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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COLAPSO - P.2 / Arthur Hailey
COLAPSO - P.2 / Arthur Hailey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

COLAPSO

Segunda Parte

 

Numa colina escura e solitária, por cima da comunidade suburbana de Millfield, Georgos Winslow Archambault arrastou-se de barriga na direção de uma cerca de arame que protegia a subestação da GSP & L. A precaução, para a possibilidade de ser observado, era provavelmente desnecessária, pensou ele; a subestação não tinha qualquer vigia, não havia lua naquela noite e a estrada mais próxima, que permitia ao tráfego atravessar a colina escassamente povoada, ficava a quase um quilómetro de distância. Recentemente, porém, a Golden State Porra & Lixo contratara mais porcos de segurança e criara patrulhas noturnas volantes, que variavam os horários e percursos, obviamente a fim de não criar um padrão. Assim, fazia sentido ser prudente, embora fosse difícil e incómodo se arrastar carregando ferramentas e explosivos.

Georgos estremeceu. A noite de outubro era fria e um vento forte soprava por entre os pedregulhos da encosta, fazendo-o desejar estar usando dois suéteres por baixo do macacão azul-marinho de sarja, ao invés de apenas um. Olhando para trás, pelo caminho por que viera, Georgos avistou sua mulher, Yvette, uns poucos metros atrás, seguindoo. Era importante que ela o acompanhasse. Por um lado, porque o fio e os detonadores estavam com Yvette; por outro, porque Georgos estava atrasado, em decorrência de um congestionamento no tráfego ao sair da cidade, uma viagem de pouco mais de 30 quilómetros. Queria agora compensar o tempo perdido, porque a operação daquela noite envolvia a destruição de três subestações, por toda a força dos Amigos da Liberdade. Em outra subestação, Ute e Felix estavam trabalhando juntos; na terceira, Wayde estava operando sozinho. O plano era que as três explosões ocorressem simultaneamente.

Chegando à cerca de arame, Georgos tirou um alicate do cinto e começou a cortar. Tudo o que precisava era de uma pequena abertura perto do solo. Se uma patrulha aparecesse, depois dos dois terem ido embora e antes da explosão, a cerca cortada poderia assim passar despercebida.

Enquanto trabalhava, Georgos podia avistar as luzes faiscantes e espalhadas de Millfield, lá embaixo. Todas estariam apagadas dentro em breve, assim como outras, mais ao sul. Ele conhecia Millfield e as demais cidadezinhas próximas. Eram comunidades burguesas, povoadas principalmente por pessoas que trabalhavam na cidade e iam e vinham de trem. Ou seja, capitalistas e seus lacaios! E Georgos sentia-se feliz por saber que iria criar-lhes muitos problemas.

O buraco na cerca estava quase concluído. Mais um minuto e Georgos e Yvette poderiam passar. Ele olhou para o mostrador luminoso do relógio. O tempo era cada vez mais curto. Depois que entrassem, teriam de trabalhar o mais depressa possível.

Os alvos para o ataque triplo daquela noite haviam sido cuidadosamente escolhidos. Anteriormente, os Amigos da Liberdade costumavam explodir torres de transmissão, derrubando duas ou três ao mesmo tempo, numa tentativa de provocar a interrupção no fornecimento de energia a amplas áreas. Mas essa tática já não era mais aplicada. Georgos e os outros haviam descoberto que as companhias de energia elétrica, quando as torres de transmissão eram derrubadas, passavam a utilizar outras linhas, conseguindo restabelecer o fornecimento rapidamente, às vezes em questão de minutos. Além do mais, as torres derrubadas eram imediatamente substituídas por postes provisórios, de forma que até mesmo aquela linha logo estava novamente em operação.

Mas era diferente com as subestações maiores. Eram instalações extremamente vulneráveis e críticas, podendo levar semanas para serem consertadas ou substituídas.

Os danos que seriam causados naquela noite, se tudo corresse bem, provocariam um vasto blackout, estendendo-se muito além de Millfield. Poderiam passar-se dias, talvez mais, antes que o fornecimento estivesse plenamente restabelecido. Até lá, os problemas seriam tremendos, e o custo fabuloso. Georgos regozijou-se ao pensar nisso. Depois daquela noite, talvez mais pessoas passassem a levar a sério os Amigos da Liberdade.

Georgos pensou: seu pequeno mas glorioso exército aprendera muita coisa desde os ataques iniciais ao desprezível inimigo. Atualmente, antes de começarem qualquer operação faziam um meticuloso reconhecimento do terreno e dos métodos de trabalho da GSP & L, procurando as áreas mais vulneráveis, as situações em que poderiam provocar uma destruição maior. Nesse aspecto, haviam recebido a ajuda recente de um ex-engenheiro da GSP & L, despedido por roubar e que agora acalentava um ódio profundo contra a companhia. Embora não fosse um membro ativo dos Amigos da Liberdade, o engenheiro fora devidamente comprado com uma parte do dinheiro fornecido por Birdsong. Outro dinheiro da mesma fonte havia sido utilizado para comprar mais e melhores explosivos.

Birdsong deixara escapar certa vez a informação da procedência do dinheiro: vinha do Clube da Sequóia, que pensava estar financiando a & Ip. Georgos achava extremamente irónico que uma instituição integrada no sistema estivesse pagando a conta da revolução, sem o saber.

De certa forma, era uma pena que a turma obtusa do Clube da Sequóia jamais fosse descobrir coisa alguma.

Clique! O último arame fora cortado e uma parte da cerca caiu. Georgos empurrou-a para o lado de dentro, a fim de reduzir a possibilidade de alguém notar. Passou para o outro lado os três pacotes de explosivo plástico e depois esgueirou-se também para dentro.

Yvette ainda estava logo atrás dele. A mão da moça já estava curada do ferimento que ela sofrera quando um detonador, explodira prematuramente há dois meses, fazendo-a perder dois dedos. Os cotos tinham uma aparência horrível, não tendo sido costurados devidamente, como teria acontecido se Yvette fosse tratada por um médico. Georgos se empenhara ao máximo para manter o ferimento limpo e, com muita sorte, pudera evitar uma infecção. E também evitara as perguntas perigosas que inevitavelmente teriam sido feitas, se a levasse a um hospital ou ao consultório de um médico.

Mas que droga! O macacão prendera numa ponta de arame. Georgos ouviu o pano se rasgando e sentiu uma dor intensa quando o arame cortou-lhe a coxa. Por um excesso de cautela, fizera a abertura pequena demais. Recuou, entortou a ponta de arame e depois passou pela cerca sem maiores dificuldades. Yvette, que era menor, seguiu-o sem qualquer problema.

Não havia necessidade de conversa. Haviam ensaiado tudo antes e sabiam exatamente o que fazer. Cautelosamente, Georgos pregou o explosivo plástico com um adesivo nos três maiores transformadores da subestação. Yvette entregou-lhe os detonadores e desenrolou o fio para a ligação com os mecanismos de tempo.

Dez minutos depois, todas as três cargas já estavam colocadas. Yvette entregou os mecanismos de tempo, com baterias anexadas, que ele cuidadosamente montara no dia anterior, para si e para as outras duas equipes. Trabalhando com extremo cuidado, para que não houvesse qualquer explosão prematura, Georgos ligou os fios dos detonadores. Verificou novamente a hora. Trabalhando depressa, conseguira compensar um pouco do tempo perdido, mas não todo.

As três explosões iriam ocorrer, mais ou menos ao mesmo tempo, dentro de 11 minutos. Georgos e sua mulher teriam bem pouco tempo para descer a colina até o lugar em que haviam deixado o carro escondido, fora da estrada, atrás de algumas árvores. Mas se se apressassem, correndo na maior parte do percurso, poderiam estar a caminho da cidade, em segurança, antes que houvesse tempo de se desfechar qualquer reação à sabotagem. Ele ordenou a Yvette:

- Vá na frente! Depressa!

Desta vez, Yvette passou primeiro pela cerca. No momento em que o próprio Georgos estava saindo, ouviram o barulho de um carro, não muito longe, subindo a colina. Ele parou para escutar. Não havia a menor dúvida de que o carro vinha pela estrada de cascalho particular da GSP & L, que dava acesso à subestação.

Uma patrulha de segurança! Não podia ser outra coisa. Àquela hora da noite, ninguém mais viria até ali. Georgos terminou de passar pela cerca e levantou-se, avistando o reflexo dos faróis em algumas árvores lá embaixo. A estrada era sinuosa, o que explicava o fato de o carro ainda não estar à vista.

Yvette também ouvira e vira. Já ia dizer alguma coisa quando Georgos lhe fez sinal para ficar calada e sussurrou:

- Por aqui!

Ele saiu correndo na direção da estrada de cascalho, atravessou-a e foi esconder-se atrás de alguns arbustos no outro lado. Ficou deitado ali, com Yvete a seu lado. Georgos sentiu-a tremer. O que o fez lembrarse do que esquecia às vezes: que ela era pouco mais de uma criança, sob muitos aspectos; e também que nunca mais fora a mesma, apesar da devoção a ele, desde o incidente que a fizera perder dois dedos.

Os faróis estavam agora à vista, enquanto o carro contornava a última curva antes da subestação. Estava se aproximando lentamente. Provavelmente o motorista estava sendo cauteloso porque a estrada não tinha sinais de reflexo nos lados e não era fácil avistar os contornos. Quando os faróis chegaram mais perto, toda a área ficou intensamente iluminada. Georgos ficou comprimido contra o solo, levantando a cabeça apenas ligeiramente. Calculava que eram boas as possibilidades de não serem descobertos. O que o preocupava era a iminência da explosão. Verificou o relógio. Faltavam oito minutos.

O carro parou a apenas alguns metros de Georgos e Yvette. Um vulto saiu pelo lado do passageiro. Quando se adiantou, ficando dentro do círculo de luz dos faróis, Georgos pôde constatar que o homem usava um uniforme de guarda de segurança. O guarda estava com uma lanterna potente, focalizando-a na cerca em torno da subestação. Deslocando o facho da lanterna de um lado para outro, começou a andar, contornando a cerca. Georgos pôde divisar o vulto de um segundo homem, o motorista, que parecia que iria ficar esperando no carro.

O primeiro homem estava na metade do caminho quando parou abruptamente, dirigindo o facho da lanterna para baixo. Descobrira a abertura na cerca, onde o arame fora cortado. Chegando mais perto, usou a lanterna para examinar o terreno além da cerca. A luz da lanterna se deslocou pelas linhas de transmissão, isoladores e transformadores, parando numa das cargas de explosivo plástico, seguindo depois os fios até o mecanismo de tempo.

O guarda virou-se e gritou:

- Ei, Jake, dê o alarma! Há algo de esquisito aqui!

Georgos entrou prontamente em ação. Sabia que os segundos contavam e não havia alternativa para o quê precisava ser feito.

Levantou-se de um pulo, ao mesmo tempo em que estendia a mão para a faca de caça que levava numa bainha na cintura. Era comprida e afiada, justamente para uma emergência como aquela. A faca saiu da bainha facilmente. O pulo levara Georgos até quase o carro. Mais um passo e abriu a porta do motorista. O surpreendido ocupante, um homem já idoso, de cabelos grisalhos, também no uniforme de guarda de segurança, virou-se no mesmo instante. Tinha um microfone na mão, perto dos lábios.

Georgos avançou. com a mão esquerda, arrancou o guarda do carro, obrigou-o a virar e, com um golpe vigoroso para cima, enterrou a faca em seu peito. A boca da vitima se escancarou. O guarda chegou a iniciar um grito, que se desvaneceu num gorgolejo. E caiu para a frente. Dando um puxão forte, Georgos arrancou a faca do peito do homem e tornou a guardá-la na bainha. Vira uma arma num coldre, enquanto o homem caía. Abriu rapidamente o coldre e tirou-a. Georgos aprendera muita coisa sobre armas em Cuba. Era um revólver Smith & Wesson, calibre 38. Ao reflexo dos faróis, abriu o tambor e verificou que estava carregado. Tornou a fechar o tambor, puxou o cão da arma e empurrou a trava de segurança.

O primeiro guarda ouvira alguma coisa e estava voltando para o carro. Gritou:

- Ei, Jake, o que aconteceu? Você está bem?

Ele já estava empunhando seu revólver, mas não teve qualquer chance de usá-lo. Georgos contornara o carro silenciosamente e estava agachado na traseira, oculto nas sombras. Mirava cuidadosamente, o cano do 38 aninhado no cotovelo esquerdo para melhorar a estabilida-' de, o indicador direito começando a apertar o gatilho. A arma estava apontada para o lado esquerdo do peito do guarda que se aproximava.

Georgos esperou até ter certeza absoluta de que iria acertar o alvo e depois apertou o gatilho três vezes. O segundo e terceiro tiros foram provavelmente desnecessários. O guarda foi lançado para trás, sem fazer qualquer barulho. E ficou imóvel no lugar onde caíra.

Georgos sabia que não havia tempo a perder, nem mesmo para dar uma olhada no relógio. Segurou Yvette, que se levantara ao ouvir os tiros, empurrando-a para a frente ao começarem a correr. Desceram juntos a colina, correndo o risco de saírem da estrada na escuridão. Georgos tropeçou duas vezes, mas conseguiu recuperar o equilíbrio; numa delas pisou numa pedra solta e sentiu uma torção no tornozelo, mas ignorou a dor e continuou a correr. Apesar da pressa, contudo, não esqueceu em nenhum momento de verificar a presença de Yvette a seu lado. Podia ouvir a respiração dela, em soluços.

Estavam a um terço da base da colina quando houve a explosão. O chão tremeu primeiro e depois a onda de som alcançou-os, um estrondo terrível. Segundos depois, houve uma segunda explosão e logo depois uma terceira, o céu se iluminando com um clarão entre amarelo e azul.

O clarão se repetiu, depois houve o reflexo das chamas, do óleo dos transformadores se incendiando. Contornando uma curva na estrada de cascalho, Georgos teve a sensação súbita de que algo estava diferente. Levou um momento para compreender o que era: seu objetivo fora alcançado. Todas as luzes de Millfield estavam apagadas.

Consciente da necessidade urgente de escapar, sem saber se o guarda de segurança conseguira ou não transmitir a mensagem pelo rádio, Georgos continuou a correr.

com profundo alivio, os dois próximos da exaustão total, ele descobriu que o carro estava onde o tinham deixado, atrás das árvores, ao pé da colina. Minutos depois, já estavam a caminho da cidade, deixando Millfield às escuras para trás.

- Você matou aqueles homens! Assassinou-os!

A voz de Yvette, no banco da frente, ao lado de Georgos, estava histérica, ainda ofegante da corrida.

- Não havia outro jeito.

Georgos respondeu rispidamente, sem virar a cabeça, os olhos fixados à frente na auto-estrada, onde tinham acabado de entrar. Estava guiando cuidadosamente, ficando um pouco abaixo da velocidade máxima permitida. A última coisa que desejava agora era ser detido pela patrulha rodoviária, por causa de alguma infração de trânsito. Sabia que havia sangue em suas roupas, do homem que esfaqueara, assim como havia também sangue na faca, que poderia ser facilmente identificado. Descobrira ainda que também sangrava abundantemente, do talho na coxa esquerda onde o arame penetrara mais fundo do que imaginara antes. E podia sentir o tornozelo inchar, em consequência da pisada na pedra solta.

Yvette se lamuriou:

- Você não precisava matá-los! Georgos gritou, furioso:

- Cale a boca ou vou matá-la também!

Ele estava reconstituindo mentalmente todos os detalhes do que acabara de acontecer, procurando recordar se ficara alguma pista que pudesse levar a si próprio ou a Yvette. Ambos haviam usado luvas na cerca e na colocação das cargas explosivas. Georgos só tirara a luva para ligar o mecanismo de tempo e mais tarde para disparar o revólver. Mas estava de luvas quando atacara o primeiro guarda com a faca e assim não haveria impressões digitais na maçaneta. Impressões no revólver? Claro que havia. Mas ele tivera a presença de espírito de trazer a arma; mais tarde, daria um jeito de fazê-la sumir.

Yvette estava novamente choramingando.

- Aquele homem que estava no carro era apenas um velho! Eu vi!

- Ele era um imundo porco fascista!

Georgos falou incisivamente, em parte para convencer a si próprio, porque a recordação do homem de cabelos grisalhos também o estava corroendo interiormente. Tentou afastar dos pensamentos a imagem da boca escancarada, a expressão aturdida, o grito abafado, a faca penetrando fundo; mas não conseguiu. Apesar de todo o seu condicionamento para ser um anarquista e das explosões que provocara depois do aprendizado, jamais matara antes alguém tão perto assim, e a experiência o deixara chocado. Só que jamais iria admiti-lo, para quem quer que fosse.

- Pode ir para a cadeia por homicídio! Georgos respondeu:

- E você também!

Não adiantaria explicar que ele já podia ser indiciado por homicídio... pelas sete mortes decorrentes da explosão na usina de La Mission e das cartas-bombas que enviara para a sede da GSP & L. Mas podia e devia esclarecer sua mulher sobre as consequências possíveis dos acontecimentos daquela noite.

- Veja se entende uma coisa, sua puta idiota! Está metida nisso tanto quanto eu! Esteve lá, participou de tudo, é tão culpada pela morte daqueles porcos como se tivesse enfiado a faca ou disparado o revólver. Por isso, o que quer que me possa acontecer, também acontecerá com você. Jamais se esqueça disso!

Georgos percebeu que conseguira fazer Yvete compreender, porque ela estava agora soluçando, as palavras sufocantes, incompreensíveis, dando a entender apenas que não gostaria de ter-se metido naquilo. Por um momento, Georgos sentiu alguma compaixão, uma onda de piedade invadiu-o. Mas a autodisciplina logo prevaleceu; ele descartou o pensamento, por ser fraco e contra-revolucionário.

Calculou que já estavam na metade do caminho de volta à cidade, quando percebeu algo que não vira antes por estar preocupado demais. A área pela qual estavam passando, normalmente intensamente ilumina- da e muito além de Millfield, estava também mergulhada na escuridão, até mesmo os lampiões das ruas apagados. com uma súbita satisfação, Georgos pensou: significava que os outros combatentes da liberdade haviam conseguido também atingir seus objetivos. Toda a batalha, travada sob seu comando, fora uma vitória espetacular!

Georgos começou a cantarolar, enquanto redigia mentalmente um comunicado para revelar ao mundo mais uma gloriosa vitória dos Amigos da Liberdade.

- Quando a energia foi cortada - disse Karen Sloan, em sua cadeira de rodas - Josie e eu estávamos voltando para casa no Humperdinck.

- Humperdinck? - repetiu Nim, sem entender.

Karen presenteou-os com um dos seus sorrisos radiantes e afetuosos.

- Humperdinck é o meu lindo e maravilhoso furgão. Eu o amo tanto que não poderia simplesmente chamá-lo de "carro" e por isso tratei de arrumar-lhe um nome.

Estavam na sala de estar do apartamento de Karen e era o início da noite, na primeira semana de novembro. Nim aceitara, depois de diversos adiamentos provocados pelas pressões do trabalho, um convite para jantar com ela. Jòsie estava na cozinha, aprontando o jantar.

O pequeno apartamento estava iluminado suavemente, era confortável e aconchegante. Lá fora, em contraste, a maior parte do norte da Califórnia estava sofrendo uma tempestade vinda do Pacífico, com ventos fortes e chuvas torrenciais, já no seu terceiro dia. Enquanto conversavam, a chuva batia contra as janelas.

Outros sons se fundiam, suavemente: o zumbido constante do aparelho que fazia Karen respirar, com o silvo do ar entrando e saindo; o barulho da louça na cozinha, um armário sendo aberto e fechado.

- Eu tinha ido a um cinema onde existe facilidades para as pessoas em cadeiras de rodas - explicou Karen. - Agora, com Humperdinck, posso fazer muitas coisas que antes eram impossíveis. Quando Josie estava guiando de volta, todas as luzes nas ruas e nos prédios se apagaram.

- O blackout atingiu uma área de mais de 250 quilómetros quadrados - comentou Nim, com um suspiro. - Tudo se apagou.

- Não sabíamos disso na ocasião. Mas pudemos ver que o blackout era amplo e por isso Josie seguiu diretamente para o Hospital Redwood Grove, que é para onde sempre vou quando tenho algum problema.. Eles dispõem de um gerador de emergência. Cuidaram de mim e fiquei internada durante três dias, até que o fornecimento de energia foi inteiramente restabelecido.

- Para dizer a verdade, Karen, eu já sabia de quase tudo. Assim que me foi possível, depois das explosões e do blackout, telefonei para cá. Tinham-me chamado em casa e eu estava no escritório. Como ninguém atendesse, pedi a alguém que entrasse em contato com o hospital indicado na sua ficha de informações. Disseram que você estava lá e por isso parei de me preocupar, porque havia muitas coisas a fazer naquela noite.

- Foi uma coisa horrível, Nimrod. Não apenas o blackout, mas também aqueles dois homens assassinados.

- Eles eram veteranos, já estavam aposentados. Voltaram ao trabalho porque havia escassez de homens experientes no setor de segurança. Infelizmente, a experiência deles pertencia a outra era e descobrimos depois que o pior que já tinham enfrentado era um invasor ocasional ou um pequeno ladrão. Não eram adversários para um assassino.

- O culpado ainda não foi apanhado? Nim mexeu a cabeça.

- É alguém que nós e a polícia estamos procurando há muito tempo. O pior é que ainda não temos a menor ideia de quem seja ou de onde opera.

- Mas não é um grupo... os Amigos da Liberdade?

- É, sim. Mas a polícia acredita que o grupo seja pequeno, provavelmente não mais do que meia dúzia de pessoas, e que um único homem é o cérebro e líder. Dizem que há semelhanças em todas as sabotagens até agora, o que aponta para essa conclusão. Algo assim como uma assinatura pessoal. Quem quer que seja, o homem é um maníaco homicida.

Nim falava com veemência. O efeito das últimas explosões no sistema da GSP & L fora muito pior do que nas vezes anteriores. Numa área anormalmente ampla, casas, lojas e fábricas haviam ficado privadas de energia elétrica por três a quatro dias, em muitos casos até uma semana. O que fez Nim recordar o comentário de Harry London: "Aqueles doidos estão ficando cada vez mais espertos. "

Somente com Um esforço gigantesco e dispendioso, que exigira o aproveitamente de todos os transformadores de reserva da GSP & L e alguns emprestados de outras companhias, com todo o pessoal disponível sendo deslocado para efetuar os reparos, é que o fornecimento pudera ser restabelecido tão depressa. Apesar de tudo, a GSP & L estava sendo criticada pelo fracasso em proteger adequadamente suas instalações. "O público tem o direito de perguntar se a Golden State Power & Light está fazendo tudo o que pode fazer para evitar a repetição dos lamentáveis incidentes", dissera o Califórnia Examiner num editorial. "A julgar pelas informações disponíveis, a resposta é não" Contudo, o jornal não apresentara qualquer sugestão sobre como se poderia proteger as incontáveis e espalhadas instalações da GSP & L durante 24 horas por dia.

Igualmente desanimadora era a ausência de pistas imediatamente aproveitáveis. É verdade que a polícia obtivera outra impressão de voz, combinando com as anteriores, da bombástica gravação recebida por uma emissora, no dia seguinte às explosões. Além disso, haviam encontrado também alguns fios de sarja num arame cortado perto do local em que ocorrera o duplo homicídio, quase que certamente da roupa usada pelo assassino. No mesmo arame, havia um pouco de sangue seco, que fora devidamente classificado e diferia dos tipos dos dois guardas mortos. Mas um detetive da polícia dissera a Nim, num momento de franqueza:

- Essas coisas podem ser úteis quando temos alguém ou alguma coisa para estabelecer o vínculo. Neste momento, porém, ainda estamos tão longe de chegar ao culpado quanto antes.

Interrompendo os pensamentos dele, Karen disse:

- Nimrod, já se passaram quase dois meses desde que nos encontramos pela última vez. Senti muita saudade.

Nim murmurou, em tom pesaroso:

- Sinto muito... mesmo.

Agora que estava ali, Nim se perguntava como pudera ficar tanto tempo longe. Karen continuava tão linda quanto antes. E quando se haviam beijado, um beijo prolongado, alguns minutos antes, os lábios dela estavam maravilhosos, exatamente como lhe haviam parecido antes. Era como se, num súbito instante, o hiato de tempo houvesse desaparecido.

Havia algo mais de que Nim estava consciente: na companhia de Karen experimentava uma sensação de paz, como acontecia com bem poucas pessoas que conhecia. Era difícil definir a sensação. Talvez a explicação fosse o fato de que Karen, que aceitara as limitações de sua própria vida, transmitia uma tranquilidade e bom senso imensos, sugerindo que outros problemas também poderiam ser resolvidos.

- Os tempos têm sido bastante difíceis para você, Nimrod. Sei disso porque li o que os jornais escreveram a seu respeito e acompanhei os noticiários da televisão.

Nim franziu o rosto.

- As audiências sobre Tunipah... Disseram que eu caí em desgraça, que a culpa foi toda minha.

Karen disse rispidamente:

- Não acredita nisso, assim como eu também não acredito. O que você disse era absolutamente sensato, mas quase todas as reportagens não deram a menor importância.

- A qualquer momento que desejar, Karen, pode cuidar das minhas relações públicas.

Ela hesitou por um instante.

- Depois do que aconteceu, Nimrod, escrevi alguns versos para você. Ia mandá-los, mas depois pensei que você já devia estar cansado de ouvir tanta gente falar-lhe uma porção de coisas.

- Mas... guardou os versos? Karen fez um gesto com a cabeça.

- Guardei. Está ali, na segunda gaveta.

Nim se levantou e foi até uma escrivaninha por baixo de uma prateleira de livros. Abrindo a gaveta indicada, avistou uma folha azul. Pegou e leu o que estava escrito:

O dedo em movimento algumas vezes volta.

Não para reescrever mas para reler;

E o que foi antes ignorado, escarnecido,

Pode muito bem em uma lua ou duas,

Tal vez em anos,

Ser aclamado como sabedoria.

É preciso tanta coragem

Para falar francamente antes do tempo

E enfrentar o descrédito dos menos perceptivos,

Assumir o fardo das injúrias.

Querido Nimrod!

Jamais esqueça: um profeta raramente é louvado

Antes do pôr-do-sol

Do dia em que primeiro proclamou

Verdades amargas.

Mas se e quando as suas verdades

com o tempo se tornarem patentes,

O autor plenamente reabilitado,

Seja generoso e saiba perdoar no momento da colheita,

Seja tolerante e liberal,

Ache graça nas contradições da vida.

Pois nem todos, apenas uns poucos, São presbitas: a visão ampla, a sagacidade, Por acaso, por loteria ao nascer, Concedidas pela natureza tão ocupada.

Silenciosamente, Nim leu os versos pela segunda vez. E finalmente disse:

- Você está sempre me surpreendendo, Karen. E sempre que isso acontece, fico sem saber que dizer, a não ser que me sinto comovido e grato.

Nesse momento, Josie, baixa e robusta, a expressão radiante, entrou na sala com uma bandeja carregada, anunciando:

- O jantar está servido!

Era uma refeição simples, mas saborosa: uma salada Waldorf, seguida por casserole de galinha e depois sorvete de limão. Nim trouxera o vinho, um Heitz Cellar Cabernet Sauvignon, magnífico e difícil de se encontrar. Como na ocasião anterior, Nim deu comida a Karen, experimentando a mesma sensação de intensa intimidade partilhada.

Somente uma ou duas vezes, com um vestígio de sentimento de culpa, lembrou a desculpa que apresentara para não estar em casa naquela noite: uma reunião de negócios para a GSP & L. Mas racionalizou que passar a noite com Karen era diferente de outras ocasiões, em que mentira para Ruth. Talvez Ruth não tivesse acreditado na desculpa; mas se tal acontecera, ela não deixara transparecer qualquer indício quando ele saíra de casa pela manhã. Havia algo mais em seu favor, pensou Nim: nas últimas quatro semanas, houvera apenas uma única outra ocasião em que não chegara em casa a tempo de participar do jantar da família e estava então realmente trabalhando até tarde.

Tranquila e facilmente, Nim e Karen conversaram, durante o jantar intensamente pessoal.

Josie tirara os pratos e trouxera o café, quando, pela segunda vez, foi abordado o assunto do furgão de Karen, Humperdinck. O veículo havia sido adaptado sob a orientação direta de Ray Paulsen, para atender às necessidades da cadeira de rodas de uma pessoa quadriplégica, sendo comprado da GSP & L pelos pais de Karen.

- Uma coisa que não expliquei - disse Karen - foi que não sou realmente a proprietária de Humperdinck. Não podia ser. Está registrado em nome de meu pai, embora seja eu quem o use.

O motivo para essa providência era o seguro. Karen esclareceu:

- As taxas de seguro para uma pessoa incapacitada são astronómicas, apesar de uma pessoa como eu jamais poder dirigir. com o carro em nome de meu pai, os prémios do seguro são mais. baixos. É por isso que não sou oficialmente a proprietária de Humperdinck. - Fez uma pausa, antes de acrescentar: - Além do seguro, eu estava preocupada... e ainda estou um pouco... com o fato de Papai ter tomado dinheiro emprestado para pagar Humperdinck. O banco negou o empréstimo, e Papai teve de ir a uma financeira, onde arrumou o dinheiro, só que a juros bem mais altos. Sei que será difícil para ele pagar o empréstimo, pois seus negócios não estão indo muito bem. Além do mais, ele e Mamãe sempre me ajudam com algum dinheiro, quando minha pensão é insuficiente. Mesmo assim, insistiram para que eu não me preocupasse, pois resolveriam tudo.

Nim comentou, pensativo:

- Talvez eu possa ajudar. Poderia contribuir pessoalmente com algum dinheiro e ver se a companhia não poderia doar...

Karen interrompeu-o bruscamente:

- Não, de jeito nenhum! Nossa amizade é maravilhosa, Nimrod, e eu a prezo muito. Mas não vou aceitar dinheiro de você... nunca... e nisso está incluído o que puder pedir a outras pessoas. Se minha família faz alguma coisa por mim, é totalmente diferente, porque nos unimos para conseguir as coisas. Mas isso é tudo. Além do mais, você já nos ajudou bastante com Humperdinck. - Ela fez uma pausa; ao voltar a falar, a voz era mais suave: - Sou uma pessoa orgulhosa e independente. Espero que você compreenda.

- Claro que compreendo e a respeito por isso.

- Ótimo! O respeito é importante. E agora, Nimrod querido, só vai poder acreditar a diferença que Humperdinck fez em minha vida, se me deixasse mostrar-lhe. Posso fazer um pedido atrevido?

- Pode pedir-me qualquer coisa.

- Não poderíamos sair juntos um dia... talvez para irmos a um concerto sinfónico?

Nim hesitou somente por um momento.

- Por que não?

O rosto de Karen se iluminou com um sorriso e ela disse, com o maior entusiasmo:

- Basta dizer-me quando estará livre e providenciarei tudo imediatamente. Ah, como sou feliz! - Uma pausa e ela acrescentou, impulsivamente: - Beije-me de novo, Nimrod.

Quando Nim se aproximou, ela inclinou a cabeça para a frente, os lábios procurando os dele, ansiosamente. Ele pôs a mão atrás da cabeça dela, os dedos afagando gentilmente os cabelos louros e compridos. Karen reagiu comprimindo os lábios contra os dele com mais força. Nim descobriu-se emocional e sexualmente excitado e ocorreu-lhe um pensamento: quantas promessas os minutos seguintes não poderiam conter, se Karen fosse normal ao invés de paralítica! Ele rompeu o beijo, afastando o pensamento. Acariciou os cabelos de Karen por mais um momento e depois voltou a sua cadeira.

- Se eu soubesse como - murmurou Karen - juro que neste momento começaria a ronronar de satisfação.

Nim ouviu uma tosse discreta e virou a cabeça, deparando com Josie parada na porta. Ela tirara o uniforme branco que usava enquanto servia o jantar e estava agora com um vestido marrom de lã. Nim perguntou-se há quanto tempo ela não estaria parada ali.

- Já está pronta para ir, Josie? - indagou Karen, acrescentando em seguida para Nim: - Josie vai visitar a família esta noite.

- Já estou pronta, sim. Mas não seria melhor levá-la para a cama antes de sair?

- Acho que sim. - Karen fez uma pausa, as faces se tornando ligeiramente vermelhas. - Ou posso ir deitar mais tarde, se o Sr. Goldman não se importar...

- Se me disser o que fazer, terei o maior prazer - declarou Nim.

- Então está tudo acertado - disse Josie. - Já vou embora. Boa noite.

Poucos minutos depois, eles ouviram o barulho da porta do apartamento sendo fechada. Quando Karen falou, parecia haver um toque de nervosismo em sua voz:

- Josie só vai voltar amanhã de manhã. Normalmente, tenho uma empregada de reserva para ficar comigo nestas emergências. Mas como ela não está passando bem, minha irmã mais velha virá passar a noite aqui. - Ela olhou para um relógio na parede. - Cynthia deverá chegar dentro de uma hora e meia. Pode ficar esperando?

- Claro.

- Se houver algum problema para você, Jiminy... o zelador a quem conheceu na primeira vez em que esteve aqui... poderá ficar comigo.

Nim disse firmemente:

- Ao diabo com Jiminy! Estou aqui e vou ficar!

- Fico contente por isso. - Karen sorriu. - Ainda resta um pouco de vinho. Vamos acabar com a garrafa?

- Boa ideia.

Nim foi à cozinha, encontrou copos e o Cabernet já novamente arrolhado. Voltando à sala, serviu o vinho restante nos dois copos e segurou um deles, enquanto Karen tomava um gole.

- Estou sentindo um calor maravilhoso - murmurou Karen. - O vinho ajudou, mas não é só por isso.

Num súbito impulso, Nim inclinou-se, segurou o rosto de Karen em sua mão e beijou-a novamente. Ela reagiu tão ardentemente quanto nas outras ocasiões, só que agora o beijo foi ainda mais prolongado. Finalmente, um tanto relutante, Nim afastou a cabeça, embora seus rostos permanecessem bem próximos.

- Nimrod...

Era um mero sussurro.

- O que é, Karen?

- Acho que estou pronta para deitar.

Nim descobriu que seu pulso estava acelerado.

- Diga-me o que fazer.

- Primeiro tem de desligar a cadeira da tomada.

Nim foi para trás da cadeira e assim o fez. O fio elástico foi alojarse numa reentrância, enquanto a bateria entrava em funcionamento, Um sorriso malicioso estampou-se subitamente no rosto de Karen.

- Siga-me, Nimrod.

Usando o tubo de controle da cadeira de rodas elétrica e com uma rapidez nascida da prática que deixou Nim surpreso, Karen manobrou pela sala de estar, atravessou um pequeno corredor e entrou no quarto. Havia ali uma única cama, impecavelmente arrumada. Ao lado, estava acesa uma lâmpada fraca. Karen virou a cadeira, ao pé da cama.

- Pronto! - Ela olhou para Nim, na expectativa.

- O que devo fazer agora?

- Vai levantar-me da cadeira e depois girar, como se estivesse jogando golfe, pondo-me na cama. Josie costuma usar uma tipóia que levanta como um guincho. Mas você é forte, Nimrod, e pode levantar-me em seus braços.

Ele assim o fez, com gentileza, mas firmemente, consciente do corpo quente e macio de Karen. Depois, executou todas as instruções que ela deu relativas ao aparelho respiratório. Ligou um pequeno respirador Bantam, já ao lado da cama. Ouviu imediatamente o zumbido do aparelho entrando em funcionamento; o mostrador indicava 15 libras de pressão. Pôs o tubo na boca de Karen; quando ela começou a respirar, a pressão subiu para 30 libras. Karen já podia dispensar o cinto pneumático que estava usando por baixo das roupas.

- Mais tarde, Nimrod, vou pedir que coloque o respirador peitoral. Mas não agora.

Ela estava estendida na cama, os cabelos compridos espalhados sobre o travesseiro. Era uma visão que teria excitado Botticelli, pensou Nim.

- O, que faço agora, Karen?

- Agora... - Ela hesitou e Nim percebeu, à luz fraca, que suas faces novamente coravam. - Agora você me despe, Nimrod...

Os olhos de Karen estavam parcialmente fechados. As mãos de Nim tremiam, e ele se perguntou se podia ser realmente verdade o que estava acontecendo. Lembrou-se de que, não fazia muito tempo, dissera a si mesmo que apaixonar-se por Karen envolveria o amor sem sexo, em contraste com o sexo sem amor que experimentara tantas vezes antes. Estaria errado? Será que poderia haver amor e sexo com Karen? Mas se acontecesse, ele seria certamente um homem vil, por tirar proveito brutalmente da impotência dela. Poderia? Deveria? Os problemas éticos pareciam um pesadelo confuso de perguntas sem respostas, um labirinto moral.

Tinha desabotoado a blusa de Karen. Levantou-a pelos ombros, enquanto puxava a blusa pelos braços. Ela não usava soutien. Os seios pequenos eram perfeitos, os mamilos estavam ligeiramente erectos.

- Acaricie-me, Nimrod...

Era uma ordem, em tom suave. Reagindo, Nim passou as mãos pelos seios dela, as pontas dos dedos acariciando-os. Depois, ajoelhou-se e beijou-os. Sentiu imediatamente os mamilos se endurecerem. Karen murmurou:

- Ah, é maravilhoso... - Um momento depois, ela acrescentou:

- A saia é desabotoada pelo lado esquerdo.

Sempre gentilmente, Nim desabotoou a saia e tirou-a. Quando Karen ficou nua, as dúvidas e ansiedade ainda o atormentavam. Mas moveu as mãos, lentamente, sensualmente, como sabia agora que ela estava querendo. Murmúrios suaves deixavam patente o prazer que ela estava experimentando. Depois de algum tempo, Karen sussurrou:

- Quero dizer-lhe uma coisa.

- Estou escutando...

- Não sou virgem. Houve um rapaz... aconteceu quando eu tinha

15 anos, pouco antes de... - Ela parou de falar abruptamente e Nim viu que as lágrimas escorriam por suas faces.

- Não, Karen!

Ela sacudiu a cabeça.

- Tenho que contar! Porque quero que você saiba que não houve ninguém em todos esses anos, entre aquele dia tão distante... e agora.

Nim ficou esperando, deixando que o significado das palavras dela penetrassem fundo em sua consciência, antes de finalmente murmurar:

- Está querendo dizer que...

- Quero você, Nimrod. E quero todo! Agora!

- Oh, Deus...

Nim balbuciou as palavras, sabendo que seu próprio desejo, nunca difícil de liberar, estava começando a prevalecer, com uma urgência irresistível. Acabou descartando-se de todas as equações complexas e começou a tirar as próprias roupas, rapidamente.

Nim sempre imaginara, como outros homens certamente o faziam, como seria fazer amor sexual com uma mulher paralítica. Será que alguém como Karen seria totalmente passiva? O homem teria de fazer todo o esforço, sem obter qualquer reação? E, ao final, haveria prazer para um só, para os dois ou para nenhum?

Ele estava descobrindo as respostas e eram todas inesperadas.

Karen exigia, reagia, era excitante, extremamente satisfatória.

De certa forma, ela era de fato passiva. Tirando a cabeça, o resto do corpo era incapaz de qualquer movimento. Contudo, Nim podia sentir o efeito do ato sexual irradiando-se por sua pele, vagina, seios, acima de tudo nos gritos e beijos ardentes. Não era absolutamente, pensou ele num súbito relance, a mesma coisa que fazer amor com um manequim, como muitos podiam pensar. Assim como o prazer também não foi breve. Foi prolongado, como se nenhum dos dois quisesse terminá-lo. Nim tinha a sensação, repetidamente, de erotismo glorioso, de flutuar e subir pelas nuvens, de alegria e amor intenso, até que finalmente o fim inevitável chegou: a conquista de uma montanha, o clímax de uma sinfonia, o auge de um sonho. E para ambosl Uma mulher totalmente paralítica podia ter um orgasmo? A resposta, categórica, era sim

E depois... mais uma vez... um retorno à ternura, ao amor suave e gentil.

Nim ficou estendido, imóvel, feliz, exausto. Imaginou o que ela estaria pensando naquele momento e se depois iria arrepender-se.

Como se a telepatia tivesse transmitido ambas as perguntas, Karen remexeu-se e murmurou, em tom sonolento, mas feliz:

- Nimrod, um poderoso caçador do Senhor... - Uma pausa e ela acrescentou: - Este foi o melhor dia de toda a minha vida...

Cynthia disse:

- Tive um dia difícil e bem que estou precisando de um drinque. Costuma haver uísque por aqui. Vai querer também?

- Mas claro! - respondeu Nim.

Já se passara uma hora desde que ele fizera amor com Karen, que estava agora dormindo. E ele sentia também a necessidade de um drinque. A irmã mais velha de Karen entrara no apartamento há 20 minutos, usando sua própria chave. Nim terminara de se vestir algum tempo antes.

Ela apresentara-se como Cynthia Woolworth:

- Antes de fazer qualquer pergunta, vou logo dizendo que não, que infelizmente meu marido não tem qualquer relação com a família rica. Eu costumava passar metade do tempo respondendo a essa pergunta; agora, vou informando de saída. Sloan era mais simples.

Cynthia era diferente de Karen, embora tivessem alguns pontos de semelhança. Karen era loura e esguia, Cynthia era morena e tinha o corpo cheio, embora não excessivamente. A personalidade de Cynthia era também mais vigorosa e exuberante. Mas isso talvez fosse explicado, pensou Nim, pelo infortúnio que Karen tivera na adolescência e pelas diferenças no estilo de vida desde então. O que ambas tinham em comum era uma rara beleza natural, a mesma simetria delicada das feições, os lábios cheios, olhos azuis muito grandes, uma pele impecável e, o que era mais desenvolvido em Cynthia, as mãos finas e elegantes. Ocorreu a Nim que as duas deviam ter herdado aqueles encantos da mãe, Henrietta, em quem ainda perduravam os vestígios da beleza antiga. Ele recordou ainda que Cynthia era três anos mais velha do que Karen; sendo assim, tinha 42 anos, embora parecesse mais moça.

Cynthia encontrou a garrafa de uísque, preparou eficientemente os drinques, com soda e gelo. A economia de movimentos indicava que ela estava acostumada a cuidar de si mesma. Demonstrara-o desde o momento em que entrara no apartamento, tirando a capa molhada e pendurando-a no banheiro, seguindo-se depois as apresentações mútuas.

- Pode sentar-se e relaxar - dissera ela. - Trouxe o jornal vespertino. Fique lendo, enquanto faço o que for necessário por minha irmã.

Ela entrara no quarto de Karen e fechara a porta. Nim pudera ouvir um murmúrio de vozes, mas nada mais além disso. Ao sair, 15 minutos depois, Cynthia anunciara que Karen estava dormindo.

Agora, sentada diante de Nim, balançando o uísque no copo, Cynthia informou-o:

- Sei o que aconteceu aqui esta noite. Karen me contou. Desconcertado com a declaração abrupta, Nim mal conseguiu balbuciar:

- Entendo...

Cynthia jogou a cabeça para trás e soltou uma risada. Apontou um dedo acusador para Nim e disse:

- Está com medo! Pensa que vou bancar a irmã mais velha vingadora! Ou que vou chamar a polícia e gritar "Tarado! Tarado! "

Nim disse, constrangido:

- Não sei se quero ou devo discutir com você...

- Ora, deixe disso! - Cynthia tinha continuado a rir; parou subitamente, assumindo uma expressão séria. - Escute, Nimrod... se posso chamá-lo assim... lamento que tenha ficado constrangido e sei muito bem que isso aconteceu. Pois deixe-me dizer-lhe uma coisa: Karen acha que você é o homem mais gentil, amoroso, terno e bondoso que já existiu e que esta noite foi a melhor de toda a sua vida. E se está interessado numa opinião alheia, também acho a mesma coisa.

Nim ficou olhando para ela, aturdido. E descobriu, pela segunda vez naquela noite, que estava vendo uma mulher chorar.

- Oh, diabo, eu não queria que isso acontecesse! - Cynthia enxugou as lágrimas com um lencinho. - Mas acho que estou tão feliz e satisfeita quanto a própria Karen. - Ela fitou-o com uma expressão de aprovação, antes de acrescentar: - Ou quase.

A tensão que Nim experimentara um instante antes dissipou-se rapidamente. Sorrindo, ele murmurou:

- Só posso dizer uma coisa: essa não!

- Posso dizer mais do que isso e certamente o farei. Mas, antes, que tal outro drinque?

Sem esperar por uma resposta, ela pegou o copo de Nim e tornou a enchê-lo, juntamente com o seu. Voltando a sentar-se, tomou um gole de uísque antes de começar a falar, lentamente, escolhendo cuidadosamente as palavras:

- Para o seu bem, Nimrod, assim como para o de Karen, quero que compreenda uma coisa. O que aconteceu entre você e minha irmã esta noite foi maravilhoso e lindo. Pode não saber ou não compreender, mas algumas pessoas tratam as quadriplégicas como se fossem leprosas. Já vi acontecer algumas vezes, e Karen experimenta o problema muito mais. É por isso que, para mim, você sempre foi o Sr. bom Sujeito. Jamais pensou ou tratou Karen como outra coisa que não uma mulher... Oh, não, pelo amor de Deus!... Já estou chorando de novo!

O lencinho de Cynthia era visivelmente insuficiente para enxugar as lágrimas. Nim estendeu seu próprio lenço, e Cynthia fitou-o com uma expressão de gratidão.

- São as pequenas coisas que você faz... Karen me contou... Nim murmurou, humildemente:

- Tudo começou... a minha primeira visita a Karen... acidentalmente.

- Como acontece com a maioria das coisas.

- E o que aconteceu entre nós esta noite... não planejei nada, nem mesmo pensava... - Nim fez uma pausa. - Simplesmente aconteceu.

- Sei disso. E já que estamos falando a respeito, deixe-me perguntar-lhe outra coisa. Teve... ou tem... algum sentimento de culpa?

- Tenho - assentiu Nim.

- Pois não tenha! Há algum tempo, quando eu

estava procurando descobrir a melhor maneira de ajudar Karen, li um artigo escrito por um homem chamado Milton Diamond. Ele é professor de Medicina no Havaí e fez um estudo sobre o sexo e as pessoas incapacitadas. Posso não estar repetindo as palavras com toda exatidão, mas o sentido do que ele escreveu foi o seguinte: Os incapacitados já têm problemas suficientes e não precisam que lhes sejam impingidos os valores convencionais, impregnados de sentimento de culpa... a satisfação sexual particular tem precedência sobre a aprovação pública; portanto, qualquer sentimento de culpa é um erro... e sexualmente tudo é válido para as pessoas incapacitadas. - Cynthia fez uma pausa, antes de acrescentar, com algumr veemência: - Também não precisa ter qualquer sentimento de culpa! Absolutamente nenhum!

- Não tenho certeza se conseguirei aguentar mais alguma surpresa esta noite. De qualquer forma, estou satisfeito que tenhamos conversado.

- E eu também estou. Tive de aprender muita coisa sobre Karen, assim como você também terá de fazê-lo. - Cynthia tomou outro gole do uísque e depois disse, pensativa: - Poderia acreditar se lhe contasse que, quando Karen tinha dezoito anos, eu a odiava?

- É realmente difícil de acreditar.

- Pois é verdade. Eu a odiava porque ela recebia todas as atenções dos nossos pais e amigos. Era sempre Karen isso e Karen aquilo, o que podemos fazer por nossa pobre e querida Karen? Nunca se dizia O que podemos fazer pela saudável e normal Cynthial Foi no meu vigésimo primeiro aniversário. Eu queria dar uma festa, mas Mamãe disse que era "impróprio", por causa de Karen. Assim, tivemos apenas um pequeno chá em família, apenas meus pais e eu. Karen estava no hospital na ocasião. Foi um chá horrível, com um bolo ainda pior. Quanto aos meus presentes de aniversário, foram apenas simbólicos, pois tenho certeza de que pode imaginar para onde estava indo todo o dinheiro disponível, até o último cent. Sinto-me envergonhada ao confessar, mas naquela noite rezei para que Karen morresse.

No silêncio que se seguiu, Nim pôde ouvir, apesar das cortinas estarem fechadas, a chuva batendo contra as janelas. Compreendera perfeitamente o que Cynthia acabara de lhe dizer e estava comovido. Contudo, uma parte de sua mente pensava em outra coisa: Mas que chuva maravilhosa! Para um homem que trabalhava numa companhia de serviços públicos como a GSP & L, a chuva significava a acumulação de potência hidrelétrica para aguentar a estação da seca, ) que se seguiria. Fez um es forço para voltar à sala e perguntou a Cynthia:

- E quando foi que seus sentimentos mudaram?

- Só depois de alguns anos e mesmo assim lentamente. Antes disso, passei por um período de sentimento de culpa. Sentia-me culpada porque era normal e Karen não era. Sentia-me culpada porque podia fazer coisas de que ela não era capaz, como jogar ténis, ir a festas, namorar. - Cynthia suspirou. - Eu não era uma boa irmã.

- Mas é agora.

- Na medida do possível... depois de cuidar de marido, casa, filhos. Foi depois que meu primeiro filho nasceu que comecei a compreender e apreciar minha irmã mais moça. Foi só aí que nos tornamos íntimas. Agora, somos muito amigas, partilhamos ideias e confidências. Não há nada que eu não faça por Karen. E não há coisa alguma que ela não me conte.

Nim disse secamente:

- Era o que eu já tinha imaginado.

Continuaram a conversar. Cynthia falou mais coisas a respeito de si mesma. Tinha casado aos 22 anos, entre outros motivos para escapar de casa. Desde então, o marido tivera uma sucessão interminável de empregos; o atual era como vendedor de sapatos. Nim imaginou que o casamento era um fracasso, e que Cynthia e o marido só continuavam juntos por falta de alternativa e por causa dos três filhos. Antes do casamento, Cynthia tomara algumas lições de canto; agora, quatro noites por semana, cantava num night-club de segunda classe, para complementar o minguado salário do marido. Naquela noite estava de folga e ficaria com Karen, enquanto o marido tomava conta do único filho que ainda estava em casa. Cynthia tomou mais dois uísques enquanto conversavam. Nim nào a acompanhou. Não demorou muito para que a voz dela estivesse um pouco enrolada.

Nim finalmente levantou-se

- Já é tarde, tenho de ir.

- vou buscar sua capa. Vai precisar, mesmo que seja para andar até o carro. - Ela fez uma pausa, antes de acrescentar: - Se quiser, pode ficar aqui. Há um sofá-cama em que pode dormir.

- Obrigado, mas tenho de ir.

Cynthia ajudou-o a vestir a capa. Na porta do apartamento, beijouo nos lábios.

- Isso é em parte por Karen... e em parte por mim.

Voltando para casa, Nim tentou repelir o pensamento, por considerá-lo predatório e desleal. Mas o pensamento persistiu: havia tantas mulheres atraentes e desejáveis no mundo, e tantas estavam disponíveis, dispostas a partilhar os prazeres sexuais! A experiência, instinto, os indícios inconfundíveis que ela própria transmitira, tudo lhe dizia: Cynthia também estava disponível.

Entre outras coisas, Nim era um profundo conhecedor de vinhos. - Tinha olfato e paladar aguçados e uma atração especial por variedades de vinhos do Vale de Nafta, que eram os melhores da Califórnia e nos bons anos se igualavam aos grandes vinhos da'França. Por isso, ficou satisfeito pela oportunidade de ir a Napa Valley, em companhia de Eric Humphrey, apesar de ser final de novembro e mesmo sem ter a menor ideia da razão pela qual fora convidado.

O motivo da viagem era comemorar uma volta ao lar. A volta honrosa, sentimental e vitoriosa de um dos mais eminentes filhos da Califórnia.

A volta de Paul Sherman Yale.

Até duas semanas atrás, ele fora um respeitado Ministro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.

Se havia alguém que merecia o título de "Mister Califórnia" era certamente Paul Sherman Yale. Tudo o que um californiano podia desejar ou se empenhar para alcançar fora realizado em sua carreira extraordinária, que agora chegava ao fim.

Desde vinte e poucos anos, quando se formara com todas as honras na Faculdade de Direito de Stanford, dois anos antes da maioria dos seus contemporâneos, até seu octogésimo aniversário, que acabara de festejar, Paul Yale ocupara uma interminável sucessão de cargos públicos, cada vez mais importantes. Como um jovem advogado, adquirira reputação em todo o Estado como defensor dos pobres e desamparados. Candidatara-se e fora eleito para a Assembleia Estadual da Califórnia. Depois de dois mandatos, tornara-se o membro mais jovem já eleito para o Senado estadual. Sua atuação nas duas casas legislativas fora extraordinária. Fora o autor das primeiras leis para defender as minorias e garantir melhores condições aos trabalhadores. Também se batera por leis que protegiam os lavradores e pescadores da Califórnia.

Deixando o Senado, Paul Sherman Yale fora eleito para o cargo de Procurador-Geral da Califórnia, declarando guerra ao crime organizado e mandando para a cadeia alguns dos seus chefes. O passo lógico seguinte era o cargo de Governador do Estado, que ele poderia ter conquistado facilmente, se assim o desejasse. Em vez disso, Yale aceitara um convite do Presidente Truman para preencher uma vaga no Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Fora rapidamente confirmado nas audiências do Senado, uma conclusão que era de se esperar, já que, tanto na ocasião como posteriormente, nenhuma aragem de escândalo ou corrupção envolvera seu nome, o motivo pelo qual de vez em quando lhe aplicavam outro apelido: "Mister Integridade".

Enquanto servia no mais alto tribunal do país, Yale escrevera muitos pareceres que refletiam seus princípios humanistas, ao mesmo tempo em que eram elogiados pelos estudiosos como "direito puro". Até mesmo seus pareceres divergentes da maioria eram amplamente citados e alguns provocaram mudanças legislativas. Em meio a tudo, Yale jamais esquecera que ele e sua esposa Beth eram californianos, e em todas as oportunidades manifestava sua afeição ao Estado em que nascera.

Quando chegara à conclusão de que seu trabalho estava concluído, Yale renunciara ao cargo e deixara Washington, sem qualquer alarde, o que era típico de seu comportamento. Numa entrevista a Newsweek, dissera que estava voltando "para o Oeste e para casa". Rejeitara a sugestão de um gigantesco banquete em sua homenagem em Sacramento, mas acabara concordando com um almoço mais modesto de boas-vindas no lugar onde nascera e que sempre amara, Napa Valley, onde os Yales pretendiam passar os"últimos anos de suas vidas.

Entre os convidados, por sugestão do próprio Yale, estava o presidente da Golden State Power & Light. Humphrey pedira e obtivera um convite extra para seu assistente, Nim.

A caminho de Napa Valley, na limusine com motorista da presidência da companhia, Humphrey mostrou-se bastante afável, enquanto trabalhava com Nim em diversos planos e problemas, como sempre faziam em viagens assim. Era evidente que o presidente já esquecera sua insatisfação com Nim. O objetivo daquela viagem não foi mencionado em momento algum.

Mesmo à entrada do inverno e várias semanas depois da época da colheita, o vale era extraordinariamente bonito. Era um dia ensolarado, claro e ameno, depois de vários dias de chuva. Já se podiam ver as primeiras ervas daninhas, cor de mostarda, crescendo entre as videiras, agora sem folhas e que em breve seriam podadas para o ano seguinte. Nas semanas subsequentes, as ervas daninhas cresceriam em profusão, até serem cortadas para servirem como fertilizante e, segundo alguns, acrescentarem uma pungência especial às uvas e vinho.

- Observe como as videiras estão espaçadas - comentou Humphrey, que largara o trabalho ao entrarem na região central do vale, onde as videiras se estendiam a perder de vista até as distantes colinas verdejantes, em todas as direções. - O espaçamento é muito maior do que antigamente. É para permitir a colheita mecânica, o meio encontrado pelos produtores para derrotar os sindicatos. Os líderes sindicais estão privando de empregos seus próprios comandados, por sua intransigência. Não vai demorar muito para que a utilização de mão-de-obra aqui seja mínima, a maioria dos trabalhos realizada por máquinas, com muito mais eficiência.

Passaram pela cidadezinha de Vountville. Alguns quilómetros adiante, entre Oakville e Rutherford, entraram na Vinícola Robert Mondavi, onde seria realizado o almoço.

O convidado de honra e sua esposa haviam chegado cedo e estavam no elegante salão da vinícola, recebendo os demais convidados. Humphrey, que já se encontrara antes com os Yales por diversas vezes, apresentou Nim.

Paul Sherman Yale era baixo, empertigado e lépido, os cabelos brancos escassos, olhos castanhos que pareciam penetrar até o fundo do que quer que estivesse olhando, uma exuberância que não combinava com seus oitenta anos de idade. Para surpresa de Nim, ele disse:

- Eu estava mesmo aguardando a oportunidade de conhecê-lo, meu jovem. Antes de você voltar para a cidade, vamos encontrar um canto sossegado para podermos conversar um pouco.

Beth Yale, uma mulher graciosa e simpática, que se casara com o marido há mais de cinquenta anos, quando ele era um jovem deputado estadual e ela sua secretária, disse a Nim:

- Acho que vai gostar de trabalhar com Paul. A maioria gosta.

Assim que pôde, Nim puxou Humphrey para um lado e perguntoulhe em voz baixa:

- O que está acontecendo, Eric? Por que viemos até aqui?

- Fiz uma promessa, Nim. Se contasse agora, a estaria quebrando. Espere mais um pouco.

À medida que os convidados que chegavam iam-se multiplicando e aumentava interminavelmente a fila. dos que esperavam para apertar a mão dos Yales, foi-se tornando cada vez mais patente a solenidade da ocasião. Parecia que todo o Napa Valley comparecera para apresentar suas homenagens. Nim reconheceu os rostos ligados a algumas das maiores vinícolas da Califórnia: Louis Martini, Joe Heitz, Jack Davies de Schramsberg, o anfitrião Robert Mondavi, Peter Mondavi de Krug, André Tchelistcheff, Irmão Timothy de Christian Brothers, Donn Chapellet e muitos outros. O Governador, ausente do Estado na ocasião, enviara o Vice-Governador para representá-lo. Os meios de comunicação também estavam presentes, inclusive diversas equipes de televisão.

O almoço, que fora classificado de particular e informal, seria visto ou lido pela maioria dos californianos, naquela noite e no dia seguinte.

Terminado o almoço, com vinho de Napa Valley, como não podia deixar de ser, houve alguns discursos introdutórios, felizmente breves. Foi feito um brinde a Paul e Beth Yale, seguindo-se uma estrondosa e espontânea ovação, com todos de pé. O convidado de honra levantou-se, sorrindo, para agradecer. Falou por meia hora, descontraída, afetuosa e eloquentemente, como se estivesse conversando com amigos. Não havia nada de sensacional, nenhuma revelação espetacular, apenas as palavras do garoto do local que finalmente voltava para casa.

"Ainda não estou preparado para morrer. Quem está? Mas quando eu partir para a eternidade, quero embarcar no ônibus aqui. "

O discurso estava chegando ao fim.

"Até que esse ônibus chegue, tenciono manter-me em atividade e, como espero, mostrar-me útil. Há um trabalho que me disseram que posso realizar e nele prestar algum serviço à Califórnia. Depois de pensar a respeito e conversar com minha esposa, que estava mesmo apreensiva com a perspectiva de me ver em casa durante o dia inteiro... (Risos) aceitei o convite para ingressar na equipe da Golden State Power & Light. Não como leitor de medidores; infelizmente, minha vista já começa a me faltar... (Mais risos) mas como membro da diretoria e porta-voz da companhia. Em deferência aos meus poucos cabelos brancos, permitiram-me determinar o horário que melhor me aprouvesse; assim, provavelmente chegarei ao escritório... nos dias em que me dignar aparecer... a tempo de aproveitar o almoço por conta da verba de representação... (Risos altos)... Meu novo chefe, o Sr. Eric Humphrey, está aqui presente hoje, provavelmente para buscar minha ficha da Previdência Social e minha folha de serviços..." (Risos e palmas).

E houve mais, no mesmo tom.

Depois, Humphrey iria informar a Nim:

- O velho insistiu no sigilo enquanto estávamos negociando e depois quis fazer o comunicado a sua maneira. Por isso é que não pude contar-lhe nada antes, muito embora você tenha sido o escolhido para trabalhar com ele e orientá-lo em todos os problemas da companhia.

Quando Paul Sherman Yale concluiu seu discurso e se sentou, sob aplausos, os repórteres rapidamente cercaram Eric Humphrey.

- Ainda temos que definir todos os detalhes - disse-lhes Humphrey, mas essencialmente o papel do Sr. Yale será o que ele próprio descreveu: o de porta-voz da companhia, tanto publicamente como perante os comissários de serviços públicos e os legisladores.

Humphrey parecia extremamente satisfeito ao responder às perguntas dos repórteres, da melhor forma que podia, pensou Nim. Recrutar os serviços de Paul Sherman Yale, atraí-lo para a órbita da GSP & L, era realmente uma manobra espetacular. Não apenas Yale tinha uma imensa credibilidade pública, como também todas as portas oficiais da California, do Governador para baixo, sempre lhe estariam abertas. Evidentemente, ele seria no fundo um lobbyist (*), embora Nim tivesse certeza de que tal palavra jamais seria mencionada na presença dele.

O pessoal da televisão já estava cercando o novo porta-voz da GSP & L para arrancar-lhe uma declaração. Seria a primeira de muitas, pensou Nim, algumas semelhantes às que poderia ter continuado a fazer, se não tivesse perdido o controle e explodido na audiência de Tunipah. Observando agora a cena, ele sentiu uma pontada de inveja e arrependimento.

- Tirando tudo o mais - disse Beth Yale a Nim, com uma franqueza que mais tarde ele descobriria ser característica - estamos precisando do dinheiro. Ninguém fica rico no Supremo Tribunal, e viver em Washington é tão caro que raramente pudemos economizar alguma coisa. O avô de Paul criou um fundo de investimentos para a família, mas tem sido horrivelmente mal administrado... Importa-se de pôr mais lenha na lareira?

Estavam sentados diante de uma lareira de pedra, numa casa pequena mas confortável num vinhedo, a cerca de dois quilómetros do local em que haviam almoçado. A casa fora alugada aos Yales pelo proprietário, que a usava apenas no verão. Eles ficariam ali até encontrarem um imóvel que lhes agradasse.

Nim pôs mais lenha na lareira e remexeu a que já estava lá, provocando um braseiro agradável.

Meia hora antes, Paul Sherman Yale pedira licença para tirar o que chamara de "cochilo de carregamento da bateria". E explicara:

- É um recurso que aprendi há muitos anos, ao descobrir que minha atenção começa a vaguear. Alguns dos meus colegas fazem isso até mesmo durante um julgamento.

Antes, haviam conversado por mais de duas horas sobre os problemas da Golden State Power & Light.

 

(*) Pessoa que trabalha junto aos membros de corpos legislativos federais ou estaduais atuando, em geral, no lobby das casas do congresso - a fim de obter dos legisladores a aprovação de medidas de interesse de suas empresas.

 

A "conversa num canto sossegado" com Nim, a que Paul Yale se referira antes do almoço, não pudera acontecer, pelo simples motivo de ele não ter conseguido escapar a seus admiradores. Por isso, Yale sugerira que Nim os acompanhasse até a pequena casa em que estavam residindo provisoriamente.

- Se vou fazer alguma coisa, meu jovem, quero começar logo a entrar em ação. Eric me disse que você é quem pode proporcionar-me a melhor visão global da companhia. Sendo assim, vamos conversar o mais depressa possível.

E fora precisamente o que tinham feito. Enquanto Nim descrevia a situação, políticas e problemas da GSP & L, Paul Yale fizera perguntas objetivas e pertinentes. Nim descobrira que era um exercício mental estimulante, como jogar xadrez com um adversário à altura. O velho jurista parecia não ter esquecido coisa alguma dos anos que passara na Califórnia e havia alguns aspectos em que seu conhecimento da história da GSP & L superava o de Nim.

Enquanto o marido tirava o "cochilo de carregamento da bateria", Beth Yale serviu o chá diante da lareira. Pouco depois, Paul Yale voltou, anunciando:

- Ouvi-a falar do fundo de investimentos da família.

A esposa despejou mais água no bule e colocou uma xícara diante dele.

- Eu sempre disse que você tem ouvido de tuberculoso.

- É por causa dos muitos anos que passei no tribunal... tentando escutar os advogados quando eles começam a murmurar. Ficariam surpresos se descobrissem quantos falam assim. - Paul Yale virou-se para Nim. - O fundo de investimentos de que Beth falou foi criado por meu. avô, na esperança de que o serviço público se tornasse uma tradição na família. Ele achava que qualquer um que seguisse por esse caminho tinha que estar livre das preocupações com um rendimento apropriado. Não é um ponto de vista em voga atualmente, mas eu concordo plenamente. Já conheci muitas pessoas em altos postos em Washington tendo que se virar para conseguirem algum dinheiro extra. O que sempre as deixa expostas a tentações.

Yale tomou um gole do chá que a esposa lhe servira e comentou:

- O chá da tarde é um costume dos mais civilizados. É algo que devemos aos ingleses... além da estrutura do nosso Direito. - Pôs a xícara na mesinha. - Como Beth disse, o fundo de investimentos da família tem sido pessimamente administrado. Enquanto eu estava no Supremo, não podia fazer nada. Mas, agora, já comecei a reparar alguns danos. Ele soltou uma risadinha e acrescentou: - Além de passar a trabalhar para a GSP & L.

- Não é por nós mesmos - explicou Beth Yale. - Mas temos netos que apresentam todos os indícios de poderem ingressar na vida pública. Pode ajudá-los mais tarde.

Nim sentiu que o problema do fundo de investimentos era um motivo de amargura para os Yales. Confirmando a impressão, Paul Yale resmungou:

- O fundo possui um vinhedo, uma fazenda de gado, dois prédios de apartamentos na cidade. E por mais incrível que possa parecer, tudo estava dando prejuízo, criando dívidas, corroendo o capital. Na semana passada, tive uma conversa séria com o administrador, exigindo que reduzisse as despesas drasticamente. - Ele parou de falar abruptamente, acrescentando depois de uma breve pausa: - Beth, estamos aborrecendo esse jovem com nossos problemas de família. Vamos voltar a falar da God's Power & Love (Força & Amor de Deus).

Nim riu ao ouvir a expressão, usada pelos velhos habitantes do Estado para se referirem à GSP & L.

- Estou preocupado, tanto quanto você, sobre os atos de sabotagem e os assassinatos que têm ocorrido - continuou Paul Yale. - As pessoas que reivindicam a autoria... como é mesmo que se chamam?

- Amigos da Liberdade.

- Ah, é isso mesmo! Um interessante exercício de lógica: "seja livre à minha maneira ou vou acabar com você." Sabe por acaso se a polícia está prestes a agarrar os culpados?

- Aparentemente não.

- Por que essas pessoas estão agindo assim? - indagou Beth Yale.

- É o mais difícil de compreender.

- Umas poucas pessoas na companhia têm pensado e conversado muito a respeito - comentou Nim.

Paul Yale prontamente perguntou:

- Pensado o quê?

Nim hesitou. Mencionara o assunto num impulso súbito e agora, sob o olhar penetrante de Yale, estava arrependido por tê-lo feito. Contudo, a pergunta tinha de ser respondida. Nim explicou a teoria da polícia, de que o grupo dos Amigos da Liberdade era pequeno, tendo um único homem como o cérebro e líder.

- Partindo do pressuposto de que isso é verdade, achamos que, se pudéssemos penetrar, mesmo que parcialmente, na mente desse homem, a quem chamamos de "X", poderíamos melhorar as possibilidades de agarrá-lo. Poderíamos até prever o que ele faria em seguida e nos prepararmos para recebê-lo devidamente.

O que Nim não contou foi que a ideia lhe ocorrera depois das últimas explosões, quando dois guardas de segurança haviam sido assassinados. Desde então, ele, Teresa Van Buren, Harry London e Oscar O'Brien tinham-se reunido três vezes, demoradamente, para conversar a respeito. Embora ainda não tivessem chegado a qualquer conclusão positiva, todos sentiam que estavam chegando perto da compreensão dos sabotadores desconhecidos e de "X". O'Brien, que ainda acalentava alguma hostilidade contra Nim, por causa das audiências de Tunipah, opusera-se inicialmente à sugestão, classificando-a de "desperdício de tempo". Mais tarde, porém, o chefe do serviço jurídico da companhia acabara aceitando a ideia e começara a participar das reuniões. Era um homem culto, e a mente objetiva de advogado proporcionara uma contribuição substancial às discussões.

- Partiram do pressuposto de que "X" é um homem - comentou Paul Yale. - Já consideraram a possibilidade de ser uma mulher?

- Já, sim. Mas tudo indica que se trata mesmo de um homem, principalmente porque a voz é de homem nas gravações recebidas logo depois de cada explosão e parece provável que é o próprio "X" quem esteja falando. Chegamos também à conclusão de que, ao longo da história, quase todos os líderes de revoluções armadas têm sido homens. Os psicólogos dizem que as mentes das mulheres são lógicas demais e os detalhes de uma revolução raramente fazem sentido. Joana d'Arke foi umaexceção.

Paul Yale sorriu.

- Que outras teorias já formularam?

- Muito embora o líder não seja uma mulher, estamos convencidos de que existe uma mulher entre os Amigos da Liberdade e quase que certamente está muito ligada a "X".

- Por que pensam assim?

- Por diversas razões. Primeira: "X" é extremamente vaidoso. As gravações mostram-no claramente; nós as ouvimos diversas vezes. Segunda: ele é bem viril. Prestamos atenção nas gravações à procura de qualquer indício de homossexualismo, quer nas palavras ou na entonação. Não havia nenhum. Ao contrário, o tom, a escolha das palavras... a descrição a que chegamos, depois de ouvirmos as gravações inúmeras vezes, foi a de que se tratava de "um jovem e robusto macho".

Beth Yale estava escutando atentamente e nesse momento comentou:

- com que então o seu "X" é um macho típico. Mas onde isso nos leva?

- Estamos convencidos de que há uma mulher - respondeu Nim.

- Nosso raciocínio foi o de que um homem como "X" precisaria ter uma mulher por perto, não poderia viver sem isso. Além disso, ela deve ser uma confidente... pelo simples motivo de estar tão integrada no grupo e porque a vaidade de "X" assim o exige. Vejam a coisa pelo seguinte ângulo: "X" se considera um personagem heróico, o que é algo mais que está patente nas gravações. Sendo assim, vai querer que sua mulher o encare da mesma forma. É outro motivo para que ela saiba e provavelmente partilhe o que ele está fazendo.

- Não resta a menor dúvida de que vocês conseguiram formular uma abundância de teorias - comentou Paul Yale, um tanto divertido e céptico. - Mas eu diria que apenas chegaram a suposições, puras conjecturas, sem provas concretas, até os limites e muito além.

- Tem razão.

Nim sentiu-se embaraçado, como se estivesse bancando o tolo. Diante da reação de um ministro do Supremo Tribunal, tudo o que acabara de relatar parecia inverossímil, até mesmo absurdo... especialmente agora que estava longe dos seus três colegas de especulações. Decidiu não revelar as conclusões restantes, embora estivessem bem nítidas em sua mente.

A polícia estava convencida, por causa do modus operandi e de uma insinuação na última gravação, de que o líder dos Amigos da Liberdade, "X", era o assassino dos dois guardas. O grupo integrado por Nim, London, Teresa Van Buren e O'Brien, depois de muitas discussões, chegara também a essa conclusão. Além disso, haviam analisado a possibilidade, e agora estavam convencidos, de que a mulher de "X" estava no local do crime. O raciocínio: o projeto fora o mais ambicioso de "X" até aquele momento, e ele certamente haveria de querer, consciente ou subconscientemente, que sua mulher o visse em ação. O que a transformava não apenas em testemunha, mas também em cúmplice do crime.

Como tal conhecimento... ou melhor, suposição... os aproximava da descoberta da identidade de "X"?

A resposta: não aproximava. Mas revelava uma fraqueza em potencial, um ponto vulnerável de "X" que poderia ser explorado. Como explorá-lo, se é que era possível, continuava a ser um problema sem solução.

Agora, pensou Nim, tudo parecia improvável e inverossímil.

Ele chegou a uma conclusão: a avaliação de Paul Yale era provavelmente o tipo de ducha de água fria de que todos estavam precisando. No dia seguinte, iria pensar na perspectiva de abandonar todo o esquema, deixando o trabalho de detetive a quem entendia, ou seja, a polícia municipal, o FBI e os diversos departamentos policiais que estavam trabalhando no caso dos Amigos da Liberdade.

Seus pensamentos foram interrompidos pela chegada da empregada dos Yales, que informou:

- Chegou o carro que veio buscar o Sr. Goldman.

- Obrigado - disse Nim, levantando-se para ir embora. Uma segunda limusine da companhia viera da cidade para buscá-lo, pois Eric Humphrey, que tinha outro compromisso, partira assim que acabara o almoço. Nim disse aos Yales: - Foi um privilégio conhecê-los. E quando precisar novamente de mim, senhor, estou a sua disposição.

- Tenho certeza de que precisarei muito em breve. E devo dizer que apreciei muito nossa conversa. - Os olhos faiscaram, antes de ele acrescentar: - Ou pelo menos a parte objetiva.

Nim decidiu mentalmente que, no futuro, quando estivesse lidando com alguém da estatura de Paul Sherman Yale, iria limitar-se exclusivamente aos fatos concretos.

A oportunidade que Harry London estava esperando surgiu inesperadamente.

O chefe do Departamento de Proteção à Propriedade estava em seu cubículo envidraçado - o departamento ainda não recebera instalações definitivas e ocupava um espaço improvisado - quando ouviu o telefone de sua secretária tocar lá fora. Um momento depois, seu próprio telefone tocou.

Ele atendeu, preguiçosamente, pois era assim que se sentia agora. Os últimos dois meses haviam sido um período monótono, em que não ocorrera nada de mais importante no setor de furto de energia. A rotina prevalecia. Ao final do verão, um levantamento de computador revelara a existência espantosa de 30. 000 possíveis casos de furto de energia. Desde então, London, seu assistente Art Romeo e sua equipe, agora composta por cinco investigadores, estavam verificando os casos suspeitos, um a um. Como Harry London sabia perfeitamente por sua experiência como detetive da polícia de Los Angeles, era um trabalho de perseverança, monótono, cansativo. E os resultados eram variáveis.

Cerca de 10 das investigações até aquele momento haviam produzido provas suficientes para a GSP & L processar os consumidores e exigir o pagamento dos atrasados calculados. Outros 10 mostravam que as mudanças nos níveis de consumo tinham razões válidas, tais como uma poupança genuina, estando os consumidores inocentes. Os demais casos eram inconclusivos.

Para todos os envolvidos, o trabalho parecia lento e interminável. Era por isso que Harry London, a cadeira inclinada para trás, os pés em cima da mesa, chegara a um estado de tédio naquela tarde em meados de dezembro.

- Pronto! - disse ele ao telefone.

Uma voz perguntou, num sussurro quase inaudível:

- É o Sr. London?

- É, sim.

- Quem está falando é Ernie, o zelador do Edifício Zaco. O Sr. Romeo disse que lhe telefonasse, se aqueles homens voltassem. Eles estão aqui agora.

Os pés de London bateram no chão, como se fossem de mola. Ele se empertigou na cadeira.

- Os mesmos que adulteraram os medidores?

- Exatamente. Eles chegaram num caminhão, o mesmo de antes. Estão trabalhando agora. Escute, não posso ficar falando no telefone por mais que um minuto.

- Não será necessário. Preste bastante atenção. Já anotou o número da placa do caminhão?

- Já.

- Ótimo! Iremos para aí o mais depressa possível. Enquanto estamos a caminho, não faça nada que possa deixar os homens desconfiados. Mas se eles se prepararem para ir embora, tente retê-los, falando qualquer coisa.

Enquanto falava ao telefone, London apertou um botão, chamando sua secretária. O interlocutor, ainda sussurrando, parecia estar em dúvida:

- Farei o que for possível. Escute, o Sr. Romeo disse que eu receberia uma recompensa...

- Pode estar certo quanto a isso, meu amigo. É uma promessa. E agora faça o que estou dizendo. Já estou indo para aí.

London desligou o telefone. Sua secretária, uma jovem e inteligente sino-americana chamada Suzy, estava parada na porta. London lhe disse:

- vou precisar da ajuda da polícia municipal. Ligue para o Tenente Wineski; sabe onde encontrá-lo. Se não encontrar Wineski, peça a alguém da Divisão de Detetives para ir encontrar-me no Edifício Zaco. Diga que o caso sobre o qual conversei com Wineski está estourando. E depois tente entrar em contato com Art Romeo. Diga-lhe a mesma coisa e que deve ir imediatamente para o Zaco. Entendido?

- Claro, Sr. London.

- Ótimo!

London correu até o elevador, que o levaria à garagem no porão. Enquanto descia, calculou que, guiando depressa e se o tráfego estivesse razoável, poderia chegar ao Edifício Zaco em 10 minutos ou menos.

A estimativa de Harry London não levou em consideração dois fatores: o início prematuro do rush para fora da cidade e a proximidade do Natal, apinhando as ruas do centro e obrigando os carros a quase que se arrastar. Na maior frustração, ele levou 20 minutos para chegar ao Edifício Zaco, que ficava no lado oposto da zona comercial da cidade.

Ao parar o carro, reconheceu imediatamente o carro da polícia, sem qualquer identificação, que chegara poucos segundos antes. Dois homens à paisana estavam saltando. Um era o Tenente Wineski. London abençoou sua sorte. Wineski era um amigo, um policial cuja amizade London sempre cultivara, sendo que sua presença iria evitar explicações e perda de tempo.

O Tenente Wineski vira London e ficou esperando, junto com o outro policial, um detetive chamado Brown. London conhecia-o ligeiramente.

- Qual é o caso, Harry? - Wineski era jovem, inteligente, ambicioso; mantinha o corpo esguio e, ao contrário da maioria dos seus colegas, vestia-se bem. Gostava também dos casos fora do comum, pois frequentemente lhe proporcionavam boa publicidade. Comentava-se na polícia que Boris Wineski ainda iria subir muito, e que provavelmente chegaria ao topo do departamento.

London respondeu:

- Uma boa informação, Boris. Vamos entrar logo.

Os três atravessaram rapidamente o pátio do prédio. Duas décadas antes, o Edifício Zaco, com 23 andares, de concreto armado, era moderno e elegante, o tipo de lugar onde uma grande corretora ou uma agência de publicidade poderia alugar vários andares. Agora, como outros prédios de escritórios do género, apresentava sinais de decadência, com vários dos antigos inquilinos se mudando para prédios mais novos, nos quais predominavam o vidro e o alumínio. A maior parte da área do Edifício Zaco continuava alugada, só que para inquilinos de menor' prestígio. Podia-se supor, sem a menor hesitação, que o prédio era hoje muito menos lucrativo do que no seu apogeu.

Tudo isso Harry London já sabia de suas investigações anteriores.

O saguão do prédio, imitação de mármore, com os elevadores de frente para a entrada, estava começando a se encher com os funcionários dos escritórios que deixavam o trabalho. Esquivando-se ao fluxo de pessoas que saíam, London seguiu na frente para uma porta de metal que ele sabia, por uma visita anterior, dar acesso aos três andares inferiores.

No caminho, ele dera aos dois policiais um sumário do telefonema que recebera 25 minutos antes. Agora, descendo rapidamente a escada de cimento, London descobriu-se a rezar para que os homens que estava procurando ainda estivessem no prédio.

Outra coisa que o chefe do Departamento de Proteção à Propriedade sabia era que os medidores e controles de eletricidade e gás estavam no último piso. Era dali que se distribuía a energia fornecida ao prédio, para o aquecimento, operação dos elevadores, ar condicionado e iluminação.

Quase ao pé da escada, um homem muito magro, esquelético mesmo, de macacão, os cabelos louros desgrenhados e a barba por fazer, parecia estar examinando as latas de lixo. Levantou a cabeça, abandonou o que estava fazendo e adiantou-se quando Harry London e os dois policiais apareceram.

- Sr. London?

Não havia a menor dúvida de que era a mesma voz débil que ele ouvira ao telefone.

- Sou eu mesmo. Você é Ernie, o zelador? O homem de macacão assentiu.

- Demorou um bocado.

- Não pude chegar antes. Os homens ainda estão aqui?

- Lá dentro. - O zelador apontou para uma porta de metal, semelhante às que existiam nos andares superiores.

- Quantos são?

- Três. E o meu dinheiro?

- Tenha paciência, pelo amor de Deus! - exclamou London, irritado. - Já falei que vai receber.

O Tenente Wineski interveio:

- Há mais alguém aí dentro?

O zelador sacudiu a cabeça, com uma expressão mal-humorada.

- Não há mais ninguém aqui embaixo.

- Ótimo! - Wineski se adiantou, assumindo o controle da situação e dizendo ao outro detetive e a London: - Vamos agir depressa. Harry, você entra por último. Depois que entrarmos, fique esperando ao lado da porta até eu chamá-lo. - Acrescentou para o zelador: - Fique esperando aqui. - Wineski pôs a mão na porta de metal e depois gritou: - Agora!

No instante em que a porta se abriu, os três homens avançaram. Lá dentro, junto à parede do outro lado, acerca de oito metros. de distância, três homens estavam trabalhando. Mais tarde, Harry London iria comentar, com a maior satisfação.

- Se tivéssemos despachado pelo correio uma lista de como gostaríamos que nos arrumassem as provas, eles não poderiam ter feito melhor.

O armário do transformador da corrente elétrica, instalado pela GSP & L e depois trancado, estava aberto. Diversas chaves do transformador, como se constatou depois, haviam sido puxadas, envoltas com fita isolante e depois novamente empurradas para o lugar. O efeito era a redução em um terço dos registros de consumo. A poucos passos, um medidor de gás apresentava um desvio ilegal parcialmente exposto. Os equipamentos e ferramentas para o trabalho estavam espalhados ao redor: eram alicates isolantes, chaves de grinfa, lacres de chumbo, uma prensa de lacre mecânica (roubada da GSP & L), a chave especial do armário do transformador metida na fechadura.

Wineski disse, incisivamente:

- Somos da polícia! Não se mexam! E deixem tudo onde está!

Ao ouvirem a porta se abrir, dois dos homens haviam-se virado. O terceiro, deitado no chão e trabalhando no desvio do medidor de gás, rolou para o lado a fim de ver o que estava acontecendo e depois rapidamente se agachou, ficando todo encolhido. Todos os três estavam usando macacões do tipo uniforme, podendo-se ler no peito as letras SEGQ, que mais tarde se iria vrificar que significavam Serviços de Eletricidade & Gás Quayle.

Dos dois homens perto da porta, um era imenso, barbado, parecendo um campeão de luta-livre. Os antebraços, com as mangas enroladas, apresentavam músculos poderosos. O outro era jovem, parecendo pouco mais do que um menino, o rosto fino, feições delicadas. Deixou transparecer no mesmo instante uma reação de pavor.

O homem imenso e barbado não ficou tão intimidado. Ignorando a ordem para não se mexer, pegou um imenso pedaço de cano, ergueu-o e começou a avançar.

Harry London, que ficara para trás conforme lhe fora determinado, viu Wineski enfiar a mão debaixo do paletó e tirá-la um instante depois empunhando um revólver.

- Sou um exímio atirador. Se der outro passo, vou meter uma bala em sua perna. - O gigante barbado hesitou. - Largue esse cano! Agora!

O outro detetive, Brown, também estava com um revólver na mão. Relutantemente, o homem obedeceu.

- Todos encostados na parede! - gritou Wineski.

O terceiro homem, mais velho que os outros dois, estava agora de pé e dava a impressão de que tentaria fugir.

- Não tente nenhuma besteira! Simplesmente se vire e fique de cara para a parede! Vocês dois! Fiquem ao lado dele, da mesma maneira!

O rosto franzido, com ódio nos olhos, o gigante barbado recuou. O rapaz, o rosto pálido, o corpo tremendo visivelmente, já correra para cumprir a ordem. Houve uma pausa, durante a qual as três algemas foram colocadas.

- Muito bem, Harry - disse Wineski. - Conte-nos agora o que significa tudo isso.

- É a prova concreta que estávamos procurando, a prova incontestável do furto de eletricidade e gás em larga escala.

- É capaz de jurar isso num tribunal?

- Claro! E muitos outros irão dizer a mesma coisa. Podemos arrumar-lhe tantas testemunhas técnicas quantas quiser.

- Está certo.

Wineski virou-se para os três homens algemados:

- Continuem de cara para a parede, mas prestem toda atenção. Estão todos sob ordem de prisão e sou obrigado a avisá-los sobre seus direitos. Não precisam falar nada. Mas se o fizerem...

Depois de pronunciar as palavras familiares do ritual Miranda, informando aos presos quais os seus direitos, Wineski fez um gesto para que Brown e London o acompanhassem até a porta. E ali ele disse, em voz baixa:

- Estou querendo separar os três. Pelo jeito, sou capaz de apostar que o garoto está prestes a desmoronar, pode confessar tudo. Procure um telefone, Brown, e chame outro carro.

- Está bem.

O segundo detetive tornou a guardar a arma e afastou-se. A porta estava agora aberta. Momentos depois, soaram passos descendo apressadamente a escada. Wineski e London viraram-se rapidamente e só relaxaram quando Art Romeo apareceu na porta. Harry London disse a seu assistente:

- O negócio deu certo. Dê uma olhada.

Art Romeo, pequeno e furtivo, parecendo pertencer também ao submundo, contemplou a cena e assoviou baixinho. O Tenente Wineski, que conhecera Romeo antes de ele começar a trabalhar para a GSP & L, disse-lhe:

- Se isso aí na sua mão é uma máquina fotográfica, acho bom começar logo a bater as chapas.

- Claro, Tenente!

Romeo abriu a máquina fotográfica e instalou oflash automático. Enquanto tirava dezenas de fotografias dos equipamentos espalhados e do trabalho ilegal incompleto, os reforços policiais chegaram. Eram dois guardas uniformizados, acompanhados pelo Detetive Brown.

Poucos minutos depois, os presos foram levados para fora, sendo que o rapaz, ainda apavorado, na frente e separado dos outros. Um guarda ficou no local, para guardar as provas. Ao sair, Wineski disse a Harry London, piscando um olho:

- Quero interrogar o garoto pessoalmente. Pode deixar que lhe telefonarei se acontecer alguma coisa.

 

- Wineski estava absolutamente certo - informou Harry London a Nim Goldman. - O garoto... por falar nisso, ele tem apenas dezoito anos e saiu há pouco de uma escola profissionalizante... desmoronou sem qualquer dificuldade e contou tudo. Depois, Wineski e Brown aproveitaram o que ele disse para arrancar mais informações dos outros dois.

Quatro dias se haviam passado desde a confrontação e prisões no Edifício Zaco. Imediatamente depois, London dera a notícia rapidamente a Nim. Agora, como convidado de Nim no almoço no refeitório dos executivos da sede da GSP & L, estava dando mais detalhes.

- Vamos, conte o resto - disse Nim.

Eles haviam feito uma pausa para apreciar o guisado de carneiro, um "especial do dia" popular, pelo qual o cozinheiro era afamado.

- Segundo Boris Wineski me contou, o grandalhão, cujo nome é Kasner, não falou muita coisa ao ser interrogado. É um cara experiente, com várias prisões, mas sem nenhuma condenação. O mais velho, que estava trabalhando no desvio do gás, deixou escapar algumas coisas que não sabíamos, mas depois também fechou a boca. A esta altura, contudo, isso já não tinha a menor importância. A polícia já dispunha de todas as informações importantes... e do caminhão.

- Ah, sim, o caminhão... A polícia o apreendeu?

- Mas claro! - London parecia feliz, o que não era de surpreender; nos últimos dias, ele andava exuberante. - O caminhão estava carregado com mais provas da ilegalidade do que eles faziam, mais ainda do que fora encontrado no Edifício Zaco. Havia inclusive medidores de eletricidade, lacres, chaves especiais, cabos de ponte e tudo o mais. E quase tudo era roubado, como já era de se esperar. Não se pode comprar essas coisas numa loja. Estamos agora convencidos de que a turma da Quayle tem um ajudante aqui mesmo na companhia, o cara que era a fonte de abastecimento. Estamos investigando para descobrirmos quem é.

- E o que se descobriu sobre a tal organização Quayle?

- Muita coisa. Havia provas suficientes no caminhão e no Edifício Zaco para que Wineski pudesse pedir um mandado de busca para revistar os escritórios da Quayle. Ele pediu e conseguiu imediatamente. Resultado: a polícia já estava lá antes mesmo que o pessoal da Quayle soubesse que seus homens haviam sido presos.

- Não deixe o guisado esfriar, Harry. Está muito gostoso.

- Claro que está! Não poderia dar um jeito para eu poder comer aqui com mais frequência?

- Continue a obter resultados como os da semana passada e estará almoçando aqui regularmente muito mais cedo do que imagina.

O refeitório, reservado aos altos executivos da companhia e seus convidados, era modesto no tamanho e na decoração, a fim de não dar uma impressão de opulência às pessoas de fora. Mas a comida era excepcional. A qualidade excedia em muito a do refeitório geral, num andar inferior.

- Mas vamos voltar à Quayle, Nim. A firma é perfeitamente legalizada, de porte médio, com uma frota de vinte e cinco caminhões. Tem diversas subempreiteiras, firmas menores, a quem distribui serviços. Pelo que está parecendo agora... e novamente estou citando o Tenente Wineski... a Quayle usava o lado legítimo dos seus negócios para encobrir as atividades no furto de energia, que são em larga escala. Havia uma grande quantidade de material na sede da firma semelhante ao que foi encontrado no caminhão despachado para o Edifício Zaco.

- Há uma coisa que não consigo entender. Se uma firma como a Quayle possui negócios legítimos, por que foi meter-se no furto de energia?

London deu de ombros.

- Pelo motivo mais velho do mundo: dinheiro. Uma boa parte ainda está na fase da suposição, mas tudo indica que a Quayle, como muitas outras firmas atualmente, estava enfrentando dificuldades financeiras, sem conseguir obter bons lucros por causa dos custos elevados. Mas as atividades ilegais proporcionam lucros excepcionais. Por quê? Porque eles provavelmente podem cobrar cinco, seis ou sete vezes o que normalmente cobrariam por um trabalho comum. E as pessoas para quem fazem o serviço, como os donos do Edifício Zaco, por exemplo, não hesitam em pagar, porque esperam obter assim reduções ainda maiores em seus próprios custos. O que não se pode esquecer, Nim, é que até recentemente tudo foi muito fácil, eles nunca tiveram problemas.

- Do jeito que você fala, parece que ainda há muita coisa a se descobrir.

- E como! Talvez se passem meses antes que fique tudo esclarecido. Mas há duas coisas que estão ajudando consideravelmente. Primeira: o pessoal da Promotoria Distrital está realmente interessado, e um promotor-assistente foi designado exclusivamente para o caso: Wineski está trabalhando com ele. Segunda: a Quayle mantinha registros detalhados de todos os seus serviços e das subempreiteiras que contratava.

- E a polícia apreendeu esses registros?

- Exatamente. A esta altura, é possível que já estejam na promotoria. O único problema é que não há qualquer indicação sobre os trabalhos legítimos e os ilegais. E é nesse ponto que meu departamento está colaborando.

- De que maneira?

- Estamos verificando todos os serviços executados pela Quayle no último ano. Constam dos registros... ordens de serviço... quais os materiais usados em cada trabalho. Se pudermos provar que foram roubados ou usados para fins ilegais, a promotoria terá a sua disposição um caso na bandeja.

Nim pensou por um momento, digerindo a informação recebida, antes de perguntar:

- E o que vai acontecer com a firma proprietária do Edifício Zaco e as outras pessoas para as quais a Quayle andou prestando serviços ilegais? Também vamos levá-las a julgamento?

- Mas claro! Deve haver registros dos pagamentos à Quayle nos livros da Zaco e dos outros, o que os deixará também envolvidos. - A voz de London refletia seu crescente entusiasmo. - Estou-lhe dizendo, Nim, que descobrimos um tremendo ninho de ratos. Posso prever que, antes de tudo terminar, muitos nomes importantes desta cidade estarão cobertos de lama.

- O presidente vai querer um relatório detalhado, Harry. E, depois, terá que preparar relatórios de acompanhamento.

- Não há problema.

- E o que me diz do seu pessoal? Pode cuidar de tudo com os homens de que dispõe atualmente?

- Ainda não sei, Nim. Talvez eu vá precisar de alguma ajuda. Se assim for, eu lhe direi na próxima semana.

- O que aconteceu com os três homens que foram presos?

- Estão em liberdade sob fiança. A polícia está protegendo o garoto, escondendo-o, porque tenciona usá-lo como testemunha de acusação. Por falar nisso, uma das coisas que ele contou foi que somente algumas turmas da Quayle, as de confiança, participavam nas instalações ilegais de eletricidade e gás. Se pudéssemos determinar quais eram exatamente essas turmas, isso poderia facilitar muito as investigações.

- Há outra coisa que ainda não consigo entender. Se o trabalho ilegal no Edifício Zaco já estava feito, por que a turma da Quayle tinha de voltar?

- Foi uma tremenda ironia. Pelo que o garoto soube e contou a Wineski, alguém na direção da Zaco ouviu um rumor de que tínhamos aparecido por lá bisbilhotando. Ou seja, souberam da minha presença e de Art Romeo. Ficaram preocupados. E decidiram que era melhor não roubar tanta energia. Os três caras foram até lá para modificar o serviço anterior. Se não tivessem aparecido, ainda estaríamos cozinhando em fogo lento, à espera.

- Por falar nisso, vamos pedir mais um pouco de guisado.

Mais tarde, no gabinete da presidência da companhia, Nim comunicou resumidamente a J. Eric Humphrey a essência do relatório do chefe do Departamento de Proteção à Propriedade.

- Pode encarar como um pequeno presente de Natal, Eric.

Humphrey manifestou rapidamente sua aprovação, sorriu da referência ao Natal, que seria dali a cinco dias, depois abandonou o assunto. Nim sabia perfeitamente que havia outros problemas mais prementes ocupando os pensamentos do presidente.

Um era Tunipah. Outro era água. O terceiro era petróleo.

As audiências sobre Tunipah na Comissão de Energia da Califórnia estavam prosseguindo ainda mais lentamente do que se previra. No dia anterior, descrevendo o ritmo, Oscar O'Brien comentara:

- Em comparação, uma lesmaésupersônica.

Evidentemente, iriam passar-se vários meses até que fosse concluído aquele estágio inicial das audiências, com a perspectiva dos estágios subsequentes se prolongarem por anos. Ainda nem haviam começado as audiências perante outros órgãos públicos, como a Comissão de Serviços Públicos, a Comissão de Recursos Hídricos e a Comissão de Recursos do Ar.

Em decorrência, O'Brien fizera uma revisão de sua estimativa anterior de que o processo de aprovação do projeto levaria de seis a sete anos. Também no dia anterior, ele avisara:

- Do jeito que as coisas estão indo, podem passar-se oito anos, talvez dez, antes de conseguirmos obter autorização para iniciar a construção. Isto é, se conseguirmos.

O andamento dos outros dois projetos, as usinas de Portão do Diabo e Fincastle, era também desanimadoramente lento.

Enquanto isso, como Eric Humphrey, Nim e os demais membros dos altos escalões da GSP & L sabiam, estava-se aproximando cada vez mais o dia do ajuste de contas, o dia em que a demanda pública de energia elétrica iria superar em muito a que podia ser gerada pelas instalações existentes. Nesse dia e depois, as usinas não construídas de Tunipah, Fincastle e Portão do Diabo seriam desesperadamente desejadas. Mas, a esta altura, já seria tarde demais.

Água era a segunda razão para a preocupação do presidente.

Apesar de duas fortes tempestades de inverno, com chuvas intensas, a precipitação pluviométrica sazonal na Califórnia fora alarmantemente pequena. Os reservatórios, esvaziados por uma estiagem anterior, estavam muito abaixo dos níveis normais para a terceira semana de dezembro. E a neve, que geralmente caía intensamente na Sierra Nevada e outros lugares, fora excepcionalmente escassa ou inexistente.

Num bom ano de precipitação, a neve do inverno era dinheiro em caixa para uma gigantesca companhia de serviço público como a Golden State Power & Light. Quando a neve se derretia na primavera, imensos rios e pequenos córregos desciam as montanhas, enchendo os reservatórios que iriam abastecer uma vasta rede de usinas hidrelétricas durante os meses do verão.

Agora, de acordo com cálculos que Eric Humphrey recebera, a energia hidrelétrica no ano seguinte poderia ser reduzida em 25, por causa da escassez de água.

E havia também o petróleo.

Para a Golden State Power & Light, assim como para outras companhias de serviços públicos de todo o país, o petróleo era o maior ponto de interrogação, a maior de todas as preocupações.

Naquela manhã mesmo, no Chronicle- West, um famoso colunista, publicado em todo o país, assim resumira a situação:

O perigo representado pelo petróleo está rondando sorrateiramente, como um tigre no mato, enquanto não o notamos ou preferimos ignorá-lo.

Começou com o declínio do dólar, há vários anos, a nossa moeda outrora respeitada, mas não mais forte, não mais "tão boa quanto ouro", porque o padrão-ouro do dólar foi cancelado durante a presidência de Nixon.

Depois, enquanto o dólar caía por causa da inépcia e dos políticos de Washington, as nações exportadoras de petróleo do Oriente Médio, África do Norte e Ocidental, Indonésia e Venezuela elevaram seus preços em dólar, numa tentativa de manter o equilíbrio.

Não deu certo. O dólar continuava a cair como o sol poente, com um valor real cada vez menor, porque os Estados Unidos têm pago (e continuam a pagar) muito mais pelo petróleo importado do que ganham com suas exportações. E, à medida que mais dólares partiam para a Arábia Saudita, Ira e outros países, mais eram impressos pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, desvalorizando a moeda ainda mais.

Depois disso, assistimos a algumas experiências intermediárias, como o pagamento do petróleo com uma "canastra de moedas". (Um nome bombástico para uma mistura que incluía marcos alemães, guildas, francos franceses e suíços, libras esterlinas, ienes e dólares.) Mas tal recurso também foi ineficaz, porque o dólar e a libra combalidos inclinavam a canastra para baixo.

Finalmente, as nações produtoras de petróleo exigiram pagamento na única moeda que, em toda a longa história deste mundo, jamais deixou de manter seu valor: o ouro.

Os Estados Unidos recusaram. E ainda recusam. (Claro que se pode entender a posição do Departamento do Tesouro. Os Estados Unidos já não têm tanto ouro assim, tendo esbanjado quantidades vultosas nas inúteis tentativas de "desmonetizar" o ouro. Na verdade, há em Forte Knox e nos bancos da Reserva Federal apenas o suficiente para pagar a conta de um ano de petróleo, sobrando um pouquinho.)

Em vez disso, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, que há mais de uma década vem-se baseando no papelmoeda, sem qualquer lastro, para pagar o que é necessário, propôs-se a rodar os prelos ainda mais depressa e produzir ainda mais papel.

Mas, desta vez, as nações produtoras de petróleo se mostraram irredutíveis. E disseram: "Se quisermos papel-moeda, podemós imprimir o nosso... sem precisar dar o nosso petróleo em troca para obter." E como o tintureiro chinês da história que insistia: "Sem talão não tem roupa lavada", estão agora ameaçando: "Sem ouro não tem petróleo. "

Assim, ao que tudo indica, o impasse é iminente.

É verdade que o petróleo não parou de fluir... ainda! É igualmente verdade que pode passar-se mais um ou dois anos antes que isso aconteça.

Enquanto isso, as discussões entre governos continuam, e é possível que se chegue a um acordo.

Vamos esperar para ver.

A incerteza geral em relação ao petróleo era sinistra, uma nuvem ameaçadora pairando sobre a GSP & L, porque quase a metade da capacidade geradora da companhia dependia do petróleo para seu funcionamento... e quase todo esse petróleo era importado.

O gás natural, que costumava ser usado para gerar eletricidade, já estava começando a escassear.

A perspectiva de uma escassez de petróleo, gás e água, tudo ao mesmo tempo, era algo que Eric Humphrey, Nim e os outros executivos da GSP & L preferiam não pensar... e estremeciam quando por acaso pensavam.

- Acha que há alguma possibilidade do Governador mudar de ideia e endossar publicamente o projeto de Tunipah? - perguntou Eric Humphrey a Paul Sherman Yale. - Afinal, que argumento mais forte se pode ter para uma usina à base de carvão do que uma crise iminente de petróleo e gás, quando a energia nuclear ainda está no limbo?

Yale entrara na sala pouco depois que Nim apresentara o relatório sobre o furto de energia. No dia anterior, o novo e eminente porta-voz da GSP & L estivera no palácio do governo estadual, em Sacramento.

- O Governador aceita esse argumento e está vacilando - disse Yale. - Insisti ontem para que ele fizesse uma declaração a favor de Tunipah. Eu diria que as chances a favor são de sessenta por cento.

- Fico satisfeito em saber disso.

Humphrey imediatamente se animou, e Nim pensou: mais uma vez, o bom senso do presidente da companhia ao contratar Paul Yale estava sendo demonstrado. Yale aparentemente era capaz de entrar no gabinete do Governador a qualquer momento que desejasse, sem marcar audiência antes, assim como também tinha acesso a todos os líderes do legislativo estadual.

- Posso assegurar-lhes - continuou Yale - que existe a maior preocupação com o petróleo em Sacramento. As pessoas com quem conversei ontem, inclusive o Governador, consideram que o racionamento de gasolina será inevitável e não vai demorar muito, quer seja ou não resolvida a crise atual.

- Pessoalmente, considero uma medida das mais acertadas - comentou Humphrey. - A maneira como os norte-americanos usam carros, especialmente os carros grandes, esbanjando gasolina como se não houvesse um amanhã, é absurda e revoltante. É por isso que os europeus, com toda razão, acham que somos irresponsáveis.

Nim resistiu ao impulso de recordar ao presidente que ele próprio possuía um carro grande. Em vez disso, comentou para Yale:

- Espero que Sacramento compreenda que gerar eletricidade é uma utilização muito mais económica para o petróleo do que pôr um carro em movimento.

Paul Sherman Yale sorriu.

- Posso garantir-lhe que não perco nenhuma oportunidade, em público ou em particular, de deixar isso bem claro.

Nim recordou que Yale fizera tal declaração publicamente uma semana antes. Fora num programa de TV, Encontro com a Imprensa, onde o ex-Ministro do Supremo, levando-se em consideração o pouco tempo em que estava na companhia, demonstrara um bom conhecimento dos problemas da GSP & L. Assistindo ao programa em casa, Nim lamentara novamente não ser mais o porta-voz da companhia. Mas a honestidade o obrigara a reconhecer que Yale se comportara de maneira excepcional.

- com o pensamento de novo voltado para a conversa sobre petróleo, Eric Humphrey falou:

- Às vezes fico pensando que se fosse árabe recusaria dólar-papel pelo meu petróleo e exigiria ouro ou pelo menos uma moeda com lastro-ouro. Não sei se os Estados Unidos iriam ceder e usar uma parte do nosso ouro, mesmo sabendo que não duraria muito tempo.

- Será que realmente possuímos tanto ouro quanto se supõe? indagou Nim. - Parece haver muitas dúvidas a respeito.

Humphrey ficou surpreso, ao contrário de Yale, que simplesmente sorriu.

- Sou assinante de uma publicação financeira chamada The International Harry Schultz Letter - explicou Nim. - Frequentemente apresenta notícias cuja veracidade é posteriormente confirmada, mas que os jornais não parecem interessados em publicar. Schultz anda divulgando declarações de dois homens, um advogado de Washington, Peter Beter, que era assessor jurídico do Banco de Exportação e Importação dos Estados Unidos (Eximbank), e Edward Durell, um industrial americano. Ambos estão gritando "fraude" em relação ao ouro de Forte Knox e afirmando que há muito menos do que o mundo imagina.

Paul Sherman Yale assentiu.

- Há muita gente em Washington que já ouviu falar desses dois homens, mas são bem poucos os que admitem a possibilidade. De passagem, também sou assinante dessa publicação.

- O que Beter e Durell alegam é que não há uma auditoria apropriada do ouro de Forte Knox desde 1953 - explicou Nim a Humphrey. - Afirmam também que a maior parte do ouro restante é impura, de moedas derretidas contendo prata, cobre e antimônio, que o Presidente Roosevelt tirou de circulação quando a posse de ouro por americanos foi declarada ilegal. Só isso reduziria as reservas de ouro em 20 por cento, talvez mais.

- Nunca tinha ouvido falar a respeito - comentou Humphrey. É bem interessante.

- E tem mais - continuou Nim. - Supõe-se que na crise do dólar de 1960 usou-se uma boa parte das reservas de ouro para sustentar nossa moeda, com a intenção de repô-la posteriormente. Mas essa reposição jamais foi consumada.

- Mas por que manter tudo isso em segredo? - indagou Humphrey.

Paul Yale explicou:

- É fácil responder. Se o resto do mundo chegar à conclusão de que os Estados Unidos não possuem o ouro que alegam ter, haverá uma nova corrida do dólar, com o pânico da venda. - Fez uma breve pausa, antes de acrescentar, pensativo: - Já ouvi rumores em Washington a respeito desse ouro desaparecido. Dizem que cada novo Secretário do Tesouro é obrigado a fazer um juramento de sigilo e depois é informado dos fatos. Uma coisa é evidente: o governo jamais permitirá uma auditoria independente em Forte Knox. - O ex-Ministro deu de ombros.

- Não tenho meios de verificar se as alegações de Beter e Durell são procedentes. Mas coisas bem mais estranhas já aconteceram, especialmente em Washington.

Eric Humphrey suspirou, comentando com Yale:

- Há dias em que me descubro desejando que meu assistente direto fosse menos bem informado, que lesse um pouco menos, que de vez em quando freasse sua mente inquisitiva. Como se eu já não tivesse preocupações suficientes... Tunipah, carvão, água, gás, petróleo... ele acaba de acrescentar mais uma: o ouro.

No gabinete revestido de mogno da presidência do Clube da Sequóia, em Cable Hill, Laura Bo Carmichael hesitou, a caneta suspensa sobre o cheque a sua frente. Era de 25. 000 dólares.

O cheque era da conta de projetos especiais da organização e seria entregue à força & luz para o povo.

Seria o segundo pagamento do total de 50. 000 dólares que fora prometido a Davey Birdsong em fins de agosto, cinco meses antes. O primeiro pagamento fora efetuado logo depois do acordo secreto entre o Clube da Sequóia e a & Ip. Agora, chegara o momento de fazer o segundo.

A assinatura de Roderick Pritchett, diretor-secretário do Clube da Sequóia, já estava no cheque, abaixo da linha em que a presidente deveria assinar. com um rabisco da caneta, pois sua assinatura era normalmente ilegível, Laura Bo poderia tornar o cheque oficial. Contudo, ainda hesitava.

A decisão de fazer um pacto entre o Clube da Sequóia e a & Ip ainda a atormentava com dúvidas, imediatamente depois e desde então.

Tais dúvidas haviam aumentado nas audiências de Tunipah, quando Laura Bo achara que Davey Birdsong se comportara abominavelmente. Toda sua inteligência se rebelara contra as táticas baratas e presunçosas, as palhaçadas para a galeria, o apelo cínico aos níveis mais baixos.

Agora, Laura Bo se perguntava novamente: teria errado ao dar o voto decisivo que firmara a aliança e tornara o dinheiro disponível? Será que o respeitável Clube da Sequóia se rebaixara e desonrara pela aliança, cuja responsabilidade seria inevitavelmente atribuída a Laura Bo, caso a informação transpirasse, como poderia perfeitamente acontecer?

No final das contas, não deveria ter ficado do lado de Priscilla Quinn, que formulara sua posição contrária a Birdsong sem a menor hesitação? Laura Bo podia recordar nitidamente, inquieta e contrafeita, as palavras de Priscilla: "Todos os meus instintos dizem que não devemos confiar nele... Tenho princípios, algo que aquele homem repulsivo parece ignorar inteiramente." E depois: "Acho que vocês ainda vão arrepender-se desse voto. E quero que minha divergência fique registrada em ata. "

Laura Bo Carmichael já estava arrependida do seu voto.

Ela largou a caneta, o cheque ainda por assinar, estendeu a mão para o telefone interno. Quando o diretor-secretário atendeu, Laura Bo perguntou:

- Poderia fazer o favor de dar um pulo à minha sala, Roderick? Alguns minutos depois, ela disse a Pritchett:

- Estou pensando na possibilidade de reconsiderar esse segundo pagamento. Se o primeiro foi um erro, podemos pelo menos evitar o segundo.

Pritchett, empertigado e impecável como sempre, ficou surpreso. Tirou os óculos sem aros e limpou-os com um lenço, uma tática antiga para ganhar tempo. Tornando a pôr os óculos, ele disse:

- Já lhe ocorreu, Madame Presidente, que se retivermos esse cheque estaremos violando um acordo, honrosamente feito e cumprido até agora pela outra parte?

- Mas teria sido mesmo cumprido? O que recebemos em troca do primeiro pagamento? A histrionice de Birdsong nas audiências de Tunipah?

Escolhendo cuidadosamente as palavras, Pritchett respondeu: Eu diria que Birdsong conseguiu muito mais que impressionar pela histrionice. Suas táticas, embora grosseiras, certamente muito mais do que o faríamos, foram até agora extremamente hábeis e eficientes. Conseguiu fazer com que a atenção dos meios de comunicação se concentrasse na oposição a Tunipah, enquanto os argumentos da Golden State Power têm merecido pouca ou nenhuma divulgação. Conseguiu também destruir a principal testemunha da GSP & L, Goldman, provocando-o primeiro e depois recuando, enquanto Goldman antagonizava a tudo e a todos, inclusive sua própria companhia.

- Sinto pena dele - comentou Laura Bo. - Conheço Nim Goldman há muitos anos. Ele pode estar mal orientado, mas é honesto e sincero. Não merecia o que aconteceu.

Pritchett declarou formalmente:

- Em controvérsias assim, é inevitável que alguns dos envolvidos... e suas reputações... sejam prejudicados. O importante, do ponto de vista do Clube da Sequóia, é vencer. E no que se refere a Tunipah, creio que venceremos.

- Mas acontece que eu jamais acreditei em vencer a qualquer custo. Já ouvi esse argumento há muitos anos. E até o dia em que morrer, não me arrependerei de contestá-lo.

O diretor-secretário sentiu vontade de suspirar, mas absteve-se com algum esforço. O sentimento de culpa de Laura Bo em relação a Hiroxima e Nagasaki já se manifestara muitas vezes antes e ele aprendera a contorná-lo. Recuando rapidamente, Pritchett disse:

- Minha escolha das palavras foi infeliz. O que eu deveria dizer era que o acordo com Birdsong nos ajudará a atingir o objetivo proposto, o que é admirável, como ambos sabemos.

- Mas para onde está indo todo o dinheiro que estamos dando?

- Não resta a menor dúvida de que uma parte fica com o próprio Birdsong. Afinal, ele está investindo pessoalmente muitas horas, ainda comparecendo todos os dias às audiências, ao mesmo tempo em que mantém a si mesmo e à oposição a Tunipah no noticiário. E há também os seus partidários. Birdsong está conseguindo lotar permanentemente a sala das audiências, o que, por si só, dá uma impressão de oposição forte e espontânea a Tunipah por parte do público.

- Está por acaso sugerindo que não é espontânea, que Birdsong paga às pessoas que comparecem?

- Absolutamente. - Pritchett fez outra pausa, novamente escolhendo as palavras com cuidado; sabia como estava sendo feito, porque conversara com Birdsong a respeito, mas sentia-se relutante em ser específico. - Digamos que algumas daquelas pessoas têm despesas, precisam ausentar-se do trabalho e assim por diante. São os mesmos partidários que Birdsong recrutou, junto com outros, para as manifestações por ocasião da assembleia anual de acionistas da Golden State Power & Light. Se está lembrada, ele nos falou por alto sobre seus planos, quando nos encontramos.

Laura Bo Carmichael estava chocada.

- Manifestantes pagos! Uma tumultuação paga de uma assembleia de acionistas! E tudo isso com o nosso dinheiro! Não gosto nada disso!

- Permita que lhe recorde, Madame Presidente, que entramos na aliança com a & Ip de olhos abertos. Quando nosso comité se reuniu, o Sr. Irwin Saunders, a Sra. Quinn, e nós dois, sabíamos perfeitamente que os métodos de Birdsong poderiam ser... heterodoxos, digamos assim, em comparação com os nossos. Há poucos dias, revendo minhas anotações daquela reunião, verifiquei que todos concordamos que podia haver determinadas coisas que seria melhor ignorarmos. Para ser mais preciso, o comentário foi do Sr. Saunders.

- Mas será que Irwin na ocasião podia compreender os métodos de Birdsong?

Pritchett respondeu secamente:

- Tenho certeza de que um advogado experiente como ele não poderia deixar de ter uma boa ideia.

O argumento era válido. Como seus amigos e inimigos sabiam, Irwin Saunders era um lutador implacável nos tribunais e não se destacavá pelas sutilezas éticas. Talvez, com mais acurácia do que os outros, ele julgara de antemão como Birdsong iria trabalhar.

O diretor-secretário, embora não o mencionasse a Laura Bo, estava também preocupado com outra questão envolvendo o advogado Irwin Saunders.

Roderick Pritchett deveria aposentar-se em breve. Saunders era o influente chefe do comité financeiro do Clube da Sequóia, o qual iria decidir quão grande - ou pequena - seria sua pensão.

As pensões concedidas pelo clube a seu pessoal aposentado não eram automáticas nem fixas, mas baseadas nos anos de serviço e na opinião do comité sobre o desempenho individual. Roderick Pritchett, que sabia ter tido muitas críticas ao longo dos anos, desejava particularmente apresentar uma boa imagem aos olhos de Saunders naqueles meses finais e as audiências de Tunipah e Davey Birdsong poderiam ser os fatores críticos.

Ele disse a Laura Bo:

- O Sr. Saunders está satisfeito com os esforços de Birdsong na oposição a Tunipah. Telefonou para dizê-lo e recordou que Birdsong prometeu atacar a Golden State Power & Light em várias frentes. A & Ip tem cumprido a promessa. Outra coisa que combinamos foi que não haveria violência... e deve estar lembrada que levantei especificamente a questão. Birdsong também manteve sua promessa nesse particular.

- E Priscilla Quinn também lhe disse alguma coisa?

- Não. - Roderick Pritchett sorriu. - Mas é claro que a Sra. Quinn ficaria exultante, até mesmo triunfante, se você recuasse agora e se negasse a efetuar o segundo pagamento. Tenho a impressão de que ela sairia a dizer a todo mundo que estava certa desde o início, enquanto você estava errada.

Era uma manobra astuciosa, e ambos sabiam disso.

Se a decisão original fosse revogada àquela altura dos acontecimentos, seria lembrado que Laura Bo Carmichael é que dera o voto decisivo; por isso, o constrangimento dela seria intenso, inclusive porque estaria tacitamente reconhecendo que os primeiros 25. 000 dólares haviam sido gastos inprudentemente. E a língua afiada de Priscilla Quinn certamente saberia tirar o melhor proveito da oportunidade.

Mulher versus mulher. Apesar de todo o seu desdém pela feminilidade, de sua determinação em não permitir que o sexo influenciasse as decisões, ao final foi o orgulho feminino de Laura Bo que prevaleceu como o argumento decisivo.

Pegando a caneta, rabiscou sua assinatura no cheque para a & Ip, entregando-o ao sorridente Roderick Pritchett.

O cheque foi enviado para Davey Birdsong naquele mesmo dia.

 

- Precisamos de mais violência! Mais, mais, mais! - Davey Birdsong deu um murro na mesa, furiosamente, já aos berros. - Muita violência, para deixar as pessoas abaladas! E algumas mortes bem dramáticas, muitas mortes! É a única maneira, absolutamente a única, de despertar o povo tão estúpido, fazer com que se levante dos seus rabos complacentes e entre em ação! Você parece que não está compreendendo isso!

Do outro lado da tosca mesa de madeira que os separava, o rosto fino e ascético de Georgos Winslow Archambault ficou vermelho diante da última acusação. Ele inclinou-se para a frente e insistiu:

- Compreendo perfeitamente. Mas o que você está querendo exige organização e tempo. Estou fazendo o melhor possível, mas não podemos atingir um alvo todas as noites!

- E por que não? - O gigante barbado lançou um olhar furioso para Georgos. - Tudo o que está fazendo é soltar uns fogos de artifício e depois ficar molengando por aqui, tirando um mês de férias!

A conversa, que rapidamente se transformara numa discussão, estava ocorrendo na oficina situada no porão da casa alugada no lado este da cidade, o esconderijo dos Amigos da Liberdade. Como sempre, a oficina estava apinhada de ferramentas e material de destruição, fios, peças de metal, produtos químicos, mecanismos de tempo, explosivos. Birdsong chegara 10 minutos antes, depois de tomar as precauções habituais contra a possibilidade de estar sendo seguido.

- Já lhe disse antes que há grana suficiente para qualquer coisa que precisar - comentou Birdsong, o vestígio de um sorriso se insinuando em seu rosto. - E acabei de receber mais.

- O dinheiro é importante - admitiu Georgos. - Mas somos nós que corremos os riscos, não você.

- Essa não! Os riscos fazem parte da coisa. Afinal, você não é um soldado da revolução? E também estou correndo riscos... só que de uma espécie diferente.

Georgos mudou de posição na cadeira, sentindo-se pouco à vontade. Estava ressentido com toda a conversa, assim como com o domínio cada vez maior de Birdsong, que começara a partir do momento em que sua fonte de recursos secara e fora substituída pela do líder da & Ip. Mais do que nunca, Georgos odiava sua mãe atriz de cinema, que no início financiara os Amigos da Liberdade sem o saber, deixando de fazêlo ao suspender a mesada do filho, paga por intermédio de uma firma de advocacia de Atenas. Lera recentemente num jornal que a mãe estava gravemente doente. E torcia para que fosse uma doença extremamente dolorosa e fatal.

- O último ataque contra o inimigo foi o mais bem-sucedido declarou Georgos, tensamente. - Conseguimos provocar a interrupção no fornecimento de energia a uma área de duzentos e cinquenta quilómetros quadrados.

- E que efeito isso teve? - Desdenhosamente, Birdsong respondeu à própria pergunta: - Absolutamente nenhum! Alguma de nossas exigências foi atendida? Não! Você matou dois porcos guardas de segurança. E quem se importou com isso? Ninguém!

- Admito que foi surpreendente e desapontador que nenhuma das nossas exigências...

Birdsong interrompeu-o bruscamente: j"

- E nunca serão atendidas! Ou pelo menos até que haja cadáveres se empilhando nas ruas, pilhas e pilhas, o sangue escorrendo, o fedor se espalhando! Não até que os mortos causem pânico entre os vivos! É essa a lição de todas as revoluções! É a única mensagem que o burguês dócil e imbecil é capaz de compreender!

- Sei disso perfeitamente. - Georgos fez uma pausa, antes de acrescentar, sarcasticamente: - Talvez tenha algumas ideias melhores para...

- Mas claro que tenho! E agora preste muita atenção... Birdsong baixou a voz, a raiva e o desdém parecendo dissipar-se instantaneamente. Era como se fosse um professor tentando transmitir a um aluno a necessidade de aprender, para logo depois começar a dar a aula.

- Em primeiro lugar, temos de enunciar alguns artigos de fé. Por que estamos fazendo tudo isso? A resposta: porque o sistema existente neste país é nojento, podre, corrupto, opressivo, espiritualmente falido. E há mais: o sistema não pode ser mudado, o que já foi tentado e falhou. Assim, tudo o que existe, todo o sistema capitalista, em prol dos ricos e oprimindo os pobres, tem que ser destruído, para permitir que os verdadeiros crentes, nós, que amamos nossos semelhantes, construam tudo de novo, de uma maneira decente. O revolucionário é o único que percebe isso claramente. E a destruição, gradativa e inexorável, é o que os Amigos da Liberdade estão fazendo, juntamente com outros como nós.

Enquanto falava, Davey Birdsong exibia, como em muitas outras ocasiões, suas características de camaleão. Tornara-se em parte o professor universitário, persuasivo, eloquente; e era também em parte um místico, falando para sua própria alma, além de Georgos.

- E onde deve começar a destruição? O ideal seria em toda parte. Mas como somos poucos, até agora, escolhemos um denominador comum: a eletricidade. Afeta todo o populacho. Lubrifica as engrenagens do capitalismo. Faz com que os ricos fiquem ainda mais ricos. Permite pequenos-confortos, meros paliativos, ao proletariado, iludindo as massas e levando-as a acreditar que são livres. Cortando a eletricidade, destruindo a base do sistema, se estará cravando um punhal no coração do capitalismo!

Animando-se prontamente, Georgos disse:

- Lenine falou: o comunismo é o governo soviético mais a eletrificação de...

- Não me interrompa! Sei perfeitamente o que Lenine falou, só que o contexto era diferente!

Georgos se retraiu. Aquele era um novo Birdsong, diferente de todas as variantes que já vira antes. E também parecia não haver qualquer dúvida, pelo menos naquele momento, sobre quem estava no comando.

De pé, andando de um lado para outro, o gigante barbado continuou:

- Mas já verificamos que é preciso algo mais do que simplesmente a destruição do sistema de energia elétrica. Devemos atrair maior atenção para os Amigos da Liberdade, para os nossos objetivos, destruindo o próprio pessoal da eletricidade!

- Já fizemos alguma coisa nesse sentido - ressaltou Georgos. Quando explodimos a usina de La Mission e depois com as cartasbombas. Matamos o engenheiro-chefe, o diretor-superintendente...

- Tudo isso foi ninharia! Os números foram insignificantes! Estou pensando em algo grande, não em termos de um ou dois, mas de centenas. Os espectadores serão eliminados também, porque não existem margens de segurança numa revolução. E quando isso acontecer, finalmente nossos objetivos atrairão a atenção de todos! Haverá o medo, depois o pânico. Quem detiver alguma autoridade vai apressar-se em fazer exatamente tudo o que quisermos!

Os olhos de Davey Birdsong estavam focalizados a distância, muito além do porão sombrio e desarrumado. Era como se estivesse contemplando um sonho, uma visão, pensou Georgos... e descobriu que a experiência era inebriante e contagiante.

A perspectiva de novas mortes deixou Georgos excitado. Na noite das explosões em Millfield, logo depois que matara os dois guardas de segurança, sentira-se por um momento nauseado e aterrorizado. Afinal, fora a primeira vez que matara outro ser humano cara a cara. Mas esse sentimento passara rapidamente, substituído pela exultação e - o que ele achara bastante curioso - a excitação sexual. Possuíra Yvette naquela noite, brutalmente, revivendo, enquanto o fazia, o golpe com a faca que matara o primeiro guarda. Agora, recordando, escutando a conversa de Birdsong sobre a morte de centenas de pessoas, Georgos sentiu novamente uma excitação nos órgãos sexuais.

Birdsong acrescentou calmamente:

- A oportunidade que esperávamos vai surgir em breve.

Ele tirou do bolso uma folha de jornal dobrada. Era da edição do Califórnia Examiner de dois dias antes, e uma notícia de um parágrafo fora assinalada com lápis vermelho:

GRUPO DE ENERGIA SE REÚNE

A possível escassez de energia elétrica, em escala nacional, será debatida no próximo mês, quando o Instituto Nacional de Energia Elétrica vai realizar uma convenção de quatro dias, no Hotel Christopher Columbus, nesta cidade. Espera-se o comparecimento de mil delegados de companhias de serviços públicos e fabricantes de equipamento elétrico.

- Andei sondando outras fontes em busca de mais detalhes - informou Birdsong. - Aqui estão as datas exatas da convenção e um programa preliminar. - Jogou duas folhas datilografadas em cima da mesa. - Será fácil obter mais tarde o programa final. Dessa maneira, saberemos onde estará todo mundo e quando.

Os olhos de Georgos brilhavam intensamente de interesse, inteiramente esquecido seu ressentimento de poucos minutos atrás.

- Todos esses figurões reunidos... os criminosos sociais! Podemos enviar cartas-bombas para determinados delegados. Se eu começar a trabalhar agora...

- Não! Na melhor das hipóteses, conseguiria assim matar meia dúzia... talvez nem tantos, porque certamente eles vão tomar precauções, depois daquelas outras cartas-bombas.

- Tem razão. Então o quê...

- Tenho uma ideia melhor. Mas muito melhor mesmo! - Birdsong permitiu-se um sorriso. - No segundo dia da convenção, depois que todo mundo tiver chegado, você e seus homens irão colocar duas séries de bombas no Hotel Christopher Columbus. As bombas da primeira série deverão explodir mais ou menos ao mesmo tempo, por volta das três horas da madrugada. Deverão concentrar-se no térreo e mezanino. O objetivo será bloquear ou destruir todas as saídas do prédio, assim como todas as escadas e elevadores. Dessa forma, ninguém poderá escapar dos andares acima quando começarem as explosões da segunda série.

Georgos assentiu, escutando atentamente, enquanto Birdsong continuava:

- Poucos minutos depois das primeiras bombas explodirem, outras deverão explodir nos andares superiores, também ao mesmo tempo. Serão bombas incendiárias, tantas quantas puder colocar e contendo gasolina, a fim de incendiar o hotel e alimentar o fogo.

Um sorriso de expectativa estampou-se no rosto de Georgos. E ele balbuciou:

- Sensacional! Magnífico! E podemos perfeitamente consegui-lo!

- Se fizer tudo direito, nenhuma pessoa nos andares superiores deixará o prédio viva. Às três horas da madrugada, mesmo aqueles que ainda estiverem acordados já estarão na cama. Vamos executar todo mundo... os delegados à convenção, o principal alvo de nossa punição, suas mulheres, filhos e todos os outros que se encontrarem no hotel e que se meteram no caminho de uma revolução justa.

- vou precisar de mais explosivos, muito mais. - A mente de Georgos já estava funcionando rapidamente. - Sei onde e como colocar as bombas, mas não vai sair barato.

- Já lhe disse que temos dinheiro suficiente. Para esta operação e muitas outras.

- Não será problema arrumar a gasolina. Mas os mecanismos de tempo... e concordo plenamente que as explosões devem ser simultâneas, na medida do possível... terão que vir de fora daqui. Iremos comprá-los em pequenas quantidades, em diversas outras cidades. É o jeito para não atrairmos atenção.

- Pode deixar que eu cuido disso. Darei um pulo até Chicago, que é longe o bastante para não haver qualquer problema. Basta dar-me uma lista do que vai precisar.

Ainda se concentrando, Georgos assentiu.

- vou precisar de uma planta do hotel... pelo menos do andar térreo e do mezanino, onde colocaremos as bombas da primeira série.

- Precisa ser uma planta exata?

- Não. Um esboço já é suficiente.

- Neste caso, podemos fazê-lo sem problemas. Qualquer pessoa pode entrar lá, a qualquer momento.

- Há outra coisa que teremos de comprar: algumas dezenas de extintores de incêndio, portáteis, pintados de vermelho, do mesmo tipo que se encontra no hotel.

- Extintores de incêndio? Pelo amor de Deus! Queremos provocar um incêndio e não apagá-lo!

Georgos sorriu ironicamente, sabendo que era sua vez de mostrarse superior.

- Os extintores serão esvaziados, o revestimento enfraquecido e as bombas ficarão escondidas lá dentro. É uma ideia que tive. Extintores de incêndio podem ser colocados em qualquer lugar, especialmente num hotel, sem se tornar suspeitos, muitas vezes não sendo sequer notados. E quando por acaso são notados, parece que a gerência está simplesmente tomando precauções extras.

Sorrindo satisfeito, Birdsong inclinou-se para a frente e bateu no ombro de Georgos.

- É diabólico! Maravilhosamente diabólico!

- Podemos decidir depois como introduzir os extintores no hotel.

- Georgos ainda estava pensando em voz alta. - Não deve ser difícil. Podemos alugar ou comprar um caminhão, pintar o nome de uma falsa companhia. Podemos imprimir alguma espécie de autorização... talvez obter uma ordem de compra do hotel e copiá-la. Nossos homens as levariam, para o caso de serem detidos por alguém. E vamos precisar também de uniformes, para mim e para os outros...

- Arrumar o caminhão e os uniformes não é problema e podemos dar um jeito de obter também a ordem de compra. - Birdsong fez uma pausa, pensativo. - Tenho o pressentimento de que vai dar tudo certo. E quando tudo estiver acabado, as pessoas irão reconhecer a nossa força e tratarão de nos obedecer.

- Para os explosivos, vou precisar de 10 mil dólares, em notas pequenas, nos próximos dias. E depois...

com um entusiasmo cada vez maior, os dois continuaram a planejar.

 

- Se houver algum obscuro feriado judaico do qual ninguém mais ouviu falar - disse Nim a Ruth, sentado ao volante do Fiat - pode ter certeza de que seus pais irão buscá-lo na prateleira, tirar a poeira e aproveitá-lo.

A esposa, sentada a seu lado, soltou uma risada. Nim havia percebido antes, quando chegara em casa de volta do trabalho e enquanto se preparavam para sair, que Ruth estava descontraída e jovial. O que contrastava com o mau humor e algumas vezes a depressão total que ela exibira nas últimas semanas.

Já era meados de janeiro e, muito embora três meses se tivessem passado desde a conversa sobre um possível divórcio e a concessão de Ruth de que iria esperar um pouco, nenhum dos dois voltara a abordar o assunto diretamente. Mas era evidente que teriam de conversar outra vez muito em breve.

Basicamente, o relacionamento entre os dois, uma trégua incerta, permanecia inalterado. Mas Nim conscientemente passara a ser mais atencioso, ficando cada vez mais tempo em casa, fazendo mais companhia aos filhos. Talvez fosse a satisfação óbvia de Leah e Benjy pela presença mais constante do pai que levasse Ruth a evitar a confrontação final. Nim, por seu lado, ainda não tinha certeza como queria que o dilema fosse resolvido. Enquanto isso, os problemas da GSP & L mantinham-no intensamente ocupado, sobrando-lhe pouco tempo para as precauções pessoais.

- Jamais consigo lembrar de todos os feriados judaicos - comentou Ruth. - Papai disse que esse era o quê?

- Rosh Hashanah L'Elanoth... ou Dia Judaico da Árvore. Andei fazendo uma pesquisa na biblioteca do escritório e descobri que é literalmente o Ano Novo das Árvores.

- Um ano novo para as árvores judaicas? Ou para todas as árvores?

Nim riu.

- É melhor perguntar a seu velho.

Estavam atravessando a cidade, a caminho do oeste; Nim ziguezagueava pelo tráfego intenso, que parecia jamais diminuir, a qualquer hora do dia.

Uma semana antes, Aaron Neuberger telefonara para Nim no escritório, sugerindo que levasse Ruth para uma festa do Tu B'Shvat, o nome mais comum do mesmo feriado. Nim aceitara imediatamente, em parte porque o sogro se mostrara excepcionalmente amistoso ao telefone, em parte porque tinha algum sentimento de culpa por seu comportamento em relação aos Neubergers no passado. Parecia uma boa oportunidade para se redimir. Mas nem por isso mudara seu cepticismo a respeito do judaísmo quase fanático dos sogros.

Ao chegarem à casa dos Neubergers, espaçosa, confortável, de dois andares, numa área próspera do lado oeste da cidade, encontraram diversos carros estacionados nas proximidades e ouviram o barulho de vozes no andar superior. Nim sentiu-se aliviado por verificar que havia outros convidados. A presença de estranhos poderia evitar a barragem habitual de perguntas pessoais, inclusive as inevitáveis sobre um bar mitzvah para Benjy.

Ruth tocou no mezuzah que estava na porta e depois beijou a mão, como sempre fazia por deferência aos pais. Nim, que no passado sempre desdenhara o costume, como sendo, entre outras coisas, supersticioso, fez o mesmo, num súbito impulso.

Lá dentro, não houve a menor dúvida sobre a acolhida prazerosa de ambos, especialmente de Nim.

Aaron Neuberger, corpulento, totalmente calvo, muitas vezes encarara Nim com uma desconfiança que mal conseguia disfarçar. Naquela noite, porém, os olhos estavam amistosos por trás das lentes grossas, e ele apertou calorosamente a mão do genro. Rachel, a mãe de Ruth, uma mulher volumosa que era contrária às dietas para si mesma e para os outros, abraçou Nim efusivamente e depois disse, jovialmente:

- Minha filha está mesmo lhe dando comida direito? Você está que é osso puro! Mas vamos acrescentar um pouco de carne esta noite!

Nim achou graça e, ao mesmo tempo, ficou comovido. Quase que certamente, pensou ele, os Neubergers haviam descoberto que o casamento de Ruth corria perigo e resolveram pôr de lado seus sentimentos numa tentativa de salvá-lo. Nim olhou para Ruth, que estava sorrindo com a recepção efusiva.

Ruth estava usando um vestido estampado de seda, azul-claro, com brincos de pérola na mesma tonalidade. Como sempre, os cabelos pretos estavam impecavelmente arrumados e elegantes, a pele era suave, embora mais pálida do que o normal.

Enquanto Nim e Ruth se adiantavam para cumprimentar os que tinham cehgado antes, ele sussurrou:

- Você está linda esta noite! "

Ela fitou-o atentamente e disse em voz baixa:

- Tem alguma ideia de quanto tempo faz desde que me disse isso pela última vez?

Não houve tempo para mais nada. Foram cercados por rostos incontáveis; houve apresentações, apertos de mão. Entre as duas dezenas ou mais de convidados, havia uns poucos que Nim já conhecia. Quase todos já estavam comendo, os pratos repletos de quitutes de um bufe refinado.

- Venha comigo, Nimrod! - A mãe de Ruth segurou-lhe o braço firmemente, levando-o da sala de estar para a sala de jantar, onde estava armado o bufe. - Pode conhecer depois o resto dos nossos amigos. Agora, quero providenciar alguma coisa para encher esse vazio dentro de você, antes que desmaie de fome.

Ela pegou um prato e começou a enchê-lo de comida, generosamente, como se fosse o dia anterior ao jejum do Yom Kippur. Nim reconheceu diversas variedades de knishes, kishke, lokshen kugel, repolho recheado e pitcha. Como sobremesa, havia bolo de mel, strudel epirushkes de maçã.

Nim serviu-se de um copo do vinho branco israelense Carmel.

Ao voltar para a sala, percebeu claramente qual era o objetivo da festa. O Rosh Hashanah L'Elanoth, explicou o anfitrião, é comemorado em Israel pelo plantio de árvores e na América do Norte comendo-se frutos que até aquele momento, no ano judaico, ainda não haviam sido consumidos, Para ressaltar isso, Aaron Neuberger e outros estavam mastigando figos, de diversos pratos espalhados pela sala.

Outra coisa que os Neubergers logo deixaram claro foi que esperavam contribuições dos convidados; o dinheiro seria remetido para Israel a fim de pagar o plantio de árvores. Várias notas de 50 e 20 dólares já haviam sido depositadas numa bandeja de prata. Nim pôs também uma nota de 20 dólares e depois serviu-se de figos.

- Se me permite o trocadilho infame - disse uma voz atrás dele

- creio que tudo isso mostra que estamos convencidos de que nada vale mais do que um figo.

Nim virou-se. O homem que falara era idoso, quase um anão, o rosto jovial, lembrando um querubim, por baixo de uma nuvem de cabelos brancos. Nim lembrava-se de que ele era um médico, um clínico geral, que de vez em quando comparecia às reuniões na casa dos Neubergers. Vasculhou a memória à procura de um nome e descobriu-o.

- Boa noite, Dr. Levin. - Erguendo o copo de vinho, Nim fez o brinde tradicional: - L Chaim.

- L'Chaim... Como tem passado, Nim? Não o vejo com frequência nessas comemorações judaicas. Estou surpreso por descobrir que se interessa pela Terra Santa.

- Não sou religioso, Doutor.

- Também não sou, Nim. Nunca fui. Sei o que fazer num hospital muito melhor do que numa sinagoga. - O médico terminou de comer o figo e pegou outro. - Mas gosto dos rituais e cerimónias, de toda a história antiga do nosso povo. Como deve saber perfeitamente, não é a religião que mantém o povo judaico unido. É um senso de comunidade, remontado há cinco mil anos. É muito, muito tempo. Já tinha pensado nisso, Nim?

- Já, sim. E venho pensando muito a respeito ultimamente. O homem mais velho fitou-o com uma expressão irónica.

- E algumas vezes isso o perturba, não é mesmo? Está-se perguntando até que ponto pode ser um judeu? Ou se é possível sê-lo sem observar esses rituais confusos e elaborados como faz o velho Aaron?

Nim sorriu ao ouvir a referência ao sogro, que do outro lado da sala acuara um recém-chegado num canto e lhe estava descrevendo exuberantemente o Tu B'Shvat:

- tem suas raízes no Talmud...

- É mais ou menos isso - disse Nim.

- Pois então vou dar-lhe um conselho, filho: não se preocupe com essas coisas; não vale a pena. Faça como eu: gosto deer um judeu, sinto o maior orgulho das realizações do nosso povo, mas quanto ao resto... só faço o que me dá na veneta. Respeito os dias sagrados, se assim o desejar. Pessoalmente, tiro uma folga e vou pescar. Mas se não quiser respeitá-los, também não há problemas.

Nim descobriu-se sentindo uma profunda simpatia pelo velho médico tão jovial.

- Meu avô era rabino, um velho suave. Lembro-me dele nitidamente. Foi meu pai quem me afastou da religião.

- E de vez em quando se perguntara se não deveria voltar, não é mesmo?

- De uma maneira um tanto vaga, sem levar a coisa muito a sério.

- Seja como for... esqueça! É uma impossibilidade mental para alguém no seu estágio... ou no meu... ser um judeu praticante. Se começar a frequentar a sinagoga, vai descobrir isso em cinco minutos. O que está sentindo, Nim, é nostalgia, uma afeição pelas coisas do passado. Não há nada de errado nessa situação, mas é apenas isso.

Nim comentou, pensativo:

- Acho que é isso mesmo...

- Deixe-me dizer-lhe outra coisa: as pessoas como você e eu têm a mesma preocupação pelo judaísmo que podemos sentir por velhos amigos... um sentimento de culpa ocasional por não os vermos mais frequentemente, somado à ligação emocional. Foi assim que me senti quando fui com um grupo a Israel.

- Um grupo religioso?

- Não. Quase todos eram empresários, havia uns poucos médicos, dois ou três advogados. - O Dr. Levin soltou uma risada. - Quase ninguém levou uma yarmulke. Inclusive eu. Tive que pedir emprestado quando fui ao Muro das Lamentações, em Jerusalém. O que não impediu que fosse uma experiência emocional profunda, algo que jamais esquecerei. Tive a sensação de integração, um orgulho imenso. Senti-me judeu naquele momento. E sempre me sentirei.

- Tem filhos, Doutor?

O médico sacudiu a cabeça.

- Nunca tive. Minha querida esposa... ela já morreu, que Deus a guarde... sempre o lamentamos profundamente. Uma das poucas coisas que lamentei em minha vida.

- Pois eu tenho dois filhos, um rapaz e uma moça.

- Sei disso. E foi por causa deles que começou a pensar na religião, não é mesmo?

Nim sorriu.

- Parece conhecer todas as perguntas, assim como as respostas.

- Acho que já as ouvi antes. E também tenho uma longa experiência de vida. Não se preocupe com seus filhos, Nim. Basta ensinar-lhes os instintos humanos decentes. Tenho certeza de que já o está fazendo. Quanto ao resto, pode deixar que eles descobrirão pessoalmente seus caminhos.

Havia uma pergunta óbvia a fazer. Nim hesitou por um instante, mas acabou formulando-a:

- Acha que um bar mitzvah ajudaria meu filho a encontrar seu caminho?

- Não lhe vai fazer mal algum, não é mesmo? Afinal, não iria expô-lo a nenhuma doença social, se o mandasse para uma escola * Pequeno chapéu usado pelos judeus ortodoxos.

E um bar mitzvah é sempre seguido por uma festa espetacular. Encontram-se velhos amigos, come-se e bebe-se mais do que se deveria. Mas todo mundo adora. Nim sorriu novamente.

- É um. argumento de bom senso como nunca ouvi antes. O Dr. Levin assentiu, jovialmente.

- E lhe posso dizer mais uma coisa de bom senso: seu filho tem o direito de fazer uma opção pessoal. É um direito que lhe cabe, a sua herança. E vai ter essa oportunidade ao estudar para o bar mitzvah. É como abrir uma porta. Deixe-o decidir se quer ou não atravessá-la. Mais tarde, ele poderá optar pelo caminho de Aaron, pelo nosso, talvez por um caminho intermediário. Qualquer que seja o que ele escolher, não nos devemos preocupar com isso.

- Obrigado, Dr. Levin. Não sabe como me ajudou a pensar.

- Foi um prazer. E a consulta é de graça.

Enquanto os dois conversavam, o número de convidados aumentara consideravelmente, e o murmúrio das conversas crescera de intensidade. O companheiro de Nim volta e meia olhava ao redor, sorrindo e cumprimentando os outros; era evidente que conhecia quase todos os presentes. Os olhos dele se detiveram por um momento em Ruth, que estava conversando com outra mulher. Nim reconheceu-a como uma pianista famosa, que frequentemente dava concertos a favor de causas israelenses.

- Sua esposa está linda esta noite - comentou o Dr. Levin.

- Também acho. E foi justamente o que eu disse a ela ao chegarmos.

O médico mexeu a cabeça, a expressão triste.

- Ela esconde perfeitamente o seu problema e angústia. - Fez uma pausa, antes de acrescentar: - A minha angústia também, diga-se de passagem.

Nim ficou perplexo.

- Está falando de Ruth?

- Claro. - Levin suspirou. - Há momentos em que eu gostaria de não ter que tratar de pacientes de quem gosto muito, como é o caso de sua esposa. Eu a conheço há muito tempo, Nim, desde que ela era uma garotinha. Espero que compreenda que estamos fazendo tudo o que é possível. Tudo mesmo!

Nim experimentou uma súbita sensação de alarme, um frio no estômago.

- Não tenho a menor ideia do que está falando, Doutor!

- Não? - Foi a vez do velho médico ficar perplexo, uma expressão de confusão e culpa se estampando em seu rosto. - Ruth não lhe disse nada?

- Dizer o quê?

O Dr. Levin pôs a mão no ombro de Nim e disse:

- Meu amigo, acabei de cometer um erro. Um paciente, qualquer um, tem direito ao sigilo, de ser protegido contra um médico tagarela. Mas como você é o marido de Ruth, imaginei...

Nim protestou:

- Pelo amor de Deus, Dr. Levin, sobre o que estamos conversando? Qual é o mistério?

- Lamento, mas não lhe posso dizer. - O Dr. Levin sacudiu a cabeça. - Terá de perguntar a Ruth. E quando o fizer, diga-lhe que lamento minha indiscrição. Mas diga também... que acho que você deve saber.

Ainda constrangido e antes que Nim pudesse fazer mais alguma pergunta, o médico tratou de se afastar.

Para Nim, as duas horas seguintes foram de intensa agonia. Observou os rituais sociais, encontrou-se com convidados com quem ainda não falara, participou de conversas, respondeu a perguntas de umas poucas pessoas que conheciam sua função na GSP & L. Mas, durante todo o tempo, seus pensamentos estavam concentrados em Ruth. O que Levin quisera dizer ao falar: "Ela esconde perfeitamente o seu problema e angústia." E: "Estamos fazendo tudo o que é possível"?

Por duas vezes ele se esgueirou por entre os grupos para se postar ao lado de Ruth, só para descobrir que era impossível ter uma conversa particular. Em determinado momento, conseguiu dizer-lhe:

- Preciso muito falar com você.

E isso foi tudo. Nim compreendeu que teria de esperar até o momento de voltarem para casa.

Finalmente a festa foi-se aproximando do fim, os convidados começando a se retirar. A bandeja de prata estava repleta de dinheiro para mais árvores, em Israel. Aaron e Rachel Neuberger estavam na porta, despedindo-se dos convidados.

- Vamos embora também - disse Nim para Ruth.

Ela foi buscar o casaco num quarto, e os dois juntaram-se ao êxodo.

Eram os últimos a partir. Por isso, os quatro tiveram um momento de intimidade, que não fora possível antes. Enquanto Ruth beijava os pais, a mãe suplicou:

- Não podem ficar mais um pouco? Ruth mexeu a cabeça.

- Já é tarde, Mamãe, e ambos estamos cansados. Nim tem trabalhado demais.

- Se ele está trabalhando tanto, então trate de alimentá-lo melhor!

- declarou Rachel.

Nim sorriu.

- O que comi esta noite será suficiente para me deixar alimentado por uma semana. - Estendeu a mão para o sogro e acrescentou: - Antes de irmos, gostaria que soubesse de uma coisa. Decidi matricular Benjy numa escola hebraica, a fim de que ele possa ter um bar mitzvah.

Por alguns segundos, houve silêncio. Depois, Aaron Neuberger ergueu as mãos à altura da cabeça, as palmas viradas para a frente, como numa prece.

- Louvado seja o Mestre do Universo! E que todos nós vivamos com saúde até este dia glorioso! - Por trás dos óculos de lentes grossas, os olhos estavam molhados de lágrimas.

- Vamos conversar sobre os detalhes... - Nim não pôde continuar falando, porque os pais de Ruth o abraçaram fortemente. Ruth não disse nada. Mas, alguns minutos depois, quando já estavam no carro e Nim arrancava, virou-se para ele e disse:

- Foi uma coisa maravilhosa o que acabou de fazer, muito embora seja contra suas convicções. Por que tomou a decisão?

Nim deu de ombros.

- Há dias em que não sei direito no que acredito. Além do mais, o seu amigo Dr. Levin ajudou-me a pensar com um pouco mais de lucidez.

- Eu o vi conversando com ele... por um longo tempo. Nim contraiu as mãos no volante.

- Não gostaria de me dizer alguma coisa?

- Por exemplo?

A frustração acumulada de Nim finalmente estourou.

- Por que você tem consultado o Dr. Levin, o que a está deixando tão preocupada, por que me escondeu o problema, qualquer que seja. Ah, sim... já me ia esquecendo de uma coisa. O seu médico pediu para dizer-lhe que lamenta muito ter sido indiscreto, mas acha que eu devo saber.

- E ele tem razão. Acho que está mesmo na hora de você saber. A voz de Ruth era cansada, toda a jovialidade anterior desaparecera. Mas pode esperar até chegarmos em casa? Irei então contar-lhe tudo.

Seguiram pelo resto do caminho em silêncio.

- Estou com vontade de tomar um bourbon com soda, Nim. Pode prepará-lo para mim?

Estavam na sala de estar de sua casa, uma sala pequena mas aconchegante. Era quase uma hora da madrugada. Leah e Benjy estavam profundamente adormecidos lá em cima.

- Claro!

Era estranho que Ruth pedisse um drinque, já que raramente bebia algo mais forte do que vinho. Nim foi até o aparador que servia de bar, preparou um bourbon com soda e serviu-se de um conhaque. Ao voltar, sentou-se diante da esposa, que bebeu um terço do drinque de um só gole, depois fez uma careta e largou o copo.

- Muito bem, Ruth, pode começar a falar. Ela respirou fundo antes de começar:

- Está lembrado daquela verruga que eu removi há seis anos?

- Claro que estou.

Estranhamente, Nim a recordara recentemente, na noite em que ficara sozinho em casa, enquanto Ruth viajava, quando tomara a decisão de fazer uma visita a Denver. Notara a verruga no retrato a óleo de Ruth que estava pendurado na sala de estar, o retrato em que ela usava um vestido de baile sem alças. Nim olhou novamente para o retrato. Lá estava a verruga, exatamente como a lembrava antes de ser removida cirurgicamente: pequena e escura, no ombro esquerdo.

- E qual é o problema?

- Era um melanoma.

- Um o quê?

- Um melanoma é uma verruga que pode ter células cancerosas. Foi por isso que o Dr. Mittelman. deve estar lembrado dele, era o meu médico na ocasião... aconselhou-me a removê-la. Concordei. Outro médico, um cirurgião, fez a operação. Foi relativamente simples e depois ambos disseram que a verruga saiu sem qualquer problema. Não havia qualquer indício de que algo se espalhara.

- Lembro-ine perfeitamente do que Mittelman disse.

Na ocasião, Nim ficara ligeiramente preocupado, mas o médico o tranquilizara, insistindo que fora apenas uma precaução, nada mais. Como Ruth acabara de ressaltar, isso acontecera há seis anos; Nim esquecera os detalhes, só voltando a lembrá-los agora.

- Pois os dois estavam errados. - A voz de Ruth baixara, era agora quase um sussurro. - Havia células cancerosas e já se tinham espalhado. Agora... se espalharam mais ainda... pelo corpo todo...

Ela mal conseguiu balbuciar as últimas palavras. Depois, como uma represa cheia demais por muito tempo e que finalmente transbordava, seu controle dissolveu-se inteiramente. O ar escapou de seus pulmões num gemido, o corpo foi sacudido por soluços violentos.

Por um momento, Nim continuou sentado, imóvel, impotente, aturdido, incapaz de compreender, muito menos acreditar, o que acabara de ouvir. Depois, a realidade invadiu-o. com um turbilhão confuso de emoções, horror, sentimento de culpa, angústia, compaixão, amor, aproximou-se de Ruth e abraçou-a.

Tentou confortá-la, apertando-a firmemente, os rostos colados.

- Oh, minha querida, meu amor, por que nunca me contou? Em nome de Deus... por quê

A voz de Ruth era quase inaudível, entrecortada pelos soluços:

- Não éramos mais íntimos... não havia mais amor como antes... eu não queria apenas compaixão... você tinha outros interesses... outras mulheres...

 

Uma onda de vergonha e auto-repulsa invadiu Nim. Instintivamente, largou Ruth, caiu de joelhos diante dela e, segurando-lhe as mãos, suplicou:

- É tarde demais para pedir perdão, mas eu peço. Fui um idiota, cego, egoísta...

Ruth mexeu a cabeça, já recuperando uma parte do controle.

- Não precisa dizer nada disso!

- Quero dizer porque é verdade. Eu não tinha percebido antes, mas agora posso ver tudo claramente.

- Já lhe disse que eu não quero... apenas compaixão...

- Olhe para mim, Ruth! - Quando ela levantou a cabeça, Nim acrescentou, suavemente: - Eu a amo...

- Tem certeza de que não está dizendo isso só porque...

- Eu disse que a amo e é o que eu sinto! E sempre amei, só que por algum tempo fiquei confuso, banquei o estúpido. Precisava que me acontecesse algo assim para compreender... - Ele parou de falar abruptamente e, depois de uma breve pausa, voltou a suplicar: - Já é tarde demais?

- Não. - O esboço de um sorriso se insinuou no rosto de Ruth. Jamais deixei de amá-lo, apesar de você ter-se comportado como um miserável.

- E fui mesmo...

- No final das contas, talvez devamos alguma coisa ao Dr. Levin.

- Escute, meu amor... - Nim fez uma pausa, procurando as palavras certas, querendo tranquilizá-la. - Vamos enfrentar tudo juntos. Faremos tudo o que for medicamente possível. E não se fala mais de separação ou divórcio.

Ruth disse em voz firme, bem alto:

- Eu jamais quis qualquer dos dois! Oh, Nim querido, aperte-me com força! Beije-me!

Ele o fez. E no mesmo instante, como se nunca tivesse existido, o abismo entre os dois desapareceu.

- Está muito cansada para me contar tudo, Ruth? Esta noite? Agora?

Ela sacudiu a cabeça.

- Não. E quero contar-lhe tudo.

Ruth falou por mais uma hora, Nim escutando atentamente, de vez em quando fazendo uma pergunta.

Há mais ou menos oito meses, Ruth descobrira um pequeno caroço no lado esquerdo do pescoço. O Dr. Mittelman se aposentara no ano anterior e ela fora consultar o Dr. Levin.

O médico ficara desconfiado do caroço e pedira uma série de exames, inclusive radiografia do tórax, exames do fígado e dos ossos. Os exames minuciosos explicavam as ausências de Ruth durante o dia que Nim havia notado. Os resultados mostraram que as células cancerosas, depois de permanecerem adormecidas por seis anos, haviam subitamente se espalhado pelo corpo de Ruth.

- No dia em que eu soube, Nim, fiquei sem saber o que fazer ou pensar.

- Não importava tudo o mais que pudesse estar errado entre nós, deveria ter-me contado.

- Você parecia já estar com problemas demais. Foi mais ou menos na ocasião em que Walter foi morto naquela explosão em La Mission. Seja como for, resolvi não contar. Depois, atualizei os seguros, providenciei tudo o que era necessário.

- Seus pais não sabem?

- Não.

Depois dos resultados dos exames, explicou Ruth, ela começara a comparecer a um hospital local uma vez por semana, como paciente externa, para tratamentos de quimioterapia e imunoterapia. O que também explicava suas ausências durante o dia.

Ruth sofria enjoos ocasionais e emagrecera por causa do tratamento, mas conseguira ocultar as duas coisas. As repetidas ausências de Nim tornavam tudo mais fácil.

Nim pôs a cabeça entre as mãos, sua vergonha se aprofundando. Pensara que Ruth se estivesse encontrando com outro homem, quando na verdade...

Mais tarde, continuou Ruth, o Dr. Levin informara-a sobre um novo tratamento que estava sendo experimentado no Instituto SloanKettering, em Nova York. Achava que Ruth deveria ir até lá. E ela fora, para uma estada de duas semanas e uma nova série de exames.

Fora sua ausência prolongada, que Nim encarara com indiferença, no máximo como uma inconveniência para si próprio.

Ele simplesmente não sabia o que dizer agora.

- O que aconteceu, aconteceu, Nim. Você não poderia ter imaginado.

Nim formulou finalmente a pergunta que tanto receava:

- E o que dizem os médicos sobre o futuro... qual o prognóstico?

- Em primeiro lugar, não há cura; segundo, já é tarde demais para a cirurgia. - A voz de Ruth já estava agora firme, ela recuperara seu equilíbrio habitual. - Mas posso ter ainda alguns anos de vida, embora só possamos saber quantos no momento em que se esgotarem. Também não sei ainda se devo ou não fazer o tratamento do Instituto SloanKettering. Os médicos de lá estão usando um tratamento que consiste na aplicação de microondas para aumentar a temperatura de um tumor, seguido por radiação, que pode... ou não... destruir o tecido do tumor.

- Ruth sorriu debilmente. - Como pode imaginar, procurei descobrir o máximo possível sobre a doença e seu tratamento.

- vou querer conversar pessoalmente com o Dr. Levin, amanhã... ou melhor, hoje. Importa-se?

- Se eu me importo? - Ruth suspirou. - Claro que não! É maravilhoso ter alguém em quem me apoiar! Oh, Nim, eu precisava tanto de você!

Ele abraçou-a novamente. Pouco depois, apagou as luzes e levou-a para o quarto.

Pela primeira vez, em muitos meses, Nim e Ruth partilharam uma só cama. E quando o dia estava raiando, eles se amaram.

 

A lâmina da faca faiscou, e o sangue esguichou. Observando o processo de castração, Nim sentiu-se ligeiramente nauseado. Ao lado dele, Paul Yale riu e comentou:

- Agradeça a Deus por ter nascido homem e não um novilho.

Os dois estavam num passadiço estreito por cima de um curral, na fazenda de gado no Vale de São Joaquim, o coração agropecuário da Califórnia. A fazenda era uma das propriedades do fundo de investimentos da família Yale.

- Fico deprimido ao pensar em qualquer macho sendo privado do seu sexo. - explicou Nim.

Ele chegara de avião naquela manhã, a fim de apresentar a Paul Yale um relatório sobre a energia elétrica em seu relacionamento com a agricultura. Os fazendeiros da Califórnia eram grandes consumidores de eletricidade; a agropecuária e indústrias associadas consumiam 10 de toda a energia gerada pela GSP & L. Sem eletricidade, as atividades agropecuárias iriam definhar... e afetar inevitavelmente o bem-estar do Estado.

Mais tarde, naquele mesmo dia, o ex-Ministro do Supremo iria comparecer como representante da GSP & L a uma audiência regional sobre o projeto da companhia para Tunipah. Era da série da Comissão de Energia, que alguns chamavam de espetáculo ambulante. Líderes comunitários seriam convidados a depor sobre as necessidades locais de energia. Os fazendeiros do Vale de São Joaquim, que viam sua subsistência ameaçada pela escassez de energia, já figuravam entre os mais resolutos defensores de Tunipah.

Inevitavelmente, haveria também alguma oposição.

Ainda observando a atividade abaixo deles, Yale disse a Nim:

- Entendo o que está querendo dizer sobre a supressão da masculinidade... mesmo em animais. De certa forma, é uma pena. Mas é também necessário. Quando se é fazendeiro, nem mesmo se pensa nessas coisas.

- Gosta de ser fazendeiro?

- Um fazendeiro de meio expediente? Não sei ainda. - O velho jurista franziu o rosto. - O que estou fazendo é examinar os balanços e tentar entender por que esta e outras operações do Fundo da Família não estão dando lucro.

- O que estamos vendo neste momento parece-me bastante eficiente.

- Pode ser eficiente, mas é também extremamente dispendioso. Eles estavam observando a chegada do gado. Os bezerros, nascidos nas pastagens e ali criados por seis meses, eram trazidos para os currais, a fim de serem engordados para a venda no mercado.

Cinco cowboys, homens de meia-idade, em roupas de zuarte, cuidavam da operação.

Meia dúzia de bezerros eram levados para um curral circular. Lá dentro, os animais eram empurrados, através de choques elétricos, para um corredor estreito de cimento, as paredes se erguendo acima de suas cabeças, mas abertas no topo. Uma solução de inseticida era generosamente despejada sobre os animais, para matar os insetos e larvas.

O corredor levava, com uma inexorabilidade terrível, pensou Nim, a uma prensa hidráulica. Era uma caixa de metal, que se contraía assim que o bezerro entrava, a cabeça solta, o corpo levantado do solo. O assustado animal berrava desesperadamente... e tinha boas razões para isso, como ficaria comprovado nos minutos seguintes.

Primeiro, uma seringa contendo óleo de motor era despejada nas duas orelhas, para matar os carrapatos. Depois, uma imensa seringa era enfiada na boca do animal, injetando um vermífugo. Em seguida, as extremidades afiadas dos chifres eram cortadas com uma tesoura especial, deixando à mostra a parte mole e sangrenta interior. Simultaneamente, sentia-se um cheiro forte e nauseante de pêlo e carne queimada, quando um ferro de marcar elétrico, em brasa, era comprimido contra o flanco do animal.

Ao toque de uma alavanca e com um zumbido de ar comprimido, a caixa de metal girava 90 para o lado. No que fora antes o fundo, ficava à mostra uma pequena "janela", que um cowboy abria. Inserindo pela abertura uma lata de aerosol contendo desinfetante, o homem o espalhava sobre os órgãos genitais do bezerro. Depois, largava a lata e pegava uma faca. Cortava os testículos e jogava num recipiente a seu lado. Outra aplicação do jato de aerosol na ferida sangrando e a operação estava concluída.

O bezerro, tendo sido privado de todos os seus desejos que não o de comer, iria engordar facilmente.

A prensa hidráulica era aberta. Ainda berrando, o animal corria para um curral mais à frente.

Do princípio ao fim, a operação levava menos de quatro minutos.

- É mais rápido e mais simples do que antigamente - comentou Yale. - Nos tempos do meu avô e até mesmo recentemente, os bezerros tinham que ser laçados e amarrados para que se pudessem fazer as coisas que acabamos de observar. Atualmente, nossos cowboys raramente montam a cavalo e alguns nem sabem montar.

- E o método moderno é mais barato?

- Deveria ser, mas não é. E tudo por causa do custo cada vez maior de mão-de-obra, materiais, forragem, eletricidade... especialmente de eletricidade. Usamos energia elétrica para tudo. Como para o moinho que prepara a forragem para quarenta mil cabeças de gado. E sabia que durante a noite inteira há luzes acesas nos currais?

- Pelo que sei, servem para o gado poder ver e comer.

- Exatamente. O gado dorme menos, come mais, engorda mais depressa. Mas nossas contas de energia são astronómicas.

Nim cantarolou:

- Acho que já ouvi essa música antes... Yale não pôde deixar de rir.

- Estou parecendo um desses consumidores que vivem reclamando, não é mesmo? Pois é o que sou hoje. Tive uma conversa com nosso administrador, lan Norris, e mandei que reduzisse drasticamente as despesas, economizasse, eliminasse o desperdício, poupasse em tudo. Não há outro jeito.

Nim fora apresentado a Norris naquela manhã. Era um homem soturno, mal-humorado, de cinquenta e tanto anos, que tinha um escritório na cidade e administrava outros bens além do Fundo da Família Yale. Nim tivera a impressão de que Norris preferia quando Paul Sherman Yale estava em Washington e não se envolvia nos negócios da família.

- O que eu realmente gostaria de fazer era vender esta propriedade e algumas outras que meu avô deixou - disse Yale. - Mas, neste momento, não é uma ocasião propícia para vender.

Enquanto conversavam, Nim continuara a observar a procissão lá embaixo. Algo o deixou perplexo.

- Esse último bezerro e o anterior não foram castrados. Por quê?

- Nim, meu rapaz, há algo que preciso revelar-lhe - disse Yale, inclinando-se e falando em tom confidencial. - É que eram fêmeas...

Almoçaram em Fresno, no Salão Windsor do Hotel Hilton. Durante o almoço, Nim continuou a dar as informações necessárias. Era um trabalho fácil. Assim que qualquer fato ou estatística era mencionado, Yale parecia decorar instantaneamente. Raramente pedia que alguma coisa fosse repetida, e suas perguntas objetivas demonstravam uma excepcional rapidez de raciocínio, além de uma boa compreensão do quadro geral. Nim pensou que gostaria que seus poderes mentais continuassem tão bons quando chegasse aos 80 anos.

Uma boa parte da conversa foi sobre água. 90%da energia elétrica consumida pelos fazendeiros do fértil Vale de São Joaquim, informou Nim, eram para bombear água de poços para irrigação. Assim as interrupções no fornecimento de energia seriam desastrosas.

- Lembro-me deste vale quando era quase que totalmente um deserto - recordou Paul Yale. - Foi na década de 1920. Houve era um tempo em que ninguém acreditava que se pudesse cultivar qualquer coisa aqui. Os índios chamavam-no de "Vale Vazio".

- É que não tinham ouvido falar da eletrificação rural.

- Tem razão. Operou milagres por aqui. Como é mesmo aquela frase de Isaías? Ah, sim... "O deserto irá regozijar-se e desabrochar como a rosa." - Yale soltou uma risada, antes de acrescentar: - Talvez eu possa incluir isso no meu depoimento. Não acha que uma ou duas citações da Bíblia dão um toque de classe?

Antes que Nim pudesse responder, o maítre se aproximou da mesa e informou:

- Telefone para o senhor. Pode atender na mesa de hostess, se desejar, Sr. Yale.

O velho jurista se afastou por vários minutos. Nim podia vê-lo do outro lado do salão, escrevendo num caderninho de anotações, enquanto escutava atentamente o que estava sendo dito pelo telefone. Ao voltar para a mesa, estava radiante, o caderninho aberto.

- Boas notícias sobre Tunipah, Nim. Eu diria mesmo que são excelentes. Um assessor do Governador estará presente na audiência desta tarde. Vai ler uma declaração de que o Governador agora apoia resolutamente o projeto de Tunipah. Um press release de confirmação está sendo distribuído neste momento pelo gabinete do Governador. - Yale deu uma olhada em suas anotações. - Diz que por "convicção pessoal, depois de profundos estudos, o Governador está agora certo de que o projeto de Tunipah é essencial para o desenvolvimento e prosperidade da Califórnia".

- Conseguiu mesmo! Meus parabéns!

- Admito que estou satisfeito. - Guardando o caderninho no bolso, Yale consultou o relógio. - O que acha de fazermos algum exercício e irmos a pé até o local da audiência?

- vou acompanhá-lo até lá, mas não entrarei. - Nim sorriu. Não se esqueça... ainda soupersona non grata na Comissão de Energia.

O prédio onde se realizaria a audiência ficava a cerca de 10 minutos de distância, a pé.

Era um dia claro e ameno. Paul Yale, lépido no andar como em tudo o mais, saiu rapidamente do hotel. Depois de tanta conversa antes e durante o almoço, os dois ficaram agora em silêncio.

Os pensamentos de. Nim voltaram a Ruth, como vinha acontecendo com extrema frequência ultimamente. Uma semana e meia já se passara desde aquela noite comovente em que Nim soubera que a vida de Ruth estava ameaçada por células cancerosas espalhadas por seu corpo. Além de um. ; conversa com o Dr. Levin, Nim guardara o segredo para si. Não via razão fará transformar Ruth, como ele já vira acontecer em outras famílias, num objeto de comentários e especulações.

A atitude do Dr. Levin não fora derrotista nem tranquilizadora.

- Sua esposa pode ter ainda muitos anos de vida normal. Mas você deve saber também que o estado dela pode deteriorar-se súbita e rapidamente. O tratamento, quer seja quimioterapia ou imunoterapia, fará com que as chances dela sejam um pouco melhores.

Quanto a uma possível terapia adicional, Ruth faria em breve outra viagem a Nova York. Seria decidido então se o método mais novo e em parte ainda experimental do Instituto Sloan-Kettering poderia ajudá-la. Para Nim, assim como para Ruth, a espera era como viver numa saliência solta à beira de um precipício, sem saber se iria desmoronar ou aguentar firme.

- O único conselho que lhe posso dar é o mesmo que já dei a sua esposa: viver um dia de cada vez e aproveitá-lo ao máximo - acrescentara o médico. - Não a deixe adiar ou se esquivar as coisas que ela queira e possa fazer. Pensando bem, é um bom conselho para todos nós. Não se esqueça de que você ou eu podemos morrer amanhã de um ataque cardíaco ou num acidente de carro, com sua esposa nos sobrevivendo por muitos anos. - Dr. Levin suspirara, antes de arrematar: - Sinto muito, Nim. Provavelmente o que estou dizendo parece bobagem. Sei que gostaria de ouvir, algo mais objetivo e definido. Todo mundo quer. Mas o conselho que lhe estou dando é o melhor de que disponho.

Nim seguira o conselho do Dr. Levin, passando o máximo de tempo possível em companhia de Ruth. Naquele dia, por exemplo, poderia passar a noite em Fresno. Havia alguns projetos locais sobre os quais poderia informar-se, com grande proveito. Em vez disso, reservara uma passagem num voo da tarde, a fim de chegar em casa a tempo para o jantar.

Seus pensamentos foram trazidos de volta ao presente por um comentário de Paul Yale:

- Parece que há um número extraordinário de pessoas na rua a esta hora do dia.

Nim estava tão absorto em seus pensamentos que não havia reparado.

- Tem razão.

As ruas próximas estavam repletas de pedestres, todos aparentemente seguindo na mesma direção de Yale e Nim: o próprio estadual onde seria realizada a audiência. Algumas pessoas caminhavam apressadamente, como se desejando chegar na frente. Havia também muitos carros e o trânsito já começava a ficar congestionado. Entre os ocupantes dos carros e os que estavam a pé, pareciam predominar mulheres e adolescentes.

- Talvez se tenha espalhado a notícia de que o senhor viria hoje aqui - comentou Nim.

O velho jurista riu.

- Mesmo que tivesse, não tenho o carisma para atrair tal multidão. Chegaram ao gramado diante do prédio, que já estava apinhado de gente.

- Quando se quer descobrir alguma coisa, a melhor maneira é perguntar - comentou Yale. Tocou no braço de um homem de meiaidade, metido num macacão de operário. - com licença... Estamos curiosos e gostaríamos de saber por que há tanta gente aqui.

O homem fitou-o com uma expressão de incredulidade. "!

- Quer dizer que não sabe? Yale sorriu.

- Foi por isso que perguntei.

- Cameron Clarke vai aparecer aqui.

- O ator de cinema?

- Quem mais poderia ser? Ele vai falar em alguma audiência do governo. O rádio falou nisso a manhã inteira. E deu também na televisão, segundo minha velha.

- Que audiência do governo? - indagou Nim.

- Como é que vou saber? Além do mais, quem se importa com isso? Só quero dar uma olhada nele e mais nada.

Paul Yale e Nim se entreolharam, o mesmo pensamento ocorrendo a ambos.

- Saberemos em breve - murmurou Yale.

Começaram a abrir caminho através da multidão na direção da entrada do prédio, que era funcional, sem qualquer característica arquitetônica interessante, com uma escadaria na frente. Nesse momento, uma limusine preta, com uma escolta de motociclistas da polícia, aproximouse pelo outro lado. Soou um grito, que logo foi repetido por incontáveis vozes:

- Lá está ele! Lá está ele!

A multidão avançou. Apareceram mais guardas. Abriram caminho para que a limusine chegasse ao meio-fio, diante da escadaria. Assim que o carro parou, um motorista uniformizado saltou e foi abrir a porta de trás. Um jovem baixo e esguio saiu do carro. Os cabelos eram louros, usava um terno bege. A multidão pôs-se a aclamar. Alguém gritou e outros se puseram a repetir:

- Cameron! Ei, Cameron!

Como se fosse um rei, Cameron Clarke acenou em resposta.

Ele era no momento a grande garantia de bilheteria de Hollywood. O rosto bonito, infantil e jovial era conhecido por 50. 000. 000 de fãs que o idolatravam, de Cleveland a Calcutá, de Seattle a Serra Leoa, de Brooklyn a Bagdá. Até mesmo os augustos ministros do Supremo Tribunal dos Estados Unidos já tinham ouvido falar de Cameron Clarke, como Paul Sherman Yale demonstrara um momento antes. A simples presença de Clarke em qualquer lugar era suficiente para provocar um verdadeiro tumulto de adulação. A polícia de Fresno, sabendo disso, estava-se empenhando ao máximo para conter a multidão.

Os fotógrafos, que tinham começado a bater chapas no momento em que a limusine parara, continuavam a tirar fotografias, como se os filmes fossem inesgotáveis. Uma equipe de TV, que estava à espera, aproximou-se do grande astro do cinema.

E foi feita uma entrevista ali mesmo.

Entrevistador com grande respeito: - Sr. Clarke, por que está aqui?

Cameron Clarke: - Estou aqui como um cidadão comum e humilde para protestar contra um plano sórdido e totalmente desnecessário que iria conspurcar a magnífica e ainda intacta região da Califórnia conhecida como Tunipah.

E: - São palavras bem fortes. Poderia explicar por que se sente assim?

  1. C. - Claro! O projeto de Tunipah é desastroso porque é contra o meio ambiente. É sórdido porque o objetivo exclusivo é proporcionar mais lucros à Golden State Power & Light, que não está precisando. É desnecessário porque existe outra fonte de energia disponível. Além do mais, a poupança de energia iria reduzir as necessidades muito mais do que Tunipah seria capaz de gerar.

Nim e Paul Yale estavam perto e podiam ouvir a entrevista. Nim murmurou, furioso:

- Ele está recitando a lição que lhe ensinaram. Eu gostaria de saber quem foi o idiota desinformado que escreveu essas respostas.

E: - Qual é essa outra fonte de energia, Sr. Clarke?

  1. C. - A energia solar.

E: - Acha que a energia solar já está disponível?

  1. C. - Tenho certeza absoluta. Mas não há qualquer pressa, nem mesmo para a energia solar. Essa conversa sobre escassez de energia não passa de uma tática de apavoramento... mera propaganda das companhias de eletricidade.

Um espectador gritou:

- É isso mesmo, Cameron! Vamos dar uma lição nesses miseráveis gananciosos!

O ator virou-se, acenou e sorriu. Nim disse a Paul Yale:

- Acho que já ouvi bastante. Se. não se importa, Sr. Yale, vou seguir para o norte, deixando-o aqui na audiência. Ao que parece, vai ser um espetáculo e tanto.

- Já sei quem será o astro e pode estar certo de que não serei eu murmurou Yale, tristemente. - Está bem, Nim, pode ir. E obrigado por sua ajuda.

Enquanto Nim abria caminho por entre a multidão na direção oposta, Yale chamou um guarda e identificou-se. Um momento depois, inteiramente despercebido, ele entrou no prédio, escoltado por guardas.

A entrevista da televisão com Cameron Clarke continuava.

- Para dizer a verdade, Cameron Clarke é um rapaz dos mais decentes pessoalmente - comentou Oscar O'Brien, no dia seguinte. Conversei com ele e também com alguns dos seus amigos. Ele tem um casamento sólido e três filhos que adora. O problema é que, sempre que abre a boca em público, tudo o que diz parece vir diretamente do Monte Olimpo.

O advogado, que comparecera à audiência em Fresno, estava relatando os acontecimentos a J. Eric Humphrey, Teresa Van Buren e Nim.

- A principal razão de Clarke se opor a Tunipah é o fato de possuir uma propriedade nas imediações, um refúgio onde passa os verões com a família. Eles têm cavalos, andam pelas trilhas, pescam, de vez em quando passam a noite acampados no mato. Clarke está com medo de que o projeto de Tunipah acabe com tudo isso. E provavelmente é o que iria mesmo acontecer.

Eric Humphrey perguntou:

- Mas não foi ressaltado que o bem-estar de milhões de californianos é muito mais importante do que os privilégios de férias de um único indivíduo?

"- Claro que foi - respondeu Oscar O'Brien. - Procurei deixar isso bem claro na inquirição. Mas acha que alguém se importou? Não! Cameron Clarke se manifestou contra Tunipah e ponto final. O deus das telas tinha falado, nada mais podia ter qualquer importância.

O advogado parou de falar por um momento, recordando, antes de acrescentar:

- Quando Clarke falou na audiência sobre a destruição da natureza... e não posso deixar de reconhecer que ele foi sensacional, parecia até Marco António discursando sobre o cadáver de César... muitas pessoas começaram a chorar. E estou falando sério: estavam chorando mesmo!

- Ainda acho que alguém escreveu o roteiro para ele - comentou Nim. - Pelo que ouvi dizer, ele não sabe tanto assim a respeito de coisa alguma.

O'Brien deu de ombros.

- É uma dúvida inteiramente académica. Mas a coisa não ficou por aí. Quando Clarke terminou o depoimento e se preparava para ir embora, o comissário que presidia a audiência mandou avisá-lo de que gostaria de um autógrafo. Disse que era para a sobrinha. Um tremendo mentiroso. Era para ele próprio!

- Qualquer que seja o ângulo que se olhe - concluiu Teresa Van Buren - o fato é que o Cameron Clarke nos causou um tremendo prejuízo.

Ninguém comentou o que não precisava ser dito: que a televisão, rádio e jornais tinham dado uma ampla cobertura ao depoimento do ator, ofuscando todas as demais notícias a respeito de Tunipah. No Chronicle- West e no Califórnia Examiner, a declaração do Governador da Califórnia em apoio ao projeto merecera apenas um pequeno parágrafo, ao final da ampla reportagem dominada por Clarke. Na TV, a declaração do Governador nem fora mencionada. E a presença de Paul Sherman Yale fora totalmente ignorada.

 

O instinto dizia a Nancy Molineaux que estava na pista de alguma coisa importante. Possivelmente uma grande reportagem, embora até aquele momento ainda estivesse informe e inconsistente. Havia outros problemas. Um deles era o fato de ela não saber exatamente o que estava procurando. Outro era a necessidade prática de continuar a fazer reportagens regulares para o Califórnia Examiner, o que limitava consideravelmente o tempo de que dispunha para sua nebulosa investigação. E tudo se tornava ainda mais difícil pelo fato de Nancy não ter revelado a ninguém o que estava fazendo, muito menos ao editor local do Examiner, um homem sempre em busca de resultados imediatos e incapaz de compreender que a astúcia, e a paciência podiam muitas vezes ser as grandes armas de um bom repórter. Nancy possuía ambas.

E as vinha usando desde a assembleia anual dos acionistas da Golden State Power & Light, quando Nim Goldman lhe sugerira, num acesso de raiva:

- Por que não investiga ele?

"Ele" era Davey Birdsong.

Evidentemente, Goldman perdera o controle e não esperava que Nancy levasse a sugestão a sério. Mas, depois de pensar muito a respeito, ela decidira agir de acordo com a sugestão.

Já antes estava curiosa em relação a Birdsong. Nancy desconfiava de pessoas que estavam sempre no lado da justiça e na defesa dos oprimidos ou gostavam de fazer com que os outros assim pensassem. Era o caso de Davey Birdsong. A experiência de Nancy era a de que os idealistas liberais-populistas geralmente estavam querendo simplesmente se sobrepor aos demais, ocupando o primeiro lugar absoluto, deixando para os outros apenas as migalhas. Ela já testemunhara isso pessoalmente mais de uma vez, tanto nas comunidades negras como em brancas.

O Sr. Milo Molineaux, o pai de Nancy, não era um idealista e reformador liberal. Era apenas um empreiteiro de obras, que durante toda a vida visara a um objetivo declarado: o de passar de um menino pobre, nascido de pais negros na região rural da Louisiana, para a situação de um homem rico. E conseguira, através do trabalho árduo e honesto. Atualmente, o Sr. Molineaux era um homem imensamente rico.

Contudo, Nancy já chegara à conclusão de que o pai fizera muito mais pela gente de sua raça, proporcionando bons empregos, salários justos e dignidade humana, do que mil ativistas políticos e outros do género.

Ela desprezava alguns dos liberais, inclusive brancos, que se comportavam como se estivessem querendo reparar pessoalmente 300 anos de escravidão dos negros. Pela maneira como esses idiotas falavam e agiam, era de se acreditar que uma pessoa negra jamais pudesse fazer qualquer coisa errada. Nancy se divertia sendo grosseira e agressiva com tais liberais, observando-os aceitar tudo e sorrir, deixando-a escapar impune com o indesculpável só porque era negra. E enquanto eles se comportavam assim, o desprezo de Nancy ia-se tornando cada vez maior.

Ela não desprezava Nim Goldman. Ao contrário, o que teria deixado o próprio Nim espantado, passara a gostar dele, a admirá-lo.

Goldman a detestava e Nancy sabia disso. Ele a detestava com toda franqueza, sem fazer o menor esforço para disfarçar. Detestava-a como repórter e como mulher. Nancy tinha certeza de que a cor de sua pele nada tinha a ver com o ódio de Goldman, que teria sido igualmente intenso quer ela fosse branca, amarela ou roxa. No que tocava a seu ódio contra Nancy Molineaux, Goldman era cego para cores.

E era assim mesmo que tinha de ser. Por isso, Nancy respeitava-o.

Por pura implicância, como era a primeira a reconhecer, Nancy gostava de provocar a raiva de Goldman. Era tão agradável! De qualquer forma, já era suficiente. Nancy conseguira crucificá-lo por duas vezes, mas não era justo continuar a fazê-lo. Além do mais, o filho da mãe era corajoso e honesto, o que já não se podia dizer da maioria das pessoas pomposas e inconsistentes que haviam pontificado nas audiências, enquanto Goldman falara o que pensava e por isso fora depois amordaçado.

Nancy escrevera a reportagem sobre a audiência final de Goldman da forma que fizera porque se orgulhava de ser, em primeiro lugar e acima de tudo, uma boa jornalista. O que significava ser implacável, pondo em segundo plano as emoções e sentimentos pessoais. Mas nem por isso deixara de lamentar o que acontecera com Goldman e desejar que ele se recuperasse.

Se algum dia viesse a conhecê-lo melhor, o que era altamente improvável, Nancy não hesitaria em dizer-lhe isso.

Por enquanto, havia uma certa lógica e justiça, pensava Nancy Molineaux, em concentrar sua atenção em Davey Birdsong, depois de ter abandonado Goldman como alvo.

Uma coisa Nancy tinha certeza: não sentia a menor admiração por Birdsong e estava convencida, mesmo no estágio inicial de suas investigações, de que ele era um farsante e provavelmente um vigarista.

Logo depois da assembleia anual dos acionistas, ela começou discretamente a investigar Birdsong e sua & Ip. As investigações se prolongaram por vários meses, pois só se podia dedicar nas horas vagas e havia períodos em que simplesmente deixava tudo de lado. Mas os resultados, embora lentos, eram dos mais interessantes.

Nancy descobriu que Birdsong fundara a & Ip quatro anos antes, numa ocasião em que a inflação, somada ao aumento dos preços do petróleo, fizera com que as tarifas de eletricidade e gás se tornassem consideravelmente mais altas. Incontestavelmente, a elevação das tarifas fora a causa de problemas e dificuldades para as famílias de renda média e baixa. Birdsong se proclamara o defensor do povo.

Sua exuberância lhe valera uma atenção imediata dos meios de comunicação e ele tratara de capitalizá-la, recrutando milhares de membros para a sua & Ip. Para conseguir isso, Birdsong contratara um pequeno exército de universitários, Nancy conseguiu localizar diversos exestudantes que haviam trabalhado para Birdsong. Todos, sem exceção, mostraram-se revoltados com a experiência.

- Achávamos que estávamos fazendo algo nobre, ajudando os desprivilegiados - disse um desses antigos estudantes, hoje arquiteto.

- Mas logo descobrimos que estávamos principalmente ajudando a Davey Birdsong.

E o informante não parou por aí:

- Quando saíamos em campo, levávamos petições que Birdsong mandara imprimir. Eram endereçadas ao Governador, Senador Estadual, Assembleia Legislativa, Comissão de Serviços Públicos e assim por diante. Pediam a redução das tarifas dos serviços públicos para os consumidores residenciais mais pobres, íamos de porta em porta, pedindo às pessoas para assinarem. E quem não iria assinar um pedido daqueles? Todo mundo assinava!

Uma jovem que também trabalhara para Birdsong e consentira em conversar com Nancy na mesma ocasião continuou a história:

- Assim que tínhamos a assinatura, não antes, devíamos explicar que organizar petições custa dinheiro. A pessoa não poderia fazer o favor de ajudar, contribuindo com três dólares para a campanha, o que representava um ano de associação à & lp? A esta altura, a pessoa com quem estávamos falando já pensava que nos devia alguma coisa pelo trabalho que fazíamos. Era uma hábil manobra psicológica, coisa em que Birdsong é muito bom. Eram bem poucas as famílias, até entre as mais pobres, que não davam os três dólares.

jovem arquiteto retomou a narrativa:

- Acho que não havia nada de realmente desonesto nisso, a não ser que se possa chamar de desonesto angariar muito mais dinheiro do que era necessário para manter a & lp. Mas houve realmente desonestidade na maneira como Birdsong tratou os estudantes que trabalhavam para ele.

A moça voltou a falar:

- Birdsong prometeu-nos como remuneração um dólar de cada três que angariássemos. Mas insistiu que todo o dinheiro devia primeiro lhe ser entregue, explicando que precisava registrá-lo nos livros. Só depois é que nos pagaria. E só pagou mesmo depois, mas muito depois. Mesmo então, pagou apenas um quarto do que prometera... vinte e cinco cents, em vez de um dólar para cada três angariados. Claro que discutimos com ele, mas Birdsong simplesmente alegou que fora mal compreendido.

Nancy perguntou:

- E não tinham nada por escrito?

- Não. Confiávamos nele. Afinal, Birdsong estava do lado dos pobres, lutando contra as companhias poderosas... ou pelo menos era o que pensávamos.

- Além disso - acrescentou o arquiteto - Birdsong era precavido, como só viemos a descobrir depois, conversando com cada um separadamente. Dessa maneira, não havia testemunhas. Mas se houve um mal-entendido, todos nós o cometemos.

- Houve de fato um mal-entendido - comentou a moça. - O de não termos percebido que Birdsong não passava de um vigarista.

Nancy Molineaux pediu a esses dois e a outros que fizessem uma estimativa do quanto fora angariado. Em suas declarações públicas, Birdsong dizia que a & lp tinha 25. 000 associados. Mas a maioria das pessoas com quem Nancy conversou estava convencida de que o número era consideravelmente mais alto, provavelmente 35. 000 associados. Se assim era e descontando-se a quantia paga aos estudantes, a receita da & lp no primeiro ano fora provavelmente em torno dos 100. 000 dólares.

- Não deve estar longe da verdade - comentou o jovem arquiteto, quando informado da estimativa de Nancy. - Birdsong tem um negócio lucrativo. - Ele fez uma pausa, antes de acrescentar, tristemente: Talvez eu esteja no negócio errado.

Nancy descobriu também que continuava a coleta de dinheiro para a lp.

Davey Birdsong ainda contratava universitários, pois sempre havia uma nova geração que precisava de dinheiro e um trabalho em meio expediente, com o objetivo de recrutar novos associados para a & Ip, assim como renovar a participação dos antigos. Aparentemente, Birdsong não estava mais enganando os estudantes; provavelmente compreendera que não poderia escapar indefinidamente com a trapaça. Mas não restava a menor dúvida de que muito dinheiro continuava a fluir para a lp.

O que Birdsong fazia com esse dinheiro? A resposta não era simples. É verdade que ele fazia uma oposição ativa à Golden State Power & Light, em diversas frentes, muitas vezes com sucesso. Muitos associados da & Ip achavam que a atuação dele era digna do dinheiro com que contribuíam. Mas Nancy não pensava assim.

com a ajuda de um contador, Nancy fez os cálculos aritméticos necessários. Mesmo com despesas generosas e um salário pessoal para Birdsong, não havia possibilidade de gastar mais do que a metade do dinheiro que estava entrando. E o que acontecia com o resto? O melhor palpite era o de que Birdsong, que controlava totalmente a & Ip, estivesse desviando o dinheiro para outros fins.

É claro que Nancy não podia prová-lo. Ou pelo menos ainda não.

contador comentou que o Serviço de Rendas Internas podia exigir uma auditoria da & Ip e de Birdsong. Mas o problema era que esse Serviço sempre tivera escassez de pessoal. Por isso, muitas organizações supostamente não-lucrativas jamais eram verificadas e escapavam impunes com trapaças financeiras.

O contador perguntou: Nancy gostaria de que ele informasse o Serviço de Rendas Internas confidencialmente?

A resposta categórica: Não. Ela ainda não estava pronta para dar informações a quem quer que fosse.

Os serviços do contador estavam à disposição de Nancy porque o pai dela era um importante cliente da firma. O mesmo acontecia com um advogado frequentemente contratado por Milo Molineaux, Inc. Nancy levou os ex-estudantes ao gabinete do advogado, que providenciou depoimentos juramentados. Os antigos colaboradores de Birdsong não hesitaram em contar tudo o que sabiam.

Ela estava preparando o seu dossiê cuidadosamente.

Nancy Molineaux estava a par das outras fontes de rendimentos de Birdsong, as aulas na universidade e os artigos. Não havia nada de errado nisso, nem mesmo se tratava de alguma coisa fora do comum, mas aguçava sua curiosidade sobre o destino que Davey Birdsong dava a todo o dinheiro que recebia.

Havia ainda um rumor vago, que Nancy ouvira num coquetel, de que Birdsong e a & Ip tinham apelado por apoio financeiro ao Clube da Sequóia. Nancy achava que isso era improvável; e mesmo que fosse verdade, o rico e prestigiado Clube da Sequóia certamente não ia querer qualquer associação com alguém como Davey Birdsong. De qualquer forma, porque tinha o hábito de investigar tudo, Nancy fizera algumas sondagens. Até agora, porém, sem resultados.

O problema mais intrigante começou num dia de janeiro, quando Nancy estava guiando seu Mercedes 450SL e por acaso avistou Davey Birdsong caminhando a pé numa rua do centro. Sem perder tempo a se perguntar por que, Nancy decidiu segui-lo. Deixou o carro num estacionamento convenientemente próximo e foi atrás dele a pé, mantendo-se a uma distância discreta. O que aconteceu a seguir parecia saído de uma novela de espionagem.

Embora Nancy tivesse certeza de que Birdsong não a vira, ele se comportou como se esperasse que alguém o seguisse e estivesse disposto a se desvencilhar de qualquer maneira. Primeiro, entrou no movimentado saguão de um hotel. Olhou ao redor e foi meter-se no banheiro, de onde saiu alguns minutos depois usando óculos escuros e um chapéu de feltro, enquanto antes estava com a cabeça descoberta. A mudança não enganou Nancy. Contudo, a aparência dele era diferente, e Nancy compreendeu que, se Birdsong estivesse daquele jeito antes, ela provavelmente não o teria reconhecido. Ele saiu do hotel por uma porta lateral. Dando-lhe uma dianteira razoável, Nancy foi atrás.

Quase o perdeu nessa ocasião, pois mais adiante, na esquina, Birdsong estava embarcando num ônibus, que prontamente fechou a porta e se afastou.

Não havia tempo para voltar a seu carro, mas por sorte um táxi estava-se aproximando. Nancy fez sinal. Mostrou uma nota de 20 dólares e disse ao motorista, um jovem negro:

- Siga aquele ônibus, mas não dê a perceber que estamos atrás dele. Cada vez que o ônibus parar, no entanto, quero ver quem salta.

O motorista prontamente se entusiasmou.

- Não se preocupe! Basta se recostar aí atrás e deixe que eu cuido de tudo!

O jovem negro era esperto e cheio de recursos. Ultrapassou o ônibus duas vezes, depois voltou para a faixa da direita, deixando que o ônibus o ultrapassasse. Quando os veículos ficavam perto, Nancy procurava esconder-se. Sempre que o ônibus parava, para passageiros embarcarem ou desembarcarem, o táxi estava numa posição tal que ela podia ver tudo claramente. Birdsong não apareceu por um longo tempo e Nancy começou a se perguntar se não teria perdido a pista. Mas finalmente, cerca de seis quilómetros depois do ponto em que embarcara, Birdsong saltou do ônibus. Nancy viu-o olhando ao redor e disse ao motorista:

- É aquele ali... o barbado!

- Já vi! - O motorista acelerou, passando por Birdsong e depois parando na esquina. - Não precisa virar-se moça. Estou vendo o homem pelo espelho. Ele está agora atravessando a rua. - Um ou dois minutos depois, ele acrescentou: - Ei, essa não! O cara está pegando outro ônibus!

Seguiram o outro ônibus, que ia na direção oposta ao primeiro, percorrendo em parte o percurso original. Desta vez, Birdsong saltou alguns quarteirões mais adiante, olhando novamente ao redor. Ali perto, havia diversos táxis estacionados. Birdsong pegou o primeiro da fila. No momento em que o táxi arrancou, Nancy pôde vê-lo espiando pela janela traseira.

Ela tomou outra decisão e disse ao seu motorista:

- Pode deixá-lo ir embora e leve-me de volta ao centro da cidade. Nancy pensou: não havia por que exigir demais de sua sorte. Espero que Birdsong não tivesse percebido o táxi que o seguira; mas ele inevitavelmente veria, se por acaso persistisse. Teria de encontrar algum outro meio de descobrir para onde Birdsong ia e por quê.

- Ei, dona, não estou conseguindo entender o que quer queixou-se o motorista, ao mudarem de direção. - Primeiro, quer seguir o cara para saber onde ele vai, depois larga tudo. E nem mesmo chegamos perto o bastante para que eu pudesse ver a placa do outro táxi!

Como o jovem motorista cooperara ao máximo, Nancy resolveu explicar por que não queria chegar tão perto e possivelmente ser vista. O jovem negro escutou atentamente e sacudiu a cabeça.

- Ah, agora estou entendendo...

Alguns minutos depois, ele virou a cabeça e perguntou a Nancy:

- Ainda está querendo descobrir para onde vai o barbado?

- Bem que gostaria...

Quanto mais pensava nas precauções meticulosas de Birdsong, mais Nancy se convencia de que não podia deixar de ser algo muito importante. Algo que ela tinha de saber de qualquer maneira.

- Sabe o lugar onde o cara faz ponto? - perguntou o motorista.

- O endereço da casa dele? Não, não sei. Mas não seria difícil descobrir.

- Talvez possamos fazer um negócio, eu e mais dois colegas. Eles não estão trabalhando e dispõem de radiotransmissores. Também tenho um. Nós três nos podemos revezar seguindo o cara, um de cada vez, a fim de que ele não veja sempre o mesmo carro. Usaríamos o rádio para nos comunicar e avisar quando um deve aproximar-se para o outro cair fora.

- Mas para fazer isso, teriam que ficar vigiando-o durante todo o tempo.

- Não é problema. Como eu disse antes, meus amigos não estão trabalhando.

Era uma boa ideia e Nancy perguntou:

- E quanto isso custaria?

- vou ter de calcular, dona. Mas pôde estar certa de que não será tão caro quanto está imaginando.

- Telefone-me depois que fizer os cálculos.

Ela escreveu o telefone de seu apartamento num cartão de visitas e entregou ao motorista. Este telefonou-lhe naquela noite. Nancy, a esta altura, já havia verificado o endereço de Birdsong no catálogo.

- Vai custar duzentos e cinquenta dólares por semana, dona, para mim e os outros dois.

Nancy hesitou por um momento. Seria tão importante assim para que se desse a tanto trabalho e a tal despesa? Novamente o instinto lhe disse que era.

Deveria pedir o dinheiro ao Examiner? Nancy ficou em dúvida. Se o fizesse, teria de revelar tudo o que já descobrira até aquele momento. O jornal certamente iria querer publicar o material já disponível sobre Davey Birdsong e sua & Ip. Na opinião de Nancy, isso seria prematuro, pois ela estava absolutamente convencida de que muita coisa mais iria aparecer e que valia a pena esperar. Outra coisa: a direção do jornal, sempre sovina, detestava gastar dinheiro, a menos que não tivesse alternativa.

Nancy decidiu continuar as investigações por conta própria. Pagaria o dinheiro pessoalmente e guardaria a esperança de cobrá-lo mais tarde. Se não o conseguisse, não seria um desastre de grandes proporções, embora violasse uma das regras pelas quais vivia.

Por quase todos os padrões, Nancy Molineaux podia ser considerada uma mulher rica. Alguns anos antes, o pai instituíra um fundo de investimentos para ela, que lhe proporcionava rendimentos regulares e substanciais. Mas, por uma questão de orgulho, Nancy mantinha em separado as suas finanças particulares e rendimentos profissionais.

Por uma vez, no entanto, o orgulho teria que ser subjugado.

O motorista disse que gostaria de receber alguma coisa adiantado, o que era razoável. Nancy respondeu que ele podia passar em seu apartamento para pegar o dinheiro.

Durante seis dias, Nancy não recebeu qualquer notícia. Ao final desse período, o jovem motorista de táxi, cujo nome era Vickery, trouxe-lhe um relatório. Para surpresa de Nancy, era detalhado e estava impecavelmente escrito. Todos os movimentos de Birdsong estavam descritos; eram rotineiros e inócuos. Em nenhum momento, ele demonstrara ter percebido que estava sendo seguido. Mais importante ainda: não fizera qualquer tentativa de desvencilhar-se de algum possível seguidor.

- Acho que uma semana não é suficiente - comentou Vickery. Não quer tentar outra?

Nancy pensou: Por que não?

Mais sete dias e Vickery voltou, com outro relatório igualmente detalhado e com resultados igualmente-negativos. Desapontada, Nancy disse-lhe:

- Vamos esquecer o assunto.

O jovem motorista contemplou-a com um desdém indisfarçável.

- Vai desistir logo agora? Pense no que já investiu! - Ao perceber que Nancy vacilava, ele insistiu: - Ou tudo ou nada! Tente só mais uma semana!

- Você devia ser um vendedor e não um motorista de táxi - comentou Nancy.

Ela pensou -um pouco no assunto. Já dispunha de provas de que Birdsong era uma fraude. Ainda acreditava que ele fosse também um escroque? E descobrir o local ao qual ele ia tão misteriosamente iria ajudar na reportagem que tencionava escrever? E, finalmente, deveria manter seu prejuízo no que estava agora ou deveria seguir o conselho do motorista e tentar por mais uma semana?

O instinto novamente entrou em ação, dizendo-lhe que todas as respostas deveriam ser positivas.

- Muito bem, Vickery, vamos tentar mais uma semana. E mais nada!

O resultado esperado aconteceu no quarto dia.

Vickery telefonou e depois, à noite, foi procurá-la no apartamento.

- Calculei que ia querer saber de tudo o mais depressa possível. Esta tarde, o barbado tentou desvencilhar-se de seguidores, como fez naquele primeiro dia com a gente. Mas conseguimos ser mais espertos que o filho da mãe.

- Pelo que me custou, não podia ser de outra forma.

O jovem sorriu, enquanto estendia seu relatório escrito. Davey Birdsong saíra em seu carro da garagem do prédio em que morava e fora estacionar no outro lado da cidade. Antes de saltar do carro, pusera óculos escuros e um chapéu. Depois, pegara um táxi de volta ao outro lado da cidade, embarcara em dois ônibus para direções opostas e finalmente seguira a pé, dando uma volta grande, até uma casa pequena no lado leste da cidade.

Entrara na casa, cujo endereço constava do relatório.

- O barbado ficou lá dentro cerca de duas horas - informou Vickery.

Depois disso, continuava o relatório, Birdsong pegara um táxi até um ponto a alguns quarteirões do lugar em que deixara seu automóvel estacionado. Seguira a pé até o carro e voltara para casa.

Vickery perguntou, esperançoso:

- Quer que a gente vigie o barbado mais algum tempo? Aqueles meus dois colegas ainda estão sem trabalhar.

- com um amigo como você, eles não precisam preocupar-se. Nancy mexeu a cabeça e arrematou: - Não há mais necessidade.

Dois dias depois, Nancy estava sentada em seu carro observando a casa que Davey Birdsong visitara tão furtivamente. Já estava ali há quase duas horas e o meio-dia se aproximava.

No dia anterior, o seguinte à entrega do relatório final de Vickery, ela ficara absorvida por uma reportagem para o Examiner, embora ainda não tivesse entregue o texto à editoria. Teria que fazê-lo amanhã. Até lá, podia dispor livremente do seu tempo.

A casa que estava observando era a número da Rua Crocker. Havia uma dúzia de casas idênticas, construídas uma depois da outra, na década de 1920, sendo reformadas uns 10 anos antes por uma imobiliária convencida de que o bairro iria recuperar-se e melhorar de status. A imobiliária se enganara. A Rua Crocker continuara a mesma, um lugar sem qualquer importância, miserável, onde as pessoas moravam porque não tinham condições de mudar para algo melhor. E as casas reformadas estavam retornando ao estado anterior, o que se podia constatar pela alvenaria lascada, vidraças quebradas e tinta descascando.

Aos olhos de Nancy, o número 117 não parecia diferente dos outros.

Prudentemente, estacionara sua Mercedes a um quarteirão e meio, de onde podia ver a casa perfeitamente, sem se expor ao risco excessivo de ser observada. A presença de diversos outros carros estacionados na rua ajudava bastante. Ela trouxera binóculo, mas até aquele momento não o usara, com receio de despertar a curiosidade de algum transeunte.

Naquelas duas horas, quase não houvera atividade na rua e nenhuma do número 117.

Nancy não tinha a menor ideia do que esperar, se é que alguma coisa, assim como não tinha qualquer plano. À medida que a manhã foi chegando ao fim, ela desejou poder ver algum dos ocupantes da casa, o que até agora ainda não acontecera. Perguntou-se se já não teria ficado ali por tempo suficiente. Talvez devesse partir agora e voltar outro dia.

Um veículo passou por seu carro estacionado, como vários outros já tinham feito nas duas horas anteriores. Distraidamente, Nancy notou que era uma Kombi Volkswagen, bastante velha, pintada de marrom, com uma janela lateral quebrada e um papelão pregado na abertura.

Abruptamente, Nancy ficou alerta. A Kombi tinha feito uma curva e estava parando diante do 117.

Um homem saltou. Nancy arriscou-se a usar o binóculo. Viu que o homem era esguio, cabelos curtos, um bigode fino; devia estar-se aproximando dos 30 anos. Em contraste com a Kombi, estava impecavelmente vestido, num terno azul-marinho, de gravata. Foi até a traseira do veículo e abriu-a. O binóculo era potente - Nancy usava-o, para observar, de seu apartamento, o movimento no porto - e ela pôde examinar nitidamente as mãos do homem. Pareciam manchadas.

O homem se inclinou para o interior do veículo e tirou um cilindro vermelho. Parecia ser bastante pesado. Deixando-o na calçada, tirou outro cilindro da Kombi e depois levou os dois para dentro da casa. Nancy percebeu que eram extintores de incêndio.

O homem fez mais duas viagens entre a Kombi e a casa, levando em cada uma mais dois extintores de incêndio vermelhos. Seis, no total. Depois de levar os dois últimos, ele ficou dentro da casa por cerca de cinco minutos, saindo novamente, sentando-se ao volante da Kombi e se afastando.

Nancy pensou em segui-lo, mas depois decidiu que era melhor não fazê-lo. E ficou pensando: Por que uma casa tão pequena precisa de tantos extintores de incêndio? Subitamente, ela exclamou:

- Mas que merda!

Não se lembrara de anotar a placa da Kombi, o que poderia ter feito sem a menor dificuldade. Mas agora já era tarde demais. Censurou-se por ser uma péssima detetive e chegou à conclusão de que, no final das contas, deveria ter seguido a Kombi.

Não estava na hora de ir embora? Nancy chegou à conclusão de que sim. Estendeu a mão para a ignição, parou no meio do movimento. Alguma coisa estava acontecendo no 117. Ela pegou novamente o binóculo.

Uma mulher saíra da casa; era jovem, franzina, vestida descuidadamente, numa jeans desbotada e uma japona. Olhou ao redor por um momento, depois começou a andar rapidamente, na direção oposta ao lugar em que estava a Mercedes.

Desta vez, Nancy não hesitou. Ligou o carro e saiu da vaga. Foi seguindo a mulher, lenta e cautelosamente, encostando no meio-fio de vez em quando, a fim de não ultrapassá-la.

A mulher não olhou para trás. Ao dobrar uma esquina, Nancy ficou esperando pelo tempo suficiente para que se distanciasse um pouco, antes de virar também. E o fez a tempo de ver a mulher entrar num pequeno supermercado. Tinha um estacionamento ao lado, e Nancy foi até lá. Trancou o carro e entrou no supermercado.

O movimento era relativo, havia cerca de 20 pessoas fazendo compras. Nancy avistou a mulher que seguira, na extremidade de um corredor, pondo latas num carrinho de compras. Nancy pegou também um carrinho, apanhou alguns artigos ao acaso nas prateleiras próximas e foi-se aproximando lentamente da mulher.

Descobriu que ela parecia mais jovem do que tivera impressão inicialmente ao vê-la a distância; era pouco mais do que uma menina. E era bastante pálida, os cabelos louros estavam desgrenhados, não usava qualquer pintura. Tinha na mão direita o que parecia ser uma luva improvisada. Obviamente, escondia alguma deformação ou ferimento, porque a mulher estava usando apenas a mão esquerda. Ela pegou um vidro de Óleo Mazola e leu o rótulo.

Nancy Molineaux manobrou seu carrinho além dela e depois virouse abruptamente, como se tivesse esquecido alguma coisa. Seus olhos se encontraram com os da outra mulher. Nancy sorriu e disse jovialmente:

- Ei, não nos conhecemos? Acho que temos um conhecido mútuo... Davey Birdsong.

A reação foi imediata e surpreendente. A jovem ficou ainda mais pálida, tremeu visivelmente, largou o vidro de óleo Mazola, que se espatifou no chão.

Houve um silêncio que se prolongou por vários segundos, sem que nada acontecesse, enquanto o óleo se espalhava rapidamente pelo chão. Depois, o gerente do supermercado aproximou-se rapidamente.

- Santo Deus! Mas que confusão! O que aconteceu aqui?

- A culpa foi minha - apressou-se Nancy em dizer. - Sinto muito e pagarei o que quebrou.

- Mas isso não pagará a limpeza, não é mesmo?

- Não, mas acho que o exercício vai fazer-lhe bem. - Ela pegou o braço da outra mulher, que continuava no mesmo lugar, imóvel, como que em estado de choque. - Vamos sair daqui.

Sem oferecer qualquer resistência, abandonando o carrinho de compras, a jovem dejeans desbotada e japona acompanhou-a. No estacionamento, Nancy conduziu a jovem até o Mercedes. Mas quando abriu a porta, ela pareceu despertar subitamente.

- Não posso! Não posso mesmo! Tenho que voltar para casa! - A voz era nervosa e estridente, recomeçando a tremedeira que havia cessado ao deixarem o supermercado. Ela olhou para Nancy, com uma expressão desvairada. - Quem é você?

- Sou uma amiga. Há um bar no outro quarteirão. Por que não damos um pulo até lá para tomar um drinque? Parece que está precisando.

- Estou dizendo que não posso!

- Pode e vai! Porque se não for, vou telefonar para seu amigo Davey Birdsong esta tarde e contar...

Nancy não tinha a menor ideia de como iria terminar a frase, mas o efeito das primeiras palavras foi fulminante. A jovem entrou no automóvel sem mais nenhum protesto. Nancy fechou a porta, depois contornou o carro e sentou-se ao volante.

Chegaram ao bar em poucos minutos e encontraram uma vaga na frente. Entraram no bar, escuro e cheirando a mofo.

- Mas que coisa! - exclamou Nancy. - Nessa escuridão, vamos precisar de um cachorro de cego!

Ela se encaminhou quase às cegas para uma mesa nos fundos, longe das poucas outras pessoas que estavam bebendo ali naquele momento.

 

A jovem seguiu-a. Ao sentarem, Nancy perguntou:

- Tenho de chamá-la por algum nome. Qual deve ser?

- Yvette.

Um garçom apareceu e Yvette pediu uma cerveja. Nancy pediu um daiquiri. As duas ficaram caladas até chegarem as bebidas. Desta vez, foi a jovem quem falou primeiro:

- Ainda não me disse quem você é.

Parecia não haver qualquer razão para esconder a verdade.

- Meu nome é Nancy Molineaux e sou repórter de um jornal.

Por duas vezes antes, Yvette demonstrara ter ficado chocada. Agora, o efeito foi ainda maior. A boca se entreabriu, a cerveja começou a escorregar em sua mão. Se Nancy não a tivesse segurado a tempo, teria seguido o mesmo destino do óleo Mazola.

- Não precisa ficar assim - disse Nancy. - Os repórteres só devoram as pessoas quando estão com fome. O que não é o meu caso neste momento.

A jovem balbuciou, com visível dificuldade para falar.

- O que quer de mim?

- Algumas informações.

Yvette passou a língua pelos lábios.

- Que informações?

- Quem vive na casa de onde você saiu? O que está acontecendo lá dentro? Por que Davey Birdsong costuma ir até lá? Isso é para começar.

- Nada disso é da sua conta!

Os olhos de Nancy já se tinham acostumado à escuridão e ela pôde ver que, apesar da reação brusca, a jovem continuava apavorada. Resolveu experimentar um tiro no escuro:

- Como achar melhor. Posso ir à polícia e...

- Não! - Yvette soergueu-se, mas logo voltou a desabar na cadeira, pondo o rosto entre as mãos e começando a chorar. Nancy inclinouse por cima da mesa.

- Sei que está metida em alguma encrenca e prometo ajudá-la, se me deixar.

Por entre os soluços, Yvette balbuciou:

- Ninguém pode ajudar... - Um momento depois, com um tremendo esforço, ela se levantou. - vou embora. - Mesmo dominada por uma terrível angústia, ela ainda possuía uma certa dignidade.

- Vamos fazer um acordo - disse Nancy. - Se concordar em se encontrar comigo novamente, não direi nem farei nada até lá.

A jovem hesitou.

- Quando?

- Daqui a três dias. Aqui mesmo.

- Três dias não é possível. - Novamente uma mistura de dúvida e medo. - Talvez uma semana.

Não havia outro jeito, pensou Nancy.

- Está certo. Dentro de uma semana, na próxima quarta-feira... a mesma hora, o mesmo lugar.

Assentindo em concordância, Yvette retirou-se.

Voltando para o carro e se afastando, Nancy perguntou-se se tratara bem ou mal da situação. E que diabo significava tudo aquilo? Onde Davey Birdsong e Yvette se ajustavam? A referência de Nancy à polícia, durante a breve conversa com Yvette, fora impulsiva e impensada. Contudo, a reação quase histérica da jovem indicava que alguma coisa de ilegal estava acontecendo na casa. Se assim era, o que poderia ser? A frustração era terrível. Havia perguntas demais e poucas respostas. Era como tentar montar um quebra-cabeça sem ter a menor ideia de como poderia ser o resultado final.

 

Para Nancy Molineaux, outra peça do quebra-cabeça se ajustou no lugar no dia seguinte. Referia-se ao rumor vago que ela ouvira e não acreditara de que a & Ip de Birdsong estava procurando ajuda financeira do Clube da Sequóia.

Apesar do seu cepticismo, fizera algumas sondagens. E uma delas acabou dando resultado.

Uma funcionária do Clube da Sequóia, uma preta idosa chamada Grace, pedira certa vez a ajuda de Nancy Molineaux para obter uma casa popular financiada pela prefeitura. Na ocasião, fora necessário apenas um telefonema e a influência do Califórnia Examiner para fazer com que o nome de Grace subisse para o alto da lista oficial. Mas Grace se mostrara profundamente grata e dissera que iria retribuir o favor, se algum dia surgisse a oportunidade.

Algumas semanas antes, Nancy telefonara para a casa de Grace e mencionara o rumor sobre a ligação entre o Clube da Sequóia e a & Ip. Será que Grace poderia descobrir, perguntara Nancy, se havia alguma base para o rumor e, em caso positivo, se o pedido da & Ip fora atendido?

Alguns dias depois, ela recebera um relatório: pelo que Grace pudera descobrir, o rumor era inverídico. Mas ela acrescentara:

- É claro que algo assim pode ter sido feito secretamente, ficando só no conhecimento de duas ou três pessoas da cúpula, como Prissy (Bi chá) Pritchy (a maneira pela qual os empregados do Clube da Sequóia se referiam a Roderick Pritchett).

Naquele dia, na hora do almoço, Grace aproveitou para ir ao prédio do Examiner, subindo para a redação. Nancy por acaso estava presente. Foram para um cubículo de vidro à prova de som, onde podiam conversar à vontade. Grace, robusta, transbordando num vestido estampado de cores alegres, com um chapéu na cabeça, enfiou a mão na bolsa de corda.

- Descobri uma coisa, Srta. Molineaux. Não sei se tem algo a ver com o que está procurando, mas aqui está a coisa.

"A coisa" era a cópia de um memorando do Clube da Sequóia.

Grace explicou: três envelopes, marcados Particular e Confidencial, tinham chegado à sala de correspondência, onde ela trabalhava. O que nada tinha de estranho. Mas o que era estranho era o fato de um envelope ter chegado sem lacre, provavelmente em decorrência da negligência da secretária. Grace deixara o envelope de lado e, mais tarde, quando não estava sendo observada, lera o conteúdo. Nancy sorriu, imaginando quanta correspondência não teria sido lida daquela maneira.

Grace usara uma das máquinas Xerox do Clube da Sequóia para, tirar a cópia. Nancy leu atentamente o memorando:

De: Diretor-Executivo

Para: Membros do Comité Executivo Especial

Para seu conhecimento, o segundo donativo à organização de B, do fundo de emergência, conforme ficou acertado em nossa reunião de 22 de agosto, já foi pago.

As iniciais da assinatura eram "R. P. "

- A quem estava endereçado o envelope? - perguntou Nancy.

- Ao Sr. Saunders. Ele é do comité e...

- Sei disso. - Irwin Saunders, o famoso advogado, era um dos esteios do Clube da Sequóia. - E para quem eram os outros dois envelopes?

- Um era para a Sra. Carmichael, a nossa presidente, o outro para a Sra. Quinn.

Ou seja, Priscilla Quinn. Nancy conheciaa ligeiramente. Uma esnobe, mulher da sociedade.

- o que estava procurando? - perguntou Grace, ansiosamente.

- Não tenho certeza.

Nancy leu novamente o memorando. É claro que "B" podia referir-se a Birdsong, mas também podia indicar outras coisas. Por exemplo: o prefeito, cujo sobrenome começava com "B" e que liderava uma organização chamada "Salvemos os Prédios Antigos", apoiada ativamente pelo Clube da Sequóia. Mas, neste caso, o memorando estaria marcado como "Particular e Confidencial"? Talvez. O Clube da Sequóia sempre fora discreto em relação a seu dinheiro.

- O que quer que faça, não vai contar onde conseguiu isso, não é mesmo? - indagou Grace.

- Nem mesmo a conheço, Grace. E você nem esteve aqui. A outra sorriu e assentiu.

- Preciso do emprego, mesmo o salário sendo baixo. - Ela levantou-se. - Já está na hora de eu voltar.

- Obrigada, Grace. Agradeço sua ajuda. E quando precisar de mim para alguma coisa, basta avisar.

A troca de favores, Nancy descobrira bem cedo, fazia parte do jornalismo. Voltando a sua mesa, ainda se perguntando se o memorando se referia ou não a Birdsong e sua & Ip, esbarrou com o editor local.

- Quem era a velha, Nancy?

- Uma amiga.

- Está trabalhando em alguma história?

- Talvez.

- Conte-me o que é. Nancy mexeu a cabeça.

- Ainda não.

O editor de assuntos locais fitou-a com uma expressão irónica. Era um veterano de cabelos grisalhos, eficiente em suas funções, masque alcançara os limites máximos em sua carreira.

- Deveria fazer parte de uma equipe, Nancy, da qual sou o treinador. Sei que prefere trabalhar sozinha e até agora nada lhe tem acontecido porque vem obtendo resultados. Mas acho que está começando a ir longe demais.

Ela deu de ombros.

- Se é o que pensa, pode despedir-me.

É claro que ele não o faria, e ambos sabiam disso. Deixando-o frustrado, como costumava fazer com muitos homens, Nancy voltou para sua mesa e pôs-se a telefonar.

Tentou primeiro Irwin Saunders.

Uma secretária informou que ele não podia atender. Mas quando Nancy mencionou o Examiner, Saunders prontamente atendeu, dizendo jovialmente:

- Em que posso servi-la, Srta. Molineaux?

- Gostaria de conversar sobre a doação do Clube da Sequóia à força & luz para o povo do Sr. Birdsong.

Houve um segundo de silêncio.

- Que doação?

- Fomos informados... Saunders riu.

- Isso tudo é bobagem, Nancy... permite que a chame assim?

- Claro.

- Nancy, essa história de já-sei-mas-gostaria-de-uma-confirmaçao é um golpe antigo no jornalismo. Está falando com um peixe velho e esperto que não costuma morder essas iscas.

Nancy riu também.

- Sempre ouvi dizer que é um homem muito esperto, Sr. Saunders.

- Não tenha a menor dúvida quanto a isso, menina.

- Mas não existe nenhum vínculo entre o Clube da Sequóia e a lp?

- É um assunto, Nancy, sobre o qual é improvável que eu pudesse saber de alguma coisa.

Já marquei o primeiro ponto, pensou Nancy. Ele não dissera simplesmente não sei, mas que era improvável que pudesse saber. Provavelmente estava com um gravador ligado naquele momento.

- A informação que eu tenho é de que o comité do Clube da Sequóia decidiu...

- Diga-me alguma coisa sobre esse suposto comité, Nancy. Quem participa dele? Indique os nomes.

Ela pensou rapidamente. Se mencionasse os outros nomes que conhecia, Laura Bo Carmichael e Priscilla Quinn, Saunders imediatamente telefonaria para avisá-las. E ela queria entrar em contato com as duas primeiro. Por isso, mentiu:

- Não tenho mais nenhum nome.

- Em outras palavras, não tem mais nada. - Subitamente, a voz já não era tão cordial. - Sou um advogado muito ocupado, Srta. Molineaux. Os clientes pagam pelo meu tempo e o está desperdiçando.

- Pois não vou mais desperdiçá-lo. Sem responder, Saunders desligou.

Enquanto falava, Nancy já estava folheando o catálogo, à procura do nome "Quinn". Encontrou finalmente o que procurava: Quinn, Dempster W. R. Como não podia deixar de ser, era inevitável que o marido de Priscilla Quinn tivesse mais nomes que o comum dos mortais. Nancy discou e foi informada por uma voz de homem:

- Residência Dempster Quinn.

- A Sra. Quinn, por gentileza.

- Lamento muito. Madame está almoçando e não pode ser incomodada.

- Pois trate de incomodá-la, avisando que o Califórnia Examiner tenciona mencionar o nome dela numa notícia e que provavelmente ela vai querer ajudar-nos, explicando os fatos direito.

- Um momento, por favor.

Não foi apenas um momento, mas vários minutos. Finalmente uma voz fria de mulher disse:

- Pois não? Nancy identificou-se.

- O que deseja?

- Sra. Quinn, quando o Comité Executivo do Clube da Sequóia, do qual faz parte, reuniu-se em agosto último e decidiu associar-se à força & luz para o povo de Davey Birdsong, o que foi...

Priscilla Quinn interrompeu-a bruscamente:

- Essa reunião do comité e o acordo deveriam permanecer no mais absoluto sigilo.

Bingo! Ao contrário do advogado Saunders, Priscilla Quinn não era tão esperta. Nancy tinha agora a confirmação que procurava e que jamais teria conseguido obter através de perguntas diretas.

- Pois parece que a notícia se espalhou - disse Nancy. - Talvez Birdsong tenha falado.

Ela ouviu o que parecia ser uma fungadela desdenhosa.

- O que é bastante provável. Eu jamais confiei nesse homem.

- Posso perguntar-lhe então por que concordou em apoiar...

- Não concordei. Fui a única que votou contra, mas fui derrotada pelos outros. - Um tom de alarma se insinuou na voz de Priscilla Quinn. - Está pensando em publicar essa notícia?

- Naturalmente.

- Não quero ser citada.

- Sra. Quinn, identifiquei-me assim que atendeu. E não me pediu que a conversa fosse sigilosa.

- Pois o estou fazendo agora.

- Já é tarde demais. Priscilla Quinn ficou indignada.

- vou telefonar para o seu diretor!

- Ele não vai fazer nada, a não ser mandar-me seguir em frente. Nancy fez uma pausa, antes de acrescentar: - Mas posso fazer um acordo.

- Que espécie de acordo?

- Tenho que usar seu nome como membro do Comité Executivo do Clube da Sequóia. Não há jeito de evitá-lo. Mas não escreverei que conversamos, se me disser quanto o Clube da Sequóia deu à & Ip.

- Mas isso é chantagem!

- Prefiro chamar de transação... e uma transação das mais justas. Houve um breve momento de silêncio.

- Como vou saber que posso confiar em você?

- Terá que correr o risco. Outra pausa.

- Foram cinquenta mil dólares.

Nancy contraiu os lábios, num assovio silencioso. Ao desligar, o instinto lhe dizia que estragara o almoço da Sra. Dempster W. R. Quinn. Cerca de uma hora depois, tendo concluído algumas missões de rotina, Nancy ficou sentada em sua mesa, pensando. O quanto descobrira até aquele momento?

Fato um: Davey Birdsong lograra estudantes e angariara muito mais dinheiro do que precisava para dirigir a & Ip.

Fato dois: O Clube da Sequóia estava apoiando Birdsong com dinheiro... e não era pouco. Somente isso já era um furo e tanto, que iria provocar muita reação e certamente prejudicar a reputação do clube como uma organização honrada e de alto nível.

Fato três: Birdsong estava envolvido em algo que não. queria que fosse descoberto, daí a razão de suas precauções meticulosas quando visitava a casa da Rua Crocker. Pergunta um: O que ia fazer ali; estaria relacionado com as grandes quantias de dinheiro que acumulara; e o que se passava na casa? Nancy ainda não tinha a menor ideia.

Fato quatro: A moça que vivia na casa, Yvette, estava apavorada com alguma coisa. Pergunta dois: Apavorada com o quê? A mesma resposta à pergunta um.

Fato cinco: O número 117 da Rua Crocker pertencia à Imobiliária Redwood. Nancy o descobrira no início daquele dia no Departamento de Imposto Predial. Depois, apresentando-se como investigadora do serviço, telefonara para a Redwood e soubera que a casa fora alugada no ano anterior para Sr. G. Archambault. Não havia qualquer informação sobre o inquilino, a não ser que pagava o aluguel pontualmente. Pergunta três: Quem e o que era Archambault? De volta à pergunta um.

Conclusão: O quebra-cabeça estava incompleto, a reportagem ainda não estava pronta para ser publicada.

Nancy pensou: teria de esperar e ser paciente até seu novo encontro com Yvette, dentro de seis dias. Nesse momento, estava arrependida por ter concordado em esperar tanto tempo, mas fizera a promessa e agora teria de cumpri-la.

Por um breve instante, Nancy se perguntou: Correria algum perigo se voltasse ao local, depois de ter feito o contato com Yvette e dessa forma se revelado? Achava que não. De qualquer maneira, o medo das consequências raramente a incomodava.

E, no entanto... Nancy tinha a sensação incómoda de que deveria partilhar os fatos que descobrira com outra pessoa, conversar a respeito, pedir uma segunda opinião sobre o que fazer em seguida. Logicamente, deveria procurar seu editor. E talvez o tivesse feito, se o filho da mãe não jogasse em cima dela aquela história de trabalho de equipe e treinador. Agora, ficaria parecendo que ela o estava bajulando, por causa do atrito.

Por isso, Nancy decidiu que, por enquanto, continuaria a guardar para si todos os fatos que descobrira.

Foi uma decisão que, mais tarde, recordando os acontecimentos, iria causar-lhe um arrependimento amargo.

 

Em sua sala, Nim estava examinando a correspondência da manhã. Sua secretária, Victoria Davis, já abrira e separara a maioria das cartas e memorandos, pondo tudo em duas pastas, uma verde, outra vermelha, esta reservada para os assuntos urgentes e mais importantes. Naquele dia, a pasta vermelha estava cheia. Havia também, em separado, algumas cartas onde estava escrita a palavra "Pessoal". Nim reconheceu no meio delas um envelope azul-claro familiar, com o endereço datilografado. Era de Karen Sloan.

A consciência de Nim o andava perturbando em relação a Karen, sob dois aspectos. Por um lado, ele realmente gostava muito dela e sentia-se culpado porque não a visitara desde a noite em que haviam feito amor, muito embora tivessem conversado pelo telefone. Por outro lado, havia o problema de Ruth. Como sua ligação amorosa com Karen poderia ajustar-se em sua reconciliação e nova harmonia com Ruth? A verdade: não podia. Contudo, ele não podia simplesmente descartar-se de Karen, como se fosse um lenço de papel usado. Poderia e faria se fosse alguma outra mulher. Mas Karen era diferente.

Chegara a pensar em contar a Ruth a história de Karen, mas concluíra que nada teria a ganhar com isso. Além do mais, Ruth já tinha problemas suficientes para que lhe fosse acrescentado mais um. E ele é quem teria de tomar uma decisão em relação a Karen.

Sentia-se envergonhado em admiti-lo, até para si próprio, mas no momento pusera Karen num escaninho mental. Por isso, hesitava agora em abrir a carta.

Pensando em Ruth, lembrou-se de outra coisa. E gritou pela porta aberta da sala:

- Vicki, já fez as reservas do hotel?

- Fiz ontem. - Ela entrou na sala, apontando para a pasta verde.

- Escrevi um bilhete, que está aí dentro. O Columbus recebeu um cancelamento e puderam assim arrumar uma suíte com dois quartos. Prometeram que será num andar alto, com uma boa vista.

- Ótimo! E quando vai terminar de bater o meu discurso?

- Se parar de fazer perguntas para as quais já apresentei as respostas, ficará pronto esta tarde.

Nim sorriu.

- Suma daqui!

Dentro de uma semana, Nim deveria falar na convenção anual do Instituto Nacional de Eletricidade. Seu discurso, que já passara por diversas revisões, seria sobre a demanda futura de energia e tinha o título de "Colapso".

A grande convenção nacional do Instituto, reunindo representantes de todas as companhias de serviços públicos no setor de energia, seria realizada naquele ano na cidade, no Hotel Christopher Columbus. Iria prolongar-se por quatro dias. Como havia diversos acontecimentos sociais, Nim pensara que seria uma boa mudança de ambiente para sua família, se todos ficassem morando no hotel durante a convenção. Apresentara a sugestão a Ruth, Leah e Benjy, que haviam reagido com o maior entusiasmo.

A ideia de arrumar uma suíte num dos últimos andares, com uma vista panorâmica, era de Nim. Achava que os filhos iriam gostar.

A promessa de falar na convenção fora feita quase um ano antes, quando ainda não o tinham afastado do papel de porta-voz da companhia. Ao falar recentemente no compromisso com Eric Humphrey, o presidente da companhia lhe dissera:

- Pode falar, mas não aborde qualquer problema controvertido.

O discurso de Nim seria bastante técnico, destinado principalmente aos planejadores de outras companhias. Ainda não decidira se iria ou não temperar o discurso, apesar da advertência do presidente, com uma pitada de controvérsia.

Enquanto Vicki fechava a porta, Nim voltou a examinar os papéis que estavam na pasta vermelha. Um momento depois, porém, decidiu abrir logo de uma vez a carta de Karen.

Tinha certeza de que o envelope continha versos... os versos que Karen tão diligentemente datilografava com uma vareta presa entre os dentes. E, como sempre, Nim ficou comovido ao pensar no tempo e paciência que Karen despendera por sua conta.

Ele estava certo.

ULTRA-SECRETO (como dizem os militares);

Para seus olhos apenas, Nimrod querido, (Tão querido, olhos ternos).

Mais ninguém deve olhar

Este comunicado...

Sem nada de militar.

Mas particular, íntimo, amoroso.

Meu deleite sensual perdura:

Uma sensação inebriante, licenciosa,

Ao mesmo tempo

Tão suave e terna, tão intensamente carnal.

Minha mente, minha carne, Nervos, dedos, lábios, Tudo vibra de resíduos de alegria, Tudo lembra, meu querido amor!, Da consumação do seu amor. Ah, tanto êxtase! Deste dia em diante Voltarei pelo hedonismo!

É um nobre cavaleiro De lustrosa armadura Cuja espada reluzente (Especialmente aquela espada) Proporciona uma áurea felicidade. E por ela me excito, Por você também, Para sempre.

Karen, pensou ele, ao terminar de ler, você me excita. E como! Suas melhores intenções pareciam dissolver-se. Tornaria a se encontrar com Karen, não importando o que pudesse acontecer. E o faria em breve.

Antes, porém, recordou a si mesmo, tinha que cuidar de seu intenso programa de trabalho, inclusive o discurso para a convenção. E voltou a se concentrar na correspondência. Momentos depois, a campainha do telefone tocou. Quando Nim atendeu, impacientemente, Vicki informou-o:

- O Sr. London está na linha e deseja falar-lhe.

Consciente da quantidade de trabalho na pasta vermelha, Nim disse:

- Pergunte a ele se é importante.

- Já perguntei. Ele disse que é.

- Neste caso, ponha-o na linha.

Um estalido, e a voz do chefe do Departamento de Proteção à Propriedade soou pelo telefone:

- Nim?

- Harry, esta é uma semana de muito trabalho para mim. O que você tem a me dizer não pode esperar?

- Acho que não. Aconteceu algo muito delicado e creio que você deve tomar conhecimento imediatamente.

- Está certo. Pode falar.

- Não posso falar pelo telefone. Tem de ser pessoalmente.

Nim suspirou. Havia ocasiões em que Harry London se comportava como se tudo em seu Departamento merecesse alta prioridade em comparação com o resto da GSP & L.

- Está bem. Pode vir agora.

Nim recomeçou a trabalhar até a chegada de London, cinco minutos depois. Empurrando a cadeira para trás, Nim disse:

- Estou escutando, Harry. Mas seja o mais breve possível.

- Tentarei.

London acomodou-se numa cadeira diante da mesa. Na aparência e no traje, ainda parecia o ex-fuzileiro, mas agora havia mais rugas em seu rosto do que poucos meses antes, pensou Nim.

- Deve estar lembrando, Nim, de que lhe falei, pouco depois de pegarmos aqueles caras da Quayle furtando energia no Edifício Zaco, que havíamos descoberto um ninho de ratos. Previ que muito mais iria acontecer e que alguns nomes importantes poderiam estar envolvidos.

Nim assentiu, e London acrescentou:

- Pois quero que me diga o que acha de um desses nomes: Paul Sherman Yale.

Nim prontamente empertigou-se na cadeira.

- Está querendo gozar-me?

- Gostaria de estar - murmurou London, tristemente. - Mas, infelizmente, não estou.

Toda a impaciência de Nim desapareceu.

- Conte-me tudo o que sabe. Tudo mesmo!

- Naquele dia em que almoçamos juntos, outra coisa que lhe disse foi que meu Departamento iria verificar todos os registros da Quayle em relação aos serviços efetuados no último ano, trabalhando em conjunto com a Promotoria Distrital. Depois disso, iríamos descobrir quais os serviços que eram ilegais, se mais algum.

- Eu me recordo disso.

- Pois foi o que fizemos. Meus homens trabalharam incansavelmente e descobrimos uma porção de coisas. Terá todos os detalhes num relatório que estou preparando. A essência é que a Promotoria Distrital tem agora muitos casos para levar a julgamento, envolvendo quantias vultosas.

- Chegue logo ao Sr. Yale, Harry. Como ele entra nessa história?

- Já estou chegando.

Entre as ordens de trabalho da companhia Quayle, informou London, havia uma quantidade excepcionalmente grande em nome da mesma pessoa - um tal de lan Norris.

Embora o nome parecesse familiar, Nim não conseguiu situá-lo. London esclareceu:

- Norris é um advogado que trabalha como uma espécie de assessor financeiro. Tem um escritório na cidade... no Edifício Zaco, para ser mais exato... e toma conta de fundos e espólios. Um deles é o da família Yale.

- Já ouvi falar do Fundo Yale. - Nim estava-se lembrando agora de Norris. Haviam-se encontrado rapidamente na fazenda de gado perto de Fresno.

- Temos provas concretas de que Norris está afundado até o pescoço no esquema de furto de energia. Ele controla inúmeras propriedades... prédios de escritórios e industriais, apartamentos, lojas e tudo o mais. Aparentemente, Norris descobriu há algum tempo que podia fazer um trabalho melhor para seus clientes, poupando-lhes algum dinheiro e ao mesmo tempo ganhando mais um pouco para si mesmo, se conseguisse reduzir as contas de eletricidade e gás, através de trapaça. Ele imaginou que poderia escapar impune... pelo menos é o que parece... e pôs-se a furtar energia em grande escala, usando os serviços da Quayle.

- Mas isso não significa, Harry, que as pessoas que Norris representa tenham qualquer ideia do que está acontecendo - Nim experimentou uma sensação de alívio. Muito embora o fundo da família Yale pudesse estar envolvido, ele estava absolutamente convencido de que Paul Sherman Yale jamais seria, pessoalmente, cúmplice de qualquer coisa desonesta.

- Tem razão, Nim. E mesmo que algum dos clientes de Norris soubesse, duvido muito que pudéssemos algum dia provar. Mas a Promotoria Distrital está preparando um processo contra Norris e o nome de Yale inevitavelmente vai aparecer. Por isso é que achei que deveria informá-lo. A repercussão vai ser a pior possível, Nim, tanto para ele como para nós.

Harry estava certo, pensou Nim. Os nomes de Yale e da Golden State Power & Light estavam agora intimamente vinculados e haveria muita gente que, apesar de todas as provas em contrário, acreditaria na existência de alguma espécie de conspiração. Não importava que isso não fizesse o menor sentido. Não iria impedir que os rumores se espalhassem e haveria uma situação embaraçosa inevitável.

- Ainda não acabei, Nim. E o que falta dizer é provavelmente o mais importante.

Nim ficou calado, imaginando o que poderia vir em seguida.

- Muita coisa do trabalho ilegal que a Quayle fez para Norris... ou antes, para as pessoas que Norris representa... começou há quase um ano. Mas tudo o que foi feito para o fundo da família Yale, o que inclui instalações ilegais em dois prédios de apartamentos na cidade, em uma vinícola no Vale de Napa e em uma fazenda de gado perto de Fresno, foi efetuado nos últimos três meses. No caso de não ter notado, começou depois que Yale deixou o Supremo Tribunal e veio trabalhar na Golden State Power.

- Dê-me só um minuto, Harry. - Nim experimentava uma sensação de choque, estava aturdido, desconcertado. - Quero pensar um pouco em tudo isso.

- Pode demorar o tempo que quiser. Também ando pensando muito no assunto.

Nim não podia acreditar. Era simplesmente impossível que Paul Sherman Yale pudesse estar participando de um esquema de furto de energia, até mesmo perifericamente, até mesmo como um espectador silencioso. E, no entanto... Nim recordou, apreensivo, a conversa na fazenda de gado. O que fora mesmo que Paul Yale dissera? "Tudo por causa do custo cada vez maior... especialmente de eletricidade. Usamos energia elétrica para tudo. Como para o moinho... para quarenta mil cabeças de gado... durante a noite inteira há luzes acesas nos currais... nossas contas de energia são astronómicas." E depois: "Tive uma conversa com nosso administrador, lan Norris, e mandei que reduzisse drasticamente as despesas, economizasse... Não há outro jeito."

Mesmo antes disso, naquele primeiro dia em Napa Valley, quando Nim fora apresentado aos Yales, Beth Yale já deixara transparecer a amargura do marido e sua própria, ao comentar que o fundo da família estava sendo mal administrado e dando prejuízo.

- Mas uma pergunta, Harry. Sabe se alguém... do seu Departamento, polícia ou Promotoria Distrital... entrou em contato com o Sr. Yale para falar sobre esse assunto?

- Sei, sim: a resposta é não.

Nim fez uma pausa, avaliando novamente tudo o que acabara de ouvir. E depois anunciou:

- Isso é grande demais para mim, Harry. vou passar o problema para o presidente.

O chefe do Departamento de Proteção à Propriedade assentiu.

- Era o que eu estava imaginando.

Às 11 horas da manhã seguinte, J. Eric Humphrey, Nim, Harry London e Paul Sherman Yale reuniram-se no gabinete da presidência. Yale, que acabara de chegar de carro de Napa Valley, estava particularmente jovial. O rosto vincado radiante, ele disse aos outros:

- Voltar à Califórnia fez-me sentir mais jovem e feliz. Deveria têlo feito muitos anos antes. - Percebendo subitamente que ninguém mais estava sorrindo, virou-se para Humphrey. - Algum problema, Eric?

Humphrey, embora exteriormente aprumado e controlado como de hábito, estava totalmente constrangido interiormente, conforme Nim percebeu claramente. Sabia que o presidente ficara na maior apreensão depois de receber a notícia.

- Para ser franco, não tenho certeza - respondeu Humphrey. Mas foi-me transmitida uma informação que achei que deveria levar a seu conhecimento. Nim, por favor, explique a situação ao Sr. Yale.

Em poucas frases, Nim falou da alta incidência do furto de energia e das funções na companhia de Harry London, a quem Yale ainda não conhecia. Enquanto Nim falava, o velho jurista franzia o rosto. Parecia estar confuso e aproveitou uma pausa para perguntar:

- Mas qual é a relação de tudo isso com meu trabalho?

Humphrey voltou a intervir:

- Infelizmente, o motivo desta reunião não envolve seu trabalho. Parece que há... alguns aspectos pessoais.

Yale sacudiu a cabeça, num gesto de perplexidade:

- Agora estou ainda mais confuso. Alguém pode fazer a gentileza de explicar?

- Assuma o comando, Harry - determinou Nim. Dirigindo-se a Yale, London disse:

- Senhor, creio que conhece um homem chamado lan Norris. Seria imaginação, perguntou-se Nim, ou vira uma expressão de alarme estampar-se por um breve instante no rosto de Yale? Provavelmente não. Nim advertiu a si mesmo: não procure por fantasmas que não existem.

- Claro que conheço Norris. Temos negócios em comum. Mas eu gostaria de saber a sua relação com ele.

- Minha relação, senhor, é o fato de Norris ser um ladrão. Temos provas incontestáveis.

Harry London descreveu o que revelara a Nim no dia anterior sobre o furto de energia por parte de Norris e o fundo da família Yale. Desta vez, a reação de Paul Sherman Yale foi inconfundível: em rápida sucessão... incredulidade, choque e raiva.

Ao final do relato de London, Humphrey acrescentou:

- Espero que compreenda, Paul, por que decidi que esse assunto, extremamente delicado, deveria ser levado a seu conhecimento.

Yale assentiu, o rosto vermelho, ainda deixando transparecer o conflito de emoções.

- Essa parte compreendo perfeitamente. Mas quanto ao resto...

- Ele disse firmemente a Harry London: - É uma acusação muito grave. Tem certeza dos fatos que acabou de expor?

- tenho, sim, senhor. Certeza absoluta. - London sustentou inabalavelmente o olhar de Yale. - E a Promotoria Distrital também não tem mais qualquer dúvida. Todos lá estão convencidos de que já dispõem de provas suficientes para obter uma condenação.

Eric Humphrey voltou a intervir:

- Gostaria de lhe explicar, Paul, que os serviços que o Sr. London vem prestando à companhia são de fato excepcionais. Ele assumiu o comando dó Departamento de Proteção à Propriedade e mostrou-se um executivo eficiente e responsável. Não tem o hábito de fazer acusações sem dispor de provas concretas.

- Especialmente num caso tão grave assim - acrescentou Nim.

- Não resta a menor dúvida de que é mesmo grave. - Yale já recuperara o controle e, na opinião de Nim, falava como se estivesse novamente no Supremo Tribunal. - No momento, aceito o que me estão dizendo, mas insisto em examinar as provas pessoalmente mais tarde.

- Mas é claro! - disse Humphrey.

- Enquanto isso, presumo que seja evidente que, até este momento, eu não tinha pessoalmente o menor conhecimento do que acabaram de me relatar.

Humphrey asseverou-lhe:

- Isso nem precisava ser dito, Paul. Nenhum de nós jamais teve a menor dúvida quanto a isso. Nossa preocupação principal era com a situação difícil em que poderia ficar.

- E difícil também para a Golden State Power - acrescentou Nim.

Yale lançou-lhe um olhar rápido e astuto.

- Tem razão, também temos que levar isso em consideração. Sorriu ligeiramente, antes de acrescentar: - Agradeço a confiança que demonstraram.

- Uma confiança que jamais vacilou - comentou Humphrey. Por um momento, Nim perguntou-se: o presidente da companhia não estaria exagerando um pouco? Mas no instante seguinte ele afastou o pensamento.

Paul Yale parecia estar com vontade de continuar a conversar:

- Independente desse infortunado incidente, acho extremamente interessante esse esquema de furto de energia. Não tinha a menor ideia de que isso existisse. Nunca antes ouvi falar a respeito. Como também não sabia que existia gente como o Sr. London numa companhia de eletricidade. - Virou-se para o chefe do Departamento de Proteção à Propriedade e acrescentou: - Em outra ocasião, eu gostaria de ter mais informações sobre o seu trabalho.

- Terei o maior prazer em contar-lhe tudo o que desejar saber, senhor.

Os quatro continuaram a conversar, já desaparecida a tensão inicial. Ficou combinado que, de tarde, Harry London informaria Paul Yale sobre as provas contra lan Norris. Yale declarou sua intenção de contratar um advogado para defender seus interesses diante de Norris. E explicou:

- O problema dos administradores do nosso fundo sempre foi difícil. Meu avô fez cláusulas rígidas, que se tornaram piores com o passar do tempo. Será necessária uma decisão judicial para afastar Norris. Nas circunstâncias, é o que terei de providenciar.

Nim quase não participou da conversa. Em algum lugar, no fundo de sua mente, havia alguma coisa que o estava incomodando. Mas não sabia exatamente o quê.

Dois dias depois, Harry London voltou a procurar Nim.

- Tenho algumas notícias sobre o caso Norris. Nim levantou a cabeça das folhas datilografadas do discurso que faria na convenção e indagou:

- Quais são?

- lan Norris fez uma declaração de que seu amigo Paul Sherman Yale nada sabia do que estava acontecendo. O que confirma a história do velho.

Curioso, Nim perguntou:

- Por que Norris iria fazer uma declaração dessas?

- Ao que parece, houve um acordo confidencial. Por isso é que tenho minhas dúvidas sobre a imparcialidade da balança da justiça. O advogado de Norris teve uma conversa com o Promotor Distrital. Primeiro, ficou acertado que a GSP & L receberá tudo o que lhe é devido... ou melhor, o que calculamos que é devido, uma quantia e tanto. Depois disso, Norris irá declarar que não tem nada a dizer diante da acusação de furto criminoso nos termos do Artigo 591.

- E o que é isso?

- Faz parte do Código Penal da Califórnia. Cobre o furto de companhias de serviços públicos como a nossa e a telefónica. Prevê uma multa e uma pena de prisão de até cinco anos. No final das contas, as provas não serão apresentadas no tribunal e o nome de Yale não vai aparecer.

Harry London parou de falar abruptamente. Nim queixou-se:

- É preciso um saca-rolhas para arrancar qualquer informação de você. Conte-me o resto desse acordo por baixo da mesa.

- Não consegui descobrir tudo, provavelmente jamais saberei. Mas uma coisa que transpirou é que o Sr. Yale tem amigos poderosos. O Promotor Distrital foi pressionado a resolver o caso através de um acordo e manter o nome de Yale em sigilo. - London deu de ombros. Imagino que é mesmo o melhor para a nossa cara GSP & L.

- Tem razão, Harry, é mesmo melhor.

Depois que London se retirou, Nim ficou pensando no caso. Era verdade: teria sido uma publicidade nociva para a companhia se um dos seus diretores, justamente o porta-voz oficial, fosse envolvido num escândalo de furto de energia, mesmo que inocentemente. Nim imaginou que deveria sentir-se aliviado. No entanto, algo continuava a atormentálo, como já vinha acontecendo há dois dias, algo meio nebuloso no subconsciente, uma convicção de que sabia algo importante, mas não conseguia lembrar-se.

Havia outra coisa. E que não estava oculta no subconsciente

Por que Yale fizera questão de ressaltar, como acontecera na reunião com Eric Humphrey, Harry London e Nim, que nunca tinha ouvido falar no furto de energia? Haviam saído reportagens e notícias em jornais e revistas, a televisão também abordara o assunto. Mas era verdade que nenhuma pessoa, nem mesmo um ex-Ministro do Supremo Tribunal, poderia estar a par de todas as notícias que saíam. Mesmo assim, a veeMMência parecera a Nim bastante exagerada.

Voltou a seu pensamento original: a dúvida que o atormentava. O que era afinal que sabia e não se recordava? Talvez, se não se empenhasse tanto em descobrir, o fato poderia emergir mais facilmente.

E Nim voltou a trabalhar no discurso que faria na convenção do Instituto Nacional de Eletricidade, dentro de quatro dias.

 

Um dia de glória se aproxima!

O valente exército do povo, Amigos da Liberdade, lutando contra os torpes capitalistas que mantêm a Amerika acorrentada, irá desfechar uma ofensiva que será aclamada pela história.

Todos os preparativos estão prontos para a contagem regressiva.

Georgos Winslow Archambault, escrevendo em seu diário, hesitou por um momento. Depois, usando o coto de lápis (estava ficando cada vez mais incómodo de tão pequeno e em breve teria de jogá-lo fora, independente dos preceitos de Gandhi), riscou as seis últimas palavras. Tinha chegado à conclusão de que possuíam um tom inequivocamente capitalista. Escreveu no lugar delas:

foram brilhantemente executados pelo alto-comando dos Amigos da Liberdade.

Melhor, muito melhor! Ele continuou a escrever:

Os inimigos do povo, congregando-se sob a infame fachada fascista do Instituto Nacional de Eletricidade, começarão a se reunir dentro de dois dias.

Vão ter uma tremenda surpresa... e uma punição bem merecida.

Georgos sorriu ao largar o coto de lápis e repousar um pouco do esforço de escrever, que sempre o deixava mentalmente cansado. Levantando-se, correu os olhos pela oficina do porão, agora abarrotada de novos suprimentos e equipamentos. Espreguiçou o corpo esguio e flexível. Depois, deitou-se no chão, num espaço que deixara deliberadamente vago, e fez rapidamente 40 flexões. Ficou satisfeito por ter feito o exercício facilmente e a respiração estar normal ao final. Dali a três dias, ele poderia ter a oportunidade de agradecer por sua boa forma física.

Voltaria ao diário dentro de um minuto. com um grande acontecimento da história prestes a se consumar, o diário não devia ser negligenciado, porque um dia haveria de ocupar um lugar de honra nos arquivos da revolução.

Georgos pensou: toda a operação iminente já estava preparada e planejada, os suprimentos em ordem, definida a logística de levar as bombas explosivas e incendiárias para o Hotel Christopher Cqlumbus. A primeira série de bombas, contendo alto explosivo, iria detonar às três horas da madrugada do segundo dia da convenção do Instituto; as bombas incendiárias detonariam de cinco a dez minutos depois. As bombas, ocultas em extintores de incêndio, seriam colocadas no interior do hotel no dia anterior, cerca de 16 horas antes da detonação.

Graças à liderança hábil de Georgos, tudo estava transcorrendo como... ele hesitou, procurando uma boa metáfora... como aqueles excelentes mecanismos de relógio que Davey Birdsong comprara em Chicago e lhe entregara.

Georgos havia revisto suas opiniões anteriores sobre Birdsong. Agora, sentia admiração e até mesmo amor pelo gigante barbado.

Não apenas a ideia original de Birdsong era de puro génio, mas também assumira riscos ativos ao ajudar na execução. Além da viagem de compra a Chicago. Birdsong ajudara a adquirir os extintores de incêndio ali mesmo na cidade, uns poucos de cada vez, em fontes diferentes. Havia agora no porão quase três dúzias de extintores, mais do que suficiente para o plano dos Amigos da Liberdade. Georgos fora cauteloso ao levar os extintores para a casa, "procurando trabalhar só depois do anoitecer. Correra um risco calculado, ao levar seis extintores à luz do dia, porque precisava urgentemente de espaço na Kombi para buscar outros. Mas examinara a rua cuidadosamente antes, e depois trabalhara rapidamente; estava convencido de que não fora observado.

Além de trazer os trinta e tantos extintores, Georgos já realizara o trabalho necessário na metade. Primeiro, esvaziara o conteúdo, depois enfraquecera por dentro os extintores. Naqueles que seriam bombas incendiárias, colocara garrafas plásticas com gasolina e as cargas explosivas, com detonadores e mecanismos de tempo. No caso das bombas de alto explosivo, que iriam bloquear as saídas do hotel, substituíra a gasolina por dois quilos de dinamite.

Assim que terminasse de escrever no diário, continuaria a trabalhar nos extintores restantes. Precisaria trabalhar rapidamente nas 48 horas seguintes... e com extremo cuidado, porque a quantidade de explosivo que havia agora na oficina era suficiente para arrasar todo o quarteirão, se algo saísse errado. Mas Georgos tinha plena confiança em sua capacidade e sabia que poderia acabar a tempo.

O rosto fino e ascético iluminou-se de satisfação ao recordar as palavras de Birdsong ao conversarem pela primeira vez sobre o plano de bloquear as saídas do hotel e depois provocar incêndios nos andares superiores: "Se fizer tudo direito, nenhuma pessoa nos andares superiores deixará o prédio viva. "

Mais um ponto favorável a Birdsong: ele providenciara todo o dinheiro que Georgos pedira, muito embora o custo total fosse muito superior ao previsto inicialmente.

E havia também a manobra diversionária que Birdsong planejara. Ela ajudaria Georgos, junto com os outros combatentes da liberdade, a colocar as bombas em segurança no interior do hotel.

Como já fizera antes por diversas vezes, Georgos repassou mentalmente os detalhes.

com mais um pouco do dinheiro de Birdsong, Georgos comprara uma pickup Dodge, usada, mas em bom estado, por uma feliz coincidência pintada de vermelho. Pagara à vista, em dinheiro, usando documentos de identidade falsos, a fim de que mais tarde não se pudesse descobri-lo por esse caminho.

A pickup estava agora escondida numa garagem particular, trancada, ao lado de um segundo esconderijo dos Amigos da Liberdade, um apartamento recentemente alugado, no bairro de North Castle, do qual somente Georgos tinha conhecimento até aquele momento. O apartamento poderia servir como recurso numa emergência, caso se tornasse impraticável, por qualquer razão, continuar a usar a casa da Rua Crocker.

Nos dois lados da pickup vermelha já estavam pintadas as seguintes palavras: SERVIÇO DE PROTEÇÃO CONTRA INCÊNDIO. Um golpe de mestre (outra das ideias de Georgos) fora a escolha de uma pickup aberta, ao invés de fechada. Assim, todos poderiam ver a carga do veículo, aparentemente inocentes extintores de incêndio.

O transporte regular de Georgos, a Kombi Volkswagen, estava numa garagem particular não muito longe da casa da Rua Crocker. Não seria usada no ataque à convenção do Instituto Nacional de Eletricidade.

O esquema diyersionário de Birdsong era simples. Ele e cerca de uma centena de partidários da & Ip iriam promover uma manifestação contra a GSP & L diante do hotel, no momento em que os extintores com bombas fossem levados à entrada de serviço e descarregados. Os manifestantes causariam tumulto suficiente para atrair a atenção e manter ocupadas todas as forças policiais e de segurança que estivessem no local, permitindo que a pickup Dodge vermelha passasse despercebida.

Quanto aos outros detalhes, Birdsong cumprira a promessa e apresentara os esboços do andar térreo e do menzanino do Hotel Christopher Columbus. Depois de examiná-los, Georgos fizera pessoalmente três viagens ao hotel, a fim de verificar os detalhes e determinar quais os melhores locais para colocar as bombas de alto explosivo que detonariam primeiro.

Outra coisa que Georgos descobrira fora que o serviço do hotel era tão intenso, às vezes até frenético, que durante o dia praticamente qualquer um podia andar pelas áreas de serviço do hotel, contanto que desse a impressão de estar fazendo alguma coisa. Para testar tal possibilidade, em sua terceira visita ao hotel, Georgos vestira um dos macacões cinzas comprados recentemente, no qual estavam bordadas as palavras "Serviço de Proteção Contra Incêndio", que ele e seus companheiros usariam na expedição, três dias depois.

Não houvera o menor problema. Chegara mesmo a receber acenos amistosos de diversos empregados do hotel, que consideravam sua presença normal. Georgos, por sua vez, representara o papel que iria assumir quando colocasse as bombas. Nesse momento, ele e os outros iriam tornar-se lacaios subservientes, exatamente da maneira como os capitalistas gostavam que seus servos rastejassem. Os combatentes da liberdade, como camaleões, iriam sorrir suavemente, balbuciando tolices como "com licença" "Sim, senhor", "Não, madame", um rebaixamento repulsivo perante inferiores, mas que tinha de ser suportado pela causa da revolução.

E os resultados fariam com que tudo valesse a pena!

Para cobertura extra, no caso de qualquer combatente da liberdade ser detido e interrogado, Birdsong mandara imprimir algumas ordens de serviço em nome do Serviço de Proteção Contra Incêndio. Já estavam agora preenchidas. Determinavam que extintores de incêndios suplementares deviam ser entregues no hotel e deixados no local em que seriam posteriormente montados. Birdsong também datilografara, em papel timbrado do hotel, uma autorização para que o pessoal do Serviço de Proteção Contra incêndio lá entrasse com esse objetivo. Ele pegara o papel timbrado durante uma de suas excursões ao Christopher Columbus, onde estava disponível para os hóspedes, nas mesas no mezanino.

Os dois documentos substituíam a ideia original de Georgos de providenciar ordens de compra do hotel, muito difíceis de obter. Georgos e Birdsong sabiam perfeitamente que nenhum dos documentos resistiria a um exame mais atento, mas podiam constituir a grande diferença numa situação crítica.

Pelo que Georgos podia ver, haviam simplesmente pensado em tudo.

Naquele momento, só uma coisa o perturbava e mesmo assim vagamente: sua mulher Yvette. Desde aquela noite, quatro meses atrás, em que Georgos executara os dois porcos de segurança em Millfield e Yvette logo depois protestara, nunca mais confiara plenamente nela. Em seguida a Millfield, chegara a pensar em eliminá-la. Não seria difícil, como Davey Birdsong ressaltara certa ocasião, mas Georgos decidira adiar qualquer ação. A mulher era útil. Cozinhava bem e era conveniente quando ele desejava dar vazão a seus excitamentos sexuais, que haviam ultimamente se tornado cada vez mais frequentes, à medida que se aproximava a perspectiva de matar mais inimigos do povo.

Como precaução, Georgos não revelara a Yvette o plano para destruir o Hotel Christopher Columbus, muito embora ela devesse perceber que algo importante era iminente. Talvez a exclusão fosse o motivo pelo qual Yvette se mostrara silenciosa e mal-humorada nas últimas semanas. Mas não importava! Nesse momento, Georgos tinha preocupações mais importantes. Muito em breve, quase que certamente, seria obrigado a dar um jeito em Yvette, apesar da inconveniência pessoal que isso representaria.

Extraordinário! Só de pensar em matar sua mulher já estava experimentando uma ereção.

com crescente excitamento, em tantos aspectos agradáveis, Georgos voltou a escrever em seu diário.

 

 

Numa suíte no 25? andar do Hotel Christopher Columbus, Leah levantou os olhos do caderno de deveres em que estava escrevendo e disse:

- Papai, posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?

- Claro!

- As coisas entre você e Mamãe estão agora certinhas?

Nim levou um ou dois segundos para se aperceber do significado da pergunta da filha. Só depois é que respondeu, baixinho:

- Estão, sim.

- E não vão... - A voz de Leah hesitava. - Não vão mais se separar?

- Se anda preocupada com isso, não há mais razão. Espero que isso jamais aconteça.

- Oh, Papai! - Leah correu para ele, os braços estendidos, abraçando-o fortemente. - Oh, Papai, não sabe como fico contente!

Nim sentiu o rosto jovem e macio da filha encostado no seu, as lágrimas escorrendo. Abraçou-a, afagando-lhe gentilmente os cabelos.

Os dois estavam sozinhos na suíte porque Ruth e Benjy tinham descido ao saguão alguns minutos antes, a fim de experimentarem uma sorveteria pela qual o hotel era famoso. Leah preferira ficar com o pai, alegando que precisava terminar uns deveres de casa que trouxera. Ou teria sido, perguntou-se Nim agora, porque ela esperava a oportunidade de formular sua pergunta tão crucial?

Quantos pais, pensou Nim, sabiam o que se passava na cabeça dos filhos ou as mágoas que eles sofriam em decorrência do egoísmo ou indiferença paternal? Ele recordou como Leah evitara cuidadosamente o assunto da ausência de Ruth enquanto estava na casa dos Neubergers com Benjy e haviam falado pelo telefone. Que agonia Leah, uma menina sensível e perceptiva de 14 anos, não deveria ter sofrido na ocasião? Nim sentiu-se envergonhado só de pensar.

Mas tudo isso levantava outra questão: quando as crianças deveriam ser informadas da verdade sobre o estado de saúde de Ruth? Provavelmente em breve. Iria provocar-lhes uma tremenda ansiedade, como acontecera e continuava a acontecer com Nim. Mas era melhor que Leah e Benjy fossem informados calmamente do que descobrirem bruscamente numa crise, como poderia perfeitamente acontecer. Nim decidiu conversar com Ruth a respeito nos próximos dias.

Como se sentisse uma parte do que ele estava pensando, Leah disse:

- Está tudo bem, Papai, está tudo bem...

Depois, com a flexibilidade típica dos jovens, ela desvencilhou-se e voltou a concentrar-se nos deveres. Nim foi até a janela da sala de estar da suíte, contemplando a vista panorâmica, de cartão-postal: a cidade histórica, o porto movimentado e cheio de navios, as duas pontes famosas no mundo inteiro, tudo pintado de dourado pelo sol de fim de tarde. Virando a cabeça, ele disse para a filha:

- Ei, dê uma olhada nesta cena fantástica! Leah levantou a cabeça, sorrindo. - É mesmo...

Uma coisa já era patente: levar a família para a convenção do Instituto Nacional de Eletricidade, agora em seu primeiro dia, fora uma grande ideia. Os filhos estavam extremamente excitados ao se registrarem no hotel naquela manhã. Leah e Benjy iriam passar quatro dias sem ir à escola, mas tinham recebido deveres de casa, inclusive o de escrever um ensaio sobre a própria convenção. Planejando seu ensaio, Benjy manifestara o desejo de ouvir o discurso do pai no dia seguinte. Normalmente não se admitiam crianças nas sessões oficiais, mas Nim conseguira dar um jeito. Havia outras atividades para as famílias, como um cruzeiro pela baía, visitas a museus, exibições particulares de filmes, de que Ruth e as crianças participariam.

Algum tempo depois, Ruth e Benjy voltaram à suíte, rindo felizes e anunciando que fora necessário tomar dois sorvetes cada um antes de concederem três estrelas à sorveteria.

O segundo dia da convenção.

Amanheceu um dia claro e sem nuvens, o sol entrando pela suíte, enquanto Nim, Ruth e as crianças desfrutaram o luxo de um café da manhã servido no quarto.

Depois do café e pela última vez antes de pronunciá-lo, Nim fez mais uma revisão do discurso. Pelo programa, ele deveria falar às 10 horas. Poucos minutos depois das nove, deixou os outros na suíte e desceu de elevador até o saguão.

Tinha uma razão para ir até lá antes. Por uma janela da suíte, vira uma manifestação ocorrendo diante do hotel e estava curioso em saber quem eram e por que estavam ali.

Ao sair pela porta principal do hotel, Nim percebeu imediatamente que era a mesma turma de sempre: a força & luz para o povo. Cerca de uma centena de pessoas, de idades diversas, desfilava de um lado para outro na frente do hotel, gritando slogans. Será que eles não se cansavam nunca? , pensou Nim. E será que jamais podiam ver qualquer coisa além de seu ponto de vista tão estreito?

Os cartazes habituais estavam sendo exibidos:

AGS

Engana os Consumidores

Que o Povo e não os Capitalistas Seja o Dono da GSP & a & Ip Exige a Desapropriação das

Companhias de Serviços Públicos

A Propriedade Pública

Vai Garantir Tarifas mais Baixas

Que influência a & Ip podia esperar exercer sobre o Instituto Nacional de Eletricidade? Nim podia dizer que absolutamente nenhuma. Mas é claro que eles estavam visando à atenção local, que estavam recebendo, como geralmente acontecia. Nim avistou as onipresentes câmeras da TV. E lá estava Davey Birdsong, jovial e exuberante, orientando tudo.

Os manifestantes fizeram uma tentativa de impedir que qualquer veículo se aproximasse do hotel. O caminho principal foi bloqueado por uma turma de manifestantes, de braços dados, impedindo o acesso de diversos carros particulares e táxis. Um segundo contingente estava também bloqueando a entrada de serviço. Dois veículos estavam parados ali, um furgão de entrega de leite e umapickup aberta carregada de extintores de incêndio. Os motoristas haviam saltado e estavam protestando contra o bloqueio.

Diversos guardas apareceram. Circularam entre os manifestantes, advertindo-os. Surgiu uma discussão entre a polícia e os manifestantes, da qual Davey Birdsong participou. O gigante barbado acabou dando de ombros e fez um sinal para que seus partidários desobstruíssem os dois acessos ao hotel, enquanto a polícia, acelerando o processo, escoltava os dois veículos de carga e depois os carros particulares e táxis à espera.

- Pode imaginar uma irresponsabilidade maior? - Quem tinha falado era outro delegado à convenção, parado ao lado de Nim e identificável pelo emblema do Instituto Nacional de Eletricidade na lapela. Esse bando de idiotas está querendo suspender o fornecimento de leite e a proteção contra incêndio do hotel. Por quê?

Nim assentiu.

- Tem razão. Não faz o menor sentido.

Talvez não fizesse também para os próprios manifestantes, que nesse momento começaram a se dispersar. Nim retornou ao interior do hotel e pegou um elevador para o mezanino, o quartel-general da convenção

Como qualquer convenção, um ritual tribal singular, a reunião do Instituto Nacional de Eletricidade congregava várias centenas de empresários do setor, engenheiros e cientistas, com o objetivo de discutir os problemas comuns, trocar informações sobre novos desenvolvimentos e promover o convívio social. A teoria era a de que cada delegado faria depois o seu trabalho muito melhor. Era difícil atribuir um valor objetivo a tais reuniões, mas era inegável que havia algum.

Na ante-sala do salão principal da convenção, diversos delegados estavam-se reunindo para um café e uma conversa, que habitualmente precediam as sessões oficiais. Nim juntou-se ao grupo, encontrando-se com executivos de outras companhias de eletricidade, alguns que ele já conhecia, outros não.

A conversa, de um modo geral, era sobre o petróleo. Uma notícia divulgada ao final da noite anterior revelara que as nações da OPEP estavam irredutíveis na exigência de que os pagamentos futuros pelo petróleo fossem efetuados em ouro, não mais em papel-moeda, cujo valor, especialmente no caso do dólar, se reduzia a cada dia. As negociações entre os Estados Unidos e a OPEP haviam chegado a um impasse, com a perspectiva de um novo embargo de petróleo tornando-se alarmantemente real.

Se isso acontecesse, o impacto sobre as companhias de serviços públicos que geravam e distribuíam eletricidade seria desastroso.

Depois de alguns minutos de conversa, Nim sentiu alguém lhe apertando o braço. Virando-se, deparou com Thurston Jones, seu amigo de Denver. Apertaram-se as mãos calorosamente.

- Alguma notícia sobre Tunipah, Nim? Nim fez uma careta.

- A construção das pirâmides foi mais rápida.

- E os faraós não precisavam de autorização, não é mesmo?

- Exatamente. Como está Ursula?

- Muito bem. - Thurston exibiu uma expressão radiante. - Vamos ter um filho!

- Mas isso é maravilhoso! Meus parabéns! E quando será o grande dia?

Nim estava recorrendo a palavras para preencher o tempo, enquanto procurava pôr em ordem os pensamentos aturdidos. Recordava-se nitidamente do fim-de-semana que passara em Denver, da chegada de Ursula em sua cama. Ursula contara que ela e o marido desejavam muito ter um filho, mas não podiam, o que Thurston posteriormente confirmara. "Ambos fizemos uma porção de exames médicos... minha pistola engatilha e dispara, mas apenas balas de festim. E jamais terei balas de verdade... "

- O médico diz que deverá nascer ao final de junho.

Santo Deus! Nim não precisava de uma calculadora para saber que o filho era seu. Suas emoções eram tumultuadas e desencontradas. O que deveria dizer num momento como aquele?

O amigo proporcionou-lhe a resposta, passando o braço pelos ombros de Nim e dizendo:

- Há uma coisa que Ursula e eu gostaríamos. Quando chegar o momento, queremos que você seja o padrinho.

Nim fez menção de dizer que sim, que seria uma honra; mas descobriu que não conseguia falar. Em vez disso, apertou a'mão de Thurston, firmemente, assentindo em concordância. E jurou, silenciosamente, que o filho dos Jones teria o melhor e mais consciencioso padrinho que jamais existira.

Combinaram encontrar-se novamente, antes de a convenção terminar.

Nim seguiu adiante, conversando com executivos de outras companhias de eletricidade, como a Con Edison, de Nova York, na opinião dele uma das mais eficientes da América do Norte, apesar do seu papel compulsório como coletora de impostos da cidade de Nova York e dos desmandos de políticos oportunistas, a Florida Power & Light, a cornmonwealth Edison de Chicago, a Houston Lighting & Power, a Southern Califórnia Edison, a Arizona Public Service e muitas outras.

Havia também um contingente de uma dúzia de delegados da Golden State Power & Light, misturando-se com os outros, já que representavam a companhia-anfitriã. Ray Paulsen integrava o grupo da GSP & L; ele e Nim se cumprimentaram secamente, com a ausência de cordialidade habitual. J. Eric Humphrey ainda não aparecera na convenção, mas não devia demorar.

Ao concluir uma conversa, Nim notou um rosto familiar, aproximando-se através do grupo de delegados, cada vez maior e mais ruidoso. Era Nancy Molineaux, a repórter do Califórnia Examiner. Para surpresa de Nim, ela se encaminhou diretamente para ele.

- Oi!

A atitude dela era amistosa, havia um sorriso em seu rosto. Mas as recordações de Nim ainda eram muito intensas e amargas para que reagisse da mesma forma. Mas não podia deixar de reconhecer que a mulher era tremendamente atraente; os malares salientes e a atitude altiva contribuíam para isso. E ela sabia como se vestir bem, além de dispor de dinheiro suficiente para isso, a julgar pela aparência das roupas.

- bom dia - disse Nim, friamente.

- Acabei de pegar seu discurso na sala de imprensa - disse Nancy Molineaux, mostrando uma cópia integral e o press-release. - É de uma insipidez total. Está planejando dizer mais alguma coisa além do que está escrito aqui?

- Mesmo que estivesse, não iria ajudá-la de jeito nenhum, informando qualquer coisa de antemão.

A resposta pareceu deixá-la satisfeita. E Nancy soltou uma risada. Foram interrompidos nesse momento:

- Papai, já estamos indo para o salão.

Era Benjy, que se esquivara por entre os delegados, a caminho de uma pequena galeria, onde podiam ser alojados uns poucos visitantes. No alto da escada para a galeria, Nim avistou Ruth e Leah. Ambas lhe acenaram e ele acenou em resposta.

- Está certo, Benjy. É melhor mesmo irem ocupar logo seus lugares.

Nancy Molineaux ficara escutando, com uma expressão divertida. E perguntou, assim que Benjy se afastou:

- Trouxe a família para a convenção?

- Trouxe, sim - respondeu Nim, bruscamente. Uma pausa, e ele acrescentou: - Minha esposa e nossos filhos estão hospedados em minha companhia no hotel. E caso pense em tirar algum proveito dessa informação, devo dizer-lhe que estou pagando pessoalmente as despesas deles.

- Essa não! Mas que terrível reputação eu adquiri!

- Sempre a trato com a maior cautela... como faria com uma cobra.

Esse Goldman não está mesmo a fim de conversa, pensou Nancy, enquanto se afastava.

Sua presença ali era uma missão que não esperava nem desejara. Mas o editor local, avistando o nome de Goldman no programa, mandara Nancy fazer a cobertura, esperando que ela descobrisse algum ponto fraco, e assim continuasse o que ele considerava uma vendeta jornalística. Mas o velho sou-o-treinador estava enganado. Nancy iria noticiar o discurso de Goldman objetivamente, até mesmo dar-lhe algum destaque, se o material disponível merecesse. (A versão impressa não o merecia e fora por isso que ela fizera a pergunta.) Mas, no fundo, Nancy queria sair dali o mais depressa possível. Aquele era o dia em que combinara encontrar-se com a moça, Yvette, no bar onde haviam conversado rapidamente uma semana atrás. Nancy não deveria ter qualquer dificuldade para ir ao encontro, pois deixara o carro no estacionamento subterrâneo do hotel. Mas o tempo seria apertado. Esperava que a moça aparecesse e respondesse a algumas das perguntas que a desconcertavam.

Enquanto isso, teria de cuidar de Goldman. Nancy entrou no salão da convenção e foi sentar-se perto da mesa da imprensa.

Mesmo enquanto falava à convenção, Nim descobriu-se a concordar com Nancy Molineaux: um discurso tão repleto de material técnico como o seu não tinha nada que pudesse atrair a atenção de uma repórter. Mas enquanto ele descrevia os problemas de carga e potência, presentes e futuros, da Golden State Power & Light, a audiência escutava atentamente, o que indicava que a maioria dos presentes partilhava os mesmos problemas, frustrações e temores que Nim estava apresentando, sob o título de "Colapso". Eles também estavam encarregados de proporcionar um sistema eficiente de energia elétrica em suas comunidades. Também compreendiam que o tempo estava rapidamente se esgotando e não faltavam muitos anos para uma terrível escassez de energia elétrica. Contudo, quase que diariamente, a honestidade deles era contestada, as advertências desacreditadas, as estatísticas e previsões sombrias escarnecidas.

Quase ao final do texto pronto, Nim tirou do bolso uma folha de anotações que fizera no dia anterior. Iria usá-las para a conclusão.

"A maioria dos que aqui estão presentes, provavelmente todos nós, partilha duas convicções importantes. A primeira se refere ao meio ambiente. O meio ambiente em que vivemos deve ser mais limpo do que é atualmente. Portanto, todos os que trabalham visando a esse objetivo, de maneira responsável, merecem nosso apoio.

"A segunda convicção diz respeito ao processo democrático. Creio na democracia, sempre acreditei, embora ultimamente faça algumas restrições. O que me leva de volta ao meio ambiente. Alguns dos que se intitulam ecologistas deixaram de ser crentes racionais numa causa justa para se tornar fanáticos. Constituem uma minoria. Mas por um fanatismo rígido, ruidoso, intransigente, muitas vezes desinformado, estão conseguindo impor sua vontade à maioria.

"Ao agirem assim, tais pessoas prostituíram o processo democrático, usaram-no implacavelmente, como nunca deveria ter sido usado, para impedir e destruir tudo que não os seus próprios objetivos mesquinhos. O que não conseguem frustrar pela razão e argumentos, obstruem pelas protelações e artifícios legais. Tais pessoas nem mesmo fingem aceitar o governo da maioria, porque estão convencidas de que sabem melhor do que a maioria. Além disso, reconhecem apenas aqueles aspectos da democracia que podem ser subvertidos em proveito próprio.

As últimas palavras provocaram uma tempestade de palmas. Nim levantou a mão, pedindo silêncio, antes de continuar:

"Essa espécie de ecologista se opõe a tudo. Não há nada, absolutamente nada, que nós, da indústria de energia elétrica, possamos propor que não lhe desperte a ira, a condenação, a oposição fervorosa e virtuosa. Mas os fanáticos entre os ecologistas não estão sozinhos. Têm aliados.

Nim fez uma pausa, subitamente sentindo dúvidas sobre suas anotações, sabendo perfeitamente que suas palavras a seguir provavelmente o meteriam na mesma encrenca de cinco meses antes, depois da audiência da Comissão de Energia sobre Tunipah. E iria também, contrariar a determinação de J. Eric Humphrey para não abordar qualquer tema controvertido. Seja como for, o pior que poderiam fazer seria enforcálo. E por isso Nim continuou:

"Os aliados a que me estou referindo são os comissários dos órgãos fiscalizadores e regulamentadores oficiais, designados exclusivamente por motivos políticos.

Nim sentiu o interesse imediato e atento da audiência.

"Houve um tempo, neste Estado e em outros, que as juntas e comissões que regulavam nossa indústria eram relativamente poucas e podia-se contar que fariam julgamentos razoavelmente justos e imparciais. Mas isso já não mais acontece. Não apenas tais comissões proliferaram a um ponto tal que suas funções agora se superpõem, como também competem abertamente entre si por predomínio e poder. Além disso, muitos dos membros dessas comissões foram nomeados como clamorosas recompensas políticas. Raramente, se é que algum caso existe, eles conquistam o cargo por mérito ou experiência. Como resultado, esses comissários têm pouco ou nenhum conhecimento empresarial, muitas vezes manifestam abertamente seu preconceito contra as grandes empresas. E todos têm ambições políticas, que governam suas ações e decisões.

"É precisamente por isso que nossos críticos e oponentes extremistas encontram aliados. Pois são os pontos de vistas militantes, populistas, as posições contra as companhias de serviços públicos, que atualmente se tornam notícias e atraem atenção. As decisões serenas, equilibradas, ponderadas não são notícia. E os comissários a que me referi conhecem muito bem essa lição.

"Em outras palavras: o que deveriam ser posições imparciais, na defesa do interesse público, estão sendo distorcidas e viradas contra o interesse público. Não tenho uma solução fácil a sugerir para esses dois problemas de grandes proporções. E desconfio que nenhum dos presentes a tem. O melhor que podemos fazer é informar ao público, sempre que possível, que seus interesses estão sendo minados por uma minoria... por uma insidiosa aliança entre fanáticos e políticos preocupados exclusivamente com as vantagens pessoais.

Nim decidiu parar por aí.

E enquanto se perguntava qual seria a reação de J. Eric Humphrey e outros colegas da GSP & L, descobriu-se, espantado, a ser o alvo de uma entusiasmada ovação, com todos de pé.

"Parabéns! "... "era preciso coragem para dizer, mas é tudo verdade" "espero que suas palavras tenham a mais ampla divulgação"... "gostaria de uma transcrição para distribuir", "a indústria precisa de homens francos e objetivos como você"... "se um dia se cansar de trabalhar para a Golden State Power, não se esqueça de nos avisar"...

Enquanto os delegados o cercavam, Nim descobriu-se, inesperada e inacreditavelmente, um herói. O presidente de uma gigantesca companhia de serviços públicos do Centro-Oeste assegurou-lhe:

- Espero que sua companhia saiba reconhecer o valor que possui. E pode estar certo de que direi a Eric Humphrey que poucas vezes ouvi palavras tão objetivas, francas e sensatas.

Por entre mais apertos de mão e parabéns, Nim sentiu-se subitamente exausto e deu um jeito de se afastar.

A única coisa que toldava seu sucesso: a visão do rosto franzido e hostil de Ray Paulsen. Mas Paulsen não fez qualquer comentário e retirou-se sozinho do salão de convenção.

Nim chegara à entrada que levava ao mezanino quando uma voz serena disse às suas costas:

- Vim até aqui especialmente para ouvi-lo. E valeu a pena.

Nim virou-se e, espantado, deparou com Wally Talbot Jr. Parte da cabeça de Wally estava envolta por ataduras e ele andava com a ajuda de muletas. Mas conseguiu exibir um sorriso jovial.

- Wally! Mas que prazer vê-lo! Não sabia que já tinha deixado o hospital.

- Saí há cerca de duas semanas, embora ainda não definitivamente. Terei de voltar para continuar os trabalhos de reparo. Podemos ter uma conversa?

- Mas claro! Vamos procurar algum canto sossegado.

Nim pensara em ir procurar Ruth e as crianças, mas poderia encontrar-se com elas mais tarde, na suíte. Desceram no elevador até o andar térreo. Num canto, perto de uma escada, havia duas poltronas vagas. Nim e Wally se encaminharam para lá. Wally usava as muletas sem muito jeito, mas obviamente preferia que não tentassem ajudá-lo.

- Cuidado, por favor! - Um homem de macacão azul, manobrando um carrinho de duas rodas no qual estavam equilibrados três extintores de incêndio vermelhos, passou por eles. - Não vai demorar. Só vou pôr um desses extintores no lugar.

O homem, que era jovem, puxou uma das poltronas, colocou um extintor atrás, e empurrou a poltrona de volta ao lugar. Sorriu para Nim e acrescentou:

- Isso é tudo, senhor. Desculpe ter incomodado.

- Não foi nada.

Nim recordou-se de já ter visto o homem antes, guiando a pickup vermelha que a polícia escoltara, durante a manifestação da & Ip. Ocorreu-lhe que colocar um extintor fora de vista, atrás de uma poltrona, era uma estranha disposição. Mas não era da sua conta e o homem presumivelmente sabia o que estava fazendo. No macacão estavam bordadas as palavras "Serviço de Proteção Contra Incêndio".

Nim e Wally se sentaram.

- Viu as mãos daquele cara? - perguntou Wally.

- Vi, sim.

Nim havia notado que as mãos do jovem eram bastante manchadas, provavelmente em decorrência do manuseio negligente de produtos químicos. Sorrindo outra vez, agora um pouco tristemente, Wally comentou:

- Ele poderia dar um jeito com enxertos de pele. Estou ficando um especialista no assunto.

- Não estou interessado nos outros, Wally. Fale-me a seu respeito.

- Como eu já disse, os enxertos de pele que estou fazendo ainda vão prolongar-se por muito tempo. Os médicos só podem fazer um pouco de cada vez.

- Eu já sabia.

- Mas tenho uma boa notícia e achei que gostaria de partilhá-la. vou arrumar um novo pau.

- Você o quê?

- Isso mesmo que acabou de ouvir. Lembra-se de que o antigo foi queimado?

- Claro que me lembro.

Nim jamais esqueceria as palavras do médico no dia seguinte à eletrocução de Wally: "... a eletricidade passou pela superfície superior do corpo e saiu... por intermédio do pênis... Foi destruído. Totalmente gueimado... "

- Mas continuei a ter uma sensação sexual lá e isso pode ser usado como uma base - continuou Wally. - Foi por isso que me mandaram na semana passada a Houston, ao Centro Médico do Texas. Estão fazendo coisas maravilhosas por lá, especialmente para gente como eu. Existe um médico chamado Brantley Scott que está por trás de tudo. Ele vai fazer-me um novo pênis e prometeu que irá funcionar.

- Fico satisfeito por você, Wally. Mas como se pode fazer uma coisa dessas?

- É feito em parte por enxertos de pele especiais, em parte por uma coisa chamada prótese do pênis. É uma pequena bomba, alguns tubos, um minúsculo reservatório, tudo ligado e implantado no corpo cirurgicamente. O negócio é feito de silicone, o mesmo material que se usa no marca-passo cardíaco. Na verdade, é um substituto para o que a natureza nos deu.

Curioso, Nim perguntou:

- E realmente funciona?

- Mas claro que funciona! - O entusiasmo de Wally era patente.

- Já vi pessoalmente! E também descobri que centenas de homens já fizeram a operação com pleno sucesso. E vou dizer-lhe mais uma coisa, Nim...

- O quê?

- A prótese do pênis não é apenas para homens como eu, que sofreram acidentes. É também para outros homens, geralmente velhos, que são normais, só que perderam o vigor e não mais conseguem fazer nada com uma mulher. Isso lhes proporciona uma vida nova. O que me diz de você, Nim? Não está precisando de ajuda?

- Não desse tipo. Ou pelo menos ainda não, graças a Deus.

- Mas algum dia pode precisar. Pense só nisso! Ninguém mais terá de fazer jejum sexual compulsório! E poderá ir para a sepultura com umaereção!

Nim sorriu.

- E o que vou fazer com o pau duro na sepultura?

- Ei, lá está Mary! - exclamou Wally. - Ela veio buscar-me. Ainda não estou em condições de guiar.

Nim avistou Mary Talbot, a esposa de Wally, no outro lado do saguão. Ela já os vira e estava-se aproximando. Nim viu também, com alguma preocupação, que Ardythe Talbot a acompanhava. Não vira nem tivera notícias de Ardythe desde o encontro no hospital, quando ela histericamente atribuíra ao seu "pecado" e de Nim os problemas de Wally. Nim se perguntou se Ardythe já renunciara a seu fervor religioso.

As duas mulheres apresentavam sinais de tensão. Afinal, apenas sete meses se haviam passado desde a trágica morte de Walter Talbot na explosão da usina de La Mission; e o acidente com Wally Jr. ocorrera algumas semanas depois. Mary, que sempre fora esbelta, ao que Nim podia recordar-se, engordara consideravelmente, o que podia ser perfeitamente explicado pela infelicidade e preocupações. O rosto de menina mudara, ela agora parecia mais velha. Nim descobriu-se a desejar que desse certo o que Wally acabara de lhe contar. Se tal acontecesse, ajudaria muito a ambos.

Ardythe parecia estar um pouco melhor do que na última ocasião em que a vira, embora não muito. Em contraste com o que fora imediatamente antes da morte de Walter, bonita, elegante, atlética, não passava agora de uma mulher envelhecida. Ela sorriu para Nim e cumprimentou-o cordialmente, o que o deixou aliviado.

Conversaram um pouco. Nim manifestou sua satisfação por ver Wally novamente em movimento. Mary comentou que alguém lhe falara, no caminho, sobre o discurso de Nim, dando-lhe os parabéns. Ardythe informou que encontrara mais alguns arquivos antigos de Walter e queria entregá-los à GSP & L. Nim ofereceu-se para ir buscá-los, se ela assim o desejasse. Ardythe apressou-se em dizer:

- Não há necessidade. Posso mandá-los para você. Não são tantos quantos na última vez e... - Ela parou de falar abruptamente. Depois, perguntou: - O que aconteceu, Nim?

Nim fitava-a fixamente, a boca entreaberta. Na última vez... Os arquivos de Walter!

- O que aconteceu, Nim? - repetiu Ardythe.

Mary e Wally também fitavam-no, curiosos e aturdidos. Nim conseguiu murmurar:

- Não é nada... apenas acabei de me lembrar de uma coisa...

Agora ele sabia. Sabia qual era a informação desaparecida que lhe atormentara a mente, esquiva e nebulosa, desde a reunião no gabinete de Eric Humphrey, junto com Harry London e Paul Yale. Estava nos arquivos de Walter Talbot, os arquivos que Ardythe entregara a Nim, em caixas de papelão, pouco depois da morte do marido. Na ocasião, Nim os examinara rapidamente; agora, estavam guardados na GSP & L.

- Acho que está na hora de irmos - disse Wally. - Foi um prazer vê-lo de novo, Nim.

- O prazer foi meu, Wally. E boa sorte... em tudo!

Depois que os três se foram, Nim continuou no mesmo lugar, pensando. Sabia agora o que estava naqueles arquivos. E sabia também o que tinha de ser feito. Antes, porém, deveria verificar, confirmar sua memória.

Mais três dias. Imediatamente depois da convenção.

Pressa, pressa, pressa! Era sempre assim, pensou Nancy Molineaux, enquanto acelerava o Mercedes além do limite máximo de velocidade, um olhar cauteloso no espelho retrovisor, atento a qualquer guarda de trânsito.

As pressões da vida pareciam jamais deixá-la em paz, por um único dia que fosse.

Ela telefonara para o jornal, passando apressadamente a notícia sobre Goldman, que sairia na edição vespertina, e agora, 10 minutos depois, estava seguindo para o encontro com Yvette. Nancy esperava que a jovem tivesse o bom senso de esperar um pouco.

Naquela tarde, Nancy precisaria esclarecer alguns pontos obscuros de outra reportagem, para o que teria de voltar ao Examiner. E ainda tinha de espremer o seu horário já apertado para dar um pulo ao banco, pois estava precisando de dinheiro. Tinha hora marcada no dentista às quatro. E prometera ir a duas festas depois do trabalho, uma cedo, informal, rápida, a outra devendo prolongar-se até muito depois de meianoite.

Mas Nancy gostava de um ritmo vertiginoso, no trabalho e nas diversões, embora houvesse dias, como aquele, em que aconteciam coisas demais.

Enquanto guiava, Nancy sorriu, ao pensar na notícia que redigira a respeito do discurso de Goldman. Iria provavelmente deixá-lo surpreso, porque era uma notícia objetiva, sem qualquer comentário pessoal.

Várias centenas de líderes da indústria de energia elétrica da América aclamaram hoje, de pé, a Nimrod Goldman, um vicepresidente da Golden State Power & Light, que declarou que os organismos governamentais, politicamente dominados, estão abusando da confiança pública e "competem abertamente entre si por predomínio e poder".

Goldman assim falou na convenção do Instituto Nacional de Eletricidade, que se realiza nesta cidade.

Anteriormente, Goldman criticou alguns ecologistas, afirmando que se opõem a tudo. "Não há nada, absolutamente nada, que nós, da indústria de energia elétrica, possamos propor que... "

Et coetera, et coetera.

Nancy também citara algumas declarações de Goldman a respeito da escassez de energia elétrica que ele alegava ser iminente. Assim, se Goldman tivesse agora alguma reclamação a fazer, seria contra o que ele próprio dissera, não contra a notícia.

Deus do céu! Como é que alguns malucos idiotas conseguiam tirar carteira de motorista? Ela estava em segundo lugar na fila diante de um sinal fechado que passara a verde, mas o cara da frente ainda não se mexera. Estaria dormindo? Nancy tocou a buzina, impacientemente. Mas que droga! O sinal passou para amarelo e voltou a vermelho no momento em que Nancy o alcançou. Mas o cruzamento parecia livre e Nancy resolveu correr o risco, avançando o sinal.

Mais alguns minutos e ela avistou o bar imundo onde estivera na semana anterior. Estaria muito atrasada? Ao se aproximar do bar, Nancy deu uma olhada no relógio Piaget. Dezoito minutos. E, como não podia deixar de ser, não havia qualquer vaga diante do bar naquele dia! Nancy só foi encontrar uma vaga a dois quarteirões de distância. Trancou a Mercedes e voltou apressadamente.

O interior do bar era escuro e com cheiro de mofo, como na vez anterior. Ao parar logo depois da entrada, deixando os olhos se ajustarem à escuridão, Nancy teve a impressão de que nada mudara naqueles sete dias, nem mesmo os fregueses.

Yvette tinha esperado. Estava sentada sozinha, com uma cerveja a sua frente, na mesma mesa dos fundos que tinham ocupado antes. Levantou a cabeça quando Nancy se aproximou, mas não deu qualquer sinal de interesse ou reconhecimento.

- Oi! - disse Nancy. - Desculpe o atraso.

Yvette deu de ombros ligeiramente, sem fazer qualquer comentário. Nancy fez sinal para um garçom.

- Pode trazer outra cerveja.

Ela ficou esperando a cerveja, examinando disfarçadamente a moça, que continuava calada. Yvette parecia estar em estado ainda pior do que na semana anterior, a pele inchada, os cabelos desgrenhados. As roupas eram as mesmas, imundas, dando a impressão de que Yvette há um mês dormia com elas. Na mão direita estava a luva improvisada, presumivelmente ocultando uma deformidade, conforme Nancy já notara no primeiro encontro.

Nancy tomou um gole de cerveja, que estava gostosa. E decidiu ir direto ao assunto:

- Disse que me contaria hoje o que está acontecendo na casa da Rua Crocker e o motivo das visitas de Davey Birdsong.

Yvette levantou a cabeça.

- Eu não disse nada. Você é que ficou na esperança de que eu fale.

- E ainda estou esperando. Por que não começa a me dizer qual a razão de você estar com tanto medo?

- Não tenho mais medo. A jovem a declaração em voz indiferente, o rosto inexpressivo. Nancy pensou: não estava chegando a parte alguma e talvez sua vinda até ali tivesse sido pura perda de tempo. Tentando novamente, ela perguntou:

- O que aconteceu desde a semana passada para fazer a diferença?

Yvette não respondeu. Parecia estar avaliando mentalmente alguma coisa. Enquanto o fazia, instintiva e aparentemente sem pensar, usou a mão esquerda para coçar a direita. Primeiro com a luva e depois tirando-a.

com choque o horror, Nancy ficou olhando para o que estava à mostra.

O que antes fora mão era agora uma confusão horrenda de estrias e cicatrizes. Dois dedos haviam desaparecido, ficando os cotos desiguais, a pele solta. Os outros dedos, embora mais ou menos completos, tinham pedaços desaparecidos. Um dedo estava grotescamente encurvado, um pedaço de osso exposto.

Nancy murmurou, dominada pela repulsa:

- Santo Deus! O que aconteceu com sua mão?

Yvette baixou os olhos. Percebendo o que acabara de fazer, apressou-se em cobrir novamente a mão. Nancy insistiu:

- O que aconteceu?

- Foi... sofri um acidente.

- Mas quem deixou sua mão assim? Foi um médico?

- Não fui ao médico - balbuciou Yvette, esforçando-se para conter as lágrimas. - Eles não deixaram.

- Quem não deixou? - Nancy sentia a raiva invadi-la. - Birdsong?

A jovem assentiu.

- E Georgos.

- Quem é Georgos? E por que não a levaram a um médico? Nancy estendeu o braço, pegando a mão boa de Yvette. - Deixe-me ajudá-la, menina. Posso fazê-lo. E talvez ainda seja possível dar um jeito em sua mão.

A jovem sacudiu a cabeça. A emoção desaparecera inteiramente, deixando o rosto e os olhos como estavam antes, vazios, apáticos, resignados.

- Fale, por favor - suplicou Nancy. - Conte-me o que está acontecendo.

Yvette deixou escapar o ar dos pulmões, o que poderia ou não ser um suspiro. Abruptamente, abaixou-se ao lado da mesa e pegou no chão uma bolsa marrom bastante velha. Abrindo-a, tirou duas fitas cassetes, pondo em cima da mesa e empurrando na direção de Nancy.

- Está tudo aí - disse Yvette.

Depois, num movimento contínuo, ela tomou o que restava da cerveja e levantou-se para ir embora.

- Ei, não vá ainda! - protestou Nancy. - Mal começamos! Por que não me diz o que tem nessas fitas e depois conversamos a respeito?

- Está tudo aí - repetiu a jovem.

- Mas... - Nancy descobriu que estava falando sozinha. Um momento depois, a porta da rua se abriu por um breve instante, deixando entrar a luz do sol. E Yvette se foi.

Parecia não haver qualquer vantagem em ir atrás dela.

Curiosa, Nancy examinou as fitas, de uma marca ordinária, que podiam ser compradas por um dólar ou menos em qualquer loja. Nenhuma das fitas tinha rótulo e apenas estavam escritos a lápis, nos diversos lados, os números 1, 2, 3 e 4. Quando chegasse em casa naquela noite, pensou Nancy, iria tocá-las, na esperança de que contivessem algo que valesse a pena. Naquele momento, sentia-se desanimada e desapontada, por não ter conseguido arrancar qualquer informação concreta de Yvette.

Nancy acabou de tomar a cerveja, pagou e foi embora. Meia hora depois, estava na redação do Examiner, absorvida em outro trabalho.

Ao dizer para Nancy Molineaux que não tinha mais medo, Yvette estava sendo sincera. No dia anterior, ela tomara a decisão que a aliviara de qualquer preocupação com problemas imediatos, libertando-a de todas as dúvidas, angústia e sofrimento, e acabando com o medo que há meses a dominava de ser presa e passar o resto da vida na cadeia.

A decisão tomada no dia anterior era simples: assim que entregasse as fitas gravadas àquela preta que trabalhava para um jornal e saberia o que fazer com elas, Yvette iria matar-se. Ao deixar a casa da Rua Crocker naquela manhã, pela última vez, Yvette levava consigo o meio de acabar com a própria vida.

E agora ela já entregara as gravações, que fizera cuidadosa e pacientemente e que incriminavam Georgos e Davey Birdsong, revelando o que tinham feito e o que planejavam, indicando o cenário da destruição e da morte naquela noite - ou melhor, às três horas da madrugada - que seria o Hotel Cristopher Columbus. Georgos não imaginara que ela soubesse de alguma coisa, mas Yvette sabia desde o início.

Afastando-se do bar, agora que já fizera o que precisava, Yvette sentia-se em paz.

Finalmente em paz.

Há muito tempo que não sabia o que era isso. Certamente jamais tivera qualquer paz com Georgos, embora no início a emoção de ser a mulher dele, de escutar sua conversa tão instruída e partilhar as coisas que ele fazia, fizessem com que tudo o mais não tivesse qualquer importância. Só mais tarde, muito mais tarde, quando já não havia mais jeito, é que ela começara a se perguntar se Georgos não estaria doente, se toda sua esperteza e as coisas que aprendera na universidade não teriam sido... como era mesmo a palavra?... pervertidas.

Agora Yvette estava absolutamente convencida de que era verdade, que Georgos estava doente, talvez doido.

E, no entanto, lembrou a si mesma, ainda gostava de Georgos; mesmo agora, depois do que acabara de fazer. O que quer que pudesse acontecer a Georgos, ela esperava que não o fizessem sofrer demais, embora soubesse que isso poderia acontecer, depois que a negra tocasse as gravações e revelasse a alguém, provavelmente à polícia, o que continham.

Por outro lado, Yvette não se importava absolutamente com o que pudesse acontecer a Davey Birdsong. Não gostava dele, jamais gostara. Era mesquinho e implacável, não demonstrava a mesma gentileza que Georgos de vez em quando exibia, apesar de ser um revolucionário e não dever fazê-lo. Birdsong podia ser morto antes daquele dia acabar ou apodrecer na cadeia pelo resto da vida que ela não se importaria; ao contrário, torcia até para que uma das duas coisas acontecesse. Yvette culpava Birdsong por muitas das cenas terríveis que haviam ocorrido entre ela e Georgos. O plano para o Hotel Christopher Columbus fora ideia de Birdsong, uma das coisas que estavam nas fitas.

Subitamente, Yvette compreendeu que jamais saberia o que iria acontecer a Birdsong ou a Georgos, pois já estaria morta antes.

Oh, Deus! Tinha apenas 22 anos! Mal começara a vida, não queria morrer. Mas também não queria passar o resto da vida na cadeia. Até mesmo morrer era melhor do que isso.

Yvette continuou a andar. Sabia para onde estava indo e levava meia hora para chegar. Fora outra coisa que ela decidira no dia anterior.

Menos de quatro meses antes, uma semana depois da noite em Millfield, quando Georgos havia matado os dois guardas, Yvette compreendera a encrenca em que se metera. Homicídio. Era tão culpada quanto Georgos.

A princípio, não acreditara quando o próprio Georgos lhe contara. Ele estava simplesmente tentando assustá-la, pensara Yvette, ao advertila na volta de Millfield: "Está metida nisso tanto quanto eu! Esteve lá, participou de tudo, é tão culpada pela morte daqueles porcos como se tivesse enfiado a faca ou disparado o revólver. Por isso, o que quer que me possa acontecer, também acontecerá com você. "

Alguns dias depois, no entanto, Yvette lera num jornal a reportagem sobre três homens acusados de homicídio em primeiro grau na Califórnia. Os três haviam arrombado um prédio juntos, e o chefe alvejara e matara o vigia noturno. Embora os outros dois estivessem desarmados e não participassem ativamente do assassinato, todos os três haviam sido considerados culpados e condenados à mesma pena: prisão perpétua, sem possibilidade de livramento condicional. Fora nessa ocasião que Yvette compreendera que Georgos estava dizendo a verdade; a partir desse momento, seu desespero fora-se tornando cada vez maior.

E crescera com base na certeza de que não havia possibilidade de retornar no tempo, não havia jeito de escapar ao que se tornara. Fora o mais difícil de aceitar, mesmo sabendo que não havia alternativa.

Algumas noites, deitada ao lado de Georgos, acordada, na escuridão daquela horrível casa da Rua Crocker, Yvette fantasiava que poderia fazer o tempo voltar e se encontrar novamente na fazenda do Kansas em que nascera e passara a infância. Em comparação com o aqui e agora, aqueles tempos pareciam felizes e despreocupados.

que não era verdade, é claro.

A fazenda era uma propriedade de 20 acres, pedregosa, da qual o pai de Yvette, um homem amargo, sempre irritado, beligerante, mal conseguia arrancar o suficiente para sustentar a família de seis pessoas, muito menos pagar as prestações da hipoteca. Jamais fora um lar de cordialidade e amor. As brigas violentas entre os pais eram a norma que os filhos haviam aprendido a imitar. A mãe, uma mulher que vivia queixando-se de tudo, frequentemente dizia a Yvette, a caçula, que não fora desejada e um aborto teria sido preferível.

Seguindo o exemplo de dois irmãos e uma irmã mais velhos, Yvette saíra de casa para sempre assim que pudera e nunca mais voltara. Não tinha a menor ideia de onde andavam os membros de sua família, se os pais ainda estavam vivos; e disse a si mesma que não se importava. Mas perguntou-se se os pais ou os irmãos iriam tomar conhecimento de sua morte e se isso teria alguma importância para eles.

É claro, pensou Yvette, que seria fácil atribuir a culpa a esses primeiros anos de sua vida pelo que lhe acontecera desde então; mas isso não seria verdadeiro nem justo. Chegando à Califórnia e apesar de não ter a instrução mínima exigida por lei, arrumara um emprego de vendedora numa loja de departamentos. Trabalhava na seção de roupas para crianças e gostava do que fazia. Ajudava a escolher roupas para crianças e, na ocasião, pensava que gostaria de ter filhos algum dia, embora não fosse tratá-los da mesma maneira como fora tratada em casa.

O que acontecera que a lançara na estrada que iria trilhar com Georgos fora o convite de uma colega para irem a reuniões políticas de extrema esquerda. Uma coisa levara a outra, ela conhecera Georgos e... Oh, Deus, de que adiantava repassar tudo outra vez?

Yvette sabia perfeitamente que, sob alguns aspectos, não era muito esperta. Sempre tivera dificuldades em entender as coisas; na pequena escola rural que frequentara até os 16 anos, os professores lhe haviam dito que era muito burra. Fora provavelmente por isso que Yvette não tivera a menor ideia daquilo em que se estava metendo quando Georgos a persuadira a largar o emprego e cair na clandestinidade em sua companhia, para formar os Amigos da Liberdade. Na ocasião, parecera simplesmente algo divertido, uma aventura, não o pior erro de sua vida, conforme pudera constatar depois.

A compreensão de que ela, assim como Georgos, Wayde, Ute e Felix, haviam-se tornado criminosos caçados só fora surgindo gradativamente. E quando finalmente apreendera totalmente a noção, ficara apavorada. O que lhe fariam se a apanhassem? Yvette pensava em Patty Hearst, que sofrera terrivelmente, mesmo sendo apenas uma vítima. Não seria muito pior para Yvette, que não era uma vítima?

(Yvette recordava-se perfeitamente como Georgos e os outros três revolucionários haviam rido do julgamento de Patty Hearst, rindo da maneira como o sistema estava empenhado num esforço virtuoso para crucificar uma de seus próprios membros, só para provar que podia fazê-lo. É claro, como dissera Georgos depois, que Patty Hearst mereceria mais simpatia e um tratamento mais justo se fosse pobre ou negra como Angela Davis. O infortúnio de Patty Hearst fora o fato de seu pai ser um homem rico. O que era irónico. Yvette ainda podia ver o pequeno grupo assistindo a televisão, rindo e comentando sempre que transmitiam notícias sobre o julgamento).

Mas, agora, o medo por ter também cometido crimes pairava sobre Yvette, um medo que se expandira como câncer até que, ao final, ocupava todas as horas em que estava desperta.

E mais recentemente, Yvette descobrira que Georgos não mais confiava nela.

Surpreendera-o fitando-a de maneira estranha. Georgos já não falava tanto quanto antes. E se mostrara reservado sobre o novo trabalho que estava fazendo. Yvette sentira que, o que quer que pudesse acontecer, seus dias como mulher de Georgos estavam chegando ao fim.

Fora nessa ocasião, sem realmente saber por que, que Yvette começara a escutar as conversas, através de gravações. Não tinha sido difícil. Havia equipamento disponível e Georgos lhe ensinara como usálo. com um microfone escondido e operando o gravador em outro aposento, ela gravara conversas entre Birdsong e Georgos. Tocando posteriormente o que gravava, descobrira tudo sobre as bombas escondidas em extintores de incêndio que haviam sido colocadas no Hotel Christopher Columbus.

As conversas Georgos-Birdsong estavanVnas fitas cassetes que entregara à repórter negra. Havia também um relato longo e um tanto desconexo de tudo, desde o início, feito pela própria Yvette.

Por que ela fizera isso?

Mesmo agora, Yvette não sabia direito. Não era uma questão de consciência e não havia sentido em querer enganar-se com isso. Também não era por causa das pessoas que estavam no hotel; Yvette estava distante demais, fora muito longe para se importar. Talvez fosse para salvar Georgos, salvar sua alma (se é que ele tinha uma alma, se é que algum deles tinha) das coisas terríveis que ele tencionava fazer.

A mente de Yvette estava começando a ficar cansada. Era o que sempre acontecia quando pensava demais.

E ela não queria morrer! Mas sabia que tinha de morrer.

Yvette olhou ao redor. Continuara a andar, sem perceber onde estava e agora descobrira que avançara depressa demais e fora além do que imaginava. Seu destino, que já podia avistar, estava agora bem perto.

Era um pequeno morro, coberto de relva, erguendo-se acima da cidade e preservado como um local público. O nome extra-oficial era Colina Solitária, dos mais apropriados, já que poucas pessoas iam ali. Fora justamente por isso que Yvette o escolhera. Os 200 metros finais, além das últimas ruas e casas, eram em ladeira, um caminho estreito. Yvette subiu lentamente. O topo que ela temia alcançar, chegou depressa demais.

Antes, o dia estava claro; agora, tornara-se nublado, um vento frio soprava no alto do morro. Yvette estremeceu. A distância, além da cidade, podia avistar o mar, cinzento e desolado.

Yvette sentou-se na relva e abriu a bolsa, pela segunda vez. A primeira fora no bar, quando tirara as fitas cassetes.

Tirou da bolsa um artefato que pegara vários dias antes na oficina de Georgos e escondera até aquela manhã. Era um torpedo bangalore, simples mas eficaz, uma banana de dinamite dentro de um pedaço de cano. O cano estava fechado nas duas extremidades, mas numa delas havia um pequeno buraco, para permitir a passagem do detonador. Yvette inserira o detonador cuidadosamente, algo que Georgos também lhe ensinara. Ligara ao detonador uma espoleta curta, que agora saía pela extremidade do cano. Era uma espoleta de cinco segundos. O tempo suficiente.

Tornando a enfiar a mão na bolsa, Yvette pegou um isqueiro pequeno. As mãos estavam tremendo.

Foi difícil acender o isqueiro no vento. Ela pôs a bomba no chão e com uma das mãos protegeu a chama do isqueiro, conseguindo finalmente acendê-lo.

Pegou novamente a bomba, com alguma dificuldade, porque estava tremendo ainda mais; mas conseguiu encostar a ponta da espoleta na chama do isqueiro. Yvette largou o isqueiro e apertou a bomba contra o peito. Fechando os olhos, ficou rezando para que não fosse...

O segundo dia da convenção do Instituto Nacional de Eletricidade estava chegando ao fim.

Todas as sessões oficiais do dia já haviam terminado. As salas de reuniões estavam desertas. Inúmeros delegados que tinham vindo com suas esposas, uns poucos com a família, encontravam-se em seus quartos e suítes. Alguns espíritos mais animados ainda estavam festejando, a maioria já estava dormindo.

Alguns dos delegados mais jovens e um punhado de foliões mais velhos estavam espalhados pela cidade, em bares, restaurantes, discotecas. Mas mesmo esses já estavam começando a voltar ao Christopher Columbus. E quando os lugares noturnos fechassem, às duas horas da madrugada, os demais também voltariam.

- Boa noite, meus queridos. - Nim beijou Leah e Benjy, e depois apagou a luz do segundo quarto da suíte, que os filhos estavam partilhando.

Leah, quase dormindo, murmurou algo inaudível. Benjy, que estava mais desperto, apesar de já passar da meia-noite, disse:

- Viver num hotel é realmente sensacional, Papai.

- Mas fica muito caro depois de algum tempo... especialmente quando alguém chamado Benjamin Goldman se põe a assinar contas de serviços especiais para o quarto.

Benjy riu.

- Gosto de fazer isso.

Nim deixara Benjy assinar a conta do café da manhã e o mesmo acontecera naquela noite, quando os filhos haviam jantado na suíte, enquanto ele e Ruth compareciam à recepção oficial do Instituto. Posteriormente, toda a família deixara o hotel para ir ao cinema; tinham acabado de voltar.

- Vá dormir agora, Benjy, ou seu braço de assinar não estará em boas condições amanhã.

Na sala de estar, Ruth, que ouvira a conversa através da porta aberta do quarto, sorriu quando Nim voltou.

- Talvez eu já tenha comentado antes, mas sabia que seus filhos o adoram?

- E isso não acontece com todo mundo?

- Bem... - Ruth fez uma pausa, assumindo uma expressão pensativa. - Já que falou nisso, pode haver umas poucas exceções. Como Ray Paulsen.

Nim soltou uma gargalhada.

- Você devia ter visto a cara de Ray quando ele voltou para a convenção junto com Eric Humphrey, pensando que o presidente me iria repreender pelo que falei esta manhã. Mas Eric fez justamente o inverso.

- O que ele disse?

- Falou que havia recebido tantos elogios referentes ao meu discurso que não podia ficar com a minoria. E deu-me os parabéns.

- Se Eric chegou a esse ponto, não acha que poderá haver agora uma mudança na política da companhia... para uma franqueza maior, como você sempre desejou?

Nim mexeu a cabeça.

- Não sei. A facção do não-vamos-balançar-o-barco, liderada por Ray, ainda é muito forte. Além do mais, somente umas poucas pessoas em nossa própria organização podem compreender que uma crise futura de energia elétrica é inevitável. - Ele se espreguiçou, bocejando. - Mas chega de preocupações por esta noite!

- Já é de manhã - corrigiu-o Ruth. - Quase uma hora da madrugada. Ontem foi um bom dia para você e fiquei satisfeita com a cobertura favorável da imprensa.

Ruth apontou para uma edição vespertina do Califórnia Examiner, ao seu lado. Nim já tinha lido, algumas horas antes, a notícia sobre seu discurso.

- Foi uma surpresa e tanto para mim, Ruth. Não consigo entender aquela tal de Molineaux. Estava certo de que iria novamente me meter uma faca afiada e torcer para ferir mais.

- Será que, a esta altura, ainda não descobriu que nós, mulheres, somos imprevisíveis? - Ruth fez uma pausa, antes de acrescentar, maliciosamente: - Eu imaginava que toda a sua pesquisa lhe tivesse ensinado pelo menos isso.

- Talvez eu tenha esquecido. E espero que tenha percebido que ultimamente reduzi consideravelmente o campo de pesquisa. - Nim inclinou-se e beijou-a de leve no pescoço. Depois, sentou-se diante dela e perguntou: - Como está-se sentindo?

- Inteiramente normal, na maior parte do tempo. Mas me canso com facilidade, em comparação com a energia que tinha antigamente.

- Há uma coisa que estou precisando conversar com você. - Nim descreveu sua conversa com Leah, e a convicção de que as crianças deveriam ser informadas sobre a doença de Ruth, para não serem apanhadas desprevenidas no caso de uma súbita mudança para pior. - Espero que isso jamais aconteça, Ruth, mas acho que devemos estar preparados para tudo.

- Também estive pensando nisso, Nim. E pode deixar que resolvo tudo. Nos próximos dias, escolherei um momento propicio e direi tudo às crianças.

Nim já deveria ter imaginado. Ruth, com seu bom senso, sua capacidade em enfrentar os problemas, faria sempre o que fosse melhor para a família.

- Obrigado.

Continuaram a conversar, tranquilamente, desfrutando a companhia um do outro, até que Nim finalmente pegou as mãos de Ruth e disse:

- Está cansada e eu também. Vamos deitar.

Foram para o quarto de mãos dadas. Pouco antes de apagar a luz, Nim verificou a hora: 1h30min da madrugada.

Dormiram quase que imediatamente, abraçados.

Acerca de meio quilómetro do hotel, Georgos Winslow Archambault estava sentado sozinho na pickup vermelha do "Serviço de Proteção Contra Incêndio". Mal conseguia esperar pelas três horas da madrugada, quando começariam as explosões. O excitamento de Georgos fervia como um caldeirão, atiçando-o sexualmente, a tal ponto que tivera de se masturbar poucos minutos antes.

Era quase inacreditável como tudo correra bem, sem qualquer problema. A partir do momento em que a polícia abrira um caminho para que a pickup dos Amigos da Liberdade alcançasse a entrada de serviço do hotel - o que era uma tremenda ironia! - somente duas vezes os combatentes da liberdade haviam sido detidos, enquanto se deslocavam pelo hotel. Ute fora interrogado rapidamente por um agente de segurança à paisana, Georgos por um assistente da gerência com quem se encontrara num elevador de serviço. Os incidentes haviam proporcionado momentos de nervosismo a Ute e Georgos, mas as ordens de serviço foram rapidamente exibidas e examinadas superficialmente, acabando com as perguntas. Não fora sequer necessário apresentar a carta em papel timbrado do hotel.

O pensamento geral, bastante previsível, parecia ser o seguinte: quem iria querer impedir que um extintor de incêndio fosse posto em seu lugar? Os poucos que podiam pensar a respeito iriam certamente supor que alguém mais ordenara ou aprovara as precauções extra contra incêndios.

Agora, restava apenas a espera, o mais difícil de tudo. Georgos estacionara deliberadamente a alguma distância do hotel, em parte para evitar a possibilidade de ser notado, em parte para poder escapar rapidamente, em caso de necessidade. Chegaria mais perto, a pé, para ter uma vista melhor, pouco antes da festa começar.

Assim que o hotel estivesse em chamas, com as pessoas encurraladas lá dentro, Georgos tencionava telefonar para uma emissora de rádio, lendo o comunicado que já escrevera. Continha suas novas exigências, as antigas e mais algumas. Suas ordens seriam imediatamente obedecidas, agora que a estrutura fascista do poder finalmente compreenderia a força e os recursos dos Amigos da Liberdade. Mentalmente, Georgos pôde ver as pessoas que detinham alguma autoridade rastejando a sua frente...

Somente um pequeno problema ainda o perturbava: o súbito desaparecimento de Yvette. Sentia-se apreensivo, consciente de que fora culpado da fraqueza em relação a sua mulher. Deveria tê-la eliminado semanas antes. Quando ela voltasse, como Georgos tinha certeza de que aconteceria, iria liquidá-la rapidamente. Apesar de tudo, sentia-se satisfeito por não ter revelado a Yvette os planos para aquela última e sensacional batalha.

Ah, que dia para ficar na história!

Pelo que devia ser a vigésima vez desde que ali chegara, Georgos verificou a hora: 1h40min da madrugada. Ainda faltavam uma hora e 20 minutos.

Apenas como precaução, embora não acreditasse que fosse realmente necessário, Davey Birdsong providenciara um álibi.

Estava fora da cidade, a mais de 30 quilómetros do Hotel Christopher Columbus, e tencionava manter-se a essa distância até que tudo terminasse.

Várias horas antes, fizera uma conferência (paga, é claro) para um grupo de estudantes que se intitulava "O Ideal Socialista". A conferência se prolongara por uma hora e os debates posteriores haviam consumido mais de 90 minutos. Agora, estava com cerca de uma dúzia de membros do grupo, todos tediosos e cansativos, reunidos na casa de um deles, conversando sobre política internacional, de que tinham um conhecimento apenas marginal. Além de falarem, estavam todos tomando muita cerveja e café. Era evidente, pensou Birdsong, que a reunião se prolongaria até o amanhecer. Pois que assim acontecesse! Ele contribuía com algum comentário ocasionalmente, para garantir que todos notassem sua presença.

Davey Birdsong também tinha uma declaração datilografada, que distribuiria à imprensa. Havia uma cópia em seu bolso e começava assim:

A organização popular de consumidores, força & luz para o povo, reafirma a sua posição contra toda e qualquer violência.

"Deploramos a violência em tais circunstâncias, especialmente um acontecimento trágico como as explosões no Hotel Christopher Columbus ontem à noite", declarou Davey Birdsong, o líder da & Ip. "A nossa organização continuará em seus esforços pacíficos para... "

Birdsong sorriu ao pensar no que estava prestes a acontecer e furtivamente verificou a hora: 1h45min da madrugada.

Nancy Molineaux ainda estava na festa, bastante agradável, mas já se preparava para ir embora. Por um lado, porque estava cansada; fora um daqueles dias movimentados, em que mal tivera tempo para respirar. Por outro, porque sentia a boca doer intensamente. O maldito dentista abrira uma cárie como se estivesse escavando um novo buraco de metro; e quando Nancy reclamara, ele se limitara a rir.

Apesar da dor, Nancy tinha certeza de que dormiria muito bem naquela noite e pensava ansiosamente no momento em que iria deitar-se nos seus lençóis de seda.

Depois de despedir-se dos anfitriões, que moravam num apartamento de cobertura não muito longe do centro da cidade, Nancy desceu no elevador até a entrada do prédio, onde o porteiro já estava esperando com seu carro. Depois de dar-lhe uma gorjeta, ela verificou a hora: 1,15 da madrugada. O prédio de apartamentos em que ela morava ficava a menos de 10 minutos de carro. com um pouco de sorte, poderia estar na cama alguns minutos depois das duas horas.

Subitamente, recordou-se de que tinha de escutar naquela noite as fitas cassetes que lhe haviam sido entregues por Yvette. Talvez não; afinal já estava trabalhando naquela história há tanto tempo que mais um dia não faria a menor diferença. Talvez fosse melhor se levantar cedo na manhã seguinte e escutar as gravações antes de sair para o Examiner.

Nancy Molineaux gostava das boas coisas da vida e isso se refletia em seu apartamento, num prédio moderno e exclusivo.

O tapete bege de Stark na sala de estar combinava com as venezianas verticais da janela. Uma mesinha Pace, de vidro fume, cromados e carvalho, estava diante de um confortável sofá de camurça de Clarence House. O Acrílico Calder era original, assim como o óleo de Roy Lichstenstein no quarto de Nancy.

As portas de vidro da sala de jantar se abriam para um pátio, com um pequeno jardim e uma vista panorâmica do porto.

Se fosse necessário, Nancy poderia morar em outro lugar e sustentar-se de maneira apropriada com o que ganhava; mas há muito que ela aceitava tranquilamente o dinheiro que o pai punha a sua disposição. O dinheiro estava disponível, fora ganhado honestamente; assim, o que havia de errado de usá-lo? Nada.

Contudo, Nancy tomava a precaução de não ostentar demais junto a seus colegas de trabalho. Era por isso que jamais os convidava a irem a seu apartamento. Enquanto se preparava para deitar, Nancy tirou da bolsa as fitas cassetes e deixou-as perto do equipamento de som, a fim de ouvi-las pela manhã.

Ao entrar no apartamento, alguns minutos antes, ligara o rádio FM, que mantinha permanentemente sintonizado numa emissora quetransmitia principalmente música. Mal percebeu, quando estava no banheiro escovando os dentes, que a música havia sido interrompida para a transmissão de um noticiário:

"... em Washington, aumentando ainda mais a sombria perspectiva de uma iminente crise de petróleo... o Secretário de Estado acaba de chegar à Arábia Saudita para retomar as negociações... o Senado aprovou ontem a elevação do teto da dívida nacional... o Kremlin novamente anunciou atos de espionagem de jornalistas ocidentais... Na cidade, surgiram novas acusações de corrupção na administração municipal... as passagens de ônibus deverão aumentar, em decorrência dos novos acordos salariais... a polícia faz um apelo para a identificação do corpo de uma jovem, aparentemente suicida, encontrado esta tarde na Colina Solitária... fragmentos de bomba no local... embora o corpo estivesse consideravelmente destruído pela explosão, constatou-se que faltavam dois dedos numa das mãos da mulher, aparentemente de um ferimento anterior... "

Nancy largou bruscamente a escova.

Será que realmente ouvira o que pensava ter ouvido?

Pensou em telefonar para a emissora, a fim de pedir uma confirmação da notícia. Mas logo chegou à conclusão de que não era necessário. Absorvera o suficiente, embora não tivesse prestando atenção, para saber que o corpo da jovem de que estavam falando só podia ser o de Yvette. Santo Deus!, pensou Nancy. E ela deixara a moça ir embora, não se preocupara em segui-la! Não poderia ter ajudado? O que fora mesmo que Yvette dissera? "Não tenho mais medo." Agora, era evidente o motivo que a levara a dizer isso.

E ela ainda não ouvira as gravações!

Subitamente, Nancy estava alerta, tendo desaparecido todo o cansaço anterior.

Meteu-se num quimono, acendeu a luz da sala de estar e colocou a primeira fita cassete no aparelho. Houve uma pausa, antes que agravação começasse a tocar, aproveitada por Nancy para acomodar-se numa poltrona, um bloco nos joelhos, o lápis na mão. E logo depois a voz de Yvette, indecisa, hesitante, começou a sair pelos alto-falantes.

Ao ouvir as primeiras palavras, Nancy empertigou-se abruptamente, totalmente concentrada.

"Isto é sobre os Amigos da Liberdade, todas aquelas bombas e assassinatos. Onde os Amigos da Liberdade se escondem é na Rua Crocker, 117. O chefe é Georgos Archambault, que tem um nome no meio, Winslow, que ele gosta muito de usar. Sou a mulher de Georgos. E também estou metida em tudo. Assim como Davey Birdsong, que arruma dinheiro para comprar os explosivos e tudo o mais. "

A boca de Nancy estava entreaberta. Ela sentia calafrios a lhe percorrerem o corpo. O lápis disparava sobre o papel.

Havia mais declarações de Yvette na gravação, depois uma conversa entre duas vozes masculinas, uma presumivelmente do tal Georgos, a outra inconfundivelmente de Davey Birdsong.

O primeiro lado da primeira fita terminou. O aparelho de Nancy dispunha de um dispositivo automático para virar a fita. O segundo lado começou quase que imediatamente.

Novas declarações de Yvette. Ela descrevia a noite em Millfield. A explosão da subestação. A morte dos dois guardas.

O excitamento de Nancy era cada vez maior. Ela mal podia acreditar no que tinha em suas mãos: o maior furo jornalístico de sua carreira. E, naquele momento, era todo seu. Ela continuou a escutar, sempre fazendo anotações.

Novamente Georgos e Birdsong. Estavam'discutindo alguma coisa... acertando providências... Hotel Christopher Columbus... bombas disfarçadas como extintores de incêndio... uma pickup vermelha: Serviço de Proteção Contra Incêndio... segunda noite da convenção do Instituto Nacional de Eletricidade... três horas da madrugada...

Nancy ficou toda arrepiada. Fez rapidamente um cálculo mental, olhou para o relógio e correu para o telefone.

A reportagem deixara de ter prioridade.

A mão dela estava tremendo quando discou 911, o número de emergência da polícia.

O tenente de plantão no centro de operações da polícia compreendeu que precisava tomar uma decisão rápida.

Poucos momentos antes, o telefonista do centro, atendendo o chamado de Nancy Molineaux e anotando a informação, avisara ao tenente para entrar na linha. Ele assim o fizera. Depois de escutar por um instante, interrogara a mulher, que se identificara pelo nome e como repórffer do Califórnia Examiner. Ela explicara como obtivera as fitas gravadas que lhe haviam revelado a informação, que estava agora transmitindo, em caráter de urgência.

- Já a conheço de nome, Srta. Molineaux - disse o tenente. Está telefonando do jornal?

- Não. Estou em meu apartamento.

- Pode dar-me o endereço? Nancy deu a informação.

- E está relacionada no catálogo telefónico?

- Estou, sim, sob o nome "Molineaux, N".

- Desligue agora, por favor. vou telefonar de volta imediatamente.

O telefonista da polícia, um dos 21 que recebiam os chamados de emergência, já localizara o telefone no catálogo. Anotou-o num pedaço de papel e entregou ao tenente, que prontamente discou e ficou esperando. Nancy atendeu ao primeiro toque da campainha.

- Acabou de ligar para o telefone de emergência da polícia, Srta. Molineaux?

- Exatamente.

- Obrigado. Precisávamos confirmar o telefonema. Onde poderemos encontrá-la mais tarde, se houver necessidade?

- No Hotel Christopher Columbus. Onde mais poderia ser? Nancy desligou. O tenente da polícia pensou por um momento. Já verificara que o telefonema era genuíno e não algum trote. Mas será que a informação era o suficiente para justificar a evacuação do maior hotel da cidade, com o caos resultante, em plena madrugada?

Normalmente, no caso de um aviso de bomba - e a polícia recebia centenas todos os anos - a tática era enviar uma patrulha para investigar, composta por um sargento e dois ou três guardas. Se por acaso encontrassem algo suspeito ou achassem que a informação era procedente, telefonavam para o centro de operações e só então as medidas de emergência começavam a ser tomadas. (Neste estágio, jamais se usava a comunicação pelo rádio por dois motivos. Primeiro: se havia realmente uma bomba, podia ser detonada por um sinal de rádio. Segundo: como o rádio da polícia era ouvido por todo mundo, era preciso evitar que a imprensa e curiosos atravancassem o local.)

Mas se a informação que acabara de ser recebida era genuína, se o perigo era real, não haveria tempo suficiente para os métodos normais.

Durante o dia, com as forças de emergência da polícia e do corpo de bombeiros trabalhando em conjunto, um hotel grande como o Christopher Columbus poderia ser evacuado em meia hora. À noite, no entanto, levaria mais tempo, em torno de uma hora, se tudo corresse bem e depressa, se contassem com um pouco de sorte. A evacuação noturna sempre apresentava problemas difíceis: havia os que tinham um sono profundo, os bêbados, cépticos, os amantes ilícitos que não queriam ser descobertos, a necessidade de verificar quarto por quarto, usando-se chaves mestras.

Mas não havia uma hora disponível. O tenente de plantão olhou para o grande relógio digital na parede: 2h21min da madrugada. A jornalista dissera que uma bomba ou mesmo bombas poderiam explodir às três horas. Verdade? Mentira? O tenente gostaria que houvesse algum superior à mão, para que tomasse a decisão em seu lugar. Mas nem para avisar algum havia tempo.

Ele acabou tomando a única decisão possível e ordenou:

- Vamos iniciar o esquema de evacuação de emergência do Hotel Christopher Columbus. Há uma ameaça de explosões de bombas.

Meia dúzia de telefones do centro de operações entraram em ação imediatamente. Avisos de alarma foram dados à delegacia policial central e ao quartel-general dos bombeiros; todos os carros dos bombeiros e da polícia disponiveis deveriam seguir prontamente para o local. Em seguida, foram avisados o chefe de polícia no plantão noturno e o subcomandante dos bombeiros, que assumiriam juntos o comando das operações de evacuação do hotel. Ao mesmo tempo, foi avisada a unidade especial da polícia, que incluía o esquadrão de bombas; deveriam seguir rapidamente as outras unidades. Depois, foi dado um telefonema para um quartel do Exército, que contribuiria com especialistas no desarmamento de bombas. As polícias dos municípios vizinhos também receberiam pedidos de ajuda, para que mandassem seus esquadrões de bombas. Foram convocadas ambulâncias, que seriam quase que certamente necessárias. Continuando-se na lista do esquema de emergência, autoridades policiais, do corpo de bombeiros e funcionários municipais foram também alertados, quase todos arrancados do sono em suas casas.

O tenente de plantão no centro de operações entrou em contato pelo telefone com o gerente noturno do Christopher Columbus:

- Recebemos um aviso, que julgamos ser autêntico, de que foram colocadas bombas em seu hotel. Recomendamos a evacuação imediata. Carros da polícia e dos bombeiros já estão a caminho.

A palavra "recomendamos" foi usada deliberadamente. Tecnicamente, o tenente não tinha autoridade para ordenar a evacuação; tal decisão só poderia partir da direção do hotel. Felizmente, o gerente noturno do hotel não era um tolo nem tinha a mania de argumentar e prontamente declarou:

- vou acionar o sistema de alarma do hotel. E nossos funcionários farão tudo o que determinar.

Como se fosse uma máquina de guerra subitamente acionada, o efeito de comando rapidamente espalhou-se, cada componente adquirindo um impulso crescente, cada um utilizando suas técnicas específicas para tornar-se parte de um esforço total. A ação já se afastara do centro de operações, que seria agora uma base de comunicações. Enquanto isso, permaneciam ignoradas as respostas a duas questões vitais. Primeira: As explosões das bombas iriam realmente ocorrer às três horas da madrugada? Segunda: Pressupondo-se que isso fosse mesmo acontecer, o hotel poderia ser totalmente evacuado no pouco tempo que restava, apenas 36 minutos?

O suspense seria de curta duração. As respostas às duas questões seriam em breve conhecidas.

Já fizera o que podia pela humanidade, decidiu Nancy Molineaux. Agora, podia voltar a ser uma repórter.

Ainda estava em seu apartamento, embora aprontando-se para sair. Num intervalo enquanto se vestia apressadamente, Nancy telefonou para o editor noturno do Examiner e informou-o rapidamente do que estava acontecendo. Enquanto ele formulava algumas perguntas, Nancy pôde sentir o excitamento que o dominava diante da perspectiva de uma grande notícia.

- Estou a caminho do hotel - informou Nancy. - E depois irei para o jornal a fim de escrever a reportagem.

Ela sabia, mesmo sem perguntar, que todos os fotógrafos disponíveis seriam imediatamente mandados para o local.

- Mais uma coisa que já ia esquecendo - acrescentou ela, ao telefone. - Tenho duas fitas cassetes gravadas. Tive que informar a polícia a respeito e eles certamente vão querer confiscá-las, como provas. Antes que isso aconteça, precisamos tirar cópias.

Combinaram que um mensageiro iria encontrar-se com Nancy no hotel e pegaria as fitas. Iria levá-las em seguida para a casa do editor de diversões do jornal, que era um maníaco por som e possuía um estúdio particular. As cópias e um aparelho de som portátil estariam na redação, à espera, quando Nancy chegasse para escrever a história.

Nancy já chegara à porta do apartamento, quase correndo, quando se lembrou de mais uma coisa. Voltando ao telefone, discou o número do Hotel Christopher Columbus, que já sabia de cor. Quando a telefonista atendeu, ela pediu:

- Ligue-me com o quarto de Nimrod Goldman.

No sonho de Nim, todo o sistema da GSP & L entrara numa crise desesperadora. Uma a uma, as usinas geradoras do sistema haviam entrado em colapso, até que só restava uma em funcionamento: La Mission N? 5, a Big Lil. Depois, exatamente como acontecera naquele dia do verão passado em que Walter Talbot morrera, o painel de La Mission N? 5, no Controle de Energia, começou a emitir sinais de alarma, luzes faiscando, uma campainha estridente soando. As luzes diminuíram, mas a campainha estridente persistiu, preenchendo todo o consciente de Nim, até que ele finalmente despertou e descobriu que o telefone na mesinha-de-cabeceira estava tocando. Ainda sonolento, ele atendeu.

- Goldman! É você, Goldman?

Ainda apenas parcialmente acordado, Nim murmurou:

- Sou eu mesmo...

- Aqui é Nancy Molineaux. Escute com atenção!

- Quem?

- Nancy Molineaux, seu idiota! A raiva prevaleceu sobre o sono.

- Molineaux, será que ainda não percebeu que ainda é madrugada

- Cale a boca e escute! Acorde logo de uma vez, Goldman! Você e sua família estão correndo perigo. Confie em mim...

Soerguendo-se num cotovelo, Nim disse:

- Eu não confiaria em você... - Parou de falar abruptamente, recordando o que Nancy escrevera no dia anterior.

- Pegue sua família e saia imediatamente do hotel! Agora! Não pare para nada! Vão explodir bombas aí!

Nim estava agora inteiramente desperto.

- Por acaso isso é uma piada de mau gosto? Porque se é...

- Não é nenhuma piada! - A voz de Nancy era suplicante. - Pelo amor de Deus, confie em mim! Aqueles filhos da mãe dos Amigos da Liberdade puseram no hotel várias bombas, disfarçadas como extintores de incêndio. Pegue sua mulher e seus filhos...

As palavras "Amigos da Liberdade" convenceram Nim. No instante seguinte, lembrou-se de que o hotel estava apinhado de convencionais.

- E os outros?

- O alarma já foi dado. Entre logo em ação!

- Certo!

- Verei você na frente do hotel.

Mas Nim não ouviu as últimas palavras de Nancy. Já tinha batido com o telefone e estava sacudindo Ruth vigorosamente.

Alguns minutos depois, com as crianças reclamando, sonolentas, aturdidas, ainda em roupas de dormir, Nim empurrou-as para fora da suíte. Ruth estava logo atrás dele. Nim seguiu para a escada de emergência, sabendo que era melhor ficar longe dos elevadores, pois podia haver uma interrupção no fornecimento de energia e as pessoas lá dentro ficariam presas. Ao iniciarem a longa descida dos 26 andares, ele pôde ouvir o barulho de sirenes lá fora, fracamente a princípio, depois tornando-se cada vez mais fortes.

Estavam três andares abaixo quando as campainhas de alarma de incêndio do hotel começaram a tocar, estridentemente.

Houve muitos atos de bravura e heroísmo naquela noite. Alguns passaram despercebidos, outros atraíram muita atenção.

A evacuação do hotel processou-se rapidamente e, de um modo geral, calmamente. Policiais e bombeiros percorreram rapidamente todos os andares do hotel, batendo nas portas, gritando, sufocando as perguntas com ordens, apressando as pessoas para as escadas, advertindo-as a não usarem os elevadores. Outros membros da força de emergência, ajudados por funcionários do hotel, usaram chaves mestras para verificar os quartos de onde não recebiam qualquer resposta. E durante todo o tempo, as campainhas de alarma contra incêndio continuavam a tocar, estridentemente.

Uns poucos hóspedes protestaram e discutiram, um punhado se mostrou beligerante, mas todos acabaram juntando-se ao êxodo geral, quando ameaçados de prisão. Poucos hóspedes do hotel, se é que algum, sabiam exatamente o que estava acontecendo; aceitavam a iminência do perigo e agiam rapidamente, vestindo o mínimo de roupas necessário e abandonando seus pertences nos quartos. Um homem, sonolento, obedeceu prontamente às ordens e chegou à porta da escada de emergência de seu andar antes de perceber que estava inteiramente nu. Um bombeiro sorridente permitiu-lhe voltar ao quarto para vestir uma calça e uma camisa.

A evacuação já estava sendo processada quando chegou o esquadrão de bombas da polícia, em três caminhões, as sirenes tocando, os pneus rangendo. Os homens se espalharam pelo hotel e, trabalhando rapidamente, mas com extremo cuidado, verificaram todos os extintores de incêndio que estavam à vista. Amarrando cordas nos que eram suspeitos, iam desenrolando-as à medida que se afastavam, até o mais distante possível. Depois de se certificarem de que não havia ninguém nas proximidades, os homens puxavam as cordas. com isso, viravam os extintores, um movimento suficiente para detonar qualquer armadilha. Contudo, não houve explosões. Cada extintor era então levado para fora por um homem do esquadrão de bombas. Era o maior de todos os riscos, mas tinha de ser assumido, por causa das circunstâncias especiais.

Da rua em frente ao hotel, as bombas eram levadas, por uma frota de caminhões reunidas às pressas, para um cais fora de uso nas proximidades, sendo lançadas na baía.

Pouco depois de o esquadrão de bombas da polícia entrar em ação, chegou também uma unidade especial do Exército, integrada por meia dúzia de oficiais sargentos, técnicos em bombas, que ajudaram a acelerar o processo de remoção.

Vinte minutos depois de ser dado o alarma, era evidente para os que estavam no comando das operações de evacuação que estava tudo correndo bem, muito mais rapidamente do que se esperava. Pareciam boas as possibilidades de a maioria dos hóspedes estar fora do hotel antes das três horas da madrugada.

A esta altura, todas as ruas que levavam ao Christopher Columbus já estavam apinhadas de veículos, dos bombeiros, da polícia, ambulâncias, as luzes no teto faiscando. Um imenso caminhão, do Serviço Municipal de Emergência, acabara de chegar, permitindo a instalação de um posto de comando no local. Dois caminhões de serviço da GSP & L também estavam no local, uma das equipes de prontidão para o caso de haver qualquer problema com o fornecimento de energia, a outra cortando o fornecimento de gás na rua principal.

Representantes dos jornais e de emissoras de rádio e de televisão estavam chegando em número cada vez maior, ansiosamente fazendo perguntas a quem quer que pudesse respondê-las. Duas emissoras de rádio locais estavam transmitindo diretamente do cenário dos acontecimentos. A notícia já era internacional: a AP e a UPI já a haviam transmitido para todo o país e para o exterior.

Entre os representantes da imprensa, Nancy Molineaux era o centro das atenções de um grupo integrado por diversos detetives da polícia, um agente especial do FBI e um jovem promotor-assistente. (O nome do promotor-assistente constava da lista de emergência do centro de operações da polícia.) Nancy respondeu a tantas perguntas quanto podia, mostrando-se evasiva em relação às duas fitas cassetes, que já haviam sido apanhadas por um mensageiro do jornal, conforme fora combinado. Depois de uma ameaça do promotor-assistente, Nancy prometeu que as fitas lhe seriam entregues dentro de duas horas aproximadamente. Um detetive, depois de discussões entre seus superiores e o promotorassistente, afastou-se do grupo, para transmitir duas ordens pelo telefone: dar uma batida na casa da Rua Crocker, 117, e prender Georgos Archambault e Davey Birdsong.

Enquanto isso, policiais e bombeiros continuavam a apressar a evacuação do hotel.

Inevitavelmente, à medida que o hotel se esvaziava, houve baixas. Uma mulher idosa tropeçou na escada de emergência de concreto e caiu, quebrando a bacia e o braço. Gemendo, foi removida de maca pela equipe de uma ambulância. O diretor de uma companhia de eletricidade da Nova Inglaterra sofreu um ataque cardíaco depois de descer 20 andares e morreu a caminho do hospital. Outra mulher caiu e sofreu uma concussão. Houve diversos outros feridos, com pequenos talhos e equimoses, decorrentes da pressa e do congestionamento nas escadas.

Mas parecia não haver pânico. Estranhos se ajudavam, não havia praticamente manifestações de grosseria e irritação. Alguns espíritos mais animados diziam piadas, ajudando os outros a dominar o medo.

Saindo do hotel, os evacuados eram conduzidos até uma rua transversal, a dois quarteirões, onde carros da polícia haviam sido estacionados para formar uma barricada. Felizmente, a noite era amena e ninguém parecia estar sofrendo com os trajes mais ou menos sumários. Depois de algum tempo, apareceu um caminhão da Cruz Vermelha e alguns voluntários começaram a distribuir café quente e a fazer tudo o que era possível para proporcionar algum conforto aos evacuados, enquanto esperavam.

Nim Goldman e sua família estavam entre os primeiros a chegar à área isolada pela polícia. A esta altura, Leah e Benjy já estavam totalmente despertos. Depois de certificar-se de que a mulher e os filhos estavam em segurança, Nim decidiu retornar ao hotel, apesar dos protestos de Ruth. Posteriormente, ele compreendeu que fora temerário ao extremo, mas na ocasião foi impelido pelo excitamento geral e pela recordação de dois fatos. Um deles era a referência de Nancy, ao telefone, de bombas disfarçadas como extintores de incêndio; outro a do jovem que no dia anterior colocara um extintor atrás de uma poltrona no saguão, enquanto Nim e Wally Talbot observavam. Nim queria certificar-se, com tantas pessoas ainda no hotel, se aquele extintor em particular já fora localizado.

A esta altura, já eram quase três horas da madrugada.

Apesar do fluxo de hóspedes nervosos saindo pela entrada principal do hotel, Nim conseguiu voltar ao saguão. Uma vez lá dentro, tentou deter um bombeiro que passava, mas o homem afastou-o, com um "agora não, companheiro", correndo pela escada acima, na direção do mezanino.

Parecia não haver qualquer autoridade que estivesse desocupada. Nim encaminhou-se para o local em que fora escondido o extintor.

- Sr. Goldman! Sr. Goldman!

O grito partia da direita. Nim virou-se e avistou um homenzinho, de terno, com um emblema de metal pregado no bolsinho do paletó, avançando rapidamente. Nim reconheceu Art Romeo, o assistente de aparência furtiva de Harry London no Departamento de Proteção à Propriedade. Nim percebeu que o emblema era de agente de segurança da GSP & L, mas parecia estar proporcionando alguma autoridade a Romeo.

Mais tarde, Nim iria descobrir que Art Romeo estava de visita no hotel, jogando pôquer com colegas de outra companhia quando soara o alarma. Prontamente pregara o emblema no peito e começara a ajudar na evacuação.

- Tem de sair daqui, Sr. Goldman!

- Não posso! Tenho que ajudar!

Rapidamente, Nim explicou tudo sobre o extintor de incêndio que -desconfiava ser uma bomba.

- E onde está, senhor?

- Ali!

Nim encaminhou-se para o lugar em que estivera sentado no dia anterior e puxou uma poltrona. O extintor vermelho ainda estava no local em que o deixara o rapaz de macacão. A voz de Art Romeo assumiu um tom de autoridade:

- Afaste-se! Saia daqui! Agora!

- Não! Tenho que...

O que aconteceu em seguida foi tão rápido que Nim teve dificuldades posteriormente em recordar a sequência exata dos acontecimentos. Ele ouviu Art Romeo gritar:

- Guardas! Aqui! - Subitamente, dois guardas musculosos estavam ao lado de Nim e Romeo lhes disse: - Esse homem se recusa a sair daqui! Levem-no para fora!

Sem questionar a ordem, os dois guardas agarraram Nim e começaram a empurrá-lo bruscamente na direção da porta principal. Nim conseguiu olhar para trás. Art Romeo pegara o extintor, aninhando-o nos braços, e os estava seguindo.

Ignorando os protestos de Nim, os guardas continuaram a arrastálo na direção da área de evacuação, a dois quarteirões do hotel. Só o largaram quando estavam a poucos metros de distância do cordão de isolamento. Um dos guardas disse:

- Se voltar, mister, vamos prendê-lo, levar para a delegacia e indiciar. Estamos fazendo isso para seu próprio bem.

Nesse instante, houve uma tremenda explosão, seguida pela cacofonia de vidro estilhaçado.

Nos dias subsequentes, com base em depoimentos de testemunhas e relatórios oficiais, foi possível determinar o que acontecera.

Usando a informação que Nancy Molineaux fornecera ao centro de operações da polícia, obtida das gravações e de suas anotações, o esquadrão de bombas da polícia sabia que devia procurar bombas de alto explosivo no andar térreo e mezanino e bombas incendiárias nos andares superiores. Haviam localizado - ou pelo menos era o que pensavam todas as bombas de alto explosivo, removendo-as com a ajuda do Exército. No dia seguinte, um porta-voz do esquadrão de bombas declarou:

- Tendo em vista as circunstâncias, nós e os homens do Exército corremos riscos que normalmente não iríamos assumir. Torcemos para que tivéssemos tempo de fazer o que era necessário e felizmente tivemos sorte. Se houvéssemos errado, que Deus nos ajudasse!

O esquadrão de bombas, no entanto, estava enganado ao pensar que localizara todas as bombas de alto explosivo. A que faltava era justamente a bomba que Nim indicara.

No momento em que Art Romeo corajosamente pegou a bomba, saindo do hotel e levando-a para o local onde os caminhões de remoção, estavam parando, todos os membros do esquadrão de bombas estavam nos andares superiores, trabalhando freneticamente para remover as bombas incendiárias.

Por isso, quando Art Romeo largou a bomba, não havia mais ninguém por perto. A explosão ocorreu segundos depois. Romeo morreu instantaneamente, o corpo despedaçado. Quase todas as janelas dos quarteirões ao redor e os vidros dos veículos próximos foram espatifados. Mas milagrosa e inacreditavelmente, ninguém mais ficou ferido.

Assim que se dissipou o troar da explosão, muitas mulheres gritaram e homens praguejaram.

A explosão assinalou também uma reviravolta psicológica. A partir daquele momento, ninguém mais contestou a necessidade para o êxodo de emergência. As conversas entre os hóspedes evacuados diminuíram consideràvelmente. Muitos, abandonando a ideia de voltar ao Christoplier Columbus, afastaram-se silenciosamente, à procura de um outro local onde passar o resto da noite.

No interior do hotel, porém, embora já não houvesse mais qualquer hóspede, a ação continuava.

De quase 20 bombas incendiárias que Georgos Archambault e os outros terroristas colocaram nos andares superiores, oito não foram localizadas e removidas a tempo; detonaram pouco depois de três horas da madrugada. Diversos incêndios começaram. Mais de uma hora se passou antes que estivesse tudo sob controle; a esta altura, os andares onde haviam irrompido os incêndios eram uma confusão total, tudo destruído e molhado. Ninguém tinha a menor dúvida de que, sem o alerta e a consequente evacuação, o número de mortos teria sido elevado.

Mesmo assim, dois guardas e três bombeiros morreram. Outros dois bombeiros ficaram gravemente feridos. Estavam todos nas proximidades das bombas incendiárias por ocasião das explosões.

Quando a madrugada dissipou a escuridão, o trabalho de rescaldo ainda continuava.

Providenciaram-se acomodações em outros lugares para a maioria dos hóspedes do Christopher Columbus. Mais tarde, naquele mesmo dia, muitos retornaram ao hotel para buscar seus pertences e iniciar uma desanimada viagem de volta para casa.

Por acordo unânime, que ninguém se deu ao trabalho de contestar, a convenção do Instituto Nacional de Eletricidade foi encerrada.

Nim levou Ruth, Leah e Benjy para casa, de táxi. Desejara agradecer a Nancy Molineaux pelo telefonema, mas decidira deixar isso para depois, ao vê-la cercada por um grupo grande, o centro das atenções, por algum motivo que ele desconhecia.

No momento em que Nim e sua família partiam, os rabecões se juntavam aos demais veículos que estavam no local.

Logo depois da explosão que matou Art Romeo, Georgos Archambault, chorando, saiu correndo na direção do lugar em que deixara estacionada apickup do "Serviço de Proteção Contra Incêndio".

Tudo saíra errado! Tudo!

Georgos não podia entender.

Cerca de 35 minutos antes, pouco depois das 2h25min da madrugada, ficara aturdido ao ouvir inúmeras sirenes se aproximando do local em que estava esperando, na pickup. Momentos depois, carros dos bombeiros e da polícia passaram por ele, obviamente a caminho do Christopher Columbus. À medida que os minutos foram-se passando, a atividade aumentou e mais veículos apareceram. A esta altura, Georgos já estava totalmente alarmado.

Quando faltavam 20 minutos para as três horas, ele não pudera mais esperar. Saíra da pickup, trancara-a e caminhara na direção do hotel, chegando o mais perto possível, antes de ser detido por uma barreira de carros da polícia.

Mas chegara perto o bastante para poder ver, consternado, os hóspedes saindo do hotel, muitos em trajes de dormir, a polícia e os bombeiros instando para que se apressassem.

Mas aquelas pessoas deveriam ficar lá dentro até que as bombas explodissem e o hotel estivesse em chamas! Então, seria tarde demais para saírem!

Georgos sentiu vontade de sacudir os braços e gritar "Voltem! Voltem!" Mas, desesperado, sabia que isso de nada adiantaria e só serviria para atrair a atenção dos guardas para ele.

Depois, enquanto observava, algumas das bombas que tão cuidadosamente plantara foram retiradas do hotel por homens que não tinham o direito de interferir, sendo levadas para longe em caminhões e impedindo o que Georgos tão meticulosamente planejara. E ele pensara: se tivesse colocado alguma armadilha nas bombas, para que detonassem ao serem sacudidas, o que poderia ter feito facilmente com mais um pouco de trabalho, teria sido totalmente impossível removê-las. Mas ficara confiante demais, convencido de que nada poderia sair errado. Mas era o que tinha acontecido, roubando aos Amigos da Liberdade uma gloriosa vitória.

Fora nesse momento que Georgos começara a chorar.

Não se consolara nem mesmo ao ouvir a explosão da bomba na rua. Como pudera acontecer? Por que fracassara? Como o inimigo descobrira? Continuara a observar os bombeiros e policiais, cegos e ignorantes escravos do capitalismo fascista, com amargura e ódio.

E fora nesse momento que Georgos compreendera que sua própria identidade podia agora ser conhecida, que talvez estivesse correndo um perigo pessoal. E começara a correr.

A pickup continuava no lugar em que a deixara. Ninguém parecia estar prestando qualquer atenção quando ele entrou no veículo, ligou o motor e se afastou, embora muitas luzes se estivessem acendendo nos prédios próximos e curiosos corressem na direção do hotel, atraídos pelo barulho e movimento.

Instintivamente, Georgos seguiu para a Rua Crocker. Mas logo se perguntou: Seria seguro?

A pergunta não demorou a ser respondida. Ao virar a esquina da Rua Crocker, longe do número 117, descobriu que mais adiante a rua estava bloqueada por carros da polícia. Um momento depois, ouviu o barulho de tiros, depois uma pausa de um segundo, novos tiros, como se o fogo inicial estivesse sendo respondido. Georgos sabia que Wayde, Ute e Felix, que haviam decidido ficar na casa naquela noite, estavam encurralados. Desejou desesperadamente estar ao lado deles, para morrer nobremente, se necessário. Mas não havia agora a menor possibilidade para alguém alcançar a casa... nem sair de lá.

Tão depressa quanto podia, esperando não atrair qualquer atenção, Georgos fez a volta e retornou pelo caminho por que viera. Só tinha um lugar para onde ir: o apartamento em North Castle, reservado para uma emergência como aquela.

Enquanto guiava, a mente de Georgos trabalhava rapidamente. Se sua identidade era conhecida, a polícia devia estar a sua procura. Mesmo naquele momento, poderiam estar transmitindo sua descrição e espalhando uma rede para agarrá-lo; por isso, tinha que se esconder o mais depressa possível. Outra coisa: os porcos provavelmente sabiam também da pickup do "Serviço de Proteção Contra Incêndio" e estariam a sua procura. Portanto, teria que abandoná-la. Mas só quando estivesse perto do esconderijo de North Castle. Correndo o risco, Georgos acelerou.

Mas havia outro risco que não podia correr, pensou ele. Não poderia deixar a pickup perto demais do apartamento, pois isso indicaria seu paradeiro. Estava-se aproximando de North Castle. A que distância deveria deixar a pickupl Tomou uma decisão: em torno de dois quilómetros.

Ao calcular que já estava a essa distância, encostou no meio-fio e parou. Desligou o motor e saltou, sem se dar ao trabalho de tirar a chave ou trancar a pickup. Outra possibilidade: a polícia poderia pensar que ele deixara um carro ali estacionado a sua espera e trocara de veículo ou então que pegara um ônibus ou um táxi. Qualquer que fosse a suposição, provocaria dúvidas quanto a seu paradeiro.

O que Georgos não sabia era que um bêbado, recuperando-se de uma garrafa de vinho ordinário que bebera algumas horas antes, estava abrigado num portal do outro lado da rua. E encontrava-se suficientemente lúcido para observar a chegada da pickup do "Serviço de Proteção Contra Incêndio" e Georgos se afastar a pé.

Georgos pôs-se a andar rapidamente. As ruas estavam silenciosas, praticamente desertas, ele sabia que qualquer um iria notar sua presença. Mas ninguém o abordou, aparentemente ninguém lhe dispensou qualquer atenção especial. Quinze minutos depois, ele estava abrindo a porta do apartamento. E entrou, com intenso alívio.

Foi nessa ocasião que um carro da polícia localizou a pickup vermelha a respeito da qual fora transmitido um alerta pouco antes. O guarda que deu a informação pelo rádio comunicou que o radiador da pickup ainda estava quente.

Momentos depois, o mesmo guarda avistou o bêbado no outro lado da rua e arrancou-lhe a informação de que o motorista da pickup se afastara a pé e em que direção. O carro da polícia seguiu velozmente na direção indicada, mas não conseguiu encontrar Georgos.

Os guardas voltaram ao local em que fora estacionada a pickup e, com uma ingratidão absurda, prenderam o informante, sob a acusação de embriaguez em público.

Davey Birdsong foi preso pouco depois das cinco e meia da manhã, diante do prédio de apartamentos em que morava.

Acabara de chegar da conferência e da reunião com o grupo de estudos, que o haviam mantido fora da cidade durante a noite inteira.

Birdsong ficou chocado. Protestou veementemente contra os dois detetives à paisana que o prenderam, um dos quais prontamente informou-o do seu direito constitucional de permanecer calado. Apesar da advertência, Birdsong declarou:

- Não sei o que está acontecendo, mas lhes posso afirmar que estou fora da cidade desde ontem. Saí do apartamento às seis horas da tarde de ontem e não voltei desde então. Tenho muitas testemunhas para confirmar isso.

O detetive que advertira Birdsong anotou a declaração. Ironicamente, o "álibi" foi a perdição de Birdsong.

Quando ele foi revistado na chefatura de polícia, encontraram num bolso do paletó a declaração da & Ip para a imprensa, lamentando "as explosões no Hotel Christopher Columbus na noite passada". Comprovou-se posteriormente que a declaração fora datilografada numa máquina que Birdsong tinha em seu apartamento... o apartamento em que ele afirmara não ter entrado desde as seis horas da tarde anterior, quase nove horas antes de as bombas se tornarem do conhecimento público. Como se isso já não fosse suficiente, encontraram ainda no apartamento dois esboços rasgados e amassados da declaração, escritos pelo próprio Birdsong.

Outra prova que era tremendamente incriminadora: as gravações em fitas cassetes de conversas entre Davey Birdsong e Georgos Archambault. A impressão vocal era a mesma que foi tirada de Birdsong, depois de sua prisão. O jovem motorista de táxi, Vickery, a quem Nancy Molineaux contratara, prestou depoimento, confirmando o esquema furtivo empregado por Birdsong para chegar à casa da Rua Crocker, 117. Também ficou comprovado que Birdsong comprara diversos extintores de incêndio, que mais tarde haviam sido convertidos em bombas.

Ele foi acusado por seis homicídios em primeiro grau, além de diversas outras acusações menores. A fiança foi fixada em um milhão de dólares, uma quantia que Birdsong não podia levantar, o que ninguém mais parecia disposto a fazer para ajudá-lo. Assim, ele ficou na prisão, aguardando julgamento.

Dos outros Amigos da Liberdade, Wayde, o jovem intelectual marxista, e Felix, oriundo de um bairro pobre de Detroit, foram mortos na batalha a tiros com a polícia, na Rua Crocker, 117. Ote, o índio amargo, virou o revólver contra a própria cabeça e matou-se no momento em que a polícia invadiu a casa.

As provas de atividade revolucionária no número 117 foram capturadas intactas, inclusive o diário de Georgos Winslow Archambault.

Na redação do Califórnia Examiner e no bar do Clube da Imprensa já se estava comentando que Nancy Molineaux era uma barbada para um Prémio Pulitzer.

Ela tinha tudo para ganhá-lo.

Foi exatamente o que ouviram o editor-chefe dizer ao diretor do jornal:

- Aquela garota danada apareceu com tudo prontinho, embrulhado para presente, sem faltar coisa alguma! E é a história mais quente dos últimos séculos!

Deixando o Hotel Christopher Columbus, Nancy foi para o Examiner e escreveu sem parar até a hora do fechamento da primeira edição do jornal, às 6h30min da manhã. Pelo resto da manhã e início da tarde, ela atualizou e ampliou o material para as três edições subsequentes. E à medida que novas notícias iam chegando, eram sempre canalizadas para ela.

No caso de qualquer pergunta a respeito dos Amigos da Liberdade, Georgos Archambault, Davey Birdsong, a & Ip, o dinheiro do Clube da Sequóia, as bombas no hotel, a vida e a morte de Yvette, a senha era invariável:

- Pergunte a Nancy.

Como num sonho de repórter, sob uma manchete garrafal, quase toda a primeira página era de Nancy Molineaux.

O jornal determinou o copyright da reportagem, o que significava que qualquer emissora de rádio ou televisão ou outro jornal que aproveitasse a cobertura exclusiva era obrigado a citar o Examiner como fonte.

Como Nancy era pessoalmente uma parte integrante da história, com a descoberta da Rua Crocker, 117, os encontros com Yvette e a posse da única cópia existente das gravações, acabou alcançando uma posição de celebridade pessoal.

Ela foi entrevistada em sua mesa na redação para a TV. Naquela noite, a entrevista foi divulgada em rede nacional pela NBC, ABC e CBS.

A direção do jornal obrigou as equipes de televisão, furiosas, a esperarem, enquanto Nancy terminava de escrever sua reportagem para o próprio jornal.

Repórteres do Newsweek e Time, aparecendo depois do pessoal da televisão, receberam o mesmo tratamento.

No Chronicle- West, o matutino da cidade, o grande concorrente do Examiner, houve uma inveja indisfarçável, um esforço geral para superar a desvantagem. O editor do Chronicle teve grandeza suficiente para no dia seguinte enviar meia dúzia de rosas para Nancy (ele achou que uma dúzia seria um exagero), com um bilhete de parabéns, que ela recebeu na redação.

Os efeitos da reportagem se espalharam não em ondulações, mas em ondas impetuosas.

Para muitos que leram a reportagem de Nancy Molineaux, a revelação mais chocante foi a de que o Clube da Sequóia, mesmo que indiretamente, financiara as bombas colocadas no Hotel Christopher Columbus.

De todo o país, membros indignados do Clube da Sequóia enviaram seus pedidos de demissão, por telefone, telegrama ou carta.

O senador mais antigo da Califórnia, numa entrevista ao Washington Post, declarou: "Nunca mais confiarei nessa desprezível organização nem aceitarei qualquer coisa que ela defender. "

A declaração encontrou ressonância em toda parte. Todos concordaram que o Clube da Sequóia, seu nome desgraçado, a influência reduzida, nunca mais voltaria a ser o mesmo.

Laura Bo Carmichael renunciou imediatamente à presidência do clube. Em seguida, isolou-se em sua casa, recusando-se a atender telefonemas da imprensa ou de qualquer outra pessoa. Uma secretária particular se encarregava de atender, lendo uma declaração que assim concluía: "A Sra. Carmichael considera que sua vida pública está encerrada. "

A única pessoa a emergir com honra do escândalo que envolveu o Clube da Sequóia foi Priscilla Quinn, que Nancy revelou, acuradamente, ter sido a única a se opor ao pagamento dos 50. 000 dólares para a &lpde Birdsong.

Nancy experimentou a maior satisfação em revelar que o tão pomposo advogado Irwin Saunders tinha sido um dos que votaram "sim".

Se o Clube da Sequóia tentasse reabilitar-se, era de se esperar que a nova presidente fosse Priscilla Quinn, a ênfase deslocando-se para o trabalho assistencial e não mais se concentrando nos problemas de meio ambiente.

Depois que Nancy revelou a existência de Georgos Archambault e em seguida informações posteriores sobre o seu desaparecimento, um pequeno exército de detetives da polícia e agentes especiais do FBI vasculhou todo o bairro de North Castle, à procura do líder dos Amigos da Liberdade. Mas não conseguiram encontrá-lo.

A polícia revistou meticulosamente a casa da Rua Crocker, 117 e encontrou incontáveis provas, incriminando ainda mais Georgos e Davey Birdsong. Entre as roupas deixadas por Georgos, a policia encontrou um macacão rasgado; a parte que faltava combinava com o material encontrado na subestação de Millfield, preso num arame cortado, na noite em que os dois guardas de segurança tinham sido mortos. Havia também na casa volumosos registros escritos, inclusive o diário de Georgos; tudo foi entregue ao Promotor Distrital. A existência do diário foi revelada à imprensa, embora não se divulgasse seu conteúdo.

Depois que os jornais publicaram a história da participação de Davey Birdsong, tiveram que separá-lo dos outros presos na prisão, para sua própria segurança.

Antes que tudo isso acontecesse, Nancy Molineaux enfrentou uma terrível crise pessoal. Aconteceu pouco antes de meio-dia, no próprio dia do seu grande furo jornalístico.

Ela estava exausta, trabalhando sob pressão desde a madrugada. Não dormira na noite anterior e aguentava graças apenas a sucessivos cafés e copos de suco de laranja. Sua exaustão era visível.

Por diversas vezes, desde as sete e meia da manhã, quando o editor local entrara de serviço a tempo de preparar a segunda edição, ele parara na mesa de Nancy e dissera algumas palavras de estímulo. Além disso, não havia praticamente qualquer necessidade de discussão editorial. Nancy estava arrumando os fatos perfeitamente, não só os que ela própria descobrira, como outros que lhe eram transmitidos. E ela tinha a reputação de escrever um texto "limpo", que precisava pouco ou nenhum copydesk.

De vez em quando, ao parar de escrever e levantar a cabeça, Nancy descobrira o editor local, o velho sou-o-treinador, fitando-a. Embora a expressão dele fosse impassível, Nancy tinha certeza de que ambos estavam pensando a mesma coisa, algo que ela deliberadamente afastara da mente, ao longo da maior parte daquelas horas.

A última coisa que Nancy observara, antes de deixar o Christopher Columbus, fora os corpos amortalhados dos guardas e bombeiros mortos sendo retirados do hotel para os rabecões à espera. Fora do hotel, havia também dois homens recolhendo pedaços de alguma coisa e metendo num saco de plástico; Nancy levara um minuto para compreender que estavam pegando o que restara do sexto homem morto, o que fora estraçalhado por uma bomba.

Fora nesse momento que Nancy enfrentara a verdade terrível a que até então se esquivara: a de que, durante uma semana inteira, estivera de posse de informações que poderiam ter evitado aquelas seis mortes e muitas outras coisas, se as tivesse partilhado.

O mesmo pensamento lhe voltava à consciência cada vez que descobria o editor local a fitá-la. E ela se recordava também das palavras dele, uma semana antes:" Deveria fazer parte de uma equipe, Nancy, da qual sou o treinador. Sei que prefere trabalhar sozinha e até agora nada lhe tem acontecido porque vem obtendo resultados. Mas acho que está começando a ir longe demais."

Na ocasião, ela rejeitara o conselho, dizendo mentalmente Não enchei Agora, porém, descobria-se a desejar, desesperadamente, mas em vão, não tê-lo feito.

Às 11h55min da manhã, faltando duas horas e 20 minutos para o fechamento da última edição, Nancy não conseguia mais afastar dos pensamentos a recordação dos seis cadáveres e estava prestes a desmoronar.

- Faça uma pausa e venha comigo - disse uma voz, suavemente. Nancy levantou a cabeça e descobriu que o velho sou-o-treinador estava novamente a seu lado. Ela hesitou por um instante e ele acrescentou:

- É uma ordem.

com uma docilidade inesperada, Nancy levantou-se e seguiu-o para fora da redação. No corredor, havia uma sala pequena, normalmente trancada e usada ocasionalmente para reuniões do alto-comando do jornal. O editor local tirou uma chave do bolso, abriu a porta e fez sinal para que Nancy entrasse.

A decoração da sala era simples, mas agradável: uma mesa de reuniões, cadeiras estofadas e um bar em dois armários de nogueira, e cortinas beges.

com outra chave, o editor local abriu um dos armários, enquanto fazia sinal para Nancy sentar-se.

- Pode escolher entre conhaque e uísque, Nancy. Não são das melhores marcas, porque não estamos querendo concorrer com o Ritz. Sugiro o conhaque.

Nancy limitou-se a assentir, descobrindo subitamente que estava incapaz de falar. O editor local encheu dois copos de conhaque da Califórnia e sentou diante dela. Depois de tomarem um gole, ele disse:

- Estive observando-a...

- Sei disso.

- E ambos estamos pensando a mesma coisa, não é? Nancy novamente assentiu, sem falar.

- Pelo que estou prevendo, Nancy, ao final deste dia você poderá ter seguido por dois caminhos. Ou chegar à beira do precipício e cair direto, o que significa um colapso mental, terminando num divã de analista duas vezes por semana, ad infinitum', ou tratar de recuperar o controle e deixar o passado onde está. Só lhe posso dizer uma coisa a respeito do primeiro caminho: vai transformar sua vida num verdadeiro inferno e não beneficiará ninguém, a não ser o analista. Quanto ao segundo, você tem coragem e inteligência, pode consegui-lo. Mas terá que tomar uma decisão positiva, não apenas deixar as coisas como estão.

Finalmente aliviada por poder dizer o que pensava, Nancy murmurou:

- Sou a culpada pelo que aconteceu ontem à noite. Se tivesse contado a alguém o que sabia, a polícia poderia ser alertada e investigaria a casa da Rua Crocker.

- A primeira declaração é falsa, a segunda verdadeira. Não estou dizendo que não vai viver com a recordação da noite passada pelo resto de sua vida. Acho que isso é inevitável. Mas não é a primeira a cometer um erro de julgamento que prejudicou a outros, assim como não será a última. E há outro fator em sua defesa: não sabia o que iria acontecer; se soubesse, certamente teria agido de maneira diferente. Assim, Nancy, meu conselho é o seguinte: enfrente os fatos, aceite o que fez e o que não fez, jamais esqueça... como experiência e aprendizado. Afora isso, porém, deixe-o no passado.

Como Nancy permanecesse em silêncio, ele continuou:

- vou dizer-lhe mais uma coisa. Estou há muitos anos nesse negócio... e há ocasiões em que penso que são anos demais. Mas na minha opinião, Nancy, você é a melhor repórter com quem já trabalhei.

Foi nesse momento que Nancy Molineaux fez algo que só acontecera raramente no passado e mesmo assim não permitira que outros assistissem. Pôs a cabeça entre os braços e desatou a chorar.

O velho sou-o-treinador foi até a janela e discretamente se virou. Olhando para a rua lá embaixo, ele comentou:

- Tranquei a porta quando entramos, Nancy. Ainda está trancada e assim continuará até que você esteja pronta para voltar. Portanto, não precisa apressar-se. E mais uma coisa: prometo que ninguém mais, além de nós dois, saberá o que aconteceu aqui dentro hoje.

Meia hora depois, Nancy estava de volta a sua mesa na redação, o rosto lavado e a pintura refeita, escrevendo outra vez, tendo recuperado inteiramente o controle.

Nim Goldman telefonou para Nancy Molineaux na manhã seguinte, depois de ter tentado em vão falar com ela no dia anterior.

- Queria agradecer-lhe pelo telefonema que deu para o hotel.

- Talvez eu lhe devesse isso.

- Quer devesse ou não, mesmo assim sou grato pelo que fez. Uma pausa e Nim acrescentou, um tanto contrafeito: - Foi uma reportagem sensacional. Meus parabéns.

Curiosa, Nancy perguntou:

- O que acha de tudo isso?

- Quanto a Birdsong, não sinto a menor pena dele. Espero que receba tudo o que merece. E espero também que a falsa & Ip nunca mais reapareça.

- E o que me diz do Clube da Sequóia? Também sente a mesma coisa?

- Não.

- Por quê?

- O Clube da Sequóia tem sido algo de que todos nós precisamos, uma parte do nosso sistema comunitário de controles e equilíbrios. É verdade que já tive discussões com o pessoal do Clube da Sequóia, assim como outros também tiveram. E acho que a organização foi longe demais ao se opor sistematicamente a tudo o que era proposto. Mas o Clube da Sequóia era também uma espécie de consciência da comunidade, fazendo-nos pensar e nos preocupar com o meio ambiente, impedindo algumas vezes que nosso lado cometesse excessos. - Nim fez uma pausa, antes de acrescentar: - Sei que o Clube da Sequóia está agora por baixo e lamento profundamente por Laura Bo Carmichael, que era uma boa amiga, apesar das nossas divergências. Mas espero que o Clube da Sequóia não acabe. Seria uma perda para todos nós se isso acontecesse.

- Puxa, há dias que são repletos de surpresas! - exclamou Nancy, que tomara anotações enquanto Nim falava. - Posso citar tudo o que acabou de dizer?

Ele hesitou só por um instante antes de responder:

- Por que não?

E as declarações de Nim saíram publicadas na edição seguinte do Examiner.

 

Harry London examinou os documentos que Nim lhe havia mostrado e finalmente disse, sombriamente:

- Sabe como me sinto em relação a tudo isso?

- Posso imaginar.

Como se não tivesse ouvido, o chefe do Departamento de Proteção à Propriedade continuou:

- A semana passada foi a pior que já tive em muitos e muitos anos. Art Romeo era um bom sujeito. Sei que você não o conhecia muito bem, Nim, mas pode ter certeza de que Art era leal, honesto, um amigo de verdade. Passei mal quando soube o que aconteceu. Ao deixar a Coreia e o Corpo de Fuzileiros, pensava que nunca mais ouviria falar de sujeitos que eu conhecia sendo despedaçados por explosões.

- Também lamento profundamente o que aconteceu com Art Romeo, Harry. E jamais esquecerei o que ele fez naquela noite.

London sacudiu a mão, como se quisesse afastar a interrupção.

- Deixe-me acabar...

Nim ficou calado, esperando.

Era uma manhã de quarta-feira, na primeira semana de março, seis dias depois dos acontecimentos traumáticos no Hotel Christopher Columbus. Os dois estavam na sala de Nim, com a porta trancada, para que ninguém os interrompesse bruscamente.

- E agora você me mostra isso, Nim. Para ser franco, preferia que não o tivesse feito. Do jeito que eu vejo as coisas, o que mais resta para se acreditar?

- Muita coisa, Harry. Ainda há muito com que se importar, em que se acreditar. Embora não mais na integridade de Paul Sherman Yale, ex-Ministro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.

- Fique com isso.

Harry London devolveu os documentos. Eram oito cartas, algumas com cópias anexadas, todas dos arquivos do falecido Walter Talbot, que fora engenheiro-chefe da GSP & L até sua morte, em julho do ano anterior.

As três caixas de papelão das quais as cartas haviam sido retiradas estavam abertas na sala de Nim, os conteúdos espalhados ao redor.

A localização das cartas, que Nim recordara subitamente na convenção do Instituto Nacional de Eletricidade, fora protelada por causa da tragédia da semana anterior e suas consequências. Naquele dia, ao chegar ao escritório, Nim mandara que lhe trouxessem as caixas, guardadas num depósito no porão. Ele levara mais de uma hora para localizar os documentos que estava procurando, os que recordava de ter visto de passagem sete meses antes, na casa de Ardythe, quando ela lhe entregara as caixas para devolver à companhia.

Mas acabara encontrando. E descobrira que a memória não o enganara.

E agora, inevitavelmente, as cartas teriam que ser usadas como provas numa confrontação.

Exatamente duas semanas antes, na reunião, entre J. Eric Humphrey, Nim, Harry London e Paul Yale sobre furto de energia, o antigo Ministro do Supremo Tribunal declarara claramente: "... acho extremamente interessante esse esquema de furto de energia. Não tinha a menor ideia de que isso existia. Nunca antes ouvi falar a respeito. Como também não sabia que existia gente como o Sr. London numa companhia de eletricidade. "

A correspondência que Nim encontrara mostrava que todas essas declarações eram falsas e inverídicas.

Era, na expressão tantas vezes usada no escândalo de Watergate, "a cortina de fumaça".

- É claro que jamais saberemos com certeza se o velho deu sua aprovação ao furto de energia pelo Fundo Yale ou se sabia e não fez nada - disse London, abruptamente. - Tudo o que podemos provar é que ele é um mentiroso.

- E ele estava tremendamente preocupado. Caso contrário, não teria caido na armadilha dessas declarações.

Os fatos eram simples e inequívocos.

Wàlter Talbot fora um pioneiro em chamar a atenção para os imensos prejuízos financeiros sofridos pelas companhias de gás e eletricidade em decorrência de furto. Escrevera artigos sobre o problema, fizera conferências, fora entrevistado pelos meios de comunicação, havia sido convocado como testemunha técnica para um julgamento criminal no Estado de Nova York, levado a instâncias superiores através de apelações. O caso despertara amplo interesse. E muita correspondência.

E uma parte dessa correspondência fora com um Ministro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.

Paul Sherman Yale.

Era patente, pela correspondência, que Wàlter Talbot e Paul Yale haviam-se conhecido bastante bem na Califórnia, antes de o ex-Ministro mudar-se para Washington.

A primeira carta tinha um cabeçalho imponente:

Supreme Mavrt of the Kritea Stater

Krsljington D.M. 20543

E começava: Meu caro Wàlter.

O autor manifestava seu interesse, como estudioso de assuntos legais, por um campo novo da lei, relacionado com o furto de eletricidade e gás. Pedia mais detalhes sobre os tipos de infrações envolvidas e os métodos que estavam sendo usados na repressão. Também pedia quaisquer fatos conhecidos sobre processos e seus resultados, em todas as partes do país. Ao final, perguntava pela saúde de Ardythe e estava assinada simplesmente "Paul".

Wàlter Talbot, com um senso de etiqueta, respondera mais formalmente: Prezado Ministro Yale.

A carta dele tinha quatro páginas. Em anexo, havia uma cópia de um dos seus primeiros artigos sobre o assunto.

Várias semanas depois, Paul voltara a escrever. Acusava o recebimento da carta e do artigo e formulava diversas perguntas pertinentes, demonstrando que lera o material cuidadosamente.

A correspondência continuava através de cinco outras cartas, espaçadas ao longo de oito meses. Numa delas, Walter Talbot descrevia as funções do Departamento de Proteção à Propriedade numa típica companhia de serviços públicos e os deveres do homem que o dirigia... como Harry London.

As cartas ressaltavam a inteligência atenta e inquisitiva de Paul Sherman Yale, o seu interesse por tudo. O que não era de surpreender.

E toda a correspondência fora trocada apenas dois anos antes de Paul Yale se aposentar do Supremo Tribunal.

Será que Paul Yale poderia ter esquecido? Nim já se fizera essa pergunta e decidira que a resposta era um categórico "não". O velho demonstrara, vezes demais, possuir uma memória excepcional, tanto para as questões mais amplas quanto para os detalhes, para que isso pudesse ser possível.

Foi Harry London quem levantou a questão básica que Nim estava debatendo interiormente:

- Por que o velho fez uma coisa dessas? Por que nos mentiu assim?

- Provavelmente porque sabia que Walter estava morto e porque era remota a possibilidade de um de nós três, Eric, você e eu, ler a correspondência. As chances das cartas aparecerem eram de uma em um milhão.

London assentiu em concordância e depois disse:

- Creio que a próxima pergunta é a seguinte: quantas vezes o Meritíssimo Paul Yale fez a mesma coisa e escapou impune?

- Nunca saberemos, não é mesmo?

O chefe do Departamento de Proteção à Propriedade apontou para as cartas.

- Vai mostrar isso ao presidente, não é mesmo?

- Esta tarde. E, por acaso, fui informado de que o Sr. Yale deverá aparecer ao final do expediente.

- O que nos leva a outro problema. - A voz de London era amargurada. - Vamos continuar a nos empenhar para que o precioso nome de Yale fique fora do processo que está começando? Ou vamos deixar, tendo em vista as novas informações, que o "o Sr. Integridade" assuma os mesmos riscos do comum dos mortais?

- Não sei... - Nim suspirou. - Simplesmente não sei. De qualquer maneira, a decisão não me cabe.

A confrontação com Paul Sherman Yale ocorreu pouco depois das quatro horas da tarde, no gabinete do presidente da companhia.

Quando Nim chegou, convocado pela secretária de J. Eric Humphrey, era óbvio que a tensão já existia. A expressão do presidente podia ser mais bem descrita, pensou Nim, como a de "um velho bostoniano ferido". Os olhos de Humphrey estavam frios, os lábios contraídos. Paul Yale, embora não soubesse exatamente o que estava no ar, evidentemente partilhava o conhecimento de que era algo desagradável; o rosto estava franzido, substituindo a expressão habitualmente jovial. Os dois estavam sentados à mesa de reuniões e nenhum falava quando Nim se aproximou.

O vice-presidente sentou-se na cadeira à esquerda de Eric Humphrey, de frente para Paul Yale. Pôs em cima da mesa a pasta contendo a correspondência Talbot-Yale.

Anteriormente, Eric Humphrey e Nim, depois de algum debate, haviam acertado a sequência do procedimento a ser adotado. Decidiram também que, daquela vez, Harry London não precisava ser incluído na reunião. Humphrey começou:

- Paul, numa reunião anterior, da qual nós três participamos, tivemos uma conversa sobre certos problemas de furto de energia, que envolviam, em parte, o Fundo da Família Yale. Tenho certeza de que se lembra.

Paul Yale assentiu.

- Claro que me lembro.

- Na ocasião, você fez algumas declarações. Todas visando a deixar bem claro que não tinha a menor ideia, até aquele momento, de que existia qualquer esquema de furto de energia.

- Pare com isso! - gritou Paul Yale, ficando vermelho de raiva.

- Não gosto do seu tom nem de sua atitude, Eric. Nem estou aqui para ser questionado pelo que possa ou não ter falado...

A voz fria de Humphrey interrompeu bruscamente o protesto:

- Não há qualquer condicional. O que nos disse foi preciso e claro. Além do mais, foi repetido diversas vezes. Lembro-me perfeitamente. Assim como Nim.

Para Nim, era óbvio que a mente de Paul Yale funcionava a todo vapor. O velho disse firmemente:

- O que quer que tenha sido dito, não significa... Humphrey voltou a interrompê-lo:

- Nim, mostre ao Sr. Yale o conteúdo da pasta.

Abrindo a pasta, Nim empurrou a pequena pilha de cartas e anexos por cima da mesa. A primeira carta, em papel timbrado do Supremo Tribunal, estava por cima.

Paul Yale pegou-a, deu uma olhada, depois largou-a rapidamente. Não se deu ao trabalho de olhar as outras. O rosto, que já ficara corado antes, estava agora totalmente vermelho.

Mais tarde, reconstituindo a cena mentalmente, Nim chegou à conclusão de que Yale teria esperado alguma revelação desagradável, mas não lhe ocorrera absolutamente ser confrontado com sua antiga correspondência. Se a conjectura de Nim era verdadeira, poderia explicar o choque total e abjeto do velho jurista.

Ele passou a língua pelos lábios. Parecia incapaz de encontrar as palavras que procurava. Depois de um momento, murmurou em tom contrafeito e defensivo:

- Algumas vezes, especialmente em Washington... com tanta coisa acontecendo, tantos documentos, uma correspondência interminável a gente esquece...

Ele parou por aí. Evidentemente, a declaração soava tão falsa e inconvincente a Paul Yale quanto aos outros dois.

- Esqueçam! - disse ele abruptamente, levantando-se. Empurrando a cadeira para trás, afastou-se da mesa. E sem olhar para Nim e Humphrey, pediu: - Por favor, dêem-me um momento para me recuperar...

Por um momento, o velho jurista ficou andando de um lado para outro da sala. Finalmente, virou-se e, continuando de pé, declarou:

- É evidente, senhores, como somente se pode determinar por provas documentais, que sou culpado de falso testemunho e... sem dúvida merecidamente... fui apanhado. - A voz de Paul Yale era mais baixa do que o normal, o rosto refletia uma angústia intensa. - Não vou tentar redimir meu erro com explicações ou desculpas, quer descrevendo minha considerável ansiedade por ocasião de nossa conversa anterior ou meu desejo natural e premente de proteger uma reputação que levei tanto tempo para construir.

O que não o impediu de fazer as duas coisas, enquanto dizia que não iria fazê-lo, pensou Nim.

- Contudo, vou jurar que não participei do furto de energia pelo Fundo da Família Yale como também não tive qualquer conhecimento dele antes da nossa primeira conversa a respeito.

Eric Humphrey, que ansiosamente aceitara a palavra de Yale antes, conforme Nim se recordava muito bem, agora permaneceu calado. Provavelmente o presidente estava pensando, assim como Nim, que um homem capaz de mentir uma vez para proteger sua reputação poderia mentir novamente pelo mesmo motivo.

Inevitavelmente, Nim recordou-se das palavras de Harry London: "Quantas vezes o Meritíssimo Paul Yale fez a mesma coisa e escapou impune?"

Enquanto o silêncio perdurava, a angústia nos olhos do velho se aprofundou.

Finalmente, Eric Humphrey murmurou:

- Nim, creio que sua presença não é mais necessária...

com visível alívio, Nim recolheu os documentos que estavam sobre a mesa, tornou a guardá-los na pasta, enquanto os outros dois observavam. Levando a pasta e sem dizer mais nada, Nim retirou-se apressadamente.

Não sabia naquele momento, mas era a última vez em que via Paul Yale.

Nim jamais soube o que mais aconteceu na sala do presidente naquele dia. Não perguntou, e Eric Humphrey não lhe ofereceu voluntariamente qualquer informação. Mas o resultado final foi revelado na manhã seguinte.

Às 11 horas, Humphrey mandou chamar Nim e Teresa Van Buren. Sentado a sua mesa e segurando uma carta, ele informou:

- Acabei de receber o pedido de demissão de Paul Sherman Yale como porta-voz e diretor da companhia. Foi aceito com pesar. Eu gostaria de que fosse emitido um comunicado imediato a respeito.

Teresa Van Buren disse:

- Devemos apontar alguma razão, Eric.

- Problemas de saúde. - Humphrey levantou a carta que tinha na mão. - Os médicos do Sr. Yale aconselharam-no a tomar essa decisão, tendo em vista que, na sua idade, seus novos deveres na GSP & L provaram ser por demais extenuantes. Aconselharam-no a deixar o cargo.

- Está certo, Eric. A notícia já estará divulgada esta tarde. Mas tenho outra pergunta a fazer.

- E qual é?

- Isso nos deixa sem um porta-voz da companhia. Quem vai assumir?

O presidente sorriu pela primeira vez.

- Estou ocupado demais para procurar outro, Tess. Por isso, creio que não tenho alternativa. Ponha a sela de volta em Nim.

- Aleluia! - exclamou Teresa Van Buren. - Sabe o que penso. Nunca a deveria ter tirado de cima dele!

Ao saírem do, gabinete do presidente, Teresa baixou a voz para dizer:

- Nim, quero que me conte toda essa história de Yale. Qual foi o problema? É melhor me dizer logo, pois vou acabar descobrindo, mais cedo ou mais tarde.

Nim mexeu a cabeça.

- Ouviu o que o presidente disse, Tess. Problemas de saúde.

- Ah, seu filho da mãe! Só por causa disso acho que não lhe vou arrumar nenhum comparecimento à televisão até a semana que vem!

Harry London leu a notícia do afastamento de Paul Yale e foi procurar Nim no dia seguinte.

- Se eu tivesse um mínimo de coragem - comentou ele - pediria demissão de repugnância por essa ficção de problemas de saúde e aceitação com pesar. Transforma todos nós em mentirosos, exatamente como ele.

Nim, que não dormira bem, disse, bastante irritado:

- Pois então peça demissão.

- Não me posso dar a esse luxo.

- Nesse caso, Harry, pare de bancar o justo e virtuoso. Você mesmo disse que não há possibilidade de provarmos que o Sr. Yale estava envolvido pessoalmente no furto de energia.

London murmurou, sombriamente:

- Mas acontece que ele estava. Quanto mais penso a respeito, mais tenho certeza.

- Não se esqueça de que lan Norris, o administrador do Fundo da Família Yale, jurou que ele não estava.

- Sei disso... e a impressão que se tem é que houve uma barganha. Norris vai receber seu pagamento mais tarde, talvez continuando como o administrador de confiança. Além disso, Norris nada teria a ganhar se envolvesse diretamente o grande homem.

- O que quer que possamos pensar ou deixarmos de pensar, Harry, o caso está acabado e encerrado. Portanto, trate de voltar ao trabalho e pegar mais alguns ladrões de energia.

- Já o fiz. Há uma porção de casos novos, além de outros decorrentes da investigação da Quayle. Mas há uma coisa que eu gostaria de dizer-lhe, para o futuro.

Nim suspirou.

- Pode falar.

- Participamos de um esquema escuso, você e eu, para proteger a reputação do todo-poderoso Yale. Isso serve para mostrar que ainda existem regras e leis especiais para aqueles que têm influência e poder.

- Escute aqui, Harry...

- Não! Você é que me vai escutar. O que estou querendo fazer, Nim, é dar-lhe um aviso antecipado de que, no futuro, se eu descobrir quaisquer provas concretas num caso, não importa a quem envolva, ninguém vai impedir-me de revelá-lo e fazer o que for necessário.

- Está bem, está bem... Se houver provas concretas, lutarei a seu lado. E agora que já acertamos isso, saia por favor, para que eu possa trabalhar um pouco.

Ao ficar sozinho, Nim lamentou ter descarregado seu mau humor em cima de Harry London. Já lhe ocorrera a maior parte do que London dissera, como a mentira do comunicado oficial e o fato de fazerem parte de um embuste. Por isso é que tivera um sono irrequieto na noite anterior. Haveria graus diversos de mentira? Nim achava que não. Para ele, uma mentira era uma mentira. E ponto final. Sendo assim, a GSP & L, nas pessoas de Eric Humphrey, que autorizara uma falsidade pública, e de Nim, que a endossara com seu silêncio, não seria tão culpada quanto Paul Sherman Yale?

Só podia haver uma resposta: sim.

Ainda estava pensando no assunto quando sua secretária, Vicki Davis, tocou a campainha do interfone e avisou-o:

- O presidente deseja vê-lo imediatamente.

Nim compreendeu no mesmo instante que J. Eric Humphrey estava estranhamente perturbado.

Quando Nim entrou, o presidente da companhia estava andando nervosamente de um lado para outro da sala, algo que raramente fazia. E continuou de pé, enquanto falava e Nim escutava:

- Há algo que preciso dizer-lhe, Nim, e daqui a pouco explicarei por quê. Recentemente fiquei envergonhado e desgostoso com determinados acontecimentos que ocorreram nesta companhia. E não gosto de me sentir envergonhado da organização que me paga um salário e que dirijo.

Humphrey fez uma pausa. Nim ficou calado, tentando imaginar o que viria em seguida.

- Um dos motivos de vergonha foi resolvido nas últimas vinte e quatro horas, Nim. Mas há outro, bem maior, que persiste... os ataques brutais contra as vidas e propriedade desta companhia.

- O FBI e a polícia...

- Não fizeram nada! - arrematou Humphrey, rispidamente. Absolutamente nada!

- Birdsong está preso.

- E por quê? Porque uma repórter inteligente e decidida mostrou possuir mais capacidade que um verdadeiro exército de agentes da lei. E não se esqueça também de que foi uma informação da mesma jovem que resultou na morte daqueles marginais na Rua Crocker... uma justa pena, diga-se de passagem.

Somente J. Eric Humphrey, pensou Nim, seria capaz de usar termos como "marginais" e "justa pena". Mas a verdade é que Nim raramente vira Humphrey demonstrar tanta emoção. E desconfiou que o presidente da companhia sufocara por muito tempo dentro de si o que estava dizendo agora.

- Pense bem no que tem acontecido, Nim. Há mais de um ano que sofremos a indignidade de ter nossas instalações, até mesmo a sede principal, bombardeadas por um bando pequeno e desqualificado de terroristas. E o que é pior: custou as vidas de nove dos nossos homens, sem contar o Sr. Art Romeo, que foi vitimado no Hotel Christopher Columbus. E por falar nisso, estou profundamente envergonhado por termos patrocinado a convenção do Instituto Nacional de Eletricidade e permitido que um incidente tão lamentável ocorresse!

- Não creio, Eric, que alguém possa culpar a GSP & L pelo que aconteceu no Columbus.

- Pois eu culpo a nós... e culpo a mim mesmo, por não ter sido mais insistente antes, por não ter pressionado para que a polícia fizesse alguma coisa. Mesmo agora, aquele homem ignóbil, o chefe, Archambault, ainda está à solta! - A voz de Humphrey se alteara, estridentemente. - Uma semana inteira já se passou. Onde ele está? Por que a polícia ainda não o descobriu?

- Pelo que sei, a polícia continua a procurar, convencida de que Archambault está escondido em algum lugar de North Castle.

- Onde certamente está tramando para matar ou aleijar mais alguns dos nossos homens e causar-nos mais prejuízos! Nim, eu quero que esse malfeitor seja encontrado! Se necessário, quero que nós, da GSP & L, o encontremos!

Nim ia dizer que uma companhia de serviços públicos não estava equipada para desempenhar um trabalho de polícia, mas mudou de ideia. Em vez disso, perguntou:

- O que exatamente está pensando, Eric?

- Estou pensando que somos uma organização com homens de primeira qualidade, com uma abundância de cérebros excepcionais. A julgar pelos resultados, é o que falta à polícia. Portanto, Nim, minha determinação é a seguinte: concentre seu cérebro e de outros no problema. Pode convocar qualquer um que julgar necessário para ajudá-lo. Tem carta branca. Mas quero resultados. Pelos nossos funcionários que foram mortos, por suas famílias, por todos nós que nos orgulhamos da GSP & L, quero que esse desprezível personagem, Archambault, seja capturado e levado à justiça.

O presidente fez uma pausa, o rosto vermelho, para logo depois concluir, secamente:

- Isso é tudo.

Foi uma coincidência, pensou Nim, depois do seu encontro com Eric Humphrey, que ele também estivesse pensando na mesma coisa.

Quatro meses antes, em grande parte por causa do cepticismo de Paul Yale, Nim abandonara o esquema do "grupo de pensamento" como meio para solucionar o mistério dos ataques terroristas dos Amigos da Liberdade.

Depois da crítica de Paul Yale, de que estavam apenas chegando "a suposições, puras conjecturas, sem provas concretas, até os limites e muito além", Nim não mais convocara nenhuma reunião do "grupo de pensamento", integrado por ele próprio, Oscar O'Brien, Teresa Van Buren e Harry London. No entanto, repassando o que se sabia agora, descobria que as ideias e palpites do quarteto tinham sido espetacularmente próximas da verdade.

Para ser justo, pensou Nim, só podia culpar a si mesmo. Se tivesse persistido, ao invés de se deixar intimidar por Yale, poderiam ter previsto, talvez até mesmo evitado, alguns dos trágicos acontecimentos que haviam ocorrido posteriormente.

Agora, com a determinação de Eric Humphrey, talvez eles ainda pudessem fazer alguma coisa.

Anteriormente, ao discutir o então desconhecido líder dos Amigos da Liberdade, o "grupo de pensamento" chamara-o de "X". A identidade de "X" era agora conhecida, e o homem, Georgos Archambault, extremamente perigoso, continuava a ser uma ameaça para a GSP & L e toda a sociedade, escondido em algum lugar da cidade.

Será que através do puro pensamento e de discussões em grupos seria possível ter uma ideia do seu esconderijo?

Era sexta-feira. Nim decidiu que, em algum momento daquele fimde-semana, usando a autorização do presidente se fosse necessário, iria reunir novamente os quatro "pensadores".

- Conforme se pôde constatar mais tarde - disse Nim, consultando suas anotações - fomos excepcionalmente acurados. Gostaria de recordar-lhes até que ponto.

Ele fez uma pausa para tomar um gole do uísque com soda que Oscar O'Brien lhe servira há poucos minutos, antes de começarem.

Era a tarde de domingo. A convite de O'Brien, o "grupo de pensamento" se reunira na casa dele e estava naquele momento instalado no jardim de inverno informal e confortável. Os outros três haviam-se mostrado dispostos a cooperar quando Nim os procurara, ainda mais depois de serem informados da determinação de J. Eric Humphrey.

A casa de O'Brien, numa pequena elevação à beira da praia, tinha uma vista espetacular, que no momento incluía incontáveis embarcações à vela, com os marinheiros de fim-de-semana ziguezagueando de um lado para outro e milagrosamente conseguindo evitar colisões, em meio às cristas espumantes das ondas, agitadas por uma brisa que soprava de oeste.

Como em ocasiões anteriores em que o grupo se reunira, havia um gravador ligado.

- com base nas informações então disponíveis - continuou Nim

- superficiais e sumárias, formulamos a hipótese de que um homem, "X", era o líder e cérebro dos Amigos da Liberdade, que era bastante viril e vaidoso, que tinha uma mulher por confidente, a qual trabalhava com ele, em estreita associação. Também achávamos que "X" assassinara pessoalmente aqueles dois guardas em Millfield, e que a mulher estava presente na ocasião. Além disso, concluímos que a mulher podia ser uma fonte de fraqueza e talvez se tornasse a causa da perdição de "X".

- Eu já tinha esquecido quase tudo - interveio Teresa Van Buren.

- Puxa, acertamos em cheio!

A vice-presidente de relações públicas, parecendo tão à vontade quanto num fim-de-semana sem nada para fazer em sua própria casa, usava um cafetã verde sobre o corpo amplo. Os cabelos, como de hábito, estavam despenteados, provavelmente porque passava os dedos por eles sempre que estava pensando. Os pés estavam descalços, as sandálias velhas ao lado da cadeira.

- Sim - concordou Nim. - E tenho que admitir que a culpa foi minha por não continuarmos. Acho que perdi a fé, no que estava errado. - Decidira não dizer nada a respeito da influência de Paul Yale, que no final das contas se limitara a manifestar uma opinião. Uma breve pausa, e ele continuou: - Agora que conhecemos a identidade de "X" e muitos fatos a seu respeito, talvez possamos usar o mesmo processo mental para descobrir seu paradeiro. - Nim fez uma nova pausa, consciente de que três pares de olhos estavam focalizados atentamente nele.

- Talvez não seja possível. Mas o presidente acha que devemos tentar.

Oscar O'Brien grunhiu e tirou dos lábios grossos o charuto que estava fumando. Já havia bastante fumaça no ar, algo que desagradava a Nim. Mas era a casa de O'Brien e um protesto pareceria despropositado.

- Estou disposto a fazer a tentativa - disse o advogado. - Por onde começamos? - Estava usando uma calça esporte cinza visivelmente velha, presa por um cinto, meio frouxamente, por baixo da barriga volumosa, um blusão folgado e sapatos de lona sem meias.

- Preparei um memorando.

Abrindo uma pasta, Nim tirou cópias e distribuiu-as. O memorando continha um sumário de todas as informações, publicadas desde a convenção do Instituto Nacional de Eletricidade, sobre os Amigos da Liberdade e Georgos Archambault. A maior parte provinha das reportagens de Nancy Molineaux.

Nim esperou até que os outros terminassem de ler e depois perguntou:

- Alguém sabe de mais algum fato adicional que não esteja incluído aí?

- Acho que tenho algumas coisinhas - disse Harry London. O chefe do Departamento de Proteção à Propriedade se mostrara frio ao se encontrar com Nim naquele dia, provavelmente recordando as palavras ásperas dois dias antes. Mas o tom era normal, quando acrescentou: - Tenho amigos na polícia. Como Nim já sabe, eles de vez em quando me dão algumas informações que não aparecem nos jornais.

Em contraste com os outros, inclusive Nim, que estava também vestido informalmente, London mostrava-se impecável, com uma calça esporte bege com o vinco perfeito e um blusão bem passado. As meias combinavam com o conjunto, e os sapatos de couro estavam reluzentes.

- Os jornais mencionaram que Archambault mantinha um diário

- continuou London, batendo com os dedos no memorando de Nim.

- A informação está aqui. O que não está e não foi divulgado, porque o Promotor Distrital espera usar como prova no julgamento de Archambault, é o que o diário contém.

Teresa Van Buren perguntou:

- E você viu o diário?

- Não. Mas mostraram-me uma cópia xerox.

Como sempre, pensou Nim, Harry London estava-se arrastando no relato em seu típico ritmo pedante. O'Brien indagou, impacientemente:

- E o que havia no tal diário?

- Não me lembro. - Houve um desapontamento óbvio, o interesse renascendo quando London acrescentou: - Ou pelo menos não me lembro de tudo. Mas há duas coisas que se pode depreender pelo que o cara escreveu. Primeiro, ele é tão vaidoso e presunçoso quanto imaginamos, talvez até mais. Segundo, o que se percebe imediatamente pela leitura de todas as porcarias que estão no diário. é o que se poderia chamar de uma compulsão para escrever coisas.

- O mesmo acontece com milhares de outras pessoas - comentou Teresa Van Buren. - Isso é tudo?

- Sim.

London parecia desolado, e Nim apressou-se em intervir:

- Não despreze sumariamente esse tipo de informação, Tess. Qualquer detalhe pode ajudar.

- "- Lembra-se de alguma coisa da caligrafia do diário, Harry? perguntou Oscar O'Brien.

- Que espécie de coisa?

- Tinha alguma característica definida?

O chefe do Departamento de Proteção à Propriedade pensou por um momento antes de responder:

- Eu diria que sim.

- O que estou pensando é muito simples - explicou o advogado.

- Se tivermos uma amostra da caligrafia do diário e outra procedente de uma fonte diferente, seria fácil comparar as duas e determinar que eram da mesma pessoa?

- Estou entendendo - disse London. - E pode estar certo de que seria bastante fácil.

- Hum... - murmurou O'Brien, coçando o queixo, parecendo mergulhar num devaneio particular. - Continuem, por favor. Tenho um princípio de ideia que ainda preciso desenvolver.

- Está certo - disse Nim. - Vamos falar sobre North Castle, a parte da cidade em que foi encontrada abandonada a pickup do Serviço de Proteção Contra Incêndio.

- com o radiador ainda quente - recordou Teresa Van Buren. E ele foi visto se afastando a pé, o que parece indicar que não pode ter ido muito longe.

- Talvez não - comentou Harry London. - Seja como for, toda a área de North Castle é superpovoada. A polícia vasculhou tudo e nada conseguiu descobrir. Se alguém quiser escolher um lugar nesta cidade para desaparecer, aquele é o bairro ideal.

- E pelo que tenho lido e ouvido - acrescentou Nim - é bem possível que Archambault já tivesse um segundo esconderijo preparado, para o caso de haver uma emergência. Deve estar lá agora. Sabemos que não lhe faltava dinheiro e por isso ele podia providenciar tudo com antecedência.

- Usando um nome falso, é claro - disse Teresa Vân Buren. Da mesma forma como ele comprou a. pickup.

Nim sorriu.

- Duvido que a companhia telefónica tenha incluído o nome dele no catálogo.

- A tal pickup já foi meticulosamente investigada pela polícia e é um beco sem saída - informou London.

O'Brien saiu de seu devaneio:

- Harry, alguém calculou a extensão da área em que Archambault aparentemente se esconde? Em outras palavras: se se traçasse um círculo num mapa e se declarasse "o homem provavelmente está escondido em algum lugarpor aqui", de que tamanho seria esse círculo?

- Creio que a polícia já fez esse cálculo. Mas é claro que não passa de uma estimativa.

- Diga-nos o que sabe a respeito - sugeriu Nim.

- O raciocínio foi mais ou menos o seguinte: ao abandonar a pickup, Archambault estava numa tremenda pressa. Supondo-se que estivesse seguindo para um esconderijo, não iria deixar a pickup muito perto, mas também não a abandonaria longe demais. Digamos que a deixaria a dois quilómetros do esconderijo, no máximo três. Assim, tomando-se a pickup como centro, isso representa um círculo com um raio de três quilómetros.

- Se bem me lembro da geometria da escola - comentou O'Brien - a área de um círculo é pi vezes o raio ao quadrado. - Ele foi até uma escrivaninha e pegou uma calculadora eletrônica. Depois de um momento, anunciou: - Dá em torno de vinte quilómetros quadrados.

- O que significa que estamos falando sobre doze mil casas e pequenas lojas aproximadamente - disse Nim. - com trinta mil pessoas provavelmente vivendo dentro desse círculo.

- Sei que é uma área e tanto, e procurar por Archambault aí seria como tentar achar a proverbial agulha no palheiro - disse O'Brien. O que não nos impede de o obrigarmos a se mostrar. E já tenho uma ideia para vocês se divertirem.

Nim, London e Teresa Van Buren ficaram escutando atentamente. Todos se recordavam perfeitamente de que haviam sido as ideias do advogado que levaram à maioria das conclusões das sessões anteriores. O'Brien continuou:

- Harry diz que Archambault tem uma verdadeira compulsão por escrever. Juntamente com as outras informações de que dispomos a respeito dele, chega-se à conclusão de que o homem é um exibicionista, com uma intensa necessidade de se mostrar constantemente, mesmo que seja em pequenas coisas. Por tudo isso, minha ideia é a seguinte: se pudermos distribuir algum questionário público nessa área de vinte quilómetros quadrados... um questionário com uma fileira de perguntas para as pessoas escreverem as respostas... é bem possível que nosso homem não resista à tentação de responder também.

Houve um momento de silêncio e perplexidade, até que Teresa Van Buren perguntou:

- Sobre o que seriam as perguntas?

- Sobre energia elétrica, é claro... algo que desperte o interesse de Archambault, se possível que o deixe furioso. Por exemplo: como classifica os serviços que a GSP & L presta ao público? Concorda que a continuação dos bons serviços vai exigir um aumento das tarifas em breve? É a favor de uma companhia de serviços públicos continuar a ser de propriedade particular? Estou pensando nesse tipo de coisas. E é claro que apresentei apenas esboços. As perguntas finais teriam que ser estudadas cuidadosamente.

Pensativo, Nim comentou:

- Imagino que sua ideia, Oscar, é comparar a caligrafia das respOstas ao questionário com a da amostra do diário.

- Exatamente.

- E se Archambault usar uma máquina de escrever?

- Então não poderíamos identificá-lo. Mas também não se trata de um plano infalível. Se é por isso que estão procurando, devo dizer que não vão conseguir encontrar.

- Se recebêssemos de volta um questionário com a caligrafia combinando, não vejo como isso nos poderia ajudar - objetou Teresa Van Buren. - Como poderíamos descobrir de onde vinha? Mesmo que Archambault fosse estúpido o bastante para responder, certamente não iria indicar seu endereço.

O'Brien deu de ombros.

- Já admiti que a ideia não era perfeita, Tess.

- Ei, esperem um instante! - interveio London. - Há uma maneira de se descobrir a procedência de uma coisa dessas: tinta invisível.

- Explique melhor, Harry - pediu Nim.

- A tinta invisível não é apenas uma brincadeira de criança. É usa. da muito mais frequentemente do que se imagina. A coisa pode funcionar da seguinte maneira: em cada questionário haveria um número, mas não seria visível. Faz-se a impressão com um pó luminescente, dissolvido em glicol. O líquido é absorvido no papel, de maneira que não fica qualquer vestígio visível. Mas quando se encontrar o questionário que estamos procurando, basta colocá-lo num visor especial que o número aparece. Tirando do visor, o número desaparece. Teresa Van Buren exclamou:

- Essa não!

- O esquema é usado com frequência - repetiu London. - Nos bilhetes de loteria, por exemplo. Prova que um bilhete é genuíno e não uma falsificação impressa por algum escroque. Além disso, metade dos questionários anónimos que circulam por aí é preparada dessa maneira. Jamais confiem em qualquer pedaço de papel no qual se afirma que a pessoa não pode ser identificada.

- A coisa está começando a ficar interessante - comentou O'Brien.

- Mas o grande problema é como distribuir esses questionários amplamente e ao mesmo tempo manter-se um registro do destino de cada um - disse Nim. - Não tenho a menor ideia de como isso seria possível.

Teresa Van Buren empertigou-se abruptamente.

- Pois eu tenho! A resposta está na nossa cara: o Departamento de Contas!

Os outros fitaram-na sem entender. A vice-presidente de relações públicas acrescentou:

- Cada casa naquela área de vinte quilómetros quadrados é uma consumidora da GSP & L, e todas as informações pertinentes estão guardadas em nossos computadores.

- Já entendi - disse Nim, pensando em voz alta. - Pode-se programar os computadores para imprimir os endereços naquela área e nada mais.

- Podemos conseguir até algo melhor - interveio O'Brien, parecendo bastante excitado. - O computador poderia produzir os questionários, prontos para serem remetidos pelo correio. A parte com o nome e endereço do consumidor poderia ser destacável, a fim de que apenas a outra parte, a que não tem identificação, possa ser remetida de volta.

- Aparentemente sem identificação - recordou Harry London.

- Enquanto se estivesse fazendo a impressão regular, seria acrescentado aquele número com tinta invisível. Não podemos esquecer.

Ò'Brien deu um tapa na própria coxa, entusiasmado.

- Estamos chegando lá!

- É uma boa ideia e vale a pena tentar - comentou Nim. - Mas devemos ser realistas em relação a duas coisas. Primeira: mesmo que Archambault receba o questionário, é bem possível que ele banque o esperto e o jogue fora. Assim, estamos dando um tiro no escuro.

O'Brien assentiu.

- Tem toda razão.

- A outra coisa é a possibilidade de Archambault, sob qualquer que seja o nome que está usando no esconderijo, não estar diretamente relacionado em nosso sistema de contas. Ele pode ter alugado um quarto. Neste caso, outra pessoa receberia as contas de eletricidade e gás... e o questionário.

- É possível, mas não creio que seja provável - disse Teresa Van Buren. - Procure encarar o problema sob o ponto de vista de Archambault. Para que algum esconderijo seja bom e seguro, deve ser independente e privado. Um quarto alugado não seria. Portanto, o mais provável é que ele tenha alugado um apartamento ou uma casa, da maneira como fez antes. O que representa medidores próprios, com contas em separado. E significa também que ele receberia nosso questionário!

O'Brien assentiu novamente.

- Isso faz sentido.

Continuaram a conversar por mais uma hora, refinando as ideias, o interesse e a ansiedade aumentando a cada minuto.

 

O Centro de Computação da GSP & L, pensou Nim, tinha uma semelhança extraordinária com um cenário do filme Guerra nas Estrelas.

Tudo nos três andares ocupados pelo Centro na matriz da companhia era futurista, preciso, funcional. As amenidades estéticas que se encontravam em outros departamentos, como móveis decorativos, tapetes, quadros, cortinas, eram proibidas ali. Não havia janelas, toda a iluminação era artificial. Até mesmo o ar era especial, com a unidade controlada e a temperatura sempre em 21 C. Todos os que trabalhavam no Centro de Computação estavam sujeitos à vigilância de um circuitofechado de televisão e ninguém sabia quando estava sendo observado pelo equivalente ao "Big Brother" da Companhia.

O movimento de entrada e saída do Centro era rigorosamente controlado. Guardas de segurança, no interior de cubículos de vidro à prova de bala e se comunicando através de microfones, examinavam meticulosamente cada pessoa que entrava ou saía. As ordens eram para que não fizessem qualquer pressuposição. Nem mesmo um rosto amistoso e conhecido, que viam aparecer todos os dias para trabalhar, tinha permissão para passar sem uma verificação das credenciais.

Cada pessoa que passava pela área de segurança (sempre sozinha; mais de uma ao mesmo tempo não era permitido) ficava presa na "câmara de ar", que era na verdade uma pequena prisão, também de vidro à prova de bala. Depois que a pessoa entrava, uma porta as suas costas se fechava ruidosamente e era trancada eletronicamente. A outra porta, na frente, também intransponível, só era aberta depois que o guarda se certificava de que estava tudo bem. Se havia suspeitas, como de vez em quando acontecia, as duas portas permaneciam trancadas até que chegassem reforços ou uma prova de identidade.

Não havia exceções. Até mesmo o presidente da companhia, J. Eric Humphrey, jamais entrava no Centro sem um emblema de visitante temporário e depois de verificação meticulosa.

O motivo para essas precauções excepcionais era simples. O Centro alojava um tesouro de valor inestimável: um registro computadorizado de 8. 500. 000 de consumidores da GSP & L, com as respectivas leituras de medidores, contas e pagamentos, em anos e anos, além de detalhes sobre acionistas e funcionários, equipamentos da companhia, estoques, dados técnicos e incontáveis outras informações.

Uma granada de mão estrategicamente colocada no Centro de Computação poderia provocar mais transtornos ao sistema da gigantesca companhia do que uma grande carga de alto explosivo contra linhas de transmissão ou subestações.

As informações do Centro estavam guardadas em centenas de pacotes de discos magnéticos. Cada pacote continha 20 discos e cada disco, duas vezes maior que um LP normal, continha os registros de 1. 000. consumidores.

O valor dos computadores andava na casa dos 30. 000. 000 de dólares. O valor das informações registradas era incalculável.

Nim fora ao Centro de Computação com Oscar O'Brien, a fim de observarem a remessa do que era oficialmente classificado de maladireta de "Pesquisa de Consumidor", mas na verdade era a isca com que se esperava apanhar o líder dos Amigos da Liberdade, Georgos Archambault.

Era quinta-feira, quatro dias depois da reunião dominical do "grupo de pensamento" na casa do advogado.

Muitas horas de trabalho haviam sido despendidas desde então na formulação do questionário. Nim e O'Brien haviam decidido que seriam apresentadas oito perguntas. As primeiras eram simples. Por exemplo:

A Golden State Power & Light lhe proporciona um serviço satisfatório? Por favor, responda sim ou não.

Havia também perguntas que davam margem a respostas mais amplas: na sua opinião, quais as maneiras pelas quais os serviços da Golden State Power & Light poderiam ser melhorados?

Ou então:

Tem alguma dificuldade em entender os detalhes das contas da Golden State Power & Light? Em caso afirmativo, informe por favor qual o problema.

E finalmente:

A Golden State Power & Light pede desculpas a seus consumidores pelas inconveniências decorrentes dos covardes ataques a instalações da companhia por pretensos terroristas, que agem por pura ignorância. Se acha que há meios pelos quais se possa deter esses ataques, por favor apresente suas opiniões.

Oscar O'Brien comentara:

- Se isso não deixar Archambault furioso e levá-lo a responder o questionário, nada mais o conseguirá.

As autoridades legais - a polícia da cidade, o FBI e a Promotoria Distrital - haviam reagido favoravelmente ao serem informadas do plano da GSP & L. A Promotoria Distrital oferecera ajuda para o exame dos milhares de questionários que seriam devolvidos.

Sharlett Underhill, vice-presidente executiva de finanças sob cuja responsabilidade estava o Centro de Computação, recebeu Nim e O'Brien depois que eles passaram pela área de segurança. Elegantemente vestida num costume azul, Sharlett lhes disse:

- Estamos neste momento imprimindo a Pesquisa de Consumidor de vocês. Todas as doze mil cópias devem ser despachadas pelo correio esta nioite.

- Não estamos interessados "m onze mil, novecentos e noventa e nove desses questionários - comentou O'Brien. - Somente um é que estamos querendo de volta.

- Se soubesse qual, isso nos custaria muito menos dinheiro - disse acidamente a vice-presidente de finanças.

- Se tivéssemos a resposta que está querendo, minha cara Sharlett, não estaríamos aqui.

Os três se aprofundaram pelo território dos computadores, passando por fileiras de armários de metal e vidro, parando finalmente ao lado de uma impressora IBM 3800, que estava despejando questionários, prontos para serem despachados nos envelopes com janelas.

No alto da página única estava escrito:

Golden State Power & Light

PESQUISA DE CONSUMIDOR

Agradeceríamos suas respostas, confidenciais, a algumas questões importantes.

Nosso objetivo é servir melhor.

Seguiam-se o nome e endereço, depois uma perfuração ao longo de toda a página. Abaixo da perfuração, havia a instrução:

PARA PRESERVAR SEU ANONIMATO RASGUE E JOGUE FORA A PARTE SUPERIOR

DESTE QUESTIONÁRIO.

NÃO HÁ NECESSIDADE DE ASSINATURA

OU QUALQUER OUTRA IDENTIFICAÇÃO.

OBRIGADO!

Um envelope de resposta comercial, que não precisava de selo, acompanharia cada questionário.

- Onde está a tinta invisível? - perguntou Nim. O'Brien riu.

- Não pode vê-la, bocó. É invisível.

Sharlett Underhill se aproximou da impressora e levantou uma tampa. Inclinando-se para a frente, apontou uma garrafa contendo um líquido claro, aparentemente oleoso. A garrafa estava invertida e da extremidade descia um tubo.

- Essa é uma montagem especial para o trabalho. O tubo alimenta um mecanismo de numeração ligado ao computador. Na metade inferior de cada página está sendo impresso um número invisível. Ao mesmo tempo, o computador está registrando que número vai para que endereço.

Ela tornou a fechar a tampa. Pegou atrás da máquina um dos questionários já impressos e levou-o até uma mesa de metal ali perto. Acendeu uma lâmpada portátil que estava num pequeno suporte.

- Isto é a chamada "luz negra".

Quando Sharlett pôs o papel por baixo, imediatamente apareceu o número 3702.

- Sensacional! - exclamou O'Brien. - Muito bem, agora temos um número. E o que acontece depois?

- Quando me fornecer o número que precisa de identificação, vou passá-lo ao computador, juntamente com um código secreto, conhecido apenas por duas pessoas, um dos nossos programadores mais antigos, de absoluta confiança, e eu. O computador nos irá informar imediatamente qual o endereço para onde foi remetido esse questionário em particular.

- Não temos certeza, é claro, de que teremos um número para lhe fornecer - ressaltou Nim.

Sharlett Underhill lançou um olhar furioso para os dois homens.

- Quer tenham ou não, que ambos compreendam duas coisas. Fui contra ao que está sendo feito aqui, e não gosto que o equipamento e registros do meu Departamento sejam usados para o que é essencialmente um objetivo fraudulento. Protestei junto ao presidente, mas ele parece ser bastante favorável ao plano e por isso meu protesto foi rejeitado.

- Sabemos disso - falou O'Brien. - Mas pelo amor de Deus, Sharlett, lembre-se de que é um caso especial!

Ela continuou muito séria:

- Por favor, prestem atenção. Quando me fornecerem o número que esperam obter... e só aceitarei um único número... a informação que procuram será extraída do computador, através do código secreto que mencionei. Mas no momento em que isso acontecer, o computador será instruído a esquecer todos os outros números e endereços relacionados. Quero que isso fique bem entendido.

- Já está entendido - disse o advogado. - E é perfeitamente justo.

Nim interveio:

- Mudando de assunto, Sharlett, seu pessoal teve alguma dificuldade em definir e separar aquela área de vinte quilómetros quadrados que especificamos?

- Absolutamente nenhuma. Nosso método de programação torna possível dividir e subdividir nossos consumidores em muitas categorias e qualquer área geográfica. - A vice-presidente de finanças relaxou, prontamente se entusiasmando com um assunto que obviamente apreciava. - Quando usado de maneira adequada, um computador moderno é uma ferramenta sensível e flexível. E totalmente de confiança. Ela hesitou por um instante, antes de acrescentar: - Ou melhor, quase que totalmente.

Ao pronunciar as últimas palavras, Sharlett olhou na direção de outra impressora IBM, flanqueada por uma mesa em que dois homens estavam sentados. Pareciam estar verificando manualmente, uma a uma, impressões do computador.

O'Brien ficou curioso.

- O que está acontecendo ali?

Pela primeira vez desde que eles haviam entrado no Centro, Sharlett Underhill sorriu.

- É o nosso "esquadrão anti-VIP". Muitas companhias de serviços públicos têm um esquema semelhante.

Nim sacudiu a cabeça.

- Trabalho aqui há muito tempo e nunca tinha ouvido falar a respeito.

Aproximaram-se da mesa em que estava sendo realizado o trabalho. Sharlett explicou:

- Essas contas estão baseadas nas últimas leituras de medidores e devem ser expedidas amanhã. O que o computador faz é separar as contas de algumas centenas de pessoas que constam de uma lista especial... prefeito, secretários municipais e vereadores das diversas cidades a que servimos, altas autoridades estaduais, congressistas, diretores de jornais e colunistas, consumidores de rádio e televisão, juizes, advogados preeminentes... e vai por aí afora. Cada conta é verificada, como estão vendo agora, para se ter certeza de que não há nada de anormal. Se há, é enviada para outro departamento e checada, antes de ser despachada. Isso evita problemas e embaraços, se o computador ou a pessoa que o programou cometer um equívoco.

Ficaram observando a inspeção; de vez em quando, uma conta era separada e posta de lado. Sharlett Underhill recordou:

- Certa vez um computador errou ao imprimir a conta mensal de um vereador, acrescentando uma fleira de zeros. A conta deveria ser de quarenta e cinco dólares, mas saiu como sendo quatro milhões e quinhentos mil dólares.

Todos riram. Nim perguntou:

- E o que aconteceu?

- É justamente esse o problema. Se ele nos tivesse trazido a conta, todos daríamos umas boas risadas, depois rasgaríamos a conta e provavelmente lhe daríamos um crédito pelo trabalho que teve. Em vez disso, porém, o vereador convocou uma entrevista coletiva. Exibiu a conta, para provar como nós da GSP & L somos incompetentes e que deveríamos ser encampados pela prefeitura.

O'Brien sacudiu a cabeça.

- Não posso acreditar...

- Pois lhe asseguro que realmente aconteceu. Os políticos são sempre os piores para ampliar um erro simples, muito embora os cometam mais do que o resto da humanidade. Mas não são apenas eles. Seja como for, foi por isso que criamos o nosso "esquadrão anti-VIP". Ouvi dizer que existe a mesma coisa na Con Edison, em Nova York. Agora, sempre que nos deparamos com um consumidor importante ou pomposo... ou ambas as coisas... acrescentamos seu nome à lista. Há até mesmo gente da companhia na lista.

- Há ocasiões em que posso ser pomposo - reconheceu O'Brien.

- É uma de minhas fraquezas. - Apontou para a pilha de contas: Por acaso estou aí?

Enquanto se afastavam, Sharlett Underhill respondeu:

- Oscar, isso é algo que você jamais saberá.

 

Ruth Goldman estava em Nova York.

Fora iniciar o tratamento no Instituto Sloan-Kettering, ficando fora duas semanas. Posteriormente, seriam necessárias outras viagens.

A decisão fora tomada pelo Dr. Levin depois de estudar os resultados dos exames que Ruth fizera na viagem anterior e conversar com os médicos de Nova York pelo telefone. Ele dissera a Nim e Ruth, ao mesmo tempo:

- Não posso fazer promessas. Ninguém pode, e não há nada definido. O máximo a que posso chegar é dizer que eu e o pessoal do SloanKettering estamos cautelosamente otimistas.

E não haviam conseguido arrancar mais nada dele. Nim levara Ruth ao aeroporto no início da manhã anterior, para que ela pegasse um voo sem escalas da American Airlines. A despedida fora intensamente emocional.

- Eu a amo - dissera Nim, pouco antes de Ruth embarcar. vou sentir saudade e ficarei fazendo o equivalente a rezar.

Ela rira e o beijara mais uma vez, comentando:

- Pode parecer muito estranho, mas mesmo com tudo isso nunca me senti tão feliz.

Em Nova York, Ruth ficaria na casa de amigos e compareceria ao Instituto várias vezes por semana, como uma paciente externa.

Leah e Benjy ficariam novamente na casa dos avós. Desta vez, porque seu relacionamento com os Neubergers estava mais cordial, Nim prometera ir jantar com os velhos algumas vezes.

Cumprindo uma promessa antiga, Nim também acertara levar Karen a um concerto sinfónico.

Alguns dias antes, recebera um dos bilhetes em versos de Karen, dizendo:

Dias vêm, dias vão. Em alguns você está no noticiário com Begin, Sadat, Schmidt, Botha Cárter, Giscard d'Estaing, o Bispo Muzorewa. Mas de todos eles, um certo Nimrod Goldman Merece a minha primeira página. É bom ler sobre você Mas melhor ainda Ver, ouvir, ser tocada e partilhar E pessoalmente amar.

Ele suspirara ao ler, porque desejava realmente ver Karen. E depois pensara, com um sentimento de culpa: Quaisquer complicações em sua vida pessoal eram de sua própria feitura. Desde a noite memorável em que fizera amor com Karen, fora visitá-la duas vezes, durante o dia, apressadamente, a caminho de algum lugar ou vindo de outro. Sabia que Karen ansiava por mais tempo juntos, com mais intimidade.

A ausência de Ruth parecia uma oportunidade para se encontrar com Karen de maneira mais satisfatória; e ir ao concerto sinfónico, ao invés de passar a noite na casa dela, era um compromisso com sua consciência.

Ao chegar ao apartamento de Karen, Nim já a encontrou pronta, num elegante vestido vermelho escuro e com um colar de pérolas de uma volta. Os cabelos louros compridos, brilhando suavemente, caíam pelos ombros. A boca generosa e os olhos azuis sorriram numa saudação afetuosa. As unhas dos dedos compridos, repousando no colo, estavam pintadas.

Quando se beijaram, deixando que a intimidade os envolvesse, Nim sentiu seu desejo por Karen, que estivera apenas adormecido, reviver intensamente. Sentiu-se aliviado por terem que sair.

Um ou dois minutos depois, com Josie na sala e desligando a cadeira de rodas da tomada na parede, a fim de torná-la móvel, Karen disse:

- Nimrod, você tem passado por uma grande tensão. Dá para se perceber.

- Tive alguns problemas. E leu as notícias sobre alguns nos jornais. Mas esta noite vamos pensar apenas em você, eu e a música.

- E eu também - disse Josie, contornando a cadeira de rodas e fitando Nim, que era obviamente um dos seus prediletos, com uma expressão radiante. - Mas tudo o que vou fazer é guiar o carro. Se quiser descer com Karen dentro de alguns minutos, Sr. Goldman, seguirei na frente para buscar Humperdinck.

- Ah, Humperdinck! - Nim soltou uma risada. - Como está o seu furgão com uma personalidade, Karen?

- Ainda maravilhoso. Mas... - O rosto dela se toldou por um momento. - Estou bastante preocupada com meu pai.

- Por quê?

Karen mexeu a cabeça.

- Vamos esquecer agora. Talvez eu lhe conte mais tarde.

Como sempre, Nim ficou impressionado com a habilidade com que Karen, usando apenas o tubo pneumático à altura de sua boca, pilotou a cadeira para fora do apartamento, através do corredor, até o elevador. No caminho, ele perguntou:

- Qual a duração de sua bateria? Karen riu.

- Esta noite estou plenamente carregada. Usando a bateria para a cadeira e o respirador, provavelmente posso aguentar umas quatro horas. Depois disso, terei que me ligar novamente à velha GSP & L.

Nim não podia deixar de sentir-se fascinado pela ténue ligação de Karen à vida, pelo fato de a eletricidade ser o fato primordial para mantê-la viva.

- Por falar em GSP & L, Nimrod, como vão seus problemas?

- Sempre temos um novo tormento a todo instante, brotando como mato.

- Estou falando sério, Nimrod. Eu gostaria de saber.

- Subitamente, o petróleo se transformou na nossa maior preocupação. Já soube que as conversações iniciadas ontem entre a OPEP e os Estados Unidos foram suspensas hoje?

- Ouvi no rádio, pouco antes de você chegar. Os países exportadores de petróleo dizem que não vão mais aceitar qualquer papel-moeda. Agora, só querem ouro.

- Eles já fizeram a ameaça por diversas vezes antes. - Nim estava recordando sua conversa com J. Eric Humphrey e Paul Yale pouco antes do Natal. Na ocasião, o problema do petróleo já causava preocupações; agora, em março, chegara a um ponto crítico. - Mas desta vez parece que pretendem mesmo cumpri-la.

- Se o petróleo importado parar de chegar, a situação vai ficar muito ruim?

- Muito pior do que a maioria das pessoas acredita. Mais da metade do petróleo que a América consome é importado, sendo que oitenta e cinco por cento vêm das nações da OPEP. Quando se pensa numa escassez de petróleo, é quase sempre em termos de carros e gasolina, não de eletricidade.

Nimcefletiu novamente, como já o fizera a caminho do apartamento de Karen: a mais dramática confrontação com as nações petrolíferas da OPEP, com um potencial muito mais devastador que o embargo árabe de 1973-74, ocorrera nas últimas 48 horas. Era uma possibilidade que todos sabiam, mas relativamente poucos levavam a sério. Os eternos otimistas, inclusive alguns em altos postos federais, ainda esperavam que se pudesse evitar uma confrontação decisiva, que de um jeito ou de outro continuasse a fluir o Niagara de petróleo importado. Nim jamais partilhara essa convicção.

Ocorreu-lhe um pensamento, relativo a Karen. Mas antes que tivesse tempo de expressá-lo, o elevador parou e as portas se abriram. Lá dentro, estavam duas crianças pequenas, um menino e uma menina, joviais e felizes, provavelmente com nove e dez anos.

- Oi, Karen! - disseram os dois, quando a cadeira de rodas entrou, seguida por Nim.

- Olá, Philip e Wendy - respondeu Karen. - Vão sair? O menino é que respondeu:

- Não. Estamos apenas descendo para brincar. - Ele olhou para Nim. - Quem é ele?

- É o Sr. Goldman. Vamos sair juntos. - Ela explicou para Nim:

- Esses dois são meus vizinhos e amigos.

Eles se cumprimentaram enquanto o elevador descia. Depois, o garoto perguntou:

- Karen, posso tocar em sua mão?

- Claro.

Ele o fez, correndo os dedos gentilmente e depois perguntando:

- Pode sentir?

- Posso, sim, Philip. Você tem mãos suaves.

Ele pareceu ficar interessado e satisfeito. Sem querer ficar para trás, a menina indagou:

- Karen, quer que eu mude suas pernas de posição?

- Bem... está certo.

Cuidadosamente, aparentemente sabendo o que fazer, a menina levantou a perna direita de Karen e cruzou-a sobre a esquerda.

- Obrigada, Wendy.

No saguão lá embaixo, as crianças se despediram e saíram correndo. Nim comentou:

- Foi maravilhoso, Karen...

- Sei disso. - Ela sorriu, feliz. - As crianças são tão naturais... Não sentem medo nem ficam confusas, como os adultos. Assim que cheguei aqui para morar, as crianças do prédio viviam fazendo-me perguntas: "O que há com você? "... "Por que não pode andar?" Os pais, sempre que ouviam diziam prontamente um "Psiu!" Levei algum tempo, mas consegui fazer com que todos compreendessem que não me importo com as perguntas; ao contrário, até as aprecio. Mas ainda existem muitos adultos que ficam constrangidos. Quando me vêem, olham para o outro lado.

Josie estava esperando com o furgão diante da entrada do prédio. O veículo era um Ford, pintado de verde claro, a porta corrediça no lado já aberta. Karen manobrou a cadeira de maneira a ficar de frente para a porta, a poucos passos de distância.

- Se ficar observando, Nimrod, vai descobrir o que o Sr. Paulsen fez para ajudar-me a entrar em Humperdinck.

Enquanto Karen falava, Josie tirava do interior do veículo dois pedaços de trilhos de aço, que prendeu na base da porta, baixando as outras extremidades até o chão. Entre o interior do furgão e a calçada, havia agora uma rampa dupla, a largura combinando com as rodas da cadeira de Karen.

Josie entrou no furgão e pegou um gancho na extremidade de um cabo de aço, que estava preso a um guincho elétrico no outro lado. Foi prender o gancho numa argola na cadeira de rodas, depois voltou para junto do guincho. Apertou um botão.

- Lá vamos nós! - disse Karen.

A cadeira de rodas foi suavemente puxada pela rampa acima. Uma vez lá dentro, Josie virou a cadeira, ajeitando as rodas em duas depressões no chão, prendendo-as com um ferrolho. Sorrindo, Josie disse para Nim:

- Vai na frente, Sr. Goldman. com a motorista.

Ao saírem do pátio do prédio e entrarem no tráfego, Nim virou-se no banco da frente para falar com Karen. Voltou ao assunto que estava prestes a abordar quando haviam entrado no elevador:

- Se houver uma grave escassez de petróleo, certamente haverá blackouts temporários. Sabe o que isso significa?

Karen assentiu.

- Significa que o fornecimento de energia elétrica será deliberadamente cortado em lugares diferentes, por algumas horas de cada Vez.

- Exatamente. Provavelmente começaremos com três horas por dia, depois passaremos a períodos mais prolongados, se a situação se agravar. Se isso acontecer, no entanto, darei um jeito de avisá-la com bastante antecedência, a fim de que possa ir para um hospital que disponha dos seus próprios geradores.

- É o Redwood Grove - disse Karen. - Foi para lá que Josie e eu seguimos na noite em que os tais Amigos da Liberdade explodiram as subestações e houve um blackout.

- vou descobrir amanhã como estão os geradores de Redwood Grove - prometeu Nim. - Às vezes, esses geradores de reserva não valem nada, porque não recebem a manutenção apropriada. Quando Nova York sofreu seus grandes blackouts, muitos nem sequer funcionaram.

- Não me vou preocupar... não com você cuidando de mim, Nimrod.

Josie era uma boa motorista e Nim relaxou durante a viagem até o Palácio das Artes, onde a orquestra sinfónica da cidade se estava apresentando. Na entrada principal, enquanto Josie estava descarregando a cadeira de rodas de Karen, prontamente apareceu ajuda, na pessoa de um porteiro uniformizado, que conduziu Karen e Nim através de uma porta lateral até o elevador, que os levou ao balcão nobre. Ficaram na parte da frente de um camarote, com uma rampa móvel facilitando a passagem da cadeira de rodas, sempre que necessário. Era evidente que o Palácio das Artes estava acostumado a ter pessoas em cadeiras de rodas entre os seus frequentadores.

Depois que se acomodaram, Karen olhou ao redor e disse:

- É um tratamento todo especial, Nimrod. Como conseguiu?

- A velha GSP & L, como a chama, ainda tem alguma influência. Fora Teresa Van Buren que providenciara tudo, a pedido de Nim.

Quando ele se dispusera a pagar, Tess respondera:

- Esqueça! Ainda restam uns poucos privilégios aos executivos. Trate de aproveitá-los enquanto há tempo.

Nim suspendeu o programa para que Karen pudesse ler. Mas, depois de um momento, ela sacudiu a cabeça.

- Gosto muito de ouvir, mas estou convencida de que a crítica musical e os comentários de programas são escritos por pessoas tentando provar como são inteligentes.

Nim não pôde deixar de rir.

- Concordo plenamente.

No momento em que as luzes diminuíram e o maestro subiu ao pódio, em meio aos aplausos, Karen disse, suavemente:

- Nimrod, as coisas entre nós estão diferentes, não é mesmo? Nim ficou aturdido com a percepção dela, mas não houve tempo para responder, porque a música logo começou.

O programa era à base de Brahms, começando com Variações sobre um Tema de Haydn. Imediatamente depois: Concerto para Piano N 2 em Si Bemol Maior. O solista, excepcional, era Eugene Istomin. O concerto para piano estava entre as peças prediletas de Nim. E a julgar pela expressão extasiada dela, era também de Karen. Durante o terceiro movimento, com sua comovente e impressionante melodia em cello, Nim pôs a mão sobre a de Karen. Quando Karen virou a cabeça, ele percebeu que os olhos dela estavam cheios de lágrimas.

Finalmente a música terminou, sob aplausos entusiásticos, aos quais Nim se juntou - "Por nós dois, Nimrod, por favor!", pediu Karen - e as luzes se acenderam para o intervalo.

Enquanto outros se levantavam para darem uma volta, Nim e Karen permaneceram onde estavam. Ambos ficaram em silêncio por um momento, até que ela disse:

- Se quiser, pode responder à minha pergunta agora.

Nim não precisava indagar qual era a pergunta. Suspirando, ele disse:

- Acho que nada continua igual para sempre.

- Seríamos tolos se esperássemos que isso acontecesse - concordou Karen. - Quero que saiba que eu jamais pensei assim. É bom sonhar de vez em quando, desejar o impossível, querer que tudo de bom dure para sempre. Mas, se aprendi uma coisa foi ser realista. Seja franco comigo, Nimrod. O que aconteceu? O que mudou entre a última vez e agora?

Foi então que Nim contou tudo. Falou sobre Ruth, o câncer que se espalhara pelo corpo dela, ameaçando-lhe a vida, como havia reencontrado, por causa disso, o que por muito tempo estivera perdido.

Karen escutou em silêncio e depois disse:

- No momento em que o vi esta noite, compreendi que havia algo diferente, algo importante e pessoal. Agora que sei por que, de certa forma me sinto contente, por você. E triste também, é claro, especialmente por sua esposa.

- Podemos ter sorte.

- É o que espero. Algumas pessoas têm...

A orquestra estava voltando para a segunda parte do concerto. Os espectadores voltavam a seus lugares. Karen murmurou:

- Não devemos mais ser amantes. Não seria justo nem direito.

Mas espero que continuemos a ser amigos e que eu torne a vê-lo de vez em quando.

Nim tocou na mão dela e conseguiu balbuciar, antes de a música começar:

- Amigos... para sempre...

Na volta, eles ficaram mais silenciosos do que na ida. Josie também parecia ter percebido a mudança e pouco falou. Recebera-os à saída com Humperdinck, tendo ido visitar amigos enquanto Nim e Karen estavam no Palácio das Artes.

Depois de algum tempo, virando-se no banco da frente para fitar Karen, Nim disse:

- Falou antes que estava preocupada com seu pai. Não quis falar a respeito na ocasião. Gostaria de falar agora?

- Não há muito o que dizer. Tenho certeza de que Papai está metido em alguma encrenca... creio que financeira. Já fez algumas insinuações, mas não me quer dizer exatamente o que é. Porém, sei que significa que não vou poder contar com Humperdinck por muito mais tempo.

Nim ficou chocado.

- Mas por quê?

- As prestações são demais para meus pais. Acho que lhe contei que o banco não quis emprestar o dinheiro a Papai e por isso ele teve que pedir emprestado a uma financeira, com juros muito mais altos. Tenho a impressão de que isso e dificuldades no negócio o deixaram numa situação crítica.

- Escute, Karen, eu gostaria de ajudar...

- Não! Já disse uma vez antes, Nimrod, que jamais aceitaria dinheiro de você. E estava falando sério. Você tem sua própria família para cuidar. E por mais que eu ame Humperdinck, vivia antes sem um carro e posso voltar a viver. É com Papai que estou preocupada.

- Eu gostaria realmente que houvesse alguma coisa em que pudesse ajudar...

- Continue meu amigo, Nimrod. Isso é tudo o que peço.

Eles se despediram, com um beijo terno, não mais ardoroso, diante do prédio em que Karen morava. Por sugestão dela, alegando que estava cansada, Nim não subiu. Afastou-se tristemente de volta a seu carro, estacionado a um quarteirão de distância.

 

Na última semana de março, a dramática crise do petróleo, irrompendo abruptamente, ofuscou tudo o mais, dominando o noticiário nacional e internacional.

- É como se fosse uma guerra iminente - comentou alguém, numa reunião do comité executivo da GSP & L. - A gente fica pensando que não vai acontecer e tudo parece irreal até que os canhões começam a disparar.

Não havia nada de irreal na decisão unânime das nações da OPEP. Os membros da OPEP - os países árabes e o Ira, Venezuela, Indonésia e Nigéria - haviam determinado poucos dias antes: depois que os petroleiros em alto-mar e nos portos americanos descarregassem, mais nenhum petróleo seria enviado para os Estados Unidos até que estivesse resolvida a divergência sobre o pagamento.

As nações da OPEP afirmavam que dispunham de amplas reservas de dólares para aguentar o embargo, muito maiores do que os estoques de petróleo dos Estados Unidos, faziam questão de ressaltar.

- Infelizmente, é verdade - disse aos repórteres em Washington o exausto Secretário de Estado, chegando de viagem, num momento vulnerável e antidiplomático.

Na Golden State Power & Light, assim como em todo o país, estavam sendo tomadas decisões políticas urgentes. Na esfera da GSP & L, a questão não era "se" haveria blackouts temporários disseminados, mas sim "quando" e em que extensão.

Os dois anos anteriores de seca na Califórnia e as poucas nevascas na Sierra Nevada estavam agravando o problema, porque as reservas hidrelétricas eram consideravelmente menores do que o normal.

Nim, cuja função como vice-presidente de planejamento situava-o no centro de atividades, empenhou-se numa sucessão de agitadas reuniões, com o objetivo de rever os planos de emergência e definir as prioridades.

Enquanto isso, algumas prioridades nacionais e estaduais já haviam sido determinadas. O Presidente dos Estados Unidos ordenara imediatamente o racionamento de gasolina e um sistema auxiliar de cupões já estava preparado, para ser acionado em poucos dias, em caso de necessidade. Adicionalmente, a venda de gasolina estava suspensa, da noite de sexta-feira té a manhã de segunda.

Washington também determinara o cancelamento de todos os grandes eventos esportivos e outras atracões que pudessem provocar a ocorrência de multidões, além do fechamento dos parques nacionais. O objetivo era reduzir as viagens desnecessárias, especialmente em automóveis. Comentou-se que os teatros e cinemas poderiam também ser mais tarde fechados.

Todas as companhias de eletricidade que usavam petróleo receberam ordem de poupar o consumo, através de redução da voltagem.

 

As companhias que geravam eletricidade à base de carvão, principalmente na Região Central dos Estados Unidos, receberam instruções para transmitir tanta energia quanto pudessem dispor para as Regiões Leste eOeste, que seriam gravemente afetadas pelo embargo do petróleo e onde se esperava o desemprego em massa nas fábricas e outros empreendimentos que seriam prejudicados pela escassez de energia. O plano recebeu o nome de "Carvão na Linha". Contudo, seu efeito seria limitado, em parte porque a Região Central dos Estados Unidos precisava de quase toda a energia que gerava para o consumo local, em parte porque as linhas de transmissão de longa distância eram relativamente poucas.

Em muitas áreas, as escolas estavam sendo fechadas e só seriam reabertas no verão, quando as necessidades de aquecimento e iluminação seriam muito menores. As reduções nas viagens aéreas estavam sendo estudadas seriam em breve anunciadas.

O público foi advertido que medidas mais drásticas, inclusive finsde-semana de três ou mesmo quatro dias, seriam em seguida adotadas, caso não houvesse qualquer melhoria na crise do petróleo.

Acompanhando todas as medidas oficiais, havia súplicas para a poupança voluntária de energia, em todas as suas formas.

Na Golden State Power & Light, todas as discussões eram ofuscadas pelo conhecimento de que as reservas de petróleo disponíveis só dariam para 30 dias de operações normais.

Como ainda se esperava a chegada de mais algum petróleo, dos petroleiros a caminho, ficou decidido que os blackouts temporários seriam retardados até segunda semana de maio. Após, as interrupções no fornecimento de energia seriam inicialmente de três horas por dia, depois do que seriam necessárias medidas mais draconianas.

Mas sabia-se que até mesmo as interrupções iniciais seriam altamente prejudiciais à economia do Estado. Nim tinha conhecimento de que a situação era crítica, assim como as outras pessoas diretamente envolvidas. Mas o público em geral ainda não havia compreendido ou talvez se recusasse a aceitar o significado do que estava acontecendo.

Além de suas funções de planejamento e por causa de sua reintegração no cargo de porta-voz da companhia, Nim era constantemente convocado para explicar a situação atual e as perspectivas. Descobriu que as duas responsabilidades eram demais e disse a Teresa Van Buren:

- Pode deixar que falarei em todas as ocasiões mais importantes. Mas use seu próprio pessoal para resolver os problemas menores.

Teresa concordou. No dia seguinte, ela foi à sala de Nim e disse:

- Há um programa de televisão ao meio-dia chamado Intervalo para o Almoço.

- Pode acreditar, Tess, mas nunca assisti.

- Muito engraçado... Mas não seja tão precipitado ao escarnecer dos programas de televisão durante o dia. Há pelo menos um milhão de donas-de-casa que assistem a esse programa. E amanhã eles querem que alguém explique a crise de eletricidade.

- E esse alguém sou eu?

- Claro! Quem pode explicar melhor? Nim sorriu.

- Está certo. Mas vai ter de fazer uma coisa por mim. Todas as emissoras de televisão se especializam em desperdício de tempo. Pedem para a gente chegar bem cedo, só para depois se ficar esperando interminavelmente. Sabe como ando ocupado atualmente, para variar. Por isso, dê um jeito para que eu entre e saia depressa.

- vou acompanhá-lo pessoalmente e prometo que darei um jeito para que não demore.

Mas a promessa não foi cumprida.

Intervalo para o Almoço era um programa de uma hora e que entrava no ar ao meio-dia. A vice-presidente de relações públicas e Nim chegaram aos estúdios da TV às 11h50min. Foram recebidos por uma jovem assistente do programa; como muita gente que trabalhava na televisão, ela se vestia e dava a impressão de ter saído da escola secundária na semana anterior. Exibia a típica identificação do ofício - uma prancheta - e os óculos estavam metidos nos cabelos.

- Oi, Sr. Goldman! Será o último a entrar no ar, às dez para uma.

- Ei, essa não! - protestou Teresa Van Buren. - Asseguraramme de que o Sr. Goldman seria o primeiro. Ele é um dos nossos principais executivos e seu tempo é valioso, especialmente agora.

- Sei disso. - A assistente sorriu suavemente. - Mas o produtor mudou de ideia. O assunto do Sr. Goldman é um tanto pesado e pode deprimir a audiência.

- Eles já deveriam estar deprimidos - comentou Nim.

- Se ficarem e desligarem, nosso programa estará de qualquer forma terminado - disse a jovem, firmemente. - Enquanto esperam, não querem ficar no estúdio? Assim, poderão assistir ao resto do programa.

Teresa olhou para Nim, erguendo as mãos num gesto de impotência. Resignado, embora sabendo quanto trabalho urgente poderia realizar naquela hora inútil, Nim murmurou:

- Está certo.

A jovem assistente, que já representara aquela cena muitas vezes, disse:

- Venham comigo, por favor.

O estúdio de TV, movimentado e intensamente iluminado, procurava reproduzir o ambiente de uma sala de estar. O centro de tudo era um sofá laranja, ocupado por dois entrevistadores, Jerry e Jean, jovens, animados, sintonizados, beautiful people. Três câmaras de televisão rondavam na frente, num semicírculo. e convidados iam-se juntar aos entrevistadores, sob as luzes intensas, um a um. O primeiro segmento de 10 minutos do programa foi dedicado a um urso-dançarino de um circo em visita à cidade, o segundo a uma avó de 70 anos que viajara desde Chicago em patins de rodas.

- Usei cinco pares de patins - gabou-se ela. - E teria chegado mais depressa, se a polícia não me impedisse de viajar nas auto-estradas interestaduais.

Imediatamente antes de Nim apresentou-se o "Médico da Família" de Intervalo para o Almoço.

- Ele vai ao ar todos os dias e tem uma tremenda audiência - informou a jovem assistente, num sussurro. - Muita gente liga especialmente para assistir a ele. Por isso, quando o senhor entrar logo a seguir, todo mundo estará assistindo.

O médico, na casa dos 50 anos, cabelos grisalhos, aparência distinta, era um verdadeiro artista, conhecendo todos os recursos do manual da televisão, inclusive como sorrir candidamente, quando bancar o médico paternal e qual o momento propício para apresentar um diagrama simplista do estômago.

"Meu assunto de hoje é a prisão de ventre", informou ele à audiência invisível. Nim ficou observando e escutando, fascinado. "Muitas pessoas se preocupam desnecessariamente. O que não se deve fazer é tomar laxativos. Milhões de dólares em laxativos são vendidos todos os anos... um desperdício total. Muitos são até prejudiciais a sua saúde. Quase sempre, a prisão de ventre é imaginária. Um movimento diário dos intestinos pode ser um fetiche desnecessário... Deixe que se processe o seu ciclo natural. Para alguns, cinco a sete dias sem ir ao banheiro é normal. Seja paciente, espere... Um problema verdadeiro: algumas pessoas não atendem imediatamente ao chamado da natureza. Estão ocupados e por isso adiam. Isso é péssimo. Os intestinos ficam desencorajados, cansados de tentar... Coma alimentos que auxiliem os movimentos dos intestinos, beba bastante água para permanecer úmido..." Teresa Van Buren inclinou-se e murmurou:

- Desculpe, Nim...

- Não há por que desculpar-se, Tess. Eu não gostaria de perder esse espetáculo por nada neste mundo. Só espero que eu não seja um anticlímax.

O médico saiu do ar, um comercial entrou em seu lugar. A jovem assistente pegou o braço de Nim.

- É a sua vez, Sr. Goldman.

Ela acompanhou-o até o centro do cenário, onde Nim se sentou. Enquanto o comercial continuava, Nim apertou as mãos dos entrevistadores. Franzindo o rosto, Jerry avisou-o.

- Estamos atrasados e não dispomos de muito tempo. Por isso, dê respostas bem curtas.

Ele recebeu algumas anotações que lhe foram entregues por outra jovem assistente. Depois, como se tivesse ligado um interruptor, seu sorriso ressurgiu e ele virou-se na direção de uma das câmeras.

- Nosso último convidado de hoje é um grande conhecedor de eletricidade e petróleo. Ele é...

Depois da apresentação, Jean perguntou a Nim, jovialmente:

- É verdade que vamos ter realmente cortes no fornecimento de energia ou isso não passa de outra tática de apavoramento, algo que no final acaba não acontecendo?

- Não é tática de apavoramento e vai mesmo acontecer. - Estão querendo respostas curtas, pensou Nim; pois aí está.

Jerry estava consultando as anotações que recebera.

- Sobre a suposta escassez de petróleo... Nim interrompeu-o rapidamente:

- Não tem nada de suposta. É real. O sorriso do entrevistador aumentou.

- Vamos deixá-lo escapar impune com essa. - Ele voltou a consultar as anotações. - Não tivemos recentemente uma superabundância de petróleo na Califórnia, vindo do Alasca através de um oleoduto?

- Houve alguns excedentes locais temporários - confirmou Nim.

- Mas agora, com o resto do país precisando desesperadamente de petróleo, todo e qualquer excedente vai desaparecer rapidamente.

- Parece uma posição um tanto egoísta - disse Jean - mas não podemos manter esse petróleo do Alasca na Califórnia?

- Não. - Nim sacudiu a cabeça, aumentando a ênfase. - É o governo federal quem o está controlando e já definiu um programa de distribuição. Cada Estado e cada cidade do país está pressionando Washington, exigindo uma cota. Mas não sobrará muita coisa para ninguém, quando o petróleo interno disponível for tão espalhado.

- Pelo que estou informado - disse Jerry, sacudindo as anotações

- a Goiden State Power possui um suprimento de petróleo para trinta dias. A situação não parece tão ruim assim.

- O dado é verdadeiro num sentido, mas ilusório em outro - explicou Nim. - Por um lado, é impossível usar o petróleo até o fundo de cada tanque. Por outro, o petróleo nem sempre está disponível onde é mais necessário. Uma usina geradora pode ficar sem petróleo, enquanto outra ainda possui uma reserva para vários dias. Os recursos para transportar grandes quantidades de petróleo são limitados. Por tudo isso, seria mais realista fixar-se um prazo de vinte e cinco dias.

- Pois vamos esperar que tudo volte ao normal antes que se esgotem esses vinte e cinco dias - comentou Jerry.

- Não há a menor possibilidade disso acontecer - assegurou Nim.

- Mesmo que se chegue a um acordo com as nações produtoras de petróleo da OPEP, será necessário pelo menos...

- com licença, mas nosso tempo está acabando e tenho outra pergunta a fazer, Sr. Goldman - disse Jean. - Sua companhia não poderia ter previsto o que poderia acontecer e formulado outros planos para uma emergência dessas?

Nim ficou atónito com a afronta, a injustiça, a tremenda ingenuidade da pergunta. A raiva invadiu-o. Conseguindo dominá-la a custo, ele respondeu:

- A Goiden State Power & Light vem tentando fazer justamente isso há pelo menos dez anos. Mas tudo o que a nossa companhia propôs... usinas geotérmicas, de bombeamento e acumulação, à base de carvão, nucleares... enfrentou a oposição, foi protelado ou impedido por...

Jerry tornou a interrompê-lo:

- Lamento muito, mas nosso tempo acabou. Muito obrigado por ter comparecido, Sr. Goldman. - Virando-se para outra câmera, ele acrescentou: - Entre os convidados interessantes de Intervalo para o Almoço de amanhã, haverá um swami indiano e...

Ao saírem do prédio da emissora de TV, Teresa Van Buren, desanimada, disse para Nim:

- Mesmo agora, ninguém acredita em nós, não é mesmo?

- Eles vão acreditar muito em breve, Tess... assim que começarem a ligar os interruptores e nada acontecer.

Enquanto os preparativos para os blackouts prosseguiram e uma sensação de crise dominava a GSP & L, as incongruências persistiam.

Por exemplo: as audiências da Comissão de Energia sobre Tunipah continuavam, inalteráveis, no mesmo ritmo irritante original. Durante um almoço em companhia de Eric Humphrey e Nim, Oscar O'Brien comentou:

- Um extraterrestre que chegasse de Marte e tivesse um mínimo de bom senso iria imaginar que, tendo em vista a atual situação de emergência no setor de energia, o sistema para a autorização de projetos como Tunipah, Fincastle e Portão do Diabo seria acelerado. Pois o Sr. Marciano de bom Senso estaria redondamente enganado.

O advogado comeu sombriamente uma parte do almoço, antes de continuar:

- Quando se está naquelas audiências, escutando os depoimentos, com os mesmos argumentos de sempre, fica-se com a impressão de que ninguém sabe ou não se importa com o que está acontecendo no mundo real lá fora. Por falar nisso, temos um novo grupo combatendo Tunipah. Intitula-se CCPED. Se bem me lembro, isso significa Cruzados Contra Projetos de Energia Desnecessários. Em comparação com as acusações desses Cruzados à Golden State Power & Light, Davey Birdsong era um amigo e aliado.

- A oposição é uma hidra de incontáveis cabeças - disse Humphrey; acrescentando, depois de uma breve pausa: - O apoio do Governador a Tunipah não parece ter causado muito efeito, se é que algum.

- Porque as burocracias são mais fortes do que os governadores, presidentes, do que qualquer um de nós - respondeu Oscar O'Brien. Combater a burocracia atualmente é como se debater num mar de lama em que se está afundado até os ombros. vou fazer uma previsão: quando os blackouts atingirem o prédio da Comissão de Energia, as audiências sobre Tunipah continuarão à luz de velas... sem qualquer alteração.

Quanto aos projetos de Fincastle e Portão do Diabo, informou O'Brien, ainda nem tinham sido fixadas as datas, pelos órgãos responsáveis, para o início das audiências.

O desapontamento geral de Oscar O'Brien, assim como o de Nim, estendia-se também à Pesquisa de Consumidor, distribuída no bairro de North Castle.

Quase três semanas já se haviam passado desde que o questionário meticulosamente planejado fora remetido pelo correio e agora parecia que a tentativa de atrair para uma armadilha o líder terrorista, Georgos Archambault, fracassara inteiramente, fora um desperdício de tempo e dinheiro.

Alguns dias depois da remessa, centenas de respostas haviam chegado e outras continuaram a ser recebidas nas semanas subsequentes. Uma grande sala no subsolo da sede da GSP & L fora destinada para receber as respostas e uma equipe de oito homens estava ali trabalhando. Seis haviam sido emprestados por diversos departamentos da companhia e dois eram do gabinete do Promotor Distrital. Estavam examinando meticulosamente todos os questionários devolvidos.

O gabinete do Promotor Distrital também enviara ampliações fotográficas de amostras da caligrafia do diário de Georgos Archambault. Para evitar qualquer equívoco, cada questionário era separadamente examinado por três homens. O resultado era claro: nenhuma das respostas tinha qualquer semelhança com as amostras de caligrafia.

Agora, a equipe especial estava reduzida a dois homens, os demais tendo voltado às suas funções anteriores. Umas poucas respostas continuavam a chegar e estavam sendo rotineiramente examinadas. Mas parecia improvável, àquela altura dos acontecimentos, que se tivesse notícias de Georgos Archambault.

Para Nim, de qualquer forma, o problema se tornara muito menos importante do que a grave crise do petróleo, que ocupava os seus dias e noites de trabalho.

Foi durante uma reunião sobre petróleo depois do expediente, no gabinete de Nim, com a presença do Diretor de Suprimento de combustível, o chefe do Departamento de Previsão de Carga e mais outros dois chefes de departamentos, que ele recebeu um telefonema que nada tinha a ver com o assunto em debate, mas que o deixou profundamente perturbado.

Victoria Davis, a secretária de Nim, também estava trabalhando depois do expediente e tocou a campainha do interfone, interrompendo a reunião. Irritado, Nim atendeu e disse bruscamente:

- O que é?

- A Srta. Karen Sloan está ao telefone - informou Vicki. - Eu não queria interrompê-lo, mas ela insistiu que era muito importante.

- Diga a ela... - Nim hesitou; ia dizer que ligaria mais tarde ou na manhã seguinte, mas mudou de ideia subitamente. - Pode deixar que vou atender.

Pedindo licença aos outros, ele apertou o botão aceso no aparelho.

- Olá, Karen.

Sem qualquer preliminar, a voz tensa, Karen foi logo dizendo:

- Nimrod, meu pai está metido numa encrenca terrível. Estou telefonando para ver se pode ajudá-lo.

- Qual é a encrenca?

Nim recordou-se da noite em que fora com Karen ao concerto sinfónico, quando ela dissera mais ou menos a mesma coisa, sem ser mais específica.

- Obriguei Mamãe a me contar. Papai não queria falar. - Karen fez uma pausa; Nim compreendeu que ela estava fazendo um esforço para recuperar o controle. - Creio que já sabe que Papai tem um pequeno negócio de instalação de encanamentos...

- Sei, sim. - Nim se lembrou de que Luther Sloan falara a respeito de sua pequena empresa no dia em que se haviam encontrado no apartamento de Karen. Fora nesse mesmo dia que tanto o pai como a mãe haviam revelado a Nim o seu sentimento de culpa pela filha quadriplégica.

- Pois Papai foi interrogado várias vezes por gente da sua companhia, Nimrod, e agora por detetives da polícia.

- Interrogado a respeito de quê?

Karen hesitou novamente, antes de responder:

- Segundo Mamãe me contou, Papai fazia uma porção de trabalhos para uma companhia chamada Quayle. O trabalho era em tubulações de gás, alguma coisa relacionada com os medidores.

- Diga novamente o nome da companhia, Karen.

- É Quayle. Por acaso a conhece?

- Conheço...

Parecia quase certo, pensou Nim, que Luther Sloan estava também envolvido no furto de gás. Embora Karen não o soubesse, a referência a tubulações de gás e relação com os medidores era uma delação involuntária. Isso e mais a alusão à Quayle, os ladrões de energia em grande escala, já denunciados e ainda sendo investigados por Harry London. O que fora mesmo que Harry dissera recentemente? "Há uma porção de casos novos, além de outros decorrentes da investigação da Quayle." Parecia não haver a menor dúvida de que Luther Sloan estava incluído entre os "outros".

A notícia abrupta, a compreensão de todas as implicações, tudo contribuiu para deixá-lo bastante deprimido. Pressupondo que seu palpite fosse correto, por que o pai de Karen fizera tal coisa? Provavelmente pela razão habitual, pensou Nim: dinheiro. Ocorreu-lhe nesse momento que podia também imaginar qual o uso que tivera o dinheiro.

- Se é o que estou pensando, Karen, a situação de seu pai é bastante difícil e não sei se poderei fazer alguma coisa para ajudá-lo. - Nim estava consciente da presença dos subordinados na sala, esperando enquanto ele falava ao telefone, procurando dar a impressão de que não estavam escutando. - Seja como for, não há nada que se possa fazer esta noite - acrescentou ao telefone. - Mas vou descobrir o que for possível amanhã de manhã e depois lhe telefonarei.

Compreendendo que devia estar parecendo extremamente formal, Nim explicou que naquele momento se encontrava numa reunião em sua sala. Karen se mostrou arrependida.

- Oh, desculpe, Nimrod! Eu não deveria tê-lo incomodado!

- Pode incomodar-me na hora em que quiser, Karen. E amanhã farei tudo o que puder.

Retomando a conversa sobre os suprimentos de petróleo, Nim fez um esforço para concentrar-se no que estava sendo dito. Mas, por diversas vezes, seus pensamentos se desviaram. E perguntou a si mesmo, silenciosamente: será que a vida, que desfechara tantos golpes dolorosos em Karen Sloan, estava prestes a desfechar mais um?

 

Insistentemente, algumas vezes quando estava dormindo, outras quando acordado, uma recordação atormentava Georgos Winslow Archambault.

Era a recordação de um dia de verão há muitos e muitos anos, em Minnesota, logo depois do décimo aniversário de Georgos. Fora passar os feriados escolares numa fazenda - esquecera exatamente por que ou como. Georgos e outro menino da sua idade, filho do dono da fazenda, resolveram fazer uma expedição a um velho celeiro, para caçar ratos. Mataram diversos ratos cruelmente, usando ancinhos com pontas afiadas para espetá-los. Finalmente, um rato imenso ficara encurralado num canto. Georgos recordava-se dos olhos brilhantes do animal, quando os dois meninos se aproximavam. Em desespero, o rato atacara, dando um salto e cravando os dentes na mão do outro menino, que gritara de dor. Mas o rato sobrevivera apenas por alguns segundos, porque Georgos o derrubara no chão com seu ancinho e depois o matara.

Mas, por alguma razão, Georgos jamais esquecera a atitude de desafio do rato antes do seu fim inevitável.

Agora, no esconderijo em North Castle, ele sentia uma terrível afinidade com o rato.

Quase oito semanas já se haviam passado desde que Georgos fora para o novo esconderijo. Era algo que o surpreendia. Não esperara sobreviver por tanto tempo, depois da abundância de publicidade a respeito de si mesmo e dos Amigos da Liberdade, em seguida ao ataque ao Hotel Christopher Columbus. Descrições de Georgos haviam sido amplamente divulgadas, e fotografias dele, encontradas na casa da Rua Crocker, haviam aparecido na televisão e nos jornais. Ele sabia, pelo noticiário, que fora montada uma gigantesca caçada humana a sua pessoa, em North Castle e outros lugares. Todos os dias Georgos ficava esperando que o descobrissem, o apartamento sendo cercado e invadido.

Mas isso não acontecera.

A princípio, à medida que as horas e dias passavam, a principal emoção de Georgos fora de alívio. Depois, quando os dias se transformaram em semanas, ele começou a se perguntar se não seria possível reconstituir os Amigos da Liberdade. Não poderia recrutar novos seguidores para substituir os três que haviam sido mortos, Wayde, Ute e Felix?

Poderia arrumar mais dinheiro, encontrar um contato exterior que pudesse tornar-se um outro Birdsong? E poderiam retomar a guerra de Georgos contra o odiado inimigo?

Ele pensara na perspectiva, ansiosamente, sonhadoramente, por vários dias. Depois, enfrentando a realidade implacável, relutantemente abandonara a ideia.

Não havia qualquer possibilidade. Não havia chance de restaurar os Amigos da Liberdade, assim como também não havia possibilidade de Georgos sobreviver. As últimas semanas haviam sido apenas uma trégua inesperada, um adiamento do inevitável; e isso era tudo.

Georgos sabia que estava chegando ao fim da linha.

Estava sendo caçado por todas as organizações policiais e continuaria a ser enquanto vivesse. Seu nome e rosto eram conhecidos; as mãos manchadas por substâncias químicas haviam sido descritas; era apenas uma questão de tempo antes que alguém o reconhecesse, em algum lugar. Não dispunha de recursos nem de ajuda, não tinha outro lugar para ir e, o que era mais crítico, o dinheiro que levara para o esconderijo já estava quase acabando. Portanto, sua captura era inevitável... a menos que Georgos decidisse antecipar tudo acabando com a própria vida, numa atitude de desafio, a sua maneira.

E era exatamente o que ele tencionava fazer.

Como o rato da infância de que tão bem se recordava, iria fazer um derradeiro gesto de luta e, se necessário, morrer como vivera, atacando o sistema que tanto odiava. Georgos já decidira: iria explodir uma parte crucial de uma usina geradora da GSP & L. Havia um meio de fazê-lo causando o máximo possível de danos e os planos de Georgos estavam começando a tomar uma forma mais concreta.

Eram baseados no ataque que ele pensara em realizar, junto com os outros combatentes da liberdade, antes de Davey Birdsong apresentar a ideia de explodir a convenção do Instituto Nacional de Eletricidade. Agora, Georgos estava reconstituindo o plano original, embora tivesse que executá-lo sozinho.

Já avançara uma parte do caminho na realização do seu objetivo ao assumir um risco temerário, no mesmo dia em que fora para o novo esconderijo.

A primeira conclusão a que Georgos chegara naquele dia, ao analisar Sua situação, fora a de que precisava urgentemente de um meio de transporte. Não podia dispensar um veículo qualquer. Tivera de abandonar a pickup vermelha do Serviço de Proteção Contra Incêndio porque não poderia usá-la sem ser reconhecido. Mas era essencial ter um substituto.

Não havia possibilidade de comprar um veículo de qualquer espécie. Por um lado, era arriscado demais. Por outro, não dispunha de dinheiro suficiente, pois a maior parte das reservas dos Amigos da Liberdade ficara na casa da Rua Crocker. Assim, raciocinara Georgos, a única possibilidade era recuperar sua Kombi Volkswagen, que poderia ou não já ter sido descoberta pelos porcos e estar sendo vigiada.

Guardava a Kombi numa garagem particular não muito longe da Rua Crocker. Consciente do risco que estava assumindo, apostando na possibilidade de se anteceder à polícia, Georgos fora a pé até a garagem naquela mesma manhã, seguindo por ruas secundárias, na medida do possível.

Chegara sem incidentes, pagara ao dono da garagem o que estava devendo e fora embora. Ninguém o interrogara, não fora detido na volta para North Castle. E a manhã ainda não havia chegado ao fim quando guardara a Kombi na garagem trancada contígua ao apartamento de North Castle.

Animado pelo sucesso, Georgos se aventurara a sair novamente, para comprar comida e uma edição vespertina do Califórnia Examiner. Pelo jornal, soubera que uma repórter chamada Nancy Molineaux dera uma descrição da Kombi e que a polícia a estava procurando. O jornal do dia seguinte trouxera uma nova notícia a respeito, revelando que a garagem fora revistada pela polícia apenas meia hora depois da partida de Georgos.

Sabendo que uma descrição da Kombi fora distribuída, Georgos se abstivera de usá-la novamente. Só voltaria a fazê-lo uma única vez... para o que poderia ser sua derradeira missão.

Havia diversas outras razões pelas quais era importante recuperar a Kombi.

Uma delas era o compartimento secreto que tinha no chão. Ali, cuidadosamente envoltas em espuma de borracha para evitar as vibrações, havia uma dúzia de bombas cilíndricas, cada uma contendo explosivo Tovex e um mecanismo de tempo.

Havia também na Kombi um pequeno bote de borracha inflâvel, ainda embrulhado como Georgos o comprara numa loja de material esportivo cerca de um mês antes, além do equipamento de mergulho, a maior parte também comprada na mesma ocasião. Todos os artigos eram essenciais ao audacioso projeto que ele estava planejando agora.

Nos dias que se seguiram à recuperação da Kombi, Georgos deixara o apartamento ocasionalmente, sempre depois do anoitecer; e quando precisava comprar comida, jamais ia duas vezes à mesma loja. Usava também luvas claras, para esconder as mãos. Além disso, num esforço para mudar a aparência, mesmo que ligeiramente, também raspara o bigode.

As notícias sobre os Amigos da Liberdade e o ataque ao hotel eram importantes para ele, não apenas porque gostava de ler a respeito de si próprio, mas também porque lhe proporcionavam indicações do que a polícia e o FBI estavam fazendo. Apickup abandonada do Serviço de Proteção Contra Incêndio foi mencionada diversas vezes, mas havia também especulações de que Georgos conseguira de algum modo sair da cidade e estava agora no leste. Uma notícia afirmava que ele fora visto em Cincinnati. Ótimo! Qualquer coisa que afastasse as atenções do lugar em que ele realmente estava era extremamente útil.

Ao ler o Examiner naquele primeiro dia, Georgos ficara espantado ao descobrir o quanto a repórter Nancy Molineaux parecia saber de suas atividades. Mas logo depois Georgos percebera que fora Yvette quem tomara conhecimento dos seus planos, de alguma forma, e o traíra em seguida. Sem essa traição, a Batalha do Hotel Christopher Columbus (como agora gostava de pensar a respeito) teria sido uma vitória espetacular dos Amigos da Liberdade, ao invés de uma derrota inglória.

Georgos devia odiar Yvette pelo que ela fizera. Mas descobriu que não era capaz. Em vez disso, com uma fraqueza de que se envergonhava, sentia pena dela e da maneira como morrera (descrita pelo jornal) na Colina Solitária.

Por mais incrível que pudesse parecer, ele sentia mais saudade de Yvette do que jamais julgara possível.

Talvez, pensou Georgos, ele se estivesse tornando sentimental e tolo porque o seu tempo também se esgotava. Se assim era, sentia-se aliviado porque nenhum dos seus colegas revolucionários jamais saberia qualquer coisa a respeito.

Outra coisa que os jornais tinham feito fora levantar a história pessoal de Georgos. Um repórter de iniciativa, que descobrira o registro de nascimento de Georgos na cidade de Nova York, soubera que ele era o filho ilegítimo de uma antiga deusa do cinema grega e de um rico playboy americano chamado Winslow, neto de um pioneiro da indústria automobilística.

Pouco a pouco, toda a história acabara vindo à tona.

A deusa do cinema não quisera admitir que tivera um filho, receando que isso pudesse destruir sua imagem juvenil. O playboy não se importava com coisa alguma, exceto evitar os envolvimentos pessoais e responsabilidades.

Por isso, Georgos fora mantido escondido e tivera diversos pais adotivos ao longo da infância, jamais tendo gostado de nenhum. O nome Archambault vinha de um ramo da família da mãe.

Aos nove anos, Georgos só se encontrara com o pai uma vez e com a mãe três vezes. Depois disso, nunca mais vira nenhum dos dois. Quando criança desejara intensamente encontrar os pais; mas eles estavam igualmente determinados, por motivos diferentes, egoísticos, a não encontrá-lo.

Aparentemente, a mãe de Georgos tivera um pouco mais de consciência que o pai. Pelo menos ela mandara para Georgos quantias substanciais, através de uma firma de advocacia de Atenas, permitindo-lhe cursar Yale e obter um Ph. D. e mais tarde financiar os Amigos da Liberdade.

A antiga atriz de cinema, agora muito longe de uma deusa na aparência, declarara estar chocada ao ser informada pelos repórteres da aplicação de uma parte do seu dinheiro. Paradoxalmente, no entanto, ela parecera apreciar a atenção que Georgos agora lhe proporcionava, talvez porque estivesse vivendo no anonimato, num apartamento miserável nos arredores de Atenas, e bebendo intensamente. Ela também estivera doente, embora se recusasse a falar sobre seu mal.

Quando as atividades de Georgos lhe foram descritas em detalhes, ela comentara:

- Isso não é um filho, mas um animal do diabo!

Quando uma repórter lhe perguntara se não achava que sua própria negligência de Georgos fora em grande parte responsável pelo que ele se tornara, a antiga atriz cuspira no rosto da jovem.

Em Manhattan, o envelhecido playboy que era pai de Georgos esquivara-se à imprensa por vários dias. Ao ser finalmente descoberto pôr um repórter num bar da Rua 59, ele negara a princípio qualquer envolvimento com a atriz de cinema grega, afirmando que nunca lhe fizera um filho. Finalmente, quando lhe apresentaram provas de sua paternidade, ele dera de ombros e fizera uma declaração:

- Meu conselho à polícia atirar no filho da puta à primeira vista... para matar.

Georgos lera os comentários dos pais. Não ficara surpreso, mas servira para aumentar o ódio que sentia contra quase tudo.

E agora, na última semana de abril, Georgos chegou à conclusão de que era o momento para entrar em ação. Por um lado, não podia esperar continuar escondido sem que ninguém o descobrisse por muito mais tempo. Apenas duas noites antes, quando estava comprando comida num pequeno supermercado, descobrira outro freguês, um homem, a fitá-lo com o que parecia ser mais do que simples curiosidade passageira. Georgos se retirara apressadamente. Por outro lado, o impacto inicial de toda a publicidade e a circulação de sua fotografia já deviam terse atenuado um pouco àquela altura.

O plano que Georgos formulara era explodir as gigantescas bombas de esfriamento da usina geradora de La Mission, a mesma onde colocara uma bomba, quase um ano antes disfarçado como oficial do Exército de Salvação, danificando o imenso gerador que os jornais haviam chamado de Big Lil. Tomara conhecimento dessas bombas ao estudar compêndios sobre geração de energia, a fim de determinar onde a GSP & L seria mais vulnerável. Visitara também a Faculdade de Engenharia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde estavam à disposição, para quem quisesse examinar, plantas técnicas de La Mission e outras usinas.

Georgos sabia perfeitamente - sendo outra vez realista - que não havia agora a menor possibilidade de entrar no prédio principal de La Mission, como conseguira fazer no ataque anterior. A instalação estava agora bem vigiada.

Mas com astúcia e um pouco de sorte, poderia entrar na casa das bombas. As 11 bombas imensas e potentes eram essenciais ao funcionamento das cinco unidades geradoras de La Mission, inclusive Big Lil. Destruindo as bombas, ele estaria tirando de operação por vários meses todo aquele sistema gerador.

Seria como cortar uma linha vital.

O melhor acesso era através do Rio Coyote. La Mission fora construída à margem do rio, permitindo que a usina tirasse água para esfriamento e depois a devolvesse. Georgos chegaria à beira da usina pelo rio, usando o bote de borracha. Em seguida, usaria o equipamento de mergulho, no que era especialista, tendo aprendido demolição submarina durante seu treinamento revolucionário em Cuba.

Georgos estudara mapas e sabia que poderia chegar de carro até um quilómetro de La Mission, lançando o bote de borracha no rio num local deserto. A correnteza o ajudaria a chegar à usina. Voltar à Kombi e escapar seria um outro problema, que Georgos deliberadamente preferia ignorar.

Entraria na casa das bombas por baixo dágua, através de uma grade de metal onde faria uma abertura; as ferramentas necessárias estavam guardadas com o equipamento de mergulho. As bombas cilíndricas estariam presas à sua cintura. Uma vez dentro da casa das bombas, colocaria as bombas, em embalagens magnéticas, sem a menor dificuldade. Era um plano extraordinário... como parecera desde o início.

Só restava uma dúvida: quando? Era uma sexta-feira. Avaliando todas as circunstâncias, Georgos decidiu desfechar o ataque na terçafeira seguinte. Deixaria North Castle assim que escurecesse, seguindo na Kombi pelos oitenta e tantos quilómetros até La Mission; ao chegar, lançaria o bote de borracha na água imediatamente.

Agora, tomada a decisão, sentia-se irrequieto. O apartamento, pequeno, sombrio, escassamente mobiliado, parecia uma prisão, especialmente durante o dia. Mas Georgos sabia que seria uma loucura correr o risco de sair. Na verdade, tencionava permanecer no apartamento até a noite de domingo, quando seria indispensável comprar mais comida.

Sentia falta do exercício mental de escrever em seu diário. Poucos dias antes, pensara em começar um novo diário, agora que o original estava perdido, fora capturado pelo inimigo. Mas não conseguira reunir nem a energia nem o entusiasmo para começar a escrever novamente.

Mais uma vez, como já fizera tantas vezes antes, Georgos vagueou pelos três pequenos cómodos do apartamento, sala, quarto e copacozinha.

Na pia da cozinha, seus olhos caíram sobre um envelope que ali estava. Continha o que chamavam de Pesquisa de Consumidor, que chegara na correspondência para o apartamento várias semanas antes, enviada pela Golden State Porra & Lixo. Estava endereçada a um certo Owen Grainger, o que não era de surpreender, pois fora esse o nome que Georgos usara para alugar o apartamento, pagando três meses de aluguel adiantados, para evitar perguntas sobre referências e fiador.

(Georgos sempre pagava o aluguel e outras contas à vista, em dinheiro. Pagar as contas prontamente era parte da técnica terrorista, quando não se queria chamar atenção. As contas não pagas atraíam perguntas indesejáveis.)

Um dos pontos da maldita Pesquisa de Consumidor deixara Georgos tão furioso, na primeira leitura, que ele jogara a xícara que tinha na mão na parede mais próxima, espatifando-a. Dizia o seguinte:

A Golden State Power & Light pede desculpas a seus consumidores pelas inconveniências decorrentes dos covardes ataques a instalações da companhia por pretensos terroristas, que agem por pura ignorância. Se acha que há meios pelos quais se possa deter esses ataques, por favor apresente suas opiniões.

Naquele momento mesmo, Georgos sentara e escrevera uma resposta vigorosa e fulminante, que começava: "Os terroristas que presunçosamente descrevem como covardes e ignorantes não são nada disso. São heróis, importantes, criteriosos, dedicados. Vocês é que são os ignorantes, assim como exploradores criminosos do povo. Mas a justiça haverá de alcançá-los! Fiquem certos de que haverá sangue e morte e não meras inconveniências' quando a gloriosa revolução... "

Ele acabara rapidamente o espaço disponível e usara uma folha extra para concluir a resposta realmente esplêndida.

Uma pena que não a tivesse enviado! Estava prestes a fazê-lo numa de suas expedições noturnas, quando a cautela o advertira: Não faça isso! Pode ser uma armadilha! Por isso, deixara o questionário respondido no lugar onde ainda estava, em cima da pia da cozinha.

O envelope para a resposta que viera com o questionário ainda estava aberto. Georgos tirou novamente o questionário. Releu e concluiu: o que escrevera era realmente magistral. Por que não enviar? Afinal, era anónimo; ele já tirara e jogara fora a parte do questionário que tinha o nome de "Owen Grainger" e o endereço do apartamento. Mesmo isso fora impresso por um computador, algo que Georgos reconhecera imediatamente. Portanto, era tão impessoal quanto todas as correspondências despachadas por computadores.

Alguém deveria ler o que ele escrevera. Quem quer que fosse, seria devidamente sacudido, o que era bom. Ao mesmo tempo, não poderiam deixar de admirar, mesmo que relutantemente, a inteligência do autor.

Tomando outra decisão, Georgos fechou o envelope. Poria numa caixa de correspondência quando saísse do apartamento, na noite de domingo.

Recomeçou a andar de um lado para outro e, embora realmente não o desejasse, voltou a pensar naquele dia tão distante de sua infância em que vira o rato acuado.

Aproximadamente na mesma ocasião em que Georgos Archambault tomava a decisão de bombardear a usina de La Mission pela segunda vez, Harry London enfrentava Nim Goldman.

- Não! - disse London. - De jeito nenhum! Nem por você, Nim, nem por ninguém mais!

Nim disse, pacientemente:

- Tudo o que lhe estou pedindo é que leve em consideração as circunstâncias especiais. Acontece que conheço a família Sloan...

Os dois se encontravam na sala de Nim. Harry London estava de pé, inclinado sobre a escrivaninha que os separava.

- Você pode conhecer a família, mas eu conheço o caso! Está tudo aqui! Leia! - O chefe do Departamento de Proteção à Propriedade, o rosto vermelho, deu um murro na pasta volumosa que estava em cima da mesa.

- Fique calmo, Harry. E não preciso ler o que está aí. Aceito sua palavra sobre o tipo de caso que é como está confuso.

Pouco tempo atrás, recordando sua promessa a Karen na noite anterior, Nim telefonara para Harry London e perguntara se conhecia algum caso de furto de energia envolvendo Luther Sloan.

- Mas claro! - fora a resposta.

Quando Nim revelara seu interesse pessoal, London acrescentara:

- Já vou subir.

Agora, Harry London insistia:

- É um dos casos mais sujos que já tivemos! Seu amigo Sloan vem adulterando medidores de gás, em quantidade incrível, há mais de um ano!

Irritado, Nim disse:

- Ele não é meu amigo. A filha dele é que é.

- Certamente uma de suas namoradinhas!

- Pare com isso, Harry! - Nim estava começando a ficar também furioso. - Karen Sloan é uma quadriplégica!

Ele descreveu a família Sloan, como os pais ajudavam Karen financeiramente, como Luther Sloan se endividara a fim de comprar um furgão especial para a filha.

- De uma coisa tenho certeza, Harry: o que quer que o pai de Karen tenha feito para ganhar dinheiro, não gastou consigo.

London comentou, desdenhosamente:

- E isso faz com que o roubo seja menos condenável? Claro que não, e você sabe disso perfeitamente!

- Tem razão. Mas quando existem circunstâncias atenuantes, não se deve ser tão implacável.

- E está pensando exatamente em quê? Nim ignorou o tom cáustico.

- Talvez possamos exigir que Luther Sloan restitua o que tenha roubado, dando-lhe algum tempo para isso, sem iniciar um processo criminal.

Harry London disse friamente:

- Então é essa sua sugestão?

- Exatamente.

- Nim, jamais imaginei que chegaria o dia em que eu o ouviria dizer uma coisa dessas.

- Pelo amor de Deus, Harry! Quem pode saber o que dirá e fará em determinadas situações?

- Eu, por exemplo! E sei também o que lhe estou dizendo agora: o caso Sloan seguirá seu curso, o que significa que um processo criminal será iniciado nos próximos dias. A menos, é claro, que você prefira despedir-me e fazer como achar melhor.

- Harry, pare de dizer besteira. Houve um momento de silêncio.

- Nim, está pensando em Yale, não é mesmo?

- Estou.

- Está pensando que o velho Yale conseguiu escapar impune com o furto de energia ou pelo menos com alguma cumplicidade; então, por que não se pode permitir a mesma coisa a Luther Sloan? Está pensando que existe uma justiça para as pessoas importantes, outra para os homens comuns, como o pai de sua amiga. Não é isso?

- Ê, sim - assentiu Nim. - Era mais ou menos o que eu estava pensando.

- Pois tem toda razão. É isso mesmo e já vi acontecer em outras ocasiões, em outros lugares. Os privilegiados, os poderosos, os que controlam o dinheiro podem contornar a lei ou conseguirem um tratamento melhor. Não é sempre, é verdade, mas acontece com bastante frequência para fazer com que a justiça seja desigual. Mas é assim que o sistema funciona. Posso não gostar, mas não fui eu que fiz assim. Contudo, posso dizer-lhe outra coisa: se eu tivesse provas concretas contra Paul Yale assim como tenho contra Luther Sloan, jamais teria recuado como o fiz.

- Quer dizer que as provas são tão fortes assim?

London exibiu um sorriso.

- Pensei que não fosse nunca perguntar.

- Conte-me tudo.

- No esquema da Quayle, Nim, Luther Sloan era o homem do gás. Entregavam-lhe a maioria dos trabalhos ilegais de gás, provavelmente porque ele era muito bom. Vi alguns dos trabalhos que ele fez... e são muitos. Temos os registros dos arquivos da Quayle e os equipamentos que encontramos em poder dele. Outra coisa: você acabou de falar na possibilidade de Sloan fazer uma restituição. Pelo que pudemos calcular, os trabalhos ilícitos que ele realizou custaram à GSP & L, em prejuízos na receita de gás, cerca de duzentos e trinta mil dólares. E ao que você me disse, Sloan não deve ter tanto dinheiro assim.

Nim levantou as mãos.

- Está certo, Harry. Você venceu. London mexeu a cabeça, lentamente.

- Não, Nim, não venci. Ninguém venceu. Nem eu nem você nem a GSP & L e muito menos Luther Sloan. Estou simplesmente fazendo o meu trabalho, como devo fazer.

- E fazendo honestamente... talvez mais do que o resto de nós. Nim descobriu-se lamentando a cena que acabara de ter com Harry

London. Perguntou-se se a amizade entre os dois voltaria a ser a mesma. Duvidava muito.

- A julgar por você, acho que sim - disse London, pegando a pasta que trouxera e retirando-se.

Nim pensou que teria agora de telefonar para Karen e dar a má notícia. Era algo que receava. Mas antes que pudesse pegar o telefone, a porta da sala se abriu e Ray Paulsen entrou.

Bruscamente, o vice-presidente de suprimento de energia perguntou:

- Onde está o presidente?

- Foi ao dentista. Posso fazer alguma coisa? Paulsen ignorou a pergunta de Nim.

- Quando voltará? Nim consultou o relógio.

- Provavelmente dentro de uma hora.

Paulsen parecia exausto e preocupado, os ombros mais encurvados do que nunca, os cabelos e as sobrancelhas espessas miais grisalhos do que há um mês. O que não era de surpreender. Todos estavam submetidos a uma tremenda pressão... Ray Paulsen talvez mais do que os outros, por causa de suas responsabilidades específicas.

- Ray, se me dá licença para dizer, você está com uma aparência horrível. Por que não desliga por alguns minutos? Sente-se um pouco e pedirei um café para nós.

Paulsen fitou-o com uma expressão furiosa e abriu a boca para dar uma resposta irritada. Abruptamente, sua expressão se alterou. Arriado, exausto, numa poltrona de couro, ele murmurou:

- Está bem...

Nim tocou a campainha chamando Vicki e pediu café. Depois, contornou a mesa e sentou-se perto de Paulsen.

- Acho que já pode saber o que vou dizer ao presidente - resmungou Paulsen. - Perdemos Big Lil.

Nim perdeu o controle.

- Como?

- Ouviu direito o que eu falei!

- Perdemos Big Lil! - repetiu Nim. - Por quanto tempo?

- Pelo menos quatro meses, provavelmente seis.

Houve uma batida na porta e Vicki entrou com duas canecas de café. Enquanto ela deixava em cima da mesinha, Nim se levantou e começou a andar de um lado para outro, nervosamente. Podia agora compreender a angústia de Paulsen e partilhá-la. Big Lil, La Mission N? 5, o maior gerador do sistema, proporcionava 1. 250. 000 kilowatts, o equivalente a 6 da carga máxima da GSP & L. A qualquer momento, a perda súbita de Big Lil criaria problemas graves, como ficara comprovado depois da explosão de julho último. Nas atuais circunstâncias, era simplesmente calamitosa.

- Ah, os homens! - explodiu Paulsen. - São todos filhos da puta e estúpidos! Pensamos que está tudo previsto, que todos os procedimentos foram claramente entendidos, mas sempre aparece um desgraçado para nos deixar na mão!

Ele pegou o café e tomou.

- O que aconteceu, Ray?

- Tínhamos tirado Big Lil de operação por uma semana, para manutenção de rotina. Você sabia disso.

- Sabia, sim. E sabia também que Big Lil deveria voltar à operação hoje.

- E tudo teria corrido sem problemas, se não fosse por um maldito operador! - Paulsen bateu com o punho cerrado na palma da outra mão. - Eu seria capaz de esfolar vivo o filho da mãe!

Furioso e sombrio, ele relatou os detalhes.

Quando um gigantesco gerador acionado a vapor, alimentado por óleo, como Big Lil, era posto em funcionamento, o processo era complexo e meticuloso. O operador, trabalhando na sala de controle com incontáveis instrumentos para orientá-lo, tinha a determinação de seguir as instruções cuidadosamente, etapa por etapa. Havia uma lista impressa de tudo o que se devia fazer, sucessivamente, e era expressamente proibida a pressa indevida. Normalmente, todo o processo se prolongava por várias horas com Big Lil, como acontecia com qualquer gerador similar, a caldeira que produzia o vapor deveria ser ativada primeiro. No interior da caldeira, em diversos níveis, havia anéis de combustores, que lançavam o combustível vaporizado. Eram acesos por controle remoto pelo operador, nível a nível, começando pelo fundo. Por medida de segurança, era indispensável que o nível inferior já estivesse aceso antes que se acionasse um nível superior.

Naquele dia, o operador não verificara os instrumentos e pensara que o nível mais baixo de óleo já estava aceso. E não estava.

À medida que os combustores superiores foram sendo acesos, o nível inferior continuara a despejar óleo não queimado no fundo da caldeira. Até que o óleo e vapor acumulados finalmente explodiram.

- Pensei que houvesse um mecanismo de segurança...

- É claro que há! - Paulsen dava a impressão de que podia começar a chorar a qualquer momento. - E o objetivo é exatamente impedir o que aconteceu. Mas... pode acreditar numa coisa dessas?... o filho da mãe do operador desligou o mecanismo de segurança manualmente! Disse que queria fazer com que a unidade entrasse em operação mais depressa!

- Essa não! - Nim podia perfeitamente compreender a raiva e frustração de Paulsen. - E qual foi a extensão dos danos causados pela explosão?

- Não foram poucos... na estrutura interna da caldeira, nos tubos de óleo, em mais da metade das tubulações de água.

Nim assoviou baixinho. Sentia pena de Paulsen, mas sabia que palavras de consolo de nada adiantariam naquele momento. E sabia também que uma estimativa de quatro meses para os reparos era por demais otimista.

- Isso altera toda a situação, Ray... especialmente os blackouts localizados.

- E acha que não sei disso?

Mentalmente, Nim estava repassando os problemas e a logística. Embora Big Lil fosse um gerador alimentado por óleo e que acabaria tornando-se vítima do embargo da OPEP, era também, de longe, o gerador a óleo mais económico da companhia. Agora, a carga de Big Lil teria de ser compensada por outras unidades, que consumiam mais combustível. Portanto, subitamente, o total das reservas de óleo da GSP & L representava muito menos energia elétrica do que antes.

A consequência lógica era inevitável: todos os estoques de óleo deveriam ser usados prudentemente, racionados ainda mais rigorosamente.

- Os blackouts devem começar nos próximos dias - murmurou Nim.

Paulsen assentiu.

- Exatamente. - E levantou-se para ir embora.

- vou avisá-lo assim que o presidente chegar, Ray.

- Minha recomendação é de que os blackouts comecem na segunda-feira - disse Nim, numa reunião convocada às pressas, na tarde de sexta-feira.

Teresa Van Buren protestou:

- Mas é cedo demais! Já anunciamos que só iriam começar depois da próxima semana. Agora, você vem dizer que devem começar dez dias antes. Precisamos dar o aviso com antecedência maior para o público se preparar.

- O aviso que se dane! - exclamou Paulsen. - Estamos numa crise!

Achando graça da ironia, Nim pensou: pela primeira vez, ele e Paulsen estavam de acordo, aliados contra os outros.

Havia cinco pessoas presentes, sentadas em torno da mesa de reuniões no gabinete da presidência: J. Eric Humphrey, Paulsen, Teresa Van Buren, Nim e Oscar O'Brien. O advogado fora convocado a fim de analisar as implicações legais dos blackouts,

Antes da reunião, Nim tivera diversos encontros com chefes de departamentos, para fazer um levantamento dos últimos dados sobre os estoques de óleo da GSP & L. Os suprimentos estavam diminuindo mais depressa do que se previa, provavelmente devido ao tempo inesperadamente quente e o uso intenso de aparelhos de ar condicionado.

Nim telefonara também para Washington, conversando com o advogado que representava a GSP & L no Capitólio. A informação dele fora taxativa: não havia qualquer perspectiva de solução no impasse entre os Estados Unidos e a OPEP. O advogado acrescentara:

- Está-se falando por aqui de planos para a emissão de uma nova moeda, um dólar de uso externo, com lastro-ouro, para satisfazer a OPEP. Mas por enquanto é só conversa, nada mais; e não chega a ser suficiente para fazer o petróleo fluir novamente.

Nim transmitira a informação de Washington ao presidente e aos outros.

- Concordo com Tess - disse Oscar O'Brien. - Devemos avisar sobre os blackouts com a maior antecedência possível.

Eric Humphrey indagou:

- Não poderíamos aguentar até quarta-feira para só então começarmos os blackoutsl Serão cinco dias, o que dará a todos tempo suficiente para se prepararem.

Depois de mais alguma discussão, ficou finalmente acertado que os blackouts começariam na quarta-feira seguinte.

- vou convocar a imprensa imediatamente - disse Teresa Van Buren, virando-se em seguida para Nim e indagando: - Pode estar disponível dentro de uma hora?

- Claro!

O resto do dia transcorreu no mesmo ritmo frenético.

Na confusão das reuniões, Nim foi adiando o telefonema que pretendia dar para Karen. Só na tarde de séxta-feira é que finalmente encontrou tempo para fazê-lo.

Josie atendeu e depois Karen entrou na linha. Nim sabia que ela devia estar usando os fones e microfone que ficavam presos em sua cabeça, permitindo-lhe falar ao telefone sem a ajuda de ninguém, se assim o desejasse. Através de um acordo especial com a companhia telefónica, Karen podia entrar em contato diretamente com uma telefonista, pedindo-lhe que discasse o número que desejasse.

- Estou telefonando para falar de seu pai, Karen. Fiz algumas indagações para descobrir o que era possível fazer, mas infelizmente nada posso fazer. O que está acontecendo foi longe demais. - Nim fez uma pausa e acrescentou, esperando que não soasse muito banal; - Lamento muito.

- Eu também - disse Karen, parecendo perceber o desalento dele.

- Mas estou grata por ter tentado, Nimrod.

- O único conselho que posso dar é seu pai procurar um bom advogado.

Houve um momento de silêncio, antes de Karen perguntar:

- A situação é tão grave assim? Não havia por que mentir.

- Infelizmente, é.

Nim decidiu não passar adiante a informação que Harry London lhe dera, de que uma ação criminal seria iniciada nos próximos dias. Também achou melhor não informar as estimativas de London de que Luther Sloan causara um prejuízo de 230. 000 dólares à GSP & L. Afinal, as duas informações seriam em breve divulgadas.

- O mais estranho de tudo, Nimrod, é que sempre pensei em Papai como a pessoa mais honesta do mundo.

- Não estou querendo desculpar seu pai. É algo que não se pode fazer. Mas acho que há ocasiões em que as pressões fazem estranhas coisas com as pessoas. De qualquer forma, tenho certeza de que o tribunal levará em consideração o que havia por trás das ações de seu pai.

- Mas ele não precisava fazer isso, o que é o mais trágico. É claro que tenho apreciado bastante as coisas extras que meus pais me possibilitaram através do dinheiro, inclusive Humperdinck. Mas eu poderia perfeitamente passar sem isso.

Nim achou melhor não dizer a Karen que o pai dela vira nisso uma maneira de expiar parcialmente seus sentimentos de culpa. Era algo que um psicólogo ou o tribunal, ou talvez ambos, teriam que descobrir e julgar.

- Ainda tem Humperdinck, Karen?

- Claro que tenho. O que quer que possa estar acontecendo, ainda não me tiraram Humperdinck.

- O que me deixa satisfeito, pois vai precisar dele na próxima semana.

Nim informou-a de que os blackouts temporários começariam na quarta-feira seguinte.

- Em sua área, a energia será desligada às três horas da tarde de quarta-feira e a interrupção irá prolongar-se por três horas. Assim, como margem de segurança deve ir para o Hospital Redwood Grove pela manhã.

- Josie pode levar-me.

- Se houver alguma alteração na programação dos blackouts eu voltarei a telefonar. E também a informarei com antecedência dos blackouts subsequentes. Por falar nisso, já verifiquei o gerador de emergência do Redwood Grove. Está em boas condições e com o tanque de combustível cheio.

Recuperando a jovialidade habitual, Karen exclamou:

- É maravilhoso ter alguém para cuidar da gente.

- Estou convencida de que as pessoas começam a enfrentar a realidade de uma crise de energia elétrica - comentou Ruth Goldman, folheando a edição dominical do Chronicle-West.

- Se tivessem escutado Papai, isso já teria acontecido antes - asseverou Benjy.

Os outros três, Ruth, Nim e Leah, riram.

- Obrigado, Benjy. Sua lealdade é maravilhosa.

- Especialmente porque os recentes acontecimentos justificam o que sempre disse - acrescentou Leah.

- Ei, o seu curso de vocabulário está dando resultado! - comentou Ruth.

Leah corou de satisfação.

Era a manhã de domingo e a família estava reunida no quarto de Nim e Ruth. Esta ainda estava na cama, tendo terminado de comer o desjejum, que lhe fora trazido numa bandeja. Nim levantara cedo a fim de preparar ovos com córnea beefpara todos. Era um dos pratos prediletos da família.

Dois dias antes, Ruth voltara de Nova York, ao término de sua segunda visita à cidade para tratamento no Instituto Sloan-Kettering. Estava bastante pálida ao chegar e assim continuava, com olheiras fundas. Admitira ter sentido alguma dor, como efeito secundário do tratamento, como acontecera na ocasião anterior. E estava obviamente cansada.

Ainda era muito cedo para se saber o efeito do tratamento, e Ruth teria que voltar a Nova York dentro de três semanas. No entanto, Ruth já informara, alegremente, que os médicos lhe haviam dito agora que sua situação era "bastante esperançosa".

Nim informara-a dos blackouts iminentes e que a própria casa deles seria afetada, a partir da quarta-feira seguinte. Tipicamente, Ruth se limitara a comentar:

- Não há problema. Podemos planejar tudo com antecedência e eliminar as inconveniências.

Por algum tempo, a mãe de Ruth, Rachel, iria à casa deles vários dias por semana e ajudaria na casa, para que a filha pudesse descansar.

- Escute isso, Nim.

Ruth abrira a página editorial do Chronicle- West e começou a ler em voz alta.

A BATALHA DA ENERGIA

Este jornal, que se empenha em ser honesto e objetivo em suas opiniões, reconhece ter dúvidas quanto a algumas posições que assumimos no passado.

Como muitos outros, nós nos opusemos ao crescente desenvolvimento da energia elétrica nuclear. Pela preocupação com a poluição, ficamos ao lado dos que se opunham a usinas geradoras acionadas por carvão. Apoiamos os grupos de preservação da vida selvagem que se opunham à construção de novas barragens, sob a alegação de que a vida animal, especialmente a dos peixes, poderia ser reduzida. Formulamos dúvidas sobre a autorização para a construção de novas usinas elétricas geotérmicas, receando que tais projetos pudessem prejudicar a economia de áreas turísticas já estabelecidas.

Não pedimos desculpas por nenhuma dessas posições. Representavam e ainda representam nossas convicções em áreas específicas.

Mas, encarando a situação como um todo, somos forçados a reconhecer, por um sentimento de justiça, que as companhias de energia elétrica da Califórnia estavam certas ao alegar que tinham as mãos amarradas, enquanto exigíamos o que agora não nos podem dar.

Em vez de fazermos uma concessão aqui e ali, como deve acontecer numa sociedade de concessões mútuas, dizemos "não" a quase tudo.

Devemo-nos lembrar disso quando as luzes se apagarem na próxima quarta-feira.

Talvez mereçamos o que estamos recebendo. Quer isso seja ou não verdade, chegou o momento para uma reavaliação de posições

- as nossas e as dos outros.

- Sensacional! - exclamou Ruth. - O que vocês acham disso tu- Acho que eles deveriam ter mencionado Papai - comentou BenRuth se inclinou e afagou-lhe os cabelos, afetuosamente.

- É um editorial bem escrito - disse Nim. - Infelizmente, não passa disso. E aparece com cinco anos de atraso.

- Pois nada disso me importa - declarou Ruth. - Deveria estar preocupada e interessada, mas acontece que não estou. A única coisa que me importa é estar em casa neste momento, amando imensamente vocês todos.

De tarde, apesar de ser domingo, Nim foi para o escritório. Havia uma atividade intensa, muitas decisões ainda precisavam ser tomadas. Num certo sentido, com os blackouts regulares começando dentro de três dias, a companhia estava entrando num território novo e inexplorado. Foi o que o despachante-chefe comentou, quando Nim esteve no Centro de Controle de Energia:

- Presumimos que tudo irá transcorrer de acordo com o previsto e procuramos tomar todas as providências para que assim aconteça. Mas há sempre o fator "i"... de inesperado, Sr. Goldman. Já vi tanta coisa acontecer, quando não podia acontecer, para acreditar que não possa ocorrer algo inesperado, a qualquer momento.

- Já tivemos muitas coisas inesperadas - ressaltou Nim.

- Sempre há lugar para mais uma, senhor... às vezes até para duas. De qualquer maneira, é apenas uma opinião pessoal.

Mais tarde, voltando para casa, Nim ficou pensando na semana que estava para começar e no fator "i" do despachante-chefe.

Pouco mais de uma hora depois que Nim voltou para casa, Georgos Archambault arriscou-se a sair de seu apartamento em North Castle. Agora que o dia para a ação - terça-feira - estava tão perto, Georgos sentia-se mais irrequieto e nervoso do que em qualquer outro momento desde que fora para o novo esconderijo. Tinha a impressão de que havia um observador ou perseguidor em cada esquina, em cada sombra. Mas era apenas sua imaginação. Comprou comida, sem qualquer incidente, apenas na quantidade suficiente para durar até sua partida para La Mission, na noite de terça-feira.

Comprou também os jornais de domingo e, na volta para o apartamento, despachou o envelope que continha a estúpida Pesquisa de Consumidor da Golden State Porra & Lixo. Diante da caixa do correio, Georgos ainda hesitou por um momento, perguntando-se se, no final das contas, deveria mesmo despachar o questionário respondido. Mas verificando que já haviam efetuado a única coleta das cartas ali colocadas nos domingos e sabendo que a próxima coleta só seria efetuada no meio da manhã de segunda-feira, ele largou a carta na caixa.

 

A segunda-feira transcorreu relativamente sem incidentes. O que já não aconteceu nas primeiras horas da terça-feira.

A natureza, como se conspirasse para criar ainda maiores problemas para a GSP & L, num momento de dificuldade, desfechou seu ataque violento contra o campo geotérmico da companhia nas montanhas do Condado de Sevilla.

No fundo da terra, por baixo de "Old Desesperado", o poço que já explodira uma vez e nunca fora totalmente controlado, um assentamento de rocha e subsolo liberou uma nova camada de vapor geotérmico, sob intensa pressão. O vapor subiu para a superfície com o ímpeto de 20 locomotivas. Num espetáculo impressionante, rivalizando com o Inferno de Dante, lama quente e pedras foram arremessadas para o alto, com uma força apocalíptica.

Obedecendo a um fenómeno natural, "tudo o que sobe tem que descer", toneladas de lama se espalharam por toda aquela parte do campo geotérmico.

Por sorte, a explosão ocorreu às duas horas da madrugada, quando apenas um punhado de homens estava de plantão e todos abrigados. Assim, não houve mortos nem feridos, o que teria inevitavelmente acontecido, se a explosão ocorresse durante o dia.

Mas o pátio de transformação e transmissão do campo geotérmico não teve tanta sorte. Ficou coberto de lama, assim como as linhas de transmissão próximas. A lama era condutora de eletricidade. Em consequência, houve um curto-circuito e o fluxo de energia de todos os geradores geotérmicos para o sistema de transmissão da GSP & L foi instantaneamente interrompido.

Os danos não eram grandes nem duradouros. Era necessário apenas um amplo serviço de limpeza, que levaria dois dias. Quanto ao "Old Desesperado", depois de seu acesso de raiva, voltou a se acomodar em esguichos esporádicos e inofensivos, como uma chaleira fervendo.

Mas durante 48 horas, até que a limpeza fosse concluída, a GSP & L estaria privada de 700. 000 kilowatts de sua fonte geotérmica, havendo necessidade de encontrar em outra parte um potencial equivalente. A única maneira era pôr em operação mais geradores acionados a óleo; com isso, a reserva de óleo da companhia foi reduzida ainda mais, inesperadamente.

Um outro ponto de interrogação ficou pairando sobre as operações naquele dia.

Por causa da época do ano, entre as mais de 200 unidades geradoras da companhia, uma parcela considerável estava fora de operação para manutenção, nos preparativos para o período de pique da demanda durante o verão. Assim, com a perda abrupta de Big Lil quatro dias antes e, agora, de todas as unidades geotérmicas, o total da capacidade geradora da GSP & L, independente da escassez de petróleo, seria exigida ao máximo nos dois dias seguintes.

Nim tomou conhecimento da paralisação das unidades geotérmicas e da redução do potencial ao chegar ao trabalho na manhã de terçafeira.

Seu primeiro pensamento foi: como era estranho que o fator "i", de inesperado, mencionado pelo despachante-chefe se tivesse manifestado justamente naquele momento crítico. O segundo foi o de que a GSP & L não poderia suportar e absorver outra manifestação do fator "i" até que as unidades geotérmicas estivessem de volta à operação.

Foi o que o fez tomar a decisão de telefonar para Karen Sloan antes mesmo de começar a trabalhar.

- Karen, já acertou sua ida para o Hospital Redwood Grove amanhã?

- Já, sim. Estarei lá muito antes de começar o blackout da tarde.

- Preferiria que você fosse hoje para o hospital. Pode dar um jeito?

- Claro que posso, Nimrod. Por quê? Surgiu algum problema novo?

- Houve um imprevisto e é possível que haja uma interrupção no fornecimento que não estava programada. Pode não acontecer, provavelmente não acontecerá, mas eu me sentirei mais tranquilo se você for para o hospital a fim de ficar perto daquele gerador de reserva.

- Acha que devo ir imediatamente?

- O mais breve possível, embora não haja tanta urgência. É apenas uma precaução.

- Está certo. Josie está aqui e vamos começar a nos aprontar. Mais uma coisa, Nimrod...

- O que é?

- Você parece cansado.

- E estou mesmo. Acho que todos nós aqui estamos exaustos. Os últimos dias não têm sido dos melhores.

- Procure cuidar-se, Nimrod querido... e que Deus o abençoe! Depois de desligar, Nim lembrou-se, outra coisa e ligou para sua própria casa. Ruth atendeu. Nim falou-lhe do que acontecera com o "Old Desesperado", a paralisação das unidades geotérmicas e a situação crítica da capacidade geradora. Ruth comentou:

- Parece que tudo acontece ao mesmo tempo...

- Acho que a vida é assim mesmo. Seja como for, com todos esses imprevistos e mais os blackouts começando amanhã, estou pensando em dormir esta noite aqui no escritório.

- Não há problema, Nim. Mas procure descansar um pouco e não se esqueça de que eu e as crianças vamos precisar de você por muito tempo.

Nim prometeu as duas coisas.

A equipe especial reunida para processar a falsa Pesquisa de Consumidor em North Castle fora totalmente dispersada duas semanas antes. A sala no subsolo da sede da GSP & L, para onde haviam sido inicialmente encaminhados os questionários respondidos, estava sendo agora usada com outra finalidade.

Esporadicamente, ainda chegavam alguns questionários. Havia dias em que chegavam um ou dois, em outros não chegava nenhum.

Os poucos que chegavam eram encaminhados pelo setor de correspondência para uma idosa secretária do Departamento de Relações Públicas, Elsie Voung, que integrara o grupo especial, mas já retornara às suas funções normais. Os questionários, nos envelopes típicos de resposta paga, eram colocados em sua mesa; quando ela tinha tempo e disposição, abria-os e examinava-os, ainda comparando com uma amostra da caligrafia do diário de Georgos Archambault.

Elsie Voung torcia para que os importunos questionários parassem de chegar inteiramente. Achava que era uma tarefa tediosa, pura perda de tempo, interferindo com os outros trabalhos mais interessantes.

No meio da manhã de terça-feira, Elsie Voung verificou que um dos envelopes especiais da Pesquisa de Consumidor fora largado em sua caixa de entrada de correspondência por um mensageiro, juntamente com uma batelada de correspondência interna. Decidiu cuidar primeiro da correspondência interna.

Segundos depois de concluir a conversa com Nim e ter desligado o telefone com um movimento de cabeça, Karen lembrou-se de algo que esquecera de dizer-lhe.

Ela e Josie haviam planejado fazer compras naquela manhã. Deveriam manter os planos originais e sair para as compras, indo em seguida para o Redwood Grove, ou deveriam cancelar as compras e seguir imediatamente para o hospital?

Karen sentiu-se tentada a ligar novamente para Nim e pedir-lhe um conselho; mas lembrou-se da tensão na voz dele e das pressões sob as quais devia estar trabalhando. Tomaria a decisão sozinha.

O que fora mesmo que Nim dissera sobre uma possivel interrupção no fornecimento antes dos blackouts previstos para o dia seguinte? Pode não acontecer, provavelmente não acontecerá... E mais adiante: É apenas uma precaução.

Ora, a situação não era tão grave assim! O mais sensato era fazer as compras primeiro, o que Karen e Josie tanto gostavam. Depois, voltariam para o apartamento a fim de tomar as últimas providências, indo em seguida para o Redwood Grove.

- Josie, querida! - gritou Karen, na direção da cozinha. - Acabei de receber um telefonema de Nimrod. Se der um pulo até aqui, vou contar-lhe os novos planos.

Georgos Archambault possuía um instinto animal em relação ao perigo. No passado, esse instinto o servira muito bem e aprendera a confiar nele.

Perto do meio-dia de terça-feira, andando nervosamente de um lado para outro do apartamento de North Castle, o mesmo instinto avisou-o de que o perigo era iminente.

Havia uma pergunta crucial: deveria atender ao instinto e deixar imediatamente, com todo o risco, seguindo para La Mission e as bombas de esfriamento que planejava destruir? Ou deveria ignorar o instinto e permanecer no apartamento até o anoitecer, só saindo então, conforme originalmente planejara?

Uma segunda pergunta, igualmente importante: Será que aquele instinto era genuíno ou apenas o resultado do seu nervosismo intenso?

Georgos não tinha certeza e ficou debatendo mentalmente os prós e contras.

Tencionava cobrir a última etapa do acesso à casa de bombas da usina de La Mission por baixo dágua. Portanto, se conseguisse entrar no rio em segurança e chegar relativamente perto da usina, poderia submergir e a partir daí a possibilidade de ser visto seria mínima, mesmo à luz do dia. E até que seria melhor: a luz do dia filtrando-se pela água iria ajudá-lo a localizar mais facilmente a entrada para a casa de bombas do que se estivesse na total escuridão.

Mas poderia lançar o bote de borracha na água e embarcar com o equipamento de mergulho sem ser observado? Embora o local que escolhera para o lançamento do bote no rio, acerca de um quilómetro de La Mission, fosse normalmente deserto, havia sempre a possibilidade de haver alguém ali e observá-lo, especialmente durante o dia. Georgos avaliou esse risco específico como razoável.

Na expedição à luz do dia, o maior risco, um tremendo risco, era atravessar North Castle com a Kombi e depois seguir para La Mission, outros 80 quilómetros. A polícia, os departamentos de xerifes e a patrulha rodoviária tinham certamente uma descrição do veículo e a placa. Se fosse localizado, ele não teria a menor possibilidade de livrar-se dos perseguidores. Por outro lado, já se haviam passado oito semanas desde que a descrição fora divulgada e era possível que os porcos tivessem esquecido ou não estivessem prestando atenção. Outro fator favorável: havia uma porção de Kombis avariadas em circulação e mais uma não seria nada de anormal.

Mesmo assim, Georgos avaliou a primeira parte de sua missão, se executada agora, como alto risco.

Continuou a andar de um lado para outro, procurando chegar a uma conclusão. Abruptamente, tomou uma decisão. Confiaria em seu instinto em relação ao perigo. E a decisão era partir imediatamente!

Deixou o apartamento no mesmo instante e foi para a garagem fechada, onde começou a fazer o que planejara para aquela noite: uma verificação meticulosa de todo o equipamento antes da partida.

Procurou fazer tudo o mais depressa possível, a sensação de perigo ainda persistindo.

- Estão chamando-a ao telefone e mandaram dizer que é muito importante, Sra. Van Buren - avisou uma garçonete.

- Todo mundo acha que seu assunto é importante e quase sempre não é nada disso! - resmungou a vice-presidente de relações públicas.

Mesmo assim, ela se levantou da mesa do restaurante dos executivos da GSP & L, onde estava almoçando com . Eric Humphrey e Nim Goldman, e foi atender o chamado lá fora.

Voltou pouco mais de um minuto depois, um brilho de excitamento nos olhos.

- Um daqueles impressos da Pesquisa de Consumidor voltou e a letra é igual à do diário de Archambault. Uma imbecil do meu departamento passou a manhã inteira com isso nas mãos. Vai-se ver comigo depois. Agora, porém, mandei-a seguir imediatamente para o Centro de Computadores. Disse que iríamos para lá agora mesmo.

- Avise Sharlett - disse Eric Humphrey, levantando-se. - Digalhe para interromper o almoço.

A vice-presidente de finanças estava almoçando a algumas mesas de distância. Enquanto Teresa Van Buren ia avisá-la, Nim deixou o restaurante e foi telefonar para Harry London. O chefe do Departamento de Proteção à Propriedade estava em seu pequeno gabinete; ao ser informado do que estava acontecendo, disse que também seguiria imediatamente para o Centro de Computadores.

Nim sabia que Oscar O'Brien, o quarto membro do "grupo de pensamento", não estava na cidade naquele dia.

Foi encontrar-se com os outros - o presidente, Sharlett Underhill e Teresa Van Buren - no elevador.

Passaram pelas formalidades de segurança habituais para entrar no Centro de Computadores. Os quatro que haviam interrompido o almoço e mais Harry London agruparam-se em torno de uma mesa. Teresa Van Buren abriu a Pesquisa de Consumidor e a fotografia de uma amostra de letra de Archambault, que lhe haviam sido entregues poucos minutos antes por uma contrita Elsie Voung.

Foi Eric Humphrey quem expressou o que era óbvio para todos:

- Não resta a menor dúvida de que a letra é a mesma. Absolutamente nenhuma.

Mesmo que houvesse, pensou Nim, o que estava escrito no questionário seria uma denúncia.

Os terroristas que presunçosamente descrevem como covardes e ignorantes não são nada disso. São heróis, importantes, criteriosos, dedicados. Vocês é que são os ignorantes, assim como exploradores criminosos do povo. Mas a justiça haverá de alcançá-los! Fiquem certos de que haverá sangue e morte e não meras "inconveniências", quando a gloriosa revolução...

- Por que diabo ele demorou tanto a responder? - indagou Harry London, sem se dirigir a ninguém em particular.

Sharlett Underhill estendeu a mão.

- Dê-me o questionário.

Teresa Van Buren entregou-o e a vice-presidente de finanças levouo para a "luz negra", que Nim vira ser usada durante sua visita anterior ao centro. Sharlett acendeu a luz e pôs o questionário embaixo. No alto da folha apareceu o número "9386".

Ela seguiu para um terminal de computador, um teclado com uma tela de raios catódicos por cima, e sentou-se.

Primeiro, Sharlett bateu seu código pessoal: 44SHAUND. (Era a sua idade e uma reunião dos dois nomes.)

A tela instantaneamente avisou: PRONTO. PODE FAZER SOLICITAÇÃO.

Shariett bateu o nome do projeto, PESQUISA NORTH CASTLE, depois o código secreto, conhecido apenas por ela e um programador, que liberaria a informação necessária. As palavras PESQUISA NORTH CASTLE apareceram na tela, mas não o código secreto, uma precaução do computador contra a possibilidade de outros estarem vendo e decorarem.

Imediatamente, o computador avisou: ENTRAR com NÚMERO DO QUESTIONÁRIO.

Shariett bateu o número: 9386.

A tela respondeu:

OWEN GRAINGER WEXHAM ROAD, 12 - APTO. E

Seguiam-se o nome da cidade e o código postal.

- Já anotei - informou Harry London, já correndo para um telefone.

Pouco mais de uma hora depois, Harry London foi pessoalmente comunicar o que acontecera a Eric Humphrey e Nim, que estavam no gabinete da presidência.

- Archambault conseguiu escapar. Se ao menos aquela mulher tivesse aberto o envelope de manhã...

Humphrey interveio rispidamente:

- Recriminações não vão adiantar coisa alguma agora. O que a polícia encontrou no endereço?

- A pista ainda estava quente, senhor. Segundo um vizinho, o homem que vira de vez em quando no apartamento havia partido numa Kombi cerca de meia hora antes de a polícia chegar. Foi transmitido um aviso urgente de procura da Kombi, e a polícia deixou alguns homens no local, caso Archambault resolva voltar. - London deu de ombros. Mas a verdade é que o tal de Archambault já conseguiu esquivar-se ao cerco policial.

- Ele deve estar ficando desesperado - comentou Nim. Eric Humphrey assentiu.

- Eu também estava pensando nisso. - Fez uma pequena pausa, antes de acrescentar: - Nim, quero que seja dado imediatamente um alerta para todos os nossos supervisores de usinas e pessoal de segurança. Informe o que aconteceu e repita a descrição de Archambault. Dê também uma descrição do veículo que ele está dirigindo. Determine ao nosso pessoal em todas as instalações para redobrar a vigilância e comunicar imediatamente qualquer atividade suspeita ou fora do normal. Já fomos antes o alvo desse homem por várias vezes. Ele pode ter tomado a decisão de nos atacar de novo.

- vou providenciar agora mesmo - disse Nim.

E ele se retirou, pensando: Será que não tinha limite o que podia acontecer num único dia?

Georgos cantarolava uma música, enquanto pensava que naquele dia encontrava-se com sorte.

Estava dirigindo há uma hora e 15 minutos e quase chegando ao ponto em que planejava lançar o bote de borracha no rio, perto de La Mission. Aparentemente, sua Kombi não atraíra qualquer atenção, provavelmente - pelo menos em parte - porque guiara cuidadosamente, respeitando os regulamentos de trânsito e os limites de velocidade. Evitara também as auto-estradas, onde era bem mais provável encontrar um carro da Patrulha Rodoviária da Califórnia.

Estava agora percorrendo uma estradinha de cascalho, a pouco mais de um quilómetro de seu objetivo inicial.

Poucos minutos depois, avistou o Rio Coyote, através do emaranhado de arbustos e árvores que o margeavam naquele trecho. O rio era largo no ponto que escolhera e assim teria uma visão muito mais ampla. Parou o carro onde a estradinha terminava, acerca de 30 metros da margem do rio.

Para alívio de Georgos, não havia outros veículos ou seres humanos à vista.

Ao começar a descarregar o bote de borracha e os equipamentos, levando tudo até o rio em meia dúzia de viagens, seu excitamento e uma sensação de exultação foram crescendo.

Depois da viagem inicial, tirou o bote de borracha da embalagem e encheu-a, com a bomba que vinha junto. Não houve qualquer problema. Lançou o bote no rio e prendeu o cabo numa árvore. Transferiu todo o equipamento para o bote. Havia um tanque de ar comprimido com registro, o tanque cheio para um suprimento de ar de uma hora. Havia também máscara, nadadeiras, o tubo de respiração para nadar próximo à superfície, uma lanterna submarina, cinto de instrumentos, um colete inflável para proporcionar-lhe a flutuabilidade necessária, por causa do peso que estaria carregando, um cortador de metal hidráulico e alicates.

Georgos deixou por último as bombas cilíndricas Tovex. Trouxera oito, cada uma pesando pouco mais de dois quilos; ficariam presas no cinto. Georgos chegara à conclusão de que oito bombas era o máximo que poderia levar; querer carregar mais seria convidar o desastre. Assim, poderia destruir oito das 11 bombas de água, pondo fora de ação a maioria, se não mesmo todos, dos quatro geradores de La Mission em operação.

O quinto gerador de La Mission era o que chamavam de Big Lil. Georgos lamentara profundamente ao ler nos jornais de domingo que Big Lil já estava paralisado e que alguns meses se passariam antes que pudessem consertá-lo.

Assim que tudo já estava no bote, Georgos desamarrou o cabo e embarcou. A esta altura, já tinha tirado as roupas e vestido um traje de mergulho. O bote afastou-se imediatamente da margem e começou a descer pela correnteza, suavemente. Havia um pequeno remo no bote e ele tratou de usá-lo.

Era um dia quente e ensolarado; em outras circunstâncias, um passeio pelo rio teria sido extremamente agradável. Mas, agora, Georgos não tinha tempo para se divertir.

Procurou manter-se o mais afastado possível das margens, ao mesmo tempo em que as esquadrinhava atentamente, à procura de pessoas que pudessem por acaso observá-lo. Mas não avistou ninguém. Havia alguns barcos no rio, mas tão longe que não dava para o observarem.

Menos de 10 minutos depois, Georgos já podia avistar a usina de La Mission, a sua frente, as chaminés altas, o prédio grande e funcional, que abrigava caldeiras e turbinas-geradores. Mais cinco minutos e ele concluiu que já estava perto o bastante, remando para a margem. Havia ali uma pequena enseada, bem rasa. Ao alcançá-la, Georgos saiu do bote e tornou a amarrar o cabo numa árvore.

Pôs a máscara, o tanque de ar, tubo de respiração, cinto e nadadeiras, prendendo o resto da carga. Depois que já estava tudo no lugar, olhou ao redor pela última vez e avançou para o meio do rio. Afundou momentos depois e começou a nadar três metros abaixo da superfície. Já avistara o seu objetivo, a casa de bombas, uma estrutura de concreto baixa e comprida, projetando-se pelo rio adentro.

Georgos sabia que a casa de bombas tinha dois níveis. O primeiro, acima da água e acessível através de outras partes da usina, alojava os motores elétricos que acionavam as bombas. O segundo, quase todo debaixo dágua, continha as bombas propriamente ditas. Era nesse segundo nível que ele tencionava penetrar.

No caminho para a usina, Georgos aflorou duas vezes à superfície, rapidamente, para se orientar, tornando a mergulhar imediatamente. Não demorou muito para que seu avanço fosse detido por uma parede de concreto; chegara à casa das bombas. Tateando, começou a procurar a grade de metal, que teria de cortar para poder entrar. Foi guiado até lá quase que imediatamente pelo sorvo das águas.

O objetivo daquela grade era impedir que objetos maiores fossem atraídos pelo sistema de refrigeração, danificando as bombas. Por trás da grade, havia uma tela de arame em forma cilíndrica, larga e na horizontal. Servia para reter os detritos menores e era girada ocasionalmente, para ficar limpa.

Georgos começou a trabalhar na grade com seu cortador de metal hidráulico, um instrumento compacto com cerca de meio metro de comprimento, bastante apreciado pelos caçadores de tesouros submarinos. Não demorou muito para abrir um círculo grande, puxando as barras. A parte cortada caiu até o leito do rio. Não havia qualquer problema de visão. A luz do dia que filtrava lá de cima era mais do que suficiente.

O cilindro de arame entrançado estava agora exposto. Georgos sabia que teria de cortar a tela a sua frente para poder entrar e depois fazer uma segunda abertura no outro lado, para alcançar o compartimento das bombas. A distância entre as duas aberturas, o diâmetro do cilindro, era aproximadamente de três metros.

Começou a cortar o arame com o alicate, menor que o cortador hidráulico e preso a seu pulso por uma corda. Em poucos minutos, já tinha conseguido fazer a abertura necessária. Puxou a parte cortada e depois passou pela abertura, cuidadosamente, para que nenhuma parte do equipamento ficasse presa nas pontas do arame. Avançou a nado até o outro lado do cilindro. Novamente usou o alicate para cortar o arame e rapidamente fez nova abertura, atravessando-a.

Estava agora no compartimento das bombas. Graças à luz que se filtrava pelas aberturas no piso da casa de bombas por cima, pôde divisar os contornos da primeira bomba, diretamente a sua frente.

Georgos não tinha receio da sucção das bombas. Pelos textos que lera, sabia que só haveria perigo se fosse até o fundo, o que não tinha a menor intenção de fazer.

Usando a lanterna, começou a procurar o melhor local para colocar a primeira carga explosiva.

No momento em que o encontrou, uma superfície plana, sentiu um movimento às suas costas e virou-se. Havia luz suficiente para perceber que o cilindro de metal pelo qual passara - e que estava parado na ocasião - estava agora girando continuamente.

O superintendente da usina de La Mission era um engenheiro jovem e inteligente, Bob Ostrander. Era o segundo homem do antigo superintendente, Danieli, quando este fora morto, juntamente com Walter Talbot e mais dois outros homens, na explosão provocada em julho do ano passado pelos Amigos da Liberdade, danificando Big Lil.

Bob Ostrander, ambicioso e obstinado, queria ser promovido... mas não da maneira como acontecera. Danieli era seu amigo, e os dois trabalhavam juntos muito bem. As esposas eram igualmente amigas; os filhos brincavam juntos.

Por causa da maneira como Danieli morrera, Ostrander tinha uma raiva intensa de terroristas em geral e especialmente dos pretensos Amigos da Liberdade.

Por isso, ao receber no início da tarde de terça-feira uma mensagem de teletipo informando que Georgos Archambault, o líder dos Amigos da Liberdade e principal suspeito da explosão de Big Lil no ano anterior, poderia tentar um novo ataque contra instalações da GSP & L, Bob Ostrander pusera toda a sua equipe em estado de alerta.

Determinou que toda a usina de Lá Mission fosse imediatamente vasculhada, à procura de possíveis intrusos. Como ninguém fosse encontrado, a atenção se concentrara no perímetro exterior da usina. Duas patrulhas de dois homens cada, organizadas por Ostrander, foram encarregadas de fazer rondas contínuas pela cerca exterior, comunicando imediatamente por walkie-talkie qualquer atividade fora do normal ou sinal de arrombamento. Os guardas no portão principal receberam instruções expressas: ninguém, além dos funcionários da companhia, deveria ser admitido sem permissão do superintendente.

Bob Ostrander telefonou também para o xerife do condado e soube que ele também fora informado a respeito de Georgos Archambault e de uma Kombi que supostamente estava dirigindo.

Por insistência de Ostrander, o xerife desviou dois carros de patrulha para vasculharem as estradas na área da usina de La Mission, à procura de uma Kombi que correspondesse à descrição transmitida.

Menos de 30 minutos depois do telefonema de Bob Ostrander, às 2h35min da tarde, o xerife comunicou que uma Kombi, identificada positivamente como sendo a de Archambault, fora abandonada à margem do Rio Coyote, a pouco menos de um quilómetro da usina, rio acima. Nas proximidades, havia uma bomba de ar comprimido e uma embalagem que aparentemente contivera um bote de borracha inflável. Os homens do xerife estavam agora efetuando uma busca meticulosa, à procura de Archambault. Um assistente do xerife estaria em breve vasculhando o rio, em sua própria lancha.

Ostrander imediatamente afastou diversos homens de suas funções habituais, mandando-os patrulharem as margens do rio perto da usina, com instruções para darem o alarme à vista de qualquer embarcação que se aproximasse.

O superintendente permaneceu em sua mesa, que se transformou no centro de comunicações.

O xerife voltou a telefonar cerca de 10 minutos depois. Acabara de receber pelo rádio a informação de que um bote de borracha, vazio, fora encontrado numa pequena enseada que ambos conheciam, perto da usina.

- Parece que o cara já desembarcou e está procurando um meio de passar por sua cerca - comentou o xerife. - Todos os meus homens de serviço estão na área, procurando. Também vou ajudar, pessoalmente. Não precisa preocupar-se. O homem está encurralado.

Ao desligar, Bob Ostrander não se sentia tão confiante quanto o xerife. Recordava-se perfeitamente de que, em ocasiões anteriores, o líder dos Amigos da Liberdade mostrara-se esquivo e cheio de recursos. Tentar passar pela cerca, especialmente à luz do dia, não fazia o menor sentido. Subitamente, Ostrander compreendeu tudo e disse em voz alta:

- Equipamento de mergulho! É por isso que ele precisava de um bote! O filho da puta vai entrar por baixo dágua! A casa das bombas!

E saiu correndo de sua sala. Havia um homem patrulhando a margem do rio. Ostrander foi a seu encontro e perguntou:

- Viu alguma coisa?

- Absolutamente nada.

- Venha comigo.

Os dois se encaminharam para a casa das bombas. No caminho, Ostrander explicou sua teoria do ataque submarino.

Na extremidade dianteira da casa das bombas, no ponto em que se projetava pelo rio, havia um passadiço aberto. O superintendente da usina seguiu na frente. No meio do passadiço havia uma escotilha de metal de inspeção, diretamente acima do cilindro de arame pelo qual a água passava para entrar no compartimento das bombas. Os dois homens levantaram a escotilha e se debruçaram para esquadrinhar lá embaixo. A parte superior do cilindro de arame estava visível. Parecia não haver nada de anormal.

Ostrander disse ao subordinado:

- Vá até lá dentro e gire o cilindro lentamente.

Havia um mecanismo elétrico para acionar o cilindro, que podia ser ligado tanto na casa das bombas como na sala de controle central.

Momentos depois, o cilindro de arame começou a girar. Quase que imediatamente, Ostrander avistou a primeira abertura cortada por Georgos. Permaneceu onde estava, observando atentamente, enquanto o cilindro continuava a girar. Ao avistar a segunda abertura, seus temores ficaram confirmados. Correndo para a casa das bombas, ele gritou:

- Archambault conseguiu entrar! Mantenha o cilindro girando! Pelo menos, pensou Ostrander, conseguiria assim bloquear a saída de Archambault.

Sua mente de engenheiro era fria e objetiva. Parou por um momento, consciente que precisava tomar uma decisão rápida, mas se demorando a pensar, cuidadosamente, avaliando todas as possibilidades.

Em algum ponto, por baixo do lugar em que estava parado naquele momento, Archambault estava nadando, indubitavelmente com explosivos. O que estaria pensando em explodir? Havia dois alvos possíveis. O primeiro eram as bombas, o outro os condensadores, mais para o interior da usina.

A explosão das bombas já seria o bastante para causar danos consideráveis; poderia deixar todos os geradores de La Mission fora de operação durante meses. Mas uma explosão nos condensadores seria muito pior. A substituição poderia levar mais de um ano.

Bob Ostrander conhecia explosivos. Estudara-os na Faculdade de Engenharia e depois que saíra. Uma bomba de dinamite de dois quilos, do tamanho de um pão, poderia passar pelas bombas de água e entrar nos condensadores. Talvez Archambault já tivesse soltado uma bomba assim ou estivesse prestes a fazê-lo. Tudo o que precisava era acionar o mecanismo de tempo e soltar a bomba, que chegaria até os condensadores.

Era preciso proteger os condensadores a qualquer custo. O que significava paralisar toda a usina. Imediatamente.

Havia um telefone na parede da casa das bombas. Bob Ostrander foi até lá e discou 11, o número da sala de controle.

A campainha tocou por um instante e logo depois uma voz de homem atendeu:

- Operador-chefe.

- Aqui é Ostrander. Quero que desligue todas as unidades e interrompa a circulação de água.

A reação foi instantânea, com o operador protestando:

- Vai arrebentar os discos de junção! Além do mais, temos que avisar antes o Controle de Energia...

- Não discuta e faça o que estou mandando! - Ostrander apertava o telefone com toda força e estava gritando, sabendo que a qualquer momento uma explosão poderia destruir a casa das bombas ou os condensadores. - Sei o que estou fazendo! Paralise as unidades! Agora!

Georgos não tinha a menor ideia do que estava acontecendo lá em cima. Sabia apenas, enquanto o cilindro de arame continuava a girar, que seu caminho de fuga estava bloqueado. Não que realmente tivesse esperanças de escapar; sabia desde o início da missão que eram mínimas suas possibilidades de sobrevivência. Mas não queria morrer. Não daquela maneira. Acuado...

Pensou, dominado pelo pânico: talvez o cilindro de arame pare de girar. Poderia então cortar mais duas aberturas. Virou-se bruscamente para inspecionar o cilindro.

Nesse instante, o alicate preso por uma corda a seu pulso desprendeu-se. O nó se abrira...

O alicate era amarelo, assim pintado para proporcionar mais visibilidade. Viu-o caindo...

Instintivamente, Georgos virou-se para o lado, bateu os pés e mergulhou, seguindo o alicate. A mão estava estendida, faltava pouco para alcançá-lo.

Foi então que sentiu um súbito movimento da água e compreendeu que fora fundo demais e estava sendo sugado por uma bomba. Tentou voltar. Tarde demais! A água puxava-o inexoravelmente.

Georgos largou o bocal e o tubo de ar e tentou gritar. A água penetrou em seus pulmões. No instante seguinte, as hélices propulsoras da bomba, com dois metros de largura, prenderam seu corpo e cortaramno em pedacinhos.

O tanque de ar também foi destruído; as bombas contendo explosivo, desarmadas e inofensivas, foram sugadas pela água.

Somente segundos depois, todas as bombas da usina foram diminuindolentamente e pararam de todo.

No salão de controle, o operador-chefe, que acabara de apertar quatro botões vermelhos, um depois do outro, em painéis separados, estava contente pelo fato de a responsabilidade não ser sua. Era bom que o jovem Ostrander tivesse uma explicação aceitável para paralisar sem qualquer aviso as unidades 1, 2, 3 e 4 de La Mission, responsáveis pela geração de 3.200.000 kilowatts. Sem falar na destruição dos discos de junção das turbinas, que levariam oito horas para serem reparados.

No momento em que ele registrava a hora, 3h02min da tarde, a linha de telefone direta do Centro de Controle de Energia começou a tocar. O operador-chefe atendeu e uma voz furiosa perguntou:

- O que diabo está acontecendo aí? Vocês puseram todo o sistema em blackout!

Bob Ostrander não tinha a menor dúvida de que tomara a decisão acertada ao paralisar todos os geradores. Não previa qualquer dificuldade em justificar-se.

A destruição dos discos de junção das turbinas era um pequeno preço a se pagar pela salvação dos condensadores.

Imediatamente depois de dar a ordem de paralisação, Ostrander e o guarda de serviço na casa das bombas foram inspecionar os condensadores. Quase que imediatamente avistaram diversos objetos de metal: eram as bombas cilíndricas que Georgos levara sem saber se eram perigosas ou inofensivas; os dois homens as recolheram e foram correndo lançá-las no rio.

Depois, voltando aos condensadores para examinar tudo novamente, Ostrander teve tempo para refletir que até agora ainda não acontecera coisa alguma na casa das bombas. Presumivelmente, Archambault ainda estava lá embaixo e era capaz de causar danos, embora fosse possível que o movimento do cilindro de arame houvesse desviado a atenção dele. Ostrander tomou uma decisão: voltaria à casa das bombas e ali decidiria o que fazer em seguida.

Já estava prestes à se afastar quando notou alguns detritos que deviam ter passado pelas bombas e haviam-se acumulado num condensador. Estava olhando para um desses detritos e se inclinou para pegá-lo.

Parou abruptamente no meio do movimento. Engoliu em seco, sentindo-se nauseado. O que Bob Ostrander estava vendo era uma mão humana, com manchas peculiares.

Deus do céu, como o tempo tinha passado depressa! Karen ficou chocada ao verificar que já passavam das duas horas da tarde.

Parecia que fora poucos minutos antes que prometera a Nimrod que iria o mais depressa possível para o Hospital Redwood Grove; contudo, algumas horas já se haviam passado. Claro que as compras demoraram mais do que esperara. Mas não era o que sempre acontecia? comprara um lindo vestido por um preço de liquidação, um par de sapatos, diversos artigos de papelaria de que estava precisando e um colar de contas de cristal que a agradara intensamente. O colar, que felizmente custara barato, ficara ótimo em Cynthia; iria dá-lo de presente no aniversário da irmã, que estava próximo. Depois, Josie tinha uma lista grande de artigos de que estavam precisando e isso consumira ainda mais tempo. Mas saíra tudo bem. Além do mais, Karen adorava fazer compras, sempre num centro comercial grande e movimentado a dois quarteirões apenas do prédio. Outra vantagem daquele centro comercial era a possibilidade de Karen ir até lá diretamente, na cadeira de rodas, controlando-a pessoalmente, o que sempre a agradava.

Uma coisa que não precisaram fazer naquele dia fora comprar comida, pois Karen ficaria no Redwood Grove durante o período de cortes de energia. Parecia que seriam frequentes, até que ficasse resolvida aquela confusão do petróleo da OPEP, o que Karen esperava que acontecesse o mais depressa possível.

Preferira não pensar em todo o tempo que teria de passar no hospital, mas sabia que sentiria muita saudade de seu apartamento. O hospital era uma tranquilidade, especialmente agora, com sua fonte de energia própria. Mesmo assim, era uma instituição das mais espartanas e a comida era horrível.

A comida do hospital era outro motivo pelo qual se haviam atrasado.

Josie sugerira e Karen concordara que seria muito mais agradável se almoçassem no apartamento antes de partir; além do mais, o almoço no Redwood Grove provavelmente já teria acabado quando lá chegassem. Assim, ao voltarem das compras, Josie fora preparar uma refeição para ambas, enquanto Karen continuava a escrever um novo poema, que tencionava enviar para Nimrod.

Agora, terminando o almoço, Josie estava ocupada arrumando numa mala as coisas de que Karen precisaria no hospital. Num súbito impulso de afeição, Karen disse:

- Oh, Josie, como eu gosto de você! Faz tanta coisa, nunca se queixa e me dá muito mais do que posso retribuir!

- Já me dá o suficiente com sua companhia. - Josie respondeu sem desviar os olhos do que estava fazendo. Karen sabia que as manifestações de afeição sempre deixavam a outra constrangida, mas nem por isso deixou de insistir:

- Josie, pare com isso e venha até aqui. Quero dar-lhe um beijo. com um sorriso tímido, Josie aproximou-se.

- Abrace-me, Josie. - Depois que ela o fez, Karen beijou-a e acrescentou: - Josie querida, amo você imensamente.

- E eu também a amo.

Josie desvencilhou-se e voltou a arrumar a mala. Ao terminar, anunciou:

- Estamos prontas. vou descer agora e buscar Humperdinck. Pode ficar sozinha até eu voltar?

- Claro! Enquanto você estiver lá embaixo, aproveitarei para dar um telefonema.

Josie ajeitou o aparelho na cabeça de Karen. Um minuto depois, ela saiu, fechando a porta do apartamento. Karen tocou no botão com a cabeça, ouviu a campainha tocare depois uma voz atendeu:

- Telefonista. Em que posso servi-la?

- Tenho o serviço manual, telefonista. Pode discar para mim, por favor? - Karen deu o número de seu telefone e depois o número para o qual desejava ligar, o da casa de seus pais.

- Um momento, por favor.

Houve uma série de cliques, depois um toque de campainha. Karen ficou esperando que o telefone fosse atendido no segundo ou terceiro toques, como geralmente acontecia. Mas, para surpresa sua, a campainha continuou chamando. Karen falara com a mãe no inicio da manhã e sabia que Henrietta Sloan não se estava sentindo bem e não tencionava ir trabalhar naquele dia, e também não pensava em sair.

Karen pensou: a telefonista provavelmente ligou o número errado.

Cortou a ligação, comprimindo o botão com a cabeça, e tentou novamente. A campainha outra vez soou interminavelmente, sem que ninguém atendesse.

Karen deu outro número à telefonista, o de Cynthia. E novamente ninguém respondeu.

Estranhamente, Karen experimentou uma vaga apreensão. Raramente ficava sozinha no apartamento; e nas poucas ocasiões em que isso acontecia, gostava de manter contato com alguém pelo telefone.

Ao dizer a Josie que podia ir, fizera-o sem pensar a respeito. Agora, gostaria que não a tivesse deixado sair.

E foi nesse exato momento que diversas luzes no apartamento se apagaram e o ar condicionado parou de funcionar. Karen sentiu uma rápida mudança de ritmo, quando o aparelho de respiração passou da energia do prédio para a bateria.

com um sobressalto, Karen recordou-se de algo que tanto ela como Josie haviam esquecido. A bateria da cadeira de rodas, bastante utilizada durante a saída para as compras, deveria ter sido substituída no instante em que tinham voltado ao apartamento. Em vez disso, Josie ligara a cadeira na tomada e passara o botão da bateria ali instalada para "carregar". Só que a bateria precisava de pelo menos seis horas carregando para recuperar o que perdera naquela manhã; estava carregando há menos de 60 minutos e, agora, com a energia externa desligada, o carregamento cessaria.

Havia uma bateria de reserva, totalmente carregada, à direita da cadeira de Karen, pronta para ser instalada, antes de partirem para o hospital. Karen podia vê-la. Mas não havia a menor possibilidade de poder ligá-la pessoalmente.

Karen esperava que a energia voltasse em poucos minutos. E, mais do que nunca, esperava também que Josie retornasse rapidamente.

Decidiu ligar para Nimrod. Tudo indicava que a interrupção imprevista a que ele se referira como "provável" acabara acontecendo. Mas ao comprimir o botão do aparelho com a cabeça, tudo o que Karen conseguiu ouvir foi um comunicado gravado:

"Todos os circuitos estão ocupados. Por favor, desligue e faça sua chamada mais tarde. "

Karen tentou novamente.

"Esta é uma gravação... "

Mais de uma vez. O mesmo resultado.

Karen sabia, por ter lido a respeito, que sempre que havia um blackout disseminado os circuitos telefónicos ficavam congestionados, porque mais pessoas procuravam efetuar ligações. E havia também muitas pessoas que ligavam para a telefonista a fim de indagar o que estava acontecendo. Por isso, era difícil também entrar em contato com a telefonista.

Ela começou a ficar alarmada. Onde estava Josie? Por que estava demorando tanto? E por que o zelador, Jiminy, ainda não subira para verificar se ela estava passando bem, como sempre fazia quando acontecia alguma coisa fora do normal?

Embora Karen não pudesse saber, toda uma combinação de incidentes contribuíra para a situação angustiante em que se encontrava naquele momento.

Às 10h45min da manhã, enquanto Karen e Josie se preparavam para ir às compras, Luther Sloan fora preso e acusado de 16 infrações à lei, pelo Artigo 693c do Código Penal da Califórnia, que trata especificamente do roubo de gás.

Desde aquele momento que Henrietta Sloan, aturdida, desesperada, totalmente inexperiente em tais questões, vinha tentando providenciar a fiança do marido. Pouco depois do meio-dia, telefonara para a filha mais velha, Cynthia, pedindo ajuda. Cynthia pedira a uma vizinha para ficar tomando conta do único filho que ainda vivia com ela, assim que ele voltasse da escola, e fora encontrar-se com a mãe. O marido de Cynthia estava trabalhando e só chegaria em casa à noite.

Enquanto Karen tentava ligar para a mãe e a irmã, as duas estavam correndo entre um escritório de advocacia especializado em pagamentos de fianças e a cadeia em que Luther Sloan estava detido.

As duas estavam na seção de visitantes da cadeia quando ocorreu a interrupção no fornecimento de energia. Só que não souberam do que estava acontecendo, porque a delegacia dispunha de um gerador de emergência; assim, as luzes piscaram por um instante, mas voltaram a se acender quase que imediatamente, quando o gerador automaticamente entrou em funcionamento.

Poucos minutos antes, Henrietta Sloan e Cynthia haviam conversado sobre se deviam ou não ligar para Karen; mas decidiram que seria melhor não o fazer, a fim de não afligi-la.

Nenhuma das duas, assim como Luther Sloan, iria tomar conhecimento do corte de energia senão duas horas depois, quando a fiança foi finalmente providenciada e os três deixaram a cadeia.

Poucos minutos antes de as luzes no apartamento de Karen se apagarem, a cadeira de rodas e o aparelho de respiração passando a funcionar com base na bateria, Bob Ostrander gritara para o operador-chefe da usina de La Mission:

- Paralise as unidades! Agora!

No instante em que o operador obedeceu, o sistema de transmissão da GSP & L ficou privado, inesperadamente, de 3. 200. 000 kilowatts, num momento em que a companhia estava operando com uma reserva minima e numa tarde excepcionalmente quente de maio, em que a demanda de carga era acima do normal, por causa do uso amplo de aparelhos de ar condicionado.

O resultado: um computador de controle, verificando que havia agora energia insuficiente em carga para atender à demanda, instantaneamente abriu os interruptores dos circuitos de alta voltagem, mergulhando uma extensa área servida pela GSP & L num blackout total.

O prédio de apartamentos de Karen estava na área afetada.

Josie e o zelador, Jiminy, estavam presos no elevador do prédio e gritavam freneticamente, tentando chamar atenção.

Depois de deixar Karen sozinha no apartamento, Josie caminhara rapidamente até o posto de gasolina onde Humperdinck fora deixado durante a noite. O dono do posto conhecia Karen, e permitia que o veículo ficasse estacionado ali, sem cobrar -coisa alguma. Josie levara menos de 10 minutos para pegar o Humperdinck e ir estacionar diante do prédio, onde a cadeira de rodas de Karen poderia ser convenientemente embarcada.

O encarquilhado zelador estava retocando a pintura externa do prédio quando Josie voltara. E perguntara:

- Como está a nossa Karen?

- Vai muito bem.

Josie falara que estavam de saída para o Hospital Redwood Grove, por causa do blackout programado pára o dia seguinte. Jiminy largara o pincel e a lata de tinta, dizendo que iria subir também, para ver em que poderia ajudar.

No elevador, Jiminy apertara o botão para o sexto andar. Começaram a subir. Estavam entre o terceiro e quarto andares quando a energia foi cortada. Havia uma lâmpada de emergência acionada por bateria numa prateleira. Jiminy a pegara e acendera. À luz fraca, apertara todos os botões à vista, mas nada acontecera.

E logo depois os dois começaram a gritar por socorro.

Já estavam agora gritando há cerca de 20 minutos, sem que ninguém respondesse.

Havia um pequeno alçapão no teto do elevador. Mas tanto Josie como Jiminy eram baixos e, mesmo trepando um nos ombros do outro, o que tentaram em turnos, só conseguiram movê-lo apenas ligeiramente, mas sem qualquer possibilidade de passar. Mesmo que conseguissem passar pelo alçapão, era improvável que pudessem escapar do poço do elevador.

Josie há muito que se lembrara da bateria de Karen quase descarregada, o que tornava seus gritos ainda mais desesperados. Não demorou muito para que as lágrimas que escorriam tornassem sua voz ainda mais rouca.

Embora não soubessem disso naquele momento, Josie e Jiminy ficariam presos no elevador por quase três horas, até que a energia elétrica fosse restabelecida.

A companhia telefónica iria mais tarde comunicar que, embora seus geradores de emergência funcionassem durante o blackout, por mais de uma hora, a demanda de seus serviços foi sem precedentes. Milhares de telefonemas não foram completados e muitas pessoas que tentaram entrar em contato com as telefonistas, para saber o que estava acontecendo, não o conseguiram.

Nim Goldman, sob pressão em diversas frentes por causa da súbita interrupção no fornecimento de energia, pensou por um instante em Karen e sentiu-se aliviado por ela ter concordado em ir para o Hospital Redwood Grove naquela manhã. Decidiu que mais tarde, assim que a situação se acalmasse um pouco, telefonaria para o hospital.

Karen estava agora pálida de medo, suando intensamente.

A esta altura, já sabia que acontecera algo muito grave para impedir a volta de Josie.

Tentara telefonar novamente, vezes sem conta. Mas tudo o que conseguia era ouvir a gravação. Pensou em manobrar a cadeira de rodas e bater contra a porta da frente, na esperança de que alguém estivesse passando pelo corredor naquele momento e pudesse ouvi-la. Mas movimentar a cadeira de rodas iria esgotar ainda mais depressa a pouca carga que restasse na bateria. Karen sabia, através da experiência e cálculos, que a bateria não poderia aguentar por muito mais tempo, nem mesmo para acionar o aparelho respiratório.

Na verdade, restava apenas um quarto de hora de vida na bateria. Na volta da saída para as compras, ela estava ainda mais descarregada do que Karen imaginava.

A moça, cujas convicções religiosas jamais tinham sido muito fortes, começou a rezar. Suplicou a Deus e a Jesus Cristo que lhe enviassem Josie, Jiminy, seus pais, Nimrod, Cynthia ou qualquer outra pessoa... alguém, pelo amor de Deus!

- Tudo o que precisavam fazer, meu Deus, é ligar a outra bateria. A que está ali embaixo, Jesus! Qualquer um pode fazer isso! Posso explicar como! Oh, Deus, por favor! Por favor!...

Ela ainda estava rezando quando sentiu o aparelho respiratório começando a funcionar mais devagar, sua respiração se tornando lenta e insuficiente...

Freneticamente, tentou telefonar novamente.

"Este é um comunicado gravado. Todos os circuitos estão congestionados. Por favor, desligue e... "

Uma campainha estridente, ligada ao aparelho respiratório e acionada por uma pequena célula de níquel e cádmio, soou em advertência de que o aparelho estava prestes a parar. Karen, a consciência já diminuindo, ouviu-a vagamente, como se soasse muito longe.

Ao começar a arquejar, procurando absorver o ar que não podia respirar sem ajuda, sua pele ficou vermelha, depois arroxeada, finalmente cianótica. Os olhos ficaram esbugalhados. A boca se mexia freneticamente. Depois, quando o ar cessou de entrar, Karen sufocou, sentindo uma dor intensa no peito.

No instante seguinte, misericordiosamente, a bateria morreu. E Karen morreu junto.

Um instante antes da morte, a cabeça descaiu para o lado e tocou o botão do telefone especial. E uma voz respondeu:

- Telefonista. Em que posso servir?

Sob certos aspectos, pensou Nim, era como a reprise de um filme antigo, enquanto explicava ao grupo da imprensa, inclusive equipes de rádio e televisão, o que acontecera na usina de La Mission para causar o último blackout.

Será que já haviam realmente passado 10 meses que Walter Talbot e os outros tinham morrido e Big Lil sofrera os danos causados por uma bomba, provocando o blackout do verão passado? Tanta coisa acontecera desde então que o lapso de tempo parecia muito maior.

Mas Nim estava consciente de uma diferença naquele dia. Era a atitude dos jornalistas, em comparação com a que haviam assumido 10 meses antes.

Agora, parecia haver uma consciência genuína dos problemas que a GSP & L enfrentava, e uma compreensão que faltara anteriormente.

- Sr. Goldman, se receberem o sinal verde para a construção de novas usinas, quanto tempo vai demorar para recuperarem o atraso? perguntou o repórter da Tribune, de Oakland.

- Dez anos. Se fizermos um programa intensivo, talvez seja possível reduzir esse prazo para oito anos. Mas precisamos de muitas autorizações e licenças antes de podermos sequer começar. E até agora ainda não há o menor sinal de que as conseguiremos.

Nim ali estava, na galeria de observação do Centro de Controle de Energia, dando uma entrevista coletiva, a pedido de Teresa Van Buren, pouco depois da paralisação de todas as unidades geradoras de La Mission e do consequente blackout. Nim tivera o primeiro aviso de que algo estava errado quando as luzes de sua sala se haviam apagado por uma fração de segundo, para logo depois voltarem a se acender. É que havia um circuito especial resguardando a falta de energia a sede da GSP & L e instalações vitais como o Centro de Controle de Energia.

Sabendo que surgira algum problema inesperado, Nim seguira imediatamente para o Centro de Controle de Energia, onde foi informado do que acontecera por Ray Paulsen, que ali chegara poucos minutos antes.

- Ostrander tomou a decisão correta e vou apoiá-lo até o fim declarou Paulsen. - Se eu estivesse no lugar dele, teria feito a mesma coisa.

- Tem toda razão, Ray. E quando eu falar com a imprensa, vou seguir essa linha.

- E pode dizer mais outra coisa: o fornecimento será inteiramente restabelecido dentro de três horas ou menos. E amanhã, as unidades 1, 2, 3 e 4 de La Mission estarão novamente em carga, assim como todas as unidades geotérmicas.

- Obrigado pela informação, Ray. Pode estar certo de que saberei aproveitá-la.

Era extraordinário, pensara Nim, como o antagonismo entre ele e Paulsen parecia ter-se evaporado, sob a pressão dos acontecimentos. Agora, na entrevista coletiva, Nancy Molineaux lhe perguntou:

- Isso altera de alguma forma os blackouts programados?

- Não. Eles vão mesmo começar amanhã, como estava previsto, prosseguindo nos dias subsequentes.

O representante do Bee, de Sacramento, indagou:

- E será possível limitar os blackouts a três horas apenas?

- É bastante improvável. À medida que nossos suprimentos de óleo forem diminuindo, os blackouts terão que ser mais prolongados... provavelmente seis horas por dia.

Alguém assoviou baixinho. Um repórter da televisão perguntou:

- Já soube que houve manifestações contra os "antis"?

- Já, sim. E, em minha opinião, isso não ajuda a ninguém, muito menos a nós.

As manifestações haviam ocorrido na noite anterior. Nim lera a respeito pela manhã. Haviam jogado pedras nas janelas do Clube da Sequóia e na sede da Liga Antinuclear. Os manifestantes em ambos os lugares, que se intitulavam "Cidadãos Comuns", haviam entrado em choque com a polícia e vários foram presos. Foram soltos posteriormente, sem qualquer acusação.

Todos estavam prevendo que haveria mais manifestações e distúrbios em todo o país, à medida que aumentasse o desemprego, em decorrência dos cortes de energia.

Em meio à crise, os antigos críticos e oponentes da GSP & L estavam estranhamente silenciosos.

Finalmente, na entrevista coletiva, alguém perguntou:

- Qual o seu conselho ao público, Sr. Goldman? Nim sorriu debilmente.

- Desliguem tudo o que não precisarem para sobreviver.

Nim só voltou a sua sala duas horas depois, por volta das seis horas da tarde. E foi logo dizendo a Vicki, que estava trabalhando além do expediente, o que-já ia virando hábito:

- Ligue para o Hospital Redwood Grove. Quero falar com a Srta. Sloan.

Vicki tocou o interfone alguns minutos depois.

- O hospital diz que não há nenhuma Srta. Sloan internada lá. Surpreso, Nim perguntou:

- Eles têm certeza?

- Pedi que se certificassem e verificaram duas vezes.

- Então ligue para o apartamento dela.

Nim sabia que Vicki tinha o número. Estava aturdido. Era difícil acreditar que Karen não tivesse saído do apartamento e ido para o hospital. Desta vez, ao invés de tocar o interfone, Vicki abriu a porta, a expressão grave.

- Sr. Goldman, acho melhor atender o telefone. Desconcertado, Nim atendeu.

- É você, Karen?

Uma voz sufocada respondeu:

- Aqui é Cynthia, Nimrod. Karen morreu.

- Não podemos ir mais depressa? - perguntou Nim ao motorista.

- Estou fazendo todo o possível, Sr. Goldman. - O tom era de censura. - Há muito tráfego e mais pessoas nas ruas do que normalmente.

Nim requisitara um carro com motorista da companhia, para não perder tempo indo buscar seu Fiat e guiando pessoalmente. Dera o endereço do prédio de Karen ao motorista e agora estavam a caminho.

Os pensamentos de Nim estavam em turbilhão. Não conseguira arrancar detalhes de Cynthia, a não ser a informação de que a interrupção no fornecimento de energia fora a causa da morte de Karen. Nim já se estava culpando pelo que acontecera, por não ter verificado antes se Karen fora mesmo para o Redwood Grove.

Embora soubesse que era tarde demais, estava com a maior impaciência em chegar

Para se distrair, ficou olhando pelas janelas do carro para as ruas, ao crepúsculo. Pensou no que o motorista acabara de dizer. Havia muito mais pessoas nas ruas do que normalmente. Nim recordou de haver lido que, durante os blackouts de Nova York, as pessoas costumavam sair de casa aos bandos. Quando interrogadas, poucas sabiam explicar por quê. Talvez estivessem instintivamente querendo partilhar a adversidade com os vizinhos.

Outros, é claro, haviam saído às ruas de Nova York para infringir a lei, queimar, saquear. Tal vez, à medida que o tempo passasse, ambas as reações acontecessem ali também.

Quer acontecessem ou não, pensou Nim, uma coisa era certa: os padrões de vida estavam mudando de maneira significativa e mudariam ainda mais.

As luzes da cidade estavam acesas ou começando a se acender. Em breve já estaria restabelecido o fornecimento aos poucos bolsões ainda sem energia.

Até amanhã.

E o dia seguinte.

E quem poderia saber. quão prolongado ou drástico seria o afastamento da vida normal?

- Chegamos, Sr. Goldman.

Estavam parados diante do prédio de apartamentos de Karen, Nim murmurou:

- Fique esperando, por favor.

- Não pode entrar, Nimrod - disse Cynthia. - Não agora. É horrível demais.

Ela saíra para o corredor quando Nim chegara, fechando a porta. No breve instante em que a porta ficara aberta, Nim ouvira alguém lá dentro tendo um ataque histérico - parecia Henriquetta Sloan - e um gemido que provavelmente devia ser de Josie. Os olhos de Cynthia estavam vermelhos.

Ela contou o que sabia sobre a sucessão de infortúnios que se haviam somado para culminar na morte horrível e solitária de Karen. Nim começou a dizer o que já pensara, querendo assumir a culpa, quando Cynthia interrompeu-o bruscamente:

- Não! O que quer que nós tenhamos feito ou deixado de fazer, Nimrod, há muito tempo que ninguém fazia tanto por Karen quanto você. Tenho certeza de que ela não gostaria que você se culpasse. Karen até deixou uma coisa para você. Espere um instante!

Cynthia entrou no apartamento e voltou um instante depois, com uma folha de papel de Karen.

- Isto estava na máquina de escrever de Karen. Ela sempre demorava bastante em algo assim e provavelmente estava trabalhando nisso antes... antes... - A voz estava estrangulada. Cynthia. sacudiu a cabeça, incapaz de terminar.

- Obrigado. - Nim dobrou a folha de papel e guardou-a no bolso interno do paletó. - Há alguma coisa que eu possa fazer?

Cynthia tornou a sacudir a cabeça.

- Não agora. - Quando ele fez menção de se afastar, ela acrescentou: - Voltarei a vê-lo, Nimrod?

Nim parou. Era um convite claro e óbvio. O mesmo convite que já lhe fora feito antes.

- Não sei, Cynthia...

O mais terrível, pensou Nim, é que desejava Cynthia, que era bonita, sensual, e estava ansiosa em dar amor. E a desejava apesar de sua reconciliação com Ruth, apesar de amar Ruth profundamente.

- Se precisar de mim, Nimrod, sabe onde me encontrar... Nim assentiu, ao se retirar.

No carro, voltando para a GSP & L, Nim tirou do bolso a folha de papel de Karen que Cynthia lhe entregara. Acendendo a luz do teto, ele leu:

É tão estranho, Nimrod querido, Que as luzes tenham que se extinguir? As luzes do impulso falharam; Todos os fogos que os homens ateiam Perdem a força e morrem... Mas a luz, como a vida, sobrevive; Um brilho fraco, uma chama débil, Tudo mantém um

Um o quê?, perguntou-se Nim. Qual seria o último pensamento doce e amoroso de Karen que ele jamais conheceria?

 

Uma cama de campanha foi instalada no gabinete de Nim. Já estava lá quando ele voltou, arrumada, com lençóis, uma manta, travesseiro, justamente como pedira.

Vicki já tinha ido embora.

Os pensamentos de Karen ainda dominavam a mente de Nim. Apesar das palavras de Cynthia, o sentimento de culpa persistia. A culpa não era apenas sua, mas também da GS P E L, da qual ele fazia parte, e que falhara a Karen num momento crucial. Na vida moderna, a eletricidade se transformara em algo vital - para pessoas como Karen, literalmente - e não devia ser interrompida, qualquer que fosse a causa. A segurança do serviço era, acima de tudo, a primeira obrigação, um dever quase sagrado, para qualquer companhia de serviços públicos, como a GSP & L. E, no entanto, esse serviço vital seria interrompido - tragicamente, tristemente, de certa forma desnecessariamente - vezes sem conta, a partir do dia seguinte. Nim não tinha a menor dúvida de que, à medida que os blackouts temporários continuassem, haveria outras perdas e contratempos, e muitos imprevistos.

Será que algum dia conseguiria livrar-se do sentimento de culpa em relação a Karen?, perguntou-se Nim. com o tempo, era possível. Mas não agora.

Nim desejava que houvesse naquele momento alguém com quem pudesse conversar, em quem pudesse confiar. Mas não falara a Ruth a respeito de Karen e não poderia fazê-lo agora.

Sentou-se a sua mesa e pôs o rosto nas mãos. Depois de algum tempo, chegou à conclusão de que precisava fazer alguma coisa para distrair-se mentalmente. Por uma ou duas horas, pelo menos.

Os acontecimentos daquele dia, um trauma depois de outro, haviam-no impedido de cuidar dos papéis que estavam acumulados em sua mesa. Se não trabalhasse um pouco naquela noite, sabia que teria de fazer o dobro de trabalho no dia seguinte. Mas pôs-se a trabalhar mais por alívio mental do que por qualquer outro motivo.

Estava concentrado há cerca de 10 minutos quando ouviu tocar o telefone na sala da secretária. Atendeu na extensão.

- Sou capaz de apostar que já pensava estar livre, por hoje, da função de porta-voz da companhia - disse Teresa Van Buren.

- Já que falou nisso, Tess, confesso que a ideia me ocorreu. A vice-presidente de relações públicas soltou uma risadinha.

- A imprensa nunca dorme; o que se há de fazer? Tenho aqui dois repórteres que estão querendo falar com você. Um é da AP, que tem algumas perguntas complementares para uma reportagem nacional sobre os blackouts. A outra é Nancy Molineaux, que se recusa a dizer o que está querendo, mas quer alguma coisa. O que me diz?

Nim suspirou.

- Como você disse... o que se há de fazer? Pode trazê-los a minha sala.

Havia momentos, como aquele, em que Nim lamentava o afastamento de Paul Yale.

Alguns minutos depois, Teresa Van Buren estava na sala. E foi logo dizendo:

- Não vou ficar.

Ela apresentou o repórter da AP, já idoso, os olhos remelosos, e uma tosse de fumante. Nancy Molineaux preferira ficar esperando na ante-sala até que o repórter da AP terminasse a entrevista.

As perguntas foram profissionais e meticulosas, e o repórter anotou as respostas de Nim, em sua própria versão de taquigrafia, num bloco de papel de texto. Ao terminarem, ele se levantou e perguntou:

- Quer que eu diga à boneca para entrar?

- Quero, sim, por favor.

 

Nim ouviu a porta externa se fechar e depois Nancy entrou em sua sala.

- Olá! -disse ela.

Como sempre, Nancy estava elegante, embora vestida com simplicidade, naquela noite de saia e blusa, em tom coral, combinando com a pele preta impecável. O rosto bonito, dê malares salientes, parecia ter perdido um pouco da altivez, embora não toda. Talvez fosse, pensou Nim, porque ela passara a se mostrar mais amistosa, desde o encontro no Hotel Christopher Columbus e os acontecimentos lamentáveis subsequentes.

Sentou-se diante da mesa, cruzando as pernas compridas e bem torneadas. Nim admirou-as por um instante, depois desviou os olhos.

- Oi! - respondeu. - Em que posso ajudá-la?

- Nisto aqui. - Nancy colocou uma tira comprida de papel na mesa. Era uma cópia em carbono de teletipo. - A notícia acabou de chegar e será publicada pelos matutinos. Gostaríamos de desenvolvê-la com alguns comentários, como o seu, por exemplo, para a edição vespertina.

Virando a cadeira para a luz, Nim disse:

- Deixe-me ler primeiro.

- Não precisa ter pressa. Estou querendo comentários objetivos. Nim leu a notícia rapidamente e depois voltou ao início, relendo mais devagar:

WASHINGTON, D. C. 3 DE MAIO - NUM DRAMÁTICO ESFORÇO PARA RESOLVER A ATUAL CRISE DE PETRÓLEO, OS ESTADOS UNIDOS DEVEM LANÇAR UMA NOVA MOEDA, A SER CONHECIDA COMO O "DÓLAR NOVO". TERÁ LASTRO-OURO E VALERÁ-DEZ DOS DÓLARES ATUAIS:

O PRESIDENTE VAI ANUNCIAR OFICIALMENTE O LANÇAMENTO DO "DÓLAR NOVO" NUMA REUNIÃO com A IMPRENSA AMANHÃ À TARDE.

ALGUMAS AUTORIDADES DE WASHINGTON JÁ APELIDARAM A NOVA mOEDA DE "DÓLAR HONESTO".

SERÁ PEDIDO ÀS NAÇÕES EXPORTADORAS DA OPEP QUE ACEITEM O PAGAMENTO POR SEU PETRÓLEO EM "DÓLARES NOVOS", OS ACERTOS DE PREÇOS A SEREM NEGOCIADOS.

A RELAÇÃO INICIAL DA OPEP FOI CAUTELoSAMENTE FAVORÁVEL. CONTUDO, O PORTA-VOZ DA OPEP, XEQUE AHMED MUSAED, DECLAROU QUE UMA AUDITORIA INDEPENDENTE DAS RESERVAS DE OURO DOS ESTADOS UNIDOS DEVE SER AUTORIZADA, ANTES DE SE CHEGAR A QUALQUER -ACORDO BASEADO NO "DÓLAR NOVO".

"NÃO CHEGAMOS AO PONTO DE INSINUAR QUE OS ESTADOS UNIDOS ESTÃO MENTINDO EM RELAÇÃO A SUAS RESERVAS DE OURO", DISSE O XEQUE MUSAED AOS REPÓRTERES ESTA NOITE EM PARIS, "MAS HÁ RUMORES PERSISTENTES QUE NÃO PODEM SER IGNORADOS. POR ISSO, QUEREMOS CERTIFICAR-NOS DE QUE O LASTRO-OURO DO DÓLAR NOVO' É REAL E NÃO ILUSÓRIO. "

ESPERA-SE QUE O PRESIDENTE COMUNIQUE AOS AMERICANOS QUE PODEM ADQUIRIR OS "DÓLARES NOVOS" EM TROCA DOS SEUS DÓLARES ANTIGOS, NA PROPORÇÃO DE DEZ PARA UM. A TROCA SERÁ VOLUNTÁRIA A PRINCÍPIO, PASSANDO A SER compULSÓRIA, NOS TERMOS DA LEGISLAÇÃO PROPOSTA, DENTRO DE CINCO ANOS. DEPOIS DE DECORRIDO UM PRAZO A SER FIXADO, O DÓLAR ANTIGO PERDERÁ O VALOR, A NÃO SER COMO PEÇA DE COLECIONADOR.

NA ENTREVISTA COLETIVA, O PRESIDENTE SERÁ CERTAMENTE INDAGADO...

Nim pensou: a possibilidade que o representante da GSP & L em Washington mencionara na semana anterior se tornara realidade. Ele se lembrou da presença de Nancy Molineaux, esperando.

- Não sou um génio das finanças. Mas não é preciso ser para saber que o que está acontecendo aqui... - e Nim bateu com um dedo no teletipo - há muito que é inevitável, desde que a inflação começou e depois que nos tornamos dependentes do petróleo importado. Infelizmente, muitas pessoas'decentes, de classe média, que trabalharam arduamente para acumular suas economias, serão as mais atingidas, quando entrarem na fila para trocar seus dólares, na base de dez por um. Mesmo agora, no entanto, tudo o que estamos conseguindo com isso é ganhar algum tempo. Tempo para pararmos de comprar petróleo que não podemos ter, para pararmos de gastar um dinheiro que não possuímos e para começarmos a desenvolver nossas próprias fontes de energia, ainda não exploradas.

- Obrigada - disse Nancy. - A declaração está ótima. - Ela guardou o bloco em que estivera escrevendo. - Lá no jornal, por falar nisso, estão pensando que você é uma espécie de "Mister Oráculo". E já que estamos falando nisso, talvez se interesse em saber que no próximo domingo vamos publicar novamente o que disse na audiência de setembro passado... aquela em que perdeu o controle e disse tudo o que estava pensando. De repente, as coisas passam à fazei mais sentido do que naquela ocasião. - Nancy fez uma pausa, um pensamento súbito lhe ocorrendo. - Não gostaria de fazer uma declaração sobre como -se sente a respeito de tudo o que aconteceu e está acontecendo?

Num impulso que não sabia explicar, Nim abriu uma gaveta e tirou uma pasta. Pegou uma folha de papel azul e leu em voz alta:

Seja generoso e saiba perdoar no momento da colheita,

Seja tolerante e liberal,

Ache graça nas contradições da vida.

- Não está nada mau - comentou Nancy. - Quem escreveu?

- Uma pessoa amiga... - Nim descobriu que tinha dificuldade em falar. - Alguém que morreu hoje...

Houve um momento de silêncio e depois Nancy perguntou:

- Posso ler tudo?

- Não vejo por que não.

Nim entregou-lhe a folha de papel. Ao terminar de ler, Nancy perguntou:

- Uma mulher?

- Sim.

- Foi por isso que dava a impressão, quando cheguei aqui esta noite, de que um rolo compressor havia passado sobre você.

Nim sorriu rapidamente.

- Se era assim que eu parecia, então a resposta é sim.

Nancy pôs a folha de papel em cima da pasta que estava na mesa.

- Não gostaria de me falar a respeito? Particularmente, se preferir.

- Particularmente, se não se importa. O nome dela era Karen Sloan. Era quadriplégica desde os quinze anos.

Nim parou de falar abruptamente. Nancy disse suavemente:

- Continue... Estou escutando...

- Acho que era a pessoa mais maravilhosa que já conheci, sob todos os aspectos.

Um novo momento de silêncio.

- Como a conheceu?

- Por acaso. Foi logo depois do blackout de julho do ano passado...

Menos de uma hora atrás, Nim ansiara por alguém com quem falar, com quem pudesse desabafar. Aproveitou agora para despejar tudo em cima de Nancy. Ela ficou escutando, fazendo de vez em quando uma pergunta, mas passando a maior parte do tempo em silêncio. Quando Nim descreveu a maneira como Karen morrera, ela se levantou, ficou andando de um lado para outro da sala, e murmurou baixinho:

- Não, não...

- Pode agora compreender por que minha horrível aparência não é de surpreender.

Nancy foi postar-se diante da mesa. Apontou para os papéis espalhados.

- Então por que está perdendo tempo com toda essa porcaria?

- Tinha muito trabalho a fazer. E ainda tenho.

- Não diga besteira! Largue tudo e vá para casa! Nim sacudiu a cabeça, olhando para a cama.

- Esta noite vou dormir aqui. Ainda temos problemas e amanhã... está lembrada?... vamos começar os blackouts.

- Então venha para casa comigo.

Nim deve ter assumido uma expressão de espanto, porque Nancy acrescentou suavemente:

- Meu apartamento fica a cinco minutos daqui. Pode deixar o telefone e, se precisarem de você, estará de volta num instante. Se não telefonarem, posso preparar um bom café da manhã, antes de você ir embora.

Os dois ficaram de pé, olhando-se. Nim estava consciente do perfume insinuante, do corpo esguio e desejável de Nancy. Desejava conhecêla mais. Muito mais. E sabia... como já acontecera tantas vezes em sua vida e naquela noite ocorria pela segunda vez... que estava sendo tentado por uma mulher.

- Não vai receber a oferta uma segunda vez - disse ela, bruscamente. - Portanto, tome logo uma decisão. Sim ou não?

Nim hesitou apenas por uma fração de segundo.

- Está certo. Vamos indo.

Verdadeiro! - contesta Davey Birdsong, um líder da causa do povo, pitoresco e dinâmico, um ativista engajado em sua própria versão de urna guerra santa.

Talvez! - medita Laura Bo Carmichael, ex-cientista atómica, ecologista e atual presidente do Clube da Sequóia, ponto de reunião dos defensores do meio ambiente.

Tais conflitos, paixões e lealdades são postos em xeque, colidem e jogam os homens e mulheres de COLAPSO uns contra os outros.

Entre as mulheres contam-se Ruth Goldman, esposa de Nim, amada por ele, mas negligenciada enquanto o marido se envolve numa série de casos, inclusive um com Ardythe Talbot, viúva do seu melhor amigo; Karen Sloan, linda, inteligente e quadriplégica, que dependia exclusivamente de energia elétrica para continuar respirando e sobrevivendo; Nancy Molineaux, hábil repórter negra que investiga o caso, tendo Nim Goldman e a empresa elétrica na sua alça de mira.

Há, ainda, o detetive Harry London, que terça golpes de astúcia com os ladrões de eletricidade; Paul Sherman Yale, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, que se auto-intítula a integridade em pessoa; Georgos Archambault, líder terrorista do grupo "Amigos da Liberdade", cujas bombas espalham pavor, destruição morte.

E entremeada nesta história de ritmo alucinante, há detalhes "íntimos" do pouco conhecido mundo da geração de energia elétrica - cada vez mais vital para todos nós.

Energia elétrica. Imagine o que acontecerá se ela faltar, não apenas por poucos momentos mas por largos períodos... Escuridão! Privações Caos!

Este romance, tão dramático como oportuno, conta a história de pessoas e acontecimentos que levam a um clímax dessa natureza.

Embora ficção, é uma história fantasticamente real, tremendamente emocionante, porque poderia acontecer... e talvez aconteça... breve.

 

                                                                                Arthur Hailey  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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