração.
— Ele fazia a mesma coisa que meu pai — contou Ryan. — Como vocês começaram a trabalhar para o SIS?
— Nick atuou no caso Markov — respondeu a Sra. Thompson.
— E muito bem, diga-se de passagem — comentou Kingshot. — Ele teria sido um ótimo agente para nós.
— Bond, James Bond? — disse Nick Thompson, entrando na cozinha. — Acho que não. Bem, nossos convidados já estão em pé. Parece que a garotinha acordou os pais.
— É. As crianças costumam fazer isso. Então, conversaremos com eles aqui mesmo ou em outro lugar?
— Estávamos pensando em Somerset. Porém, cheguei à conclusão, ontem à noite, de que seria melhor não andar muito com eles. Por que deixá-los estressados? — perguntou Kingshot, retoricamente. — Adquirimos esta casa no ano passado, e ela é tão confortável quanto qualquer outro lugar. A de Somerset, perto de Taunton, é um pouco mais isolada, mas acho que eles não vão tentar fugir, certo?
— Se ele voltar para casa será um Coelho morto — pensou Jack, em voz alta. — Ele deve saber disso. No avião, estava preocupado, achando que éramos da KGB e que tudo não passava de uma armadilha elaborada. A esposa fez muitas compras em Budapeste. Talvez fosse o caso de alguém levá-la para um passeio por aqui. Assim, podemos conversar com ele tranquilamente. O inglês dele parece razoável. Temos alguém que fale russo?
— Isso é comigo — disse Kingshot.
— A primeira coisa que queremos saber é por que decidiu desertar.
— Certamente. Mas precisamos descobrir mesmo que conversa é essa sobre comunicações comprometidas.
— Claro. — Ryan respirou fundo. — Imagino que algumas pessoas estejam arrancando os cabelos por causa disso.
— Exatamente — confirmou Kingshot.
— Me diga, Al, você já trabalhou em Moscou?
O britânico fez um gesto positivo.
— Duas vezes. Era interessante, mas muito tenso o tempo todo que estive lá.
— Onde mais esteve?
— Varsóvia e Bucareste. Falo todas essas línguas. Agora me conte, como foi com Andy Hudson?
— Ele é excelente, Al. Tranquilo e confiante o tempo inteiro. Entende do que faz, tem bons contatos. Cuidou muito bem de mim.
— Aqui está seu café, Sir John — disse a Sra. Thompson com uma xícara de Taster's Choice.
Os britânicos eram um povo simpático, e a comida local não merecia a má reputação que tem, mas a verdade é que não entendiam absolutamente nada de café. Só que ainda era melhor do que chá.
Os ovos chegaram logo depois. A Sra. Thompson podia dar uma aula sobre aquele prato. Ryan abriu o jornal — o Times — e relaxou, informando-se dos acontecimentos mundiais. Em uma hora, ligaria para Cathy no trabalho. Com sorte, talvez a encontrasse em dois ou três dias. Em um mundo perfeito, poderia ler um jornal americano, ou pelo menos o International Tribune, mas o mundo ainda não era perfeito. Não adiantaria nada perguntar àquelas pessoas sobre a World Series. Começaria no dia seguinte, não? Como estavam os Phillies? Bem, como sempre, era preciso jogar para se descobrir.
— E aí, como foi a viagem, Jack? — perguntou Kingshot.
— Alan, seus agentes de campo merecem cada centavo que recebem. Não sei como vocês suportam a tensão permanente.
— Como tudo na vida, acabamos nos acostumando. Sua esposa é cirurgiã. Para mim, a ideia de abrir uma pessoa com uma faca não é nada atraente.
Jack deu uma risadinha.
— Para mim também não, amigo. E ela opera olhos. Nada muito delicado, não é mesmo?
Kingshot ficou visivelmente arrepiado só de pensar naquilo. Ryan lembrou que trabalhar em Moscou, orientando agentes e provavelmente comandando missões de resgate como a do Coelho, não devia ser muito mais divertido do que realizar um transplante de coração. Naquele momento, ouviu a Sra. Thompson falando com alguém.
— Ah, Sr. Somerset. Bom dia, e seja bem-vindo.
— Spaciba — respondeu Oleg Ivanovich, ainda sonolento. As crianças eram capazes de acordar os adultos nas horas mais indevidas com um sorriso no rosto e uma disposição admirável. — Esse é meu novo nome?
— Pensaremos em algo definitivo mais tarde — respondeu Ryan. — Mas, enfim, seja bem-vindo.
— Estamos na Inglaterra? — perguntou o Coelho.
— Estamos a treze quilômetros de Manchester — respondeu o oficial de inteligência britânico. — Bom dia. Caso não se lembre, meu nome é Alan Kingshot. Esta é a Sra. Emma Thompson. Nick estará de volta em alguns minutos.
Eles se cumprimentaram.
— Minha esposa estará aqui em um minuto. Ela está cuidando da zaichik — explicou Zaitzev.
— Como se sente, Oleg? — perguntou Kingshot.
— Muitas viagens, muita apreensão, mas agora estou seguro, certo?
— Sim, inteiramente seguro — assegurou Kingshot.
— E o que gostaria para o café da manhã? — perguntou a Sra. Thompson.
— Experimente isto — sugeriu Jack, apontando para o prato. — É delicioso.
— Sim, vou experimentar... como se chama?
— Ovos Benedict — respondeu Jack. — Sra. Thompson, este molho holandês está perfeito. Minha esposa precisa dessa receita, se me permite.
Talvez Cathy pudesse ensiná-la a fazer um café mais saboroso. Seria uma troca justa, pensou Ryan.
— Claro que sim, Sir John — respondeu ela, com um sorriso reluzente. Nenhuma mulher no mundo se opõe a elogios a sua comida.
— Então vou querer o mesmo — decidiu Zaitzev.
— E prefere chá ou café? — perguntou ela ao convidado.
— Você tem English Breakfast Tea? — perguntou o Coelho.
— É claro.
— Um para mim, por favor.
— Sem problemas.
A Sra. Thompson desapareceu na cozinha. Ainda era muita coisa para Zaitzev absorver.
Estava ali, sentado à mesa, em uma propriedade rural destinada a um membro da antiga nobreza, cercada por verde suficiente para servir de campo de golfe. Carvalhos gigantes plantados duzentos anos antes, uma pequena garagem e um estábulo completavam a paisagem. Era um cenário digno de Pedro, o Grande, descrito em livros e museus, e ele estava lá, como convidado de honra.
— Casa charmosa, não acha? — perguntou Ryan, terminando de comer os ovos.
— É incrível — respondeu Zaitzev, os olhos arregalados passeando pela propriedade.
— Pertenceu à família de um duque e, um século depois, foi comprada por um industrial do ramo têxtil — contou Kingshot. — Ele teve problemas nos negócios, e a propriedade acabou nas mãos do governo no ano passado. Usamos a casa para conferências e como refúgio. O sistema de aquecimento é meio primitivo, mas não deve ser problema. O verão foi muito agradável, e o outono parece promissor.
— Nos Estados Unidos, teriam feito um campo de golfe em torno deste lugar — disse Jack, olhando pela janela. — É bem grande.
— Sim — concordou Alan. — Seria esplêndido.
— Quando vou para os Estados Unidos? — perguntou o Coelho.
— Ah, em três ou quatro dias — respondeu Kingshot. — Queremos conversar sobre alguns assuntos com você, se não se importa.
— Quando começamos?
— Depois do café da manhã. Não se apresse, Sr. Zaitzev. Não está mais na União Soviética. Não vamos pressioná-lo — garantiu Alan.
Até parece, pensou Ryan. Companheiro, eles vão arrancar seu cérebro do crânio e filtrar molécula por molécula atrás dos seus pensamentos. O Coelho, porém, acabara de conseguir uma viagem de graça para fora da Mãe-Rússia, com a perspectiva de uma vida confortável para sua família no Ocidente. Tudo na vida tinha um preço.
Zaitzev adorou o chá. Pouco depois, o resto da família apareceu. A Sra. Thompson quase ficou sem molho holandês, e os russos garantiram o negócio dos produtores de ovos locais.
Irina deixou a mesa do café da manhã para conhecer a casa. Ficou tão animada ao ver um piano de cauda Bösendorfer, que parecia uma criança no Natal, perguntando se podia apertar as teclas. Fazia anos que não praticava, mas o rosto revelava um retorno à infância, enquanto os dedos penavam para executar Sobre a ponte em Avignon, seu exercício preferido no passado e do qual ainda se lembrava.
— Tenho uma amiga que toca profissionalmente — disse Jack, sorrindo. Era difícil não apreciar a alegria de Irina naquele momento.
— Quem? Onde? — perguntou Oleg.
— Sissy... na verdade, Cecília Jackson. Sou amigo do marido dela. Ele é piloto de caça da Marinha americana. E ela, segunda solista de piano na sinfônica de Washington. — Minha esposa também toca, mas Sissy é realmente muito boa.
— Você está sendo muito gentil conosco — disse Oleg Ivanovich.
— Tentamos tratar bem nossos convidados — disse Kingshot. — Podemos conversar na biblioteca? — perguntou, indicando o caminho.
As cadeiras, revestidas com um tecido felpudo, eram confortáveis. A biblioteca consistia em mais um excelente exemplo de trabalho em madeira típico do século XIX e abrigava milhares de livros, além de três escadas móveis — não seria uma biblioteca inglesa sem as escadas. Depois que a Sra. Thompson deixou um carrinho com água gelada e copos, a conversa teve início.
— Sr. Zaitzev, poderia começar contando um pouco sobre o senhor? — perguntou Kingshot.
Ele informou nome, ascendência, local de nascimento e formação.
— Não prestou serviço militar? — perguntou Ryan. Zaitzev fez que não: — Não, a KGB me recrutou e evitou que eu fosse convocado pelas forças armadas.
— Isso aconteceu na universidade? — perguntou Kingshot, tentando esclarecer os fatos. Havia três gravadores rodando.
— Sim, correto. O contato inicial foi no primeiro ano.
— E quando entrou para a KGB?
— Assim que deixei a Universidade Estadual de Moscou. Me puseram no departamento de comunicações.
— Por quanto tempo?
— Bem, por nove anos e meio no total, tirando o período na academia e em outros treinamentos.
— E onde trabalhava até agora? — prosseguiu Kingshot.
— No centro de comunicações, no subsolo do Centro Moscou.
— O que fazia exatamente lá? — perguntou Alan, finalmente.
— No meu turno, todos os despachos de operações de campo vinham para a minha mesa. Eu era incumbido de mantê-los em segurança, garantir que os procedimentos devidos fossem seguidos e encaminhá-los a oficiais com poder de decisão nos andares superiores. Ou ao Instituto Estados Unidos-Canadá — disse Oleg, gesticulando para Ryan.
Jack fez o máximo para não ficar de boca aberta. Aquele cara realmente era um desertor que servira no órgão soviético correspondente ao MERCÚRIO da CIA. Ele via tudo. Ou quase tudo. Ryan acabava de ajudar uma mina de ouro a fugir de trás da cortina de ferro.
Filho da mãe!
Kingshot conseguiu controlar melhor as emoções, mas quando seus olhos cruzaram com os de Ryan, sua expressão disse tudo.
Caramba.
— Então sabe os nomes dos seus oficiais de campo e seus agentes? — perguntou Kingshot.
— Nomes de oficiais da KGB... sei vários nomes. Quanto aos agentes, não conheço muitos nomes, mas sei os codinomes. Na Grã-Bretanha, nosso melhor agente chama-se MINISTRO. Ele nos fornece informações diplomáticas e políticas de grande valor há muitos anos. Acho que vinte anos, talvez mais.
— Você disse que a KGB havia invadido nossas comunicações — lembrou Ryan.
— Sim, de certa maneira. Foi o agente NETUNO. Não sei o quanto ele informou, mas a KGB já lê grande parte das comunicações navais americanas.
— E quanto às outras comunicações? — perguntou Jack, imediatamente.
— Só tenho certeza das comunicações navais. Não estou certo do resto. Mas vocês usam as mesmas máquinas de codificação, não?
— Na verdade, não — antecipou-se Alan. — Você disse que as comunicações britânicas são seguras?
— Se tiverem sido violadas, não tive acesso à informação — respondeu Zaitzev. — A maior parte das informações diplomáticas e de inteligência que recebemos vem do agente CASSIUS. Ele é assessor de um político experiente de Washington. Fornece informações valiosas sobre as atividades da CIA e o que ela sabe a nosso respeito.
— Então ele não é da CIA? — perguntou Ryan.
— Não, creio que é um assessor político, ajudante, membro da equipe... algo assim — confirmou Zaitzev.
— Ótimo.
Ryan acendeu um cigarro e ofereceu outro a Zaitzev, que aceitou na hora.
— Meus Krasnopresnenskiye acabaram — justificou.
— Eu devia lhe dar todos os meus. Minha esposa quer que eu pare. Ela é médica — explicou Jack.
— Bah — fez o Coelho.
— Por que decidiu abandonar o país? — perguntou Kingshot, tomando um gole de chá em seguida.
A resposta quase o fez derrubar a xícara.
— A KGB quer matar o papa.
— Está falando sério?
A pergunta foi do agente mais experiente, não de Ryan.
— Sério? Pus em risco a minha vida, a vida da minha mulher e a vida da minha filha. Da, estou falando sério — assegurou aos interlocutores, com alguma rispidez na voz.
— Merda — disse Ryan. — Oleg, precisamos de mais detalhes.
— Tudo começou em agosto. Em 15 de agosto — contou Zaitzev, relatando os acontecimentos sem interrupção por cinco ou seis minutos.
— A operação não tem nome? — perguntou Jack, assim que ele parou.
— Não, apenas o número do despacho: 15-8-82-666. É a data da primeira mensagem enviada por Andropov à rezidentura de Roma, mais o número da mensagem. Entenderam? Yuriy Vladimirovich perguntou como poderiam chegar perto do papa. Roma respondeu que não era uma boa ideia. Depois, o coronel Rozhdestvenskiy, principal assistente do diretor, mandou uma mensagem para a rezidentura de Sofia. A operação teve continuidade em Sofia. Portanto, a operação 666 provavelmente será executada pela Dirjavna Sugurnost a pedido da KGB. Acho que o nome do oficial é Strokov. Boris Andreievich Strokov.
Kingshot pensou em alguma coisa, levantou-se e deixou a sala. Voltou acompanhado de Nick Thompson, ex-detetive superintendente da Polícia Metropolitana.
— Nick, já ouviu falar em Boris Andreievich Strokov?
O ex-policial piscou agitadamente.
— Claro que sim, Alan. É o sujeito que acreditamos ter matado Georgiy Markov, na Westminster Bridge. Mantivemos Strokov sob vigilância, mas ele acabou fugindo do país antes que tivéssemos evidências suficientes para detê-lo e interrogá-lo.
— Ele não tinha imunidade diplomática? -— perguntou Ryan, surpreendendo-se com a resposta de Thompson.
— Na realidade, não. Entrou sem documentos e saiu da mesma forma. Eu o vi pessoalmente, em Heathrow. Mas não conseguimos juntar as peças a tempo. Foi um caso lastimável. O veneno que deram a Markov era terrível.
— Chegou a vê-lo de frente?
Thompson mexeu a cabeça positivamente.
— Ah, sim. Ele deve ter me notado. Eu não estava tomando muito cuidado, diante das circunstâncias. Foi ele que assassinou Markov. Apostaria minha vida nisso.
— Como pode ter tanta certeza?
— Persegui assassinos por quase vinte anos, Sir John. Você acaba reconhecendo-os depois de todo esse tempo. E ele era exatamente isso: um assassino — disse Thompson, com total segurança.
Ryan lembrou de seu pai falando de modo idêntico, mesmo em casos frustrantes, em que sabia de tudo o que precisava mas não podia apresentar provas ao júri.
— Os búlgaros mantêm uma espécie de contrato com os soviéticos — explicou Kingshot. — Por volta de 1964, eles concordaram em cuidar das execuções "necessárias" para a KGB. Em troca, recebem alguns favores, a maioria políticos. Strokov... sim, já ouvi esse nome. Você tem uma foto do cara, Nick?
— Pelo menos cinquenta, Alan — disse Thompson. — Nunca vou me esquecer daquele rosto. Seus olhos parecem os de um cadáver... nem sombra de vida, como olhos de boneca.
— Ele é bom? — perguntou Ryan.
— Como assassino? Muito bom, Sir John. Excelente. A execução de Markov na ponte foi realizada com extrema perícia. Era a terceira tentativa. Os dois primeiros candidatos a assassinos falharam. Então Strokov foi chamado para resolver o problema. E foi exatamente o que fez. Se as coisas tivessem acontecido de modo um pouco diferente, nunca descobriríamos que havia sido um assassinato.
— Acreditamos que já tenha trabalhado em outros lugares no Ocidente — disse Kingshot. — Mas não dispomos de muitas informações confiáveis. Somente rumores. Jack, esse é um desdobramento perigoso. Preciso levar essa informação a Basil imediatamente.
Alan saiu da sala e foi diretamente ao telefone seguro. Ryan dirigiu-se a Zaitzev.
— Foi por isso que decidiu fugir?
— A KGB quer matar um homem inocente, Ryan. Vi a trama se desenrolando. Andropov deu a ordem pessoalmente. Cuido das mensagens. Como poderia deter a KGB? — perguntou. — Não posso deter a KGB, mas não a ajudarei a matar o padre. Ele é um homem inocente, não é?
Ryan olhou para o chão.
— Sim, Oleg Ivanovich, ele é inocente.
Meu Deus do céu. Ele verificou o relógio. Precisava transmitir a informação o quanto antes, mas não havia ninguém acordado em Langley àquela hora.
— MEU DEUS — disse Sir Basil Charleston. — Essa informação é confiável, Alan?
— Sim, senhor, creio que seja totalmente verdadeira. Nosso Coelho parece ser um sujeito decente e bem inteligente. Parece ter sido motivado exclusivamente pela consciência.
Em seguida, Kingshot lhe contou sobre a primeira revelação da manhã, o MINISTRO.
— O "Cinco" tem que investigar isso.
O serviço de segurança britânico — conhecido no passado como MI5 — era o braço de contraespionagem do governo. Necessitaria de informações mais específicas para neutralizar o suposto traidor, mas já era um começo. Vinte anos? Sir Basil pensou que aquele devia ser um traidor bem produtivo. Era hora de ele conhecer a prisão de Parkhurst, na Ilha de Wight. Charleston passara anos limpando seu próprio quintal, que já fora um antro de agentes da KGB. Mas deixara de ser. E o cavaleiro comandante da Ordem de Bath jurou que nunca mais seria.
A QUEM DEVO CONTAR ISSO?, perguntou-se Ryan. Basil seguramente entraria em contato com Langley... Jack se certificaria daquilo, mas Sir Basil era uma pessoa extremamente confiável. A pergunta seguinte, entretanto, foi mais complicada: O que podemos fazer a respeito?
Ryan acendeu outro cigarro para pensar naquilo. Era mais um assunto de polícia do que de inteligência... E a questão central seria o acesso à informação.
É, isso vai ser um problema. Se contarmos a todo mundo, a notícia acabará se espalhando, e então alguém ficará sabendo que estamos com o Coelho... e agora o Coelho i mais importante para a CIA do que a vida do papa.
Que merda, pensou Ryan. Era como um golpe de jiu-jitsu, como uma reversão repentina de polaridade no mostrador de uma bússola. O norte havia virado sul. O interior havia passado para fora. E as necessidades da inteligência americana talvez se tivessem tornado mais importantes do que a vida do bispo de Roma. Seu rosto deve ter revelado um ar de preocupação.
— O que o perturba, Ryan? — perguntou o Coelho.
Jack achou estranho que conhecesse aquela palavra.
— A informação que acabou de nos dar. A segurança do papa nos preocupa há alguns meses, mas não tínhamos informações precisas para acreditar que a vida dele estivesse realmente em perigo. Agora você nos confirma isso, e alguém terá que decidir o que fazer. Sabe de detalhes da operação?
— Não, praticamente nada. Em Sofia, o responsável é o próprio rezident, coronel Bubovoy. Ilya Fedorovich. Um coronel experiente. É... um tipo de embaixador que cuida das relações com a DS. Quanto ao coronel Strokov, lembro do nome dele de casos antigos. Ele é o assassino da DS. Faz outras coisas, claro, mas quando um homem está marcado para morrer, é ele quem toma as providências, entende?
Para Ryan, parecia a descrição de um filme B, exceto pelo fato de que, no cinema, era a perversa CIA que possuía um departamento de execuções. Funcionava como um armário cheio de morcegos vampiros. Quando o diretor precisava que alguém fosse executado, abria a porta, e um dos morcegos saía para realizar o assassinato. Depois de cumprida a missão, ele retornava docemente e se pendurava de cabeça para baixo, até o chamado seguinte. Hollywood havia pensado em tudo, exceto que as burocracias governamentais funcionavam à base de papel. Nada acontecia sem algum tipo de ordem escrita, porque só um pedaço de papel com tinta preta por cima serviria para salvar a pele de alguém, caso as coisas dessem errado. Se houvesse necessidade de se eliminar uma pessoa, alguém teria que assinar a ordem, e quem assinaria aquele tipo de ordem? O papel se tornaria um registro permanente de uma medida extrema e, portanto, seguiria com o espaço para a assinatura em branco até o Salão Oval. Mas aquele não era o tipo de documento que encontraria abrigo na biblioteca presidencial que prestava homenagem à pessoa conhecida na comunidade de segurança como Comandante Supremo das Forças Armadas. E ninguém no meio do caminho assinaria a ordem, simplesmente porque os funcionários do governo nunca se expunham; não eram treinados daquela forma.
Exceto eu, pensou Ryan. Mas ele não teria que assassinar uma pessoa a sangue-frio. Sequer conseguira matar Sean Miller com o sangue quente — um motivo estranho de orgulho porém, ainda assim, uma opção melhor do que a outra. Jack, no entanto, não tinha medo de se expor. A perda do contracheque de funcionário público acabaria sendo lucro para John Patrick Ryan. Ele poderia voltar a dar aulas, talvez em uma universidade privada que pagasse razoavelmente, e a brincar um pouco no mercado de ações, o que era impossível com a interferência de seu trabalho atual... O que vou fazer então? Para piorar, Ryan se considerava católico. Não ia à missa toda semana e certamente ninguém daria seu nome a uma igreja, mas, pelo amor de Deus, toda a sua formação — sempre em escolas católicas, incluindo doze anos com os jesuítas — levava-o a respeitar o papa. Além disso, havia a educação recebida através dos fuzileiros navais, na base de Quantico. Eles lhe ensinaram que, diante de algo que exigia ação, era preciso agir e só depois rezar para que os superiores aprovassem, porque ações decisivas tinham salvado o dia mais de uma vez na história dos fuzileiros. "É muito mais fácil obter perdão do que permissão", ensinara o major que lecionara aquela aula em particular, acrescentando em seguida, com um sorriso: "Mas nunca repitam essas palavras como sendo minhas." Bastava avaliar bem a situação antes de agir, e essa capacidade vinha com a experiência... mas a experiência, frequentemente, vinha de más decisões.
Você já passou dos trinta, Jack, e teve muitas experiências. Que nunca desejou, é verdade, mas com as quais aprendeu bastante. Se ainda estivesse com os fuzileiros, seria no mínimo capitão; talvez até major, como o professor daquela aula, Billy Tucker. A volta de Kingshot à sala interrompeu seus pensamentos.
— Al, temos um problema — disse Ryan.
— Eu sei, Jack. Acabei de contar a Sir Basil. Ele está pensando no assunto.
— Você é agente de campo. O que acha?
— Jack, isso está muito além do meu nível de experiência e capacidade de comando.
— Desligou seu cérebro, Al? — perguntou Ryan, em tom crítico.
— Jack, não podemos comprometer nossa fonte, podemos? — rebateu Kingshot. — É a questão principal neste momento.
— Al, sabemos que alguém vai tentar eliminar o líder da minha igreja. Sabemos o nome dele, e Nick tem até uma foto do desgraçado, lembra? — Ryan respirou fundo antes de prosseguir. — Não vou ficar aqui sentado sem fazer nada a respeito — concluiu, ignorando completamente a presença do Coelho por um momento.
— Vocês não vão fazer nada? Eu arrisco minha vida por isso, e vocês não vão fazer nada? — cobrou Zaitzev, mostrando que havia acompanhado o diálogo em ritmo acelerado à sua frente.
Seu rosto indicava ao mesmo tempo indignação e confusão. Al Kingshot encarregou-se de responder: — Não cabe a nós definir isso. Não podemos comprometer nossa fonte... você, Oleg. Também temos que protegê-lo.
— Que merda! — disse Ryan, levantando-se e saindo da sala. Mas não sabia o que podia fazer. Procurou o telefone seguro e digitou um número guardado na memória.
— Murray — atendeu uma voz, depois da conexão.
— Dan, aqui é Jack.
— Por onde você anda? Liguei dois dias atrás, e Cathy disse que você tinha ido à Alemanha, cuidar de assuntos da Otan. Eu queria...
Ryan não deixou que prosseguisse: — Espere um pouco, Dan. Eu estive em outro lugar, cuidando de outro assunto. Preste atenção. Preciso de informações, e com urgência — disse Jack, recuperando por um instante a voz de oficial dos fuzileiros.
— Pode dizer — respondeu Murray.
— Preciso da agenda do papa na próxima semana.
Era sexta-feira. Ryan torceu para que o bispo de Roma não tivesse compromissos marcados para o fim de semana.
— O quê?
A voz do agente do FBI transmitiu uma perplexidade previsível.
— Exatamente o que ouviu.
— E para quê?
— Não posso dizer... ah, merda. Dan, temos motivo para acreditar que estão planejando o assassinato do papa.
— Quem? — perguntou Murray.
— Garanto que não são os Cavaleiros de Colombo — foi tudo que Ryan conseguiu responder.
— Que merda, Jack. Está falando sério?
— O que você acha? — perguntou Ryan.
— Tudo bem, tudo bem. Preciso fazer umas ligações. O que exatamente posso dizer a respeito disso?
Ryan ficou sem reação. Pense, cara, pense.
— Certo. Você está perguntando por interesse pessoal. Um amigo seu vai a Roma e quer ver Sua Santidade. Você quer saber qual é a melhor forma para se conseguir isso. Serve?
— O que Langley acha disso?
— Dan, para ser sincero, não dou a mínima neste momento. Por favor, consiga a informação para mim. Ligo de novo em uma hora, certo?
— Entendido, Jack. Uma hora — disse Murray, desligando em seguida. Ryan sabia que podia confiar em Murray. Ele, como muitos agentes do FBI, também era de formação jesuíta, e do Boston College. Portanto, qualquer devoção adicional que tivesse agiria a favor de Ryan. Mais calmo, Jack voltou à biblioteca.
— Para quem ligou? — perguntou Kingshot.
— Dan Murray, o representante do FBI na embaixada. Você deve conhecer.
— O adido jurídico... sim, conheço. Certo, o que perguntou a ele?
— A agenda do papa para a próxima semana.
— Mas ainda não sabemos de nada — desaprovou Kingshot.
— Isso o faz se sentir melhor, Al? — perguntou Jack, tentando se conter.
— Você não comprom...
— Se comprometi nossa fonte? Acha que sou tão estúpido assim?
O espião britânico rendeu-se à lógica do momento.
— Ótimo, então não houve prejuízo, espero.
Os sessenta minutos seguintes de conversa concentraram-se em temas de rotina. Zaitzev forneceu detalhes sobre o MINISTRO. Seria o bastante para começar o trabalho de identificação. Estava claro que Kingshot queria a pele do traidor. Não havia como saber que tipo de informação a KGB obtinha através dele. Com certeza, era um homem, pelo que dizia Zaitzev. Provavelmente um funcionário experiente de Whitehall. Em breve, sua residência passaria a ser garantida pelo governo de Sua Majestade por tempo indeterminado. "Por gentileza da Rainha" era a expressão que usavam oficialmente. Jack, porém, tinha preocupações mais imediatas. Às duas e vinte, ele voltou ao telefone seguro, na sala ao lado.
— Dan, sou eu, Jack.
O adido jurídico não perdeu tempo.
— A embaixada em Roma disse que ele tem uma semana agitada pela frente, mas sempre reserva as tardes de quarta-feira para encontrar os fiéis. Desfila no jipe branco pela praça de São Pedro, bem diante da basílica, para que as pessoas possam vê-lo e receber sua bênção. O carro é aberto. É o melhor momento para se tentar alvejá-lo... a não ser que o atirador esteja infiltrado no pessoal do Vaticano. Talvez alguém da limpeza, um encanador ou um eletricista. Mas devemos supor que os funcionários são leais e alvo de vigilância constante.
Claro, mas são essas as pessoas mais adequadas para fazer algo desse tipo, pensou Ryan. Só as pessoas em quem se confia podem cometer uma traição de verdade. Merda.
Precisava do Serviço Secreto, mas não conhecia ninguém por lá. E, mesmo que conhecesse, infiltrá-los na burocracia do Vaticano — a mais antiga do mundo — exigiria uma intervenção divina.
— Obrigado, cara. Fico devendo uma.
— Sempre às ordens. Vai poder me contar mais detalhes? Parece um caso de grande importância.
— Provavelmente não, mas não cabe a mim dizer, Dan. Preciso ir agora. Até mais.
Ryan desligou e retornou à biblioteca. O sol batia em uma parte do recinto, e agora havia uma garrafa de vinho branco do vale do Loire, provavelmente de uma safra bem antiga. A garrafa estava até empoeirada. Era improvável que a adega no porão escondesse rótulos de má qualidade.
— Nosso amigo Zaitzev tem muita informação sobre o tal MINISTRO — disse Kingshot. É só uma questão de arrancar tudo dele, evitou acrescentar. No dia seguinte, teria a ajuda de psicólogos, que usariam suas técnicas para estimular a memória de Zaitzev.
Talvez recorressem até à hipnose. Ryan não sabia se aquilo funcionava. Embora algumas forças policiais confiassem no método, advogados de defesa se indignavam com seu uso. Jack não sabia quem estava certo. Era uma pena que o Coelho não tivesse saído da Rússia com fotos dos arquivos da KGB. Mas seria pedir muito que colocasse a cabeça na guilhotina e ainda pedisse ao carrasco que a acionasse. Além do mais, até ali, Ryan estava impressionado com a memória do Coelho.
Haveria alguma possibilidade de se tratar de uma farsa, um impostor enviado ao Ocidente para passar informações falsas à CIA e a outros órgãos? Era possível. A resposta seria dada pela importância dos agentes que ele estava delatando aos serviços de inteligência. Se o MINISTRO realmente transferisse informações valiosas, o MI5 ficaria sabendo. Os russos nunca haviam demonstrado lealdade a seus agentes — nunca tinham barganhado a troca de um traidor americano ou britânico que apodrecia em uma prisão, como os Estados Unidos. Não, os russos os consideravam descartáveis, e esses recursos eram... descartados. Exceto por uma condecoração discreta que nunca seria envergada pelo "homenageado". Ryan achava aquilo muito estranho. A KGB era totalmente profissional em tantos aspectos; como não perceber que demonstrar lealdade a um agente ajudaria a convencer outros agentes a correr riscos maiores? Talvez a filosofia nacional estivesse passando por cima do bom senso. Era muito comum na União Soviética.
Às quatro, seguramente haveria alguém trabalhando em Langley. Jack fez mais uma pergunta ao Coelho.
— Oleg Ivanovich, você sabe se a KGB pode invadir nossos sistemas de telefonia segura?
— Acho que não. Não estou certo, mas temos um agente em Washington, codinome GRILO, a quem pedimos informações sobre seus telefones seguros. Até agora ele não obteve as informações que nosso pessoal de comunicações deseja. No entanto, também tememos que vocês possam acessar nosso tráfego telefônico, por isso evitamos usar telefones em contatos importantes.
— Obrigado.
Ryan voltou à sala do telefone seguro e discou outro número que guardava na memória.
— James Greer falando.
— Almirante, aqui é Jack.
— Oi, Jack. Fiquei sabendo que o Coelho está em sua nova toca — disse o DDI.
— Correto, senhor. A boa notícia é que ele acha que nossas comunicações estão seguras, incluindo esta linha. Os nossos temores iniciais parecem ter sido exagerados ou mal interpretados.
— Há más notícias? — perguntou o DDI, alarmado.
— Sim, senhor. Yuriy Andropov quer matar o papa.
— Até que ponto podemos confiar nessa informação? — perguntou James Greer imediatamente.
— Senhor, essa é a razão da fuga do Coelho. Terei todos os detalhes em um ou dois dias, no máximo, mas é oficial. Existe uma operação da KGB para assassinar o bispo de Roma. Temos até o código da operação. O senhor precisa informar o juiz disso. E provavelmente o presidente e o secretário de Defesa também vão querer saber.
— Entendo — disse o almirante Greer, a mais de cinco mil quilômetros. — Isso será um problema.
— Pode ter certeza. — Ryan fez uma pausa. — O que podemos fazer a respeito?
— Esse é o problema, garoto — disse o DDI. — Primeiro: podemos fazer algo a respeito? Segundo: queremos fazer algo a respeito?
— Almirante, por que não quereríamos fazer algo a respeito? — perguntou Ryan, tentando não assumir um tom de insubordinação.
Ele respeitava Greer como chefe e pessoa.
— Calma, garoto. Pense na situação como um todo. Em primeiro lugar, nossa missão essencial é proteger os Estados Unidos e ninguém mais... bem, os aliados também, claro — acrescentou Greer para as gravações que certamente eram feitas da conversa. — Nosso dever primordial é com nossa bandeira, e não com uma figura religiosa. Vamos tentar ajudá-lo, se pudermos. Porém, se não pudermos, paciência.
— Muito bem — respondeu Ryan, contrariado.
E o que houve com o certo e o errado? Ele queria fazer a pergunta, mas aquilo teria que esperar.
— Não costumamos liberar informações sigilosas, e você pode imaginar como essa deserção será mantida em segredo absoluto — continuou Greer.
— Sim, senhor. — Pelo menos, as informações não seriam vedadas a estrangeiros. Os britânicos eram estrangeiros e já sabiam tudo sobre a Operação BEATRIX e o Coelho.
No entanto, eles também não costumavam compartilhar, exceto, raramente, com os americanos e, mesmo assim, geralmente pedindo algo em troca. Era como o sistema funcionava. Da mesma forma, Ryan não tinha autorização para discutir um único detalhe sobre algumas operações em que estava envolvido. O código TALENT KEYHOLE referia-se aos satélites de reconhecimento dos Estados Unidos. No entanto, a própria CIA e o Pentágono haviam passado dados brutos aos britânicos durante a Guerra das Malvinas, além de todas as comunicações interceptadas pela NSA na América do Sul. As raízes ainda falavam mais alto.
— Almirante, como ficará a imagem da agência, se os jornais descobrirem que tínhamos informações sobre uma ameaça e simplesmente mantivemos os braços cruzados?
— Isso é uma...
— Ameaça? Não, senhor, não da minha parte. Eu sigo as regras, e o senhor sabe disso. Mas alguém vai acabar vazando a informação só porque ficou furioso com o assunto. O senhor sabe disso. E, quando isso acontecer, será um inferno.
— Está certo — admitiu Greer. — Tem alguma proposta?
— Isso vai além das minhas atribuições. Mas precisamos pensar em algum tipo de plano de ação.
— O que mais ficamos sabendo através do nosso novo amigo?
— Temos os codinomes de três informantes importantes. Um é o MINISTRO. Aparentemente, uma fonte de informações políticas e diplomáticas em Whitehall. O segundo diz respeito a nós: NETUNO. Parece ter relação com a Marinha, e é a causa de nossa insegurança em relação às comunicações. Alguém na terra vermelha está lendo as mensagens da Marinha, senhor. E ainda há um sujeito em Washington chamado CASSIUS. Parece ser alguém no Congresso vazando informações sobre política e nossas operações.
— Nossas... você quer dizer a CIA? — perguntou o DDI, com uma preocupação repentina na voz.
A despeito de toda a experiência e vivência no ramo, a possibilidade de haver um informante na agência sempre provocava enorme apreensão.
— Isso mesmo — respondeu Ryan. Ele não precisou insistir. Ninguém em Langley se sentia bem com a quantidade de informações repassada a comissões de inteligência "selecionadas" da Câmara e do Senado. Afinal, os políticos garantiam seu sustento falando. Havia poucas tarefas mais difíceis do que manter um político de boca fechada.
— Senhor, esse sujeito é uma fonte de valor inestimável. Vamos tirá-lo daqui em três dias. Creio que levaremos meses ouvindo tudo que tem a dizer. Conheci a esposa e a filha. Parecem ser boas pessoas. A menina tem a idade de Sally. Acredito que esse cara é uma mina de ouro.
— Como estão se comportando?
— Parecem estar bem, provavelmente confusos no momento. Eu recomendaria um psicólogo para ajudá-los no período de transição. Talvez mais de um. Devemos mantê-lo calmo, confiante na nova vida que está começando. Pode não ser uma tarefa fácil, mas com certeza valerá a pena.
— Temos gente preparada para isso. Eles sabem como conduzi-los durante a transição. Existe risco de fuga?
— Senhor, não vejo razão para crer nessa possibilidade, mas temos que lembrar que ele passou por uma grande mudança e se encontra em ambiente ao qual não está acostumado.
— Registrado. Boa lembrança, Jack. Mais alguma coisa?
— É tudo por enquanto. Só estamos conversando com o cara há cinco horas e meia. Questões preliminares até aqui, mas parece que há muita coisa por vir.
— Certo. Arthur está conversando com Basil neste exato momento. Vou falar com ele sobre sua avaliação. Ah, Bob Ritter acabou de voltar da Coreia... Ele foi para casa se recuperar da viagem. Vamos contar a ele sobre sua aventura. Se ele tentar arrancar sua cabeça, a culpa é nossa, minha e do juiz.
Ryan ficou olhando para o tapete. Não entendia por que Ritter lhe fazia tantas restrições.
— Bem, obrigado, senhor.
— Não se preocupe. Pelo que percebi até agora, parece que você se comportou muito bem.
— Obrigado, almirante. Pelo menos, não tropecei nas pernas. É tudo que posso dizer.
— Certo, garoto. Complete seu relatório e mande-o para mim o mais rápido possível.
Em MOSCOU, O FAX CHEGOU à sala de Mike Russell. Curiosamente, era uma imagem: a capa da primeira edição de As aventuras de Pedro, o coelho, de Beatrix Potter. A folha de rosto indicava o destinatário. Também havia uma mensagem escrita a mão: "Flopsy, Mopsy e Cotton-tail foram levados para uma nova toca."
Então eles estavam mesmo realizando uma operação de fuga, e parece que tudo correu bem, pensou Russell. Ele não tinha nenhuma informação a respeito, mas conhecia a linguagem usada pela inteligência. Desceu à sala de Ed Foley e bateu à porta.
— Entre — disse Foley.
— Isto acabou de chegar de Washington, Ed.
Russell entregou o fax.
— Bem, é uma ótima notícia — comentou o chefe da CIA em Moscou. Guardou a mensagem no bolso do paletó para mostrar a Mary Pat. — Há outra informação neste fax, Mike — acrescentou.
— E o que é?
— Nossas comunicações estão seguras. Do contrário, isto não chegaria desta forma.
— Bem, graças a Deus por isso — disse Russell.
30
ANFITEATRO FLAVIANO
— RYAN? E ELE FEZ O QUÊ? — grunhiu Bob Ritter.
— Bob, quer se acalmar? Não há motivo para ficar todo ressabiado — disse James Greer, em parte tentando tranquilizá-lo e em parte desafiando-o na disputa interna da CIA. O juiz Moore achava a situação divertida. — Jack foi a campo acompanhar uma operação para a qual não tínhamos agentes disponíveis. Ele não fez nenhuma besteira, e o desertor está em local seguro no interior da Inglaterra. E, pelo que ouvi, cantando como um canário.
— E aí, o que ele já disse?
— Para começar — respondeu o juiz Moore —, parece que nosso amigo Andropov quer assassinar o papa.
— A informação é confiável?
— É a razão pela qual o Coelho decidiu fugir — disse o DCI. — Desertou por problemas de consciência.
— Certo, bom. O que exatamente ele sabe? — perguntou o DDO.
— Bob, parece que esse desertor, Oleg Ivanovich Zaitzev, era um oficial sênior da área de comunicações do Centro. Um departamento que corresponderia ao nosso MERCÚRIO.
— Que merda — comentou Ritter. — Isso é sério mesmo?
— Sabe, algumas vezes a pessoa bota uma moeda no caça-níqueis, puxa a alavanca e realmente recebe um grande prêmio — disse Moore ao subordinado.
— É, caramba.
— Achei que não fosse se opor. E a melhor parte — continuou o DCI — é que Ivan não sabe que Zaitzev fugiu.
— Como fizemos isso?
— Foram Ed e Mary Pat que chamaram atenção para a oportunidade — respondeu o juiz Moore, explicando em seguida o que aconteceu. — Eles merecem nossos parabéns, Bob.
— E tudo isso enquanto eu estava fora — disse Ritter. — Estou ferrado.
— Sim, teremos que fazer várias cartas de elogio — lembrou Greer. — Inclusive uma para Jack.
— Parece que sim — admitiu o DDO. Ele ficou quieto por um instante, pensando nas possibilidades da Operação BEATRIX. — Alguma coisa interessante até agora?
— Fora o plano contra a vida do papa? Dois codinomes de agentes infiltrados: NETUNO, que deve estar na Marinha, e CASSIUS, provavelmente ligado ao Congresso. Espero receber mais informações.
— Conversei com Ryan há poucos minutos. Está muito animado com esse cara, disse que seu conhecimento é enciclopédico, que há ouro nesses montes, para repetir suas palavras exatas.
— Ryan entende um pouco de ouro — pensou Moore, em voz alta.
— Ótimo, podemos usá-lo como gestor de nossa carteira de investimentos. Mas não como agente de campo — resmungou Ritter.
— Bob, ele se saiu bem. Não podemos puni-lo por isso, podemos? — perguntou o DCI.
Aquilo havia passado dos limites. Era hora de Moore agir como juiz de apelações que fora até poucos anos antes, ou seja, como a voz de Deus.
— Tudo bem, Arthur. Quer que eu assine a carta de elogio?
Ritter percebeu a locomotiva vinda em sua direção e viu que não havia sentido ficar no caminho. De qualquer modo, aquilo só serviria para os arquivos. Os elogios da CIA quase nunca eram divulgados. A agência ainda mantinha em segredo nomes de agentes que haviam morrido heroicamente trinta anos antes. Funcionava como uma porta dos fundos para o céu.
— Certo, cavalheiros, agora que resolvemos os problemas administrativos, que tal falarmos do plano para assassinar o papa? — perguntou Greer, tentando restabelecer a ordem na reunião entre diretores supostamente equilibrados.
— Até que ponto podemos confiar na informação? — quis saber Ritter.
— Acabei de conversar com Basil. Ele acredita que devemos levá-la a sério, mas acho que precisamos conversar com esse Coelho pessoalmente para ter uma ideia do nível de ameaça ao nosso amigo polonês.
— Contaram ao presidente?
Moore moveu a cabeça negativamente.
— Ele estará ocupado o dia inteiro com questões legislativas e, no fim da tarde, vai à Califórnia. No domingo e na segunda, fará discursos no Oregon e no Colorado. Vou encontrá-lo na terça à tarde, lá pelas quatro.
Ele podia solicitar uma reunião de emergência — assuntos vitais permitiam interferências na agenda do presidente —, mas, até conversar cara a cara com o Coelho, a hipótese estava fora de questão. Talvez o próprio presidente quisesse falar pessoalmente com o sujeito. Era do seu estilo.
— Qual é o estado atual de nossa base em Roma? — perguntou Greer a Ritter.
— O chefe é Rick Nolfi. Bom sujeito, mas se aposenta em três meses. Roma é considerada fim de carreira. Foi ele quem pediu. A esposa, Anne, gosta da Itália. Há seis oficiais trabalhando basicamente em temas ligados à Otan; dois bem experientes, quatro iniciantes — ressaltou Ritter. — Só que, antes de alertá-los, precisamos analisar a situação. Uma orientação do presidente não atrapalharia. O problema é como contar isso às pessoas sem correr o risco de revelar nossa fonte. Se tivemos o trabalho de ocultar a deserção, não faz muito sentido espalhar isso aos quatro ventos, correto?
— Sim, é esse o problema — concordou Moore.
— Certamente o papa conta com uma comitiva de segurança — prosseguiu Ritter. — Mas eles não devem ter a mesma capacidade do Serviço Secreto. Não sabemos que nível de proteção podem oferecer.
— É A VELHA HISTÓRIA — dizia Ryan, no mesmo momento, em Manchester. — Se usarmos a informação abertamente, comprometemos nossa fonte e ela perde a utilidade. Por outro lado, se não a usarmos, temendo comprometer a fonte, podemos ficar sem ela de qualquer maneira. — Tomou o resto do vinho e encheu a taça novamente. — Existe um livro que trata desse assunto, sabia?
— Como se chama?
— Segredos de dois gumes. Escrito por um cara chamado Jasper Holmes. Foi um codificador da Marinha dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Trabalhou com inteligência de comunicações na Frupac, ao lado de Joe Rochefort e sua equipe. É um bom livro sobre como o pessoal de inteligência age na hora da verdade.
Kingshot guardou o nome do livro na memória. Zaitzev estava caminhando pelo jardim com a esposa e a filha. A Sra. Thompson queria levar todos às compras. Afinal, eles precisavam de um tempo. Obviamente, o quarto estava cheio de escutas, incluindo um filtro de ruído branco no banheiro. E manter a esposa e a filha alegres era essencial ao sucesso da operação.
— Bem, não importa qual seja o plano dos nossos inimigos, eles precisarão de tempo para realizá-lo. As burocracias do lado de lá são mais viciadas até do que a nossa.
— Até a KGB, Al? — perguntou Ryan. — Acho que essa é a única parte do sistema deles que realmente funciona. E Yuriy Andropov não é conhecido pela paciência, não é mesmo? Pombas, ele era o embaixador em Budapeste em 1956, lembra? Os russos agiram com muita decisão naquele caso, não foi?
— Havia uma séria ameaça política ao sistema deles naquela época — argumentou Kingshot.
— E o papa não é uma séria ameaça também? — rebateu Ryan.
— É, isso eu não posso negar — admitiu o espião.
— Quarta-feira. Foi o que Dan me informou. O papa passa no meio da multidão toda quarta-feira. Sei que, de vez em quando, ele aparece na sacada para abençoar as pessoas, e que qualquer atirador razoável é capaz de acertá-lo, mas um homem com um fuzil pode ser visto por observadores casuais. Um fuzil denuncia a participação de forças militares, o que, por sua vez, sugere o envolvimento de um governo. Além disso, essas aparições não são marcadas com muita antecedência, ou pelo menos são irregulares. Já os desfiles acontecem toda quarta-feira à tarde. Ele sobe no jipe e passeia pela praça de São Pedro, bem no meio da multidão, Al. É uma distância que permite um tiro de pistola.
Ryan recostou-se na cadeira e tomou outro gole de seu vinho branco francês.
— Não tenho certeza se é uma boa ideia fazer um disparo de pistola a uma distância tão pequena — disse Kingshot.
— Al, eles encarregaram um cara de matar Leon Trotsky com uma picareta de escalada... uma distância de menos de um metro — lembrou Ryan. — Claro, a situação é diferente, mas qual foi a última vez em que os russos hesitaram em pôr seu pessoal em risco? E desta vez será aquele maldito búlgaro, lembra? Seu policial classificou-o como assassino profissional. É impressionante o que um especialista é capaz de fazer. Conheci um sargento de artilharia em Quantico que conseguia escrever o nome a quinze metros com uma 45. Vi pessoalmente.
Ryan nunca aprendera a manejar a Colt automática como aquele sujeito.
— Acho que você está se preocupando demais.
— Talvez — reconheceu Jack. — Mas me sentiria muito melhor se Sua Santidade usasse um colete kevlar por baixo da roupa.
Obviamente, aquilo estava fora de cogitação. Pessoas como o papa não se assustavam como as outras. Não se tratava da sensação de invencibilidade comum entre soldados; a questão era que a morte não lhe provocava medo. Todo católico de verdade devia se sentir daquela forma. Não era o caso de Jack. Não mesmo.
— Vamos pensar praticamente. O que se pode fazer? Procurar um rosto na multidão? Quem vai dizer que é o rosto certo? — perguntou Kingshot. — Quem pode afirmar que Strokov não contratou outra pessoa para o serviço? Posso me imaginar atirando em alguém, mas não no meio de uma multidão.
— Nesse caso, você usa uma arma escondida, com um grande silenciador. Sem o barulho, elimina-se uma parte considerável do risco de ser identificado. Lembre-se de que todos os olhos estarão voltados para a vítima, não para os lados, para a multidão.
— É verdade — disse Al.
— Sabe, é muito fácil procurar razões para não fazer nada. Dr. Johnson não disse que não fazer nada está ao alcance de todos? — perguntou Ryan, desanimado. — É exatamente o caminho que estamos seguindo, Al: procurando razões para não fazer nada. Vamos deixar o cara morrer? Vamos ficar sentados aqui, bebendo nosso vinho, e deixar que os russos matem o cara?
— Não, Jack, mas também não podemos sair por aí como uma granada sem pino. Operações de campo devem ser planejadas. É necessário ter profissionais pensando no caso de modo profissional. Há muitas coisas que um profissional pode fazer, só que antes ele recebe ordens para fazê-las.
Aquela decisão, no entanto, estava sendo tomada em outro lugar.
— PRIMEIRA-MINISTRA, temos razão para acreditar que há uma operação da KGB em andamento para assassinar o papa de Roma — relatou C.
Ele havia solicitado uma audiência com pequena antecedência, interrompendo os compromissos políticos daquela tarde.
— É verdade? — perguntou ela, reagindo friamente. A primeira-ministra se acostumara a ouvir os relatos mais estranhos de seu chefe de inteligência e cultivara o hábito de não responder impetuosamente. — Qual é a fonte dessa informação?
— Lembra-se da Operação BEATRIX, de que lhe falei há alguns dias? Bem, conseguimos tirá-lo de lá com sucesso. Conseguimos até fazê-lo de modo que os soviéticos o considerassem morto. O desertor está em local seguro, perto de Manchester — contou C.
— Os americanos foram informados?
Basil confirmou: — Sim, primeira-ministra. Afinal, a presa é deles. Permitiremos que siga para os Estados Unidos na próxima semana, mas discuti o assunto superficialmente hoje com o juiz Arthur Moore, diretor da CIA. Creio que ele informará o presidente no início da semana.
— O que acha que eles farão? — perguntou ela, em seguida.
— É difícil dizer. Na verdade, é um assunto muito delicado. O desertor, que se chama Oleg, é muito valioso. Temos que nos esforçar ao máximo para preservar sua identidade e evitar que se saiba que ele está do nosso lado da cortina agora. Como exatamente alertar o Vaticano do perigo em potencial é uma questão complexa, para dizer o mínimo.
— Essa operação está realmente em andamento? — perguntou a primeira-ministra mais uma vez.
Era uma perspectiva difícil de aceitar, mesmo envolvendo os soviéticos, que ela acreditava serem capazes de praticamente qualquer coisa.
— Parece que sim — confirmou Basil. — Porém, não conhecemos o nível de prioridade da operação e, logicamente, não sabemos nada a respeito do cronograma.
— Deixe-me pensar. — A primeira-ministra manteve-se em silêncio por um instante. — Nossas relações com o Vaticano são cordiais, mas nada além disso.
Aquela condição se originara nos tempos de Henrique VIII. A Igreja Católica Romana, no entanto, deixara muita coisa no passado ao longo dos séculos seguintes.
— Infelizmente, é exatamente assim — concordou C.
— Deixe-me pensar — repetiu, ficando em silêncio novamente. Quando retomou a palavra, curvando-se para a frente, falou com brio e determinação. — Sir Basil, não faz parte da política do governo de Sua Majestade ficar parado enquanto um chefe de Estado aliado é assassinado por nossos inimigos. Ordeno que avalie todas as possibilidades de ação para impedir que isso aconteça.
Algumas pessoas agiam por impulso, outras, com o coração. Apesar da imagem de austeridade, a chefe de governo do Reino Unido encaixava-se na segunda categoria.
— Entendido, primeira-ministra.
O problema era que ela não havia dito como esperava que fizesse aquilo. Bem, para começar, teria de coordenar as ações com Arthur. Basil sabia que seria uma missão, no mínimo, complicada. O que, exatamente, poderia fazer? Enviar um esquadrão das forças aéreas especiais à praça de São Pedro? Mas não podia dizer não à primeira-ministra. Não numa sala de reuniões do número 10 da Downing Street.
— Esse desertor nos revelou mais alguma coisa?
— Sim, senhora. Ele citou o codinome de um agente soviético infiltrado, provavelmente em Whitehall. Chama-se MINISTRO. Assim que obtivermos mais informações, acionaremos o serviço de segurança para identificá-lo.
— Que tipo de informação ele fornece aos soviéticos?
— Assuntos políticos e diplomáticos. Oleg diz que é material de alto nível, mas ainda não nos forneceu detalhes que permitam sua identificação.
— Interessante. — Não se tratava de uma novidade. O sujeito podia integrar o grupo de Cambridge que fora tão valioso para a União Soviética na época da guerra e até os anos 1960. Ou talvez fosse alguém recrutado por eles. Charleston exercera um papel fundamental na limpeza do SIS. Whitehall, porém, não estava em sua jurisdição. — Mantenha-me informada sobre isso.
Uma ordem dada casualmente por ela tinha a força de uma tábua de granito entregue em mãos no Monte Sinai.
— Claro, primeira-ministra.
— Seria útil se eu conversasse com o presidente americano sobre esse assunto envolvendo o papa?
— Creio que é melhor deixar a CIA informá-lo antes. Não haveria vantagem em criar interferências no sistema deles. Afinal de contas, a fuga do desertor foi uma operação essencialmente deles, portanto é de Arthur o papel de falar com ele.
— Acredito que sim. Mas, quando eu conversar com ele, deixarei claro que encaramos isso com total seriedade e que esperamos uma ação enérgica da parte dele.
— Primeira-ministra, acho que ele não ficaria assistindo, passivamente.
— Concordo. É uma boa pessoa. — A história completa do apoio americano na Guerra das Malvinas permaneceria em segredo por muitos anos. Os Estados Unidos precisavam manter suas boas relações com a América do Sul. Mas, pública ou não, a primeira-ministra nunca se esqueceria da ajuda. — Essa Operação BEATRIX foi bem executada? — perguntou em seguida.
— Impecavelmente — assegurou Charleston. — Nosso pessoal realizou um trabalho perfeito.
— Espero que recompense as pessoas responsáveis.
— Certamente, senhora.
— Ótimo. Obrigada por vir aqui, Sir Basil.
— Foi um prazer, como sempre, primeira-ministra.
Ao se levantar, Charleston achou que Ryan se identificaria com a primeira-ministra. E era verdade. No caminho de volta à Century House, ele se preocupou com a operação que precisava pôr em andamento. O que, exatamente, poderia fazer? Mas não podia esquecer que recebia um salário bem alto para encontrar respostas.
— OI, QUERIDA — DISSE RYAN.
— Onde você está? — perguntou Cathy imediatamente.
— Não posso contar, mas já voltei à Inglaterra. O que precisava resolver no continente... bem, acabou se desdobrando em algo que preciso cuidar por aqui.
— Pode vir em casa nos ver?
— Acho que não. — Embora sua casa ficasse a uma distância relativamente pequena, ele ainda não tinha confiança suficiente para dirigir, temendo se arrebentar em uma estrada secundária. — Estão todos bem?
— Estamos bem, fora a sua ausência — respondeu Cathy, deixando escapar uma ponta de raiva e decepção.
Ela estava certa de uma coisa: Jack estivera em qualquer lugar, menos na Alemanha. Mas não podia dizer aquilo pelo telefone. Ela conhecia o negócio da espionagem.
— Me desculpe, amor. Só posso dizer que o que estou fazendo é muito importante.
— Tenho certeza disso — disse ela.
Cathy sabia que Jack também queria estar em casa com a família. Ele não era do tipo que gostava de viajar para se divertir.
— Como vai o trabalho?
— Receitei óculos o dia inteiro. Mas tenho cirurgias marcadas para amanhã. Espere um pouco, Sally está aqui.
— Oi, papai — disse a voz miúda.
— Oi, Sally. Como você está?
— Estou bem.
A resposta de sempre das crianças.
— O que fez hoje?
— A Srta. Margaret e eu brincamos de colorir.
— Alguma coisa legal?
— Sim, vacas e cavalos! — contou ela com entusiasmo. Sally gostava especialmente de pelicanos e vacas.
— Bem, querida, preciso falar com a mamãe.
— Tudo bem.
Para Sally, havia sido uma conversa profunda e importante. Ela voltou à fita do Mágico de Oz, na sala de estar.
— E como está o garoto? — perguntou Jack à esposa.
— Mordendo as mãos na maior parte do tempo. Agora está no cercadinho, assistindo TV.
— Ele é mais calmo do que Sally na mesma idade — comentou Jack, sorrindo.
— Ele não tem tantos problemas digestivos, graças a Deus — concordou a Dra. Ryan.
— Estou com saudade — disse Jack, meio desanimado. Era verdade: sentia mesmo saudade dela.
— Também sinto sua falta.
— Preciso voltar ao trabalho.
— Quando estará em casa?
— Acho que em poucos dias.
— Tudo bem. — Ela precisava aceitar aquele fato desagradável. — Me ligue.
— Pode deixar, querida.
— Tchau.
— Nos vemos em breve. Amo você.
— Eu também.
— Tchau.
— Tchau, Jack.
Ryan pôs o telefone na base e disse a si mesmo que não havia nascido para aquele tipo de vida. A exemplo de seu pai, queria sempre dormir na cama com a esposa... não se lembrava de uma única noite em que o pai tivesse dormido fora. Jack, contudo, escolhera uma área de atuação em que aquilo nem sempre era possível. Mas devia ser. Ele era um analista, trabalhava atrás de uma mesa e dormia em casa, só que de alguma maneira as coisas mudaram.
O jantar consistiu de bife Wellington com pudim Yorkshire de sobremesa. A Sra. Thompson podia ter sido chefe de cozinha em qualquer restaurante de primeira. Jack não sabia de onde viera a carne, mas parecia mais suculenta do que a típica carne britânica, proveniente de gado alimentado apenas com grama. Ou ela a comprara em um lugar especial — ainda havia butiques especializadas por lá — ou realmente sabia como amaciá-la. O pudim Yorkshire também causava sensações sublimes. Acompanhado de um vinho tinto francês, o jantar estava simplesmente brilhante — um adjetivo popular no Reino Unido.
Os russos atacaram a comida do mesmo modo que Georgiy Jukov investira contra Berlim: com total gosto pela coisa.
— Oleg Ivanovich, devo lhe dizer algo — confessou Ryan em um rompante de sinceridade. — A comida nos Estados Unidos não costuma ter essa qualidade. — Ele aguardara para falar no momento em que a Sra. Thompson aparecesse na porta da cozinha. — Senhora, se precisar de recomendação como chef basta me ligar, certo?
Emma deu um sorriso muito amigável.
— Obrigada, Sir John.
— Falo sério, isto está maravilhoso.
— O senhor é muito simpático...
Jack imaginou se ela apreciaria seu bife grelhado e a salada de espinafre de Cathy. O segredo era arranjar carne do gado de Iowa, alimentado à base de milho, uma missão complicada naquele lugar. Ele podia recorrer ao comissário da Força Aérea em Greenham Commons...
O jantar levou quase uma hora, e as bebidas servidas posteriormente estavam deliciosas.
Havia até vodca Starka, um gesto de hospitalidade extra aos convidados russos. Jack percebeu que Oleg bebia muito mesmo.
— Nem o Politburo come tão bem — comentou o Coelho, ao fim da refeição.
— Bem, nós criamos gado de qualidade na Escócia. Esse é um Aberdeen Angus — revelou Nick Thompson, enquanto recolhia os pratos.
— Alimentados com milho? — perguntou Ryan. Não havia muito milho na Escócia.
— Não sei dizer. Os japoneses dão cerveja ao gado Kobe — observou o ex-policial. — Talvez façam o mesmo na Escócia.
— Isso explicaria a qualidade — disse Jack, rindo. — Oleg, você precisa conhecer a cerveja britânica. É a melhor do mundo.
— Não é a americana? — perguntou o russo.
Ryan fez que não. — Não. Essa é uma das coisas que eles fazem melhor do que nós.
— Verdade?
— É verdade — confirmou Kingshot. — A irlandesa também é muito boa. Adoro a Guinness, embora seja mais saborosa em Dublin do que em Londres.
— Para que gastar produtos de qualidade com vocês? — disse Jack.
— Uma vez irlandês, sempre irlandês — comentou Kingshot.
— Então, Oleg, há algo mais que possamos fazer... quero dizer, para deixá-los mais confortáveis? — perguntou Ryan, acendendo um cigarro.
— Não tenho queixas. E não espero que a CIA me dê uma casa como esta.
— Oleg, eu sou milionário e não vivo em uma casa tão boa — disse Ryan, dando uma risada em seguida. — Mas sua casa nos Estados Unidos certamente será mais confortável do que seu apartamento em Moscou.
— Ganharei um carro?
— Claro.
— Qual é o tempo de espera? — perguntou Zaitzev.
— Espera para quê? Para comprar um carro?
Zaitzev respondeu afirmativamente.
— Oleg, você pode escolher entre centenas de lojas, ver que carro prefere, pagar e sair dirigindo para casa... normalmente deixamos que nossas esposas decidam a cor — explicou Jack.
O Coelho não conseguia acreditar.
— É tão fácil assim?
— Sim. Eu costumava dirigir um Volkswagen compacto, mas estou gostando do Jaguar. Talvez compre um quando voltar para os Estados Unidos. Excelente motor. Cathy também gosta, mas prefere o Porsche. É o carro dela desde a adolescência. Só não é muito prático com duas crianças — disse Ryan.
Ele não gostava do esportivo alemão. Um Mercedes lhe parecia um conceito bem mais seguro.
— E comprar uma casa, também é simples?
— Depende. Se comprar uma casa nova, sim, é bem simples. Para se comprar uma casa ocupada, é preciso entrar em contato com o dono e fazer uma oferta. Mas a agência deve ajudá-lo com isso.
— Onde vamos morar?
— Onde quiserem. — Depois que arrancarmos tudo de sua memória, Ryan não acrescentou. — Costumamos dizer que nosso país é livre. E muito grande. Você pode procurar um lugar que lhe agrade e se mudar para lá. Vários desertores moram na região de Washington. Não sei a razão. Eu, pessoalmente, não gosto de lá. Os verões são bem quentes.
— Um calor infernal — reforçou Kingshot. — E a umidade é terrível.
— Se acha aquilo ruim, precisa conhecer a Flórida — sugeriu Jack. — Mesmo assim, muitas pessoas gostam de viver lá.
— E para viajar pelo país, não é preciso ter autorização? — perguntou Zaitzev.
Para um oficial da KGB, esse cara não sabe de nada, pensou Jack.
— Não, nada de autorizações — garantiu Ryan. — Vamos lhe dar um cartão American Express para facilitar as coisas.
Jack teve que explicar ao Coelho o que era um cartão de crédito. Por se tratar de um conceito tão estranho para um cidadão soviético, foram necessários dez minutos. Ao final da lição, Zaitzev parecia claramente confuso.
— Mas você precisa pagar a conta no fim do mês — alertou Kingshot — Algumas pessoas se esquecem disso e acabam com sérios problemas financeiros.
ESTAVA EM SUA CASA de Belgravia, bebendo um conhaque Luís XIII e conversando com um amigo. Conhecia Sir George Hendley há trinta anos. Procurador por profissão, trabalhara com o governo britânico na maior parte da vida, dando aconselhamento ao Serviço Secreto e ao Foreign Office. Tinha acesso a informações sigilosas e classificadas, foi confidente de vários primeiros-ministros ao longo dos anos e era considerado tão confiável quanto a própria rainha. Achava que aquilo simplesmente vinha com a gravata do uniforme da escola Winchester.
— O papa?
— Sim, George — confirmou Charleston. — A primeira-ministra quer que tentemos proteger o homem. O problema é que não tenho ideia do que fazer. Não podemos falar diretamente com o Vaticano sobre o assunto.
— Entendo, Basil. Podemos confiar na lealdade do Vaticano, porém não em sua política. Me diga: o que acha do serviço de inteligência deles?
— De alto nível em diversas áreas. Afinal, quem seria um confidente melhor do que um padre e qual seria uma forma melhor de transferir informações do que dentro de um confessionário? Fora muitas outras técnicas. A inteligência política deles é provavelmente tão boa quanto a nossa... talvez até melhor. Imagino que saibam de tudo que acontece na Polônia, por exemplo. E também não deve haver muitos segredos para eles no resto do Leste Europeu. Não podemos subestimar o poder de apelar ao mais elevado princípio de lealdade de um homem. Monitoramos as comunicações do Vaticano durante anos.
— É mesmo? — perguntou Hendley.
— Sim, é verdade. Durante a Segunda Guerra Mundial, eram muito valiosas. Havia um cardeal alemão no Vaticano, um sujeito chamado Mansdorf... curioso, não? Parece um sobrenome judeu. O primeiro nome era Dieter. Arcebispo de Mannheim, posteriormente promovido ao serviço diplomático do Vaticano. Viajava muito. Manteve-nos informados dos segredos internos do Partido Nazista, de 1938 ao fim da guerra. Ele não gostava muito de Hitler, como pode ver.
— E as comunicações deles?
— Mansdorf chegou a nos entregar o livro de cifras para copiarmos. Eles o substituíram depois da guerra, é claro, e não conseguimos muitas informações sobre sua correspondência privada depois disso. Só que eles nunca mudaram o sistema de codificação, por isso o pessoal do GCHQ consegue interceptar algumas conversas, ocasionalmente. Um bom homem, o cardeal Dieter Mansdorf. Obviamente, nunca recebeu reconhecimento por seus serviços. Morreu em 1959, se não me engano.
— Então como podemos ter certeza de que os romanos ainda não sabem dessa operação?
Era uma pergunta interessante, mas Charleston já pensara naquilo.
— Nosso desertor disse que o assunto vem sendo mantido em extremo sigilo. As mensagens agora são entregues em mãos, e não mais enviadas através das máquinas de codificação. Esse tipo de coisa. E um grupo pequeno de pessoas está envolvido. Conhecemos um nome importante, de um oficial de campo búlgaro: Boris Strokov, coronel da DS. Suspeitamos que foi ele quem matou Georgiy Markov, a uma distância pequena do meu escritório.
Charleston considerara aquilo um ato de lesa-majestade, possivelmente executado como um desafio direto ao SIS. A CIA e a KGB tinham um acordo informal: não realizar assassinatos na capital do inimigo. O SIS não mantinha pactos com ninguém, um fato que pode ter custado a vida de Georgiy Markov.
— Acredita que ele seja o assassino escolhido?
C agitou os braços.
— É tudo que temos, George.
— Não é muito — comentou Hendley.
— É pouco para nos sentirmos preparados, mas ainda é melhor do que nada. Temos muitas fotos do tal Strokov. A Yard esteve perto de prendê-lo antes que partisse de Heathrow... na verdade, ele voou primeiro para Paris, e de lá para Sofia.
— Talvez estivesse com pressa de fugir.
— É um profissional, George. Que risco esse tipo de gente corre? Pensando em retrospecto, é incrível que a Yard tenha chegado perto dele.
— Então acredita que ele esteja na Itália.
Não era uma pergunta e sim uma afirmação.
— É uma possibilidade. Quem pode dizer? — perguntou C. — Os italianos têm jurisdição criminal até um determinado ponto. O Tratado de Latrão lhes dá jurisdição discricionária, sujeita ao veto do Vaticano — explicou. Precisava observar os aspectos legais da situação. — O Vaticano tem seu próprio serviço de segurança, a Guarda Suíça, mas, ainda que sejam bons homens, é uma proteção frágil, com todas as restrições impostas pelas instâncias superiores. E as autoridades italianas, por razões óbvias, não podem tomar a área com suas próprias forças de segurança.
— Portanto, a primeira-ministra o incumbiu de uma missão impossível.
— Sim. Mais uma vez, George — confirmou Sir Basil.
— Então, o que podemos fazer?
— Tudo em que consegui pensar até agora foi colocar alguns agentes na multidão à procura desse Strokov.
— E se o localizarem?
— Pedirão educadamente que se afaste do local, certo? — pensou Basil em voz alta. — Provavelmente funcionaria. Ele é um profissional. Ser identificado, com nosso pessoal tirando fotos, lhe daria razão suficiente para hesitar, talvez o bastante para abortar a missão.
— Não, não funcionaria — disse Hendley.
— É, eu sei — concordou C. Era apenas algo que ele poderia dizer à primeira-ministra.
— Quem você enviaria?
— Temos um chefe competente em Roma, Tom Sharp. Ele dispõe de quatro agentes. Creio que poderíamos enviar mais alguns da Century House.
— Parece razoável, Basil. Por que me chamou aqui?
— Achei que pudesse ter uma ideia que estivesse me escapando, George. — Um último gole do copo. Por mais que desejasse mais um pouco de conhaque naquela noite, convenceu-se a parar.
— Não pode ir além do que está ao seu alcance — disse Hendley.
— Ele é um homem muito bom para ser eliminado dessa forma... pelas mãos dos malditos russos. E por que razão? Por querer proteger seu povo. Esse tipo de lealdade devia ser recompensado e não terminar em assassinato público.
— E a primeira-ministra pensa da mesma forma, não?
— Ela quer assumir uma posição de firmeza.
A primeira-ministra era conhecida no mundo inteiro por aquilo.
— E os americanos? — perguntou Hendley.
Charleston deu de ombros.
— Eles ainda não tiveram oportunidade de conversar com o desertor. Confiam em nós, George, mas não muito.
— Bem, faça o que puder. Essa operação da KGB dificilmente ocorrerá no futuro próximo. Quão eficientes os soviéticos podem ser?
— Veremos — foi tudo o que C conseguiu dizer.
TENDO ACORDADO às 6h50, Ryan achava que o silêncio ali era maior do que em casa, apesar da presença da autoestrada. A pia seguia a excêntrica tradição britânica de possuir duas torneiras, uma quente e outra fria, o que garantia que uma mão seria queimada e a outra, congelada. Como de hábito, sentia-se bem ao fazer a barba e pentear o cabelo, aprontando-se para o dia, ainda que tudo começasse com uma xícara de Taster's Choice.
Kingshot já estava na cozinha quando Jack apareceu. Era engraçado como as pessoas dormiam até tarde aos domingos, mas nem sempre aos sábados.
— Mensagem de Londres — disse Al, no lugar do bom-dia.
— O que diz?
— Uma pergunta. O que acha de voar para Roma esta tarde?
— O que está acontecendo?
— Sir Basil decidiu enviar algumas pessoas ao Vaticano para fazer uma avaliação. Ele quer saber se você quer ir. Afinal, ainda é uma operação da CIA.
— Diga a ele que quero — respondeu Jack, sem hesitar por um único instante. — Quando?
Naquele momento, ele percebeu que estava sendo impetuoso novamente. Droga.
— Voo de meio-dia, saindo de Heathrow. Deve dar tempo de ir em casa e trocar de roupa.
— Carro?
— Nick o levará — disse Kingshot.
— O que dirá a Oleg?
— A verdade. Assim se sentirá mais importante — pensou em voz alta. Era sempre algo positivo em se tratando de desertores.
RYAN E THOMPSON PARTIRAM EM MENOS de uma hora, com as malas de Jack no porta-malas.
— Esse Zaitzev — disse Nick ao chegar à autoestrada — parece ser um desertor muito importante.
— Pode apostar, Nick. Ele tem todo tipo de informação na cabeça. Vamos tratá-lo como um carrinho cheio de barras de ouro.
— É legal que a CIA nos deixe conversar com ele.
— Seria indelicado não deixar. Foram vocês que o retiraram de lá. Além disso, acobertar a deserção foi muito inteligente.
Jack não podia ir além. Não sabia a que tipo de informação Nick Thompson tinha acesso, por mais confiável que parecesse. Pelo menos o ex-policial entendia que devia evitar algumas perguntas.
— Quer dizer que seu pai foi policial?
— Sim. Detetive. Atuou principalmente em homicídios. Foi o que fez por mais de vinte anos. Parou como tenente. Dizia que os capitães só cuidavam de assuntos administrativos, e ele não nascera para aquilo. Gostava de pegar os caras maus e mandá-los para o xadrez.
— Para onde?
— Para a prisão. A prisão estadual de Maryland é uma estrutura com aparência assustadora, em Baltimore, perto de Jones Falls. Parece uma fortaleza medieval, porém mais ameaçadora. Os presos chamam o lugar de Fortaleza do Frankenstein.
— Por mim, tudo bem, Sir John. Nunca simpatizei muito com assassinos.
— Papai não falava muito deles. Não gostava de conversar sobre trabalho em casa; mamãe não queria ouvir nada daquilo. Mas uma vez, um homem matou o filho por causa de uma torta de siri. Parece um pequeno hambúrguer feito de carne de siri — explicou Jack. — Papai disse que era uma razão imbecil para se matar alguém. O pai do garoto negou tudo, mostrando-se abalado, mas o que acontecera não tinha volta.
— É incrível como muitos assassinos reagem dessa forma. Eles se deixam tomar pela raiva e depois são consumidos pelo remorso.
— Fica-se velho muito cedo, e esperto, muito tarde.
— Exato. Todo esse negócio pode ser muito triste.
— O que acha do tal Strokov?
— Um caso completamente diferente — respondeu Thompson. — Não é uma pessoa comum. Para esse tipo de gente, tirar uma vida é apenas parte do serviço. Não há um motivo, no sentido tradicional. E eles deixam poucos rastros, no que diz respeito a evidências físicas. Podem ser difíceis de se achar, mas na maioria das vezes acabamos por encontrá-los. O tempo está do nosso lado; cedo ou tarde alguém abre a boca e chega aos nossos ouvidos. A maior parte dos criminosos se entrega por falar demais — explicou Nick. — No entanto, pessoas como Strokov não falam... só quando voltam para casa e fazem seus relatórios oficiais. Mas nunca temos acesso a eles. Foi um lance de sorte descobrir uma pista dele. O Sr. Markov se lembrou de ter sido atingido por um guarda-chuva e da cor do paletó que o homem vestia. Um dos guardas o viu vestindo um paletó igual e achou que havia algo estranho... afinal, em vez de voltar logo para casa, ele esperou na cidade para se assegurar de que Markov havia morrido.
"Eles tinham falhado em duas tentativas anteriores, por isso convocaram Strokov, devido à sua experiência. Strokov é profissional. Para ter absoluta certeza, esperou para ler a notícia da morte nos jornais. Enquanto isso, nós conversamos com os funcionários do hotel e começamos a colher informações. O SIS entrou no circuito. Eles ajudaram em alguns aspectos, mas não em outros... e o governo acabou se envolvendo. Havia preocupação de que ocorresse um incidente internacional, e eles nos mandaram recuar... calculo que isso tenha nos custado dois dias. No primeiro desses dois dias, Strokov pegou um táxi até Heathrow e voou até Paris. Eu estava na equipe de vigilância.
Cheguei a cinco metros dele. Tínhamos dois detetives com câmeras; tiramos várias fotos. A última foi de Strokov na passarela, embarcando no Boeing. No dia seguinte, recebemos permissão do governo para detê-lo e interrogá-lo.”
— Um pouco atrasados, não?
Thompson confirmou com a cabeça.
— Muito. Adoraria levá-lo à Justiça, mas ele escapou. Os franceses o seguiram no Charles de Gaulle. Só que ele não saiu do terminal internacional, não conversou com ninguém. Não demonstrou qualquer sombra de remorso. Imagino que, para ele, tenha sido como juntar lenha para uma fogueira — comparou o ex-detetive.
— É, nos filmes eles matam e depois tomam um martíni. Agitado, nunca mexido. Mas é diferente quando matam uma pessoa de bem.
— Tudo que Markov fez foi dar notícias no serviço internacional da BBC — disse Nick, apertando o volante um pouco mais forte. — Imagino que Sofia estivesse irritada com o que ele vinha dizendo.
— O pessoal do outro lado da cortina não liga muito para a liberdade de expressão — lembrou Ryan.
— Bárbaros desgraçados. E agora esse cara quer matar o papa? Não sou católico, mas ele é um homem de Deus e parece ser decente. Até o mais perverso criminoso pensa duas vezes antes de mexer com um clérigo.
— É, eu sei. Não vale a pena irritar Deus. Acontece que eles não creem em Deus, Nick.
— Sorte deles que eu não sou Deus.
— E, seria bom deter poder para corrigir todos os defeitos do mundo. O problema é que os chefes de Strokov acreditam estar fazendo exatamente isso.
— É por isso que temos leis, Jack... certo, eu sei que eles fazem suas próprias leis.
— Esse é o problema — disse Jack, quando chegavam a Chatham.
— Esta região é muito agradável — comentou Thompson, contornando as encostas na City Way.
— É uma boa vizinhança. Cathy gosta daqui. Eu queria algo mais perto de Londres, mas prevaleceu a vontade dela.
— As mulheres sempre conseguem nos convencer — disse Thompson, rindo.
Eles entraram à direita, na Fristow Way, e depois à esquerda, em Grizedale Close. Lá estava a casa. Ryan desceu e pegou sua bagagem.
— Papai! — gritou Sally, assim que ele passou pela porta.
Ryan largou as malas e pegou-a no colo. Aprendera havia muito tempo que os abraços mais gostosos eram os das crianças — embora fossem um pouco pegajosos.
— Como está minha garotinha?
— Tudo bem — disse Sally, com a voz parecendo um miado.
— Ah, olá, Dr. Ryan — disse a Srta. Margaret. — Não esperava sua chegada.
— Estou fazendo apenas uma visita. Vou pegar roupas limpas e partir novamente.
— Você vai viajar de novo? — perguntou Sally, profundamente decepcionada.
— Desculpe, Sally. Papai tem trabalho a fazer.
Ela se soltou dos braços do pai.
— Ah, tá.
E voltou para a frente da TV, colocando o pai no devido lugar. Jack aproveitou a deixa para subir. Três... não, quatro camisas limpas, cinco cuecas, quatro gravatas e... sim, algumas roupas mais casuais. Dois paletós, duas calças. Seu prendedor de gravata da Marinha. Era o suficiente. Deixou a pilha de roupa suja na cama e, com a mala feita, desceu. Opa. Largou a mala no chão e subiu para buscar o passaporte. Não fazia sentido continuar usando documentos britânicos falsificados.
— Tchau, Sally.
— Tchau, papai.
Então ela pensou melhor e pulou aos pés do pai, para lhe dar outro abraço. Quando crescesse, não só partiria corações; iria destruí-los por completo. Mas faltava muito e, portanto, seu pai teve oportunidade de desfrutar mais um abraço. O pequeno Jack dormia de costas no cercado, e Ryan decidiu não incomodá-lo.
— Até mais, amigão — disse a caminho da porta.
— Para onde vai? — perguntou a Sra. Margaret.
— Para fora do país. Negócios — explicou Jack. — Ligo para Cathy do aeroporto.
— Boa viagem, Dr. Ryan.
— Obrigado, Margaret — disse, virando para a porta. — Como estamos de tempo? — perguntou, já de volta ao carro.
— Sem pressa — respondeu Thompson. Se se atrasassem, o avião também teria um pequeno problema mecânico.
— Ótimo.
Jack ajustou o banco para poder se recostar e dar uma cochilada. Acordou do lado de fora do terminal 3 de Heathrow. Thompson dirigiu na direção de um homem em roupas civis. Parecia um funcionário do governo.
E era. Assim que Ryan desceu do carro, o homem se aproximou, trazendo um envelope com passagens.
— Senhor, seu voo parte em quarenta minutos, portão 12 — informou o homem. — Tom Sharp o receberá em Roma.
— Como ele é? — perguntou Jack.
— Ele saberá identificá-lo, senhor.
— Tudo bem.
Ryan pegou as passagens e dirigiu-se à traseira do carro para pegar a mala.
— Cuido disso para o senhor.
Aquele tipo de viagem estava ficando interessante. Jack acenou para Thompson e entrou no terminal, à procura do portão 12. Foi fácil encontrá-lo. Ele se sentou perto do portão e verificou o bilhete: assento 1-A, primeira classe. O SIS devia ter um ótimo relacionamento com a British Airways. Agora só precisava sobreviver à viagem.
Embarcou vinte minutos depois. Sentou-se, apertou o cinto e adiantou o relógio uma hora. Ouviu a habitual falação sobre procedimentos de segurança e como pôr o cinto de segurança, que, no caso de Jack, já estava preso e firme.
O voo levou duas horas, chegando ao aeroporto Leonardo da Vinci às 3h09, horário local. Jack deixou a aeronave e procurou o Canal Azul para carimbar seu passaporte diplomático. Demorou cinco segundos — havia outro diplomata na sua frente, e o idiota esquecera em que bolso estava o passaporte.
Depois da burocracia, ele buscou a mala na esteira e se dirigiu à saída. Um homem de barba castanha agrisalhada parecia encará-lo.
— Você é Jack Ryan?
— Sim, e você deve ser Tom Sharp.
— Correto. Deixe-me ajudar com sua bagagem.
Ryan não entendia por que as pessoas faziam aquilo. Porém, ao pensar no assunto, lembrou-se de ter agido da mesma forma em algumas oportunidades. E os britânicos eram os campeões das boas maneiras.
— Qual sua função?
— Sou chefe da agência em Roma — respondeu ele. — C ligou para avisar que estava a caminho, Sir John, e que eu devia recebê-lo pessoalmente.
— Gentil da parte dele — disse Jack.
O carro de Sharp era um Bentley bronze, com a direção no lado esquerdo, em consideração ao fato de estarem em um país bárbaro.
— Bela máquina, amigo.
— Meu disfarce é de chefe adjunto da missão diplomática — explicou Sharp. — Podia ter uma Ferrari, mas me pareceu um pouco exagerado. Quase não participo de ações de campo, faço apenas trabalho administrativo. Na verdade, sou o chefe adjunto da missão. Trabalho diplomático em excesso... pode deixar uma pessoa maluca.
— Como é a Itália?
— Um lugar adorável com um povo adorável. A organização deixa a desejar. Dizem que nós, britânicos, somos desorganizados, mas somos prussianos se comparados a esses caras.
— E a polícia?
— Bem eficiente. Há várias forças policiais. Os melhores são os carabinieri, uma força policial paramilitar ligada ao governo central. Alguns deles são excelentes. Na Sicília, estão tentando atacar a máfia. Uma tarefa ingrata, mas acredito que, no fim, eles serão bem-sucedidos.
— Foi informado da razão pela qual fui enviado?
— Algumas pessoas acreditam que Yuriy Vladimirovich quer matar o papa. Era o que dizia o telex.
— Isso. Um desertor que acabamos de tirar de lá nos contou a história. E parece que está dizendo a verdade.
— Algum detalhe?
— Não. Acho que me mandaram aqui para trabalhar com vocês até que alguém pense na medida adequada a ser tomada. Pessoalmente, acho que pode haver uma tentativa na quarta-feira.
— Na aparição semanal na praça?
Jack confirmou. — Sim.
Estavam na autoestrada que ligava o aeroporto a Roma. A paisagem parecia estranha a Ryan, que precisou de um minuto para descobrir a razão. A ponta dos telhados era diferente — mais baixa do que o normal. Provavelmente não nevava muito no inverno. Fora isso, as casas se assemelhavam a pedras de açúcar, pintadas de branco para refletir o calor do sol italiano. Bem, todo país tinha suas peculiaridades arquitetônicas.
— Quarta-feira, hein?
— Isso. Também estamos atrás de um sujeito chamado Boris Strokov, coronel da DS búlgara. Trata-se de um assassino profissional.
Sharp prestava atenção à estrada.
— Já ouvi esse nome. Ele não foi um dos suspeitos do assassinato de Georgiy Markov?
— Ele mesmo. Vamos receber algumas fotos.
— Havia um entregador no seu voo — informou Sharp. — Pegou um caminho diferente até a cidade.
— Tem alguma ideia do que fazer?
— Primeiro vamos cuidar de sua acomodação na embaixada... na verdade, na minha casa. Fica a dois quarteirões de lá. É um lugar agradável. Depois vamos à praça de São Pedro fazer um levantamento, sentir o ambiente. Já estive lá para conferir as obras de arte... a coleção do Vaticano é comparável à da rainha. Mas nunca trabalhei lá dentro. Conhece Roma?
— Nunca estive aqui.
— Então vamos dar uma volta antes, para você ter uma ideia geral da cidade.
Roma parecia um lugar incrivelmente desorganizado... mas um mapa de Londres daria a mesma impressão de que os administradores da cidade não se entendiam muito bem. E Roma era cerca de mil anos mais antiga. Quando fora construída, o meio de transporte mais rápido ainda era o cavalo — e este não se comparava aos animais dos westerns de John Ford. A cidade não dispunha de caminhos em linha reta para a abertura de estradas, e, pior, havia um rio sinuoso bem no meio. Tudo tinha aparência de velho para Ryan... não simplesmente velho, mas velho, como se dinossauros houvessem passado pelas ruas. Uma realidade um pouco difícil de se conciliar com o tráfego de automóveis.
— Aquele é o anfiteatro flaviano. Era chamado de Coliseu porque o imperador Nero tinha erigido uma grande estátua de si mesmo, bem ali, e o povo começou a se referir a ele dessa forma. Isso provocou a irritação da família flaviana, que construíra o estádio com os proventos da rebelião judaica sobre a qual escreveu Josefo.
Jack conhecia o Coliseu da TV e dos filmes, mas nada se comparava a passar diante da construção. Homens haviam erguido o teatro com nada mais do que seu suor e cordas de cânhamo. A forma, curiosamente, lembrava a do Yankee Stadium, em Nova York. Babe Ruth, porém, nunca rasgara o ventre de um adversário no Bronx — o que acontecera com frequência ali. Ryan sentiu-se obrigado a fazer uma confissão.
— Sabe, se um dia inventarem uma máquina do tempo, acho que gostaria de ver como era na época dos gladiadores. Isso me torna um bárbaro, não?
— Era apenas a versão romana do rúgbi — disse Sharp. — E o futebol também costuma ser bem violento por aqui.
— Futebol é um jogo de meninas — esnobou Jack.
— Você é mesmo um bárbaro, Sir John. O futebol — começou a explicar, forçando no sotaque — é um jogo de cavalheiros jogado por facínoras, enquanto o rúgbi é um jogo de facínoras jogado por cavalheiros.
— Vou acreditar na sua palavra. Tudo que quero é dar uma olhada no International Tribune. Meu time de beisebol está na World Series e não tenho nenhuma informação sobre os resultados.
— Beisebol? Ah, está falando de rounders? Isso sim é um jogo de meninas — disse Sharp.
— Já me envolvi numa discussão sobre isso. Vocês, britânicos, não conseguem entender.
— Assim como você não entende o futebol, Sir John. Na Itália, é uma paixão nacional, maior até do que na Inglaterra. Eles tendem a jogar com muita raça, de modo diferente dos alemães, por exemplo, que parecem grandes robôs.
Era como ouvir sobre as diferenças entre uma bola curva e uma deslizante ou em parafuso. Ryan não era um torcedor tão aplicado a ponto de entender todas as distinções; dependia do narrador, que, de qualquer maneira, devia inventar tudo mesmo. Mas sabia que não existia um único jogador no beisebol capaz de lançar uma bola curva no canto externo.
Depois do debate, chegaram à Basílica de São Pedro em cinco minutos.
— Caramba! — disse Jack.
— Grande, não é mesmo?
Não era grande; era gigantesca.
Sharp dirigiu-se ao lado esquerdo da catedral, que terminava no que se assemelhava a uma área de compras. Aparentemente, joias. Estacionou lá.
— Vamos dar uma olhada?
Ryan saltou do carro e esticou as pernas. Precisava se lembrar de que não estava ali para admirar a arquitetura de Bramante e Michelangelo. Sua tarefa era reconhecer o terreno para uma missão, algo que aprendera a fazer em Quantico. Não era difícil para quem entendia do assunto.
De cima, a forma devia ser similar à da área do garrafão nas antigas quadras de basquete. A parte circular da praça parecia ter quase duzentos metros de diâmetro, estreitando-se para cerca de um terço disso à medida que se afastava das enormes portas de bronze da igreja.
— Ao ver a multidão, ele sobe no carro, uma mistura de jipe e carrinho de golfe, bem ali, e segue por um caminho aberto por aqui — explicou Sharp. — Vai naquela direção e volta. Isso leva uns vinte minutos, variando um pouco quando ele interrompe o desfile para cumprimentar o público. Acho que não é apropriado compará-lo aos políticos. Ele parece ser um cara decente, um homem verdadeiramente bom. Nem todos os papas foram bons, mas este é. E não é covarde. Teve que enfrentar os nazistas e os comunistas, e isso nunca o afastou um centímetro de seu caminho.
— É, ele gosta de caminhar na ponta da lança — disse Ryan, em voz baixa. Só havia uma coisa ocupando sua mente naquele momento. — Onde estará o sol?
— Atrás de nós.
— Então, se houver um assassino, ele ficará bem aqui, com o sol atrás dele, e não batendo em seus olhos. As pessoas que estiverem observando do outro lado, sim, terão o sol em seus olhos. Talvez não seja tão importante, mas quando o seu está na reta, você joga com todas as cartas. Já prestou serviço militar, Tom?
— Guarda de Coldstream. Fui tenente e capitão. Participei de ações em Aden, mas na maior parte do tempo servi no regimento de comunicações. Concordo com sua avaliação — disse Sharp, virando-se para fazer sua própria análise. — Os profissionais são um pouco previsíveis, já que todos seguem o mesmo manual. E se usarmos um fuzil?
— Quantos homens você tem à disposição?
— Quatro, além de mim. Talvez C envie mais alguns de Londres, mas não serão muitos.
— Podemos posicionar um ali?
Ryan apontou na direção das colunas. A altura era de 20 ou 25 metros, mais ou menos a mesma do depósito de onde Lee Harvey Oswald atirara em Jack Kennedy... com um rifle italiano, lembrou-se Jack. Aquilo lhe deu um frio na espinha.
— Provavelmente posso colocar um homem ali disfarçado de fotógrafo. As lentes da câmera serviriam como ótimos binóculos.
— E quanto a rádios?
— Digamos, seis walkie-talkies de banda civil. Se não tivermos na embaixada, pedimos que nos enviem de Londres.
— É melhor usarmos aparelhos militares, pequenos o bastante para serem escondidos... tínhamos um nos fuzileiros com um fone como de um rádio transistor. Melhor ainda se fossem encriptados, mas isso pode ser complicado. — E esses sistemas não são totalmente confiáveis, deixou de acrescentar Ryan.
— Certo, podemos providenciar. Você tem olho clínico, Sir John.
— Não fui fuzileiro por muito tempo, mas, da forma como eles ensinam as lições na escola de formação, é difícil esquecer. Esta área é bem grande para cobrirmos com seis homens, companheiro.
— E o SIS não nos treina para isso — completou Sharp.
— O Serviço Secreto do meu país cobriria este lugar com mais de uma centena de agentes treinados. Talvez mais. E ainda tentaria monitorar cada hotel, motel e cortiço da região — disse Jack. — Sharp, isso é impossível. Qual é o tamanho da multidão?
— Varia. No verão, quando o turismo aumenta, há gente suficiente para encher o estádio de Wembley. Na próxima semana, certamente haverá milhares de pessoas — estimou. — É difícil estimar uma quantidade precisa.
Essa missão é uma verdadeira furada, pensou Ryan.
— Há alguma forma de investigar os hotéis, chegar perto de Strokov?
— Há mais hotéis em Roma do que em Londres. É muita coisa para cobrir com quatro agentes. Não podemos pedir ajuda à polícia local, podemos?
— Qual foi a orientação de Basil? — perguntou Ryan, prevendo a resposta.
— Tudo deve ser mantido em sigilo. Não, não podemos deixar que ninguém saiba o que estamos fazendo.
Jack se deu conta de que não podia sequer pedir apoio à base da CIA. Bob Ritter nunca aprovaria. "Furada" era uma avaliação otimista de sua parte.
31
CONSTRUTOR DE PONTES
A RESIDÊNCIA OFICIAL de Sharp era tão impressionante quanto o refúgio nas proximidades de Manchester. Não havia como adivinhar para que — ou quem — havia sido construída, e Ryan já estava cansado de fazer perguntas. Bastava que tivesse um quarto e um banheiro à sua disposição. Os tetos eram altos em todos os ambientes, presumivelmente uma defesa contra os verões quentes típicos de Roma. À tarde, havia feito 27 graus. Calor, mas nada incômodo para uma pessoa da área de Baltimore-Washington — para um inglês, porém, devia parecer a antessala do inferno. Quem quer que seja o autor de "Mad Dogs and Englishmen" deve ter vivido em outra época, pensou Jack. Em Londres, as pessoas começavam a cair mortas pelas ruas quando a temperatura passava de 24 graus. Jack concluiu que teria três dias para se preocupar, e um para executar o plano que ele e Sharp conseguissem elaborar — na esperança de que nada acontecesse e a CIA pensasse em uma forma de alertar as forças de segurança de Sua Santidade sobre a necessidade de reforçar sua proteção. Por Deus, o padre até se vestia de branco, a cor perfeita para favorecer a mira de qualquer arma que o atirador resolvesse usar — como um grande alvo de papel. O próprio George Armstrong Custer nunca havia se metido em um cenário tático tão complicado. E, mesmo assim, estava sempre de olhos abertos, embora atrapalhados por seu orgulho e sua fé na própria sorte.
O papa não tinha tais ilusões. Não, ele acreditava que Deus apareceria para buscá-lo quando lhe fosse conveniente. E só. A crença pessoal de Ryan não diferia tanto da do padre polonês, mas ele acreditava que Deus lhe dera um cérebro e livre-arbítrio por alguma razão — aquilo o tornava instrumento da vontade divina? Era uma questão muito profunda para aquele momento e, além disso, Ryan não era um padre para descobrir a resposta. Talvez fosse falta de fé. Talvez acreditasse demais no mundo real.
O trabalho de sua esposa era curar as pessoas. Seriam aqueles problemas infligidos pelo próprio Deus? Alguns acreditavam que sim. Ou Deus simplesmente permitia que tais problemas acontecessem, de forma que pessoas como Cathy pudessem corrigi-los, realizando Seu trabalho? Ryan tendia a crer nessa hipótese. E a Igreja devia concordar, já que havia construído tantos hospitais, no mundo inteiro.
No entanto, Deus seguramente não aprovava o assassinato, e agora a missão de Jack era impedir que um acontecesse. Se fosse possível. Ele certamente não ficaria parado, ignorando o fato. Um padre teria de se limitar à tentativa de persuasão ou, no máximo, de interferência passiva. Ryan, por sua vez, sabia que, se visse um criminoso mirando no papa — ou em qualquer outra pessoa — e tivesse uma arma na mão, não precisaria de mais do que um segundo para impedi-lo com um tiro. Talvez fosse apenas sua formação, as lições que aprendera com seu pai ou o treinamento no Exército; qualquer que fosse a razão, o uso de força física não o faria desmaiar. Pelo menos, não antes de cumprir sua tarefa. Havia algumas pessoas no inferno para comprovar. Assim, Jack iniciou a preparação mental para o que teria de fazer, no caso de os bandidos estarem na cidade e ele dar de cara com eles. Logo se deu conta de que sequer teria de responder pelos seus atos — não com a ajuda do seu status diplomático. O Departamento de Estado tinha direito de revogar sua proteção, como previa a Convenção de Viena, mas naquele caso não faria isso. Portanto, qualquer medida que tomasse não teria maiores consequências. Nada mau.
Sharp e a esposa levaram Jack para jantar. Era uma cantina de bairro, mas a comida estava deliciosa, mais uma prova de que os melhores restaurantes italianos eram os familiares. Pelo tratamento recebido, o casal Sharp devia comer ali com frequência.
— Tom, o que vamos fazer? — perguntou Jack, sem rodeios, supondo que Annie conhecia o ramo de atividade dos dois.
— Churchill costumava dizer que se deve simplesmente continuar tentando. Vamos fazer o melhor que pudermos, Jack.
— Acho que me sentiria muito melhor com um pelotão de fuzileiros me dando apoio.
— Eu também, garoto, mas temos que fazer o melhor com o que tivermos à disposição.
— Tommy — disse a Sra. Sharp. — Do que, exatamente, vocês estão falando?
— Não posso contar, querida.
— Mas você é da CIA — disse ela, em seguida, olhando para Jack.
— Sim, senhora — confirmou Ryan. — Antes disso, dava aulas de história na Academia Naval de Annapolis. E antes fui corretor de ações e fuzileiro.
— Sir John, foi o senhor que...
— Sim, e nunca vou me esquecer daquilo. — Jack pensou por que não havia deixado a mulher e a filha atrás daquela árvore, na Mall, e permitido que Sean Miller fizesse o que queria. Cathy teria tirado algumas fotos, que acabariam ajudando a polícia. Nenhum ato de coragem, ou de estupidez, permanecia impune. — E pode parar com o Sir John. Não tenho cavalo nem armadura.
E sua única espada era a mameluca que os fuzileiros recebiam ao se formar em Quantico.
— Jack, formalmente, um cavaleiro é alguém que empunha armas para proteger o soberano. Você já fez isso duas vezes, caso não se lembre. Portanto, merece o título honorário — argumentou Sharp.
— Vocês não conseguem se esquecer disso, não?
— Algo desse tipo, não, Sir John. Coragem sob fogo é uma das coisas que valem a pena ser mantidas na memória.
— Principalmente em pesadelos. Mas neles a arma nunca funciona. Tenho alguns de vez em quando — revelou Jack, pela primeira vez na vida. — O que faremos amanhã, Tom?
— Preciso cuidar do trabalho na embaixada pela manhã. Por que não avalia a área um pouco mais? Podemos nos encontrar para almoçar.
— Tudo bem. Onde nos encontraremos?
— Dentro da basílica, à direita, fica a Pietá, de Michelangelo. Lá, à uma e quinze em ponto.
— Perfeito — concordou Jack.
— ONDE ESTÁ RYAN? — perguntou o Coelho.
— Em Roma — respondeu Alan Kingshot. — Está investigando aquilo que nos contou.
Haviam passado o dia inteiro falando sobre o que ele sabia a respeito das operações da KGB no Reino Unido. No final, era um volume grande de informações, que deixou os três homens do serviço de segurança literalmente babando, enquanto faziam suas anotações. Durante o jantar, Kingshot chegou à conclusão de que Ryan estava errado.
Aquele cara não era uma mina de ouro; era a própria região de Kimberly, e os diamantes simplesmente saltavam de sua boca. Zaitzev começava a relaxar um pouco, apreciando seu status. Ele tem todo o direito, pensou Alan. Como o inventor do chip de computador, aquele Coelho estava com o futuro garantido, cercado por todas as cenouras que pudesse comer e homens armados que protegeriam sua toca dos ursos.
A coelhinha havia acabado de descobrir os desenhos animados ocidentais. Ela gostava principalmente do Papa-Léguas, notando a semelhança com o "Espere um instante" russo. Ria de todas as aventuras.
Irina, por sua vez, redescobrira a paixão pelo piano, tocando o imponente Bösendorfer, na sala de música. Cometia erros, mas aprendia com eles e já começava a recuperar a destreza, sob o olhar admirado da Sra. Thompson. Esta nunca aprendera a tocar, mas encontrara pilhas de partituras para a Sra. Zaitzev praticar.
Essa família se sairá muito bem no Ocidente, pensou Kingshot. A criança, bem, era uma criança. O pai tinha toneladas de informações valiosas. A mãe teria mais espaço e poderia tocar música para apaziguar o coração. Eles vestiriam a recém-descoberta liberdade como uma peça de roupa folgada e confortável. Para usar uma palavra russa, eram kulturniy — pessoas cultas — representantes exemplares da rica cultura que antecedera o comunismo. Era bom saber que nem todos os desertores eram arruaceiros alcoólatras.
— SEGUNDO BASIL, ELE PARECE um canário tomando anfetaminas — contou Moore aos diretores que se encontravam no escritório de sua casa. — Ele diz que esse cara vai fornecer mais informações do que nós seremos capazes de usar.
— Ah, é mesmo? Por que não tenta? — pensou Ritter em voz alta.
— Tem razão, Bob. Quando podemos trazê-lo para cá? — perguntou o almirante Greer.
— Basil pediu mais dois dias. Acho que na quinta à tarde. Solicitei à Força Aérea que envie um VC-137. Também podemos usar a primeira classe — disse o juiz, generoso. Não era seu dinheiro mesmo. — Aliás, Basil colocou seu pessoal em Roma sob alerta, para o caso de a KGB estar adiantada nessa operação de eliminar o papa.
— Eles não são tão eficientes — disse Ritter, com segurança.
— Eu não teria tanta certeza, Bob — comentou o DDI. — Yuriy Vladimirovich não é conhecido pela paciência.
Greer não era o primeiro a fazer tal observação.
— Eu sei, mas o sistema deles funciona mais lentamente do que o nosso.
— E quanto aos búlgaros? — perguntou Moore. — O Coelho acha que o atirador será um sujeito chamado Strokov, Boris Strokov. E ele o provável autor do assassinato de Georgiy Markov, na Westminster Bridge. Assassino experiente, de acordo com Basil.
— Faz sentido usar os búlgaros — observou Ritter. — Eles são os assassinos oficiais do bloco socialista. Mas ainda são comunistas. Jogadores de xadrez. E não costumam agir às claras. Ainda não descobrimos como alertar o Vaticano. Podemos conversar com o núncio sobre isso?
Todos já haviam pensado naquela possibilidade. Era hora de encará-la novamente. O núncio papal era o embaixador do Vaticano nos Estados Unidos, cardeal Giovanni Sabatino. Antigo membro do serviço diplomático, era bem visto pelos funcionários ligados às relações exteriores no Departamento de Estado, tanto pela sagacidade quanto pela discrição.
— Podemos fazer isso sem expor a identidade da nossa fonte? — perguntou Greer.
— Podemos dizer que um búlgaro falou demais...
— Escolha essa fonte falsa cuidadosamente, juiz — alertou Ritter. — Lembre-se de que a DS tem uma subunidade especial. Ela se reporta diretamente ao Politburo. E não costuma pôr muita coisa no papel, segundo nossas fontes. Uma versão comunista de Albert Anastasia. Pelo que dizem, Strokov é desse grupo.
— Podemos dizer que o diretor do partido contou a uma amante. Ele tem algumas — sugeriu Greer.
O diretor de inteligência tinha todo tipo de informação sobre hábitos íntimos de líderes mundiais, e o chefe do partido búlgaro era um homem do povo, no mais imediato dos sentidos. Logicamente, se aquilo vazasse, a vida poderia se tornar difícil para a mulher em questão. O adultério, porém, tinha seu preço, e o líder búlgaro era um bebedor tão copioso que talvez não lembrasse a quem (não) dissera o que lhe seria atribuído. Era uma possibilidade que pouparia a consciência dos envolvidos.
— Parece convincente — opinou Ritter.
— Quando podemos falar com o núncio? — perguntou Moore.
— Na metade da semana, talvez? — sugeriu Ritter.
Todos ali teriam uma semana movimentada pela frente. O juiz estaria no Congresso, para tratar do orçamento, até a manhã de quarta.
— Onde?
O núncio não iria até eles, pois haveria aborrecimentos demais se alguém notasse. O juiz Moore também não podia procurá-lo: seu rosto era muito conhecido pelas autoridades de Washington.
— Foggy Bottom — pensou Greer, em voz alta.
Moore costumava encontrar o secretário de Estado, e o núncio estava longe de ser um estranho por lá.
— Sim, isso serve — decidiu o DCI. — Vamos tomar as providências — disse, espreguiçando-se.
Ele odiava trabalhar aos domingos. Mesmo como juiz na corte de apelações, tinha direito a fins de semana livres.
— Ainda há a questão do que eles podem fazer com a informação — lembrou Ritter. — Que medidas Basil está tomando?
— Pediu ao seu pessoal em Roma que avaliasse o terreno. São apenas cinco pessoas, mas ele vai mandar reforços de Londres amanhã, para o caso de tentarem uma ação na quarta. É quando Sua Santidade costuma aparecer em público. Fiquei sabendo que ele também tem uma agenda intensa de trabalho.
— É uma pena que não possa cancelar o desfile pela praça. Imagino que não ouviria qualquer pessoa que sugerisse isso.
— Improvável — concordou Moore.
Ele não mencionou a informação repassada por Sir Basil de que Ryan havia sido enviado a Roma. Ritter teria outro ataque, e Moore não estava disposto a lidar com aquilo em pleno domingo.
RYAN ACORDOU CEDO, como de hábito, tomou o café da manhã e pegou um táxi até a praça de São Pedro. Era agradável poder caminhar e esticar as pernas. Ele achava curioso que, dentro da capital da República da Itália, houvesse um Estado oficialmente soberano, que tinha o latim como língua oficial. Imaginou se os césares ficariam satisfeitos com o fato de o último lar de sua língua também ser o lar da instituição que derrubara seu império mundial. Mas não podia ir ao Fórum perguntar aos fantasmas que porventura vivessem lá.
A igreja era o que mais lhe chamava a atenção. Não havia palavra capaz de definir sua grandeza. Os recursos necessários para sua construção haviam exigido a venda de indulgências que levara Martinho Lutero a afixar seu protesto na porta da catedral e, assim, dar início à Reforma — algo que as freiras de St. Matthew's não aprovavam, mas que os jesuítas com que convivera mais tarde analisavam de modo mais amplo. A Companhia de Jesus devia sua existência à Reforma; afinal, fora criada para combatê-la.
Nada daquilo importava no momento. A basílica excedia qualquer descrição possível e parecia uma sede adequada para a Igreja Católica Romana. Jack entrou e percebeu que o interior se mostrava ainda mais vasto do que a parte externa. Seria possível jogar uma partida de futebol ali dentro. A cerca de cem metros, ficava o altar principal, de uso exclusivo do papa, e sob ele estava a cripta onde os papas anteriores haviam sido enterrados — inclusive, segundo a tradição, o próprio Pedro Simão. "Tu és Pedro", diz Jesus no Evangelho, "e sobre esta pedra edificarei minha igreja." Bem, com a ajuda de alguns arquitetos e o que deve ter sido um exército de trabalhadores, eles haviam haviam certamente construído uma igreja ali. Jack sentiu-se absorvido pelo local, como se fosse a própria casa de Deus. A catedral de Baltimore não passaria de uma alcova naquele lugar. Ao olhar ao redor, notou os turistas observando o teto, todos de boca aberta. Como construíram este lugar sem aço estrutural?, perguntou-se. Era tudo pedra sobre pedra. Os antigos entendiam mesmo do assunto, pensou. Os descendentes daqueles engenheiros agora trabalhavam na Boeing ou na NASA. Depois de gastar vinte minutos passeando, Jack finalmente se lembrou de que não era um turista.
Aquele lugar um dia abrigara o Circus Maximus Romano original. A grande pista para bigas, como as vistas no filme Ben-Hur, acabou destruída e substituída pela primeira igreja de São Pedro. Com o tempo, a construção se deteriorou, o que levou ao início do projeto de mais de uma centena de anos para erguer a basílica, concluída no século XVI. Ryan saiu para avaliar a área externa novamente. Por mais que procurasse alternativas, parecia que a primeira avaliação estava correta. O papa subia no carro ali, seguia por aquele caminho, e o ponto de maior vulnerabilidade ficava... bem aqui. O problema é que bem aqui correspondia a um espaço semicircular de quase duzentos metros. Tudo bem, hora de fazer uma análise. O atirador seria um profissional. E um profissional tomaria dois cuidados: primeiro, dar um tiro certeiro; segundo, sair dali vivo.
Ryan virou-se em busca de potenciais rotas de fuga. À esquerda, perto da fachada da igreja, haveria um amontoado de gente querendo ser as primeiras a ver o papa, assim que ele saísse. Adiante, o caminho do veículo aberto se alargava um pouco, aumentando a distância de tiro — algo a ser evitado. Mas o atirador ainda precisava escapar. A melhor opção era pela rua lateral onde Sharp estacionara no dia anterior. Ele podia ocultar um carro e, se conseguisse chegar tão longe, partiria em disparada até um lugar onde haveria um carro reserva — porque os policiais logo sairiam à procura do primeiro, e Roma tinha um efetivo numeroso que estaria louco para botar as mãos em quem quer que houvesse alvejado o papa.
De volta ao local do ataque. Ele não ficaria na parte mais cheia da multidão; portanto, evitaria a área mais próxima da igreja. Ainda assim, tentaria escapar por aquele arco. Uma distância de sessenta ou setenta metros. Talvez chegasse lá em dez segundos. Com caminho livre, sim. Para ter certeza, Jack trabalharia com o dobro do tempo. O assassino provavelmente gritaria algo como "Ele está fugindo por ali" para criar confusão. Mesmo que isso ajudasse em sua identificação, o coronel Strokov pretendia estar dormindo em Sofia já à noite. Verificar os horários dos voos, lembrou Jack. Se ele der o tiro e escapar, não vai voltar nadando para casa, vai? Não, ele vai escolher o meio mais rápido... a não ser que tenha um excelente esconderijo aqui em Roma.
Era uma possibilidade. Estava lidando com um agente experiente, que podia ter vários planos em mente. Mas aquilo era a realidade, não um filme, e profissionais gostavam de manter as coisas simples, porque até mesmo as coisas mais simples davam errado no mundo de verdade.
Ele terá pelo menos um plano alternativo. Talvez mais até, mas um pelo menos, com certeza.
Quem sabe se vestir de padre? Havia muitos por ali. Freiras também — mais do que Ryan tinha visto em toda a sua vida. Qual será a altura de Strokov? Qualquer coisa acima de l,70m e seria muito alto para uma freira. Caso se disfarçasse de padre, poderia esconder até um RPG na batina. Era uma possibilidade interessante. Mas como correria vestindo uma batina? Seria uma desvantagem.
Precisa ser uma pistola, provavelmente com silenciador. Um rifle seria muito arriscado. Era tão longo que alguém do lado podia esbarrar no cano, e ele nunca conseguiria acertar o alvo. Uma AK-47, talvez? Não, só nos filmes se conseguia usar um fuzil daquela forma. Ryan havia tentado com um M-16 em Quantico. Sentira-se o próprio John Wayne, mas não dava para acertar nada. Os sargentos de artilharia tinham explicado à turma na escola de formação que as miras existiam por uma razão. Não era como Wyatt Earp na televisão... sacar e atirar. Não funcionava, a não ser que a outra mão estivesse no ombro da vítima. As miras indicam para onde a arma aponta, porque a bala do fuzil tem diâmetro inferior a um centímetro e, na verdade, o alvo é desse mesmo tamanho. Um simples soluço seria suficiente para errar. E, sob tensão, a mira fica ainda pior... a não ser que se esteja acostumado a matar pessoas. Como Boris Strokov, coronel da Dirjavna Sugurnost. E se ele for um daqueles que não se abalam por nada, como Audie Murphy, da Terceira Divisão de Infantaria na Segunda Guerra? Quantas pessoas daquele tipo existiam? Murphy tinha sido um entre oito milhões de soldados americanos, e ninguém tinha visto aquele seu instinto mortal até entrar em combate. O próprio Murphy provavelmente nunca se orgulhara de ser tão diferente dos outros.
Strokov é um profissional, lembrou Ryan mais uma vez. Portanto, vai agir como um profissional. Planejará cada detalhe, especialmente da fuga.
— Você deve ser Ryan — disse baixo uma voz de sotaque britânico.
Jack se virou e deu de cara com um homem pálido de cabelo ruivo.
— Quem é você?
— Mick King — respondeu ele. — Sir Basil mandou quatro de nós. Avaliando a área?
— Sou tão óbvio assim? — perguntou Ryan, subitamente preocupado.
— Também podia ser um estudante de arquitetura — minimizou King. — O que acha?
— Acredito que o atirador ficaria bem aqui e tentaria fugir por ali — disse Jack, indicando o caminho.
King olhou ao redor antes de falar.
— É uma alternativa arriscada, por mais planejada que seja, com todas as pessoas que estarão aqui. Mas, sim, parece ser a opção mais provável — concordou o espião.
— Se eu fosse fazer isso, usaria um fuzil, lá de cima. Precisamos de alguém posicionado para cuidar dessa possibilidade.
— Certo. Vou colocar John Sparrow lá em cima. Aquele de cabelo curto do outro lado. Ele trouxe um monte de câmeras.
— Mais um homem vigiando a rua naquela direção. Nosso amigo provavelmente terá um carro para sair da cidade, e seria ali que eu o estacionaria.
— Um pouco conveniente demais, não acha?
— Ei, sou ex-fuzileiro, não mestre em xadrez — respondeu Ryan. Apesar disso, era bom ter alguém para dar uma segunda opinião. Havia inúmeras opções táticas, e cada um fazia uma avaliação distinta. Os búlgaros também podiam seguir um manual totalmente diferente.
— É uma missão muito complicada. É melhor torcermos para o tal Strokov não aparecer. Ah, ia me esquecendo — disse King, entregando um envelope a Ryan.
Estava cheio de fotos de alta qualidade em formato 8x10.
— Nick Thompson me contou que seus olhos parecem não ter vida — disse Ryan, observando uma das fotos.
— Ele parece um sujeito bem frio, não?
— Quando viermos aqui, na quarta, usaremos armas?
— Eu certamente trarei a minha — respondeu King. — Uma Browning 9mm. Deve haver algumas na embaixada. Sei que consegue atirar bem sob pressão, Sir John — disse ele, demonstrando respeito.
— Não quer dizer que eu goste de fazer isso, amigo.
A melhor distância para qualquer pistola era o contato direto, ou seja, encostar a arma no corpo do inimigo. Ficava difícil errar e reduzia o barulho. E também era uma boa maneira de convencer a outra pessoa a não fazer nada impensado.
Pelas duas horas seguintes, os cinco homens caminharam pela praça. E sempre acabavam retornando ao mesmo lugar.
— Não temos como cobrir a área toda. Não sem pelo menos uma centena de homens — disse King, finalmente. — E quando não se pode defender todos os pontos, uma alternativa é escolher apenas um e defendê-lo bem.
Jack assentiu, lembrando-se de quando Napoleão ordenara a seus generais que preparassem um plano para proteger a França de invasões. Depois que um oficial experiente havia espalhado suas tropas uniformemente pelas fronteiras, ele perguntou duramente se o sujeito estava tentando se defender de contrabandistas. Sim, se não fosse possível ser forte em todos os lugares, então era preciso reforçar a presença em algum lugar — e rezar para ter escolhido corretamente. A chave, como sempre, era se colocar na posição do inimigo. Aprendera a agir exatamente daquele modo como analista de inteligência. Pensar como o adversário para barrá-lo. Parecia tão eficaz e simples teoricamente. Na prática, porém, era bem diferente.
Encontraram Tom Sharp entrando na basílica. Foram todos a um restaurante para almoçar e conversar sobre o assunto.
— Sir John está certo — disse King. — A melhor posição é do lado esquerdo. Temos fotos do cara. Colocaremos você, John — apontou para Sparrow — no alto das colunas, com suas câmeras. Sua função será observar a multidão, tentar localizar o desgraçado e passar as informações pelo rádio.
Sparrow consentiu, mas sua expressão revelava o que achava do trabalho. As cervejas chegaram.
— Mick, você estava certo desde o início — disse Sparrow. — É um trabalho ingrato. Mesmo com o maldito regimento inteiro da SAS aqui não seria suficiente.
O 22° Special Air Service Regiment, na verdade, correspondia a apenas uma ou duas companhias em tamanho, embora contasse com soldados brilhantes.
— Nosso papel não é questionar as razões — disse Sharp a todos os presentes. — Basta termos ciência de que Basil sabe o que faz.
As risadas ao redor da mesa dispensaram o resto da história.
— E quanto aos rádios? — perguntou Jack?
— Estão a caminho, pelo transporte — respondeu Sharp. — São pequenos, cabem no bolso. Têm fones de ouvido, mas não microfones, infelizmente.
— Merda — reagiu Ryan. O Serviço Secreto tinha tudo de que precisavam para aquela missão, mas não se podia simplesmente ligar e pedir uma entrega. — Quem cuida da segurança da Rainha?
— Acho que a Polícia Metropolitana. Por quê?
— Microfones de lapela — respondeu Ryan. — É o que nosso Serviço Secreto usa nos Estados Unidos.
— Posso perguntar — disse Sharp. — Boa ideia, Jack. Eles podem ter o que precisamos.
— Eles têm que colaborar conosco — comentou Mick King.
— Vou cuidar disso à tarde — assegurou Sharp.
É, seremos os caras mais bem equipados da história a falhar numa missão, pensou Ryan.
— Eles chamam isso de cerveja? — perguntou Sparrow, depois do primeiro gole.
— É melhor do que aquele mijo enlatado americano — disse outro dos recém-chegados.
Jack não caiu na provocação. Até porque ia-se à Itália pelo vinho, não pela cerveja.
— O que sabemos de Strokov? — perguntou Ryan.
— Eles me enviaram a ficha policial dele por fax — disse Sharp. — Li hoje de manhã. Tem l,80m e pesa quase cem quilos. Claro que gosta de comer muito. Logo, não é um atleta... certamente não é um velocista. Cabelos castanhos, volumosos. Tem talento para idiomas. Fala inglês com sotaque, mas supostamente domina francês e italiano como nativo. É considerado especialista em armas pequenas. Atua nesse negócio há vinte anos... tem quarenta e três anos ou coisa assim. Foi escolhido para a unidade especial de assassinatos da DS há uns quinze anos. Há pelo menos oito mortes atribuídas a ele, possivelmente mais... nossas informações quanto a isso não são muito sólidas.
— Parece ser um sujeito encantador — disse Sparrow. Ele pegou uma das fotos.
— Não será muito difícil localizá-lo. É melhor fazer algumas cópias reduzidas, para levarmos no bolso.
— Pode deixar — prometeu Sharp.
A embaixada tinha um pequeno laboratório fotográfico, basicamente para uso do chefe do SIS em Roma. Ryan observou as pessoas ao redor da mesa. Era bom estar cercado por profissionais. Como um bom grupo de fuzileiros, diante da chance de agir eles provavelmente não poriam tudo a perder. Não era um grande conforto, mas era algo.
— E quanto às armas? — perguntou Ryan, em seguida.
— Todas as Brownings 9mm de que precisarmos — disse Sharp. Ryan queria perguntar se tinham munição de ponta oca, porém eles só deviam dispor de balas aprovadas pelos militares. Aquela besteira prevista na Convenção de Genebra. A munição Parabellum de 9 mm era considerada poderosa pelos europeus, mas não se comparava à Colt 45 com que havia sido treinado. Então, por que ele próprio tinha uma Browning 9 mm? A diferença era que a sua estava carregada com balas Federal 147-grain de ponta oca. As únicas que o FBI considerava úteis para aquele tipo de arma.
Funcionavam tanto para penetração quanto para se expandir no interior do corpo e fazê-lo sangrar de imediato.
— É bom que ele esteja bem perto — disse Mick King. — Não uso uma dessas há anos.
Jack lembrou que a Inglaterra não tinha a mesma postura dos Estados Unidos em relação a armas. Nem mesmo nos serviços de segurança. Não podia esquecer que James Bond era apenas um personagem de filme. Embora não fosse perito, Ryan devia ser o melhor atirador presente. As pistolas que Sharp arrumaria eram versões militares, com mira invisível e empunhadura de péssima qualidade. A arma de Ryan tinha empunhadura Pachmayr, que se encaixava tão bem em sua mão que parecia uma luva feita sob medida. Nada seria fácil naquela missão.
— Certo, John. Você fica em cima da colunata. Descubra como chegar lá e esteja a postos na manhã de quarta, desde cedo.
— Entendido. — As credenciais de imprensa facilitariam as coisas. — Também vou conferir o tempo para todas as possibilidades.
— Ótimo — respondeu Sharp. — Vamos passar a tarde avaliando o local mais um pouco. Procurar algo que tenhamos deixado escapar. Acho que devemos colocar um homem na rua lateral para tentar identificar nosso amigo Strokov assim que ele aparecer. Se conseguirmos, seguimos o sujeito desde o início.
— Não vamos interceptá-lo? — perguntou Ryan.
— É melhor deixá-lo se aproximar — disse Sharp. — Seremos em maior número, o que reduz a chance de fuga. Se estivermos na cola, ele não pode lazer nada, ou pode?
Bem, vamos pensar nisso.
— Ele vai ser tão previsível?
— Ele já esteve aqui, com certeza. Quem sabe podemos até avistá-lo hoje ou amanhã?
— Eu não apostaria nisso — disse Jack.
— Jogamos com as cartas que temos nas mãos, Sir John — disse King. — O resto é torcer para termos sorte.
Ryan concluiu que não havia como argumentar com aquilo.
— Se eu estivesse planejando essa operação, tentaria mantê-la o mais simples possível.
A preparação mais importante será bem aqui. — Sharp tocou um lado da cabeça. — Ele também estará um pouco nervoso, não importa quanta experiência tenha no ramo. Sim, é um canalha esperto, mas não é o Super-Homem. A chave do sucesso é a surpresa. Bem, ele não conta mais com isso, não é mesmo? E perder o elemento surpresa é o pior pesadelo de um agente de campo. Tudo começa a se desfazer, como um relógio quebrado. Lembre-se de uma coisa: se ele notar algo que não espera, provavelmente se afastará e deixará para outra oportunidade. Da parte dele, não existe um prazo para essa missão.
— Acha mesmo?
Ryan não estava tão certo.
— Sim, acho. Se houvesse, do ponto de vista operacional, já teriam executado a missão, e o papa já estaria conversando pessoalmente com Deus. Pelo que ouvi de Londres, a missão vem sendo planejada há mais de seis semanas. Então, ele está claramente fazendo tudo em seu ritmo. Ficarei surpreso se acontecer depois de amanhã, mas precisamos estar prontos.
— Queria ter a mesma confiança que você.
— Sir John, agentes de campo agem como agentes de campo, não importa a nacionalidade — disse Sharp, com convicção. — Nossa missão é difícil, sem dúvida, mas falamos a mesma língua dele. Se esta fosse uma missão urgente, já teria sido cumprida. Certo, cavalheiros?
Todos concordaram, com exceção do americano.
— E se estivermos deixando algo escapar? — questionou Ryan.
— É uma possibilidade — admitiu Sharp. — Mas é uma possibilidade que temos que aceitar e, ao mesmo tempo, descartar. Só temos essas informações, e devemos fazer nosso planejamento com base nelas.
— Não há muita escolha, não acha, Sir John? — perguntou Sparrow. — Só temos isso.
— É verdade — reconheceu Ryan, visivelmente contrariado. Ocorrera-lhe repentinamente que outras coisas podiam acontecer. E se houvesse uma distração? E se alguém soltasse fogos de artifício, para que as pessoas se virassem na direção do barulho e ignorassem a verdadeira ação? Esta, sim, era uma possibilidade real. Maldição.
— QUE HISTÓRIA É ESSA DE RYAN? — perguntou Ritter, entrando no escritório do juiz Moore.
— Basil achou que, como BEATRIX é uma operação da CIA desde o início, faria sentido enviar um dos nossos para avaliar a situação. Não vejo como isso possa atrapalhar — disse Moore.
— Para quem Ryan pensa que está trabalhando?
— Bob, por que não se acalma? No que a presença dele pode ser prejudicial?
— Droga, Arthur...
— Acalme-se, Robert — disse Moore, com a voz de um juiz acostumado a ter as coisas a sua maneira.
— Arthur — disse Ritter, acalmando-se um pouco —, não é lugar para ele.
— Não vejo razão para objeções. Nenhum de nós acredita que vá acontecer algo, não é mesmo?
— Bem... não, acho que não — reconheceu o DDO.
— Então ele só está ampliando seus horizontes. E, se aprender alguma coisa, pode-se tornar um analista melhor, certo?
— Talvez, mas não gosto de ter um funcionário de escritório brincando de agente de campo. Ele não foi treinado para isso.
— Bob, ele foi fuzileiro — lembrou Moore. E o Corpo de Fuzileiros Navais tinha seus próprios méritos, diferentes dos da CIA. — Ele não vai se mijar, nem nada parecido, concorda?
— Não, creio que não.
— Ele apenas observará algo que não acontecerá. O contato com alguns oficiais de campo não fará mal a sua formação.
— São britânicos, não são nossa gente — opôs-se Ritter.
— São os mesmos caras que tiraram o Coelho da Rússia para nós.
— Certo, Arthur, vou dar o braço a torcer nesse caso.
— Bob, você tem acessos de raiva impressionantes. Por que não usar essa disposição para algo mais importante?
— Certo, juiz, mas eu comando a Divisão de Operações. Quer que eu envolva Rick Nolfi?
— Acha que é necessário?
— Acredito que não.
— Então vamos deixar os britânicos com essa minioperação e ficar calmos aqui em Langley até que possamos conversar com o Coelho e avaliar a gravidade da ameaça ao papa, certo?
— Sim, Arthur.
E, assim, o diretor de Operações da CIA retornou à sua sala.
O JANTAR CORREU BEM. Os britânicos eram boa companhia, principalmente quando a conversa se afastava da missão. Todos eram casados. Três tinham filhos, e um esperava o primeiro para breve.
— Você tem dois, não é mesmo? — perguntou Mick King.
— Sim, e o segundo nasceu em uma noite bem movimentada.
— Bota movimentada nisso! — comentou Ray Stones, um dos recém-chegados, dando uma risada. — Como sua esposa encarou aquilo?
— Até que bem depois que o pequeno Jack nasceu, mas o resto da noite foi uma desgraça.
— Acredito — disse King.
— Mas, então, quem nos contou que os búlgaros querem matar o papa? — perguntou Sparrow.
— É a KGB que quer o pescoço dele — respondeu Jack. — Conseguimos tirar um desertor de lá. Está em local seguro e cantando como a garota em Aída. É a informação mais importante até aqui.
— É confiável? — questionou King.
— Sim, acreditamos que seja puro ouro. Sir Basil também acha. Foi por isso que mandou vocês para cá — explicou Jack, para o caso de ainda não terem entendido. — Conheci o Coelho pessoalmente, e acho que é confiável.
— É uma operação da CIA? — perguntou Sharp.
Jack fez um gesto afirmativo: — Correto. Tivemos um problema operacional, e vocês foram gentis o bastante para nos ajudar. Não posso contar muito mais do que isso, desculpe.
Todos entenderam. Nenhum deles queria se expor por indiscrições sobre uma operação clandestina.
— Isso deve ser ideia do próprio Andropov... o papa está criando dificuldades na Polônia, não é?
— Aparentemente, sim. Talvez ele comande mais divisões do que os russos gostariam.
— Mesmo assim, parece uma medida um pouco extrema... como o mundo reagiria ao assassinato de Sua Santidade? — perguntou King.
— Claro que o medo disso é menor do que de um colapso político completo na Polônia, Nick — respondeu Stones. — E eles temem que o papa possa provocar esse colapso. A espada e o espírito, como disse Napoleão, Mick. No fim, o espírito sempre acaba vencendo.
— Sim, entendo, e aqui estamos nós, no epicentro do reino do espírito.
— É minha primeira vez aqui — disse Stones. — É muito impressionante. Tenho que trazer o resto da família para conhecer.
— E eles entendem mesmo de comida e vinho — comentou Sparrow, degustando sua vitela. — O que acha da polícia local?
— Muito boa, na verdade — disse Sharp. — É uma pena que não possamos pedir ajuda. Eles conhecem o território; afinal, é a casa deles.
Mas esses caras são os profissionais de Dover, pensou Ryan, com uma ponta de esperança. O único problema: não eram em número suficiente.
— Tom, você entrou falou com Londres sobre os rádios?
— Ah, sim, Jack. Vão nos mandar dez. Com fones de ouvido e microfones de lapela. Banda lateral, parecidos com os do Exército. Não sei se são codificados, mas a segurança é boa e tomaremos precauções. Ao menos, podemos nos comunicar com clareza. Vamos praticar com eles amanhã à tarde.
— E na quarta-feira?
— Chegaremos por volta das nove da manhã, ocupamos nossas respectivas áreas de vigilância e circulamos enquanto a multidão se forma.
— Eles não me treinaram para isso nos marines — pensou Ryan, em voz alta.
— Sir John — respondeu Mick King —, ninguém aqui foi treinado para isso. Sim, somos todos agentes de inteligência experientes, mas esse trabalho é mais indicado para o pessoal dos serviços de segurança, como a guarda que protege Sua Majestade e a primeira-ministra, ou os caras do Serviço Secreto. Jeito infernal de ganhar a vida, aquele.
— Sim, Mick, acho que nosso respeito por eles vai aumentar depois disso — comentou Ray Stones, recebendo a concordância de todos na mesa.
— John — Ryan se virou para Sparrow —, você está encarregado da tarefa mais importante: localizar o filho da mãe para nós.
— Moleza — respondeu Sparrow. — Tudo que tenho a fazer é examinar mais de cinco mil rostos, atrás de um que pode estar lá ou não. Moleza — repetiu o espião.
— Que equipamento vai usar?
— Tenho três câmeras Nikon e uma grande variedade de lentes. Talvez também compre um binóculo de 70x50 amanhã. Espero encontrar um bom local para me posicionar. A altura do parapeito me preocupa. Há uma área cega de uns trinta metros, a partir da base das colunas. Isso limita minhas possibilidades, companheiros.
— Não temos muita escolha — disse Jack. — Do nível do chão é que não dá para ver nada mesmo.
— Nosso principal problema — concordou Sparrow. — A melhor opção seria ter dois homens. Um, ou mais de um, de cada lado, com binóculos. Mas não temos pessoal e precisaríamos de permissão da segurança do papa, o que me parece totalmente fora de consideração.
— Contar com a colaboração deles seria útil, mas...
— Mas não podemos permitir que o mundo inteiro saiba do Coelho. Sim, eu sei. A vida do papa é secundária diante disso. Não é fantástico? — resmungou Ryan.
— Sir John, quanto vale a segurança do seu país e do nosso também? — perguntou King, retoricamente.
— Mais do que a vida dele — respondeu Ryan. — Sei disso, o que não quer dizer que a ideia me agrade.
— Algum papa já foi assassinado? — perguntou Sharp. Ninguém sabia a resposta.
— Houve uma tentativa. A Guarda Suíça formou uma muralha para garantir a retirada dele. A maioria foi ferida, mas o papa escapou vivo — contou Ryan, lembrando-se de uma história em quadrinhos que lera em St. Matthew's, na... quarta série?
— Fico imaginando qual é o nível desses suíços — disse Stones.
— Eles atendem às necessidades. São provavelmente muito motivados. É uma questão de treino — comentou Sharp. — Essa é a diferença entre um civil e um soldado: treino. Os caras à paisana podem ser bem orientados, mas, se tiverem armas, terão permissão para usá-las? Afinal, trabalham para uma Igreja. Provavelmente não são treinados para atirar em pessoas sem pensar duas vezes.
— Vocês tiveram o caso daquele sujeito que saiu da multidão e deu um tiro com uma pistola de largada na rainha... a caminho do Parlamento, se não me engano. Havia um oficial de cavalaria bem ali. Fiquei surpreso que ele não tivesse cortado o sujeito ao meio com o sabre... Seria minha reação instintiva, mas não foi a dele.
— Era uma espada de desfile, apenas para ocasiões como aquela. Não serve nem para cortar um pedaço de manteiga — explicou Sparrow. — Por outro lado, ele quase passou por cima do cara com o cavalo.
— O Serviço Secreto o teria tirado de ação na hora. Certo, a arma estava carregada com festim, mas parecia ser de verdade e, sem dúvida, soava como. Sua Majestade manteve a cabeça bem apertada entre os braços. Eu mesmo teria me borrado todo.
— Estou certo de que Sua Majestade fez uso das dependências adequadas no Palácio de Westminster. Ela tem um banheiro privativo lá — contou King.
— Naquele caso era um sujeito perturbado. Deve estar cortando bonequinhos de papel numa instituição para loucos hoje em dia — disse Sharp. No entanto, como todos os compatriotas britânicos, seu coração havia parado quando assistia ao incidente pela TV. E também ficara surpreso ao descobrir que o lunático tinha sobrevivido. Se um dos sentinelas da Torre estivesse a postos com sua lança de guerra cerimonial, certamente teria sido cravado no asfalto, como uma borboleta em caixinha de coleção. Talvez Deus cuidasse mesmo dos loucos, bêbados e criancinhas. — Então, se Strokov aparecer e realmente atirar, você acha que os italianos acabam com ele?
— Espero que sim — disse King.
Não seria espetacular?, pensou Jack. Os profissionais não são capazes de proteger o papa, mas os garçons e vendedores locais espancam o assassino até a morte. Ficaria ótimo no noticiário da NBC.
EM MANCHESTER, O COELHO E SUA FAMÍLIA encerravam outro jantar delicioso preparado pela Sra. Thompson.
— Como um trabalhador comum costuma comer na Inglaterra? — perguntou Zaitzev.
— Não tão bem assim — admitiu Kingshot. Ele, com certeza, não comia. — Mas tentamos tratar bem nossos convidados, Oleg.
— O que contei sobre o MINISTRO é suficiente? — perguntou. — É tudo que sei.
O serviço de segurança havia exigido muito da memória dele naquela tarde, repassando cada acontecimento pelo menos cinco vezes.
— Você ajudou muito, Oleg Ivanovich. Obrigado.
De fato, ele havia fornecido muito material ao MI5. Normalmente, os agentes infiltrados eram descobertos através das informações que transferiam. Um número limitado de pessoas tinha acesso a tudo aquilo. O pessoal do "Cinco" manteria a vigilância até que um deles fizesse algo difícil de explicar. Depois, verificaria quem ia buscar o pacote no ponto de entrega, para obter o bônus de identificar o oficial de controle da KGB. Dois coelhos com uma cajadada. Ou até mais, porque o oficial seria responsável por mais de um agente, e as descobertas podiam se ramificar como os galhos de uma árvore. Em seguida, o MI5 tentaria deter um agente secundário, antes de ir atrás do verdadeiro alvo. Desta maneira, a KGB não saberia como seu agente principal havia sido exposto, o que protegeria a identidade da fonte primária, Oleg Zaitzev. O negócio da contrainteligência era tão barroco quanto as intrigas das cortes medievais. Os participantes adoravam e odiavam a complexidade, mas aquilo tornava a captura de um inimigo muito mais recompensadora.
— E quanto ao papa?
— Como já disse, temos uma equipe em Roma avaliando a situação — respondeu Kingshot. — Não há muito a dizer... na verdade, não há muito a fazer, mas estamos agindo com base em suas informações, Oleg.
— Isso é bom — disse o desertor, torcendo para que não tivesse feito aquilo tudo à toa.
Ele não havia pensado em entregar agentes soviéticos aos serviços ocidentais. Faria aquilo para garantir os privilégios em sua nova terra, claro, e para receber dinheiro por ter se tornado um traidor da Mãe-Rússia. Mas sua principal preocupação era salvar aquela vida.
NA MANHÃ DE TERÇA, Ryan dormiu mais do que o normal, levantando-se pouco depois das oito. Teria que deixar o restante para o dia seguinte. Com certeza, precisaria.
Sharp e o resto da equipe já estavam de pé.
— Alguma novidade? — perguntou Jack, entrando na sala de jantar.
— Recebemos os rádios — informou Sharp. Havia um em cada lugar na mesa. — São excelentes, do mesmo tipo usado pelo Serviço Secreto. Do mesmo fabricante, Motorola. Marca nova, e são encriptados. Microfones de lapela e fones de ouvido.
Ryan deu uma olhada no equipamento. O fone era de plástico transparente, enrolado como o fio de um telefone, quase invisível. Finalmente uma boa notícia.
— Baterias?
— Novas. E há dois jogos de reserva para cada um. É bom saber que cuidam bem de Sua Majestade.
— Certo, ninguém pode nos interceptar, então estamos livres para trocar informações — disse Ryan. Era outra boa notícia, contra uma pilha inteira de más. — Quais são os planos para hoje?
— Voltar à praça, fazer mais avaliações e torcer para nosso amigo Strokov aparecer.
— E se isso acontecer? — perguntou Ryan.
— Seguimos o sujeito até onde estiver hospedado e verificamos se há como conversar com ele à noite.
— Se chegarmos a esse ponto, vamos apenas conversar com ele?
— O que acha, Sir John? — respondeu Sharp, friamente.
Você quer mesmo chegar a esse ponto, Sr. Sharp?, perguntou Jack, apenas a si mesmo. Bem, o desgraçado era um assassino em série. Por mais civilizados que os britânicos fossem, por baixo das boas maneiras e da inigualável hospitalidade, eles sabiam como tratar de negócios. Embora Jack não estivesse certo de que conseguiria chegar a medidas extremas, aqueles caras não pareciam compartilhar sua inibição. Ryan concluiu que podia viver com aquilo, desde que não lhe pedissem para apertar o gatilho. Além disso, antes eles provavelmente ofereciam uma chance de trocar de lado ao mercenário. Era melhor ter um desertor falante do que um cadáver silencioso.
— Isso revelaria algo?
Sharp balançou a cabeça negativamente.
— Não. Ele matou Georgiy Markov, está lembrado? Podemos sempre alegar que é um caso de aplicar a justiça de Sua Majestade a alguém que precisava aprender uma lição sobre ela.
— Jack, nós não aprovamos assassinatos — disse John Sparrow. — Sem dúvida, seria muito melhor que ele respondesse por seus crimes.
— Certo.
Ryan podia viver com aquilo também. Tinha certeza de que seu pai aprovaria. Claro.
O GRUPO GASTOU O RESTO DO DIA se passando por turistas e testando os rádios. Os equipamentos funcionavam dentro e fora da basílica, e, melhor ainda, transmitiam do interior da imensa estrutura de pedra para fora. Cada homem usaria seu próprio nome como identificador. Fazia mais sentido do que escolher números ou códigos que todos teriam que lembrar — um fator complicador adicional no caso de a sujeira realmente vir à tona. Durante todo o tempo, eles procuraram o rosto de Boris Strokov, esperando um milagre e se lembrando que eles aconteciam de vez em quando. As pessoas acertavam na loteria — havia uma na Itália — e nas apostas semanais no futebol. Portanto, era possível; apenas um pouco improvável, como ficou comprovado ao fim do dia. Eles também não identificaram um lugar melhor ou mais provável de onde poderia partir um tiro na direção de um veículo se deslocando lentamente. Pareceu a todos que as primeiras impressões de Ryan sobre o cenário tático do lugar estavam corretas. Jack se sentiu bem com aquilo até perceber que, se desse errado, a culpa seria dele, e não dos outros.
— Sabe, mais da metade da multidão estará bem aqui no meio — disse Ryan a Mick King.
Sharp estava cuidando de alguns compromissos como chefe adjunto da missão diplomática em nome do embaixador britânico.
— É bom para nós, Jack. Só um maluco faria um disparo dali, a não ser que tivesse alguém para teletransportá-lo até a Enterprise. Não há rota de fuga daquele ponto.
— É verdade — concordou Jack. — E quanto ao interior, alguma chance de pegar o papa no caminho até o carro?
— É possível, mas isso significaria que Strokov ou alguém a seu serviço já estaria na administração papal, livre para realizar a execução quando quisesse. Por alguma razão, acho que infiltrar-se nessa organização seria um pouco difícil. Exigiria a manutenção de um disfarce psicológico complicado por um longo período. Não, eu descartaria essa possibilidade.
— Espero que esteja certo, cara.
— Eu também, Jack.
Todos foram embora às quatro, cada um pegando um táxi para as proximidades da embaixada britânica e percorrendo o resto do caminho a pé.
O jantar foi silencioso. Todos tinham suas preocupações e torciam para que qualquer plano que estivesse na mente do coronel Strokov, da DS, não fosse posto em prática naquela semana. Assim, poderiam voar de volta a Londres na noite seguinte, sem precisar passar pela experiência prevista. Ryan havia percebido uma coisa: por mais vividos que fossem, eles não estavam mais confortáveis do que ele naquela missão. Era bom não se sentir sozinho em sua ansiedade. Ou estaria apenas se regozijando com o sofrimento alheio? Teriam as tropas se sentido assim na noite anterior ao Dia D? Não, desta vez não havia o exército alemão à espera. Sua missão era evitar um possível assassinato, e eles mesmos não corriam perigo. Quem estava com a vida em risco era uma pessoa que ou não sabia ou não se importava com o perigo; por isso, eles haviam assumido a responsabilidade por sua vida. Mick King tivera a impressão certa no dia anterior. Era uma missão ingrata.
— MAIS MATERIAL VINDO DO COELHO — relatou Moore, na tradicional reunião noturna.
— Do que se trata?
— Basil diz que há um agente muito bem infiltrado no Foreign Office britânico e que o Coelho forneceu informações suficientes para reduzir as possibilidades a quatro indivíduos. O "Cinco" já está monitorando os suspeitos. Também deu mais detalhes sobre nosso amigo CASSIUS. Trabalha para os russos há mais de dez anos. Com certeza, é um assessor experiente de algum senador da Comissão de Inteligência... parece ser um conselheiro político. Então provavelmente é alguém bem informado e com acesso a informações. Isso reduz o total de pessoas a serem investigadas para dezoito.
— O que ele está passando para eles, Arthur? — perguntou Greer.
— Parece que tudo que contamos ao Congresso sobre operações da KGB chega à Praça Dzerzhinskiy em menos de uma semana.
— Quero botar as mãos nesse filho da mãe — disse Ritter. — Se tudo isso for verdade, já perdemos agentes por causa dele.
Apesar de todos os defeitos, Bob Ritter cuidava de seus agentes como um urso pardo cuidava dos filhotes.
— Bem, ele faz isso há tanto tempo que já deve se sentir bem seguro em seu ambiente.
— O Coelho também falou em alguém na Marinha... NETUNO, não é? — lembrou Greer.
— Nenhuma novidade quanto a isso, mas vamos perguntar pessoalmente. Esse aí pode ser qualquer pessoa. Que cuidados a Marinha toma com seu equipamento de encriptação?
Greer deu de ombros: — Todo navio tem uma equipe de comunicações formada por suboficiais e um oficial. Eles devem destruir as folhas de ajuste e as placas de circuito diariamente e jogar tudo no mar. E em todas as direções. Em tese, duas pessoas têm que acompanhar o processo. E todas elas podem acessar...
— Mas apenas pessoas com autorização de acesso podem nos ferrar — lembrou Ritter.
— Assim como só as pessoas a quem você confia seu dinheiro podem roubá-lo — observou o juiz Moore. Ele havia acompanhado diversos casos criminais com aquela história. — Esse é o problema. Imagine como Ivan se sentirá se descobrir sobre o Coelho.
— Isso é diferente — argumentou Ritter.
— Muito bem, Bob — reagiu o DCI, dando uma risada. — Minha mulher me diz isso o tempo todo. Deve ser o grito de guerra das mulheres do mundo inteiro: isso é diferente. Lembre-se de que o outro lado também acha que representa as forças da verdade e da beleza.
— Sim, juiz, mas nós vamos castigá-los.
Moore refletiu que era bom ver tanta confiança, especialmente em alguém como Bob Ritter.
— Ainda está pensando na MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE, Robert?
— Estou concatenando algumas ideias. Me dê algumas semanas.
— Muito bem.
AINDA ERA UMA DA MADRUGADA em Washington quando Ryan acordou na Itália.
Uma ducha ajudou-o a despertar, e a lâmina de barbear deixou seu rosto mais macio. Às sete e meia, estava a caminho do café da manhã. A Sra. Sharp preparou café ao estilo italiano. Para sua surpresa, o gosto era tão ruim que parecia que alguém tinha virado a lata de lixo no bule. Jack atribuiu aquilo às diferenças entre as preferências dos povos. Os ovos e o bacon inglês estavam gostosos, assim como as torradas amanteigadas.
Alguém havia deduzido que homens a caminho da batalha precisavam estar de estômago cheio. Era uma pena que os ingleses não conhecessem a batata rosti, um prato pouquíssimo saudável para o café da manhã, mas que era excelente para encher a barriga.
— Prontos? — perguntou Sharp.
— Creio que todos precisamos estar. Cadê o resto da equipe?
— Nos encontraremos diante da basílica em 35 minutos. — De carro eram cinco minutos. — Aqui está um amigo para acompanhá-lo.
Ele lhe entregou uma pistola. Ryan pegou a arma e puxou o ferrolho. Felizmente estava vazio.
— Pode ser que também precise disso — disse Sharp, entregando-lhe dois carregadores.
Com certeza, cartuchos comuns, que atravessariam o alvo direto, deixando apenas um buraco de nove milímetros na entrada e outro na saída. Os europeus, porém, achavam que era possível derrubar um elefante com aquilo. Claro, pensou Jack, desejando ter uma Colt 45 M1911A1, que seria muito mais adequada para derrubar um homem e mantê-lo no chão até a chegada da ambulância. No entanto, embora aprovado nos testes, ele nunca aprendera a dominar aquela arma. Ryan sabia atirar vem com um rifle — mas qualquer um sabia atirar com um rifle. Sharp não forneceu um coldre. A Browning Hi-Power teria de ficar na cintura, e ele seria obrigado a manter o paletó abotoado para escondê-la. Um aspecto negativo de carregar uma pistola era seu peso. E, sem um coldre apropriado, ele precisaria ficar ajeitando a arma, para que não caísse ou deslizasse por dentro da calça. Não seria nada agradável. Sentar também seria um sacrifício, mas não haveria muitas oportunidades naquele dia. O carregador reserva foi guardado no bolso do paletó. Ele puxou o ferrolho, ajustou a trava e colocou o primeiro carregador no cabo; depois baixou a trava para soltar o ferrolho. A arma estava carregada e pronta para atirar. Depois de pensar um pouco, decidiu travar o martelo. Um só cuidado devia bastar, mas Ryan não foi treinado para confiar em equipamentos de segurança. Para disparar a arma, ele teria que se lembrar de armar o martelo, algo que felizmente esquecera de fazer com Sean Miller.
Naquele caso, porém, se fosse necessário, não se esqueceria.
— Hora de zarpar? — perguntou Jack.
— Isso quer dizer partir?
— Sim, como um navio. É maneira de falar.
— O rádio — apontou Sharp. — Fica preso no cinto, acima do bolso de trás. Botão para ligar, o fone se ajusta ao ouvido e o microfone vai no colarinho. Equipamento interessante.
— Certo. — Ryan pôs tudo no lugar, mas deixou o rádio desligado. Guardou as baterias de reserva no bolso esquerdo do paletó. Embora não achasse que fosse precisar delas, não custava nada se precaver. Esticou o braço para alcançar o botão de ligar e desligar e testou o rádio. — Qual é o alcance?
— O manual fala em cinco quilômetros. É mais do que precisamos. Pronto?
— Sim.
Jack se levantou, ajeitou a pistola no lado esquerdo do cinto e seguiu Sharp até o carro.
O trânsito estava incrivelmente leve naquela manhã. Pelo que vira até ali, os motoristas italianos não eram os maníacos selvagens de que se falava. Mas as pessoas na rua àquela hora estavam a caminho do trabalho, fosse em uma corretora de imóveis ou em um depósito. Os turistas sempre se esqueciam de que as cidades que visitavam eram cidades comuns, e não um parque de diversões criado somente para sua diversão pessoal. E, naquela manhã, Roma certamente não estava ali para qualquer coisa parecida com diversão, lembrou Jack. Sharp parou o Bentley oficial perto de onde esperavam que Strokov estacionasse. Havia outros carros no lugar, de pessoas que trabalhavam nas poucas lojas, ou talvez de compradores adiantados que queriam deixar tudo pronto antes do caos que ocorria toda quarta-feira.
Em todo caso, o caríssimo carro britânico tinha placas diplomáticas, e ninguém criaria caso. Jack seguiu Sharp em direção à praça e esticou o braço direito para ligar o rádio sem expor a pistola que levava na cintura.
— Alô — disse no microfone de lapela. — Ryan falando. Quem mais está na rede?
— Sparrow posicionado na colunata — respondeu uma voz, imediatamente.
— King a postos.
— Ray Stones a postos.
— Parker a postos — informou Phil Parker, o último a chegar de Londres, posicionado na rua lateral.
— Tom Sharp aqui ao lado de Ryan. Faremos uma checagem via rádio a cada quinze minutos. Informem imediatamente qualquer coisa diferente. Desligo. — Ele se virou para Ryan. — Por enquanto, tudo bem.
— Ótimo.
Ele verificou o relógio. Faltavam horas até o papa aparecer. O que estaria fazendo agora? Diziam que acordava muito cedo. Sem dúvida, o primeiro compromisso importante do dia era rezar a missa, como qualquer padre católico do mundo. Devia ser a parte mais importante de sua rotina matutina, algo que o lembrava da sua essência — um padre comprometido com Deus. Era uma realidade que devia entender e celebrar em sua mente desde a resistência à opressão nazista e comunista, por quarenta anos, servindo ao seu rebanho. Mas, agora, seu rebanho, sua paróquia, abrangia o mundo inteiro, e sua responsabilidade também.
Jack se lembrou do tempo passado entre os fuzileiros navais. Nas travessias pelo Atlântico a bordo de um navio para pouso de helicópteros — sem saber que uma delas o levaria ao acidente que quase lhe tiraria a vida —, havia missa aos domingos, e, naquele momento, a flâmula da Igreja era içada no mastro. Ela se agitava por cima da bandeira nacional. Era a maneira de a Marinha americana reconhecer que havia uma lealdade superior à existente entre um homem e seu país. Era a lealdade a Deus — o único poder superior ao dos Estados Unidos da América. E seu país reconhecia aquilo.
Jack podia senti-lo, naquele exato momento, carregando uma arma. Podia senti-lo como um peso sobre seus ombros. Havia pessoas querendo matar o papa — o vigário de Cristo na Terra. E aquilo, repentinamente, soava como uma enorme ofensa. Mesmo o pior dos bandidos de rua dava um passe livre aos padres, pastores e rabinos, porque poderia existir um Deus lá em cima, e não seria bom negócio machucar um representante pessoal Dele. Quão aborrecido Deus ficaria com o assassinato do seu principal representante no planeta Terra? O papa era alguém que provavelmente nunca iria ferir uma pessoa durante a vida. A Igreja Católica não era uma instituição perfeita.
Nada que fosse formado por pessoas poderia ser. Mas havia sido fundada pela fé no Deus Todo-Poderoso, e suas políticas raramente, se tanto, afastavam-se do amor e da caridade. Tais doutrinas, no entanto, eram vistas como ameaças pela União Soviética. Que prova melhor de que eles eram os bandidos da história? Ryan havia prestado um juramento, ao se tornar fuzileiro, de lutar contra os inimigos de seu país. Mas, naquele instante, ele jurou lutar contra os inimigos do próprio Deus. A KGB não reconhecia qualquer poder acima do partido a que servia. E, ao proclamar aquilo, definia-se como inimiga de toda a humanidade. Afinal, a humanidade não fora feita à imagem de Deus? Não à imagem de Lenin. Ou de Stalin. À imagem de Deus. Bem, ele tinha uma pistola projetada por John Moses Browning, um americano, talvez um mórmon — era de Utah, mas Jack não sabia que fé seguia —, para cuidar das coisas.
O tempo passava lentamente para Ryan. As olhadas constantes para o relógio não ajudavam. As pessoas chegavam sem parar. Não em turbas, mas como as torcidas de beisebol: sozinhas, aos pares ou em pequenos grupos familiares. Muitas crianças, bebês carregados pelas mães, algumas pessoas acompanhadas por freiras — provavelmente excursões escolares — para ver o Sumo Pontífice. A expressão também vinha dos romanos, que, com uma visão notável, relacionaram o padre a um pontífice — um construtor de pontes — entre os homens e que era maior que os homens. "Vigário de Cristo na terra" ressoava na cabeça de Jack. O maldito Strokov... ele teria matado o próprio Jesus Cristo. Um novo Pôncio Pilatos — se não um opressor, certamente um representante dos opressores — para cuspir na face de Deus. Claro que não seria capaz de ferir Deus. Ninguém tinha tal poder, mas atacar uma das instituições de Deus e um de seus representantes pessoais... era suficientemente grave. Esperava-se que Deus punisse aquelas pessoas em seu próprio tempo... e talvez o Senhor escolhesse Seus instrumentos para cuidar do assunto para Ele... talvez até ex-fuzileiros dos Estados Unidos da América...
Meio-dia. Seria um dia quente. Como teria sido viver ali, nos tempos da Roma antiga, sem ar-condicionado? Bem, eles não sabiam a diferença, e o corpo se adaptava ao ambiente. Algo relacionado à medula, segundo Cathy. Ele se sentiria melhor se tirasse o paletó, mas não com uma pistola na cintura... Havia vendedores oferecendo bebidas geladas e sorvete. Como agiotas no templo?, pensou Jack. Provavelmente não. Os padres à vista não os estavam expulsando. Hum, seria uma boa opção para o sujeito se aproximar com uma arma, cogitou. Mas todos estavam muito distantes, era muito tarde para pensar naquilo e nenhum deles batia com as fotos. Jack mantinha uma pequena cópia do rosto de Strokov na mão esquerda. Conferia as feições a cada minuto.
Era lógico que o desgraçado podia estar disfarçado. Seria estúpido de não recorrer àquilo, e Strokov não parecia ser estúpido. Naquele ramo, não podia ser. Disfarces não davam conta de tudo. A cor e o comprimento dos cabelos, sim, mas a altura, não. Precisaria de uma cirurgia complexa para mudar a altura. Era possível fazer alguém parecer mais gordo, não mais magro. Pelos faciais? Tudo bem, procure um cara de barba ou bigode. Ryan se virou e percorreu a área com os olhos. Não. Nada tão óbvio assim.
Faltava meia hora. A multidão se tornara barulhenta, pessoas falando mais de uma dezena de idiomas diferentes. Ryan via turistas e fiéis de vários países. Louros da Escandinávia, negros da África, asiáticos. Alguns eram claramente americanos... mas nenhum búlgaro. Com que os búlgaros se pareciam? O problema era que a Igreja Católica devia ser universal, portanto, havia gente de todos os tipos físicos. Uma quantidade imensa de possíveis disfarces.
— Sparrow, aqui é Ryan. Vê alguma coisa? — perguntou Jack pelo microfone de lapela.
— Negativo — respondeu a voz em seu ouvido. — Estou observando a multidão. Nada a relatar.
— Entendido.
— Se estiver aqui, é uma pessoa invisível — disse Sharp, em pé ao lado de Ryan.
Eles estavam a uma distância de oito a dez metros das grades de aço usadas nas aparições semanais do papa. Pareciam pesadas. Dois ou quatro homens para colocá-las no caminhão?, perguntou-se Jack. Ele notou que sua mente gostava de divagar em momentos como aquele. Era preciso se controlar. Continue observando a multidão, pensou. Há muitos rostos!, respondeu a si mesmo, com raiva. E assim que o desgraçado assumir sua posição, começará a se esconder.
— Tom, o que acha de avançarmos um pouco para uma varredura junto à grade?
— Boa ideia — concordou Sharp.
Era difícil, mas não impossível, passar por entre a multidão. Ryan verificou o relógio.
Quinze minutos. As pessoas começavam a se espremer junto às grades, tentando se aproximar. Havia uma crença de origem medieval de que o simples toque de um rei curava doenças ou trazia sorte. Estava claro que essa crença continuava forte. E o resultado não seria ainda melhor se o homem em questão fosse o Sumo Pontífice?
Algumas daquelas pessoas deviam ser portadoras de câncer rogando a Deus por um milagre. Talvez milagres acontecessem. Os médicos chamavam tais fenômenos de remissão espontânea e os atribuíam a processos biológicos que não eram capazes de explicar. Mas talvez fossem mesmo milagres — para os beneficiados, certamente eram.
Mais uma coisa que Ryan não conseguia entender.
As pessoas aumentavam a pressão contra a grade, e as cabeças se voltavam na direção da fachada da igreja.
— Sharp, Ryan, aqui é Sparrow. Possível alvo, seis metros à esquerda de vocês, três filas atrás das grades. Casaco azul.
Jack seguiu na direção indicada sem sequer esperar por Sharp. Era difícil passar por entre as pessoas, mas não se comparava ao metrô de Nova York na hora do rush. Ao menos, ninguém se virava para xingá-lo. Ryan olhou para a frente... Sim... bem ali. Ele olhou para Sharp e tocou duas vezes no nariz.
— Ryan perto do alvo. Me oriente, John.
— Três metros adiante, Jack, logo à esquerda da mulher com jeito de italiana, de vestido marrom. Nosso amigo tem cabelo castanho-claro. Está olhando para a esquerda.
Bingo, festejou Jack, em silêncio. Em mais dois minutos, estava bem atrás do canalha. Olá, coronel Strokov.
Protegido pela multidão, Jack abriu o paletó.
O homem estava mais para trás do que imaginara. As pessoas ao redor limitavam seu campo de mira. A mulher na sua frente, porém, era tão baixa que ele podia tranquilamente sacar e atirar por cima dela. Não havia obstáculos à sua visão.
Certo, Boris Andreievich, se quer mesmo jogar, vai ter uma bela surpresa. "Se o Exército ou a Marinha um dia assistirem às cenas do céu/Descobrirão que as ruas são guardadas pelos fuzileiros dos Estados Unidos", filho da mãe.
Tom Sharp aproveitou a oportunidade para atravessar a multidão, diante de Strokov, esbarrando nele. Do outro lado, virou-se na direção de Ryan e esticou o braço para o alto. Strokov estava armado.
O barulho do público só aumentava, e as línguas se misturavam em um burburinho uníssono, que parou repentinamente. Uma porta de bronze se abrira fora do campo de visão de Ryan. Sharp estava a um metro e meio, separado de Strokov apenas por um adolescente... seria fácil correr para a direita e pôr as mãos nele.
De repente, uma explosão de gritos. Ryan deu um passo para trás e sacou a pistola, puxando o martelo para trás e deixando-a pronta para disparar. Seus olhos não desgrudavam de Strokov.
— King, o papa está saindo agora! O veículo já pode ser visto.
Ryan, porém, não podia responder. Nem ver o papamóvel.
— Sparrow, consigo vê-lo. Ryan, Sharp, ele vai entrar no seu campo de visão em questão de segundos.
Impedido de falar e de acompanhar a aproximação de Sua Santidade, Jack permanecia com os olhos fixos nos ombros do alvo. Era impossível mover a mão sem também mexer os ombros. E quando ele fizesse aquilo...
Atirar em um homem pelas costas é assassinato, Jack...
Com sua visão periférica, Ryan entreviu o canto esquerdo da parte dianteira do papamóvel, que virava lentamente para a direita. O homem na sua frente olhava naquela direção... mas não exatamente... por quê?
Então, o ombro direito se mexeu sutilmente... Na parte inferior do campo de visão de Ryan, apareceu o cotovelo direito, significando que o antebraço agora estava paralelo ao chão.
Em seguida, o pé direito se moveu para trás, também de modo sutil. O homem estava se preparando para...
Ryan pressionou o cano da Browning contra a base da coluna dele. Podia sentir as vértebras. Quando a cabeça do homem recuou alguns milímetros, Jack se curvou para a frente e sussurrou em seu ouvido.
— Se a arma na sua mão disparar, você vai usar uma fralda para o resto da vida. Agora, bem devagarinho, com a ponta dos dedos, me entregue a arma, ou atiro em você aqui mesmo.
Missão cumprida, anunciou o cérebro de Ryan. Esse desgraçado não vai matar ninguém.
Vamos, tente resistir, se quiser. Ninguém é tão rápido. Seu dedo estava tão encostado no gatilho que, se Strokov virasse repentinamente, a pistola dispararia por conta própria, deixando a espinha do búlgaro lesionada para sempre.
O homem hesitou. Sua mente devia estar funcionando em alta velocidade, analisando todas as opções. Havia treinamentos específicos para reagir quando alguém colocava uma arma nas suas costas. Ele tinha até praticado os exercícios na academia de espionagem, mas, naquele momento, vinte anos depois, sentindo uma pistola de verdade pressionando sua coluna, as lições com armas de brinquedo pareciam algo muito distante. Conseguiria afastar a pistola a tempo de evitar que destruísse um de seus rins? Provavelmente não. Assim, sua mão direita foi chegando para trás, como Jack ordenara...
Ryan teve um sobressalto ao ouvir o som de um, dois, três tiros de pistola, a menos de cinco metros de distância. Era o tipo de situação em que o mundo parava de girar, corações e pulmões paravam de funcionar e todas as mentes passavam por um instante de total lucidez. Os olhos de Jack buscaram a origem do barulho. Lá estava o Santo Padre, e em sua batina branca como a neve havia uma mancha vermelha, do tamanho de uma moeda, bem sobre o peito. Seu rosto mostrava o choque diante de algo tão rápido que não lhe permitia sequer sentir dor. O corpo, porém, já entrava em colapso, caindo para a esquerda.
Jack precisou de controle absoluto para não apertar o gatilho. Com a mão esquerda, tomou a pistola de Strokov.
— Fique quieto, filho da mãe. Não dê um passo, não se vire, não faça nada. Tom! — gritou.
— Sparrow, eles pegaram o cara, o atirador. Está no chão, deve haver umas dez pessoas em cima dele. O papa levou dois, talvez três tiros.
A reação da multidão dividia-se em dois tipos. Aqueles que estavam mais perto do atirador pularam sobre ele como gatos atacando um rato solitário. Quem quer que fosse o sujeito, tornara-se invisível sob a montanha de turistas, a cerca de três metros de onde se encontravam Ryan, Sharp e Strokov. As outras pessoas iam se afastando lentamente...
— Jack, vamos tirar nosso amigo daqui.
Os três se dirigiram para o arco por onde Ryan imaginara que a fuga aconteceria.
— Sharp para todos. Estamos com Strokov. Deixem a área separadamente e nos encontrem na embaixada.
Um minuto depois, estavam a bordo do Bentley oficial de Sharp. Ryan sentou-se atrás com o búlgaro.
Strokov estava visivelmente mais calmo diante da situação.
— O que é tudo isso? Sou um membro da embaixada búlgara e...
— Vamos nos lembrar disso, velho. Por enquanto, você é apenas um hóspede do governo de Sua Majestade britânica. Agora, seja bonzinho e fique quieto, senão meu amigo terá que matá-lo.
— Recurso diplomático interessante.
Ryan ergueu a arma que havia tirado de Strokov. Fabricada no Leste Europeu, com um silenciador grande e estranho, semelhante a uma lata, preso ao cano. Com certeza, ele estava pensando em matar alguém.
Mas quem? Ryan não sabia mais.
— Tom?
— Sim, Jack?
— Era algo mais complexo do que pensávamos.
— Certo — concordou Sharp. — Mas temos uma pessoa que pode esclarecer tudo.
A volta à embaixada revelou um talento que Ryan não conhecia. O Bentley tinha um motor imenso e poderoso, e Sharp sabia explorá-lo, saindo em disparada do Vaticano, como um participante de corrida de arrancada. O carro parou no pequeno estacionamento ao lado da embaixada, e os três entraram por uma porta lateral, a caminho do subsolo. Com Ryan dando cobertura, Sharp algemou o búlgaro e o fez se sentar em uma cadeira de madeira.
— Coronel Strokov, você terá que responder por Georgiy Markov — disse Sharp. — Estamos atrás de você há alguns anos.
Os olhos de Strokov se arregalaram. Por mais rápido que o Bentley tivesse percorrido a distância até a embaixada, a cabeça de Tom Sharp foi ainda mais ágil.
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que temos fotos de você deixando o aeroporto de Heathrow depois de matar nosso amigo na Westminster Bridge. A Yard estava na sua cola, mas você partiu minutos antes da autorização para prendê-lo. Esse foi seu azar. Porque se tornou nosso trabalho prendê-lo. Vai perceber que não somos tão civilizados quanto eles, coronel. Você matou um homem em solo britânico. Sua Majestade, a rainha, não aprova esse tipo de coisa, coronel.
— Mas...
— Por que nos damos ao trabalho de conversar com esse desgraçado, Tom? — perguntou Ryan, entrando no jogo. — Temos nossas ordens, não temos?
— Paciência, Jack, paciência. Ele não vai a lugar algum agora, vai?
— Quero um telefone para entrar em contato com minha embaixada — disse Strokov, em voz baixa.
— Logo logo ele vai querer um advogado — observou Sharp, fazendo piada.
— Bem, em Londres, você podia ser assistido por um advogado, mas não estamos em Londres, não é, velho?
— E não somos a Scotland Yard — acrescentou Jack, seguindo os passos de Sharp. — Devia tê-lo matado ali mesmo na igreja, Tom.
Sharp balançou a cabeça.
— Muito chamativo. É melhor deixar que... ele desapareça, Jack. Tenho certeza que Georgiy entenderia.
O rosto de Strokov deixava claro que ele não estava acostumado a ver outras pessoas discutindo seu destino da mesma maneira que decidira tantas vezes o destino alheio. Começava a perceber que era mais fácil ser valente com uma arma na mão.
— Tom, eu não ia matá-lo, só ia destruir a coluna dele da cintura para baixo. Sabe, deixá-lo em cadeira de rodas para o resto da vida, com incontinência, exatamente como um bebê. Acha que o governo dele será leal a ele?
Sharp quase engasgou.
— Leal, a Dirjavna Sugurnost...? Por favor, Jack. Fala sério. Eles o jogarão num hospital, provavelmente um manicômio, e mandarão limpar o traseiro dele uma ou duas vezes por dia, se tiver sorte.
Ryan percebeu que aquele tinha sido um lance certeiro. Nenhum serviço secreto do Leste Europeu era conhecido pela lealdade, mesmo com os agentes mais leais. Strokov sabia. Quando as coisas davam errado, ficava-se literalmente na merda, os amigos desapareciam como a névoa da manhã. E Strokov nem parecia ter tantos amigos. Em sua própria agência, ele devia ser como um cão de ataque: valioso, talvez, mas sem o amor e a confiança dos donos para andar perto das crianças.
— Bem, enquanto Boris e eu discutimos o futuro, não se esqueça de que precisa pegar um voo — disse Sharp. — Era bem conveniente: Ryan já estava sem ideias para improvisar. — Dê meus cumprimentos a Sir Basil.
— Pode deixar, Tommy.
Ryan saiu da sala e respirou fundo. Mick King e o resto do pessoal o aguardavam do lado de fora. Alguém na residência oficial de Sharp arrumara suas malas, e havia um micro-ônibus da embaixada pronto para levá-los ao aeroporto, onde um Boeing 737 da British Airways estava à espera. Eles chegaram bem a tempo, todos com bilhetes de primeira classe. Ryan sentou-se ao lado de King.
— O que vamos fazer com ele? — perguntou Jack.
— Strokov? Boa pergunta — respondeu Mick. — Quer mesmo saber a resposta?
32
BAILE DE MASCARAS
NAS DUAS HORAS DE VOO até Heathrow, Ryan serviu-se de três miniaturas de uísque escocês puro malte, basicamente porque era a única bebida forte disponível. De alguma forma, seu medo de voar havia se retraído. O fato de tudo estar correndo tão tranquilamente, a ponto de parecer que o avião sequer havia decolado, ajudava. Mas Ryan tinha muitos outros pensamentos ocupando sua mente.
— O que deu errado, Mick? — perguntou, enquanto sobrevoavam os Alpes.
— O que deu errado foi que nosso amigo Strokov não planejava executar o assassinato pessoalmente. Ele contratou alguém para dar os tiros.
— Então por que carregava uma pistola com silenciador?
— Quer ouvir um palpite? Aposto que ele pretendia matar o assassino e depois se misturar à multidão e fugir. Não dá para adivinhar o que todos estão pensando, Jack — acrescentou King.
— Então falhamos — concluiu Ryan.
— Talvez. Depende de onde as balas pegaram. John disse que uma foi no tronco, outra talvez na mão ou no braço e a última provavelmente errou ou, no máximo, provocou um impacto periférico. Portanto, a sobrevivência do homem depende do cirurgião que estiver cuidando dele neste momento. — Ele deu de ombros. — Está fora do nosso controle, amigo.
— Merda.
— Fez tudo que podia, Sir John?
Aquilo chamou sua atenção.
— Sim... quero dizer, claro que sim. Todos nós fizemos.
— E isso é tudo que alguém pode exigir, não é? Jack, participo de ações de campo há, sei lá, uns doze anos. Algumas vezes as coisas saem como o planejado. Outras, não. Com as informações que tínhamos e o pessoal que conseguimos reunir, não vejo como podíamos ter feito melhor. Você é analista, não é?
— Certo.
— Bem, para um burocrata, comportou-se muito bem, e agora entende muito mais de operações de campo. Não há garantias neste ramo. — King tomou outro gole de seu drinque. — Nem posso dizer que gosto disso. Perdi um agente em Moscou há dois anos. Era um jovem capitão do exército soviético. Parecia ser um cara decente. Tinha mulher e filho pequeno. Mataram-no, claro. Só Deus sabe o que aconteceu com a família. Talvez ela esteja em um campo de trabalhos forçados, ou em alguma cidade remota na Sibéria. Sabe que é impossível descobrir essas coisas. Vítimas sem nome e sem rosto, mas ainda assim vítimas.
— O PRESIDENTE ESTÁ FURIOSO — relatou Moore a seus diretores, com a orelha direita ainda quente da conversa de dez minutos antes.
— Foi tão ruim assim? — perguntou Greer.
— Sim — confirmou o DCI. — Ele quer saber quem foi o responsável e a razão. De preferência, antes do almoço.
— É impossível — disse Ritter.
— Ali está o telefone. Ligue para ele e diga isso — sugeriu o juiz.
Nenhum deles tinha visto o presidente irritado antes. Era uma experiência que as pessoas costumavam evitar.
— Então Jack estava certo? — perguntou Greer.
— Ele teve uma intuição, mas não evitou que acontecesse — observou Ritter.
— Bem, pelo menos já tem algo a apresentar, Arthur — disse Greer, com uma pequena esperança na voz.
— Talvez. Gostaria de saber se os médicos italianos são bons.
— O que temos? — perguntou Greer. — Alguma coisa?
— Um grave ferimento a bala no peito. O presidente deve ter se identificado com a situação — pensou Moore, em voz alta. — Dois outros tiros, mas nada sério.
— Então ligue para Charlie Weathers em Harvard e pergunte qual é o prognóstico mais provável — disse Ritter.
— O presidente já conversou com todos os cirurgiões idiotas do Walter Reed. Eles estão esperançosos, mas não dão um parecer mais concreto.
— Aposto que todos disseram "Se eu estivesse lá, daria tudo certo". — Greer tinha experiência com médicos militares. Os pilotos de caça pareciam meninos acanhados perto dos cirurgiões de campo de batalha.
— Vou ligar para Basil e trazer o Coelho para cá assim que a Força Aérea tiver um avião pronto. Se Ryan estiver livre, quero que venha nesse avião também. Ele deve estar voltando de Roma neste momento.
— Por quê? — perguntou Ritter.
— Ele pode fazer um relatório sobre sua análise de risco antes do incidente para nós... e talvez para o presidente.
— Meu Deus, Arthur. Eles nos contaram sobre a ameaça há quatro, cinco dias.
— Mas queríamos conversar com o sujeito pessoalmente. Eu sei, James, eu sei.
RYAN SEGUIU MICK KING na saída do avião. Ao pé da escada, havia alguém que só podia ser da Century House. Ryan percebeu que ele olhava bem em sua direção.
— Dr. Ryan, pode vir comigo, por favor? Uma pessoa vai cuidar de suas mulas — assegurou o homem.
— Para onde vamos?
— Temos um helicóptero para levá-lo à base de Mildenhall e...
— Impossível. Não voo de helicóptero desde que um deles quase me matou. A que distância fica?
— Uma hora e meia de carro.
— Ótimo, me arrume um carro — orientou Jack. E se virou em seguida. — Obrigado pela tentativa, rapazes.
Sparrow, King e os outros apertaram sua mão. Sem dúvida, todos haviam tentado, ainda que ninguém fosse ficar sabendo de seu esforço. Jack imaginou o que Tom Sharp estaria fazendo com Strokov, mas logo concluiu que Mick King tinha razão. Ele não queria realmente saber.
A BASE DE MILDENHALL fica ao norte de Cambridge, onde se localiza uma das melhores universidades do mundo. Ryan estava a bordo de outro Jaguar, e o motorista não se importava muito com os limites de velocidade das estradas britânicas. Depois de passarem pelas tropas de segurança do Regimento de Defesa Terrestre, o carro não seguiu até o avião, à espera na rampa, mas em direção ao prédio baixo que parecia um terminal VIP. Lá, um homem entregou um telex a Ryan, que precisou de vinte segundos para lê-lo. O resultado foi um "Ótimo" murmurado. Jack procurou um telefone e ligou para casa.
— Jack? — reagiu a esposa, ao reconhecer sua voz. — Onde diabos você está?
Ela devia estar irritada. Cathy Ryan não costumava falar daquele jeito.
— Estou na base britânica de Mildenhall. Preciso ir a Washington.
— Por quê?
— Querida, preciso fazer uma pergunta: os médicos italianos são bons?
— Você está falando do... papa?
— Sim.
Ela não podia ver sua cara de cansaço.
— Todos os países têm bons cirurgiões... Jack, o que está acontecendo? Você estava lá?
— Cath, eu estava a uns dez metros, mas não posso falar sobre isso, e você não pode contar a ninguém, certo?
— Certo — respondeu ela, com curiosidade e frustração na voz. — Quando voltará para casa?
— Provavelmente em poucos dias. Preciso conversar com algumas pessoas no quartel-general. Depois acho que me mandarão de volta imediatamente. Desculpe, querida. É o trabalho. Então, me fale dos médicos italianos.
— Eu estaria mais tranquila se Jack Cammer estivesse cuidando dele, mas deve haver profissionais competentes. Eles existem em todas as grandes cidades. Acho que a Universidade de Pádua é a escola de medicina mais antiga do mundo. Os oftalmologistas são tão bons quanto os do Hopkins. Para cirurgias gerais, deve haver gente de alto nível, mas o melhor cara que conheço para isso é Jack. — John Michael Cammer era diretor do Departamento de Cirurgia do Hopkins, detentor da prestigiosa cátedra Halstead e incrível com um bisturi.
Cathy o conhecia bem. Jack encontrara-o uma ou duas vezes em eventos de caridade e ficara impressionado com sua postura. Mas ele não era médico e não podia avaliar sua capacidade profissional. — Na maioria dos casos, é relativamente simples tratar de um ferimento a bala. A não ser que o fígado ou o baço sejam atingidos. O problema mais sério é a hemorragia. Jack, é como naquela vez em que a Sally se machucou no carro comigo. Se ele chegar rápido ao hospital, e o cirurgião entender do assunto, há uma grande chance de sobrevivência. Exceto no caso de o baço ter se rompido ou o fígado ter sido gravemente lacerado. Vi a cobertura na TV. O coração não foi atingido... ângulo errado. Diria que as chances de recuperação passam de cinquenta por cento. Ele não é mais jovem, o que não ajuda, mas uma equipe cirúrgica realmente competente pode fazer milagres se ele tiver chegado a tempo.
Ela não falou sobre as variáveis desagradáveis das cirurgias de trauma. As balas podiam ricochetear nas costelas e ir nas direções mais imprevisíveis. Podiam se fragmentar e causar danos em pontos distantes. Em resumo, não era possível diagnosticar, muito menos tratar, um ferimento a bala com base em cinco segundos de vídeo. Mesmo que as chances de sobrevivência fossem boas, vários azarões já haviam derrotado barbadas no derby de Kentucky.
— Obrigado, amor. Acho que posso contar mais detalhes quando estiver em casa. Dê um abraço nas crianças por mim, está bem?
— Parece cansado — disse ela.
— Estou cansado, querida. Foram dias movimentados. — E, pelo visto, não ficariam mais calmos. — Tchau.
— Amo você, Jack — lembrou a ele.
— Eu também, querida. Obrigado por dizer.
Ryan esperou mais de uma hora pela família Zaitzev. A oferta de um helicóptero, portanto, só o teria obrigado a esperar mais tempo — típico do Exército dos Estados Unidos. Ryan se sentou em uma poltrona confortável e dormiu por uma meia hora.
A família Coelho chegou de carro. Um sargento da Força Aérea acordou Jack e indicou o caminho até o KC-135. Essencialmente, era um Boeing 707 sem janelas, equipado para reabastecer outras aeronaves. A ausência de janelas não ajudava muito, mas ordens eram ordens, e ele subiu as escadas.
Havia uma poltrona de couro bem diante da área de junção da asa à fuselagem. O avião mal havia decolado quando Oleg se acomodou no assento a seu lado.
— O que aconteceu? — quis saber Zaitzev.
— Pegamos Strokov. Peguei-o pessoalmente, e ele tinha uma arma — contou Ryan. — Mas havia outro atirador.
— Strokov? Você o prendeu?
— Não foi exatamente uma prisão. Digamos que ele concordou em me acompanhar até a embaixada britânica. Está sob a guarda do SIS agora.
— Espero que matem o zvoloch — rosnou Zaitzev.
Ryan não respondeu, ainda imaginando o que podia acontecer. Os britânicos jogariam tão pesado? O sujeito, entretanto, havia cometido um assassinato em seu território — quase ao lado da Century House.
— O papa vai sobreviver? — perguntou o Coelho.
Ryan se surpreendeu com o interesse dele. Talvez ele tivesse mesmo desertado por causa da consciência.
— Não sei, Oleg. Liguei para minha mulher... ela é cirurgiã. Diz que as chances de sobrevivência são superiores a 50 por cento.
— Pelo menos, é alguma coisa — disse Zaitzev.
— E ENTÃO? — PERGUNTOU Andropov.
O coronel Rozhdestvenskiy corrigiu a postura.
— Camarada diretor, ainda não temos muitas informações. O homem de Strokov fez os disparos, como o senhor sabe, e acertou o alvo em uma região letal. Strokov não conseguiu eliminá-lo, como planejado, por razões desconhecidas. Nossa rezidentura em Roma está investigando o que houve. O coronel Goderenko está cuidando do assunto pessoalmente. Teremos mais informações quando o coronel Strokov retornar a Sofia. Sua partida está prevista para o voo regular das dezenove horas. Portanto, até aqui, parece que obtivemos sucesso parcial.
— Não existe sucesso parcial, coronel! — ressaltou Andropov, irritado.
— Camarada diretor, eu lhe informei, algumas semanas atrás, que essa era uma possibilidade. Deve se lembrar. E, mesmo que esse padre sobreviva, não voltará à Polônia tão cedo, não é mesmo?
— Creio que não — resmungou Yuriy Vladimirovich.
— E era esse o verdadeiro objetivo, correto?
— Da — admitiu o diretor. — Nenhuma mensagem até agora?
— Não, camarada diretor. Tivemos que treinar um novo oficial de turno para as comunicações e...
— Como?
— O major Zaitzev. Oleg Ivanovich. Ele e sua família morreram no incêndio de um hotel em Budapeste. Ele era o encarregado das comunicações na operação 666.
— Por que não fui informado disso?
— Camarada diretor — tentou acalmá-lo Rozhdestvenskiy. — Realizamos uma investigação completa. Os corpos foram devolvidos a Moscou e enterrados de maneira apropriada. Os três morreram por inalação de fumaça. Os procedimentos de autópsia foram acompanhados pessoalmente por um médico soviético.
— Tem certeza disso, coronel?
— Posso lhe enviar o relatório oficial, se desejar — disse Rozhdestvenskiy, com convicção. — Li o material pessoalmente.
Andropov decidiu deixar aquilo de lado.
— Muito bem. Mantenha-me informado de tudo. E quero saber imediatamente a respeito da condição desse papa inconveniente.
— Às ordens, camarada diretor.
Rozhdestvenskiy saiu, enquanto o diretor começava a cuidar de outros assuntos. O estado de saúde de Brejnev havia se agravado definitivamente. Em breve, Andropov teria que deixar a KGB para preservar seu caminho de ascensão até a cabeceira da mesa, e aquela era sua principal preocupação no momento. Além do mais, Rozhdestvenskiy estava certo: mesmo que sobrevivesse, o padre polonês não voltaria a representar um problema por meses. Seria o bastante.
— E ENTÃO, ARTHUR? — perguntou Ritter.
— Ele se acalmou um pouco. Contei-lhe sobre a Operação BEATRIX. Disse que nós e os britânicos tínhamos pessoal no local. Ele quer conhecer o Coelho pessoalmente. Resumindo, ainda está muito irritado, mas não conosco — relatou Moore, que acabara de voltar da Casa Branca.
— Os britânicos estão mantendo Strokov sob custódia — disse Greer. A informação acabara de chegar de Londres. — Acreditaria se eu dissesse que foi Ryan quem o pegou? O canalha está na embaixada britânica em Roma. Basil está tentando decidir o que fazer com ele. A aposta é que Strokov comandou a operação e convocou o bandido turco para dar os tiros. Os britânicos dizem que ele portava uma pistola com silenciador. Sua tarefa seria eliminar o atirador, como a Máfia fazia em Nova York algum tempo atrás, o que permitiria negar a tentativa de assassinato.
— Seu garoto pegou ele? — perguntou o DCI, surpreso.
— Ele estava no local com uma equipe de agentes britânicos experientes. Talvez o treinamento de fuzileiro tenha ajudado — admitiu Ritter. — Bem, James, parece que seu garoto louro vai receber outra carta de elogio.
Cuidado para não morder a língua quando estiver escrevendo a carta, Robert, pensou Greer.
— Onde estão todos agora?
— A caminho de casa, provavelmente. A força aérea está cuidando disso — informou Ritter. — A chegada a Andrews está prevista para as onze e quarenta.
NA CABINE, PELO MENOS, havia janelas. A tripulação era amigável, e Ryan conseguiu até conversar um pouco sobre beisebol. Ficou satisfeito e surpreso ao saber que os Orioles só precisavam vencer mais um jogo para encerrar a série contra os Phillies. A tripulação sequer pensou em perguntar por que estava sendo levado de volta aos Estados Unidos. Já haviam feito aquilo muitas vezes e nunca conseguiam uma resposta razoável. Na parte traseira, a família Coelho dormia tranquilamente, algo que Ryan ainda não conseguira.
— Quanto falta? — perguntou ao piloto.
— Bem, ali está Labrador — disse, apontando com o dedo. — Em três horas, estaremos sobre terra firme. Por que não tenta dormir um pouco?
— Não consigo dormir em aviões — confessou Jack.
— Não se sinta mal. Nós também não — disse o copiloto.
No fim das contas, era uma boa notícia.
SlR BASIL CHARLESTON também participava de uma reunião com sua chefe de governo. Nem nos Estados Unidos, nem no Reino Unido, os repórteres escreviam sobre quando e por que os diretores dos diversos serviços de inteligência encontravam seus superiores.
— Fale-me sobre esse tal de Strokov — determinou ela.
— Não é um sujeito muito agradável — respondeu C. — Acreditamos que estava lá para matar o assassino. Tinha uma arma com silenciador para eliminar o ruído. Parece que o plano era executar Sua Santidade e deixar um assassino morto para trás. Homens mortos não podem contar histórias, primeira-ministra. Mas este, talvez, acabe contando. A polícia italiana deve estar interrogando-o neste instante. É um cidadão turco, e aposto que tem ficha criminal e experiência em contrabandear produtos para dentro da Bulgária.
— Então os russos estão por trás disso? — perguntou ela.
— Sim, senhora. É quase certo. Tom Sharp está conversando com Strokov em Roma. Vamos ver se é leal aos chefes.
— O que faremos com ele? — perguntou a primeira-ministra.
A resposta veio em forma de outra pergunta, que ela teria que responder. E foi o que ela fez.
NÃO OCORRERA A STROKOV que, quando Sharp mencionara os nomes de Aleksey Nikolaievich Rozhdestvenskiy e Ilya Fedorovich Bubovoy, seu destino havia sido selado. Ele estava atônito por perceber que o SIS havia penetrado tão profundamente na organização da KGB. Sharp não viu razão para desfazer tal impressão. Perplexo a ponto de não conseguir reagir de forma inteligente, Strokov esqueceu de todo o treinamento e começou a falar. Sua conversa com Sharp durou duas horas e foi toda gravada.
RYAN PERMANECEU no piloto automático, a exemplo do Boeing em que estava, até a aeronave tocar o solo na pista zero um direita da base aérea de Andrews. Estava acordado havia quanto tempo? Vinte e duas horas? Mais ou menos, era mais fácil fazer aquilo como segundo-tenente dos fuzileiros — aos 22 nos — do que como um homem casado e pai de dois filhos — aos 32 —, depois de um dia estressante. Também sentia os efeitos do álcool. Havia dois carros esperando ao pé da escada — Andrews ainda não tinha passagens para os saguões. Ele e Zaitzev entraram no primeiro. A Sra. Coelho e a coelhinha pegaram o segundo. Dois minutos depois, estavam na Suitland Parkway, a caminho de Washington. Ryan assumiu a tarefa de explicar o que passava pelo caminho. Diferentemente de quando chegara a Londres, Zaitzev não achava que fosse uma maskirovka. E a volta ao redor do Capitólio acabou com qualquer suspeita que pudesse ter. Nem George Lucas, em seus melhores dias, podia forjar aquele cenário. Os carros atravessaram o Potomac e seguiram na direção norte, pela George Washington Parkway, finalmente chegando à saída indicada em Langley.
— Então esta é a casa do Inimigo Principal — disse o Coelho.
— Prefiro pensar nisso aqui como o lugar onde eu costumava trabalhar.
— Costumava?
— Você não sabe? Estou baseado na Inglaterra agora — contou Jack.
Toda a equipe de interrogatório estava sob a marquise, na entrada principal.
Ryan conhecia apenas um deles, Mark Radner, especialista em Rússia de Dartmouth, convocado para algum trabalho específico — uma das pessoas que gostavam de servir à CIA, mas não com exclusividade. Agora Ryan conseguia entender aquilo. Quando o carro parou, foi o primeiro a sair, dirigindo-se a James Greer.
— Parece que teve uns dias agitados, garoto.
— Nem me fale, almirante.
— Como foram as coisas em Roma?
— Primeiro me diga como está o papa — respondeu Jack.
— Ele resistiu bem à cirurgia. O estado é crítico, mas pedimos um parecer de Charlie Weathers, e ele disse para não nos preocuparmos. Pessoas dessa idade submetidas a cirurgia são sempre consideradas em estado crítico. Deve ser uma forma de aumentar a conta. A não ser que ocorra algo incomum, ele provavelmente ficará bem. Charlie disse que eles formam bons cirurgiões em Roma. Na sua opinião, Sua Santidade deve voltar para casa em três a quatro semanas. Vai ser tudo feito com calma, devido à idade.
— Graças a Deus. Senhor, quando pus o canalha do Strokov na mira, achei que tudo estava resolvido, sabia? Então, ao ouvir os tiros... que momento angustiante, almirante.
— Posso imaginar. Mas os mocinhos venceram desta vez. Ah, os Orioles fecharam a série contra os Phillies. O jogo acabou há vinte minutos. Aquele interbase novato de vocês, Ripken, parece que vai longe.
— Ryan — chamou o juiz Moore, aproximando-se. — Parabéns, filho.
Outro aperto de mão.
— Obrigado, diretor.
— Muito bem, Ryan — disse Ritter, em seguida. — Tem certeza de que não quer experimentar nosso curso de treinamento na Fazenda?
O cumprimento lhe pareceu surpreendentemente cordial. Jack presumiu que Ritter havia tomado um ou dois drinques antes.
— Senhor, neste momento, ficaria feliz em voltar a dar aulas de história.
— É mais divertido fazer história, garoto. Lembre-se disso.
O grupo entrou, passando pelo memorial na parede direita em homenagem aos oficiais mortos, muitos dos quais ainda tinham os nomes mantidos em sigilo. Viraram à esquerda para pegar o elevador privativo. A família Coelho seguiu por outro caminho. No sexto andar, havia acomodações semelhantes a quartos de hotel para visitantes importantes e agentes retornando de outros países. Estava claro que a CIA ia alojá-los naquele setor. Jack seguiu os diretores até o escritório do juiz.
— O que acha do nosso novo Coelho? — perguntou Moore.
— Bem, está claro que ele nos passou informações quentes sobre o papa, juiz — respondeu Ryan, surpreso com a pergunta. — E os britânicos também parecem satisfeitos com o que ele revelou sobre o agente MINISTRO. Estou um pouco curioso para saber quem é o tal de CASSIUS.
— E o NETUNO — acrescentou Greer. A Marinha precisava de comunicações seguras para sobreviver no mundo moderno, e James Greer ainda guardava seus uniformes azuis no armário.
— Mais alguma impressão? — perguntou Moore.
— Alguém já pensou em como os russos estão desesperados? Quero dizer, claro que o papa era, e ainda é, uma ameaça política de algum tipo, mas, caramba, essa não foi uma operação muito inteligente, foi? — perguntou Jack. — A mim, parece que eles estão muito mais desesperados do que costumamos achar. Temos que explorar isso.
A mistura de álcool e cansaço tornava mais fácil para Ryan dizer o que pensava. Ele passara doze horas refletindo sobre aquilo.
— Como? — perguntou Ritter, lembrando-se de que Ryan era uma espécie de gênio em economia.
— Posso garantir uma coisa: a Igreja Católica não vai ficar muito feliz. Meus amigos, há muitos católicos no Leste Europeu. Esse é um recurso que precisamos pensar em usar. Se nos aproximarmos da Igreja de modo inteligente, eles podem cooperar conosco. A Igreja costuma perdoar, é verdade, mas primeiro é preciso ir ao confessionário. — Moore pareceu surpreso. — Além disso, tenho estudado a economia deles. É muito instável, muito mais do que nosso pessoal pensa, almirante — disse Jack, virando-se para seu superior imediato.
— O que quer dizer com isso?
— Senhor, o material que nosso pessoal analisa... são os relatórios oficiais que vêm de Moscou, certo?
— E damos duro para consegui-los — disse Moore.
— Diretor, por que achamos que são verdadeiros? — perguntou Ryan. — Só porque o Politburo também os recebe? Sabemos que mentem para nós e para o próprio povo. E se mentirem para si mesmos? Se eu fosse um auditor da Comissão de Valores Mobiliários, acho que podia mandar vários deles para a prisão federal de Allenwood. O que eles afirmam ter não está de acordo com o que conseguimos concluir que realmente têm. A economia está balançando e, se houver uma crise, mesmo pequena, a casa toda cai.
— Como podemos explorar isso? — perguntou Ritter.
Sua própria equipe de analistas havia dito algo muito parecido, quatro dias antes, mas nem o juiz Moore havia sido informado ainda.
— De onde eles tiram a maior parte de seus recursos?
— Do petróleo — respondeu Greer.
Os russos exportavam tanto petróleo quanto os sauditas.
— E quem controla o preço mundial do petróleo?
— A Opep?
— E quem — prosseguiu Ryan — controla a Opep?
— Os sauditas.
— Eles não são nossos aliados? — concluiu Jack. — Encare a União Soviética como alvo de uma possível aquisição, como costumávamos fazer na Merrill Lynch. Seus ativos valem muito mais do que a empresa controladora, devido à péssima gestão. Qualquer um é capaz de chegar a essa conclusão. — Até um cara exausto, depois de um longo dia, oito mil quilômetros dentro de aviões e um pouco de bebida em excesso, preferiu não acrescentar. Havia muitos agentes inteligentes na CIA, mas eles pensam como funcionários públicos, e não o bastante como americanos. — Não temos ninguém que consiga pensar fora do nosso mundinho?
— Bob? — disse Moore.
Ritter simpatizava cada vez mais com o jovem analista.
— Ryan, você já leu Edgar Allan Poe?
— Na escola — respondeu ele, um pouco confuso.
— E uma história chamada A máscara da morte escarlate?
— Tem algo a ver com uma praga que aparece para arruinar uma festa, não é?
— Descanse um pouco. Antes de voltar para Londres amanhã, queremos conversar com você a respeito de algumas coisas.
— Dormir parece uma ótima ideia, cavalheiros. Onde vou passar a noite? — perguntou, deixando claro, caso ainda não tivessem percebido, que estava prestes a desabar.
— Temos uma reserva para você no Marriott, logo adiante, na estrada. Há um carro esperando na entrada. Pode ir — disse Moore.
— Talvez ele não seja tão estúpido — cogitou Ritter.
— Robert, é bom ver que você é forte o bastante para dar o braço a torcer — comentou Greer, sorrindo, enquanto pegava uma garrafa das mais caras de bourbon.
Era hora de comemorar.
No DIA SEGUINTE, Il Tempo, um jornal de Roma, publicou uma matéria sobre um homem encontrado morto dentro de um carro, aparentemente vítima de ataque cardíaco.
Não demoraria muito para o corpo ser identificado como de um turista búlgaro que havia chegado ao fim da vida de maneira inesperada. Se estava com a consciência limpa no momento derradeiro, os exames não conseguiram determinar.
Tom Clancy
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