Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COLEÇÃO DE CONTOS / Elizabeth Gaskell
COLEÇÃO DE CONTOS / Elizabeth Gaskell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Meu querido, você sabe que sua mãe era órfã e filha única. Ouso dizer que, você ouviu sobre o seu avô, que era um clérigo em Westmoreland, de onde venho também.
Eu era apenas uma garota da aldeia, quando, em um dia, sua avó perguntou à dona de casa onde eu morava, se havia alguma estudante de enfermagem, porque ela precisava de uma empregada que fosse enfermeira.
Poderosamente orgulhosa fiquei, posso dizer assim, quando a senhora me chamou e falou que eu era uma boa menina, uma enfermeira capaz, perseverante e honesta, e que meus pais eram muito respeitáveis, apesar de serem pobres.
Julguei que não havia nada melhor que servir a mulher bonita e jovem, de rosto corado, tanto quanto eu, quando ela começava a falar sobre o bebê que nasceria em breve, e também, o que eu deveria fazer para cuidar dele.
No entanto, vejo que você não se importa com esta parte da minha história, mas com o que está por vir.
Então, vou lhe dizer imediatamente.

 

 

 

 

Eu estava noiva e hospedada em uma casa perto da paróquia, antes da Senhorita Rosamond, sua mãe, nascer.


Para ser exata, eu tinha poucos afazeres quando ela nasceu, já que a bebezinha nunca estava fora dos braços de sua mãe, e dormia com ela a noite toda.


Eu ficava feliz, quando a sua avó confiava em mim os cuidados de sua mãe.


Nunca houve um bebê assim antes, apesar de todos vocês serem crianças adoráveis, de jeito doce e acolhedor, vocês não podem ser comparados a ela.


Ela puxou à sua avó, chamada Senhora Furnivall, uma neta do Senhor Furnivall, em Nortúmbria.


Acredito que sua avó não tinha irmão nem irmã, porque ela foi criada na família de meu senhor, até casar com seu avô, que ajudava o pai, um lojista em Carlisle.


Seu avô era um cavalheiro esperto, muito honesto, e também um bom trabalhador, o braço direito de sua paróquia. Ele era bem conhecido no vale de Westmoreland.


Quando sua mãe, a pequena Senhorita Rosamond tinha seus quatro ou cinco anos, os pais dela morreram, em uma diferença de quinze dias de uma morte para a outra.


Ah! Foi uma época triste.


Estávamos falando, minha jovem patroa e eu, sobre o bebê que nasceria, quando seu marido chegou a sua casa, após um de seus longos passeios, molhado da chuva que pegara no caminho e cansado.


Uma febre o tomou e ele morreu em seguida.


Então, ela entristeceu e não levantou a cabeça novamente. Viveu apenas os dias que faltavam para ver seu novo bebê nascer, porém, a fatalidade o tomou também e ele nascera morto. Ela o colocou deitado em seu peito, antes que ela suspirasse pela última vez.


Minha senhora pedira, em seu leito de morte, para que eu nunca deixasse a Senhorita Rosamond.


Porém, se ela nunca falasse uma palavra para me pedir, eu iria com a criancinha até ao fim do mundo, se fosse preciso.


No dia seguinte, e antes de calar nosso choro e sussurrado os nossos soluços fúnebres, os guardiões vieram para resolver os assuntos de família.


Eram dois homens de rostos sérios. Um deles era o primo da minha pobre jovem senhora morta, o Senhor Furnivall, o outro era o Senhor Esthwaite, irmão do marido da minha senhora, um lojista em Manchester. Não tão bem-sucedido quando o irmão falecido, todavia, ele alcançara boa posição social.


Pois, bem!


Não sei se foi por sua posição social ou devido à uma carta que a minha senhora escreveu no seu leito de morte ao primo, entretanto, de alguma forma, ficou estabelecido que a menina Rosamond e sua enfermeira, morariam na casa dos Furnivall, em Nortúmbria.


Sendo assim, eu teria um novo senhor.


Era um desejo da mãe da Senhorita Rosamond, que ela vivesse com a sua família, e não houve objecções, visto que não faríamos diferença numa casa tão grande.


Assim sendo, aceitei, apesar de que não fosse assim que eu desejava viver.


Quem não desejava ter em sua família uma boa enfermeira?


Eu era como um raio de sol em qualquer família, não importava se ela fosse pequena ou grandiosa.


Fiquei satisfeita por olharem e admirarem as minhas qualidades. Eles se alegraram quando souberam que eu ia seria a criada da jovem Senhora Furnivall. Todavia, cometi um erro ao pensar que íamos viver onde a minha pobre senhora nascera.


A família deixara a antiga casa de Furnivall, cinquenta anos antes. Eu jamais ouvira a minha senhora falar sobre a casa, mesmo que ela tenha sido criada lá. Lamentei, porque eu desejava que a Senhorita Rosamond pudesse viver onde sua mãe havia morado.


Fiz muitas perguntas para o ajudante do meu senhor, quando estávamos prontas para partir.


Ele me respondera prontamente, dizendo que a casa estava ao pé das colinas em Cúmbria, que era um lugar muito grande e que lá vivia a Senhora Furnivall, uma tia-avó do meu senhor, e para seu auxílio, alguns servos. Afirmou ser um lugar muito agravável, e meu senhor pensara que seria adequado para a Senhorita Rosamond viver lá por alguns anos até deixar a infância, e que ela poderia divertir-se com sua velha tia, servindo de boa companhia.


Fui convidada por meu senhor a deixar as coisas da Senhorita Rosamond prontas até o dia determinado para a mudança.


Ele era um homem muito altivo, como era o costume dos Furnivalls, e nunca falou uma palavra a mais que o necessário.


As pessoas diziam que ele amara a minha jovem senhora, mas ela sabia que seu pai ficaria contra o casamento, e assim, ela se casou-se com Esthwaite, o irmão do meu novo senhor, mas não sei se isso realmente foi verdade.


Ele nunca se casou, e também não prestava muita atenção à Senhorita Rosamond.


Pensei que ele cuidaria dela para honrar a falecida mãe, já que a amava. Mas, isso não aconteceu. Ele mandou seu cavalheiro conosco até à nova casa, dizendo-lhe para se juntar a ele em Newcastle naquela mesma noite.


Sendo assim, não houve muito tempo para que ele nos deixasse conhecer quem morava lá, antes que ele chegasse à morada.


As duas jovens solitárias chegaram no grande e velho casarão. Eu não tinha dezoito anos, e a Senhorita Rosamond, eu segurava nos meus braços.


Parece que foi ontem que fomos até lá. Lembro-me bem...


Tínhamos chorado como se nossos corações se partissem.


Estávamos viajando na carruagem de meu senhor, e já passava do meio-dia, de um dia de setembro, e paramos para os cavalos descansarem pela última vez, em uma cidadezinha que cheirava a minério e fumaça.


A Senhorita Rosamond adormecera nos meus braços após chorar muito, mas o Senhor Henry me disse para acordá-la, para que ela pudesse ver o parque e a casa senhorial, enquanto subíamos na carruagem. Era uma pena acordar a pobrezinha, mas fiz o que ele pediu, por medo de que ele reclamasse de mim ao meu senhor mais tarde.


Deixamos os sinais da vila atrás de nós, e estávamos finalmente nos portões de um grande parque, não como os parques aqui no sul, mas com rochas, barulho da água corrente, árvores espinhosas e carvalhos velhos, brancos e descascados, devido à idade.


A estrada subiu cerca de duas milhas, vimos um grande e imponente casarão, com muitas árvores próximas de suas paredes, que em alguns lugares, seus galhos se arrastavam contra as paredes quando o vento soprava um pouco mais forte.


Havia alguns galhos quebrados, mas ainda pendurados, uma vez que ninguém parecia tomar conta do lugar, limpar a madeira ou manter o caminho coberto de musgo em ordem. Somente na frente da casa, tudo estava limpo.


O grande passeio oval estava sem ervas-daninhas, belos arbustos estavam sobre a frente longa e cheia de janelas, e em ambos os lados, projetava-se uma asa, que era a extremidade da lateral. E, mesmo que a casa fosse tão desolada, ela era ainda mais grandiosa que imaginava, e atrás dela, subiam as colinas.


Na mão esquerda da casa, se você estivesse de frente para ela, estava um pequeno jardim, com flores singelas. Uma porta de madeira escura e espessa surgia na frente oeste, com galhos das grandes árvores, ensombrado novamente a casa.


Poucas flores vivia naquela época e as poucas sobreviventes ao outono, estavam sem cuidado.


Quando nos dirigimos até a grande entrada da frente, e entramos no salão, pensei que logo estaríamos perdidas, porque o lugar era grande, espaçoso e majestoso.


Havia um candelabro de bronze, pendurado no meio do teto, como jamais eu vira antes, e eu olhava tudo com espanto.


Em uma extremidade do salão, uma grande lareira se apresentava, com andirões[1] segurando a madeira, e pelo salão, sofás pesados e antigos.


No extremo oposto do salão, à esquerda, enquanto se entrava pelo lado oeste, estava um enorme órgão[2], embutido na parede, que enchia a melhor parte daquela extremidade. Além dele, do mesmo lado, uma porta e, na parede leste, ao lado da lareira, outras portas, que nunca passei enquanto morei na casa, então, não posso dizer o que estava além delas.


A tarde estava dando lugar à noite e o salão, que não tinha fogo aceso, parecia escuro e sombrio, porém, não ficamos lá por muito tempo.


O velho criado, que nos abriu a porta, fez uma reverência ao Senhor Henry, e nos levou até a porta do lado mais distante do grande órgão, e nos conduziu por vários salões e passagens menores, até a sala de visitas oeste, onde, ele disse que a Senhora Furnivall estava sentada, nos esperando.


A pobre Senhorita Rosamond se agarrou em meu braço, visivelmente assustada e perdida naquele grande lugar, e quanto a mim, eu não estava muito melhor que ela, garanto!


A sala oeste era muito bela, com uma lareira de chamas brandas, com muitos móveis esplêndidos e confortáveis.


A Senhora Furnivall era uma mulher idosa, não muito distante dos oitenta, creio, mas não tenho certeza. Ela era magra e alta, tinha um rosto tão cheio de rugas finas, que eu julgava que foram desenhadas com uma ponta de uma agulha. Seus olhos estavam muito atentos para compensar, suponho, a sua surdez, a ponto de ser obrigada a usar uma trombeta[3].


Sentada com ela, trabalhando no mesmo grande pedaço de tapeçaria, estava a Senhora Stark, sua empregada e amiga, e quase tão velha quanto a Senhora Furnivall. Ela vivia com a Senhora Furnivall desde que as duas eram jovens. Assim, ela parecia mais uma amiga que uma criada, de fato.


A mulher parecia tão mal-humorada e esquisita, como se jamais amasse ou cuidasse de ninguém. Suponho que ela jamais cuidara de ninguém realmente, exceto a sua Senhora e, devido à grande surdez desta última, a Senhora Stark a tratava como se a Senhora Furnivall fosse uma criança.


O Senhor Henry deixou uma mensagem para o meu senhor, e então, se despediu, não dando atenção a doce mão estendida de minha querida Senhorita Rosamond, e nos deixou ali, paradas, sendo olhadas pelas duas velhas senhoras, através de seus óculos e pálpebras enrugadas.


Fiquei muito contente quando elas chamaram o velho criado, e disseram-lhe para nos levar ao nosso quarto.


Saímos daquela grande sala de visitas e entramos em outra sala de estar. Retiramo-nos dela em seguida, e depois subimos uma grande escadaria, e ao longo dela, havia uma ampla galeria, semelhante a uma biblioteca, com livros descendo por um lado, e janelas pelo outro.


Por fim, chegamos ao nosso quarto. O criado falou que nosso quarto ficava logo acima da cozinha.


Pensei que logo me perderia naquela casa, devido às inúmeras portas e salões sem fim. Havia um antigo quarto, que fora usado por todos os pequenos senhores e senhoras, há muito tempo.


Seria o quarto da Senhorita Rosamond.


Com um fogo agradável ardendo na lareira, e a chaleira fervendo no fogo brando, avistei coisas de chá espalhadas sobre a mesa. Tinha também um pequeno berço para a Senhorita Rosamond, perto da minha cama.


E o velho James chamou Dorothy, sua esposa, para nos dar as boas-vindas, e tanto ele quanto ela, eram tão hospitaleiros e bondosos, que nos sentimos em casa.


Quando o chá acabou, a Senhorita Rosamond estava sentada no joelho de Dorothy, e conversando o mais rápido que sua pequena língua podia ir.


Descobri que Dorothy era de Westmoreland, e isso a ligava a menina, e a mim também, por assim dizer.


Eu jamais imaginaria encontrar pessoas mais bondosas que o velho James e sua esposa.


James vivera durante quase toda vida na família de meu senhor e, eu pensava que não havia ninguém tão grandioso quanto ele. Ele gostava muito de sua esposa.


Eles tinham uma criada para fazer todo o trabalho duro. Agnes, eles a chamavam assim.


Portanto, Agnes e eu, James e Dorothy, com a Senhorita Furnivall e a senhora Stark, formávamos a família. Sempre lembrando da minha doce e pequena Senhorita Rosamond!


Costumava me perguntar o que eles faziam antes dela chegar.


Cozinha e sala de desenho eram tudo a mesma coisa para a pequena Rosamond que corria pela casa, arrancando sorrisos de James e Dorothy.


A dura e triste Senhora Furnivall e a fria Senhora Stark, pareciam contentes também, quando a menina caminhava tremulando como um pássaro, brincando aqui e ali, com um murmúrio contínuo, e uma bela tagarelice de alegria que qualquer criança nutre.


Tenho certeza de que eles se arrependeram, muitas, de deixar a menina correr livre, quando ela se atirava na cozinha e fazia alguma traquinagem.


A grande e velha casa era um lugar maravilhoso para a pequena Senhorita Rosamond. Ela fazia expedições por toda parte, comigo em seu calcanhar, claro!


Ela andava por todos os cômodos, exceto a ala leste, que nunca fora aberta, e para onde nunca pensamos em ir.


Na parte oeste e norte, havia muitos quartos agradáveis, cheios de coisas que eram curiosidades para nós.


As janelas estavam escurecidas pelos ramos varridos das árvores, e, as heras[4] que cresceram desordenadas, criavam uma escuridão verde, mas, conseguíamos ver os velhos frascos de perfume da China, os envelhecidos retratos, as caixas de marfim esculpidas, os grandes e pesados livros!


Uma vez, me lembro, que minha querida Dorothy fora conosco até esses retratos, para nos dizer quem estavam neles, já que eram retratos de membros da família do meu senhor, embora Dorothy não pudesse nos dizer os nomes deles, ela tentava nos explicar os que ela conhecia.


Passamos pela maioria dos quartos, quando chegamos à antiga sala de desenho, no andar acima do salão.


Havia um retrato da Senhora Furnivall, ou, a Senhorita Grace, como ela era chamada naqueles dias de juventude, uma vez que ela era a irmã caçula.


Uma bela mulher, no entanto, seu olhar tão bonito, orgulhoso, era também intolerante.


No retrato, ela estava com esse olhar, moldada por suas sobrancelhas um pouco elevadas, como se ela se perguntasse para o retratista como alguém teria a impertinência de olhar para ela.


Ela usava um belo vestido de cetim azul, com um majestoso desenho no decote. Era algo magnífico, como jamais vi. Usava também um chapéu branco, puxado um pouco para o lado, sobre suas sobrancelhas, e uma bela pluma fixada nele.


— Bem! Por certo! — disse, quando olhei para a imagem. — Quem pensaria ao vê-la agora, que a Senhora Furnivall tinha uma beleza tão grande?


— Exato! —Dorothy começou. — As pessoas mudam tristemente com o passar dos anos, querida. Contudo, se o que papai costumava dizer era verdade, a Senhora Furnivall, a mais velha, era mais bonita que a Senhorita Grace! O retrato dela está aqui, em algum lugar, entretanto, se te mostrar... — ela suspirou. — Você nunca deve dizer, nem mesmo para James, que você viu isso, certo? Pode segurar a sua língua? — perguntou ela.


Eu não tinha tanta certeza, porque ao meu lado estava a Senhorita Rosamond, ela era uma criança tão pequena, doce, ousada, e de fala aberta. Não sabia mentir ou guardar segredos. Então, após tirar a menina de onde estávamos, ajudei Dorothy a procurar o tal retrato.


O retrato era de uma mulher, bela, que inclinava o rosto, voltado para a parede, e não estava pendurada como os outros retratos estavam. E, realmente, ela venceu a Senhora Grace pela beleza, e, creio, pelo orgulho desdenhoso também, embora, nesse assunto, possa ser difícil escolher qual era a mais orgulhosa.


Eu ficaria olhando para o retrato por mais uma hora, porém, Dorothy parecia um pouco assustada por tê-la mostrado para mim, e apressou-se para guardá-la, e me mandou correr e encontrar a Senhorita Rosamond, pois, havia alguns lugares que ela não deveria ir.


A velha senhora não gostava que andássemos por todos os cômodos, mesmo que fosse impossível controlar a pequena.


Eu era uma menina corajosa e ousada, pouco pensava no que a velha dizia, porque eu gostava de esconder-me e brincar com a Senhorita Rosamond, assim como qualquer criança da vila.


Obedeci Dorothy e corri para encontrar a minha pequena.


Com a chegada do inverno, os dias se encurtavam, e, às vezes, eu tinha quase certeza de que ouvia um barulho, como se alguém estivesse tocando no grande órgão do salão.


Não o ouvia todas as noites, no entanto, ouvia com muita frequência, quando eu estava sentada, após colocar a Senhorita Rosamond na cama para dormir. Eu ouvia o órgão tocando e me sustentava bem quieta para ouvir a canção.


Na primeira noite, quando desci para o jantar, perguntei a Dorothy quem tocara a música, e James disse, muito rapidamente, que eu era uma tola por pensar que o vento que soprava entre as árvores era uma música.


No entanto, vi Dorothy olhar para ele com receio, e Agnes, a empregada da cozinha, falar algo, abaixo do seu avental, com semblante pálido.


Vi que eles não gostaram da minha pergunta, e me calei até estar com Dorothy sozinha, porque ela parecia querer falar algo sobre o assunto.


No dia seguinte, esperei o tempo certo, persuadi e perguntei para ela quem tocava órgão, pois, eu sabia ser o órgão e não o vento capaz de tocar uma canção.


Perguntei tudo o que eu guardara em silêncio diante de James, porém, Dorothy não estava disposta a cooperar, e garanto, demorou muito tempo para consegui obter uma palavra dela sobre o assunto.


Tentei Agnes, e depois de insistir, ela disse que falaria, mas, que eu nunca contaria para ninguém, e se por ventura, eu contasse, não mencionaria que ela me contara.


Ela falou sobre o barulho que julgava ser muito estranho, afirmando também, que ouvira muitas vezes o tal som, e, misteriosamente, sempre nas noites de inverno, antes das tempestades. Que as pessoas diziam que era o velho senhor, tocando no grande órgão do salão, como ele costumava fazer quando estava vivo.


Afinal, quem era o velho senhor? Por que ele tocava, sempre nas noites de inverno tempestuoso, em particular?


Ela não podia ou não queria me contar.


Pois, bem! Falei que tenho um coração corajoso, e julguei agradável aquela grande música vagando sobre a casa, sem pensar sobre quem tocava a canção. Porque a música se elevou acima das grandes rajadas de vento, e lamentou triunfante como uma criatura viva, e depois, caiu na suavidade completa.


Contudo, uma coisa era intrigante.


Era sempre a mesma música e melodia, então, era um disparate chamá-la de vento, como até pensei no início.


Cogitei que era a Senhora Furnivall que tocava a canção. Talvez, a mulher tivesse dotes que Agnes desconhecia.


Contudo, um dia, quando eu estava no salão, sozinha, abri o órgão e espreitei tudo sobre ele e ao seu redor, como já fizera com um órgão na igreja de Crosthwaite certa vez.


Vi que estava quebrado e destruído por dentro, apesar de bonito. Mesmo sendo meio-dia, gelei meus ossos como se fosse uma rajada de vento a meia-noite, e calada, fugi rapidamente para meu quarto.


Depois disso, comecei a ter medo de ouvir a música. Foi assim que entendi a razão para James e Dorothy não gostarem da música.


Durante esse tempo, a Senhorita Rosamond estava se tornando cada vez mais amada.


As senhoras idosas gostavam de jantar com ela.


James sentava perto da cadeira da Senhora Furnivall, e eu, ao lado da Senhorita Rosamond. Depois do jantar, ela ficava em um canto da grande sala de estar, tão imóvel como qualquer rato, enquanto a Senhora Furnivall dormia, e eu jantava na cozinha.


Quando eu acabava a janta, ela seguia comigo para o quarto e como ela falava:


— Senhora Furnivall estava tão triste, e a Senhora Stark tão monótona!


Estávamos felizes, e, por vezes, não tinha que me preocupar com aquela música estranha, que não fazia mal a ninguém, se não soubesse de onde vinha.


Aquele inverno estava muito frio, mais que o habitual.


Em meados de outubro, as geadas começaram e duraram muitas, muitas semanas.


Lembro-me de um dia, no jantar.


A Senhora Furnivall levantou seus olhos abatidos e pesados dizendo para a Senhora Stark de uma forma estranha:


— Tenho medo! Teremos um inverno terrível!


Entretanto, a Senhora Stark fingiu não ouvir, e falou muito alto sobre outra coisa sem importância.


Minha pequena senhora e eu não nos preocupamos com a geada, porque, enquanto estava seco, subíamos as colinas íngremes atrás da casa, que estavam nuas o bastante pela geada que queimava a relva, e lá, andávamos e corríamos no ar fresco e aguçado.


Certa vez, descemos por um novo caminho que nos levou além das duas velhas azinheiras[5], que surgiam na metade do caminho pelo lado leste da casa. Mas, os dias ficaram cada vez mais curtos e frios.


E, o velho senhor, se fosse ele realmente que tocava a canção, brincava mais e mais, tempestuosa e tristemente, no grande órgão.


Numa tarde de domingo, no final de novembro, pedi para Dorothy que ela pudesse tomar conta da pequena garotinha para que eu fosse até a igreja, porque queria aproveitar a tarde para me confessar, já que a Senhora Furnivall dormira no seu cochilo após o almoço, e, porque estava muito frio para levá-la comigo à igreja, e mesmo sozinha, apenas com a companhia de Agnes, eu queria ir.


Dorothy prometeu que cuidaria da menina, e afirmou gostar tanto da criança que tudo parecia formidável naquela tarde.


Agnes e eu partimos em passos acelerados. Se bem que o céu estava pesado e escuro sobre a terra branca, como se a noite não desaparecera totalmente, e o ar, ainda assim, estava muito frio e cortante.


— A neve cairá! — disse-me Agnes.


Realmente, enquanto estávamos na igreja, a neve desceu consideravelmente, em grandes flocos, tão abundante, que quase escureceu as janelas.


Parara de nevar antes de sairmos, no entanto, havia uma fofa e profunda camada de neve debaixo de nossos pés, enquanto nos deslocávamos para casa.


Duas ou três horas depois, e antes de chegarmos ao salão, a lua subiu ao céu, dando um ar harmonioso, porque a lua com a neve branca, eram deslumbrante para se admirar.


Não lhe disse que a Senhora Furnivall e a Senhora Stark nunca foram à igreja. Elas sempre davam desculpas e uma desses pretextos, era cair no sono profundo após o almoço de domingo.


Elas costumavam ler as orações juntas, em seu modo silencioso e sombrio. Ficavam ali, mudas, porque o domingo era muito longo sem o trabalho de tapeçaria para ocupar suas mentes.


Assim, quando fui até Dorothy na cozinha para buscar a Senhorita Rosamond e levá-la comigo para o quarto, não me importei muito quando a Dorothy me disse que as senhoras sustentaram a criança com elas, e que a pequena não fora à cozinha, como era o esperado.


— Ela comportou-se bem na sala de visitas! — falou Dorothy.


Sendo assim, peguei as minhas coisas e fui procurá-la, porque o jantar seria no quarto. Contudo, quando entrei na sala de visitas, lá estavam as duas velhinhas, muito quietas, deixando uma palavra ocasionalmente sair por suas bocas.


Elas estavam olhando para o nada e pensei que elas observavam a Senhorita Rosamond em alguma brincadeira de criança, porque, como de costume, ela se escondia de mim.


Era uma de suas maneiras para me dar boas-vindas. Após essas boas-vindas, ela sempre me persuadia com seu olhar, como se eu não soubesse nada sobre ela.


Consequentemente, fui calmamente espreitar debaixo do sofá e atrás da cadeira, fazendo de conta que eu estava tristemente assustada por não encontrá-la.


Mas, onde ela estava?


— Qual é o problema, Hester? — questionou a Senhora Stark com muita seriedade.


Não sei se a Senhora Furnivall me viu, pois, como lhe disse, ela era muito surda, e estava muito quieta, ociosa, olhando para o fogo da lareira, com seu rosto melancólico.


— Só estou procurando minha pequena Rosy! — respondi, ainda pensando que a criança estava ali, perto de mim, por mais que não pudesse vê-la.


— A Senhorita Rosamond não está aqui! — respondeu a Senhora Stark. — Ela saiu da sala há mais de uma hora para encontrar Dorothy na cozinha! — ela também se virou para admirar o fogo.


Meu coração se desesperou e comecei a desejar nunca ter deixado a minha querida menina sozinha.


Voltei para Dorothy e contei a situação.


James não estava na casa, mas ela, eu e Agnes, pegamos as lamparinas e subimos para o primeiro quarto, e depois, perambulamos pela grande casa, chamando e suplicando a Senhorita Rosamond para sair de seu esconderijo, seja qual fosse ele, e não nos assustar de tal maneira.


No entanto, não houve resposta, nem som.


— Oh! — suspirei. — Ela entrou na ala leste e se escondido lá?


Entretanto, Dorothy disse que não era possível tal coisa, uma vez que, ela mesma nunca fora ali, porque as portas estavam sempre trancadas, e que acreditava que o meu senhor tinha as chaves.


De qualquer forma, nem ela, nem James, jamais avistaram as benditas chaves.


Desesperada, falei que voltaria aos mesmos cômodos e veria se, afinal, ela não estava escondida na sala de visitas, desconhecida das senhoras idosas, e se a encontrasse ali, eu daria um belo sermão pelo susto, mas nunca tive a intenção de fazê-lo.


Bem, fui até a sala de visitas oeste, e falei à Senhora Stark que não conseguia encontrar a menina em nenhum lugar, e pedi licença para procurar todos os móveis de lá, porque, pensei que a pobrezinha adormecera em algum lugar quente e escuro, mas não!


Procuramos por todos os lugares.


A Senhora Furnivall se levantou e procurou também, vasculhando por todos os lados.


Partimos novamente, para procurar pelos mesmos cômodos, e procuramos em todos os lugares que procuramos antes, mas não conseguimos encontrá-la.


O frio da noite fez a Senhora Furnivall tremer, e a Senhora Stark a levou de volta para a sala aquecida, mas não antes que elas me fizessem prometer levar a garotinha até elas, quando ela fosse encontrada.


Bem...


Comecei a refletir que ela nunca seria encontrada, quando me pus a olhar, através da janela, para a grande frente da casa, toda coberta de neve.


Eu estava no segundo andar quando olhei para o jardim, com a luz do luar o iluminando, e pude ver algumas pequenas pegadas na neve, bem contrastadas com a luz do luar, que eram traçadas da porta da entrada, rumo ao leste.


Não sei como desci, mas abri a grande e rígida porta de entrada, levantei a saia para não atolar na neve, e corri para fora.


Virei para o leste, e lá, ao longe, a trilha das pegadas.


As segui e elas subiam até a colina.


Estava um frio apavorante, que o ar quase cortava a pele do meu rosto enquanto eu corria, todavia, não me importei, continuei correndo, chorando e pensando como minha pobre menina estava assustada.


Eu estava em frente aos azevinhos[6], quando vi um pastor descendo a colina, carregando algo em seus braços, envolto em uma manta. Ele gritou para mim e me perguntou se eu perdera uma criança.


Sem voz por tanto chorar, assenti e ele se aproximou de mim e observei a minha pequenina criança deitada, quieta, branca, num pálido espantoso, envolta nos braços do homem, como se ela estivesse morta.


Ele me disse que subira as colinas para pegar suas ovelhas, antes do frio profundo da noite, e que sob as azinheiras, ele encontrara minha pequena garotinha, meu cordeiro, minha rainha querida, agora pálida, fria, no terrível sono congelante.


Oh! A alegria e as lágrimas se misturaram, ao tê-la novamente em meus braços! Pois, não o deixei carregá-la por mais tempo, tomei-a, ainda protegida pelo manto do pastor em meus braços trêmulos, e a segurei perto de meu pescoço e coração quentes.


Senti a vida dela se acomodando lentamente, de novo, em meus pequenos e gentis braços. No entanto, ela ainda estava pálida quando chegamos ao salão, e eu não tinha fôlego para falar.


Entramos pela porta da cozinha.


— Traga a uma tigela de água quente! — gritei para Agnes, e levei a garotinha para o quarto, a despi junto a lareira, cujo fogo, Agnes manteve alimentado pela lenha, até que eu retornasse.


Chamei minha pequena menina de todos os nomes doces e brincalhões que pude pensar, mesmo quando meus olhos estavam cegos por minhas lágrimas, e finalmente...


Oh! Ela abriu lentamente seus grandes olhos azuis.


Logo, coloquei-a em sua cama quente, e mandei Dorothy descer para dizer à Senhora Furnivall que tudo estava bem.


Decidi ficar de vigília ao lado da cama da pequenina, durante a noite toda.


Ela caiu em sono suave, assim que sua linda cabeça tocou o travesseiro, e a observei até a luz da manhã tocar a janela. E, para meu alívio, ela acordou brilhante e clara como os raios de sol.


Ela jurou que imaginara que eu estaria com Dorothy, e quando viu as senhoras dormindo na sala, ela ficou entediada e saiu à minha procura, e que, ao passar pelo saguão oeste, ela viu, pela janela alta, a neve cair suave, desejou vê-la tocando o chão, bonita e branca, e que seus pés pudessem tocá-la. Foi quando ela entrou no grande salão e, indo para a outra janela, avistou uma menina, que parecia ter a sua idade.


— Tão bonita! — disse minha pequena, sorrindo. — Esta menina me acenou para sair da casa, e a segui! Quando saí, a menina me pegou pela mão e, lado a lado, caminhamos pelo canto leste.


— Agora, você é uma menina que fez uma traquinagem e conta histórias? — falei, enfurecida. — O que a sua boa mamãe, que está no céu agora, e nunca contou uma estória mentirosa em sua vida, diria à sua pequena Rosamond, se ela a ouvisse, e ouso dizer, contando histórias fantasiosas?


— É verdade o que digo, Hester! — soluçou a pequena, — Estou dizendo a verdade! Acredite!


— Não me diga! — resmunguei, com voz áspera. — Segui suas pegadas através da neve, havia apenas as suas. E se o que diz fosse verdade, você não acredita que as pegadas dela estariam com as suas?


— Não posso explicar, querida Hester! — choramingou. — Não olhei para os pés dela, mas ela segurou a minha mão com força, e estava muito, muito frio. Ela me levou pelo caminho, até as árvores de azevinho, e lá, vi uma senhora chorando, porém, quando ela me viu, abafou seu pranto, sorrindo muito grandiosamente para mim. Ela, de joelhos, me pegou nos braços, e começou a me acalmar para dormir, e isso é tudo, Hester! Digo que é verdade, e minha querida mamãe, que está no céu, sabe que é!


Julguei que a criança estava com febre, e fingi acreditar nela, enquanto ela recontava a sua estória, uma e outra vez. Sempre a mesma, sem errar uma palavra.


Por fim, Dorothy bateu à porta com o café da manhã da Senhorita Rosamond, me disse que as senhoras idosas estavam na sala de jantar e que a Senhora Furnivall queria falar comigo. Ambas estiveram acordadas na noite anterior, pelo sumiço da Senhorita Rosamond.


“Vou ser punida!”


Pensei, ao mesmo tempo, em que caminhava ao longo da galeria norte, rumo à sala onde as senhoras estavam.


“Sim! Serei punida!”


Refleti, tomando coragem.


— Saí e deixei a menina sob a responsabilidade deles! Eles são os responsáveis e são eles os culpados por deixá-la fugir, não eu! — falei em um sussurro.


Respirei profundamente e entrei corajosamente na sala, começando a contar a minha história.


Contei tudo para a Senhora Furnivall, gritando perto de seu ouvido para que ela pudesse entender, porém, quando fiz à menção sobre a outra garotinha na neve, persuadindo a pequena Rosamond para que saísse com aquele frio congelante, e ir até a grande colina para ver a bela senhora junto ao azevinho, a Senhora Furnivall levantou seus braços velhos e murchos, e gritou:


— Oh! Céu, perdoe! Tenha piedade!


A Senhora Stark segurou seu braço, mas ela se soltou da Senhora Stark e voltou a falar comigo, em uma espécie de aviso autoritário violento.


— Hester! Escute bem! Mantenha-a longe daquela criança maldita! Ela vai atraí-la para a morte! Aquela criança perversa!


Após a fala assustadora, a Senhora Stark me empurrou para fora da sala. Isso aliviou os meus ombros, já que eu julgava ser punida de alguma forma. Contudo, a Senhora Furnivall continuou gritando:


— Oh! Tenha piedade! Nunca perdoarás! Foi há muitos anos! Por quê?


Fiquei muito atormentada depois disso. Nunca mais deixei a Senhorita Rosamond sozinha. Ficava em seu encalço, noite ou dia, por medo de que ela pudesse fugir de novo.


Por mais que eu pensasse que a Senhora Furnivall era louca, por seus modos estranhos e sua fala pavorosa, eu tinha medo que essa loucura hereditária pairasse sobre minha querida também.


A nevasca não cessou durante todo o tempo, e, sempre que era uma noite mais tempestuosa que o normal, entre as rajadas, e através do vento, ouvíamos o velho senhor tocando no grande órgão.


Entretanto, sendo o velho senhor ou não, aonde quer que a Senhorita Rosamond fosse, eu a seguia. Pois, meu amor por aquela criança, bela, órfã e indefesa, era mais forte que meu medo do grande e terrível som.


Além disso, ela dormia no meu quarto, sob a vigilância dos meus olhos.


Durante o dia, brincávamos e caminhávamos juntas, aqui e ali. De fato, virei sua sombra, porque eu não ousava perdê-la de vista naquela casa grande novamente.


Em uma tarde, não muito antes do dia de Natal, estávamos brincando na mesa de bilhar do grande salão, não que soubéssemos a maneira certa de jogar, mas ela gostava de rolar as bolas de marfim com suas pequenas mãos, e eu gostava de fazer o que ela fazia também, sem muito jeito, admito.


De repente, sem que percebêssemos, crescia o entardecer na casa, ainda que estivesse claro ao ar livre. Quando pensei em levá-la de volta para o quarto, ela gritou:


— Olha, Hester! Olha! Ali está minha amiga na neve!


Virei-me para as janelas longas e estreitas, e lá, no meio de muita neve, vi uma menina, menor que minha querida Senhorita Rosamond, vestida toda inadequada para estar em um entardecer gelado, chorando.


A pobrezinha se aproximou da janela e bateu sua mão contra o vidro, como se ela quisesse entrar. Ela parecia soluçar e gemer, até que a Senhorita Rosamond não aguentou mais, correu para a porta da sala para abri-la, e, no mesmo instante, o grande órgão tocou alto e trovejante sua canção.


Isso me fez tremer as pernas e meu pavor cresceu e lembrei de que, mesmo na quietude daquele tempo frio, eu não ouvira nenhum som das mãozinhas batendo no vidro da janela, nenhum leve som caíra sobre meus ouvidos, embora a Criança Fantasma parecesse colocar toda a sua força.


Lembrei-me de tudo isso, no exato momento que o som do grande órgão me atordoou. Corri e alcancei a Senhorita Rosamond, antes que ela abrisse a porta da sala, e a agarrei. A tomei em meus braços e a levei embora da sala, chutando a porta e gritando por socorro, rumo à cozinha, onde Dorothy e Agnes estavam ocupadas cortando pimentões.


— Qual é o problema? — Dorothy perguntou, enquanto eu chorava e Senhorita Rosamond, aos prantos, como se seu coração se partisse.


— Ela não me deixa abrir a porta para que minha amiga entrar! Minha amiga morrerá de frio se passar a noite na rua! Hester é cruel! — esbravejou a pequenina, me esbofeteando, porém, ela poderia ter me golpeado mais, já que eu não sentiria, uma vez que avistei um olhar de pânico apavorante no rosto de Dorothy, o que fez meu sangue esfriar.


— Feche rapidamente a porta da cozinha! — ordenou ela à Agnes.


Ela não disse mais nada além, e apenas me deu passas e amêndoas para acalmar a Senhorita Rosamond.


A menina soluçou, reclamando sobre a amiguinha na neve, e não quis tocar em nada que recebera para comer.


Fiquei grata, quando ela adormeceu após choramingar e a levei para a cama. A deixei no quarto e voltei para a cozinha.


Decidida em colocar um fim naquela situação, disse para Dorothy que eu levaria a minha querida de volta para a vila, para a casa de meu pai, onde se vivia humildemente e em paz. Também assegurei que já estava assustada o bastante com a brincadeira de órgão do velho senhor, e tudo estava pior, já que vi com meus próprios olhos, a tal criança pequena que lamentava, como nenhuma criança da vizinhança poderia fazer, batendo na janela para entrar, mas sempre sem nenhum som ou barulho, com uma ferida escura em seu ombro direito, e que a Senhorita Rosamond pensava ser uma amiga.


Porém, a Senhora Funivall alertara que o tal fantasma da criança estava atraindo a Senhorita Rosamond para a sua morte, o que Dorothy sabia que era verdade. Eu não suportava mais aquela situação, eu precisava proteger a pequenina.


Vi Dorothy mudar de cor uma ou duas vezes, quando terminei a minha fala, e ela me disse que pensava que eu não levaria a Senhorita Rosamond comigo, pois, a pequena era da responsabilidade do meu senhor e, eu não tinha direito sobre ela.


Ela me perguntou se eu deixaria a criança de quem eu gostava tanto, sozinha, só porque eu tinha medo de sons e visitas de fantasmas que não fariam mal, e que eu devia me acostumar.


Eu estava tremendo da cabeça aos pés, e disse que as visões e ruídos talvez tivesse algo a ver com o fantasma da criança, algum caso não resolvido.


Implorei que ela me falasse a verdade sobre os fatos. Foi assim, que ela finalmente me contou tudo o que sabia, e me arrependi do pedido que fiz, visto como, desejei nunca ser contada aos meus ouvidos, porque isso só me fez ter mais medo.


Ela disse ouvir a história pela boca dos velhos vizinhos costumavam visita-la, antes da Senhora Furnivall virar uma rabugenta, como se ela nunca fosse realmente.


O retrato antigo não negava os fatos.


O velho senhor era o pai da Senhora Furnivall, a Senhorita Grace, na juventude, como Dorothy a chamava. O velho senhor foi devorado pelo orgulho.


Um homem tão arrogante como nunca se ouvira falar, e suas filhas eram como ele.


Em sua cabeça, ninguém era suficientemente bom para casar-se com suas maravilhosas filhas, embora, tivessem muitos pretendentes.


Elas eram belas, como nos retratos, pendurados na sala, mas, como diz o velho ditado, “o orgulho mata!”, e estas duas beldades altivas se apaixonaram pelo mesmo homem.


O homem em questão era um músico estrangeiro, que seu pai trouxera de Londres para tocar música com ele no grande casarão da família Furnivall.


Ao lado de seu orgulho, o velho senhor amava a música. Ele podia tocar quase todos os instrumentos de que se ouvia falar. Porém, seu amor pela música não conseguia amaciar seu coração presunçoso. Ele era um velho rígido e partira o coração de sua pobre esposa com sua crueldade, diziam os vizinhos.


Ele ficou louco, e pagava qualquer dinheiro para ouvir alguém tocar canções novas. Então, ele conseguiu que este estrangeiro viesse para a sua casa, algumas vezes por ano, pagando uma boa quantia.


O homem tocou uma música tão bonita, que eles disseram que os próprios pássaros nas árvores, pararam seu cantarolar para ouvir a bela canção.


Foi assim, que pouco a pouco, o cavalheiro estrangeiro encantou o velho senhor.


O velho comprou um grande órgão holandês e colocou no salão.


— Onde ele está agora! — afirmou Dorothy.


O músico ensinou o velho senhor a tocar a canção e recebeu hospedagem numa cabana perto do casarão, sempre que voltava.


Quando o Senhor Furnivall não pensava em nada além de seu belo órgão e sua música, o homem estrangeiro caminhava para o bosque, com uma das jovens senhoras.


Por vezes, a Senhorita Maude, outras vezes, a Senhorita Grace.


A Senhorita Maude ganhou o coração dele e eles se casaram escondido, sem que o velho senhor soubesse.


No desconhecimento de qualquer um, e antes da próxima visita semestral do homem estrangeiro, ela descobriu a gravidez. Ela ficou confinada com a sua pequena menina em uma casa de fazenda nos mouros, enquanto seu pai e a Senhorita Grace pensavam que ela estava em Doncaster, com as tias.


Por mais que ela fosse boa esposa e mãe, ela seguia apaixonada como sempre e mais ainda. Este amor a cegou, mais e mais...


Ela tinha ciúmes da Senhorita Grace, porque ninguém sabia do casamento e a Senhorita Grace ainda tentava roubar o coração do homem.


A Senhorita Maude ficou cada vez mais raivosa, tanto com seu marido, quanto com sua irmã.


A menina foi deixada de lado na casa da fazenda e a Senhorita Maude retornou para a casa do pai, para vigiar a irmã, no entanto, costumava mandar selar o cavalo e galopar selvagemente sobre as colinas para visitar a menina, uma vez por semana.


O velho senhor continuou tocando, e os criados pensavam que a doce música que ele tocava abrandara o seu temperamento horrível, do qual, algumas histórias terríveis eram contadas.


Ele ficou doente, e teve que andar com uma muleta.


Ele tinha mais dois filhos, um era o pai do Senhor Furnivall, que estava com o exército na América, e o outro filho, velejava em alto mar.


Sendo assim, a Senhorita Maude e a Senhorita Grace ficaram cada dia mais sombrias e amargas uma para a outra, até que não se falavam, exceto quando o velho senhor estava por perto.


O músico estrangeiro veio novamente no verão seguinte, mas foi pela última vez. Cansado das crises de ciúmes da esposa e da paixão doentia da cunhada, ele foi embora, e nunca mais se ouviu falar dele.


A Senhorita Maude, que sempre quis que seu casamento fosse reconhecido, porém, isso só aconteceria quando seu pai estivesse morto, foi vista pelas pessoas próximas, como uma noiva abandonada, porque ninguém sabia que era casada, e muito menos que ela tinha uma filha, e de fato, ela não ousava afirmar.


Ela permaneceu vivendo com um pai que ela temia, e com a irmã que odiava.


Quando o verão seguinte passou e o estrangeiro não retornou, tanto a Senhorita Maude, quanto a Senhorita Grace ficaram tristes. Elas tinham um olhar de descontentamento, por mais que permanecessem bonitas.


A Senhorita Maude se alegrara, ao ver seu pai ficar a cada vez mais doente, e mais do que nunca, levado a loucura por sua música.


Ela e a Senhorita Grace viveram quase inteiramente separadas, tendo quartos separados. O do lado oeste, era da Senhorita Grace, e do lado leste, da Senhorita Maude, aqueles mesmos quartos que agora estavam fechados.


Eu entendia agora o porquê dos quartos do lado leste, estarem trancados.


A Senhorita Maude pensou em trazer a sua filhinha para o casarão. Ela teve a brilhante ideia de afirmar que a sua filha era a filha do coveiro, que falecera, e que ela adotou por piedade.


Tudo isso Dorothy disse, e era bastante conhecido pelas pessoas, mas o que veio depois, ninguém sabia, exceto a Senhora Grace e a Senhora Stark, que era até então, sua empregada, e muito mais amiga dela que jamais a sua irmã fora.


Os criados supunham, por palavras que foram faladas, que todo o tempo, o estrangeiro zombara delas com amor fingido.


Quando a Senhorita Grace soube a verdade, sua cor deixou as bochechas e os lábios da Senhorita Grace naquele dia e para sempre perderam a cor.


Ela disse muitas vezes que mais cedo ou mais tarde, ela teria sua vingança, e a Senhora Stark estaria para sempre espionando as salas do leste.


Em uma noite gelada, logo após a chegada do Ano Novo, quando a neve estava deitada sobre a relva e os flocos ainda estavam caindo suficientemente rápido para cegar qualquer pessoa que pudesse estar fora da casa, ouviu-se um grande e violento barulho, e a voz do velho senhor, praguejando e gritando terrivelmente, e também, os gritos de uma criancinha, com o grito arrogante de uma mulher violenta.


Após isso, o som de um golpe, uma quietude mortal, e depois, gemidos e lamentos que morriam, no lado da colina!


O velho senhor chamou todos os seus servos, e disse-lhes, com palavras desprezíveis, que sua filha havia o desonrado, e que ele a expulsara de casa. Que ela, sua filha, e a neta que detestava, estavam impedidas de terem ajuda, comida ou abrigo.


Ele rezou para que as duas nunca entrassem no céu. E, o tempo todo que ele rosnava suas palavras de ódio, a Senhorita Grace ficou ao seu lado, branca e imóvel como qualquer pedra. Quando ele terminou sua fala, ela suspirou, porque o fim de sua irmã estava consumado.


O velho senhor nunca mais tocou o órgão, e morreu dentro de um ano. Não foi de se admirar, que no dia seguinte daquela noite brutal e aterrorizante, os pastores, descendo pelo lado da colina, encontraram a Senhorita Maude sentada, com um sorriso alucinado, debaixo dos azevinhos, amamentando uma criança morta, com uma terrível marca em seu ombro direito.


— Não foi isso que a matou! — garantiu Dorothy. — Foi a geada e o frio! Porque cada criatura selvagem estava em sua toca, e cada animal em seu lugar protegido, enquanto a criança e a mãe vagueavam pelas colinas na nevasca! Agora você sabe tudo! Me pergunto se agora você está menos assustada.


Eu estava mais assustada que nunca! Porém, eu disse que não estava.


Desejei que eu e a Senhorita Rosamond saíssemos daquela casa horrível para sempre, mas eu não a deixaria, e não ousei levá-la embora.


Oh! Como eu a observava e a guardava!


Trancamos as portas e fechamos as janelas rapidamente, uma hora antes de escurecer, em vez de deixá-las abertas por mais cinco minutos.


Minha pequena senhora ainda ouvia a estranha criança chorando em lamento terrível, e nada que falássemos podia impedi-la de querer ir até à menina, e deixá-la entrar para se proteger do vento cruel e da neve.


Durante este tempo, me mantive longe da Senhora Furnivall e da Senhora Stark, tanto quanto pude, pois, eu as temia.


Eu sabia que nada de bom sairia de suas mentes, com seus rostos cinzentos e olhos fantasiosos, olhando para trás, para os anos horríveis que se foram e, seus atos cruéis.


Mas, mesmo no meu medo, tive uma espécie de pena, pelo menos, piedade da Senhorita Furnivall.


Aqueles que caem no poço da amargura, dificilmente podem ter um olhar esperançoso. Minha compaixão era silenciosa, que me fez nunca falar uma palavra de consolo, a não ser o que foi forçado por ela a dizer:


— Reze por mim! — ela pedia.


Ensinei a Senhorita Rosamond a rezar por alguém que cometesse um pecado mortal, todavia, muitas vezes, quando a garotinha rezava de joelhos, dizia:


— Ouço minha amiga chorando, muito triste! Oh! Deixe-a entrar ou ela morrerá!


Uma noite, logo após o Dia de Ano Novo, e o longo inverno dado uma trégua, como eu esperava, ouvi o sino da sala de visitas oeste tocar três vezes, o que foi o sinal de alerta para mim.


Eu não deixaria a Senhorita Rosamond sozinha, pois, ela estava dormindo.


O velho senhor estava tocando mais forte que nunca a sua canção fúnebre, e temia que minha querida acordasse e olhasse a menina fantasma em alguma janela.


Eu fechara as janelas muito bem, mas eu temia.


Então, tirei-a da cama e a embrulhei em uma manta, a levando para a sala de visitas, onde as senhoras idosas trabalham como sempre na tapeçaria.


Elas olharam para cima, quando me aproximei e a Senhora Stark perguntou, bastante atônita:


— Por que trouxe a Senhorita Rosamond para fora de sua cama quente?


Sussurrei:


— Porque tenho medo de que ela seja tentada pelo fantasma!


A Senhora Furnivall me olhou friamente e desconversou, falando sobre os bordados que não podiam ser refeitos.


Coloquei a garotinha no sofá, e me sentei em um banco ao seu lado, endureci meu coração contra as duas senhoras, enquanto ouvia o vento levantando os galhos das árvores e uivando.


A Senhorita Rosamond dormiu com o ninar do vento soprando, e a Senhora Furnivall disse nenhuma palavra, nem olhou em volta, quando as rajadas sacudiram as janelas. Ela subiu a mão esquerda para o alto e a pousou sobre a orelha, como se quisesse nos dar ouvidos.


— Ouço vozes! — disse ela. — Ouço gritos terríveis, a voz de meu pai!


Naquele momento, minha menina despertou repentinamente:


— Minha amiguinha está chorando! Oh! Como ela está chorando!


Ela tentou se levantar e caminhar até à janela, mas ela ficou com os pés enrolados na manta, e a segurei, visto que, meus ossos estavam tremendo devido aos ruídos.


Em um minuto ou dois, os ruídos pararam e retornaram rapidamente, tocando nossos ouvidos.


Nós também ouvimos vozes e gritos, e não ouvimos mais o vento do inverno tocando as janelas.


A Senhora Stark olhou para mim e eu para ela, mas não ousamos falar.


De repente, a Senhora Furnivall foi em direção à porta, para a antessala, através do saguão oeste, e abriu a porta para o grande salão.


A Senhora Stark me olhou, e tentei me manter serena, por mais que meu coração quase parasse de bater por medo.


Enrolei a menina nos meus braços e saí com ela.


No salão, os gritos eram mais altos que nunca, eles soavam para a ala leste, cada vez mais perto do outro lado das portas trancadas, os gritos estavam atrás daquelas portas.


Notei que o grande candelabro de bronze parecia estar todo aceso, mas, estranhamente, o salão estiva escuro, e que uma fogueira ardia com imenso fogo na lareira, apesar de que não fosse possível sentir o calor produzindo pelas chamas.


Estremeci de terror, agarrei a pequena nos meus braços. Enquanto o fazia, a porta leste sacudiu, e a pequena, de repente, lutando para se libertar de mim, gritou:


— Hester! Tenho que ir! Minha amiguinha está lá! A ouço! Ela está chegando! Hester, tenho que ir!


Segurei-a com todas as minhas forças, e com toda a vontade que possuía, a segurei mais forte. Se eu morresse, minhas mãos ainda a teriam agarrado. Eu estava determinada a segurá-la a qualquer custo.


A Senhorita Furnivall ficou de pé, escutando o ruído e não prestou atenção à minha querida choramingando, e que em um supetão, a pobrezinha caíra no chão, e que eu, de joelhos, estava segurando-a com os dois braços fechados ao redor de seu pescoço. E, mesmo assim, ela ainda se esforçava e chorava para se libertar.


A porta leste cedeu com um ruído estrondoso, como se fosse rasgada em um ardor violento, e saiu de dentro de uma luz ampla e misteriosa, a figura de um homem alto, velho, com cabelos grisalhos e olhos vivos.


Ao lado dele, com muitos gestos de repúdio, uma mulher severa e bela, com uma criança pequena agarrada ao seu vestido.


— Oh! Hester! Hester! — gritou a Senhorita Rosamond. — É a senhora! A senhora das azinheiras, e minha amiga está com ela! Hester! Hester! Deixe-me ir até ela, elas estão me chamando! Percebo que me chamam! Devo ir!


Novamente ela estava quase convulsionada por seus esforços para fugir dos meus braços, mas a segurei cada vez mais forte, e temi machuca-la, na tentativa de não deixá-la ir em direção àqueles terríveis fantasmas.


Eles passavam em direção à grande porta do salão, onde os ventos uivavam e corriam como animais selvagens, mas antes que chegassem lá, a senhora se virou, e vi que ela olhou para o velho com uma provocação feroz e orgulhosa, então, ela gritou, atirou seus braços piedosamente para salvar sua filha de um golpe da muleta do velho.


A Senhorita Rosamond soluçou e falou:


— Eles querem que eu vá com eles para as colinas! Oh! Minha amiga! Quero ir, mas a malvada Hester me abraça com muita força!


Quando ela viu a muleta levantada, ela desmaiou e eu agradeci a Deus por isso. Naquele exato momento, quando o homem alto e velho, ia atingir a criança pequena e encolhida, a Senhorita Furnivall, a velha ao meu lado, gritou:


— Oh! Pai! Pai! Poupe a criança pequena e inocente!


Vi outra forma fantasmagórica crescer em uma luz azul nebulosa, que enchia o salão, não a tínhamos visto até então, era outra senhora que estava ao lado do velho, com um olhar de ódio implacável e desprezo espantoso.


Aquela figura era muito bonita de se ver, com um chapéu branco deitado sobre as sobrancelhas orgulhosas, e lábios vermelhos. Estava vestida com um vestido de cetim azul.


Eu já vira essa figura antes, tão semelhante à menina Furnivall em sua juventude, e assim, os terríveis fantasmas seguiram, independentemente do pedido brutal da velha Furnivall, e a muleta levantada caiu no ombro direito da criança pequena, e a irmã caçula olhou, mortalmente serena.


Mas, naquele momento, as luzes fracas e o fogo que não dava calor, apagaram-se, e a Senhora Furnivall deitou-se aos nossos pés, atingida pela paralisia mortal.


Sim!


Ela foi levada para sua cama naquela noite, para nunca mais se levantar de novo.


Ela deitou-se com o rosto virado para a parede, murmurando baixo:


— Oh! Deus! O que é feito na juventude nunca pode ser desfeito com o passar do tempo! O que é feito na juventude nunca pode ser desfeito com o passar do tempo!


Fim.


O Casamento de Manchester

Capítulo Único

Natal de 1858.

O Senhor e a Senhora Openshaw vieram de Manchester para se estabelecerem em Londres.

Ele era, como é chamado em Lancashire, um vendedor de uma grande empresa de manufatura, que estava ampliando seus negócios e abrindo um armazém na cidade, onde o Senhor Openshaw estava agora para administrar seus interesses.

O Senhor Openshaw gostou bastante da mudança, pois, ele tinha uma espécie de curiosidade sobre Londres, entretanto, ele nunca conseguiu tempo hábil para satisfazer estas curiosidades durante suas breves visitas à metrópole.

Ele sentia um estranho e astuto desprezo pelos habitantes, porque sempre os imaginou como pessoas boas, no entanto, preguiçosas, que só se importava com a moda e a aristocracia e passava os dias na Rua Bond e em outros lugares, arruinando o bom inglês. Sendo assim, ele estava pronto para desprezar essas pessoas, como o habitual.

As horas que os homens de negócios mantinham na cidade, o escandalizavam também. Ele estava acostumado com o povo de Manchester e seus jantares no começo da noite e consequentemente, as noites se tornavam mais longas.

Ainda assim, ele estava satisfeito em ir para Londres, embora, não confessasse de modo nenhum, nem mesmo para si.

Ele sempre falava sobre seus passos aos amigos, como se isso fosse uma exigência semelhante aos empregadores, e se vangloriava do adocicado aumento considerável de salário.

Seu salário, de fato, foi tão generoso que ele conseguiu comprar uma casa maior que aquela que morava.

Ele se obrigava a dar um exemplo aos londrinos, de como um humilde homem de negócios de Manchester se importava com a sua condição.

O interior da casa fornecia uma mobília com um grau incomum de conforto e, no inverno, ele insistia em manter grandes fogueiras, que as lareiras permitiam fazer, em todas as salas, mesmo que a temperatura estivesse menos fria.

Além disso, seu senso Norte de hospitalidade era tal que, se ele estivesse em casa, dificilmente um visitante deixaria a casa sem levar consigo um pedaço de carne e alguma bebida.

Todo criado da casa tinha seu quarto aquecido, boa comida, sendo tratado gentilmente, pois, seu dono desprezava qualquer economia ao conforto, enquanto ele se divertia seguindo todos os seus hábitos e rotinas comuns, desafiando o que os vizinhos pudesse pensar.

Sua esposa era uma mulher bonita, gentil, de idade e caráter adequados.

Ele tinha quarenta e dois anos, ela, trinta e cinco.

Ele era barulhento e decidido, ela, calma e dedicada.

Eles tinham dois filhos, ou melhor, devo dizer, ela teve dois:

A mais velha, uma menina de onze anos, era filha da Senhora Openshaw com Frank Wilson, seu primeiro marido. O mais novo era um garotinho, Edwin, que podia apenas tagarelar, e a quem seu pai se deleitava em falar no mais amplo e ininteligível dialeto Lancashire, desejando manter o que ele chamava de “verdadeiro sotaque saxônico”.

O nome cristão da Senhora Openshaw era Alice, e seu primo foi seu primeiro marido. Alice era sobrinha órfã de um capitão da marinha em Liverpool. A jovem era uma criaturinha quieta e séria, de grande encanto pessoal em meados dos seus quinze ou dezesseis anos, com características regulares e uma tez florida, entretanto, muito tímida, acreditando ser muito estúpida e desajeitada, era frequentemente repreendida por sua tia, a segunda esposa de seu tio.

Assim, quando seu primo, Frank Wilson voltou para casa, após uma longa ausência no mar, primeiro, ele foi gentil e protetor para com ela, segundo, atencioso, e, por fim, desesperadamente apaixonado, e deste modo, ela mal sabia como ser grata por seu carinho. E, verdadeiramente, ela preferia que ele permanecesse na primeira ou segunda etapa daquele comportamento, visto como, seu amor intenso a intrigou e assustou.

Seu tio não ajudou nem atrapalhou o caso de amor, apesar de que este se desenrolasse sob seus olhos descuidados.

A madrasta de Frank tinha um temperamento tão variável, que não havia como saber se o que ela gostava em um dia, ela gostaria no dia seguinte.

Por fim, a tia foi a tais extremos de irritação, que Alice fechou seus olhos e correu cegamente para agarrar a chance de escapar da tirania doméstica da mulher, aceitando o casamento com o primo, e, gostando dele mais que qualquer outra coisa no mundo, exceto seu tio, que estava nesse momento no mar, ela partiu em uma manhã e se casou com o rapaz, tendo como sua única testemunha e dama de honra, a empregada de sua tia.

A consequência disso foi que Frank e Alice foram para uma pensão humilde, e a Senhora Wilson se recusou a recebê-los, rejeitando Norah, a calorosa empregada doméstica, por ajudar o casal no tal casamento, fadado à desgraça.

Quando o capitão Wilson voltou de sua viagem, ele foi cordial com o jovem casal, e passou muitas noites na pensão com eles, fumando seu cachimbo e bebendo seu grogue[7].

Ele disse, por uma questão de tranquilidade conjugal, que não podia convidá-los para viver sua casa, porque sua esposa estava zangada com eles, ainda. Eles não estavam, no entanto, muito descontentes com isso.

A semente da infelicidade futura estava na disposição arrebatadora e apaixonada de Frank, o que o levou a se magoar devido à timidez, a falta de expressão de carinho, e a falha no dever conjugal de sua esposa.

Ele estava atormentado, e a ela também, em menor grau, pela ansiedade em imaginar o que aconteceria com ela, durante sua próxima ausência, quando ele partisse para mais uma missão em alto mar.

Por fim, ele foi até seu pai, insistindo para que Alice fosse novamente recebida sob seu teto, porque ela ficaria sozinha enquanto ele viajava.

O Capitão Wilson estava, como ele mesmo expressou, “quebrado”, e não estava disposto a se submeter às emoções envoltas naquele pedido, e o fato de voltar a lidar com a fúria da esposa, caso cedesse. No entanto, ele sentiu que seu filho dizia a verdade.

Desde modo, ele tentou convencer a esposa em aceitar Alice de volta.

Antes que Frank partisse, ele teve o alívio de ver a sua esposa instalada no velho sótão, na casa de seu pai, porque coloca-la no melhor quarto de hóspedes, era um passo além dos poderes de submissão ou generosidade da Senhora Wilson.

A pior parte disso foi que a fiel Norah teve que ser dispensada, uma vez que não havia lugar para ela na casa da Senhora Wilson, porque o seu lugar como empregada doméstica fora ocupado, e certamente, mesmo que não fosse, ela perdera para sempre o respeito que a Senhora Wilson depositava nela.

Norah consolou sua jovem patroa com agradáveis profecias, que eles teriam uma casa própria em um futuro não distante, da qual, qualquer que fosse o serviço que ela pudesse prestar, ela esperava o chamado de Alice.

Uma das últimas ações que Frank fez antes de zarpar, foi levar Alice para ver Norah mais uma vez, na casa de sua mãe, e então, ele foi embora.

O sogro de Alice ficara cada vez mais fraco com o avanço do inverno. Ela era de grande utilidade para sua madrasta nos cuidados de enfermagem e o divertia com seu sorriso franco e palavras acolhedoras, e, embora houvesse ansiedade suficiente na casa, existia, quem sabe, mais paz naquele momento que anos atrás, pois, a Senhora Wilson não tinha um coração ruim, apenas precisava de estímulos para suavizar seu coração tão amargo.

Seu coração fora tocado pela visível aproximação da morte de alguém que ela amava, e, da condição solitária da jovem Alice, deprimida pela ausência de seu marido, esperando seu retorno em uma angústia interminável.

Este estado de ânimo em ceder um pouco, Norah teve a permissão para ir até à casa dos Wilsons, cuidar de Alice, quando seu bebê nasceu, e permaneceu para cuidar do Capitão Wilson.

Antes de receber uma carta de Frank, que tinha navegado para as Índias Orientais e a China, seu pai morreu.

Alice aliviava seus pensamentos quando lembrava que o Capitão Wilson segurara o bebê em seus braços, o beijando e o abençoando, antes de sua morte.

Depois disso, examinando seu testamento, descobriu-se que ele deixara menos propriedades do que as pessoas foram levadas a acreditar por seu estilo de vida, e que o dinheiro que havia, passaria para a sua esposa.

Isto não significava muito para Alice, já que Frank era agora o Primeiro Imediato[8] do navio e, em uma ou duas viagens, seria capitão. Enquanto isso, ele deixara mais de duzentas libras, o que totalizava todas as suas economias, no banco, para algum momento de emergência.

Quando chegou a hora de Alice ter notícias de seu marido, ela ficou apreensiva, uma vez que, em uma carta, ele mencionava que estava chegando à Índia.

As semanas passaram e nenhuma informação de que o navio chegara lá pousara nas mãos de Alice, e seus temores se tornaram mais opressivos.

Até a Senhora Wilson ficou preocupada. Alice percebia que a viúva do Capitão Wilson segurava um semblante angustiado e isso a preocupou ainda mais.

Chegou o dia que, em resposta ao seu pedido no escritório de navegação sobre o paradeiro do marido, eles disseram que perderam a esperança em ter notícias do navio e enviaram uma reivindicação sobre o que ocorrera para as autoridades competentes.

Seu marido sumira para sempre, e foi assim que ela sentiu pela primeira vez um anseio, amor ardente pelo bom primo, o querido amigo, o protetor solidário, que agora estava morto.

Primeiro, sentiu um desejo exaltado de lhe mostrar a sua filha, agora seu único bem. Sua dor era, no entanto, silenciosa, ao contrário do escândalo que a Senhora Wilson fazia.

A Senhora Wilson chorava pelo seu enteado como se ele e ela sempre vivessem em perfeita harmonia, e que evidentemente entendia que era o seu dever jorrar lágrimas frescas sempre que se deparasse com um rosto estranho se aproximando.

Ela não se cansava de mencionar a condição de desolação da pobre viúva e no desamparo da filha órfã do enteado, muitas vezes, expressando isso como se gostasse da emoção em contar a triste história, incansavelmente.

Assim, passaram os primeiros dias da viuvez de Alice, e, gradualmente, sua vida voltou à rotina. Mas, como se a jovem criatura estivesse sempre envolvida em grandes apuros, sua bebezinha começou a ficar aflita e doente.

A misteriosa doença da criança acabou se revelando como um problema na coluna vertebral, susceptível de afetar a saúde, mas não de encurtar a vida, pelo menos, assim disseram os médicos.

Alice sustentou o seu longo e sombrio sofrimento em silêncio. Somente Norah percebeu o que Alice suportava.

Ninguém, além de Deus, sabia de sua dor.

Foi assim que a Senhora Wilson se aproximou dela, em um dia que a Senhora Wilson estava envolta em uma violenta agonia, ocasionada por uma diminuição no valor da propriedade que seu marido lhe deixara, e tal redução fazia com que sua renda quase não chegasse a suprir as suas necessidades para conseguir se sustentar, muito menos, Alice.

A pobre Alice não podia entender como algo que não tocasse a saúde ou a vida, causaria tal sofrimento e amargura, e ela recebeu a notícia com repulsa, pensando ser egoísmo da Senhora Wilson.

Quando, naquela tarde, a Senhora Wilson começou a explicar sobre suas perdas, dizendo como ela planejara consultar este ou aquele médico, e dar para a pequena criança este ou aquele conforto, e um pouco de luxo posteriormente, porém, todas as chances disso acontecer estavam nulas naquele instante, o coração da Alice foi tocado e ela se aproximou da Senhora Wilson com carinho.

A mulher de coração duro não fez desfeita, e suplicou que não importava o que acontecesse, a família devia permanecer unida.

Depois de muitas conversas nos dias seguintes, foi tratado que a Senhora Wilson compraria uma casa em Manchester, mobilhando-a, em parte, com os móveis que ela tinha, e o resto, Alice ajudaria a comprar com as duzentas libras que seu falecido marido deixara no banco.

A Senhora Wilson era de Manchester, e, naturalmente ansiava retornar à sua cidade natal e reatar algumas conexões que deixara quando partira com o Capitão Wilson.

Elas encontraram uma boa casa pelo valor que podiam pagar e criaram uma pousada, alugando quartos para pessoas sem muitas libras nos bolsos.

Alice ficou a cargo do cuidado da casa, Norah, a sempre disposta e fiel Norah, ofereceu-se para cozinhar, limpar e fazer qualquer coisa, para que ela pudesse apenas permanecer com a família Wilson.

O plano foi bem-sucedido.

Por alguns anos, seus primeiros hóspedes permaneceram fiéis em seus pagamentos e tudo correu bem, porém, com aquela triste exceção da deformidade crescente da garotinha.

Ah! Como Alice amava aquela criança, não cabia às palavras dizer!

Depois, veio o infortúnio...

Seus inquilinos partiram e nenhum hóspede novo surgiu.

Depois de alguns meses, tornou-se necessário mudar para uma casa menor, e a gentil consciência de Alice foi dilacerada pela ideia de que ela não seria um fardo para a sua sogra carregar, e que devia sair e buscar sua própria manutenção, mas para isso, ela deveria deixar a sua filha! O pensamento veio como o estrondo de um sino fúnebre, sobre seu coração.

Por vezes, o Senhor Openshaw usava a casa da Senhora Wilson para hospedar-se. Ele começara sua vida de empreendedor ainda jovem, trabalhando como um moço de recados e varredor de um armazém, depois, tentado todos os níveis de emprego possíveis para manter uma vida descente em Manchester, lutando com força e energia de caráter.

Ele usava cada momento de tempo livre para estudar e se aprimorar, um bom exemplo de autodidata. Ele era um contador de capital, um bom estudioso de francês e alemão, um negociante perspicaz e comerciante visionário. Ele também compreendia os mercados e o impacto dos acontecimentos, tanto próximos, como distantes dele e, ainda, sustentava boa atenção para apresentar detalhes sobre os fatos.

Creio que ele nunca viu um ramalhete de flores-do-campo sem pensar se a sua cor iria ou não, formar contrastes harmoniosos nas próximas estampas primaveris postas sobre as musselinas[9].

Ele se apresentou em sociedades literárias e de debates, e se lançou de coração e alma na política.

Deve-se reconhecer que ele conseguia diferenciar um homem tolo de um patife, e derrubando seus oponentes mais pela força barulhenta de sua linguagem que pela força calma de sua lógica.

Havia algo do ianque[10] em tudo isso. De fato, sua teoria era paralela ao famoso lema ianque:

“A Inglaterra açoita a criação, e Manchester açoita a Inglaterra!”

Um homem assim, como se pode imaginar, não tinha tempo para se apaixonar, ou qualquer bobagem desse tipo.

Na idade em que os homens jovens passam pela corte de belas jovens e pelo matrimônio, ele não tinha meios de manter uma esposa e era prático demais para pensar em ter uma. E, como estava ele em circunstâncias favoráveis para a sua ascensão, ele considerava as mulheres quase como um ônus para o mundo, e que devia ter o mínimo possível de contato com elas.

Sua primeira impressão de Alice foi nebulosa, e ele não se importava o suficiente com ela para 1orna-la importante em sua vida.

“Uma mulher bonita, sim... Mas, não!”

Seria essa a sua descrição sobre ela, porque ele estava com muito medo do jeito calmo dela ser de uma indiferença e preguiça de caráter, o que seria extremamente discordante com sua natureza ativa e enérgica.

Entretanto, ele começou a pensar sobre ela, quando ele descobriu a pontualidade com que seus desejos eram atendidos por Alice, bem como o despertara de manhã, com suaves toques em sua porta, no momento exato das batidas dos ponteiros do relógio, assim como a sua água de barbear escaldante estava posta em sua frente, e a lareira em sua chama brilhante, e, também, quando o seu café estava exatamente como a sua peculiar vontade ditava, pois, ele era um homem que apresentava sua teoria sobre tudo, baseado no que ele sabia sobre ciência.

Não que Alice tivesse algum mérito em particular, porque ele não queria admitir isso.

Para dissipar a sua inquietação, ele começou a considerar que devia se hospedar em outra pousada, decidido a esquecer a bobagem do sentimento que o aborrecia.

O Senhor Openshaw estivera muito ocupado em todos os seus dias, para ser introspectivo. Ele não sabia haver ternura em sua natureza, e se ele percebesse a existência abstrata dessa tal ternura, ele a consideraria como uma manifestação de alguma doença em uma determinada parte dele.

Contudo, inesperadamente, ele foi induzido à piedade, e a piedade o levou à ternura. Porque aquela pequena criança indefesa tomou a atenção do Senhor Openshaw, quando era carregada por uma das três mulheres da casa, ou, pacientemente ela ficava jogando bolinhas coloridas, sentada na cadeira, sem nenhuma capacidade e força, para se mover.

Ele observou os grandes olhos azuis, cheios de expressão séria não desatenta, que dava ao pequeno rosto delicado, um olhar além de seus anos, com a voz suave e poucas palavras, ao contrário da contínua tagarelice de uma criança da sua idade deveria, por certo, ter.

Um dia, ele desprezou a sua hora de almoço para ir à busca de algum brinquedo para a pequena menina. Ele estava cansado de observar a menina brincando com aquelas bolinhas eternamente.

Esqueci o que ele comprou para a menina, mas, quando ele deu o presente, que ele teve o cuidado de fazer de maneira breve e brusca, e evidentemente, quando ninguém estava por perto para vê-lo oferecer o brinquedo, ele quase se emocionou com o clarão de encanto que pairou sobre o rosto daquela criança, e ele não pôde esquecer, durante toda aquela tarde, a imagem deixada em sua memória, que surgia e ressurgia, pelo efeito brilhante de uma alegria repentina no rosto da menina.

Após um tempo longe da pousada da Senhora Wilson, ele retornou e encontrou seus chinelos colocados perto da lareira da sala de estar.

Depois que Alice retirou a xícara com o resto do seu chá, e em silêncio como de costume, ela parou por um instante segurando a maçaneta da porta. O Senhor Openshaw parecia estar mergulhado em seu livro, embora, na verdade, não leu uma linha do que estava escrito, mas fazia isso porque desejava sinceramente que a mulher fosse embora e não fizesse nenhum discurso de gratidão. No entanto, ela disse:

— Estou muito agradecida, senhor! Muito obrigada!

Ela se foi, mesmo antes dele falar:

— Está bem, minha boa senhora! Já chega!

Por mais algum tempo, ele não deu nenhuma atenção aparente à criança. Ele até endureceu seu coração para desconsiderar seu súbito rubor de cor e seu pequeno sorriso tímido de reconhecimento, quando a viu por acaso.

Contudo, isto não podia durar para sempre, e, apresentando uma segunda chance à ternura, não houve recidiva.

O inimigo insidioso, tendo assim entrado em seu coração, com o pretexto de compaixão pela criança, logo assumiu a contorno mais perigoso de interesse pela mãe da pequena menina.

Ele estava ciente dessa mudança de sentimento, e tentava desprezar, lutando bravamente contra isso. Não cedeu, mas internamente se rendeu e acarinhou este sentimento, muito antes de expressar por palavra, ação ou olhares para Alice.

Ele observava os modos dóceis e obedientes de Alice para com sua madrasta, o amor que ela inspirara na sofrida Norah, pelo desgaste dos anos, mas, primeiro, ele analisava o afeto apaixonado, profundo e intenso que existia entre ela e sua filha.

Alice e a filha falavam pouco com os hóspedes, ou quando alguém estava por perto. Porém, quando estavam sozinhas, elas conversavam, murmuravam, cantarolavam, e tagarelavam tão continuamente, que o Senhor Openshaw se perguntava o que elas encontravam de tão interessante para dizer uma para a outra, e em seguida, ele se irritava, porque elas estavam sempre tão quietas diante dele.

Durante esse tempo, ele estava perpetuamente planejando pequenas novas distrações para a criança.

Seus pensamentos corriam, de forma perturbadora, sobre a vida desolada que a precedia, e, muitas vezes ele voltava do dia de trabalho carregado com a mesma coisa que Alice ansiava, mas não fora capaz de obter.

Uma vez, ele trouxe uma cadeirinha com rodas para puxar a pequena sofredora pelas ruas, e assim, dar pequenos passeios nas muitas noites daquele verão.

O Senhor Openshaw empurrou a cadeirinha com a pequena menina, independentemente das observações de seus conhecidos sobre seu ato.

Um dia, no outono, ele largou o jornal, quando Alice entrou com o café da manhã, e ele disse, com a voz mais indiferente que pôde supor:

— Senhora Frank, há alguma razão para que nós dois não possamos estar juntos?

Todos os hóspedes a chamavam cordialmente pelo nome do falecido marido, mesmo que Alice desejasse ser chamada por seu nome, assim, enterrando a dor de sua viuvez.

Alice ficou parada em perplexidade maravilhada.

O que ele queria dizer com aquilo?

Ele retornou a leitura de seu jornal, como se não esperasse nenhuma resposta, assim, ela encontrou o silêncio como uma saída segura, e continuou organizando calmamente o café da manhã dele, sem que outra palavra passasse entre suas bocas.

Assim que ele estava saindo de casa para ir ao armazém como de costume, ele voltou seus olhos para trás e colocou a cabeça na porta da cozinha iluminada e arrumada, onde as mulheres se reuniam no café da manhã:

— Você vai pensar no que eu disse, Senhora Frank? Deixe-me saber a sua opinião sobre isso, hoje, à noite!

Alice ficou grata por sua madrasta e Norah estarem muito ocupadas conversando sobre a rotina dos afazeres e não deram muita importância para o discurso do Senhor Openshaw.

Ela decidiu não pensar no assunto durante todo o dia, e, é claro, o esforço em não pensar a fez raciocinar ainda mais.

À noite, ela não levou o chá como de praxe, e deu a missão para Norah. Entretanto, o Senhor Openshaw quase derrubou Norah, quando ela estava saindo pela porta, empurrando-a para fora e chamando:

— Senhora Frank!

Alice subiu ao seu chamada.

— Bem! Senhora Frank... — continuou ele com a voz ansiosa. — Qual a sua resposta? Não demore muito, pois, tenho muito trabalho para concluir nesta noite!

— Mal sei o que o senhor quis me dizer! — expressou a sincera Alice.

— Bem! Eu devia pensar que você adivinharia o que eu esperava dizer. Você já foi casada, eu não. No entanto, desta vez, vou deixar bem clara as minhas palavras. Você quer que eu seja seu marido, e isso significa que me sirva, me ame, me honre e todo o resto? Porque, se você quiser, farei o mesmo por você, e serei um pai para a sua filha, e isso é mais do que está escrito no livro de orações. Afirmo, sou um homem de palavra. O que digo, sinto, e prometo, assim farei! Agora, preciso de sua resposta!

Alice ficou em silêncio.

Ele começou a beber o chá, como se a resposta fosse sem importância para ele, mas, com a demora em responder, ele ficou impaciente.

— Bem... — ponderou.

— Senhor! Quanto tempo posso ter para pensar sobre a sua proposta? — perguntou Alice.

— Dou-te três minutos! — ele olhou para o seu relógio. — Você já teve dois minutos, então, isso te dá cinco minutos no total. Seja uma mulher sensata, diga SIM, e sente-se para tomar chá comigo, e conversaremos um pouco sobre o nosso relacionamento, já que, depois do chá, estarei ocupado com minhas tarefas para finalizar. Mas, se falar Não... — ele hesitou por um momento para tentar manter a voz no mesmo tom e continuou. — Não direi mais nada sobre o assunto. Que fique claro! Então, pagarei o aluguel de um ano pelo meu quarto, amanhã e, partirei. Acabou o tempo, Alice! Sua resposta é sim ou não?

— Por favor, senhor! Você é tão bom para a pequena Ailsie!

— Entendi a sua resposta superficial! Sente-se confortavelmente ao meu lado no sofá, e vamos tomar nosso chá, juntos! Fico feliz em saber que você é tão boa e sensata, quanto pensei que você fosse.

Este foi o segundo cortejo de Alice Wilson.

A vontade do Senhor Openshaw em acelerar o processo era muito forte diante das circunstâncias em torno da pequena menina.

Ele acomodou a Senhora Wilson em uma confortável casa e assim, a tornou bastante independente dos inquilinos.

O pouco que Alice disse em relação aos planos, foi em nome da Norah.

— Não! — afirmou o Senhor Openshaw. — Norah cuidará da Senhora Wilson enquanto ela viver, e, depois disso, ela viverá conosco, ou, se ela assim desejar, nós podemos manter Norah na pousada e a cuidaremos, para o seu bem. Ninguém que fora bom para você ou para a criança, ficará sem recompensa. Se a menina sente falta de alguém que a cuide, arranjarei uma garota inteligente e sensata para ser sua enfermeira, uma que não vá esfregar geleia de mocotó nos pés da criança, como faz Norah, vez ou outra. Uma enfermeira criteriosa, que seguirá as instruções dos médicos, que, como você deve saber, Norah, não o faz, porque os procedimentos dão dor à pobrezinha. — ele suspirou. — Sei que é difícil ver uma criança sofrendo, porém, é necessário. Se o tratamento é imprescindível, segurarei a pequena menina, de joelhos, enquanto ela gritar de dor, se isso fizer bem às pobres costas dela.

A menina, sentada na cadeira, o olhou com seus olhos apavorados e ele continuou:

— Não! Menina! Mantenha seus olhares calmos para quando chegar a hora, não tenho certeza de quando isso ocorrerá, mas isto sei... — ele voltou seus olhos para Alice, — Norah vai poupar a criança e enganar o médico, se ela puder. Agora digo, dê uma ou duas chances para a criança, e então, quando o bando de médicos fizerem o seu melhor, e, talvez, a velha Senhora Wilson tenha partido, nós teremos Norah de volta ou faremos algo melhor para ajudá-la!

O grupo de médicos não poderia fazer nada de bom à pequena Ailsie. Isso estava além seus poderes.

O Senhor Openshaw insistiu em ser chamado de pai, para que Alice não mais sustentasse toda a responsabilidade sobre a educação da criança em suas costas.

Era a melhor decisão para ser tomada, porque as suas boas maneiras, propósitos bem definidos, e seu humor inesperado, somados ao seu real e forte amor pela menina indefesa, infundiu um novo elemento de brilho e confiança na vida da criança, e, apesar de suas costas permanecessem as mesmas, sua saúde, de modo geral, foi fortalecida pelo amor familiar que surgia, e Alice, nunca indo além de um sorriso tímido, teve o prazer de ver sua filha ser ensinada a rir.

Quanto à vida de Alice, ela era feliz.

O Senhor Openshaw não exigiu nenhuma demonstração de afeto ou expressão de ternura por parte dela para com ele.

De fato, estes gestos mais acalorados o enojavam. Alice podia amar profundamente, mas não havia necessidade para falar sobre isso.

A exigência perpétua de palavras amorosas, olhares, carícias, e a interpretação errônea de que suas atitudes eram ausências de amor e afeto, fora a grande dura prova da ex-vida de casada.

Tudo corria bem, sob a orientação do forte senso, coração cordial e vontade intensa de seu marido. A cada ano que se passava, sua prosperidade aumentava.

Com a morte da Senhora Wilson, Norah voltou para a casa de Alice como a babá do pequeno Edwin, recém-nascido, e cujo posto, ela não recebeu sem um forte discurso do pai orgulhoso e feliz, que declarou que se ele descobrisse algo errado na conduta de Norah, ela seria demitida.

Norah e o Senhor Openshaw não usavam termos muito cordiais um com o outro, ou reconheciam ou apreciavam recíproca e plenamente as suas melhores qualidades.

Esta era a história anterior da família Lancashire, que agora se mudara para Londres.

Eles estavam lá, há cerca de um ano, quando o Senhor Openshaw informou para a sua esposa que estava determinado a curar rixas antigas, e pediu ao seu tio e tia Chadwick, que o visitasse em Londres.

A Senhora Openshaw não conhecia os tios de seu marido, porque anos antes de se casar com ele, houve uma briga. Tudo o que ela sabia era que o Senhor Chadwick era um pequeno fabricante em uma cidade do interior no sul de Lancashire.

Ela estava extremamente satisfeita que a ferida do passado, entre o marido e os tios, estava para ser curada em breve e começou a fazer preparativos para tornar a visita agradável.

Eles chegaram a Londres, finalmente.

Ir à Londres foi um evento tão grande para eles, que a Senhora Chadwick pedira para as costureiras providenciarem boas roupas de dormir, de toucas noturnas para baixo, e isso também se estendeu para os vestidos, fitas e colares. Certamente, ela podia viajar para um lugar isolado no Canadá, que seu estoque de roupas daria para abrir uma loja.

Uma quinzena antes do dia da partida para Londres, ela chamara os seus conhecidos para se despedir formalmente, dizendo que ela precisava de todo o tempo livre possível para fazer as malas.

Foi como um segundo casamento em sua imaginação, e, para completar isso, ela precisava de um guarda-roupa inteiramente novo. Seu marido, no último dia de compras antes de partirem, deu para a sua esposa uma linda pérola e um broche de ametista, dizendo:

— Londres verá que as pessoas de Lancashire sabem escolher belas coisas!

Durante algum tempo depois que o Senhor e a Senhora Chadwick chegaram à casa de Openshaw, não houve oportunidade de usar o tal broche, mas, por fim, eles receberam uma ordem para visitar o Palácio de Buckingham, e o espírito da realeza exigiu que a Senhora Chadwick usasse suas melhores roupas ao visitar a residência de sua soberana rainha.

No seu retorno, ela trocou apressadamente seu vestido, pois, o Senhor Openshaw planejara uma visita à Richmond, para tomar chá e apreciar o luar.

Assim, por volta das cinco horas da tarde, o Senhor e a Senhora Openshaw, com o Senhor e a Senhora Chadwick, partiram para o passeio noturno.

A empregada e cozinheira sentaram para um breve descanso, e Norah mal sabia onde descansar suas costas, porque ainda estava envolvida em andar ao redor do berço para cuidar do menino até que dormisse, e ao sentar-se ao lado da inquieta Ailsie até que ela pudesse adormecer.

Em seguida, a empregada da casa, Mary, bateu gentilmente na porta do quarto das crianças. Norah foi até ela, e elas falaram em sussurros para não acordá-los.

— Norah! Desça! Há alguém na sala, e ele que quer te ver!

— Quer me ver? Quem é?

— Um cavalheiro!

— Um cavalheiro? Que disparate!

— Bem! Um homem está esperando, e ele pergunta por você. Ele tocou à campainha da porta da frente, e entrou na sala de jantar!

— Você não devia deixa-lo entrar! Não sabe quem é! — exclamou Norah.

— Eu não queria que ele entrasse, mas, quando ele soube que você morava aqui, passou por mim, sentou-se na primeira cadeira e disse para te chamar porque ele queria falar com você. — ela ficou pensativa por alguns instantes. — Não há fogo aceso na sala, e o jantar já está pronto!

— Ele vai roubar nossas colheres! — reclamou Norah, colocando medo em suas palavras.

Norah se preparou para sair do quarto, olhando para Ailsie, que estava dormindo tranquila.

Ela desceu, com o medo apreensivo agitando seu peito.

Antes de entrar na sala de jantar, ela se muniu de uma vela e, entrou, olhando ao seu redor, na escuridão, para seu visitante.

Ele estava de pé, ao lado da mesa. Norah e ele se olharam, o reconhecimento gradual vinha aos olhos deles.

— Norah? — perguntou ele.

— Quem é você? — indagou Norah, com a voz em um tom agudo de alarme e incredulidade. — Não te conheço, homem! — tentou Norah, com palavras vazias de descrença, para acabar com o terrível fato diante dela.

— Estou tão mudado assim, que é incapaz de me reconhecer? — questionou o homem. — Ouso dizer que estou um pouco mudado. No entanto, Norah, me diga! — ele respirou profundamente. — Onde está a minha querida esposa? Ela está viva?

Ele se aproximou de Norah e tentou pegar a mão dela, entretanto, a mulher se afastou dele, olhando para o homem o tempo todo, com seus olhos fixos, como se ele fosse um objeto horrível.

Porém, ele era um sujeito bonito, bronzeado, com barba e bigode, dando-lhe um aspecto estranho, mas seus olhos...

Não havia não perceber quem ele era.

Aqueles olhos ávidos e bonitos, eram os mesmos que Norah observara há meia hora, até que o sono deitou suavemente sobre eles.

— Diga-me, Norah! Posso suportar a verdade! Temi isso tantas vezes. Ela está morta?

Norah ainda sustentava o silêncio e ele novamente perguntou:

— Ela está morta? — ele se agarrou às palavras ditas e aos olhares de Norah, tentando adivinhar se eles mostravam confirmação ou contradição.

— O que devo dizer? — lamentou Norah. — Oh! Senhor! Por que você veio? Como você descobriu a nossa morada? Pensamos que você estava morto, de fato. Nós fizemos até o funeral! — ela derramou palavras soltas e perguntas, para assim ganhar tempo, como se o tempo a ajudasse realmente.

— Norah! Responda a minha pergunta, é sim ou não? Minha esposa está morta?

— Não! Ela não está morta! — assegurou Norah, lenta e pesadamente.

— Oh! Que alívio! Ela recebeu as minhas cartas? Oh! Talvez você não saiba. Onde ela está? Oh! Norah, diga-me tudo! Rápido!

— Senhor Frank... — continuou Norah, finalmente, quase impelida pelo desespero em orar para que Alice não voltasse naquele momento e o encontrasse em sua sala.

Norah não conseguia analisar o que era melhor a ser feito ou dito, apressando-se em algo decisivo, porque ela não podia suportar aquela situação:

— Senhor Frank! Nunca recebemos suas cartas, e os homens disseram que o senhor e todos os outros do navio, naufragaram. Pensamos que o senhor estava morto, e agora vejo que não era verdade. Então, a pobre Senhorita Alice e sua pequena criança doente e indefesa... — ela respirou profundamente. — Oh! Senhor! Você deve adivinhar! — chorou a pobre criatura, explodindo em um exaltado ataque de choro. — De fato, não posso dizer isso! Não foi culpa de ninguém. Que Deus nos ajude nesta noite! — ela lamentou.

Norah sentou, porque tremia demais para ficar de pé. Ele pegou as mãos dela nas dele, e as apertou com força, como se, por pressão física, a verdade pudesse ser arrancada.

— Norah... — desta vez, seu tom era calmo, contudo, envolto em desespero silencioso. — Ela se casou novamente?

Norah balançou tristemente a cabeça, afirmando a resposta para o homem. Sua mão se soltou lentamente das mãos de Norah e ele desmaiou.

Havia conhaque na sala.

Norah forçou algumas gotas na boca do Senhor Frank, esfregou as mãos em seus pulsos, e, quando ele voltou seus sentidos, antes que a mente se derramasse em uma enxurrada de memórias e pensamentos, ela o levantou, descansando a cabeça dele em seus joelhos.

De repente, ele caiu de joelhos.

— Onde ela está? Diga-me neste instante!

Ele parecia alucinado e desesperado. Norah sentia que poderia estar em perigo físico. Ela tinha medo de lhe dizer a verdade, então, ela preferiu ser covarde e usou sua perspicácia aguçada pela sensação de desespero entre eles.

Ele devia deixar a casa, imediatamente. Ela teria pena dele depois, isso era certo, contudo, Norah devia tomar as rédeas da situação, para proteger Alice de um grande susto.

Essa necessidade ficou clara diante dela.

— Ela não está aqui! Isso é o suficiente para que você. Nem posso dizer exatamente onde ela está. Vá embora! Apenas me diga onde posso encontrá-lo amanhã, e falarei tudo. Meu Senhor e minha Senhora podem voltar a qualquer momento, e o que eles pensarão de mim, ao ver um homem estranho em sua casa?

Tal argumento era muito mesquinho para tocar a mente entusiasmada dele.

— Não me importo com o que eles pensarão! Se seu Senhor é um homem, ele deve entender a minha angústia, sabendo o marinheiro naufragado que sou, mantido durante anos, aprisionado entre os selvagens, sempre, sempre, sempre pensando em minha esposa e em meu lar, sonhando com ela nas intermináveis noites, e falando com ela, embora minha amada não pudesse ouvir, durante os dias. Eu a amava mais que todo o céu e a terra, juntos. Diga-me onde ela está, neste instante, mulher miserável!

Os ponteiros do relógio tocaram às dez.

Em momentos desesperados exigem medidas desesperadas.

— Se você sair dessa casa agora, irei até você amanhã e lhe direi tudo, prometo! E mais... Para acalmar seu coração, verá a sua filha agora! Ela está dormindo no andar de cima. Oh! Senhor! Você tem uma filha, você não sabe disso, não é mesmo? Ela é uma garotinha fraca, com um coração e uma alma além de seus anos. A criamos com tanto cuidado! Pensamos por muitos anos que ela morreria a qualquer instante. Vigiamos, e, nada de ruim se aproximou dela durante este tempo, e nenhuma palavra dura foi dita para a pobrezinha. Agora você exige coisas, pretendendo pegar o seu coração e esmagá-lo dentro de suas mãos? Estranhos são gentis com ela, mas, o Senhor Frank, seu legítimo pai, não a estima, se deseja permanecer aqui por mais tempo! — Norah tomou um breve fôlego e continuou. — Sou sua enfermeira e babá, amo e cuido da pequena como se fosse minha. Faria qualquer coisa por ela. O coração de sua mãe bate como bate o dela, e, se ela sofre uma dor, sua mãe sofre com ela. Se ela está feliz, a sua mãe sorri e fica feliz também. Se ela fica mais forte, sua mãe se torna saudável, se ela perde a força, sua mãe enfraquece. Se ela morrer, bem, não sei... Nem todos podem deitar-se e morrer quando assim desejam. Enfim... Suba as escadas, Senhor Frank! Veja sua filha! Vê-la fará bem ao seu pobre coração. Faça isso rapidamente e vá embora! Em nome de Deus, espere por mais esta noite! Amanhã, se necessário, você pode fazer qualquer coisa! Mate-nos se quiser, ou mostre-se como sendo um grandioso homem, que Deus abençoará para sempre! Venha, Senhor Frank! O olhar de uma criança adormecida certamente lhe dará paz!

Ela o levou para o andar de cima, e a princípio, quase o ajudando a guiar os passos trêmulos, até chegarem perto da porta do quarto.

Ela quase esquecera a existência do pequeno Edwin, quando ela acidentalmente mirou a luz da vela sobre o berço do menino, e inteligentemente, ela afastou a luz daquele canto do quarto, deixando na escuridão, e colocou a luz sobre a cama de Ailsie, adormecida em seu sono de criança.

A menina jogara as cobertas para baixo, e sua deformidade, ao deitar-se de costas para os dois, era visível através de sua singela camisola de menina. Seu pequeno rosto, desprovido do brilho de seus olhos, parecia esmorecido e tinha uma expressão comovente nele, mesmo quando dormia.

O pobre pai olhou melancólico, as grandes lágrimas desceram lentamente e caíram pesadamente sobre a sua barba, enquanto ele tremia seu corpo.

Norah ficou furiosa consigo mesma por estar impaciente com aquela cena tão emocionante. Ela acreditou que a espera durou cerca de meia hora, antes de Frank sair daquele estado de lamento. Então, em vez de ir embora, ele caiu de joelhos à beira da cama, e enterrou seu rosto no lençol.

A pequena Ailsie mexeu-se desconfortavelmente.

Norah o puxou para cima com pavor. Ela não podia dar mais tempo para ele, mesmo que fosse para rezar. Não havia mais tempo, porque, certamente, o momento seguinte traria Alice e o marido para casa.

Ela o pegou à força pelo braço, mas, enquanto ele ia, seus olhos pousaram na outra cama, e ele parou seu andar. A inteligência voltou à sua face e suas mãos se apertaram.

— Outra criança? — perguntou ele.

— Filho dela! — respondeu Norah. — Deus cuida dele neste momento! — garantiu instintivamente, pois, a aparência de Frank excitava seus medos, e ela precisava lembrar que Deus devia os proteger.

— Deus não olhou por mim! — pronunciou o homem, em desespero.

Seus pensamentos aparentemente recuaram sobre seu estado desolado e abandonado, mas, Norah não teve tempo para compaixão.

No dia seguinte, ela seria tão afetuosa quanto seu coração podia ser, mas naquele momento, não!

Ela o guiou para fora da casa, fechou a porta e a trancou, como se ela colocasse parafusos para impedir que ele tentasse entrar novamente.

Em seguida, ela voltou à sala de jantar e apagou todos os vestígios de sua presença, na medida do possível.

Ela subiu para o quarto das crianças e sentou-se lá, com a cabeça deitada sobre as mãos, pensando no que estava por vir.

Demorou um bom tempo até que o Senhor Openshaw e Alice retornaram, no entanto, eram apenas onze horas da noite.

Ela escutou as vozes altas e graves de Lancashire nas escadas, e, pela primeira vez, ela compreendeu o contraste da desolação do pobre homem que saíra em desesperança, solitário.

Ela quase perdeu a paciência ao ver a Senhora Openshaw entrar, sorrindo calmamente, bem vestida, feliz, perguntando sobre seus filhos.

— Ailsie adormeceu confortavelmente? — ela sussurrou para Norah.

— Sim!

Sua mãe se inclinara sobre a filha, olhando para o sono da menina, com os olhos brandos de amor. Talvez, a garotinha sonhava com quem olhara para ela por último!

Então, ela foi para Edwin, com menos ansiedade no semblante, no entanto, com mais orgulho. Ela se despediu de Norah e desceu para jantar.

Havia uma porta de passagem entre o quarto das crianças e o quarto do Senhor e da Senhora Openshaw, para que eles pudessem ter as crianças sob seus cuidados durante a noite.

No início da manhã seguinte, a Senhora Openshaw foi desperta pelo chamado assustado de Ailsie:

— Mãe! Mãe!

Ela se levantou, vestiu seu chambre[11], e foi até o quarto da menina.

Ailsie estava sonolenta, e em um estado de pavor incomum.

— Quem era ele, mãe? Diga-me!

— Quem, minha querida? Não há ninguém aqui! Você sonhou, amorzinho! Acorde! Veja! É plena luz do dia! Está tudo bem!

— Está bem! — declarou Ailsie, olhando à sua volta, depois se agarrou à sua mãe, novamente apavorada. — Mas, um homem esteve aqui na noite passada, mãe!

— Bobagem, meu pequeno cisne! Nenhum homem jamais se aproximou de você!

— Ele estava aqui, com Norah. Um homem com barba. Ele se ajoelhou e tentou orar! Norah sabe que ele estava aqui, mãe! — a menina falou irritada, esperando que sua mãe acreditasse em suas palavras, enquanto a Senhora Openshaw balançava a cabeça negativamente.

— Bem! Perguntaremos para Norah! — falou a Senhora Openshaw, docemente. — No entanto, não falaremos mais sobre isso agora. São cinco horas da manhã, é muito cedo para você se levantar. Devo ir buscar um livro e ler para você?

— Não me deixe sozinha, mãe! — exclamou a criança, agarrando-se a ela.

A Senhora Openshaw sentou-se à beira da cama conversando com Ailsie, e lhe contando o que eles fizeram em Richmond na noite anterior, até que os olhos da menina se fecharam lentamente e ela mais uma vez, adormeceu.

— O que houve? — perguntou o Senhor Openshaw, enquanto sua esposa voltava para a cama.

— Ailsie acordou assustada, falava uma estória absurda, de um homem que orou ao pé de sua cama! Foi um sonho, suponho!

E nada mais foi dito e os dois adormeceram em seguida.

A Senhora Openshaw esquecera o ocorrido, quando se levantou por volta das sete horas. Contudo, ela ouviu uma aguda discussão acontecendo no quarto das crianças. Era Norah, falando raivosamente com Ailsie, uma coisa muito incomum.

O Senhor e a Senhora Openshaw escutaram com espanto a conversa.

— Segure a sua língua, Ailsie! Não me faça ouvir nenhum de seus sonhos! Nunca mais mencione essa história novamente!

Ailsie começou a chorar.

O Senhor Openshaw abriu a porta, antes que sua esposa pudesse dizer uma palavra.

— Norah! Venha aqui!

A enfermeira estava à porta, desafiadora. Ela percebeu que fora ouvida, e estava desesperada.

— Não quero mais ouvir você falar dessa maneira com Ailsie! — afirmou ele e fechou a porta.

Norah estava infinitamente aliviada, pois, ela temia algum questionamento sobre a discussão, mas um pouco de culpa, por falar grosseiramente com a menina, pairou sobre seu coração.

O Senhor Openshaw desceu, carregando Ailsie, e o robusto Edwin, vindo passo a passo, o pé direito em primeiro lugar, sempre segurando a mão de sua mãe.

Cada criança foi colocada em uma cadeira junto à mesa do café da manhã, e então, o Senhor e a Senhora Openshaw ficaram juntos, aguardando a aparição de seus visitantes e fazendo planos para o dia.

Houve uma pausa.

De repente, o Senhor Openshaw virou-se para Ailsie e falou:

— O que fez acordar a sua mãe no meio da madrugada, com a história de um homem à beira de sua cama?

— Pai! Tenho certeza que o vi! — disse Ailsie, querendo chorar. — Não quero irritar Norah, mas eu não estava dormindo, mesmo que ela afirme o contrário. Bem, eu estava dormindo, mas acordei com o barulho, e apesar de estar assustada, mantive meus olhos quase fechados, mesmo assim, vi o homem nitidamente, grande e com barba. Ele fez alguma oração sobre o pé da minha cama. Então, ele olhou para Edwin. Contudo, Norah o pegou pelo braço e o levou embora, após terem sussurrado sobre algo que não sou capaz de lembrar!

— Pequena! Você deve ser razoável! — avaliou o Senhor Openshaw, que sempre foi paciente com Ailsie. — Não havia nenhum homem na casa ontem à noite. Nenhum homem entra em nossa casa sem a minha permissão, como você sabe, muito menos, ser capaz de subir até o seu quarto. Mas, às vezes, sonhamos com coisas estranhas e o sonho é tão parecido com a realidade, que podemos confundir o que é real ou não!

— No entanto, não foi um sonho, pai! — garantiu Ailsie, chorando verdadeiramente.

Logo depois, o Senhor e a Senhora Chadwick desceram, com um ar sério e abatido.

Durante todo o café da manhã, eles ficaram em silêncio e desconfortáveis.

Assim que as coisas do café da manhã foram tiradas da mesa, e as crianças foram levadas para cima, o Senhor Chadwick começou, de maneira evidentemente calma, a perguntar se o seu sobrinho estava certo de que todos os seus criados eram honestos, pois, a Senhora Chadwick tinha naquela manhã, perdido um broche muito valioso, que ela usara no dia anterior. Ela se lembrou de tirar a peça, quando voltou do Palácio de Buckingham.

O rosto do Senhor Openshaw contraiu-se em linhas duras. E mesmo antes que seu tio conseguisse terminar de falar, ele chamou a cozinheira.

— Mary! Esteve alguém aqui ontem à noite, enquanto estávamos fora?

— Um homem, senhor, veio falar com Norah!

— Falar com Norah? Quem era ele? Por quanto tempo ele ficou em minha residência?

— Não sei dizer por quanto tempo ele permaneceu aqui, senhor. Ele chegou, talvez cerca de nove da noite. Subi para contar a Norah, ela estava com as crianças, foi quando ela desceu para falar com ele. Ela saberá quem ele era, e por quanto tempo ele ficou dentro de sua casa!

Ela esperou por mais um momento para que ele fizesse mais perguntas, no entanto, o Senhor Openshaw a dispensou e a mulher voltou para os seus afazeres.

Um minuto depois, o Senhor Openshaw fez menção de sair da sala, mas sua esposa colocou a mão no braço dele.

— Não fale com ela diante das crianças! — sussurrou ela. — Vou subir e interrogá-la!

— Não! Preciso falar com ela. — declarou ele, voltando-se para seu tio e sua tia, — Querida esposa, sabemos que Norah é sua velha criada, tão fiel. Sempre foi uma boa mulher, e acredito que nos respeitou. Mas, entendo que isso diz respeito ao amor. Penso que Norah foi conquistada por algum sujeito imprestável, pois, ela está na época da vida, como dizem, que as mulheres rezam por maridos, seja qual for! Por certo, o deixou entrar em nossa casa, o homem fugiu com o broche. Certamente, olhou para roubar outras coisas, também. Digo que Norah tem o coração mole, por isso, não falou a verdade! Isso é tudo, minha esposa!

Era curioso notar como seu tom e seus olhos mudaram, enquanto ele falava com sua esposa, mas ele era um homem decidido, além de tudo.

Ela sabia, melhor que ninguém, que não devia se opor, então, ela subiu e assegurou para Norah que seu marido queria falar com ela, e que ela cuidaria das crianças enquanto isso.

Norah levantou-se, sem dizer uma palavra. Seus pensamentos eram estes:

“Se eles me humilharem, nunca saberão através de mim, a verdade! Não ajudarei! O Senhor Frank pode vir, e então, só Deus terá piedade de nós! Vou deixar isso nas mãos de Deus!”

Você pode imaginar o olhar de determinação de Norah, quando ela encarou o Senhor Openshaw sozinho, esperando-a na sala de jantar, uma vez que o Senhor e a Senhora Chadwick deixaram o caso nas mãos de seu sobrinho, vendo que ele o assumiu com enorme veemência.

— Norah! Quem era o homem que veio à minha casa ontem, à noite?

— Homem, senhor? — Norah fingiu surpresa, mas era apenas para ganhar tempo.

— Sim! O homem que Mary deixou entrar. Ela subiu ao quarto das crianças para te avisar da presença dele e que você desceu para falar com o sujeito. E, o mesmo homem, não duvido, foi o mesmo homem que Ailsie viu, e que julgamos ser um sonho. Ela o viu rezar, depois olhar para meu pequeno filho e vocês sussurrarem. Também, ele é aquele que levou o broche da Senhora Chadwick, no valor de dez libras. Agora, Norah! Não me faça de tolo! Estou tão certo, assim como meu nome é Thomas Openshaw, que você não sabia nada sobre este roubo. Porque sei de sua honestidade. Mas, talvez tenha feito vistas grossas para protegê-lo. Lamento que você seja como todas as outras mulheres, e tenha dado um lugar afetuoso em seu coração para um patife repleto de galanteios, que se aproveitou de tal oportunidade, e fugiu com algumas coisas que nos pertenciam. Norah, não é culpa sua! Entretanto, você não deve ser tão ingênua novamente. Diga-me... — continuou ele, — Qual é o nome dele? Por certo, te falou um nome falso, todavia, será uma pista para a polícia!

Norah se explicou.

— Você pode fazer essa pergunta e zombar de mim por ser uma solteirona. Pode também duvidar da minha credulidade, como você está fazendo agora, Senhor Openshaw... Apenas afirmo que você não receberá resposta nenhuma de mim! Quanto ao broche e a história de furto, se algum amigo viesse me ver, de fato, o que o desafio a provar tal coisa, ele estaria acima de fazer coisas dessa natureza desprezível, e, além disso, há coisas muito mais importantes que um mero boche! — Norah queria dizer, em meias-palavras sobre Alice, mas ele entendeu que ela se referia aos seus bens e propriedades.

— Agora, minha boa senhora! — disse ele. — Vou lhe dizer sinceramente... Nunca confiei em você, mas minha esposa gostava de você, e julguei que você tinha muitas qualidades. Entretanto, se pensa que vai me enrolar com este seu discurso sem nexo algum, terei que chamar a polícia para te prender e talvez, você possa expressar a verdade em um tribunal de justiça, já que você não que me falar, aqui, somente entre nós, de forma silenciosa e civilizada. Agora, a melhor coisa que você pode fazer é me dizer calmamente quem é o sujeito... — ele a olhou firmemente. — Olhe aqui! Isso está fora de qualquer conduta respeitosa que um empregado deve para seu patrão. Um homem vem à minha casa, pergunta por você, você o leva lá para cima, falta um broche valioso no dia seguinte, sabemos que você, Mary e cozinheira são honestas neste tocante, entretanto, você se recusa a nos dizer quem é o tal homem. De fato, você já me contou uma mentira sobre ele, dizendo que ninguém esteve aqui na noite passada. Agora, digo, o que você pensa que um policial diria sobre isto? Um juiz logo a faria dizer a verdade, minha boa senhora!

— Não há criatura nascida neste mundo que poderá tirar isso de minhas palavras! Lamento! — garantiu Norah. — Não, a menos, que eu decida contar!

— Isso é o que vamos ver! — respondeu o Senhor Openshaw, crescendo a sua raiva, que transbordava de seus olhos.

Então, tentando se acalmar, ele pensou antes de falar novamente:

— Norah, por sua senhora, minha esposa que estimo tanto, não quero ir às extremidades neste caso, sabe o que falo. Seja uma mulher sensata, se você puder... Não é uma grande desgraça, afinal de contas, ser enganada devido a um amor. Pergunto-lhe, mais uma vez, como amigo e não como seu patrão... Quem é esse homem que você deixou entrar em minha casa, ontem, à noite?

Sem resposta. Ele repetiu a pergunta em um tom impaciente. Ainda sem resposta. Os lábios de Norah foram colocados na determinação de não falar.

— Lamento, há apenas uma coisa a ser feita diante de seu silêncio. Mandarei chamar um policial e te interrogar!

— Você não vai fazer isso! — expressou Norah, o encarando. — Não o fará, senhor! Nenhum policial me tocará! Não sei nada sobre o broche, mas, sei o seguinte... Desde os meus vinte e quatro anos, tenho pensado mais em sua esposa que em mim. Desde que a vi, uma pobre menina sem mãe, colocada na casa de seu tio, tenho pensado mais em servi-la que em servir a mim mesma! Tenho cuidado dela e de sua filha, como ninguém jamais cuidou de mim. Não o censuro, senhor... Porém, digo ser uma pena, entregar a vida para certas pessoas como fiz, pois, no final, elas se voltarão contra você e o abandonarão. Por que a minha senhora não vem, ela mesma, desconfiar de mim? Talvez, ela é a pessoa certa para ir até à polícia! Não se preocupe, não ficarei aqui em sua casa, nem tão pouco presa injustamente pela polícia, ou julgada por um juiz que jamais ficará a favor de uma empregada sem nome. Não posso permanecer aqui, ao lado de um senhor que não confia em mim. Vocês são azarados, de alguma maneira. Acredito que há uma maldição pairando sobre vossas cabeças. Vou deixá-lo imediatamente. Sim! Eu também deixarei a pobre Ailsie. Deixarei todos vocês! Nada bom virá até você!

O Senhor Openshaw ficou totalmente surpreso com o discurso de Norah, a maior parte do qual foi completamente incompreensível para ele.

Antes que ele pudesse decidir o que dizer, ou o que fazer, Norah deixara a sala.

Não creio que ele tivesse realmente a intenção de chamar a polícia para prender a velha serva de sua esposa, uma vez que ele, por nenhum momento duvidara da perfeita honestidade dela. Todavia, ele tinha a intenção de obrigá-la a dizer quem era o homem, e nisto, ele ficou perplexo.

Ele estava, consequentemente, muito irritado, quando voltou para seu tio e tia em um estado de grande impaciência e perplexidade, e disse-lhes que não conseguira tirar nada da mulher, e que, certamente, algum homem estivera em sua casa na noite anterior, mas que ela se recusava a dizer quem era.

Nesse momento, sua esposa entrou, muito agitada, e perguntou o que acontecera com Norah, porque a mulher pegara as suas coisas e apressadamente fora embora da casa.

— Isto parece suspeito! — ponderou o Senhor Chadwick. — Não é a maneira pela qual uma pessoa honesta agiria!

O Senhor Openshaw manteve seu silêncio. Ele estava muito perturbado. Contudo, a Senhora Openshaw se virou contra o Senhor Chadwick, com uma ferocidade repentina que ninguém jamais vira nela.

— Você não conhece Norah, senhor! Ela se foi porque está profundamente ferida por ser suspeita de algo que ela jamais faria. Certamente, se eu tivesse tempo para falar com ela, ela teria me dito a verdade! — Alice torceu suas mãos.

— Devo confessar... — continuou o Senhor Chadwick a seu sobrinho, em voz baixa, ignorando Alice. — Não consigo te entender, sobrinho. Você costumava ser bom em suas palavras e sempre conseguia o que queria, porém, agora, quando há todos os motivos para desconfiança, você simplesmente não faz nada! Sua esposa é uma mulher muito boa, admito, mas ela pode ter sido enganada, assim como outras pessoas, suponho. Se você não mandar chamar a polícia, eu o farei!

— Muito bem! — respondeu o Senhor Openshaw, com semblante sério. — Não posso esclarecer os fatos sobre Norah. Ela não falará nada para tirar a suspeita que está caindo sobre seus ombros. Portanto, lavo minhas mãos sobre isso, já que tenho certeza que Norah é honesta, porque ela viveu muito tempo com minha esposa, e não desejo humilhar Norah!

— Então, ela será forçada a falar a verdade. Isso, em todo caso, será uma coisa boa!

— Muito bem! Muito bem! Estou muito aborrecido com este problema! — ele pegou a mão da esposa. — Venha, Alice, precisamos ver como estão os nossos filhos. Quando eles souberem sobre o afastamento de Norah, ficarão, com certeza, tristes! Tio, digo-lhe... — afirmou ele, voltando-se uma vez mais para o Senhor Chadwick, bruscamente, depois que seus olhos caíram sobre o rosto pálido de Alice, com lágrimas, e semblante apreensivo. — Afinal, não terei como mandar chamar a polícia! Comprarei para a minha tia um novo broche, duas vezes mais bonito e valioso, ainda hoje. Entretanto, não acusarei Norah. Sinto muito, tio!

Ele e sua esposa, deixaram a sala.

O Senhor Chadwick esperou silenciosamente o casal se afastar e então, disse a sua esposa:

— Mesmo que Tom tenha escolhido isso, não aceito, e estou indo silenciosamente pedir a ajuda de um detetive, mulher! Ninguém precisa saber sobre isso, fui claro?

Ele foi à estação de polícia e fez uma declaração sobre o caso. Ele ficou satisfeito com a impressão que as evidências contra Norah pareciam causar. Todos os homens concordaram em sua opinião, e medidas deveriam ser imediatamente tomadas para descobrir onde ela estava. Muito provavelmente, como eles sugeriram, ela fora imediatamente encontrar o tal homem, que aparentemente era seu amante.

Quando o Senhor Chadwick perguntou como eles a encontrariam, eles sorriram, balançaram a cabeça e falaram que havia meios misteriosos, mas infalíveis.

Ele retornou à casa de seu sobrinho com seu semblante sagaz, confiando que sua suspeita era certeira. Porém, ele foi recebido por sua esposa com um rosto arrependido.

— Oh! Meu marido, encontrei meu broche! Estava apenas grudado por seu alfinete na beira de minha seda marrom, que usei ontem, lembra? Tirei-o com afobação e ficou preso no tecido quando pendurei minha bata no armário. Agora mesmo, quando eu ia dobrá-la, lá estava o broche! Estou muito triste por duvidar da inocência da pobre Norah!

Seu marido murmurou algo muito parecido com:

— Maldita hora que te dei aquele broche! — ele arrancou seu chapéu e correu de volta para a delegacia, esperando chegar a tempo de impedir que a polícia procurasse por Norah, mas um detetive acabara de sair para fazer o serviço de busca.

Onde estava Norah?

Um pouco furiosa com a tensão do temível segredo. Ela mal dormira durante a noite, por pensar no que devia fazer.

Dentro do amedrontador estado de espírito, Norah chegara às perguntas de Ailsie, mostrando que ela vira o homem, como a criança inconsciente chamara o pai. Por fim, veio a suspeita de sua honestidade.

Ela estava pouco menos nervosa enquanto corria escada acima e vestia seu chapéu e o xale, deixando tudo o resto, mesmo sua bolsa, para trás, porque naquela casa, ela não queria mais ficar. Isso era tudo o que ela sabia ou era claro dentro de seus pensamentos. Ela não voltaria a ver as crianças, pois, temia que isso a enfraquecesse.

Seu medo aflorara ao pensar no retorno do Senhor Frank para reclamar sua esposa. Ela não sabia dizer que remédio havia para uma tristeza tão grande, e ela não queria ficar ali para testemunhar.

O desejo de fugir do evento que estava por vir, seria o motivo mais forte para sua partida, do que sua dor pelas suspeitas dirigidas contra ela, embora, este último fora o derradeiro golpe para o rumo que ela tomou.

Ela percorreu o caminho em passos acelerados, soluçando em um choramingar triste, porque não ousara fazer isso durante a noite passada, por medo de alguém na casa ouvir seu pranto.

Então, ela parou. Uma ideia lhe veio à mente, de que ela deixaria Londres e voltaria para a sua cidade natal, Liverpool.

Ela passou as mãos na altura de seus bolsos, em busca de sua bolsa, enquanto se aproximava da estação da Praça de Euston, com a intenção de voltar para Liverpool. Mas, um lamento a atingiu ao lembrar de que deixara a bolsa na casa de Alice.

Sua pobre cabeça doía, com seus olhos inchados por chorar durante um bom tempo. Ela parou para pensar.

De repente, o pensamento que lhe passou pela mente, de que deveria descobrir onde estava o pobre Senhor Frank.

Ela não fora gentil com ele na noite anterior, embora seu coração tivesse sangrado por ele desde então. Ela se lembrou sobre o que ele disse, quando ela perguntou por seu endereço, no momento em que ela o empurrava para fora da casa. Era um hotel em uma rua não muito distante da Praça Euston.

Lá ela foi, com uma intenção que não sabia, mas, talvez, apenas para aliviar sua consciência, dizendo-lhe o quanto ela tinha pena dele.

Em seu estado devastado, ela se sentia inapta para aconselhar, ajudar ou fazer qualquer outra coisa, entretanto, somente lamentar e chorar, ela sabia.

As pessoas da pousada disseram que a tal pessoa estivera lá, se hospedado no dia anterior, mas saíra logo após a chegada, deixando sua bagagem aos cuidados do hotel, mas não retornara.

Norah pediu licença para sentar-se e esperar o retorno do cavalheiro.

A dona da pousada, bastante segura no depósito da bagagem contra qualquer lesão provável, porque ela acreditava que talvez Norah desejasse roubar as bagagens do homem, mostrou para Norah uma sala, e trancou silenciosamente a porta do lado de fora. Norah estava totalmente cansada e adormeceu em um sono incontrolável.

Ela dormiu por algumas horas.

O detetive a seguiu, avistou Norah, antes dela entrar no local. Ele pediu para a dona do estabelecimento para detê-la por cerca de uma hora, sem dar nenhum motivo para tal coisa, além de mostrar sua autoridade, o que fez com que a dona fizesse o que ele pedira, sem pestanejar.

Ele voltou à delegacia para relatar os seus procedimentos. Ele podia levar Norah para a polícia, mas seu objetivo era rastrear o homem que cometera o roubo. Ele desejava usar Norah como um chamariz.

Então, ele ouviu falar da descoberta do broche, e consequentemente, não se importou em voltar.

Norah dormiu até a noite de verão começar a nascer. Quando acordou, alguém estava à porta e ela imaginou ser o Senhor Frank, rapidamente ela empurrou vertiginosamente seus cabelos grisalhos desalinhados que cairam sobre seus olhos, e ficou olhando para a porta.

Ao invés do Senhor Frank, quem surgiu na porta foram o Senhor Openshaw e um policial.

— Esta é Norah Kennedy! — disse o Senhor Openshaw.

— Oh! Senhor! — reclamou Norah. — Não toquei no broche, de fato, não toquei! Oh! Senhor, estou cansada em ser mal interpretada!

E quase desmaiando, ela caiu de joelhos, e para sua surpresa, o Senhor Openshaw a levantou muito ternamente.

Até mesmo o policial ajudou a deitá-la no sofá, e, ao desejo do Senhor Openshaw, ele foi buscar vinho e sanduíches, para que ela pudesse se alimentar, porque era visível seu cansaço e exaustão.

— Norah... — falou o Senhor Openshaw, em sua voz mais gentil, — O broche foi encontrado! Estava pendurado na bata da Senhora Chadwick. Peço desculpas! Peço perdão por tê-la incomodado com isso. Minha esposa está com o coração partido. Se alimente, Norah! Primeiro beba este copo de vinho. — disse ele, levantando a cabeça dela, ajudando Norah a segurar a taça.

Enquanto bebia, ela se lembrava de onde estava, e de quem estava esperando. De repente, ela empurrou o Senhor Openshaw, dizendo:

— Oh! Senhor, você deve ir! Se ele voltar, ele o matará!

— Pobre de mim! Norah! Não sei quem é este homem. Mas, alguém foi embora e nunca mais voltará. Alguém que a conhecia e que temo ser seu amor.

— Não o entendo, senhor! — assegurou Norah.

O jeito gentil e triste do Senhor Openshaw a desorientava ainda mais que suas palavras. O policial deixara a sala ao desejo do Senhor Openshaw, e os dois estavam sozinhos.

— Você sabe o que quero dizer... Quando digo que alguém se foi e nunca mais voltará. Quero dizer que ele está morto!

— Quem? — indagou Norah, tremendo.

— Um pobre homem foi encontrado no Tamisa nesta manhã, afogado!

— Ele se afogou? — perguntou Norah, tristemente.

— Só Deus sabe! — respondeu o Senhor Openshaw, no mesmo tom. — Seu nome e o endereço de nossa casa, foram encontrados em seu bolso, isso foi a única coisa que foi encontrada com ele. Lamento dizer, minha pobre Norah, mas você é obrigada a ir e identificá-lo!

— Para quê? — perguntou Norah.

— Para dizer quem é. Para que a polícia possa entender qual foi a razão do suicídio, se foi suicídio realmente. Não tenho dúvidas de que ele foi o homem que foi vê-la em nossa casa, ontem, à noite. É muito triste, eu sei! — ele fez pausas entre cada pequena palavra, de modo a tentar trazer os sentidos de Norah.

— Senhor Openshaw! — declarou, finalmente. — Tenho um segredo terrível para lhe contar! Entretanto, prometa que jamais falará para ninguém, e devemos escondê-lo para sempre! Pensei em fazer isso tudo sozinha, mas vejo que não posso. Pobre homem, sim! A pobre criatura morta e afogada é o Senhor Frank, o primeiro marido de minha senhora!

O Senhor Openshaw sentou-se, como se fora baleado. Ele não falou nenhuma palavra, mas, depois de um tempo, acenou para que Norah continuasse.

— Ele veio até mim na outra noite, quando... Deus seja louvado! Vocês estavam todos fora de casa, passeando em Richmond. Ele me perguntou se sua esposa estava morta ou viva. Fui muito bruta com ele, e pensei mais em vocês voltando para casa e o avistando, que em seu doloroso sofrimento. Afirmei que ela estava casada novamente, muito contente e feliz. Agora ele está morto!

— Deus me perdoe! — exclamou o Senhor Openshaw.

— Deus perdoe a todos nós! — disse Norah. — O pobre homem precisa de perdão, talvez, menos que qualquer um de nós. Ele estivera entre os naufragados, não sei o quê, e escrevera cartas que nunca chegaram à minha pobre senhora!

— Ele viu a sua filha?

— Ele a viu, sim! O levei para dar outro fim aos seus pensamentos revoltos, pois, eu acreditava que ele estava enlouquecendo diante de mim. Vim procurá-lo aqui, como prometi ontem. Oh! Senhor, deve ser ele o homem morto!

O Senhor Openshaw tocou a campainha. Norah ficou atordoada demais para perguntar o que ele fazia. Ele pediu para a dona da pousada, alguns materiais para escrever, então, rapidamente ele escreveu uma carta e depois falou para Norah:

— Escrevo para Alice, para dizer que estarei inevitavelmente ausente por alguns dias. Que te encontrei, e, que você está bem. Digo que envio para Alice, através de você, o meu amor, e que amanhã voltará para casa. Você deve ir comigo ao tribunal de polícia, porque você precisa identificar o corpo. Pagarei caro para manter nomes e detalhes fora dos papéis oficiais!

— Mas, aonde vai, senhor?

Ele esclareceu:

— Norah! Devo ir com você, e olhar o rosto do homem a quem tanto magoei, inconscientemente, é verdade, entretanto, sinto que o matei. Deitarei minha cabeça no túmulo, como se ele fosse meu único irmão. Imagino o quanto ele me odiou! Não posso ir para casa, para os braços de minha esposa até que tudo o que eu possa fazer por ele esteja feito, de fato. Depois que estes dias terminarem, não falaremos sobre isso. Sei que manterá este segredo terrível. — ele apertou a mão dela, e eles nunca mais falaram sobre o assunto.

Norah foi para casa de Alice no dia seguinte.

Nem uma palavra foi dita sobre a causa de sua partida abrupta um ou dois dias antes.

Alice, implicitamente obediente àqueles a quem amava tanto por natureza como por hábito, ficou totalmente calada sobre o assunto, apenas tratou Norah com o mais terno respeito, para compensar as suspeitas injustas do marido e dos tios.

Alice também não perguntou o motivo para o Senhor Openshaw ficar ausente durante a visita de seu tio e sua tia, pois, ele dissera que isso era inevitável.

Ele voltou quieto, e a partir daquele momento, curiosamente, ele mudou.

Mais atencioso e talvez menos ativo, com a mesma conduta, mas com novas e diferentes regras.

Para Alice, ele dificilmente seria mais gentil do que sempre foi, mas ele parecia olhar para a sua esposa como se ela fosse algo sagrado, sendo tratada com reverência, e com muito mais ternura.

Ele se lançou aos negócios e fez uma grande fortuna, e metade foi dividida com ela.

Anos depois destes eventos, poucos meses após a morte de sua mãe, Ailsie e seu pai, como ela sempre chamou o Senhor Openshaw, dirigiram-se para um cemitério, um pouco afastado da cidade, e ela foi levada até uma lápide por sua empregada, que voltou para a carruagem.

Na lápide, as iniciais “F.W.” e uma data sobre o nome. Isso era tudo que se podia saber sobre quem estava enterrado ali.

Junto à sepultura, o Senhor Openshaw contou-lhe a história, e pelo triste destino daquele pobre pai.

Ele nunca avistara o sorriso de sua filha, e agora ela derramava as suas lágrimas que ele jamais viu cair de seus olhos.

Fim.


Meios-irmãos

Minha mãe foi casada duas vezes.

Ela nunca falou sobre o seu primeiro marido, porque ela morreu quando eu era muito pequeno, e foi somente através de outras pessoas, que eu soube um pouco sobre ele.

Creio que ela tinha apenas dezessete anos, e ele, seus vinte e um anos quando se casaram.

Ele, então, alugou uma pequena fazenda em Cúmbria, em algum lugar perto da costa marítima, porque ele era, talvez, muito jovem e inexperiente para possuir terras e criar rebanho.

De qualquer forma, seus negócios não prosperaram, e ele caiu doente, seu estado de saúde piorou rapidamente, e morreu de tuberculose antes de completarem três anos como marido e mulher, deixando minha mãe sozinha e com o título de “jovem viúva de vinte anos”, com uma criança pequena, que mal sabia andar.

Se isso já não fosse um fardo grande para carregar, também pairava sobre as suas mãos, a casa, que devido ao contrato do aluguel, ela devia se manter naquela casa por mais quatro anos. Ela vendeu as suas coisas para pagar as dívidas mais urgentes, e sem dinheiro para comprar os suprimentos necessários para o pequeno consumo de cada dia, se desesperou.

Havia outra criança chegando também, e isso seria mais uma boca para alimentar. Triste e arrependida, creio, ela precisou pensar no que fazer naquele inverno sombrio, em sua morada solitária, e que a casa vizinha mais próxima, estava a quilômetros de distância.

Sua irmã veio para ajudar na fazenda, e elas planejaram o que fazer com cada centavo que pudessem levantar para recuperar a pouca dignidade que restava.

Não posso afirmar o que aconteceu com a minha irmãzinha, pois, eu jamais a vi, apenas soube que adoeceu e morreu. Como se o corpo da minha pobre mãe não estivesse cheio de tristeza o suficiente, apenas quinze dias antes do nascimento de Gregory, a menina adoeceu de escarlatina[12] e, em uma semana, ela morreu.

Acredito que minha mãe estava apenas atordoada com este último golpe. Minha tia me disse que ela não chorou. Tia Fanny ficaria grata se mamãe tivesse chorado.

Minha tia afirmou que minha mãe sentou, segurando a mão da pobre menina morta e ficou parada, olhando seu rosto bonito, pálido e morto, sem derramar sequer uma lágrima.

Tudo permaneceu igual, quando tiveram que levá-la embora para ser sepultada. Minha mãe apenas beijou a testa da criança, e eles a levaram.

Minha mãe sentou-se no banco, perto da janela, para ver o pequeno cortejo de pessoas com seus trajes pretos. Eram alguns vizinhos, minha tia e um primo distante, isso era o máximo de amigos que a minha mãe conseguia reunir. Eles seguiram o cortejo, caminhando no meio da neve, que caíra finamente sobre a terra, na noite anterior.

Quando minha tia voltou do funeral, ela encontrou minha mãe no mesmo lugar, de olhos secos, como sempre.

Deste modo, ela continuou até depois do nascimento de Gregory, e, de alguma forma, sua vinda ao mundo parecia afrouxar as lágrimas da minha mãe, e ela chorou dia e noite, até que minha tia e o outro observador se olharam com consternação.

No entanto, ela pediu-lhes que a deixassem em paz, e que não ficassem muito apreensivos, pois, cada gota de lágrima que ela derramava, aliviava a dor reprimida por tanto tempo.

Depois disso, ela parecia não pensar em nada além de seu novo bebezinho, ela mal parava para se lembrar de seu marido e sua filhinha que estava enterrada no cemitério atrás da igreja de Brigham.

Assim disse a tia Fanny, contudo, ela era uma grande faladora, e minha mãe era muito silenciosa por natureza, e penso que a tia Fanny se enganou em acreditar que minha mãe nunca pensou em seu marido e filha, só porque ela nunca falou sobre eles na frente dela.

A tia Fanny era mais velha que minha mãe e tinha uma maneira de tratá-la como se ela fosse, ainda uma criança, entretanto, ela era uma criatura amável e calorosa, que pensava mais no bem-estar de sua irmã que em seu próprio bem-estar.

As duas lutaram para conseguir um bom emprego para sobreviver e assim, depois de um tempo, elas conseguiram trabalho com grandes costureiros de Glasgow.

Entretanto, a visão de minha mãe começou a falhar. Não que ela fosse exatamente cega, pois, ela podia ver o suficiente para se orientar sobre a casa e administrar uma boa parte do trabalho doméstico, porém, ela não podia mais fazer costura fina e a consequência disso foi não poder mais ganhar dinheiro.

Por certo, ela chorou muito devido a isso, já que ela era apenas uma jovem mulher nesta época, e as pessoas falavam que ela era bonita e que não trabalhar, significava uma grande fatalidade.

Ela levava a sério essas palavras, infelizmente. E chorava toda vez que alguém mencionava que ela não podia sustentar a si mesma e o filho.

Minha tia Fanny persuadira minha mãe, de que ela tinha o suficiente para cuidar de seu chalé e de Gregory, contudo, minha mãe sabia que minha tia estava limitada financeiramente e que ela não tinha tanto para comer, e a comida era a mais simples possível para diminuir gastos.

Quanto a Gregory, ele não era um rapaz forte e não precisava de muita comida, uma vez que, ele se saciava com pouco. Para ele, um mísero pedaço de carne bastava, assim falava a tia Fanny, quando me contou toda a história.

Um dia, muito antes de sua morte, as irmãs estavam sentadas juntas, tia Fanny trabalhando na costura de um vestido, e minha mãe balançando Gregory para dormir.

Diante delas, surgiu o Senhor William Preston, que virou meu pai depois. Ele era considerado um velho solteirão.

Suponho que já tinha quarenta anos.

O Senhor Preston era um dos fazendeiros mais ricos da região, e conhecia bem o meu avô, minha mãe e minha tia, em seus dias mais prósperos.

Ele sentou-se perto das duas e começou a girar seu chapéu de maneira agradável. Minha tia Fanny conversava com ele, sempre tão falante, e enquanto ele ouvia, olhava para minha mãe.

Porém, ele falou muito pouco durante aquela visita, e em muitas outras depois. Ele demorou muito para tomar coragem em mencionar sobre qual era o verdadeiro propósito de suas visitas.

Seu propósito era claro desde a primeira vez que ele veio à casa de tia Fanny.

Em um domingo, contudo, minha tia Fanny não quis ir à igreja e cuidou da criança, e minha mãe foi sozinha.

Quando ela voltou, correu escada acima, sem passar pela cozinha para olhar Gregory ou falar qualquer palavra para sua irmã, e a tia Fanny ouviu seu choro, como se o seu coração estivesse partido.

Tia Fanny subiu e bateu inúmeras vezes na porta que estava trancada, até que, finalmente, conseguiu que ela a abrisse.

Minha mãe se jogou no pescoço de minha tia, e lhe disse que William Preston a pedira em casamento, e que ele prometera tomar conta de seu filho, e não deixaria faltar nada, nem comida, nem educação, e que ela aceitara porque não queria ser um fardo para a irmã.

A tia Fanny ficou bastante chocada com isso, uma vez que, como eu disse, ela pensara muitas vezes que minha mãe esquecera o seu primeiro marido rapidamente, e estava ali a prova positiva disso, já que, ela aceitou o pedido de casamento sem pestanejar, mesmo com motivos.

Além disso, como dizia a tia Fanny, minha mãe era uma mulher adequada para ser o par de um homem da idade de William Preston, porque Helen, minha mãe, embora viúva, não tocara o verão dos vinte e quatro anos, ainda.

No entanto, como afirmou a tia Fanny, eles não pediram conselhos sobre o casamento, e havia muito a ser dito do outro lado da questão.

Minha mãe não estava casando por amor, mas, porque necessitava. Sua visão não estava boa e ela não podia trabalhar. Portanto, sendo esposa de William Preston, ela não precisaria fazer nada, além de cuidar do filho e do marido. Se ela escolhesse sentar-se com as mãos diante dela, olhando para o vazio, assim ela podia fazer, sem preocupações sobre ter comida no dia seguinte.

Um dos grandes fatores da escolha prematura estava no menino, que era uma grande carga para uma mãe viúva sustentar, e agora havia um homem decente e honrado para guiar os passos do menino.

De repente, a tia Fanny parecia ter uma visão mais ampla e brilhante sobre o casamento, ao contrário de minha mãe, que raramente ergueu os olhos para o alto para encarar alguém e jamais sorriu, depois do dia que prometeu para William Preston ser a sua esposa.

Por mais que ela tivesse amado Gregory antes, ela parecia amá-lo mais.

Ela estava continuamente conversando com ele, quando eles estavam sozinhos, apesar de que ele fosse muito jovem para entender as palavras de lamento dela, ou dar-lhe algum conforto, exceto por suas carícias.

Finalmente William Preston e ela se casaram, e ela foi ser dona de uma casa bem abastecida, não acima de meia hora de caminhada de onde morava a tia Fanny. Creio que ela fez tudo o que podia para agradar ao meu pai.

“Uma esposa muito obediente!” palavras dele que ouvi.

Mas ela não o amava, e ele logo descobriu isso.

Ela amava Gregory, mas não amava o esposo e isso o machucava.

Talvez, o amor chegasse com o tempo, se meu pai fosse paciente o bastante para esperar, entretanto, ele só fez azedar o relacionamento deles devido ao ciúme, quando ele observava os olhos dela brilhando e sua cor corar suas bochechas, ao sorrir para aquela criança pequena.

Ele pensava ser injusto, porque ele dava tanto para a minha mãe, e ela em troca, retribuía com palavras gentis, mas frias como o gelo.

Ele conseguiu provocá-la, mudando para pior, o seu comportamento, como se isso trouxesse amor para a vida dos dois, e para piorar, ele tomou uma antipatia por Gregory.

Meu pai tinha tanta inveja do amor entre mãe e filho, que sempre jorrava como uma fonte de água, toda a sua frustação quando o menino se aproximava dele.

Meu pai queria que ela o amasse mais, e talvez isso fosse bom, entretanto, ele queria que ela amasse menos seu filho, imaginando que, para ser amado por minha mãe, ela deveria diminuir a afeição pelo pequeno menino, e isso era um desejo ruim, péssimo.

Um dia, ele cedeu um pouco o seu temperamento hostil, e mesmo assim não cansava de reclamar do comportamento travesso de Gregory, comportamento este, natural para uma criança da sua idade.

Minha mãe arranjava alguma desculpa para protegê-lo, após as traquinagens e meu pai detestava cada dia mais essa atitude.

Meu pai disse ser difícil ter que manter o filho de outro homem e isso magoou profundamente a minha mãe e assim, de pouco a pouco, eles se afastaram cada vez mais, e depois de uma discussão, minha mãe foi para o quarto, e nasci naquele mesmo dia.

Meu pai estava feliz e orgulhoso, contudo, arrependido. Feliz e orgulhoso por ter um filho, e arrependido pela discussão, e por pensar que foram suas palavras raivosas que provocaram o parto antes da hora certa.

Contudo, ele era um homem que gostava mais de estar zangado que arrependido, e ele logo se apressou em colocar a culpa em Gregory, e lhe depositar um ressentimento adicional, acreditando que ele fora responsável realmente por meu nascimento prematuro.

Se isso não bastasse, outro ressentimento contra Gregory surgiu em pouco tempo. Minha mãe começou a ficar doente no dia seguinte ao meu nascimento.

Meu pai foi até Carlisle procurar médicos e desejava tirar o sangue de seu coração para salvá-la, se isso fosse possível, no entanto, não foi possível, realmente.

Minha tia Fanny costumava dizer, às vezes, que pensava que Helen não queria mais viver, por isso, simplesmente se deixava morrer, pouco a pouco, sem tentar se apoderar da vida. No entanto, quando eu a questionava sobre se a minha mãe negligenciou a própria saúde, tia Fanny afirmava que ela fazia tudo o que os médicos lhe pediam, com a mesma paciência inflexível com que ela agira durante a vida.

Um dos últimos pedidos dela foi que Gregory ficasse deitado na cama ao meu lado, e então, ela o fez pegar a minha mãozinha.

Seu marido entrou, enquanto ela nos olhava de mãozinhas dadas, e, quando meu pai se inclinou suavemente sobre ela, para perguntar-lhe como ela se sentia, e ela permanecia olhando para nós dois, seus filhos, meios-irmãos, pequenos. Seus olhos tinham uma espécie de gentileza triste de um adeus que estava chegando lentamente sobre as suas pálpebras, ela olhou para o rosto dele e sorriu e este, talvez, foi seu primeiro sorriso para ele.

“Um sorriso tão doce!” assim tia Fanny afirmou.

Em uma hora após isso, minha mãe morreu.

A tia Fanny veio morar conosco. Era a melhor, ou a única coisa que se podia fazer.

Meu pai ficaria feliz em voltar ao seu velho modo de vida de solteiro, porém, o que ele poderia fazer com dois filhos pequenos?

Ele precisava de uma mulher para cuidar dele, e, quem se encaixava melhor que a irmã de sua esposa falecida?

Foi assim que a tia Fanny teve a responsabilidade sobre mim, desde o meu nascimento. Ela estava sempre ao meu lado, noite e dia, cuidando de mim e de meu pai, quase tão inquieto quanto ela.

Suas propriedades eram herdadas de pai para filho, por mais de trezentos anos, e ele cuidara de mim, para ser o próximo herdeiro. Mas, ele precisava de algo para amar, além das propriedades e da pessoa que herdaria tudo, após seus olhos fecharem para sempre.

Meu pai era um homem que a maioria das pessoas chama de “homem severo”. Contudo, ele me cuidou, como jamais cuidou de alguém, porque ele tentou fazer isso com mamãe, mas sabemos como isso terminou. Seu ciúme destruiu o pouco de afetividade que existia entre os dois.

Eu o amava com todo o meu coração. Eu, de fato, amava todos à minha volta, pois, todos eram amáveis comigo.

Depois de um tempo, superei minha saúde frágil dos primeiros anos de vida, cresci e me tornei um garoto doce, de aparência forte, que não passava despercebido por onde caminhasse.

Em casa, eu era o queridinho de minha tia, a ternamente amado por meu pai. Eu era o pequeno boneco de porcelana, o menino trabalhador da fazenda, com um instinto de “não nobreza”, assumindo uma espécie de autoridade que detestava o luxo, que se combinava, estranhamente, com a minha idade.

A diferença de idade entre mim e Gregory era de três anos. A tia Fanny sempre foi gentil com ele, no entanto, ela não pensava muito nele, porque ela caíra no péssimo hábito de se importar somente comigo, pelo fato dela me adotar desde bebezinho.

Meu pai nunca superou seu desgosto rancoroso para com seu enteado, que lutara tão inocentemente com ele pela posse do coração de minha mãe.

Desconfio, também, que meu pai sempre o considerou como a causa da morte de minha mãe e meu nascimento precoce, e por mais irracional que isso possa parecer, acredito que meu pai preferiu abraçar este sentimento raivoso como um dever em desprezar o meu irmão, e ele não se esforçou para reprimi-lo.

Se pudesse, meu pai o ofereceria em troca de qualquer coisa que o dinheiro pudesse comprar. Isso estava, por assim dizer, no desejo dele, quando ele ainda estava casado com minha mãe.

Gregory, por sua vez, era um homem rude e desajeitado, que discutia com qualquer um que fosse, bastava se intrometer nos seus assuntos.

Não raro, muitas palavras duras e censuras afiadas ele recebeu das pessoas, sobre seu trabalho na fazenda, que mal podiam esperar até que meu pai voltasse para casa para que pudessem desqualificar o enteado dele.

Tenho vergonha, meu coração está dolorido só em pensar como segui os passos da família e desprezei meu pobre meio-irmão órfão também.

Julgo que nunca o maltratei ou fui intencionalmente mal-educado com ele. Mas, o hábito de ser considerado o centro de todas as coisas naquela casa e, ser tratado como algo incomum e superior, me tornou insolente, e eu exigia mais do que Gregory estava sempre disposto a conceder.

Admito que, irritado, algumas vezes, repeti as palavras depreciativas que ouvira os outros usarem em relação a ele, sem entender totalmente o seu significado.

Não posso afirmar se ele se magoou.

Receio que sim, ele ficou magoado, por certo.

Ele costumava ficar calado, quieto em seu canto e, meu pai pensava assim:

“Estúpido!”

A tia Fanny costumava chamá-lo assim também, porque todos diziam que ele era estúpido e monótono. Essa estupidez e monotonia cresciam sobre ele.

Ele sentava-se em frente à mesa sem dizer uma palavra, e, às vezes, isso podia durar horas.

Meu pai lhe pedia para se levantar e voltar ao trabalho, já que não tinha nada para compartilhar de bom. Ele se levantava silenciosamente e saía calado.

Quando íamos à escola, era a mesma coisa. Ele nunca se lembrava de suas lições. O professor da escola se cansava de repreender e açoitar suas mãos com aquela varinha maldita, e finalmente aconselhava meu pai a levá-lo embora, para que pudesse o colocar em algum trabalho de fazenda, que não estivesse acima de sua compreensão.

Julgo que ele se tornara mais sombrio e estúpido do que nunca, depois disso. Mesmo assim, ele não era rebelde, ao contrário, Gregory era paciente e de boa índole, e tentava fazer um gesto de bondade, mesmo para aqueles que o machucavam diariamente.

Muitas vezes, suas tentativas de bondade terminavam em alguma maldade para as pessoas que ele tentava servir, devido aos seus modos embaraçosos e desajeitados.

Suponho que eu era um garoto inteligente naquela época, de alguma forma, e sempre recebi muitos elogios, e também, era considerado o melhor aluno da escola.

O professor disse que eu podia aprender qualquer coisa que escolhesse, mas meu pai, que não tinha grande aprendizado, viu pouco uso dessas qualidades, e falou ser melhor trabalhar com o rebanho e ajudar na fazenda.

Para ele, livros não serviam para muita coisa.

Gregory foi transformado em uma espécie de pastor, recebendo seu treinamento sob o olhar criterioso do velho Adam, que estava quase largando as suas funções, devido à idade.

Penso que o velho Adam foi a primeira pessoa que teve uma boa opinião sobre Gregory. Ele se manteve firme ao dizer que meu irmão tinha boas qualidades, mesmo que ele não soubesse como tirá-las para fora de sua mente, e pronunciou que nunca viu um rapaz como ele nas colinas.

A ideia de meu pai era trazer Adam para falar das falhas e defeitos de Gregory, para humilhá-lo, e ao invés disso, o velho Adam o elogiava duas vezes mais, quando ele percebia qual era o objeto de meu pai.

Em um inverno, quando eu tinha cerca de dezesseis anos e Gregory dezenove, fui convocado por meu pai para levar um recado, o lugar ficava cerca de sete milhas de distância pela estrada, mas, apenas quatro milhas, se cortasse o caminho pelas colinas.

Ele me pediu para voltar pela estrada, qualquer que fosse o caminho que eu tomasse, porque as noites cresciam cedo diante dos nossos olhos, e muitas vezes, estavam enevoadas.

Além disso, o velho Adam, já paralítico e acamado, previu, com sua velha sabedoria de pastoreio, uma nevasca naquela noite.

Depois que cheguei ao fim da minha viagem, e fizera o que meu pai pedira, o que demorou cerca de uma hora, pensei sobre o que meu pai solicitara e então, tomei a decisão, enquanto estava fazendo o caminho de volta:

“Voltarei pelas colinas e chegarei mais cedo em casa!” pensei.

A decisão surgiu pelo tempo que perdi, enquanto fiquei na cidade procurando o endereço para entregar o recado e, por perceber que a demora me custaria algum tempo andando nas primeiras sombras da noite quando elas começassem a cair.

Parecia escuro e sombrio o suficiente para me amedrontar, mas tudo estava tão calmo, que pensei que haveria tempo para voltar para casa, antes que a neve caísse.

Desejando voltar rapidamente para casa, coloquei meus passos em um ritmo acelerado. Todavia, a noite chegou mais rápida que meus pés.

O caminho certo, aquele que meu pai sugerira, era suficientemente claro durante o dia, embora em alguns pontos, dois ou três, a escuridão tomasse conta, pelos pesados galhos de árvores abraçando a trilha, mas, quando havia uma boa luz, o viajante era guiado pela visão de objetos distantes, uma ponta de rocha, uma ladeira, que agora eram bastante invisíveis para mim.

Tomei coragem e continuei no caminho que julgava certo. No entanto, me perdi e segui sem rumo para um pântano, onde a solidão parecia dolorosa e intensa, como se nenhum homem se atrevesse a colocar seus pés ali e quebrar o silêncio.

Tentei gritar, com a mais tênue esperança possível da voz ecoar através do vento e chegar até alguém para me socorrer, entretanto, minha voz veio rouca e curta. Isso me desanimou, minha voz era um sutil intruso naquela extensão silenciosa de escuridão sombria.

De repente, o ar se encheu de nevoeiro, meu rosto e minhas mãos ficaram molhados por uma chuva fina e gelada.

Era a neve se aproximando.

Quanto mais eu tentava entender para que direção tomar, mais me perdia, pois, nem conseguia raciocinar e lembrar a direção de onde eu viera.

Sendo assim, eu não podia sequer refazer meus passos até encontrar a estrada. Só conseguia ver escuridão para qualquer lado que olhasse e somente o vento eu podia sentir, além do medo apavorante que tomava conta das minhas entranhas.

O solo pantanoso tremia abaixo dos meus pés se eu permanecesse por muito tempo em um lugar, e mesmo assim, não ousei ir longe, eu dava pequenos passos apenas para não afundar na lama.

Eu estava a ponto de chorar como uma criança apavorada, deixando de lado minha soberba adolescente.

Chorar naquele momento era meu único consolo. Para me salvar de derramar mais lágrimas, gritei desesperado, com gritos brutais e terríveis, mas tudo era em vão.

Fiquei aterrorizado ao fazer uma pausa para ouvir se alguém vinha em minha direção para me socorrer, no entanto, nenhum som de resposta veio até mim, a não ser os ecos insensíveis da minha própria voz.

Como estava previsto pelo velho Adam, a neve silenciosa e impiedosa caiu e ligeiramente ficou mais espessa e rápida!

Meus dedos estavam ficando dormentes e meu queixo tremeu. Tentei me movimentar para me aquecer, mas não ousei caminhar mais de cinco passos, por medo dos precipícios, que eu sabia, abundavam em certos lugares das colinas.

De vez em quando, eu ficava parado e gritava novamente, porém, a minha voz ficava sufocada pelas lágrimas, enquanto pensava na morte desolada e vergonhosa que estava se aproximando de mim.

Pensava também sobre meu pai, Gregory e tia Fanny, em casa, sentados ao redor do fogo quente, vermelho e brilhante, conversando sobre a minha demora, rindo, sem preocupação.

Oh! Como meu pobre pai choraria por mim ao saber que morri congelado, e sem o obedecer! Ele ficaria furioso, por certo. Seria um golpe terrível para ele, no dia seguinte, me encontrar morto na colina, sendo que ele me proibiu seguir por este trajeto.

A tia Fanny também choraria, pois, todos os seus cuidados meticulosos para comigo se resumiram a uma morte assim?

Comecei a rever minha vida em um estranho sonho vívido, no qual as várias cenas de meus poucos anos de infância passaram diante de mim como visões.

Em uma pancada de agonia, causada por tal lembrança de minha curta vida, reuni minhas forças e clamei mais uma vez, um longo e desesperado grito de lamento. Eu não tinha esperança de obter qualquer resposta, salvo pelos ecos ao redor, entorpecidos pela neve.

Para a minha surpresa e alívio, ouvi um grito de resposta, quase tão longo e apavorado quanto o meu.

Duvidei da veracidade daquela voz, porque pareceu pouco humana, e pensei ser a voz de alguns dos espíritos zombeteiros das colinas, sobre os quais ouvira tantas histórias.

Meu coração começou a bater rápido e alto, de repente. Não pude responder por um minuto ou dois. Quase imaginei que perdera o poder de expressão. Neste momento, um cão ladrava.

Era a cachorrinha do meu irmão, uma collie, chamada Lassie, que ladrava?

“Gregory?” pensei.

Aquele rapaz bruto, de cara pálida, que todos consideravam, inclusive eu, bastante incapaz, estava me procurando? O mesmo rapaz que meu pai chutava toda vez que o encarava?

Em tais ocasiões, quando brigar com meu pai não traria nada de bom para nenhum dos dois, Gregory assoviava para Lassie e saía. Sentava-se com ela em algum lugar longe das vistas do meu pai.

Meu pai tivera uma ou duas vezes vergonha de si, quando a pobre collie uivara com repentina dor, porque ficara perto do fogo da cozinha. Meu pai afirmava que Gregory não tinha noção de como treinar um cão, e ele podia arruinar qualquer collie com a sua maneira estúpida de permitir que a cachorrinha entrasse na cozinha.

Gregory jamais respondeu os insultos, bem, ele quase não respondia nada, nem mesmo pareceria ouvir, apenas continuava parecendo ausente e mal-humorado.

Levantei minha voz e gritei:

— Lassie! Lassie! Pelo amor de Deus, Lassie!

Mais um momento passou, e a grande Lassie de cara branca estava baixa e gritando de alegria em torno de meus pés, olhando, no entanto, para cima, fitando meu rosto com seus olhos inteligentes e apreensivos, como se temesse que eu pudesse cumprimentá-la com um golpe, como eu já fizera muitas vezes antes. Contudo, eu chorava de alegria, enquanto me abaixava e a acariciava.

Minha mente estava compartilhando a fraqueza do meu corpo, e eu não podia raciocinar, mas sabia que a ajuda estava à mão.

Uma figura cinzenta saía cada vez mais distintamente da escuridão, espessa e apertada. Era Gregory, envolto em seu manto.

— Oh! Gregory! — disse eu, e caí sobre seu pescoço, incapaz de dizer outra palavra.

Ele nunca falou muito, então, não esperei que falasse algo produtivo naquele momento.

Para a minha surpresa, ele falou que devíamos caminhar para casa, o mais rápido possível, já que, se não nos movêssemos rápido, certamente congelaríamos até a morte.

— Você sabe o caminho de casa? — perguntei, quando percebi que ele olhava para o seu redor, pensativo.

— Pensava que sim, quando parti, mas agora estou duvidoso. A neve me cega, e temo que tenha perdido a marcha correta para casa!

Ele tinha a essência de um bom pastor.

Mergulhávamos, a cada passo que dávamos, na neve, mas seguimos nossos passos, perto um do outro. Andamos lentamente, para não cairmos em nenhuma das rochas íngremes.

Lassie nos guiava, e Gregory seguia confiando no seu instinto canino. Estava muito escuro para vermos o que estava em nossa frente.

Meus movimentos lentos impediram meu sangue de congelar. Cada osso e fibra em meu corpo parecia doer primeiro, depois inchar, e entorpecer com o frio intenso.

Meu irmão suportava o frio melhor que eu, por estar acostumado com as colinas.

Ele não falou, a não ser para chamar Lassie.

Esforcei-me para ser corajoso e não me queixar, mas infelizmente, senti o cansaço roubar-me as forças.

— Não posso ir mais longe! — reclamei, em tom sonolento.

Lembro-me que, de repente, me tornei obstinado a descansar, mesmo que fosse só por cinco minutos. Se a morte era a consequência, não me importava, eu precisava descansar!

Gregory ficou parado. Suponho que ele pensou que eu era fraco.

— Não adianta! — falou, como se fosse para si. — Não estamos mais perto de casa do que estávamos quando começamos a caminhar, tanto quanto posso dizer! Nossa única chance está em Lassie! — ele pegou o manto que ele usava e me deu. — Aqui! Se enrole no manto, garoto! Deite neste lado da pedra. Me deitarei ao teu lado, e me esforçarei para manter você aquecido.

Duvidava de sua gentileza, mas ao repetir a pergunta, tirei meu lenço de bolso, com a costura tão primorosa que a tia Fanny embainhara para mim. Gregory o pegou sem falar nada, e o amarrou ao redor do pescoço de Lassie.

— Lassie, encontre a casa! Traga ajuda!

No meu entorpecimento sonolento, senti ser ternamente coberto pelo meu irmão, aquele rapaz que eu não sabia muita coisa sobre, nem me importava. Estava entorpecido demais para pensar e raciocinar sobre o meu egoísmo.

Fiquei contente quando ele deixou de se preocupar comigo e se deitou também. Ele estava cansado, só não queria admitir. Peguei a mão dele. Era a minha maneira singela de agradecer.

— Você não pode se lembrar, garoto! Mas, quando mamãe morreu, estávamos de mãos dadas, deitados ao lado dela. Ela pôs a sua pequena mão na minha, e a segurei. Penso que ela nos vê agora e, talvez ela acredite que logo estaremos com ela! De qualquer modo, seja feita a vontade de Deus!

— Caro Gregory... — murmurei, e me aproximei mais dele para me aquecer.

Ele estava falando ainda, e novamente, sobre a nossa mãe, quando adormeci.

Em um instante depois, ou assim parecia, havia muitas vozes sobre mim. Rostos de homens pairando ao meu redor, o doce luxo do calor estava invadindo cada parte de mim. Eu estava em minha pequena cama, finalmente em casa.

Sou grato por dizer que a minha primeira palavra após acordar foi:

— Gregory?

Um olhar passou diante das pessoas a minha volta, o velho rosto austero de meu pai lutou em vão para manter sua aridez, porque a sua boca tremia, seus olhos enchiam-se lentamente de lágrimas não desfeitas.

— Eu teria doado a metade das minhas terras para a Igreja! Oh, Deus! Teria ajoelhado diante de Deus, e lhe pediria que perdoasse minha dureza de coração!

Não ouvi mais nada. Um turbilhão veio através do meu cérebro, me pegando de volta à morte.

Cheguei lentamente à minha consciência, semanas depois.

O cabelo de meu pai estava branco quando me recuperei, e suas mãos tremeram quando ele olhou no meu rosto.

Não falamos mais de Gregory. Não podíamos falar dele, mas ele estava estranhamente em nossos pensamentos.

Lassie vinha e ia sem uma palavra de culpa.

Meu pai tentava afagá-la, mas ela se encolhia, e ele, como se repreendido pela pobre cachorrinha, suspirava, ficando em silêncio e abstraído por um tempo.

A tia Fanny, sempre faladora, contou-me tudo.

Como, naquela noite fatal, meu pai, apavorado por minha ausência prolongada, e provavelmente mais ansioso que ele se importava em mostrar, fora feroz e arrogante, mesmo além de seu costume, para com Gregory.

Após discutirem sobre as qualidades ou a falta delas em Gregory, meu irmão se levantou e assoviou para Lassie, que estava agachada debaixo de sua cadeira por medo de um chute ou golpe de meu pai. Ele saiu sem falar nada, como de costume.

Algum tempo antes, houve alguma conversa entre meu pai e minha tia a respeito do meu retorno, e quando a tia Fanny me contou tudo isso, ela disse imaginar que Gregory, por certo, percebera a tempestade que estava por vir, e saiu silenciosamente para me encontrar.

Três horas depois, quando todos da fazenda estavam postos para começar as buscas, sem saber aonde ir, Lassie chegou a nossa casa, com meu lenço amarrado ao pescoço.

Eles entenderam o recado, e todos seguiram a cachorrinha. Alguns levaram cobertores para me aquecer quando fosse salvo.

Deitei-me em um sono frio, encostado da rocha para a qual Lassie os guiou. Eu estava coberto com o manto de meu irmão, e seu grosso casaco de pastor estava cuidadosamente enrolado nos meus pés. Ele estava em sua camisa de mangas longas, com seu braço jogado sobre mim, um sorriso silencioso estava sobre seu rosto parado e frio. Ele raramente sorrira.

As últimas palavras, de meu pai, foram:

— Deus me perdoe por toda a minha dureza de coração para com o filho sem pai!

O que marcou a profundidade de seu sentimento de arrependimento, talvez, mais que tudo, considerando o amor apaixonado que ele deu à minha mãe, foi o seguinte:

Encontramos um papel de orientação após a sua morte, no qual ele desejava que pudesse deitar-se aos pés da sepultura, no qual, por seu desejo, o pobre Gregory fora deitado com NOSSA MÃE.

Fim.


Ao Redor do Sofá

Há muito tempo fui colocada por meus pais sob os cuidados e tratamento de um médico chamado Senhor Dawson, um cirurgião em Edimburgo, que obtivera uma boa reputação por curar uma classe particular de doenças.

Fui enviada com minha governanta para uma pousada perto de sua casa, na Cidade Velha. Eu deveria combinar as lições dos excelentes professores de Edimburgo, com os remédios e exercícios necessários para a minha recuperação.

A princípio, era um tanto monótono deixar meus irmãos, desistir da alegre vida ao ar livre e nossa casa de campo, por alojamentos tristes, apenas com a pobre Senhorita Duncan, minha governanta e, trocar as brincadeiras no jardim e correr pelos campos, por caminhadas rígidas nas ruas, cujo decoro me obrigou a amarrar bem os cordões do chapéu, e colocar meu xale para proteger a minha integridade.

As noites eram piores que os dias.

Era outono e, claro, as noites cresciam, cada dia mais próximas do inverno. Eram suficientemente longas, tenho certeza, quando nos instalamos naquela pousada cinzenta e draconiana[13] pela primeira vez.

Meus pais não eram ricos, e as despesas médicas e os cuidados do Senhor Dawson eram consideráveis, portanto, um grande ponto em nossa busca por um alojamento era a economia no pagamento do aluguel.

Meu pai, que era um cavalheiro exageradamente verdadeiro para sentir falsa vergonha, mencionara para o Senhor Dawson, a necessidade de bom preço, na busca pelo alojamento e ele indicou a pousada na Rua Cromer, número 6, na qual estávamos finalmente instaladas.

A casa pertencia a um homem idoso, que alugava quartos para jovens que se preparavam para a Universidade. Ele conhecia o Senhor Dawson desta ligação: aluguéis de quarto e Universidade.

Entretanto, seus alunos deixaram a casa, e quando fomos nos alojar, imagino que seu principal apoio resultava de algumas aulas ocasionais que ele oferecia.

Os quartos tinham uma pequena sala que dava acesso ao quarto menor com a cama. Ele tinha dois filhos, a filha era sua governanta e o filho, nunca o vimos.

Não havia alunos hospedados, somente uma pequena donzela escocesa, trabalhadora e honesta, de rosto quadrado, pele morena, arrumada e simples, que poderia ter qualquer idade entre dezoito e quarenta anos.

Olhando para a casa, talvez houvesse muito a admirar em sua tranquila resistência à pobreza, porém, nesta época, isso afrontou muitos dos meus gostos, uma vez que eu não conseguia encontrar naquela casa, as graciosas flores frescas do campo, cortinas de musselina[14] brancas limpas, chitas[15] bem brilhantes, porque tudo isso custava dinheiro.

A adoção de tapetes cor de lama, horríveis, para constar, era a única coisa com algum valor naquela sala. Não havia um centavo gasto em mera elegância, no entanto, havia tudo que era considerado necessário para o conforto: um sofá duro, escorregadio e preto como a crina de um cavalo, sem qualquer lugar para descanso de braço, um velho piano, servindo como aparador, lareira estreita, que dificilmente segurava um punhado de carvão, que possivelmente não poderia ser agitado facilmente.

Contudo, havia dois males, piores que a frieza e a falta de elegância. A localização dos quartos!

Um, tinha a chave de trinco, que nos permitia manter certa privacidade se saíssemos para uma caminhada, e podíamos subir as escadas sem encontrar nenhum rosto ou ouvir uma voz humana na casa, aparentemente deserta.

O outro, que quase parecia neutralizar o primeiro, era o perigo a qual estávamos sempre expostas ao sair, porque o velho Senhor Mackenzie, manhoso, avarento e inteligente, nos acenava de seu quarto, perto da mão esquerda da porta, com alguma civilidade, que aprendemos a desconfiar que fosse um mero pretexto para extorquir mais dinheiro.

Ele nos ofertava algum livro de sua biblioteca, e isso era uma grande tentação, visto que podíamos avistar a biblioteca, uma sala forrada de prateleiras, e assim que ele percebia estarmos a ponto de ceder, ele mencionava a palavra “consideração”.

Era o termo que ele usava para pedir o pagamento pelo empréstimo do livro e isso nos fazia recuar repentinamente.

Outra vez, ele saiu de sua toca para nos oferecer cartões, para distribuir entre nossos conhecidos, e se comprometeu a ensinar a escrita refinada, se comprássemos os benditos cartões, mas eu preferia ser a mulher mais ignorante que já viveu, a ter aulas com aquela velha raposa de calças curtas. Quando recusamos as suas propostas, ele nos deixou e voltou para o seu quarto.

Uma vez, quando esquecemos nossa chave e sem ela, não podíamos abrir o único quarto que podia ser trancado a chaves, tocamos em vão, por muitas vezes, à porta do velho rabugento, e lá estava ele, parado o tempo todo na janela à direita, olhando para fora dela, em um estado de espírito ausente e filosófico, do qual nenhum sinal e gesto nosso o despertaria.

As mulheres da casa eram melhores, e mais respeitáveis, embora, mesmo sobre elas a pobreza tivesse colocado sua pesada mão esquerda, em vez de sua bênção direita.

A Senhorita Mackenzie nos dava quinhões de comida, o mínimo decentemente possível, mesmo pagando por isso de maneira adequada, que seja observado. E se, por uma fatalidade, tivéssemos menos apetite em um dia que no outro, nossas refeições seguidas eram passadas para um padrão menor, até que a Senhorita Duncan se aventurasse a remontar nossos pratos dignamente.

A resistente criada era escrupulosamente honesta, e parecia descontente, mas dificilmente reclamava.

Não acredito que a pobre emprega alguma vez tenha recebido salário dos Mackenzie.

Ah! A querida Senhora Dawson! A menção dela vem à minha mente como o brilho do sol em nossa pequena sala de visitas, como o doce perfume de violetas que saúdam o triste transeunte entre os bosques.

A Senhora Dawson não era a esposa do Senhor Dawson, pois, ele era solteiro. Ela era sua irmã, uma solteirona que não podia andar.

Depois de estarmos cerca de quinze dias em Edimburgo, o Senhor Dawson disse, de uma maneira meio duvidosa para a Senhorita Duncan:

— Minha irmã pede para dizer que toda segunda-feira, à noite, alguns amigos entram em minha casa para sentar-se ao redor do sofá por uma hora ou mais. Se você e a Senhorita Greatorex quiserem nos fazer uma visita, ela ficaria muito feliz em vê-las. A qualquer hora, das sete às oito da noite, e devo acrescentar minhas injunções, tanto para o bem dela, quanto para o de minha pequena paciente, que deve retornar para a pousada às nove horas. Afinal de contas, não sei se você se importará em ir, mas Margaret me pediu que lhe pedisse. — e ele olhou com uma desconfiança aguda para nós.

Se qualquer uma de nós sentisse a menor relutância, por mais bem disfarçada que fosse sobre aceitar este convite, estou certa que ele teria imediatamente detectado nossos sentimentos e retirado o que dissera, porque ele era muito cauteloso em tudo o que dizia respeito à apreciação desta amada irmã.

Entretanto, se fora para passar uma noite no dentista, creio que eu acolheria o convite de qualquer maneira, porque eu estava cansada da monotonia das noites na pousada, e quanto à Senhorita Duncan, um convite para o chá foi uma honraria, já que era uma honra ser aceita com toda a grandeza e gratidão.

Assim, os olhares aguçados do Senhor Dawson sobre seus óculos não detectaram nada, além do prazer mais verdadeiro, e ele continuou.

— Você vai pensar que o encontro é monótono, ouso dizer. Apenas alguns velhos como eu, uma ou duas boas e carinhosas jovens mulheres. Nunca sei quem virá, realmente. Margaret é obrigada a deitar-se em uma sala meio iluminada, porque seus olhos são fracos e ela sente dores ao avistar a claridade. Oh! Ouso dizer também que não agradeça pelo convite, até que você tenha experimentado, e então, se você gostar, seu melhor agradecimento será voltar todas as segundas-feiras, das sete às nove, você sabe... Adeus! Adeus!

Até então, eu nunca fora a uma festa de pessoas adultas. Parecia adorável sair numa segunda-feira, à noite.

Vestida com um novo vestido de linho e musselina, feito até a minha garganta, um vestido que eu julgava o auge da grandeza terrena e da elegância, feito por nossa velha enfermeira, nas horas de folga em nossa casa, na contemplação da possibilidade de existir algum evento durante a minha estadia em Edimburgo, entretanto, me parecera um manto demasiado lindo e angelical para ser usado em lugares que não fossem o céu.

Fui com a Senhorita Duncan à casa do Senhor Dawson na hora marcada.

Entramos por uma pequena sala, havia dois degraus que separavam a entrada da tal sala, talvez, devesse chamá-la de antessala, visto como a casa era antiquada, majestosa e imponente.

Avistei a grande sala quadrada, e no centro, o sofá da Senhorita Dawson. Um pouco atrás dela, foi colocada uma mesa com um grande candelabro, com sete ou seria oito velas? Essa era toda a luz da sala, que pareceu muito vasta perante nosso apartamento de pechincha dos Mackenzie.

A Senhorita Dawson tinha seus sessenta anos, e ainda assim, seu rosto parecia muito brando, liso e infantil. Seu cabelo era bastante grisalho, quase branco, como uma nevasca, usava um boné abraçado por uma fita de cetim. Ela estava envolta numa espécie de casaco de lã de merino[16] cinza francês.

Os móveis da sala eram de cor rosa escuro, branco e dourado, o papel que cobria as paredes era indiano, na base do papel de parede, se desenhava uma abundância de folhas tropicais, pássaros, insetos, e diminuía gradualmente ao subir, traçando em riqueza de detalhes, até o topo, com delicadas gavinhas[17] e borboletas.

O Senhor Dawson adquirira muita riqueza em sua profissão, e sua casa deu esta impressão. Nos cantos da sala, grandes vasos de porcelana oriental, cheios de folhas, flores e especiarias, e no meio de tudo isso, foi colocado o sofá, que a pobre Margaret Dawson passou dias inteiros, meses e anos, sentada ali, sem o poder de se mover sozinha.

A empregada da Senhorita Dawson trouxe chá e macarons[18] para nós, e, uma xícara de leite, água e um biscoito para ela.

Chegamos muito cedo, antes de todos os convidados e fiquei um pouco constrangida pelo feito. Em seguida, a porta se abriu e os convidados chegaram. Eram professores de Edimburgo, as suas belas mulheres também.

Todos estavam a caminho de alguma outra festa que surgiria mais tarde, porém, a primeira parada era a casa da Senhorita Dawson, para contar a ela algumas piadas, interesses ou planos para a noite.

Os homens cultos, e mulheres adoráveis, ela era tratada como uma querida amiga, que parecia os conhecer tão bem.

Foi muito deslumbrante aquela noite, e fiquei a pensar e pensar por muitos dias sobre isso.

Segunda-feira após segunda-feira, fomos para o encontro. Ficávamos paradas, silenciosas, porque o que poderíamos dizer a qualquer um, senão à própria Senhorita Margaret?

O inverno passou, o verão estava chegando, eu estava doente e cansada de minha vida, mas mesmo assim, o Senhor Dawson deu esperanças em minha recuperação final.

Meus pais iam e vinham, entretanto, eles não podiam ficar por muito tempo.

A Senhorita Margaret Dawson se tornara a minha querida amiga, embora, eu nunca tivesse trocado tantas palavras com ela como trocado com a Senhorita Mackenzie, mesmo assim, com a Senhorita Dawson, cada palavra era uma pérola ou um diamante que eu devia guardar.

As pessoas que se reuniam nas segundas-feiras começaram a deixar Edimburgo, e restaram apenas algumas.

Não tenho certeza se nossas noites de segunda-feira foram as mais agradáveis depois disso.

Nos encontros, havia o Senhor Sperano, um exilado italiano, banido até mesmo da França, onde residia há muito tempo, e agora, ensinava italiano com mansidão na cidade do Norte.

Havia o Senhor Preston, o fazendeiro de Westmoreland, ou, como ele preferia ser chamado, estadista, cuja esposa tinha vindo a Edimburgo para a educação de sua numerosa família, e que, sempre que seu marido vinha em uma de suas visitas ocasionais, ficava muito feliz em acompanhá-lo às segundas-feiras, à noite, visitar a Senhorita Dawson. Eles eram amigos de longa data.

Estes e nós, sustentamos visitas constantes, e nos divertimos por pertencer à sociedade de amigos da Senhorita Dawson.

Uma noite, coloquei um banquinho perto de seu sofá, e estava acariciando sua mão branca e fina, quando o pensamento veio à minha cabeça e o falei.

— Diga-me, querida Senhorita Dawson... Há quanto tempo você está em Edimburgo? Você não fala escocês, e o Senhor Dawson diz que ele não é escocês!

— Não! Sou de Lancashire, Liverpool! — disse ela, sorrindo.

— Ouço algo diferente sobre a senhora, vindo das outras pessoas, mas, fico feliz em saber de onde a senhora é! Porque você é o que é! Nasceu em Lancashire?

— Ouso dizer que sim, pois, embora esteja certa que a Senhora Ludlow se esforçou o suficiente para corrigir em minha juventude, toda a minha postura, nunca consegui superar corretamente o sotaque!

— Senhora Ludlow? — questionei. — O que ela tinha a ver com você? Ouvi você falar dela pela fala da Senhora Madeline Stuart, na primeira noite em que vim aqui. Você e ela pareciam gostar tanto da Senhora Ludlow... Quem é ela?

— Ela está morta, minha filha! Morreu há muito tempo!

Senti pena por falar sobre ela. A Senhorita Dawson parecia tão triste ao relembrar da Senhora Ludlow. Suponho que ela percebeu minha tristeza, pois, continuou:

— Minha querida! Gosto de falar e de pensar em minha saudosa Senhora Ludlow. Ela foi minha verdadeira amiga e benfeitora por muitos anos. Pergunte-me o que você deseja saber por curiosidade, e não pense que isso me trará dor!

Então, continuei:

— Pode contar tudo sobre ela, por favor, Senhorita Dawson?

— Não! — disse ela, sorrindo. — Isso seria uma história muito longa! Aqui estão o Senhor Sperano, a Senhorita Duncan, e, o Senhor e a Senhora Preston logo chegarão. Não creio que eles gostariam de ouvir uma história antiga, afinal de contas, não seria nenhuma história, com começo, meio ou fim, apenas um monte de lembranças de uma velha que não pode andar.

— Pode falar, madame! — disse o Senhor Sperano. — Só posso dizer que você me dá uma grande honra, ao contar em minha presença, algo sobre qualquer pessoa que já lhe fora importante para a madame.

A Senhorita Duncan tentou dizer algo do mesmo modo, e no meio do seu discurso confuso, o Senhor e a Senhora Preston entraram. Me levantei e fui ao encontro deles.

— Oh! — disse eu. — A Senhorita Dawson vai nos contar tudo sobre a Senhora Ludlow, e muito mais! Contudo, ela tem medo de que os senhores não se interessem pelo assunto. Digam que gostariam de ouvir!

A Senhorita Dawson sorriu para mim e, em resposta à minha urgência, prometeu nos contar tudo sobre Senhora Ludlow, com a condição de que cada um de nós, depois que ela terminasse, narrasse algo interessante sobre o que ouvimos, ou alguma experiência nossa semelhante ao assunto.

Prometemos de bom grado, e depois sentamos em torno de seu sofá para ouvir o que ela sabia sobre a Senhora Ludlow.

Como qualquer um pode adivinhar, a Senhorita Dawson levou várias noites de segunda-feira, para narrar toda essa história dos dias de sua juventude. A Senhorita Duncan pensou que seria um bom exercício para mim, tanto na memória, quanto na composição, e acreditei que seria bom escrever a tal história.

Então nas terças-feiras, de manhã, tudo o que eu ouvira na noite anterior, eu colocava no papel, e assim nasceu o manuscrito de “Minha Senhora Ludlow” agora deitado ao meu lado.

O Senhor Dawson entrara e saíra frequentemente da sala durante o tempo em que sua irmã nos falava da Senhora Ludlow. Ele parava, escutava um pouco, sorria ou suspirava conforme fosse o caso.

Na segunda-feira depois que a querida velhinha terminou seu conto, se a história pudesse ser assim chamada, sentimos um pouco perdidos sobre o que falar, tínhamos acostumado tanto a ouvir a Senhorita Dawson, que perdemos a vontade de falar.

Me lembro de dizer:

— Oh! Querida! Gostaria que alguém contasse outra história?

Foi quando seu irmão disse, como se em resposta a minha pergunta, que ele elaborara um artigo para a Sociedade Filosófica, e que talvez quiséssemos ouvi-lo, antes que o artigo fosse enviado para ser analisado. Era um compilado sobre um livro francês.

A atenção de Dawson fora direcionada para este estudo, após uma excursão que ele fizera na Inglaterra durante o ano passado. Ele notara portas pequenas em partes inusitadas de algumas igrejas antigas, e fora dito que elas eram a passagem de raça meio pagã, que, antes dos dias dos ciganos, ocupava a mesma posição de raça proibida na maioria dos países da Europa ocidental.

O Senhor Dawson recebera a recomendação ao livro francês que ele analisou como contendo o relato mais completo e autêntico desta misteriosa raça, os Agotes[19].

Pensei que não gostaria de ouvir este artigo tanto quanto uma história ou conto, mas, é claro, como ele quis dizer gentilmente, estávamos obrigados a nos submeter, e achei mais interessante do que eu esperava.

Ele nos contou a crônica:

“Uma Raça Amaldiçoada.”

Por algum tempo, eu observara que a Senhorita Duncan usava seu tempo livre para escrever, entretanto, ela não gostava que eu notasse seu cargo inusitado. Claro que isso me deixou ainda mais curiosa, e muitas foram minhas conjecturas silenciosas. Algumas delas tão próximas da verdade que não fiquei muito surpresa quando, depois que o Senhor Dawson terminou de ler seu artigo para nós, ela hesitou, tossiu e introduziu abruptamente um pequeno discurso formal, no sentido de que ela anotara uma velha história galesa, cujos detalhes lhe foram contados com frequência em sua juventude, pois, ela vivia perto do local onde os eventos ocorreram.

Todos a pressionaram para que pudesse ler o manuscrito, mas, quando seu nervosismo parecia ultrapassá-la, ela pediu desculpas por ser a primeira e única tentativa que ela faria nessa composição, comecei a me perguntar se deveríamos ouvir a tal história.

Em voz alta e não segura, ela leu longamente o título:

“A Desgraça dos Griffiths.”

Você não imagina como a Senhorita Dawson agradeceu à Senhorita Duncan por escrever e ler a história.

Ela sacudiu minha pobre e pálida governanta tão ternamente pela mão, que as lágrimas lhe vieram aos olhos, e a cor saltou em suas bochechas.

— Você foi maravilhosa em seu discurso! — a Senhorita Dawson falou.

— Agradeço! Gostei de ouvir sobre a Senhora Ludlow! Imaginei, talvez, que poderia fazer algo para dar um pouco de prazer. — essas foram as frases semiacabadas que a Senhorita Duncan balbuciou em resposta.

Tenho certeza que foi o desejo de ganhar palavras gentis semelhantes às da Senhorita Dawson, que fez com que a Senhora Preston tentasse vasculhar a sua memória para ver se não conseguia se lembrar de algum fato, evento ou história, que pudesse interessar à Senhorita Dawson e à pequena celebração que se reuniu em torno de seu sofá.

Foi a Senhora Preston quem nos contou a seguinte história:

“Martha Preston.”

Quando a narrativa foi concluída, a Senhorita Dawson chamou os dois senhores, o Senhor Sperano e Senhor Preston, e disse-lhes que era a vez deles.

Eles olharam um para o outro, como se a abordagem dela os surpreendesse, e pareceram tão envergonhados, como dois meninos sem coragem.

O Senhor Sperano foi o primeiro a se recuperar do susto, e depois de pensar um pouco, disse:

— Querida senhora, sua vontade é lei! Na próxima segunda-feira, à noite, trarei uma velha história, que encontrei entre os papéis do bom e velho padre que me recebeu na Inglaterra pela primeira vez. Ele me deu essa singela herança em sua generosa bondade. Tive a oportunidade de cuidar dele através da cólera, da qual ele morreu. Ele me deixou todo o pouco que tinha, seus escassos móveis, seu livro de orações, crucifixo, rosário e seus papéis. Como, alguns papéis chegaram a suas mãos, não sei. Eles foram evidentemente escritos muitos anos antes do nascimento do venerável homem, e duvido que ele tivesse alguma vez examinado os fardos que chegavam em sua casa. Sua vida estava ocupada demais para sair a qualquer momento para a gratificação da mera curiosidade. Tive muito prazer em ler estes papéis.

Na segunda-feira seguinte, o Senhor Sperano leu para nós a história que vou chamar de:

“A Pobre Clarissa!”

Agora, de todos que escutaram pela primeira vez sobre a Senhora Ludlow, o Senhor Preston foi o único que não nos disse nada, seja de informação, tradição, história ou lenda.

Naturalmente recorríamos a ele, mas não gostávamos de pedir-lhe diretamente, uma vez que ele era um homem sério, reservado e muito silencioso.

No entanto, ele nos entendeu, e, por assim dizer, ele pronunciou:

— Sei que vocês desejam que eu conte algo que aprendi durante a minha vida. Eu poderia contar-lhes algo de minha vida e de uma vida ainda mais querida em minha memória. Porém, me abstive de narrar qualquer coisa tão puramente pessoal. No entanto, nenhuma outra, além destas tristes lembranças, se apresenta à minha mente. Eu as chamo de tristes, quando penso no fim de tudo. Pois, a vida e a morte de meu querido irmão, falam por si, há muita coisa que podemos aprender com essa história.

Então, ele nos contou a história de sua vida e de seu meio-irmão:

“Os Meios-irmãos.”

Fim.


Uma Raça Amaldiçoada

Temos nossos preconceitos na Inglaterra. Ou, se esta afirmação ofende qualquer um de meus leitores, eu a modificarei:

“Temos muitos preconceitos na Inglaterra.”

Temos torturado judeus, queimado católicos e protestantes, para não falar de algumas bruxas e feiticeiros.

Satirizamos os puritanos e vestimos os homens com suas fardas preconceituosas.

Mas, afinal, não creio que fossemos tão maus quanto nossos amigos continentais. Com certeza, nossa posição insular nos manteve livres até certo ponto, das incursões de raças diferentes.

Eles foram expulsos de suas terras e buscaram por outras e tínhamos essa relutância em recebê-los, uma vez que, por longos séculos, sua presença mal era suportada, e a repugnância dos nativos de “sangue puro” para eles, era incalculável.

Ainda há um remanescente do povo miserável chamado Agotes nos vales dos Pirineus, em Landes, perto de Bourdeaux, e, estendendo-se pelo lado oeste da França, seu número se torna maior na Baixa Bretanha.

Porém, a origem destas famílias é uma palavra de vergonha para eles, apesar de que eles estejam protegidos pela lei, que os assegurou na igualdade de direitos no final do século passado.

Antes disso, eles viviam durante centenas de anos, isolados de todos aqueles que se gabavam de sangue puro e eles foram, durante todo esse tempo, oprimidos por cruéis leis locais.

Eles eram verdadeiramente o que eram chamados popularmente de “A Maldita Raça”.

Todos os traços distintos de sua origem, foram perdidos.

Mesmo no final daquele período que chamamos de Idade Média, este era um problema que ninguém podia resolver, mas os seus vestígios, que eram tênues e duvidosos, desapareceram um a um.

O motivo pelo qual eles foram amaldiçoados em primeira instância, e isolados de sua espécie, ninguém sabe.

Havia poucos relatos sobre eles e quem sabia, não queria relatar. Parece que os nomes que eles deram uns aos outros eram ignorados pela população, que falava deles sem mencionar seus nomes, apenas que eram Agotes, da mesma maneira que falamos dos animais pelos seus nomes genéricos, cão, gato e ovelha.

Suas casas ou cabanas eram sempre colocadas a alguma distância dos vilarejos, mais afastadas, perto do campo. Eles eram chamados para os serviços de carpinteiros, ladrilhadores ou fazedores de telhas, porque a população pura acreditava que estes serviços pareciam mais apropriados por esta infeliz raça, também estavam proibidos de ocupar terras, ou de portar armas.

Eles tinham algum direito de pastagem nas terras comuns e nas florestas, contudo, o número de animais era estritamente limitado pelas primeiras leis relacionadas aos Agotes.

Eles eram proibidos, por um ato na lei restrita, de possuir mais de vinte ovelhas, um porco, um carneiro e seis gansos. O porco devia ser engordado e morto para a alimentação de inverno, a lã das ovelhas serviria para vesti-los, mas, se as referidas ovelhas tivessem cordeiros, não se podia comê-los. Seu único privilégio era escolher as ovelhas mais fortes, em vez de manter as ovelhas velhas.

No Dia de São Martinho, as autoridades da comunidade se reuniam, e contavam o estoque de cada Agote.

Se o Agote tivesse mais que seu número nomeado pela lei, os animais eram confiscados, metade ia para a comunidade, a outra, para o chefe da comunidade.

Os pobres animais dos Agotes eram limitados quanto à quantidade de animais comuns que poderiam vaguear em busca de pastagem. Enquanto o rebanho dos habitantes da comunidade caminhava para cá e para lá em busca do pasto vistoso, sombra mais arejada ou água fresca para suportar os dias quentes, as ovelhas e os porcos dos Agotes tinham que aprender limites imaginários, e se desviassem estes limites, qualquer um poderia pegá-los e matá-los, reservando uma parte da melhor carne para seu próprio uso, e entregando graciosamente as partes inferiores, como vísceras, para seu dono original.

Qualquer dano feito pelas ovelhas era, no entanto, bastante avaliado, e o Agote não pagava mais por isso que qualquer outro homem faria.

Alguns Agotes deixaram suas pobres cabanas e se aventuraram nas cidades para prestar os serviços que lhe eram exigidos pelo seu ofício, mas, eles foram convidados, por todas as leis municipais, a ficarem parados e lembrarem de sua raça.

Em todas as cidades, vilarejos e os grandes distritos, que se estendiam por ambos os lados dos Pirineus, em toda aquela parte da Espanha, os Agotes eram proibidos de comprar ou vender qualquer coisa comestível, de andar no meio das ruas, e passar pelos portões da vila antes do nascer do sol ou de ser encontrado após o pôr-do-sol nas muralhas da cidade.

Mas, ainda assim, como os Agotes eram homens bonitos, e, embora tivessem certas marcas naturais de sua casta, das quais falarei mais adiante, não eram facilmente distinguidos por outros homens, por isso, eles eram obrigados a usar alguma peculiaridade característica para serem distinguidos dos demais, e, no maior número de cidades, foi decretado que o sinal externo de um Agote devia ser um pedaço de pano vermelho, costurado na frente de sua veste. Em outras cidades, a marca de Agote era o pé de um pato ou de um ganso, pendurado sobre seu ombro esquerdo, de modo a ser visto por qualquer um que os encontrasse.

Após algum tempo, um emblema conveniente foi adotado, era um pedaço de pano amarelo cortado em forma de pé de pato. Se algum Agote fosse encontrado em qualquer cidade ou vila sem seu crachá, ele teria que pagar uma multa de cinco libras francesas, e perderia a sua veste.

Esperava-se que um Agote ficasse longe de qualquer transeunte, por medo de que suas roupas fossem arrancadas, então, que ficasse parado em algum canto ou em algum lugar, esperando a sua vez de caminhar e trabalhar.

Se os Agotes tinham sede durante os dias que passavam nas cidades, onde sua presença mal era aceita, eles não tinham meios de saciar sua sede, já que estavam proibidos de entrar nas tabernas. Até a água que jorrava da fonte comum era proibida para eles. Longe da vila, havia a fonte Agote, e não lhes era permitido beber de nenhuma outra água, senão essa.

Uma mulher Agote que tivesse que fazer compras na cidade, poderia ser açoitada, se fosse comprar algo nos dias da semana, exceto numa segunda-feira, este era o dia em que todas as outras pessoas, que não precisavam da urgência em ir obter algo necessário, ficavam em suas casas por medo de entrar em contato com a maldita raça.

No País Basco[20], os preconceitos e por algum tempo, as leis, foram mais violentas contra eles do que qualquer outro lugar que eu mencionara até agora.

O Agote basco não estava autorizado a possuir ovelhas. Ele poderia manter um porco, mas seu porco não tinha direito de pastoreio. Ele podia cortar e carregar capim para o asno, que era o único outro animal que lhe era permitido possuir, e este asno era permitido, porque sua existência era uma vantagem para o opressor da raça pura, que constantemente se valia da habilidade de trabalho braçal de um Agote, e estava contente em ver um Agote trabalhar nos piores serviços e suas ferramentas facilmente transportadas de um lugar para outro pelo asno.

A raça foi repelida pelo Estado.

Sob os pequenos governos locais, eles não podiam ocupar nenhum cargo, e não eram tolerados pela Igreja, embora fossem bons católicos e frequentadores zelosos da missa. Eles só podiam entrar nas igrejas por uma pequena porta separada para eles, pela qual, ninguém da raça pura jamais passou. Esta porta era baixa, de modo a obrigá-los a fazer uma reverência. Ocasionalmente, ela era cercada por esculturas, que invariavelmente representavam um ramo de carvalho com uma pomba, acima dele.

Quando uma vez estavam na igreja, não podiam ir para a água benta usada por outros. Eles tinham uma pia de água benta própria. Não era permitido participar do pão consagrado quando este era entregue aos crentes da raça pura. Os Agotes ficavam à distância, perto da porta. Havia certos limites, linhas imaginárias nos corredores que eles não podiam ultrapassar.

Em uma ou duas das aldeias mais tolerantes dos Pirineus, o pão abençoado era oferecido aos Agotes. O sacerdote ficava de um lado da linha limite, dando os pedaços de pão com um longo garfo, feito de madeira, para cada pessoa, sucessivamente.

Quando um Agote morria, ele era enterrado à parte, em um terreno de sepultamento no lado norte do cemitério.

Sob tais leis e prescrições, como descrevi, não é de se admirar que um Agote fosse geralmente, pobre demais para ter bens para seus filhos herdarem. A única posse, que todos que não eram de sua própria raça se recusavam a tocar, eram seus móveis. Isso era manchado, contagioso, imundo para os puros.

Durante, pelo menos três séculos, os usos e opiniões em relação a esta raça oprimida fora extremamente desumana, e não é de se surpreender que lemos sobre explosões ocasionais de violência ferozes de sua parte.

Na costa dos Pirenéus, por exemplo, faz cerca de cem anos que os Agotes de Rehouilhes se levantaram contra os habitantes da cidade vizinha de Lourdes, e ganham a batalha, por seus poderes mágicos, como diziam.

O povo de Lourdes foi conquistado e assassinado, e suas cabeças horríveis e sangrentas serviram aos triunfantes Agotes como bolas para as crianças brincarem.

Os parlamentos locais começaram nesta época, a perceber o quão opressivo era o modo de proibição dos Agotes, e estavam repensando e inclinados a impor uma punição não muito severa. Assim, o decreto do parlamento de Toulouse condenou apenas os principais Agotes envolvidos nesta batalha, e que, doravante e para sempre, nenhum Agote seria autorizado a entrar na cidade de Lourdes por qualquer portão, a não ser aquele que fosse chamado.

Eles deveriam apenas ser autorizados a caminhar sob as calhas de chuva, e nem sentar, comer ou beber na cidade.

Se não cumprissem essas regras, o parlamento decretou, no espírito de Shylock, que os desobedientes Agotes deveriam ter duas tiras de carne de seu corpo, pesando não mais que duas onças[21] por peça, cortadas de cada lado de costas.

Nos séculos XIV, XV e XVI, não era considerado crime matar um Agote.

Um “ninho de Agotes”, como dizem os antigos relatos, se reunira em um castelo abandonado de Mauvezin, por volta do século XVI, e, certamente, eles eram vizinhos pouco agradáveis, pois, pareciam gozar da reputação de mágicos, e, por alguns segredos que lhes eram conhecidos, todo gemido que era ouvido nas florestas vizinhas, era considerado bruxaria que vinha desses homens do castelo.

Isso acendeu um medo nas pessoas de raça pura, que não podiam cortar um galho seco para lenha, sem ouvir um som estranho preenchendo o ar, nem beber água, acreditando que estava envenenada, porque os Agotes persistiam em encher seus jarros no mesmo riacho que a raça pura.

Somado a estas queixas, os vários furtos perpetuamente ocorridos no bairro, fizeram os habitantes das cidades e vilarejos adjacentes acreditarem ter motivo o suficiente para assassinar todos os Agotes que viviam no castelo de Mauvezin. Mas os Agotes estavam protegidos, porque no castelo era cercado por um fosso, e acessível apenas por uma ponte levadiça, além disso, os Agotes eram ferozes e vigilantes.

Um dos puros, no entanto, aceitou ganhar a confiança dos Agotes que viviam no castelo, e para isso, ele fingiu estar ferido perto do castelo, e ao retornarem para seu reduto, os Agotes o perceberam e o acolheram, o ajudando a restituir a sua saúde e fizeram dele um amigo.

Um dia, quando todos eles estavam distraídos, seu amigo traiçoeiro deixou a festa fingindo ter sede, e abaixou a ponte, e assim, cortando os meios de fuga em segurança dos Agotes.

Ele subiu para a parte mais alta do castelo, soprou uma trombeta, e a raça pura, que estava esperando pelo sinal, invadiu o castelo e matou todos.

Por este assassinato nenhuma punição foi decretada no parlamento de Toulouse, ou em qualquer lugar.

Qualquer casamento com a raça pura era estritamente proibido. Havia livros guardados em todas as comunidades com os nomes e endereços de todas as habitações dos conceituados Agotes. Essas pessoas infelizes não tinham esperança de se misturarem com o resto da população.

Se houvesse um casamento Agote, o casal seria serenado com canções satíricas.

No entanto, eles também tinham trovadores, e muitos de seus romances ainda são atuais na Bretanha, mas eles não tentaram fazer qualquer represália de sátira ou abuso para afrontar os opressores.

A disposição deles era amigável e sua inteligência grande. Essas qualidades, quanto seu grande amor pelo trabalho braçal tornava suas vidas toleráveis.

Finalmente, eles começaram a reivindicar seus direitos para que pudessem receber alguma proteção das leis, e, no final do século XVII, o poder judicial tomou o seu lado. Mas eles ganharam pouco com isso.

A lei não podia prevalecer contra os costumes, e, nos dez ou vinte anos que antecederam a primeira revolução francesa, o preconceito na França contra os Agotes era de uma repulsa feroz e horrenda.

No início do século XVI, os Agotes de Navarra queixaram-se ao Papa, que foram excluídos da comunhão dos homens e amaldiçoados pela Igreja, porque seus antepassados deram ajuda ao certo Conde Raymond de Toulouse, em sua revolta contra a Santa Fé.

Eles pediram a sua santidade para não jogar sobre eles os pecados de seus pais. O Papa enviou, no dia 13 de maio de 1500, quinze pedidos de Agotes para serem bem tratados e admitidos aos mesmos privilégios que outros homens. O Papa encarregou Don Juan de Santa Maria de Pampeluna em zelar pela execução destes pedidos. Todavia, Don Juan foi lento em sua missão, e os pobres Agotes espanhóis ficaram impacientes, e resolveram tentar o poder secular. Assim, eles se apresentaram às Cortes de Navarra.

Primeiro, foi declarado que seus ancestrais não tinham relação com Raymond Conde de Toulouse, ou com qualquer personagem cavalheiresco, e que eles eram de fato, descendentes de Gehazi[22], servo de Eliseu (segundo livro de Reis, quinto capítulo, vigésimo sétimo verso), que fora amaldiçoado por seu mestre por sua fraude contra Naaman, e condenado, ele e seus descendentes, a serem leprosos para sempre.

O que pode ser mais claro?

Agotes não eram leprosos, por assim dizer?

Se respondermos que existem dois tipos de lepra, uma perceptível e outra imperceptível, até mesmo para a pessoa que sofre com isso?

Além disso, era conversa rotineira, que o local onde um Agote pisasse, a grama murchava, provando o calor antinatural de seu corpo. Muitas testemunhas credíveis e confiáveis também afirmaram que, se um Agote segurasse uma maçã recém-colhida na mão, ela secaria.

Falava-se também que eles nasciam com caudas, embora os pais fossem astutos o suficiente para cortá-las imediatamente.

Você duvida disso? Se não é verdade... Por que as crianças da raça pura se deleitavam em costurar caudas com lãs de ovelhas ao vestido de qualquer Agote que está tão absorvido em seu trabalho ao ponto de não percebê-las?

Seu cheiro corporal era tão horrível e detestável, que mostrava que eles deviam ser hereges de alguma descrição vil e perniciosa.

Estes foram os argumentos pelos quais foram jogados contra os Agotes, em uma posição pior que nunca, no que diz respeito aos seus direitos como cidadãos.

O Papa insistiu que eles receberiam todos os seus privilégios eclesiásticos. Os padres espanhóis nada disseram, mas explicitamente recusaram-se a permitir que os Agotes se misturassem com o resto dos fiéis, mortos ou vivos.

A maldita raça obteve leis ao seu favor pelas mãos do Imperador Carlos V, no entanto, não havia ninguém para levar a efeito tais leis.

Como uma espécie de vingança por sua falta de submissão, e por impertinência em ousar reclamar, suas ferramentas foram retiradas pelas autoridades locais, e sem trabalho, as famílias morreram de fome, porque não era mais permitido pescar.

Eles não podiam emigrar. Nem mesmo para remover suas pobres habitações de lama, de um ponto a outro, porque isso incentivava raiva e desconfiança na raça pura.

O governo espanhol ordenou aos registradores que procurassem todos os Agotes, e os expulsassem antes de dois meses, sob pena de ter cinquenta ducados para pagar por cada Agote que permanecesse na Espanha no vencimento daquele tempo.

Os habitantes das aldeias se levantaram e açoitaram qualquer raça miserável que pudesse estar em seu bairro, mas os franceses estavam de guarda contra essa invasão forçada e se recusaram a permitir que entrassem na França.

Eles foram caçados nos inóspitos Pirineus, e ali morreram de fome, ou se tornaram presas de animais selvagens. Foram obrigados a usar tanto luvas, quanto sapatos quando assim eram postos em fuga, caso contrário, as pedras e as ervas que pisavam, teriam se tornado, segundo a crença popular, venenosas.

E durante todo esse tempo, não havia nada de notável ou nojento na aparência externa desse infeliz povo.

Não havia nada neles que pudesse dar a impressão de serem leprosos, termo mais natural para dar nome a repulsa em que eram mantidos.

Eles foram repetidamente examinados por médicos eruditos, cujas experiências, embora singulares e rudes, pareciam ser feitas em um espírito de humanidade.

Por exemplo, os cirurgiões do rei de Navarra, sangraram vinte e dois Agotes, a fim de examinar e analisar seu sangue. Eles eram pessoas jovens e saudáveis, de ambos os sexos, e os médicos pareciam esperar que pudessem extrair algum novo sal de seu sangue que ser responsável pelo maravilhoso calor de seus corpos. Porém, seu sangue era exatamente como o de outras pessoas.

Alguns médicos nos deixaram uma descrição da aparência geral dessa infeliz raça, em uma época em que eles eram mais numerosos e menos misturados do que são agora.

As famílias existentes no Sul e Oeste da França, que hoje em dia têm fama de serem descendentes de Agotes, são, como seus antepassados, de estatura alta, em grande parte, de postura firme, justa, mas rudes na aparência, com olhos cinzentos e azuis, nos quais alguns observadores veem uma aparência pesada. Seus lábios são grossos, mas bem formados. Alguns dos relatos dão o nome para a sua triste expressão, que tem um semblante de surpresa e desconfiança.

“Eles não são alegres como as outras pessoas!”

O Doutor Guyon, o médico do século passado que deixou o relatório mais claro sobre a saúde dos Agotes, falava da velhice vigorosa que eles atingiam.

Em uma família, ele encontrou um homem de setenta e quatro anos, e uma mulher, colhendo cerejas com a mesma idade do homem, e outra mulher, de oitenta e três anos, que estava deitada na grama, tendo seus cabelos penteados por seus bisnetos.

O Doutor Guyon e outros cirurgiões examinaram o assunto sobre o cheiro horrivelmente infeccioso que os Agotes deixavam para trás, e sobre tudo que tocavam, contudo, eles não podiam perceber nada de anormal neles.

Eles também examinaram suas orelhas, que, de acordo com a crença comum, uma crença existente até hoje, tinham uma forma diferente das de outras pessoas, sendo redondas e ranhosas, sem o lóbulo de carne no qual o anel da orelha está inserido.

Assim, decidiram que a maioria dos Agotes que examinaram tinha as orelhas desta forma redonda realmente, mas acrescentaram, seriamente, que não entendiam a razão para que isto os excluísse da boa vontade dos homens, e do poder de ocupar cargos na Igreja e no Estado.

Eles registraram que as crianças puras das cidades corriam e riam atrás de qualquer Agote que fosse obrigado a ir às ruas para fazer compras, em alusão a esta peculiaridade da forma da orelha, que tinha algumas semelhanças com as orelhas das ovelhas, enquanto eram cortadas pelos pastores deste distrito.

O Doutor Guyon nomeou o caso de uma bela menina Agote, que cantou com muita doçura, e rezou para que lhe fosse permitido cantar cânticos em um piano. O pianista, mais músico que intolerante, permitiu que ela cantasse, no entanto, a congregação de fieis, indignada com a sua atitude, descobrindo de onde procedia aquela voz clara e fresca, correu e perseguiu a menina, dizendo-lhe:

“Lembre-se de suas orelhas imundas!”

A menina não cometeu o sacrilégio de cantar louvores a Deus com a raça pura novamente.

Entretanto, este relatório médico do Doutor Guyon, trazendo fatos e argumentos para confirmar sua opinião de que não havia razão física para que os Agotes não fossem recebidos em igualdade social pelo resto do mundo, foi ignorado, assim como os decretos legais promulgados dois séculos antes.

Os franceses provaram a verdade do ditado em Hudibras[23].

“Aquele que está convencido contra a sua vontade ainda é da mesma opinião.”

E, de fato, a convicção do Doutor Guyon de que eles deveriam receber os Agotes como criaturas companheiras, só os tornaram mais raivosos ao declarar que não o fariam.

Uma ou duas pequenas ocorrências foram registradas, e mostraram que a amargura da repugnância aos Agotes estava em plena força na época que antecedeu a primeira revolução francesa.

Havia um bispo de Lourdes, irmão do Senhor dono do castelo vizinho, ele era bem-educado para a época, um homem viajado, sensato e moderado em todos os aspectos, exceto por sua aversão aos Agotes. Ele os insultava do próprio altar, clamando-lhes impuros, enquanto estavam de longe:

— Oh! Vós Agotes, malditos para sempre!

Um dia, um Agote meio cego tropeçou e tocou o incensário diante deste bispo de Lourdes. Ele foi imediatamente expulso da igreja, e proibido de voltar a entrar nela.

Não se sabe como explicar como o próprio irmão deste bispo fanático, o Senhor da aldeia, casara com uma garota Agote, mas assim foi, e o bispo providenciou um processo legal contra o irmão, e mandou tirar-lhe suas propriedades, devido ao seu casamento, o que o reduziu à condição de Agote, porque a antiga lei ainda estava em vigor.

Os descendentes deste Senhor de Lourdes são simples camponeses agora, trabalhando nas terras que pertenciam ao seu avô.

Este preconceito contra os casamentos mistos continuou prevalecendo até muito recentemente. A tradição da descendência Agote perdurou entre o povo, muito depois que as leis contra a maldita raça, foram abolidas.

Uma moça bretã, tendo dois pretendentes, cada um de renomada descendência Agote, convocou um escrivão para examinar suas linhagens, e ver qual dos dois tinha menos Agote em seu sangue, e àquele menos Agote, ela deu a sua mão.

Na Bretanha, o preconceito fora mais rancoroso que em qualquer outro lugar.

A Senhora Emile Souvestre registrou provas do ódio que lhes foi transmitida na Bretanha tão recentemente quanto em 1835.

Pouco tempo antes, um padeiro em Hennebon, tendo casado com uma garota de ascendência Agote, perdeu todas as suas posses. Também, se soube que o padrinho e a madrinha de uma criança Agote, se tornaram Agotes pelas leis bretãs. Sabia-se também que isso ocorria, a menos que, de fato, o pobre bebezinho morresse antes de atingir certo número de dias.

Eles tinham que comer a carne que os açougueiros julgavam insalubres, mas, por alguma razão desconhecida, eles eram considerados como tendo direito a cada pão cortado virado de cabeça para baixo, com seu lado cortado em direção à porta, e podiam entrar em qualquer casa em que vissem um pão nesta posição, e levá-lo com eles.

Há cerca de trinta anos, havia o esqueleto de uma mão pendurada como oferenda em uma igreja bretã, perto de Quimperle, e a tradição dizia que era a mão de um rico Agote, que ousara tirar a água benta da pia dos puros de sangue, algum tempo atrás, no início do reinado de Luís XVI.

Testemunhado por um velho soldado na primeira vez que o Agote pegou a água benta, o homem esperou e na próxima vez que o ofensor se aproximou da pia de água benta, cortou sua mão e a pendurou, ainda pingando sangue, como uma oferenda ao santo padroeiro da igreja.

Os pobres Agotes na Bretanha fizeram uma petição contra seu nome, e imploraram para serem distinguidos com a denominação de “Malandros”.

Para os ouvidos ingleses um é muito parecido com o outro, pois, nenhum dos dois transmite qualquer significado, mas, até hoje, os descendentes dos Agotes não gostam de ter este nome aplicado a eles, preferindo o de Malandros.

Os Agotes franceses tentaram destruir todos os registros de sua descendência, nos túmulos de seus ancestrais.

Mas, mesmo que os escritos desaparecessem, a tradição permaneceu, e aponta tal e, tal família como Agote ou Malandro, de acordo com os antigos termos de repulsa.

Há várias maneiras pelas quais os homens cultos tentam explicar a repugnância universal em que esta raça forte e poderosa é mantida.

Alguns dizem que a antipatia começou no aparecimento da lepra, quando era uma doença terrivelmente comum, e que os Agotes eram mais responsáveis que qualquer outro povo por essa doença de pele, não precisamente a lepra, mas que se assemelha a ela em alguns de seus sintomas, como a brancura morta da tez, e inchaços do rosto e das extremidades.

Havia também alguma semelhança com o antigo costume judeu em relação aos leprosos.

A lepra não era propriamente uma queixa infecciosa, apesar do horror em tocar os móveis dos Agote, e seus tecidos, como ainda era mantido esse costume de repulsa em alguns lugares.

A desordem era hereditária, portanto, os médicos se preocuparam em explicar a origem Agótica, usando a razoabilidade e a justiça para impedir quaisquer casamentos mistos, pelos quais a terrível tendência às queixas leprosas poderia ser espalhada por toda parte.

Outra autoridade dizia que, embora os Agotes fossem homens de boa aparência, trabalhadores, ainda assim, carregam em seus rostos, e mostravam em suas ações, razões para serem detestados.

Seu olhar tinha um ar rancoroso, cruel e enganador, acima de todos os outros homens, assim a raça pura afirmava.

Todas as qualidades inversas derivavam de seu ancestral Gehazi, o servo de Eliseu, com sua tendência à lepra.

Novamente, diz-se que eles são descendentes dos godos arianos, que foram autorizados a viver em certos lugares da Guiana e Languedoc, após sua derrota pelo rei Clovis, com a condição de que abjurassem sua heresia e se mantivessem separados de todos os outros homens para sempre. E

ssa foi a principal razão alegada em apoio a esta suposição de uma descendência gótica.

Também pensou-se que eles eram sarracenos, vindos da Síria. Em confirmação desta ideia, estava a crença de que todos os Agotes estavam possuídos por um cheiro horrível.

Se afirmou que eles podiam ser lombardos, porque eles também eram uma raça pouco legendária, ou reputada entre os italianos.

A carta do Papa Estêvão para Carlos Magno, dissuadindo-o de se casar com Bertha, filha de Didier, rei da Lombardia foi usada como prova dessa alegação.

Os lombardos gabavam-se da descendência oriental, e eram ruidosos. Os Agotes eram ruidosos, portanto, devem ser de ascendência oriental também.

O que poderia ser mais claro que isso?

Além disso, havia a prova a ser derivada do nome Agote, que aqueles que mantinham a opinião de sua descendência sarracena, porque os sarracenos perseguiam os godos para fora da Espanha. Além disso, os sarracenos eram originalmente mulçumanos, e como tal, obrigados a tomar banho sete vezes ao dia.

Na Bretanha, a ideia comum era que eles eram de ascendência judaica.

O cheiro desagradável deles foi novamente pressionado como uma prova. Os judeus eram bem conhecidos, tinham esta enfermidade física, que podia ser curada banhando-se em uma certa fonte no Egito, que estava muito longe da Bretanha, ou ungindo-se com o sangue de uma criança cristã.

O sangue jorrava do corpo de cada Agote na Sexta-feira Santa. Não é de se admirar, se eles eram de ascendência judaica. Era a única forma de prestar contas de um fato tão portentoso.

Novamente, os Agotes eram carpinteiros primorosos, o que dava aos bretões todas as razões para acreditarem que seus antepassados eram os próprios judeus que fizeram a cruz de Cristo.

Quando houve a primeira maré de emigração da Bretanha para a América, os Agotes oprimidos lotaram os portos, procurando ir para algum país novo, onde sua raça poderia ser desconhecida.

Ali estava outra prova de sua descendência de Abraão e seu povo nômade, e, os quarenta anos de andança no deserto e o próprio judeu errante, foram pressionados para provar que os Agotes derivavam sua inquietação e amor à mudança, de seus ancestrais, os judeus.

Os judeus também praticavam artes-mágicas, e os Agotes vendiam sacos de vento para os marinheiros bretões, e ervas mágicas chamadas de “Boa Fortuna”.

É verdade que, em todos os primeiros atos do século XIV, as mesmas leis se aplicam aos judeus e aos Agotes, e as denominações parecem ser usadas indiscriminadamente, mas, suas justas complexidades, sua notável devoção a todas as cerimônias da Igreja Católica, e muitas outras circunstâncias, conspiram para proibir que eles eram de descendência hebraica realmente.

Outra ideia muito plausível é que eles eram descendentes de indivíduos infelizes loucos, o que até hoje não é uma desordem incomum nos desfiladeiros e vales dos Pirineus.

Embora algumas vezes, se a velha tradição é para creditar, sua doença no cérebro tomou a forma de um delírio violento, um desejo irracional de luta, que os atacava em luas novas e cheias.

Então, os operários Agotes largavam as suas ferramentas, e se apressavam para sair de seu trabalho para derramar tal loucura em lutas corporais. O movimento perpétuo era necessário para aliviar a agonia da fúria que se abateu sobre os Agotes em tais momentos.

Neste desejo de movimento rápido, as brigas entre os Agotes assemelhava-se à tarantela[24] napolitana, enquanto nos atos loucos que realizavam durante tais ataques, eles não eram diferentes do Berserker[25] do Norte.

Especialmente em Bearne, aqueles que sofriam desta loucura eram temidos pela raça pura. Eles, da raça pura, quando saíam para cortar seus troncos de madeira nas grandes florestas que se encontravam ao redor da base dos Pirineus, temiam acima de tudo, chegar muito perto dos períodos em que essa loucura se apoderava do povo oprimido e amaldiçoado, porque era a vez dos opressores voarem sobre os da raça pura.

Um homem vivia na memória de alguns, que se casara com uma mulher Agote. Ele costumava, ao ver os primeiros sintomas da fúria Agote da esposa, trancá-la em um quarto, até que a lua tivesse alterado sua forma no céu. Se ele não tivesse tomado tais medidas, como diziam os habitantes mais velhos, não havia como saber o que poderia acontecer.

Desde o século XIII até o final do século XIX, existiam fatos suficientes para provar o repúdio universal em que esta infeliz raça foi mantida, seja nos distritos dos Pirineus, na Bretanha ou nas Astúrias.

A grande revolução francesa trouxe algum bem para a agitação do povo, os mais inteligentes entre eles tentaram superar o preconceito contra os Agotes.

Em 1780, houve uma famosa causa julgada em Biarritz relacionada aos direitos e privilégios de Agote.

Havia um moleiro rico, Etienne Arnauld da raça Agote como era descrito no documento legal. Ele casou-se com uma herdeira, uma Agote de Biarritz, e o recém-casado casal não viu razão para ficar na porta da igreja, ou não ocupar algum cargo civil na comunidade, da qual ele era o principal habitante.

Assim, ele solicitou à lei que ele e sua esposa pudessem sentar-se perto do altar da igreja como qualquer cidadão, e que ele fosse liberado de suas deficiências civis. Este rico moleiro, Etienne Arnauld, perseguiu seus direitos com algum vigor contra o padre de Labourd, o dignitário do bairro.

Em seguida, os habitantes de Biarritz reuniram-se ao ar livre, no dia 8 de maio, ao número de cento e cinquenta pessoas, e aprovaram a conduta do padre ao rejeitar o pedido de Arnauld. Fizeram uma assinatura e deram todo o poder aos seus advogados para defender a causa da raça pura contra Etienne Arnauld.

“Aquele estranho!” como diziam.

E tendo casado com uma garota de sangue Agote, também deveria ser expulso dos lugares santos.

Este processo foi levado a cabo em todos os tribunais locais, e terminou com um apelo na mais alta corte de Paris, onde uma decisão foi proferida contra superstições bascas, e Etienne Arnauld tinha então, o direito de entrar na igreja.

Naturalmente, os habitantes de Biarritz ficaram furiosos por perderem a causa e, quatro anos depois, um carpinteiro, chamado Miguel Legaret, suspeito de descendência Agote, tendo entrado na igreja com as outras pessoas, foi arrastado pelo padre, com a ajuda de dois ajudantes, para fora da igreja.

Legaret se defendeu com uma faca afiada na época, e depois voltou ao seu juízo. No final, o padre e seus dois cúmplices foram condenados a uma confissão pública de penitência, a ser proferida de joelhos na porta da igreja, logo após a missa.

Eles apelaram ao parlamento de Bourdeaux contra esta decisão, mas não tiveram melhor sucesso que os oponentes do moleiro Arnauld.

Legaret foi confirmado em seu direito de estar na igreja paroquial.

Um Agote vivo tinha direitos iguais aos de outros homens na cidade de Biarritz, mas, um Agote morto era uma coisa diferente.

Os habitantes de sangue puro lutavam longa e duramente para serem sepultados longe da raça abominável.

Os Agotes eram igualmente persistentes em afirmar que apenas queriam um sepultamento comum.

Mais uma vez, os textos do Antigo Testamento foram referidos, e o sangue puro citado triunfantemente o precedente de Azarias, o leproso (vigésimo sexto capítulo do segundo livro de Crônicas), que foi enterrado no campo dos Sepulcros dos Reis, não nos sepulcros propriamente ditos.

Os Agotes alegaram que eles eram saudáveis e capazes, sem nenhuma mancha de lepra perto deles. Eles foram recebidos pelo forte argumento tão difícil de ser refutado, que citei antes.

A lepra era de dois tipos, perceptível e imperceptível. Se os Agotes sofriam deste último tipo, quem poderia dizer se estavam livres dela ou não? Essa decisão seria deixada ao julgamento de outros.

Uma resistente família Agote manteve um processo, reivindicando o privilégio da sepultura comum, por quarenta e dois anos, embora o padre de Biarritz tivesse que pagar cem libras por cada Agote não enterrado no lugar certo.

Os habitantes indenizaram o homem por todas essas multas.

O Senhor de Romagne, Bispo de Tarbes, que morreu em 1768, foi o primeiro a permitir que um Agote ocupasse qualquer cargo na Igreja.

Com certeza, alguns estavam tão sem espírito, que rejeitaram o cargo quando este lhes foi oferecido, porque, ao reivindicarem sua igualdade, tiveram que pagar os mesmos impostos que outros homens. O cobrador também tinha o direito de reivindicar um pedaço de pão, em cada moradia Agote.

Mesmo no século presente, foi necessário em algumas igrejas que o arquiduque do distrito, seguido por todo o seu clero, passasse para fora da pequena porta, anteriormente apropriada aos Agotes, a fim de abrandar a superstição que, mesmo ultimamente, fez com que o povo se recusasse a se misturar com eles na casa de Deus.

Uma vez, um Agote pregou à congregação em Larroque um truque sugerido pelo que acabo de dizer.

Ele trancou a grande porta da igreja, enquanto a maior parte dos habitantes ajudava na missa lá dentro, colocou cascalho na fechadura, para evitar o uso de qualquer chave, e teve o prazer de ver o orgulhoso povo de sangue puro andando com a cabeça dobrada, através da pequena porta baixa usada pelos abomináveis Agotes.

Estamos naturalmente chocados ao descobrir, a partir de fatos como estes, o rancor sem causa com que pessoas inocentes e que foram tão recentemente perseguidas.

A moral da história da “Uma raça Amaldiçoada” talvez seja mais bem transmitida nas palavras de um epitáfio[26] sobre a Senhora Mary Hand, que está enterrada no adro da igreja de Stratford-on-Avon:

“Que falhas viram em mim, rezem para que se afaste. E olhem para suas casas, há algo a ser feito.”

Fim.


A Pobre Clarissa

Capítulo I

12 de dezembro de 1747.

Minha vida fora estranhamente ligada aos incidentes extraordinários, alguns dos quais ocorreram antes de começar a ter qualquer conexão com os protagonistas destes eventos, ou mesmo, antes de saber de suas existências.

Suponho que, como eu, a maioria dos velhos homens prefere olhar para trás, admirando a sua profissão com uma espécie de saudosismo carinhoso e lembrança afetuosa do que assistir aos eventos, embora, estes últimos, fossem muito mais interessantes para os olhos da multidão.

Se eles pensavam assim, neste saudosismo, o que dirá sobre mim?

Se eu quiser contar a estranha história ligada à pobre Lucy, devo começar um longo caminho de volta. Eu mesmo, só tive conhecimento da história de sua família, após conhecê-la, no entanto, para que a história fique clara diante de qualquer pessoa, devo organizar os eventos na ordem em que ocorreram e não aqueles que me familiarizei.

Havia um grande solar ao nordeste de Lancashire, em uma parte que eles chamavam de “Trough of Bolland[27]”, adjacente a outro distrito chamado Craven. O solar Starkey era antigo, com um grande corredor cinzento e, vários quartos, com uma grande chaminé no centro do telhado.

Havia um pouco mais de segurança nessas partes da propriedade, quando os Stuarts chegaram, após os escoceses pararem suas invasões terríveis até o sul. As escadarias daquela época subiam até dois andares de altura, ao redor da base de uma grande sala. Tinha também um amplo jardim, na encosta sul, perto da casa, contudo, quando conheci o local, a horta da fazenda era o único pedaço de chão cultivado pertencente a ela. Os cervos costumavam surgir diante das janelas da sala de visitas, e caminhariam perto da casa, se não fossem muito selvagens e tímidos.

O próprio Solar Starkey ficava em uma península de terra alta, saltando das colinas abruptas que formavam os lados da “Trough of Bolland”.

Estas colinas eram rochosas e ameaçadoras, que se desenhavam em direção ao seu cume, e, mais abaixo, sua base estava tomada por mato denso, entrelaçado com o verde das samambaias, das quais, se elevava aqui e ali, abraçando a cor cinza das antigas árvores da floresta, que lançavam seus assombrosos ramos brancos, como se estivessem dispostos a alcançar o céu.

Estas árvores, eles me disseram, eram remanescentes daquela floresta que existia nos dias da Heptarquia[28], e eram notadas como se fosse um marco histórico daquela região. Não é de se admirar que seus galhos superiores e mais expostos não tivessem folhas, e que a casca morta descascasse do tronco, pela velhice.

Não muito longe da casa, havia alguns chalés, aparentemente da mesma data da casa, provavelmente construídos para alguns servos da família, pessoas que procuravam abrigo, com suas famílias e seus pequenos rebanhos nas mãos de seus senhores feudais, mesmo que alguns destes senhores tivesse praticamente caído em decadência.

Os chalés foram construídos de uma maneira estranha. Vigas fortes foram submersas no chão, à distância necessária, e suas outras extremidades foram fixas juntas, duas em duas, de modo a formar a desenho de uma daquelas tendas arredondadas, contudo, muito maiores. Os espaços entre essas extremidades foram preenchidos pelo barro, pedras, vimes, argamassa e qualquer coisa para manter o clima frio fora do alcance de suas paredes.

As fogueiras para o aquecimento, foram feitas no centro destas casas rudes, e um buraco no centro do telhado, formando a única chaminé. Nenhuma cabana das terras altas da Escócia ou da Irlanda seria de construção mais rude que esses chalés.

O proprietário desta propriedade, no início do século presente, era um Senhor Patrick Byrne Starkey. Sua família sustentava a antiga fé.

Eles eram católicos romanos de posição séria, considerando um pecado casar-se com qualquer um de descendência protestante, por mais disposto que o pretendente pudesse estar para abraçar a religião romana.

O pai de Patrick Starkey fora um seguidor de James II, e, durante a desastrosa campanha irlandesa daquele monarca, ele se apaixonara por uma beleza irlandesa, a Senhorita Byrne, muito zelosa por sua religião e pelos Stuarts.

Ele retornara à Irlanda após sua fuga para a França, e casou-se com ela, levando-a de volta à corte de Saint Germain. Contudo, os senhores desordeiros que cercaram o Rei James em seu exílio, insultaram sua bela esposa e o enojaram.

Então, ele se retirou de Saint Germain para Antuérpia, de onde, depois de alguns anos, voltou tranquilamente para o Solar Starkey.

Ele era um católico muito firme, um defensor dos Stuarts e dos direitos divinos dos reis, que a sua religião quase o transformou em um ascese[29].

Seus vizinhos de Lancashire queriam o ajudar a se reconciliar com as pessoas de Saint Germain, porém, eles não suportaram a inspeção de um moralista tão severo.

Foi assim que ele deu sua lealdade onde não podia dar sua estima, e aprendeu a respeitar sinceramente o caráter íntegro e moral de alguém que ele ainda considerava como um usurpador.

O governo do Rei Guilherme tinha pouca necessidade de temer tal coisa. Então, ele voltou, como já disse, com o coração sóbrio e a fortuna empobrecida, para sua casa ancestral, que caíra tristemente em ruínas.

As estradas para a “Trough of Bolland” eram trilhas que mal conseguiam suportar carruagens, e, de fato, o caminho até a casa, ficava ao longo de um campo lavrado, antes de se chegar ao parque de cervos.

A Senhora Starkey, como o camponês costumava chamar a esposa do Senhor Patrick Byrne Starkey cavalgava atrás de seu marido, segurando-o com uma mão leve por seu cinto de couro. O pequeno filho e sucessor de Patrick Byrne Starkey, se agarrava a um servo da família, que o guiava em seu cavalo. Uma mulher de meia-idade seguia-os a pé, com passos firmes, guiando o cavalo puxando a carroça, que levava grande parte da bagagem, e, no alto das caixas e baús, estava sentada uma garotinha de beleza deslumbrante, elevando o seu pescoço mais alto, e balançando-se destemidamente de um lado para o outro, enquanto a carroça balançava e sacudia na pesada trilha repleta de folhas secas do fim de outono.

A menininha usava um manto negro de seda espanhol sobre a cabeça, e ao todo, sua aparência era tal como uma velha senhora. Alguns cães e um garoto formavam o grupo de viajantes.

Eles cavalgaram silenciosamente, olhando sombria e seriamente para as pessoas, que despontavam de suas cabanas espalhadas pela trilha para fazer reverência ao homem ilustre.

“Finalmente voltaram!”

As pessoas os cumprimentavam assim.

Eles olharam para a pequena procissão, maravilhados, mas, não amortecidos pelo som da língua estrangeira em que as poucas palavras necessárias eram ditas.

Um rapaz olhou para o Senhor Patrick Starkey para ajudá-lo na carroça, e os acompanhou até o Solar.

Quando a Senhora Starkey desceu do cavalo, a mulher de meia-idade que andava, enquanto os outros cavalgavam, deu um rápido passo e tomou a Senhora Starkey, que era de uma figura leve e delicada, em seus braços.

Ela ajudou a mulher até a porta de entrada, a guiando até o Senhor Patrick Starkey, ao mesmo tempo, proferindo uma bênção apaixonada e estranha.

O Senhor Patrick Starkey ficou parado, sorrindo seriamente no início, entretanto, quando as palavras de bênção foram pronunciadas, ele tirou seu chapéu, e dobrou a cabeça.

A menina com o manto negro pisou na sombra do salão escuro, e beijou a mão da Senhora Starkey, então o rapaz observou o grupo se reunindo em torno dele.

Ele estava ansioso para ouvir tudo, e para saber o quanto o Senhor Patrick Starkey lhe daria por seus serviços.

De tudo o que pude reunir, o Solar, no momento do retorno do Senhor Patrick Starkey, estava no estado deplorável.

As paredes acinzentadas e robustas permaneciam firmes e inteiras, mas, as salas internas foram usadas para todos os propósitos, antes da sua chegada.

A grande sala de estar era um celeiro, a sala de tapeçaria ainda estava repleta de restos de lã por abrigar por muito tempo a tecelagem, e assim por diante.

Se o Senhor Patrick Starkey não tinha dinheiro para gastar em móveis novos, ele e sua esposa tinham o dom de embelezar as coisas antigas.

Ele não era um carpinteiro desprezível, e ela tinha uma espécie de graça no que fazia, e dava um ar de pitoresca elegância em tudo o que ela tocava. Além disso, eles trouxeram muitas coisas raras do continente, falando francamente, coisas que eram raras naquela parte da Inglaterra, como entalhes, cruzes e belos quadros.

Logo, novamente, porque a madeira era abundante na “Trough of Bolland”, eles colocaram grandes lareiras repletas de madeira, que dançavam e brilhavam em todas as salas escuras e antigas, dando para a casa um conforto singular.

Por que digo isso?

Tenho pouco a ver com o Senhor Patrick Starkey e a Senhora Starkey, e ainda assim, me debruço sobre este assunto, porque para explicar o que está adiante, devo explicar estes pormenores, e pode até parecer que eu não estivera disposto a falar sobre outras pessoas, com quem a minha vida estava tão estranhamente misturada.

A Senhora Starkey fora educada na Irlanda, pela mesma mulher que a levantou nos braços até seu marido em Lancashire. Esta mulher teve um curto período de casada, mesmo assim, Bridget Fitzgerald, seu nome, nunca deixara de ser a sua empregada e cuidadora.

Seu casamento, com um senhor acima dela na hierarquia, foi infeliz. Seu marido morrera e a deixara em uma pobreza ainda maior que aquela em que ela se encontrava antes do casamento. Ela teve uma criança, a linda garota que estava sentada sobre as caixas, na carruagem que carregava as bagagens que foram trazidas para o Solar, guiada por sua mãe.

A Senhora Starkey oferecera novamente o serviço quando Bridget ficou viúva. Ela e sua filha, desamparadas, viveram em Saint Germain e em Antuérpia, e agora, estavam no Solar em Lancashire.

Assim que Bridget chegou lá, o Senhor Patrick Starkey lhe deu uma casa e se esforçou mais para mobiliá-la que em qualquer outra coisa fora de sua própria casa. Era apenas nominalmente a residência dela, porque ela estava constantemente na grande casa e usava o chalé apenas para dormir, uma vez que, ficava muito tempo cuidando de sua senhora.

As duas casas eram próximas, na verdade, era apenas um curto corte na floresta, que distanciava as duas casas. Sua filha, Mary, da mesma forma, ficava mais tempo na grande casa que no chalé. A Senhora Starkey as estimava, tanto a mãe, quanto a garota. As duas tiveram grande influência sobre a Senhora Starkey e, através dela, sobre seu marido.

O que quer que Bridget ou Mary desejassem, por certo, elas conseguiriam. Elas não eram antipopulares, e, embora acanhadas, eram generosas por natureza. Todavia, os outros criados tinham medo delas, porque acreditavam que Bridget escondia algo macabro.

O Senhor Patrick Starkey perdera seu interesse em todas as coisas seculares, e a Senhora Starkey era gentil, afetuosa e dedicada. Ambos, marido e mulher, eram ternamente apegados um ao outro e ao filho.

Quando havia necessidade de decisão, eles ficavam pensativos, por isso, Bridget podia exercer tal poder arbitrário.

Apesar disso, se todos os outros cediam à sua “magia de uma mente superior”, sua filha se rebelava vez ou outra. Ela e sua mãe, eram muito parecidas para concordar facilmente sobre as coisas.

Havia brigas entre elas, e reconciliações que demoravam para efetivarem, porque o temperamento das duas era, de fato, muito difícil de lidar.

Houve momentos em que, no calor da discussão, poderiam se esbofetear. Em todos os outros momentos, ambas, especialmente Bridget, dariam a vida uma pela outra, de bom grado.

O amor de Bridget por sua filha era muito mais profundo que aquela filha pensara. E, por este amor, era difícil de acreditar que a garota escolheria ir para longe dos braços maternos.

Mary implorou que a Senhora Starkey encontrasse um lugar para que ela pudesse trabalhar, de preferência, longe da mãe, além dos mares, naquela vida continental mais alegre, entre as cenas das quais, seus anos mais felizes foram gastos.

A garota pensava, como pensa qualquer jovem, que a vida duraria para sempre, e que dois ou três anos eram apenas uma pequena porção de tempo que passaria longe de sua mãe, de quem ela era a única filha.

Bridget julgava de maneira diferente, ainda assim, estava muito orgulhosa para mostrar o que sentia e fingiu não se importar com o afastamento da filha.

Se sua filha queria deixá-la, então, ela podia partir.

Mas as pessoas falaram que Bridget ficou mais velha, uns dez anos, apenas na espera da filha, no curso de dois meses, e se arrependera de aceitar que Mary partisse.

A verdade era que, Mary queria por um tempo deixar o lugar e buscar alguma mudança, e levaria sua mãe com ela se pudesse.

De fato, quando a Senhora Starkey lhe arranjou um emprego com uma boa senhora no exterior, e o tempo se aproximava da partida, foi Mary que se agarrou a sua mãe com um abraço apaixonado, e, com enxurradas de lágrimas, declarou que nunca a deixaria, e Bridget, que finalmente soltou seus braços, mas sem lágrimas, pediu-lhe que sustentasse a sua palavra, e que podia Mary vagar pelo mundo, mas voltasse para casa, algum dia.

Bridget permaneceu sóbria, com seu discurso em voz alta, e assim, olhando para o horizonte atrás de Mary, a garota foi embora.

Bridget parecia encarar a morte, porque mal conseguia respirar ou fechar os olhos amedrontados, até que finalmente voltou para seu chalé, e se colocou contra a porta com um velho e pesado ressentimento.

Lá, ela se sentou imóvel, perto das cinzas da lareira, de um fogo extinto algum tempo antes. Bridget ficara surda para a doce voz da Senhora Starkey, enquanto a mulher implorava que ela abrisse a porta e depois voltou para a sua casa.

Surda, triste e imóvel, Bridget permaneceu sentada por mais de vinte horas.

A Senhora Starkey caminhou pela trilha nevada entre a sua casa e o chalé. Ela bateu na porta pela terceira vez, carregando consigo um filhote de Spaniel[30], o animal era de estimação de Mary, e que não parara um segundo sequer durante a noite toda, porque a procurava, lamentava e gemia.

Com lágrimas descendo copiosamente pelo seu rosto, a mulher ouviu a história de sua senhora, através da porta fechada, envolta ainda em seu olhar de angústia, tão firme, tão imóvel, igual ao dia anterior.

A pequena criatura pulou nos braços da Senhora Starkey e começou a proferir seu ladrado ansioso, enquanto tremia de frio. A Senhora Starkey o sacudiu em seus braços e a criatura canina se calou.

Novamente aquele longo choro do pequeno cão começou, ela pensou ser por sua filha, mas seu choro era de fome, uma vez que, sua última refeição fora dada por Mary.

A Senhora Starkey abriu a porta e Bridget beijou a mão de sua senhora. A Senhora Starkey pediu que fizessem comida para o cachorrinho e ficou ao lado de Bridget durante a noite toda.

No dia seguinte, o Senhor Patrick Starkey desceu, carregando um belo quadro estrangeiro de Nossa Senhora do Sagrado Coração, assim como os protestantes a chamavam. Era um quadro da Virgem, seu coração perfurado por flechas, cada flecha representando um de seus grandes infortúnios.

Essa imagem estava pendurada no chalé de Bridget quando eu a vi pela primeira vez. E hoje, esse quadro está na parede da minha sala.

Os anos se passaram.

Mary ainda estava no exterior. Bridget estava imóvel e severa, em vez de ativa e apaixonada. O cachorrinho Mignon era, de fato, seu estimado amigo.

Ouvi dizer que ela falava com ele continuamente, embora, para a maioria das pessoas, ela fosse tão silenciosa.

O Senhor Patrick Starkey e a sua esposa a tratavam com a muita consideração, e ela era muito devota e fiel para eles.

Mary escreveu com bastante frequência, e parecia satisfeita com sua vida. No entanto, as cartas não cessaram, tenho dúvidas se antes ou depois de uma grande e terrível tristeza chegar à casa dos Starkey.

O Senhor Patrick Starkey adoeceu de uma febre pútrida, e a sua esposa contraiu a mesma febre, mas não teve a mesma sorte. Você pode ter certeza, Bridget não deixou outra pessoa cuidar da Senhora Starkey a não ser ela e deitada nos braços de Bridget, a Senhora Starkey desistiu de respirar.

O Senhor Patrick Starkey se recuperou depois de um longo tempo enfermo. Ele nunca mais foi o mesmo, nem teve forças para sorrir após ver sua esposa morta.

Ele jejuou e rezou mais que nunca, e as pessoas diziam que ele tentou cortar a obrigação em ser um homem zeloso por suas coisas, e deixar toda a propriedade para a Igreja, para afundar a sua tristeza em um mosteiro no exterior, do qual ele rezou para que um dia seu filho Patrick pudesse ser o reverendo padre. Mas, ele não pôde fazer isso, pelo rigor da vinculação das leis contra os protestantes.

Assim, ele só podia nomear cavalheiros de sua própria fé como guardiães de seu filho. Ele não podia, sendo assim, abandonar tudo e deixar seu filho sem amparo.

O tempo passou e ele adoeceu.

É claro, Bridget não foi esquecida.

Ele mandou chamá-la enquanto se deitava no leito de morte, e perguntou se ela preferia uma quantia ou uma pequena anuidade paga pelos guardiões futuramente.

Ela disse que deseja uma quantia, porque, pensou em sua filha e em ajudar Mary quando ela voltasse.

Então, o Senhor Patrick Starkey deixou o chalé para Bridget e uma boa quantia em dinheiro para a sua empregada.

Depois de um punhado de dias, ele morreu, com um coração tão pronto e disposto em encontrar a sua amada no paraíso.

O jovem Patrick foi levado por seus guardiões, e Bridget foi deixada sozinha.

Eu disse que ela não tinha notícias de Mary há algum tempo?

Em sua última carta, Mary falara de viajar com sua senhora, que era a esposa inglesa de algum grande oficial estrangeiro, e falara de suas chances em fazer um bom casamento, sem citar o nome do cavalheiro, mantendo-o em segredo, para futuramente ser uma agradável surpresa para sua mãe.

Depois, veio um longo silêncio.

Bridget estava sozinha.

Sem cartas da filha e sem a Senhora Starkey. O Senhor Patrick Starkey estava morto, o pequeno Patrick estava longe.

O coração de Bridget estava roído pela angústia, e ela não sabia a quem pedir notícias de sua filha. Era o Senhor Patrick Starkey quem escrevia as suas cartas, ditadas por Bridget para a sua filha. Ela não sabia escrever.

Desesperada, ela foi até a igreja mais próxima e conseguiu lá, um bondoso padre, que ela conhecera em Antuérpia, para escrever a carta em seu nome. No entanto, nenhuma resposta de Mary pousou em suas mãos.

Foi como chorar na terrível quietude da noite.

Um dia, Bridget sentiu falta dos vizinhos que estavam acostumados a marcar suas idas e vindas. Ela nunca fora sociável com nenhum deles, contudo, a visão deles a observando se tornara parte de sua rotina. Porém, a sua tristeza era maior.

Uma manhã veio, e sua porta permaneceu fechada, sua janela ausente de qualquer brilho ou luz da lareira dentro dela.

Alguém bateu a porta, tentou abrir, ela estava trancada.

Duas ou três pessoas colocaram a cabeça juntas, antes de se atreverem a olhar pela janela sem fechadura. Mas, finalmente, eles tomaram coragem, e então, viram que a ausência de Bridget de seu pequeno mundo não era resultado de acidente ou morte, mas, porque ela partira do chalé.

Ela deixara tudo em ordem.

Os poucos artigos da casa foram empacotados e arrumados em caixas, sendo assim, protegidos dos efeitos do tempo e da umidade. E a foto da Nossa Senhora foi tirada, e desapareceu. Em uma palavra, Bridget fora embora de sua casa, e não deixou nenhum vestígio para qual lugar ela partira.

Soube depois, que ela e seu cachorrinho tinham se desviado na longa busca por sua filha perdida. Ela era analfabeta demais para confiar em cartas. E não teria como escrever uma sem ajuda.

Entretanto, ela tinha fé em seu amor forte, e acreditava que seu instinto apaixonado a guiaria até sua filha.

Além disso, a viagem ao exterior não era novidade para ela, que podia falar o francês para explicar o objeto de sua viagem, e tinha, além disso, a vantagem de ser, a partir de sua fé, um objeto bem-vindo de hospitalidade caridosa em muitos conventos distantes.

Contudo, as pessoas ao redor do Solar Starkey não sabiam nada sobre isso. Eles se perguntavam o que acontecera com ela, de uma forma torpe e preguiçosa, e depois, pararam de pensar nela por completo.

Vários anos se passaram.

Tanto o Solar, quanto o chalé, estavam abandonados.

O jovem Patrick vivia longe, sob os cuidados de seus tutores. Havia vestígios de lã e milho nas salas de estar do Solar, e, por vezes, as pessoas do campo e da região falavam a boca pequena, se não seria bom entrar no chalé da velha Bridget, e salvar os bens que sobravam da fúria das traças e da ferrugem, que causavam triste estrago.

Não obstante, a ideia foi abandonada pela lembrança de seu forte caráter, de suas histórias, espírito magistral e força de vontade intensa.

A ideia de invadir o chalé morria, sussurrada pela ofensa em tocar qualquer artigo do chalé, e tornou-se esta ideia, uma espécie de horror, pois, acreditava-se que, viva ou morta, ela se vigaria daquele que usurpassem de suas coisas.

De repente, ela voltou a casa, da mesma maneira silenciosa que partira tempos antes.

Um dia, alguém notou uma fina e azul ondulação de fumaça subindo de sua chaminé. Sua porta estava aberta para o sol do meio-dia, e, poucas horas antes, alguém avistara uma velha mulher naquela manhã imaculada, mergulhando seu cântaro no poço, e disse este alguém, que os olhos escuros e solenes que olhavam para ele, eram muito parecidos com os de Bridget Fitzgerald, e ainda, se fosse ela, ela parecia como se fora queimada nas chamas de uma fogueira, porque estava com a sua pele muito maltratada. Muitos a viram e se preocuparam em não serem pegos olhando para ela novamente.

Ela tinha o hábito de falar perpetuamente sozinha, respondendo a si, variando seu tom de voz, de acordo com o lado que ela tomava a fala no momento.

Não era de se admirar que aqueles que ousavam ouvir do lado de fora de sua porta, à noite, acreditassem que ela cultivava conversas com algum espírito, em resumo, ela estava ganhando inconscientemente a reputação terrível de bruxa.

Seu cachorrinho, que peregrinara metade do continente com ela, era seu único companheiro. O pobre animal era uma lembrança branda de dias felizes.

Uma vez, quando ele estava doente, ela o carregou mais de três milhas para perguntar se alguém o ajudaria e demorou até encontrar um homem que era famoso por suas habilidades em todas as doenças dos animais. O que quer que esse homem tenha feito, o cão se recuperou, e ela proclamou bênçãos para o homem, que eram mais promessas de boa sorte que orações. Aqueles que a ouviram, olharam seriamente para a boa sorte do homem, quando, no ano seguinte, suas ovelhas adoeceram, e relva secou. Ele tivera tudo, menos sorte depois que ela o abençoou.

Por volta do ano de 1711, um dos guardiões tutores do jovem Patrick, o Senhor Philip Tempest, o interrogou sobre o tiroteio que houve em sua propriedade, e em consequência, ele colocou quatro ou cinco homens em sua casa para fazer companhia e o mantê-lo em segurança.

Nunca ouvi nenhum de seus nomes, além de um, Senhor Gisborne, um homem de meia-idade, que passara muito tempo no exterior, e lá, creio, ele conhecera o Senhor Philip Tempest, e lhe fazia, vez ou outra, algum serviço de guarda.

Ele era um homem ousado, debochado, insensato e destemido, que preferia estar em uma briga a estar fora dela.

Além disso, ele tinha seus ataques de maldade, quando não poupava nem homem, nem animal. E aqueles que o conheciam bem, costumavam dizer que ele tinha um bom coração, quando não estava bêbado, zangado ou irritado. Creio que ele mudara muito quando o conheci.

Um dia, todos os cavalheiros saíram atirando, e com pouco sucesso, creio, o Senhor Gisborne não acertara nenhum de seus alvos, e estava com um humor impiedoso.

Ele estava voltando para o Solar, com sua arma carregada, como um esportista, quando o pequeno Mignon cruzou seu caminho ao sair do bosque perto do chalé de Bridget.

Por certo, para descarregar sua raiva em alguma criatura viva, o Senhor Gisborne pegou sua arma e disparou.

Creio que ele desejara, anos depois, jamais atirar naquele animal.

Ele acertou Mignon, e ao choro repentino da criatura, Bridget saiu do chalé, e viu de relance o que fora feito de seu estimado amigo.

Ela pegou Mignon em seus braços e olhou para o homem. O pobre cão olhou para ela com seus olhos vidrados, e tentou abanar a cauda e lamber a mão dela, mesmo agonizando, tudo coberto de sangue.

O Senhor Gisborne falou em uma espécie de penitência amuada:

— Você devia cuidar do cachorro e o deixar fora do meu caminho, mulher! Menos um pequeno verme sem raça!

Naquele momento, Mignon esticou as pernas e endureceu o corpo. O cão de Mary, que perambulava sem a sua dona e sofria com Bridget durante anos, estava morto.

Ela se ergueu e foi em direção ao Senhor Gisborne, e fixou seu olhar nos do sombrio e terrível homem.

— Não o conheço, por que atirou? Estou sozinha no mundo e indefesa. Quanto mais os santos no céu ouvem minhas orações, mas eles viram suas costas! Escutem-me! — ela olhou para o céu, como se evocasse os santos que era devota. — Escutem-me, santos, enquanto peço que a tristeza se derrame neste homem mau e cruel. Ele matou a única criatura que me amava, e que eu amava também. Tragam pesada tristeza sobre sua cabeça por isso! Oh! Santos! Ele pensou que eu estava indefesa, porque me viu solitária e pobre, mas não são os exércitos do céu semelhantes a mim?

— Está bem! — disse ele, meio arrependido, entretanto, nem um pouco assustado com as palavras dela. — Tome algumas moedas para comprar outro cão! Pegue-as, e deixe de praguejar! Não me importo com suas ameaças! Mas odeio reclamações!

— Você não se importa com o que falo? — disse ela, aproximando-se um pouco mais e trocando sua fala imprecisa por um sussurro que fez o garoto que seguia o Senhor Gisborne, se agachar de medo. — Você viverá para ver sofrer a criatura que você mais ama... Ah! Sim, uma criatura humana, tão inocente e carinhosa quanto meu querido cãozinho morto. Você verá esta criatura se tornar um terror e uma aversão a todos, por causa deste sangue. Ouçam-me santos, que nunca falham, façam valer o meu desejo!

Ela lançou sua mão direita, cheia de gotas do resto de vida do pobre Mignon, e sacolejou-a algumas vezes, respingando no traje de tiro dele, o sangue do animal.

Era uma visão sinistra para o garoto que observava atônito, porém, o homem apenas riu um pouco e, desdenhou com deboche a mulher, e seguiu calmamente para o Solar.

Antes de chegar lá, entretanto, ele pegou um anel de ouro que usava e mandou o garoto levar o anel até a velha mulher, quando o rapaz fosse retornar para o vilarejo.

O rapaz estava “assustado”, como ele me disse depois de anos. Ele foi para o chalé e parou diante da casa, não ousando bater na porta. Finalmente ele espreitou pela janela, e pela fresta cintilante da madeira, ele viu Bridget ajoelhada diante da imagem de Nossa Senhora do Sagrado Coração, com o morto Mignon deitado entre ela e a santa. Ela rezava loucamente, enquanto seus braços tocavam o pobre animal.

O rapaz afastou-se da janela, apavorado, e passou o anel de ouro por baixo da porta. No dia seguinte, o anel foi jogado para longe do chalé e se misturou com a relva e lá está o anel até hoje, ninguém se atreveu a tocá-lo.

Enquanto isso, o Senhor Gisborne, curioso e inquieto, pensou em diminuir seus sentimentos desconfortáveis sobre o ocorrido, perguntando ao Senhor Philip quem era Bridget. Ele só conseguia descrevê-la, porque ele não sabia seu nome.

Senhor Philip também não sabia o nome dela.

Entretanto, um velho criado do Starkey, que havia retomado seu emprego no Solar nesta ocasião, um sujeito que Bridget salvara da demissão porque ele precisava muito do emprego.

— Por certo, falam da velha bruxa! Com sua fé inabalável! Seu nome é Bridget Fitzgerald. Devemos evitar qualquer contato com aquela abominação!

— Fitzgerald! — disse os dois senhores ao mesmo tempo.

Mas o Senhor Philip foi o primeiro a continuar:

— Não devemos falar sobre evitar contato com ela, Dickon. Ora! Ela deve ser a mulher que o pobre Senhor Patrick Starkey me pediu para cuidar, porém, quando eu cheguei aqui, ela partira, e ninguém sabia para onde. Irei vê-la amanhã. Mas atenção! Se algum mal lhe acontecer, ou se falarem mais sobre ela ser uma bruxa, tenho um bando de cães de caça em casa, que podem seguir o cheiro de um patife mentiroso da mesma maneira que caçam uma raposa, Dickon. Portanto, tenha cuidado com o que você fala. Pare de dizer para as pessoas evitarem contato com uma velha e fiel serva de seu falecido mestre!

— Ela teve uma filha? — perguntou o Senhor Gisborne, depois de um tempo.

— Não sei! Creio que sim. Tenho uma vaga ideia que ela realmente teve uma filha! — respondeu o Senhor Philip.

— Senhores... — disse o humilde Dickon. — A Senhora Bridget teve uma filha. Chama-se Mary, que foi para o exterior, e nunca mais se ouviu falar dela desde então. E as pessoas dizem, que isso foi o grande motivo para que sua mãe enlouquecesse.

O Senhor Gisborne sombreou seus olhos com sua mão.

— Queria que ela não me tivesse amaldiçoado! — murmurou ele. — Ela pode ter poder de uma bruxa, realmente! — ele seguiu seu murmuro.

Depois de um tempo, ele disse em voz alta, porém, ninguém entendeu corretamente o que ele quis dizer:

— Maldição! Isso é impossível!

Ele deu de ombros, e após um silêncio brutal, ele e os outros cavalheiros começaram a beber.


Capítulo II

Agora, chego ao momento em que me misturo com as pessoas sobre as quais tenho escrito. E, para que vocês entendam como me liguei a elas, devo dar-lhes um pequeno relato sobre mim.

Meu pai era o filho mais novo de um cavalheiro chamado Devonshire, de propriedade modesta. Meu tio mais velho foi bem-sucedido na herança de seus antepassados, meu segundo tio tornou-se um advogado eminente em Londres, e meu pai seguiu o caminho religioso. Como a maioria dos pobres clérigos, sua família era grande, e não tenho dúvida de que fiquei contente quando meu tio londrino, que era solteiro, ofereceu-se para tomar conta de mim, e me educar para ser seu sucessor nos negócios.

Assim, vim morar em Londres, na casa do meu tio, não muito longe da Gray's Inn[31].

Fui tratado e estimado como se fosse seu filho, e trabalhava com ele em seu escritório. Eu gostava muito do meu tio, realmente. Ele era o conselheiro de muitos senhores importantes do país, e alcançara sua posição, tanto pelo conhecimento da natureza humana, quanto pela sabedoria do Direito, embora ele aprendera o suficiente neste último.

Ele costumava dizer que seu negócio era a lei, sua fonte grande de prazer. De seu íntimo conhecimento da história das famílias, e de todos os trágicos percursos envolvidos, ouvi-lo falar, em momentos de lazer, sobre qualquer brasão de armas que se deparasse em seu caminho, era tão bom quanto uma peça de teatro ou um romance.

Muitos casos de propriedade disputada, dependente do amor à genealogia, foram entregues para ele, como se ele fosse uma grande autoridade em tais pontos e sim, ele era.

Se o advogado que vinha consultá-lo era jovem, meu tio não aceitava o honorário, apenas lhe dava uma longa palestra sobre a importância de atender à Heráldica[32], mas, se o advogado fosse maduro e de boa reputação, ele o cobrava muito bem pelo seu trabalho.

Sua casa estava em uma rua nova e imponente chamada Rua Ormond, e nela, havia uma bela biblioteca, contudo, todos os livros tratavam de coisas que eram passadas, nenhum deles planejava ou olhava para o futuro.

Eu trabalhava com ele, em parte para o bem da minha família, e também porque meu tio tinha realmente me ensinado a desfrutar da mesma prática em que ele se deleitava tanto.

Suspeito que trabalhei demais, porque em 1718 eu estava longe de estar bem, e meu bom tio estava perplexo por minha má aparência.

Um dia, ele tocou a campainha duas vezes na minha sala de escrivão no escritório da Gray's Inn. Era uma convocação. O segui até o seu escritório. Lá, estava me esperando um cavalheiro, que eu conhecia de vista, e ao seu lado, um advogado irlandês de mais reputação que merecia.

Meu tio estava lentamente esfregando as mãos. Fiquei parado por dois ou três minutos antes dele falar.

Logo, meu tio falou que eu tinha que arrumar minhas malas naquela mesma tarde, e ir para o oeste de Chester ainda naquela noite. Chegaria lá, se tudo corresse bem, ao final de cinco dias, e então, eu devia esperar um barco para atravessar até Dublin. Seguiria para uma cidade chamada Kildoon, e nessa cidade eu deveria permanecer, fazendo certas investigações sobre a existência de qualquer descendente de uma família, para a qual, algumas propriedades valiosas foram entregues como herança.

O advogado irlandês estava cansado do caso e teria cedido a propriedade, sem mais delongas, para um homem que reclamava a sua posse, no entanto, ao colocar os papéis sobre a mesa, meu tio lembrou-se e advertiu sobre outros tantos possíveis reclamantes anteriores, sendo assim, o advogado lhe suplicou que assumisse a administração do caso.

Em sua juventude, meu tio adorava viajar para Irlanda, porque gostava de buscar informações sobre as famílias e a cada pedaço de papel ou pergaminho que ele encontrava, e palavra de tradição, ele se sentia feliz. Entretanto, agora velho, ele me colocou nesta missão.

Assim, fui para Kildoon.

Suspeito que experimentei algo do encanto que meu tio sentia ao perceber o cheiro genealógico, uma vez que, logo descobri, quando cheguei ao local, que o Senhor Rooney, o advogado irlandês e o primeiro reclamante, tiveram uma terrível briga.

Havia três pobres pretendentes irlandeses à herança, cada um mais próximo do último possuidor, porém, uma geração antes, havia uma relação ainda mais próxima, que não fora contabilizada, nem sua existência descoberta pelos advogados.

O que fora feito dele?

Viajei para frente e para trás, fiz a travessia para a França, e voltei, com uma leve pista, que terminou em minha descoberta de que, selvagem e dissipado, ele deixara um filho, um filho, de caráter ainda pior que o pai, que esse filho, chamado Hugh Fitzgerald havia se casado com uma bela serviçal de Byrnes, uma pessoa abaixo dele em grau hereditário, entretanto, acima dele em caráter, e que ele morrera logo após seu casamento, deixando um filho, não se sabia se era um menino ou uma menina, e que a mãe retornara para trabalhar na família Byrnes.

Agora, o chefe desta última família estava servindo no regimento do Duque de Berwick, isso aconteceu muito antes que eu pudesse ter notícias dele. E pelo que apurei, ele era uma pessoa muito dura, e odiava os jacobitas[33].

Uma carta surgiu em minhas mãos:

“Bridget Fitzgerald... A mulher viúva perdera a irmã em seguida. Ela foi para a Inglaterra quando a Senhora Starkey a chamou de volta! Ela estava sozinha. Não se sabe muito sobre Bridget Fitzgerald no momento, provavelmente o Senhor Philip Tempest, o tutor de seu sobrinho, pode lhe dar algumas informações.”

Não me importei muito, mas fui ao encontro do tal Senhor Philip, e quando solicitado, me disse pagar uma anuidade regularmente para uma mulher idosa chamada Fitzgerald, que morava em Coldholme, o vilarejo próximo ao Solar Starkey. Se ela tinha algum descendente, ele não sabia.

Em uma noite sombria de março, fui aos lugares descritos no início da minha história. Mal conseguia entender o dialeto rude no qual a direção para a casa da velha Bridget foi dada.

— Siga a trilha! — me falaram com quase impronunciáveis palavras.

Isso foi tudo que recebi como indicação e nenhuma ideia de que eu deveria me guiar pelas luzes distantes que brilhavam nas janelas do Solar, que agora estava ocupado, fazia um bom tempo, por um fazendeiro que sustentava o posto de mordomo, enquanto o herdeiro do Senhor Patrick Byrne Starkey, agora com vinte e cinco anos, estava fazendo uma viagem.

Cheguei ao chalé de Bridget, um lugar baixo, coberto por musgos. As madeiras, que um dia o cercaram, estavam quebradas, e a vegetação rasteira da floresta subiu até as paredes, e por certo, escurecera as janelas.

Eram cerca das sete horas da noite, não era tarde para meus costumes londrinos, no entanto, após bater por algum tempo à porta e não receber nenhuma resposta, pensei seriamente que o ocupante da casa fora dormir mais cedo.

Voltei pelo caminho que me levaria até à vila, e me dirigi à igreja mais próxima, que ficava umas três milhas de distância, certo de que, perto da igreja eu encontraria uma pousada ou qualquer coisa semelhante, e na manhã seguinte voltaria para Coldholme.

Era uma manhã fria, meus pés deixaram marcas na fina geada que cobria o chão, segui por um caminho na trilha, que o dono da pousada que encontrei ao lado da igreja, na noite passada, me garantiu ser um atalho curto e que me pouparia quase uma hora a menos de caminhada.

No caminho, avistei uma velha mulher, que instintivamente suspeitei ser o objeto de minha busca. Fiquei olhando para ela. Ela se inclinou em um minuto ou dois, e parecia estar procurando algo no chão, já que, com a cabeça dobrada, ela se afastou do lugar onde eu a olhava, e a perdi de vista.

Perdi meu caminho, e fiz uma ronda, apesar das instruções do anfitrião da pousada, pois, quando cheguei ao chalé de Bridget, a mulher já estava lá, como suspeitei, sem nenhuma semelhança de caminhada apressada ou qualquer coisa parecida.

A porta estava ligeiramente entreaberta. Bati, e a majestosa figura estava diante de mim, aguardando silenciosamente a explicação do meu recado.

Seus dentes desapareceram, então, o nariz e o queixo se aproximaram, as sobrancelhas cinzentas eram retas e quase pairavam sobre seus olhos profundos e cavernosos, e os cabelos brancos e espessos estavam em ondas prateadas sobre a testa baixa, larga e enrugada. Por um momento, fiquei incerto como moldar minha resposta ao solene questionamento de seu silêncio.

— Seu nome é Bridget Fitzgerald, acredito...

Ela curvou a cabeça com o consentimento.

— Tenho algo a dizer para a senhora. Posso entrar? Não estou disposto a ficar em pé por muito tempo. Estou cansado da viagem.

— Cansado? Você é jovem! — resmungou ela.

No início, ela parecia inclinada a me negar a entrada em sua casa. Contudo, no momento seguinte, ela olhou fixamente em meus olhos durante aquele instante, e me conduziu para dentro e deixou cair a sombra de seu manto cinzento, que antes escondia parte do seu semblante.

O chalé era rude, quase sem a mobília, o que havia ali, era o suficiente para a mulher solitária, entretanto, antes da imagem da Nossa Senhora, da qual já fiz menção, havia um pequeno copo cheio de prímulas[34] frescas.

Enquanto, ela reverenciava a Nossa Senhora, entendi o porquê dela surgir antes no bosque, na trilha que eu seguia: ela procurava as flores.

Ela se virou e pediu que me sentasse. A expressão de seu rosto, que eu estava analisando, não era ruim como as histórias sobre ela, que o dono da pousada me falara na noite anterior.

Bridget tinha um rosto austero, feroz e indomável, com um semblante melancólico e marcado por agonias de muitas horas de choro solitário, mas, não era nem astuto, nem maligno.

— Meu nome é Bridget Fitzgerald! — afirmou ela, para abrir nossa conversa.

— Seu marido era Hugh Fitzgerald, de Knock Mahon, perto de Kildoon, na Irlanda, certo?

Uma luz fraca entrou na escuridão de seus olhos.

— Exatamente!

— Posso perguntar se você teve algum filho com ele?

A luz em seus olhos cresceu rapidamente e sua face corou. Ela tentou falar, eu pude ver, no entanto, algo subiu em sua garganta e a sufocou. Ela demorou quase um minuto para se recompor e pudesse falar calmamente diante daquele estranho, eu.

— Eu tinha uma filha, e seu nome era Mary Fitzgerald. — sua natureza forte dominou a sua voz, e ela resmungou em um pranto. — Oh! Homem! Há alguma notícia dela? Diga-me se a encontrou!

Ela se levantou do assento, veio até mim e agarrou o meu braço, olhando nos meus olhos.

Assim, ela leu, como suponho, minha total ignorância do que fora feito de sua filha, uma vez que, ela voltou cegamente para sua cadeira, e sentou-se balançando e gemendo brandamente, como se eu não estivesse ali.

Não ousei falar com a mulher solitária.

Após uma pequena pausa, ela se ajoelhou diante do quadro de Nossa Senhora do Sagrado Coração, e falou com a santa por todos os nomes fantasiosos e poéticos da ladainha[35].

— Oh! Rosa de Saron[36]! Oh! Torre de David[37]! Oh! Estrela do Mar[38]! Não conforta o meu pobre coração sofrido? Até quando ficarei sem esperança? Concedei-me, ao menos, uma graça!

Assim por diante, ela foi evocando e reclamando, sem prestar atenção à minha presença.

Suas orações tornaram-se cada vez mais desesperadas, até que pareciam tocar as fronteiras da loucura e blasfêmia.

Quase, involuntariamente, falei, na tentativa de parar a sua fala de alguma maneira:

— Você tem algum motivo para pensar que sua filha está morta?

Ela levantou os joelhos, caminhou alguns passos e ficou diante de mim.

— Mary Fitzgerald está morta! — disse ela. — Nunca mais a verei em carne e osso! Nenhuma língua jamais me disse tal coisa, nem confirmou, mas, sei que ela está morta! Eu ansiava tanto vê-la, e a vontade do meu coração é temerosa e forte. Mesmo que ela fosse uma andarilha no outro lado do mundo, ela teria tempo para voltar. Muitas vezes, me pergunto o motivo dela não sair do túmulo para surgir diante de mim, e me ouvir dizer como a amava!

Eu sabia apenas detalhes rasos e necessários para a busca, entretanto, senti compaixão pela mulher desolada, e ela percebera, com certeza, a incomum simpatia em meus olhos pensativos.

— Ah! Senhor! Ela nunca soube como eu a amava, e fomos separadas tão cedo. Desejei tanto que a viagem dela fracassasse e ela retornasse. — a pobre mulher olhou para a imagem da santa. — Oh! Bendita Virgem Maria! Você sabe que eu só quis dizer que ela deveria voltar para os braços de sua mãe, que é o lugar mais feliz da Terra. Meu desejo foi em vão. Seu poder vai além do meu pensamento, e não há esperança para mim. Se as minhas palavras pudessem trazer minha querida filha, ela estaria aqui!

— Mas... — disse eu. — Você não sabe, de fato, se ela está morta. Mesmo agora, em suas reclamações, você espera, ainda, que ela pudesse estar viva. Escute-me...

Tomei fôlego e contei a história superficialmente, porque realmente eu também só sabia a história, sem muitos detalhes. Eu desejava que ela se acalmasse e parasse de abraçar aquele luto invisível.

Ela escutou com profunda atenção, colocando, vez ou outra, perguntas que me convenceram de que eu não era um sujeito muito inteligente, porque me faltavam palavras para responder as tais indagações da mulher, que estava mergulhada em profunda solidão e misteriosa tristeza.

Assim, ela retomou sua história, e em poucas palavras, me falou de suas andanças pelo exterior em busca vã de sua filha. Algumas vezes, pedia ajuda aos soldados que ela encontrava pelo caminho, e dormia sob o sol e chuva.

A senhora, que Mary ajudava, morrera logo após a data da última carta de Mary para Bridget, e seu marido, o oficial estrangeiro, fora servir na Hungria, para onde Bridget seguiu desesperadamente, todavia, tarde demais para encontrá-lo.

Chegaram-lhe vagos rumores de que Mary fizera um grande casamento, e isso deixou a pobre mulher extremamente confusa, porque não era muito comum não saber o paradeiro de um filho que casara majestosamente, porque alguém saberia o paradeiro de uma pessoa rica.

Após vagar a sua procura, seu pensamento a assaltou com a possível volta da filha para a casa em Coldholme, na “Trough of Bolland”, em Lancashire, e que, enquanto Bridget a procurava, Mary estaria fazendo o caminho inverso da mãe.

Sendo assim, Bridget voltou, naquela esperança fantasiosa, para seu lar desolado e abandonado.

A pobre mãe julgou mais seguro permanecer no chalé, porque se Mary estivesse viva, estaria procurando por sua mãe e saberia onde ela estava.

Anotei um ou dois detalhes da narrativa de Bridget, que seriam úteis para mim, visto como fui estimulado a continuar a busca de uma maneira estranha e extraordinária.

Fiquei impressionado com a história, e que deveria retomar as buscas por Mary de onde Bridget parou, e isto me assaltou, sem nenhuma razão que me influenciasse anteriormente, como a ansiedade de meu tio sobre o assunto ou a minha reputação de advogado, e assim por diante.

Entretanto, isso surgia de algum poder estranho que só tomou posse de minha vontade naquela manhã, e que me forçou na direção dessa escolha.

— Irei procurá-la! — afirmei. — Não pouparei esforços nessa busca, senhora! Confie em mim! Eu a encontrarei! Poderei encontrar coisas horríveis enquanto a procuro, sei. Ela pode estar morta, realmente, contudo, se sua filha se casou, pode ter deixado um filho. Enfim, há muitas possibilidades. Não podemos descartar nenhuma!

— Uma criança? — ela chorou, como se pela primeira vez esta ideia lhe tocasse a mente e voltou os olhos para a santa, novamente. — Ouça-o, Virgem Santíssima! Ele diz que ela pode ter deixado uma criança. Você nunca me disse, embora eu tenha rezado por um sinal, dia e noite!

— Não! — exclamei. — Não sei nada além do que você me falou! Você disse que ouviu falar do casamento dela! Há esta possibilidade.

Porém, ela não pegou nada do que eu disse. Ela estava orando à Virgem em uma espécie de fascínio, o que parecia torná-la inconsciente de minha presença.

De Coldholme fui ao Senhor Philip Tempest.

A esposa do oficial estrangeiro fora prima de seu pai, e pensei que poderia ganhar alguns detalhes sobre a existência do tal Conde de La Tour d'Auvergne, e onde poderia encontrá-lo.

Entretanto, o Senhor Philip fora para o exterior, e levaria algum tempo até que eu pudesse receber uma resposta dele.

Por isso, segui o conselho de meu tio, a quem eu mencionara que me sentia cansado, tanto no corpo quanto na mente, pela minha busca no boca a boca.

Ele imediatamente me disse para ir a Harrogate, enquanto eu aguardava a resposta de Senhor Philip, porque lá ficava perto de um dos lugares ligados à minha busca, Coldholme, e também, não muito longe do Senhor Philip Tempest. Porque, caso ele voltasse, eu o visitaria e assim faria mais perguntas, e, em conclusão, meu tio me pediu que tentasse esquecer tudo sobre meus negócios por um tempo e descansar.

Isto não foi fácil.

Era como se eu estivesse em uma tempestade e o vento me empurrasse para o assunto que eu queria esquecer por um tempo.

Meu estado mental estava confuso e ansioso. Algo inquieto parecia instigar meus pensamentos, através de todos os caminhos possíveis, dos quais, havia uma chance de alcançar meu objeto.

Eu fazia caminhadas sem propósito, sempre pensando em qual lugar Mary estaria.

Quando eu segurava um livro e lia as palavras, o sentido delas não penetrava em meu cérebro. Se eu dormia, continuava com as mesmas ideias, sempre fluindo na mesma direção.

Isto não podia durar muito, sem ter um efeito negativo sobre o meu corpo e eu sabia disso. Porém, foi inevitável... Fiquei doente.

Meu amável tio veio me cuidar, e após o fim do perigo imediato de morte, minha vida parecia escorregar em uma depressão durante uns dois ou três meses.

Eu não perguntava se alguma resposta chegara das mãos do Senhor Philip, porque temia cair no velho canal de pensamento sobre Mary. Bloqueei toda a minha imaginação, desejando jogar para longe o assunto.

Meu tio permaneceu comigo até quase o meio do verão, depois, voltou aos seus negócios em Londres, deixando-me em boa saúde, mas não completamente forte.

Depois de uma quinzena, ele falou:

— Olharemos as cartas e falaremos de várias coisas!

Eu sabia o que este pequeno discurso referia-se, e me encolhi ao perceber o avassalador pensamento que surgia, e que estava tão intimamente ligado aos meus primeiros sintomas de doença.

No entanto, eu tinha mais quinze dias para caminhar por aqueles bosques revigorantes de Yorkshire.

Naqueles dias, me instalei em uma grande pousada, em Harrogate, mas, já estava ficando pequena demais para a acomodação do afluxo de visitantes, e muitos se alojavam em volta da pousada, nas casas de fazenda do distrito.

No começo das manhãs, eu tinha a pousada praticamente só para mim, e, de fato, me senti como se a pousada fosse uma casa familiar, tão íntima, que os donos, uma senhora simpática e um senhor sorridente, se tornaram meus amigos.

Ela me repreendia por sair tão tarde para as caminhadas, ou por ficar muito tempo sem comer, de uma maneira bastante maternal, enquanto ele conversava comigo sobre as safras de vinhos, e me ensinava muitas regras de Yorkshire sobre cavalaria.

Nas minhas caminhadas, conheci outros estranhos, ocasionalmente.

Mesmo antes que meu tio me deixasse, eu notara, com uma curiosidade meio estúpida, uma jovem de aparência muito marcante, que andava sempre acompanhada por uma senhora idosa de semblante pouco gentil, porém, com a jovem tinha algo em seu olhar que me possuía em seu favor.

A jovem sempre abaixava o véu quando alguém se aproximava, assim, só uma ou duas vezes, quando a encontrei em uma volta repentina no caminho, consegui vislumbrar seu rosto. Não tenho certeza se era bonito, embora tempos depois, eu julgasse que sim.

Essa tristeza, o olhar pálido, calmo, resignado, de intenso sofrimento, foi o que irresistivelmente me atraiu, não com amor, todavia, com um sentimento de infinita compaixão por uma jovem tão desesperadamente infeliz.

A senhora usava o mesmo olhar de melancolia silenciosa, sem esperança, mas conformado.

Perguntei ao dono da pousada quem eram elas.

Ele disse que se chamavam Clarke, e pensava que as duas eram mãe e filha, porém, ele não acreditava que fosse seu nome correto, ou que houvesse qualquer relação entre elas. Elas estavam, fazia algum tempo, na vizinhança de Harrogate, morando em uma casa de fazenda, um pouco afastada.

Quando procurei saber sobre as duas, as pessoas de lá não contaram grandes coisas sobre elas, apenas falaram que elas pagavam bem quem as ajudasse, vez ou outra, e jamais fizeram nenhum mal para quem quer que seja. Porém, um dos homens indagados por minha curiosidade, falara que ouvira dizer que a mulher idosa era prima do fazendeiro onde elas viviam.

— Qual foi, então, a razão de sua extrema reclusão? — perguntei.

— Não sei! — ele respondeu.

Ele ouvira dizer que a jovem, mais quieta que aparentava, às vezes, agia de maneira estranha. Ele balançou a cabeça quando lhe pedi mais detalhes, e se recusou a falar, o que me fez duvidar sobre o que articulara, uma vez que, ele era, em geral, um homem falador e comunicativo.

Depois que meu tio partiu, me propus a observar estas duas mulheres.

Eu pairava sobre suas caminhadas, atraído por um estranho fascínio, que não era abrandado por seu evidente aborrecimento ao me encontrar tão frequentemente.

Um dia, tive a súbita sorte de estar perto delas quando elas ficaram amedrontadas com o ataque de um touro, o que, naquele distrito de pastagem sem cercas, era uma ocorrência particularmente perigosa.

Tenho outras coisas mais importantes a relatar, do que contar o acidente que me deu a oportunidade de resgatá-las. Basta dizer, que este evento foi o início de uma amizade, se eu posso afirmar com essas palavras, por elas relutantemente toleradas, mas, avidamente processadas por mim.

Não sei explicar quando a curiosidade intensa se fundiu no amor, mas, em menos de dez dias após a partida de meu tio, fiquei apaixonado pela Senhorita Lucy.

Este era seu nome, e era assim que a senhora que acompanhava Lucy, a chamava, e, cuidadosamente por isso, notei a relação entre as duas.

Observei também que a Senhora Clarke, a senhora idosa, após sua primeira relutância em permitir que eu prestasse qualquer ajuda, foi felicitada por meu evidente apego à jovem, que parecia aliviar seu pesado fardo de cuidados, e ela, evidentemente, favoreceu minhas visitas à casa da fazenda, onde elas moravam.

Entretanto, não foi assim com Lucy. Ela era a pessoa mais atraente que vi em toda a minha vida, apesar de sua expressão fria, que volta e meia desviava o seu olhar da minha direção.

Senti imediatamente a certeza de que qualquer que fosse a fonte de seu pesar, ela não tinha culpa nenhuma.

Era difícil atraí-la para qualquer conversa, porém, às vezes, por um ou dois instantes, eu a convencia e podia ver uma rara inteligência em seu rosto e um olhar de confiança nos olhos brandos e cinzentos, que foram levantados por um minuto até os meus.

Arranjei todas as desculpas possíveis para ir até à fazenda de Lucy.

Procurei flores-do-campo para oferecer para Lucy, planejei caminhadas para o bem de Lucy, observei os céus à noite, na esperança de que alguma beleza incomum no céu justificasse um pedido para passear com a Senhora Clarke e Lucy, e assim, contemplar, ao seu lado, a grande cúpula púrpura da noite.

Parecia-me que Lucy estava consciente do meu amor, porém, por algum motivo que eu não podia adivinhar, ela apenas me repelia, então, novamente vi, ou imaginei, que seu coração falava ao meu favor, e que havia uma luta em sua mente sobre este sentimento.

Fiquei preocupado porque a amava tanto, e desejava que ela se poupasse de qualquer aborrecimento, mesmo que a felicidade de toda minha vida fosse um sacrifício para ela.

Ela sempre me olhava com a sua tez pálida, seu aspecto de tristeza mais desesperado e sua delicada face.

Durante este período, eu escrevia ao meu tio, para implorar que permitisse prolongar minha estadia em Harrogate, sem dar nenhuma razão, mas, tal foi sua ternura para comigo, que em poucos dias ouvi dele, dando-me uma permissão voluntária, e só me cobrou que eu cuidasse de minha saúde, e não fizesse muito esforço durante o tempo quente.

Uma noite quente de verão, me aproximei da fazenda.

As janelas do salão estavam abertas, e ouvi vozes, quando virei a esquina da casa. Ao passar pela primeira janela, porque havia duas janelas na pequena sala no andar térreo, vi nitidamente Lucy, mas quando bati na porta da casa entreaberta, ela sumiu diante dos meus olhos e vi apenas a Senhora Clarke, tirando as coisas que estavam sobre a mesa, de forma nervosa e sem propósito.

Senti, por instinto, que uma conversa de alguma importância estava se passando antes que eu colocasse meus pés na casa.

Meu tio aludira várias vezes à agradável possibilidade de eu trazer uma jovem esposa para casa, com a finalidade de alegrar e adornar a velha casa na Rua Ormond.

Ele era rico, sozinho, e alguém deveria sucedê-lo, e eu tinha, como sabia, uma boa reputação para um advogado tão jovem. Por isso, eu não conseguia ver nenhum obstáculo em cortejar Lucy.

Era verdade que Lucy estava envolta em mistério. Seu nome, eu estava convencido de que não era Clarke. O nascimento, paternidade e vida anterior, eram fatos desconhecidos para mim. Mas, eu tinha certeza de sua bondade e doce inocência, embora eu soubesse que havia algo doloroso para ser contado, e que isso era a origem de sua tristeza. Ainda assim, eu estava disposto a suportar minha parte em sua dor, não importava o quê.

A Senhora Clarke começou a falar como se fosse um alívio para ela mergulhar no assunto.

— Pensamos muito, senhor... Pelo menos, pensei! Enfim, que você sabe muito pouco de nós e nem nós de você, de fato. Não o suficiente para garantir o conhecimento íntimo em que nos envolvemos. Peço desculpas, senhor! — ela prosseguiu com a voz nervosa. — Sou apenas uma mulher simples, e não quero usar de rispidez, no entanto, devo dizer que penso que seria melhor para o senhor não vir tão frequentemente aqui. Ela está muito desprotegida, e ...

— Por que não posso vê-la, querida senhora? — perguntei, avidamente, feliz com a oportunidade de me explicar. — Afirmo que aprendi a amar a Senhorita Lucy, e desejo ensiná-la a me amar!

A Senhora Clarke balançou a cabeça e suspirou.

— Não, senhor! Nem a ame, muito menos a ensine a amá-lo! Por favor, por tudo que é sagrado! Creio que alerto tardiamente, e você já a ama, portanto, esqueça-a! Esqueça estas últimas semanas. Oh! Eu nunca deveria ter permitido que você se aproximasse de nós! — ela continuou apavorada. — O que devo fazer? Fomos abandonadas por todos, exceto pelo grande Deus. — ela torceu as mãos em sua angústia, e voltou seus olhos para mim. — Vá embora, senhor! Vá embora! Antes que você se apaixone ainda mais! Peço por seu próprio bem, imploro! Você foi bondoso conosco, e sempre o recordaremos com gratidão, entretanto, vá embora agora, e nunca mais volte a cruzar o nosso caminho!

— De fato, Senhora... — articulei. — Não farei tal coisa! A Senhora deve entender que não é o que desejo! Não tenho medo, nem desejo ouvir mais nada sobre o assunto. Posso não ter visto a Senhorita Lucy em toda a sua intimidade nesta última quinzena, mas sei reconhecer sua bondade e inocência. Percebo, porque não sou idiota, que por alguma razão, vocês duas são muito solitárias, envoltas em alguma misteriosa tristeza e angústia. Conte-me alguns detalhes. Por que vocês estão sempre tristes, qual é o seu segredo, por que estão aqui? Declaro solenemente que nada do que você disse me assustou. Desejo ser marido de Lucy, nem me afastarei de qualquer dificuldade que, como pretendente, eu possa ter que encontrar. — suspirei. — Você diz que não tem amigos, por que expulsar um amigo honesto? Vou recomendar algumas pessoas a quem você pode escrever e que responderão a quaisquer perguntas sobre meu caráter e minhas perspectivas. Não evitarei nenhuma pergunta.

Ela balançou a cabeça novamente:

— É melhor o senhor ir embora! Você não sabe nada sobre nós!

— Sei seus nomes! — garanti. — Ouvi você fazer alusão sobre de onde você veio, que, por acaso, conheço como um lugar selvagem e solitário. Há tão poucas pessoas vivendo neste lugar, se eu escolhesse ir até lá, eu poderia facilmente saber tudo sobre você, mas prefiro ouvir de sua boca, a história.

Eu queria que ela me descrevesse algo definitivo.

— Você não conhece nossos verdadeiros nomes! — afirmou ela, apressadamente.

— Bem, talvez eu tenha suposto o mesmo. Diga-me, então... Dê-me suas razões para desconfiar de minha disposição em manter o que disse em relação à Senhorita Lucy!

— Oh! O que posso fazer? Se estou recusando um verdadeiro amigo, como diz, fique! — ela falou, chegando a decisão repentina. — Vou dizer algo porque não posso dizer tudo e talvez, você não acreditará. Contudo, quem sabe, eu possa lhe dizer o suficiente para evitar que você continue em seu apego sem esperança. Não sou a mãe de Lucy!

— Isso eu já imaginava! — declarei. — Continue!

— Nem sei se ela é a filha legítima ou ilegítima de seu pai! Sua mãe morreu, faz muito tempo, e por uma razão terrível, Lucy não tem em quem se apoiar, apenas em mim, porque seu pai a abandonou dois anos atrás. Há um mistério prestes a ser revelado ao senhor, então, você partirá como todos os outros, e, quando você ouvir o nome dela, você a detestará. Outros que a amaram, fizeram antes. Minha pobre criança! A quem nem Deus, nem o homem tem piedade!

A boa mulher foi parada por seu choro. Confesso que fiquei um pouco atônito com suas últimas palavras, porém, apenas por um momento.

De qualquer forma, até que eu soubesse definitivamente o que era a tal mancha misteriosa que pairava sobre uma tão simples e pura mulher, como Lucy, eu não a abandonaria, e assim eu disse, e ela me fez responder:

— Se você se atrever com o seu coração, a pensar mal de minha menina, após conhecê-la como você a conheceu, você, por certo é um homem mal! Creio que dentro da minha grande tristeza, guardo a esperança de encontrar um amigo em você. Não posso deixar de afirmar que, embora você possa desistir de sua paixão, terá piedade de nós, e talvez, com sua capacidade, você possa nos dizer onde procurar ajuda!

— Imploro que me diga qual é o mistério! — chorei, quase enlouquecido pelo suspense que a mulher me cercava.

— Não posso! — ponderou solenemente. — Estou sob um profundo voto de sigilo. Se quer ser informado sobre o mistério, deve ser pelas palavras de Lucy, não as minhas.

Ela deixou a sala, e fiquei ali, para refletir sobre a estranha conversa. Virei mecanicamente os poucos livros em minha frente, e com olhos que não viam nada na ocasião, examinei os sinais da presença frequente de Lucy naquela sala. Foi quando a Senhora Clarke voltou, com seus olhos chorosos:

— É como temia. Ela o ama tanto que está disposta a correr o risco temeroso de lhe dizer tudo. Ela reconhece que não passa de uma má sorte, mas, sua simpatia será um bálsamo. Amanhã, venha aqui às dez da manhã. Tenha piedade, quando ficar frente a frente com ela, e reprima toda demonstração de medo ou repugnância que possa sentir por Lucy, porque ela está gravemente amargurada.

Tentei sorrir:

— Fique tranquila! Não tenha medo!

Parecia absurdo demais imaginar um sentimento de antipatia por Lucy.

— Seu pai a amava no começo... — falou a Senhora Clarke gravemente. — Contudo, ele a expulsou como uma coisa monstruosa!

Naquele exato momento, veio uma gargalhada do jardim. Era a voz de Lucy, que soava como se ela estivesse conversando com alguém e como estivesse muito agitada.

Eu mal posso dizer o porquê, mas o som de sua voz me tocou de forma fulminante. Ela conhecia o assunto de nossa conversa e devia estar, pelo menos, ciente do estado de agitação em que sua amiga se encontrava. Ela geralmente era tão gentil e quieta, não era momento para risadas.

Fiz menção de me levantar para ir à janela e satisfazer minha curiosidade instintiva sobre o que provocara a explosão de risos inoportunos, mas a Senhora Clarke jogou todo o seu peso e poder sobre a minha mão, me pressionou e me manteve sentado.

— Pelo amor de Deus! — sussurrou ela, branca e tremendo. — Sente-se! Fique quieto! Oh! Seja paciente! Amanhã, você saberá tudo! Vá embora! Pois, todos estamos muito aflitos e precisamos descansar. Não procure saber mais sobre nós, até amanhã!

Mais uma vez aquele riso, tão musical, no entanto, tão discordante para o meu coração, ecoou. A Senhora Clarke me segurou forte, sem violência, e me sustentou sentado. Eu estava de costas para a janela, porém, senti uma sombra passar entre o calor do sol, e um estranho vulto correu através da minha silhueta.

Em um ou dois minutos ela me soltou.

— Vá! — repetiu ela. — Fique avisado, peço-lhe mais uma vez. Não creio que você possa desobedecer. Se eu pudesse mudar o destino, Lucy jamais contaria. Estou apavorada! Quem sabe o que pode surgir depois de amanhã?

— Estou firme em meu desejo de saber tudo! Volto às dez da manhã, e espero que Lucy fale tudo o que esconde!

Me afastei, tendo minhas suspeitas sobre, confesso, a sanidade da Senhora Clarke.

Suposições sobre o significado de suas dicas, e pensamentos desconfortáveis ligados a esse estranho riso, encheram minha mente enquanto eu voltava para a pousada.

Não consegui dormir.

Levantei-me cedo, e muito antes da hora marcada, eu estava no caminho que levava à velha casa da fazenda onde elas viviam.

Suponho que Lucy não passara uma noite melhor que a minha, porque lá estava ela, também, lentamente caminhando, com seu passo uniforme, sua cabeça curvada, e seu olhar soberanamente perfeito e puro.

Quando caminhei em sua direção, sua face perdeu a cor e lembrei que prometera ficar calmo diante dela.

Esqueci-me do riso de Lucy na noite anterior, quando ela se aproximou de mim.

Meu coração acendeu as palavras que ardiam feito fogo, e minha língua as pronunciou.

Sua cor foi e veio, enquanto ela ouvia, e quando terminei meu discurso apaixonado, ela levantou seus olhos suaves para mim:

— Você sabe que ainda tem algo que deve saber sobre mim, certo? Só quero dizer isto. Não vou ficar magoada se sair correndo quando souber realmente sobre tudo.

— Pare! — falei.

— Escutem-me! Meu pai é um homem de grande riqueza. Nunca conheci a minha mãe, porque ela morrera quando eu era muito pequena. Quando tento recordar de algo, só consigo lembrar que eu vivia em uma grande casa, fria e solitária, com a querida e fiel Senhora Clarke. Meu pai raramente ia me visitar. Ele era, enfim... Ele é um soldado, e seus deveres estão cravados em sua farda. Contudo, creio que ele me amava. Ele me trouxe raridades de terras estrangeiras, o que prova, de alguma maneira, que ele pensara em mim durante suas ausências. Posso sentar-me e medir a profundidade de seu amor perdido agora, por padrões como estes. — ela respirou profundamente. — Nunca pensei se ele me amava ou não, porque este sentimento de pai e filho é natural, como o ar que se respira. Ele era muito insensato, e, uma ou duas vezes, ouvi um sussurro entre os criados, de que uma desgraça estava sobre seus ombros, e sabendo disso, ele tentou afogar suas mágoas no vinho. Assim, cresci nesta grande mansão solitária. Tudo em minha volta parecia estar à minha disposição, e penso que todos me amavam. Eu os amava também. Cerca de dois anos atrás, lembro-me bem...

Eu permaneci calado, e ela continuou:

— Meu pai voltara para a Inglaterra para nos ver, e ele parecia orgulhoso e satisfeito comigo e com tudo o que eu fizera em sua ausência. Um dia, que sua língua parecia solta pelo vinho, ele me disse muitas coisas que eu não sabia até então. — ela deu um suspiro e prosseguiu. — Ele amava muito minha mãe, e sem intenção, causou a sua morte. Sentia-se culpado, mas, que desejava viajar comigo para que ficássemos mais próximos. Então, ele pareceu mudar, de repente, e disse de uma maneira estranha e cruel, que eu não devia acreditar no que ele dizia. Porque era absurdo afirmar tal coisa, porque havia muitas coisas que ele amava mais que eu, seu cavalo, seu cão e não sei mais o quê.

Perplexo, fiquei ouvindo Lucy contar a história, e ela seguiu sua fala triste:

— Na manhã seguinte, quando entrei em seu quarto para pedir a sua bênção, como era meu costume, ele me recebeu com palavras rudes e furiosas. Porque eu havia pisoteado nas plantas dos canteiros, todas dispostas com os famosos bulbos holandeses que ele trouxera da Holanda. Porém, eu não saíra de casa naquela manhã, e eu não podia entender o que ele queria dizer. Falei que não colocara os pés para fora de casa naquela manhã e ele afirmou que eu estava mentindo. Disse que eu não era de seu sangue, uma vez que, ele me viu fazendo todas aquelas travessuras. O que eu podia dizer? Ele não me escutava, e até mesmo minhas lágrimas pareciam irritá-lo. Aquele dia foi o início da minha grande tristeza. Pouco tempo depois, ele me censurou por minha familiaridade indevida, que eu era uma mulher inapropriada com meu noivo. Porque eu tivera no estábulo, rindo e conversando com o meu noivo, disse ele. Não fui ao estábulo, porque tenho medo de cavalos. Ele teve como prova os seus servos, aqueles que ele trouxe de partes estrangeiras, e que eu sempre evitava, e jamais mencionei nenhuma palavra, exceto com uma senhora para passar os recados de meu pai. Meu pai me chamou por nomes dos quais não sei o significado, mas meu coração me disse que esses nomes eram uma vergonha para qualquer mulher honesta, e a partir daquele dia, ele se voltou contra mim. Poucas semanas após este incidente, ele entrou com um cavalo na mão, e, acusando-me duramente de atos perversos contra o animal. Ele estava prestes a me bater com seu chicote, e eu, aos prantos, estava pronta a aceitar as chibatadas, porque, elas, por certo, me machucariam menos que as palavras dele, no entanto, ele parou seu braço no meio do caminho, ofegante e cambaleante, e gritou que eu era amaldiçoada. Olhei aterrorizada, sem entender.

Meus olhos não pestanejavam enquanto Lucy continuava falando:

— No grande espelho oposto, me vi, e logo atrás, outro eu perverso, tão parecido comigo, que a minha alma parecia tremer dentro de mim, como se não soubesse a qual semelhança o corpo pertencia. Meu pai viu meu duplo eu, no mesmo instante, no reflexo do espelho, mas, o que veio daquele momento eu não posso dizer, pois, desmaiei, e quando voltei a mim, estava deitada em minha cama, e a fiel Clarke sentada ao meu lado. Fiquei na minha cama durante dias, e mesmo quando estava deitada ali, meu duplo eu era visto por todos, correndo por toda parte, na casa e nos jardins, sempre fazendo algum trabalho malicioso ou detestável. Todos tinham em seus olhos, o pavor. Meu pai me levou para longe, porque eu era uma vergonha muito dura para ele suportar. A Senhora Clarke veio comigo, e aqui tentamos viver uma vida de indulgência e oração para que Deus tenha piedade de mim.

Todo o tempo que ela falou, eu carregava a sua história em minha mente. Até então, eu colocara casos de bruxaria de um lado, como meras superstições, e meu tio e eu tivemos muitas discussões, ele se apoiando na opinião de seu bom amigo Senhor Matthew Hale.

No entanto, isto soou como a história de um enfeitiçado, ou foi apenas, o efeito de uma vida de extrema reclusão caindo sobre os nervos de uma menina sensível. Meu ceticismo me inclinou para esta última possibilidade, e quando ela fez uma pausa, eu disse:

— Creio que algum médico ajudaria vocês, se o seu pai tivesse o chamado, ao invés de abandonar você.

Naquele instante, em pé, como eu estava em sua frente, na plena e perfeita luz da manhã, vi atrás dela outra figura, uma semelhança horripilante, completa em similaridade, até onde a forma, a característica e o toque minucioso do vestido podiam ir, entretanto, com uma alma demoníaca e odiosa, olhando para fora dos olhos cinzentos, que, por sua vez, estavam zombando de mim.

Meu coração parou e cada fio de cabelo se arrepiou, minha carne rastejou de horror por baixo da minha pele. Eu não podia ver o rosto e os carinhosos olhos de Lucy, meus olhos estavam fascinados pela criatura do além.

Não sei o motivo, contudo, estendi a minha mão para agarrá-la, não agarrei nada além de ar vazio, e todo o meu sangue coalhou de temor. Por um momento não pude ver, e quando a minha visão voltou, vi Lucy, de pé diante de mim, sozinha e pálida.

— A Coisa está perto de mim? — perguntou Lucy.

O som parecia retirado de sua voz, era rouco como as notas de um velho piano quando as cordas deixavam de vibrar.

Ela leu a resposta em meu rosto, suponho, visto como, não consegui falar. Seu olhar era de medo intenso, no entanto, Lucy se manteve em um aspecto de paciência muito humilde. Ela parecia forçar-se a olhar por trás de mim, encarando o horizonte ao redor, avistando os campos roxos de urze[39], as colinas azuis distantes, cobertas pela luz do sol.

— Deve ir para casa! — sussurrou ela, mansamente.

A peguei pela mão, e a guiei silenciosamente até as flores de urze e não ousamos falar, já que, não podíamos conversar com aquela coisa nos vigiando, que esperava qualquer falha em nossas falas para aflorar uma discussão.

Eu amava Lucy ainda mais carinhosamente, e essa era a indescritível miséria que me rondava: a ideia dela estar se tornando tão absurdamente misturada com o pensamento da Coisa.

Ela queria compreender o que eu estava sentindo.

Ela soltou a minha mão, que até então segurara apertada, quando chegamos ao portão do jardim, e Lucy voltou seus olhos para a ansiosa amiga, que estava parada junto à janela, esperando-a.

Eu precisava de silêncio, não sabia o que fazer para me livrar da sensação de presença daquela criatura. Mas, demorei no jardim, não sei a razão, em parte, suponho, porque temia encontrar novamente a semelhança de Lucy em sua versão demoníaca, que desaparecera, enquanto caminhávamos, em outra parte, pelo sentimento de compaixão de Lucy.

Em poucos minutos, a Senhora Clarke apareceu e se juntou a mim. Andamos alguns passos em silêncio.

— Agora você sabe tudo! — ponderou solenemente.

— Vi a Coisa! — respondi com um sussurro.

— Você vai se afastar de nós, por certo. — afirmou com uma desesperança que despertou em meu coração, tudo o que era corajoso e bom em mim.

— Nem um bocadinho! — assegurei. — A carne humana encolhe quando se encontra com os poderes das trevas, e, por alguma razão desconhecida para mim, a pura e santa Lucy é sua vítima!

— Os pecados dos pais são colocados sobre os filhos. — raciocinou a velha amiga de Lucy.

— Quem é seu pai? — perguntei. — Diga-me, senhora! Diga-me tudo o que puder lembrar a respeito desta perseguição demoníaca que Lucy sofre.

— Vou dizer, mas, não agora. Devo cuidar de Lucy! Venha, à tarde! Falarei com o senhor, sozinha. Espero que você ainda possa encontrar alguma maneira de nos ajudar neste grande problema.

Eu estava miseravelmente exausto com o acontecimento e, os pensamentos em torno disso tomaram posse de mim.

Quando cheguei à pousada, cambaleei como um bêbado após tomar um barril de vinho. Fui para meu quarto.

Depois de algum tempo, vi que o correio semanal chegara, e me deixou cartas na porta. Havia uma, de meu tio, outra de minha casa em Devonshire, e a terceira, redirecionada sobre o primeiro endereço, selada com um grande brasão, era de Senhor Philip Tempest.

Minha carta de inquérito a respeito de Mary Fitzgerald chegara a ele em Liége, onde conheceu o Conde de La Tour d'Auvergne.

Ele se lembrou das conversas de sua falecida esposa com a criada, sobre um cavalheiro inglês. A condessa previu o mal das intenções dele, enquanto Mary, orgulhosa e veemente, afirmou que ele logo casaria com ela, e ressentiu-se das advertências de senhora, como um insulto.

A consequência foi que Mary deixara o serviço da Condessa de La Tour d'Auvergne e, como o Conde acreditava, fora morar com o inglês, e, se ele casara com ela ou não, ele não podia dizer.

“Mas...” acrescentou o Senhor Philip Tempest na carta:

“Você pode facilmente ouvir do próprio inglês, quais detalhes você deseja saber a respeito de Mary Fitzgerald, se, como suspeito, ele não for outro, senão meu vizinho e antigo conhecido, Senhor Gisborne, de Skipford Hall. Sou levado a crer que o inglês e o Senhor Gisborne são a mesma pessoa, por vários detalhes, nenhum deles conclusivos, mas que, tomados em conjunto, fornecem boas provas presuntivas. Até onde pude perceber, pela pronúncia estrangeira do Conde, Gisborne era o nome do inglês. Sei que Gisborne de Skipford estava no exterior e no serviço estrangeiro naquela época e, certas expressões recorrentes em minha mente, surgem de que ele usou algumas referências à velha Bridget Fitzgerald, de Coldholme, que uma vez ele encontrou, enquanto estava comigo no Solar Starkey. Lembro que o encontro produzira algum efeito extraordinário em sua mente, como se, de repente, ele tivesse encontrado alguma conexão com ela de uma vida anterior. Peço-lhe que me avise, se eu puder lhe prestar mais algum serviço. Seu tio, uma vez me prestou um bom serviço, e terei prazer em retribuí-lo, na medida do possível ao seu sobrinho.”

Assim, eu estava aparentemente perto da descoberta que havia me esforçado por tantos meses para alcançar. Mas, o sucesso perdera o entusiasmo. Pousei minhas cartas, e parecia esquecê-las ao pensar na manhã que eu passara naquele mesmo dia.

Nada era real, a não ser a presença irreal, que pousara sobre mim, como uma explosão maligna através dos meus olhos corporais, e se queimou sobre o meu cérebro.

O almoço chegou, e foi embora sem que eu tivesse ânimo para tocá-lo.

No início da tarde, caminhei até a casa da fazenda.

Encontrei a Senhora Clarke sozinha. Fiquei contente e aliviado. Ela estava evidentemente preparada para me dizer tudo o que eu desejava ouvir.

— Você me pediu o verdadeiro nome da senhora Lucy. Seu sobrenome é Gisborne! — começou ela.

— Não pode ser! Você afirma assim, que é Gisborne de Skipford? — exclamei sem fôlego e com expectativa.

— Exatamente! Seu pai é um homem notável, embora, sendo católico romano, ele não possa assumir essa posição neste país pela condição que lhe dá direito. A consequência disso, é que ele vive muito no exterior. Foi um soldado, me disseram.

— E a mãe de Lucy? — perguntei.

Ela balançou a cabeça.

— Nunca a conheci. — garantiu. — Lucy tinha cerca de três anos quando fui tomar conta dela. A mãe dela estava morta.

— Mas, você sabe o nome dela... Você pode dizer se foi Mary Fitzgerald?

Ela parecia espantada.

— Esse era o nome dela. Mas, senhor... Como sabe? Foi um mistério para toda a família na corte de Skipford. Ela era uma jovem e bela mulher, que ele atraiu para longe de seus protetores, enquanto ele estava no exterior. Ouvi dizer que ele praticou algo terrível, e quando ela descobriu isso, ela não conseguiu suportar, se jogou em um riacho e morreu afogada. Isso o deixou em profundo remorso, porém, eu costumava pensar que a lembrança da morte cruel da mãe, o fazia amar a criança.

Eu lhe disse tão brevemente quanto podia, sobre as minhas pesquisas em torno do descendente e herdeiro dos Fitzgerald de Kildoon, e acrescentei algo do meu antigo espírito de advogado, que voltara a mim por um momento, que não tinha dúvidas, mas que deveríamos provar que Lucy tinha por direito, grandes propriedades na Irlanda.

Nenhuma expressão passou por seu rosto melancólico, e nenhuma luz em seus olhos.

— O que importa toda a riqueza do mundo para aquela pobre garota? — resmungou. — Isso não a libertará da maldição horrível que a persegue! Quanto ao dinheiro... Que coisa lamentável! Ele não pode tocá-la, ela não precisa de dinheiro, mas, paz!

— A criatura maligna não pode mais prejudicá-la! — confirmei. — A natureza sagrada de Lucy que nela habita, não pode ser contaminada ou manchada por todas as artes demoníacas que a açoitam.

— É verdade! Entretanto, é um destino cruel saber que todos terão medo dela, mais cedo ou mais tarde.

— Como isso começou? — perguntei.

— Não sei! Há rumores antigos, falados a boca pequena, na casa em Skipford.

— Diga-me! — exigi.

— Os rumores surgiram da boca dos criados, que espalhavam tudo o que ouviam atrás das portas. Dizem que, há muitos anos, o Senhor Gisborne matou um cão pertencente a uma velha bruxa em Coldholme, que ela o amaldiçoou, com uma praga terrível e misteriosa. A tal praga era sobre que ele cuidaria de alguém ou algo, com amor e devoção, e ele a perderia. Essas palavras o atingiram tão profundamente, que seu coração, durante anos, se manteve distante de qualquer tentação de amar alguém ou alguma coisa. Mas, quem poderia o ajudar a amar Lucy?

— Você nunca ouviu o nome da bruxa? — indaguei.

— Sim. Eles a chamaram de Bridget! Eles disseram que ele nunca mais se aproximou do local onde a mulher morava.

— Escute... — falei, pegando o braço dela para melhor prender a sua atenção. — Se o que suspeito é verdade, aquele homem roubou a única filha de Bridget, Mary Fitzgerald, a mãe de Lucy. Se assim for, Bridget o amaldiçoou na ignorância do mal profundo que ele fizera a ela. Neste instante, ela anseia por sua filha perdida e questiona os santos se a pobre menina está viva ou não. As raízes dessa maldição são mais profundas do que possamos imaginar. Ela, sem perceber, o amaldiçoou involuntariamente por uma culpa mais profunda que a de matar um cãozinho. Os pecados dos pais são, de fato, colocados sobre os filhos.

— Mas... — questionou a Senhora Clarke. — Ela deixaria o mal descansar em sua própria neta? Certamente, senhor, se o que o diz é verdade, há esperanças para Lucy. Vá imediatamente ao encontro dessa mulher e conte para essa pobre mãe tudo o que você suspeita, e suplique para que tire o feitiço que ela lançou sobre sua neta inocente.

Pareceu-me, de fato, que algo assim era o melhor caminho para seguir. Porém, primeiro era necessário averiguar mais que meros rumores descuidados.

Meus pensamentos se voltaram para meu tio, ele podia me aconselhar sabiamente. Resolvi ir até ele sem demora, mas, não optei por contar à Senhora Clarke todos os planos visionários que me passaram pela cabeça.

Simplesmente declarei minha intenção de seguir para Londres para cuidar dos assuntos de Lucy.

Fiz com que ela acreditasse que meu interesse pela jovem era maior que nunca, e que meu tempo seria entregue à sua causa.

Vi que a Senhora Clarke desconfiava de mim, porque minha mente estava muito cheia de pensamentos para que minhas palavras fluíssem livremente. Ela suspirou, balançou a cabeça, e disse:

— Bem... Está tudo bem!

Seu tom de voz parecia uma reprovação implícita, mas, consegui colocar confiança em seus olhos receosos.

Cavalguei para Londres, por longos dias, atraído pelas lindas noites de verão e não consegui descansar.

Cheguei em Londres e contei tudo ao meu tio, embora, na agitação da grande cidade, o horror tivesse desaparecido, e eu mal podia imaginar que ele acreditaria no relato que fiz do temível duplo de Lucy, que havia visto.

Mas meu tio vivera muitos anos e aprendido muitas coisas, e, nos profundos segredos de muitas histórias que lhe foram confiadas, ele ouvira falar de casos de inocentes amaldiçoados e possuídos por espíritos malignos, ainda mais temerosos que o de Lucy.

Como ele disse, a julgar por tudo que afirmei, essa semelhança não tinha poder sobre Lucy, ela era muito pura e boa para ser manchada por uma presença maligna e assombrosa.

Tinha essa Coisa, provavelmente, como o meu tio afirmou, tentado sugerir pensamentos malignos e arriscar ações perversas, mas Lucy, em sua santidade de donzela, passara ilesa por pensamentos ou atos maléficos.

A Coisa não podia tocar sua alma.

Meu tio atirou-se com uma energia brutal em consideração ao caso.

Ele juntou as provas que tínhamos da descendência de Lucy, e se ofereceu para ir e conversar com o Senhor Gisborne, para obter as provas legais da descendência dos Fitzgerald de Kildoon, e ouvir tudo o que pudesse para ajudar na retirada da maldição.

Meu tio desejava encontrar alguém que tivesse meios para exorcizar aquela aparência terrível. Uma vez que, ele me falou de casos em que, através de orações e jejuns longos, o malvado possuidor fora empurrado, com uivos e muitos gritos, para fora do corpo que habitara por muito tempo.

Falou daqueles estranhos casos da Nova Inglaterra que aconteceram não muito antes, do Senhor Defoe, que escrevera um livro, no qual ele nomeara muitos modos de subjugar aparições, e enviá-los de volta para onde surgiram, e, por último, falou baixo sobre as formas terríveis de obrigar bruxas a desfazer suas feitiçarias.

Neste ponto, eu não podia suportar ouvir falar dessas torturas e queimaduras. Eu disse que Bridget era uma mulher sofrida, infeliz e sem esperança, jamais uma bruxa maligna.

Lucy era sua neta.

Eu não permitiria que colocasse à prova, pela água ou pelo fogo, torturando, talvez até a morte, a ancestral de Lucy que procuramos por tanto tempo.

Meu tio pensou um pouco, e concordou que neste último assunto, eu estava certo, e aceitou a minha proposta de que eu fosse ver Bridget, e lhe contasse tudo.

De acordo com isto, desci mais uma vez para a pousada perto de Coldholme.

Era tarde da noite quando cheguei lá, perguntei ao dono da pousada mais detalhes sobre os caminhos de Bridget.

Solitária e grosseira era a sua vida por muitos anos. Rudes e arbitrárias eram suas palavras e modos para aquelas poucas pessoas que surgiam em seu caminho.

Ele falou que se essas pessoas a agradassem, elas prosperavam, mas se, negligenciassem ou passassem por cima de seus pedidos, a desgraça, pequena ou grande, caía sobre elas e sobre seus filhos. Ela os fazia temer.

Pela manhã, fui vê-la.

Ela estava de pé na relva, do lado de fora de seu chalé, e me recebeu com a grandeza sombria de uma rainha sem trono.

Li em seu rosto que me reconheceu, e que eu não era indesejável, no entanto, ela ficou em silêncio até que eu tivesse aberto meu recado.

— Tenho notícias de sua filha! — comecei.

Resolvi ser direto para não dar falsas esperanças, além das que ela já se habituara a ter.

— Ela está morta! — afirmei, sem pestanejar.

A figura austera quase não tremia, mas sua mão procurava o apoio no batente da porta.

— Eu sabia que ela estava morta... — resmungou com voz profunda e sussurrada, depois ficou em silêncio por um instante. — Minhas lágrimas que deveriam ser o pranto da despedida, foram queimadas há muitos anos! Oh! Jovem, fale-me sobre ela!

— Preciso questionar primeiro... — ponderei, com a coragem em encarar seus olhos, sabendo de todas as falsas bruxarias que caíam sobre ela. — Você teve, uma vez, um cãozinho?

— Eu tinha! Era dela, da minha filha. A última coisa que eu tinha dela. O pobrezinho foi baleado. Morreu em meus braços. O homem que matou meu pobre cachorro, por certo, lamenta o feito até hoje. Pelo sangue do pobre cão, a pessoa que ele mais ama está amaldiçoada!

Seus olhos se distenderam, como se ela estivesse em transe, como se uma força falasse sobre a sua maldição.

Novamente, falei:

— Oh! Mulher! Aquela que ele mais ama, que está amaldiçoada diante dos homens por você, é a filha de sua filha morta!

A vida, a energia e a paixão voltaram aos olhos com os quais ela me fitou, para ver se eu falava a verdade. Então, sem outra pergunta ou palavra, ela se jogou no chão com temível veemência, e se agarrou às margaridas na entrada do chalé com as mãos trêmulas.

— Ossos dos meus ossos! Carne da minha carne! Amaldiçoei aquele maldito e és tu, carne minha que está amaldiçoada?

Ela gemeu, enquanto se prostrava em sua grande agonia.

Fiquei horrorizado.

Seu lamento por descobrir que a maldição repousava sobre a sua neta, a fez agonizar diante de mim e meu medo cresceu, porque se ela morresse ali, Lucy ficaria amaldiçoada para sempre.

Neste momento, vi Lucy, andando apressadamente pela trilha da floresta que levava ao chalé de Bridget, e a Senhora Clarke estava com ela. Foi quando o olhar dela encontrou o meu.

Meu coração acelerou ao ver seu olhar de paz amena sendo enviando para mim, enquanto ela avançava lentamente.

Era uma surpresa feliz, brilhando de seus olhos suaves e silenciosos.

Quando o olhar dela caiu sobre a mulher de joelhos, agonizando sobre a terra, eles se tornaram cheios de ternura, e ela se aproximou para tentar levantá-la.

Lucy sentou no gramado e levou a cabeça de Bridget para o seu colo. Com toques suaves, ela tocou os cabelos brancos desgrenhados da pobre avó.

— Deus a ajude! — murmurou Lucy. — Como sofre!

Ao seu desejo, buscamos água, mas quando voltamos, Bridget recuperara seus sentidos errantes e ajoelhada, com as mãos apertadas diante de Lucy, contemplando aquele doce rosto triste, como se sua natureza perturbada pudesse ter paz enquanto admirava a sua neta.

Um leve toque de Bridget nas bochechas pálidas da neta revelou que Lucy estava consciente sobre os fatos, e também, que sabia de sua influência benéfica sobre a mulher sofrida e perturbada, que se ajoelhava diante dela, e, que não evitaria seus olhos amorosos e tímidos dentro daquele semblante enrugado e descuidado.

De repente, em um piscar de olhos, a Coisa apareceu ali, atrás de Lucy, com aquele semblante demoníaco de sempre, ajoelhando-se exatamente como Bridget, e apertando as mãos em mímica irônica, como Bridget apertou as de Lucy em seu êxtase, que se aprofundava em uma oração.

A Senhora Clarke gritou.

Bridget levantou-se lentamente, e seu olhar fixou-se na criatura do além, respirando fundo diante da Coisa, sem mover seus olhos firmes como pedra. Ela esticou seu braço até o fantasma, e pegou, como eu fizera antes, um mero punhado de ar vazio.

Não vimos mais a criatura, ela desapareceu tão repentinamente quanto veio, porém, Bridget ainda olhava para o vazio.

Lucy ficou quieta, branca, tremendo, e creio que ela desmaiaria se eu não tivesse lá para segurá-la.

Enquanto eu estava cuidando dela, Bridget passou por nós, sem dizer uma palavra, entrando em seu chalé.

Todos os nossos esforços foram direcionados para levar Lucy de volta à casa onde ela ficara na noite anterior.

A Senhora Clarke me disse que sem notícias minhas, ela se apavorara. Impaciente e desesperada, ela convidara Lucy para buscar sua avó, não lhe contando, de fato, a terrível reputação que a avó possuía, e que isso prejudicara efetivamente Lucy, mas, ao mesmo tempo, a Senhora Clarke confiava na remoção da maldição.

Elas chegaram por um caminho diferente daquele que eu tomara.

Durante o meio-dia, percorri o emaranhado de madeira da velha floresta negligenciada, pensando aonde recorrer para remediar um assunto tão complicado e misterioso.

Conhecendo um compatriota no caminho, perguntei onde o clérigo mais próximo estava e fui, na esperança de obter algum conselho dele. Mas, ele provou ser um homem grosseiro e de mente ordinária, não dando tempo ou atenção as minhas explicações e oferecendo uma opinião forte envolvendo uma ação imediata contra Bridget.

Por exemplo, assim que mencionei o nome de Bridget Fitzgerald, ele exclamou:

— A Bruxa Coldholme! O protestante irlandês! Há muito tempo que eu teria a matado, entretanto, aquele outro protestante, Senhor Philip Tempest me parou. Ele teve que ameaçar as pessoas honestas desta vila, repetidas vezes, ou eles a teriam levado perante os juízes devido aos seus atos negros. E, é a lei da Terra, que as bruxas devem ser queimadas! Ah! E da Escritura também, senhor! No entanto, veja! Se o protestante é rico, ele pode anular tanto a lei quanto a Escritura. Eu carregaria este monstro até a fogueira para livrar o país dela!

Tal pessoa não poderia me dar nenhuma ajuda.

Preferi retirar o que já falara, e tentei fazer o pastor esquecer a conversa, tratando de oferecer várias cervejas, na pousada do vilarejo, na qual tínhamos nos encontrado por sugestão dele.

Deixei-o assim que pude, e voltei para Coldholme, moldando meu caminho para o solitário Solar Starkey, e chegando do lado de lá, estavam os restos do antigo fosso, cujas águas estavam plácidas e imóveis sob os raios rubros do sol poente, com as árvores da floresta deitadas ao longo de cada lado, com suas folhagens verdes, tão profundas, espelhadas até a escuridão na superfície afável do fosso abaixo, e o sol marcando a extremidade mais próxima do salão.

Avistei a garça, de pé sobre uma perna, à beira da água, na procura preguiçosa de peixe, a casa solitária e desolada, escassa, de janelas quebradas e ervas-daninhas na soleira da porta, a persiana quebrada, batendo suavemente na brisa crepuscular, para preencher o quadro de deserção e decadência.

Observei o lugar até que a escuridão crescente me avisou sobre que devia mover meus pés. Então, passei pelo caminho, cortado do Solar Starkey, que me levou ao chalé da Bridget.

Resolvi imediatamente vê-la, e, apesar das portas fechadas, ela deveria me receber. Bati à porta, gentilmente.

Não houve resposta, então, bati mais forte com tanta intensidade, que as velhas dobradiças cederam, e com um estrondo, a porta caiu para dentro, deixando-me cara a cara com Bridget, vermelha e agitada com seus olhos tão perplexos.

Ela estava de pé, bem de frente para mim, rígida como qualquer pedra, seus olhos dilatados de terror, seus lábios cinzentos tremendo, mas, seu corpo estava imóvel.

Em suas mãos, ela segurava seu crucifixo, como se por aquele símbolo sagrado, ela tentasse negar a minha entrada.

Rapidamente toda sua expressão relaxou e ela sentou-se de volta em uma cadeira. Alguma forte tensão cedera dentro dela. Seus olhos ainda olhavam temerosamente para a escuridão do ar exterior, contornada opacamente pelo brilho da lamparina perto dela, que ela colocara diante da imagem da Virgem.

— Ela está com você? — perguntou Bridget, rouca.

— Não! Quem? Estou sozinho! Você se lembra de mim, certamente.

— Sim! — respondeu ela, ainda aterrorizada. — Mas ela, aquela criatura, tem me olhado através daquela janela o dia inteiro! — ela apontou para a janela e eu não tive coragem de olhar para trás. — Cobri a janela com meu xale e então, vi seus pés pela fresta da porta, e mesmo que fosse leve, eu sabia que ela ouvia a minha respiração... Não! Pior, ela ouvia as minhas orações! Ela pode ouvir as minhas orações! Eu mal podia rezar, pois, sua escuta sufocava as minhas palavras, antes que elas subissem aos meus lábios. Diga-me, quem é ela? O que significa aquela garota dupla que vi nesta manhã? Uma, tinha um olhar de minha Mary morta, mas, a outra, coagulou meu sangue, e mesmo assim, parece a mesma pessoa.

Ela havia se apoderado de meu braço, como se quisesse assegurar alguma companhia humana. Ela estremecia por toda parte de seu corpo, com o leve e incessante tremor de terror intenso.

Contei-lhe minha história, como a contei a você que agora lê as minhas palavras neste livro, não poupando nenhum dos detalhes.

Descrevi como a Senhora Clarke me informou que a Coisa fizera Lucy ser expulsa da casa de seu pai, e que eu não acreditara, até que eu avistara a outra Lucy, de pé atrás de minha Lucy, a mesma, em forma e característica, mas, com a alma-demônio olhando para fora dos olhos.

Eu disse para Bridget tudo, acreditando que ela, sabendo que sua maldição estava trabalhando na vida de sua neta inocente, era a única pessoa que podia encontrar o remédio e a redenção.

Quando terminei, ela ficou em silêncio por muitos minutos.

— Você ama a filha de Mary? — perguntou ela.

— Eu a amo, apesar desta terrível maldição. Eu realmente a amo! Escute! Todos estão se afastando dela, ela sofre. Oh! Bridget Fitzgerald! Afrouxe a maldição! Liberte sua neta!

— Onde ela está?

Avidamente fiquei com a ideia de que sua presença era necessária, para que, por alguma estranha oração ou exorcismo, o feitiço pudesse ser revertido.

— Irei e a trarei até você! — exclamei confiante, já me virando para correr na busca de Lucy, mas Bridget apertou o meu abraço.

— Não é assim ... — disse ela, com uma voz baixa e rouca. — Morrerei se avistar a minha neta novamente como a vi nesta manhã. Não posso morrer, devo viver até livrar a minha neta deste mal. Deixe-me! — falou e de novo, pegando a cruz. — Desafio o demônio! O chamei! Deixem-me lutar com ele! Vencerei!

Ela se levantou, como em um êxtase de inspiração, do qual todo o medo foi banido. Demorei a tomar a lucidez, até que ela me pediu para ir embora e acatei.

Ao longo do caminho pela floresta, olhei para trás, e a vi plantando a cruz na soleira da porta.

Na manhã seguinte, Lucy e eu fomos procurá-la, para convidá-la a unir suas orações às nossas.

Mas, o chalé estava aberto e abandonado. Nenhum ser humano estava lá, a cruz permaneceu na soleira, mas, Bridget se foi.


Capítulo III

O que deveria ser feito em seguida?

Foi a pergunta que me fiz.

Quanto à Lucy, ela se entregara ao destino que lhe estava reservado. Sua gentileza e piedade, sob a pressão de uma vida tão horrível, me pareceram excessivamente passivas.

Ela nunca reclamou.

A Senhora Clarke reclamava mais do que nunca.

Quanto a mim, eu estava mais apaixonado pela verdadeira Lucy, entretanto, me amedrontava perceber que seu amor por mim era semelhante, com uma intensidade proporcional ao meu amor.

Descobri, por instinto, que a Senhora Clarke tinha um desejo em deixar Lucy e tomar a sua vida nas mãos finalmente. Os nervos da boa senhora foram abalados e, pelo que ela disse:

“A Coisa queria me afastar dela.”

Lucy ganhara a confiança das crianças da vila de Coldholme.

A Senhora Clarke e ela, decidiram ficar lá, uma vez que, não era um lugar tão bom quanto qualquer outro para tais como elas?

As nossas tênues esperanças repousaram sobre Bridget, mas nunca vimos ou ouvimos falar dela, mesmo assim, confiávamos em sua volta, ou que ela daria um sinal de onde estava.

Então, como digo, uma após outra, as crianças pequenas vieram até a minha Lucy, conquistadas por seu tom suave, seu sorriso e suas ações gentis.

Então, quando tudo parecia calmo, uma após outra, elas se afastaram de Lucy, com um terror que as amedrontava, e percebemos o motivo.

Eu não podia mais suportar isso.

Resolvi voltar para Londres na tentativa de descobrir alguma maneira de quebrar a maldição.

Meu tio, entretanto, tomara todos os testemunhos necessários relativos à ascendência e nascimento de Lucy, dos advogados irlandeses, e do Senhor Gisborne. Este último cavalheiro escrevera para meu tio, porque estava no exterior, servindo ao exército austríaco.

Ele escrevera uma carta alternadamente repreensiva para si. Era evidente que ele pensara em Mary, em sua curta vida, em como ele a prejudicara e que resultou em sua violenta morte. Ele dificilmente encontrou palavras suficientemente severas por sua conduta, e deste ponto de vista, a maldição que Bridget colocara sobre ele, foi considerada uma desgraça profética, à qual a maldição foi movida por um Poder Superior, trabalhando para o cumprimento de uma vingança mais profunda que a morte do pobre cão.

Novamente, quando ele veio a falar de sua filha, a repugnância que a conduta da criatura demoníaca produzira em sua mente, estava mal disfarçada sob uma demonstração de profunda indiferença quanto ao destino de Lucy.

Quase se podia sentir que ele ficara contente ao saber que a Coisa estava longe de Lucy, como se tivesse destruído algum réptil nojento que invadira seu quarto ou seu sofá.

A grande propriedade de Fitzgerald era de Lucy agora, e tudo isso não foi nada.

Meu tio e eu sentamos na escuridão de uma noite de novembro em Londres, em nossa casa na Rua Ormond.

Eu estava sem saúde, e me sentia como se estivesse em um ciclo destrutível de miséria.

Escrevíamos, Lucy e eu, um ao outro, mas isso foi pouco, e não ousamos nos ver por medo da Coisa.

Meu tio pedira que orações fossem feitas no sábado seguinte, em muitas igrejas e casas de reunião em Londres, seus votos eram para uma pessoa gravemente atormentada por um espírito maligno.

Ele tinha fé nas orações, eu não tinha nenhuma.

Eu estava rapidamente perdendo a fé em todas as coisas, de fato.

Então, sentados, ele tentando colocar algum interesse na velha conversa de outros dias, e eu, oprimido por um pensamento, o velho servo, Anthony, abriu a porta, e, sem falar, nos apresentou um homem muito cavalheiro, que tinha algo notável em suas vestes, era um padre católico romano.

Ele olhou para meu tio primeiro, depois para mim, e se curvou.

— Não dei meu nome. — disse ele. — Porque o senhor dificilmente reconheceria tal nome, a menos que, senhor, quando, no Norte, ouvisse sobre o Padre Bernard, o padre de Stoney Hurst...

Lembrei-me depois, que ouvira falar dele, mas na época, eu esquecera completamente e, por isso, me declarei um completo estranho para ele, enquanto, meu sempre hospitaleiro tio, apesar de odiar um padre tanto quanto era de sua natureza odiar qualquer coisa, colocou uma cadeira para o visitante, e pediu que Anthony trouxesse seus óculos, e um jarro de vinho fresco.

O Padre Bernard recebeu a cortesia com a graciosa facilidade e o agradável reconhecimento que pertence a um homem do mundo.

Então, ele se voltou para me examinar com seu olhar aguçado.

Depois de uma conversa intensa, iniciada de sua parte, estou certo, com a intenção de descobrir em que termos de confiança eu estava com meu tio, ele fez uma pausa, e disse:

— Sou enviado até aqui com uma mensagem para você, senhor, de uma mulher a quem você comprovou sua bondade, e que é uma de minhas penitentes em Antuérpia. Por certo, conhece Bridget Fitzgerald!

— Bridget Fitzgerald! — exclamei. — Em Antuérpia? Diga-me, senhor, tudo o que sabe sobre ela!

— Há muito a ser dito... — respondeu ele. — Mas posso perguntar se este senhor, se seu tio conhece os detalhes dos quais, você e eu estamos informados?

— Tudo o que sei, ele sabe! Fique tranquilo em relação a isso! — respondi, colocando minha mão no braço do meu tio, enquanto ele fazia um movimento como se quisesse sair da sala.

— Tenho que falar diante de vocês, nobres senhores, por mais que difiram de mim na fé. Creio que estão impressionados com o fato que existam poderes malignos, que vão continuamente tomar os nossos pensamentos. Tal é minha teoria sobre a natureza desse pecado, que não ouso desacreditar como alguns céticos fazem. Falo sobre o pecado da bruxaria! Este pecado mortal, você e eu sabemos, Bridget Fitzgerald é culpada. Desde que você a viu pela última vez, muitas orações foram oferecidas em nossas igrejas, muitas missas cantadas e penitências sofridas, para que, se Deus e todos os santos assim o quisessem, seu pecado pudesse ser apagado. Mas, não foi assim que Deus quis!

— Explique-me! — reclamei. — Quem você é, e qual é a sua relação com Bridget? Por que ela está em Antuérpia? Peço-lhe, senhor, que me diga mais! Se estou impaciente, desculpe-me! Mas, estou doente e febril e, em consequência, desnorteado.

Havia algo inexpressivamente reconfortante no tom de voz com o qual ele começou a narrar, como se fosse desde o início, um conhecido de Bridget.

— Conheci o Senhor e a Senhora Starkey durante sua residência no exterior, por isso, naturalmente que, quando vim como padre dos Sherburnes, em Stoney Hurst, nossa amizade foi renovada, e assim, me tornei o confessor de toda a família. E, isolados como eles eram dos escritórios da Igreja, sendo Sherburne seu vizinho mais próximo que confessou a verdadeira fé. É claro que você sabe que os fatos revelados na confissão são selados como no túmulo, mas, aprendi o suficiente sobre o caráter de Bridget para estar convencido de que ela não era uma mulher comum, ela era poderosa para o bem como para o mal. Acredito, que fui capaz de dar-lhe assistência espiritual de tempos em tempos. Ela me olhou como um servo daquela Santa Igreja, que tem um poder tão maravilhoso de mover o coração dos homens e aliviá-los do fardo de seus pecados. Ela cruzava os bosques nas noites mais selvagens da tempestade, para confessar e ser absolvida, e então, ela voltava, acalmada e subjugada, ao seu trabalho diário. Ninguém sabia onde ela estava durante as horas em que eles dormiam em suas camas. Após a partida de sua filha, após o misterioso desaparecimento de Mary, tive que impor muitas penitências longas, de modo a lavar o pecado de arrependimento impaciente que a levava rapidamente à culpa mais profunda da blasfêmia. Ela partiu naquela longa jornada da qual, vocês possivelmente ouviram falar, aquela jornada infrutífera em busca de Mary, e durante sua ausência, meus superiores ordenaram meu retorno aos meus antigos deveres em Antuérpia, e por muitos anos, não ouvi mais falar de Bridget.

Ele deu uma pausa, bebeu o vinho, nos olhou e continuou:

— Não faz muitos meses, quando eu estava caminhando para a minha casa, à noite, ao longo de uma das ruas perto de Saint Jacques, que levavam até Meer Straet, vi uma mulher sentada de cócoras sob o santuário da Santa Mãe das Dores. Seu capuz estava sobre a sua cabeça, de modo que a sombra da lamparina acima de sua cabeça, caiu profundamente sobre seu rosto, e suas mãos foram apertadas ao redor de seus joelhos. Era evidente que ela era uma pessoa em apuros, e como tal, era meu dever parar e auxiliar. Naturalmente me dirigi a ela pela primeira vez, em dialeto mais simples, acreditando ser das classes mais baixas de habitantes. Ela balançou a cabeça, mas não olhou para cima. Depois, tentei o francês, e ela respondeu naquela língua, contudo, falando-a com tanta indiferença, que eu tinha certeza que ela era inglesa ou irlandesa, e consequentemente, falava com ela em minha própria língua nativa. Ela reconheceu a minha voz, pegou minhas vestes, arrastando-me diante do santuário abençoado, atirando-se no chão, e forçando-me, tanto por seu desejo evidente, quanto por sua ação, a ajoelhar ao seu lado, e ela exclamou: “Virgem Santa! Nunca me ouves, mas, o ouça, pois, o conheceis de outrora, que ele faz Vossa vontade, e se esforça para curar os corações partidos. Escutai-o!” ela se voltou para mim. “Ela o ouvirá, se você apenas rezar. Ela nunca me ouve. Ela e todos os santos no céu não podem ouvir minhas preces, pois, o Maligno leva as minhas preces para longe. Oh! Padre Bernard, reze por mim!”. A olhei e falei: “Rezarei, porque a Virgem Santa sabe de sua dor!”. Bridget me abraçou, ofegante, com avidez ao som de minhas palavras. Quando terminei, levantei-me e, fazendo o sinal da cruz sobre ela, no momento em que eu estava a abençoando em nome da Santa Igreja, ela se afastou como uma criatura aterrorizada, e disse: “Sou culpada de pecado mortal.”. A levantei, dizendo: “Levanta-te, minha filha! Venha comigo!”. Liderei o caminho para um dos confessionários de São Jaques.

Ele pausou, bebeu novamente e continuou a contar a história:

— Ela se ajoelhou, e escutei. Nenhuma palavra veio. Os poderes malignos a atormentaram, como ouvi dizer depois. Ela era muito pobre para pagar um exorcismo, e até então, aqueles padres que ela se dirigia, eram tão ignorantes do significado de seu francês quebrado, e irlandês-inglês, que a julgavam como uma louca. Sua maneira brutal poderia facilmente levar qualquer um a pensar em negligenciar o único meio de confessar seu pecado mortal e, após a devida penitência, obter a absolvição. Mas, eu conhecia Bridget fazia muito tempo, e sentia que ela era uma penitente enviada a mim. Descobri que ela estava em Antuérpia com o único propósito, o de se confessar diante de mim. Da natureza dessa temível confissão, estou proibido de falar. Muito disso você sabe, possivelmente. Resta agora, livrar-se da culpa mortal e libertar os outros das consequências. Nenhuma oração ou missa, jamais o fará, embora possam fortalecê-la com aquela força pela qual, somente atos do mais profundo amor e devoção podem ser realizados. Suas palavras de paixão e gritos de vingança, suas orações profanas nunca chegariam aos ouvidos dos santos! Outras forças os interceptaram e fizeram com que as maldições lançadas aos céus, caíssem sobre sua própria carne e sangue, e assim, essa desgraça esmagara seu coração. Daí em diante, seu antigo eu, será enterrado, sim... Enterrado rapidamente, se necessário! Ela se tornou uma Clarissa[40], por penitência perpétua e constante serviço aos outros, para que possa agir longamente de modo a obter absolvição final e descanso para sua alma. Até lá, os inocentes sofrerão. É para pleitear pelos inocentes, que venho até você, não em nome da bruxa, Bridget Fitzgerald, mas da penitente e serva de todos os homens, a Pobre Clarissa, a Irmã Madalena.

— Senhor! — gaguejei. — Escuto seu pedido com respeito. Só posso dizer-lhe que não é necessário me pedir, porque é meu dever fazer tudo o que posso em nome do meu amor por quem faz parte de minha vida. Se por algum tempo me ausentei dela, foi para pensar e buscar uma solução. Eu, um membro da Igreja inglesa, meu tio, um Puritano, rezo dia e noite pela libertação dela, e, as congregações de Londres, no próximo sábado, vão orar por uma desconhecida, para que ela se liberte dos Poderes das Trevas. Além disso, devo dizer-lhe, padre, que aqueles malvados não tocam a grande calma de sua alma. Ela vive sua vida pura e amorosa, incólume e sem manchas, embora, todos os homens a rejeitem. Eu gostaria de ter a fé dela!

Meu tio falou:

— Sobrinho... Parece-me que este senhor, embora, professando o que considero um credo errado, tocou no ponto certo ao convencer Bridget para agir no amor e misericórdia, e assim, apagar seu pecado de ódio e vingança. Esforcemo-nos, depois de nossa missa, para dar esmolas e visitar os necessitados sem pai, para tornar nossas orações aceitáveis. Enquanto isso, descerei para o Norte, e tomarei conta da mulher. Estou velho demais para me assustar com homem ou demônio. E que venha a Coisa, se quiser! Seremos protegidos pelo Altíssimo.

Meu tio era bondoso e corajoso, mas, o Padre Bernard pronunciou:

— O ódio não pode ser extinto em seu coração, todo o perdão cristão não pode entrar em sua alma, ou o demônio perderia seu poder! Você disse, creio, que a neta dela ainda estava atormentada?

— Ainda atormentada! — respondi, infelizmente, pensando na última carta da Senhora Clarke.

Ele se levantou sair.

Ouvimos depois que a sua vinda à Londres era uma missão política secreta em nome dos Jacobitas. No entanto, ele era um homem bom e sábio.

Meses e meses se passaram sem nenhuma mudança.

Lucy pediu ao meu tio para deixá-la onde ela estava. Porque ela acreditava, que se ela me visitasse, com sua temível companheira, para morar na mesma casa comigo, o meu amor não suportaria os repetidos choques aos quais eu estava condenado. Ela não desconfiava da força do meu afeto, mas sim, de uma espécie de simpatia piedosa pelo terror aos nervos que ela observou que a visita demoníaca causou em todos.

Eu estava inquieto e miserável. Me dediquei as boas obras, mas, as realizei sem espírito de amor, somente com a esperança de recompensa e pagamento, e assim, a recompensa nunca foi concedida.

Pedi uma licença longa para viajar e meu tio aceitou o pedido e eu saí, feito andarilho, sem destino, para me afastar de mim mesmo.

Um estranho impulso me levou até Antuérpia, apesar das guerras e comoção aflorarem nos Países Baixos.

Era um desejo, de viver algo diferente daquela dor que me rondava. Isso me levou à engrenagem da luta, que então se desenrolava com os austríacos.

As cidades da Flandres estavam tomadas, naquela época, por distúrbios civis e rebeliões, mantidas apenas pela força, e a presença de guarnições austríacas em todos os lugares.

Cheguei a Antuérpia, e procurei o Padre Bernard.

Ele estava fora do país e voltaria em um dia ou dois dias. Em seguida, perguntei o caminho do Convento das Clarissas, no entanto, só consegui ver as paredes escuras, reprimidas, cinzentas e fechadas pelas ruas estreitas, na parte mais baixa da cidade.

O homem, dono no albergue onde me instalei temporariamente, disse que se eu fora atingido por alguma doença odiosa, ou em caso de desespero de qualquer tipo, as Clarissas me levariam e ajudariam.

Ele falou que elas eram de uma ordem de misericórdia, da mais estrita espécie, vestindo-as com roupas simples, andando descalças, vivendo do que os habitantes de Antuérpia escolhiam conceder, e compartilhando aqueles fragmentos e migalhas, com os pobres e desamparados que se aglomeravam ao redor do convento, não recebendo cartas ou comunicação com o mundo exterior, totalmente mortas para tudo, exceto para aliviar o sofrimento dos outros.

Ele sorriu ao perguntar se eu consegui falar com uma delas, e me disse que elas estavam proibidas de falar, e mendigavam sua comida diária, e, enquanto ainda viviam, e alimentavam outros com o que era dado em caridade, deviam o fazer silenciosamente.

— Mas! — exclamei. — Supondo que todos os homens as esquecessem! Será que elas se deitariam e morreriam em silêncio, sem fazer sinal de sua dor?

— Se tal fosse a regra, as Clarissas o fariam de bom grado, mas seu fundador indicou um remédio para casos tão extremos, como você sugere. Elas têm um sino, mas é pequeno, como ouvi dizer, e ainda não foi tocado. Quando as Clarissas estiverem sem comida por vinte e quatro horas, elas podem tocar este sino e depois confiar em nosso bom povo de Antuérpia para apressar o resgate das Clarissas, que cuidaram tão bem de nós em todas as nossas mazelas.

Parecia-me que tal resgate chegaria tarde, mas, eu não disse o que pensava.

Preferi mudar a conversa, perguntando ao homem se ele sabia ou já ouvira algo sobre Irmã Madalena.

— Sim! — confirmou ele, um pouco sob seu fôlego. — As notícias se espalham. A Irmã Madalena ou é uma grande pecadora, ou uma grande santa! Ela faz mais, como ouvi dizer, do que todas as outras freiras juntas, no entanto, no mês passado, ela implorou que a colocassem abaixo de todas as outras, e a fizessem a mais devota serva de todas.

— Você nunca a viu? — perguntei.

— Nunca!

Estava cansado de esperar pelo Padre Bernard e, mesmo assim, fiquei em Antuérpia.

O estado político das coisas piorou e pela escassez de alimentos em consequência de muitas colheitas deficientes, vi grupos de homens ferozes e esquálidos em todos os cantos da rua, olhando com olhos de lobo para minha pele lustrosa e minhas roupas bonitas.

Finalmente, o Padre Bernard voltou.

Tivemos uma longa conversa, na qual ele me disse que, curiosamente, o Senhor Gisborne, pai de Lucy, estava servindo em um dos regimentos austríacos, depois em uma guarnição em Antuérpia.

Perguntei ao Padre Bernard se eu podia o conhecer, o que ele consentiu em fazer. Mas, um ou dois dias depois, ele me disse que, ao ouvir meu nome, o Senhor Gisborne se recusara a responder qualquer avanço de minha parte, dizendo que esquecera o seu país e odiava seus compatriotas.

Provavelmente ele se lembrou do meu nome em conexão com o de sua filha Lucy. De qualquer forma, ficou claro que eu não tinha nenhuma chance em conhecê-lo.

Padre Bernard me assegurou que a cidade estava perigosa e que eu evitasse sair. Esta foi a maneira que ele encontrou para justificar o não do Senhor Gisborne. Apenas não dei ouvidos para o que o Padre falou.

Um dia, quando eu estava caminhando com ele na Place Verte, ele se curvou diante de um oficial austríaco, que estava atravessando em direção à catedral.

— Este é o Senhor Gisborne! — sussurrou ele, assim que o cavalheiro passou por nós.

Me virei para olhar a figura alta do oficial.

Ele caminhava de maneira imponente, apesar de passar da meia-idade. Quando olhei para o homem, ele se virou, seus olhos encontraram os meus, e vi seu rosto. Profundamente alinhado, mal-humorado e esburacado, era esse rosto, marcado pelo entusiasmo, assim como pela guerra.

Foi apenas um momento em que nossos olhos se encontraram. Cada um de nós se virou e seguiu seu caminho.

Entretanto, sua aparência não seria facilmente esquecida. A minuciosa nomeação do uniforme de soldado, e o pensamento evidente que lhe foi conferido, fez um todo incongruente com a expressão sombria de seu semblante.

Como ele era o pai de Lucy, procurei instintivamente encontrá-lo em todos os lugares possíveis.

Ele, por certo, tomara consciência de minha pertinência, pois, ele me deu uma carranca altiva sempre que eu passava por ele.

Em um desses encontros, no entanto, tive a oportunidade de lhe prestar algum serviço.

Ele estava virando a esquina de uma rua, e um dos grupos de flamengos[41] descontentes se aproximou.

Algumas palavras foram trocadas, ele sacou a sua espada, e com um leve, mas hábil corte, retirou sangue de um dos que o insultaram, embora, eu estivesse longe demais para ouvir as palavras.

Todos eles cairiam sobre ele, se eu não tivesse me precipitado e levantado o grito, então, bem conhecido em Antuérpia, que os soldados austríacos patrulham perpetuamente as ruas, estes ouviram meu chamado e vieram em grande número para o resgate.

Penso que nem o Senhor Gisborne, nem o grupo rebelde de plebeus ficaram gratos por minha interferência.

Ele se encostara a um muro, em uma atitude hábil, pronto com sua espada luminosa para fazer a batalha com todos os homens fortes, ferozes e desarmados, cerca de seis ou sete em número. Mas quando seus soldados surgiram, ele embainhou sua espada, e, dando uma palavra descuidada de comando, mandou-os embora, e continuou seu caminhar solitário pela rua, com os soldados rosnando em sua retaguarda, se inclinado sobre mim, por meu grito de socorro desnecessário.

Não me importava o que eles fariam comigo, minha vida parecia tão sombria naquele momento, e, talvez, fora esta ousadia em não me importar com nada, que impediu que eles me atacassem.

Em vez disso, eles apenas reclamaram e ouvi algumas de suas queixas. Não admira que os rebeldes fossem selvagens e desesperados.

O homem que Gisborne ferira no rosto desmaiara após perguntar quem era o homem, me recusei a dizer o nome de seu agressor. Outro, do grupo ouviu sua pergunta e respondeu:

— Conheço o homem. Ele é um Gisborne, auxiliar de campo do Comandante. O conheço bem.

Ele começou a contar uma história ligada a Gisborne em voz baixa e resmungona, e enquanto ele estava contando a história, vi estimulado o sangue maligno deles, e que eles evidentemente desejavam que eu não ouvisse.

Fugi e voltei para meus alojamentos.

Naquela noite, Antuérpia estava em meio à revolta.

Os habitantes levantaram-se em rebelião contra seus mestres austríacos.

Os austríacos, segurando os portões da cidade permaneceram, a princípio, bastante quietos na fortaleza, apenas, de tempos em tempos, o auge do grande canhão ecoou, incomodando a cidade.

Entretanto, se eles esperavam que o distúrbio morresse e passassem depois de algumas horas em fúria, estavam enganados.

Em um ou dois dias, os desordeiros tomaram posse dos principais edifícios municipais. Então, os austríacos se espalharam em uma ardente e intensa exibição de fogo armado, enquanto marchavam para os postos designados, como se a multidão feroz se importasse, mas, para eles, os tiros eram enxames de moscas de verão, apenas zumbindo.

Suas manobras praticadas e tiros certeiros eram contados, com efeito terrível, mas, no lugar de um desordeiro morto, três brotavam de seu sangue, para vingar sua perda.

Mas, um inimigo mortal, um terrível aliado dos austríacos, estava em ação: a comida.

Os alimentos estavam escassos durante meses, dificilmente obtido a qualquer preço.

Esforços desesperados estavam sendo feitos para trazer suprimentos para a cidade, pois, os desordeiros também precisavam de comida.

Perto do porto da cidade, mais próximo do Escalda, uma grande luta ocorreu. Eu estava lá, ajudando os desordeiros, cuja causa eu adotara.

Tivemos um encontro violento com os austríacos.

Os números caíram de ambos os lados. Os vi sangrando por um momento, depois uma nuvem de fumaça os obscureceu, e quando se desobstruiu, eles foram atropelados ou sufocados, pressionados e escondidos pelos recém-feridos que aquelas últimas armas jogaram no chão.

Então, uma figura cinzenta se deparou com as pistolas e se abaixou sobre alguém, cujo sangue estava escorrendo, às vezes, era para dar-lhe de beber em pequenas garrafas penduradas ao seu lado, outras vezes, eu via a cruz posta no peito de um moribundo, e orações rápidas eram proferidas, sem serem ouvidas pelos homens naquele barulho infernal e estridente, mas ouvidas por Um acima.

Vi como se fosse um sonho, pois, diante da realidade, só havia batalha e carnificina. Porém, eu sabia que estas figuras cinzentas, seus pés nus, todos molhados de sangue, e seus rostos escondidos pelos véus, eram as Pobres Clarissas, enviadas porque a agonia terrível estava no exterior do Convento e o perigo iminente à mão.

Por isso, elas deixaram o abrigo de clausura e entraram naquela confusão.

Perto de mim, passou um homem de Antuérpia com cicatrizes pelo rosto, e em um instante ele se lançou na frente do oficial austríaco Gisborne, e antes que um ou outro tivesse recuperado o choque, o homem tentou o apunhalar.

— Ah! O inglês Gisborne! — gritou ele, e se jogou sobre o Senhor Gisborne com fúria redobrada.

Ele atingira com força o inglês que caíra e antes de outro golpe, da fumaça saiu uma figura cinza escura, e atirou-se em frente a espada erguida e cintilante. O braço do homem ficou preso. Nem os austríacos, nem os antuerpianos, de bom grado, prejudicariam uma das Clarissas.

— Deixe-o comigo! — disse uma voz baixa e severa. — Ele é meu inimigo, há muitos anos!

Essas palavras foram as últimas que ouvi, porque fui atingido por uma bala.

Fiquei por dias sem me lembrar de nada.

Quando recuperei a consciência, eu estava no limite da fraqueza e permanecia ansioso por comida para alinhar as minhas forças.

O dono do albergue se encontrava sentado, me observando. Ele também parecia apavorado porque ouvira falar que eu estava ferido e me procurou.

Sim! A luta ainda continuava, mas a fome era dolorosa, e alguns que ele ouvira falar, morreram por falta de comida.

As lágrimas estavam em seus olhos, enquanto ele falava. Mas logo ele se livrou de sua fraqueza, e sua alegria natural voltou.

O Padre Bernard fora me ver, ninguém mais. Quem, ali, sabia da minha existência, de fato?

Ele voltaria naquela tarde, porque prometera, mas o Padre Bernard não veio, embora eu levantasse, me vestido, e esperado por ele.

O homem, dono do albergue, me trouxe uma refeição que ele mesmo cozinhara, do que era composto a refeição, ele não dizia, mas era excelente, e a cada colherada, eu parecia ganhar força.

Ele sentou-se, olhando meu prazer evidente em saciar a minha fome, com um sorriso feliz de simpatia. Mas, quando meu apetite se tornou satisfeito, comecei a detectar certa melancolia em seus olhos, como se ansiasse pela comida que eu devorara, pois, de fato, naquela época, eu não estava ciente da extensão da fome dos outros.

De repente, muitos pés apressados passaram por nossa janela. O homem abriu um dos lados da janela para saber o que estava acontecendo. Então, ouvimos um sino tênue e tilintando, voando estridente sobre o ar, claro e distinto de todos os outros sons.

— Santa Mãe! — exclamou o homem. — As Pobres Clarissas!

Ele arrancou os fragmentos da minha refeição e os amontoou em minhas mãos, me mandando seguir. Descemos as escadas, pegando mais comida, enquanto as mulheres arrecadavam o pouco que restava de alimento, e em um momento, estávamos na rua, movendo-nos com a grande corrente, todos caminhando para o Convento das Clarissas.

Ainda assim, como se furasse nossos ouvidos com seu grito inarticulado, veio novamente o tilintar estridente do sino.

Naquela estranha multidão, estavam velhos tremendo e soluçando, enquanto carregavam sua pequena ninharia de comida, mulheres com lágrimas correndo pelas bochechas, que arrebataram o pouco de suprimento que tinham nos potes. Crianças, com rostos corados, agarrando com força o pedaço de bolo picado ou pão, em sua ânsia de levá-los a salvos para ajudar as Clarissas. Homens fortes, sim, tanto antuerpianos como austríacos, pressionando seus dentes e nenhuma palavra falada, e acima e através de tudo, veio aquele piscar de olhos, aquele grito de socorro extremo.

Encontramos a primeira torrente de pessoas retornando com caras apáticas. Elas estavam saindo do convento para dar lugar às ofertas de outros.

— Pressa! Pressa! — disseram eles. — Uma Pobre Clarissa está morrendo! Uma Pobre Clarissa está morta de fome! Deus nos perdoe e à nossa cidade!

Prosseguimos.

A multidão nos levou. Fomos transportados através de refeitórios, nus e sem migalhas, em celas, com o nome conventual do ocupante escrito em cada porta.

Foi assim que fui forçado a entrar na cela da Irmã Madalena.

Em seu sofá estava Gisborne, pálido até a morte, mas não morto, e ao seu lado, havia um copo de água, com um pequeno pedaço de pão bolorento, que ele empurrara para fora de seu alcance, e não podia se mover para obtê-lo. Em sua cama estava a frase:

“Portanto, se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer. Se tiver sede, dá-lhe de beber.”

Alguns lhe deram a nossa comida, e o deixaram comendo avidamente, como um animal selvagem faminto.

O tilintar do sino parou, mas ouvimos o eco triste que os cristãos falam ser a passagem do espírito da vida terrena para a eternidade. Novamente um murmúrio se reuniu e cresceu, de muitas pessoas falando com fôlego de espanto:

— Uma Pobre Clarissa está morrendo!

— Uma Pobre Clarissa está morta!

Arrastados mais uma vez pelo movimento da multidão, fomos levados para dentro da capela pertencente às Clarissas.

Diante do altar, colocamos a Irmã Madalena, mas eu sabia que era Bridget Fitzgerald. Ao seu lado estava o Padre Bernard, em suas vestes de ofício, segurando o crucifixo no alto, enquanto pronunciava a solene clemência da Igreja.

Prossegui com força apaixonada, até ficar perto da mulher moribunda, enquanto ela recebia extrema unção em meio à falta de ar e ao silêncio assombrado da multidão ao redor.

Seus olhos estavam vidrados, os membros enrijecidos, mas quando o rito terminou, ela ergueu lentamente sua figura doente, e seus olhos brilharam com uma estranha intensidade de alegria, pois, com o gesto de seu dedo e o brilho de transe de seus olhos, ela parecia ser aquela que assistia ao desaparecimento de alguma criatura detestável e medrosa.

— Ela está livre da maldição! — disse ela, me olhando.

Seus olhos se fecharam.

Para sempre.

Fim.


Lizzie Leigh

Capítulo I

Quando a morte está presente em uma casa, em um dia de Natal, o contraste entre o tempo de hoje e o de ontem, dá uma pungência à tristeza, uma maior brancura à desolação.

James Leigh morreu exatamente quando os sinos distantes da Igreja de Rochdale[42] tocaram para o culto matinal no Dia de Natal de 1836.

Alguns minutos antes de sua morte, ele abriu seus já vidrados olhos, e fez um sinal para sua esposa, pelo movimento tênue de seus lábios, de que ele ainda tinha algo a dizer.

Ela se abaixou e pegou o sussurro quebrado de sua voz:

— A perdoo, Annie! Que Deus me perdoe também!

— Oh! Meu amor! Meu querido! Só fique bem, e, eu jamais deixarei de agradecer por suas palavras. Que Deus no Céu, te abençoe por dizê-las. Que Deus te abençoe por dizê-las!

Enquanto ela falava, ele morreu.

Eles foram marido e mulher, por vinte e dois anos, e durante dezenove desses anos, sua vida de casados fora calma e feliz. A mais perfeita honestidade de um lado, e a mais completa confiança e submissão amorosa do outro.

A famosa frase[43] de Milton[44] seria moldurada e pendurada na parede da sala como a regra da vida de casados, pois, ele era verdadeiramente o intérprete, que estava entre Deus e aquele casal.

Ela seria perversa, se ousasse pensar que ele era austero, embora, ela soubesse que ele era austero e inflexível.

Por três anos, o gemido e o murmúrio não saíram de seu coração, e depois, ela se rebelara contra seu marido tirano, em uma rebelião escondida e amuada, que rompeu os momentos antigos do dever de esposa e afeto, envenenando as fontes de onde o amor e a reverência mais gentis, brotaram uma vez para sempre.

Mas, essas últimas palavras abençoadas, o substituíram. Seu coração virou um trono abandonado que chamava a angústia penitente por todo o amargo afastamento de anos posteriores.

Foi isto que a fez recusar todas as súplicas de seus filhos, para que ela fosse ao encontro dos vizinhos bondosos, que clamavam sua presença na igreja para prestar suas condolências.

Não! Ela ficaria com o falecido marido, que finalmente falara com ternura, mas, que durante três anos, ele permanecera em silêncio.

Talvez, quem sabe, se ela fosse mais gentil e menos reservada, ele cederia mais cedo e a tempo? Não!

Ela estava sentada ao lado de sua cama, balançando de um lado para o outro a sua cabeça, enquanto as pegadas no andar de baixo da casa, entravam e saíam.

Ela ficara triste por muito tempo para ter qualquer explosão de dor profunda agora, os sulcos estavam bem gastos em suas bochechas, e as lágrimas percorriam seu rosto cansado, calma e incessantemente, o dia todo.

No entanto, quando a noite de inverno se aproximara e os vizinhos foram para suas casas, ela olhou para a janela e avistou o pântano, que ela chamava de seu jardim cinza, tão escuro.

Ela não ouviu a voz de seu filho, enquanto ele falava com ela, parado na porta, nem os passos de seus pés ao se aproximar.

— Mãe! Desça! Não há ninguém além de mim e Will. Querida mãe, precisamos de você! — a voz do pobre menino tremia, e ele começou a chorar.

Havia a necessidade de um esforço da parte da Senhora Leigh para sair da janela, todavia, com um suspiro, ela atendeu ao pedido dele.

Os dois rapazes, embora Will tivesse quase vinte e um anos, ela ainda pensava nele como um menino, fizeram tudo ao seu alcance para tornar a casa confortável para ela naquele momento.

Ela, nos velhos tempos antes de sua tristeza, nunca avistara um fogo tão brilhante ou uma lareira mais limpa. As coisas do chá a esperavam, a chaleira estava fervendo, e os meninos acalmaram sua tristeza em uma espécie de alegria sóbria.

Eles lhe prestaram toda atenção que pensaram, mas, receberam pouca atenção de sua parte. Ela não resistiu, e se submeteu a todos os arranjos deles, mas, eles não pareceram tocar seu coração.

Quando o chá terminou, as coisas foram levadas para a cômoda. Ela se inclinava sem vigor para trás em sua cadeira.

— Mãe, Tom pode ler um capítulo para você? Ele é mais estudioso que eu!

— Sim, rapaz! — murmurou ela, quase ansiosamente. — Leia o Filho Pródigo. Obrigada!

Tom encontrou o capítulo, e o leu com a voz aguda, que era habitual nas escolas do vilarejo.

Sua mãe se inclinou para frente, seus lábios se separaram, seus olhos dilataram com a devida atenção.

Will sentou-se com sua cabeça deprimida e pesada. Ele sabia porque aquele capítulo fora escolhido, e para ele, isso lembrou a desgraça da família.

Quando a leitura terminou, ele ainda segurava sua cabeça baixa, em um silêncio sombrio. No entanto, seu rosto estava mais brilhante que um dia antes. Seus olhos pareciam sonhadores, como em uma visão.

Ela puxou a Bíblia na sua direção e, colocando o dedo debaixo de cada palavra, começou a lê-las em voz baixa, e lendo novamente as palavras de amarga tristeza e profunda humilhação, ela fez uma pausa e brilhou sobre a terna recepção do pai do pródigo arrependido.

Assim, a noite de Natal na Fazenda Upclose terminou.

A neve caíra pesadamente sobre o pântano escuro que abraçava o dia do funeral.

A cúpula negra do céu, carregada de tempestades, estava muito quieta e próxima da terra branca, enquanto levavam o corpo para fora da casa.

Durante muito tempo, a alma que vivia naquele corpo, transformou aquela casa em um Inferno, e agora partira, deixando uma fagulha de esperança em dias melhores para quem ficara.

Seguiram, de dois em dois, os lamentadores, fazendo uma procissão triste, em sua marcha sinuosa sobre a neve invicta, rumo à Igreja Milne Row. Por vezes, a procissão se perdia em algum buraco nos pântanos sombrios, outras vezes, subia lentamente as elevações pelo caminho.

Não havia muito tempo depois do funeral, pois, muitos dos vizinhos que acompanhavam o corpo até o túmulo, tinham que voltar para as suas casas e afazeres, e os grandes flocos brancos de neve que desciam lentamente, eram os precursores de uma forte tempestade.

Um velho amigo solitário acompanhou a viúva e seus filhos até sua casa.

A Fazenda Upclose pertencia há gerações aos Leighs, e ainda assim, sua posse dificilmente os elevou acima da categoria de operários.

Havia a casa, o celeiro, a mobília antiquada, e cerca de sete acres de terra improdutiva, que eles nunca possuíram capital o suficiente para melhorar, de fato. Eles dificilmente podiam contar com capital extra, porque mal conseguiam dinheiro para a sua subsistência, e era costume educar os filhos para algum ofício, como o de um dramaturgo ou ferreiro.

James Leigh deixara um testamento na posse do homem que os acompanhou até a casa. Ele o leu em voz alta.

James legara a fazenda para a sua fiel esposa, Anne Leigh, por toda a sua vida, e depois ao seu filho William. As cem libras na poupança iriam se acumular para Thomas.

Após a leitura terminar, Anne Leigh ficou em silêncio por um tempo e depois pediu para falar a sós com Samuel Orme.

Os filhos foram para a cozinha no fundo da casa, e dali, eles caminharam para o campo atrás da casa, um pasto de relva morta pela neve, independentemente da neve que conduzia.

Os irmãos gostavam muito um do outro, embora fossem de caráter muito distante.

Will, o mais velho, era como seu pai, austero, reservado e escrupulosamente correto. Tom, dez anos mais jovem, era gentil e delicado como uma menina, tanto na aparência, quanto no caráter.

Ele sempre se agarrou a sua mãe e temia seu pai.

Eles não falavam enquanto caminhavam, uma vez que, tinham apenas o hábito de falar sobre fatos, e mal conheciam a linguagem mais sofisticada aplicada à descrição dos sentimentos que percorriam seus corações naquele momento.

Enquanto isso, a mãe deles pegara o braço de Samuel Orme com sua mão trêmula.

— Samuel, tenho que deixar a fazenda! Tenho que deixar!

— Deixe a fazenda? Perdeu o juízo?

— Oh! Samuel! — falou a pobre viúva, com seus olhos nadando em lágrimas. — Estou apenas me inclinando para ir viver em Manchester! Deixarei a fazenda!

Samuel olhou, ficou pensativo por um tempo e falou:

— Se você já se decidiu de tal coisa, não há como persuadir sua mente para mudar de ideia! Vá! Se for isto o que deseja! Você está tristemente desejando viver em Manchester para possuir uma liberdade que desejou por tanto tempo. Sei bem! Porque deseja fazer coisas que nunca foi capaz de fazer. Por certo, você anseia por comprar batatas, uma coisa que nunca fez em toda sua vida! Bem! Não é a minha intenção te segurar aqui. Enfim... Devo dizer que a nossa Jenny vai se casar com Tom Higginbotham, e ele queria um pouco de terra para começar a vida de casado. Seu pai vai morrer algum dia, creio, porque todos morrem um dia, então, ele herdará a Fazenda Croft. Mas, enquanto isso...

— Então, ele ficará com a nossa fazenda! — afirmou ela, ainda mais ansiosa.

— Sim! Sim! Avisarei para ele sobre o seu desejo em vender a fazenda. Ele vai querer barganhar e não seria certo neste momento. Esperaremos um pouco.

— Não! Não posso e não quero esperar. Resolva de uma vez!

— Está bem! Vou falar com Will sobre isso. Ele está lá fora com Tom. Vou até eles e falarei sobre isso.

Assim, ele foi e se juntou aos dois rapazes e, sem mais delongas, começou o assunto a eles.

— Will... Sua mãe se inclina na ânsia de ir morar em Manchester, e cobiça a venda da fazenda. Agora, estou disposto a aceitar a proposta para Tom Higginbotham, contudo, por mais que eu seja um homem de negócios e sempre use da boa barganha, não é uma boa hora de brincar com a desgraça que caiu sobre a sua mãe. Vamos acertar isso, você e eu. Sem trapaças. Isso nos aquecerá neste dia frio.

— Deixaremos a fazenda! — disseram os dois rapazes de uma só vez, com infinita surpresa. — Vamos morar em Manchester!

Samuel Orme não queria se intrometer nos assuntos dos Leighs, porque, provavelmente a matriarca estava atordoada pela morte de seu marido. Ele esperaria um dia ou dois, e não falaria para ninguém, nem para Tom Higginbotham, até que tudo estivesse claro.

— É melhor que entrem e conversem sobre isso com sua mãe. — ele lhes deu um bom dia, e os deixou.

Will parecia muito sombrio, mas não falou até que eles se aproximassem da casa.

Então, ele pronunciou...

— Tom! Vá até o celeiro, e jante com as vacas. Quero falar com a mãe a sós!

Quando ele entrou na casa, ela estava sentada diante da lareira, olhando para suas brasas. Ela não o ouviu entrar, há algum tempo ela perdera sua percepção rápida das coisas externas.

— Mãe! Quer ir para Manchester? — perguntou ele.

— Oh! Meu menino! — sussurrou ela, virando-se, e falando em tom sereno. — Devemos ir até Manchester e procurar nossa Lizzie! Não posso descansar aqui com meus pensamentos nela. Muitas vezes, deixei seu pai dormindo na cama, e fui até à janela, olhei para o céu e mirei o meu coração em direção a Manchester, e pensei que devia partir imediatamente, mesmo que fosse me arrastando pela relva e os musgos, até chegar lá. Muitas vezes, quando o vento sul estava soprando suave nos pântanos, eu imaginava, que a ouvia chorando, chamando o meu nome. Pensei que a voz se aproximava cada vez mais, até que finalmente estava soluçando a palavra mãe perto da porta, e fui até a porta e desapertei o trinco, olhei para fora, na noite negra e imóvel, pensando em vê-la, e fiquei decepcionada quando não ouvi nenhum som vivo, a não ser o sussurro do vento morrendo. Oh! Não me fale em continuar aqui, quando ela pode estar passando fome, como o pobre rapaz da parábola do “filho pródigo”.

Ela levantou sua voz, e chorou em voz alta.

A vontade estava profundamente entristecida.

Will já tinha idade suficiente para se envergonhar da família.

Dois anos antes, seu pai recebera uma carta de sua filha, ela fora devolvida por seu marido em Manchester. O homem afirmara que Lizzie deixara seu serviço de esposa algum tempo.

Will simpatizara com a raiva severa de seu pai, embora ele pensasse muito em Lizzie, é verdade, quando seu pai proibiu sua esposa chorosa e desolada de ir encontrar sua pobre filha pecadora, e declarou que, doravante, ele não tinha mais filha, que ela deveria ser declarada morta, e que seu nome nunca mais seria citado no mercado ou na hora das refeições, em bênção ou oração.

Ele se calara, com lábios comprimidos e sobrancelhas contraídas, quando os vizinhos perceberam como a pobre morte de Lizzie envelhecera, tanto seu pai quanto sua mãe, e como eles pensavam que o casal enlutado nunca mais levantaria a cabeça.

Will sentira como se aquele acontecimento o envelhecera antes de seu tempo, e invejava Tom pelas lágrimas que derramara ao pensar na pobre, bonita, inocente e morta Lizzie. Ele pensou nela, algumas vezes, até que ele conseguiu esquecer a vergonha.

— Mãe! — falou ele, finalmente. — Ela pode estar morta! O provável é que ela esteja morta realmente!

— Não, Will! Ela não está morta! — afirmou a Senhora Leigh. — Deus não a deixará morrer até que eu a veja mais uma vez! Você não sabe como rezei para que eu conseguisse, pelo menos, só mais uma vez, ver seu doce rosto, e dizer-lhe que a perdoei, embora, ela tenha partido meu coração também, Will. — ela não pôde continuar por um minuto ou dois, devido aos seus soluços sufocantes. — Não diga que ela está morta! Pois, acredito que Deus é muito misericordioso, Will. Ele é! Ele é muito misericordioso, mais que qualquer homem neste mundo! Jamais falei com seu pai da mesma maneira que falava com Deus. — ela parou seu choro e seu semblante ficou sereno. — Seu pai finalmente a perdoou! As últimas palavras foram de perdão, realmente. Se ele conseguiu perdoar, o que dizer sobre você? Não tente impedir-me de ir procurá-la, pois, não adianta!

Will ficara quieto por um tempo antes de falar:

— Não a atrapalharei em sua busca, mãe. Acho que ela está morta, mas a minha opinião não importa!

— Ela não está morta! — garantiu a sua mãe, com pouca seriedade e Will tentou não dar importância para a interrupção de sua mãe.

— Iremos todos para Manchester por um período de doze meses, e deixaremos a fazenda para Tom Higginbotham. Vou conseguir um trabalho de ferreiro, e Tom pode estudar lá por algum tempo, o que ele sempre desejou. No final do ano, voltaremos. Assim, acalmará essa inquietação por Lizzie, e concordará comigo que ela está morta, e, para mim, isso seria mais reconfortante que pensar que ela está viva e sofrendo, possivelmente. — ele deixou cair sua voz, enquanto falava estas últimas palavras.

Ela balançou a cabeça, mas não deu resposta. Ele perguntou:

— Concorda com estes termos, mãe?

— Vou concordar com o que quer! Se eu não ouvir ou ver nada por estes doze meses, estando em Manchester a procurando, terei apenas partido meu coração antes do final do ano. Sim, minha inquietação acabará, quando estiver em repouso na minha sepultura. Vou concordar com seus termos, Will.

— Bem... Não direi para Tom qual o motivo para estarmos indo para Manchester. É melhor poupá-lo.

— Como desejar, meu filho! — suspirou ela, lamentando-se. — Apenas quero encontrar Lizzie!

Antes que os narcisos selvagens estivessem em flor nas tiras abrigadas ao redor da Fazenda Upclose, os Leighs foram instalados em sua casa nova em Manchester, se alguma vez considerasse aquele lugar como um lar, porque não havia jardim, celeiro, nenhuma saída de brisa fresca, vista distante de um horizonte montanhoso, nem relva ou animal para cuidar.

O que não mudava eram as lembranças tristes, a incerteza sobre o que acontecera com Lizzie.

A Senhora Leigh entendeu a perda de todas essas coisas, mais que seus filhos. Ela estava mais calma de espírito que fora durante meses, porque ela tinha esperança, mesmo triste, mas ainda assim, era esperança.

Ela desempenhava todas as suas tarefas domésticas, da mais simples a complicada, e ficava desnorteada, por vezes, porque ela não estava acostumada com as necessidades da cidade e de seu novo modo de vida.

Entretanto, quando sua casa estava calma e os meninos estavam de volta, à noite, após um longo dia de trabalho, ela vestia sua capa e saía despercebida, como ela pensava, mas não sem os suspiros pesados de Will, depois que ela fechava a porta da casa e partia.

Muitas vezes, passava da meia-noite, quando ela retornava, pálida e cansada, com um olhar culpado sobre seu rosto tão cheio de decepção e, ao mesmo tempo, esperança frágil, que Will nunca teve coragem de encarar para dizer o que pensava sobre a loucura e desesperança da busca.

Foi assim, noite após noite, até que os dias cresceram para semanas, e as semanas viraram meses.

Durante este tempo, Will cumpriu seu dever para com ela, o melhor que pôde, mesmo com seu semblante que não esperançava boas notícias. Ele ficava em casa, à noite, devido ao Tom, e muitas vezes, desejava ter o prazer de ler, pois, o tempo ficava pesado em suas mãos, enquanto ele se sentava ao lado de sua mãe.

Não preciso lhe dizer o motivo do cansaço de sua mãe. No entanto, vou lhes dizer algo.

Ela costumava vagar, no início como se não tivesse um propósito, até que ela uniu todas as suas energias para suportar uma busca mais profunda, com muita paciência, pelos caminhos menos conhecidos de uma parte nova da cidade, olhando com tristeza e súplica, o rosto das pessoas.

Às vezes, vislumbrando uma figura que tinha uma espécie de semelhança momentânea com a de sua filha, e seguindo essa figura com perseverança sem cansaço, até que alguma luz monstrasse o rosto frio e estranho que não era o de sua filha.

Uma ou duas vezes, um transeunte de bom coração, atingido pelo seu olhar de desolação, voltou e ofereceu ajuda, ou perguntou-lhe o que ela queria. Quando assim falou, ela respondeu apenas:

— Você não conhece uma pobre menina que eles chamam de Lizzie Leigh, conhece?

Quando eles negaram conhecer Lizzie, ela balançou a cabeça, e continuou novamente sua caminhada sem rumo.

Penso que eles acreditavam que ela era louca. Porém, ela jamais abordou as pessoas. Ela, vez ou outra, descansava alguns minutos nos degraus de uma porta qualquer, e, às vezes, muito raramente, cobria o rosto e chorava, mas ela não podia perder tempo desta maneira, porque chorar só a faria perder tempo, porque, enquanto seus olhos estavam cegos por lágrimas, Lizzie podia passar despercebida diante dela.

Uma noite, no encurtar dos dias de outono, Will viu um homem velho, que, sem estar absolutamente bêbado, não podia se orientar corretamente pelo caminho, e foi zombado, por sua instabilidade de marcha, pelos meninos desocupados da vizinhança.

Lembrando-se do pai, Will considerou o velho com ternura, mesmo que ele fosse mais degradado e afastado das virtudes que dignificavam aquele homem.

Assim, Will levou o velho para casa, e fingiu acreditar em suas afirmações frequentemente repetidas, de que ele não bebia nada, além de água.

O estranho tentou caminhar com firmeza, enquanto se aproximava do lar, como se ali estivesse alguém, por cujo respeito ele se importava, mesmo em seu estado quase intoxicado, ou cujos sentimentos ele temia magoar.

Seu lar era requintadamente limpo, mesmo na aparência limiar, janelas e soleiras eram sinais exteriores de algum espírito de pureza que se sustentava ali dentro.

Will foi recompensado por sua atenção com um olhar brilhante de agradecimento, sucedido por um rubor de vergonha de uma jovem de vinte anos ou por aí.

Ela não falou ou colaborou com os convites hospitaleiros de seu pai para sentar-se com ele. Ela parecia não querer que um estranho testemunhasse as tentativas de sobriedade de seu pai, e Will não suportava ficar e ver sua angústia.

Mas quando o velho, com muitos apertos de mão flácidos, continuou a pedir-lhe que viesse outra noite e os visse, Will procurou seus olhos abatidos e, embora não conseguisse ler o significado velado deles, respondeu timidamente:

— Se for agradável para todos, voltarei, e agradeço pelo convite, senhor!

No entanto, não houve resposta da moça, a quem este discurso foi realmente dirigido, e Will deixou a casa, encantado pelo silêncio da jovem.

Ele pensou muito nela no dia seguinte e dois mais. Repreendeu-se por ser tão tolo a ponto de pensar nela, e depois caiu em seus pensamentos com novo ânimo, e pensou nela mais que nunca.

Ele tentou depreciá-la, dizendo a si que ela não era bonita, e então respondeu indignado para seu eu apaixonado que gostava muito dela e que a beleza não importava. Porém, que ela era a mais linda de todas.

Ele desejava não ser tão camponês, ruivo, e largo de ombros, enquanto ela era como uma senhora, com sua tez lisa e incolor, de cabelo escuro brilhante e vestido imaculado.

Bonita ou não bonita, ela desenhou seus passos na direção dele, e ele não pôde resistir ao impulso que o fez desejar vê-la mais uma vez, e descobrir alguma falha que desataria seu coração de sua guarda inconsciente.

Contudo, lá estava ela, pura como antes.

Ele sentou e olhou, respondendo ao pai dela com propósitos distintos, enquanto ela se aproximava cada vez mais da sombra da chaminé, fora de vista, bordando um pequeno lenço.

Então, o espírito que o possuía, porque não era ele mesmo, claro, que fazia uma coisa tão imprudente, o fez levantar-se e carregar a vela para perto dela, sob o pretexto de lhe dar mais luz na costura, mas era para poder vê-la melhor.

Ela não aguentou as investidas de Will, se levantou dizendo ter que colocar sua sobrinha pequena na cama, e certamente nunca houve, antes ou depois, uma criança de dois anos, tão problemática, pois, embora Will ficara uma hora e meia esperando a sua volta para a sala, ela não desceu dos aposentos.

Ele conquistou o coração do pai, por sua capacidade como ouvinte, uma vez que, algumas pessoas desejam falar sem serem perturbadas, e não são tão irracionais a ponto de esperar atenção ao que dizem.

No entanto, a vontade recolheu isto da conversa do velhote. Ele tivera no ramo de negócios bastante rentável, mas falhou em manter o seu dinheiro protegido e ele não tinha mais nada, além de uma reputação como vendedor de hortaliças.

Este grande fracasso parecia ser o acontecimento de sua vida, e que ele vivia com um estranho orgulho.

Parecia que no presente, ele descansava de seus esforços passados na linha da falência, e dependia de sua filha, que mantinha uma pequena escola para crianças muito pequenas.

Mas estes detalhes ele só lembrou e entendeu quando ele deixou a casa, porque quando ele os ouviu, ele estava pensando em Susan.

Depois da visita à casa do Senhor Palmer, ele não demorou muito, você pode ter certeza, em encontrar alguma razão para voltar de novo.

Ele ouvia o pai dela, falava com a sobrinha, mas olhava para Susan, tanto enquanto escutava, como enquanto falava.

Seu pai continuou insistindo sobre sua antiga gentileza, cujos detalhes foram muito questionáveis à mente de Will, se a doce, delicada e modesta Susan não tivesse jogado um ar inexplicável de refinamento sobre tudo o que ela se aproximava.

Ela não falava muito, e estava diligentemente trabalhando, no entanto, quando ela se movia silenciosa, e quando ela falava, era em uma voz tão baixa e suave, que o silêncio, a fala, o movimento e a quietude pareciam removê-la de Will em algum ar santo e inacessível de glória superior, acima de seu alcance.

Se ela conhecesse o segredo obscuro por trás da vergonha da irmã de Will, que foi mantida sempre presente em sua mente pela busca noturna de sua mãe entre os degradados e abandonados, Susan não se afastaria dele com aversão, como se ele fosse manchado pelo relacionamento inconsequente da irmã? Este era o seu pavor.

Em seguida, ele se afastou de sua doce companhia, antes que fosse tarde demais. Assim, ele resistiu à tentação profunda do amor e ficou em casa, sofrendo e suspirando.

Ele ficou furioso com sua mãe por sua paciência incansável em busca de alguém, que ele sabia estar morto ao invés de vivo, e falou com ela com muita intensidade, recebendo respostas, tão tristes e depreciativas, que o fizeram censurar-se e perder a paz de espírito.

Esta luta não poderia durar muito, sem afetar sua saúde, e Tom, seu único companheiro durante as longas noites, notou sua crescente depressão, sua irritabilidade inquieta, com ansiedade perplexa, e finalmente, resolveu chamar a atenção de sua mãe para os olhares fadigados e carrancudos de seu irmão.

Ela escutou com uma lembrança assustada das reivindicações de Will sobre seu amor. Ela notou seu apetite decrescente e suspiros meio cheios.

— Will, meu menino! O que te aconteceu? — perguntou ela, enquanto ele se sentava sem olhar para a lareira.

— Não há nada comigo, mãe! — afirmou ele, como se estivesse aborrecido com sua observação.

— Não? Meu querido! Vejo que há!

Ele não voltou a responder para não contradizê-la. De fato, ela não sabia se ele a ouvira, então, ele olhou sem se mexer.

— Gostaria de ir para a Fazenda Upclose? — perguntou ela, dolorosamente.

— Estamos na época das amoras! — disse Tom.

Will mexeu a sua cabeça. Ela olhou para ele por algum tempo, como se tentasse ler essa expressão de desânimo, e a traçou de volta à sua fonte.

— Will e Tom! Vocês podem voltar! — afirmou ela. — Devo ficar aqui até encontrá-la, você sabe! — continuou ela, baixando sua voz e olhando para Will.

Ele se virou rapidamente, e com a autoridade que sempre exerceu sobre Tom, mandou-o ir para a cama.

Quando Tom deixou a sala, ele se preparou para falar.


Capítulo II

— Mãe! Por que você vai continuar pensando que ela está viva? Se ela estivesse apenas morta, nunca mais precisaríamos dizer o nome dela novamente. Não ouvimos falar dela, desde que o pai lhe escreveu aquela carta, nem sabemos se ela a recebeu ou não. Muitas pessoas morrem em...

— Oh! Meu menino! Não fale assim comigo, ou meu coração se partirá completamente! — respondeu sua mãe, com uma espécie de choro.

Ela, depois de um minuto, se acalmou, porque, ansiava convencê-lo de sua própria crença.

— Você nunca perguntou. Você também é como seu pai, que esperava que eu contasse o que se passava sem pedir, pelo orgulho bobo de ser aquele que pergunta. Mas, te digo, foi para estar perto da antiga casa de Lizzie que me instalei deste lado de Manchester, e no mesmo dia, depois que chegamos, fui até a senhora com quem Lizzie trabalhava, e pedi para ter uma palavra de prosa com ela. Eu estava determinada a fazer muitas perguntas. Principalmente qual fora os motivos para demitir Lizzie, porém, quando a olhei, ela estava de preto, parecia tão triste, que meu coração se compadeceu. Entretanto, lhe perguntei um pouco sobre nossa Lizzie. Após ela ser demitida, ela se mudou para outro lugar. Perguntei sobre as cartas e a senhora disse que Lizzie balançou a cabeça negativamente, e quando ela voltou a falar com senhora, Lizzie se ajoelhou e implorou que não, pois, ela falou que isso me partiria o coração, como aconteceu, Deus sabe que aconteceu! — afirmou a pobre mãe, engasgando-se para manter as lágrimas nos olhos. — Seu pai a amaldiçoaria! Oh! Deus! Ensine-me a ser paciente! — ela ficou em silêncio por alguns minutos. — Ela afirmou que Lizzie ameaçou, dizendo que se jogaria no canal, se a patroa escrevesse para nós!

Will ouviu a história de sua mãe com profunda calma, não misturada com a velha vergonha amarga. Mas, a abertura do coração dela destravara o dele, e depois de algum tempo ele falou:

— Mãe! Acho melhor eu ir para casa. Tom pode ficar com a senhora aqui em Manchester. Sei que eu também devia ficar com vocês, mas não posso ficar em paz, porque desejo visitar Susan Palmer e preciso ir para longe!

— O velho Senhor Palmer tem uma filha? — perguntou a Senhora Leigh.

— Sim, ele tem. A amo! E, é porque a amo, que quero deixar Manchester. Isso é tudo!

A Senhora Leigh tentou entender este discurso por algum tempo, mas encontrou dificuldades na interpretação.

— Por que não diz que a ama? Você é um rapaz generoso, que trabalha. Não se preocupe comigo. Pense em sua vida! Porém, não crê que deixar Manchester é uma maneira estranha de lidar com este amor?

— Oh! Mãe, ela é tão gentil, boa e pura! Ela nunca conheceu o toque do pecado, sei disso! Como posso pedi-la em casamento, sabendo o que fazemos com Lizzie, e temendo o pior? Duvido que alguém como ela, pudesse se importar comigo. E, se ela soubesse de minha irmã, isso colocaria um abismo entre nós e ela tremeria só de pensar em cruzar este abismo. Você não sabe como ela é boa, mãe!

— Will! Will! Se ela for tão boa como você diz, ela terá piedade de nós e da minha Lizzie. Se ela não tiver piedade, é porque ela é cruel, e você ficará melhor sem ela!

No entanto, ele apenas balançou a cabeça, suspirou e a conversa morreu ali.

Mas, uma nova ideia surgiu na cabeça da Senhora Leigh. Ela pensou em falar com Susan Palmer sobre Will, lhe diria a verdade sobre Lizzie, e, de acordo com sua compaixão pela pobre pecadora, a Senhora Leigh entenderia se Susan era digna ou indigna do amor de seu filho.

Ela resolveu visitar Susan na tarde seguinte, sem contar nenhum de seus planos para Will.

Assim, ela vestiu as suas roupas de domingo, que ela não teve coragem para desempacotar desde que chegou a Manchester, mas que agora ela desejava usar, de modo a aparentar elegância diante da jovem desejada por seu filho.

Ela vestiu sua touca preta à moda antiga, enfeitada com rendas reais, seu xale de tecido escarlate, que ela tinha desde que se casou, sempre impecavelmente limpo.

Ela sabia que a família Palmer vivia na Rua Crown, embora, não soubesse em qual casa. E, perguntando modestamente, ela chegou à rua cerca de um quarto para às quatro horas da tarde, parando para perguntar o número exato da casa, e a mulher a quem ela se dirigiu, lhe disse que a escola de Susan Palmer não seria desocupada pelos alunos antes das quatro, e lhe pediu que entrasse e esperasse até às quatro da tarde em sua casa.

— Pois... — começou a mulher, sorrindo. — Susan Palmer é uma mulher gentil. Sente-se, senhora! Sente-se! Vou limpar a cadeira, para que não suja o seu vestido. É muito belo seu xale!

— Conhece Susan Palmer há muito tempo? — perguntou a Senhora Leigh, satisfeita com a admiração de sua veste.

— Desde que eles vieram morar em nossa rua. Nossa Sally frequenta sua escola!

— Como ela é? Pois, nunca a vi!

— Bem, quanto à aparência, não posso dizer. Há tanto tempo que não a vejo, que já esqueci o que pensava dela na época em que a conheci. Meu Senhor diz que nunca viu sorriso mais belo, aquele sorriso que pode alegrar o coração! Talvez, não seja o que você está perguntando. A melhor coisa que posso dizer de sua aparência é que ela é apenas uma estranha que pararia na rua, caso pedisse ajuda, se precisasse. Todas as crianças vivem a rodeando, por certo, ela tem três ou quatro deles pendurados no avental ao mesmo tempo.

O coração da pobre Senhora Leigh começou a bater desalinhadamente, e ela quase se levantou e voltou para casa novamente. Sua criação humilde no campo fizera que ela se acanhasse de estranhos, e Susan Palmer parecia uma verdadeira dama, por todos os relatos.

Então, ela bateu com uma sensação tímida na porta indicada, e quando ela foi aberta, deixou cair uma simples reverência sem falar.

Susan tinha sua sobrinha nos braços, enrolada com carinho contra seu peito, mas, ela a colocou suavemente no chão, e imediatamente colocou uma cadeira no melhor canto da sala para a Senhora Leigh, quando ela lhe disse quem ela era.

— Will não me pediu para falar com você! — disse a mãe, pedindo desculpas. — Eu gostaria de falar com você!

Susan coloriu até suas têmporas, e se abaixou para pegar a menina pequena. Em um minuto ou dois, a Senhora Leigh começou novamente.

— Will pensa que você nos respeitaria se soubesse tudo sobre nós. Creio que você pode compreender a tristeza que Deus colocou sobre nós. Saí sem que os meus meninos soubessem para onde eu estava indo. Todos dizem que você é muito boa, gentil e que Deus a protegeu do pecado. Creio que você nunca foi tentada pela maldade. Talvez, eu esteja falando muito abertamente, mas meu coração está partido, e não posso escolher as minhas palavras, como aqueles que são felizes podem. Bem, agora! Vou lhe dizer a verdade. — ela tomou fôlego, olhou para Susan que estava atônita. — Tenho medo que não goste de ouvir o que tenho para dizer.

As palavras da pobre mulher falharam, e ela não podia fazer nada, além de sentar, balançando-se para frente e para trás, com olhos tristes, olhando para o rosto de Susan, como se tentassem contar a história de agonia que os lábios trêmulos se recusavam a proferir.

Aqueles olhos miseráveis e cansados forçaram as lágrimas no rosto de Susan, e, como se esta simpatia oferecesse força à mãe, ela continuou em voz baixa.

— Tive uma filha, querida do meu coração. Seu pai julgava que ela devia trabalhar, porque já era um fardo em casa. Ele disse que ela se fortaleceria vivendo com estranhos e lidando com adversidades. Ela era jovem, e gostava da ideia de ver um pouco do mundo além dos portões da nossa fazenda, e seu pai ouviu falar em um lugar em Manchester. Bem! Não vou te cansar com a história toda, vou encurtar os detalhes. Minha pobre garota foi desviada, e a primeira coisa que ouvimos sobre ela, foi quando, uma carta de seu pai foi enviada de volta por sua patroa, dizendo que ela deixara seu trabalho, ou, falando francamente, o Senhor, marido da patroa a demitiu, colocando-a na rua, assim que soube de sua condição. Ela não tinha dezessete anos!

Ela chorava em voz alta, e Susan também chorava. A pequena criança olhou para o rosto delas e, pegando sua tristeza, começou a chorar e a lamentar também.

Susan pegou-a suavemente e, escondendo seu rosto em seu pequeno pescoço, tentou conter suas lágrimas e pensar em confortar a pobre mãe. Por fim, ela disse:

— Onde ela está agora?

— Não sei! — falou a Senhora Leigh, verificando seus soluços que eram um acréscimo ao seu sofrimento. — A Senhora Lomax me disse que ela...

— A Senhora Lomax? O que tem a Senhora Lomax?

— Sim. A Senhora Lomax que vive na Rua Brabazon. Ela me confirmou que minha pobre filha foi trabalhar em sua casa. Não queria falar de mortos, mas, se o pai de Lizzie tivesse me deixado cuidar dela, isso jamais aconteceria. Ele a perdoou em seu leito de morte. Atrevo-me a dizer que faço agora o caminho que não fiz antes.

— Você pode segurar a criança para mim por um instante? — perguntou Susan.

— Venha aqui! — a Senhora Leigh sorriu para a criança. — Crianças costumavam gostar de mim, mas se assustam quando olham meu rosto triste agora. Espero que não se assuste!

A menina se agarrou à Susan, e ela a levou até o andar de cima. A Senhora Leigh ficou sozinha, por quanto tempo? Ela não pode calcular.

Susan desceu com um feixe de roupas de bebês muito usadas, ainda com a menina nos braços.

— Você deve me ouvir um pouco, e não pensar muito no que vou lhe dizer. A menina não é minha sobrinha, nem de nenhum parente meu que eu conheça. Eu costumava sair para trabalhar durante o dia. Uma noite, ao chegar à minha casa, pensei que alguma mulher estava me seguindo, virei-me para olhar. A mulher, antes que eu pudesse ver seu rosto, pois, ela o virou para um lado, me ofereceu algo. Estendi meus braços por instinto, ela deixou cair um feixe dentro deles, com um soluço que me tocou diretamente no coração. Era um bebê! Olhei em volta novamente, mas a mulher se foi. Ela fugira tão rápido quanto um relâmpago. Havia um pequeno pacote de roupas, como se fossem feitas com os vestidos de sua mãe, pois, eram padrões grandes para serem vestes de um bebê. Sempre gostei muito de bebês. Meu pai falou que não usei a minha inteligência ao receber a criança em meus braços. Entretanto, o que fazer? Estava muito frio, passava das dez da noite, não havia ninguém na rua, eu a trouxe e a aqueci. Eu não podia largar a criança na rua a própria sorte. Meu pai ficou muito bravo quando ele avistou a criança nos meus braços, e disse que a levaria para algum lugar para crianças órfãs na manhã seguinte, e isso me mergulhou em enorme tristeza. Mas quando chegou a manhã, eu não suportava a ideia de me separar da bebezinha. Ela dormira nos meus braços a noite toda. Eu sabia como os orfanatos sofriam. Então, disse ao meu pai que desistiria de sair para trabalhar e ficaria em casa, apenas cuidando da escola, se eu pudesse ficar com o bebê, e, depois de um tempo, ele disse que se eu ganhasse o suficiente para ele ter seu conforto, ele me deixaria ficar com a criança. Mesmo não lhe dando boas condições de vida, ele jamais a levou para o orfanato. Há mais uma coisa que devo dizer. Eu costumava trabalhar na casa ao lado da Senhora Lomax, na Rua Brabazon, e os criados eram tratados da pior maneira possível. Ouvi falar que Bessy, eles a chamavam de Bessy, foi mandada embora. Não sei se alguma vez a vi. A idade da criança se misturava com os acontecimentos sobre Bessy, e, às vezes, eu imaginava que fosse dela a mãe da criança. Agora, você pode olhar para as pequenas roupas que vieram com a criança para verificar se são de sua filha?

A Senhora Leigh desmaiara ao olhar para Susan. A estranha alegria, vergonha e o amor jorrando pela criancinha, a dominaram, e algum tempo depois, Susan conseguiu acordá-la.

Quando voltou a si, estava trêmula, repleta de impaciência para olhar as roupinhas de bebê.

Entre as pequenas peças de roupa, havia um pedaço de papel, que Susan se esquecera de falar, que fora preso ao pacote. Sobre ele, palavras em um rabiscado redondo:

“Seu nome é Anne. Ela não chora muito. Deus a abençoe e me perdoe!”

A escrita não era nenhuma pista, o nome Anne, por mais comum que fosse, era algo familiar.

Contudo, a Senhora Leigh reconheceu um dos tecidos das roupas do bebê, era de parte de uma bata que ela e sua filha compraram em Rochdale.

Ela se levantou e estendeu suas mãos na atitude de benção sobre a cabeça curvada de Susan.

— Deus te abençoe e mostre Sua misericórdia sempre que precisar do consolo do Altíssimo, da mesma maneira que teve piedade dessa criança.

Ela pegou a pequena menina em seus braços e suavizou seu olhar triste com um sorriso, e a beijou carinhosamente, dizendo repetidamente:

— Anne! Anne! Minha pequena Anne!

Finalmente a criança se acalmou, olhou no rosto de Senhora Leigh e sorriu de novo.

— Tem os olhos dela! — garantiu à Susan.

— Nunca a vi sem ser naquela noite escura. Mas, onde ela está?

— Deus sabe! — ponderou a Senhora Leigh. — Não ouso pensar que ela está morta! Tenho certeza de que ela não está!

— Não! Ela não está morta! Por vezes, um pequeno pacote é empurrado para baixo de nossa porta, com duas meias-coroas[45] dentro. No total, tenho trinta e sete xelins[46] guardados para Anne. Nunca toco neste dinheiro. Creio que a pobre mãe sente-se mais perto de Deus quando entrega o dinheiro para a sua filha que abandonou. Meu pai queria colocar o policial para investigar o seu paradeiro, mas eu disse não. Porque tenho medo que ao perceber que está sendo seguida, ela desista das visitas e não vi nenhum mal em seu ato bondoso para com a filha.

— Oh! Se pudéssemos encontrá-la! A pegaria em meus braços e não a soltaria até o meu último suspiro.

— Não! Não fale assim! — disse Susan, gentilmente. — Por tudo que é sagrado! Por Maria Madalena! Não fale tal coisa.

— Oh! Meu pobre Will! Ele pensou que você nunca mais olharia para ele se soubesse o que aconteceu com Lizzie. Mas, vejo que você é uma alma boa. Você entende nossa dor!

— Sinto muito se ele pensou que eu poderia ser tão cruel! — disse Susan em voz baixa.

Então a Senhora Leigh ficou alarmada e, em sua ansiedade materna, começou a temer que não ferisse Will na estimativa de Susan.

— Will pensa muito em você. Ela a estima muito! Ele disse que você nunca olharia para ele como ele era, muito menos, se ele fosse irmão de uma mulher que causasse vergonha para a família. Ele te ama tanto, que o fez pensar que tudo em sua volta o tornasse ruim e assim ele não fosse apto a aproximar-se de ti, mas ele é um bom rapaz e um bom filho. Você será uma mulher feliz se o tiver ao seu lado, por isso, não deixe que minhas palavras desconexas caminhem contra ele. Por favor!

Mas, Susan abaixou a cabeça e não deu nenhuma resposta. Ela não sabia, até aquele instante, que Will pensava com tanta seriedade sobre ela, e ela sentia medo de que as palavras da Senhora Leigh que lhe prometiam muita felicidade, podiam não ser verdadeiras.

De qualquer forma, o instinto de modéstia a fez encolher os ombros e não dizer nada que pudesse parecer uma confissão de seus sentimentos a uma terceira pessoa.

Assim, ela mudou o tom da conversa, falando sobre a criança.

— Tenho certeza de que ele amará a pequena Anne! — disse ela. — Nunca houve criança mais adorável. Você não acha que ela conquistaria seu coração se ele soubesse que ela é sobrinha dele, e talvez, o levasse a pensar gentilmente em sua irmã?

— Não sei. — falou a Senhora Leigh, balançando a cabeça. — Ele tem um espírito muito rígido, semelhante ao seu pai. Por mais que isso seja bom para administrar uma família, não lido bem com isso, e um olhar severo me deixa doente. Agora, eu apenas gostaria de levar Anne para casa comigo, mas Tom não sabe nada, além de que sua irmã está morta, e não tenho o dom de falar corretamente com Will neste momento. Nem ouso fazer isso, essa é a verdade. Porém, por favor! Não pensa mal de Will. Ele é tão bom, apenas precisa aprender algumas coisas nesta vida de adversidades. Ele realmente te ama muito!

— Senhora! Não desejo me distanciar de Anne! — garantiu Susan, ansiosa para cessar as declarações sobre o apego de Will e seu amor não pronunciado. — Vamos esperar... Ficarei de olho na pobre mãe, e tentarei pegá-la na próxima vez que ela vier com seus pequenos pacotes de dinheiro!

— Sim, querida! Encontraremos a minha Lizzie. Agradeço por sua bondade para com a minha filha, mas, se você puder pegá-la por mim, rezarei por você diariamente, até o dia da minha morte. Enquanto eu viver, te servirei ao lado dela, porém, ela vem primeiro, você sabe disso. Deus te abençoe, moça! Meu coração está mais leve. Preciso ir para casa, pois, meus filhos estão me procurando! Deixo esta pequena e doce... — a Senhora Leigh beijara a neta. — Se eu tiver coragem, direi ao Will tudo o que aconteceu. Ele pode vir e te ver, não pode?

— Meu pai ficará muito feliz em vê-lo, tenho certeza! — respondeu Susan.

A maneira como isto foi dito satisfez o coração ansioso da Senhora Leigh, de que ela não fizera mal a Will pelo que ela falara para Susan, e, com muitos beijos à pequena, e mais uma fervorosa bênção lacrimosa sobre Susan, ela foi para casa.


Capítulo III

Naquela noite, a Senhora Leigh não saiu à procura da filha. E nem nos meses depois disso. Até mesmo Tom, o estudioso, olhou para cima de seus livros, maravilhado, entretanto, ele se lembrou de que Will não estava bem, e que a atenção de sua mãe fora chamada à circunstância, e era natural que ela ficasse para observá-lo, em vez de procurar por sua filha morta.

E nenhuma observação poderia ser mais terna, ou mais completa.

Seus olhos amorosos pareciam nunca ter sido desviados de seu rosto triste.

Quando Tom foi para a cama, a mãe deixou seu assento, e fora até Will, onde ele estava sentado, olhando para o fogo, e sem perceber, ela beijou sua testa e disse:

— Will! Meu querido, fui ver Susan Palmer!

Ela colocou sua mão em seu ombro, mas ele ficou em silêncio por um minuto ou dois. Então, ele falou:

— O que a levou lá, mãe?

— Porque, meu querido, eu precisava esclarecer algumas coisas e para te livrar dessa dor. Vesti minhas roupas de domingo e tentei me comportar para que você pudesse se orgulhar de mim. Pelo menos, lembro-me de tentar no início, mas depois, esqueci tudo!

Ela preferiu que ele a questionasse sobre o que a fez esquecer tudo. Contudo, ele só disse:

— Como ela está, mãe?

— Bem! Ela está bem! Você sabe que jamais a vi. Quando a vi, entendei seu afeto! Ela é uma criatura boa e gentil, e a amo muito, porque tenho muitas razões para isso!

Will olhou com surpresa momentânea, pois, sua mãe era tímida demais para ser conquistada tão rapidamente por estranhos. Todavia, quem olharia para Susan sem amá-la?

Ele não fizera nenhuma pergunta, e sua pobre mãe teve que tomar coragem, e tentar novamente introduzir o assunto perto de seu coração, mas como?

— Will! — começou ela, sacudindo-a em súbito desespero para contar tudo o que queria dizer. — Eu lhe contei tudo!

— Mãe! Você me arruinou! — exclamou o rapaz, ficando de pé em sua frente com um semblante pálido e apavorado.

— Não! Meu querido! Não fique tão assustado e zangado! Não o arruinei! — afirmou ela, colocando suas duas mãos sobre os ombros dele, e olhando carinhosamente para o rosto do filho. — Ela não endureceu o seu coração quando ouviu o meu lamento! Meu querido filho, ela é boa demais! Ela não é de julgar e desprezar o pecador. Ela lida muito profundamente com a nobreza de atos de bondade. Vá conversar com ela. Não é certo uma mulher falar o segredo de outra, mas vi em seus olhos que ela nutre bons sentimentos por você. Agora, acalme-se, está branco!

Ele se sentou. Sua mãe puxou um banco na sua direção e sentou-se aos seus pés.

— Você falou para Susan sobre Lizzie? — questionou ele, rouco.

— Sim! Contei tudo para Susan! Ela caiu aos prantos assim como fiz. Estávamos, mergulhadas, as duas em profunda tristeza. Então, uma luz entrou em seu rosto, e o que você acha que foi, Will, meu querido? Duvidará, quando eu afirmar, mas depois, teu coração dará graças a Deus e Seus anjos, por Sua grande bondade. Aquela pequena menina não é sobrinha dela, é a filha de nossa Lizzie, minha netinha! — a Senhora Leigh não podia mais conter suas lágrimas, e elas caíram quentes e rápidas, mas mesmo assim, ela olhou para Will.

— Susan sabia que ela era a filha da Lizzie? Não compreendo! — indagou ele, corado a face.

— Ela não sabia. Lizzie entregou a menina para Susan e sua amada levou a pequena criança indefesa para dentro de sua casa. Seu pai ficou ofendido, mas Susan conseguiu ficar com a pequena menina. Susan a ama, como se fosse sua filha. Will! Você não vai amá-la também? — perguntou ela, suplicando.

Ele ficou em silêncio por um instante, depois respondeu:

— Mãe, vou tentar. Dê-me tempo, pois, estas coisas me assustaram. Pensar que Susan cuida de uma criança sem mãe e ela é a minha sobrinha, é algo duro para se entender no primeiro momento.

— Sim! Entendo, querido! Tome seu tempo! Susan deseja encontrar a minha Lizzie. Pois, ela fala com esperança quando menciona Lizzie, e tentará encontrá-la para mim, quando ela surgir, como às vezes faz, para empurrar dinheiro para debaixo da porta, para seu bebê. Pense nisso, Will. Susan, boa e pura como os anjos no céu, cheia de esperança e misericórdia tem piedade de sua irmã. Will, meu querido... Não tenho medo de falar porque sou sua mãe e ouso mandar em você, sei que estou no direito e que Deus está do meu lado. Se Ele conduzir a minha pobre filha à porta de Susan, e ela voltar, chorando e arrependida, conduzida por aquele bom anjo até nós, mais uma vez, nunca mais lhe dirá uma palavra de repreensão sobre seu pecado, mas será carinhoso e útil para com aquela, que se perdeu e foi encontrada. Assim, a bênção de Deus descansará sobre ti, e assim possa conduzir Susan para casa como tua esposa.

Ela não era mais a mãe mansa, suplicante, gentil, mas firme e digna, como se fosse a intérprete da vontade de Deus.

Sua maneira era tão incomum e solene, que superou todo o orgulho e teimosia de Will.

Ele se levantou suavemente enquanto ela falava, e inclinou sua cabeça, como que em reverência às palavras dela, e à solene injunção que essas palavras transmitiram.

Quando ela terminou, ele disse, com uma voz tão moderada que ela ficou quase surpresa com o som:

— Mãe, vou visitar Susan!

Sua mãe ficou pálida e caiu em seus braços, desmaiada.

Ele a colocou em uma cadeira, ele correu para buscar água. Ela abriu os olhos, e sorriu.

— Deus te abençoe, Will. Oh! Estou tão feliz! Meu coração está tão cheio de alegria e esperança!

Naquela noite, o Senhor Palmer ficou fora até tarde.

Susan tinha medo de que ele estivesse em seus velhos assombrosos hábitos, ficando bêbado em algum lugar entre a sarjeta e a ruína. Este pensamento a oprimiu, embora ela tivesse motivos para ficar feliz, na consciência de que Will a amava.

Ela ficou sentada por muito tempo, esperando seu pai, e depois foi para a cama, deixando tudo arranjado, o melhor possível, para o retorno de seu pai. Ela olhou para a pequena menina rosada e adormecida que era sua companheira, com ternura redobrada, e com muitos pensamentos felizes.

Os pequenos braços entrelaçavam seu pescoço, enquanto ela se deitava, pois, Anne estava sonolenta, mas consciente de que ela era amada com todo o poder do coração doce de Susan, embora, ela estivesse com sono demais para proferir qualquer uma de suas palavras soltas de uma pequena menina.

Foi quando ela ouviu seu pai chegar em casa, tropeçando incerto, tentando primeiro as janelas, e ao lado das grades da porta, com muitos murmúrios incoerentes e barulhentos.

A menina estava ao seu lado, quando ela pensou tristemente no pai que estava sempre cometendo os mesmos erros. Ela o ouviu reclamar da luz, mesmo que ela deixasse fósforos e tudo arranjado como de costume na cômoda para que ele acendesse a luz, mas, temerosa que o pai incendiasse a casa devido ao seu estado de embriaguez, ela se levantou suavemente e, vestida com um xale, desceu para ajudá-lo.

Os bracinhos, que se soltaram de seu pescoço tenro, pertenciam a um sono leve e facilmente despertado.

Anne sentiu falta de sua querida Susy, e aterrorizada por ser deixada sozinha, na vasta escuridão misteriosa, que não tinha limites e parecia infinita, ela escorregou da cama, e cambaleou, com sua pequena camisola de dormir em direção à porta.

Havia uma luz lá embaixo, e lá estava Susy em segurança! Então, ela deu dois passos em direção às escadas íngremes e abruptas. A pequena Anne, deslumbrada pela sonolência, deu um passo em falso e caiu!

Caiu de cabeça no chão!

Susan correu até ela, e falou todas as palavras suaves, suplicantes e amorosas que lembrava, mas suas pálpebras brancas cobriram as violetas azuis dos olhos, e não saiu nenhum murmúrio dos lábios pálidos.

As lágrimas quentes que choviam dos olhos desesperados de Susan não a despertaram. Anne se deitou rígida e cansada com sua curta vida, sobre o joelho de Susan, que a pegou nos braços e a levou para o quarto das duas, e a deitou ternamente na cama.

Susan se vestiu muito apressadamente, com seus dedos trêmulos.

Seu pai estava dormindo no sofá lá embaixo, e era inútil tentar acordá-lo. Susan voou para fora da porta, e pela silenciosa rua que ressoava, em direção à casa do médico mais próximo. Rapidamente ela chegou à casa dele, mas tão rapidamente uma sombra a seguiu, como se fosse impelida por algum terror repentino. Susan tocou à campainha, a sombra se agachou perto. O médico olhou de uma janela do andar de cima.

— Uma criancinha caiu da escada na Rua Crown, número 9, e está muito mal, senhor! Por favor, por amor de Deus, senhor! Venha rapidamente na Rua Crown, número 9!

— Estou indo, senhorita! — disse ele, e fechou a janela.

— Por esse Deus de quem você acabou de falar? Você é Susan Palmer? É a minha filha que está morrendo? — disse a sombra, saltando para frente, e agarrando o braço da pobre Susan.

— É uma criancinha de dois anos. Não sei de quem ela é filha! Amo-a como se fosse minha! Venha comigo, quem quer que seja você! Venha comigo!

As duas andavam pelas ruas silenciosas da noite. Elas entraram na casa de Susan, que pegou a lamparina e a carregou para cima. A outra mulher a seguiu.

Ela ficou de pé com olhos lacrimosos à beira da cama, não olhando para Susan, mas para a criança pequena, branca e imóvel.

Ela se abaixou e colocou a mão sobre seu coração, como se ainda estivesse batendo, e dobrou sua orelha para os lábios pálidos. Ela não falou nada, mas jogou fora a roupa de cama que Susan colocara ternamente sobre a pequena menina, e sentiu seu lado esquerdo do coração.

Então, ela agarrou a menina em seus braços, com um grito de desespero brutal.

— Ela está morta! Ela está morta!

Ela parecia tão feroz, louca e abatida que, por um instante, Susan ficou aterrorizada, no seguinte minuto, o santo Deus colocara coragem em seu coração, e seus braços puros estavam ao redor daquela mulher culpada, miserável, e suas lágrimas estavam caindo rápido sobre seu peito. Mas Susan foi expulsa com violência.

— Você a matou! Você se descuidou! Você a deixou cair por aquelas escadas! Você a matou!

Susan limpou a névoa de medo diante dela e, olhando para a mãe da menina, com seus olhos claros, disse, lamentando:

— Eu daria a minha vida para salvar Anne!

— Oh! Você a matou, assassina! — exclamou a mãe ferida por uma dor descomunal e enlutada, com a impetuosidade feroz de alguém que não tem ninguém que a ame, e que seja amada.

— Silêncio! — sussurrou Susan, com seu dedo nos lábios. — O médico está aqui. Por Deus! Ele vai afirmar que ela está viva!

A pobre mãe deu uma virada brusca. O médico subiu as escadas.

Ah! A mãe estava certa, a criança pequena estava realmente morta e se foi para sempre.

E quando ele confirmou seu julgamento, a mãe caiu em um ataque. Susan, com seu profundo pesar, teve que questionar o médico o que ela devia fazer com a pobre coitada, que se deitou no chão em tão extrema miséria.

— Ela é a mãe! — disse Susan.

— Por que ela não cuidou melhor de sua filha? — perguntou ele, quase com raiva.

Mas Susan só disse:

— A criança pequena dormia no meu quarto, senhor. E a culpa deve cair sobre meus ombros.

O médico se retirou, afirmando que Susan cuidasse da mulher em choque até ele voltar com um remédio para ela.

Não havia outra cama em casa a não ser aquela em que seu pai dormia. Então, ela levantou ternamente o corpo de sua pequena Anne e quando tentou levá-la para baixo, a mãe abriu os olhos, e gritou:

— Não sou digna de tocá-la, sou tão perversa! Falei com você de maneira cruel! Você foi uma boa mãe para a minha menina. Posso ter minha filha em meus braços por um tempo?

Sua voz era tão estranha, um contraste com o que fora minutos antes do ataque de fúria. Era um som indizível, suplicante, as características também se perderam, sua expressão feroz morrera, e era quase tão plácida quanto a morte.

Susan não conseguia falar, mas levou a criança pequena, e a colocou nos braços de sua mãe, então, quando olhou para elas, algo a dominou, e ela se ajoelhou, gritando:

— Oh! Meu Deus! Meu Deus! Tenha piedade dela, e perdoe e conforte-a!

Mas a mãe continuava sorrindo e acariciando o pequeno rosto, murmurando palavras suaves e ternas, como se a menina ainda estivesse viva.

“Ela está enlouquecendo!” pensou Susan.

Lizzie continuava rezando com os olhos lacrimejantes e desorientados.

O médico voltou e ofereceu o remédio para a mulher, e a mãe o tomou, sem reclamar. O médico sentou-se ao lado dela, e logo ela adormeceu. Então, ele se levantou suavemente e, acenando para Susan, falou com ela em um sussurro.

— Você deve tirar o cadáver dos braços dela. Ela não vai acordar. O remédio a fará dormir por muitas horas. Volto aqui antes do meio-dia, de amanhã. Agora é tarde! Adeus!

Susan fez o que o médico pedira e afastara a menina dos braços de Lizzie. Ela não pôde resistir e chorou silenciosamente sobre o rosto da menina.

Nem todas as lágrimas escaldantes de preocupação podiam ser tiradas de seu choro. Nem todos os mil pensamentos que surgiram na cabeça de Susan, podiam apagar a visão angelical de Anne em sua frente.

Então, ela se lembrou do que faltava fazer. Ela viu que tudo estava calmo em sua casa, seu pai ainda estava dormindo no sofá, apesar de todo o barulho da noite.

Ela saiu pelas ruas tranquilas, desertas ainda, naquela madrugada impiedosa, com os raios de sol surgindo no horizonte, saudando a sua tristeza infinita. Ela seguiu seus passos pesados e culpados até onde os Leighs viviam.

A Senhora Leigh, que mantinha os hábitos do campo em acordar antes do nascer do sol, abria suas persianas quando avistou Susan em sua porta.

Susan pegou-a pelo braço e, sem falar, entrou na casa da senhora. Susan se ajoelhou diante da atônita Senhora Leigh, que não entendia o que se passava perante ela, e a jovem chorou como nunca, e mal conseguia falar.

— Minha pobre querida! O que fez o teu coração ficar tão dolorido a ponto de vir a essa hora do dia e chorar tanto? Me diga! Chore, pobre Susan, se ainda não pode falar. Isso aliviará o coração, e então, você poderá me dizer o que está acontecendo!

— Anne está morta! — soluçou Susan. — A deixei no quarto para ir ver meu pai que chegara bêbado, e ela caiu da escada e parou de respirar! Oh! Essa é minha tristeza! Mas tenho mais a dizer. A mãe dela está em nossa casa! Venha e veja se é a sua Lizzie!

A Senhora Leigh ficou muda, e mesmo tremendo, vestiu seu xale e foi com Susan, apressada, de volta à Rua Crown.


Capítulo IV

Ao entrarem na casa de Susan, perceberam que a porta não se abrira livremente em suas dobradiças, e Susan instintivamente olhou para baixo para ver a causa da obstrução. Ela imediatamente reconheceu o pequeno pacote, embrulhada em um pedaço de jornal, e evidentemente contendo dinheiro. Ela se abaixou e o pegou.

— Olhe! — falou para a Senhora Leigh, dolorosamente. — A mãe estava trazendo isto para a sua filha ontem à noite!

Mas a Senhora Leigh não respondeu. Tão perto de saber se era sua filha perdida ou não, ela não pôde pensar em nada, apenas caminhou com passos trêmulos e um coração palpitante.

Ela entrou no quarto, escuro e não deu atenção ao pequeno cadáver sobre o qual Susan parou, mas foi direto para a cama, e, retirando a cortina, viu Lizzie. Mas não a antiga Lizzie, brilhante, alegre, que sorria com os olhos. Esta Lizzie era mais velha que a própria idade, sua beleza havia desaparecido, linhas profundas de descuido, e, infelizmente, de carência, estavam impressas nas bochechas, tão redondas, que antes felizes e suaves, alegravam os olhos de sua mãe.

Até mesmo durante o sono, Lizzie carregava o olhar de tristeza e desespero que era a expressão predominante de seu rosto, mesmo durante o sono, ela esquecera de como era sorrir.

Mas todas essas marcas da crueldade e da dor que ela passara, só fizeram com que sua mãe a amasse ainda mais. Ela ficou olhando para ela com olhos chorosos, e finalmente ela se abaixou e beijou a mão pálida que estava do lado de fora da roupa de cama.

Nenhum toque perturbou Lizzie que dormia devido ao remédio que o médico a deu, hora antes.

Não havia sinal de vida, a não ser por vezes, um suspiro profundo e soluçante. A Senhora Leigh sentou-se ao lado da cama, e ainda segurando a cortina, olhou incrédula, acreditando que a visão de sua amada filha diante dela, era uma possível e admirável miragem.

Susan ficou ao lado de Anne, mas ela precisava, como sempre, cuidar de tudo e todos a sua volta.

Todos pareciam devolver a ela o fardo de seus descuidos.

Seu pai, mal-humorado pela intemperança de sua última noite, a censurou escrupulosamente por ser a causa da morte da pequena Anne, e quando, após suportar todas as reclamações em silêncio, durante algum tempo, ela não conseguiu mais se conter, e começou a chorar, ele a feriu ainda mais por suas tentativas insensatas de conforto, pois, ele disse que a criança morta, não era sua filha de fato, e por que Susan deveria se incomodar com isso?

Susan torceu suas mãos, caminhou alguns passos e ficou diante de seu pai, e implorou-lhe ajuda.

Entretanto, ela teve que tomar todas as medidas necessárias para o inquérito do médico legista, também providenciar o pedido de demissão de sua escola, porque ela não se sentia capaz de cuidar de crianças novamente. Susan teve que pedir ajuda a um vizinho, para enviar uma mensagem a William Leigh, porque ela sentiu que ele deveria ser informado do paradeiro de sua mãe, e do resto. Pedindo também que seu mensageiro lhe dissesse para vir falar com ela, que sua mãe estava em sua casa.

Ela estava grata por seu pai sair para fofocar o assunto em uma roda de vinho, e para relatar tantas aventuras da noite quanto ele sabia, mesmo que ele nem imaginasse que Lizzie estivesse no quarto.

Na hora do jantar, veio Will.

Ele parecia impaciente e entusiasmado.

Susan estava calma e branca diante dele, seus olhos suaves e amorosos olhando para os dele.

— Will — falou ela, em voz baixa e silenciosa. — Sua irmã está lá em cima!

— Minha irmã? — questionou, como se estivesse com medo da ideia, e perdendo seu olhar alegre e dando lugar para a tristeza.

Susan percebeu a sua reação, e seu coração mergulhara um pouco mais na dor, mas ela continuou aparentando calma, como sempre, mesmo que seu coração estivesse sangrando, lentamente.

— Ela era a mãe da pequena Anne, como talvez você saiba. A pobre Anne morreu ontem à noite, após uma queda da escada!

Toda a calma desapareceu, todo o sentimento reprimido fora exposto, apesar de todo esforço para escondê-lo. Ela sentou, escondeu seu rosto dele e chorou amargamente.

Ele esqueceu tudo, menos o desejo de confortá-la, se aproximou e colocou seu braço em volta da cintura dela, e se inclinou sobre ela, mas tudo o que ele podia dizer era:

— Oh! Susan, como posso confortá-la? Não se deixe levar pela dor!

Ele repetiu a frase por inúmeras vezes, mas o tom variava, cada vez que ele falava. Finalmente, ela parecia recuperar seu poder, e limpou os olhos lacrimosos, e mais uma vez, olhou para ele com seu olhar calado, sincero e sem medo.

— Sua irmã estava perto de minha casa. Ela entrou ao ouvir minhas palavras para o médico. Ela agora está dormindo e sua mãe, a está observando. Você gostaria de ver sua mãe?

— Não! Preferia não ver ninguém além de você! A mãe me disse que você sabia de tudo!

Os olhos de Will estavam abatidos de vergonha, mas Susan não abaixou os seus e falou:

— Sim! Sei de tudo, menos o que pensa e como sofre, ou o que julga sobre a sua irmã.

Ele respondeu, baixo e austero:

— Aos olhos de Deus, talvez ela já esteja sendo julgada! Ele é o Juiz, nós não somos!

— Oh! — Susan suspirou. — Will Leigh! Pensei coisas boas sobre você! Não me faça pensar que você é cruel e duro como seu pai. A bondade não é bondade, a menos que haja misericórdia e ternura com ela. Pense em sua mãe, que está com o coração partido. Ela recebeu a filha de volta, mas perdeu a neta!

— Penso nela! — garantiu Will. — Lembro-me da promessa que lhe fiz ontem à noite! Você deveria me dar tempo! Você duvidou de mim, Susan. Te amo tanto, que tuas palavras me cortaram. Se me mantivesse um pouco agarrado em promessas inesperadas, mesmo te amando, eu não podia expressar o que sentia. Não sou cruel, pois, se fosse, não teria sofrido como sofri!

Ele pensou em ir embora, e, de fato, ele sentiu preferir pensar sobre o acontecimento em silêncio, mas Susan, amargurada com suas palavras, e estava triste, deu um ou dois passos mais próximos, e depois, em meio a vergonha estampada em suas bochechas, disse em um sussurro baixo e suave.

— Oh! Will! Peço desculpas. Lamento muito. Você não vai me perdoar?

Ela, que sempre se afastou, e foi tão reservada, falou de maneira afetuosa, com os olhos amorosos, que rapidamente fitaram o chão. Sua doce confusão dizia mais que as palavras, e Will voltou, todo alegre na certeza de ser amado, tomou-a em seus braços e a beijou.

— Minha Susan!

Enquanto isso, a mãe vigiava sua filha no quarto acima.

Era final da tarde antes que Lizzie pudesse acordar.

No instante em que ela acordou, seus olhos estavam fixos no rosto de sua mãe com um olhar tão inabalável como se ela estivesse fascinada.

A Senhora Leigh não se afastara, nem se movera, pois, parecia que o movimento a tiraria do campo de visão de Lizzie, embora, perfeitamente imóvel ela estava.

Lizzie gritou, com uma voz penetrante de agonia.

— Mãe, não olhe para mim! Fui tão perversa! Derramei a vergonha em nossa família!

Instantaneamente ela escondeu o rosto, rastejou entre as roupas de cama e se deitou como uma morta.

A Senhora Leigh ajoelhou-se junto à cama, e falou nos tons mais suaves.

— Lizzie, querida! Não fale assim! Sou a tua mãe, querida! Não tenhas medo de mim! Nunca deixei de te amar, Lizzie. Sempre pensei em você. Teu pai te perdoou antes de morrer! Viverei por ti, só não tenhas medo de mim. O que quer que você seja ou fora, não falaremos mais sobre isso. Deixaremos para trás os tempos ruins e voltaremos para a fazenda Upclose. Só deixei nossa casa para encontrá-la, minha filha! Deus me conduziu até você. Bendito seja Seu nome! Deus também é bom, Lizzie. Não esqueça de tua Bíblia, pois, sempre você foi uma menina estudiosa da palavra Dele. Não sou leitora fervorosa das Escrituras, mas aprendi em seus textos o conforto que precisava, e os falara muitas vezes ao dia para continuar te procurando. Não esconda sua cabeça! É sua mãe quem está falando com você. Sua filhinha se agarrou a mim ontem, antes da tragédia, e se foi para os Céus, para ser um anjo que nos guiará, ela falará com Deus por você. Não chore mais! Porque ela a espera no Céu. Sei que vai se esforçar para chegar lá, mas, por amor a pequena Anne, escute-me! Deus está conosco, não se preocupe!

A Senhora Leigh dobrou as mãos e se esforçou para falar, enquanto repetia todos os textos ternos e misericordiosos que conseguia lembrar.

Ela podia perceber pela respiração, que sua filha estava ouvindo, mas ela mesma estava tão tonta e triste quando terminou, que não podia continuar a falar. Era tudo o que ela podia fazer para não chorar em voz alta.

Por fim, ela ouviu a voz de sua filha.

— Para onde eles a levaram? — perguntou ela.

— Ela está lá embaixo!

— Oh! Se Deus pudesse me deixar ouvir a sua pequena voz! Mãe, eu costumava sonhar com isso. Posso vê-la mais uma vez? Oh! Mãe, se me esforçar muito, e Deus for muito misericordioso, vou para o céu! Mas, ela me afastará como uma estranha, e abraçará Susan Palmer e a você. Oh! Por Deus! Oh, Deus! — ela tremeu de tristeza.

Em sua seriedade de discurso, ela escondera seu rosto, e tentou ler os pensamentos da Senhora Leigh através de sua aparência.

Quando ela viu aqueles olhos envelhecidos cheios de lágrimas e percebeu os lábios trêmulos da mãe, ela jogou seus braços ao redor do pescoço da fiel mãe e chorou lá, como ela fizera em muitas dores infantis, mas com uma dor mais profunda e miserável.

Sua mãe a envolveu em seu peito, e a embalou como se ela fosse um bebê, e ela fechou os olhos.

Ficaram assim por um longo tempo.

Por fim, Susan Palmer veio com chá, pão e manteiga para a Senhora Leigh.

Ela observava a mãe alimentando sua filha doente e relutante, com todos os incentivos para comer que ela podia conceber, nenhuma delas notou a presença de Susan.

Naquela noite, elas se deitaram e dormiram juntas, abraçadas. Susan dormiu no chão, ao lado delas.

No dia seguinte, o cortejo seguiu pelas colinas, um lugar de beleza singular, que Anne, em sua curta vida, jamais visitara.

Eles não ousaram deitá-la perto do avô austero no cemitério da Milne Row, e a levaram para um cemitério de relva baixa onde, há muito tempo, os Quakers costumavam enterrar seus mortos. Eles a enterraram lá na encosta ensolarada, onde as primeiras flores da primavera sopram.

Will e Susan vivem agora na fazenda Upclose.

A Senhora Leigh e Lizzie moram em uma casa de campo isolada.

Tom é professor em Rochdale, e ele e Will ajudam a apoiar a mãe deles.

Só sei que, a casa de campo está escondida em um vale verde entre as colinas, qualquer som de angústia é ouvido lá, ecoando nas paredes montanhosas, e todo chamado de sofrimento ou de doença em busca de ajuda, é ouvido por uma mulher triste, de aparência gentil, que raramente sorri, e quando ela o faz, seu sorriso é mais infeliz que as lágrimas das outras pessoas, mas que desponta de seu retiro, sempre que há uma sombra de tristeza em qualquer casa.

Muitos corações abençoam Lizzie Leigh por sua ajuda, mas ela reza sempre e sempre por perdão, e que Deus possa permitir que ela veja a sua filha mais uma vez.

A Senhora Leigh está quieta e feliz.

Lizzie é, aos seus olhos, algo precioso, como a peça de prata perdida, encontrada outra vez.

Susan é a brilhante, que traz o sol para todos. As crianças crescem ao seu redor e a chamam de abençoada.

Uma se chama Anne, sua tia Lizzie muitas vezes a leva ao cemitério ensolarado nas terras altas, e enquanto a pequena criatura reúne as margaridas e corri feliz, Lizzie senta-se junto a uma pequena sepultura e chora amargamente.

Fim.


O Natal de Tempestades e Bonança

Na cidade de...


Não importa onde!


Circulavam dois jornais locais, também não importa quando.


O jornal Flying Post[47] estava há muito tempo estabelecido e era respeitado, porém, chamado de fanático e conservador.


O Examiner[48] era espirituoso e inteligente, chamado de novato e democrático.


Toda semana, estes jornais continham artigos que abusavam da rivalidade. Era evidente que aos artigos eram produções de mentes irritadas e estereotipadas.


“Embora, o artigo que apareceu no Post ou Examiner da semana passada esteja abaixo do desprezo, ainda assim, fomos induzidos a ler.”


Assim, todos os sábados, os comerciantes apertavam as mãos e concordavam que o Post era para a corte, e o Examiner, para os inteligentes.


Os conservadores mais dignos se lamentavam por Johnson, porque eles pensavam que o jornal, lido apenas pelos mais simples, não valia a pena o desperdício de sua inteligência, e que o Examiner estava em seu último suspiro.


Mas, não foi assim. O Examiner viveu e floresceu, criou o seu caminho, como um dos heróis da minha história que agora escrevo.


Johnson era o chefe, ou, independentemente do título que possa ser dado ao chefe da parte mecânica de um jornal. Ele dificilmente se confinou a esse departamento.


Uma ou duas vezes, desconhecido do editor, quando o manuscrito não fora bem-sucedido, ele preenchia o espaço vazio com composições próprias, ou anúncios de uma próxima colheita de ervilhas verdes em dezembro, a observação de um tordo cinza ou uma lebre branca, fenômenos tão interessantes, inventados para a ocasião, para colaborar com a estrutura do jornal, mas que estavam longe das ofensas ao Post que o Examiner sempre postava.


Sua esposa sempre soube do talento literário de seu marido. Ela, ao ler e perceber que o texto era dele, soltava uma tosse peculiar, que serviu de prelúdio, e, a julgar por esse sinal encorajador e pela voz aguçada e enfática em que ela os lia, ela estava inclinada a pensar que uma Ode to an early Rose-bud[49], no canto dedicado à poesia original de Robert Burns[50], e uma carta no departamento de correspondência, assinada Pro Bono Publico[51], eram os escritos de seu marido, e ela erguia a cabeça em conformidade.


Nunca consegui descobrir o que levou os Hodgsons a se alojarem na mesma casa que os Jenkinses.


Jenkins ocupava o mesmo cargo no Post, que Hodgson ocupava no Examiner e, como disse antes, deixo-o para dar-lhe um nome.


Entretanto, Jenkins tinha um senso adequado de sua posição, e uma reverência apropriada por todos em autoridade, desde o rei até o editor e subeditor.


Ele logo pensaria em pedir emprestada a coroa do rei em troca de uma bebida noturna, e penso que isso teria até aumentado seu desprezo por Hodgson, se isso fosse possível. E ficaria pior se ele soubesse das “produções autorais de Hodgson”.


Jenkins também tinha sua esposa, assim como Hodgson.


As esposas queriam terminar a discussão, em uma memorável semana de Natal, há uns doze anos, entre os dois vizinhos, os compositores dos jornais. Mas não pense que elas não eram rivais.


Se os Hodgsons tinham um bebê, tal bebê, que era uma coisinha pequena, a senhora Jenkins tinha um gato, tal gato, que estava sempre roubando o leite posto para o jantar do pequeno bebê dos Hodgsons.


E assim a guerra começou...


Era um dia antes do Natal. Um vento frio do leste, pincelando o céu de azul e o olhar no rosto das pessoas, que foram convocadas mais que de costume, para completar suas compras para a festa do dia seguinte.


Antes de sair de casa naquela manhã, Hodgson havia dado algum dinheiro para sua esposa, para que ela pudesse comprar a ceia do dia seguinte.


— Minha querida! Desejo peru e salsichas! Pode ser uma fraqueza da gula, mas as salsichas são minhas, boa parte delas, aviso, porém, deixo um quinhão para você. Está bem? Minha mãe falecida era assim, tais gostos são hereditários. Quanto aos doces, quero ameixa ou algo doce e saboroso. Deixo essas considerações para você, só lhe peço que não se preocupe com as despesas. O Natal só chega uma vez por ano!


E mais uma vez, ele falara em voz estridente, do fundo do primeiro lance de escadas, bem perto da porta dos Hodgsons, a tal ostentação para a ceia.


A Senhora Hodgson observou seus modos e sorriu, quando ele falou ainda mais alto:


— Você não vai esquecer as salsichas, minha querida! Porque eu quero algo acima do comum! — pronunciou Hodgson, que continuou a falar sobre sua ceia. — O rosbife deve servir para nós. Uma boa carne assada, tenho certeza que será saborosa. Veja! Meu amor! Temos uma família! Somos uma família! — ele falava mirando sua voz para a parede, como se desejasse que o som atravessasse e chegasse aos ouvidos do vizinho indesejado. — Bem, vamos resolver isso agora mesmo! Rosbife e um purê de ameixa! Agora, devo ir! Preciso trabalhar! Cuide bem do nosso pequeno e não se esqueça da nossa ceia!


E ele foi para seu trabalho.


Fazia um bom tempo desde que a Senhora Jenkins e a Senhora Hodgson falaram uma com a outra pela última vez, embora, estivessem tão na posse do conhecimento dos eventos e opiniões de seus maridos e suas portas fossem uma do lado da outra.


Mary sabia que a Senhora Jenkins a desprezava por não ter um boné de rendas verdadeiras, do mesmo que a Senhora Jenkins tinha, e por ter uma criada, que a Senhora Jenkins não tinha. E, os pequenos ajustes no orçamento que os Hodgsons eram obrigados a recorrer, seriam muito pacientemente suportados por Mary, se ela não soubesse que a Senhora Jenkins percebia essa tal economia. No entanto, Mary teve sua vingança.


Ela teve um filho, e a Senhora Jenkins não teve nenhum. Acredito que para ter um filho, mesmo um bebê tão frágil como o pequeno bebê de Mary, a Senhora Jenkins teria usado as roupas mais simples e limpado as grades de um cemitério, machucando até os ossos para apenas ter este triunfo. O grande desapontamento em não ser mãe lhe causou uma mágoa, e a fez voltar seus pensamentos para dentro, tornando-a mórbida e egoísta.


— Enforquem aquele gato! Ele roubou o leite! Ele roeu o carneiro com sua boca desagradável! Agora, não tenho mais nada para o jantar de Jem. Eu darei agora uma boa lição neste maldito!


Assim dizendo, Mary Hodgson pegou a bengala de seu marido, e apesar dos gritos e arranhões do bichano, ela lhe deu uma surra para que ele não tivesse mais pretensões de roubo, no entanto, a Senhora Jenkins surgiu à porta com um rosto de fúria amarga.


— Você não tem vergonha, senhora? Abusando de um pobre animal que não tem a mesma inteligência que a sua? Ele é apenas um animal que caça a comida, não importa em que lugar a comida esteja! Ele só segue a natureza que Deus lhe deu, senhora! É uma pena que a sua natureza é da espécie mesquinha! Não creio que tenha mais inteligência que o meu pequeno gato, pois, não sabe fechar a sua janela no momento em que faz o preparo de suas refeições? Creio que existe uma lei que protege os animais de pessoas assim como a senhora! Vou perguntar ao Senhor Jenkins, mas não creio que os governantes eliminaram essa lei ainda, falo da Lei de Reforma, senhora! Meu pobre e precioso Tommy está ferido... Sua perna está quebrada porque roubou restos de comida, que a maioria das pessoas não ofereceriam para um mendigo! — acabou a Senhora Jenkins, lançando um olhar de desprezo sobre uma ponta de carne de carneiro.


Mary sentiu-se muito zangada e culpada. Pois, ela realmente teve pena do pobre animal que mancava enquanto ele caminhava até sua dona, e lá se deitou para se lamentar.


Mary desejou não bater nele com tanta força, porque a maneira descuidada de nunca fechar a janela, era realmente sua culpa. Mas ao ver os restos do carneiro, sua ira voltou, e ela fechou a porta no rosto da Senhora Jenkins, enquanto ela estava acariciando seu gato na entrada, com um estrondo tal, que acordou o bebê, e ele começou a chorar.


Tudo ia mal para Mary.


O bebê estava acordado, quem iria levar o almoço de seu marido para o escritório? Ela pegou a criança em seus braços, e tentou silenciá-lo para dormir novamente, e enquanto cantava, ela mal podia dizer o motivo, mas uma espécie de reação surgia de sentimentos violentos e raiva.


Ela lamentava pelo pobre gato, e se perguntava se a perna dele estava realmente quebrada. O que diria sua mãe se soubesse como sua pequena Mary agia e era cruel? Ela bateria em seu filho em um de seus ataques de raiva também?


De nada adiantava a canção de ninar, enquanto ela soluçava, chorava e rosnava. Ela precisava ir até o escritório do marido, e devia levar seu bebê nos braços, uma vez que já passava da hora do almoço do marido.


Então, ela separou o carneiro cuidadosamente, embora ao fazer isso, a carne fora reduzida a uma quantidade infinitesimal, e tirando as batatas assadas do forno, Mary as colocou quentes em sua cesta com o prato, manteiga, sal, faca e garfo.


Era um vento amargo. Ela se curvava contra ele enquanto caminhava, e os flocos de neve eram afiados e cortantes como gelo. O bebê chorava até o fim de suas forças, embora ela o acariciasse em seu xale.


Seu marido estava faminto. Ele se deliciou com as batatas, mas fez cara feia ao tocar no carneiro frio.


Mary não tinha apetite e voltou para casa.


Após chegar em casa, ela tentou alimentar o bebê, e ele se recusou a tomar seu pão e leite. Ela o deitou como de costume em seu berço, rodeado de coisas que distraiam um bebê. Mary se afastou, voltou para a cozinha e cortou banha para o pudim do dia seguinte.


No início da tarde, chegou uma encomenda, embrulhada. Primeiro, em papel marrom, depois, em uma toalha branqueada, de cheiro doce e uma nota de sua querida mãe.


Sua mãe se esforçara para dizer à filha que não se esquecera da época do Natal, e que ao saber que o fazendeiro Burton estava matando seu porco, ela se interessou por um pouco de sua famosa carne, da qual fabricava algumas salsichas, e as aromatizou como Mary gostava.


— Querida mãe! — disse Mary para si. — Você, sempre pensando nas pessoas ao seu redor! Ah! O sabor das salsichas que só você sabe aromatizar! Coisas caseiras têm um sabor especial que nenhuma coisa comprada jamais poderá ter. Penso que se a Senhora Jenkins provasse isso, ela não gostaria das coisas feitas na cidade.


E assim, ela continuou falando sozinha, pensando na casa de sua mãe. Sorriu fazendo suas covinhas das bochechas surgirem graciosamente.


Em sua lembrança surgia a linda cabana verde, que contrastava com a profundeza branca do inverno, com seus arbustos de azevinho e o grande louro de Portugal, que era o orgulho de sua mãe, o caminho através do pomar da fazenda, os alqueires[52] de maçãs verdes, que ela apanhara lá e distribuído entre seus porcos.


Ela foi interrompida, porque seu bebê, que adormecera algum tempo antes entre suas brincadeiras no berço, não um sono profundo, mas Mary estava grata pelos minutos de sono do menino, porque o cochilo da manhã fora muito curto, começou a fazer um barulho estranho.


Sua respiração era como os pés de uma cadeira se arrastando pelo chão da cozinha! Seus olhos estavam abertos, mas expressivos de dor.


— Querido da mamãe! — disse Mary, aterrorizada, levantando-o do berço. — Querido, tente não fazer esse barulho. Silêncio, querido!


Todavia, o barulho veio mais forte.


— Fanny! Fanny! — Mary chamou a garota, filha de empregada, em um grito mortal.


Fanny era uma menina de doze ou treze anos, que atendia a casa na ausência de sua mãe.


Mary não tinha ninguém para pedir ajuda, a não ser Fanny, que estava sentada na costura das meias, serviço rotineiro durante as tardes, e ouvindo o grito de terror da Senhora Hodgson, correu para sua sala de estar, e entendeu o caso em um relance.


— Ele tem crupe[53]! Oh! Senhora Hodgson! Ele vai morrer tão certo quanto o destino. Meu irmãozinho a teve! Morreu em pouco tempo. O médico disse que ele não podia fazer nada por ele. Ele disse que se o tivéssemos colocado em um banho quente no início, isso o salvaria! Mas, seu bebê parece pior que meu irmãozinho! Deus! Tenha piedade!


— Oh! Meu bebê! Meu bebê! Oh! Amor, meu amorzinho! Não morra! Não vou suportar isso! Fanny, o fogo está acesso? Vamos fazer o banho quente para meu pequeno!


— Sim, Senhora Hodgson! Deixe-me correr para chamar o médico! Não consigo suportar ouvi-lo respirando dessa maneira, é tão parecido com o meu irmãozinho em seu leito de morte! — ela fez o sinal da cruz.


Através de suas lágrimas, Mary, tremendo, colocou seu filho em seu berço, correu para encher sua chaleira, enquanto Fanny corria atrás de um médico.


A Senhora Jenkins, após cozinhar o jantar confortável de seu marido, o viu chegar cansado. Apressou-se para contar sua história sobre o espancamento de gatinho. Ele ficou indignado, dizendo ser tudo devido ao jornal Examiner e lamentou o ocorrido.


A Senhora Jenkins sentou-se para levantar a touca de renda. Cada fio foi puxado separado e cuidadosamente esticado.


Lá fora, na rua, um refrão de vozes infantis cantava o velho cântico que ela ouvira mais de cem vezes, nos dias de sua juventude:


“José caminhava, ele ouviu um anjo cantar.


Esta noite nascerá nosso Rei celestial.


Ele não nascerá, nem em casa, nem em sala.


Nem no lugar do Paraíso, mas em um estábulo de boi.


Ele não deve ser vestido de púrpura, nem seda.


Mas tudo em linho, assim como todos os bebês.


Ele não deve ser embalado em prata, nem em ouro.


Mas em um berço de madeira que balança.”


Ela se levantou e foi para a janela. Lá embaixo, estava o grupo de pequenas figuras cantantes, tocadas pela neve, que agora envolvia tudo a volta.


— Abençoados sejam! — ela falou baixo, contou algumas moedas, as colocando em um pequeno saco e jogou-o para baixo.


A sala ficara fria enquanto ela contava e jogava seu dinheiro como prenda, então, ela fechara a janela e fora agitar o fogo já ardente na lareira, e sentou-se diante da lareira.


Ela começou a pensar nos dias passados, em lembranças suaves daqueles que já estavam mortos e que suas feições estavam desaparecendo de sua memória. Ela relembrava as palavras há muito tempo esquecidas em histórias sagradas, ouvidas quando ela deitava a cabeça no joelho de sua mãe.


— Não consigo entender o que me passou pela cabeça! — disse ela, em voz alta, se recuperando das lembranças que açoitaram seus pensamentos. — Minha cabeça anda vagando sobre estes velhos tempos. Tenho certeza de que mais lembranças vieram à minha cabeça, com pensamentos sobre minha mãe nesta última meia hora, do que pensei durante anos a fio! Espero não morrer! Dizem que, pensando muito no passado e em mortos, vamos nos juntar a eles em breve. Devo parar de pensar nisso!


A porta foi tocada em uma batida assustadora, com toques brutos e rápidos que os nós dos dedos podiam suportar. A porta foi aberta e Mary Hodgson estava lá, tão branca quanto a morte.


— Senhora Jenkins! Preciso de água quente! Me descuidei e o fogo da minha cozinha está brando, e não há tempo para perder! Há água fervendo em sua chaleira? Dê-me a água para o meu bebê, pelo amor de Deus! Ele tem crupe, e está morrendo!


A Senhora Jenkins virou-se para a mulher com um olhar duro que envolvia o seu rosto, o mesmo semblante que seu marido conhecia e temia por toda a sua pomposa dignidade.


— Lamento não poder ajudá-la, senhora! Minha chaleira está fervendo, de fato, mas a água que ferve é para o chá do meu marido! — ela olhou para o gato. — Não se assuste, Tommy! A Senhora Hodgson não ousará se intrometer onde ela não é desejada. É melhor chamar um médico, senhora, em vez de perder seu tempo torcendo suas mãos, e batendo na porta de vizinhos. Não emprestarei a minha chaleira!


Mary apertou suas mãos com força apaixonada, mas não disse nenhuma palavra de súplica àquele rosto cruel, aquela voz afiada e determinada, entretanto, ao se afastar, ela rezou para Deus lhe ajudasse a suportar a provação vindoura, e também para perdoar a Senhora Jenkins pelo seu ato egoísta.


A Senhora Jenkins a viu ir embora cabisbaixa, como alguém que não tem esperança, e então, ela se virou contra si:


— Que indelicada sou! Senhor, me perdoe! Qual é o valor do chá do meu marido, diante da vida de um bebê? Justamente nessa maldita doença, onde o tempo é tudo! Sou uma velha raposa miserável! Qualquer um pode saber que agi assim, porque nunca tive um filho! E não sei o amor que uma mãe sente!


Ela estava com a chaleira na mão, antes de terminar seu lamento. Ela correu até a casa da Senhora Hodgson, e não aceitou os agradecimentos.


Mary não tinha voz para muitas palavras, mas falou mesmo assim:


— Obrigada! Isso é pelo bem do pobre bebê, senhora! Se ele viver, o ensinarei a ter piedade dos pobres animais.


Mas ela fez tudo e mais um pouco do que Mary, com sua jovem inexperiência, pensaria.


Ela preparou o banho quente, e usou o termômetro do marido, porque o Senhor Jenkins tinha um estranho hábito de medir a temperatura todos os dias, pontualmente no mesmo horário. Ela deixou a mãe colocar o bebê na banheira, ainda preservando o mesmo aspecto, e depois, foi embora sem dizer uma palavra.


Mary ansiava por pedir-lhe que ficasse, mas não ousou, no entanto, quando saiu do quarto, as lágrimas caíram mais rápido do que nunca.


Pobre jovem mãe! Na espera angustiante, ela contou os minutos até que o médico chegasse. Mas, antes que ele viesse, a Senhora Jenkins voltou com algo em suas mãos.


— São compressas! Com ervas que ajudam a garganta!


Mary não pôde falar, mas assinou seu grato consentimento.


Enquanto estavam em silêncio, o bebezinho olhou para sua mãe como se buscasse coragem em seus olhos para suportar a dor, mas ela chorava na angústia de vê-lo sofrer, e sua falta de coragem reagiu sobre ele, que começou a soluçar em voz alta.


Instantaneamente o avental da Senhora Jenkins fora levantado, para esconder o rosto e ela falou para a criança:


— Oi!


Sua voz soava o mais alegremente que podia, brincando de esconder e mostrar o rosto para a criança, com o objetivo de fazê-lo sorrir.


Seu pequeno rosto brilhou, e as duas mulheres mantiveram o pequeno bebê entretido, até que o remédio fizesse efeito.


— Ele está melhor! Oh! Senhora Jenkins! Olhe para os olhos dele! Que diferente! Ele respira bem suavemente agora.


O médico entrou no quarto, guiado por Fanny. Ele examinou o bebê. Ele estava realmente melhor.


— Fora um ataque agudo, mas o remédio que você aplicou valeu por todos os remédios de uma botica!


A Senhora Jenkins ficou calada, com o coração aliviado, e saiu do quarto. Mary foi até ela e agarrou e beijou a sua mão, porque este era um ato melhor para expressar a sua gratidão do que palavras.


A Senhora Jenkins pareceu constrangida com o ato da mulher e se afastou, voltando para casa. Porém, ela retornou, cerca de uma hora depois, para ver como estava o bebê.


O pequeno bebê dormiu bem, depois do susto que havia dado a sua mãe.


Na manhã de Natal, Mary acordou e olhou para a doce carinha pálida, deitada em seu braço, desejando esquecer a noite anterior.


Quando ela desceu, mais tarde que de costume, encontrou a casa em alvoroço.


O que você acha que aconteceu?


O gato invadira a casa e em um ato traiçoeiro, comeu algumas das salsichas especiais do Senhor Hodgson, roeu e tombou o resto, de modo que não estavam aptas para serem comidas! Não havia limites para o apetite daquele gato!


— Enforquem o gato! — gritou Mary.


— É Natal! Todas as lojas estão fechadas! O que será do peru sem salsichas? — perguntou asperamente o Senhor Hodgson.


Mary parou por um instante.


— Oh! Meu marido! — sussurrou Mary! — Estou sendo cruel. O que são salsichas perante o que a Senhora Jenkins fez por mim ontem, à noite? Escute! Sei que adora salsichas, e que há poucas agora! Mas, eu gostaria de levar à Senhora Jenkins algumas das salsichas que mamãe aromatizou. Elas são duas vezes melhores que salsichas compradas aqui. Sabe bem sobre isso!


— Não vejo nenhuma objeção, minha querida! As salsichas não envolvem intimidades. Se desejar fazer isso! Faça!


— Mas... Oh! Meu marido! Se você a visse ontem, à noite, me ajudando! Sou grata! Seu gato é bem-vindo, mesmo se forem salsichas, as suas pobres vítimas!


As lágrimas se juntaram aos olhos de Mary, enquanto ela beijava seu filho.


— Dê as salsichas para a dona do gato! — seu marido sorriu.


Mary as colocou em um prato e o pousou sobre a mesa.


— O que devo dizer? Nunca sei o que falar nessas horas.


— Diga: “Espero que você aceite estas salsichas. Foram feitas por minha mãe!”. Apenas diga o que passar por sua cabeça. Mary, com certeza, você falará o certo!


Então, Mary levou as salsichas até a Senhora Jenkins, batendo à porta, e quando lhe disseram para entrar, ela ficou acanhada, entretanto, foi até a Senhora Jenkins, dizendo:


— Por favor, aceite! Minha mãe as aromatizou!


Ela se afastou, antes que uma resposta pudesse ser dita.


Assim que os Hodgsons estavam prontos para ir à igreja, a Senhora Jenkins chamou Fanny.


Em um minuto, Fanny entrou na casa dos Hodgsons e entregou os agradecimentos do Senhor e da Senhora Jenkins. E, além disso, eles convidaram o Senhor e a Senhora Hodgson para jantarem com eles.


— E leve o bebê! Mas o proteja do frio! — acrescentou a voz da Senhora Jenkins, perto da porta, onde ela esperava que Fanny passasse a sua mensagem.


Mary olhou ansiosamente para seu marido. Ela se lembrou do ditado dele, dizendo que ele não aprovava a política do Senhor Jenkins.


— Você pensa que seria bom para o bebê? — perguntou ele.


— Oh! Sim! — respondeu ela, sorridente. — O protegerei do frio!


— Meu quarto está aquecido desde já! — acrescentou a voz ao lado da porta.


Agora, como você julga que eles resolveram o assunto?


Da melhor maneira possível!


O Senhor e a Senhora Hodgsons foram até a casa do Jenkins e jantaram lá.


Peru e carne assada de um lado, salsichas e batatas do outro. Segundo prato, pudim de ameixa de um lado e tortas do outro.


Depois do jantar, a Senhora Jenkins colocou o bebê sentado em seus joelhos, e ele pareceu bastante satisfeito com ela. Ela declarou que ele estava admirando a renda em seu boné, mas Mary pensou, embora ela não o tenha dito, que ele estava satisfeito com a aparência amável e palavras persuasivas da Senhora Jenkins, porque o pequeno era incapaz de dar valor para uma renda.


O bebê fora levado cuidadosamente para o quarto da Senhora Jenkins, previamente aquecido pela lareira. E depois do chá, a Senhora Jenkins, Mary e seus maridos, descobriram o gosto mútuo pela música.


Sentados, cantando com o velho brilho e alegria que todo Natal tem, até perderem a contagem das horas, sem uma palavra de política ou jornais.


Antes de partirem, Mary pegara seu filho e o enrolara nos braços, pois, a Senhora Jenkins não se separava do bebê, que dormia em seu colo.


— Quando você estiver ocupada, traga-o até mim! Posso cuidá-lo! Vou tomar o maior cuidado com ele! Seu filho é muito querido, parece um anjo quando está dormindo!


Quando os casais estavam mais uma vez sozinhos, os maridos desabafavam suas mentes para suas esposas.


O Senhor Jenkins falou para a esposa:


— Você sabe... Burgess tentou me fazer acreditar que Hodgson era tão tolo a ponto de colocar, por vezes, parágrafos no Examiner, mas vejo que ele conhece seu lugar, e tem bom senso para fazer tal coisa!


Hodgson disse:


— Mary, meu amor! Quase gosto do modo de falar de Jenkins. Ele é mais civilizado do que eu esperava! Ele acha que escrevi aqueles contos, de qualquer forma, não desejo ser exposto, no entanto, se o assunto vier à tona, eu gostaria que ele soubesse que sou um homem literário!


Bem! Terminei minha história.


Espero que não pense por muito tempo, mas, antes de ir, deixe-me só dizer uma coisa.


Se qualquer um de vocês tiver alguma briga, ou mal-entendido com qualquer um que seja. Apenas faça amigos antes do Natal, você ficará muito mais feliz se o fizer. Peço para Deus e a velha canção angélica, ouvida há tantos anos pelos pastores, vigiando à noite, em Belém.


Feliz Natal!


A Casa de Clopton

Será que você conhece a casa de Clopton, a cerca de uma milha de Stratford-on-Avon?


Você me permite falar de um dia muito feliz que passei lá?


Eu estava na escola do bairro, e um das minhas colegas de escola era a filha do Senhor W, que então, vivia em Clopton.


A Senhora W. me convidou para uma tarde de chá. Iríamos passar uma longa tarde, juntas. Era um lindo dia de outono, cheio de encanto e maravilha, respeitando o lugar que íamos ver.


Passamos por campos desolados e meio cultivados, até chegarmos à vista da casa, uma grande, pesada, compacta e quadrada residência de tijolos, daquela cor vermelho profundo e morto, quase se aproximando do roxo.


Na frente, uma grande entrada, com aquela formalidade que tanto conhecemos, com os pilares maciços sobrepostos com dois monstros sinistros, entretanto, as paredes da fachada foram derrubadas, e a relva cresceu tanto no interior do recinto quanto na caminhada sobre uma trilha elevada que descemos.


As flores estavam enredadas com urtigas, e foi somente quando nos aproximamos da casa, que vimos a única roseira amarela com seus galhos e flores se enrolando ao redor das profundas janelas.


Entramos no salão, com seu piso de mármore, e pendurado nas paredes em volta, estavam estranhos retratos de pessoas que estavam em seus túmulos há, pelo menos, duzentos anos. No entanto, as cores eram tão frescas e, em alguns casos, tão vivas, que olhando apenas para os rostos, quase imaginei que os originais pudessem estar sentados no salão além de nós, querendo nos levar de volta, por assim dizer, aos dias das guerras civis, porque havia uma espécie de mapa militar pendurado logo ao lado daqueles retratos, bem desenhado com pena e tinta, mostrando as estações dos respectivos exércitos, e, com escrita antiquada estava os nomes das principais cidades, expondo a força da guarnição.


Neste salão, fomos recebidas por nossa amável anfitriã, que falou que poderíamos andar por onde quiséssemos, dentro ou fora de casa, tomando o cuidado de estar na sala de chá na hora marcada.


Preferi andar pelas escadas largas, com degraus de carvalho, e balaustrada[54] maciça, toda desmoronada e devorada por cupins.


A família, então residente da casa, estava no salão, seu número não ocupava metade dela, ou melhor dizendo, um terço de um quarto. E, os móveis antiquados, ornavam a sinistra visão.


Em um dos quartos, dito assombrado, e que com sua atmosfera reprimida e as longas sombras da noite se arrastando, me deu uma sensação estranha.


Lá, havia um retrato singularmente belo, de uma menina de aspecto doce, com cabelos dourados, penteados em volta da testa e caindo em argolas onduladas pelo pescoço, com olhos que pareciam violetas cheias de orvalho, uma vez que havia naquele retrato o brilho das lágrimas derramadas diante de seu azul-escuro profundo, e essa era a aparência de Charlotte Clopton, sobre quem havia uma lenda tão temerosa, contada na igreja de Stratford.


Na época de alguma epidemia, do suor ou peste, a jovem adoecera, e morrera. Ela foi enterrada com temerosa pressa nos cofres da capela de Clopton, ligada à igreja de Stratford, mas, a doença não ficou com ela enterrada a sete chaves.


Em poucos dias, outro dos Cloptons morreu, e eles o carregaram para a cúpula ancestral, porém, ao descerem as escadas sombrias, viram pela luz da tocha, a menina Charlotte Clopton, em sua roupa de túmulo, encostada à parede, e quando olharam mais de perto, perceberam que ela era um fantasma.


É claro que, desde então, ela caminhara por toda parte.


Aquele era o quarto assombrado de Charlotte, e além do quarto de Charlotte, havia uma câmara alcatifada, empoeirada por muitos anos sem uso, e escurecida pelas trepadeiras que abraçavam as janelas, que ousaram atravessar as vidraças quebradas.


Além disso, uma antiga capela católica, com um quarto para o padre, que fora esquecido nos últimos anos, estava lá.


Entrei com as mãos nos joelhos, visto como a entrada era muito baixa.


Lembro-me pouco da capela, mas no quarto do padre havia edições raras de muitos livros, principalmente pergaminhos.


Uma grande cópia, de papel amarelo, do livro Tudo por Amor, de Dryden, datada de 1686, chamou a minha atenção e, é a única de que me lembro.


Aqui e ali, enquanto caminhava, encontrei uma escadaria, com passagens em sua subida torta e não muito iluminada, que me perguntei se encontraria meu caminho de volta novamente, caso virasse as costas.


Havia uma curiosa porta velha, esculpida em uma dessas passagens, e com curiosidade juvenil, tentei abri-la, mas a porta era muito pesada, até que convenci um de meus companheiros a me ajudar, e quando foi aberta, o que você acha que vimos?


OSSOS!


Se eram ossos humanos, ou restos de uma noiva perdida, não ficamos para ver, porque fugimos em repleto terror.


Uma destas passagens que me lembro, a última, a mais deserta e triste, era uma creche, sem crianças, sem vozes cantadas, sem passos alegres!


Lá, um retrato dos seus antigos habitantes, meninos corajosos e galantes, meninas bonitas, e uma ou duas enfermeiras com bebês nos braços.


Quem eram eles?


Qual era a sorte deles na vida?


Sol ou tempestade?


Ou, eles foram amados pelos deuses, e morreram jovens?


Nem ecos sabiam.


Atrás da casa, em um buraco úmido e coberto por arbustos idosos, com um poço chamado “Poço de Margaret”, porque havia uma donzela da casa com esse nome, que se afogou após uma tristeza sem fim.


Tentei obter qualquer informação sobre a família de Clopton.


Eles estavam em decadência, desde as guerras civis. Foram, por uma ou duas gerações, incapazes de viver na velha casa de seus pais, e trabalharam em Londres, ou no exterior, para seu sustento, e o último da velha família, um solteirão, excêntrico, avarento, velho, e de hábitos imundos, se o relatório fosse verdadeiro, morrera em Clopton.


Ele foi enterrado na linda capela da igreja Cloptons, em Stratford, onde se consegue ver os estandartes acenando, e a armadura pendurada sobre um ou dois esplêndidos monumentos.


O Senhor W. fora o advogado do velho que deixou a propriedade em mau estado para ele em troca de sua lealdade.


Um ou dois anos depois daquela tarde, um herdeiro, de relação muito distante, que vivia na Irlanda, reivindicou e obteve a herança, sob o argumento de influência indevida e falsificação da parte do Senhor W. Então, eles fugiram para Bruxelas.


As Três Eras de Libbie Marsh

Era I

Dia dos Namorados

Em novembro passado, alguém se mudou para o nosso bairro. Era uma pessoa trocando de residência, mais precisamente, de um albergue para outro, e, em vez de gavetas, cestas, cômodas, camas e um velho relógio no topo de tudo isso, era apenas um grande baú de madeira, sendo carregado por um homem e ao lado dele, uma garota se movia lenta e pesadamente pelas ruas, apática e deprimida, mais do estado de sua mente que de corpo.


Era Libbie Marsh, que fora obrigada a sair de seu quarto na Rua Dean, porque os conhecidos com quem ela vivia, estavam deixando Manchester.


Ela tentou se achar afortunada por encontrar um alojamento, mesmo um pouco mais afastado, mas seus donos eram conhecidos por serem respeitáveis e isso era uma boa coisa. Ela, de fato, tentou se contentar, apesar de seu velho sentimento de desolação cair sobre ela.


“Estou agora, prestes a ser jogada de novo entre estranhos.” ela se lamentou em pensamento.


A Rua Albemarle foi finalmente alcançada, e o ritmo, por mais lento que fosse, afrouxou, ao se aproximar do local onde ela seria deixada pelo homem que carregava seu baú. Por mais que os dois não fossem amigos, ele não era um estranho como todos os outros, espreitando para fora de suas portas abertas e satisfazendo-se com um murmuro de:


— Chegou mais um hóspede para o albergue Dixon!


O albergue Dixon era a última casa da rua, do lado esquerdo da quadra, era uma parede de tijolos alta e morta ligando-se ao vizinho oposto.


Todas as habitações eram do mesmo padrão monótono, e o outro lado da quadra era a mesma coisa, como se fosse o reflexo em um espelho.


O albergue estava fechado, mas a porta foi aberta porque a mulher, dona do albergue, sabia que Libbie era esperada, e se adiantou para dizer algumas palavras explicativas ao abrir a porta, e agitar a lenha, já quase em cinzas, que estava queimando preguiçosamente na lareira.


Depois, a mulher voltou para seu quarto, deixando a pobre Libbie sozinha com o grande baú no meio da sala, sem ninguém a quem dizer uma palavra, porque qualquer comentário seria melhor que o silêncio, pois, isso ajudaria a repelir as lágrimas que se precipitavam em seu rosto.


Dixon, sua esposa e sua filha mais velha, trabalhavam em fábricas, e estavam ausentes o dia todo. Já a criança mais nova, também uma menina, era empregada nos dias de semana, na casa do vizinho, e ficava muito ocupada e era jovem demais para se importar com a nova inquilina de seus pais.


Libbie sabia que devia dormir com a menina mais velha, dividindo o quarto, mesmo que pagasse como se dormisse sozinha.


Assim, ela tirou seu chapéu e sentou, olhando para a lareira e o fogo ardente, pensando tristemente no passado e na criatura solitária que ela se tornara neste vasto mundo.


Seu pai, sua mãe e seu irmãozinho, há muito tempo estavam mortos. O menino, se estivesse vivo, teria dezenove anos, mesmo assim, ela pensava nele como o bebê querido.


Seus únicos amigos, se podiam ser chamados de amigos, moravam longe de sua nova casa, e não estavam dispostos a pensar em Libbie ou planejar uma visita.


Seus patrões, pessoas bondosas que cruzaram o seu caminho, tinham uma vida muito agitada para pensar na pequena trabalhadora, exceto, quando queriam vestidos costurados, tapetes remendados ou roupa de casa bordadas.


E, nem mesmo a esperança natural, embora escondida, de seu coração a animaria com as visões brilhantes de uma casa própria em algum dia futuro, onde, amando e sendo amada, ela cumpriria os deveres mais queridos de uma mulher.


Ela estava certa de que viveria sozinha e isso já não estava mais doendo tanto.


Você dificilmente pode viver em Manchester sem ter alguma ideia de sua aparência física. Porque, os garotos e as garotas das fábricas cuidam bem disso, e se você os encontrar nas horas em que eles estão saindo das fábricas, com certeza ouvirá um bom número de verdades, algumas delas, combinadas com um espírito de diversão tão impudente, que você dificilmente evitará rir, mesmo que a piada seja sobre você.


Libbie fora muitas e muitas vezes cumprimentada por perguntas como:


— Faz tempo que a beleza desistiu de você?


— Podemos te levar para afugentar os pássaros?


Essas eram algumas perguntas sobre a sua aparência.


Enquanto se lembrava, silenciosamente chorando, em pensamentos sobre ser mais bela, os Dixons apareceram e a surpreenderam com bochechas molhadas e lábios trêmulos.


Ela quase desejou ter novamente a quietude que a oprimia, uma hora atrás, porque eles falavam e riam tão alto e se agitando tão ruidosamente sobre tudo o que faziam, que o silêncio fazia falta.


A Senhora Dixon colocou a chaleira para ferver, quando a sua filha caçula surgiu, o que contribuiu para a agitação maior. Ela falou com Anne e a mandou buscar ovos para colocar no creme, e presunto, para dar gosto ao pão e à manteiga, e que fosse um pão novo, quente.


Libbie ouviu estas ordens, dadas em tom de voz alta da Senhora Dixon, e se perguntou sobre sua extravagância, tão diferente dos hábitos do lugar onde ela se hospedara pela última vez. Ela subiu para o quarto, buscando o silêncio.


Eles perderam todo o apetite natural e saudável por alimentos simples e, não tendo gostos mais elevados, encontraram seu maior prazer em suas refeições luxuosas.


Quando o chá estava pronto, Libbie foi chamada lá embaixo, com um convite rude, mas caloroso, para compartilhar sua refeição.


Ela sentou silenciosamente no canto da mesa de chá, enquanto eles prosseguiam a conversa sobre pessoas e coisas das quais ela nada sabia, até que ela se aventurou a pedir uma vela, para ir e terminar de arrumar suas coisas antes de dormir, uma vez que, ela teve que costurar por vários dias consecutivos, e suas roupas ainda estavam no baú.


Mais uma vez, na paz comparativa de seu quarto, sua energia falhou, e ela se contentou em trancar o baú, apagar sua vela, e sentar-se à janela, olhando para o céu brilhante.


Ela lançou uma oração ao céu com um sentimento de simpatia para com os tristes, nas horas solenes, quando as estrelas incessantes são vistas nas profundezas.


Seu olhar desceu até a janela correspondente a sua, do lado oposto da rua. Havia luz na janela, mas a cortina foi puxada. Mesmo assim, ela conseguiu ver, primeiro inconscientemente, o constante movimento cansado de uma sombra. Depois, a mão e o braço de uma criança, de dedos longos e finos, pendurados no pulso que balançava para cima e para baixo.


Libbie ficou observando, enquanto o braço parecia anunciar que o sono da criança estava surgindo, mas um grito de agonia passou pela janela e atingiu os ouvidos da jovem.


Quando Anne veio para a cama, Libbie ainda estava sentada, observando a sombra, e perguntou a quem ela pertencia.


— É o garoto de Margaret Hall. No verão passado, quando estava calor, não havia com fechar as janelas, à noite, e a janela do quarto dele também estava aberta, e muitas vezes, ele me acordou com seus gemidos. Rezo para que o verão passe rápido e não precise ouvir sua agonia!


— Ele está sempre na cama? O que o aflige? — perguntou Libbie.


— A coisinha sofre de um mal na sua espinha dorsal, dizem as pessoas. Ele melhora e depois piora. Ele é um rapazinho simpático. E a mãe dele também, creio. Minha mãe falava com ela, porém, nossos dias são repletos de tarefas, há pouco tempo para conversas sem propósito.


Libbie continuou a observar, e quando ela falou em seguida, para perguntar como era a Senhora Hall, Anne Dixon caíra em sono profundo.


O tempo passou e, como de costume, revelou as coisas escondidas.


Libbie descobriu que Margaret Hall era uma viúva, que ganhava a vida como lavadeira, que o menino sofredor era seu único filho, seu querido amado filho, que, enquanto ela repreendia as piadas sobre o filho e sobre sua vida, as pessoas a apelidaram de intolerante, o que era o oposto do que Libbie percebia, porque era evidente que a mulher era terna e gentil.


Ela deitava o menino em sua pequena cama, perto da janela, durante todo o dia, enquanto ela estava fora de casa, trabalhando por um meio de vida. Mas, quando Libbie tinha que costurar, ao invés de sair para a sala, ela costumava sentar e observar, da janela de seu quarto, o tempo em que as sombras opostas, por seus gestos mudos, diziam que a mãe voltara para se dobrar sobre seu filho, alisar seu travesseiro, alterar sua posição, lhe trazer sua xícara de chá noturna.


Muitas vezes, durante a noite, Libbie não conseguia evitar levantar-se suavemente da cama, para ver se o pequeno braço estava acenando para cima e para baixo, como era seu hábito quando não dormia devido à dor.


Libbie tinha muito que costurar naquele inverno, e sempre que não fazia tanto frio, a ponto de curvar os dedos, ela se afastava da lareira da sala e voltava a costurar perto da janela do quarto, de modo a observar o garotinho em seus poucos momentos de pausa da dor.


Em seus melhores dias, ele podia sentar-se o suficiente para espreitar pela janela e ela descobriu que ele gostava de olhar para ela também.


Ela se aventurou a acenar para ele do outro lado da rua. Seu sorriso tênue e o pronto aceno de volta, mostraram que isso lhe dava prazer.


Penso que ela se encorajaria por este sorriso a prosseguir com uma conversa na soleira da janela, porém, a mãe dele parecia irritada ao saber que Libbie era uma hóspede dos Dixons, porque ela estava cansada das piadas e palavras hostis.


Com seu constante interesse por ele, Libbie logo descobriu seu grande desejo por um objeto sobre o qual ocuparia seus pensamentos, e que espaireceria sua atenção, durante o longo dia, suportando a dor, sozinho.


Ele gostava muito de flores.


Era novembro, no entanto, o clima era muito ameno, e algumas flores ainda permaneciam nos jardins, que o povo do campo recolhia em dias de festa, ou para vender no mercado em Manchester.


Sua mãe comprara para ele um ramo de margaridas para o Natal, no mesmo dia em que Libbie se tornou sua vizinha, e a garota observava a história dessas margaridas.


Ele as colocou em um bule velho, do qual o bico estava quebrado e a tampa perdida. Ele regava as flores diariamente com jarro de água que sua mãe deixava perto dele para saciar sua sede febril.


Ocasionalmente, uma ou duas flores se desvaneciam, e o tempo que ele passara até então admirando, quase as acariciando, era dedicado a cortar aquelas flores, cuja decadência manchava a beleza do arranjo de flores.


Ele levou metade de uma manhã, com seus movimentos fracos e lânguidos, segurando sua velha tesoura, para aparar as flores murchas e mortas. Então, finalmente ele parecia pensar que preservara melhor as poucas que restavam, secando-as.


Assim, elas eram cuidadosamente colocadas entre as folhas da velha Bíblia, e sempre que chegava um dia melhor, quando ele tinha força suficiente para levantar o pesado livro, ele costumava abrir as páginas para olhar para suas amigas florais. No inverno, ele não podia ter mais flores vivas para cuidar, restavam apenas as flores secas.


Libbie pensou e pensou, até que finalmente uma ideia lhe passou pela cabeça, que fez um sorriso feliz roubar-lhe o rosto, vez ou outra, enquanto ela costurava durante o inverno solitário.


Os Dixons eram pessoas muito boas, nunca a pressionaram para pagar a taxa de hospedagem, e se ela tivera pouco trabalho a fazer naquela semana, não lhe tiraram uma parte de suas refeições extravagantes, que eram muito mais luxuosas do que ela poderia encontrar em qualquer outro lugar, pela falta de pagamento previamente acordado no caso de trabalhar em casa.


Eles eram muito absorvidos, para tirar o sentimento solitário de Libbie, mas alguém o fazia, o pequeno rosto, e a sombra de noite, daqueles com quem ela nunca trocara uma palavra.


Sua ideia foi esta:


Sua mãe veio do leste da Inglaterra, onde, como talvez você saiba, eles têm o belo costume de enviar presentes no Dia de São Valentim, com o nome do doador desconhecido, e, é claro, o mistério constitui metade do prazer.


O dia 14 de fevereiro era também o aniversário de Libbie, e muitos anos, nos dias felizes de outrora, sua mãe teve o prazer de surpreendê-la com algum pequeno presente. Ela sabia quem era o doador, mesmo que cada Dia de São Valentim, a maneira de sua chegada fosse variada.


Desde então, o dia 14 de fevereiro fora o mais triste de todo o ano, porque era assombrado pela lembrança da felicidade que partiu. Mas agora, este ano, se ela mesma não pudesse ter a velha alegria do coração, ela tentaria alegrar a vida de outro.


Ela compraria um canário e uma gaiola, para aquele pobre rapazinho do lado oposto, para resgatar um pouco de prazer em sua vida monótona e com tanta dor.


No mesmo dia, antes do décimo quarto, ela encontrou tempo para ir até um barbeiro que morava perto da Rua Albemarle, e que era famoso por seu estoque de pássaros cantores.


Há entusiastas, de muitas coisas, tanto boas quanto más, e muitos dos tecelões em Manchester se preocupavam mais com os pássaros do que qualquer outra coisa.


Homens teimosos, silenciosos e reservados em muitas ocasiões, mas que, bastava tocar no assunto dos pássaros para iluminar seus rostos com brilho incomum. Eles lhe diriam quem ganhou o prêmio no último espetáculo canário, onde os pássaros premiados podem ser vistos, e lhe falariam todos os detalhes daquelas aves. Entre estes amadores, Emanuel Morris, o barbeiro, era um oráculo para os demais.


Ele levou Libbie para seu pequeno quarto de trás, usado para fazer a barba privada de homens modestos, que se importavam com o sigilo e não gostavam de expor sua face diante da fachada para os curiosos analisarem seus rostos e se a barba estava alinhada.


No tal quarto, pássaros em gaiolas de vime rudes, penduradas nas paredes ou em ganchos no teto, com exceção daqueles que ganhavam prêmios, e que por isso, foram homenageados com prisões de arame dourado.


Quanto mais longo e fino era o corpo do pássaro, mais admiração recebia. Quanto mais cor profunda e tons claros, com suas notas fortes e variadas, mais Emanuel se debruçava sobre suas perfeições, porque eles eram pássaros premiados.


Libbie ouviu, com um pequeno temor no coração, que seu preço variava de um a dois guinéus[55].


— Não me importo com a cor! — disse ela. — Eu gostaria que cantasse bem, só isso!


Ela receou porque Emanuel pensaria que seu ato era irresponsável, e que ele julgaria a sua fala como um menosprezo as aves ou a admiração dele pelos bichos.


Entretanto, ele mostrou a ela seus bons cantores, mas todos estavam acima dos valores que Libbie podia pagar.


— Afinal de contas, acho que não me importo tanto com o canto muito alto! É apenas um barulho!


— Vocês são jovens e não sabem o valor do canto de um pássaro! — respondeu Emanuel, um tanto afrontoso.


— Somos pobres, senhor! Isso não é sobre idade e sim, sobre condições financeiras para tal. — respondeu Libbie, depreciativamente.


— Bem... — murmurou o homem como se estivesse considerando o assunto. — As pessoas que são rabugentas, levam qualquer um desses pássaros para dizer que tem um, do que dar valor para o porte e capacidade de canto. Se este é o seu caso... — ele abriu uma porta de gaiola, e pegou um pássaro de cor baça, sentado em um canto. — Este é o ideal! Chamado Júpiter!


A ave sacudiu suas penas em um instante e, pronunciando uma pequena nota de deleite, voou até Emanuel, colocando seu bico nos lábios, como se estivesse beijando o homem, e então, empoleirando-se em sua cabeça, deu início a cantoria, não tão variada e clara como o canto dos outros de boa qualidade, mas que agradou Libbie, pois, ela sempre foi uma das que gostava das groselhas que eram acessíveis, melhor que as uvas que estavam além de seu alcance.


O preço também era justo, então ela, de bom grado, tomou posse da gaiola, e a escondeu sob seu manto, preparando-se para levá-la para casa.


Emanuel, por sua vez, estava dando-lhe instruções sobre a comida do pássaro, com toda a minúcia de alguém que amava o animal.


— Posso entregar para a pessoa que receberá o presente? — perguntou ela.


— Dê-lhe apenas dois dias, e eles serão amigos tanto quanto somos agora. Você só tem que abrir a porta da gaiola e chamá-lo, e ele seguirá seu dono pela sala, mas ele primeiro a beijará, e depois se empoleirará em sua cabeça. Ele irá se afastar para voar pelos cômodos de sua casa.


— Qual é o nome dele? Não ouvi corretamente!


— Júpiter! Não é um nome comum, mas, a cidade está cercada de nomes como Bobbies e Dickies, e como meus pássaros não são ordinários, gosto de dar nomes melhores para eles, foi assim que escolhi alguns nomes dos livros escolares do meu filho. Depois que você se acostuma, Júpiter é tão natural quanto Dicky!


— Eu gostaria que se chamasse Peter! Ele responderia a Peter, se o chamasse assim? — indagou Libbie, prestes a partir.


— Por certo! Depois de algum treino! Mas, ele está acostumado com três sílabas.


No Dia dos Namorados, a gaiola de Júpiter foi adornada com folhas de hera, fazendo uma linda coroa de vime. Libbie pendurou na gaiola um pedaço de papel, com as palavras escritas, com a melhor letra cursiva que ela conseguia escrever:


“De seu fiel Valentim! Por favor, seu nome é Peter, e ele virá até você, se você o chamar, depois de um tempo!”


Libbie, naquela tarde trabalhou pouco, porque ela estava tão empenhada em cuidar do mensageiro que levaria seu presente ao seu pequeno valentino, e assim, trabalho ficara em segunda ordem para a jovem.


Ela entregou o canário para um menino de recados, e explicou a quem o presente seria entregue.


Finalmente ele chegou a porta da vizinha, depois houve uma pausa, antes que a mulher recebesse o presente e o levasse para cima.


Então, Libbie viu o pequeno rosto de cor clara, as mãos fracas tremendo de alegria, a cabeça curvada para baixo para tentar perceber a escrita, além de seu poder de leitura, o olhar assustado para a gaiola para ver o canário em cada ponto de vista.


Cabeça, cauda, asas e pés, uma intenção, na qual Júpiter, em sua inquietação de estar novamente entre estranhos, não ficou parado em um lugar só, mas ele saltou para frente do menino e ele pode apreciar o novo amigo.


Foi uma fonte de encantamento para seu novo companheiro, até que a luz do dia se fechou.


Evidentemente ele esqueceu de se perguntar quem enviara o presente, por estar envolto em sua alegria em possuir tal tesouro.


A sombra de sua mãe surgiu diante do menino e Libbie viu a mulher se curvar e beijá-lo, na simpatia de uma mãe com a alegria de seu filho.


O canário foi colocado durante a noite entre a pequena cama e a janela, e quando Libbie se levantou durante a noite, como de costume, ela viu o pequeno braço colocado carinhosamente em volta da gaiola, como se abraçasse seu novo tesouro, mesmo durante o sono.


Como Júpiter dormiu nesta primeira noite, é uma coisa bem diferente.


Assim terminou a primeira parte das três épocas da Libbie.


Era II

Pentecostes

A luz do dia estava brilhante, descendo a Rua Albemarle e o calor, mesmo às cinco horas da manhã, se assemelhava ao calor do meio-dia, dos dias de junho, muitos anos atrás.


A rua parecia viva, alegre, com vozes e risos. As janelas dos quartos estavam abertas de par em par, e assim fora, a noite toda, devido ao calor.


Por vezes, você podia ver uma cabeça, um par de ombros, e um pouco de conversa entre as janelas e suas vozes curiosas.


— Jack, para onde está indo? — falava um.


— Dunham! — respondia o outro.


— Por quê? Parece tão antiquado ir sempre para o mesmo lugar! Teu avô, antes de ti, sempre passava as festividades em Dunham. Estou indo para Alderley. Eu e minha senhora! — afirmava o sujeito que fizera a pergunta, com ar de desdenho e um pouco de soberba.


— Você vai, porque é somente você e a sua senhora! Espere até andar com quatro filhos como eu, e terá o prazer de levá-los à Dunham. Porque lá, se gasta em torno de quatro centavos cada um! Não podemos nos dar ao luxo de ir até Alderley! — argumentava o outro.


— Eu ainda iria para Alderley! Não me preocuparia com meus filhos, porque eles ficariam em casa. — garantiu.


E assim, os dois ficaram discutindo para que lado seguir.


Um par de mãos, da pessoa que os dois pareciam não perceber, deixou seus ouvidos atentos neste último discurso, de uma maneira muito espirituosa, e um dos homens que conversava sobre a escolha entre Dunham e Alderley gritou:


— Ainda é jovem para saber sobre filhos e todos os problemas sobre isso! Será inútil deixar os bebês em casa em um Pentecostes! Por certo, será igual a um de nós. Ainda viveremos para te assistir no Parque de Dunham, com os gêmeos em seus braços, e mais um par de filhos agarrando-se na beira de suas caças, puxando seus suspensórios!


Nesse momento, nossa amiga Libbie apareceu à sua janela, e a Senhora Slater, que tomara o lugar de seu marido, a chamou:


— Elizabeth Marsh, onde estão os Dixons?


— Os Dixons ainda não se levantaram, senhora! O Senhor Dixon me disse ontem, à noite, que passariam o dia descansando. Talvez, acordem mais tarde. — ela suspirou. — Já que estão falando sobre viagens... Vou para Dunham!


— Você vai sozinha?


— Não! Vou com Margaret Hall e seu filho. — respondeu Libbie, retirando-se apressadamente da janela, para evitar ouvir qualquer comentário sobre quem ela escolhera para seu dia de descanso, pois, para os outros, a vizinha rabugenta com seu filho doente não era uma saudável companhia.


Júpiter era uma pomba simbólica do Espírito Santo e sua hera, tão verde, um ramo de oliveira representando a paz que trouxe, a felicidade que causou, pelo menos, para aqueles três indivíduos que todos olhavam com piedade.


Pois, é claro que não podia ser um mistério por muito tempo quem enviara o pássaro para o pequeno Frank Hall.


A mãe do pequeno Frank era tímida e estava orgulhosa, e, por algum tempo lutou contra o desejo natural de manifestar sua gratidão, mas uma noite, quando Libbie estava voltando para casa, com um pacote de tecidos para costurar, ela foi ultrapassada por Margaret Hall, que gentilmente tirou o pacote de suas mãos e o carregou até a porta dos Dixons, e o caminho de Libbie para casa fora encurtado pelo brilho simpático de Margaret.


Aquela era a maneira de quebrar a barreira entre elas.


Margaret tinha muito a dizer, porque estava grata pelos dias de diversão pincelados com felicidade, que seu filho agora desfrutava. Ela queria falar do reconhecimento pelo ato bondoso de Libbie, contar suas esperanças e também, seus medos que compunham os dias de sua vida.


A partir daquele momento, Libbie perdeu o receio e virou rapidamente uma amiga de Margaret e de seu filho, planejando ajudar ainda mais, a sua nova amiga e seu filho tão doente.


A vida do menino balançou sob o encanto e a agitação dos últimos meses. Ele parecia forte para tentar a viagem a Dunham, que Libbie organizara como um presente de Pentecostes, e para a qual, ela e Margaret estavam desejando há várias semanas.


O barco do canal deixaria Knott Mill às seis, e já passava das cinco. Ela bateu na porta da casa deles e, sem esperar por uma resposta, entrou.


O rosto de Franky foi ruborizado e tremia de emoção, com encanto e desejo ávido, ainda não concedido.


— Ele quer muito levar Peter com ele! — disse sua mãe à Libbie, com o menino a olhando de forma implorante.


— Ele quer ir! Porque ele sentirá a minha falta tristemente e, ao passar o dia todo sozinho, ele se sentirá infeliz. Não posso estar feliz lá, enquanto meu amigo está aqui! Então, Libbie, ele é cristão, como todos nós, tão apaixonado por flores e folhas verdes. Ele merece estar ao meu lado! Ele canta feliz quando a minha mãe me traz um centavo de flores para colocar em volta de sua gaiola. Ele falaria se pudesse, entende? Ele falaria para que pudesse ir. Deixe Peter ir, Libbie! O carregarei em meus braços! — implorou o menino.


Assim, Júpiter teve permissão para viajar com eles.


Libbie superara a grande dificuldade de levar Franky em seus braços, até a carruagem que os levaria até o barco.


Sua mãe também ajudava a carregar Franky, leve em peso, embora pesado em desamparo, e ele segurava a gaiola, acreditando que assim, ele agarrava a promessa de não ficar longe de Peter.


Libbie colocou a cesta com as comidas no canto da carruagem. Os vizinhos saíram com muitos discursos contundentes e desejos mais gentis, e um ou dois deles aliviariam Margaret de seu fardo, se ela o permitisse.


A presença daquele pequeno aleijado parecia obliterar todos os sentimentos de raiva que existiam entre sua mãe e seus vizinhos.


Franky mordeu os lábios na tentativa de resistir à dor que o movimento lhe causou ao entrar na carruagem. Ele encolheu e fechou os olhos, desejando alguns minutos de descanso.


Libbie estava muito tímida, e com muito medo de ser vista por seus patrões, porque eles não entenderiam o motivo dela estar ao lado de um menino doente. Ela se escondeu em um canto, e desejou ficar invisível, se isso fosse possível, enquanto a Senhora Hall tinha exatamente a sensação oposta, e estava encantada. Ela se levantava, esticando-se até a borda da carruagem, e acenando com a cabeça para quase todos que passavam pelo caminho.


As ruas estavam bastante alegres naquela manhã, muitas pessoas caminhavam até a estação ferroviária, ou para os barcos que lotavam os canais na brilhante semana de férias, e quase todas as pessoas que encontravam a Senhora Hall, pareciam sentir a sua alegria e compartilhavam um sorriso ou aceno de cabeça em troca.


Por fim, ela olhou para Libbie e exclamou:


— Nunca estive em uma carruagem! É como se fosse o céu! — continuou ela, admirando a paisagem.


Júpiter não gostou tanto.


O clima agradável e o horário nobre tinham uma influência genial, fazendo o coração de todos, um pouco mais amolecido pela presença do pobre Franky.


O cocheiro o levou cuidadosamente até o barco. As pessoas então abriram caminho, e deram o melhor assento para o menino, e quando viram que ele estava cansado, insistiram em deitá-lo na poltrona. Cansaço que ele teria vergonha de assumir sem a proteção de sua mãe e de Libbie, que surgia diante dele, carregando seus cestos e Peter.


O barco se foi, para dar espaço a outros, uma vez que cada transporte, tanto por terra quanto por água, estava preparado para as celebrações do Pentecostes, porque devia dar às multidões trabalhadoras, a oportunidade de desfrutar os encantos do país, e um pouco de descanso, pelo menos, naqueles dias.


As margens do canal foram ocupadas por pessoas na espera dos barcos, que deslizavam ao longo das margens repletas de pessoas, com sorrisos largos, ansiosos por um dia de lazer.


As crianças gritavam e sorriam para seus pais.


A felicidade estava em cada árvore, em cada flor que se arrastava contra alguma parede das casas de campo, ou nos tufos de prímula tardios que permaneciam nas profundezas frias da grama ao longo das margens do canal.


Havia um gosto minucioso em apreciar tudo, nos seus detalhes, como se temesse deixar passar a menor circunstância daquele dia feliz. O tempo parecia muito curto, embora levara duas horas para chegar ao lugar que ficava apenas oito milhas de Manchester.


Até Franky, com toda sua impaciência para ver os bosques de Dunham, que acho que ele confundiu com Londres, acreditando que ambos estavam pavimentados com ouro, desfrutou do movimento do barco flutuando, enquanto imagens se moviam diante dele.


Seus companheiros e passageiros do barco o levaram ao parque e recusaram qualquer pagamento, embora sua mãe oferecesse seis pences como recompensa pelo serviço.


— Oh! Libbie, que lindo! Oh! Mãe! Mãe! O mundo além de Manchester é tão bonito quanto isto? Não sabia que as árvores eram assim! Que lar verde para pássaros! Olha, Peter! Você não gostaria de estar no meio destes galhos? Mas, não posso deixar você ir, porque você é meu irmãozinho pássaro, e eu ficaria perdido sem você!


Colocaram um xale sobre a fina relva aos pés de uma faia, que fez uma espécie de sofá natural, e ali, o colocaram, e o fizeram descansar, apesar do deleite que o fez acreditar ser capaz de qualquer esforço.


Deitado, sempre segurando a gaiola de Júpiter, e muitas vezes falando com ele como a um companheiro de brincadeira, Franky apreciou a vista.


Ele estava à beira de uma área verde, fechada por árvores magníficas, em toda a glória de sua folhagem precoce, antes que o calor do verão aprofundasse seu verde em uma tonalidade rica e monótona.


Havia também outras pessoas celebrando, homens e mulheres, donzelas e rapazotes, crianças e bebês, famílias inteiras se reuniam.


Pais carregavam seus filhos nas costas, enquanto se voltavam, vez ou outra, para as esposas, que compartilhavam alguma lembrança local carinhosa.


Durante anos, o parque de Dunham foi o lugar favorito dos trabalhadores de Manchester, por mais anos realmente, provavelmente desde que o duque construiu os canais, e assim, abriu o sistema de viagens mais baratas.


Seu cenário apresentava um contraste majestoso com o turbilhão agitado de Manchester.


Dunham era completamente arborizado, com suas árvores ancestrais, ali e acolá, com relâmpagos escaldantes de beleza única, com suas paredes verdes, suas trilhas repletas de ervas de aroma magnifico, com as clareiras nos bosques, onde os coelhos corriam entre as samambaias, deixando para os nossos ouvidos, uma sinfonia ritmada.


Este completo repouso silvestre e silêncio acessível, lapidava a alma, em imagens verdes do campo, formando o contraste dele com a cidade, e consequentemente, tinha o maior poder de encantar.


Libbie estava com fome, e perguntou se eles queriam almoçar, mas que não sabia se era perto do meio-dia.


Margaret Hall, em sua prudência, pediu a um trabalhador próximo, que lhe dissesse que horas eram e ele prontamente afirmou que era perto do meio-dia ensolarado.


— Não se importe com as horas, senhora! — disse ele. — Depois de tantos dias de trabalho com nossos os olhos voltando o tempo todo para relógios, precisamos de um pouco de paz! Não vou estragar meu prazer, descobrindo a rapidez com que o tempo vai embora. Se tiveres fome, coma! Esqueça o horário, pelo menos, por hoje! Faça a sua própria hora! Divirta-se!


Então, elas comeram suas fatias de vitela ao lado de Franky, e descobriram ser apenas por volta das dez horas. Por eventos prazerosos, aquela manhã fora memorável.


Elas sorriram quando perceberam a hora que almoçaram e riram com o homem que estava sentado próximo a elas. Ele riu com elas, até que, de repente, parou, e falou:


— Devo parar de rir! Porque isso me dá ainda mais fome!


— Então, o faça! — disse um homem de aparência alegre, se deitando na grama fresca e se esticando, enquanto duas ou três criancinhas caíam sobre ele, como se fossem gatinhos ou cachorrinhos brincando. — Ficaremos sem comida se devorarmos tudo agora! Melhor dividir o almoço! Aqui estão salsichas e um punhado de nozes de minha parte. É da minha empresa de comestíveis! — Bob sorriu para alegrar Franky.


A prenda não foi recusada e em troca, ele recebeu uma fatia de vitela.


— É um comércio próspero! — continuou Bob ao lado da Libbie.


O riso e a conversa foram abafados, e as mães ao redor disseram aos seus pequeninos para se calarem, já que, ao longe, veio um zumbido das vozes das crianças, misturadas em uma daquelas melodias de Salmos, que conhecemos, e que nos faz lembrar dos velhos tempos. Tempos estes de quando nós, como crianças maravilhadas, éramos levados pela primeira vez a adorar o Nosso Pai.


Santo era aquele louvor coral distante, mesmo aos mais irrefletidos, e quando terminou, na pausa do instante, durante a qual o ouvido espera a repetição do ar, eles pegaram o zumbido do meio-dia e das miríades de insetos que dançavam longe naquele dia glorioso.


Eles ouviram o balançar dos poderosos bosques na brisa suave, depois, os gritos das crianças e mais uma vez, os mais velhos retomaram sua conversa feliz, deitados ou sentados debaixo das árvores verdes.


Algumas pessoas entregaram flores para Franky. Um após outro se aproximaram dele, e olharam com interesse, enquanto ele separava as flores que lhe eram dadas.


Pais felizes ficaram de pé, com saúde e beleza, e sentiram pena do menino atrofiado com aqueles olhos brilhantes, mas tristes.


Sua mãe observava sua felicidade com demasiada ansiedade para ler o significado daqueles olhares das pessoas para seu filho, mas Libbie os viu e os compreendeu, e um arrepio passou por ela, porque ela imaginava como seria o futuro.


— Você aqui?


O homem cumprimentou Libbie com seu terrível tapa nas costas, enquanto ela sentava ociosamente perto das flores agrupadas, e seguindo seus dolorosos pensamentos.


Eram os Dixons, que em vez de manterem a promessa de ficarem deitados em suas camas, eles e suas filhas mudaram de ideia e partiram logo em seguida para Dunham.


Por um instante, o encontro parecia estranho, devido à rixa entre Margaret Hall e a Senhora Dixon, todavia, não resistiu por muito tempo às gentilezas da mãe natureza, naquele lugar tranquilo e encantador, ou, a visão de Franky assustaria cada sentimento de raiva que pousava no coração dos Dixons.


Ele mudara desde a última vez que os Dixons o viram. Quando ele tinha o apelido de Robin Goodfellow [56]do bairro, pois, ele fora, em tempos antigos, o menino de grandes travessuras. Sim, ele, o fraco e doente menino fora um rapaz alegre e feliz, e muitas vezes, a Senhora Dixon o repreendia, mas agora ela observara com lágrimas nos olhos para a fragilidade do menino.


Será que ela, ao ver a mudança, o desvanecimento, sustentaria seu pensamento sobre a rivalidade entre ela e Margaret Hall?


— Há quanto tempo você está aqui? — perguntou Dixon.


— O dia todo, senhor! — respondeu Libbie.


— Já viram os cervos?


Sua esposa beliscou seu braço para lembrá-lo da condição de Franky, que naturalmente não podia caminhar e apreciar os animais selvagens. Mas Dixon tinha um remédio para isso.


Ele chamou Bob, e mais dois outros homens e cada um, tomou a ponta do xale onde Franky estava deitado e assim, o levaram alegremente, pelos caminhos da trilha, sobre a relva lisa, enquanto o brilho e as sombras cintilantes caíam sobre o rosto do menino.


As mulheres caminhavam atrás, falando, mas mantendo sempre à vista, o xale e Franky.


Suas almas estavam alegres, distantes da rotina e do peso das responsabilidades. Eles seguiram levando Franky até um tronco de uma árvore, e atrás do tronco, havia um grupo de pinheiros, cujos caules pareciam ouro vermelho-escuro quando tocados pelos raios de sol.


Eles levaram Franky até lá para mostrar-lhe Manchester, no horizonte distante da planície azul, que o bosque em primeiro plano, cortava com uma suave linha clara.


Longe, muito longe, naquela planície plana, você veria a nuvem de fumaça imóvel pendurada sobre a grande cidade, nossa Manchester.


Manchester tinha seus contrastes. Por vezes, feia e fumegante, querida, mas ocupada, séria e nobre.


A Manchester onde seus filhos nasceram, e onde, talvez, alguns estariam enterrados em um futuro distante, onde suas casas tinham suas paredes erguidas e onde Deus jogara suas vidas, e disse para trabalharem em seu destino.


— Isso é muito bonito! — falou Bob, colocando Franky suavemente na grama, antes de girar seu chapéu, preparando-se para um grito. — Uau! Uau! Realmente a visão que temos de Manchester é bela! Devo tirar o meu chapéu! — observou Bob calmamente, enquanto tirava o chapéu e fazia uma saudação.


As crianças da escola dominical chegaram para cantar.


Eles se sentaram perto, para que Franky pudesse ouvir as palavras que as crianças cantavam, com seus sorrisos alegres de verão, seus rostos como pequenas guirlandas floridas, felizes e brilhantes sobre aquela colina verde.


Um pequeno toque de uma menina veio timidamente atrás de Franky, que o observava, silenciosamente.


Estava tudo maravilhoso.


Homens, mulheres e crianças com semblantes amorosos, tão suavizados pela beleza da natureza que era tocada pelo espírito de amor. Terra esta, que o Criador abençoara.


No entanto, o dia chegou ao fim, o calor declinou, os pássaros voltaram para seus ninhos, o cheiro fresco do fim de tarde pairava novamente sobre as plantas, árvores e relva, ressaltando a presença perfumada do orvalho vivificante e, a hora de voltar para o barco estava próxima.


Ao percorrerem novamente o caminho dos prados, eles se juntaram as muitas pessoas que encontraram durante o dia, cheios de felicidade, repletos das aventuras do dia, que teriam muitas histórias para contar.


As longas diferenças sociais foram esquecidas e novas amizades se formaram. Gostos frescos e delícias mais elevadas foram dadas naquele dia.


Ocasionalmente, todos temos nosso olhar chamado por algum pensamento nobre ou amoroso, este pensamento que será nossa chave para o céu.


Posso captar de relance, em muitos, a luz da nuvem de glória do céu que será a nossa casa.


Esse olhar estava presente em muitas faces cansadas de tanto trabalhar e enrugadas pelo passar do tempo, ao se voltarem para trás para capturarem um olhar de saudade e de permanência nos bosques de Dunham, aprofundando-se na escuridão da noite, mas cuja memória se misturava com o verde e o frescor, teares, oficinas e fábricas, com imagens de paz e beleza.


Naquela noite, enquanto Libbie ficava acordada, pensando no dia que terminou, ela pegou a voz de Franky através das janelas abertas. Em vez do frequente gemido de dor, ele estava tentando lembrar o canto das crianças.


“Aqui, sofremos a dor e sofrimento.


Aqui, nos encontramos para separarmos novamente.

No céu, não nos separaremos mais.


Oh! Isso será motivo de alegria!”


Ela lembrou a pergunta dele, sussurrada para ela, na parte mais feliz do dia.


— Será Dunham como o céu? As pessoas aqui são tão gentis quanto os anjos. Não quero que o céu seja mais bonito que este lugar. Se você e a minha mãe morrerem antes de mim, esperem por mim.


A jovem criança ansiava por uma ideia definitiva do que era a Terra e o Céu.


Não tinha nada de errado, ou mesmo triste, por...


No céu, não nos separaremos mais!


Era III

Festa de São Miguel

Os relógios da igreja atingiram o ponteiro das três.


As multidões de cavalheiros que retornavam aos negócios, após seus almoços, desapareceram em seus escritórios e armazéns, as ruas estavam claras e silenciosas, e as senhoras se aventuravam a sair para suas compras da tarde.


Lentamente, ao longo das ruas, cotovelada pela vida a cada curva, um pequeno cortejo fúnebre prosseguia silenciosamente.


Quatro homens carregavam o caixão de uma criança, duas mulheres, de cabeça baixa, seguiam mansamente.


Não preciso dizer de quem era o caixão, ou quem eram as duas mulheres.


Tudo acabara para o pequeno Frank Hall.


Suas brincadeiras, jogos, enjoo, sofrimento e sua morte. Tudo estava agora acabado, no entanto, a Ressurreição e a Vida Eterna, o aguardavam.


Sua mãe caminhava sem vontade. Ela desejava estar no lugar dele. Ela seguiu o pobre corpo do filho, como se tudo fosse um pesadelo.


Se ele estivesse realmente morto, como ela ainda estava viva?


A mente de Libbie estava muito menos atordoada e consequentemente, muito mais ativa que a de Margaret Hall.


Visões, como em uma fantasmagoria, surgiram rapidamente antes de suas lembranças, da época que parecia agora tão antiga, da sombra do braço que ondulava fraco, chamando sua atenção pela primeira vez, do dia brilhante no Parque Dunham, onde o mundo parecia tão cheio de diversão, beleza e vida, do calor prolongado através do qual o pobre Franky despojara suas forças na pequena sala próxima, onde não havia como escapar dos raios quentes do sol da tarde, das longas noites em que sua mãe e ela o velaram, enquanto ele gemia continuamente, acordado ou dormindo, do sono febril, do cansaço, das lamentações lamuriantes de sua impaciência pelo sofrimento que não o dava trégua, de seus olhos tristes, e depois, o desaparecimento da vida, a perda de poder, o aumento da inconsciência, o belo olhar de paz angelical que se seguiu à sombra escura no semblante.


Onde estava ele, o que era ele agora?


E assim, o colocaram em seu túmulo, e elas ouviram as solenes palavras fúnebres, mas ao longe, como se não fossem dirigidas a elas.


Margaret Hall curvou-se sobre a cova para pegar um último olhar. Ela não falara, nem soluçado, mas tremia, por vezes, desde a manhã, no entanto, seu peso sobrecarregava demais os braços de Libbie, e sem suspiro ou som, ela caiu desmaiada sobre o cascalho amontoado.


Eles ajudaram Libbie a trazê-la de volta para casa, e muito tempo depois, seus olhos se abriram e sua respiração mostrava que seus sentidos estavam restaurados.


Ela estava deitada, sem palavras ou movimento, sem tentar se levantar de sua cama, como se a Terra não tivesse nada que valesse sequer aquele esforço trivial.


Finalmente Libbie e ela deixaram aquele lugar abençoado e se inclinaram para o único lugar ainda mais consagrado, onde ele rendia seu espírito, e as lembranças dele assombravam cada peça da mobília rude, sobre o qual seus olhos caíram.


Uma mulher abriu a porta, puxou Libbie para um lado, e disse:


— Anne Dixon mandou avisar que deseja conversar com você!


— Não posso! — respondeu Libbie, olhando para a mãe de Franky.


Margaret Hall estava calada, porém, a visão daquele lugar vazio, o olhar para a janela aberta sem cortinas, deixando entrar o ar fresco e a luz ampla do dia, se tornara escuro e subjugado, e destravava as lágrimas.


Estridentes foram os gritos para seu filho que a pobre mulher proferiu.


— Oh! Querida Senhora Hall! — disse Libbie, em meio as lágrimas. — Não sofra, pois, ele está vivo! A Bíblia nos diz isso, e talvez ele esteja aqui observando como continuamos a nossa vida sem ele. Por certo, ele está esperando que não nos preocupemos demais!


Os soluços da Senhora Hall ficaram piores e mais histéricos.


— Oh! Escute... — disse Libbie, mais uma vez, lutando contra sua própria agitação crescente. — Escute! Peter está agitado! Ele sente a falta de Franky e você sabe que nosso pequeno não suportava ouvir o canário nervoso dessa maneira.


Margaret Hall analisou e dominou suas expressões de agonia, desejando não assustar a pequena criatura que seu filho tanto amava. E, à medida que sua dor diminuía, Libbie pegou a grande e velha Bíblia, que se abriu no conforto infalível do décimo quarto capítulo do Evangelho de São João.


Quantas vezes, essas grandes Bíblias familiares se abrem nesse capítulo? Como se, não usadas em tempos mais alegres e prósperos, a alma buscasse palavras de conforto amável quando tudo a volta fosse cansaço e tristeza, assim como a criança pequena busca o terno conforto de sua mãe, em todas as suas tristezas.


Margaret ajeitou os cabelos desgrenhados e grisalhos de seu rosto molhado, manchado por lágrimas, e escutou com olhos tão sérios, tentando formar alguma ideia da “Casa do Pai”, onde seu filho fora morar.


Elas foram interrompidas por uma batida baixa na porta. Libbie foi atender.


— Anne Dixon quer conversar com você! — disse a mulher novamente, em um sussurro.


Libbie voltou e fechou a bíblia, com uma palavra de explicação para Margaret Hall, e depois correu para saber o motivo da ansiedade de Anne em vê-la.


— Oh! Libbie! — Anne explodiu com a lembrança do último dever solene da Libbie. — Como está Margaret Hall? Certamente, a pobrezinha vai sofrer um pouco no início e demorar para aprender a viver sem ele, no entanto, sabendo que ele sofria durante a vida, ela entenderá que ele descansou, e de alguma forma, ela agora também descansa do fardo que carregava!


Ela tinha outros motivos para conversar, mas a visão do rosto triste e choroso de Libbie e de seu jeito fúnebre a fizeram sentir-se constrangida em começar a falar sobre qualquer outro tema que não fosse aquele que enchia a mente de Libbie.


Ao seu último discurso, Libbie respondeu dolorosamente:


— Sem dúvida, Anne! O tempo cura as mágoas e as dores! Oh! Não pense que ele fora um fardo, embora fosse aleijado! Ela o amava ainda mais, em cada coisa que ela tinha que fazer por ele. Tenho certeza sobre o que falo! — Libbie chorou um pouco atrás de seu avental.


Anne Dixon se sentiu ainda mais constrangida ao introduzir o assunto discordante.


— Bem! Você não deve continuar a se lamentar, Libbie Marsh! O motivo para te chamar aqui com urgência é que quero dizer que você deve ir ao meu casamento amanhã. A babá Dawson adoeceu e não há nenhuma mulher que eu confie para ter a honra de ser minha dama de honra, no lugar da babá. Pensei em você.


— Amanhã! Oh! Não posso! Realmente não posso!


— Por que não?


Libbie não respondeu, e Anne Dixon ficou impaciente.


— Certamente, para o bem comum, você não deve deixar de sorrir devido a um pequeno aleijado que morreu e se foi!


— Não! Por favor, não fique zangada, Anne Dixon! Penso que não seria um prazer estar em uma festa, um dia depois de um funeral. Não me sinto como se pudesse desfrutar de tal coisa. Obrigada pelo convite, entretanto, amei muito aquele rapazinho para apenas esquecer dele tão facilmente! Realmente o amei! — ela falou soluçando um pouco. — Não posso esquecê-lo de um dia para o outro e fingir que estou feliz. Porque realmente não estou.


— Por Deus! Que tolice! — exclamou Anne raivosa.


— Perdão! Você e Bob têm meus melhores votos de felicidade. Mesmo que eu fosse a sua festa, meus pensamentos estariam voltados para Franky e sua mãe. E, dizem ser ruim pensar muito naqueles que estão mortos, em um casamento!


— Disparate! Vou correr o risco do azar, então! Afinal de contas, o que é casar? Apenas uma celebração! Bob diz isso. Ele costuma dizer que acredita que não vou ser uma boa esposa, já que, não sei nada sobre assuntos domésticos, porque vivo trabalhando em uma fábrica, entretanto, ele diz que prefere estar desconfortável comigo dessa maneira a ter que viver com uma boa cozinheira, mas infeliz. E em resposta, afirmei que prefiro tê-lo bêbado que qualquer outra pessoa sóbria.


— Oh! Anne Dixon, não fale besteiras! Você não sabe o que é ter um marido bêbado! Já vi algo muito ruim sobre isso! Meu pai costumava beber e depois batia em minha mãe. Vivi muitos anos de dor. Deus, acima de nós, sabe o que a esposa de um homem bêbado tem de suportar. — ponderou Libbie, baixando a voz. — Meu pai matou meu irmãozinho em uma de suas crises, e minha pobre mãe nunca mais conseguiu encarar as pessoas, pela vergonha e tristeza, nem meu pai, porque a vergonha o atingiu também. Por certo, minha mãe alcançou nosso pequeno Jemmie no Céu, por certo, eles estão felizes juntos, e talvez, Franky também está lá. Oh! — choramingou a jovem recuperando sua linha de pensamento. — Nunca diga que uma esposa, cujo marido é dado a beber, terá sorte. Porque ela jamais terá!


— Querida, que pregação! Digo-lhe uma coisa, Libbie, você nasceu para ser uma solteirona! Fique tranquila! Você nunca será casada com um bêbado, muito menos, com um sóbrio!


O rosto da Libbie ficou bastante vermelho, mas sem perder sua expressão mansa, respondeu:


— Sei disso tão bem quanto você pode me dizer. Deus acredita ser conveniente manter-me fora do trabalho natural de uma mulher, porque devo cuidar de mim! Quero dizer... — ela falou, percebendo o olhar intrigado de Anne Dixon. — Sei que nunca terei uma casa própria ou um marido que possa olhar por mim, nem filhos para cuidar quando eles forem pequenos, nem ser cuidada por eles, quando eu envelhecer. Devo apenas cuidar da minha vida. Vejo que muitas pessoas sentem falta disso, do casamento e filhos. Elas se lamentam por serem solteironas, e aceitam qualquer casamento, mesmo que seja infeliz, apenas para afirmar que estão casadas. — Libbie estava quase sem fôlego com a efusão do que há muito tempo estava em seus pensamentos.


— Isso é verdade, não tenho dúvidas, mas não sou solteirona! Vou me casar amanhã! Por favor! Esteja amanhã no meu casamento. Poupe seu fôlego para esfriar seu mingau quando for jantar. O que quero saber é se você será dama de honra ou não! Isso te fará bem! Viveu tanto tempo trabalhando sem descanso e ajudando nos cuidados do menino Franky Hall.


— Não me importo! — disse Libbie, sorrindo, embora seus olhos estivessem cheios de lágrimas. — Querida Anne... — falou ela, recuperando-se. — Não posso ir amanhã!


— Eu não posso esperar! — disse Anne Dixon, quase amuado. — O casamento seria hoje, mas adiamos devido ao maldito funeral. Bob queria se casar no Dia de São Miguel! Mamãe falou que não podemos esperar além de amanhã! Venha! Papai dará a comida, Bob, a bebida, e celebraremos isso alegremente! Depois de irmos à igreja, devemos andar pela cidade aos pares, fitas brancas de cetim em nossos cabelos. Depois do jantar, haverá uma dança. Não seja tola! Você não pode fazer nada de bom se ficar somente se lamentando! Margaret Hall terá que sair para lavar as roupas e trabalhar também!


— Sim, ela deve ir para casa da Senhora Wilkinson, e, aliás, eu também devo ir trabalhar! A Senhora Williams precisa de mim para preparar as roupas de inverno de sua filha. Atrasei as encomendas porque fiquei cuidando de Franky.


— Então, você não será dama de honra? Essa é sua última palavra?


— Exatamente! Espero que não fique brava comigo, Anne Dixon! — suspirou Libbie, depreciativamente.


Mas Anne se foi, sem uma resposta.


Com o coração pesado, Libbie subiu a pequena escadaria, pois sentiu o quanto sua recusa parecia indelicada.


Anne compreendeu pouco os sentimentos que tornaram Libbie incapaz moralmente de aceitar o convite.


Ao abrir a porta, ela viu Margaret Hall, com a Bíblia aberta sobre a mesa diante dela. Pois, ela confundira o lugar onde Libbie estava lendo e, com o dedo debaixo da linha, estava soletrando as palavras de consolo, juntando as sílabas em voz alta, com a mesma ansiedade sincera de compreensão de uma criança ao aprende a ler pela primeira vez.


Então, Libbie tomou a pequena cadeira ao seu lado, antes que Margaret Haal tomasse consciência de que alguém entrara na sala.


— O que ela queria de você? — perguntou Margaret. — Posso adivinhar, ela queria que você estivesse no casamento que vai ser realizado esta semana, falaram eles. Sim! Eles vão se casar, rir e dançar, tudo como se meu filho estivesse vivo! — disse ela, amargamente. — Bem, ele não era nem um parente deles, então, tento ser grata pelo que você fez por ele, e não pergunto se você o esqueceu antes que ele esteja bem instalado em seu túmulo!


— Não posso esquecê-lo e não vou ao casamento! — afirmou Libbie, pois, ela entendeu o ciúme da mãe sobre as reivindicações de seu filho morto. — Devo ir trabalhar na Senhora Williams amanhã! — explicou, porque não estava disposta a vangloriar-se de sua terna e carinhosa lamentação, que fora seu principal motivo para declinar o convite de Anne.


— Vou lavar as roupas, como se nada tivesse acontecido! — suspirou a Senhora Hall. — Volto para casa, à noite, e encontrarei o lugar dele vazio. Vou ter a certeza de ouvir sua voz antes de subir as escadas. E, lentamente, aprenderei que ninguém mais me chamará de mãe. — ela caiu chorando, e Libbie não pôde falar porque também chorava, em silêncio.


Durante o silêncio, ela colocou em ordem os pensamentos que ela estavam acumulados há muitos dias, e quando Margaret estava novamente calma em sua tristeza, Libbie falou:


— Senhora Hall, gostaria de pedir que me deixasse morar com a senhora!


Margaret Hall olhou para cima com uma luz repentina em seu semblante, o que encorajou a Libbie a continuar.


— Posso pagar a minha parte. E podemos confortar a dor uma da outra.


Ela fez menção de continuar, mas a Senhora Hall a interrompeu.


— Oh! Libbie Marsh! Você realmente pensou em vir morar comigo? Eu ficaria grata, mas não! Você não tem noção do que sou. Às vezes, sou uma criatura louca quando estou com raiva. Pareço sair da cama do lado errado, e desconto a minha raiva na primeira pessoa que encontro. Porque, Libbie... — continuou ela, com um olhar triste de agonia no rosto. — Eu costumava brigar com ele, mesmo tão doente, pobrezinho! Você não deve sofrer com meu temperamento! Agora devo viver sozinha! — afundando sua voz no tom baixo de desespero.


Mas a resolução da Libbie foi corajosa e forte.


— Não tenho medo! — sorriu. — A conheço melhor que você mesma, Senhora Hall. Já a vi tentar fazer pouco barulho, quando estava fervendo de raiva, e acredito que vai continuar fazendo isso. De qualquer forma, quando você tiver seu ataque, estarei aqui e posso te ajudar. Deixe-me ficar aqui. Acho que Franky gostaria que nos mantivéssemos juntas.


— O problema está em mim! Farei a sua vida miserável com meu temperamento, ou, sabe-se lá Deus, como meu coração se agarrará a você! Você e eu estamos sozinhas no mundo, pois, ambas amamos nosso pequeno que está morto, e que não tinha mais ninguém para amá-lo. Se você vai viver comigo, Libbie, vou tentar, como nunca fiz antes, ser gentil e calma. Oh! Libbie Marsh!


Então, do pequeno túmulo surgiu uma esperança e uma resolução de que a vida seguiria.


Quando Elizabeth Marsh voltou para casa, na noite seguinte de seu dia de trabalho, a antiga Anne Dixon, que agora tinha nome de casada, atravessou a sala, vestida com sua pomposa roupa de noiva, para tentar induzir Libbie a participar da dança que estava acontecendo na casa de seu pai.


— Querida Anne! Divirta-se! — disse Libbie, beijando-a.


— Embora não possa ficar porque prometi à Senhora Hall estar com ela, pensarei em você, e confio que você ficará feliz. Comprei uma caixa de agulhas para te presentar. Espero que goste!


— Só sei quê... Você gastou todo o seu dinheiro em coisas boas para o pobre Franky. Você é muito boa, Libbie, e vou manter suas agulhas comigo, até o dia em que eu morrer, prometo!


Ver Anne com um humor tão amigável, encorajou Libbie a lhe falar de sua mudança de casa, e a intenção em se alojar doravante com Margaret Hall.


— O que diz? Papai e mamãe são tão afeiçoados a você, como podem ser? Julga ser caro o aluguel? Vou pedir que eles diminuam o valor. Por que Margaret Hall? De todas as pessoas desta cidade, por que ir para aquela mulher? Ela é tão ruim! Antes que seus olhos pisquem, ela brigará com você! Se você ousar ficar em silêncio, ela brigará mesmo assim! Não terá paz na sua vida. Que diabos fez você pensar em tal coisa, Libbie Marsh?


— Ela ficará tão solitária sem mim! — suplicou Libbie. — Tenho certeza que posso ajudá-la, mesmo que ela me repreenda um pouco, às vezes. Não tenho medo dela. Pretendo fazer o meu melhor para não a irritar. Minha presença lhe aliviará o coração, porque, às vezes, ela terá com quem conversar sobre Franky. Muitas vezes, verei seu pai e sua mãe, e sempre agradecerei por sua gentileza para comigo. Mas eles têm você e a pequena Mary, e a pobre Senhora Hall não tem ninguém!


Anne só poderia repetir:


— Bem...


Anne se apressou para contar as novidades para seu pai e sua mãe.


Mas a Libbie estava certa.


Margaret Hail era uma mulher diferente do que as pessoas pensavam, porque ela foi tocada e amaciada pelos dois anjos purificadores: a tristeza e amor.


Era bonito ver seu afeto e reverência por Libbie Marsh.


A falecida mãe de Libbie dificilmente cuidaria dela com mais ternura do que a lavadeira de coração duro.


Libbie tinha tanta paz brilhando em seu semblante, que a tornava bela, pois, ela oferecia agora, os serviços de uma filha à mãe de Franky. Libbie não era mais a desolada órfã solitária, uma estranha na terra.


Você já leu a frase final e moral de uma história?


Nunca leio, mas uma vez, no ano de 1811, penso eu, ouvi falar de uma velha senhora surda, vivendo sozinha.


Ela deixou alguns descendentes com a mesma peculiaridade amável, e colocarei, em benefício deles, o que acredito ser o segredo da paz de espírito da Libbie, a verdadeira razão pela qual ela não se sentia mais oprimida por sua própria solidão no mundo.


Ela tem um propósito na vida, e esse propósito é um desígnio santo.


A Desgraça dos Griffiths

Capítulo I

Sempre me interessei muito pelas tradições que estão espalhadas pelo Norte do País de Gales, em relação a Owen Glendower[57], e compartilho do mesmo sentimento que faz o camponês galês ainda olhar plenamente para este homem, como o herói de seu país.

Houve grande alegria entre muitos dos habitantes do Principado, quando o tema para o poema do prêmio galês em Oxford, cerca de quinze ou dezesseis anos atrás, foi anunciado para ser “Owen Glendwr”.

Era o tema nacional mais pomposo que fora dado durante anos.

Talvez, alguns não estejam cientes que este temido líder é, mesmo que nos dias atuais, tão famoso entre seus compatriotas analfabetos por seus poderes mágicos, quanto por seu patriotismo.

Ele dizia a seguinte citação sobre o seu nascimento:

“No meu nascimento, o céu estava cheio de formas de fogo. De tochas em chamas... Posso titular este fogo sagrado como sendo os espíritos das profundezas da imensidão.”

E poucos, entre as ordens inferiores no Principado, pensariam em fazer a pergunta irreverente de Hotspur[58] em resposta a citação.

Entre outras tradições preservadas em relação a esta parte do caráter heroico do galês, está a antiga profecia familiar que dá título a este conto.

Quando o Senhor David Gam, nascido em Builth e depois se tornado traidor por procurar assassinar Owen em Machynlleth, foi até ele para dar o desfecho final ao herói Owen, ele não esperava que houvesse um sujeito ao seu lado, que Glendwr pouco sonhava em ser associado aos seus inimigos.

Este homem se chamava Rhys ap Gryfydd, seu velho amigo, um parente, mais que irmão, que parecia ser do seu próprio sangue.

O Senhor David Gam seria perdoado, todavia, aquele que ele amara e que o traíra, jamais poderia ser absolvido.

Glendwr sabia ler tão profundamente o coração humano, que era impossível desejar a morte daquele que ele considerava um irmão. Ele o deixou viver, porque aquele homem seria odiado e desprezado por seus compatriotas, e seria a vítima de remorsos amargos.

A marca de Caim[59] estava sobre ele.

No entanto, antes deixa-lo ir, enquanto ainda estava prisioneiro e acobardado diante da consciência de Owen Glendwr, o traidor recebeu uma maldição, pronunciada pela boca daquele líder, que passara uma desgraça sobre ele e seus descendentes:

— Condeno-te a viver, porque sei que rezará pela morte! Viverá para além do termo natural da vida do homem, terá o desprezo de todos os homens bons. As crianças te apontarão com língua de assovio e dirão: Lá vai aquele que desejou derramar o sangue de um irmão. Pois, te amei mais que um irmão! Oh! Rhys ap Gryfydd! Viverá para ver todos de tua casa, exceto aquele que for fraco de braços, perecer pela espada. Teus descendentes serão amaldiçoados! Cada geração verá suas terras derreterem como a neve! Suas riquezas desaparecerão, ainda que trabalhem noite e dia para acumular ouro. E, quando nove gerações tiverem passado sobre este solo, o teu sangue não mais fluir nas veias de nenhum ser humano. Neste dia, o último homem de tua raça me vingará! O filho matará o pai!

Este fora o discurso de Owen Glendwr para seu amigo infiel, outrora, de confiança. Assim, foi declarado que a desgraça seria cumprida em cada palavra dita.

Sua raça vive de uma maneira tão miserável, quanto imaginariam os mais pessimistas.

Os Griffiths nunca foram ricos e prósperos, e seus bens, seja por trabalho ou herança, diminuíram sem nenhuma causa visível.

Entretanto, o lapso de muitos anos, tinha quase matado o poder inspirador fantasioso que toda maldição carrega consigo.

A maldição ainda arrastava com ela os ramos distorcidos da memória, quando algum evento incômodo acontecia à família Griffith. E, na oitava geração, a fé na profecia foi quase destruída, após o casamento de um dos Griffiths com uma senhorita Owen, que, inesperadamente, pela morte de um irmão, tornou-se uma herdeira, em nenhuma quantidade considerável, contudo, o suficiente para fazer a profecia parecer invertida.

A herdeira e seu marido, foram retirados de sua pequena propriedade patrimonial, no condado de Merioneth[60], para cuidar de sua herança no condado de Caernarvon[61], e por um tempo a profecia ficou adormecida.

Caernarvon ficava longe dali, o caminho era longo, que se seguia para quem caminhava de Tremadoc até Criccaeth, passando pela igreja paroquial de Ynysynhanarn, situada em um vale pantanoso que se estendia desde as montanhas, subindo para os Rivals, até a Baía de Cardigan.

Este trecho de terra tinha toda a aparência de não ser usado por muito tempo. Era um vasto deserto até o mar, e tinha toda a escuridão desolada, que muitas vezes acompanha os pântanos. Entretanto, o vale ao longe, de caráter semelhante, tinha ainda mais escuridão na época da qual escrevo.

Na parte mais alta, havia grandes plantações de abetos[62], colocados muito perto uns dos outros para atingir qualquer tamanho, e assim, permanecendo atrofiados em altura e com aparência de mato baixo.

De fato, muitas das menores e mais fracas árvores morreram, e suas cascas caíram sobre o solo marrom negligenciado, sem cuidado. Estas árvores tinham uma aparência horripilante, com seus troncos brancos, vistos pela luz fraca que se debatia através dos ramos grossos dos abetos.

Mais perto do mar, o vale assumiu um caráter mais acessível, mesmo que, dificilmente pudesse ser mais alegre, pelo contrário, parecia tenebroso e salpicado pela névoa do mar durante a maior parte do ano, e até mesmo uma casa de fazenda, que geralmente transmite algo de alegria para uma paisagem, não se tornaria feliz ali.

Este vale formou a maior parte da propriedade à qual Owen Griffiths passou a ter direito por ser a sua esposa.

Na parte mais alta do vale estava situada a mansão da família, ou melhor, a casa modesta, porque mansão é uma palavra grandiosa demais para ser aplicada a desajeitada, mas substancialmente construída, casa.

A moradia era quadrada, de aspecto rude, que abraçada por mato, parecia mera casa de campo.

Nesta residência, a Senhora Owen Griffiths deu à luz a dois meninos: Llewellyn, o futuro Escudeiro, e Robert, que se destinava desde cedo à Igreja.

A única diferença em sua situação era que Robert entrou no Jesus College[63].

Llewellyn derramava indulgências em todos à sua volta, enquanto, Robert era frustrado, e, só era indulgente quando sentia vontade. Llewellyn nunca aprendera nada com o pobre pastor galês, que era nominalmente seu tutor particular, enquanto ocasionalmente, o Escudeiro Griffiths fazia questão de impor a diligência de Robert, dizendo-lhe que:

— Como ele tinha seu pão para ganhar, ele deveria prestar atenção ao seu aprendizado.

Não se sabe até onde a educação muito irregular que ele recebeu levara Robert até os seus exames universitários, contudo, felizmente, antes de tal julgamento sobre o seu aprendizado, ele foi comunicado sobre a morte de seu irmão mais velho, após uma curta doença provocada por uma dura bebedeira.

É claro que Robert foi chamado para casa, e ele acreditava que não havia necessidade de ganhar seu pão com seu aprendizado, portanto, ele não retornaria para Oxford.

Assim, o jovem que não completara seus estudos, todavia, porque isso não atestava falta de inteligência, continuou em casa, durante o curto resto de vida de seus pais.

Seu caráter não era incomum.

Ele era brando, indiferente, contudo, uma vez completamente despertada, suas paixões eram fortes e temerosas. Ele parecia, de fato, ter medo de si, e dificilmente ousava dar lugar à raiva justificável, porque temia perder seu autocontrole.

Se ele fosse educado corretamente, provavelmente teria se distinguido naqueles ramos da literatura que exigem gosto e imaginação, ao invés de qualquer exercício de reflexão ou julgamento.

Seu gosto literário se mostrou ao fazer coleções de antiguidades cambrianas de todas as variantes possíveis, porque seu estoque de livros galeses estimularia a inveja do Doutor Pugh, se ele estivesse vivo na época da qual escrevo.

Há uma característica de Robert Griffiths que omiti, e que era peculiar entre sua classe. Ele não gostava de beber.

Havia dois motivos para isso, ou a sua cabeça era naturalmente afetada se ingerisse qualquer bebida alcoólica, ou, seu desdenho por bebidas surgia de seu gosto parcialmente refinado, que o levava a não gostar das circunstâncias que acompanham um copo de vinho.

Aos vinte e cinco anos, Robert Griffiths era habitualmente sóbrio, uma coisa rara em Llyn, e muitos o evitavam, por ser considerado insociável, e usava boa parte do seu tempo com a solidão.

Por esta época, ele teve que aparecer como testemunha, em um caso que foi julgado nos assentos da corte de Caernarvon, e enquanto lá, ficou hospedado na casa de um sagaz e sensato advogado galês, que tinha uma filha, com encantos suficientes para cativar Robert Griffiths ao primeiro olhar.

Embora ele permanecera apenas alguns dias na casa, estes tais dias foram suficientes para decidir o que ele sentia, e curto foi o período permitido para que ele levasse a jovem para a sua casa.

A nova Senhora Griffiths era uma pessoa gentil, dedicada e cheia de amor para com o seu marido. Ela o admirava e o respeitava. Primeiro, devido à diferença de idade, e depois, porque ele dedicava muito tempo aos estudos, dos quais ela não conseguia entender nada.

Ela logo fez dele o pai de uma filhinha adorável, chamada Augharad.

Depois de vários anos sem incidentes na sua casa em Bodowen[64], e quando as mulheres idosas declararam que o berço não voltaria a balançar, a Senhora Griffiths deu à luz ao filho herdeiro.

Seu nascimento foi logo seguido pela morte de sua mãe, ela estava doente e pouco animada durante sua gravidez, e parecia não ter mais forças para reestabelecer a sua energia vital novamente.

Seu marido, que a amava ainda mais por ter poucas outras reivindicações sobre seus afetos, estava profundamente entristecido com sua morte prematura, e seu único consolador era o doce menino que ela deixara nos braços do pai.

Aquela parte do caráter do Escudeiro, que era tão terno e quase feminino, parecia ser chamada pela situação indefesa do pequeno menino, que estendeu seus braços para seu pai, com o mesmo desejo sincero que as crianças mais felizes agem diante de suas mães.

Augharad foi quase negligenciada, enquanto o pequeno Owen era o rei da casa. Mesmo com o pai o tempo todo ao seu lado, ninguém cuidava do pequeno menino tão amorosamente como a sua irmã. Ela estava tão acostumada a dar lugar a ele e não ser cuidada, que não era mais uma dificuldade ser deixada de lado.

De noite e de dia, Owen era o companheiro constante de seu pai, e os anos crescentes pareciam apenas confirmar o costume.

Era uma vida antinatural para a criança, não vendo nenhum rostinho brilhante olhando para o seu, visto que, Augharad era, como disse antes, cinco ou seis anos mais velha, e seu rosto de pobre menina sem mãe, era muitas vezes tudo, menos brilhante.

O pequeno não tinha contato com outras crianças e vivia apenas no mundo dos adultos.

Dia após dia, ele compartilhava as horas da mesma maneira solitária que seu pai, seja no quarto escuro cercado por antiguidades mágicas, ou remendando suas botas para acompanhar os passos do pai em seus devaneios nas montanhas, ou em excursões de caça.

Quando eles chegaram a um pequeno riacho, onde os degraus eram largos e distantes, o pai carregou seu filhinho com o mais carinhoso cuidado, e quando o menino estava exausto, eles descansavam. O menino colocava-se nos braços do pai, e ele o levantava para a sua casa novamente.

O rapaz era tolerante, já que, seu pai tinha o desejo em compartilhar suas refeições e manter as horas, em uma rotina que não podia ser quebrada. Esta indulgência não tornava Owen incapaz de ser amado, entretanto, o tornava voluntarioso, e não uma criança feliz.

Ele tinha um olhar atencioso, não comum ao rosto de um jovem garoto.

O menino Owen não conhecia nenhum jogo ou esporte alegre, e suas informações eram de caráter imaginativo e especulativo. Seu pai se deleitava em introduzi-lo em seus estudos, sem considerar até que ponto eles eram saudáveis para uma mente tão jovem.

É claro que o Escudeiro Griffiths não desconhecia a profecia que deveria ser cumprida em sua geração. Ele se referia a ela ocasionalmente, quando entre seus amigos, com imprudência cética, mas, na verdade, a crença estava mais perto de seu coração do que ele escolhera reconhecer.

Sua forte imaginação o tornava peculiarmente impressionado por tais assuntos, enquanto seu julgamento, raramente exercido ou fortificado por um pensamento severo, não podia impedir que ele voltasse a pensar sobre isso continuamente.

Ele costumava olhar para o estilo quase Górdio[65] da criança que se sentava, olhando para seu rosto, com seus grandes olhos escuros, tão carinhosos, entretanto, tão inquisidores.

A velha lenda abraçou seu coração, e se tornou muito dolorosa para que ele fingisse não perceber.

Além disso, o amor avassalador que ele carregava por sua criança, parecia exigir um desabafo mais pleno do que palavras ternas, e isso fez com que ele gostasse, ainda que temeroso, de traçar o destino que contrastasse a profecia.

O escudeiro Griffiths contou a lenda, de forma superficial ao seu filhinho, quando caminhavam pela relva, nos dias de outono, a época mais triste do ano, e também enquanto estavam sentados, na sala coberta de carvalho, rodeados de relíquias misteriosas, que brilhavam estranhamente pela luz cintilante do fogo.

A lenda foi introduzida na mente do menino, e ele desejava ouvi-la, ainda que a temesse, uma e outra vez.

Seu pai contava a lenda, vez ou outra, enquanto as palavras eram misturadas com carícias e perguntas.

Ocasionalmente, suas palavras e ações amorosas eram cortadas pela voz de seu pai, com o discurso amargo:

— Afasta-te! O amor não nos pode livrar de todo o mal.

Quando Augharad tinha dezessete anos e Owen onze ou doze, o reitor, da paróquia de Bodowen, tentou convencer o Escudeiro Griffiths para mandar o menino à escola.

Este reitor tinha muitas aspirações, e através de repetidos argumentos, ele conseguiu convencer o Escudeiro de que a vida antinatural que Owen levava era, em todos os sentidos, prejudicial.

Sem querer, o pai foi obrigado a se separar de seu filho, contudo, ele o enviou para a Escola Gramática em Bangor, sob a direção de um excelente clérigo.

Lá, Owen mostrou ter mais talentos do que o reitor deu crédito, quando o tirou da vida simples que levava em Bodowen.

Ele se mostrou justo nos afazeres escolares, no peculiar ramo de aprendizado pelo qual a escola era famosa. Mas, ele não era popular entre seus colegas de estudo. Ele era, no entanto, caprichoso, generoso, altruísta, reservado, mas gentil, exceto, quando as tremendas explosões de paixão, de caráter semelhante às de seu pai, forçavam o seu caminho.

No seu retorno para casa, na época de Natal, quando estava há cerca de um ano em Bangor, ele ficou atônito ao saber que a desvalorizada Augharad estava prestes a se casar com um cavalheiro do País de Gales, que residia perto de Aberystwith.

Naquela região, os meninos raramente apreciavam suas irmãs, mas, Owen pensou nas numerosas horas das quais ele solicitara a paciente Augharad.

Seu sentimento verbalizou amargas lamentações, e mesmo tentando controlar suas palavras, ele continuou expressando ao seu pai a sua grande indignação, até que o Escudeiro ficou completamente magoado e desgostoso com as repetidas exclamações de:

— O que vamos fazer quando Augharad se for?

— Quem cuidará de nós, quando Augharad se casar?

As férias de Owen foram prolongadas por algumas semanas, para que ele pudesse estar presente no casamento da pobre irmã, e quando todas as festividades terminaram e os noivos deixaram Bodowen, o rapaz e seu pai realmente perceberam o quanto a calma e amorosa Augharad fazia falta naquela casa.

Ela, por mais silenciosa que fosse, era a pessoa que realmente agia para o bem comum. Sempre disposta a pensar no conforto diário de todos, e agora que ela partira, e a casa parecia sentir falta do espírito, que pacificamente a mantinha em ordem.

Os criados caminhavam em busca de comandos e instruções, os quartos não tinham mais a ordem discreta de estilo para torná-los alegres, e dentro das lareiras, as madeiras queimavam, mas seu fogo parecia menos brilhante, e estavam sempre afundando em montes de cinzas acinzentadas.

Owen não se arrependeu de seu retorno à escola em Bangor, e isso também foi percebido pelo pai mortificado.

O Escudeiro Griffiths era um pai egoísta, realmente.

As cartas naqueles dias eram uma ocorrência rara.

Owen geralmente recebia uma carta durante suas ausências semestrais, e ocasionalmente seu pai lhe fazia uma visita.

Naquele semestre o rapaz não teve nenhuma visita, nem mesmo uma carta, e muito perto do momento de sua saída da escola para tomar seu descanso em sua casa, ele recebera uma carta sobre que seu pai casara.

Depois disso, veio um de seus impulsos de raiva, o mais desastroso em efeitos sobre seu caráter, porque, não encontrou nenhuma forma de desabafo.

Independentemente da lembrança da primeira esposa, que os filhos são tão aptos a imaginar, Owen tinha até então considerado a si, e com justiça, a pessoa mais importante na vida de seu pai.

Eles eram muito importantes um para o outro, e agora, um aviso, em uma carta de poucas palavras, que parecia fantasiosa demais, estava escrevendo o destino dos dois.

Ele sentia que o certo era que o seu pai pedisse a sua permissão, porque devia ser consultado antes de qualquer escolha do pai. Certamente, ele deveria ser informado sobre o evento pretendido pelo pai muito antes, e não em uma carta enviada às pressas.

O Escudeiro sentiu a amargura do filho por sua carta, que aumentara tanto a angústia de Owen.

Mesmo com toda essa raiva, quando Owen viu sua madrasta, ele ficou encantado, uma vez que ela era uma mulher muito bonita para a sua idade, mesmo que ela não estivesse na flor da juventude.

Ela era recém-viúva, quando seu pai se casou com ela.

Os modos dela, para o jovem galês, que vira pouca graça feminina entre as famílias dos poucos amigos com quem seu pai fazia raras visitas, eram tão fascinantes, que ele a observava com uma espécie de admiração sem fôlego.

Sua graça medida, seus movimentos impecáveis, seu tom de voz doce... Até que o ouvido dele foi saciado com sua doçura, e fez Owen ficar menos zangado com o casamento de seu pai.

Entretanto, ele sentiu que a nuvem estava entre ele e seu pai, que ele ainda não conseguia esquecer a tal carta que não pedia o consentimento e apenas confirmava o feito, sem nenhuma alusão a ele.

Ele já não era mais o confidente de seu pai, nem o único companheiro dele, já que a esposa recém-casada era tudo para o Escudeiro, e seu filho se sentia quase um escravo, que servia de mensageiro, em raras oportunidades.

A esposa do pai sempre teve a mais branda consideração por seu enteado, e quase exageradamente intrusiva era a atenção dela para com ele, mas ainda assim, ele imaginava que o coração do pai não tinha mais espaço para ele.

Havia um olhar atento que Owen, uma ou duas vezes, captou sem ser observado, em muitas pequenas circunstâncias sem nome, que prevalecia o sentimento de falta de sinceridade em sua madrasta.

A Senhora Owen trouxe com ela para a nova família, seu pequeno filho, fruto de seu primeiro casamento, um menino de quase três anos, que parecia um daqueles duendes observadores, zombadores, sobre cujos sentimentos você parece não ter controle.

Ele era ágil e mal-intencionado, suas pequenas brincadeiras que no princípio, realizadas na ignorância da dor que ele causava, tomavam um prazer malicioso no sofrimento depois de um tempo, e realmente parecia dar algum fundamento à noção supersticiosa de que algumas pessoas podiam ser possuídas por espíritos malignos.

Os anos se passaram, e à medida que Owen foi envelhecendo, ele se tornou mais observador.

Ele viu, em suas visitas semestrais, pois, da escola ele passara para a faculdade, que uma grande mudança ocorrera nas manifestações externas do caráter de seu pai, por isso, Owen acreditou que esta mudança era uma influência de sua madrasta.

Uma influência tão imperceptível para o observador comum, mas tão irrequieta em seus efeitos.

O Escudeiro Griffiths pegou as opiniões discretas de sua esposa e, sem se dar conta, as adotou como suas, desafiando todos os argumentos e oposição.

O mesmo ocorreu com seus desejos. Eles encontraram sua realização a partir da arte extrema e delicada com que ela os insinuou na mente de seu marido, como se fossem seus.

Ela tomou o poder sobre as coisas.

Finalmente, Owen percebeu alguns atos opressivos na conduta de seu pai em relação aos seus dependentes, e frustração irresponsável de seus próprios desejos.

Ele entendeu, de fato, a influência secreta de sua madrasta, agora bem delineada diante de seus olhos, por mais que ela fingisse lamentar a injustiça das ações de seu pai em suas conversas com ele, quando estavam sozinhos.

Seu pai estava perdendo rapidamente a sua personalidade e adotando o da esposa, e o homem que não gostava de beber, volta e meia se deixava embriagar.

Estava ali o feitiço de sua esposa sobre ele.

Enquanto isso, a situação de Owen tornou-se peculiarmente mortificada para um jovem, cujas primeiras lembranças permitiam um contraste tão grande com seu estado atual.

Quando criança, ele fora elevado à sequela de um homem, antes de seus anos darem qualquer controle mental ao egoísmo que tal conduta provavelmente geraria.

Ele podia lembrar quando sua vontade era lei para os criados e dependentes, e sua simpatia necessária para com seu pai, mas, agora, ele era como um mensageiro na casa de seu pai.

O Escudeiro, afastado em primeira instância, por um sentimento de estrago que ele fizera ao seu filho por não pedir a sua ajuda antes do casamento, parecia evitar o rapaz, ao invés de buscá-lo como um companheiro, e mostrava com muita frequência, a mais absoluta indiferença aos sentimentos e desejos de um jovem com espírito elevado e independente.

Talvez, Owen não estivesse plenamente consciente da força de todas essas circunstâncias, uma vez que, um ator em um drama familiar raramente é o melhor observador.

Ele se tornou mal-humorado e abatido, choramingando sobre sua existência não amada, e ansiava que seu coração humano fosse cuidado.

Este sentimento o tomou a mente, quando ele deixou a faculdade e voltou para casa definitivamente, levando uma vida ociosa e sem propósito.

Como herdeiro, não havia necessidade de esforço, porque seu pai era um homem de certa posse, e ele não tinha força de espírito suficiente para decidir imediatamente abandonar um lugar e um modo de vida, para se aventurar em campo desconhecido.

No entanto, durante estes pensamentos que se desdobravam na ânsia de buscar trabalho e se distanciar definitivamente de seu pai, acontecimentos o seguraram em Bodowen.

Não se esperava que a harmonia fosse preservada por muito tempo, mesmo na aparência, entre um jovem desprotegido e sofredor, como Owen, que deixara a faculdade, e vindo, não como visitante, mas como herdeiro da casa de seu pai, e sua madrasta cautelosa e astuta.

Ocorreu que a mulher subjugou sua raiva oculta, e se convenceu de que Owen não era inteiramente o idiota que ela acreditava que ele fosse.

Daí em diante, não houve paz entre eles.

Não em vulgares discussões isso se mostrou, mas em reservas de humor da parte de Owen, e em perseguição disfarçada e desdenhosa por parte de sua madrasta.

Bodowen não era mais um lugar onde, se Owen não fosse amado ou atendido, ele poderia ao menos encontrar paz e cuidar de si.

Ele caminhava frustrado a cada passo, desejando que seu pai fosse o que era antes, enquanto a esposa dele ficava sentada o observando, com um sorriso de triunfo em seus belos lábios.

Assim, Owen saía de madrugada, às vezes, vagando pela costa ou montanha, atirando ou pescando, dependendo da estação do ano, e frequentemente ele deitava sobre a grama entregando-se aos devaneios sombrios e mórbidos.

Ele imaginava que este estado mortificado de existência era um sonho horrível, e ele acordaria e encontraria novamente o único que ele amava, seu pai.

Sendo assim, ele deveria se esforçar para ajudá-lo.

O pôr do sol derretia de sua memória infantil, as lindas pilhas carmesins de glória no oeste, desvanecendo-se na fria luz calma da lua crescente, enquanto aqui e ali, uma nuvem flutuava através do céu ocidental, como a asa de um serafim em sua beleza flamejante.

A terra era a mesma dos dias de sua infância, cheia de som suave à noite, abraçada com a harmonia do crepúsculo. O mesmo vento, que soprando a brisa, vinha abaixando as urzes e os sinos azuis ao seu lado, e a grama exalava seu perfume noturno, mas a vida, o coração e a esperança foram mudados para sempre...

Ali, ele se sentava por horas, olhando ociosamente para a baía abaixo, com as colinas roxas ao fundo, e a pequena vara de pescar próxima ao seu peito, sendo tocada pelo raio de sol tímido, que deslizava em harmonia com a beleza tranquila do mar vítreo.

Ele se lembrava da época escolar, de seu companheiro durante anos, e em mórbida concordância com a lenda sombria que ainda espreitava nos recessos de sua mente.

Uma forma de escuridão, semelhante às assombrações mais íntimas, se escondia dentro dele. Ele se voltava para os velhos dramas gregos que tratavam de uma família abandonada por um destino vingador.

A página desgastada se abriu em sua mente, da peça de teatro do Édipo Tirano[66], e Owen habitou-se com a tal peça de teatro, tão parecida com a profecia que o preocupava.

Com sua consciência da negligência paterna, houve uma espécie de autoflagelação na consequência que a lenda lhe deu.

Ele se perguntava se era ele, o filho que mataria o pai.

Os dias foram passando.

Muitas vezes, ele perseguia com veemência algum esporte silvestre, até que o pensamento e o sentimento se perdessem na violência do esforço corporal.

Ocasionalmente, suas noites eram passadas em uma pequena pousada, à margem do caminho de sua caçada, onde ele era acolhido calorosamente, embora pagasse pela noite de sono naquele lugar, ainda assim, era mais amorosa e parecia contrastar fortemente com a negligência sombria de um lar que não era um lar realmente.

Uma noite, quando Owen tinha seus vinte e cinco anos, cansado, após um dia de caça sobre os mouros Clenneny, ele passou pela porta aberta do “The Goat”, um estabelecimento que vendia refeições e dava pousada para os viajantes que passavam por Pen-Morfa.

A luz e o ânimo do lugar o convidavam, mesmo exausto.

Ele pegou um lugar para se sentar e pediu a sua janta, onde, pelo menos, sua presença não era repelida.

Era o fim de um dia movimentado naquele pequeno albergue. Um rebanho de ovelhas, que somava algumas centenas, passara por Pen-Morfa, em seu caminho para a Inglaterra, e teve que parar para um descanso, lotando o espaço diante do estabelecimento.

Lá dentro, estava a astuta e bondosa anfitriã, que caminhava de um lado para o outro, com alegres saudações para cada pastor fatigado, que iria pernoitar em seu albergue, enquanto as ovelhas eram colocadas em um campo cercado, próximo da pousada.

Ocasionalmente, ela ia atender a segunda sala de convidados, que estavam ali, celebrando um casamento campestre.

Martha Thomas estava muito ocupada, entretanto, seu sorriso não passava despercebido, e quando Owen Griffiths terminou sua refeição, ela estava lá, em sua frente, para convidá-lo a assistir à festa, visto como, era a hora da dança e o harpista era o famoso Edward de Corwen.

Owen, devido ao cumprimento do desejo implícito de sua anfitriã, e por curiosidade, se debruçou sobre a passagem que levava à cozinha, não a cozinha do trabalho e da comida, mas, uma sala de bom tamanho, onde os senhores se sentavam após o dia de trabalho duro, e as pessoas do campo se divertiam, saboreando a comida e a boa música.

Os batentes da porta formavam uma moldura para o quadro animado que Owen observava diante de si, enquanto se encostava à parede.

A luz vermelha da fogueira, por vezes, tinha um pedaço de casca da madeira caindo e assim, enviando um jovem ânimo para uma nova chama brilhar diante de quatro jovens que dançavam como um carretel escocês[67], mantendo um compasso admirável em seus movimentos rápidos e ritmados, com a melodia da capital, que o harpista estava tocando.

Eles tinham seus chapéus vestidos, quando Owen tomou sua posição de convidado pela primeira vez, no entanto, à medida que ficavam mais e mais animados, eles jogavam seus chapéus fora, e logo seus sapatos eram lançados também, com o desrespeito ao local onde eles estavam dançando.

Gritos e aplausos seguiram o notável esforço de agilidade nos movimentos, no qual, cada um parecia tentar superar o seu companheiro.

Lentamente, cansados e exaustos, eles se sentaram, e o harpista gradualmente transformou a música rápida em um daqueles ares nacionais inspiradores calmos, pelos quais, ele era tão famoso.

O público sentou-se sério e sem fôlego, e você ouviria um alfinete cair, exceto quando alguma donzela passara apressadamente, com a vela acesa e o olhar ocupado, para a verdadeira cozinha, além do salão.

Quando o harpista terminou de tocar a bela canção A Marcha dos Homens de Harlech[68], ele começou a tocar a Tri Chant O' Bunnan[69], e imediatamente um homem de aparência não musical começou a cantar Pennillion[70], com as famosas estrofes recitativas, que logo foram retomadas por outro, e este divertimento durou tanto, que Owen se cansou.

Quando estava pensando em se retirar de seu lugar, que ficava próximo à porta, seus olhos miraram a outra porta, no lado oposto da sala. Ali, um homem de meia-idade e uma jovem, aparentemente sua filha, entraram.

O homem avançou para o banco ocupado por dois idosos da festa, que o receberam com a habitual saudação galesa:

“Como está o seu coração?” e bebendo sua saúde, entregaram para ele um cálice de excelente cerveja.

A garota, evidentemente uma beldade da aldeia, foi calorosamente saudada pelos jovens, ao mesmo tempo, em que as meninas a olharam com um olhar meio ciumento.

Owen também não pode evitar a sua extrema beleza.

Como a maioria das mulheres galesas, ela era de tamanho médio quanto à altura, contudo, lindamente feita. Seu corpo tinham traços redondos delicados em proporções bem apropriadas. Seu pequeno gorro foi cuidadosamente ajustado em sua cabeça, modelando o seu rosto, também redondo, com uma pequena tendência à forma oval, com bochechas rosadas, apesar de um pouco oleosa na aparência, com covinhas nas bochechas e no queixo, e os lábios, os mais escarlates que Owen já vira, muito curtos para se encontrar sobre os pequenos dentes perolados. O nariz era a característica mais defeituosa, se assim podia se afirmar, no entanto, os olhos eram esplêndidos, longos e brilhantes, sob sua grossa franja de cílios! O cabelo acastanhado era cuidadosamente trançado, que descia pelos ombros e deitava sobre as delicadas rendas de sua roupa. Era evidente que ela sabia ser realmente bela e aproveitava ao máximo todas as suas qualidades, pois, as cores alegres que eram exibidas em seu lenço de pescoço, estavam em completa harmonia com a tez.

Owen estava muito atraído e logo o evidente flerte a garota aceitou dele, e fora coletado ao seu redor pelo conjunto de jovens que pretendiam o mesmo, que ainda seguravam a esperança em cada discurso alegre ou sorriso despretensioso da garota.

Em poucos minutos, o jovem Griffiths de Bodowen estava ao seu lado, levado até ela por uma variedade de motivos ociosos, e como a atenção da jovem foi dada ao herdeiro galês, seus admiradores, um a um, foram se afastando, procurando outras jovens no salão, talvez menos fascinantes, no entanto, mais atenciosas ao galanteio.

Quanto mais Owen conversava com a garota, mais ele era levado por seu encanto.

Ela tinha mais inteligência e talento do que ele imaginava ser possível. Uma jovem modesta e atenciosa, cheia de atrativos, de voz clara e doce, com ações tão cheias de graça, que Owen ficou fascinado antes que ele percebesse bem o que estava fazendo, e continuou olhando para seu rosto brilhante e corado, até que seus olhos iluminados caíram sob seu olhar sincero.

Enquanto o silêncio pairava sobre eles, dela, pela confusão do calor inesperado da admiração de Owen, e dele, pela inconsciência de tudo, menos das belas mudanças em seu semblante flexionado, o homem que Owen entendeu ser o pai da bela moça, veio e dirigiu alguma observação a sua filha.

Ele chamou Owen para uma conversa respeitosa, afirmando que ele ficaria feliz em ver Owen cortejando a sua filha.

Enquanto Owen escutava, sua atenção não era tão absorvida, porque ele observava que a sua garota estava recusando uma ou duas pessoas, que se esforçavam para tirá-la de seu lugar através de convites para dançar.

Lisonjeado pelas recusas dela, ele novamente direcionou toda a sua atenção para ela, até que a garota foi chamada por seu pai, que estava deixando o local da festa.

Antes de partir, ele lembrou Owen de sua fala, e acrescentou:

— Talvez, você não me conheça! Meu nome é Ellis Pritchard, e vivo em Ty Glas, do lado de Moel Gêst, qualquer um pode apontar para você o lugar. Sabe o que digo.

Quando o pai e a filha partiram, Owen preparou-se lentamente para seu retorno à sua casa, mas encontrando a anfitriã, ele não resistiu, e fez algumas perguntas sobre Ellis Pritchard e sua linda filha. Ela respondeu breve, mas respeitosamente, e depois disse, um pouco hesitantemente:

— Senhor Griffiths, você conhece a tríade? Três coisas são parecidas: um celeiro fino sem milho, um copo fino sem bebida, uma mulher fina sem sua reputação.

Ela se despediu apressadamente, e Owen cavalgou lentamente até sua infeliz casa.

Ellis Pritchard, agricultor e pescador, era astuto, perspicaz, que apreciava os prazeres da vida, no entanto, era de boa índole e suficientemente generoso para se tornar um homem bastante popular entre seus iguais. Ele ficara impressionado com a atenção do jovem Escudeiro com sua linda filha, e não cogitava resistir ao cortejo de Nest, sua adorava filha.

Nest não seria a primeira camponesa, que fora levada para uma casa senhorial galesa. Portanto, seu pai tinha astutamente dado ao jovem admirador algum pretexto para novas oportunidades de encontro.

Quanto à própria Nest, ela tinha um pouco da essência do pai, e estava totalmente disposta a aceitar o posto superior de seu novo admirador, e bastante preparada para desprezar todos os seus velhos namorados.

Ela não fora insensível à homenagem sincera e refinada que Owen lhe prestou, e notara seu semblante expressivo e ocasionalmente bonito com entusiasmo, e se sentia lisonjeada por ele diferir de seus pretendentes.

Quanto à fala de Martha Thomas sobre Nest ser muito imatura por não ter mãe, mas, que tinha bom astral, grande amor por todos que se alegravam com o seu sorriso e sua voz.

Nest gostava muito de flertar e foi ao extremo de um namoro galês respeitoso, até que os idosos da aldeia balançaram a cabeça e advertiram suas filhas sobre o comportamento de Nest. Se não fosse absolutamente culpada, ela estava frequentemente à beira da culpa.

Martha Thomas causou pouca impressão em Owen, dado que seus sentidos estavam ocupados de outra maneira, e em poucos dias, a lembrança disso morrera por completo, e em um dia quente e glorioso de verão, ele se inclinou para Ellis Pritchard com um coração palpitante, visto que, exceto alguns flertes muito leves em Oxford, Owen nunca tocara a jovem. Ele só podia imaginar por seus pensamentos e desejos o toque de sua delicada mão.

Ty Glas, local onde Nest e o pai moravam, foi construído contra uma das rochas inferiores de Moel Gêst.

Os materiais do chalé eram as pedras que caíram de cima, rebocadas rudemente juntas, com rebaixos profundos para as pequenas janelas alongadas. O exterior era muito mais rudimentar do que Owen esperava, entretanto, por dentro, parecia não faltar conforto.

A casa foi dividida em dois cômodos, um grande, espaçoso e escuro, no qual Owen entrou imediatamente, considerando aquilo uma sala, e antes que Nest, com seu rosto corado tocasse a outra sala interna, ele olhara ao seu redor, e notara os vários detalhes da sala. A jovem logo apareceria diante dele, porque ela avistara o jovem Escudeiro chegando, e se precipitou para trocar o seu vestido.

Sob a janela, que tinha uma vista magnífica, havia uma cômoda de carvalho, repleta de gavetas e brilhantemente polida com uma rica cor escura. Na parte mais distante da sala, que Owen podia, a princípio, distinguir pouco, entrava a luz do sol, e logo observou duas camas de carvalho, feitas à maneira dos galeses, construída por Ellis Pritchard com sua habilidade ímpar.

Havia uma grande roda de tear usada para girar lã, deixada em pé no chão, como se estivesse em uso apenas alguns minutos antes, e ao redor da ampla chaminé, pendiam pedaços de toucinho, carne seca de cordeiro e peixe, que estava em processo de defumação para o inverno.

Antes que Nest ousasse entrar, seu pai, que estava remendando suas redes lá embaixo, e viu Owen se aproximando da casa, entrou e lhe deu uma recepção calorosa e respeitosa, e então, Nest, com semblante rosado, se aproximou.

Para Owen, a reserva e timidez de Nest lhe deram novos encantos.

Tudo ali era muito brilhante, mas ele não pensava em nada além de Nest.

Owen ficou encantado em aceitar um convite para compartilhar a refeição do meio-dia.

Um pouco de queijo de ovelha, muito duro e seco, bolo de aveia, fatias de carne seca de cordeiro grelhada, após ser previamente embebida em água por alguns minutos, manteiga deliciosa e leite fresco, e um licor chamado diod griafol, feito das sementes da aucuparia Sorbus[71], infundido em água e depois fermentado, compunha o almoço.

Estava tudo tão bonito, arrumado e harmonioso, e com um acolhimento tão verdadeiro, que Owen pensara que raramente apreciara uma refeição daquela maenira.

Na verdade, naquele período do dia, os escudeiros galeses se diferenciavam dos agricultores, pela abundância e rudeza do modo de vida, do que pelo refinamento do estilo de sua mesa.

Atualmente, em Llyn, a aristocracia galesa não é uma inteligência por trás de seus saxões, igualando-se às caras elegâncias da vida, mas não havia nada no modo de vida de Ellis Pritchard que tocasse o senso de refinamento do jovem escudeiro.

Pouco foi dito por aquele jovem par de namorados durante a refeição. O pai teve toda a conversa para si, aparentemente desatento ao olhar ardente de seu convidado para a sua filha.

À medida que Owen ficava mais sério em seus sentimentos, ele se tornava mais tímido em sua expressão, e, à noite, quando eles voltaram de sua caça, a carícia que ele deu em Nest era quase tão tímida quanto a que foi recebida.

Este foi apenas o primeiro de uma série de dias dedicados a Nest, embora, a princípio, ele pensasse ser necessário algum pequeno disfarce sobre os seus sentimentos.

O passado e o futuro foram esquecidos naqueles dias felizes de amor.

Ellis Pritchard e sua filha, tentavam de todas as maneiras, tornar as visitas de Owen em momentos agradáveis e atraentes.

De fato, a própria circunstância dele ser bem-vindo foi suficiente para atrair o jovem, que via tudo novo e cheio de encantos.

Ele deixou um lar onde a certeza da frustração o fazia cauteloso em expressar seus desejos, onde nenhum tom de amor jamais caiu sobre seu ouvido, exceto aqueles dirigidos aos outros, e onde, sua presença ou ausência era uma questão de indiferença.

Tudo era diferente em Ty Glas, porque todos, até o pequeno cachorro com latidos clamorosos, exigiu uma parte de sua atenção e dava-lhe amor.

Seu relato do dia de trabalho encontrou um ouvinte disposto em Ellis, e quando ele passou para Nest as suas palavras, a cor profunda de seu olhar e a entrega de seu amor, o encantava.

Ellis Pritchard era inquilino na propriedade Bodowen, portanto, tinha muitas razões para desejar manter em segredo as visitas do jovem Owen.

O pai de Nest não estava disposto a perturbar a calma ensolarada dos dias serenos por qualquer tempestade em casa.

Portanto, Owen estava pronto para usar todo o artifício que Ellis sugerira quando fosse indagado sobre as suas idas à Ty Glas, porque ele também desejava manter a paz.

Owen estava bastante consciente de que Ellis não desejava outra coisa senão o casamento de sua filha com o herdeiro de Bodowen, e quando Nest escondeu o rosto dela em seu pescoço, e murmurou em seu ouvido o reconhecimento de seu amor, ele sentiu desejo em encontrar alguém que o amasse para sempre.

Apesar de não ser um principiante, ele não tomaria Nest em outros termos, a não ser, nos termos do casamento.

Ele idealizou o amor duradouro, e imaginou dever ligar o coração dela para sempre ao dele. Então, assim foi, após os juramentos solenes do matrimônio.

Não houve grande dificuldade em assistir a um casamento secreto em tal lugar e momento.

Em um dia de outono empoeirado, Ellis os levou em uma pequena capela no caminho de Penthryn para Llandutrwyn, e lá viu sua pequena Nest se tornar a futura Senhora de Bodowen.

Ela estava ansiosa para atrair o jovem escudeiro de Bodowen, e muito antes de seu casamento, este sentimento havia se fundido em um amor mais verdadeiro do que jamais fora antes, e agora, que ele era seu marido, toda sua alma estava inclinada a fazer este amor ainda mais forte, tanto quanto em sua cama, ou pela miséria que, com o tato de uma mulher que conhece o mundo, ela viu que ele tinha que suportar em sua casa.

Ela expressava seu amor de forma abundante, que era delicadamente expresso no estudo dos gostos dele, sem cansaço, no arranjo de suas roupas, no tempo e em seus pensamentos.

Não admira que ele olhara para trás, no dia de seu casamento com um agradecimento que raramente é resultado de casamentos desiguais.

Não é de se admirar, também, que seu coração batesse em voz alta como antigamente, quando ele terminava o pequeno caminho para Ty Glas, e avistava Nest de pé, na porta, observando a sua silhueta, enquanto a vela se acendia na pequena janela como um farol para guiá-lo, embora o vento do inverno pudesse assoprar a vela e os deixar no escuro.

As palavras furiosas e as ações indelicadas de seu lar, caíram em seu coração, ele pensou no amor que era seu, e na nova promessa de amor, e ele quase sorriu para os esforços impotentes de sua madrasta para perturbar a sua paz.

Mais alguns meses, e Owen foi saudado por um fraco grito, quando entrou apressadamente em Ty Glas, em uma manhã que nascia na consequência de uma convocação enviada misteriosamente para Bodowen.

A mãe pálida, sorrindo e segurando sua criança ao beijo de seu pai, pareceu-lhe ainda mais adorável que a brilhante Nest que alegre, conquistara seu coração na pequena pousada de Pen-Morfa.

Mas a maldição estava em ação!

O cumprimento da profecia estava próximo!

Capítulo II

Era outono, após o nascimento de seu filho. Fora um verão glorioso, com tempo brilhante, quente e ensolarado, e agora, o ano estava se desvanecendo como sazonalmente em dias maduros, com manhãs de névoa de prata e noites claras e geladas.

O aspecto florido da época das flores era passado e se foi, mas, havia ainda algum colorido rico nas folhas tocadas pelo sol, nos líquens[72], nas pétalas douradas floridas, e se era a época do desbotamento, havia uma glória na decadência.

Nest, em sua ansiedade amorosa de cercar sua moradia com todo o encanto, na espera por seu marido, se tornara jardineira, e os pequenos cantos da trilha rude que levavam até à sua casa, estava repleta de muitas flores delicadas da montanha, transplantadas mais por sua beleza que por sua raridade.

O arbusto que ela plantou ainda está lá, velho e cinza, que ela e Owen plantaram um broto verde sob a janela de seu pequeno quarto.

Naqueles momentos, Owen esqueceu tudo além do presente, de todas as tristezas que conheceu no passado, e tudo o que o esperava de tristeza e morte, no futuro.

O menino era uma criança adorável como o pai. Owen se sentia abençoado ao ver o pequeno se enchendo de alegria, e batendo palmas, enquanto sua mãe o segurava nos braços na porta do chalé para ver a subida do pai pelo caminho áspero que levava a Ty Glas, em uma manhã brilhante de outono.

E quando os três entravam juntos na casa, era difícil dizer qual era a mais feliz.

Owen carregou seu filho, sentou-se com ele e brincou, enquanto Nest procurava um pequeno artigo de trabalho, e sentou-se embaixo da janela, para usar seu tear e costurar, então, novamente olhando para seu marido, ela avidamente lhe contou os pequenos eventos domésticos do dia, os caminhos da criança, o resultado da pesca de ontem, as fofocas que vinham de Pen-Morfa.

Ela notou que ao mencionar qualquer pequena circunstância que fizesse a mínima referência a Bodowen, seu marido parecia irritado e inquieto, e finalmente evitou qualquer coisa que o lembrasse de casa.

Na verdade, ele sofrera muito com a irritabilidade de seu pai. Irritabilidade demonstrada em bagatelas desagradáveis.

Enquanto eles estavam assim, falando e acariciando um ao outro e a criança, uma sombra escureceu a sala, e antes que eles pudessem vislumbrar vulto, ele desapareceu. O Escudeiro Griffiths levantou a fechadura da porta e ficou diante deles.

Owen ficou de pé e olhou primeiro para seu filho, com de expressão tão distraída. Ele, então, com seu nobre filho em seus braços, como um pai orgulhoso e feliz, diferente do semblante deprimido e mal-humorado que muitas vezes aparecia em Bodowen, olhou para a pobre Nest, tremendo, que deixou cair seu tear, na frente da cômoda, enquanto olhava para seu marido como pedisse proteção.

O Escudeiro estava silencioso, enquanto ele olhava suas feições brancas de raiva contida.

Quando ele falou, suas palavras foram mais distintas em sua compostura forçada. Foi ao seu filho que ele dirigiu a palavra:

— Aquela mulher! Quem é ela?

Owen hesitou um momento, e então respondeu, com uma voz firme:

— Pai! Esta mulher é minha esposa!

Ele teria acrescentado algumas desculpas pela longa ocultação de seu casamento, apelaria o perdão de seu pai, mas a espuma de raiva voou dos lábios do Escudeiro, e ele jorrou ofensas contra Nest:

— Você se casou com ela? É como eles me disseram! Casou-se com Nest Pritchard, essa... E você está aqui como se não desonrasse para sempre a nossa família com essa sua maldita esposa? Veja! A bela meretriz sentada em sua modéstia zombadora, tomando a pompa em ser a futura Dama de Bodowen? Mas, moverei o céu e a terra, antes que esta falsa mulher escureça as portas da casa de meu pai!

Tudo isso foi dito com tanta rapidez que Owen não teve tempo para falar as palavras que se amontoaram em seus lábios.

— Pai! — ele explodiu longamente. — Pai, quem lhe disse que Nest Pritchard era uma meretriz, lhe disse uma mentira tão falsa quanto o inferno! Por certo, uma mentira tão falsa quanto o inferno! — repetiu ele, em uma voz de trovão, enquanto avançava um passo ou dois em direção ao Escudeiro.

Então, em um tom mais baixo, ele disse:

— Ela é tão pura quanto sua esposa! Não! Deus, me perdoe por comparar a minha esposa com a esposa de meu pai! Devo dizer que Nest é tão pura quando a minha querida e preciosa mãe, que partiu para os Céus, sem deixar um refúgio para consolar o meu coração! Digo-lhe que Nest é tão pura quanto a minha querida e morta mãe!

— Bobo! Um pobre tolo!

Neste momento, a criança, o pequeno Owen, que continuava olhando para o avô e o pai, tentando entender o olhar feroz no rosto de seu pai onde, até agora, não tinha nada além de amor, e isso, de alguma forma atraiu a atenção do Escudeiro, e aumentou sua ira.

— Sim! — continuou ele. — Pobre tolo que você é, abraçando a criança de outro como se fosse sua própria descendência!

Owen acariciou involuntariamente a criança, e sorriu para o menino, desviando a atenção das palavras de seu pai para a criança. Isso o Escudeiro percebeu, e levantando sua voz a um grito de raiva, ele continuou:

— Peço-lhe! Se você se diz ser meu filho, que jogue fora a descendência dessa mulher miserável e sem vergonha! Abandone isso! Agora! Neste instante!

Nessa raiva ingovernável, vendo que Owen estava longe de cumprir seu comando, ele arrancou a pobre criança dos braços amorosos de Owen, e o arremessou na direção de Nest, e, após jogar a criança, deixou a casa, tomado pela fúria.

Nest, que estivera pálida como mármore durante o terrível diálogo, olhando e escutando, como que fascinada pelas palavras que tocavam o seu coração, abriu seus braços para receber e acarinhar seu precioso bebê, mas o menino não estava destinado a alcançar o refúgio brando de seu peito.

A ação furiosa do Escudeiro fora quase sem objetivo, e a criança caiu contra a borda afiada da cômoda e caiu no chão de pedra.

Owen correu para alcançar a criança, mas ficou tão quieto e imóvel. O espanto da morte veio sobre ele, e se abaixou para olhar mais de perto.

Naquele momento, os olhos do menino rolaram convulsivamente, um espasmo passou ao longo do corpo, e os lábios, ainda quentes, estremeceram em descanso eterno.

Uma palavra de seu marido contou tudo a Nest.

Ela deslizou de seu assento, e se deitou ao lado de seu filhinho, agora um cadáver.

Owen estava desolado.

A promessa brilhante de viver muitos anos ao lado de seu filho, estava enterrada em seu coração.

E lá estava, a pequena imagem de seu filho, que nunca mais se alegraria ao vê-lo, nem se esticaria para encontrar seu abraço, cujos arrepios eloquentes assombrariam seus sonhos, e nunca mais seriam ouvidos na vida novamente!

Pela criança morta, a pobre mãe caíra em um desmaio misericordioso.

Ele tentou reanimar Nest quando Ellis Pritchard chegou a casa, jamais imaginando a visão que o esperava, e, embora atordoado, ele foi capaz de tomar medidas mais eficazes para a recuperação de sua pobre filha do que Owen fizera.

Ela mostrava sintomas de retorno dos sentidos e foi colocada em sua cama, no quarto escuro, onde permaneceu desacordada.

Foi então que seu marido, sufocado pela pressão do pensamento miserável, tirou suavemente a mão que segurava Nest, e imprimiu um longo e macio beijo em sua testa, saindo apressadamente para fora do quarto, e depois, para fora de casa.

Perto da base de Moel Gêst, que ficava um quarto de milha de Ty Glas, estava a trilha, um pouco negligenciada, com mata fechada, solitária, selvagem e emaranhada por troncos de árvores.

No meio desta mata, um profundo lago, com suas águas cristalinas que era um espelho transparente para o céu azul acima, e ao redor da margem, flutuavam as largas folhas verdes do nenúfar[73], e quando o sol régio brilhava em sua glória do meio-dia, as flores brotavam de suas profundezas frescas para recebê-lo e cumprimentá-lo.

A mata era musical, o som dos pássaros que se alegravam em suas tonalidades, o zumbido incessante dos insetos que pairavam sobre o lago, o som da cachoeira distante, como pequenos sinos angelicais, o ocasional barulho do rebanho de ovelhas no topo da montanha, foram todos misturados na deliciosa harmonia da natureza.

Era um dos refúgios preferidos de Owen quando ele era um peregrino solitário em busca de amor nos anos passados.

Ele ficou ali, naquele lugar solitário, como por instinto, para reprimir a agonia da revolta.

Era a hora do dia em que uma mudança no aspecto do tempo acontecia com frequência, e o pequeno lago não era mais o reflexo de um céu azul e ensolarado. Ele enviava de volta as nuvens escuras e dos galhos acima, e, por vezes, uma rajada de vento sacudia seus galhos e as folhas pintadas de outono balançavam tristemente, e a música se perdia no som dos ventos selvagens que vinham dos pântanos, que se erguiam e ultrapassavam as fendas no lado da montanha.

Então, a chuva se acendeu e bateu em torrentes, mas Owen não prestou atenção.

Ele sentou no chão úmido, com seu rosto enterrado nas mãos e toda a sua força, física e mental, empregada para acabar com a correria do sangue, que se elevava, fervia e se rompia em seu cérebro, o enlouquecendo.

O fantasma de sua criança morta ressuscitou diante dele, e parecia chorar em voz alta por vingança.

Quando o pobre homem pensou na vítima que ele exigia em seu desejo selvagem de vingança, ele estremeceu, pois, era seu pai!

Mais uma vez, ele tentou não pensar, mas mesmo assim, o círculo de pensamento veio à tona, passando por seu cérebro.

Ele sabia, na afobação apaixonada do momento, que seu pai deixara o chalé antes de tomar consciência do acidente fatal que se abateu sobre a criança.

Owen pensou em ir até o Escudeiro e contar-lhe o acontecido e assim, esperar um pedido de perdão. Entretanto, mais uma vez, ele desconfiava de seu autocontrole, e a velha profecia se levantou em seu horror, e ele temia sua desgraça.

Finalmente ele determinou deixar seu pai para sempre, levar Nest para algum país distante, onde ela esqueceria seu primogênito, e onde ele poderia ganhar um meio de subsistência por seus esforços.

Quando ele tentou pensar nos pequenos arranjos que estavam envolvidos na execução deste plano, ele lembrou que seu dinheiro, e a esse respeito o Escudeiro Griffiths não era nenhum idiota, estava trancado no escritório em Bodowen.

Em vão, ele tentou eliminar esta dificuldade em ir à Bodowen, porque a sua única esperança era evitar seu pai.

Ele se levantou e tomou um caminho secundário para Bodowen.

A casa parecia ainda mais sombria e desolada que de costume na forte chuva torrencial, mas Owen a contemplou com arrependimento triste, de como seus dias nela foram, e que ele estava prestes a deixá-la agora por muitos anos, se não, para sempre.

Ele entrou por uma porta, que se abria para uma passagem que levava ao seu quarto, onde guardava seus livros, suas armas, sua vara de pescaria, seu material de escrita, etc.

Ali, ele começou rapidamente a selecionar os poucos artigos que pretendia levar, pois, além do pavor da interrupção, ele estava febrilmente ansioso para desaparecer com Nest, naquela mesma noite. Mas, ele se perguntava se Nest seria capaz de realizar a viagem.

Enquanto ajeitava seus pertences, ele tentou conjecturar quais seriam os sentimentos de seu pai ao descobrir que seu filho, outrora amado, partira para sempre.

Será que ele despertaria o lamentar sobre a sua conduta, e pensaria amargamente no menino amoroso e carinhoso que assombrou seus passos em dias anteriores?

Será que ele só sentiria que um obstáculo à sua felicidade diária, seu contentamento com sua esposa e seu estranho afeto pelo filho dela, foi tirado de seu caminho?

Será que eles se alegrariam com a partida do herdeiro?

Então, ele pensou em Nest, a jovem mãe, que agora não tinha mais o seu filho, cujo coração ainda não percebera a plenitude de desolação.

Pobre Nest!

Tão amorosa como ela era, tão dedicada ao seu filho.

Como ele a consolaria?

Ele a imaginou longe, em uma terra estranha, ansiando por suas montanhas nativas, e recusando-se a ser consolada porque seu filho não estava ao seu lado.

Mesmo este pensamento, da saudade de casa que poderia possivelmente assolar Nest, não o fez hesitar em sua determinação.

Ele tomou posse dessa determinação, que colocaria milhas e léguas entre ele e seu pai. Esta era a única maneira para evitar a desgraça que parecia se misturar com os propósitos de sua vida, enquanto ele permanecesse perto do assassino de seu filho.

Ele concluíra seu apressado trabalho de preparação, e estava cheio de pensamentos ternos sobre a sua esposa, quando a porta se abriu, e o duende, digo, filho de sua madrasta, o espreitou, em busca de alguns dos pertences de seu irmão.

Ao ver Owen, ele hesitou, mas depois se adiantou ousadamente, e colocou a mão no braço de Owen, dizendo:

— Nest é uma meretriz! Como é a tal Nest, a meretriz?

Ele olhou maliciosamente no rosto de Owen para marcar o efeito de suas palavras, mas, ficou aterrorizado com a expressão que ele lia ali.

O rapaz correu para a porta, enquanto Owen tentava se controlar, dizendo continuamente:

— Ele é apenas uma criança!

— Ele não entende o significado do que diz.

— Ele é apenas uma criança!

Ainda assim, o menino duende, agora na segurança imaginária, continuou chamando suas palavras insultuosas, e a mão de Owen estava em sua arma, agarrando-a como se fosse para conter sua fúria crescente.

Quando o garoto passou ousadamente a zombar das palavras relacionadas à pobre criança morta, Owen não podia mais suportar, e antes que o menino entendesse a sua fúria, Owen o segurou ferozmente com uma mão, enquanto o golpeava violentamente com a outra.

Em um minuto, ele mesmo verificou. Ele fez uma pausa, relaxou sua compreensão e, para seu horror, viu o menino cair no chão, inconsciente.

Owen, o miserável Owen, que estava ali prostrado, amargamente arrependido e que o carregaria nos braços, fazendo tudo para salvá-lo, mas neste instante, o Escudeiro entrou.

Quando a casa em Bodowen se levantou naquela manhã, havia apenas um entre eles, que ignorava a relação do herdeiro com Nest Pritchard e Owen, enquanto ele tentava fazer suas visitas a Ty Glas.

Estas visitas foram muito frequentes para não serem notadas, e a conduta alterada de Nest, em não mais frequentar bailes e festas, era uma circunstância fortemente corroborativa.

Mas, a influência da Senhora Griffiths reinava em Bodowen, e até que ela sancionasse a divulgação, ninguém se atreveria a dizer ao Escudeiro.

O tempo de falar se aproximava, porque ela desejava que o marido tomasse consciência da conexão que seu filho formara, e com muitas lágrimas e aparente relutância, ela quebrou o silêncio, o informando do caráter que Nest carregava. Ela não afirmou, mas insinuou que a jovem Nest era uma mulher fácil.

Foi assim que o Escudeiro Griffiths seguiu Owen até Ty Glas, e sem nenhum objetivo, a não ser a gratificação de sua furiosa raiva, fez o que vimos.

Contudo, ele deixou à cabana, ainda mais furioso contra seu filho, do que entrara nela, e voltou para casa para ouvir as más sugestões da madrasta.

Ele ouvira uma ligeira briga, na qual ele captou os tons da voz do menino estimado, ao passar pelo salão, e um instante depois, ele viu o corpo aparentemente sem vida de seu pequeno favorito, arrastado pelo culpado Owen, que tinha marcas de forte paixão ainda visíveis em seu rosto.

Não alto, mas amargo e profundo, foram as palavras maldosas que o pai proferiu para o filho, e enquanto Owen permanecia orgulhoso e amargamente silencioso, desprezando toda a desculpa que sentia, a madrasta de Owen entrou.

À vista de sua emoção natural, a ira do Escudeiro foi redobrada, e suas desconfianças brutais, que esta violência de Owen para com o menino era um ato premeditado, apareceram como a verdade comprovada através das brumas da raiva.

Ele convocou os empregados como se quisesse guardar sua própria vida e a de sua esposa, das tentativas de seu filho, e os servos ficaram se perguntando, olhando para a Senhora Griffiths, que soluçava, enquanto tentava cuidar do rapaz que estava realmente ferido e meio inconsciente. Eles olharam para o Escudeiro feroz e irado, e por fim, para o triste e silencioso Owen.

Ele mal estava ciente de seus olhares de espanto e terror, e as palavras de seu pai caíram em seu ouvido morto, pois, diante de seus olhos, surgiu um bebê pálido, morto e nos violentos sons de dor de sua madrasta, ele ouviu o lamento de uma mãe ainda mais triste e desesperada.

Enquanto seus pensamentos rondavam o intocável, o menino já havia aberto os olhos e, ainda que evidentemente sofrendo muito com os efeitos dos golpes de Owen, ele estava plenamente consciente de tudo o que estava se passando ao seu redor.

Se Owen fosse deixado à sua própria natureza, seu coração teria trabalhado para amar duplamente o menino que ele ferira, no entanto, Owen era teimoso em relação à injustiça e estava endurecido pelo sofrimento.

Ele se recusou a justificar, e também não fez nenhum esforço para resistir à prisão que o Escudeiro decretou, até que a opinião de um cirurgião sobre a real extensão dos ferimentos de Robert fosse conhecida.

Quando a porta foi trancada e barrada, como se ele fosse uma besta selvagem e furiosa, a lembrança da pobre Nest, sem sua presença reconfortante, lhe veio à mente.

“Oh!” pensou ele, indagando o quanto ela estaria cansada, ansiando por sua afetuosa simpatia, se, de fato, ela tivesse se recuperado do choque da morte do filho, para ser sensível ao consolo!

O que ela pensaria de sua ausência?

Ela imaginava que ele estava ali? Se ele estava ali, ela pensaria que ele acreditara nas palavras de seu pai, e tivesse a abandonado, mesmo neste doloroso luto.

O pensamento o enlouqueceu, e ele procurou por algum modo de fuga.

Ele fora confinado em uma pequena sala, não mobiliada, no primeiro andar, com uma porta maciça, calculada para resistir às tentativas de uma dúzia de homens fortes.

A janela foi colocada, como é comum em antigas casas galesas, sobre a lareira, com chaminés ramificadas em ambos os lados, formando uma espécie de projeção para o exterior. Por esta saída, sua fuga era fácil, mesmo se ele estivesse menos determinado e desesperado do que estava.

Quando ele descesse, com um pouco de cuidado, ele escaparia de toda observação e perseguiria sua intenção original de ir para Ty Glas.

A tempestade diminuíra, e raios de sol aquáticos estavam dourando a baía.

Ele planejou a fuga:

Owen desceria pela janela, e, correria nas largas sombras da tarde, seguiria para a pequena planície de grama verde no jardim, caminharia até o topo de uma rocha íngreme, desceria pela face abrupta, da qual, muitas vezes caíra, através de uma corda bem segura. Andaria até o pequeno veleiro, que era presente de seu pai, infelizmente, em dias passados, que ficava atracado nas águas profundas da baía.

Ele sempre manteve seu barco lá, porque era o local mais próximo disponível de casa.

Owen não podia, de fato, atravessar um extenso pedaço de chão iluminado pelo sol, em plena vista das janelas daquele lado da casa, sem a sombra de uma única árvore ou arbusto.

Para fugir sem ser visto, ele tinha que contornar um semicírculo rude de madeira, que seria considerado como um arbusto, se alguém tivesse se preocupado com ele.

Passo a passo, ele se movia furtivamente ouvindo vozes alongo, contudo, não avistara o pai nem a madrasta, porque o Escudeiro, evidentemente, estava consolando sua esposa, que parecia insistir em um desespero inútil com grande intensidade.

Owen se agachara para evitar ser percebido pelo cozinheiro, que estava voltando para a cozinha, contornando o jardim rude com um punhado de ervas.

Foi assim que o herdeiro de Bodowen deixou sua casa ancestral para sempre, e esperava também, deixar para trás sua desgraça.

Rapidamente ele alcançou o planalto, e assim conseguiu respirar mais livremente. Ele se abaixou para pegar a bobina da corda, que estava escondida em um buraco sob um grande pedaço de rocha redondo e plano. Sua cabeça estava dobrada para baixo, e ele não viu seu pai se aproximar, nem ouviu seus passos.

O Escudeiro se agarrara a ele, antes que ele se levantasse, e soubesse o que estava acontecendo.

Os dois tiveram uma luta vigorosa. O Escudeiro batia e seu filho tentava se defender.

Owen lutou com seu pai por um momento, o empurrando com força contra uma pedra, o homem perdeu o seu equilíbrio, e Owen correu.

Desceu o Escudeiro, até as águas profundas abaixo dele, depois que Owen foi, metade conscientemente, metade inconscientemente, porque um lado dele estava acuado pela súbita renúncia após a briga, por outro, porque um arrebatador impulso incontrolável queria resgatar seu pai.

No entanto, ele instintivamente escolhera um lugar mais seguro. O lago profundo de água do mar era melhor que aquele para o qual seu empurrão enviara seu pai.

O Escudeiro batera com muita violência a cabeça contra o lado do barco, em sua descida em busca de Owen, e assim, o homem se jogou na água, mesmo ferido.

Entretanto, Owen não sabia de nada, exceto que a terrível desgraça parecia estar presente, ainda. Ele mergulhou na água em busca do corpo do pai, que não tinha a elasticidade para flutuar. Ele viu seu pai naquelas profundezas, agarrou-se a ele, o trouxe para cima e o jogou, como um peso morto, no barco, e exausto pelo esforço, ele começou a afundar novamente antes de tentar subir no barco.

Lá estava seu pai, com um profundo corte no lado da cabeça, onde o crânio fora fraturado por sua queda, seu rosto estava azulado pelo curso do sangue preso. Owen sentiu seu pulso e seu coração, tudo estava parado. Ele o chamou:

— Pai! Pai! — gritou ele. — Volte! Volte! Volte! Você nunca soube o quanto o amei! Como eu deixaria de amá-lo? Oh! Deus!

O pensamento de seu filho pequeno se levantou diante dele:

— Sim, pai! — ele chorou de novo. — Você jamais vai saber a dor que senti. Oh! Se eu tivesse paciência para lhe dizer! Se você só tivesse suportado comigo e escutado! Agora, acabou! Oh! Pai! Pai!

A madrasta surgiu um pouco distante dos olhos de Owen e ouvira a voz brutal de lamentação. Ele se perguntou como ela chegara ali, se era porque a mulher sentia falta do marido e o queria por perto, ou, como talvez fosse provável, ela descobrira a fuga de Owen, e correu ao encalço do marido.

Na rocha, bem acima de sua cabeça, como parecia, Owen ouviu sua madrasta chamando o marido dela.

Ele ficou em silêncio e levou suavemente o barco para a margem do lago, repleto de rochas com galhos de árvores mortas, que o esconderam.

Molhado como estava, ele se deitara com o seu falecido pai para se esconder, e, de alguma forma, a ação lembrava aqueles primeiros dias da infância, os primeiros na viuvez do Escudeiro, quando Owen compartilhara a cama de seu pai, e costumava acordá-lo pela manhã para ouvir uma das velhas lendas galesas.

Quanto tempo ele ficou deitado assim, de corpo arrepiado e cérebro trabalhando duro através da forte pressão de uma realidade tão terrível como um pesadelo, ele não soube, mas, detidamente, ele se despertou para pensar em Nest.

Ele cobriu o corpo de seu pai, deitado no fundo do barco, com o tecido da vela. Depois, com as mãos dormentes, ele pegou os remos e puxou para o mar, em direção a Criccaeth.

Ele contornou a costa até encontrar uma fenda sombreada nas rochas escuras, e ancorou seu barco em terra firme.

Então, ele andou cambaleante e ansioso, nas águas escuras em repouso, descobrindo os apoios mais seguros para os pés, nas faces das rochas, até que ele estava no alto, caminhando em segurança.

Ele fugiu, correndo com energia enlouquecida, como se fosse perseguido, em direção a Pen-Morfa. De repente, ele parou, virou-se, correu novamente, mas para trás, com a mesma velocidade e olhara do alto para dentro de seu barco, com olhos tensos para ver algum movimento de vida, qualquer deslocamento de uma dobra de pano da vela.

Estava tudo quieto lá, no fundo, mas, enquanto ele olhava, a luz que se movia dava a aparência de um leve movimento. Owen correu para uma parte inferior da rocha, e mergulhou na água e nadou até o barco.

Quando lá, tudo ainda estava muito quieto! Por um minuto ou dois, ele não ousou levantar o pano. Depois, refletindo que o mesmo terror voltaria a assediá-lo, por deixar seu pai desamparado, enquanto ainda uma centelha de vida se prolongava, ele removeu o manto.

Os olhos do pai estavam abertos, e ele, com a mão molhada, os fechou. Sua boca também estava entreaberta.

Owen se inclinou e beijou a testa do pai entre as sobrancelhas.

— A maldição, pai! Seria melhor se eu morresse no meu nascimento!

A luz do dia estava se apagando. Preciosa luz do dia! Ele nadou de volta, e partiu de novo para Pen-Morfa.

Quando ele abriu a porta do Ty Glas, Ellis Pritchard olhou para ele com reprovação, de seu assento na sombria chaminé.

— Finalmente você chegou! — disse ele. — Um de nossa raça não deixaria a esposa lamentar sozinha por seu filho morto! Tenho um bom motivo para tirá-la de você para sempre!

— Não! — gritou Nest, olhando piedosamente para seu marido.

Ela estava amamentando seu bebê, deitado em seus joelhos como se ele estivesse vivo. Owen estava de pé, diante de Ellis Pritchard.

— Fique calado! — exclamou ele. — Nem palavras, nem ações, mas o que é decretado pode acontecer. Eu estava pronto para fazer meu trabalho, estes cem anos e mais. O tempo esperou por mim, e o homem esperou por mim. Fiz o que foi previsto de mim, por gerações!

Ellis Pritchard conhecia a velha história da profecia e acreditava nela, de uma forma enfadonha, entretanto, nunca pensou que isso aconteceria em seu tempo.

Ele entendeu, embora tenha confundido a natureza de Owen, a ponto de acreditar que seu ato foi feito intencionalmente por vingança pela morte de seu filho, e vendo-o sob esta luz, Ellis pensou ser pouco mais que uma punição pela causa de toda a tristeza desesperada que vira sua única filha sofrer durante as horas daquela longa tarde.

Entretanto, ele sabia que a lei não a consideraria assim. Mesmo a frouxa lei galesa daqueles dias não podia deixar de examinar a morte de um homem de posição como o Escudeiro Griffith. Então, o agudo Ellis pensou como ele esconderia o culpado por um tempo.

— Venha! Não fique assustado! Foi sua desgraça, não sua culpa! — e ele colocou uma mão no ombro de Owen. — Você está molhado! Onde você esteve? — o velho homem olhou para a filha. — Nest, seu marido está pingando, molhado. Por isso está tão azulado, está com frio!

Nest colocou suavemente seu bebê em seu berço, ela estava ainda chorando, e não compreendera o que Owen aludiu, nem quando o pai falou de sua desgraça estar cumprida, se realmente ela ouvira as palavras.

Seu toque descongelou o coração miserável de Owen.

— Oh! Nest! — disse ele, abraçando-a. — Você me ama ainda? Você pode me amar, minha querida?

— Por que não? — perguntou ela, com seus olhos se enchendo de lágrimas. — Te amo mais do que nunca, pois, você foi o pai do meu pobre bebê!

— Mas, Nest! — Owen olhou para o sogro. — Oh! Diga, Ellis! Você sabe!

— Não é preciso! Não é preciso! — falou Ellis. — Ela já tem o suficiente para pensar. Nest, minha filha, pegue minhas roupas de domingo!

— Não entendo! — disse Nest, colocando a mão na cabeça. — O que há? Por que você está tão molhado? Deus, me ajude! Não consigo entender o significado de suas palavras e de seus olhares estranhos! Só sei que meu bebê está morto! — e ela irrompeu em lágrimas.

— Nest! Vá e traga uma muda de roupa, rápido!

Ela o obedeceu mansamente, chorosa demais para se esforçar em entender.

Ellis disse rapidamente a Owen, em voz baixa e apressada.

— Você está querendo dizer que o Escudeiro está morto? Fale baixo, para que ela não ouça! Bem, não há necessidade de falar sobre como ele morreu. Foi repentino, por certo, e todos devemos morrer, e ele terá que ser enterrado! Está bem, a noite está próxima e não podemos pensar em nada até amanhã. Não me pergunte agora se você pode viajar com Nest. Faremos isso amanhã! Ela ainda está nervosa, precisa de um pouco mais de tempo, sabe disso! Preocupe-me, porque há muitos que saem de sua casa e nunca mais voltam, mas, confio que não fará isso e que cedo ou tarde, vai voltar. É isso que você vai fazer, e trazer Nest para Bodowen novamente, depois que isso passar. Não se esqueça de encontrar as lãs azuis, aquelas que comprei na feira de Llanrwst. Só não perca a coragem! Já está feito e não há nada que possa ser remediado. Foi o trabalho que lhe propuseram nos dias dos Tudors, dizem eles. Ele o merecia. Veja a criança morta no berço. Então, diga-me onde ele está, e terei coração valente e verei o que pode ser feito pelo assassino de meu neto!

Mas Owen sentou-se molhado e abatido, olhando para o fogo da lareira como avistasse dolorosas visões do passado, e não dando ouvidos a uma palavra sequer que Ellis pronunciou. Nem se moveu, quando Nest trouxe o braço cheio de roupas secas.

— Venha! Desperte, homem! — afirmou Ellis, ficando impaciente.

Entretanto, Owen não falou, nem se moveu.

— Qual é o problema, pai? — indagou Nest, desnorteada.

Ellis continuou a observar Owen por um minuto ou dois, até que, na repetição da pergunta por parte de sua filha, ele disse:

— Pergunte-lhe você mesmo, filha!

— Oh! Marido, o que é há? — disse ela, ajoelhando-se e colocando seu rosto ao nível do dele.

— Você não sabe? — questionou ele, com força. — Você não vai me amar quando souber! E mesmo assim, não foi obra minha, foi a minha desgraça!

— O que ele quer dizer, pai? — perguntou Nest, olhando para cima, porém, ela pegou um gesto de Ellis induzindo-a em continuar interrogando seu marido.

— Te amarei, marido! O que quer que tenha acontecido! Só me deixe saber o que se passa!

Uma pausa surgiu diante dos dois, e que fizera Nest e Ellis ficarem sem fôlego.

— Meu pai está morto, Nest!

Nest pegou seu fôlego com um arfar forte.

— Deus me perdoe! Mas não sinto compaixão! — disse ela, pensando em seu bebê.

— Deus me perdoe! — sussurrou Owen.

— Você não... — Nest parou seu questionamento.

— Agora você sabe disso. Foi a minha desgraça. Como eu podia evitá-lo? O diabo me ajudou, ele colocou a pedra para que meu pai caísse. Pulei na água para salvá-lo. Saltei, de fato, Nest! Quase me afoguei tentando salvá-lo. Mas, ele foi morto pela queda!

— Então, ele está seguro no fundo do mar? — articulou Ellis, com fome e avidez.

— Não, ele não está! Ele jaz no meu barco! — garantiu Owen, tremendo um pouco, por pensar em seu último vislumbre do rosto de seu pai e não devido ao frio de suas roupas molhadas.

— Oh! Marido, troque sua roupa molhada! — suplicou Nest, a quem a morte do velho era simplesmente um horror com o qual ela não tinha nada a ver, enquanto o desconforto de seu marido era um problema real.

Enquanto ela o ajudava a tirar as roupas molhadas, que ele não tinha energia o bastante para tirar de si, Ellis estava ocupado preparando alimentos e misturando um grande copo de álcool e água quente.

Ele ficou sobre o infeliz jovem e o obrigou a comer e beber, e fez Nest provar um pouco de bocado, enquanto planejava em sua mente, como melhor esconder o que fora feito, e quem o fizera.

Seus pensamentos se desviaram e um toque suave de triunfo vulgar pairava sobre os olhos do homem, no reflexo de Nest, enquanto ela estava ali, descuidadamente ajudando o marido, envolta em sua dor.

Ele imaginava que a sua filha era a dona da herança de Owen. Ellis Pritchard sorriu esperançoso, pois, jamais avistara uma casa mais grandiosa, embora ele acreditasse que existia casas maiores.

Por meio de algumas perguntas extravagantes, ele descobriu tudo o que queria saber de Owen, enquanto comia e bebia.

Na verdade, foi quase um alívio para Owen diluir o horror ao falar sobre isso. E, antes da refeição ser finalizada, se aquela comida pudesse ser assim chamada, Ellis sabia tudo o que se importava em saber.

— Agora, Nest! Continue a sua vida ao lado de seu marido. Arrume o que precisa para partir ao lado dele, pois, tanto você quanto seu marido, devem estar a caminho de Liverpool amanhã, logo cedo. Levarei vocês por Rhyl Sands, no meu barco, e voltarei com minha carga de peixe. Discretamente vou observar a agitação em torno da casa de Owen. Uma vez, escondidos e salvos em Liverpool, ninguém saberá onde vocês estão, e vocês ficarão quietos até chegar a hora de voltar!

— Nunca mais voltarei para casa! — disse Owen, obstinadamente. — O lugar está amaldiçoado!

— Homem! Me escute! Afinal de contas, foi apenas um acidente! Pousaremos na Ilha Santa, em Llyn, porque lá há um velho primo meu, um pastor. Admito que os Pritchards já conheceram dias melhores. Sobre o Escudeiro, enterraremos lá. Foi apenas um acidente! Levante sua cabeça! Você e Nest ainda voltarão para casa e encherão Bodowen de crianças, e viverei para ver eles felizes!

— Nunca! — exclamou Owen. — Sou o último homem da minha raça. O filho assassinou seu pai!

Nest ficou calada.

O fogo foi extinto, a porta foi trancada.

— Aqui! Nest, minha querida! Deixe-me levar a sua bagagem!

Owen dobrou a cabeça, e não falou uma palavra. Nest deu ao pai a bagagem, e ainda segurava algumas coisas que ela considerava adequado levar, mas apertou outro de forma suave.

— Ninguém me ajudará com isto! — disse ela, em voz baixa.

Seu pai não a entendeu, seu marido sim, e colocou seu forte braço de ajuda em torno da cintura dela, e a abençoou.

— Iremos juntos, Nest! — sussurrou ele. — Mas para onde? — ele olhou para cima, para as nuvens atiradas pela tempestade que vinha de barlavento[74].

— Será uma noite chuvosa! — afirmou Ellis, virando a cabeça para finalmente falar com os dois. — Mas nunca tema, vamos resistir a isso!

E ele se dirigiu ao lugar onde sua embarcação estava ancorada. Então, ele parou e pensou um momento.

— Fiquem aqui! — ponderou ele. — Talvez, eu encontre pessoas perto da embarcação. Vocês esperem aqui, até eu voltar afirmando que está seguro para vocês.

Então, eles sentaram em um canto do caminho.

— Deixe-me olhar para ele, Nest! — lamentou Owen.

Ela tirou seu filhinho morto que estava enrolado em seu xale e eles olharam para seu rosto de cera, beijaram-no, e o cobriram com reverência e suavidade.

— Nest! Finalmente, sinto como se o espírito de meu pai estivesse perto de nós, e como se curvasse sobre nosso pobre pequeno. Um estranho ar frio me tocou, enquanto eu me inclinava sobre meu filho morto. Imagino o espírito de nossa criança pura e inocente, guiando meu pai a salvo pelos caminhos do Céu, até as portas da casa de Deus, e escapando daqueles malditos demônios do Inferno, que se levantam do Norte em busca de almas sofredoras.

— Não fale assim, Owen! — falou suavemente Nest, enrolando-se com ele na escuridão do matagal. — Quem sabe, ele não esteja realmente aqui?

O casal ficou em silêncio, em uma espécie de terror sem nome, até ouvir o sussurro alto de Ellis Pritchard:

— Onde vocês estão? Venham! O caminho está livre! Havia alguns fofocando sobre o desaparecimento do Escudeiro, mas se foram.

Eles foram rapidamente para o pequeno porto e embarcaram a bordo do barco do Ellis.

O mar pesava e balançava. As nuvens rasgadas se precipitavam por cima de suas cabeças de maneira tumultuada e selvagem.

Eles se lançaram na baía, ainda em silêncio, exceto quando alguma palavra de comando foi dita por Ellis, que assumiu a administração da embarcação. Eles foram para a costa rochosa, onde o barco de Owen fora atracado. Porém, o barco não estava lá. Ele se soltara e desapareceu no mar.

Owen sentou-se e cobriu seu rosto. Este último evento, tão simples e natural, atingiu sua mente supersticiosa de uma maneira extraordinária.

Ele ansiava uma reconciliação, por assim dizer, colocando seu pai e seu filho, em uma cova. Mas, agora parecia que não haveria perdão, como se seu pai se revoltasse, mesmo na morte, contra qualquer união entre os dois.

Ellis teve uma visão sobre o caso. Se o corpo do Escudeiro fosse encontrado à deriva em um barco conhecido como pertencente a seu filho, criaria uma terrível suspeita quanto ao modo de sua morte.

Ellis pensara em persuadir Owen a deixá-lo enterrar o Escudeiro no túmulo de um marinheiro, ou, em outras palavras, cosê-lo em uma vela de reserva, pesá-lo bem, e afundá-lo para sempre.

Ele não abordara o assunto, a partir do medo da repugnância apaixonada de Owen ao plano, caso contrário, se ele consentisse, eles voltariam para Pen-Morfa, e esperariam passivamente o curso dos acontecimentos, seguros da sucessão de Owen a Bodowen, mais cedo ou mais tarde, ou se, Owen estivesse muito sobrecarregado com o que acontecera, Ellis o aconselharia a ir embora por um curto período, e retornar quando o burburinho e a conversa terminassem. Agora era diferente. Era absolutamente necessário que eles deixassem o país por algum tempo.

Através das águas tempestuosas, eles tomariam o seu caminho naquela mesma noite.

Ellis não tinha medo, ao contrário de Owen. Mas com Owen desesperado, desamparado e impregnado pelo destino, o que ele poderia fazer?

Eles navegaram para a escuridão e nunca foram mais vistos pelos homens.

A casa de Bodowen afundou em ruínas úmidas e escuras, e um estranho saxão guarda as terras dos Griffiths.

Fim.


O Herói de Sexton

No cemitério gramado contra o deslumbramento azul da Baía de Morecambe, o sol da tarde derramava seus raios gloriosos no pátio da igreja, fazendo a sombra lançada pelo velho teixo[75] sob o qual sentávamos em sua sombra e parecia cada vez mais profunda, em contraste. O zumbido eterno de miríades de insetos de verão fez com que a canção de ninar fosse luxuosa.

Do ponto de vista que estava sob nosso olhar, o primeiro plano era a parede de pedra cinza do jardim do vicariato[76], rico na coloração feita por inúmeros líquens, samambaias, heras, da mais tenra e delicada trança verde, e a escarlate viva do bico do guindaste, que encontrou uma casa em cada recanto e fenda, e, no cume daquela velha parede, ostentava algumas folhas não podadas da videira, e longos galhos carregados de flores da roseira que ambicionava o lado interno. Mais além, o verde do prado, o cinza da montanha e o deslumbramento azul da baía de Morecambe brilhava para nós, distante.

Por um tempo, ficamos em silêncio, vislumbrando a vista e murmurando algum som. Então, Jeremy retomou nossa conversa onde, de repente, sentindo o cansaço ao vermos aquele verde profundo e sombrio lugar de descanso, tínhamos parado de falar um quarto de hora antes.

É um dos luxos das férias, os pensamentos não serem rudemente sacudidos pela violência externa da pressa e da impaciência ocupada, mas caem maduramente dos lábios no descanso ensolarado dos dias.

A sombra lançada do velho teixo tocava a Igreja de São Pedro, em Heysham.

— Como você definiria um herói, então? — perguntei.

Houve uma longa pausa, e quase esqueci da minha pergunta ao ver uma sombra de nuvens flutuando sobre as colinas distantes, quando Jeremy deu uma resposta:

— Minha ideia de herói é sobre aquela pessoa que age até o mais alto sentimento do dever que se possa tomar, não importa o tamanho do sacrifício. Penso que, por esta definição, podemos incluir todas as fases do caráter, mesmo para os heróis de outrora, cuja única, e para nós, decadente ideia de dever, consistia em proezas pessoais.

— Pensando assim, você admira os heróis militares? — questionei.

— Sim, mas com pena das circunstâncias que não lhes deram ideias superiores do dever! Ainda assim, se eles se sacrificassem para fazer o que sinceramente acreditavam estar certo, não creio que poderia negar-lhes o título de herói.

— Um heroísmo pobre e anticristão, cuja manifestação consiste em ferir os outros! — resmunguei.

Ficamos ambos assustados com uma terceira voz.

— Permita-me!

Então o orador parou.

Era o Sexton, a quem, quando chegamos, notamos como se fosse acessório da cena, e que esquecemos, como se ele fosse tão inanimado quanto uma das pedras pontudas cobertas de musgo.

— Se me permitam ousar dizer... — indagou novamente, esperando a licença para falar.

Jeremy se curvou em respeito à sua cabeça branca e descoberta. E assim encorajado, Sexton continuou.

— O que acabaram de dizer, aludindo ao meu último discurso, me lembra de um, que morreu e se foi, há tantos anos. Eu, talvez não entendera bem seu significado, senhores, mas até onde pude perceber, creio que ambos pensariam no pobre Gilbert Dawson como um herói. — suspirou ele com tremor. — Tenho razões para pensar que ele era.

— Senhor! Sente-se e fale sobre ele! Pode falar sobre ele? — questionou Jeremy, de pé, até que o velho estivesse sentado.

Confesso que me senti impaciente com a interrupção.

— Faz quarenta e cinco anos desde que terminei meu estágio em Martinica[77] e me instalei no Lindal. — começou Sexton, sentando sobre o gramado aos nossos pés. — Você pode ver onde fica Lindal, à noite e de manhã. Fica do outro lado da baía, um pouco à direita de Grange. Pelo menos, eu costumava vê-lo antes de minha visão ficar escura. Passei muitos minutos olhando para o horizonte, e pensando nos dias que vivi lá, até que as lágrimas se espessaram tanto em meus olhos, que não consegui mais contemplar. — ele deu uma pausa, e deixou os ombros caírem. — Nunca mais olharei para Lindal, nem para longe, nem para perto, mas você pode vê-la, de ambos os lados. Lindal é uma mancha no horizonte. Em meus dias de juventude, quando fui me estabelecer ali, havia muito jovens que adoravam uma luta, que ansiavam caças furtivas, e que não perdiam uma oportunidade para brigas e trabalhos similares. Fiquei assustado quando descobri o modo como viviam, entretanto, logo comecei a agir igual, e me tornei um sujeito tão rude quanto qualquer um deles. Eu estava lá fazia uns dois anos, quando Gilbert Dawson, que mencionei agora a pouco, veio para Lindal. Ele era quase do meu tamanho. Eu tinha um metro e meio de altura, embora agora, eu esteja tão encolhido para baixo. — ele sorriu timidamente.

Ficamos escutando a sua fala e ele prosseguiu:

— Trabalhávamos no mesmo ofício, ambos costumavam preparar vimes para os cooperadores de Liverpool, que comercializam isso ao redor da baía. Tentei me colocar em pé de igualdade com Gilbert, uma vez que, eu tinha alguma escolaridade, apesar de que ao chegar a Lindal, eu perdera boa parte que aprendera, dando lugar a aspereza dos atos. Contudo, isso não durou muito tempo. Comecei a pensar que ele gostava de uma garota que eu amava muito, que sempre se afastava de mim. — ele suspirou lamentando.

Olhamos um para o outro e o velho homem seguiu sua fala:

— Ah! Ela era tão bonita! Creio, ainda, que não há nenhuma como ela. Ela seguia caminhando pela estrada, sacudindo seus longos cabelos ondulados amarelos, para dar a mim ou a qualquer outro jovem, um sorriso muito belo. Não é de admirar que Gilbert fora levado pela paixão, porque ele era o oposto dela. Ele tão rude, ela tão leve. Entretanto, comecei a pensar que ela gostava dele. Meu sangue ficou em chamas ao imaginar minha amada com aquele sujeito. Eu a admirava muito antes disso. Ficava o observando lutar, caçar, e até a maneira como ele jogava críquete[78] era uma coisa para ser admirada. Mas, eu rangia meus dentes ao vê-lo. Eu podia ler no olhar de Letty que ela gostava dele. Senhor Deus! Me perdoe! Como eu odiava aquele homem!

Ele falou como se o ódio fosse coisa de ontem, visto como era tão claro em sua memória as ações e sentimentos de sua juventude. Então, ele deixou cair sua voz, e disse:

— Bem! Comecei a pensar que um duelo entre nós colocaria um fim naquela história, pois, o meu sangue já ardia em minhas veias. Se o vencesse, porque eu era um bom boxeador naqueles dias, Letty ficaria comigo. Então, em uma noite, não sei como ou porquê, mas os grandes feitos crescem de palavras pequenas, o enfrentei e o desafiei a lutar. Ele estava muito irado com a minha insistência, porque seu rosto mudava de cor em um vai e vem, e, como disse antes, ele era um jovem muito ativo. No entanto, mesmo irado, ele se aproximou e disse que não lutaria. Os rapazes de Lindal, que estavam nos observando, gritaram, desejando a briga. Ainda ouço suas vozes! Pensei que ele não entendera o que eu falara e eu lhe daria outra chance para aceitar o duelo. Falei novamente que o queria em uma luta, tão simples quanto as palavras pudessem falar. Ele me disse que não tinha nenhum motivo para brigar comigo, todavia, se havia algo que me incomodava em seus atos, e que ele não sabia o que era, de antemão, ele pedia perdão e finalizando sua fala, afirmando que não lutaria de nenhuma maneira.

Sexton pegou um pouco de fôlego e continuou:

— Eu estava tão cheio de desprezo por sua covardia, que fiquei tão irritado e dei a segunda chance. Me juntei ao grito dos rapazes, duas vezes pior que antes. Ele sorriu com os dentes brancos, e quando estávamos em silêncio por falta de ar, ele disse em voz alta, mas com uma voz rouca, bem diferente da sua própria: “Não posso lutar, porque é errado brigar e usar violência!”. Então, ele se virou para ir embora. Eu estava tão fora de mim com indignação e ódio, que gritei: “Diga a verdade! Está com medo de perder! Covarde!”. Bem, naquele momento, os rapazes riram, mas eu não consegui rir. Eu estava repleto de raiva, porque desejava lutar com ele e não assistir um jovem robusto ser um covarde medroso.

Sexton deu outra pausa, talvez pensando nas memórias. Seus olhos pareciam perdidos, mas voltou a sua fala:

— Antes de o sol se pôr, falava-se em toda Lindal, de como eu desafiara Gilbert a lutar, e de como ele tinha me negado a chance. As pessoas estavam às suas portas, e olhavam para ele que subia a colina até sua casa, como se ele fosse um ladrão. As pessoas viravam a cara para ele. Uma recusa de duelo jamais fora ouvida em Lindal, e isso era sinônimo de grandiosa covardia. Um homem que foge do combate não é um homem realmente. No dia seguinte, no entanto, as pessoas começaram o falatório. Os homens murmuraram a palavra covarde quando cochichavam sobre o assunto, e as mulheres titubearam, enquanto ele passava diante delas, e as crianças, imprudentes pela idade que não se mede as palavras, gritavam: “Covarde! Covarde!”. Naquela noite, avistei Letty, na curva da estrada, ao seu lado, vindo da costa. Ela estava quase chorando, e olhando para o rosto dele, como se estivesse lhe implorando algo. Ela me disse depois o que pedira naquela noite. Já que, ela realmente gostava dele, e não podia suportar ouvi-lo ser desprezado por todos por ser um covarde. Ela, tímida como era, quase lhe disse naquela noite que o amava, e implorou-lhe que não se desgraçasse, mas que lutasse comigo, já que eu ousara o desafiar. Ela ainda se agarrava a ele, chorosa, irritada, com palavras para persuadi-lo. Palavras que cutucavam um homem covarde, de acordo com o que ela me disse, depois. Ela terminou dizendo que nunca mais falaria com ele, enquanto vivesse, se ele negasse o duelo.

O velho homem olhou para a relva, tocou com seus dedos tortos o tapete verde de grama e seguiu com voz rouca:

— Desde o dia em que os encontrei caminhando, Letty mudou comigo. Senti que essa mudança era para maltratar Gilbert. Ela era duas vezes mais gentil comigo, quando ele estiva por perto. No entanto, ela começou a gostar de mim realmente e em pouco tempo, tudo estava resolvido para nosso casamento. Gilbert manteve-se distante de todos e caiu em tristeza. Sua marcha foi mudada, seu passo costumava ser rápido e sonoro, porém, se tornara pesado que tocava lentamente o chão. Eu o fitava com desdenho, mas ele não reparava na minha conduta. Tudo nele mudara. Os rapazes não conversavam com ele, e quando ele descobria que seria desprezado por eles em uma partida de críquete, ele simplesmente não se aproximava.

Estávamos atentos ao que Sexton contava. Sua mente estava envolvida com a história contada que ele se esquecia de tomar um ar.

— O antigo funcionário era o único com quem ele conversava. Por fim, como o velho Jonas diria: “Gilbert tinha o Evangelho ao seu lado.”, e não fez mais do que o Evangelho lhe disse para fazer. Entretanto, nenhum de nós deu muito crédito ao que ele disse, e, aliás, nosso vigário tinha um irmão, um coronel no exército, e muitas vezes falamos para Jonas, se Gilbert conhecia o Evangelho melhor do que o vigário? Jonas estava errado em afirmar que Gilbert era um bom seguidor das palavras do Criador. E como diziam os radicais franceses: “Ele estava colocando a carroça na frente dos cavalos!”. Jonas afirmou que, ao contrário de Gilbert, o vigário pensava em brigar e isso era contra o que a Bíblia pregava. Após casado com Letty, deixei de odiar o Gilbert. Eu até tive pena dele, porque ele era tão desprezado por todos, sempre carregando seu olhar triste e caído. As criancinhas ainda o rodeavam como um enxame de abelhas, muito jovens para saber o que a palavra covarde significava.

— O que ele fazia ao ser atormentado por essas crianças? — perguntei.

— Ele não conseguia sentir raiva das crianças. Ele apenas sorria e fingia que as palavras não estavam o magoando. — ele coçou o alto da cabeça e continuou. — Depois de um tempo, tivemos nossa pequena criança também. Nós a amávamos muito. Letty a amava ainda mais.

O velho Sexton olhou para a baía, fechou os olhos, respirou profundamente:

— Todos os meus parentes viviam daquele lado da baía, acima de Kellet. Jane está enterrada perto de roseira branca. Jane estava se casando e Letty e eu devíamos ir ao casamento. Jane e minhas outras irmãs adoravam Letty, mas minha amada Letty não queria deixar nossa pequena filha sozinha, nem eu. Mas sabíamos que o casamento perturbaria a calma da pequena menina. Assim, depois de uma conversa, combinamos deixá-la com a mãe de Letty durante a tarde. Eu podia ver o coração dela doer um pouco, pois, ela nunca a deixara sozinha até então. Ela parecia temer algum mal, e cogitou que os rebeldes franceses a roubariam. Bem! Pegamos a carroça, minha velha égua cinza, e partimos grandiosos como o Rei Jorge[79] através das areias, por volta das três horas, porque a maré subia perto das seis. Então, íamos e voltaríamos antes da alta da maré, pois, Letty não queria deixar seu bebê por muito tempo nas mãos de sua mãe. Foi uma tarde feliz, e foi a última vez que vi Letty rir de coração aberto e, aliás, foi a última vez que sorri de coração também. Mas o que planejamos não ocorreu. A travessia foi por volta das nove horas. Nós perdemos muito tempo tentando pegar um porco que Letty ganhara. Ele gritava correndo ao redor da casa e corríamos atrás dele com grandes sorrisos e diante da alegria, o sol se pôs sem ser notado, e quando percebemos, sabíamos que a hora passara além do permitido. Chicoteei a velha égua, mas ela estava cansada da travessia e para piorar, ela não lidava bem com a areia mole que abraçava a baía. Tentamos aproveitar a luz vermelha do pôr do sol para conseguir ver alguns palmos diante de nossas vistas. Vocês, talvez, não conheçam as areias e a maré de lá. Do lado de Bolton, de onde saímos, é seis milhas até Cart-lane, e há dois canais para atravessar. Os canais ficavam com água baixa por três horas, mas após o pôr-do-sol, a água se erguia. Estávamos passando pelo primeiro canal cerca de duas milhas, e estava ficando cada vez mais escuro acima e ao nosso redor. Caímos em um buraco e gritei: “Senhor, nos ajude!”. Contudo, lamentei falar, porque assustei Letty, entretanto, as palavras foram arrancadas do meu coração pelo terror do momento. A senti tremer ao meu lado, e ela agarrou o meu casaco. E como se o porco percebesse o perigo em que todos estávamos, ele começou a gritar novamente, o suficiente para desorientar qualquer homem. Eu o amaldiçoava entre meus dentes por seu barulho, e ainda assim, era a resposta de Deus à minha oração, pecador cego como eu era. Sim! Você pode sorrir, mas Deus pode trabalhar através de muitas coisas escarnecedoras, se necessário. Por esta altura, a égua já estava atolada, tremendo e ofegante, como se estivesse com medo mortal. A água estava na altura de seus joelhos, e ela estava tão cansada! Tentei fazer a pobre andar, mas ela ficou parada. A chicoteei na tentativa de fazê-la andar. Ela gemeu bem alto, e tremeu de uma maneira terrível.

Sexton se curvou pela vergonha, se lamentando por açoitar a pobre égua velha:

— Letty não falara, apenas segurava meu casaco o tempo todo. A ouvi dizer algo murmurado, e abaixei a minha cabeça para ouvi-la: “Penso, John, que eu nunca mais verei o bebê de novo!”. Depois disso, ela gritou apavorada! Isso me enlouqueceu. Aquele quarto de hora parecia tão longo quanto toda a minha vida. Pensamentos, fantasias, sonhos e memórias se encontraram. A névoa pesada, que era como uma cortina sinistra, nos fechando para a morte, parecia trazer consigo os aromas das flores que cresciam ao redor de nosso umbral. Letty me disse que, depois, ouviu seu bebê chorando por ela nitidamente, acima da garganta das águas nascentes. Os pássaros estavam nos rodando, e o porco gritando. Um som estava perto de nós, misturando-se com o chicotear das águas na carroça. Mal podíamos ver, mas pensávamos ter visto algo negro contra a cor do chumbo profundo da onda, da névoa e do céu. Ele se aproximava com um movimento lento e constante, ele se deparou conosco. Era Gilbert e seu forte cavalo. Poucas palavras saíram de nossas bocas e pouco tempo tínhamos para dizê-las. Eu não tinha conhecimento naquele momento sobre o passado ou futuro. Apenas um pensamento era constante, o presente! Como salvar Letty e por último me salvar também. Gilbert falara que se guiara pelo grito de terror de um animal. Soube depois, pelo velho Jonas, com suas lágrimas que caíam de suas bochechas murchas, que Gilbert ficou preocupado com a nossa demora, selou o cavalo e partiu em nossa busca. Gilbert puxou Letty para seu cavalo. As águas subiram a cada instante, com um som amuado. Letty abaixou sua cabeça como se ainda não tivesse esperança de vida. Mais rápido que os pensamentos, Gilbert pulou ao meu lado e falou: “Rápido! Pule no meu cavalo e leve Letty! O cavalo sabe nadar. Pela misericórdia de Deus, seguirei vocês. Vou tirar a carroça da égua e ela sem o peso que carrega, conseguirá andar! De qualquer forma, você é marido e pai. Tem a prioridade neste resgate. Ninguém se preocupa comigo. Se eu morrer, ninguém sentirá a minha falta!”

O velho Sexton limpou com o pulso as lágrimas que desciam pelo rosto apático e amargo.

— Não me odeiem! Muitas vezes, eu gostaria que aquela noite fosse um pesadelo. Desde então, aquela noite assombra meu sono como um triste sonho, um pesadelo azedo, e mesmo assim, sei que não foi um sonho. Tomei seu lugar na sela e coloquei os braços de Letty ao meu redor, e senti sua cabeça descansar no meu ombro. Falei algumas palavras de agradecimento, mas não consigo me lembrar o que realmente falei para Gilbert. Só me lembro de Letty levantar a cabeça, e dizer: “Deus o abençoe, Gilbert Dawson, por salvar meu bebê de ser um órfão esta noite!”. Então, ela colocou sua cabeça contra as minhas costas, como se estivesse inconsciente. O cavalo forte nadou corajosamente através das ondas. Estávamos molhados quando chegamos às margens de terra, aliviados, mas só podíamos ter um pensamento: “Onde estava Gilbert?”. Névoas abundantes e águas agitadas nos cercaram. Gritamos seu nome. Letty levantou sua voz e gritou clara e estridente. Não obtivemos resposta, o mar continuou a crescer com uma batida amuada incessante. Cavalguei até a nossa casa. Pedimos ajuda nas casas perto da baía, porém, ninguém se levantou, por mais que eu oferecesse dinheiro para o resgate. Ninguém queria salvar um covarde. Se algum deles aceitasse, eu teria trabalhado a vida inteira para pagar a minha gratidão. Gritamos, mas nenhuma voz ou som humano foi ouvido. Nosso lamento não podia despertar os mortos. Levei Letty para casa e seu bebê, por quem ela chorou a noite toda. Voltei para a margem do Cart-lane, e de um lado para o outro, com a marcha cansada, caminhei ao longo da beira das águas, ocasionalmente, gritando no silêncio na procura por Gilbert. As águas voltaram e não deixaram vestígios. Dois dias depois, ele foi encontrado em terra, perto de Flukeborough. A pobre égua velha fora encontrada enterrada em um monte de areia em Arnside Knot. Seus amigos vieram de Garstang para seu funeral. Eu queria ir ao funeral, mas não tinha esse direito. Quando sua irmã arrumou suas coisas, implorei muito por algo que fora dele. Ela não me daria nenhuma de suas roupas, pois, ela tinha seus filhos, ainda meninos, que usariam as vestes do irmão morto. Ela me entregou a Bíblia dele, uma vez que ela disse que eles já tinham uma nova, e que a dele não passava de uma coisa velha e usada. Era uma bíblia revestida de couro preto, com bolsos nas laterais, à moda antiga, e em desses bolsos, havia um ramo de flores silvestres. Letty disse acreditar ser uma das flores que ela deu para ele em um de seus dias de namoro. Havia muitos textos no Evangelho, marcados com o lápis de carpintaria. De uma certeza, tenho, há apelo suficiente para bravura no serviço de Deus, e para mostrar amor ao homem, sem brigas e lutas. — ele suspirou. — Obrigado por me ouvirem. Suas palavras chamaram os pensamentos sobre Gilbert, e meu coração estava cheio e sufocado. Mas devo fazer as pazes com Deus e com Gilbert. Agora preciso trabalhar. Um menino precisa ser enterrado hoje, devo cavar a sepultura.

— Mas fale-nos de Letty! Ela ainda está viva? — perguntou Jeremy.

O velho sacudiu a cabeça e lutou contra um suspiro de asfixia. Após uma pausa de um minuto, ele disse:

— Ela morreu em menos de dois anos depois daquela noite. Ela nunca mais foi como antes. Ela sentava-se pensando em Gilbert, suponho. Porque ela jamais falara o que pensava. Eu não podia a culpar. Tivemos um menino, e o chamamos de Gilbert Dawson Knipe. Ele trabalha na ferrovia de Londres. Nossa menina morreu e Letty simplesmente entristeceu e morreu em menos de seis semanas. Elas foram enterradas aqui. Então, vim para estar perto delass, e longe de Lindal, um lugar que eu nunca moraria, depois que Letty se foi.

Ele se voltou para seu trabalho e nós, tendo descansado o suficiente, nos levantamos e saímos.

Fim.


Mão & Coração

— Mãe! Eu queria tanto ter dinheiro! Muito dinheiro! — disse o pequeno Tom Fletcher, em uma noite, enquanto ele se sentava em um banco baixo, junto ao joelho de sua mãe.

Sua mãe estava tricotando, e, vez ou outra, olhava para a luz do fogo, e ambos já estavam em silêncio há algum tempo.

— O que você faria com muito dinheiro, se o tivesse? — ela perguntou, sem tirar os olhos do tricô.

— Oh! Não sei... Eu faria muitas coisas! Contudo, a senhora não gostaria de ter muito dinheiro, mãe? — insistiu ele.

— Talvez... — respondeu a Senhora Fletcher. — Sou como você, às vezes, querido. Eu ficaria feliz com um pouco mais de dinheiro. Não obstante, creio que não sou como você em uma coisa... Nunca o desejo apenas para meu próprio bem. Visto como, sempre penso nas pessoas necessitadas quando reflito sobre ter dinheiro.

— Ora, mãe! Quantas coisas nós poderíamos fazer se tivéssemos dinheiro? Coisas realmente boas e sábias!

— Temos coisas realmente boas e sábias para fazer sem precisar de dinheiro! Aliás, não me falou de nada bom ou sábio até agora.

— Acredito que eu não estava pensando em coisas boas ou sábias quando mencionei desejar dinheiro, mamãe! No entanto, pensei somente no quanto eu gostaria de ter para fazer o que quero. — respondeu o pequeno Tom ingenuamente, olhando para o rosto de sua mãe.

Ela sorriu para ele e lhe acariciou a cabeça.

Tom sabia que ela estava contente com ele por ter lhe dito abertamente o que estava passando em sua mente. Então, ele começou novamente:

— Mãe! Se você quisesse fazer algo muito bom e sábio, porém, você não pudesse fazer isso sem dinheiro, o que você faria?

— Há duas maneiras de conseguir dinheiro para tais desejos. Uma, é ganhando, e a outra, é economizando. Ambas são boas, porque ambas implicam na autonegação. Você me entende, Tom? Se você quer ganhar dinheiro, você deve continuar fazendo o que não gosta. Como trabalhar, ao invés de brincar. Você ficaria mais feliz se ficasse relaxando em sua cama ou sentado, conversando comigo perto da lareira. Quando você trabalha duramente e recusa esses pequenos prazeres, você tem um propósito. Se você economiza dinheiro, pode facilmente ver o exercício da autonegação. Você consegue viver sem algo que deseja para possuir o dinheiro que usaria para adquirir tal coisa. Enquanto você limita estes desejos desnecessários, você polpa o dinheiro. Aliás, veja! O propósito para o qual você ambiciona o dinheiro deve ser considerado. Você diz que quer o dinheiro para algo sábio e bom. Neste caso, ganhar ou economizar, se torna sagrado. Você deve pensar qual será mais coerente. Ganhar, com seu trabalho ou economizar, evitando compras supérfluas.

— Não sei bem o que a senhora quer dizer, mãe... — o menino lamentou.

— Vou tentar explicar... Você sabe que tenho que manter uma pequena loja, fazer meias de tricô, limpar nossa casa, consertar nossas roupas, e também estou cumprindo meu dever de mãe. Se eu o deixasse à noite, quando você chega da escola, e fosse trabalhar em umas dessas casas noturnas, que os homens bebem até cair, eu poderia ganhar muito dinheiro com isso, e conseguiria gastá-lo bem, com boas coisas também, ajudando os mais pobres, como o Senhor Harry, aquele pobre homem que não pode mais andar. Entretanto, para isso, eu teria que te deixar sozinho por muitas horas, e fazer coisas que vão contra a minha moral. Por mais que tivesse meu propósito bom e sábio, eu estaria negligenciando você. Entende? Há coisas que precisam ter um propósito, no entanto, isso não pode passar por cima de coisas que temos como princípios.

— Você não pretende fazer isso, não é, mãe?

— Não! — afirmou ela, sorrindo. — Você vê em nossa realidade, que não posso ganhar muito dinheiro. Sendo assim, se eu quiser um pouco mais que o normal para ajudar um vizinho doente, devo tentar economizar dinheiro. Esta é a minha escolha para meu propósito bom. Quase todos podem fazer isso!

— Podemos fazer isso, mãe? Somos tão cuidadosos com tudo. Senhor Dixon nos chama de avarentos. O que poderíamos poupar, além do que já economizamos?

— Oh! Muitas pequenas coisas! Usamos muitas coisas bobas, de luxo desnecessário, que não precisamos, de fato, mas só as usamos por prazer. Chá, açúcar, manteiga, nosso jantar de domingo com torresmo ou carne, a fita cinza, que comprei para meu gorro, porque considerei mais bonita que a preta, que era mais barata. Tudo isso são ostentações que podem ser desprezadas. Usamos muito pouco chá ou açúcar... Na verdade, podemos passar sem nenhum dos dois.

— Sei bem sobre o que fala, mãe! Lembro-me de que, por muito, muito tempo, você sabe, a senhora ficou sem comer manteiga para ajudar a viúva Black.

— Bem! Agora você vê que podemos economizar dinheiro. Um centavo, um meio centavo por dia, ou até mesmo, um centavo por semana, e com o tempo, teríamos algum dinheiro para o propósito bom e sábio, usado na hora certa. Mas você sabe, meu filho! Penso que estamos considerando o dinheiro como a única coisa necessária, se quisermos fazer uma gentileza.

— Se não é a única coisa, é a coisa principal, de qualquer forma!

— Não, querido! Não é a coisa principal. Pessoas podem receber moedas e mesmo assim, continuarem tristes. O dinheiro, pouco pode fazer para alegrar um coração dolorido. Só a bondade pode fazer isso! Temos a bondade em nosso poder. A pequena criança de dois anos, que mal sabe andar, ela só pode mostrar bondade.

— Posso fazer isso, mãe?

— Com certeza, querido! Você o faz com frequência, porém, talvez não com a constância que você poderia fazer. Nem eu... No entanto, em vez de desejar dinheiro, suponha que você tente amanhã fazer as pessoas mais felizes, pensando em pequenas ações amorosas de ajuda. E, como diz aquele texto:

“Prata e ouro, não tenho nenhum, mas o que tenho em meu coração, dou para ti!”

— Ah, mãe! Nós temos, sim! — o menino a olhou esperançoso.

Devo lhe falar sobre o pequeno Tom de amanhã?

Não sei se o pequeno Tom sonhou com o que sua mãe e ele falaram na noite anterior, mas sei que a primeira coisa que ele pensou quando acordou no dia seguinte, foi que sua mãe dizia que ele podia tentar quantas ações gentis ele quisesse fazer naquele dia, sem dinheiro.

Ele estava tão impaciente para começar, que saltou da cama e se vestiu rapidamente, apesar de que fosse mais de uma hora antes de sua hora habitual para se levantar.

Durante todo o tempo, ele ficou se perguntando o que um garotinho como ele, de apenas oito anos, faria pelas outras pessoas, até que, tão intrigado com as ocasiões que ele desejava inventar para mostrar bondade, ele começou a observar as coisas ao seu redor.

Essa era a primeira coisa que ele tinha que fazer.

Assim, ele tentava, sem muito planejamento prévio, se manter pronto para dar uma mãozinha, ou palavra amável, quando chegasse o momento certo.

Então, ele encostou suas costas em um canto, fora do caminho da varredura e do pó da vassoura de sua mãe, e enfiou seus pés abaixo da cadeira, curvou a cabeça e ficou pensativo, por mais de meia hora.

Após isso, ele sentiu poder empregar seu tempo como quisesse, até que o café da manhã estivesse pronto.

Ele olhou ao redor do quarto que sua mãe arrumara, e agora ela caminhava, varrendo até a sala. Ele observou que não havia carvão na lareira, nem água no jarro, então, ele se apressou para ajudar a sua mãe.

Ao voltar com a água da bomba, ele viu Ann Jones, a mais impiedosa senhora da vizinhança, pendurando suas roupas em uma linha estendida de um lado ao outro do pequeno pátio, falando muito zangada com a sua filhinha. A menina estava se metendo em alguma traquinagem em casa, e sua mãe percebeu isso, através da porta aberta.

— Nunca houve pragas maiores que meus filhos! — gritou Ann Jones, ao entrar em sua casa, parecendo muito rubra e raivosa.

Logo depois, Tom ouviu uma bofetada e, em seguida, o grito de dor de uma criança.

“Pergunto-me...” pensou ele. “Se devo me oferecer para ir cuidar e brincar com a pequena Hester. Ann Jones é uma cruz desumana, e é muito provável que ela me entenda errado. Porém, ela não me insultará, já que ela respeita a minha mamãe, porque mamãe cuidou de Jemmy durante dias, devido à sua febre, então, ela não me dará um bofetão, creio. Em todo caso, vou tentar.”

E foi com um coração palpitante que ele articulou à feroz Senhora Jones:

— Por favor, posso ir brincar com Hester? Talvez, eu possa mantê-la quieta, enquanto a senhora está ocupada com a roupa.

— O quê? E deixá-lo em minha casa, justamente na hora do café da manhã do meu marido? Obrigada! Mas das travessuras de meus filhos, eu mesma cuido! Não quero nenhum estranho em minha casa, rapazinho!

— Não tenho a intenção de fazer travessuras ou agir de forma descuidada, senhora! — assegurou Tom, um pouco triste por ser mal compreendido em suas boas intenções. — Só queria ajudar!

— Se você quer mesmo ajudar, me entregue essas peças de roupas do cesto, e me poupe de inclinações, porque as minhas costas estão quebradas com isso!

Tom preferia ir brincar e divertir a pequena Hester, contudo, ele se contentou em ajudar a Senhora Jones com as roupas.

Ele imaginou que isso preservaria a mulher de ficar zangada com sua filha, já que ele estava ajudando-a, além disso, o choro da pequena Hester parara, e a menina estava, evidentemente, ocupada em alguma nova travessura. Tom só podia esperar que desta vez, a menina não estivesse em apuros.

Ele se apressou e começou a dar para Ann as roupas como ela queria, e ela, abrandada pela gentil ajuda do menino, abriu um pouco seu coração para ele.

— Me pergunto como sua mãe o treinou para ser tão prático, Tom! Você é tão bom quanto uma garota! Pensando bem, melhor que muitas garotas! Não creio que Hester, daqui a três anos, será tão atenciosa como você.

Ela olhou para trás, mirando a porta da casa e falou, após um ruído que vinha da casa:

— Pronto! Hester está encrencada! — gritou ela, largando as roupas nas mãos de Tom, e quando ela fez menção de caminhar até sua casa, Tom a segurou:

— Deixe-me ir! — murmurou Tom, com uma voz suplicante, já que ele temia o som cruel de outra bofetada. — Vou colocar a cesta de roupas neste banquinho. — ele puxou um pequeno banco de madeira, velho, que estava próximo dele. — Assim, a senhora não precisará se abaixar, e vou manter os pequenos a salvo de travessuras, até que a senhora termine. Deixe-me ir, senhora!

Com alguns resmungos por perder sua ajuda, ela o deixou ir.

Ele encontrou Hester, uma menina de cinco anos, e dois irmãos mais novos. Eles estavam brigando, e nas mãos de Hester, uma faca.

Tom correu os olhos para o menino que chorava, era o segundo irmão de Hester, Johnny, que cortara seu dedo, não muito. O pequeno garoto estava assustado com a visão do sangue, e Hester, realmente arrependida, estava nervosa, temendo a censura que sua mãe sempre lhe dava, se algum dos pequenos se machucasse, enquanto estava sob seus cuidados.

— Hester! — chamou Tom. — Você pode trazer um bule de água fria, por favor? Vai parar o sangramento melhor que tudo. Ah! Uma bacia, também!

Hester caminhou satisfeita, com a confiança de Tom em seu poder.

Quando a hemorragia foi parcialmente interrompida, ele pediu que ela pegasse algum tecido. Ela correu até a cômoda, se agachando e pegando um pequeno pedaço de tecido que ela guardara na gaveta, no dia anterior.

Enquanto isso, Johnny parou de chorar. Ele estava tão interessado em toda a preparação de Tom para curar seu ferimento e por também receber um pouco de atenção, coisa que sua mãe raramente dava para o menino, que seu choro morreu.

Tom colocou o bebê no chão, e assim, eles ficaram quietos e sem brincadeiras, até que Ann Jones entrou, e, tendo pendurado suas roupas e terminado o trabalho daquela manhã, ela estava pronta para cuidar de seus filhos de maneira áspera e apressada, como de costume.

— Bem! Tenho certeza que você, Tom, fez o seu melhor! Gostaria de ter sempre um como você para cuidar dessas crianças. Porém, você deve ir agora, rapaz! Sua mãe estava chamando você quando entrei. Eu disse que você já estava retornando para casa. Adeus e obrigada!

Quando Tom estava indo embora, o bebê, ainda sentado, porém, de alguma forma consciente dos modos gentis e prestativos de Tom, levantou o rosto para ser beijado, e Tom se abaixou em resposta ao pequeno gesto, sentindo-se muito feliz e cheio de amor e bondade.

Depois do café da manhã, sua mãe lhe disse ser a hora de ir para a escola, e ele a obedeceu, uma vez que ela não gostava que Tom se atrasasse para as aulas.

Tom pegou o boné e sua bolsa, saindo com seu coração suave, e isso fez seus passos leves, porque ele percorrera a metade do caminho, em um quarto do tempo que levaria de caminhada até à escola. Percebendo isso, ele afrouxou seu ritmo.

Havia uma menina, do outro lado da rua, carregando uma grande cesta e segurando uma criança pequena, que mal sabia andar. A menina parecia cansada, e o bebê chorava e sentava-se a cada dois ou três passos.

Tom correu e atravessou a rua, uma vez que, como você talvez percebera, ele gostava muito de bebês, e não suportava ouvi-los chorar.

— Garotinha, por que ele está chorando? Será que ele quer ser carregado? Posso levá-lo!

Dizendo assim, Tom ia adequar a ação à palavra, entretanto, o bebê não quis ser carregado, a não ser por sua irmã, e recusou a gentileza de Tom.

Sendo assim, Tom se ofereceu para carregar a pesada cesta de batatas que a menina segurava com dificuldade. O caminho dele para a escola e dela para casa, era o mesmo, e ela agradeceu pela ajuda.

Tom entrou pelos portões da escola muito feliz e sereno, e ele teria uma boa estória para contar para a sua mãe quando voltasse para casa, explicando sobre atos bons, sem usar o dinheiro.

Aconteceu que este mesmo dia era o último dia antes da folga semanal, e isso significava que Tom tinha muitas horas desocupadas na próxima tarde.

Naturalmente, sua primeira ocupação após o jantar, foi fazer as suas lições para o próximo dia de aula. Em seguida, guardas seus livros. E ao guarda-los, ele começou a se perguntar o que faria em seguida.

Ele ficou parado contra a porta, desejando toda sorte para realizar seus desejos futuros, isso era um hábito em que ele estava apto todos os dias, após o jantar.

O dia de folga nasceu e Tom desejava ser o menino que vivia para o bem, com amigos, uns três, para brincar com ele durante as folgas.

Ambicionava ser Sam Harrison, cujo pai o levara um dia para uma viagem pela ferrovia. Cobiçava ser o menino que sempre andava de trem, porque devia ser agradável subir naqueles degraus, e ver tanta gente.

Ansiava ser marinheiro, velejar para os países onde as uvas cresciam abundantemente, os macacos e papagaios viviam livres. Tom também desejava ser o pequeno príncipe de Gales, porém, ele refletiu sobre os problemas relacionados em ser um príncipe, porque o menino imperial não podia ser um menino normal, e Tom pensou se o menino não se sentia muito tímido com as três grandes penas de avestruz, sempre cravadas em seu chapéu, para que as pessoas o reconhecessem como monarca.

Sua mãe veio até ele, após lavar a louça, e o viu no fundo dos devaneios em que meninos e meninas estão aptos a cair quando são as únicas crianças em uma casa.

— Meu caro Tom... — sussurrou ela. — Por que você não toma um ar fora de casa, e aproveita ao máximo a tarde?

— Oh! Mãe! — respondeu ele, saindo de seu sonho e lembrando que ele era o pequeno Tom Fletcher, ao invés do Príncipe de Gales. — É tão monótono sair sozinho. Não tenho ninguém com quem brincar. Você não pode ir comigo, mãe, só desta vez?

Pobre Senhora Fletcher!

Ela desejava, de todo coração, poder satisfazer este desejo extremamente natural de seu filhinho, mas ela tinha tantas coisas para fazer. Era impossível sair e arejar a mente. Então, após um momento de reflexão, ela falou alegremente:

— Vá aos campos para um passeio, e traga-me flores para colocar naquele vaso que seu pai me deu!

— Mas, mãe... Há tão poucas flores bonitas perto da cidade! — afirmou Tom, com um pouco de má vontade, já que naquele momento, ele desejava ser o Príncipe de Gales, porque assim, ele teria tudo o que sua mãe desejava com um simples estalar de dedos.

— Oh! Meu Deus! Há muitas flores! Basta você procurar com atenção! Atrevo-me a dizer que já avistei mais de vinte tipos diferentes!

— As margaridas contam, mãe?

— Pode ter certeza que sim! Elas são tão bonitas quanto qualquer outra flor! Não menospreze as margaridas!

— Oh! Se você considera, ouso dizer que posso trazer mais de vinte delas, mamãe!

Foi assim que ele correu e sua mãe o observou, até que ele sumiu no horizonte, e ela voltou ao seu trabalho.

Cerca de duas horas depois, ele voltou.

Suas bochechas, que rotineiramente eram tão pálidas, pareciam bastante rosadas, e seus olhos, muito brilhantes. Sua caminhada campestre, tomada com espíritos alegres, tinha lhe feito todo o bem que sua mãe desejava, e restaurara seu temperamento, normalmente equilibrado e feliz.

— Olhe, mãe! Aqui estão vinte e três tipos de flores diferentes! Você disse que eu podia contar tudo... Até contei as urtigas, porque elas têm flores lilases.

— Oh! Meu caçador de flores! — exclamou sua mãe. — Por certo, as urtigas, se olhadas de perto, tem belas flores! Um, dois, três... — ela começou a contar cada flor e realmente eram vinte e três tipos de flores.

Ela pegou o vaso, colocando água fresca.

— Mãe... — começou o pequeno Tom. — Você gosta muito das flores?

— Sim, muito! — respondeu a mulher, não entendendo o significado da pergunta do menino.

Ele ficou em silêncio e deu um pequeno suspiro.

— Por que perguntou, meu querido?

— Oh! Porque pensei como seria bom levá-las ao Senhor Harry, que nunca pode caminhar até os campos, e mal pode sentir o frescor da sombra em uma tarde de verão.

— Oh! Isso será muito bom! Um ato muito generoso, meu filho! Estou feliz que tenha pensado nisso!

Lame Harry estava sentado sozinho, muito pacientemente em sua adega. Ele era sustentado pelos ganhos de sua filha, entretanto, como ela trabalhava em uma fábrica, ele estava muito só.

Se o ramo de flores era bonito nos campos, as flores ficariam dez vezes mais bonitas na adega para onde agora eram levadas.

Os olhos de Lame Harry brilharam de prazer com a visão das flores nas mãos do pequeno Tom. Harry começou a falar dos tempos passados, quando era um garotinho no campo, e tinha um canto no jardim de seu pai para chamar de seu.

O pequeno Tom colocou-as em um vaso com água para ele, e pousou o vaso na mesa de Harry, no qual sua filha colocara a sua velha Bíblia, usada todos os dias para uma leitura longa, e tratada com cuidadosa reverência.

O vaso estava ali ao lado da Bíblia, deitada aberta, com os óculos de Harry, colocados para marcar o lugar da última leitura.

— Acho que meus óculos estão se desgastando. Eles não são tão claros como costumavam ser, e sinto que eles estão opacos diante dos meus olhos, e me dói ler por muito tempo. — expressou Harry. — É uma triste falta não poder ler adequadamente. Quando leio, o dia passa mais rapidamente. Rezo para que o dia acabe, embora as noites, quando não consigo dormir, porque as minhas pernas doem, sejam quase tão ruins quanto os dias de olhos abertos. No entanto, é a vontade do Senhor.

— Você gostaria que eu... Não consigo ler muito bem em voz alta, no entanto, eu faria o meu melhor! Se você quiser que eu leia um pouco para você. Vou só até a minha casa para tomar meu chá, e voltarei rapidamente, Senhor Harry!

Antes que o homem respondesse, Tom correu.

Harry achou muito agradável a leitura em voz alta. O velho tinha tanto a dizer após a leitura de Tom e estava tão contente em ter um ouvinte para as suas ponderações, que creio que houve mais conversa do que leitura naquele fim de tarde.

A Bíblia serviu como um pretexto para sua conversa, pois, em sua longa vida, Harry viu e ouvido tanto.

Eventos sinistros, promessas quebradas, palavras das Escrituras jamais colocadas em prática.

Quando Tom se levantou para ir embora, Harry lhe agradeceu muito e disse que dormiria bem, porque Tom fizera a noite de um velho cansado realmente agradável.

Tom voltou para casa em alta autossatisfação.

— Mãe! — gritou ele ao entrar. — É tudo muito verdadeiro o que você disse sobre o bem que pode ser feito sem dinheiro! Já fiz muitos atos bondosos nestes dias sem um centavo. Primeiro... — disse ele, agarrando o dedo mindinho de sua mãe. — Ajudei Ann Jones a pendurar suas roupas quando ela estava...

Sua mãe ouvira, enquanto virava as páginas do Novo Testamento, que estavam ao seu lado, e agora, tendo encontrado o que queria, ela colocou seu braço suavemente em volta da cintura de Tom, e o puxou carinhosamente para ela.

Ele viu o dedo dela, colocado sob uma passagem bíblica, e o menino leu:

“Não deixe sua mão esquerda saber o que sua mão direita faz.”

Ele ficou em silêncio em um momento.

Então, sua mãe falou em sua suave voz baixa:

— Caro Tom... Embora eu não queira falar sobre isso, e mencionar que fez muito mais que deveria, para a sua idade, creio que se fez com o coração, é isso que importa... Estou feliz que você tenha visto a verdade no falei, porque, quando se faz com o coração amoroso, a mera doação de dinheiro é um detalhe. Podemos ter um coração generoso, basta querer!

Falei de um dia da vida do pequeno Tom, quando ele tinha oito anos, e vivia com sua mãe.

Devo agora descrever o que ocorreu um ano após, e lhe falar a vida muito diferente que ele vivera.

Sua mãe não era considerada saudável em um todo, e ela ficou doente. Ela sentiu que não havia esperança para sua recuperação.

Durante muito tempo, o pensamento de deixar seu filhinho sozinho foi uma grande angústia para ela e uma grande provação para sua fé.

No entanto, Deus a fortaleceu, e enviou paz à sua alma, porque, antes de sua morte, ela se contentou em deixar seu precioso filho nas mãos Dele, que é um Pai para os órfãos.

Quando ela sentiu que não tinha mais dias de vida, mandou chamar o irmão de seu marido, que vivia em uma cidade não muito distante, e deu seu pequeno Tom para que ele o educasse.

— Há algumas libras no banco! Não sei quantas exatamente. Os móveis e um pouco do estoque da loja, são de Tom. Talvez, possam ser suficientes para criá-lo para ser um carpinteiro, como seu pai era. — falou ela com fraqueza e muitas pausas.

Seu cunhado, apesar de ser um homem rude, desejava fazer tudo o que pudesse para fazê-la sentir-se tranquila em seus últimos momentos, e, tocado com a menção a seu falecido irmão, prometeu tudo o que ela desejava.

— Vou levá-lo comigo depois do... — ele mencionaria a palavra funeral, no entanto, ele parou.

Ela sorriu gentilmente, compreendendo totalmente o significado de sua pausa. E o cunhado continuou:

— Talvez, não sejamos tão carinhosos com ele, como você é, contudo, vou ajudá-lo em tudo que Tom precisar. Creio que meus filhos serão duros com ele no início, mas estarei de olhos bem abertos.

Embora este discurso não fora exatamente o que ela desejava para o futuro de seu filho, havia bastante sentimento bom em seu cunhado para que ela se sentisse grata por ser o tutor de seu filho.

E assim ... Agradecida pelas alegrias que ela teve ao lado do filho, pelas tristezas que lhe ensinaram a mansidão, pela vida, e também pela morte não dolorosa, ela morreu.

Seu cunhado organizou tudo como ela ansiava. Depois que o silencioso e simples funeral terminou, ele pegou Tom pela mão e partiu para a caminhada de seis milhas até sua casa.

Tom chorara até não poder mais chorar, mas os soluços vinham ocasionalmente, tremendo de seu coração, enquanto passava por uma cabana, um espinheiro, ou uma árvore na estrada, que o fazia se lembrar de sua saudosa mãe.

Seu tio lamentava muito por ele, entretanto, ele não sabia o que dizer, nem como confortá-lo.

— Agora, rapaz... Você terá a mim e seus primos! Deixe-me saber se eles te tratarem mal, certo?

Tom encolheu-se da ideia que seus primos o tratariam mal, uma vez que, até então, ele aguardara com prazer o encontro com os primos.

Ele não ficou tranquilo quando, após percorrer várias ruas e caminhos, eles entraram em um aglomerado de casas de aspecto sujo, e seu tio abriu a porta de uma casa, de onde se ouvia a algazarra de vozes barulhentas, que soavam zangadas.

Uma mulher alta e grande estava balançando uma criança em seus braços, com um movimento rude, enquanto ela repreendia um menino, um pouco mais velho que Tom, que ficava escutando amargamente as palavras da mulher furiosa.

— Vou falar de ti ao seu pai! — rosnou ela, e voltando-se para o tio John, ela começou a despejar suas queixas contra Jack, sem tomar conhecimento de Tom, que se agarrou à mão de seu tio, como se ele fosse um protetor naquela cena de violência, na qual ele entrara sem querer.

— Ora, ora, mulher! Vou colocar Jack de castigo na próxima vez que o pegar deixando cair água. Mas agora, me dê um chá, estou cansado.

A mãe resmungou ao deixar de limpar o chão molhado, para agitar as brasas e aumentar o fogo para a chaleira ferver. Ela, sem uma palavra de saudação ao seu sobrinho, ou de boas-vindas ao marido, saiu esbravejando sobre o problema em preparar o chá de novo, justamente quando ela deixara a fogueira perder força, e não tinha água em casa para encher a chaleira.

Seu marido ficou bravo, e Tom ficou assustado ao ouvir seu tio falar com intensidade.

— Se eu não puder tomar uma xícara de chá em minha própria casa, irei à taverna e levarei Tom comigo! Eles têm um fogo brilhante lá, o tempo todo, e não há esposas raivosas, por perto! Venha, Tom! Vamos embora!

Jack tentara se familiarizar com seu primo através de piscadelas e caretas pelas costas de sua mãe, e agora fazia um sinal de beber em um copo imaginário.

Tom se agarrou ao seu tio e puxou suavemente o homem para que sentasse novamente em sua cadeira, da qual ele havia se levantado para ir para a taverna.

— Por favor, senhora! — falou Tom, tristemente assustado. — Acho que eu poderia encontrar a bomba, se me deixar tentar!

Ela murmurou algo como uma aquiescência, então, Tom pegou a chaleira, e, mesmo cansado como estava, foi até a bomba mais próxima.

Jack, que não fizera nada além de maldade o dia todo, ficou espantado, mas, mesmo assim, concluiu que Tom era um tolo.

Quando Tom voltou, ele tentou acender o fogo com o fole quebrado, e finalmente a água ferveu, e o chá foi feito.

— Você é um rapaz raro, Tom! — afirmou seu tio. — Me pergunto, quando nosso Jack será tão útil como você!

A comparação não agradou nem a Jack, nem a sua mãe, que gostava de guardar para si, o privilégio de dirigir a insatisfação de seu pai com seus filhos.

Tom percebeu os olhares da mulher e as caretas do garoto.

O menino órfão, que não tinha nada a fazer, além de descansar e comer, começou a sentir-se muito triste, e seus olhos continuavam a encher-se de lágrimas. Ele as enxugou com a palma da mão, não desejando que fossem vistas, no entanto, seu tio o notou.

— É melhor ter bebido um copo na taverna! — expressou ele com compaixão.

— Não, meu tio! Estou apenas bastante cansado. Posso ir para a cama? — questionou ele, ansiando continuar seu choro por baixo da roupa de cama, e assim, não sendo observado.

— Onde ele vai dormir? — perguntou o marido para a sua esposa.

— Não sei! — disse ela, ainda ofendida por conta de Jack. — Isso é da sua conta, não minha! Ele é tua carne e teu sangue, não meu!

— Por Deus, mulher! — reclamou o tio John. — Ele é um órfão, pobre rapaz! Um órfão é parente de todos!

Ela sentiu pena do menino, uma vez que, ela tinha muita gentileza dentro dela, embora naquele momento, ela tivesse posto a gentileza de lado.

— Não há lugar para ele, a não ser com Jack e Dick! Temos o bebê em nossa cama, e os outros três estão na outra cama.

Ela levou Tom para o pequeno quarto dos fundos e parou para conversar com ele por um minuto ou dois, porque as palavras de seu marido golpearam o seu coração, e ela se arrependeu da recepção indelicada que dera para Tom no início.

— Jack e Dick nunca estão na cama nesta hora. Pode dormir enquanto isso. — explicou ela, enquanto segurava a vela.

Tom tentou falar com Deus, como sua mãe o ensinara, com a plenitude de seu pequeno coração, que estava tão pesado naquela noite.

Ele tentou pensar como sua mãe gostaria que ele agisse diante da discussão entre seu tio e sua tia. Ele rezou com fervor para que Deus guiasse o seu caminho.

Ele adormeceu chorando.

Ele sonhara com dias felizes, com um passeio de domingo, à noite, com sua mãe, quando foi acordado por seus primos.

— Tom! Você está deitado bem no meu lado da cama. Você deve se levantar, porque queremos nos deitar, depois, se restar espaço, deite-se!

Tom se levantou sonolento. Seus primos se deitaram e depois brigaram sobre quem ficaria com a maior parte da cama, que terminou com chutes e pontapés, durante a qual, Tom ficou tremendo ao lado da cama, observando a selvageria dos primos.

— Tenho certeza de que já estamos apertados o suficiente! — disse Dick finalmente. — Por que eles colocaram Tom conosco? Não vou suportar isso! Tom não vai dormir conosco! Ele pode deitar no chão, se quiser. Não me importo com este tolo!

Ele esperava uma oposição de Tom, e ficou bastante surpreso quando viu Tom se deitar calmamente no chão, e se se encolher.

Após mais algumas brigas, Jack e Dick adormeceram. No meio da noite, Dick acordou e ouviu pela respiração de Tom, que ele ainda estava acordado e chorava.

— O quê? Seu idiota! Está chorando? Por certo, quer deitar em nossa cama macia! — resmungou Dick.

— Oh! Não! Não me importo com isso! Estou chorando porque sinto a falta de minha mãe! Se mamãe estivesse viva... — o pequeno Tom soluçou em voz alta.

— Está certo! — resmungou Dick, após uma pausa. — Há espaço para que se deite atrás de minhas costas.

Tom se levantou e fez o que o primo pediu.

— Está gelado! Pegue a coberta! — falou Dick.

Dick lamentava a perda de seu primo, mas não podia falar sobre isso, porque seu orgulho era maior que a sua altura. No entanto, seu tom amável tocou o coração de Tom, e ele adormeceu mais uma vez.

Os três rapazes se levantaram quando amanheceu, mas não estavam inclinados a conversar.

Jack e Dick vestiram suas roupas o mais rápido possível, e correram para a sala. Esta era uma maneira bem diferente de que Tom estava acostumado a acordar.

Ele procurou por alguma bacia ou caneca para se lavar, mas não havia nem mesmo um jarro de água no quarto. Ele se vestiu, desceu as escadas, encontrou um cântaro e saiu para buscar água na bomba.

Seus primos, que estavam brincando no pátio da casa, riram dele, e não lhe disseram onde o sabão estava guardado.

Ele teve que procurar por alguns minutos antes que pudesse encontrá-lo. Então, ele voltou para o quarto, mas, ao entrar nele, o cheiro era tão opressivo, incapaz de ser suportado.

Três pessoas respiraram o ar a noite toda, e consumiram cada partícula de ar puro. Ele tentou respirar, mas o peso do ar invadia seus pulmões, o sufocando.

Eles não sentiram como era venenoso aquele ar enquanto permaneciam dentro dele e não perceberam que o cansaço ao respirar e a dor de cabeça eram fruto desta atmosfera pesada.

Ele foi até a janela para tentar abri-la, e você sabe, essas janelas são o que chamamos de A Luz de Yorkshire, onde, metade tem que ser empurrada para um lado. Estavam muito rígidas as dobradiças, pois, não eram abertas por muito tempo.

Tom empurrou a janela com toda a sua força, ela cedeu com um puxão, e o tremor mandou um painel rachado, que caiu no chão em cem pequenos pedaços. Tom ficou tristemente assustado quando viu o que fizera.

Ele estava arrependido de sua tentativa, e sabia o suficiente sobre os modos de sua tia na noite anterior, para entender que ela era dura demais para não o punir.

Tom começara muito mal o seu primeiro dia naquela casa.

O menino se sentou na cabeceira da cama e começou a chorar. Mas o ar da manhã soprava sobre ele, refrescava e o fazia sentir-se mais forte. Ele tomou coragem, enquanto lavava seu rosto na água pura e fria.

“Ela não pode ficar brava comigo por mais que um dia. De noite estará tudo bem. Posso suportar um dia.” pensou.

Dick surgiu correndo porque esquecera algo no quarto e avistou Tom.

— Dou a minha palavra, Tom! Você vai pagar por isso! — exclamou ele, quando viu a janela quebrada.

Ele ficou meio satisfeito com o evento, e meio triste por Tom.

— A mãe bateu em Jack, na semana passada, por atirar uma pedra pela janela do andar de baixo. Ele ficou de castigo até a noite. É... Tom, eu não queria estar em sua pele!

Tom começou a chorar novamente com este relato da raiva de sua tia. Dick ficou cada vez mais triste por ele.

— Vou te dizer uma coisa... Vamos descer e dizer que foi um rapaz na rua que estava jogando pedras, e uma bateu na janela. Tenho uma pedra no meu bolso, que serve como nossa prova do crime!

— Não! — disse Tom, de repente, parando de chorar. — Não vou ousar fazer isso! Eu estaria mentindo!

— Não se atreva! Ora! Você terá que ousar muito mais, se você for até a sala e enfrentar mamãe, sem a mentira que desejo dizer!

— Não! Não vou! Prefiro enfrentar a fúria de sua mãe a ter que ver a raiva de Deus! Minha mãe me ensinou a temer Deus. Ela disse que não preciso ter medo de mais nada. Fique quieto, Dick, enquanto rezo minhas orações!

Dick viu seu primo ajoelhar-se ao lado da cama e enterrar seu rosto na roupa de cama.

Tom não disse nenhuma prece que Dick estava acostumado a pensar ser a única forma de rezar, e sim, um murmúrio baixo que Dick ouviu. O menino falava como se estivesse conversando com um amigo querido, e embora no início ele chorasse, ao pedir ajuda e força, quando se levantou, seu rosto parecia calmo e brilhante, e falou calmamente para Dick:

— Agora estou pronto para ir e contar à tia sobre o que fiz!

Enquanto isso, a tia sentia falta do jarro e do sabão, e não estava de humor apropriado quando Tom veio fazer sua confissão.

Ela não trabalhara naquela manhã e agora Tom vinha contar-lhe que a vidraça estava quebrada e que ela precisava ser consertada, e que isso resultaria em gastos e eles tinham pouco dinheiro. A mulher ficou raivosa, porque tudo isso era culpa de uma criança irresponsável.

Ela deu, como era de se esperar, um ou dois bofetões muito fortes em Tom.

Jack e Dick olharam com curiosidade para ver como ele reagiria. Jack, de qualquer forma, esperava um choro estridente, porque ele chorara alto em sua última surra, no entanto, Tom não derramou uma lágrima, embora seu rosto ficasse muito vermelho e sua boca crescesse com a dor.

Porém, o que mais impressionou os meninos do que seu jeito duro em suportar tais golpes, foi sua quietude depois.

Ele não resmungou alto, como Jack teria feito, nem ficou incomodado, como era costume de Dick, mas no minuto seguinte, ele estava pronto para ajudar a sua tia, e sem fazer nenhuma menção sobre os golpes duros, quando seu tio chegou para o café da manhã, como sua tia esperava que ele fizesse.

Ela ficou feliz por ele não falar nada para o tio, porque sabia que seu marido ficaria descontente em saber que ela estava batendo em seu sobrinho órfão, e ficou grata por seu silêncio, e certamente começou a se arrepender de bater nele com tanta força.

Pobre Tom!

Ele não sabia que seus primos estavam começando a respeitá-lo, nem que sua tia estava aprendendo a gostar dele.

O pequeno Tom se sentia muito solitário e desolado naquela primeira manhã em sua nova família.

Jack foi trabalhar na fábrica e Dick foi resmungando para a escola. Tom se perguntava se deveria ir à escola novamente, mas não desejava perguntar.

Ele se sentou em um banquinho, o mais longe possível do caminho de sua tia terrível.

Ela tinha uma filha caçula, de cerca de um ano e meio de idade, que engatinhava pelo chão.

Tom ansiava por brincar com ela, mas não tinha certeza de quão longe sua tia gostaria disso. Mas, ele continuava sorrindo para a menina, e fazendo tudo o que podia para atrair sua atenção e fazê-la vir até ele.

Finalmente ela foi persuadida a ir até o joelho dele. Sua tia a viu, e, embora ela não falasse, não parecia insatisfeita.

Ele fez tudo o que pôde para divertir a pequena Annie, e a mãe dela ficou muito feliz.

Quando Annie ficou sonolenta, ela ainda sustentava um dos dedos de Tom em sua mão pequena, redonda e macia, e ele começou a conhecer a feliz sensação de amar alguém novamente. Porque na noite anterior, quando seus primos o fizeram sair da cama, ele se perguntou se viveria até a velhice, sem ter ninguém para amar.

Seu coração sentia-se aquecido pela pequena menina que estava em seu colo.

— Ela vai te cansar, Tom! — falou sua tia. — É melhor você me deixar colocá-la no berço.

— Oh! Não! Por favor, não! Gosto tanto de tê-la aqui em meus braços. Ela nem se move, está quietinha. Admito que ela é um pouco pesada para meu braço. Estou evitando me movimentar por medo de despertá-la.

Quando ela se levantou, sua tia articulou:

— Tom, obrigada, por cuidar dela! Agora, vá brincar um pouco com seus primos no pátio.

Sua tia estava aprendendo algo que Tom estava ensinando, embora ambos ficassem muito surpresos em ouvir isso.

Sabemos que em uma família, um que é egoísta por defender seus direitos, e raramente mostra sentimentos de gratidão, resolve agradecer e isso significa que sua alma está de alguma maneira aliviada.

A tia de Tom nunca teve que lembrar Jack ou Dick de sair para brincar, ela não se importava com isso, porque eles apenas viravam as costas para ela e partiam para brincar, sem pensar que ela precisava de ajuda, vez ou outra. Eles estavam prontos para pensar em seus próprios prazeres.

Quando chegou a hora do jantar, e toda a família se reuniu para a refeição, a desordem se instalou diante da mesa devido à briga pelo melhor pedaço.

Tom ficou com vergonha daquela situação e permaneceu quieto. Sua tia, em seu gosto recém-nascido por ele, o ajudou a fazer seu prato. Mas ele não comeu, porque fora costume de sua mãe agradecer antes da refeição pela comida posta em sua frente.

Ele esperava que seu tio seguisse a mesma observância, e esperou.

Mesmo tímido, ele pensava em fazer o certo. Ele guardou sua timidez, e muito silenciosamente, mas bem solenemente, disse a velha frase dita pela ação de graças.

Jack desatou a rir quando Tom terminou, e o pai de Jack deu um cutucão em suas costelas e uma palavra dura, o que o fez permanecer calado pelo resto do jantar.

Mas, exceto Jack, que estava com raiva, acho que toda a família ficou feliz por escutar com reverência e alguma surpresa, a ação de Tom.

Eles não eram pessoas totalmente mal dispostas por estes atos de agradecimento, e se sentiram bem porque isso dava harmonia em sua rotina, já que, essa consideração dá ordem a um lar, com um espírito sábio e santo de amor.

A partir daquele primeiro dia, Tom nunca mais retrocedeu no que se referia aos seus desejos.

Ele foi útil a sua tia, e pacientemente entendeu seu aborrecimento apressado, até que, por muita vergonha, ela deixou de ser dura com alguém, que sempre foi tão manso e brando.

Seu tio, às vezes dizia, que ele era mais parecido com uma menina do que com um menino, que isso era culpa de sua mãe, que o educou por tantos anos sem interferência de um homem.

Isso era a maior falha, se assim podia ser dita, que seu tio encontrou nele. O homem realmente o respeitava pelas qualidades, como a coragem com que ele ousava fazer o que era certo, e pela serena firmeza com que ele suportava a dor em suas variadas formas.

Quanto à pequena Annie, sua amizade e amor foram o deleite para o coração de Tom. Ele não sabia o quanto os outros gostavam dele, contudo, Annie mostrou isso de todas as maneiras, e ele a amava muito também.

Dick logo descobriu quão útil Tom era para ele em suas lições, já que, embora mais velho que seu primo, Dick era um aluno regular, que não se esforçava muito para estudar e não se comparava a Tom, que era um estudante exemplar.

E, muito antes que Jack reconhecesse, Dick sustentou que:

— Tom tinha uma grande dose de coragem nele, embora, não fosse corajoso como Jack!

Agora, vou pular mais um ano, e contar-lhes um pouco sobre a casa número doze, meses depois de Tom entrar nela.

Eu disse acima, que sua tia aprendera a falar menos cruelmente com Tom, porque ele era sempre gentil, mesmo depois de suas repreensões.

Pelos modos de Tom em falar e agir, eles se tornaram menos duros.

Sua tia se envergonhava de falar com seus filhos e marido de forma irada diante de Tom, porque ele sempre parecia tão triste quando a ouvia gritar ou reclamar.

Ela também falou com ele, algumas vezes, sobre sua mãe. A princípio, porque ela entendia que ele gostaria de conversar sobre sua mãe, e depois, porque ficou realmente interessada em ouvir o que o menino pensava.

Tom, sendo filho único, amigo e companheiro de sua mãe, foi capaz de ensinar para a tia muitas artes domésticas de conforto, porque vinham dos lábios de uma criança. Ela ficaria orgulhosa demais para aprender, se fosse falado por pessoas mais velhas.

Seu marido foi acalmado pela limpeza e paz de seu lar. Ele não se refugiava ocasionalmente em uma taverna, para sair de perto das crianças barulhentas, de um lar triste e uma esposa dura.

Uma vez, quando Tom ficou doente por um ou dois dias, seu tio sentiu falta da sua oração antes da refeição, e acostumado à fala de Tom, ele começou a orar também. Ele era a pessoa que dizia:

— Silêncio, rapazes! Vamos agradecer!

Depois, ele pedia a bênção sobre a refeição.

Eles se reuniam em torno da mesa, em vez de sentar-se aqui e ali, na maneira sem conforto e insociável que costumavam fazer.

Tom e Dick iam à escola, e Dick estava aprendendo a gostar da estudar, logo ajudaria seu irmão mais novo em suas aulas, como Tom o ajudou.

Até Jack reconheceu que Tom conseguia arrancar de sua mente uma forma curta e resumida de todas as suas virtudes. Jack estava se tornado mais afeiçoado ao seu primo.

Tom não pensava em felicidade, mas estava feliz, e acho que podemos esperar que ele e a família que o adotou, vivarão bem.

Agora, você não vê o quanto esta família está mais feliz com a única circunstância de uma criança pequena entrar em suas vidas?

O dinheiro teria feito um décimo desta felicidade real e crescente?

Penso que todos vocês vão dizer:

“Não!”

No entanto, Tom não era uma pessoa poderosa, não tinha amigos no início, mas era inteligente, amoroso e bom.

É sobre essas duas qualidades, que qualquer um de nós pode tentar...

A bênção de Deus reside na abundância rica dos atos, não nos quinhões dentro de nossos bolsos.


Martha Preston

Nos últimos anos, estive duas vezes nos Lagos.

Há uma estrada que leva até Grasmere, na direção menos conhecida de Loughrigg, que apresenta um número singular de paisagens marcantes e diferentes.

Primeiro de tudo, ao sair da estrada para Langdale, você sobe uma pequena colina, e lá embaixo, em uma espécie de bacia gramada na lateral fica o Loughrigg, favorito de Wordsworth[80], o Speculum Dianæ[81], como costumava ser chamado o lago oval, profundo e claro como um espelho deve ser. Depois, você passa entre duas casas da fazenda de Westmoreland, que são cortadas pelo caminho, por assim dizer.

Logo, você avista uma pequena cena familiar, com suas janelas, chaminés, portas de boa madeira, trabalhadas e enfeitadas com hera e rosas trepadeiras, estas últimas, se arrastam através da parede de pedra, e perfumam o ar, já tão aromático com as fragrâncias das ervas que abraçam o caminho.

Passando estas casas, você parece deixar para trás toda a habitação humana, porque as cercas desaparecem, como se o pântano e a relva não valessem a pena, até que você chega a um pequeno vale, um barranco, onde permanece uma ou duas antigas árvores da floresta de Loughrigg, e, como se elas sugerissem a ideia de fixarem suas raízes na parte mais baixa, aberta e genial deste barranco. Há, também, outras árvores mais resistentes, de uma data muito posterior, digamos mais de cinquenta anos, que espalham seus galhos, e crescem sem controle e sem poda, até formarem um grande paredão verde, talvez de quase uma milha de comprimento, no lado sombrio da montanha, através da qual, passa a estrada para Red Bank, onde, primeiro você verá Grasmere, com sua planície deitada e calma, abaixo de seus olhos que refletem o céu azul, e os cumes roxos das montanhas em sua superfície vítrea.

Volte comigo para a parte sombria de Loughrigg.

Passando um chalé de pedra, lá na parte mais aberta, onde sua atenção foi desviada de objetos chamativos do vale entre Loughrigg e Highclose.

E tão absorvido por este vislumbre do pequeno vale brilhante e fértil à esquerda, com seu verde prado e cinza da montanha, que não pôde notar a velha cabana cinza.

Ela ficava logo acima da estrada, de madeira, à direita, com seu ar pitoresco, abraçada pelos raios do sol que douravam as janelas como painéis de diamante, durante toda a longa tarde de um dia de verão.

A cabana ficava em uma parte alta o suficiente para conduzir uma bela visão através daquela abertura das árvores por muitos quilômetros. Ela era grande e espaçosa, embora muito irregular e baixa, se espreitássemos por cima das pedras. Havia também um pequeno jardim aparado, com agradáveis bordas de flores sob as janelas baixas.

Esta casa sempre me pareceu estar em uma bela situação, protegida, com um olhar brilhante em uma cena distante de muita variedade de outrora. Entretanto, alguns anos atrás, ela tinha uma sensação de desolação e isolamento eremita.

Há sinais ainda de infância, de vozes de crianças que se misturam com o canto dos pássaros nas árvores, o jardim tem uma estranha mistura de seixos brancos, dentes-de-leão e margaridas desbotadas, pedras, musgos que sobem pelas paredes e tocam o teto, para dar-lhe aquela rica variedade de cores que você vê, mas antigamente isso tinha a aparência de uma habitação e agora era apenas uma casa no meio do seio verde da natureza.

Os arbustos de groselha eram podados e agora estavam cobertos pelos seus frutos.

Seus longos ramos de rosas já não seguiam mais o rastro no chão.

Agora me escutem, enquanto lhes conto o que ouvi sobre os habitantes daquela cabana, durante os últimos trinta anos.

Sente-se nesta árvore derrubada, e enquanto o zumbido do meio-dia dos insetos se mistura com o zumbido das abelhas nas colmeias, tecerei junto o que aprendi sobre Martha Preston.

A casa e talvez quarenta acres de terra, evidentemente alguns rochosos e estéreis, dificilmente serviam para algo, nem para alimentar as ovelhas, a terra servia.

Havia alguns meros pântanos, e como tal, só serviam para fornecer turfa para combustível, e alguns prados ricos, formavam as possessões hereditárias dos Prestons, os estadistas de Westmoreland.

Por duzentos anos, seguramente, este recanto de terra fora deles, e por quase tanto tempo, aquela casa fora a sua habitação, para julgar pelas iniciais e data esculpidas para cima e para baixo na velha árvore de carvalho.

A cômoda e as mesas foram provavelmente feitas no local, a partir dos restos de algumas das antigas árvores da floresta, e polidas por muitas donas de casa, antes de Jane Preston colocar sua filha Martha para poli-las, como tarefa matinal.

Thomas e Jane Preston tiveram dois filhos, Martha e John.

Martha era mais velha oito anos, e sentia o dever de uma mãe para o menino, que ela protegera mais que sua mãe de verdade.

Pois, Jane tinha muito que fazer.

Ela devia ir ao mercado, depois, visitar as vacas leiteiras, cuidar das ovelhas e sua tosa. Jane era uma mulher ocupada, agitada e manejadora da ordem daquela casa. Alguns diziam que ela trabalhava feito um cavalo.

Se ela tivesse tempo, ela cuidaria de seus filhos, mas nos dias de semana, isso era pouco provável.

John Preston era reservado e quieto, um homem de poucas palavras, sensato, consciencioso e totalmente íntegro. Ele não falava de seus deveres, obrigações estas que as pessoas esqueceram nos últimos tempos. Ele lutava para manter os bons costumes, e como tal, impressionava assim o coração de sua filha.

Não sei se você já notou, mas me impressiona que uma mãe muito ativa nem sempre faz uma filha ativa.

Jane fazia as coisas de forma muito inteligente e avidamente, para ter paciência com os esforços incômodos e lentos de Martha. Pelo menos, foi o que aconteceu com Jane Preston.

A garota demorava demais para voltar do mercado com a manteiga, então, Jane Preston ia em seu lugar. Martha não sabia como manusear a vaca, e o melhor leite se perdia, toda vez que ela tentava. Assim, em vez de mostrar para Martha como fazer, ela mesma fazia. A menina fazia os pães muito duros, porque ela não sabia pressionar bem a manteiga e a água. Ela dobrava as roupas da maneira errada, de modo que Jane precisava dobrá-las novamente.

No final, Jane Preston fez todo o trabalho de forma rápida e inteligente, e Martha foi deixada para cuidar de seu irmão, caminhar sobre a relva, sonhar e pensar.

Quando Martha tinha cerca de quinze anos, sua mãe morreu rapidamente, com a mesma intensidade com que vivera.

Era estranho observá-la morta, porque até o último momento, ela parecia tão cheia de vida.

Depois, quando ela se foi, o marido e a filha, muitas vezes, preocupados e irritados, sentiam falta da cabeça e do coração de Jane, sempre cheios de pensamentos para os outros, nunca para si.

Martha era a faz-tudo agora e tentava tomar o lugar de sua mãe na fazenda. Cuidando das ovelhas e vacas, indo ao mercado, o mais rápido que podia.

Johnnie foi enviado para a escola de Grasmere.

Assim, eles continuaram por vários anos, até que Martha cresceu e se tornou uma bela jovem mulher, quieta, firme e calma em seus modos, porém, com um coração candente e sensível, e caráter cheio de imaginação.

Seu coração e caráter foram atraídos, como corações e personagens, às vezes, são atraídos por seus opostos.

William Hawkshaw fora escolhido para ficar na fazenda por um mês, na ajuda da tosquia de ovelhas e feno.

Ele era um dos muitos filhos de um estadista do outro lado de Ambleside. Seu pai possuía mais terras do que John Preston, mas, a sua grande família tornou seus meios mais limitados, e vários de seus filhos precisaram trabalhar em fazendas próximas.

O velho Hawkshaw tentou impressionar seus filhos com os hábitos mais prudentes e cuidadosos, todavia, por um tempo, seus princípios permaneceram adormecidos e improdutivos.

Will Hawkshaw era um jovem bonito, de aparência leve e alegre, espirituoso e cheio de vida, que trazia com ele uma espécie de sol, onde quer que andasse, não importava se era na igreja ou no mercado.

Era natural que Martha, vivendo em uma solidão escura com seu pai e seu irmão, de hábitos semelhantes aos dos aposentados não sociais, fosse poderosamente atraída pelo jovem, que, como é costume, veio para se hospedar com eles durante o mês para ajudar tosquia de ovelhas e no estoque de feno.

Não foi difícil imaginar que ela se apaixonaria pelo belo rapaz.

Eles trabalharam juntos no feno, correram atrás das ovelhas que fugiam, e como Johnnie uma vez observou inocentemente:

— Martha aprendera a rir bem alto desde que Will Hawkshaw chegara!

Porque, antes disso, seu sorriso fora tão silencioso quanto um raio de sol, mas agora seu riso jorrava, feito música.

O pai viu tudo com calma e concordância. Era adequado que os jovens se encantassem um pelo outro.

Will tinha uma quantidade respeitável de economias guardadas, e se ele não tivesse muito, isso não importava, uma vez que Martha teria uma boa parte do dinheiro guardado no Banco Kendal, porque as terras foram dadas para Johnnie, assim, não havia nenhum impedimento para o enlace.

Will era, à sua maneira, atraído por Martha também. Ele estava feliz em ver sua influência sobre ela, e perceber poder agitar as profundezas daquela alma, tão quieta e calma na aparência.

Creio que fora logo após aquele mês de verão, em 1818, que eles ficaram noivos, e o coração de Martha estava cheio até a borda por imensa felicidade.

Não havia um plano definido para o futuro.

Will queria trabalhar na fazenda por alguns anos, de modo a poupar mais dinheiro.

Martha jogou seu olhar para o futuro, visto como ela estava segura do afeto de Will, porém, começou a se censurar por querer deixar seu pai e Johnnie sozinhos, e o desejo natural por um lar e um marido, começou a ser considerado um crime por sua consciência terna, já que sentia que ela era necessária para a felicidade do pai e irmão.

Desta forma, dois ou três anos se passaram. Martha acalentava a ideia de Will com a mais fiel constância, e dificilmente ousava mostrar-lhe a alegria excessiva que havia em seu coração, quando ele vinha em suas visitas ocasionais.

Ele trabalhava corretamente e se tornara o favorito em todos os lugares que prestava seus serviços, por suas capacidades masculinas e seu temperamento social e alegre.

O evento seguinte foi o afundamento calmo na morte de John Preston. Ele disse para Martha, alguns minutos antes de sua morte, que, saber que ela se casaria, era um conforto em sua hora final e primeiro, encarregou Martha para ser o pai e mãe de Johnnie, agora com apenas dezesseis anos.

Assim, para o bem de Johnnie, ela cuidou de todas as coisas referentes a fazenda, e esperou pelo seu casamento.

As terras perderam o valor e isso deixou Martha preocupada.

Will parecia um pouco surpreso com esta diminuição.

A diminuição fora devido ao gado que ficara doente e algumas pessoas ficaram também doentes após comer a carne da fazenda dos Prestons.

Era uma febre baixa, pelo relato que ouvi, uma espécie de febre tifoide, imagino, que se tornou rotina para aqueles que provavam daquela carne, e, para o terror doentio de Martha, Johnnie também contraiu a doença.

Quando esse perigo surgiu, parecia que seu amor fraterno engoliu todos os outros amores, em sua impotência e inconsciência divagante, ele era mais uma vez o pequeno bebê que ela carregava com o anseio de amor de uma jovem mãe.

Vizinhos bondosos, no sentido samaritano, vieram de Easedale e Skelwith para ajudá-la a cuidar dele durante os vinte dias de doença em fúria.

O médico de Ambleside foi chamado, na desconfiança do farmacêutico mais próximo de Grasmere sobre o estado de saúde de Johnnie.

Ele se recuperou da febre, mas, à medida que se recuperava, sua mente perdeu os sentidos e não foi restaurada.

Os vizinhos suspiravam e balançavam a cabeça, olhando misteriosamente, muito antes que a ideia desta tristeza escurecesse a vida de Martha.

No entanto, quando ele estava forte o suficiente para sair da cama, Martha percebeu que algo estava errado.

Johnnie ficava parado, olhando para o vazio, ou para o brilho do sol tocando o bosque e ele sorria estranhamente e se assustava com qualquer barulho, como uma pequena criança que jamais colocara a face para fora de sua casa.

Ele falava que a protegeria dos fantasmas, porque ele afirmava que os avistava correndo pelo jardim. E foi assim que Martha percebeu que seu irmão não seria mais o mesmo.

O médico confirmou isso com triste gravidade.

Naquela noite, Martha não foi para a cama. Sentou-se sozinha, olhando silenciosamente para as brasas cinzentas entre as quais as faíscas corriam de um lado para o outro.

Não havia dúvidas em sua mente quanto ao seu dever para com seu irmão. Estava, diante de seus olhos, a sua vida, desde sua infância até aquele dia, exibida como em um panorama, e essa lembrança do passado e pensamento do presente, fez com que as lágrimas rolassem desatadas por suas bochechas, e caíssem soltas sobre seu colo.

Os próprios ratos correram...

Ela ficou imóvel durante a noite de agonia interior.

Quando ela estava suficiente estável para escrever, ela pegou caneta, papel e pediu que Will Hawkshaw viesse até ela. Ela não conseguia expressar facilmente seus pensamentos de maneira despropositada, por isso, se limitou a escrever uma frase pequena com seu único pedido.

O domingo seguinte o trouxe como ela esperava, e seu olhar rápido entendeu o problema antes que ela, com sua voz soluçante, pudesse colocá-la em palavras.

Em seguida, o joio surgiu. As antigas máximas mundanas, semeadas por seu pai, cobriam e estrangulavam a vida do trigo.

Se Johnnie fosse calado em um manicômio, Will e Martha poderiam ter a terra, e se casar imediatamente.

O pensamento do casamento deles também estava na mente de Martha, e mesmo tímida, ela propôs a ele com calma, quando suas palavras tomaram coragem dentro de um rubor de solteira que cobria o seu rosto:

— Se casarmos, posso cuidar de tudo! Cuidar de você e de meu pobre irmão também. O médico deu pouca esperança, mas Deus é poderoso para muitas coisas, e eu nunca deixarei de rezar!

Entretanto, Will tinha outros pensamentos, a cobiça de seu coração era de um homem, e ele acreditava que seu poder sobre Martha era suficiente para convencê-la de seu ponto de vista, mas ele estava enganado.

Ela viu um grande abismo entre suas almas naquele dia, um precipício maior e mais profundo que aquele entre ela e as visitas, que entraram e saíram de sua casa, curiosos para saber o que ocorrera com o menino, com murmúrios e risos.

Embora Martha encolhesse e estremecesse quando começara a entender as razões de Will, ela esperou por muitas horas, imaginando que as palavras dele pudessem ser um erro ou um sonho. Ou, talvez, que ele estava apenas brincando, em um momento estranho, triste, inapropriado, por certo, e o sol se pôs naquele dia de outubro, enquanto eles ainda estavam discutindo o assunto.

Acredito que Will não tinha ideia sobre todas as coisas, apenas que Martha aceitaria seus termos, se ele fosse implacável e firme o suficiente.

Ele fizera muitas conquistas entre as filhas dos fazendeiros, e tinha uma grande ideia de seu poder sobre as mulheres.

Assim, quando eles se separaram naquela noite, e ele teve que ir a Patterdale para o trabalho do dia seguinte, seu pensamento era claro. Ele estava deixando-a apenas por um tempo para que Martha pudesse digerir suas palavras, e esperava ser lembrado, mesmo com demora, antes do domingo seguinte.

Ele chegou ao ponto de falar de suas perspectivas para um ou dois amigos, mas a carta de Martha com sua resposta nunca chegou às mãos de Will.

Ele se gabara de seu poder, entretanto, seu poder foi desafiado. Então, a raiva tomou o lugar do amor que ele tivera. Isso era a prova que a maneira que ele amava Martha era bem diferente do amor que ela sentia por Will.

E assim, Martha viveu sozinha com seu irmão doente.

Ela se preparou para sua vida que se dividiria entre cuidados com o irmão e zelo com a fazenda, e disse que, com a ajuda de Deus, ela passaria por isso.

Algo do caráter de sua mãe surgiu em Martha quando ela se dedicou à administração da fazenda. Ela recebia ajuda, em momentos de muito trabalho, e sempre os conselhos de seus vizinhos estavam ao seu dispor, pois, embora eles dissessem pouco, sentiam profundo respeito por Martha.

Johnnie podia ajudar um pouco e gostava de ser útil. Ele era tão dócil quanto uma criança, entretanto, às vezes, ele era inquieto, selvagem e irritável, e os transeuntes pela mata, na calada da noite, ouviam seus gritos, e depois, a voz de Martha o acalmando com seu cantarolar de voz suave que nunca exibia angústia e ansiedade, porque ela queria que sua voz pudesse entrar nos ouvidos do irmão como se fosse um sino para Deus.

Aquele canto de amor sincero, costumava acalmá-lo realmente.

Durante as noites, ela cuidava de seu irmão e antes do amanhecer, ela estava a postos para trabalhar. Jane, sua mãe, ficaria orgulhosa se visse a grande mulher que sua filha se tornara.

Volta e meia os vizinhos, os poucos com ar de inquisição, observavam Johnnie. Eles sabiam sobre Will e a sua proposta de mandar o irmão de Martha para um manicômio. Eles a respeitavam demais para contar o que ouvira sobre seu pretendente.

O que ela suportou em sua vida foi uma dura provação.

Uma vez, um fazendeiro me disse que, quando foi cuidar de seu cavalo que estava doente, viu na madrugada de verão, Martha andando de um lado para o outro do celeiro, com passos apressados e agitados, torcendo as mãos, orando fervorosamente, mas ele não foi até ela, e ele passou sem ser observado ao lado da cabana.

Quando ele viu a porta aberta, sua mente sugeriu que talvez houvesse alguma razão para a emoção violenta dela, em alguma doença repentina do pobre rapaz. Ele entrou suavemente, e viu Johnnie dormindo no sofá, com o rosto corado e os cabelos desordenados, como se estivesse em grande irritação, mas ele respirava como se estivesse em sono profundo, provavelmente por exaustão, e estava ternamente coberto com o manto de domingo de Martha.

O homem seguiu seu caminho, e se contentou em mandar sua esposa, no decorrer do dia seguinte, com um recado sem importância, mas, era para ver como os irmãos estavam indo.

Johnnie parecia muito bem, e Martha parecia abatida e desgastada. Contudo, a todas as perguntas a respeito de seu irmão, ela respondeu de forma tão enrolada, e, sem querer que nenhuma informação real fora obtida.

Durante este tempo, Will Hawkshaw seguia seus galanteios. As vanglórias que ele proferia nos primeiros dias de seu afastamento de Martha, cortaram qualquer chance de recuo de sua primeira determinação declarada, se, de fato, ele quisesse mudar de ideia, porque ele era muito orgulhoso para voltar em sua palavra.

A diferença de amor decorria da diferença de caráter, ele era um homem que vivia intensamente, e ela, uma mulher com longas noites e dias solitários.

Mesmo assim, Martha alimentava o amor, e sua lembrança, ou melhor, a lembrança do que ela imaginara que ele fosse, ainda estava viva dentro de seu coração.

Portanto, não foi, sem um choque, cuja profundidade era, suponho, conhecida apenas por Deus, que cerca de três anos após sua última conversa, ela ouviu falar que Will era o pretendido de casamento com a única filha de um estadista rico em Troutbeck.

Tanto quanto pude perceber do relato que me passaram, vago quanto ao tempo, mas gráfico quanto às particularidades, que fora próximo a este período que o fazendeiro a viu nos campos em tão profunda angústia, depois de uma das noites agitadas de Johnnie.

É claro que o casamento logo se seguiu ao anúncio público de tal intenção, e daí em diante a vida de Martha não apresentou nenhuma variedade por muitos anos.

Crianças cresceram, viraram adultos... E nada mudou para Martha.

Meninos e meninas se tornaram velhos casados.

Os dias e noites de Martha só tinham uma única diferença: Johnnie estar bem ou doente.

Finalmente veio uma mudança, a solene mudança da vida para a morte.

Após um ou dois dias de doença violenta, Johnnie foi para seu longo descanso. Martha pensou que, na exaustão sem palavras que imediatamente precedeu a morte, ela observava em seus olhos e rosto, o amor incondicional.

Após o término do funeral, os vizinhos a visitaram com mais frequência que antes, quando suas visitas foram tão inaceitáveis, ainda que os mais próximos estivessem longe, e suas vidas estivessem ocupadas para visitar Martha.

Muitos dias, muitas semanas passaram para Martha em solidão.

Ela foi convidada para algumas celebrações, como batismos, Natal... Mas ela sempre recusava.

Embora ela fosse mais que uma mulher de meia-idade, seu coração ainda batia na juventude, seu rosto ainda ficava rubro ao pensar que em alguns encontros ela poderia conhecer o amor de sua juventude.

Um vizinho levou seus produtos ao mercado para que fossem vendidos. Dois ou três amigos gentis a ajudaram em momentos de muito trabalho, e foram consultados quanto à disposição de seu dinheiro acumulado, pois, Martha estava ficando muito rica, uma circunstância sobre a qual ela mal pensava.

O dinheiro tinha pouco poder para curar as profundas e agudas tristezas de seu coração.

Ela estava envelhecendo sozinha, e com uma natureza muito amorosa, ela não tinha nada para amar como teria feito, se Deus lhe permitisse ter marido e filhos.

Às vezes, na meia-noite profunda, ela chorava em voz alta para o céu em seu luto excessivo por nunca ter ouvido a voz murmurante de uma criança a chamando de mãe.

O final do outono chegou, com folhas caindo, ventos fortes, e longas noites chuvosas harmonizadas com sua vida triste.

Ela viu a si e ele, felizes, no bosque e essa lembrança a magoou.

Ela observava as duas imagens nos olhos de sua mente, como se estivessem separadas por longos anos de tristeza e decepção.

Numa noite de inverno, quando a noite havia se fechado cedo, devido às nuvens negras de neve que pairavam como a noite perto do horizonte, ela sentou, olhando sonhadoramente para o fogo da lareira e ela viu no fogo, as duas crianças de sua imaginação, vagando de um lado para o outro.

Seu velho cão pastor, Fly, deitou-se aos seus pés, mas parecia inquieto. As vacas estavam no curral, e as ovelhas, no celeiro próximo.

Fly estava ao lado dela quando estas tarefas foram feitas há três horas, e era seu costume dormir depois disso. O que deixou o velho cão tão repentinamente ansioso, então? Ele levantou as orelhas, foi até a porta e depois voltou, olhando para Martha com um olhar tão apreensivo.

— Deite-se, bom cachorro! — sussurrou ela, ansiosa para retomar seus sonhos e avistar neles, seu querido irmão.

Contudo, Fly não quis se deitar, impedindo Martha de voltar a dormir.

— Alguém ou algo deve estar lá fora, nesta pesada tempestade de neve! — ela ponderou.

Ela sabia como o velho cão agia e algo estava acontecendo pela enorme inquietação que ele expressava.

Com certeza, foi Deus que guiou e a levou para fora de casa.

Sabendo os modos do povo de Dale, que sabe o que são realmente as tempestades nas montanhas, ela tomou sob seu manto um pequeno frasco de gin, que estava, fazia muito tempo, armazenado para qualquer emergência.

Ela partiu com Fly. A neve caiu tão rápido que a princípio, ela ficou quase cega. O vento soprava forte, entretanto, Martha tinha muita confiança em Fly, e ele correu pela pequena trilha íngreme, que levava através do bosque até a parte mais aberta da montanha de Loughrigg.

Em seguida, ela colocou seu manto, branco com neve, em volta de seu rosto. Seus cílios, quando ela emergiu para o terreno mais aberto, pesaram pela densa neve e ela perdeu de vista Fly, ficando desnorteada, esperando que ele voltasse para guiá-la.

O vento cessara por um tempo, e o ar estava parado também. Aves e animais estavam em seus ninhos e abrigos, e o silêncio sobre aqueles pântanos, era horrível.

De repente, o grito fraco, lamuriante e desesperado de uma criança tocou seu ouvido e, em um instante, ela prosseguiu na direção de onde o som surgia.

À medida que ela foi caminhando, ela ouviu o uivo alto de Fly para obter assistência, e isso lhe deu mais orientação, uma vez que ela estava certa de que ele estava perdido também.

Finalmente, ofegante e agitada, ela chegou ao local. Pela nebulosa neve, Martha pensou ser apenas um monte negro, mas rapidamente se tornou branqueado pela neve incessante.

Era uma criança meio adormecida, no sono fatal que precede a morte, porém, ainda não inconsciente da dor que o frio excessivo fazia congelar seu sangue, porque, embora não pudesse falar em resposta às palavras ansiosas de Martha, a criança gemia.

Martha sacou o gin e molhou os lábios da criança, derramando um pouco do gin pela garganta da pobre criatura congelada. A velha Martha levantou a crianças com cuidado, e, mesmo não sendo uma mulher jovem, na disposição dos movimentos, como fora há muito tempo, ela ainda encontrou forças para carregar a criança pela colina abaixo.

Então, ela parou, dominada pelo cansaço, por um curto espaço de tempo, e depois, com esforço desesperado, ela atravessou o bosque, onde o frio era menos penetrante.

Novamente ela parou, lhe dando um pouco de gin, e assim a criança conseguiu caminhar alguns passos, e com orações apaixonadas para Deus, que olhou para Martha naquela noite assustadora, ela levou a criança até seu chalé, e a deitou na influência quente da lareira.

Ela se jogou no chão, em total exaustão por um minuto ou dois, então, ela se levantou, tirou as roupas molhadas da criança e a envolveu em seu cobertor, começando a esfregar suas pernas e braços para aquecer rapidamente a criança.

Depois de um tempo, o menino se recuperou e pôde contar sua pequena história.

Seu pai pedira para que ele fosse até as colinas para buscar uma ovelha que estava desaparecida. Seu cão voltou para casa. Quando a noite e a neve surgiram, ele se perdeu, porque não conhecia perfeitamente o caminho das colinas já que ele vivia em Rydal, e as marcações indicadoras das propriedades eram desconhecidas pelo menino.

Algo nos olhos azuis-escuros dele provocou a súbita pergunta de Martha:

— Qual é o seu nome, rapaz?

A resposta foi:

— John Hawkshaw, senhora!

— O nome de seu pai é William Hawkshaw? Você já viveu em Troutbeck? — perguntou Martha, tão calmamente quanto pôde, pois, seu coração deu um salto.

Uma névoa veio diante de seus olhos, enquanto ela pronunciava o nome que uma vez fora tão familiar, mas que há tanto tempo ficara sem ser pronunciada por seus lábios.

Sim! O menino que ela salvara era o filho de Will Hawkshaw.

Ela o alimentou e o colocou na cama quente, e depositando a vela onde a luz caiu sobre seu rosto, e sem despertá-lo, ela se sentou para observá-lo durante toda a noite.

Sua boca era muito diferente de Will, por certo, essa característica ele herdara de sua mãe.

Mãe!

Era estranho para Martha que ela não fosse sua mãe.

Ela mandou notícias dele para Will ao amanhecer, pedindo para que os vizinhos mais próximos, levassem o recado até ele, que morava a três milhas de distância, depois disso, Martha voltou para observá-lo mais uma vez.

Ele dormiu tanto e tão profundamente que, quando sua mãe chegou com toda a velocidade do amor ansioso, ele acabara de acordar.

O menino estava sentado como um pequeno rei, em frente a uma mesa redonda, coberta com um pano limpo, banqueteando-se com um pão e manteiga doce, aquela doçura regular de Westmoreland, composta de rum, manteiga e açúcar, feita apenas para dias especiais.

A Senhora Hawkshaw, magra e brilhante, de aspecto mais jovem que seus anos, nem imaginou que Martha era uma antiga rival, já que a mulher em sua frente, desgastada e de aspecto triste, que salvou a vida de seu filho, jamais seria o motivo de deslumbre de seu marido.

O rosto de Martha mal brilhava ao ouvir a gratidão esmagadora da Senhora Hawkshaw. Ela somente pensava em manter o menino por mais um tempo perto dela.

Ela recusou todos os convites urgentes que lhe foram dirigidos pela esposa do grande amor de sua juventude. Ela só disse com muita seriedade:

— Se puder... Deixe o menino vir me visitar, vez ou outra.

— Com certeza! Vamos te visitar! Meu marido queria vir para te agradecer, mas hoje é o dia de mercado de gado em Ambleside, e ele nunca perde um dia desses.

Martha se perguntava se alguma outra razão o impedia de vir até a sua casa com a tarefa natural de buscar seu filho perdido, mas ela não disse nada, e quando foi deixada sozinha naquele dia, sonhou mais do que nunca com os dias de sua juventude.

John Hawkshaw frequentemente a visitava, enviado por sua mãe agradecida, às vezes, e em outras tantas, enviado por seu pai.

Will pensava em seu coração, que Martha, sozinha e velha, seria induzida a dar as suas terras para John, terras que Will tanto desejou.

Não importava o motivo que trazia John até Martha, porque ele era sempre bem-vindo. Sua própria natureza doce não abrigava motivos egoístas.

Ele continuou a visitar Martha.

Quando criança, para a diversão em brincadeiras que Martha inventava para ele.

Quando jovem, para lhe pedir conselhos...

Quando homem, pelo amor e respeito reais que sentia por sua tia, sim, ele a chamava de tia!

Este era o estado das coisas, quando vi a casa de campo pela primeira vez, e ouvi a história de Martha.

Martha nunca se preocupara com sua riqueza, e nunca percebera o poder que os bens lhe davam.

Uma luz brilhante se acendeu sobre ela, da felicidade que ela poderia criar, quando ela observava o menino, seu filho que não era de seu sangue, se tornar um homem adulto.

John confessou sua paixão, uma pobre menina em Grasmere, uma boa filha para seus pais, que fazia cestos, e que ele segurou este amor em segredo, pois, ela não tinha nada, e ele era apenas um de uma grande família.

Ele desejava noivar com a garota, mesmo sabendo que seu pai recusaria tal desejo. Martha ouviu a confissão de John, e silenciosamente fez uma longa investigação sobre a moça e todas as respostas foram satisfatórias.

Martha surpreendeu John, quando ele veio visitá-la. Ela fizera uma declaração, dando boa parte de sua propriedade e de seu dinheiro no banco para John e sendo assim, ela lhe disse que ele deveria casar com a menina, e levá-la para o chalé, que seria a sua casa. O casal seria como um filho e uma filha para Martha.

Martha ocupava o lugar de honra de uma avó. Pois, Martha e Johnnie corriam pelo jardim com ar infantil que você viu no começo dessa história.

Não houve uma sepultura no pátio da igreja de Grasmere mais decorada com flores, mais visitada com respeito, pesar, lágrimas e confiança fiel, do que a de Martha Preston quando ela morreu.

Fim.


Sobre Visitar o Túmulo de Minha Filhinha Natimorta

Domingo, 4 de julho de 1836.[82]

Fiz um voto dentro de minha alma.

Ó criança!

Quando estavas deitada ao lado do meu coração.

Cansada.

Com marcas da Morte em cada parte terna.

Se com o tempo uma criança viva sorrisse.

Ganhando meu ouvido com suaves sons de amor.

Em sol de tanta alegria.

Eu ainda guardaria um descanso verde para a tua memória.

Ó Pássaro da Paz!

Que visita a tua pequena sepultura.

Sem nome.

Não me esqueci de ti.

Minha primogênita.

Você...

Cujos olhos não se abrem para o meu olhar triste.

Cuja tristeza estampa a dor na tua pequena fronte.

Penso em ti nestes dias mais felizes.

Minha filha, de teu céu luminoso.

Tu vês como mantenho bem o meu fiel voto para contigo.


Esboços Entre os Pobres

Número I[83]

Na infância, lembro de mim.

De uma casa escura atrás de um velho olmo.

Por ruas sombrias cercadas, onde a flor.

Trazida do ar mais fresco, escasso por uma hora.

Reteve seu perfume fragrante, ainda os homens viviam lá.

Sim, e em felicidade, a mente limpa.

Nos ares mais densos, sua própria atmosfera brilhante.

Mas na casa de que falei que morava.

Aquele por quem todo o peso da fumaça foi sentido.

Ela ultrapassara o limite da juventude e da idade.

Uma mulher solteira, não solitária, sábia.

Sempre atenciosa, mas verdadeiramente gentil.

Sem os laços naturais, ela procurou vincular.

Corações aos dela, com amor gentil e útil.

Avisar a cada mudança na simpatia para se mover.

Assim ela ganhou o carinho, que ela prezava.

De todas as coisas vivas, porém, desprezadas.

Um apelo à sua ternura.

Os amigos ao seu redor tinham uma dor para compartilhar.

Se na alegria do tipo que esqueceram.

Ela ainda se alegrou.

Disse que realmente, ela não estava sozinha.

Embora ninguém à noite compartilhasse a sua lareira?

Para alguns, ela pode parecer prosaica, mas para mim.

Ela sempre se encantou com a poesia diária.

Senti em cada ação dela.

Como o companheiro de algum doce pássaro cantor.

Aquele que muda e ainda pensa em seu ninho precioso.

A profunda esperança de seu coração se escondeu bem no fundo de seu peito.

Em todos os seus deveres silenciosos.

Um pensamento querido

Manteve o domínio sempre verdadeiro e constante.

Não trouxe.

Antes do mundo.

Mas acumulou ainda mais.

Por ser uma caixa secreta para si mesma.

Quando ela ouvia falar de casas de campo.

Um sorriso veio iluminando seu rosto sério.

Ela não sabia de onde surgia.

Mas em seu coração uma esperança saltou.

Da qual aquele sorriso fazia parte.

Ela pensou que a hora poderia chegar.

Antes que a mágoa fosse quebrada na fonte.

Quando sua alma pode ouvir seus anseios.

Por pensar no fracasso da causa que ela amava.

Quando ela pode sair da rua estreita e barulhenta.

E mais uma vez a casa de sua infância pode saudar.

Era um lugar agradável, aquela casa!

O riacho passou cantando, deixando sua espuma.

Entre as bandeiras e o Miosótis[84] azul.

E em um recanto, acima daquele local protegido.

Por eras existiu uma árvore de espinheiro retorcida.

E se você passar na primavera.

Você verá o tronco nodoso repleto de flores.

Que cada brisa balançou em chuvas perfumadas.

As abelhas sérias em células odoríferas mentiam.

Cantando seus agradecimentos com uma melodia murmurante.

O sol da tarde brilhou intensamente no verde.

E parecia demorar na cena solitária.

E, se para outros o ninho precoce de Maria.

Exibido pobre e caseiro, para seu seio amoroso.

Um encanto estava escondido nas próprias manchas.

Qual hora e tempo partiram, os velhos painéis escuros.

O musgo cinza áspero, o alho-porro, você pode ver.

Foram narradas na memória da infância.

E em seus sonhos ela vagou por toda a parte.

Entre as colinas, sua irmã ao seu lado.

Essa irmã dormiu debaixo de um túmulo gramado.

Antes que o tempo tivesse roubado sua primeira flor doce.

Durma! Tu trazes de volta o coração de nossa infância.

Antes que o orvalho exale, a esperança vá embora.

Tu evocaste os perdidos, tristes.

Até que a própria tristeza tenha perdido seu poder choroso.

Tua é a terra das fadas, onde habitam as sombras.

Evocado em sonhos por algum estranho feitiço oculto.

Mas o Dia e o Despertar têm seus sonhos.

Sono, quando Esperança e Memória.

Seus relógios valiosos continuam.

E Maria detinha o domínio supremo.

Quando trabalha gentilmente.

Tarefas suas mãos o dia todo.

Empregou suas mãos.

Seus pensamentos vagaram longe e livres

Até que o bom senso acalmasse a realidade.

Algumas semanas curtas e, em seguida, solte as correntes.

O que a prendeu às desgraças ou dores de outra.

Adeus às ruas escuras e aos céus encobertos.

Sua casa preciosa deve abençoar seus olhos ansiosos.

E bela como nos dias de alegria infantil.

Cada canto gramado e refúgio arborizado deve ser.

No entanto, quando uma tristeza passou.

Outra chegou.

Onde tão tarde ela compartilhou a alegria brilhante.

O fantasma da Dor estava sentado encolhido diante da lareira.

Assim, dias e semanas se passaram e cresceram para anos.

Sem ser chorado por Maria.

Exceto pelas lágrimas dos outros.

Como uma enfermeira carinhosa.

Aquela do seio da mãe.

Acalma a criança cansada para seu descanso tranquilo.

Primeiro silencia cada som.

Depois deixa a cortina cair.

Para lançar uma luz fraca e sonolenta sobre tudo.

A idade atraiu suavemente cada sentido cansado.

Um tom de aprofundamento para suavizar a separação.

Cada sotaque valorizado.

Cada tom familiar.

Caiu de sua música diária, um por um.

Seus olhares atentos podiam adivinhar corretamente.

O que lábios em movimento pelo som não podiam expressar.

Em cada rosto amado em seguida veio um véu transparente.

E o brilho e a sombra de sua vista desapareceram.

E, por último, a mudança solene que viram.

Privando Morte de metade de seu temor real.

A mente afundou na infantilidade, e eles.

Contando com o conselho dela dia a dia.

Como algum andarilho solitário.

De sua casa distante.

Tem como guia alguma estrela bem conhecida.

Até as nuvens chegarem flutuando sobre sua luz trêmula.

E deixá-lo selvagem na noite sem trilhas.

Procurou seu rosto mudado com estranho olhar incerto.

Ainda rezando para que ela os guiasse pelo labirinto.

Eles tiveram pena de seu destino solitário e o consideraram triste.

No entanto, como na primeira infância.

Ela estava feliz.

Ela não sentira a mudança.

Ou perda de pensamento.

Colocara na casa do pai como uma criança.

Sua mãe cantou para ela descansar.

A cotovia a despertou.

Saltando de seu ninho.

As abelhas cantaram alegremente durante o dia.

Espreitando flores onde quer que ela tocasse.

Os sinos do sábado tocaram como nos anos passados.

Como um suspiro do vento suave.

Suas irmãzinhas se ajoelharam com ela em oração.

E todas as noites, elas compartilhavam a bênção de seu pai.

Então, envolta em alegres imaginações.

Sua vida roubou com todas as suas doces jovens memórias abundantes.

Muitas vezes penso.

Pela luz mortal pudermos ler o direito do outro.

Que para o seu coração amoroso veio uma bênção.

Invisível por muitos, turvada por um nome.

E todo o desbotamento exterior do mundo era como a flor à noite.

Quando tem folhas douradas.

E as enrolava ao redor de seu coração.

Para aninhar-se mais perto em sua parte mais doce.

Sim!

Vozes de anjos chamavam sua infância de volta.

Apagando a vida com seu rastro sombrio de tristeza.

Seu desejo secreto sempre foi conhecido no céu.

E assim, em mistério, foi a resposta dada.

Na tristeza, muitos lamentaram seus últimos anos.

Mas a bênção brilhou por trás daquela névoa de lágrimas.

Como a criança que ela se considerava.

Ela jaz num sono suave.

Até que os mortos a ressuscitem.


Bran

22 de outubro de 1853.

Introdução:

Este poema fora produzido conjuntamente por Elizabeth e seu marido. Possivelmente, escreveram após conhecer o conto original bretão, enquanto estavam de férias na França naquele verão.

O poema conta como a mãe de um herói atravessou o mar para resgatar seu filho, apenas para descobrir um corpo sem vida, pois, enganado por um guarda, ele morrera em desespero, antes dela encontrar seu filho.

A conclusão ilustra aquelas crenças tradicionais da Bretanha, que representam os mortos em um disfarce de pássaros.

Sem dúvida, Elizabeth Gaskell foi atraída para a história por sua poesia e fatos inerentes, pela devoção da mãe de Bran e pelo legendário retorno dos mortos.

O Poema comemora a grande batalha de Kerloan combatidos no século X.

Kerloan é uma pequena aldeia na costa do país de León, uma das divisões antigas da Bretanha. Evan, o Grande, ali desafiou os homens do Norte, os Normandos. O ilustre chefe bretão os obrigou a recuar, mas eles carregaram muitos prisioneiros quando embarcaram em seus navios. Entre eles, estava um guerreiro chamado Bran, neto de um conde com o mesmo nome, que é frequentemente mencionado no “Atos da Bretanha”.

Perto de Kerloan, na costa marítima, ainda existe uma pequena vila, onde, provavelmente, Bran fora feito prisioneiro. Pode ser necessário acrescentar que nas tradições de Breton, frequentemente os mortos são representados por pássaros.

Bran, além de ser o nome de um homem, significa também “corvo” na língua bretã.


Parte I

Era o cavaleiro jovem, neto de Bran,

Na luta de Kerloan.

Naquele campo ensanguentado à beira-mar selvagem,

O último de sua raça foi ferido.

Caro, nós pagamos...

Embora tenhamos ganhado naquele dia.

Perdida era nossa querida.

Levada para longe, para longe!

Olhando o mar da torre do calabouço.

Desamparado ele chorou no poder do inimigo.

Camaradas, triunfai com alegria!

Enquanto aqui estou ferido e doente de coração!

Encontre um mensageiro verdadeiro para mim!

Para levar uma carta até o outro lado do mar.

Um mensageiro verdadeiro eles o trouxeram para lá.

E o jovem cavaleiro o advertiu assim com cuidado.

Deixe agora esse vestido de lado!

E na erva daninha do mendigo,

Seu esconderijo de serviço.

Pegue meu anel, meu anel de ouro!

E envolva-o com segurança em alguma dobra secreta.

Mas, uma vez no portão do castelo de minha mãe.

Esse anel será a prova sobre meu paradeiro.

Ó, se ela vier me resgatar!

Em seguida, que a bandeira branca seja içada para cima.

Mas se ela não vier...

Ah! Bem um dia!

A bandeira negra estará no mastro!


Parte II

Quando o mensageiro fiel a Leon chegou.

Ao jantar, sentou-se a dama, de berço.

Com copos de ouro e valor real,

Ajoelho-me diante de ti, nobre dama direita!

Este anel mostrará de quem sou.

E aquele que me deu esse mesmo anel.

Me pediu para trazer rapidamente esta carta.

Ó Harpista, cesse sua canção!

A dor no meu coração é afiada e forte.

Por que eles esconderam isso de sua mãe?

Em um calabouço está meu único orgulho!

Ó rápido, prepare um navio para mim.

Nesta noite, vou atravessar o mar tempestuoso.


Parte III

O jovem Bran perguntou na manhã do dia seguinte.

Perguntado da cama onde ele estava deitado.

Cuidado agora, mensageiro!

Olhe bem,

Rezo!

Não vê nenhum navio que navega por aqui?

Senhor cavaleiro,

Olho,

Mas nada espio.

Salvem o mar aberto,

E o céu aberto,

Mais uma vez,

Quando o sol estava alto.

O jovem Bran pediu de seu leito cansado.

Cuidado agora, mensageiro!

Olhe bem,

Rezo!

Não vê nenhum navio que navega por aqui?

Senhor mensageiro,

Olho,

Mas não vejo nada ali.

Salvem as aves marinhas brancas que escumam o ar.

E na hora da véspera,

Em dores de cabeça.

O jovem Bran lhe pediu novamente.

Cuidado mais uma vez.

Olhe bem,

Rezo!

Ainda não vê nenhum navio que navegue por aqui?

Então o mensageiro,

Cruel e falso,

Era ele.

Sorriu enquanto falava maliciosamente.

Sim, agora,

Senhor cavaleiro,

Um navio que espiono.

Atirado pelas ondas contra o céu.

Qual a cor de sua bandeira?

Ó! me diga com razão!

Fale, guarda, fale!

É preto ou branco?

Senhor cavaleiro,

É preto,

Se realmente vejo.

Pelas brasas vermelhas te juro.

Quando o cavaleiro abatido que respondeu ouviu.

Ele não perguntou mais,

Ele não disse nada.

Ele virou o rosto para a parede,

Tão fraco.

E tremeu no sopro do Poderoso!


Parte IV

O pé da dama tocou a areia.

Ela chorou segurando o anel.

Diga-me quem já faleceu?

Para quem é o sino da morte,

Digam!

E um homem de cabelos grisalhos, ali de pé.

À senhora nascida de alto nível deu uma resposta.

Um jovem cavaleiro pobre,

Na prisão, acorrentado.

Na hora da véspera,

Sua liberdade ganhou.

Assim que o velho disse estas palavras.

Ela correu loucamente.

Seu cabelo todo espalhado,

Seu cabelo tão branco,

Tocando a brisa da noite.

Perguntando-se ao redor dela,

Vieram os habitantes da cidade.

Ó! como ela corre desesperada.

Querendo encontrar uma dama tão rainha,

Ao gemer,

Ela correu pela longa rua íngreme.

E cada um perguntou ao outro,

Com medo.

De que terra ela vem?

O que ela procura aqui?

Ao pé da torre, para a geleira sinistra.

Ela soluçou em voz alta e o invocou.

Ó! Abram os portões!

Meu filho!

Meu filho!

Ó! Abram os portões!

Meu único filho!

Eles abriram os portões.

Nenhuma palavra eles disseram.

Diante dela,

Seu filho estava morto.

Em seus braços, ela o tomou tão ternamente.

Então ela se deitou e nunca mais levantou.


Parte V

Na margem de Kerloan, há uma árvore.

Naquele campo de batalha ao lado do mar.

Um carvalho que levantou alto.

Quando de Ewan, o Grande, os Saxões fugiram.

Naquela árvore envelhecida, quando a lua brilha.

As aves que eles reúnem em bandos à noite.

Do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste.

Os pássaros marinhos brancos com o peito com sangue.

No meio deles,

Um jovem corvo escuro

Um velho corvo cinza.

Vagamente,

Eles se movimentam para frente.

Com asas inclinadas,

Encharcadas de água do mar.

Como eles vieram de um país distante?

Como eles voaram em um mar tempestuoso?

E as aves cantam tão doce.

Que as ondas fiquem muito quietas para ouvir.

Todos eles cantam em tom alegre.

Todos eles cantam juntos,

Exceto os dois corvos.

Com uma voz triste,

Eles cantam.

Passarinhos bem-aventurados!

Cantem, porque vocês podem!

Fim.


A História do Erudito

Natal de 1853.

Introdução:

Alguns dos poemas bretões coletados pelo Théodore Claude Henri. Possivelmente William Gaskell, como linguista, produziu a versão inicial, sendo esta posteriormente versificada com a ajuda de sua esposa, que provavelmente forneceu a breve introdução em prosa. A narrativa conta a traição de um padre para com seu primo, um cavaleiro que, como resultado da fraude do escrivão, mata sua esposa, acreditando que ela o enganou e, por sua negligência, causou a morte de seu filho.


Parte I

A bela mulher solteira, nos bailes nobres de Rohan esteve.

Seu pai queria que ela casasse, e ela deu seu consentimento.

E muitos foram os lordes de alto grau, que tentaram a sorte.

Mas entre todos eles, lhe agradou nenhum.

Salvo o nobre Conde Mathieu.

Senhor do Castelo de Trongoli, um cavaleiro principesco da Itália.

Cortês, verdadeiro e corajoso.

Seu coração a donzela deu livremente.

Três anos se passaram em paz e em êxtase.

Quando a notícia chegou aos ventos do exterior.

Que todos tomassem a cruz de Deus.

Depois falou o Conde como um nobre cavaleiro.

Sim, o primeiro a nascer deve ser o primeiro a lutar!

“Querido primo. Te deixo aqui em confiança.

Minha esposa e meu filho, deixo para você.

Guarda-os, bom erudito, como a tua própria vida!”

No início da manhã seguinte.

Do portão do castelo.

O Conde partiu.

Descer os degraus de mármore,

Todos cheios de medos.

A senhora, com gemidos e lágrimas...

A amorosa, doce senhora, soluçando selvagem...

E, deitada sobre seu peito, estava seu filho bebê.

Ela correu para o seu senhor com velocidade sem fôlego.

Segurou seu corcel e implorou chorando:

“Rezou-lhe piedosamente.

Ó! Fique comigo,

Fique! Meu senhor! Meu amor!

Não vá, imploro! Pelos santos acima,

Não me deixe aqui sozinha! Rezo.

Chorando no rosto do seu bebê!”

O cavaleiro foi tocado com seu triste desespero.

E com carinho, olhou seu rosto com tanta justiça.

E estendeu a mão e se inclinou para baixo.

A ergueu, a pressionando contra seu peito e a beijou.

“Acalme-se! Seque estas lágrimas, minha pequena Joan.

O ano passará!”

Seu bebê, querido em seus braços, ele tomou.

E olhou para ele com um olhar orgulhoso e carinhoso.

“Meu rapaz, quando você for um homem. Irá comigo para as guerras...”

Em seguida, ele desapareceu através da planície,

Velhos e jovens choravam, tanto ricos como pobres.

Choraram todos.

Mas o erudito...

Ah! Não chorou nada.


Parte II

O erudito traiçoeiro, depois de muito tempo,

Com discursos artísticos, a dama ouviu:

“O ano acabou e também terminou a guerra.

Teu senhor não parece ter pressa alguma, para voltar a ti.

Agora, peça ao seu coração, minha querida senhora.

Não há outra coisa, que possa agradar a senhora?

Sei que esposas desejam ainda se manter solteiras, na viuvez.

Embora seus maridos não estejam mortos...”

“Silêncio! Miserável erudito!

Seu coração está cheio de pecado!

Quando meu senhor voltar, se falar sobre o que pensas,

Tu sabes que ele te arrancará membro por membro!”

Assim que ela respondeu.

Ele correu para o canil.

Pegou o cão de caça, que seu senhor mais amava.

Um corte na garganta, e morto o cão estava.

Como derramou o sangue da garganta.

Ele mergulhou os pés naquela tinta vermelha e escreveu.

Uma carta ele escreveu,

Com a atenção de um mentiroso.

A enviou diretamente para o acampamento com rapidez.

Estas foram as palavras que a carta trouxe:

“Sua esposa querida está muito aflita.

Por um triste infortúnio que se abateu aqui.

Quando ela escolheu caçar a corça na encosta da montanha.

Seu belo galgo cinzento morreu.”

O Conde tão ingênuo respondeu ao seu primo infiel:

“Agora, cuide de minha esposa!

Que ela esteja protegida

Rezo.

Para que ela não fique triste!

Meu cão de caça está morto.

Comprarei outro.

Há muitos malfeitores!”


Parte III

O erudito malfeitor mais uma vez veio,

Enquanto ela chorava, pela morte do cão.

Pobre animal.

“Ó! senhora, se chorar de noite e de dia,

Sua beleza sumirá rapidamente.”

“E que me importava que estivesse desaparecendo?

Meu marido não está aqui!”

“Seu marido está casado ou morto!

As donzelas mouras, gostam do ouro em abundância!

Os chefes mouros na planície de batalha,

Milhares de valentes como ele, já morreram!

Se ele se casar com outra, não se preocupe,

Se estiver morto, o esqueça!”

“Se ele se casar com outra, morrerei.

Morrerei da mesma forma, se ele estiver morto!”

“No caso de perder a chave,

Não há necessidade de queimar a caixa!

Uma nova e melhor chave é a melhor maneira!”

“Agora segura, miserável erudito, a tua língua!

É falta de respeito!

Tu és mais podre do que esterco!”

Assim que ela respondeu.

Ele correu para o estábulo.

Ele olhou para o cavalo, que o senhor mais amava.

Inigualável pela beleza, pela força e pela velocidade.

Branco como um ovo e leve como uma pluma.

Em seguida, ele golpeou o pescoço da égua.

E quando a égua branca jazia morta,

Novamente ao Conde ele escreveu e disse:

“De um novo infortúnio, eu agora mando notícias,

Mas que isso não te aborreça muito, caro senhor.

Retornando de uma festa, ontem à noite,

Sua senhora montou em seu branco favorito.

Ela tropeçou, e o animal quebrou ambas as pernas.”

O Conde então respondeu:

“Ah! Minha égua branca!

Minha égua ela matou, meu cão de caça também ela matou.

Bom primo, agora me dê seus conselhos verdadeiros.”

“Ela passeia pelos bosques.

Não só as pernas da égua ela pode quebrar.

Mas os votos de esposa podem ser quebrados lá!”


Parte IV

“Senhora, agora ceda ou morra!

Escolha rapidamente!”

“Dez mil mortes prefiro morrer,

Que vergonha para mim, meu Deus!”

O erudito, quando viu que não tinha nada a ganhar,

Sua ira sufocada não mais poderia conter.

Assim que as palavras dela lhe chegaram aos ouvidos,

Seu punhal voou na cabeça dela.

Mas ela desviou do punhal e correu para seu quarto.

O erudito, seu punhal agarrou e tremeu,

E sorrindo com o olhar furioso.

Subiu as escadas largas em sua fúria, dois passos de cada vez,

Dois passos e três.

Em seguida, caminhou para o quarto do bebê,

Ele sufocou o bebê.

“Calado! Agora a pobre mãe chorará!”

Em uma carta em preto e vermelho,

Com pressa, ao Conde escreveu ele:

“Há necessidade, meu caro senhor,

Uma grande necessidade de ti.

Volta para teu castelo!

O teu cão de caça é morto,

Tua égua é morta!

Mas o que digo agora você vai se importar,

Teu querido está morto!

Teu filho, teu herdeiro!

A porca o devorou, enquanto sua esposa estava dançando no baile.

Dançando lá com o moleiro alegre!

O povo diz que sua esposa é vergonhosa!”


Parte V

Essa carta chegou ao corajoso cavaleiro,

Apressando a volta para casa.

Com som de trombeta, a partir daquela vertente oriental.

Tão logo ele leu a carta, temeroso de ver sua raiva crescer.

O pergaminho ele amassou com um olhar furioso.

Com seus dentes, ele rasgou a folha, e os cuspiu aos pés de seu cavalo.

“Agora rápido para a Bretanha,

Rápido! Meus homens!

Você, erudito vadio!

Cavalga ainda mais rápido,

Ou a minha lança te ensinará a golpear!”

Mas quando ele estava no portão de seu castelo,

Três golpes nobres ele acertou em cheio,

Três golpes de raiva que ele deu ali,

O que os fez tremer em cada um deles.

O erudito lhe ouviu,

E abriu de imediato o portão.

“Primo amaldiçoado!

Não confiei minha esposa a ti?”

Sua lança pela garganta do traidor ele dirigiu,

Depois ele correu para o quarto,

Onde avistou sua dama como uma flor pálida.

E antes que ela pudesse dizer uma única palavra,

Ela caiu a seus pés sob a espada dele.


Parte VI

“Ó! santo padre, agora me diga!

O que você viu no castelo?”

“Vi uma mártir desistir de respirar,

E vejo seu assassino, que está morrendo de dor.”

“Ó! santo padre, agora me diga!

O que você viu?”

“Vi um cadáver que estava todo mutilado!

E os cães e corvos fizeram disso sua comida.”

“Ó! santo padre, agora me diga!

O que você viu em seguida no pátio da igreja?”

“Por uma sepultura recém feita, ao luar suave.

Vi uma senhora vestida de branco.

Cuidando de uma criancinha de joelhos...

Uma ferida vermelha escura em seu peito.

Um nobre cão de caça estava deitado à sua direita,

Um corcel branco à sua esquerda!

O primeiro corte em sua garganta tinha boa largura,

No último sopro de vida, levantaram a cabeça até o joelho da senhora, e lamberam suas mãos macias com ternura.

Ela gentilmente tapou o pescoço deles, enquanto

Um sorriso triste se formava em seu rosto.

A vi tocar as bochechas da criança e chorar.

Mas a lua desceu então silenciosamente,

E meus olhos não conseguiam mais ver suas formas.

Mas ouvi um pássaro dos céus cantando uma canção do Paraíso!”

Fim.


A Última Geração na Inglaterra

Acabo de lembrar, por acaso, um caso antigo de Edimburgo, em Abril de 1848, no qual se diz que Southey propusera a si mesmo escrever uma “história da vida familiar inglesa”.

Não me aprofundarei sobre a perda infinita que tivemos no não cumprimento deste plano.

Cada um deve, em algum grau, sentir os vislumbres encantadores de cenas domésticas contidas nos primeiros volumes do “Doutor & Cia”.

Este quarto de hora de leitura casual, criou em mim o desejo de registrar alguns dos detalhes da vida nas cidades do interior, observados por mim, ou transmitidos para mim, por relações mais antigas.

Pois, mesmo em cidades pequenas, pouco afastadas das aldeias, as fases da sociedade estão mudando rapidamente.

Muita coisa parecerá estranha, porque parece que ocorreu na geração anterior à nossa.

No entanto, devo dizer antes de continuar, que embora eu opte por disfarçar minha própria identidade e ocultar o nome da cidade à qual me refiro, cada circunstância e ocorrência a que aludirei, é contada de forma rigorosa e verdadeira, sem exagero.

Quanto a classificar os detalhes que conheço sob quaisquer cabeça, isso será impossível por sua natureza heterogênea, e devo escrevê-los à medida que surgirem em minha memória.

A cidade em que residi uma vez, está situada em um distrito habitado por grandes proprietários de terras, de famílias muito antigas.

As filhas dessas famílias, se não casadas, se aposentaram para viver na tranquilidade e deram o tom à sociedade de lá.

Senhoras imponentes que lembravam-se da etiqueta e preferência em cada ocorrência da vida, e tendo sua genealogia no final de sua língua.

Depois, havia as viúvas dos cadetes dessas famílias, também pobres e orgulhosas, mas penso que mais geniais e menos dadas a recontar suas estirpes que as primeiras.

Logo havia os homens profissionais e suas esposas, que eram mais ricos que as senhoras que citei, contudo, sempre as tratavam com respeito, e, às vezes, até mesmo com cortesia.

Uma classe mais baixa havia, eram as senhoras solteiras ou viúvas, e novamente era possível, para não dizer provável, que suas circunstâncias financeiras estivessem em melhores condições que as das senhoras aristocráticas.

Estas mulheres aristocráticas se recusavam a conviver com as governantas, ou viúvas de mordomos, que foram empregadas de seus pais e irmãos, e ocasionalmente assentiam a apreciação de um bom chá, no qual, duvido que não passassem muitas fofocas relacionadas a dias anteriores enquanto bebiam, e que depois fingiriam jamais ter tal momento, porque isso seria um reconhecimento de igualdade social, que elas desprezavam.

Abaixo, estavam os lojistas, que ousavam ser originais, que devam jantares confortáveis. Os encontros, verificados pelo honorável Senhor D., constituíam de um chá às sete horas sobre os princípios mais elegantes e econômicos, e um jantar, às nove horas.

Havia os habituais pobres desrespeitosos, e, pendurados na margem da sociedade. Este conjunto de homens jovens, prontos para as travessuras e brutalidade, de vez em quando, deixavam suas mãos à beira do crime.

Os hábitos desta classe, cerca de quarenta anos atrás, eram muito semelhantes aos dos Mohawks[85], de um século antes.

Eles impediam que as senhoras retornassem de suas partidas de carta, que eram a principal alegria do lugar, e as chicoteavam, literalmente, até que entendessem que lugar de mulher era em casa e não se divertindo.

Certamente, havia mais individualidade de caráter naqueles dias que agora.

Ninguém, mesmo em uma cidadezinha de dois mil habitantes, não se atreveria a descer de sua carruagem sem trajar boa veste.

Nenhuma senhora de idade seria alheia à existência da Senhora Grundy, que tinha a peculiar mania de passear com a sua vaca favorita. E assim foi, até o dia da morte da vaca.

Havia muitas regulamentações que eram estritamente atendidas na sociedade de..., e que provavelmente verificavam mais manifestações de excentricidade.

As convocações eram feitas para o trabalho no começo da manhã, e se tinha três dias para serem respondidas, portanto, tendo em conta nossa proporção de chuva na Inglaterra, cada bela manhã devia ser bem aproveitada.

Antes da hora marcada para a recepção, imagino que o emprego de muitas das senhoras era colocar seus vestidos que, para informação de todos aqueles que possam se preocupar, não eram engomados, mas cuidadosamente esticados, presos, fio por fio, como a maioria das peças liliputianas, em uma tábua coberta com flanela.

A maioria destas peças de qualidade tinha muitos cadarços valiosos, descendentes de mães e avós.

A renda era lavada em leite, o que deu origem a uma pequena e estranha circunstância.

Uma senhora deixou sua renda, assentada, em algum leite não muito azedo, e, sem sorte, o gato se enrolou nisso, o bichano quase se enforcou e o desespero tomou conta da senhora, porque a renda era muito valiosa.

Depois do momento de pavor, a renda decorou o melhor gorro da senhora, por muitos anos depois, e muitas vezes, ela contou a história, graciosamente e tossindo, como se fosse a preliminar a uma história bastante imprópria.

A primeira frase da história foi sempre, me lembro:

— Acho que você não consegue adivinhar onde a renda do meu boné esteve! — deixando cair a voz dela. — Na boca de um gato, minha querida!

A hora do almoço era às três horas, em todas as casas, de quaisquer pretensões à gentilidade. Fora disso, uma hora muito tardia era considerada imprópria.

Logo depois das quatro, jogadores de cartas inveterados, podiam ser vistos em seus capuzes e sapatos, escolhendo seu caminho pelas ruas, até a casa onde as partidas de cartas seriam realizadas.

Assim que chegavam e tiravam seus capuzes, depois de uma meia hora rondando pela sala de jantar, eles eram conduzidos à sala de visitas, onde, mesmo no auge do verão, era considerado uma atenção extra, manter delicadamente as persianas fechadas, as cortinas desenhadas e as velas acesas.

As cartas eram colocadas sobre a mesa, e sendo assim, como era costume, cada pessoa devia pagar um xelim, e colocá-lo sob um dos castiçais.

As senhoras se acomodavam, e não se permitia nenhuma interrupção. Até mesmo as bandejas de chá eram colocadas no meio das mesas, e engolido apressadamente com algumas observações sobre a boa ou má sorte da noite.

Os recém-chegados eram saudados com acenos de cabeça nos intervalos dos jogos, e quando as pessoas entravam na sala, eram encaminhados pela senhora da casa para sentar em outra mesa.

As cartas eram um negócio lucrativo naqueles dias, não uma recreação.

Os ganhadores eram tratados com reverência. Não eram permitidas ofensas, e aquele que chegava com pouca compostura, era convidado a se retirar.

Quando o ponteiro do relógio tocava às oito e meia, era dado o aviso que os servos estavam se aproximando para limpar o local.

Os jogos eram concluídos, as contas acertadas, e alguns insultos soltos aos parceiros descuidados ou azarados eram ditos, e assim, tudo terminava.

Às dez horas, todos estavam na cama, dormindo.

Não fiz nenhuma menção aos cavalheiros nessas festas onde as apostas eram a maior celebração.

O médico preferiu sua poltrona e seus chinelos a ter que seguir o que a sociedade, como descrevi, desejava.

Assim como o advogado, que além de não ser insensível aos encantos de um jantar regado a cartas.

De fato, suponho que foi devido à pequena porção mais aristocrática de nossa pequena sociedade, tanto para o estilo, quanto para o luxo. Sendo assim, à medida que a gentileza diminuía, a boa vida aumentava proporcionalmente.

Tivemos a honra e a glória de olhar o prato velho e a delicada porcelana de chás, as fatias de pão e manteiga eram como hóstias, e o açúcar para o café era um pouco mais marrom, ainda havia muita bondade graciosa entre nós.

Naqueles tempos, tínhamos o Senhor Rigmarole, e as suas carruagens, e não havia a infinita variedade de cochos, até um carrinho de mão, que agora facilitava a locomoção.

Não havia carroças para serem alugadas em nossa pequena cidade. Um pós-chaise[86] era o único meio de transporte, além da liteira[87], mais demorada.

Assim, a viúva do filho de um conde, que possuía uma carruagem à moda antiga, enviaria em noites chuvosas, sua carruagem, a única que possuía, em volta da cidade, pegando todas as viúvas e as transportando, de maneira segura.

As várias outras senhoras que, por seus parentes que tinham mansões e mantinham os jogos de cartas, recebiam presentes frequentes, durante a temporada de jogos. Eram faisões, e petiscos. Elas os colocavam cuidadosamente em uma bacia quente, cobriam rapidamente com leite e manteiga e levavam para as senhoras fulanas de tal, cujo apetite era fraco e que exigiam delicadezas que não se podia comprar no mercado.

Essas senhoras mais pobres também tinham suas recepções. Elas eram orgulhosas demais para aceitar convites sem devolver o agrado. Vários e divertidos eram os seus inocentes turnos de conversas.

Para dar apenas um exemplo:

Lembro-me de uma dessas noites de jogos, em uma dessas casas de viúvas. Quando chegava a hora do chá, as senhoras sentadas no sofá se deslocavam por um minuto, para que as bandejas de chá, pratos de bolo, pão, manteiga, e tudo mais, pudessem ser retiradas de seu esconderijo sob as valas do sofá.

Você pode imaginar os assuntos da conversa entre essas senhoras:

Cartas, criados, relações, estirpes, e por último e melhor, o interesse mútuo sobre os pobres da cidade, porque elas eram as benfeitoras gentis e incansáveis. Que cozinhavam, costuravam, aconselhavam e doutoravam, fazendo tudo, menos educando.

Uma ou duas senhoras idosas se debruçavam sobre as glórias de outrora, quando se gabavam de duas filhas de condes, embora passassem dos sessenta anos, a data de falecimento delas, porém, os vestígios de suas personalidades ainda eram persistentes sobre o lugar. Orgulhosas, precisas e generosas, mas um pouco duras.

Uma delas afirmava que sua irmã casara com um general, muito distinto, que foi conduzido para a guerra na América, e, consequentemente, suas cunhadas mantinham o nome de Washington em profundo repúdio.

Posso imaginar a maneira como elas falaram dele, a partir do arrepio da abominação com que seus admiradores dedicados falaram anos depois daquele homem de Washington.

O pavimento do caminho era composto de pedras redondas soltas, colocadas tão distantes que um tornozelo delicado receberia um corte severo nos joelhos se escorregasse entre elas. Então, a Senhora Jane que era uma benfeitora, antes de sua hora final, deixou uma soma de dinheiro para fazer e manter o reparo. Na condição de que ele seria suficientemente largo para que se pudesse caminhar lado a lado, de modo a pôr um fim ao costume indecente que estava na moda, das senhoras se apoiarem em cavalheiros. Porque ela abominava o ato de andar de braços dados.

Senhora Jane também deixou a liteira e dinheiro para pagar aos carregadores, quando as senhoras desfrutassem do meio de condução. Esta liteira fora muito usada para carregar as senhoras em suas idas até as celebrações e os jogos de carta. Era um vai e vem, uma senhora descia e outra tomava posse da liteira.

As senhoras idosas viviam tomadas pela tradição familiar e costume antigo.

Uma delas, uma mulher de Shropshire, fora à escola em Londres por volta de meados do século passado.

A viagem para Shropshire levou uma semana.

Na escola que ela foi enviada, além de um belo trabalho de inúmeras descrições, era ensinada a pastelaria e a arte da confeitaria para aquelas que os pais pediam o procedimento.

A mestre da dança deu as suas alunas, instruções na arte de usar um leque adequadamente.

Embora ela fosse filha única, ela nunca havia se sentado na presença de seus pais sem a licença adequada e falava com infinito desgosto da intimidade com a qual as crianças tratavam seus pais atualmente.

— Em meus dias... — disse ela. — Quando escrevíamos para nossos pais e mães, começávamos com “Honrado Senhor” ou “Honrada Senhora”. Jamais um “Querida Mãe” ou “Querido Papai” seria permitido. Sobre a escrita, descartávamos uma boa margem, antes de começar nossas cartas, em vez de enfiar a escrita em cada canto do papel. Quando terminávamos nossas cartas, pedíamos a bênção de nossos pais quando estávamos escrevendo para eles. Se escrevêssemos para um amigo, ficaríamos contentes em “permanecer seu amigo afetuoso”, em vez de caçar alguma expressão nova, como “seu apego, seu amor”. Ah! Fanny, minha querida! Recebi hoje uma carta assinada “Da sua cordialmente amiga”. Aonde vamos parar?

Então, ela contava como um cavalheiro, que a convidou para dançar na época de sua juventude, nunca pensou em tal familiaridade em oferecer seu braço para conduzi-la ao seu lugar, mas pegando a aba de seu casaco forrado de seda, colocou-a sobre sua palma aberta, e sobre ela, a senhora delicadamente descansou as pontas de seus dedos.

Com certeza, a senhora confessou sobre uma história não tão bonita nem tão apropriada para se saber.

Que uma das diversões de sua juventude era medir os tamanhos de seus narizes com alguns cavalheiros. Não era uma coisa incomum naqueles dias e, como os lábios jazem abaixo dos narizes, tais medidas frequentemente terminavam em beijos.

Em sua casa, havia um pequeno coador prateado, e uma vez, comentando sobre isso, ela me mostrou um pires prateado perfurado com buracos, e me disse ser uma relíquia dos tempos em que o chá fora introduzido pela primeira vez na Inglaterra.

Após o chá ser infundido, as folhas eram retiradas do bule e colocadas neste coador, e depois comidas por aqueles que gostavam de misturar com açúcar e manteiga.

— Era muito bom! — acrescentou ela.

Outra relíquia que ela possuía, era um antigo livro de receitas, datado de meados do século dezesseis.

Nossas avós, por certo, foram mulheres de cabeça dura, pois, havia numerosos registros de bebidas “femininas”.

Geralmente as páginas das receitas eram escritas começando com:

“Tome um galão de conhaque, ou qualquer outro com o mesmo espírito.”

Os pudins, também, não eram leves. Uma dessas receitas que copiei por curiosidade da coisa, começa com:

“Pegue trinta ovos, dois litros de leite!”

Estes pudins “brobdignagianos[88]” ela explicou, dizendo que a refeição da tarde, antes da introdução do chá, geralmente consistia de bolos e pudins frios, com um copo de licor.

A mesma velha senhora defendeu fortemente a maneira pela qual os casamentos eram antigamente realizados com frequência.

Ela falou de um jovem que foi estudar em Londres, para se tornar comerciante. Chegou na meia-idade sem pensar em matrimônio. Encontrando-se rico e desejoso de ter alguém para compartilhar a sua vida, ele frequentemente escrevia para algum amigo universitário, ou para o clérigo de seu lugar de origem, pedindo-lhe que recomendasse uma esposa, então, o amigo enviava uma lista de damas adequadas.

O solteiro fazia sua seleção, e dava poder ao amigo para conversar com os pais da escolhida, que aceitariam ou recusariam sem muita consulta aos desejos de sua filha.

Muitas vezes, a garota só era informada do pretendente, por sua mãe, pouco antes do noivado, quando o cavalheiro que seus pais propuseram para ser seu marido estava esperado em sua carruagem, a hora para entrar e jantar.

— E casamentos muito felizes eles se tornaram dessa maneira, meu querido. — ela falou.

E meu venerável informante acrescentaria, suspirando...

“Sempre suspeitei que o seu casamento fora desta maneira também.”

Fim.


A Mansão Deserta

Alguns anos atrás, uma imagem apareceu na Exposição da Academia Real, o que impressionou particularmente a minha imaginação.

Ela representava uma antiga moradia em ruínas, rodeada pelo jardim degradado em um bosque sombrio.

As árvores veneráveis, o fosso cheio de urtigas, as cercas quebradas, as águas verdes estagnadas e a mansão com muitas janelas, em uma mistura perfeita de arquitetura caótica.

O silêncio visível, o espírito de suprema desolação que brotava sobre o recinto, enchia minha mente de tristeza involuntária, enquanto a fantasia conjurava estranhas e brutais histórias de outros dias, com a cena.

Não conseguia me livrar da crença de que a realidade estava retratada na tela, e escrevendo um relato, das várias imagens, para uma amiga que residia no campo, me debrucei sobre esta imagem em particular, e as minhas impressões singulares a respeito dela.

Quando recebi uma carta de minha amiga, ela comentou como minhas fantasias eram irresponsáveis.

Fantasias que, no entanto, estavam baseadas no fundamento da verdade.

Ela prosseguiu dizendo, que lendo minha carta à Senhora L., uma octogenária em maravilhosa preservação, a informou sobre a localização desta mansão deserta, e também sobre sua história, o quadro fora realmente pintado para o filho da Senhora L., e a história ligada a ela, que minha amiga replicou as palavras da velha senhora, foi a seguinte:

Há 50 anos, a mansão Elan era considerada antiga, mas era uma idade saudável, vigorosa, interessante e pitoresca.

Então, a grama esmeralda forrava os lados do fosso, e flores prosperavam agrupadas dentro de seu abrigo inclinado. O drapeado branco flutuava nas janelas pitorescas. Os passeios e as sebes de azevinho grosso estavam em ordem, as fontes brilhavam ao sol e as rosas coradas, se dobravam beijando as águas límpidas e alegres.

Há 50 anos, risos alegres ressoavam em meio às claraboias verdes, e os passos flutuantes pressionavam o verde da relva, uma vez que o Senhor Elan trouxera para casa uma noiva.

Amigos e parentes se apressaram para dar os parabéns, e para compartilhar a hospitalidade da estação festiva.

A Senhora Elan era uma esposa muito jovem, uma criatura tímida e de olhos suaves. Sua mãe morrera durante a infância de sua filha, e seu pai, um oficial de alta patente no exército, estava no exterior, e uma senhora que chamaremos de Sabina, por quem ela fora educada, acompanhou sua amada pupila, agora Senhora Elan, a este novo lar.

A morte do pai de Senhora Elan, e o nascimento de uma filha, acabaram por se misturar em alegria e luto juntos, porque sentia grande ansiedade, e a recuperação após o nascimento foi extremamente enfadonha.

As visitas de médicos na residência dos Elans eram constantes. Eles eram encaminhados de grandes distâncias, evidenciando os medos sobre o estado de saúde da Senhora Elan.

Infelizmente, não era pela saúde corporal da pobre senhora que eles temiam.

A doença mental hereditária de sua família, no lado materno, que estava adormecido por duas gerações, mais uma vez pairou sombriamente suas abordagens de pavor.

Ligeiro, de fato, fora o aviso sutil das manifestações do inimigo invisível, entretanto, o suficiente para alarmar o marido vigilante, que estava bem familiarizado com os fatos.

Entretanto, o alarme se perdeu, os médicos não vieram mais, e a aparente saúde e força, tanto mental quanto física, foram totalmente restauradas na Senhora Elan, enquanto o doce bebê realmente merecia os epítetos lavrados nele pela encantada mãe do bebê mais divino do mundo.

Durante a ausência temporária de seu marido, em assuntos urgentes, a Senhora Elan pediu a Sabina para compartilhar seu quarto à noite, sob a alegação de timidez e solidão. Este desejo foi alegremente atendido, e dois ou três dias passaram agradavelmente dessa maneira.

Era esperado que o Senhor Elan voltasse para casa na manhã seguinte, e quando os amigos se retiraram para descansar na noite anterior, Sabina tirou as cortinas das janelas, para contemplar a gloriosa paisagem que se estendia para longe, toda banhada em brilho de prata, e logo ela caiu em um sono tranquilo, comungando com pensamentos santos e aspirações em orações murmuradas.

Ela foi subitamente desperta por um som curioso no quarto, acompanhado por uma risada de zombaria.

Ela não sabia quanto tempo o sono a embalara no esquecimento, todavia, quando Sabina se virou para ver de onde vinha o som, imagine seu horror e consternação ao contemplar a Senhora Elan de pé, perto da porta, afiando uma faca grande em seu chinelo, olhando loucamente em volta, por vezes, murmurando e rebolando os quadris.

— Ainda não está suficientemente afiado! Não suficientemente afiado! — exclamou ela, prosseguindo intrigada com sua ocupação.

Sabina sentiu que aquilo não era uma brincadeira prática, porque ela conhecia instintivamente a terrível realidade, pelo olhar maníaco, o tom de voz assustadora e ela saltou da cama, correndo até à porta.

No entanto, a porta estava trancada. A Senhora Elan parecia ardilosa, e resmungava:

— Então, você pensou que eu era boba, não é mesmo? Tranquei a porta com duas voltas na chave e joguei a chave pela janela. Talvez, você possa espiá-la no jardim, quando a luz do luar, que tanto gosta de admirar, tocar a face brilhosa da chave! — ela falava, apontando para a janela aberta.

Não havia como fugir saltando pela janela, e mesmo sabendo disso, Sabina, em um instante, pensou em pular.

O casarão estava a uma altura imensa do chão, e para piorar, este quarto estava no cume de uma torre, conduzindo uma vista ampla, escolhida por essa razão, bem como por sua reclusão e repouso, estando tão distante do resto da casa.

Sabina, aflita, tentava não transparecer medo, mesmo com o perigo eminente caminhando em sua direção. Ela se lembrou de ouvir, que o olho humano possui um poder extraordinário para sufocar e manter em suspenso, todo o entusiasmo indisciplinado, assim exposto de forma fantástica.

Ela também estava ciente que, em uma competição em que se tratava apenas de energia corporal, seus poderes deviam se mostrar totalmente inadequados e ineficazes, quando colocados em comparação com os da infeliz senhora durante uma briga.

Sabina fingiu uma calma que ela estava longe de sentir naquele momento difícil, e apesar de que sua voz tremesse, ela disse alegremente, e com um ar afetuoso:

— Acho que sua faca logo estará afiada o suficiente, Senhora Elan! Para que você a quer?

— Para que a quero? — perguntou a mulher louca. — Para que devo querê-la, Sabina, senão para cortar sua garganta com ela?

— Bem, isso é uma fantasia estranha! — exclamou Sabina, esforçando-se para não gritar ou desmaiar. — Mas é melhor você se sentar, uma vez que a faca não é afiada o suficiente para o que deseja fazer! Agora me dê sua atenção por um momento, enquanto você afia a faca. Deixe-me sentar em sua frente, porque quero dizer que tive um sonho tão extraordinário. Quero que você o escute!

A senhora parecia maliciosamente manhosa, e falou:

— Você não me enganará, se eu escutar!

Mas Sabina sentou na frente dela, e começou a derramar um farrapo de disparates, que ela fingiu sonhar,

A Senhora Elan sempre gostou de ler obras de ficção romântica, e este gosto pelo maravilhoso foi, provavelmente, o meio de salvar a vida de Sabina, que durante aquela longa e horrível noite, não pestanejou por um momento e continuou sua repetição de maravilhas no estilo “As Mil e Uma Noites”.

A maníaca sentou-se perfeitamente imóvel, com a faca em uma mão, o chinelo na outra, e seus grandes olhos atentamente fixos em Sabina.

Oh! Horas cansativas!

Finalmente sinais de passos e batidas foram ouvidos na porta do quarto quando o sol da manhã surgiu.

Sabina tinha presença de espírito para fingir não percebê-los, pois, sua terrível companheira parecia não notar, porém, ela continuou sua estória monótona, até que a porta foi aberta e o Senhor Elan, que acabara de voltar, alarmado com os murmúrios portentosos dentro daquele quarto, e acompanhado por vários funcionários, veio em socorro.

Se Sabina se movesse, gritasse por socorro, ou parecesse reconhecer a ajuda que estava à mão, o que a Senhora Elan faria?

A faca seria embainhada em seu coração.

Esta faca era estrangeira, de fabricação artesanal, geralmente pendurada na veste do Senhor Elan, e, a premeditação evidenciada da mulher era um mistério que não seria resolvido.

O cabelo de Sabina, preto como asa de corvo, mudara para a semelhança da idade extrema quando a encontraram pela manhã e ela se retirou para descansar daquela noite temível.

A Senhora Elan nunca recuperou a razão e morreu, infelizmente, pelas suas próprias mãos, dois anos depois.

A herdeira foi confiada à orientação da amiga e governanta de sua mãe, ela se tornou órfã em tenra idade, e, ao completar vinte e um anos, foi uma dona descontrolada da fortuna e propriedades de seus antepassados.

Contudo, muito antes desse período chegar, uma séria questão surgira na mente de Sabina, respeitando o dever e a conveniência de informar a Mary Elan qual era sua verdadeira posição, e gentilmente transmitir o triste conhecimento do destino de loucura de sua família.

Era verdade que em seu caso individual, a catástrofe seria afastada, enquanto, por outro lado, havia um perigo espreitador e ameaçador, mas um alto princípio religioso parecia exigir um sacrifício para evitar a possibilidade de uma perpetuação da terrível doença.

Sabina sentiu-se segura de que, se sua nobre aluna aprendesse sobre os fatos, não haveria hesitação de sua parte em seguir estritamente a linha de direito prescrita.

Era uma tarefa amarga para Sabina empreender, mas ela não se encolheu de realizá-la de maneira pacífica, pois, recebeu o legando da mansão e a propriedade de Elan.

Na estimativa de Sabina, este presente foi como um pacto de sangue. Ela realmente não tinha escolha.

Para ela, os bosques ancestrais e o lar agradável ajudariam aos filhos da linhagem dos Elans, manchados, de fato, e condenados.

Havia muitas pessoas que riam dos sentimentos sensíveis de Sabina sobre este assunto, que eles não conseguiam entender, e até mesmo pessoas bem-intencionadas e piedosas pensavam que ela levava suas noções estritas de cuidado, longe demais.

No entanto, Sabina permaneceu imóvel, e jamais consentiu que a riqueza, assim deixada para a sua posse, fosse desfrutada por ela.

Assim, a mansão solitária permanece sem ser reclamada a posse, embora, não seja por muito tempo, porque há um propósito útil e benéfico especificado no testamento de Mary Elan.

Sabina desejava que a casa fosse convertida em uma casa de repouso, porque ela não aceitava que fosse chamada de manicômio para lunáticos. Seria uma espécie de casa para mulheres gentis, mas decadentes, que, com as qualificações necessárias, encontrariam ali um refúgio das tempestades duplas da vida que as assaltaram.

Pobres almas! Tanto de dentro, como de fora.

— Mas o que aconteceu com Sabina? Seu filho? Por que ele não toma posse? — perguntou a amiga da velha Sabina, a Senhora L. — Pois, se alguém está vivo para reivindicar a propriedade. Por que a mansão permanece assim?

— Sua justificável curiosidade será gratificada, minha querida! — respondeu com gentileza a senhora. — Olhe para o meu cabelo. Ele não ficou branco por nada! Me retirei para descansar uma noite com tranças brilhantes, pretas como a asa do corvo, e eles me encontraram pela manhã, como você agora me vê! Creio que meu filho não deseja um quadro idêntico. Minha peregrinação está se aproximando de seu fim, porque fora prolongada além da idade prevista do homem, mas, de acordo com o teor do testamento, a mansão e o patrimônio dos Elans devem permanecer como estão, até que eu não esteja mais aqui. Enquanto os fundos acumulados irão amplamente dotar a excelente caridade. — falou Sabina com orgulho. — Se meu filho fosse menos honrado ou escrupuloso, é claro, ele reclamaria a propriedade após o meu falecimento, por ganância! Mas o respeito que ele tem por mim, com firme adesão aos seus princípios, o impedirá, com a bênção de Deus, de ceder à tentação. Ele não é um homem rico, mas com humildade orgulhosa, ele pode olhar para este quadro memorial, e entregá-lo à posteridade, e manterá a tradição. Que nenhum de nossos descendentes jamais lamente o uso que será feito, nem cobice a posse desta mansão deserta!

Fim.


Dois Fragmentos de Histórias de Fantasmas

Introdução

Dois fragmentos de Histórias Fantasmas foram encontrados, sem data ou outra pista do período de sua produção, entre os papéis da Senhora Gaskell, e agora pela primeira vez, colocados no papel.

A atração exercida sobre ela por misteriosos incidentes sugestivos do sobrenatural já foi suficientemente ilustrada, mas estes fragmentos são, cada um à sua maneira, escritos com tanta graça, que eles, penso eu, darão aos outros, o mesmo prazer que deram a mim.

O primeiro é animado por um humor manhoso.

O segundo, acrescenta uma página encantadora, descritiva de coisas antigas, no norte de Lancashire e seus arredores pantanosos, que a Senhora Gaskell tanto amava.

A. W. W. Ward, Setembro de 1906.


Fragmento I

Não tenho objeção de dizer a vocês o que aludi na outra noite, pois, sou muito racional, confio muito em Deus para acreditar em fantasmas, mas, ao mesmo tempo, sou a dona de uma circunstância inexplicável, e a impressão que deixou em minha mente foi tão vívida e dolorosa, que durante anos, eu não pensei em nada sobre o assunto.

Para você, não me importo em afirmar que evitaria Birmingham para pernoitar.

Isto foi completamente ridículo, admito, mas foi o que senti na época.

Acho que você sabe o suficiente sobre meu pai e minha mãe, para lembrar, um pouco, da formalidade gentil da Sociedade à qual eles pertenciam.

Você não se lembra de como minha mãe verificava qualquer conversa vã com sua suave e irresistível maneira?

Todos os contos e histórias que não eram verdadeiros, foram excluídos da querida e antiga biblioteca infantil de Heverington.

Eram proibidos fantasmas e fadas, embora o conhecimento de que havia tais coisas a serem faladas tenha chegado até nós, não sei como.

Você sabe que, mesmo agora, tenho receio de contar a história do meu susto!

Acredito que estou fazendo este prelúdio, de modo a adiar a verdadeira questão da minha carta.

Mas agora vou começar de imediato.

Eu estava voltando à escola em Dunchurch, e meu pai não podia ir comigo, por um caso especial do júri em Chester, que ele era obrigado a participar.

Então, eu seria colocada em uma condução até Birmingham, aonde um amigo do meu pai me encontraria, e me levaria para dormir em sua casa.

Foi no dia 26 de janeiro. Estava escuro quando cheguei a Birmingham por volta das sete horas.

Fui acordada por alguém que estava usando um chapéu de aba larga, que se destacava em relevo contra a luz, com a cabeça baixa, perguntando se Hannah Johnson estava lá?

Lembro de me sentir assustada ao dizer:

— Sou eu!

Fizemos uma viagem de duas milhas, ou talvez duas milhas e meia, para fora da cidade, em uma espécie de subúrbio na encosta de uma colina.

As casas eram bastante planas e comuns, com seus tijolos vermelhos, que só pude perceber a tonalidade, na manhã seguinte, com um longo jardim, pelo qual tivemos que caminhar.

Uma mulher amiga veio aos degraus, com uma vela na mão para nos receber, e gostei dela desde o primeiro momento que a vi, diferente do que senti ao avistar seu marido silencioso, que cumpriu seu dever, mas nunca falou.

Ela me fez tirar os sapatos, tocou as minhas meias para ver se estavam molhadas, depois apressou o chá que não tinha açúcar.

A mulher falou muito comigo, e, se seu marido não tivesse ao seu lado, eu conversaria muito mais abertamente.

Mas, lembro-me de ter a certeza que ele estava escutando atrás de seu jornal, e fiquei desconfortável.

Lembro-me que ela deixara o gato pular em seus joelhos e estava acariciando o bichano que ronronava, mas seu marido deu uma bofetada no gato e ele se afastou.

— Esther, você tinha três vestidos de drabé[89] do ano passado. Esse gato vai me custar mais vestidos!

Não me lembro de seu discurso novamente, mas sei que fiquei tão feliz quanto o gato saiu de perto de nós e foi para cima, para meu confortável quarto.

Embora houvesse apenas um quarto na frente da casa, havia dois quartos na parte de atrás, um de cada lado do corredor.

No primeiro andar estava o quarto onde eu dormiria naquela noite, e muito confortável parecia, com uma lareira agradável, e uma abundância de carmesim e branco decorando as paredes.

Se você entrasse, olharia a lareira na mão direita e a cama do lado oposto a você, e a janela grande, com a mesa debaixo dela, do lado esquerdo.

A casa tinha oitenta ou noventa anos, julgo pelas peças de chaminé, que, recordo, eram muito altas, com prateleiras estreitas, e feitas de madeira pintada, com guirlandas amarradas com fitas, esculpidas, não muito bem, sobre elas.

A cama, me lembro, era grande, muito grande para o quarto, por certo, e jamais vi coisa semelhante depois.

A julgar pelas minhas lembranças, devo imaginar que a mobília fora recolhida de acordo com a parcimônia do dono da casa, não menciono seu nome, porque ele tem um sobrinho, um respeitável negociante de chá na Rua Bull, e ele é um membro da Sociedade de Amigos, que não gostaria, tenho certeza, de ter seu nome associado a uma história de fantasmas.

Todas essas coisas, eu estava cansada demais para perceber naquela noite.

Coloquei meus pés em água quente, embora preferisse ir direto para a cama, porque minha amável anfitriã insistiu no lava pés, e então, descobri que eu deixara minhas coisas na pousada, e assim, tive que esperar até que uma camisola de noite e uma touca de dormir dela, fosse emprestada para mim. E finalmente tombei na cama.

Acho que adormeci rapidamente. Mas, por vezes, acordei de repente.

Até hoje, não sei o que me despertou, mas, ao mesmo tempo, estava perfeitamente consciente, embora a princípio estivesse intrigada por me lembrar de onde estava.

O fogo ardera, mas não havia muita luz dele.

Havia alguma luz atrás da cortina da direita, na cabeceira da cama, como se alguém estivesse dentro e colocasse uma vela nas gavetas, que estavam entre a cama e a janela.

Pensei que eu esquecera de apagar a vela, ainda que não me lembrasse de tê-la colocado ali.

Tive alguns debates solitários sobre se eu deixaria a minha cama quente, me levantaria no frio e a apagaria, e creio que eu deveria não me incomodar com isso, porque, de qualquer maneira, a vela seria queimada antes do amanhecer.

Eu era muito preguiçosa, e pensei que talvez pudesse esticar-me da cama o suficiente para apagá-la sem me levantar e tomar frio.

Então, me rastejei para o lado frio da cama, que era suficientemente grande e, na verdade, preparada para duas pessoas.

Falo isto, porque me lembro da sensação de despertar forte que a frieza gelada dos lençóis de linho fino me deu, quando estava deitada sobre eles, esticando-me para desatar a cortina carmesim.

Não havia vela, mas uma luz brilhante, muito vermelha, mais parecida com o primeiro rubor do amanhecer de uma manhã de verão que qualquer outra coisa.

Era realmente muito vermelha e resplandecente.

Parecia vir de, ou de... Não sei como... A figura de uma mulher, que se sentou na cadeira junto à cabeceira da cama.

Acho que ela era uma mulher jovem, mas não vi seu rosto perfeitamente, porque o rosto estava dobrado sobre uma criança pequena, que ela segurava em seus braços, e balançava para frente e para trás, como se a criança estivesse dormindo, com sua bochecha apertada em seu ombro.

Ela não percebeu que eu puxava a cortina para trás, embora, ela fizesse um barulho estridente, e os anéis se arrastavam um pouco na haste.

Eu podia desenhar o padrão do vestido de chita que ela usava, de um tipo chamado por minha mãe, um palampore[90], aquela coisa indiana, com uma grande estampa, mas que estava fora de moda fazia muitos anos.

Não creio que eu estava assustada naquele momento, pelo menos, eu parecia curiosa, e não deixei cair a cortina, como eu teria feito se estivesse assustada, creio.

Pensei nela como alguém em grande aflição, porque seu gesto e a maneira como ela mexia a cabeça, mostravam isso.

Eu sabia muito pouco sobre as pessoas com quem me hospedara. Eles podiam ter bebês, e esta mulher seria alguma amiga ou visitante, que estava acalmando uma criança inquieta. Eu sabia que minha mãe andava, muitas vezes durante as noites, com meu irmãozinho para acalmá-lo.

Mas era bastante estranho que eu não tivesse visto esta senhora no chá, e um pouco mais estranho que seu vestido fosse tão alegre e de cor brilhante, porque, em geral, tal vestido seria considerado muito bonito para aquela grande agonia.

Enquanto estes pensamentos passavam pela minha mente, claro que em muito menos tempo do que levava para escrevê-los, a senhora levantou-se, e deixei cair a cortina e ...


Fragmento II

Bem, meu querido Bob, deixe rir aqueles que ganham!

Você, que se divertiu tanto com o fato de eu ser cativado pelo anúncio esquisito de hospedagem no Guardião, ficaria contente, imagino, em trocar seus pequenos e sujos quartos fumegantes em Manchester, até mesmo cederia as delícias de uma excursão ferroviária todos os dias, durante a semana de Pentecostes, pelo meu Lorton Grange, embora meu anfitrião não possa escrever gramática, assim como minha anfitriã não pode falar.

Gosto do tempero que a incerteza do resultado dá a qualquer aventura, portanto, meu espírito cresceu alto, agitado, selvagem e assim, mais desoladas cresceram as colinas e os pântanos, sobre os quais, passei naquelas que meu senhorio enviara para me encontrar na estação.

Quando digo a estação, você não deve imaginar nada como um Euston ou uma Victoria, porém, apenas uma modesta estação, sem outra morada perto dela, sem passageiros se aglomerando para comprar passagens, sem pirâmides de bagagem.

Fui a única pessoa a acender, e o trem me deixou de pé, olhando para a última relíquia de uma cidade que eu veria durante uma semana inteira.

No entanto, a deliciosa melancolia do ar da montanha me deixou sem rumo, e não dei muitos passos antes de ver a relva, correndo ao longo da estação.

O digno Senhor Jackson imaginou ter uma hora para conversar com seu amigo na estação, e um descanso para seu cavalo.

Não é de admirar, pois, quando cheguei à Lorton Grange, encontrei os relógios com duas horas de diferença um do outro, e cada um com uma hora de diferença em relação à hora real do dia.

Isto não fala muito sobre a forma como a vida é sonhada nestas dinastias?

O bom homem Jackson foi silencioso na viagem, uma circunstância que não me desagradou, já que me deu trégua para olhar ao redor.

A estrada acabou entre colinas de urze marrom, com um arbusto escasso para captar uma luz difusa, ou uma sombra que passava.

As poucas cercas vistas, eram feitas de pedras soltas empilhadas umas sobre as outras, e cimentadas unicamente pelo musgo e samambaias que enchiam cada fenda.

Após cerca de uma hora de viagem por cima destas colinas, de quedas e nós de árvores, como o senhorio os chamava, descemos por uma estrada muito precipitada, no vale em que está situado Lorton Grange.

O vale tem cerca de uma milha de largura, com uma ribanceira, arrojada, brilhante e musical, dividindo-se em metades desiguais.

Em alguns lugares, as rochas cinzentas encurralavam as águas ruidosas e cintilantes e invadiam absolutamente seu território, novamente elas recuavam e deixavam baías dos prados mais verdes entre a rocha e o rio.

Em um desses, Lorton Grange foi erguida há cerca de trezentos anos, e foi um lugar um tanto imponente naqueles dias.

Algumas casas foram construídas em torno de uma praça oca, para o uso das famílias.

Casas quase em ruínas, porque foi evisceradas para servir como um grande celeiro, e a chuva entrou através do telhado negligenciado.

A casa era usada como morada da família do fazendeiro.

Anteriormente, uma pequena rua levava até o alpendre coberto de hera da estrada que é ladeada pelo rio.

Todas as árvores estavam derrubadas, exceto uma faia nobre, que varria o chão perto das paredes da casa e jogava na obscuridade verde, um charmoso assento de janela na sala de estar.

Em toda a parte da frente da casa, as rosas trepadeiras, que ostentam seus ramos sobre os beirados, pareciam crescer pelo sofrimento e florescer de verão a verão sem dar prazer a ninguém.

Subimos até a grande entrada, a velha estrada foi arada há muito tempo, e a grama crescia onde outrora os Lortons andavam delicadamente ao longo dela.

O Senhor Jackson me levou até a porta dos fundos na praça, agitando duas ou três dúzias de galinhas e perus, e evocando um latido de boas-vindas de seus numerosos cães.

Me encaminhei através da confusão de uma grande cozinha lotada, tendo como guia, a voz de alguma mulher, que ao final de uma passagem escura, continuava chamando:

— Venha! Venha!

E finalmente cheguei à sala na qual agora escrevo, o antigo salão, presumo.

Eu escreveria um inventário dos móveis e a descrição de qualquer quarto em uma casa de hospedagem em Manchester, mas acho que poderia desafiá-lo a devolver o elogio, e formar até mesmo um palpite do lugar que estava.

Pense em quatro janelas, e cinco portas, para começar! Duas das minhas janelas olhavam para frente, e eram molduras drapeadas com hera, através de uma, as águas do riacho brilhavam no meu quarto, quando o sol brilhava como agora. As outras duas olhavam para o barulhento quintal da fazenda, mas nestes assentos de janela eram colocados enormes gerânios não podados e fúcsias, que formavam uma visão agradável.

Quanto às portas, duas delas eram mistérios para mim neste momento, uma era a entrada traseira da sala através da qual ...


O Poço de Pen-Morfa

PARTE I

De cem viajantes que pernoitam em Tre-Madoc, no norte de Gales, talvez, não há um que pense em ir para a aldeia vizinha de Pen-Morfa.

A nova cidade, construída pelo Senhor Maddocks, amigo do Senhor Shelley, tirou toda a importância da antiga vila, como se o nome a cabeça do pântano importasse.

Este pântano, o Senhor Maddocks drenou e recuperou de Traeth Mawr até Pen-Morfa, contra as paredes dos casebres, dos quais as ondas do inverno chicoteavam o pântano seco, a três milhas do mar, ao longo de uma estrada em desuso para Caernarvon.

Não creio que houve uma nova cabana construída em Pen-Morfa durante cem anos, e muitas casas antigas são datadas de anos escondidos em algum canto obscuro do século XV, porque as vigas da madeira, onde se encontravam com os telhados, eram escurecidas com a fumaça de séculos.

Era comum nesses casebres haver um grande quarto, com a cama ao lado do armário, com portas de madeira, um pouco à moda escocesa antiga, imagino, e abaixo da cama, não era incomum avistarmos uma boa gaveta de madeira larga, que continha o bolo de aveia, assado, que seria, por alguns meses, parte do alimento da família.

Eles chamavam de Cabo de Llyn, o ponto no final de Caernarvonshire.

Julgo que eles chamariam Pen-Morfa de aldeia galesa, porque era tão galês os seus caminhos, lares e habitantes, tão diferente das cidades e aldeias em que a multidão inglesa no verão visitavam.

Como os habitantes da Pen-Morfa se distinguiam por seus nomes, não sei dizer. Só sei, de fato, que em uma família que conheço, o nome do filho mais velho era John Jones, porque seu pai era John Thomas, o segundo filho se chamava David Williams, porque seu avô era William Wynn, e que as meninas eram chamadas indiscriminadamente pelos nomes de Thomas e Jones.

Ouvi algumas risadas galesas sobre a forma como eles confundiam os advogados em Caernarvon, negando o nome sob o qual foram intimados a prestar depoimento, se não estivessem dispostos a testemunhar.

Eu queria explicar sobre um negócio peculiar destes verdadeiros galeses, que eram o que os ingleses eram um século atrás, mas devo apressar minha história.

Recebi grande, verdadeira e bela benevolência de um dos membros da família de que falo, e que vivia em Pen-Morfa, e quando descobri que eles queriam que eu bebesse chá com eles, aceitei com prazer, embora meu amigo fosse o único na casa que sabia falar inglês fluentemente.

Depois do chá, fui com eles para ver alguns de seus amigos, e foi, portanto, que vi os interiores das casas das quais falei.

Era uma noite de outono. Fomos tocados pela luz solar suave do ar livre quando entramos nas casas, nas quais tudo parecia escuro, salvo a esfera corada da luz do fogo, pois, as janelas eram muito pequenas e profundas em suas paredes grossas.

Me esperando, estavam um casal de idosos, que me receberam em galês, e trouxeram leite e bolo de aveia com hospitalidade patriarcal.

Seus filhos e filhas casaram e moravam longe deles, sendo assim, eles viviam sozinhos. O homem era quase cego. Eles santavam um em cada lado do fogo da lareira, tão velha, até que entramos e quebramos o silêncio, tão profundo, que eles pareciam ouvir a própria morte.

Em outra casa, vivia uma mulher rude e de aparência austera. Ela estava ocupada com um enxame de abelhas, sozinha e sem assistência.

Não penso que meu amigo escolheria falar com ela, mas a olhando em seu jardim do lado da colina, ele fez uma indagação em galês, que foi respondida no tom mais triste que já ouvi na minha vida, uma voz que o frescor e timbre fora sufocado por lágrimas há muitos anos.

Perguntei quem ela era. Ouso dizer que sua história era comum, mas a visão da mulher e suas poucas palavras me impressionaram.

Ela, em tempos distantes, fora a mais bela de Pen-Morfa. Ela trabalhara em uma casa de família, e quando eles se mudaram, ela os seguiu e foi para Londres e voltara para Pen-Morfa um ano depois. Nesta época, ela estava prestes a se tornar mãe e sua beleza entrou naquele olhar triste, bestial e desesperado que vi.

Seu pai morrera durante sua ausência, e deixou-lhe pouco dinheiro, e depois que seu filho nascesse, ela moraria num dos casebres que vi, e tentaria viver, de maneira escassa, na produção do mel de suas abelhas.

Ela não quis casar novamente e soube que seu filho estava deformado, e perdera o uso de seus membros inferiores.

Pobre criatura!

Quando vi sua mãe, seu filho estava há 15 anos, acamado.

Mas, durante a noite, havia uma luz queimando, era, muitas vezes, a da mãe atenta, solitária e sem amigos, acalmando seu filho que gemia, e se ouvia o cantar, com o ar nostálgico galês, na esperança de reprimir a dor com a música monótona e estrondosa.

Sua tristeza foi tão digna, sua resistência silenciosa e seu amor paciente, que ela conquistou tal respeito, que os vizinhos se tornaram seus amigos, entretanto, ela se manteve sozinha e solitária.

Está é uma história muito verdadeira.

Espero que a mulher e seu filho estejam mortos agora, e que suas almas estejam no Céu.

Outra história que ouvi sobre estas velhas habitações primitivas, pretendo contar agora.

Há pedras no alto da Pen-Morfa e são as mesmas que pairavam nas colinas de Tre-Madoc, entretanto, perto da Pen-Morfa, elas se espalhavam e se perdiam na planície.

As bordas grandes e afiadas, que de outra forma, pareceriam duras e frias, eram adornadas com o musgo da cor mais brilhante, e o líquen[91] dourado.

Perto, você podia ver as folhas vermelhas no bico do grou[92], e os tufos de urze roxa, que enchiam cada fenda, e ao longe, o efeito da infinita riqueza de cores, quebradas, ali e acolá, por grandes aglomerados de heras.

Aos pés dessas rochas, vinham um ou dois prados ricos e verdejantes, e então, você estava em Pen-Morfa.

O poço da aldeia ficava abaixo das rochas. Havia um ou dois grandes pedaços de pedras inclinadas naquele último campo, na estrada que levava ao poço, que eram sempre escorregadios no calor do verão, quase tanto quanto na geada do inverno, quando um pequeno riacho vítreo era transformado em fina camada de gelo.

Muitos anos atrás, uma vida atrás, por certo, viviam em Pen-Morfa uma viúva e sua filha.

Muito pouco era necessário naqueles remotos vilarejos galeses e os desejos do povo eram muito simples.

Abrigo, fogo, um pouco de bolo de aveia e leitelho[93], alguns instrumentos para jardinagem, talvez, alguma carne de porco e um pouco de torresmo no inverno, roupas, que eram principalmente de fabricação caseira, e do tipo mais duradouro, admitimos, e que levavam pouco dinheiro para se comprar os tecidos para seu feitio, especialmente em um distrito, no qual os grandes capitalistas ainda não pousaram suas ambições para comprar dois ou três acres dos camponeses, e, quase todos os homens sobre Pen-Morfa possuíam, no momento em que falo, sua moradia e algumas terras ao lado.

Eleanor Gwynn herdou o chalé à beira da estrada, à esquerda, ao passar de Tre-Madoc para Pen-Morfa, no qual ela e seu marido viveram toda sua vida de casados, e um pequeno jardim inclinado para o sul, no qual, suas abelhas permaneceram antes de se alinharem para a urze mais distante.

Ela tomou posição entre seus vizinhos como possuidora de uma independência moderada, nem rica ou pobre.

No entanto, os jovens de Pen-Morfa achavam-na muito rica pela posse de uma filha tão bonita. A maioria sabe como as mulheres galesas são bonitas, mas, de todos os relatos, Nest[94] Gwynn era mais regularmente bonita que qualquer outra por milhas ao redor.

Os galeses gostavam das tríades que ainda é ditado naquele distrito:

“Tão bela como uma manhã de verão ao nascer do sol. Como uma gaivota branca na onda verde do mar, e como Nest Gwynn.”

Nest sabia que ela era linda, e se deleitava com isso.

Sua mãe, às vezes, a controlava em seu orgulho feliz, e outras vezes, a lembrava, que a beleza era um grande presente de Deus, uma vez que os galeses eram um povo muito piedoso, mas quando ela começou seu pequeno discurso, Nest veio até ela, ajoelhou-se diante da mãe, colocou seu rosto para ser beijada, e assim, com uma doce interrupção, ela parou os lábios de sua mãe.

Seu bom astral fez alguns poucos balançarem a cabeça, e outros a chamaram de atraente conquistadora, porque ela sempre queria agradar a todos, velhos e jovens, tanto homens quanto mulheres.

Um pouco de Nest era suficiente para estas falas. Podia ser um sorriso doce e brilhante, uma palavra de bondade, um olhar alegre ou um pouco de simpatia.

Tudo isso agradava e atraía as pessoas até ela. Nest era como uma fada encantada, que deixava cair presentes inestimáveis.

Alguns interpretavam seus sorrisos e palavras amáveis, pelo modo como acreditavam, e não como realmente eram, e assim, eles resolveram que Nest, linda e batizada era decidida e atrevida, e para castigá-la, eles se vingaram, chamando-a de namoradeira.

Sua mãe ouviu isso e suspirou, mas Nest apenas riu.

Era seu trabalho buscar água para o uso do dia, no poço de que descrevi. Os velhos diziam ser a visão mais bonita do mundo vê-la pisar leve e cautelosamente sobre as pedras com o balde de água equilibrado em sua cabeça.

Eles dizem agora que são caridosos e falam a verdade, porque nunca houve uma filha melhor para uma mãe viúva do que Nest.

Havia uma antiga e pitoresca fazenda sob Moel Gwynn, na estrada de Tre-Madoc para Criccaeth, chamada por algum nome galês que agora esqueço, mas seu significado em inglês era O Fim dos Tempos. Um nome estranho, corpulento e sinistro.

Talvez, o construtor quisesse que sua obra durasse até o fim dos tempos. Não sei, mas ali estava uma velha casa, e ficara de pé por muitos anos.

Quando Nest era jovem, ela conheceu Edward Williams, que, após a morte de sua mãe, as pessoas diziam que ele estava à procura de uma esposa.

Disseram isso para Nest, mas ela olhou para os próprios pés e ficou envergonhada, e afirmou que ele devia pensar bem antes de tomar uma esposa para si.

Ela foi ao poço, em uma manhã de outono, quando o orvalho estava pesado na grama, e os sabiás estavam ocupados catando sementes na montanha. Edward Williams, por acaso estava lá, a caminho de uma corrida de cavalos e, de alguma forma, seus galgos correram e ao passar por Nest, esbarraram nela, o que fez o balde de água cair e ela ficara muito tempo enchendo-o novamente, e o rapaz se aproximou.

Quando chegou a sua casa, Nest jogou seus braços ao redor do pescoço de sua mãe e, em um ardor de lágrimas de alegria, disse-lhe que Edward Williams, de O Fim dos Tempos, pedira sua mão em casamento, e que ela falara sim para o pretendente.

Eleanor Gwynn não derramou suas lágrimas, mas elas caíram silenciosamente quando ela estava sozinha, porque a pobre mulher não ousou chorar diante da filha. Ela estava grata por Nest ter encontrado um protetor, um homem apropriado, em idade e caráter correspondentes e acima dela em fortuna, todavia, Eleanor sabia que sentiria falta de sua doce filha, e suas mil maneiras de ajudar a pobre viúva.

Ela lamentou que fosse sentir falta dela à noite, junto à lareira, ou de madrugada, quando ela acordasse dos sonhos de sua juventude distante, e visse o rosto de sua bela filha, deitado calmo ao luar, almofadado ao seu lado.

Mas quem seria tão egoísta a ponto de ficar triste quando Nest estava tão supremamente feliz?

Nest dançou e cantou mais do que nunca, e então, sentou em silêncio, e sorriu para si. Se falasse com ela, ela começaria e voltaria ao presente com as bochechas rosadas, e contaria o que pensara.

Foi um outono ensolarado, feliz e encantador, mas o inverno estava próximo e com ele, veio a tristeza.

Em uma bela manhã de geada, Nest saiu com seu amado. Ela para o poço, ele para uma negociação de sua fazenda, o encontro seria na pequena pousada de Pen-Morfa.

Ele estava atrasado para seu compromisso, então, ele devia pegar o caminho mais rápido para a pousada. Nest, usava seu melhor manto e chapéu novo, que vestido contra o conselho de sua mãe, mas a jovem persuadira que era uma compra recente, e não queria esperar para usá-lo, então, ela saiu radiante, repleta de amor e felicidade.

Uma pessoa, que viveu até recentemente, encontrou-a descendo em direção ao poço naquela manhã, e disse:

— Ele se virou para observar ela!

Nest parecia incomumente adorável e Edward se perguntava a razão para a jovem usar suas roupas de domingo, pois, o bonito manto de tecido azul com capuz era guardado pelas mulheres galesas para serem usados na missa de domingo ou nos dias de mercado, portanto, não era frequentemente usado, mesmo nos dias mais frios do inverno, para tarefas domésticas como ir buscar água no poço.

Assim, ele disse:

— Não é possível olhar em seu rosto e culpar qualquer coisa que ela use.

Nas pedras inclinadas, a garota desceu alegremente com seu balde. Ela o encheu no poço, e tirou o chapéu, amarrou as cordas e o colocou no braço. Ela levantou o balde pesado e o equilibrou na cabeça. Mas, infelizmente, ao subir a pedra lisa, escorregadia e traiçoeira, o peso de seu manto era uma insignificância tão quanto seu chapéu pendurado.

Algo, de qualquer forma, lhe tirou o equilíbrio.

O orvalho estava congelado na pedra inclinada, e criou uma camada de gelo fina e escorregadia, e foi assim que a pobre Nest caiu.

A cor rosada de rubor de seu rosto doce desapareceu. Não havia mais um olhar de felicidade inocente, e, ao invés disso, a palidez mortal e olhos fílmicos, sobre os quais, sombras escuras pareciam perseguir, à medida que os rebentos de agonia cresciam mais intensos.

Ela gritou uma ou duas vezes, contudo, o esforço involuntário e forçado pela dor excessiva a superou, e ela desmaiou.

Uma criança, chegando uma ou duas horas depois no local, viu a jovem ali, deitada, colada no gelo à pedra e pensou que Nest estava morta. A criança correu chorando de volta para casa.

— Nest Gwynn está morta! Nest Gwynn está morta! — a criança gritou, louca de medo, e não parou até esconder sua cabeça no colo de sua mãe.

A aldeia ficou alarmada e todos que puderam, foram apressados em direção ao poço.

A pobre Nest pensara que ela estava morrendo naquela hora sombria, tomando o desmaio que antecede a morte, e lutado contra isso, rezou para que Deus a mantivesse viva, até que ela pudesse ver o rosto de seu amado mais uma vez.

Quando ela o viu, branco de terror, inclinando-se sobre ela, Nest deu um sorriso fraco, e desmaiou.

Muitos meses depois, ela permanecia na cama, sem poder se mover.

Às vezes, ela delirava, outras vezes, se consumia na mais profunda depressão.

Sua mãe a observava com o mais terno cuidado. Os vizinhos vinham e ofereciam ajuda. Eles traziam presentes delicados do campo, e parte de todos os jantares das casas da paróquia de Pen-Morfa eram enviados para Eleanor Gwynn.

— Ela precisa estar forte! Você precisa de tempo para cuidá-la. — diziam os vizinhos para Eleanor, quando entregavam suas tigelas, pois, eles acreditavam que a pobre viúva não podia perder tempo fazendo as refeições, porque ela tinha o dever de cuidar de sua filha.

Edward Williams foi durante muito tempo assíduo em suas visitas e atenções, no entanto, ele foi perdendo o interesse em Nest.

Eleanor se culpou por seu ciúme quando eles começaram o namoro, e repreendeu seu coração desconfiado.

No entanto, quando a primavera amadureceu dando lugar para o verão, e Nest ainda estava acamada, a frieza de Edward ficou visível para todos e não somente para Eleanor.

Os vizinhos falaram com ela sobre isso, mas a viúva encolheu os ombros e não quis ouvir sobre o assunto, como se estivessem pulsando uma ferida.

“De qualquer forma...” pensou ela. “Nest estará forte antes que ela seja informada sobre isso! Contarei mentiras, serei perdoada por Deus pelas mentiras ditas, mas devo salvar a minha filha e quando ela estiver bem e mais forte, serei capaz de confortá-la! Deus! Se ela não falasse sobre ele com tanta ternura e confiança, quando ela está delirando, eu poderia amaldiçoá-lo pelo que está fazendo!”

Quando Nest chamava por seu noivo, Eleanor inventava alguma estranha história sobre a falta de notícias de Edward. Ela falava que ele estava ocupado com negócios em Caernarvon ou que estava no mercado de gado em Harlech. E, sem mais mentiras para dizer, ela foi levada ao extremo.

Passaram três semanas desde que ele parara à porta para perguntar sobre a sua amada, e Eleanor, louca de ansiedade pelo estado de saúde de sua filha, que estava morrendo silenciosamente por falta de notícias de seu amado, vestiu seu manto, o mesmo que ela embalara sua filha para dormir em uma bela noite de junho, e partiu para O Fim dos Tempos.

A grande planície que se estendiam como um anfiteatro, no meio de colinas formadas pelas cordilheiras de Moel Gwynn e as Rochas de Tre-Madoc, era toda verde-ouro na luz suave do pôr do sol. Para Eleanor podia ser preto com o frio do inverno, porque ela não notou as coisas ao seu redor até chegar ao destino e lá, no pequeno quintal da fazenda, ela caminhou em direção a Edward.

Ele estava examinando algum feno, recém-empilhado, o ar era balsâmico pelo aroma do feno e doçura persistente do sopro das vacas.

Quando Edward se virou ao ouvir os passos em sua direção e viu Eleanor, ele coloriu a face e parecia confuso, entretanto, ele se apressou para cumprimentá-la de maneira bastante cordial.

— É um belo fim de tarde, Senhora Eleanor! — afirmou ele. — Como está Nest? Creio que a sua presença aqui é um sinal de que ela está melhor! Você não quer entrar e sentar? — ele falou apressadamente, em uma recepção agradável que ele não sentia.

— Obrigada! Vou só pegar este banco de ordenha e sentar-me aqui! Isso é o bastante para descansar as minhas pernas! O ar livre é como bálsamo, após tanto tempo sem sair de casa.

— É muito tempo realmente! — respondeu ele. — Creio que mais de cinco meses!

A Senhora Gwynn estava tremendo o coração. Ela sentiu uma raiva que não queria manifestar, já que, quaisquer revelações de temperamento ou ressentimento, podia quebrar o fio minguante do apego que ligava Edward à filha. Ela não queria tirar as esperanças de Nest e se algo acontecesse, ela não se perdoaria. Ela dizia em pensamento:

“Paciência! Paciência! Ele é sincero em suas palavras, e ainda a ama!”

— Faz muito tempo, Edward Williams, desde que você foi até nós, para perguntar sobre Nest! — Eleanor falou. — Ela pode estar melhor ou pior! — ela olhou para ele com repreensão, mas ponderou em um tom suave e tranquilo.

— Eu... Você vê! O feno dá um longo trabalho para ser empilhado! O tempo não tem colaborado. Você sabe, o olho do dono da fazenda engorda o gado! Além disso... — ele respirou profundamente, medindo as palavras, como se procurasse motivos para prestar contas de sua ausência. — Ouvi falar de Nest. Quem me falou foi Rowland Jones. Eu estava na cirurgia de um dos meus cavalos. Jones me falou sobre Nest!

Uma sombra veio sobre seu rosto, enquanto ele se lembrava do que o médico falara. Será que ele pensou que essa sombra escaparia do olhar da mãe?

— Você viu Rowland Jones? Oh! Homem! Diga-me o que ele disse da minha menina! Ele não vai dizer nada para mim, sei bem! Você vai me dizer! Você deve me dizer!

Ela se levantou e falou em um tom de comando, ao qual o sentimento de Edward de independência, fora enfraquecido por uma consciência acusadora, que não lhe permitiu resistir.

Ele se esforçou para fugir da questão, no entanto:

— Foi uma infelicidade terrível a ida de Nest ao poço!

— Conte-me o que o médico disse sobre minha filha! — repetiu a Senhora Gwynn. — Ela vai viver ou morrer?

Ele não ousou desobedecer ao tom imperioso em que a pergunta foi colocada.

— Oh! Ela viverá, não tenha medo! O médico disse que ela viverá! — Edward não pretendia dar qualquer ênfase peculiar à palavra viver, mas, de alguma forma, ele o fez, e ela, cujos nervos vibravam de ansiedade, pegou a palavra.

— Ela viverá! — repetiu ela. — Mas, há algo por trás disso? Diga-me, pois, quero saber! Se você não falar, irei até Rowland Jones, mesmo com a noite se aproximando, e o farei dizer o que ele lhe disse!

Algo nesta conversa entre ele e o médico, Edward não queria falar, porém, a ameaça da Senhora Gwynn teve o efeito desejado. E mesmo irritado com a situação, ele respondeu:

— A Senhora tem consigo um jeito tão impaciente de solucionar as coisas! — ele a repreendeu.

— Sou uma mãe pedindo notícias de sua filha doente! — resmungou. — Continue... O que ele disse? Ela vai viver...

— Ela vai viver, ele não tem dúvidas sobre isso! Mas ele pensa... — Edward engoliu o medo, ousando encarar a mulher que parecia orar. — Por favor, Senhora! Não aperte suas mãos! Não consigo continuar com a Senhora olhando dessa maneira para mim. Você está raivosa o suficiente para assustar um homem!

— Fale! — murmurou ela, rouca. — Não importa minha aparência, se ela assusta ou não. Apenas fale, ela viverá?

— Ela vai viver, mas Nest não vai conseguir andar. Ficará naquela cama, ou em uma cadeira pelo resto de sua vida. Sinto muito! — Edward abaixou a cabeça, envergonhado.

— Minha filha será uma aleijada para toda a vida! — repetiu ela, lentamente. — Ela só tem vinte e um anos! — Eleanor suspirou fortemente.

— Já que estamos falando sobre isso, vou apenas dizer o que tenho em mente... — Edward ponderou, apressado e confuso. — Tenho um negócio de gado, e a fazenda exige trabalho pesado. Sabe que isso me obriga a ter uma mulher capaz e saudável... Então, você pode entender... — ele parou, desejando que ela entendesse o significado de suas palavras.

No entanto, ela não entendeu. Ela fixou seus olhos escuros nele, como se lesse sua alma, até que ele desviou o olhar.

— Bem... — suspirou ela, longamente. — Diga-me! Lembre-se, ainda tenho forças em mim, posso fazer o serviço da fazenda no lugar de minha filha, se assim desejar!

— Você é muito boa! Contudo, você deve estar ciente que Nest nunca será a mesma que um dia foi.

— Você não jurou diante de Deus que estaria com ela, seja na saúde ou na doença? Sabe o que falo. — ela olhou para ele, prendeu o fôlego e continuou. — Como ela está doente, você vai desprezá-la? Apenas porque não fez os votos diante do altar? Você se comprometeu a casar com Nest! Embora seu corpo possa estar aleijado, seu pobre coração é o mesmo! O coração de Nest está cheio de amor por você. — ela suspirou, quase implorando para que ele assegurasse que seus medos eram falsos. — Mas, veja! Sou uma mulher tola, uma pobre mulher tola e pronta para se assustar com algumas palavras! — ela sorriu para ele, mas foi um sorriso forçado, duvidoso, e seu rosto ainda conservava o aspecto sombrio e obstinado.

— Não, Senhora Gwynn! — garantiu. — Você falou a verdade! Seu bom senso lhe disse que Nest nunca estaria apta a ser a esposa de nenhum homem, a não ser que ela pudesse se casar com o Senhor Griffiths de Tynwntyrybwlch que manteria uma carruagem disponível em todos os momentos em que Nest precisasse. — Edward realmente não queria ser insensível, porém, estava assustado com aquela conversa.

— Seja um homem de palavra! O que quer que você queira dizer para a minha filha, diga por você mesmo, e não fale como se meu bom senso me dizesse algo. Estou aqui, duvidando de meus pensamentos, amaldiçoando meus medos. Não seja um covarde! Eu lhe pergunto se você e Nest ainda são noivos?

— Não sou um covarde! Já que você me pergunta, respondo. Nest e eu fomos noivos, mas não somos agora. Não posso continuar isso! Ninguém espera que me case com uma aleijada. Decidi, mas eu estava esperando o momento certo para comunicar. Porém, já que está aqui... Vamos poupar dores de cabeça futuras.

— Muito bem! — rosnou ela, e se virou para ir embora, mas sua ira estourou como comportas de uma represa, varrendo a sensatez e a cautela.

Ela se moveu e ficou na porta de entrada. Seus lábios se separaram, mas nenhum som veio, e com um movimento histérico, ela atirou seus braços subitamente para o céu, como se evocasse um relâmpago em direção à velha casa cinza para a qual ela apontou quando ela chegou à porta e então, ela falou:

— A filha da viúva não é amada! Tão certo quanto o Salvador, que trouxe o filho de uma viúva da morte para a vida, por suas lágrimas e gritos. Assim, certamente Deus e Seus Anjos velarão por minha Nest, e vingarão seus cruéis erros, Edward! — ela se afastou chorando e torcendo suas mãos.

Edward fechou as portas. Ele não tinha mais vontade de continuar o trabalho e sentou-se à lareira, olhando sombriamente para as cinzas vermelhas e assim ficou, olhando para o vazio do fogo por meia hora ou mais, quando alguém bateu à porta.

Ele não quis falar, porque não queria a companhia de ninguém. Outra batida forte e barulhenta veio. Ele não respondeu. Então, o visitante abriu a porta e, para sua surpresa e quase aflição, era Eleanor Gwynn.

— Eu sabia que você estava aqui, e que você não sairia para a noite clara e santa como se nada acontecesse! Oh! Te amaldiçoei? Se o fiz, peço-lhe que me perdoe. Tentarei pedir ao Todo-Poderoso que o abençoe, se você tiver um pouco de misericórdia... — ela soluçou. — Matará Nest de desgosto se ela souber a verdade agora, ela está muito fraca, porque ela não consegue se alimentar corretamente. Minha filha está muito doente, Edward! Sei que deseja o melhor para Nest. — ela olhou para ele, como se esperasse uma resposta, todavia, ele não falou.

Ela se ajoelhou ao lado dele.

— Você me dará um pouco de tempo, Edward, para que ela se fortaleça, não é mesmo? Pergunto, de joelhos dobrados diante de você! Talvez, se eu prometer nunca mais te amaldiçoar, você venha, às vezes, para visitá-la e assim, ela tenha ânimo para comer, até que ela esteja bem o suficiente para saber que tudo acabou, e as esperanças foram esmagadas de seu coração. Apenas diga que você a visitará por cerca de um mês, como se ainda a amasse. A farei forte durante este tempo. — as lágrimas dela caíram rápido demais para que conseguisse pará-las.

— Levante-se, Senhora Gwynn! — sussurrou Edward. — Não se ajoelhe diante de mim. Não tenho objeção em visitar Nest, para que tudo fique claro quando ela estiver forte! Pobrezinha! Sinto muito! Sei que ela pensa em mim diariamente. Lamento!

— Se eu deixasse vocês casarem antes dessa desgraça! Oh! Como sou miserável! Deixei sua filha brilhante escurecer! Mas você me perdoará e visitará, às vezes, apenas por um pequeno quarto de hora, uma ou duas vezes por semana. E se ela estiver dormindo, não precisa entrar. Se ela não estivesse tão doente, eu nunca lhe pediria tal coisa!

Ela se despediu e voltou para a casa.


PARTE II

Nest ficou animada quando o clima quente do verão chegou.

Edward foi vê-la, e ficou durante o quarto de hora previsto, mas ele não ousou olhar frente a frente, e seus olhos desviavam dos da jovem.

Nest estava, de fato, aleijada. Uma perna era mais curta que a outra e ela precisava de muletas.

Seu rosto, antes tão brilhante na cor, estava pálido pelo sofrimento, as bochechas rosadas desapareceram para nunca mais voltar. Seus grandes olhos estavam afundados no profundo de suas cavernas ocas, mas a luz ainda surgia fraca neles, quando Edward se aproximava.

Sua mãe temia pelos dias futuros, porque o pesado fardo de seu segredo era, por vezes, opressivo, e ela pensava que Edward começava a se cansar das visitas forçadas.

Em uma noite de outubro, ela lhe disse a verdade. Ela até compeliu seu coração rebelde a tomar o lado frio e racional da questão, mas afirmou que sua filha e a moldura deficiente era uma desqualificação para se tornar esposa de um fazendeiro.

Ela mal falava, porque sua agonia era tão grande, que ela não ousava confiar em si para expressar os sentimentos que a estavam enfurecendo, mas, Nest se afastou da razão fria, e se revoltou contra sua mãe.

Ela se revoltou contra o mundo realmente. Nest amarrou seu sofrimento ao peito, para corroer e apodrecer ali.

Noite após noite, sua mãe ouvia seus gritos e gemidos de lamento, que se assemelhavam àqueles arrancados dela pela dor corporal do acidente, um ano antes.

Se sua mãe falava para que ela se acalmasse, Nest negava orgulhosamente a existência de qualquer dor, exceto a física, consequente do acidente.

— Se ela apenas abrisse seu coração dolorido para mim, sua mãe! — Eleanor exclamou em oração para Deus. — Eu ficaria satisfeita! Senhor! Eu queria que Nest voltasse a ser o que era antes. Antes de conhecer Edward. Eu sabia que quando o amor nascesse em seu peito, nada seria como antes. Pensei que a dor que senti quando Edward falou comigo, era a dor mais aguda que eu sentiria, mas esta dor agora... Oh! Senhor, meu Deus! É a pior de todas e só Tu podes ajudar!

Nest melhorou seu estado de saúde.

Ela estava ansiosa para ter o máximo de trabalho que pudesse suportar. Ela não permitia que sua mãe lhe poupasse nada. Trabalho duro e cansaço corporal, porque ela parecia ansiosa por voltar a sentir toda a fadiga possível.

Ela ficava contente quando se sentia atordoada pela exaustão e furiosa ao lembrar de quando sua mãe, naqueles primeiros meses de convalescença, realizava as tarefas domésticas que antes eram dela. No entanto, ela encolheu os ombros quando desejou sair de casa.

Sua mãe pensou que ela não estava disposta a expor sua aparência alterada às observações dos vizinhos, porém, Nest não tinha medo disso e sim, da piedade deles, como sendo uma pessoa solitária e abandonada.

Se Eleanor cedesse diante da imperiosidade de sua filha e ficasse sentada, enquanto Nest rasgava seu trabalho com a veemência de um coração amargo, ela choraria, mas não o fez, porque lágrimas ou qualquer expressão de piedade irritavam Nest, e ela até se afastava de carícias.

Tudo continuaria como antes de Nest conhecer Edward, e assim foi, externamente, porque todos pisavam cuidadosamente, como se o chão sobre o qual se moviam, fosse oco e velho.

Não havia mais descuidos, cada palavra era guardada e cada ação, planejada. Era uma vida monótona para todos que estavam envolvidos com Nest.

Uma vez, Eleanor trouxe um bebezinho, o filho de uma vizinha, para tentar tirar Nest da tristeza que ainda a rondava, porque ela sempre amara crianças.

O rosto pálido de Nest corou ao ver a criança inocente nos braços de sua mãe, e, por um momento, ela tentou pegar a criança em seus braços, porém, ela se afastou, escondeu o rosto atrás de seu avental, e murmurou:

— Nunca terei uma criança para deitar em meu peito e me chamar de mãe!

Em um minuto, ela se levantou, com os lábios apertados, e foi para o seu trabalho, sem encarar o bebê novamente, até que a Senhora Gwynn, enjoada com o fracasso de seu pequeno plano, pediu que a mulher levasse o bebê para longe dos olhos de Nest.

Um dia, a notícia correu por Pen-Morfa, de que Edward Williams estava prestes a se casar.

Eleanor há muito esperava a notícia. Ela se deparou com a novidade como se não fosse uma novidade realmente, porém, mesmo assim, ela sentiu pesar. Ela não podia dizer a Nest sobre isso. Eleanor se sentou passivamente em uma cadeira na sua sala, e temia que os vizinhos entrassem e falassem sobre as notícias da aldeia.

Por fim, alguém falou...

Nest olhou em sua volta e comentou sobre o evento com uma espécie de curiosidade alegre sobre os detalhes, o que fez com que seu informante, ao ir embora, falasse aos outros que Nest estava lidando bem com os acontecimentos que envolviam o enlace de Edward Williams.

Entretanto, quando a porta foi fechada, e ela ficou sozinha com Eleanor, Nest veio e ficou diante de sua mãe, chorando como uma acusadora severa.

— Mãe! Por que você não me deixou morrer? Por que você me manteve viva?

Eleanor não conseguia falar, chorosa, apenas estendeu os braços para sua filha e Nest falou novamente:

— Mãe, eu estava errada! Você fez o seu melhor. Não sei como sou tão dura e cruel. Você é a melhor mãe. Perdão! Eu devia morrer quando era pequena, porque isso evitaria seu sofrimento!

— Não fale assim, minha filha! Deus te afligiu e sua dureza de coração é apenas por um tempo. Espere um pouco! Não se censure, minha menina! Entendo seus sentimentos. Não se importe muito com isso. No tempo certo, seu coração voltará a ser o que era. De qualquer forma, não pense que está me entristecendo, porque, querida, somos felizes de alguma maneira, creio.

Depois disso, mãe e filha ficaram mais unidas.

Eleanor ficara doente. Ela não escondeu a verdade, nem rezou para viver, como há alguns meses ela faria pelo bem de sua filha, porque ela descobrira que não tinha poder para consolar o pobre coração ferido. Parecia que suas orações não foram úteis, e então, ela se culpava por este pensamento.

Há muitos pregadores metodistas nesta parte do País de Gales. Havia certo ancião, chamado David Hughes, que era tido, em peculiar reverência, por conhecer o grande John Wesley. Ele fora capitão de um navio de ardósia de Caernarvon e negociado no Mediterrâneo.

Naqueles primeiros tempos, ele vivera sem Deus no coração, e quando foi zombar de John Wesley, foi convertido pelo patriarca de cabelos brancos, e aprendeu a rezar.

Depois disso, ele se tornou um dos mais sérios e abnegados do grupo de pregadores itinerantes que saíram sob o comando de Wesley, para espalhar no exterior, um espírito religioso mais sério e prático.

Suas viagens foram úteis. Ele ampliou seus conhecimentos sobre circunstâncias em que os homens, às vezes, são colocados, e aumentou sua simpatia com os tentados. Sua afinidade, combinada com a experiência pensativa de oitenta anos, o fez tomar conhecimento de muitos dos estranhos segredos da humanidade, e quando os pregadores mais jovens transtornavam os corações duros e desesperados dos pecadores que encontravam, ele falava:

— Sofrera muito, pobre! Agora a bondade te espera!

Quando Eleanor Gwynn se deitou no leito de morte, David Hughes veio para Pen-Morfa. Ele conhecia sua história, e a procurou.

Para ele, Eleanor transmitiu os sentimentos que descrevi.

— Perdi minha fé, David. O tentador chegou e cedi. Minhas orações não foram ouvidas. Dia e noite, rezei para poder consolar minha filha em sua grande tristeza, mas Deus não me ouviu! Ela se afastou de mim, e recusou meu amor. Desejo morrer agora! Perdi minha fé e não tenho mais prazer em pensar em ir até Deus. O que devo fazer, David? Estou cansada da Terra! — sussurrou ela, lamentando. — Posso encontrar descanso na morte, deixando minha filha desolada e com o coração partido?

— Eleanor! — começou David. — Para onde você for, tudo ficará claro, e você aprenderá a agradecer a Deus pelo fim, do que agora parece ser doloroso e pesado de suportar. Você pensa que sua agonia foi maior que a terrível agonia de Nosso Senhor ou suas orações foram mais sérias que as Dele naquela hora em que as grandes gotas de sangue corriam pelo Seu rosto como suor? Sabemos que Deus O ouviu, embora nenhuma resposta tenha vindo para Ele através do temível silêncio daquele dia. O tempo de Deus não é o nosso tempo. Vivi oitenta e um anos, e nunca conheci uma oração sincera que caísse por terra sem ser atendida. De uma forma desconhecida, e quando ninguém a procura, talvez a resposta chega. Uma resposta mais completa, mais satisfatória do que o coração concederia, apesar de que pudesse ser diferente da que se esperava. Irmã, você vai para a Sua luz. Você verá a luz! Você aprenderá ali que em muitas dores. Ele a protegeu!

— Deus, tenha misericórdia! — gritou ela, olhando para cima, como se olhasse para Deus.

Depois que David Hughes partiu naquele dia, Eleanor ficou calma como se já estivesse morta, e depois de alguns dias...

Nest estava assustada, não havia mais choro apaixonado, nem tristeza na voz, que era baixa e fraca.

Seu último olhar foi um sorriso, sua última palavra, uma bênção.

Nest, sem lágrimas, estendeu o pobre corpo de sua mãe. Colocou um prato com sal sobre o peito e acendeu velas, colocando uma em sua cabeça e outra em seus pés.

Era um velho costume galês, mas quando David Hughes entrou, a visão o levou de volta ao tempo em que ele havia visto as capelas em alguma antiga catedral católica.

Diante dele estava Nest, sentada, olhando para sua mãe morta, com os olhos secos e quentes.

— Ela está morta? — perguntou David, solenemente. — Oh! Ela morreu em Cristo! Abençoe Deus, a Sua filha! Ele dá a vida e somente Ele pode tirar!

— Ela está morta! — afirmou Nest. — Minha mãe está morta! Ninguém me ama agora!

Ela falou como se estivesse pensando em voz alta, uma vez que não olhou para David, nem lhe pediu que se sentasse.

— Ninguém te ama agora? Nenhuma criatura humana, você quer dizer? Você ainda não está apta a falar a respeito do amor infinito de Deus? Eu, como você, falarei de amor pelas criaturas humanas. Se ninguém te ama, é hora de você começar a amar! — ele falou severamente, se era possível que David Hughes conseguisse falar neste tom.

— Começar a amar? — perguntou ela, com seus olhos piscando. — Não amei? Velho, você não sabe nada! Você não se lembra o que é o amor! — ela falou com uma espécie de piedade resistente. — Direi como amei, dizendo-lhe a mudança que o amor operou em mim! Já fui a bela Nest Gwynn, mas agora sou uma pobre aleijada. Isso é uma mudança, pelo menos as pessoas pensam assim! — ela fez uma pausa e depois falou mais baixo. — Digo, David Hughes, que a mudança exterior não é nada em comparação com a mudança em minha natureza, devido ao amor que senti e fui rejeitada mesmo assim. Fui gentil uma vez, e se você falasse uma palavra terna, meu coração andaria até você tão natural quanto uma criancinha vai à sua mamãe. Nunca falei de maneira grosseira, nem mesmo com as criaturas que me olhavam com desdenho, visto como eu sempre tive um sentimento bondoso para todos. Ultimamente, desde que amei, sou severa em meus pensamentos. Me afastei da ternura da minha mãe com amarga indiferença. Escute! — ela falou em um sussurro rouco. — Enquanto ela me amava, eu mal falava com ela! — Nest apontou para o cadáver. — Ela que sempre foi paciente e cheia de amor por mim. Ela não sabia... — murmurou Nest. — Ela foi para o túmulo sem saber como eu a amava, porque eu tinha um orgulho tão estranho, louco e teimoso em mim!

O homem estava calado, olhando para Nest e ela continuou:

— Volte, mãe! Volte! — Nest gritou, chorando loucamente para o cadáver imóvel. — Volte! Volte! Como um espírito ou um fantasma, entretanto, volte somente para que eu possa lhe dizer como a amei!

— Mas os mortos nunca voltam! — ele afirmou.

O apaixonado adendo terminou em lágrimas e elas cessaram, ou foram absorvidas por longos soluços trêmulos, e David ajoelhou-se. Nest não se ajoelhou, mas curvou sua cabeça. Ele rezou, enquanto suas lágrimas caíam rapidamente, e depois se levantou. E ambos ficaram em silêncio por algum tempo.

— Nest! — David quebrou o silêncio. — Seu amor fora o amor da juventude, que é apaixonado, selvagem e natural. Daí em diante, você deve amar como Cristo, sem pensar em si, ou desejar voltar ao amor juvenil! Você deve levar os doentes e os cansados ao seu coração, e amá-los. Esse amor te elevará acima das tempestades do mundo para a paz de Deus. A própria veemência de sua natureza prova que você é capaz disso. Não tenho pena de você! Você não precisa ter pena de você! Você é poderosa o suficiente para pisotear suas próprias mágoas, transformando isso em uma bênção para os outros, e digo, para os outros, você será uma bênção. Vejo diante de você, a resposta à oração de sua mãe!

Os olhos do velho brilhavam como se vissem uma visão milagrosa caminhando da luz de fogo da lareira em sua direção.

Nest estava assombrada como se ela visse um profeta.

Quando David Hughes voltou a Pen-Morfa, perguntou sobre Nest Gwynn, com uma dúvida pairando sobre a resposta, sobre que ela ainda vivia na casa de campo, que agora era sua.

— Mas você acreditaria, David? — questionou a Senhora Thomas. — Ela levou Mary Williams para morar com ela! Você se lembra de Mary Williams, tenho certeza!

— Não! — David Hughes não se lembrava de nenhuma Mary Williams em Pen-Morfa.

— Você, por certo, avistara a pobre mulher, sei que falou com John Griffiths.

— Você não se refere à mulher louca?

— Sim! — afirmou a Senhora Thomas.

— Já a vi, mas não lembrava seu nome. Nest Gwynn a levou para viver com ela?

— Exatamente! Ela poderia levar muitas garotas decentes para viverem em sua casa. Minha sobrinha, aquela que é órfã, teria ido e ficaria agradecida. Além disso, Mary Williams é uma selvagem, às vezes, John Griffiths diz que havia dias em que ele colocava a pobre trancada no quarto até que, depois de uivar por muito tempo, ela se calava. E nada a fazia obedecer às suas ordens. Certa vez, ele falou que os olhos dela brilharam como uma fera selvagem, abaixo da sombra da mesa, onde ela se refugiara, e saído rapidamente em sua direção, ela voou sobre ele e tentou estrangulado. Ele deu a Nest um aviso justo sobre os atos de Mary, e ele pensa que um dia, Nest será encontrada assassinada.

David Hughes pensou um pouco.

— O que fez Nest levar Mary para morar com ela? — perguntou ele.

— Bem! As pessoas dizem que John Griffiths não lhe dava o suficiente para comer. Eleanor Gwynn dava seu bolo de aveia e mingau, uma ou duas vezes por semana para a pobre louca, e muito provavelmente falou gentilmente com ela, porque você sabe que Eleanor sempre falava gentilmente com todos, que ela podia ir até a sua casa para comer. Então, há alguns meses, quando John Griffiths estava batendo nela, e mantendo-a sem comida para tentar domá-la, ela fugiu e chegou à cabana de Nest, na calada da noite, tremendo e faminta. Ela não sabia que Eleanor estava morta, e pensou encontrar Eleanor e sua bondade infinita. Nest lembrou como sua mãe costumava alimentar e confortar a pobre louca, e fez um pouco de papa, e a colocou em frente à lareira para se aquecer. E, pela manhã, quando John Griffiths veio em busca de Mary, ele a encontrou com Nest, e Mary lamentou tão piedosamente ao vê-lo, que Nest ofereceu-se para cuidá-la. John disse que estava feliz por não precisar cuidar da mulher.

David Hughes sabia que havia uma espécie de remorso de Nest que buscava alívio no desempenho das tarefas mais difíceis e repugnantes. Ele julgava que Nest, em seu arrependimento amargo por sua conduta para com sua mãe, acolhera a louca como um sacrifício. Não era o que ele escolheria, mas ele sabia que era Deus quem enviara a pobre mulher errante para lá.

Ele foi ver Nest na manhã seguinte.

Era verão, e ao se aproximar da casa, as portas e janelas estavam todas abertas. Ele ouviu um som furioso que era pouco humano. Esse som impediu sua aproximação de ser ouvida, e, parado na soleira da porta, ele viu a pobre Mary Williams andando para frente e para trás, em algum estado de espírito selvagem. Nest, aleijada como era, caminhava com ela, falando palavras brandas, até que o ritmo foi afrouxado, o tempo e a respiração foram dados para colocar seu braço ao redor do pescoço da mulher louca, e acalmá-la pela carícia terna no luxo silencioso das lágrimas, que dão alívio ao cérebro nervoso.

Então, David Hughes entrou. Suas primeiras palavras, enquanto ele tirava seu chapéu, foram:

— A paz de Deus esteja sobre esta casa!

Nem ele, nem Nest recorreram ao passado, embora as lembranças solenes enchessem suas mentes.

Antes de ir, os três ajoelharam e rezaram, e como Nest lhe disse, alguma misteriosa influência da paz veio sobre a mente da pobre mulher quando ouviu as santas palavras da oração.

Nest afirmara que muitas vezes, quando sentia um espasmo de loucura vindo, ajoelhava-se e repetia o discurso rapidamente, como se fosse um encanto afugentar o demônio que tentava possuir a pobre louca.

Quando David se levantou para ir, ele puxou Nest até a porta.

— Você não tem medo, minha filha? — perguntou.

— Não! — respondeu Nest. — Ela é muitas vezes muito boa e quieta. Quando ela não está em crise, posso suportar isso!

— Não verei mais seu rosto, porque estou nos meus últimos dias... — afirmou ele. — Deus te abençoe!

Ele seguiu seu caminho.

Semanas depois, David Hughes foi levado ao túmulo.

As portas do coração de Nest foram abertas, de par em par, pelo amor que cresceu por Mary, a louca, tão indefesa, sem amigos e dependente dela.

Mary também a amava. E isso era felicidade suficiente para estar perto dela. Ela estava feliz e fazia o que lhe era pedido por Nest. Porém, houve momentos em que Mary foi dominada pelas tristezas e fantasias de seu pobre cérebro desordenado. Foram tempos temerosos, que ninguém sabia como eram, somente Nest.

Naqueles dias escuros, Nest avisou as crianças que adoravam ir brincar ao redor de Mary, que elas não deveriam visitar a casa. O sinal era um pedaço de linho branco pendurado em uma janela lateral.

Naqueles dias, os tristes e doentes esperavam em vão pelo som de Nest. Entretanto, o que ela tinha que suportar só era conhecido por Deus, uma vez que ela nunca se queixava.

Se ela desistisse do encargo de Mary, ou se os vizinhos levantassem em seu socorro, por amor e cuidado com sua vida, para obrigá-la a largar os cuidados com Mary, ela sabia que duros golpes da a fome e miséria aguardariam a pobre criatura.

Ela falou da docilidade de Mary, seu afeto, suas inocentes e pequenas palavras, mas ela nunca contou os detalhes dos ocasionais dias de desordem selvagem e de insanidade.

Nest envelheceu antes de seu tempo, em consequência de seu acidente. Ela sabia que tinha apenas cinquenta anos, enquanto muitos tem setenta.

A lembrança dos dias de sua juventude vagaram até à mente, enquanto os acontecimentos de ontem eram sombrios e esquecidos. Ela sonhava com sua juventude.

Durante o sono, ela era mais uma vez a bela Nest Gwynn, a admirada por todos os vizinhos, a menina de coração leve, amada por sua mãe.

Pequenas circunstâncias ligadas àqueles primeiros dias, esquecidas desde o momento em que ocorreram, lhe vieram à mente, em suas horas de vigília.

Ela tinha uma cicatriz na palma da mão esquerda, ocasionada pela queda de um galho de uma árvore, quando era criança. Não lhe causava dor, apenas nos dois primeiros dias após o acidente, mas agora, começara a machucá-la levemente, e, em seus ouvidos, estava claro o som crepitante da madeira traiçoeira e tortuosa, antes que ela gritasse pela presença de sua mãe, que correra para cuidar da ferida.

Com estas lembranças, veio o desejo ansioso de ver o belo e fatal poço mais uma vez, antes de sua morte. Ela não ia tão longe desde o dia em que, com sua queda ali, perdeu o amor, a esperança e sua brilhante juventude alegre.

Ela ansiava por olhar novamente para suas águas.

Este desejo foi crescendo à medida que sua vida foi se esvaindo. Ela disse para a pobre Mary:

— Mary! Quero ir ao poço! Você pode me ajudar? Quero admirá-lo pela última vez. Há muitas pedras, nas quais posso sentar e descansar. Iremos amanhã de manhã, antes que as pessoas estejam agitadas com seus afazeres.

Mary respondeu com força:

— Para cima! Para cima! Para o poço das pedras! Mary irá! Mary irá!

Durante todo o dia, ela continuou murmurando para si:

— Mary irá! Mary irá!

Nest teve um sonho feliz naquela noite. Sua mãe estava ao lado dela, não na carne, entretanto, na glória brilhante de um espírito abençoado, e Nest não era jovem, nem velha. Sua mãe também parecia não ter idade, porque no lugar que ela vivia agora, não existia dia ou tempo. Sua mãe estendeu seus braços para ela com um olhar calmo e alegre de boas-vindas.

Ela acordou.

O lenhador estava cantando na mata próxima, os pássaros estavam agitados e apressados em seus ninhos de folhas. Nest se levantou e chamou Mary, e as duas partiram pela rua tranquila.

Elas seguiram devagar e silenciosamente e, com muitas pausas, desceram cuidadosamente as pedras inclinadas, sobre as quais não restavam vestígios das centenas de pés que passaram por cima delas, desde que Nest foi lá pela última vez.

A água clara brilhava e tremia com a luz do sol, as sombras das folhas de bétula eram agitadas no chão, as samambaias, Nest acreditava serem as mesmas samambaias que ela avistara trinta anos antes, úmidas e pingando, onde a água transbordava. Um sabiá cantava hinos matinas na árvore próxima, e o riacho que corria, fazia um acompanhamento baixo, suave e doce para a melodia.

Tudo estava igual.

A natureza estava tão fresca e jovem como sempre.

Era como se fosse ontem que Edward Williams a chamara e se declarara, falando de seu amor e suas palavras que desejavam um casamento. Nest ainda conseguia ver seu belo rosto, e então, ela lembrou da manhã invernal e fatal, quando a alegria e a juventude fugiram, deixando a fraqueza da dor.

Ela se inclinou de costas contra uma pedra, sem gemer ou suspirar e morreu!

Ela encontrou a imortalidade pelo lado do poço, ao invés de sua frágil e perecedora juventude. Ela estava tão calma e serena, que Mary, que mergulhara os dedos no poço para ver as águas caírem na luz brilhante do sol, pensou que Nest estava dormindo, e por algum tempo continuou seu divertimento em silêncio.

Por fim, ela se virou, e disse:

— Mary está cansada! Mary quer ir para casa, Nest!

Nest não falou, embora Mary repetisse suas palavras simples, muitas vezes.

Ela permaneceu de pé olhando Nest de olhos fechados até que um estranho terror a atingiu, um terror muito misterioso para ser suportado.

— Senhora, acorde! Senhora, acorde! — gritou ela, sacudindo os ombros de Nest.

Mas Nest não acordou, e a primeira pessoa que veio ao poço naquela manhã encontrou a louca Mary sentada, transtornada pela morte de Nest.

Eles tiveram que afastar a pobre criatura pela força, antes que pudessem remover o corpo.

Mary está na casa paroquial de Tre-Madoc.

Eles a tratam com muita gentileza e, em geral, ela é boa e suave. Ocasionalmente, vêm os velhos espasmos e, por um tempo, ela é incontrolável. No entanto, alguém pensou em falar com ela sobre Nest.

Ela ficou presa ao nome, e, desde então, é surpreendente ver os esforços que ela faz para conter sua insanidade, e quando o tempo de pavor passa, ela se aproxima da senhora que cuida dela e diz:

— Mary tentou ser boa! Deus vai deixá-la ir ao encontro de Nest agora?

 

Fim.


Desaparecimentos

Não tenho o hábito de ler jornais regularmente, mas um amigo, que recentemente me enviou alguns dos últimos números, me recomendou que lesse todos os jornais relacionados ao Distrito da Polícia e Detetives.

E assim, fiz de acordo com o que ele pediu. Não como a vontade dos leitores que gostam do tema, que aparecessem semana a semana, com uma história popular da Polícia Metropolitana para degustar, e também eles consideravam ler as histórias da força policial em todas as grandes cidades da Inglaterra.

Quando terminei estes trabalhos de leitura, não me senti disposto a ler nenhum outro na época, contudo, caí em um trem de devaneio e lembrança.

Primeiro, lembrei, com um sorriso, da maneira inesperada como uma relação minha foi descoberta por um conhecido, que perdera ou esquecera o endereço do Senhor B.

Meu querido primo, o Senhor B., encantador como ele era em muitos pontos, tinha a peculiaridade de gostar de mudar de pousada uma vez a cada três meses, o que ocasionava alguma perplexidade para seus amigos do campo, que não tinham tempo para decorar o novo endereço, porque ele logo se mudava para outro.

Creio que eu preferia ler um dicionário a ter que decorar os endereços dele, porque era difícil lembrar a variedade de direções que tive que colocar em minhas cartas para o Senhor B. durante os últimos três anos.

No verão passado, ele ficou contente em ir para uma linda vila, umas dez milhas de Londres, onde há uma estação ferroviária.

Seu amigo queria o encontrar. Não menciono que meu primo já havia passado por três ou quatro alojamentos diferentes.

O pobre amigo passou a manhã fazendo perguntas sobre o paradeiro do Senhor B. na vila.

Muitos senhores estavam hospedados lá durante o verão, e nem açougueiro ou o padeiro podiam informá-lo onde o Senhor B. estava hospedado, porque eles realmente não sabiam.

Suas cartas eram desconhecidas nos Correios, e suas cartas eram dirigidas ao seu escritório na cidade. Finalmente, o amigo voltou para a ferrovia, e enquanto ele esperava o trem, ele fez uma averiguação, como último recurso, ao contabilista da estação.

— Não, senhor! Não posso lhe dizer onde o Senhor B. se hospeda. Tantos cavalheiros passam pelos trens... Mas não tenho dúvidas de que a pessoa que está ao lado daquele pilar pode informá-lo.

O indivíduo a quem ele dirigiu a atenção do amigo do Senhor B., tinha a aparência de um comerciante respeitável, mas sem pretensões em ser gentil e não tinha, aparentemente, nenhuma ocupação mais urgente do que observar preguiçosamente os passageiros que desciam na estação.

Entretanto, quando foi indagado, ele respondeu de maneira civilizada e pronta:

— Senhor B.? Cavalheiro alto, de cabelo claro? Sim, senhor! Sei onde o Senhor B. se hospeda. Já faz umas três semanas ou mais, que ele está na pousada que posso indicar. Porém, você não o encontrará lá, senhor! Ele foi para a cidade, no trem das onze horas, e normalmente não volta antes do trem das quatro e meia.

O amigo do Senhor B. não teve tempo a perder ao retornar ao vilarejo, para apurar a verdade desta afirmação.

Ele agradeceu ao seu informante e disse que chamaria o Senhor B. em seu escritório na cidade, mas antes de deixar a estação ferroviária, perguntou ao contabilista quem era a pessoa a quem ele o encaminhara para obter informações sobre o local de residência de seu amigo.

— Um dos detetives da Polícia, senhor! — foi a resposta do homem.

Não preciso dizer que o Senhor B., não sem ficar surpreso, confirmou a exatidão do relatório do policial em cada particular detalhe.

Quando ouvi a estória de meu primo e seu amigo, pensei que não havia mais romances escritos, na mesma categoria de trama que Caleb Williams[95], o principal interesse do qual, para o leitor superficial, consiste na alternância de esperança e medo, para que o herói possa ou não, escapar de seu perseguidor.

Faz muito tempo que li a história e esqueço o nome do cavalheiro ofendido e ferido, cuja privacidade Caleb invadiu, mas sei que a busca de Caleb, sua detecção dos vários refúgios deste último e seguindo pistas e tudo mais, de fato, dependia de sua própria energia, sagacidade e perseverança. O interesse foi causado pela luta do homem contra o homem, e a incerteza sobre qual seria o sucesso final em seu objeto. O perseguidor implacável, ou melhor dizendo, o engenhoso Caleb, procurava por detalhes.

Agora, em 1851, o mestre ofendido colocaria o detetive da Polícia para trabalhar, não haveria dúvidas quanto ao seu sucesso. A única questão seria quanto ao tempo que se passaria antes que o esconderijo pudesse ser detectado, e isso não seria uma resposta longa. Não é mais uma luta entre homem e homem, mas entre uma vasta maquinaria organizada e um indivíduo solitariamente fraco.

“Não temos esperanças! Não temos medos, apenas certeza!”

Entretanto, se os materiais de perseguição e evasão, enquanto a perseguição estiver confinada à Inglaterra, fossem tirados do armazém do romancista, de qualquer forma, não seriamos mais assombrados pela ideia da possibilidade de desaparecimentos misteriosos, e qualquer um que seja associado com aqueles que estavam vivos no final do século passado, pode testemunhar que havia alguma razão para tais medos.

Quando eu era criança, às vezes, me era permitido acompanhar minha mãe para beber chá, com uma senhora idosa muito inteligente, de cento e vinte anos, assim eu pensava na época, porém, acho que ela, talvez, tivesse apenas setenta anos.

Ela era animada, inteligente, que conhecia muito do que valia a pena narrar. Ela era prima dos Sneyds, a família de onde o Senhor Edgeworth pegou duas de suas esposas. Ela também conhecia o Major André, que se misturara com alguns membros do parlamento, e também da bela Duquesa de Devonshire e a Senhora Crewe, que eram famosas pela vertente entusiasta.

O pai da velha senhora fora um dos primeiros protetores da adorável Senhorita Linley. Cito estes fatos para mostrar que ela era muito inteligente e de boa reputação, bem como pelos poderes naturais, para dar uma credencial muito favorável.

A ouvi contar histórias de desaparecimentos que assombraram minha imaginação por muito mais tempo do que qualquer conto de maravilha. Uma de suas histórias foi esta:

A propriedade de seu pai estava em Shropshire, e seus portões se abriram para uma aldeia dispersa, da qual ele era o responsável. As casas formavam uma rua irregular, um jardim ali ao lado, uma fileira de chalés acolá e assim por diante.

No último chalé, vivia um homem muito respeitável e sua esposa. Eles eram bem conhecidos na aldeia, e estimados pela atenção paciente que davam ao pai do homem, um velho paralítico.

No inverno, sua cadeira estava perto do fogo. No verão, eles o levavam para o espaço aberto na frente da casa para tomar a fresca e senti um pouco o calor do sol, e para receber o divertimento tranquilo ao assistir o vai e vem dos aldeões.

Ele não podia se mover de sua cama para sua cadeira sem ajuda e em um dia quente de junho, todo o vilarejo se voltou para os campos de feno. Somente os muito velhos e os muito jovens permaneceram.

O velho pai, de quem falei, foi levado a se divertir ao sol naquela tarde como de costume, seu filho e sua nora foram para a fabricação do feno. Porém, quando chegaram a casa, no início da noite, seu pai desaparecera.

Desaparecera!

Daquele dia em diante, nada mais se ouviu falar dele.

A velha senhora que contou esta história, disse com a calma que sempre marcou a simplicidade de sua narração, que toda investigação que seu pai podia fazer foi feita e que as buscas eram impossíveis de serem calculadas.

Ninguém observara nenhum estranho na aldeia ou pequeno roubo de casas, porque pensaram que o velho seria um suposto obstáculo ao ladrão, que cometera o roubo na moradia de seu filho naquela tarde.

O filho e a nora, observados também por sua atenção ao pai indefeso, andaram por todos os cantos e falaram com todos os vizinhos durante todo o tempo. Em resumo, muitas buscas, nenhuma resposta e isso deixou uma impressão dolorosa em muitas mentes.

A Polícia fora chamada e os detetives fizeram buscas durante uma semana.

Esta história misteriosa fora dolorosa, mas não teve consequências para torná-la trágica, porque a próxima que vou contar é uma história de desaparecimento. Meus informantes acreditaram ser estritamente verdadeira, e que teve consequências melancólicas também.

O cenário era um pequeno vilarejo, cercado pelas casas de vários senhores de grandes propriedades.

Há cerca de cem anos, vivia nesta vila um advogado, com sua mãe e irmã. Ele era agente de um dos escudeiros próximos, e recebia aluguéis em seu nome, em dias determinados, que, é claro, eram bem conhecidos por todos.

Ele, no dia marcado foi até uma pequena taverna, talvez, a cinco milhas de distância de sua casa, onde os inquilinos o receberam, pagaram seus aluguéis, e foram entretidos no jantar seguinte.

Quando a noite chegou, ele não voltou desta festividade. Ele nunca retornou para casa.

O senhor, cujo agente ele era, empregou os Dogberrys[96] da época para encontrá-lo, e resgatar também o dinheiro perdido do recebimento dos aluguéis para, se caso estivesse morto, fosse entregue para mãe. Ele o procurou com toda a perseverança de um amor fiel, mas ele nunca o encontrou e, devido aos rumores espalhados, que o homem fugira com o dinheiro para o exterior, sua mãe ouviu os sussurros à sua volta, e não pôde refutá-los, e assim, seu coração se partiu e ela morreu.

Anos depois, acho que uns cinquenta, o açougueiro morreu, entretanto, antes de sua morte, ele confessou que avançara contra o advogado, perto da cidade, rumo à sua casa, com a intenção apenas de roubá-lo, mas, encontrando mais resistência do que ele esperava, foi provocado a esfaqueá-lo, e o enterrara naquela mesma noite sob a areia solta da relva.

Lá, seu esqueleto foi encontrado, porém, tarde demais para que sua pobre mãe soubesse que sua reputação estava limpa.

Sua irmã também estava morta, morrera solteira, pois ninguém aceitava as possibilidades ligadas à família e a fama do advogado fujão. Ninguém se importava se ele era culpado ou inocente agora. Se nossa Polícia e seus bons detetives existissem naquela época...

Agora relato outra história.

Ouvi, e acho que li isso em um dos primeiros números do Jornal de Chambers, sobre um casamento que ocorreu em Lincolnshire, por volta do ano de 1750.

Não era rigor que o feliz casal partisse para uma viagem de casamento, foi assim que eles e seus amigos tiveram a ideia de um alegre jantar jovial na casa dos noivos, e neste caso, toda a festa seria na residência do noivo.

Alguns andavam pelo jardim, outros tiravam um cochilo até a hora do jantar.

O noivo, é de se supor, estava com sua noiva, quando, de repente, foi convocado por um empregado, e ao sair, ele não voltou. Outro também o procurou e não o encontrou, e daí em diante, o velho salão galês ficou deserto naquele bosque perto de Festiniog.

Então, o noivo desapareceu da face da Terra, no dia do seu casamento.

Eles dizem, além disso, que a noiva viveu por mais treze anos, e que diariamente, durante todos aqueles anos, enquanto havia luz do sol ou da lua para iluminar a terra, ela se sentava, observando de uma determinada janela que conduzia uma vista para o jardim. Todas as suas faculdades e poderes mentais, foram absorvidos por sua mente cansada, na espera do noivo que jamais voltou.

Muito antes de morrer, ela estava consciente apenas de um desejo, sentar-se em frente à janela alta, e observar o caminho ao longo do qual ele voltaria. Seu amor era fiel.

Se ele fugisse, como foi a suspeita, ele logo seria trazido para casa, como um covarde.

Contarei mais uma história.

Entre 1820 e 1830, vivia no norte de Shields uma respeitável mulher idosa e seu filho, que estudava arduamente medicina para ser um cirurgião da marinha em um navio báltico, e talvez desta forma, conseguisse dinheiro o suficiente para buscar emprego em Edimburgo, usando suas referências.

Ele foi promovido devido à morte do benevolente Doutor G. daquela cidade.

Era inverno e o Doutor G. estivera com uma paciente a noite toda, e a deixou, assim que amanheceu, para voltar para casa e dormir, mas primeiro, ele desceu até a casa de seu aprendiz, e o mandou levantar para ir até à sua casa, onde alguns remédios seriam misturados, e depois o rapaz levaria para a senhora.

Assim, o pobre rapaz o seguiu, preparou a dose e partiu com ela, algum tempo, entre cinco e seis daquela manhã.

Ele nunca mais foi visto.

O Doutor G. esperou, pensando que ele estava na casa de sua mãe e ela esperou o filho, considerando que ele fora para o seu dia de trabalho. Enquanto isso, as pessoas se lembravam do pequeno navio com destino a Edimburgo, navegando para fora do porto.

A mãe o esperou a vida toda, e alguns anos depois, ocorreram as descobertas dos horrores da peste e as pessoas pareciam ter um vislumbre sombrio de seu destino.

Devo acrescentar que todos que o conheceram, falaram enfaticamente sobre sua firmeza de propósito e conduta, de modo a tornar improvável, no mais alto grau, que ele fugisse para o mar, ou, de repente, mudado seu plano de vida de qualquer maneira.

Minha última história é uma de um desaparecimento que foi contabilizado após muitos anos.

Há uma rua em Manchester que vai do centro da cidade para algum lugar do subúrbio. Esta rua é chamada de caminho de Garratt[97], e depois, onde surge em gentileza para a Rua Brook. Ela deriva seu nome de um antigo salão preto e branco, da época de Ricardo III, ou por aí, ao julgar o estilo de construção.

O que restava do antigo salão fora fechado, mas a velha casa que era visível ao olhar da estrada principal, ficava na parte baixa de um terreno e estava metade em ruínas.

Acredito que foi ocupada por várias famílias pobres, que alugaram quartos na casa tombada que era cercada por um parque com um riacho claro, com agradáveis tanques de peixes, pomares, pombais e apêndices similares às casas senhoriais de antigamente.

Estou quase certo de que a família a quem pertencia à casa antigamente era os Mosleys, provavelmente herdados do Senhor S. de Manchester. Qualquer obra topográfica do século passado relacionada ao seu distrito daria o nome do último proprietário das antigas ações, e é a ele que minha história se refere.

Há muitos anos, viviam em Manchester duas senhoras idosas de alta respeitabilidade. Suas vidas foram passadas na cidade, e elas gostavam de relatar as mudanças que ocorriam dentro de suas memórias, que se estenderam até setenta ou oitenta anos.

Elas conheciam muito da história tradicional de seu pai, que fora advogado respeitável em Manchester durante a maior parte do século passado.

Elas eram curadoras de várias famílias do condado, que, expulsas de suas antigas propriedades pela ampliação da cidade, encontraram alguma compensação no aumento do valor de qualquer terra que pudessem escolher para vender.

Consequentemente, os Senhores. S., pai e filho, eram portadores de boa reputação e conheceram várias peças secretas da história dessas famílias, uma das quais, relacionada ao caminho de Garratt.

O dono desta propriedade, algum tempo na primeira metade do século passado, casou-se jovem. Ele e sua esposa tiveram vários filhos e viveram juntos em um estado de felicidade tranquila por muitos anos.

Por fim, algum negócio levou o marido até Londres, que levava uma semana de viagem naqueles dias.

Ele escreveu e anunciou sua chegada, e acho que nunca mais escreveu de novo. Ele parecia ser engolido no abismo da metrópole, pois, nenhum amigo, e a senhora tinha muitos amigos poderosos, conseguiu notícias sobre ele.

A ideia predominante era que ele fora atacado por alguns dos ladrões de rua que vagavam naqueles dias, e que, por certo, ele resistira e fora assassinado.

Sua esposa gradualmente desistiu de todas as esperanças de vê-lo novamente, e se dedicou aos cuidados de seus filhos. Assim sendo, eles continuaram suas vidas tranquilamente, até que o herdeiro atingiu a maioridade e assim, certos atos foram necessários antes que ele pudesse legalmente tomar posse da propriedade.

Estas escrituras, o Senhor S., advogado da família, declarou que foram entregues por ele à guarda do homem desaparecido, pai do herdeiro, pouco antes da última viagem misteriosa para Londres.

Era possível que estas escrituras ainda existissem, e alguma pessoa em Londres, por sorte, teria em sua posse, e estaria consciente ou inconsciente de sua importância. De qualquer forma, o conselho do Senhor S. para seu cliente foi que ele devia colocar um anúncio nos jornais londrinos, redigido de forma hábil para que qualquer um que pudesse ter os documentos importantes em mãos, conseguisse entender o que eles se referiam, e que era da posse do herdeiro, e de ninguém mais.

Isto foi feito em conformidade, e, embora repetido em intervalos por algum tempo, não teve sucesso. Mas, finalmente, foi enviada uma resposta misteriosa, que as escrituras existiam e deveriam ser entregues, mas com certas condições, e ao próprio herdeiro.

O jovem herdeiro foi para Londres, e seguiu, de acordo com as instruções, para uma velha casa em Barbican, onde lhe foi dito que um homem o esperava. Uma das condições era que o rapaz fosse vendado, e que precisaria seguir sua orientação.

Ele foi levado por várias passagens longas antes de sair da casa e ao término dessas passagens, ele foi colocado em uma liteira e carregado por uma hora ou mais. O rapaz relatou depois que, mesmo vendado, sentia, pelo balançar da liteira que havia muitas curvas, e que ele imaginava estar finalmente não muito longe de seu ponto de partida.

Quando seus olhos estavam sem a venda, ele percebeu estar em uma sala, com sinais de ocupação familiar.

Um cavalheiro de meia-idade entrou e lhe disse que antes dos cumprimentos, o rapaz juraria segredo quanto aos meios pelos quais ele teria a posse das escrituras.

Este juramento foi feito, e o cavalheiro, não sem emoção, reconheceu ser o pai perdido do herdeiro.

Parece que ele se apaixonara por uma donzela, uma amiga da pessoa com quem ele se hospedara. Para a jovem mulher, ele se apresentou como solteiro, e ela ouvia de bom grado seu cortejo, e seu pai, que era lojista na cidade, não era avesso à investida dele, pois, o escudeiro de Lancashire tinha uma boa presença, com muitas qualidades semelhantes e isso ajudaria nos negócios da loja.

Ele se casou com a única filha do lojista da cidade, e tornou-se o sócio do negócio.

O homem disse ao seu filho que não se arrependera do passo que dera, que sua humilde esposa era doce e carinhosa, e que ele ficara feliz por saber que seus filhos eram prósperos e felizes.

Após o discurso sobre sua primeira, ou melhor, sua verdadeira esposa, com afeto amigável, ele aprovou o que ela fizera com relação a sua herança e à educação de seus filhos, mas disse considerar que ele estava morto para ela, assim como ela estava para ele.

Quando ele realmente morreu, uma mensagem foi enviada ao seu filho em Garratt. E desde o encontro até sua morte, eles não voltaram a se ver, pois, de nada adiantaria tentar localizá-lo sob sua incógnita, mesmo que o juramento não proibisse tal tentativa.

Ouso dizer que o jovem não tinha grande desejo de rastrear o pai, que fora só um sobrenome para ele. O rapaz voltou para Lancashire, tomou posse da propriedade em Manchester, e muitos anos se passaram antes que ele recebesse a misteriosa insinuação da morte real de seu pai.

Depois disso, ele nomeou os detalhes ligados à recuperação dos títulos de propriedade para o Senhor S., e um ou dois amigos íntimos.

Quando a família foi extinta de Garratt, não se tornou mais um segredo e me foi contada a história do desaparecimento da Senhorita S., a filha idosa do advogado da família.

Mais uma vez, deixe-me dizer, estou grato por viver nos dias em que a Polícia e seus detetives fazem um bom trabalho, porque se eu for assassinado ou cometer bigamia, de alguma maneira, meus amigos saberão.

Um correspondente nos favoreceu com a sequência do desaparecimento do aluno do Doutor G., que desapareceu do norte de Shields, encarregado de certas poções que lhe foram confiadas, muito cedo, em uma manhã, para transmitir a um paciente:

“O filho do Doutor G. casou-se com minha irmã, e o jovem que desapareceu era um aluno bom. Quando ele saiu com o remédio, ele mal estava vestido e usava chinelos, o que induziu a crença de que ele fora raptado. Após alguns meses, sua família se vestiu de luto, e os G., pessoas muito tímidas, estavam tão certos de que ele fora assassinado, que escreveram versos em sua memória, e ficaram tristemente desgastados pelo terror. Mas, depois de muito tempo, creio, cerca de um ano e meio, veio uma carta do jovem, que estava vivendo bem nos Estados Unidos. Sua explicação foi que um navio estava no cais, prestes a navegar pela manhã, e o jovem, que meditara muito tempo sobre sua vida, julgou que era uma boa oportunidade, e pisou a bordo, após deixar o remédio na porta da doente. Passei algumas semanas na casa do Doutor G. após a ocorrência, e eles estavam muito tristes, mas após a segunda visita, eles estavam muito zangados com o jovem irresponsável.”

Fim.


O Coração de John Middleton

Nasci em Sawley, onde a sombra de Pendle Hill caía ao nascer do sol. Suponho que Sawley surgiu de uma vila no tempo dos monges, que tinham uma abadia lá. Muitas das cabanas são antigas e estranhas, outras, são construídas com pedras da abadia, misturadas com o xisto das pedreiras vizinhas, e você pode ver muitas esculturas peculiares trabalhadas nas paredes, ou formando os linteis das portas.

Há uma fileira de casas, construídas mais recentemente, ali, o Senhor Peel veio morar devido ao poder da água, e deu ao lugar um pouco mais de vida, embora o estilo diferente de vida dele se assemelhava aos das grandes e lentas maneiras que as pessoas tinham, quando os monges estavam por perto.

Porque nossa vida era assim ...

Às seis horas, tocava o sino, era a hora de ir para a fábrica, e voltar para casa quando o sino tocava às doze horas, e mesmo à noite, quando o trabalho estava pronto, mal sabíamos como andar devagar, porque tínhamos passado agitados durante todo o dia.

Não consigo me lembrar dos dias que não fui à fábrica, porque meu pai costumava me arrastar até lá quando eu era um rapazinho, para enrolar bobinas em seu lugar. Não me lembro de minha mãe. Eu seria um homem melhor do que fui, se eu tivesse apenas uma noção do som de sua voz ou do olhar em seu rosto.

Nos alojamos na casa de um homem que também trabalhava na fábrica. Fomos tristemente desprezados em Sawley. Havia tantas pessoas que vieram de diferentes partes do país para ganhar a vida no novo trabalho, e foi no tempo antes que a fila de casas de campo de que falei, fosse construída.

Enquanto estavam construindo suas casas, meu pai foi expulso de seus alojamentos por beber e ser desordeiro, e dormíamos perto do forno de tijolos, isto é, quando dormíamos à noite, porque muitas vezes, íamos à caça, pegar lebres e faisões que depois eram assados nas brasas do forno.

Então, como segue à razão, eu ficava sonolento no dia seguinte de trabalho, porém, meu pai não tinha piedade de mim pela sonolência. Ele me chutava quando me observava deitado sobre um saco de tecidos, que nem de longe era macio e mais parecia um caroço pesado no chão da fábrica.

Ele me xingava, até que me levantar com muito medo, e voltar ao trabalho. Mas, quando ele virava as costas, pagava-lhe com xingamentos ainda mais pesados do que ele me dera, e ansiava por ser um homem, para que eu pudesse me vingar dele.

As palavras que eu proferia não ousaria repetir agora, e pior que palavras de ódio, meu coração que também odiava se mesclou com as palavras. Não me lembro do tempo em que vivi sem odiar.

Quando aprendi a ler, e aprendi sobre Ismael[98], pensei que eu era de sua raça condenada, pois, minha mão estava contra qualquer homem, e todos os homens estavam contra mim. Eu era apenas um garoto de dezessete anos que odiava o mundo e não sabia ler.

Após terminada a fila de chalés, meu pai pegou um destes, e se instalou. Não posso dizer muito sobre a mobília, mas havia muita palha, e mantivemos bons fogos na lareira, e havia um conjunto de pessoas que valorizam o calor acima de tudo.

Costumávamos jantar no meio da noite, havia caça suficiente, ou se não houvesse caça, havia aves para o roubo.

Durante o dia, fazíamos o trabalho na fábrica. À noite, fazíamos um banquete e bebíamos.

Esta teia da minha vida era negra o suficiente, e grosseira o bastante, no entanto, às vezes, um pouco de fio dourado começava a ser tecido, e a aurora da misericórdia de Deus estava próxima.

Em uma manhã de outubro, enquanto caminhava preguiçosamente até o moinho, cheguei próximo à pequena ponte de madeira sobre um riacho. Na tábua estava uma criança, equilibrando o cântaro em sua cabeça, com o qual ela fora buscar água. Ela estava tão leve em seus pés que, se não fosse pelo peso do cântaro, quase acredito que o vento a teria levado para os céus, e a empurrado para longe, como se ela fosse uma semente voando no ar. Seu vestido de algodão azul foi soprado diante dela, como se estivesse abrindo as asas para um voo, ela virou o rosto, como se me pedisse algo, mas quando ela viu quem eu era, hesitou, uma vez que eu tinha um nome ruim na aldeia, e não duvido que ela fora avisada sobre manter uma boa distância de mim.

Todavia, seu coração era inocente demais para ser desconfiado, então, ela me disse, timidamente:

— Por favor, John Middleton, pode me ajudar com o jarro pesado?

Foi a primeira vez que me falaram com gentileza.

Fui mandado aqui e ali por meu pai e seus companheiros rudes. Também abusado e xingado por eles, se eu falhasse em fazer o que eles desejavam. Se eu fazia bom trabalho, não havia expressão de agradecimento. Eu era informado dos fatos necessários para que soubesse, mas gentis palavras de pedido ou de súplica eram antes desconhecidas para mim, e ali, os tons daquela menina caíam sobre meus ouvidos, suaves como um badalar de sinos distantes.

Desejei saber como falar corretamente em resposta, embora tivéssemos a mesma posição social, havia alguma diferença poderosa entre nós, o que me tornou incapaz de falar em sua língua, com palavras suaves e modestas súplicas.

Não havia nada para ser feito a não ser pegar o jarro, em uma espécie de silêncio rouco e tímido, e levá-lo até à ponte, como ela pedira.

Quando devolvi o jarro, ela me agradeceu e tropeçou, deixando-me, sem palavras, olhando ela caminhar.

Eu sabia muito bem quem ela era. Ela era neta de Eleanor Hadfield, uma mulher idosa, que tinha fama de bruxa por meu pai e seu conjunto de amigos idiotas. Portanto, o que aquela menina podia dar a não ser seu desprezo e rancor?

Era verdade que encontrávamos a velha senhora frequentemente no amanhecer cinzento da manhã, quando voltávamos da caça, e meu pai costumava xingá-la, sob seu fôlego, a chamando de bruxa, e que devia ser queimada há muito tempo no topo de Pendle Hill.

Contra a fala de meu pai, eu ouvira dizer que Eleanor era uma hábil enfermeira de saúde frágil, porém, sempre pronta para prestar seus serviços àqueles que estavam doentes, e acredito que ela estivera sentada durante toda a noite, a mesma que tínhamos passado sob os céus selvagens, com aqueles que foram designados para morrer.

Nelly era sua neta órfã, sua pequena donzela, seu tesouro e seu cordeiro.

E depois daquele dia, muitas vezes por dia, fiquei observando o lado do riacho, esperando que alguma feliz oportuna rajada de vento pelo vale, pudesse me fazer necessário mais uma vez para Nelly.

Eu ansiava por ouvi-la falar comigo novamente. Eu disse as palavras que ela falara para mim mesmo, tentando captar seu tom, mas a chance nunca mais veio de novo.

Não sei se ela alguma vez soube como eu a observava ali. Procurei notícias sobre Nelly e descobri que ela frequentava à escola, e nada me serviria a informação, a não ser que eu tivesse que ir também.

Meu pai zombou de mim, porém, não me importei. Eu não sabia nada do que era ler, e era provável que eu fosse ridicularizado. Eu, um grande rapaz de dezessete anos, queria aprender o A, B, C, no meio de uma multidão de pequenos.

Pensei por muitos dias.

Nelly estava na escola, era o melhor lugar para vê-la, e ouvir sua voz novamente. Portanto, também fui para a escola.

Meu pai falava, jurava e ameaçava, mas me mantive de pé. Ele dizia que eu deixaria a escola em um prazo de um mês. Fiz um juramento mais profundo do que gosto de lembrar, que ficaria um ano e sairia de lá lendo e escrevendo.

Meu pai odiava a conhecimento das pessoas quando elas aprendiam a ler, e disse que isso tirava todo o espírito delas, porque ele entendia ter direito a cada centavo do meu salário, embora, quando estava de bom humor, ele me dava alguns copos de cerveja.

Fui para a escola. Era um lugar diferente do que eu pensara antes de entrar.

As meninas sentavam de um lado e os meninos do outro, assim eu não ficaria perto de Nelly e isso me frustrou, mas ela estava na primeira classe, comigo. Isso já era algo.

O professor sentava-se no meio da sala, e nos vigiava com bastante rigor. No entanto, eu podia ver Nelly, e ouvi-la ler seu livro, e mesmo quando era um livro com uma longa lista de nomes difíceis, como o professor gostava muito de lhe dar, para mostrar o quão bem ela conseguia ler sem soletrar, eu pensava que nunca ouvira uma música mais bonita.

Por vezes, ela lia outras coisas. Eu não sabia se eram verdadeiras ou falsas, mas eu ouvia, porque ela lia. Comecei a me perguntar sobre coisas que jamais pensei.

Lembro-me que a primeira palavra que falei com ela foi para perguntar-lhe, quando estávamos saindo da escola, quem era o Pai de quem ela lera, pois, quando ela disse as palavras Pai Nosso, sua voz caiu em um som baixo, suave e santo, que me tocou mais que qualquer leitura alta, e parecia tão amoroso e terno.

Quando lhe perguntei isto, ela me olhou com seus grandes olhos azuis maravilhados, no início um pouco chocada, e depois, por assim dizer, derretida em pena e tristeza, dizendo da mesma maneira, abaixo de sua respiração, na qual ela leu as palavras do Pai Nosso.

— Você não sabe? É Deus!

— Deus?

— Sim! O Deus de quem minha avó me fala!

— Diga-me o que ela diz, por favor!

Então, sentamos no banco, e, enquanto eu olhava para o rosto dela, ela me contou alguns dos textos sagrados que sua avó lhe ensinara, e explicando tudo o que podia ser explicado sobre o Todo-Poderoso.

Escutei em silêncio, pois, de fato, fiquei estupefato. O conhecimento dela era uma aprendizagem mecânica e por certo, tinha boa memória, porque parecia decorar todos os textos que lia. Ela era muito jovem e tinha um ar inovador enquanto falava, porque nós em Lancashire, falávamos uma linguagem bíblica rudimentar, e os textos me pareceram muito claros saindo de sua boca.

Me levantei, aturdido e dominado. Eu estava indo embora em silêncio, quando me convenci de meus modos, e voltei meus olhos para Nelly e falei:

— Obrigado!

Eu falara obrigado pela primeira vez na minha vida.

Esse foi um grande dia para mim.

Sempre fui uma pessoa que conseguia se segurar muito firme em relação a um objeto, quando uma vez o colocara diante de mim.

Meu objetivo era conhecer Nelly.

Eu não estava consciente de mais nada.

O professor podia repreender, os pequenos podiam rir, porque eu suportava tudo isso sem pensar duas vezes.

Cumpri meu ano, e saí da escola realmente lendo e escrevendo, porém, fiquei aquele tempo lá mais para ficar bem na boa opinião de Nelly, do que devido ao meu juramento.

Por esta época, meu pai cometeu algum ato cruel, sendo assim teve que fugir. Fiquei feliz por ele desaparecer de minha vista, pois, eu nunca o amara ou cuidara, e queria me livrar dele e seus comparsas. Mas, não foi uma questão fácil.

As pessoas honestas estavam distantes, só os homens maus me estendiam os braços com uma saudação de boas-vindas.

Até mesmo Nelly parecia ter uma mistura de medo com seus modos amáveis para comigo.

Eu era o filho de John Middleton, que, se ele fosse pego, seria enforcado no Castelo de Lancaster.

Pensei que ela olhava para mim, às vezes, com uma espécie de horror doloroso e pena.

Outros não eram suficientemente tolerantes para manter suas expressões de sentimento confinada aos olhares.

O filho do dono do moinho sempre me lembrava do crime de meu pai, e trazia à tona sua raiva contra ele, embora eu soubesse muito bem quantos bons jantares ele fizera pelo jogo de interesses com meu pai.

Este rapaz, Dick Jackson, foi a ruína da minha vida.

Ele era um ano ou dois, mais velho que eu, e tinha muito poder sobre os homens que trabalhavam no moinho, porque ele podia relatar ao seu pai o que ele escolhia.

Eu nem sempre conseguia me calar quando ele me atirava os pecados de meu pai em minha cara, e, às vezes, eu devolvia em uma tempestade de raiva, tudo que ele falara.

Isso não me fez bem, apenas me afastou mais da companhia de homens melhores, que pareciam horrorizados e chocados com os juramentos que derramei, com palavras de ruins aprendidas em minha infância, enquanto Dick Jackson ficava parado, com um sorriso zombeteiro. Quando eu acabara, sem fôlego e cansado de paixão gasta, ele se voltava para aqueles, cujo respeito eu ansiava ganhar, e perguntava se eu não era um filho digno de meu pai, e provavelmente pisaria em suas pegadas.

No entanto, esta indiferença sorridente dele à minha miserável veemência não era tudo, ainda que fosse a pior parte de sua conduta, uma vez que, fazia crescer o ódio rancoroso em meu coração e o ofuscava o profeta Jonas.

Mas, a sombra de Jonas era misericordiosa, mantendo afastado o sol ardente, e o meu ódio arruinou o que caiu sobre ele.

O que Dick Jackson fez, além disso, foi isto:

Seu pai era um espectador hábil, e um bom homem. O Senhor Peel valorizava suas coisas, embora sua saúde estivesse falhando, e quando ele ficara incapaz de visitar o moinho devido à doença, ele colocava seu filho para cuidar e comandar os homens. Era poder demais para um rapaz tão jovem, falo com calma agora.

O que quer que Dick Jackson tenha se tornado, ele teve fortes tentações quando era jovem, o que traçaria seu futuro. Mas, no momento em que estou contando, meu ódio se enfurece como uma fogueira.

Eu acreditava que ele era o único obstáculo para que eu fosse recebido pelos homens bons e honestos. Eu estava farto do crime e da desordem, e determinado a ter uma vida diferente. Eu vivia sem meu pai, agindo sóbrio, honesto e algumas pessoas falavam bem de mim, eu não tinha ideia de virtude superior naquela época, e a cada vez que Dick Jackson me encontrava com seus escarnecedores, eu perdia meu controle.

Passei a noite no velho campo da abadia, planejando como eu o superaria e ganhar o respeito dos homens, apesar dele.

A primeira vez que rezei, foi sob as estrelas silenciosas, ajoelhado diante das paredes da velha abadia, erguendo meus braços e pedindo a Deus o poder da vingança sobre ele.

Eu ouvira dizer que se rezasse com seriedade, Deus me daria o que eu pedia, e eu analisava Deus como uma espécie de oportunidade para a realização de meus desejos.

Porém, Deus não ouve palavras maliciosas, nem ódio que parte do coração. Orações fervorosas desejando a desgraça de alguém nunca serão atendidas, garanto.

Durante este tempo, vi pouco a doce Nelly.

Sua avó estava doente, e ela tinha muito o que fazer em casa. Além disso, eu acreditava ter lido o seu olhar quando a levei a falar de aversão, e planejava me esconder de sua vista, por assim dizer, até que pudesse ficar de pé diante dos homens, com olhos destemidos, sem temer nenhum rosto de acusação.

Era possível adquirir um bom caráter, eu o faria e assim ... Eu o fiz.

À noite, eu não saía entre a multidão da aldeia, uma vez que os conhecidos amigos do meu pai, estavam perambulando pela vila, e ficariam felizes ao alistar um jovem forte como eu em seus projetos maldosos, mas, eram os firmes e ordeiros em suas decisões, que me evitavam. Eu não queria arrumar mais problemas, então, minha casa, naquele momento, era o lugar mais seguro.

Assim, fiquei em casa, e pratiquei a leitura.

Você dirá que eu julgaria mais fácil ganhar um bom caráter longe de Sawley, em algum lugar onde nem eu, nem meu pai, éramos conhecidos.

Eu não pensava assim. Além disso, Sawley representava todos os homens bons, toda bondade para mim, e ali, Nelly vivia.

Na sua visão, eu trabalharia minha vida, e lutaria pelo respeito dos homens.

Dois anos se passaram.

Diariamente, me esforçava ferozmente e minhas lutas eram desprovidas diante de Dick, e eu parecia estagnado, porque ao invés de sempre estimado por todos que me conheciam, eu era apenas apontado como o filho do criminoso, selvagem e imprudente.

Onde estava o uso da minha leitura e da minha escrita?

Estas aquisições foram desconsideradas e esquadrinhadas por aqueles que me apontavam dedos.

Eu podia ler qualquer capítulo da Bíblia e Nelly jamais se importaria.

Debrucei-me sobre os livros, os poucos que eu tinha. Os oleiros os trouxeram em seus pacotes, e comprei o que pude.

Eu tinha os Sete Campeões e o Progresso do Peregrino, ambos pareciam igualmente maravilhosos, e, além disso, fundados em fatos. Também estavam em minha posse a Narrativa de Byron, e o Paraíso Perdido de Milton, mas faltava-me o conhecimento.

Mesmo assim, estes livros me proporcionaram prazer, porque me tiraram de mim, e me fizeram esquecer minha posição miserável, e me deixaram inconsciente, pelo menos por um tempo, de meu ódio contra Dick Jackson.

Quando Nelly tinha uns dezessete anos, sua avó morreu. Fiquei distante no adro da igreja, atrás de uma grande árvore e assisti ao funeral. Foi o primeiro serviço religioso que ouvi, e, para minha vergonha, como eu pensava, isso me afetou até as lágrimas.

As palavras pareciam tão pacíficas e santas, que eu ansiava ir à igreja, mas não o fiz, porque nunca estive em uma.

A igreja paroquial ficava em Bolton, longe o suficiente para servir de desculpa para todos aqueles que não se importavam em ir.

Ouvi os soluços de Nelly, enchendo cada pausa na voz do clérigo, e cada lamento dela foi ao meu coração.

Ela passou por mim ao sair do pátio da igreja, e Nelly estava tão perto que eu a tocaria, mas sua cabeça estava baixa, e eu não a obriguei a falar comigo.

Então, surgiu a pergunta, o que seria dela?

Ela precisava ganhar a vida!

Ela seria uma serva de fazenda ou trabalharia no moinho?

Eu sabia o suficiente para fazer-me temer.

Meu salário era tal que me permitia casar, se eu quisesse, e nunca pensei em nenhuma mulher para ser minha esposa, apenas em Nelly.

Mesmo assim, eu não podia me casar com ela porque eu não me elevara ao caráter que determinei que o marido de Nelly tivesse.

Quando fosse rico e com boa reputação, eu aproveitaria a minha chance e pediria Nelly em casamento, mas até lá, me calaria.

Tinha fé no poder de meu persistente e obstinado objetivo, porque, mais cedo ou mais tarde, todos se renderiam a minha boa maneira de viver, e eu seria recebido entre as fileiras dos bons homens. Mas, enquanto isso, o que seria de Nelly?

Contei meus salários guardados e fui perguntar para uma senhora se ela me ajudaria. Eu pagaria para a mulher e assim ela abrigaria Nelly, e em resposta, Nelly, sem saber, ajudaria a mulher no trabalho doméstico, e viveria com ela como sendo uma filha. Esta mulher era uma das mulheres mais decentes do lugar.

Ela olhou para mim com desconfiança. Mantive a calma e lhe disse que nunca me aproximaria do lugar, que me afastaria daquele lado da aldeia, e a menina nunca saberia o que fiz, e a mulher diria que a paróquia a ajudava nas despesas, não eu.

Realmente não me aproximaria, porque ela suspeitaria de mim. Além disso, não faria com que Nelly tivesse qualquer obrigação para comigo, o que salpicaria a pureza de seu amor, ou diminuí-lo por uma mistura de gratidão. O amor que eu desejava ganhar, não por meu dinheiro, não por minha bondade, mas por mim e meu caráter.

Ouvi dizer que Nelly se encontrara com amigos em Bolland, e não vi razão para não falar com ela, pelo menos, uma única vez, antes que ela deixasse nossa vizinhança.

Eu queria apenas me apresentar como um amigo discreto, para falar sobre a minha simpatia e sobre sua tristeza.

Assim, no domingo, antes de Nelly deixar Sawley, a esperei no caminho, perto das árvores, pelo qual eu sabia que ela voltaria da igreja.

Os pássaros faziam um som tão melodioso e tão agitado entre as folhas, que não ouvi os passos que se aproximavam até estarem perto, e depois havia sons de vozes de duas pessoas.

O bosque ficava naquela parte de Sawley, onde Nelly estava hospedada com amigos, e o caminho através do bosque levava à casa deles, e só deles, então, eu sabia que era ela, porque a vi partir sozinha para a igreja. Mas quem era a outra voz?

O sangue saiu de meu coração e foi para a cabeça, como se eu fosse baleado, quando vi quem era a pessoa ao seu lado... Dick Jackson.

Era este o fim de tudo?

Nos degraus do pecado que meu pai pisara, eu corria para minha morte e desgraça.

Mesmo onde eu estava, eu ansiava por uma arma para matá-lo.

Como ele se atreveu a se aproximar de minha Nelly?

Ela também! A julgava infiel, e me esquecia do pouco que eu fora para ela em ações tão sem importância, e de quão poucas palavras rudes, eu falara com ela. Mesmo assim, eu a odiava! Ela era uma traidora!

Estes sentimentos passaram por mim antes que eu pudesse ver, porque meus olhos e minha cabeça estavam tão tontos e cegos.

Quando olhei, vi Dick Jackson segurando sua mão, e falando rápido, baixo e grosso, como um homem fala em grande veemência.

Ela parecia branca e consternada, e alguma palavra dele a deixou perturbada.

Ele a pegou novamente, e começou mais uma vez o sussurro grosso que eu odiava.

Eu não conseguia mais suportar, nem deveria.

Saí de trás da árvore onde eu a esperava, e quando ela me viu, perdeu o olhar de uma pessoa amarrada ao desespero, correu e se agarrou a mim, e me senti como um gigante em força e poder.

A segurei com um braço, mas não tirei meus olhos dele, senti como se eles se abrissem em sua alma e o queimassem para cima.

Ele nada falou, mas tentou olhar como se me desafiasse. Finalmente, seus olhos caíram diante dos meus, e não ousei falar, pois, os velhos juramentos horríveis se amontoavam em minha boca, e eu temia dar-lhes lugar, e aterrorizar minha pobre e trêmula Nelly.

Por fim, ele caminhou na minha direção e passou por mim e a tirei do caminho dele, dando as minhas costas para ele e a protegendo. Por instinto, ela enrolou suas mãos em minha volta, como se quisesse evitar seu toque acidental com Dick, e ele ficou horrorizado com isso, acredito, pela vingança louca e miserável que ele tomou em seguida.

Enquanto minhas costas estavam voltadas para ele, em uma tentativa de dizer algumas palavras a Nelly que a serenariam, ela, que estava o olhando ele, fascinada pelo terror, viu-o pegar uma pedra afiada e a apontou para mim.

Pobre querida!

Ela se agarrou a mim como um escudo, fazendo de seu doce corpo uma defesa para o meu. A pedra a atingiu, e ela não disse nada, reteve seu grito de dor, caindo aos meus pés, desmaiada.

Ele, o covarde, fugiu, assim que viu o que fizera.

Eu estava com Nelly, sozinho, na escuridão verde do bosque.

A luz trêmula e colorida das folhas fez parecer como se ela estivesse morta. A carreguei, sem saber se carregava um cadáver ou não, até a casa de sua amiga. Não fiquei para explicar o que acontecera, apenas virei minhas costas e corri loucamente a procura de um médico.

Bem! Não posso suportar voltar a esse tempo novamente, porque as lembranças me machucam.

Cinco semanas! Este foi o tempo que vivi na agonia do suspense, do qual o meu único alívio foi lançar planos brutais de vingança. Se eu o odiava antes, o que dirá depois da tragédia?

Parecia que a Terra não podia me segurar, e que um de nós desceria para Geena[99]. Eu teria o matado sem nenhum escrúpulo, no entanto, isso parecia uma vingança muito pobre e eu queria que ele sofresse.

Depois de muito tempo... Oh! A espera!

Nelly melhorou. A cor brilhante deixara a sua face, a boca tremia de dor contida, os olhos estavam embaçados com lágrimas que a agonia forçara, e eu a amava mil vezes mais do que quando ela estava brilhante e florida!

Comecei a perceber que ela cuidava de mim. Sei que os amigos de sua avó a advertiram sobre mim, e lhe disseram que eu vinha de uma linhagem ruim, entretanto, ela passara do ponto de obediência e me amava como eu era.

Ela amava o homem com entranhas misturadas do bom e do ruim.

Conversávamos como fazem aqueles, cujas vidas estão ligadas umas às outras. Disse para ela que casaria com ela assim que recuperasse sua saúde.

Seus amigos balançaram a cabeça, porém, eles viram que Nelly não seria capaz para o serviço agrícola ou trabalho pesado, e talvez, pensassem, como muitos pensam:

“Um mau marido era melhor que nenhum!”

Estávamos casados, e aprendi a agradecer a Deus pela minha felicidade, tão além de meus domínios. Eu a mantive como uma senhora. Eu era um trabalhador hábil, e ganhava bons salários, e cada desejo que ela tinha, eu tentava satisfazer. Seus desejos eram poucos e simples, pobre Nelly!

Ela poderia me conduzir como uma criancinha, com o encanto de sua voz gentil e suas palavras sempre amáveis.

Nelly implorava por todos quando eu estava cheio de raiva e paixão, e o nome de Dick Jackson nunca passou entre nossos lábios durante aquele tempo.

À noite, ela deitou em sua cadeira e leu para mim.

Consigo imaginar ela, agora, pálida e fraca, com seu rosto doce e jovem, iluminada por seus olhos santos e sinceros, contando-me a vida e a morte do Salvador, até que se encheram de lágrimas.

Eu ansiava em estar lá, e o vingar dos malvados judeus. Também gostava de Pedro, o melhor de todos os discípulos. Recebi a Bíblia, e li o poderoso ato de vingança de Deus, no Antigo Testamento, com uma espécie de fé triunfante que, mais cedo ou mais tarde, ele tomaria em Suas mãos, a minha causa, e me vingaria contra meu inimigo.

Em cerca de um ano, Nelly teve um bebê, uma menina, com olhos iguais aos dela. Nelly se recuperou, mas lentamente.

Foi pouco antes do inverno, que a cultura do algodão fracassara, e o mestre da fábrica teve que desligar muitas mãos trabalhadoras.

Pensei estar certo de continuar, já que eu ganhara um caráter firme e feito meu trabalho muito bem, entretanto, mais uma vez, foi permitido que Dick Jackson me fizesse mal.

Ele induziu seu pai a me demitir entre os primeiros do meu setor, e lá estava eu, pouco antes do inverno chegar, com uma esposa e uma filha recém-nascida, com uma pequena reserva de dinheiro, suficiente para manter o corpo e a alma juntos, até que eu pudesse voltar a trabalhar.

Todas as minhas economias foram embora até a véspera de Natal, e sentamos juntos à mesa, sem comida para a festa do dia seguinte.

Nelly parecia cansada e o bebê chorava por um suprimento de leite maior do que sua pobre e faminta mãe poderia dar. Minha mão direita não esquecera sua astúcia, e eu saí mais uma vez para minha caça.

Eu sabia onde o grupo de caçadores se encontrava, e compreendia o quanto eu seria recebido de volta, uma recepção muito mais calorosa do que me deram os bons homens, quando tentei entrar em suas fileiras.

No caminho para o local da caça, encontrei um homem velho, um que fora companheiro de meu pai, em seus primeiros dias.

— Ora! Ora, quem vejo! — gritou ele. — Você está voltando para o velho ofício? É o melhor negócio, agora que a colheita de algodão falhou!

— Sim! — falei com receio. — O algodão que antes nos dava sustento, agora está nos matando de fome! Um homem pode suportar qualquer coisa, mas ele fará algo ruim e pecaminoso para salvar sua esposa e seu filho, se não tiver escolha!

— Não, rapaz... A caça não é pecaminosa, vai contra as leis do homem, mas não contra as de Deus!

Eu estava muito fraco para discutir ou falar muito. Eu não provara comida durante dois dias, mas murmurei:

— De qualquer forma, confiava ficar livre disso pelo resto de meus dias! A princípio, isso levou meu pai a errar. Tentei e me esforcei. Agora desisto de tudo! Certo ou errado deve ser o mesmo para mim. Alguns estão perdidos e eu também estou!

Enquanto eu falava, alguma noção do futuro que separaria a pura e santa Nelly de mim, o homem imprudente e desesperado, veio sobre mim com uma irresistível explosão de angústia.

Logo em seguida, os sinos de Bolton-in-Bolland tocaram um alegre toque, que veio sobre a floresta, no ar solene da meia-noite, como os pássaros ao amanhecer, cantando de alegria, tão claros e jubilosos.

Era dia de Natal e me sentia como um excluído da alegria e da salvação. O velho Jonas falou:

— Escute! É o sino de Natal! Digo, Johnny, meu rapaz, não tenho a menor ideia de levar um sujeito sem espírito como você para o meio da confusão, com seus direitos e erros. Não nos incomodamos com coisas ditas por advogados. Agora, não te colocarei em nosso bando novamente, pois, não está à altura da diversão. Eu era amigo de seu pai, antes de vocês colocarem os pés nessas terras. Tenho cinco xelins e um pedaço de carneiro. Esqueça a caça! Pegue o que estou oferecendo.

Eu não era orgulhoso para recusar a ajuda, pelo contrário, eu estava muito grato.

Segui seus passos até à sua casa e apanhei a comida e o dinheiro, agradeci e corri para casa.

Peguei a carne e cozinhei um caldo para minha pobre Nelly. Ela estava dormindo, a despertei, ergui suas costas na cama para que pudesse sentar, e a alimentei com uma colher de chá. Após algumas colheradas, a luz voltou aos seus olhos e quando ela terminou, agradeceu e adormeceu com nosso bebê sobre seu peito.

Sentei-me na frente do fogo, e escutei os sinos, enquanto eles varriam meu chalé sobre as rajadas do vento.

Eu ansiava pela segunda vinda de Cristo, da qual Nelly me falara. O mundo parecia cruel, duro e violento demais para mim.

Eu rezei para me agarrar à bainha de Sua veste, e ser carregado sobre os lugares ásperos que Ele andou e sangrou, e não encontrei nenhum homem para se compadecer ou me ajudar, apenas o pobre e velho pecador Jonas.

Durante este tempo, minhas tristezas e meu eu, estiveram no topo de minha mente. Como estão na mente da maioria dos que andam na margem da lei.

Enquanto pensava nos meus erros e sofrimentos, meu coração ardia contra Dick Jackson, e com os sinos subindo e descendo, minhas esperanças cresciam e se dissipavam. Eu apenas queria que, nos dias misteriosos de um futuro próximo, Dick fosse expurgado da Terra.

Peguei a Bíblia de Nelly e comecei a ler, não para a história graciosa do nascimento do Salvador, mas para os registros dos dias anteriores, quando os judeus se vingaram de forma tão selvagem de todos os seus oponentes.

Eu era um judeu, um líder entre o povo. Dick Jackson era como Faraó, como o Rei Agag[100], que caminhava delicadamente, pensando que a amargura da morte passara. Em suma, Dick era o inimigo conquistado, sobre o qual eu me vangloriava, com minha Bíblia na mão, aquela que trazia as palavras de nosso Salvador na cruz.

Essas palavras me pareciam tênues e sem sentido, como um fragmento de campo visto na bruma da luz das estrelas, enquanto as histórias do Antigo Testamento eram grandiosas e distintas, na cor vermelho-sangue do pôr do sol.

A noite passou, e pequenas vozes cantando se aproximaram, eram hinos de louvor. Elas despertaram Nelly. Fui até ela, assim que a ouvi agitar-se.

— Nelly! — sussurrei. — Há dinheiro e comida em casa. Irei para Padiham em busca de trabalho, enquanto você cuida do bebê aqui.

— Não hoje! — afirmou ela. — Fique comigo hoje! Quero que vá comigo na igreja! Pelo menos, uma vez!

Eu nunca entrara em uma igreja, e desde nosso primeiro dia de casados, ela rezava frequentemente para que eu fosse, e agora ela olhava para mim, com um suspiro rastejante de seus lábios, esperando uma recusa, mas eu não recusei.

Eu fora afastado da igreja antes, porque eu não arriscava ir, porém, eu estava desesperado, e ousava fazer qualquer coisa. Eu parecia um pagão no rosto de todos os homens, porque, eu era um pagão em meu coração realmente.

Concluí que, se minha busca de trabalho em Padiham falhasse, eu seguiria os passos de meu pai, e tomaria com minha mão direita e com a força de meus braços o que me foi negado honestamente, e deixaria Sawley, onde uma maldição parecia pairar sobre mim, então, o que importava se eu fosse à igreja? Não me importava com as cerimônias estranhas que eram realizadas ali.

Caminhei para lá, como um homem pecador que eu era, em todo o meu coração. Nelly pendurou-se em meu braço, mas nem ela conseguia me fazer falar. Entrei, ela encontrou nossos lugares, apontou para as palavras, e olhou-me nos olhos, tão cheia de fé e alegria. No entanto, não vi nada além de Richard Jackson, não ouvi nada além de sua voz nasal alta, respondendo e profanando todas as palavras sagradas.

Ele estava em vestes de bom tecido, e eu, em meu casaco de farrapos. Ele era próspero e feliz, eu estava faminto e desesperado.

Nelly ficou pálida, enquanto observava a expressão em meus olhos, e rezava, cada vez mais fervorosamente à medida que o pensamento de mim, tentado pelo diabo, mesmo diante do altar, chegava mais completamente diante dela.

Ela esqueceu um pouco de mim naquele instante e colocou sua alma nua diante de Deus, em uma oração longa, silenciosa e chorosa, antes de deixarmos a igreja.

Quase todos foram embora, e fiquei ao lado dela, não querendo perturbá-la, incapaz de me juntar a ela na oração.

Finalmente ela se levantou calma e celestial, pegou meu braço e fomos para casa, pelo caminho do bosque, onde todos os pássaros pareciam domados e familiares, e Nelly disse pensar que todos os seres vivos sabiam que era dia de Natal, por isso eles se alegravam, e estavam amando juntos.

Eu acreditava ser a geada que os domara.

Eu sentia o ódio que habitava em mim, e sabia que por mais que eu fosse amoroso, eu estava cheio de raiva e desejo de vingança.

Naquela tarde, dei adeus a Nelly e a nossa filha, e fui para Padiham.

Consegui trabalho, como? Eu mal sei, já que cada vez mais forte, veio a força da tentação de levar uma vida selvagem repleta de pecado.

Havia uma legião de demônios me sussurrando pensamentos malignos, e apenas alguns gentis anjos, suplicando para me puxar de volta do grande abismo.

No entanto, como eu disse antes, consegui trabalho e parti para casa para buscar minha esposa e minha filha para morarmos no bairro perto do meu trabalho.

Eu odiava Sawley e, mesmo assim, fiquei ferozmente indignado por deixa aquele lugar, com propósitos por cumprir.

Eu ainda era um banido entre os mais respeitáveis, que se afastavam de tais como eu, e o meu inimigo vivia e florescia ao lado deles. Sentia-me um fugitivo e covarde.

Padiham, entretanto, não estava tão longe para me desesperar e para renunciar ao meu objetivo. Estava no lado oriental do grande Pendle Hill, a dez milhas de distância, talvez. O ódio que eu sentia podia ultrapassar um obstáculo maior que este.

Peguei uma cabana no alto da colina. Vimos uma longa encosta de relva escura diante de nós, e depois as casas de pedras cinzas de Padiham, sobre as quais pairava uma nuvem densa, diferente da madeira azul ou da fumaça sobre Sawley.

Os ventos selvagens caíram e assoviaram em torno de nossa casa durante muitos dias, entretanto, eu estava feliz.

Me levantei na estima dos homens. Eu tinha trabalho em abundância. Nossa filha estava bem e crescia saudável. Mas não me esqueci do provérbio:

“Mantenha uma pedra no bolso por sete anos: vire-a, e guarde-a por mais sete anos, mas tenha-a sempre pronta para atirar ao seu inimigo, quando chegar a hora!”

Um dia, um companheiro de trabalho me pediu para ir a uma pregação na colina. Eu não ia à igreja, mas havia algo mais novo e mais livre na noção de orar a Deus longe de Sua grande cúpula, e o ar livre fora um encanto para mim desde minha infância violenta. Além disso, disseram eles, que rancheiros tinham maneiras estranhas com eles, e pensei que seria divertido ver sua maneira de orar, e este rancheiro, de todos os outros, tinha se tornado um nome que eu respeitava.

Por isso fomos, era uma bela noite de verão, depois que o trabalho foi finalizado.

Quando chegamos ao lugar, vimos uma multidão como eu nunca vi antes, homens, mulheres e crianças, todas as idades estavam reunidas e sentadas na colina.

Eles estavam cansados, doentes, tristes... Tudo isso era contado em seus rostos, que eram duros e fortemente marcados.

No meio, de pé em uma carroça, estava o rancheiro.

Quando o vi pela primeira vez, fiquei boquiaberto, ele era rude e nem de longe parecia um padre ou algo semelhante. Havia algo simples em sua maneira de dirigir a palavra.

Todos os olhos estavam fixos no pregador, e virei os meus também para ele, me sentando ao lado do meu amigo.

O homem começou a falar, não falava em uma língua bem desenhada, mas em palavras como as que ouvimos todos os dias de nossas vidas, e sobre coisas que fizemos todos os dias também.

Ele não chamou nossas falhas de orgulho ou busca de prazer, o que não nos daria uma noção clara do que ele queria dizer, mas apenas nos disse o que fizemos, e então, ele deu um nome para as nossas ações e disse estarmos perdidos se continuássemos assim.

Naquele momento, as lágrimas e o suor corriam pelo seu rosto, ele estava lutando por nossas almas. Nos perguntávamos como ele conhecia nossas vidas íntimas sem nem nos conhecer, pois, cada um de nós viu seu pecado ser colocado diante dele com palavras claras. O homem clamou por nós, os arrependidos, e falou primeiro conosco, e depois com Deus, de uma forma que chocaria muitos, mas não me chocou.

Eu gostava de coisas fortes, e da verdade nua e completa, e me senti mais próximo de Deus naquela hora. A escuridão do verão rastejando sobre nós, e uma após outra, as estrelas subiam acima de nós, como os olhos dos anjos nos observando, coisa que eu jamais observei em toda a minha vida.

Quando ele nos trouxe às nossas lágrimas e suspiros, ele parou sua voz alta, mas tranquila, e houve um silêncio, apenas quebrado por soluços e gemidos trêmulos, no qual eu ouvi através da tristeza, as vozes dos homens fortes em angústia e súplica, bem como os tons estridentes das mulheres.

De repente, ele falou novamente, e naquela altura, não podíamos vê-lo, mas sua voz era terna como a voz de um anjo, e, ele falou de Cristo, e nos implorou que fôssemos até Ele.

Nunca ouvi uma súplica tão apaixonada. Ele ponderou como se visse Satanás pairando perto de nós na noite escura e densa, e como se nossa única segurança estivesse em um presente vindo da Cruz. Creio que ele viu Satanás, porque sabemos que ele assombra as velhas colinas desoladas, aguardando seu tempo, e já pegou muitas almas.

Houve um súbito silêncio, e pelos gritos dos mais próximos ao pregador, ouvimos que ele desmaiara.

Corremos e ficamos à sua volta, como se ele fosse nossa segurança e guia, e ele fora vencido pelo calor e pela fadiga, pois, éramos o quinto grupo de pessoas a quem ele se dirigia a palavra.

Deixei a multidão que o guiava e tomei o caminho solitário para casa.

Ali estava a seriedade de que eu precisava. Para este homem fraco e cansado, a religião era uma vida e paixão.

Agora, olhando para trás, me pergunto qual era a cegueira de toda a paciência e sofrimento de minha Nelly? Pois, pensei, que descobrira o que era religião, e que até então, tudo isso fora uma coisa desconhecida para mim.

Daí em diante, minha vida foi mudada.

Antes eu zeloso e fanático, sem qualquer simpatia pelas pessoas, apenas Nelly. Do mesmo modo, eu teria perseguido todos os que divergiam de mim, se eu tivesse apenas o poder. Eu era um ascético em todos os prazeres corporais, e um inexplicável mistério me guiava para pensamentos profanos, e que se eu jejuasse e rezasse tempo suficiente, Deus colocaria minha vingança em minhas mãos.

Ajoelhei-me ao lado da cama de Nelly, e jurei viver uma vida de abnegação, considerando todas as coisas exteriores, se assim, Deus concedesse minha oração.

Eu a deixei em Suas mãos.

Tinha a certeza de que Ele iria rastrear o símbolo e a palavra. Nelly ouviria minhas palavras apaixonadas e ficaria acordada triste durante a noite, depois, eu me levantaria e faria seu chá, e reorganizaria seus travesseiros, com uma cegueira estranha e intencional, que minhas palavras amargas e orações blasfemas haviam custado suas noites miseráveis e sem dormir.

Minha Nelly ainda estava sofrendo com aquele golpe de Dick.

Como a pedra a machucara, nunca entendi, mas em consequência daquele momento de ação, seus membros ficaram dormentes e mortos, e, lentamente, ela foi para sua cama, de onde nunca mais levantou. Lá, ela se deitou, apoiada por almofadas, com seu rosto manso e sempre brilhante, sorrindo uma saudação. Suas mãos brancas e pálidas, sempre ocupadas com algum trabalho e nossa pequena Grace, era como o poder do movimento para ela.

Feroz eu era, quando estava longe dela, mas quando ao lado dela, minha voz se tornava doce.

Ela parecia não lutar pela salvação como eu, e longe dela, naquele fim de tarde, eu desejava que Nelly ousasse reclamar, xingar, se revoltar... Mas entrei e ouvi sua voz cantando suavemente alguma palavra santa de paciência, algum salmo que, talvez, confortasse os mártires, e quando vi seu rosto semelhante à de um anjo, cheio de paciência e fé, adiei meus discursos de despertar para outro momento.

Uma noite, há muito tempo, quando eu ainda era jovem e forte, embora meus anos fossem mais de quarenta, sentei sozinho perto da lareira. Nelly estava sempre na cama, como já disse, e Grace estava deitada ao seu lado. Acreditava que elas estavam dormindo, embora não conseguisse conceber como elas conseguiam dormir, se a noite era tão brutal, porque o vento vinha varrendo do alto da colina em grandes batidas, como os pulsos do céu, e, durante as pausas, enquanto eu ouvia o rugido que se aproximava, sentia a terra tremer sob mim. A chuva batia contra as janelas e portas, e soluçava para entrar.

Pensei que o Príncipe do Ar[101] estava no exterior, e ouvi, ou imaginei que ouvi, gritos das almas pecadoras entregues ao seu poder.

Os sons se aproximavam cada vez mais. Me levantei e tranquei os fechos da porta, embora não me importasse com o homem mortal, porém, me importava com o que acreditava estar ao redor da casa, em poder do mal.

No entanto, a porta tremia como se também ela estivesse em terror mortal, e eu pensava que os fechos iriam ceder. Me coloquei na frente da porta, amarrando meu coração para desafiar o inimigo espiritual que esperava ver, e a porta se abriu, e diante de mim, estava...

O que era?

Homem ou demônio?

Um homem de cabelos grisalhos, com roupas pobres e gastas, todo molhado da tempestade pela qual passara.

— Deixe-me entrar! — gaguejou ele. — Dê-me abrigo! Sou pobre! Porque se fosse rico, o recompensaria. Estou sem amigos, me ajude! — afirmou, olhando-me, como quem procura o que não consegue encontrar.

Naquele olhar, estranhamente mudado, eu sabia que Deus me ouvira, porque era o velho olhar covarde do inimigo de minha vida. Se ele fosse um estranho, eu não o acolheria, mas como ele era meu inimigo, eu o acolhi. Sentei em sua frente e perguntei:

— De onde você vem? É uma noite estranha para estar fora de casa!

Ele me olhou, mas segurou sua cabeça como uma besta ou um cão de caça.

— Não vai me trair, espero! Não vou incomodá-lo por muito tempo. Assim que a tempestade acabar, eu irei!

— Amigo! Por que o trairia? — respondi tremendo. — Você vem para se abrigar, e eu lhe dou o melhor de mim. Por que você suspeita de mim?

— Porquê... — respondeu, em sua amargura abjeta. — Todo o mundo está contra mim. Nunca me encontrei com a bondade e agora sou caçado como um animal selvagem. Vou lhe dizer, sou um condenado retornado antes do meu tempo. Eu era um homem de valor em Sawley...

Ele falava como se eu não soubesse disso, e continuou:

— Voltei, como um tolo, para o lugar antigo. Eles me caçarão e me mandarão de volta para aquele Inferno na Terra, se me pegarem. Eu não sabia que seria uma noite assim. Só me deixe descansar e me aquecer. Irei partir assim que a chuva parar. Bondoso homem, tenha piedade de mim!

Sorri para todas as suas dúvidas, prometi-lhe uma cama, e pensei em Jael[102] e Sisera[103].

Meu coração saltou como um cavalo de guerra ao som da trombeta, e sussurrei:

— Enfim, o Senhor ouviu minhas preces e súplicas! Finalmente terei a minha vingança!

O homem não imaginava quem eu era. Ele também mudara, mas eu aprendera suas características com toda a diligência de ódio, e o reconheci desde o início, ao contrário, ele não imaginou quem eu era, porque estava preocupado demais com seu infortúnio.

Ele olhou para o fogo com o olhar sonhador de alguém, cuja força de caráter, se é que tinha alguma, desejava permanecer.

Ele suspirou e se compadeceu, mas não conseguiu decidir o que fazer. Prontifiquei-me a fazer uma cama no chão, e assim, eu estaria pronto para fazer o meu caminho até Padiham, e chamar o policial, e em cujas mãos eu o entregaria, para ser levado de volta ao seu Inferno na Terra! Entretanto, antes disso, fui para o quarto de Nelly. Ela estava acordada e ansiosa. Vi que ela estava escutando as vozes.

— Quem está aí? — perguntou inquieta. — Diga-me! Porque soou como uma voz que eu conhecia. Pelo amor de Deus, fale!

Tentei sorrir silenciosamente.

— É um homem pobre, que perdeu seu caminho. Vá dormir, minha querida! Ele vai dormir no chão! Preciso sair, mas volto logo! Durma! — e a beijei.

Pensei que ela estava sossegada, mas não totalmente satisfeita. Entretanto, me apressei antes que houvesse mais algum de seus questionamentos.

Fiz a cama e Richard Jackson, cansado, deitou-se e adormeceu.

Meu desprezo por ele quase se igualou ao meu ódio. Se eu estivesse evitando retornar a um lugar que eu pensava ser um Inferno sobre a Terra, acho que teria dormido tranquilo sob o teto de qualquer homem até que eu estivesse seguro.

Olhei novamente para Dick. Seu rosto estava velho, desgastado e miserável. Assim era o meu inimigo. E mesmo assim, era triste olhar para ele, pobre criatura caçada!

Parei de olhá-lo porque isso me deixaria fraco e eu não podia fraquejar na minha vingança. Deste modo, peguei meu chapéu e abri suavemente a porta.

O vento soprava, mas não o incomodou, ele estava tão cansado para se preocupar com um sopro de ar frio.

A tempestade estava cessando e, ao invés do céu negro da desgraça, que eu avistara quando olhei para frente pela última vez, a lua estava saindo, pálida como se estivesse cansada da luta no céu, e sua luz branca caiu fantasmagórica e calma sobre muitos objetos conhecidos na paisagem.

Por vezes, uma nuvem escura e rasgada era soprada sobre sua casa no céu, mas elas cresciam cada vez menos, e finalmente a luz do luar brilhava firme e clara. Pude ver Padiham caído diante de mim.

Ouvi o barulho dos cursos de água descendo a colina. Minha mente estava repleta e tensa por pensamentos, com meus sentidos agudos e observadores.

Quando cheguei ao riacho, ele estava correndo rápido e a pequena ponte estava lá, que já não tinha mais o parapeito. Era como a ponte em Sawley, onde eu vira Nelly pela primeira vez, e lembrei daquele dia, no meio do meu aborrecimento por ter que dar a volta e ajudar a garota.

Me afastei do riacho, e uma pequena figura surgiu em minha frente. Nenhum espírito dos mortos teria me assustado como esta criatura fez, porque vi ser Grace, que eu deixara segura na cama ao lado de sua mãe.

Ela veio até mim, e pegou minha mão. Seus pés descalços brilhavam brancos sob a luz da lua, e salpicavam a luz para cima, enquanto se plasmavam através da água.

— Pai... — soluçou, um pouco ofegante. — A mãe me pediu para dizer isto. — ela parou para recuperar o fôlego e a memória, para lembrar o que devia falar e seus olhos pareciam temer esquecer uma sílaba.

— A mãe falou... “Há um Deus no céu, e em Sua casa há muitas moradas. Se você espera encontrar mamãe no Céu, você deve voltar para casa e parar a sua vingança! Agora se seguir seus passos, para sempre estarão separados!”

Ela choramingou:

— Papai, que Deus tenha piedade de você e de mamãe! Pai, eu disse bem cada palavra!

Fiquei em silêncio por alguns segundos e finalmente falei:

— O que fez sua mãe dizer isso? Como chegou aqui?

— Eu estava dormindo, papai, e acordei ao ouvi mamãe chorar. Creio que você acabara de sair de casa, e que ela estava chamando por você. Então, ela rezou, com as lágrimas rolando pelas bochechas, e continuou dizendo: “Oh, não posso andar e correr até ele!”. Então, eu disse: “Mãe, posso correr e andar até papai. Aonde devo ir?”. E ela se agarrou ao meu braço, e pediu a Deus que me abençoasse, e disse para não temer, pois, Ele me cercaria. Mamãe me ensinou a mensagem para te dizer, e agora, pai, querido pai! Você vai encontrar a mãe no Céu, não vai? Não ficará separado para sempre e sempre, certo? — Grace se agarrou aos meus joelhos, e implorou mais uma vez pelas palavras de sua mãe.

A tomei nos braços e me virei para casa.

— O homem está lá no chão da cozinha? — perguntei.

— Sim! — ela respondeu.

— Em todo caso, minha vingança ainda não estava fora do meu poder.

Quando chegamos a nossa casa, passei por ele, ainda dormindo.

Em nosso quarto, estava Nelly. Ela se sentou na cama, uma atitude muito incomum, e uma das quais eu pensava que ela era incapaz de conseguir sem ajuda. Ela estava com as mãos em oração, e quando me viu, ela se deitou com um doce sorriso inefável. Nelly não podia falar no início, mas quando me aproximei, ela pegou minha mão e a beijou, chamou Grace para junto dela, e a fez tirar seu manto e suas coisas molhadas.

Mandou a menina vestir sua roupa de dormir, e nossa filha escorregou para o lado quente de sua mãe, e todo esse tempo, minha Nelly não me disse o motivo de sua convocação. Ela parecia suficiente feliz pelo simples fato de segurar a sua mão, e sentir que eu estava lá.

Eu acreditava que ela lera meu coração, e mesmo assim, não quis perguntar. Por fim, ela olhou para cima.

— Meu marido... — começou Nelly. — Deus salvou você de uma grande tristeza esta noite! Salvou-nos, de fato!

Não entendi, e senti seu olhar morrer em desilusão.

— Aquele pobre vagabundo em nossa sala é Richard Jackson, não é mesmo? — ela indagou.

Não dei nenhuma resposta. O rosto dela ficou branco e desvaneceu-se:

— Oh! Isto é difícil de suportar. Fale o que está em sua mente, lhe imploro! Não vou frustrar você duramente, querido John, fale comigo!

— Por que preciso falar? Você parece saber tudo!

— Sei que a voz dele é uma voz que jamais esquecerei e conheço as terríveis orações que você fez contra ele. Sei que fiquei acordada para rezar para que suas palavras nunca fossem ouvidas, e sou uma aleijada sem poder. Coloco minha causa nas mãos de Deus. Você não fará nenhum mal ao homem. O que você tem em seus pensamentos para fazer, eu não posso dizer, mas sei que você não pode fazer isso. Meus olhos estão embaçados com uma névoa estranha, mas alguma voz me diz que você perdoará Richard Jackson. Caro marido, caro John! Está tão escuro que não posso vê-lo, mas fale uma vez comigo!

Movi a vela, mas quando vi seu rosto, vi a névoa sobre aqueles olhos amorosos e temi que ela pudesse morrer.

Sua filhinha deitada ao seu lado olhou no meu rosto, e depois para ela, e o conhecimento selvagem da morte disparou através de seu jovem coração, e ela gritou em voz alta.

Nelly abriu os olhos mais uma vez. O homem despertou de seu sono, ao grito penetrante daquela criança, e ficou à porta do quarto, olhando para dentro. Ele conhecia Nelly, e entendeu onde a tempestade o levara para se abrigar. Ele veio em direção a ela.

— Oh! Mulher moribunda! Você tem me assombrado na solidão. Você está em meus sonhos e afirmo que a caça dos homens contra mim não é tão terrível quanto a caça de seu espírito! Maldita pedra!

Ele caiu ao lado de sua cama em uma agonia, acima da qual o rosto santo de Nelly nos olhou, pela última vez, glorioso com a chegada da luz do Céu.

Ela falou mais uma vez:

— Foi um momento de paixão raivosa e eu nunca desejei teu mal. Te perdoo, e John também, confio!

Conseguiria ali manter o meu propósito?

Meu propósito apenas se desvaneceu em nada. Mas, acima das minhas lágrimas de asfixia, me esforcei para falar claro e distinto, para que seu ouvido moribundo ouvisse, e seu coração debilitado ficasse contente.

— Te perdoo, Richard! Serei seu amigo em seus problemas.

Ela não podia ver, entretanto, em vez da sombra triste da morte roubando o brilho sobre seu rosto, uma luz silenciosa veio sobre ela, que sabíamos ser o olhar de uma alma em repouso.

Naquela noite escutei a história de Dick, e aprendi que é melhor perdoar que se vingar.

Na tempestade da noite, meu inimigo veio até mim, na calma da manhã cinzenta, o conduzi, e lhe disse:

— Vá com Deus!

E um infortúnio veio sobre mim, mas o fardo ardente de um coração pecador e irado foi tirado.

Estou velho agora, e minha filha está casada. Tento pregar e ensinar, do meu jeito rude, como Cristo viveu e morreu, e qual era a fé de amor em Nelly.

Fim.


Traços e Histórias dos Huguenotes

Sempre me interessei pela conversa de qualquer pessoa que pudesse me dizer algo sobre os Huguenotes, e, pouco a pouco, fui captando muitos fragmentos de informação a respeito deles.

Recordo apenas que, cinco anos após a abjuração formal da fé protestante de Henrique IV, ele garantiu aos protestantes franceses sua liberdade religiosa pelo Édito de Nantes[104].

Seu indigno filho, Luís XIII, porém, recusou os privilégios que lhes foram concedidos por este ato, e, ao ser lembrado das reivindicações, se as promessas de Henrique III e Henrique IV fossem consideradas, ele respondeu que:

“O primeiro monarca os temia, e este último os amava, mas não os temo, nem os amo!”

O extermínio dos Huguenotes era o projeto favorito do Cardeal Richelieu, e foi por sua instigação, que o segundo cerco de Rochelle foi empreendido, conhecido até mesmo pelo estudante mais descuidado da história pelos horrores da fome que os sitiados sofreram.

Miseravelmente desapontado com o fracasso da assistência da Inglaterra, o prefeito da cidade, Guiton, rejeitou as condições de paz que o Cardeal Richelieu ofereceu ao saber que eles iriam arrasar suas fortalezas até o chão, e suportar a entrada dos católicos.

Entretanto, havia uma facção traidora na cidade, e, ao rejeitar os termos de Guiton, esta facção coletou em uma noite, uma multidão de mulheres, crianças e idosos, e os levou para além das linhas da cidade.

Expulsos da cidade amada, cambaleando e desmaiando de fome, além de cansados, eles foram jogados na frente do inimigo, e os sobreviventes imploraram em frente às muralhas de Rochelle, pedindo um abrigo silencioso para morrer, mesmo que sua morte fora causada pela fome.

Quando dois terços dos habitantes pereceram, quando os sobreviventes eram insuficientes para enterrar seus mortos e cadáveres sinistros superavam o número dos vivos miseráveis, a gloriosa Rochelle, reduto dos Huguenotes, abriu seus portões para receber o Cardeal Católico Romano, que celebrou a missa na igreja de Santa Marguerite, outrora o amado santuário do culto protestante.

Ao nos agarrarmos à memória dos mortos, também os Huguenotes que restam se lembrarão de Rochelle.

Anos, longos anos de sofrimento passaram, uma aldeia surgiu, não a vinte milhas de New York, e o nome dessa aldeia era New Rochelle, e os velhos contaram, com lágrimas de sofrimento, que seus pais choraram quando eram crianças, muito longe, do outro lado do mar, na terra agradável aos olhos da França.

Richelieu estava ocupado após este segundo cerco de Rochelle, e teve que colocar seus esquemas para o extermínio dos Huguenotes de lado.

Assim, eles viveram em uma espécie de paz incerta durante o restante do reinado de Luís XIII. No entanto, eles se esforçaram para evitar a perseguição através de uma incansável submissão.

Em 1683, os Huguenotes do sul da França resolveram professar sua religião, e se recusaram a ser registrados entre os da fé Católica Romana, e que preferiam a vida de mártires a ter que viver como apóstatas ou hipócritas.

Em um sábado designado, as antigas igrejas Huguenotes desertas, foram reabertas, não aquelas em ruínas, das quais restavam apenas algumas pedras para contar a história do que foi um dia o solo sagrado. Essas igrejas foram povoadas com ouvintes atentos, ouvindo a palavra de Deus pregada por ministros reformados.

Languedoc, Cevennes e Dauphiny, cidades francesas, pareciam vivas com Huguenotes, mesmo que suas tartanas[105] fossem escondidas, nas cores harmoniosas e mescladas da urze.

Os Dragonnades[106] invadiram todos os lugares e crueldades foram cometidas, o que é também, para a honra da natureza humana, ser esquecida.

Vinte e quatro mil conversões foram anunciadas ao grande rei Luiz XIV, que acreditava plenamente nelas. A mais distante Madame de Maintenon[107] insinuou suas dúvidas no famoso discurso:

“Mesmo que os pais sejam hipócritas, os filhos serão católicos!”

E depois veio a Anulação do Édito de Nantes. Uma multidão de razões fracas foram alegadas para que ele fosse mantido, como geralmente acontece quando não há uma que seja realmente boa ou apresentável.

O Édito era inútil, uma mera questão de formal, porque nunca foi destinado a ser perpétuo, que, pela bênção do Céu e das libélulas, os Huguenotes retornaram à verdadeira fé.

Como mera questão formal, algumas penalidades foram decretadas contra os professores da heresia extinta.

Cada lugar de culto Huguenote seria destruído, cada ministro que se recusasse a se conformar, seria enviado ao Hôpitaux de Forçats em Marselha ou em Valance.

E aquele que zelasse pela honra Huguenote, seria considerado obstinado e condenado à escravidão pelo resto de sua vida em tais ilhas do Oeste-Índico que pertenciam aos franceses.

Os filhos dos pais Huguenotes seriam tirados deles pela força, e educados pelas freiras ou monges Católicos Romanos.

Estes são apenas alguns dos decretos contidos na Revogação do Édito de Nantes.

E agora vem, o que ouvi sobre algumas histórias:

Uma amiga minha, descendente de alguns dos Huguenotes, que conseguiram emigrar para a Inglaterra, me contou os seguintes detalhes sobre a fuga de sua tataravó:

O pai desta senhora era um agricultor normando, ou melhor, um pequeno proprietário de terras.

Seu nome era Lefebvre. Ele tinha dois filhos, homens adultos, robustos, capazes de se proteger e de escolher sua própria linha de conduta, mas ele tinha também uma filhinha, Magdalen, a criança feliz, que era a querida da casa.

Sua pequena propriedade estava longe de qualquer grande cidade, com suas plantações de milho e pomares em torno da velha casa ancestral.

Havia sempre muita coisa nela, e embora a esposa fosse uma pessoa doente, uma alegria sóbria estava presente, para dar um encanto à abundância.

A família Lefebvre vivia quase inteiramente da produção da fazenda, e tinha pouca necessidade de comunicação com seus vizinhos mais próximos, com os quais, entretanto, como pessoas gentis e de boas intenções, estavam em boas condições, embora diferissem em sua religião.

Naquela época, o café era pouco conhecido, mesmo nas grandes cidades, o mel fornecia o lugar do açúcar, e para a panela, leite fervido, verduras e frutas. A horta, a fazenda e os pomares do Lefebvres eram o suficiente.

O tecido de lã era fiado pelos homens da casa, nas noites de inverno, de pé junto à grande roda, e o girando cuidadosa e lentamente para garantir a uniformidade do fio.

As mulheres se encarregavam do linho, recolhendo, secando e batendo o cânhamo malcheiroso e fora reservado o delicado linho de flor azul para o fino fio necessário para o enxoval da filha, quando ela tivesse idade.

A mãe, mesmo deitada, muito fraca para trabalhar, sorriu ao planejar a teia de linho delicado, que seria tecida a partir do fio de linho finíssimo e que somente ela faria o enxoval.

E as donzelas da fazenda se orgulhavam dos lençóis e toalhas de mesa, que participariam da preparação para o futuro casamento da garota, que dormia serena em seu berço quente, ao lado da mãe.

Sendo tais os hábitos autossuficientes dos agricultores normandos, não era de se admirar que, no ano agitado de 1685, Lefebvre permanecesse ignorante por muitos dias daquela Revogação que agitava toda a alma de seus correligionários.

Mas havia uma feira de gado em Avranches, e ele precisava de uma vaca para engordar e salgar para o fornecimento do inverno.

Assim, o cavalo normando de ossos largos, acostumado com toda a parafernália de sela de madeira de boa altura, pele de ovelha azul, franjas e borlas escarlates, e o fazendeiro Lefebvre, ligeiramente rígido em seus membros depois de sessenta invernos, subiu no cavalo junto à parede do estábulo.

Sua filhinha Magdalen acenava e beijava sua mão, enquanto ele começava a cavalgar.

Quando ele chegou à feira no grande lugar antes da catedral de Avranches, ele ficou impressionado com a ausência de muitos daqueles que estavam unidos a ele, pelo vínculo de sua religião perseguida, e nos rostos dos fazendeiros Huguenotes que estavam lá, havia uma expressão de tristeza.

A resposta para as suas perguntas, ele soube pela primeira vez da Revogação do Édito de Nantes. Ele e seus filhos podiam sacrificar qualquer coisa, teriam orgulho do martírio, se necessário fosse, mas a cláusula que o cortava seu coração era a ameaçava que, sua bela e inocente Magdalen fosse tirada dele e remetida aos ensinamentos de um convento.

Um convento, para os preconceitos excitados dos Huguenotes, implicava em um lugar de moral dissoluta, assim como de doutrina idólatra.

O pobre fazendeiro Lefebvre não pensava mais na vaca que desejava comprar, porque a vida e a morte, a salvação ou a condenação de sua querida, lhe parecia depender da velocidade com que ele podia chegar a sua casa, e tomar medidas para sua segurança.

Ele nada podia dizer naquele momento de terror desnorteado, uma vez que, enquanto ele observava o cavalariço[108] na estalagem arrumando o equipamento de seu cavalo para a sua volta, ele não ousou ajudá-lo, por medo que percebessem sua partida prematura e pressa indevida, porque isso levantaria suspeitas nos rostos malignos que ele observava se reunindo ao seu redor.

Ele temia que, enquanto tremia de impaciência, sua filha seria levada para fora de sua vista pelos séculos dos séculos.

Ele montou e impulsionou o velho cavalo, mas a estrada era montanhosa, e o corcel não tivera seu descanso habitual, e estava mal alimentado, e ele quase parou aos pés de cada pedaço de chão que percorria.

O fazendeiro Lefebvre pulou do cavalo, e correu ao lado do animal, subindo todas as colinas, puxando-o, e encorajando sua velocidade por todos os ruídos imagináveis.

O velho homem tentava falar coisas animadoras para o cavalo, embora as lágrimas corressem rapidamente pelas bochechas dele.

O homem estava apavorado com a repulsa de seus medos, quando viu Magdalen sentada ao sol, brincando com algumas folhas de malva, que eram um deleite para as crianças normandas.

Ele desceu de seu cavalo, que encontrou seu caminho para dentro do estábulo, e o velho fazendeiro correu e beijou Magdalen uma e outra vez. Suas lágrimas caíam pelas bochechas como chuva, e, então, ele entrou para contar à sua esposa, sua pobre esposa doente.

Ela recebeu a notícia com mais tranquilidade do que ele fizera. A longa doença matara as alegrias e os medos deste mundo para ela. Ela podia até mesmo pensar e sugerir que naquela noite, um pesqueiro estava prestes a velejar de Granville para as Ilhas do Canal.

Algumas pessoas que passaram pela fazenda Lefebvre a caminho de Avranches, lhe falaram dos empreendimentos que estavam fazendo, ao enviar maçãs e peras para serem vendidas em Jersey, onde as plantações de pomares foram perdidas.

O capitão era amigo de um de seus filhos.

— Devemos nos separar dela? De Magdalen, nossa doce menina? Ela nunca saiu de nossa casa antes, nunca esteve longe de nós. Quem cuidará dela? Marie, digo, quem cuidará da preciosa criança? — e o velho foi sufocado com seus soluços.

Então, sua esposa respondeu:

— Deus cuidará de nossa preciosa criança, e a manterá a salvo de danos, até que nós dois, ou você, querido marido, possa deixar esta terra amaldiçoada! Ou, se não pudermos segui-la, ela estará a salvo no Céu, enquanto, se ficar aqui ela será levada ao terrível convento, o Inferno será sua porção, e nunca mais a veremos! Nunca!

Eles foram instigados por sua fé em compostura suficiente para planejar a fuga da menina. O velho cavalo seria novamente aparelhado e colocado na carroça, e se algum espião romanista olhasse para a carroça, o que veriam além de palha e um novo colchão enrolado, espreitando para fora de uma cobertura de saco?

A mãe abençoou sua filha com a plena convicção de que nunca mais seria capaz de vê-la novamente. O pai foi com ela para Granville.

No caminho, o único alívio que ele teve foi cuidar do conforto dela em sua estranha prisão. Ele acariciou suas bochechas e alisou seus cabelos com seus dedos endurecidos pelo trabalho, e a persuadiu a comer o que sua mãe preparara.

À noite, os pés dela estavam frios. Ele tirou seu casaco de flanela quente para envolvê-los. Se foi aquele frio que veio no calor do dia excitado, ou se o cansaço e a dor quebraram completamente o velho homem, ninguém pode dizer.

A criança Magdalen foi retirada com segurança de seu esconderijo em Granville, e colocada a bordo do barco, com seu baú de roupas e enxoval pequeno.

O capitão a levou a salvo para Jersey, e para os amigos dispostos a recebê-la eventualmente em Londres.

Mas o pai, gemendo, resmungou:

— Estou de luto! Estou de luto!

Ele ficou dizendo aquela sentença lamentável uma e outra vez, como se a repetição pudesse afastar o profundo sentimento de pesar.

Ele voltou para casa, deitou em sua cama e morreu. Sua esposa morreu pouco tempo depois dele.

Um desses filhos de Lefebvre era o avô do Duque de Dantzic, um dos marechais de Napoleão.

Os descendentes da filha pequena, embora não muito numerosos, estão espalhados pela Inglaterra, e um deles, como já disse, é a senhora que me disse isso, e muitos outros detalhes relacionados aos Huguenotes exilados.

No início, os rigorosos decretos da Revogação foram aplicados, principalmente contra os ministros da religião.

Todos foram obrigados a deixar Paris com quarenta e oito horas de antecedência, sob penas severas por desobediência.

Alguns dos mais distintos entre eles, foram obrigados a deixar o país e a expulsão destes ministros foi seguida pela emigração dos mais religiosos entre seu povo.

Em Languedoc este foi especialmente o caso:

Congregações inteiras seguiram seus pastores, e a França estava sendo rapidamente drenada dos mais atenciosos e inteligentes Huguenotes, que, como povo, se distinguiram na fabricação e no comércio.

Logo, o ministro do rei tomou o alarme, e proibiu a emigração, sob pena de prisão perpétua que incluía o abandono às ternas misericórdias dos sacerdotes.

Novamente, posso relatar uma particularidade curiosa contada:

Um marido e uma esposa tentaram fugir separadamente de alguma cidade para a Inglaterra. A esposa conseguiu e chegou à Inglaterra, onde esperava ansiosamente por seu marido. O marido foi preso na tentativa, e encarcerado.

Somente o padre foi autorizado a visitá-lo, e, após usar vãos argumentos para tentar convencê-lo a renunciar à sua religião detestável, o padre, com cruel zelo, recorreu à tortura física.

Havia um quarto na prisão com chão de ferro, sem assento, nem meios de apoio ou descanso. Neste quarto foi introduzido o pobre Huguenote.

O piso de ferro foi gradualmente aquecido, um processo semelhante em Sandford e Merton[109], mas no livro, o calor não foi levado à tortura, como no caso do Huguenote.

Ainda assim, mesmo torturado, o homem corajoso foi fiel.

O processo foi repetido, mas tudo em vão.

A pele foi queimada, da sola de seus pés até a carne, e ele ficaria com sequelas pelo resto da vida. Com sequelas ou sadio, morto ou vivo, um Huguenot ele permaneceu.

Eles se cansaram da crueldade inútil, e ao pobre homem foi permitido mancar sobre muletas.

Como ele obteve finalmente sua liberdade, não sei dizer. Apenas sei que, após anos de prisão e tortura, um pobre aleijado, de rosto pálido, quase cinza, era visto vagando pelas ruas de Londres, fazendo perguntas vãs pelo paradeiro de sua esposa em seu inglês quebrado, tão pouco compreendido pela maioria.

Finalmente alguém o dirigiu para uma cafeteria, perto da Praça Soho, mantida por um emigrante, que prosperava sobre a arte, mesmo tão nacional, de fazer um bom café.

Ali era a estância dos Huguenotes. Os Huguenotes tinham boa inteligência para os negócios e transformavam em bons frutos na Inglaterra tão ocupada e comercial.

Nesta cafeteria, o pobre aleijado pediu ajuda, mas ninguém sabia sobre sua esposa. Ela podia estar viva ou morta. Era como se seu nome desaparecesse da face da Terra.

No canto, sentou-se um homem, ouvindo tudo, mas nada dizendo. Ele viera a Londres para entregar um estoque de mercadorias.

Os três portos dos emigrantes franceses eram Norwich, onde havia a fabricação dos xales de Norwich. Spitalfields, em Londres, onde desembarcavam as sedas, e Canterbury, onde uma colônia deles levava um ou dois empregos delicados, como joias, branqueamento de cera, e outras coisas.

Quando este homem que ouvia calado voltou da viagem a Londres, espalhou a notícia por toda Canterbury, e procurou entre os residentes franceses, uma mulher que pudesse corresponder à esposa desaparecida da tal aleijado.

Ela estava lá, ganhando seu sustento como moleira, e acreditando que seu marido era um escravo ou estava morto há muito tempo em alguma das terríveis prisões. Mas, ao ouvir a história do homem, ela partiu imediatamente para Londres, e encontrou seu pobre marido aleijado, que viveu muitos anos depois em Canterbury, apoiado pelos esforços de sua esposa.

Outro casal Huguenote estava determinado a emigrar.

Eles podiam se disfarçar, mas o que fazer sobre o bebê deles?

Se fossem vistos passando pelos portões da cidade em que viviam, carregando uma criança, seriam instantaneamente presos, suspeitos de serem Huguenotes como realmente eram.

Seu recurso era envolver o bebê em um feixe sem forma, em uma das extremidades do qual estava preso um cordão, e então, aproveitando a sarjeta profunda que corre no centro de tantas ruas antigas das cidades francesas, eles colocariam o bebê neste buraco, próximo a um dos portões, após o anoitecer.

O gendarme[110] saiu para abrir o portão para eles. Ao serem indagados, eles afirmaram o motivo da partida: uma convocação súbita para visitar um parente doente.

Eles eram conhecidos por terem um bebê, e todos sabiam que nenhuma mãe Huguenote deixaria para trás seus filhos, de bom grado, para serem educados por papistas.

Então, o guarda concluiu que eles não iam emigrar, pelo menos não desta vez, e trancando os portões da grande cidade atrás deles, voltou para seu posto.

— Agora rápido! Rápido! O cordão sob o portão! Pegue-o com seu bastão de gancho! Ali, na sombra! Ali! — sussurrou o homem para a esposa.

Ele pegou a criança e falou:

— Graças a Deus! O bebê está seguro! Ele nem chorou! Vamos rezar, mulher, para que Deus não deixe a corrente de ar muito forte!

Não foram muito fortes as rajadas de vento da noite sombria, e foi assim que pai, mãe e bebê fugiram para a Inglaterra, e seus descendentes podem estar lendo este meu relato agora.

A Inglaterra, a Holanda e os estados protestantes da Alemanha foram os locais de refúgio dos protestantes normandos e bretões.

Do sul da França, a fuga era mais difícil.

Os piratas argelinos infestavam o Mediterrâneo, e os pequenos navios em que muitos Huguenotes embarcavam dos portos do sul, foram presas fáceis.

Houve escravos Huguenotes em Argel e Trípoli durante anos após a revogação do Édito de Nantes.

A maioria da Espanha católica apanhou alguns dos fugitivos, que foram recebidos pela Inquisição Espanhola com um tipo de saudação diferente daquela que o sábio e observador William III da Inglaterra deu a tais fugitivos que procuraram abrigo inglês, após sua adesão.

Retornaremos à condição dos Huguenotes ingleses.

Primeiro, vamos seguir a sorte dos protestantes franceses que enviaram uma carta ao Estado de Massachusetts, entre cujos documentos históricos ainda existem, falando sobre as perseguições a que foram expostos, e do sofrimento que estavam passando, declarando o desejo de muitos deles em emigrar para a América, perguntando também, até onde teriam privilégios que permitissem seguir sua busca pela agricultura.

A resposta foi um terreno de cerca de onze mil acres em Oxford, perto da atual cidade de Worcester, Massachusetts, que foi concedido a trinta Huguenotes, que foram convidados a se estabelecerem lá.

O convite veio como uma súbita convocação para uma terra de esperança do outro lado do Atlântico. Não houve tempo para preparativos, porque isso poderia levantar suspeitas da fuga.

Sendo assim, eles deixaram suas panelas fervendo no fogo, e não carregaram nenhuma roupa com eles, a não ser as que vestiam.

Os nova-iorquinos escaparam da perseguição religiosa, sendo assim, eles não teriam motivos para não acolherem os pobres refugiados quando chegassem a Boston.

A pequena colônia francesa em Oxford estava estabelecida e Gabriel Bernon, descendente de um nome cavalheiresco em Froissart, que fora um comerciante protestante de Rochelle, foi nomeado agente funerário para o assentamento de refugiados.

Eles mandaram chamar um ministro protestante francês e lhe atribuíram um salário de quarenta libras por ano.

Eles se inclinaram assiduamente para a tarefa de cultivar as terras semicerradas nas fronteiras, das quais havia a floresta escura, e índios rondavam e espreitavam, prontos para saquear as casas desprotegidas.

Para se proteger deste inimigo mortal, os franceses construíram um forte, do qual ainda restam vestígios. Todavia, com o assassinato da família Johnson, os franceses não ousaram mais permanecer no local sangrento, embora mais de dez acres de terra estivessem em cultivo ao redor do forte, e, muito tempo depois, aqueles que contaram em vozes abafadas e assustadas, sobre o assassinato de Johnson, apontaram os arbustos de rosas, as macieiras e pereiras ainda em pé, nos jardins desertos dos franceses.

A Senhora Johnson era irmã de Andrew Sigourney, um dos primeiros Huguenotes que migraram. Ele salvou a vida de sua irmã, arrastando-a para uma porta dos fundos, enquanto os índios massacravam seus filhos e atiravam seu marido em seu próprio umbral. Preservar a vida dela era apenas uma gentileza cruel.

Gabriel Bernon viveu até a idade patriarcal, apesar de seus primeiros sofrimentos na França e dos gritos de vingança dos índios selvagens ao redor de sua casa em Massachusetts.

Ele morreu rico e próspero. Ele beijara a mão da Rainha Anne e se tornou íntimo de alguns da nobreza inglesa, como o Senhor Archdale, o governador quacre[111] da Carolina, que tinha terras nos Estados Unidos.

Os descendentes dos refugiados Huguenotes reembolsaram, em parte, sua dívida de gratidão a Massachusetts, de várias maneiras durante a Guerra da Independência.

De fato, três dos nove presidentes do antigo Congresso que conduziu os Estados Unidos através da guerra revolucionária, eram descendentes dos refugiados protestantes franceses.

O General Francis Marion, que lutou corajosamente sob Washington, era descendente de Huguenote.

Tanto na Inglaterra quanto na França, os refugiados Huguenotes se mostraram pessoas temperantes, industriosas, pensativas e inteligentes, cheias de bons princípios e de força de caráter. Mas tudo isso está implícito na única circunstância que eles sofreram e emigraram para garantir os direitos de consciência.

No Estado de Nova York, eles chamavam carinhosamente sua plantação ou assentamento pelo nome da cidade preciosa que fora seu reduto e onde sofreram tanto.

New Rochelle foi construída na costa de Long Island Sound, umas vinte e três milhas de Nova Iorque.

Nas tardes de sábado, os habitantes de New Rochelle aproveitavam seus cavalos para transportar as mulheres e os pequenos, e os homens, no auge da vida, caminhavam a distância até Nova Iorque, acampados em suas carroças nos arredores da cidade durante a noite, até que o sino os chamou no domingo de manhã para o culto na velha igreja de Saint Esprit. Da mesma forma, eles retornavam no domingo à noite.

O velho desejo da velha morada, gravado nos versos de Allan Cunningham[112].

A saudade de casa os deixava melancólicos.

Havia um velho, que ia todos os dias à beira-mar, para olhar e contemplar o vazio além do oceano, porque ele sabia que lá, do outro lado, havia a bela terra cruel, onde a maior parte de sua vida fora passada.

Com o rosto voltado para o leste, seus olhos tensos pela força ansiosa, ele via a longínqua França. Ele fez suas orações matinais e cantou um dos hinos de Clément Marot[113].

Havia uma edição dos Salmos de Davi, colocados em rima francesa, publicada na menor forma possível para que o livro pudesse ser escondido em seus bolsos, se os Huguenotes fossem surpresos em sua adoração, enquanto viviam na França.

New Oxford e New Rochelle foram os únicos assentamentos dos Huguenotes nos Estados Unidos. Mais ao sul novamente, eles foram bem-vindos e encontraram lugares de descanso na Virgínia e na Carolina do Sul.

Agora, volto aos Huguenotes na Inglaterra.

Mesmo durante o reinado de Jaime II, foram feitas coletas para os refugiados, e, no reinado de seu sucessor, quinze mil libras foram votadas pelo Parlamento para serem distribuídas entre pessoas de qualidade, e todas como idade avançada ou enfermidade, que eram incapazes de se sustentarem sozinhos.

Ainda existem alguns poucos sobreviventes das antigas ações Huguenotes, que vão, no quarto dia do mês, reivindicar seu pequeno benefício deste fundo no Tesouro Nacional, e, sem dúvida, na época em que fora concedido, havia muitos sem amigos e desamparados e, por certo, as pequenas pensões eram inestimáveis bênçãos.

Contudo, a maior parte dos Huguenotes eram homens ativos, fortes, cheios de ânimo e talento prático. Eles preferiram aproveitar a boa vontade nacional de uma maneira mais independente.

Seus descendentes são nomes honrados entre nós.

Senhor Samuel Romilly, Senhora Austin e Senhora Harriet Martineau, são três dos que mais se destacam diante de mim enquanto escrevo, no entanto, cada um desses nomes sugere outros nas mesmas famílias, dignos de nota.

Os antepassados do Senhor Samuel Romilly vieram do sul da França, onde a propriedade paterna fora deixada para um herdeiro distante e não para o filho, porque o primeiro era católico, enquanto o segundo preferira um país estrangeiro com liberdade para adorar seu Deus.

No relato do Senhor Samuel Romilly sobre seu pai e seu avô, é fácil detectar a predominância do caráter sulista. Mais afetuoso, impulsivo, generoso, levado pelos transportes da raiva e dor, terno e verdadeiro em todos os seus relacionamentos.

Tenho certeza que o leitor não esqueceria facilmente o pai do Senhor Samuel Romilly, com sua adoção carinhosa da ideia de Montaigne[114]:

“Tocando flauta ao lado da cama de sua filha, desejando acordá-la pela manhã.”

Não admira que ele fosse tão amado! Porém, se o que reuni de seus descendentes estiver correto, houve muito mais demonstração de afeto nestes lares franceses, do que nós, ingleses, jamais ousaríamos manifestar.

O francês era a língua ainda falada entre eles, sessenta e setenta anos depois que seus ancestrais deixaram a França.

Na família Romilly, o pai estabeleceu como regra, que o francês seria sempre falado aos domingos.

Quarenta anos depois, a senhora a quem, tantas vezes aludi, estava vivendo com uma criança órfã e com duas tias donzelas, no coração da cidade de Londres.

Elas sempre falavam francês, porque o inglês era para elas, a língua estrangeira, e certo orgulho era cultivado na mente da pequena donzela pelo fato dela ser lembrada, por vezes, que era uma menina francesa, obrigada a ser educada, gentil e atenciosa nos modos, a ficar de pé até que os mais velhos lhe dessem licença para sentar-se, e a reverenciar ao entrar ou sair de uma sala.

Ela frequentava o mercado perto de Spitalfields, onde, muitas ervas, não de uso geral na Inglaterra, eram habitualmente trazidas pelas mulheres do mercado para o uso do povo francês. Estas desconhecidas ervas estavam nas saladas, que eram o prato principal nas refeições dos franceses.

Existiam as escolas hereditárias no bairro, mantidas pelos descendentes dos primeiros refugiados que as estabeleceram, e para as quais, as famílias Huguenote enviavam seus filhos.

Uma espécie de correspondência era ocasionalmente mantida com as relações invisíveis e distantes na França.

Primos em terceiro ou quarto grau, amigos dos amigos e assim por diante. Como era de se esperar, tais correspondências definharam e morreram lentamente, contudo, os contos sobre o sofrimento e as fugas de seus antepassados, caminhavam pelas longas noites de inverno.

Embora distantes da França, ainda que lançadas por ela cem anos antes, as gentis senhoras idosas, que viveram toda sua vida em Londres, consideravam a França como seu país, e a Inglaterra, como uma terra estranha.

No andar de cima da casa, um grande baú, o baú que Madame Lefebvre fizera as malas em sua fuga. As coisas, que sua querida mãe providenciara para seu enxoval ainda estavam lá, embora ela dormira em sua cova, e dessas lembranças, sua pequena descendência órfã estava vestida, e, quando a criança encolhesse vestir um vestido tão peculiar, foi lhe perguntado:

— Você não é uma menina francesa? Você se orgulharia de usar uma estampa francesa, porque não há nenhuma igual na Inglaterra!

Provavelmente, estas senhoras idosas que pareciam estranhas para a criança, que registrou estas primeiras impressões, se agarravam com grande orgulho ao vestido que lembrava seus antepassados, e se adornavam com as ricas roupas grotescas que formavam parte do enxoval de sua mãe.

Em tudo isso, seus parentes e seu círculo parecem diferir dos amigos refugiados do velho Senhor Romilly, que, segundo nos disseram:

— Não desejavam nada menos que preservar a memória de sua origem e suas capelas eram, portanto, mal atendidas!

Uma sala grande, sem boca, com corredores estreitos e chão sujo, com bancos irregulares não pintados e paredes poeirentas não rebocadas, uma congregação constituída principalmente por algumas velhas mulheres de aparência estranha, espalhadas aqui e ali.

De qualquer forma, certamente havia uma pequena colônia no coração da cidade, no final do século passado, que se orgulhava da descendência de Huguenotes sofredores, que reuniam relíquias dos antigos lares e dos velhos tempos na Normandia ou em Languedoc.

Uma espada empunhada por algum bisavô nas guerras, um apito de ouro, que vivia pendurado na cintura de algum professor, antes que os sinos fossem conhecidos para convocar operários. Alguns apitos eram ornamentos vendidos na famosa loja de curiosidade em Warwick, para as senhoras pendurem em seus pescoços. E havia Bíblias preciosas, fixadas por fivelas e cantos prateados, colheres de prata, forjadas de maneira peculiar, malas de viagem, contendo faca, garfo e colher de ouro, e uma taça de cristal, na qual o escudo de armas estava gravado em ouro. Estas e muitas outras relíquias, falavam da riqueza e refinamento que os refugiados deixaram para trás, devido a sua religião.

Há ainda um asilo para idosos de ascendência francesa em algum lugar perto da cidade, que é apoiado pelos rendimentos da terra legada, creio, por alguns dos primeiros refugiados, que foram prósperos no comércio, depois de se estabelecerem na Inglaterra, mas que perdeu muito de seu caráter nacional distintivo.

Há cinquenta ou sessenta anos, um visitante ouviria as pessoas deste asilo tagarelando em francês antiquado. Agora, eles falavam inglês, uma vez que a maioria de seus antepassados, em quatro gerações, fora ingleses, e provavelmente alguns deles não sabiam uma palavra de francês.

Cada paciente tinha um quarto confortável, uma pequena anuidade para roupas, sentavam-se e faziam refeições em uma sala de jantar.

Como uma pequena e divertida marca de deferência à terra de seus fundadores, posso mencionar que a Senhora Stephens, que foi admitida nos últimos trinta anos, tornou-se Madame Etienne, assim que ela entrou no asilo.

Contei tudo o que sei sobre os Huguenotes. Passo a responsabilidade para outra pessoa, você, provavelmente.


O Castelo de Crowley

O Senhor Mark Crowley foi o último barão de seu nome, e já faz quase um século que ele morreu.

No ano passado, visitei as ruínas de seu grande e antigo castelo normando, e caminhei até a aldeia próxima, onde ouvi alguns detalhes da história sobre os velhos habitantes.

Saímos do banho de mar em Sussex, para ver as enormes ruínas do Castelo de Crowley, que era um passeio espetacular para Merton. Tivemos qu nos acender um portão e caminhar dentro de propriedades, porque a estrada mais à frente era muito ruim para a carruagem ou para o pobre e cansado cavalo de Merton.

Assim, caminhamos cerca de um quarto de milha por um terreno desnivelado, que fora um jardim italiano, e então, chegamos a uma ponte sobre um fosso seco, passando por cima da ranhura de uma ponte levadiça, que e a entrada maciça estava fechada em um espaço vazio cercado por paredes grossas, drapeado com hera, sem telhado e aberto para o céu.

Podíamos julgar o belo traço das janelas, pelos restos da cantaria ali e acolá, e um velho estava ali, muito velho realmente, sorrindo fraco quando perguntamos sua idade exata.

Ele se mexeu, e tropeçando na parte menos devastada das ruínas em nossa aproximação, se apresentou como nosso guia, e nos mostrou um pedaço de vidro, ainda persistente, no que era a janela da grande sala de desenho, não acima de setenta anos atrás.

Depois de cumprir seu dever, ele foi conosco até a igreja vizinha, e atrás dela, estavam enterrados os cavalheiros de Crowley. Alguns exaltados por latões antigos ou túmulos que tinham a aparência de altar, outros, por finos epitáfios latinos, conferindo-lhes toda virtude sob o sol.

O velho teve que levar a chave da igreja de volta ao presbitério adjacente, na entrada da longa trilha que formava a aldeia de Crowley.

O castelo e a igreja estavam no cume de uma colina, de onde se podia ver a linha distante do mar, além dos pântanos nebulosos, e o presbitério descia pela colina.

O aspecto do lugar não mudara muito em relação ao seu aspecto no ano de 1772.

Entretanto, devo começar um pouco mais cedo.

De um dos epitáfios latinos, soube que a Senhora Amelia Crowley morreu em 1756, deixando seu amoroso marido, o Senhor Mark.

Ele nunca mais se casou, embora sua esposa não deixasse um herdeiro homem para cuidar de seu nome e bens, porém, apenas uma pequena menina, Theresa Crowley.

A criança herdaria a fortuna de sua mãe, e tudo o que Senhor Mark quisesse repartir, mas o castelo e todas as terras foram para o filho de sua irmã, chamado Marmaduke, ou como ele era normalmente intitulado: Duke Brownlow.

Os pais de Duke estavam mortos, e o tio era seu guardião, sendo assim, a casa do seu guardião era a sua casa.

O rapaz era uns sete ou oito anos mais velho que sua prima, e provavelmente o Senhor Mark não achou improvável que sua filha e seu herdeiro fossem um par.

A mãe de Theresa era de sangue estrangeiro, e fora criada na França, não tão longe, mas que suas margens eram vistas por qualquer um que escolhesse fazer um dia de viagem perto do Castelo de Crowley com esse propósito.

A Senhora Crowley era uma criatura delicada e elegante, porém, sem grande beleza, e, a julgar por todos os relatos, a família de Senhor Mark era muito famosa por sua boa aparência.

Theresa era uma criança excepcionalmente sortuda, e herdou as graças da fisionomia do pai.

Um retrato que vi dela, degradado, em uma prateleira sobre a chaminé na sala da pousada naquela vilarejo, me mostrou cabelos pretos, olhos brandos, porém, cinzentos, com sobrancelhas e pestanas da mesma tonalidade dos cabelos, uma boca cheia de amuos apaixonados e um pescoço redondo e esbelto.

Ela era uma criaturinha prestativa, e a indulgência de seu pai a tornava ainda mais. Theresa tinha uma senhora que a ajudava em tudo, também francesa, cuja mãe cuidara da Theresa desde sua juventude, que a seguiu até a Inglaterra, e que morrera lá.

Victorine esteve presente na vida da jovem Theresa desde sua infância, e quase tomou o lugar de um pai no poder e afeto, ensinando a organização e a obediência e amor também.

Naqueles dias, o ano fora negro em razão da varíola que estava disseminada em Crowley, e quando, estando o Senhor Mark longe em alguma missão diplomática em Viena, ou arredores, Victorine se calou com a Senhorita Theresa quando a criança adoeceu devido à enfermidade, e cuidou dela noite e dia. Ela só sucumbiu à terrível doença quando todo o perigo para a criança terminara.

Theresa saiu da doença com uma beleza imaculada, porém, Victorine mal escapou com a vida, e ficou desfigurada para sempre.

Esta desfiguração pôs um fim aos muitos escândalos infundados, que estiveram à tona sobre a grande influência da serva francesa sobre o Senhor Mark.

Ele era, de fato, um homem indolente, raramente estimulado por qualquer veemência de emoção, e que sentia, como um ponto de honra, realizar o desejo de sua falecida esposa. Este desejo era que Victorine nunca deixasse Theresa, e que a educação da criança fosse a missão da criada.

Somente uma vez houve uma briga pelo poder da educação de Theresa entre o Senhor Mark e Victorine, e então, ela conquistara a vitória.

Não é de se admirar que o velho mordomo fosse verdadeiro em suas palavras, uma vez que, ele entrara na sala de surpresa, e encontrara o Senhor Mark e Victorine falando em voz alta, e assegurou que a Victorine estava branca de raiva, com seus olhos brilhando como fogo apaixonado e sua voz, que era sempre baixa e de poucas palavras, estava passando dos limites e seu tom era alto, pesado e autoritário, porém, embora ela falasse em francês, e ele, o mordomo, só conhecia seu inglês natal, juraria de pés juntos na frente de um granadeiro[115] bêbado com uma espada na mão, do que ouvir novamente aquelas palavras de Victorine dirigidas ao Senhor Mark.

A escolha dos professores de Theresa fora deixada a cargo de Victorine. Ocasionalmente, era feita uma pequena referência à Senhora Hawtrey, esposa do pastor e parente distante de Senhor Mark, mas, vendo que, se a Victorine assim o escolhesse, a filha da Senhora Hawtrey, chamada Bessy, seria privada de estudar ao lado de Theresa. Então, todos eram cuidadosos em não se opor aos desejos de Victorine e assim, virar inimigos dela.

Bessy era uma criança calma e gentil, cresceu e se tornou uma menina sensata, às vezes, um pouco temperamental, com uma parte muito delicada da beleza e aparência inglesa, de rosto redondo, olhos castanhos, por vezes, rígidos, o mais diferente possível da forma graciosa de Theresa.

Duke era um homem jovem para estas duas donzelas, enquanto para ele, elas eram pouco mais que crianças. É claro que ele admirava mais sua prima Theresa, quem não admiraria?

Porém, ele estava estabelecendo seus princípios de moralidade, e a conduta de Theresa em relação à Bessy, às vezes, se voltava contra seus ideais corretos.

Um dia, depois que Theresa tiranizara a autocontida e paciente Bessy, a fazendo chorar até a última lágrima, e tanto a quantidade da tirania, quanto o choro, eram circunstâncias incomuns entre ambas, já que Theresa era de natureza generosa quando não era colocada contra suas vontades, Duke falou com sua prima:

— Theresa! Você não tinha o direito de culpar Bessy como você fez! A culpa foi tanto sua quanto dela. Você está tão obrigada a lembrar das instruções do Senhor Dawson sobre as somas que deve fazer, quanto Bessy!

A garota abriu seus grandes olhos cinzentos de surpresa, assistindo Bessy sair correndo da sala.

— Ela é a culpada! Por que Bessy vem ao castelo, me pergunto! Seus pais não pagam nada, porque pagamos tudo! O mínimo que ela pode fazer é lembrar o que nos é dito, quando não lembro. Não me incomodarei em atender às instruções do Senhor Dawson sozinha, não preciso dela! Se Bessy não gosta de estudar, ela pode ficar longe do castelo. Ela já sabe o suficiente para ganhar seu pão, porque será uma empregada. O que suponho que seja o que ela terá que fazer em breve!

No momento em que Theresa pronunciou isto, ela morderia a língua se percebesse que a mesquinhez e rancor de seu discurso se tornou um desapontamento claramente expresso no rosto de Duke, e, em outro momento, seus impulsos a levariam ao extremo oposto, mas Duke pensou ser seu dever reprimir e falar um discurso que, por mais verdadeiro e justo que fossem as suas palavras, enfraqueceria o efeito do olhar de angústia em seu rosto.

A astúcia dela foi chamada para refutar seus argumentos. A cabeça de Theresa, em vez do coração, tomou o papel proeminente na controvérsia, que terminou insatisfatoriamente para ambos.

Duke foi embora com prognósticos sombrios, apesar de não ditos, pensando o que ela se tornaria como mulher se ela continuasse arrogante e insensível como aparentava ser naquele momento.

As costas dela foram viradas, atirando-se no chão e soluçando como se o coração se partisse. Victorine ouviu os soluços apaixonados de sua querida e entrou.

— O que tens tu, meu anjo? Quem te irritou? Oh! Pobre criatura! Diga-me, querida!

Ela tentou acalmar a menina, todavia, Theresa não quis ser tocada, nem ela falaria até escolher o que devia falar, apesar das súplicas da Victorine.

Quando ela escolheu abrir a boca, ergueu o corpo e ficou sentada no chão, colocando seus cabelos emaranhados de seu rosto corado de lágrimas atrás das orelhas e disse:

— Não importa! Foi apenas algo que Duke disse e não me importo com isso agora! — afirmou, recusando a ajuda da Victorine, para se levantar.

A jovem levanto e olhou pela janela com cuidado.

— Aquele Duke! — exclamou a Victorine. — Quem pensa que é o Senhor Duke para irritar minha querida? Ele ainda não é seu marido para ter o direito de repreendê-la. Não se importe com o que ele diz.

Theresa ouviu e ganhou uma nova ideia, mas fingiu não dar atenção ao que Victorine falara, entretanto, dentro de seu coração, ela estava animada com as palavras da mulher, que mencionara, pela primeira vez, que ela seria a esposa de seu primo.

Ela não respondeu às carícias e discursos da Victorine, e quase expulsou a mulher da sala onde estavam.

Assim que foi deixada sozinha, ela pegou seu chapéu e saiu sozinha, como não fazia, porque sempre levava Victorine com ela. E, com um sorriso de prazer, ela desceu os degraus, atravessando o longo corredor e abrindo um pequeno portão que levava ao jardim do presbitério.

Lá, estavam Bessy e sua mãe, colhendo frutas. Foi Bessy quem Theresa procurou, uma vez que havia algo no jeito sedoso da Senhora Hawtrey que era bastante repugnante para Theresa. No entanto, ela não ia encolher de sua decisão em falar com Bessy apenas porque a Senhora Hawtrey estava lá. Então, ela foi até a assombrada Bessy e lhe disse, como se recitasse um discurso preparado:

— Bessy! Comportei-me de maneira muito contrária a você! Não devia falar com você como falei! Perdoe-me!

Este foi o fim pré-determinado da confissão, porque o resto que queria falar, ela não podia dizer com a Senhora Hawtrey pronta para sorrir e reverenciar, assim que pudesse chamar a atenção de Theresa.

Não havia necessidade de pedir perdão, já que Bessy baixara sua cesta e fora suavemente até Theresa, pegando com sua mãozinha marrom manchada de terra, a branca e macia da jovem Theresa, e olhando para ela com amorosos olhos marrons:

— Lamento muito, mas penso que foram as somas da página 108. Estive olhando e tenho quase certeza!

O som da voz de Bessy pegou o ouvido de sua mãe, embora suas palavras não.

— Tenho certeza, Senhorita Theresa, que Bessy é muito grata pelos privilégios de aprender com você! É uma grande vantagem para ela! Muitas vezes, digo para Bessy que deve se espelhar em você, porque não há uma filha de um pastor em toda Sussex para se comparar com você! Não é verdade, Bessy?

Theresa encolheu os ombros, voltando-se para Bessy, perguntou-lhe o que ela ia fazer com aquelas groselhas que ela estava recolhendo. E, enquanto falava, Theresa pegou algumas frutas da cesta e as comeu.

— Elas são para um pudim! — garantiu Bessy. — Assim que tivermos colhido o suficiente, vou cozinhar o pudim.

— Irei ajudá-la! — exclamou Theresa, avidamente. — Eu gostaria muito de fazer um pudim! Nosso cozinheiro Antoine nunca faz pudins de groselha!

O Duke passou pelo presbitério, aproximadamente uma hora depois, olhando por acaso através das janelas abertas do porão da cozinha, e viu Theresa presa em um avental, com os braços sobre a farinha, rindo e conversando com Bessy, igualmente vestida com seu avental.

Duke passara sua manhã ostensivamente na pesca, mas, realmente pensando o que podia fazer ou dizer para amaciar o coração obstinado de sua prima. E, ali estava, tudo inexplicavelmente certo, como se fosse solucionado pela varinha de condão de algum encantador!

A única conclusão a que o Duke chegou foi a mesma que muitos homens sábios ou tolos:

“Bem... As mulheres não podem ser compreendidas!”

Quando tudo isso aconteceu, Theresa tinha uns quinze anos, Bessy era talvez seis meses mais velha, e Duke estava apenas saindo de Oxford.

Seu tio, o Senhor Mark, gostava muito dele e orgulhoso também por suas qualidades, uma vez que o rapaz se distinguira na faculdade e todos falavam bem dele.

Duke, por sua vez, amava o Senhor Mark, e, imaculado pela fama e reputação que conquistara na Igreja, alcançou respeitosa consideração às opiniões do Senhor Mark.

À medida que Theresa crescia, seu pai pensava que ele jogava bem suas cartas ao cantar os elogios do Duke em todas as ocasiões possíveis, porém, ela abaixou a cabeça e não disse nada. Graças às revelações de Victorine, ela compreendeu a disposição dos discursos de seu pai, mas Theresa pretendia fazer sua própria escolha de marido quando chegasse a hora, e poderia ser Duke realmente, ou outra pessoa qualquer.

Contudo, ela decidiu que se casaria com ele, e com mais ninguém, após observar seu modo de ficar em silêncio quando todos os homens a sua volta tagarelava. Mas, quando ele falava algumas coisas que ela desprezava e ele agia como um tolo, tropeçando em seus próprios pés, ela tinha certeza de que Duke nunca seria seu marido.

Ela se perguntava se ele sabia das pretensões de seu pai e se alguém lhe dissera, como Victorine lhe falou, que seu pai revelara seus pensamentos e desejos ao seu sobrinho, tão claramente como ele fizera para a sua filha.

Isso fez queimar as bochechas dela, e, em dias em que a suspeita fora colocada em sua mente, ela ficara especialmente rude e desagradável com o rapaz.

Ele viajaria ao exterior em um grande passeio pela Europa, à qual os jovens de fortuna geralmente dedicavam três anos de suas vidas. Duke teria um tutor, porque todos os jovens de sua categoria tinham tutores, caso contrário, ele era sábio e firme o suficiente, para viajar sem um, e provavelmente, sabia muito mais sobre o que era melhor a ser observado nos países que iriam visitar que o Senhor Roberts, seu guia nomeado.

Duke voltaria cheio de conhecimento histórico e político, falando francês e italiano como um nativo, e sabendo um pouco de alemão. Existiam aspirações que ele fosse introduzido na política como membro do condado, se possível, ou membro do município, no pior dos casos. Sendo assim, Duke teria uma carreira de grande sucesso, portanto, ele deveria se casar com sua prima Theresa.

O rapaz falou com o pai dela sobre isso, antes de começar sua viagem, depois do jantar no Castelo de Crowley.

O Senhor Mark e Duke sentaram-se sozinhos, cada um pensava na despedida que viria.

— Theresa é muito jovem! — disse Duke, entrando no discurso após um longo silêncio. — Se você, meu tio, não tem objeção, eu gostaria de falar com ela, antes de deixar a Inglaterra, sobre minhas esperanças!

Senhor Mark brincou com seu copo, pegou mais um pouco de vinho, o bebeu em um gole e depois respondeu:

— Não! Duke, não! Deixe-a em paz comigo! Tenho ansiado por tê-la como minha filha solteira por mais estes três anos e eles passarão tão rapidamente. A idade passa, mas a juventude fica. Ela não perderá sua beleza, tenho certeza! Eu gostaria de tê-la em paz até que você volte. Não, Duke! Três anos mais, e então, teremos um casamento real.

Duke suspirou, mas não disse nada. O dia seguinte foi o último. Ele queria que Theresa fosse com ele para se despedir dos Hawtreys no presbitério, e dos aldeões, mas ela não quis o acompanhar.

Ele se lembrou, anos depois, de como o jeito gentil e pacífico de Bessy o golpeara, em contraste com o de Theresa, naquele último dia.

Ambas as meninas lamentaram sua partida. Ele fora tão gentil e pensativo em seu comportamento para com Bessy, que, sem nenhuma ideia de amor, ela sentiu sua nobreza cavalheiresca. Duke era a única pessoa, exceto seu pai, que fora gentil com ela.

Bessy admirava seus sentimentos, estimava seus princípios, considerava a longa evolução de suas ideias como a mais verdadeira eloquência.

Duke emprestara seus livros para Bessy, e todos os conselhos e informações que Theresa rejeitava, caíram nos braços de Bessy, e ela os recebera com gratidão.

Theresa explodiu em um ardor de lágrimas, assim que Duke e sua comitiva se perderam de vista. Ela recusara o beijo de despedida em Duke, mas acenou com seu lenço branco para fora da grande janela da sala de visitas, aquela mesma janela em que o velho guia me mostrou o pequeno pedaço de vidro ainda persistente. Porém, Duke se afastara com rédea solta e cabeça abatida, sem olhar para trás.

A ausência de Duke foi um grande vazio na vida do Senhor Mark, ele não se atrevia a ir para Londres, nem desejava firmar residência lá, porque em dias anteriores, ele fora suspeito de favorecer os Stuarts, mas nada fora provado contra ele, assim, o Senhor Mark se tornara um súdito toleravelmente fiel ao Rei Jorge III.

Ainda assim, ele era um ombro frio no partido da corte em uma ocasião infeliz, e virou as costas à capital inglesa, e as predileções de sua esposa e suas próprias tendências sempre fizeram de Paris um lugar de residência muito agradável para ele.

Para Paris ele recorreu novamente, quando o vazio em sua vida o oprimiu, e cerca de dois anos após a partida de Duke, ele voltou de Paris após sua ausência, e de repente anunciou à sua filha e aos criados que ele tomara um apartamento na Rua Louis Le Grand para o próximo inverno. E, que imediatamente sua filha Theresa e Victorine se mudariam para lá, e com elas, alguns outros criados.

Nada poderia superar a alegria alucinada de Theresa com esta notícia inesperada. Ela saltou sobre o pescoço de seu pai, e o beijou até ficar cansada. Theresa correu até Victorine, e disse a ela para imaginar a felicidade celestial que aconteceria com eles, dançando ao redor da mulher de meia-idade.

Na impaciência mimada de Theresa, Victorine estava ficando furiosa, e beijando-a, Theresa correu para o presbitério, e dali para a igreja, que estava entrando em oração pela manhã, pois, era o Dia de Todos os Santos, embora ela se esquecera. Theresa pegou um pedaço de papel e escrevera apressadamente:

“Vamos a Paris no inverno, todos nós!”

Theresa enrolou em uma bola o papel, e foi em direção a Bessy, que com o rosto avermelhado, pegou o papel e o coloco em seu bolso sem ler e, após um olhar apologético para o assento cortinado no qual Theresa estava, continuou quieta.

Theresa saiu pela porta em um momento de paixão.

“Estúpida criatura de sangue-frio! Invejosa! Por certo, queria estar em meu lugar!” pensou Theresa.

Mas naquela tarde, Bessy foi ao castelo, tão arrependida, escondendo sua tristeza e tentando sorrir para compartilhar a alegria de sua amiga. Theresa a abraçou e a perdoou.

As meninas se separaram com promessas de trocarem correspondências, e a tristeza pairou sobre o olhar de Bessy.

Algumas promessas foram sobre a moda parisiense, presentes como vestidos, que Theresa fez à sua maneira paternalista, mas Bessy parecia não se importar muito com isso, o que foi uma sorte, pois, essas promessas nunca foram cumpridas.

O Senhor Mark teve uma ideia de aperfeiçoar as realizações e maneiras de Theresa, aproveitando os professores e a sociedade parisiense.

Seu medo vinha depois de algumas cartas que os ingleses residentes em Veneza, Florença e Roma, escreveram sobre Duke. Eles falaram dele como do que devemos, nos dias de hoje, chamar de um jovem em ascensão. Seus elogios eram tão altos, que o Senhor Mark começou a temer que seu belo sobrinho, saudado por príncipes, cortejado por embaixadores e feito amor com lindas senhoras italianas, pudesse encontrar Theresa em sua maneira rude do campo e desistir do casamento.

Assim, surgiu o desejo de mudança para o esplêndido apartamento na Rua Louis Le Grand.

A rua era estreita, o que hoje pensamos ser uma dificuldade, porém, naquela época era o auge da moda, uma vez que o grande árbitro da moda, o Duc de Richelieu, vivia lá, e, habitar um apartamento naquela rua, era um sinal de estilo e elegância.

Victorine parecia quase louca de prazer quando tomou posse de sua nova morada.

— Minha querida Paris! Adorável França! Agora vejo minha jovem senhora, minha querida, meu anjo, em um quarto adequado à sua beleza e à sua categoria! Como sua mãe teria planejado para ela, se ela fosse viva!

Qualquer alusão à sua falecida mãe sempre tocava Theresa rapidamente. Ela estava em sua cama, sob as cortinas azuis de seda do quarto, quando Victorine disse isto e, estando cansada demais após sua viagem para responder às rapsódias da Victorine, ela colocou sua mão e deu à Victorine um aperto de gratidão.

No dia seguinte, ela perambulou pelos quartos e admirava o esplendor deles.

Seu pai, o Senhor Mark, encontrou uma bela carruagem e cavalos para as necessidades de Theresa e também descobriu que era necessário, uma senhora casada, de bom caráter, ajudar a afirmar seus modos e assim, refinar sua elegância.

Quando estes arranjos preliminares foram feitos, Theresa quase explodiu de felicidade!

Sua carruagem era da mais nova moda, apta a competir com qualquer uma, no Cours de La Reine.

O camarote na Grand Opêra, que ela dividiu com a Senhora La Duchesse de G., era o centro de observação.

Victorine estava com seu melhor humor, o crédito de Theresa na costureira era ilimitado, seu pai indulgente estava encantado com tudo o que ela fazia e dizia.

Ela tinha professores, é verdade, entretanto, para uma jovem senhorita rica e bonita, os professores eram maravilhosamente complacentes, e com eles, como com todo o mundo, ela fazia o que lhe agradava.

Da sociedade parisiense, ela tinha o suficiente e mais que o suficiente.

A Duquesa foi a todos os lugares, e Theresa também foi. O mesmo fez o Conde de La Grange, um homem que tinha uma relação ou conexão com a Duquesa.

O Conde era bonito, e, como uma bela mulher do sul da França, ele tinha traços delicados, manchados por um excesso de expressão, da qual, assim diziam os homens, o tigre era visto ocasionalmente a espreitar. Mas, por elegância de vestimenta e comportamento, ele parecia ser sozinho.

Senhor Mark ouviu rumores sobre a conduta deste homem, que não eram agradáveis para ele, contudo, se tranquilizou quando o rapaz acompanhou sua filha à sociedade, e se mostrou tão ameno, se tornando um cavalheiro de beleza e graça para a sua filha.

Quando Theresa foi levada pela Duquesa à ópera, sem seu pai, então o Conde foi mais que bem-educado, ele foi encantador.

Era um pouco intoxicante para uma menina criada na solidão de uma aldeia inglesa, ter tantos adoradores aos seus pés de uma só vez, na grande cidade alegre. E, seu desejo em ser admirada, que estava presa em sua natureza, saía, acrescentando a sua graça exterior, largando a pureza e dignidade de seu caráter.

Foi um prazer para Victorine ajudar Theresa a colocar seu vestido para passear ao lado da Duquesa.

A mulher ajudou a garota a pentear seus cabelos delicadamente, colocar pó perfumado, desenhar meia-lua sobre as pálpebras para alongar os olhos já em forma de amêndoas, e pousar um pouco de cor em seus lábios escarlates.

Victorine admirava a garota, agora uma moça ainda mais bela, com a musselina prateada enrolada sobre o saiote de tecido azul, distendida sobre uma argola, com os ornamentos de seu vestido prateado, combinando com a tonalidade dos saltos altos.

Quando a noite chegou, Victorine não se cansava de ouvir e questionar sobre os triunfos de Theresa, de lembrar constantemente que a bela jovem era obrigada a se casar com o primo ausente, e retornar ao estado quase feudal do velho castelo em Sussex.

Mesmo se Duke voltasse da Itália, tudo correria bem, mas quando o Senhor Mark, alarmado com as várias propostas que recebeu para a mão de Theresa, de fidalgos franceses necessitados de esposas, e pela admiração e entusiasmo que ela criava em todos os lugares, ele escreveu a Duke, e o exortou a juntar-se a eles em Paris, em seu retorno de suas viagens.

O Senhor Mark leu esta carta em voz alta para Theresa, com muitas expressões de aborrecimento, porque Duke respondeu que três meses ainda faltavam do tempo destinado à grande viagem, e que ele estava ansioso para aproveitar aquele intervalo para visitar a Espanha.

Theresa simplesmente disse:

— Claro! Duke faz o que gosta!

E ela se afastou para ver algumas rendas novas trazidas para sua inspeção. Ela ouviu seu pai suspirar por uma repreensão sobre a carta de Duke e ela rangeu os dentes na raiva que ela não mostraria em atos ou palavras.

Naquele dia, o Conde de La Grange recebeu dela um tratamento mais gentil do que ele recebera durante muitos dias.

Por má sorte, o Senhor Mark teve que voltar à Inglaterra naquele momento, e ele mesmo, sem artifícios, entregou Theresa e sua empregada Victorine ao Senhor Felix e aos cuidados da Duquesa por três semanas.

Elas ficariam no Hotel de G. durante este período e a Duquesa deu-lhes as boas-vindas de maneira carinhosa e mostrou para Theresa o conjunto de quartos, com a pequena escadaria privada, apropriadas ao seu uso.

O Conde de La Grange era um visitante habitual na casa de sua prima, a Duquesa, que era uma alegre parisiense.

E assim, o Conde encontrou meios de influenciar Victorine ao seu favor, não por dinheiro, porque um suborno grosseiro não teria poder sobre ela, contudo, por muitos presentes, acompanhados de cartas sentimentais, respirando devoção ao seu favor, e o mais extremo apreço pela fiel amiga que Theresa tinha como mãe, e por esta razão ele, o Conde, reverenciava e amava.

Misturados com isso, foram astutamente as alusões aos seus grandes bens na Provença, e a sua antiga linhagem. Em nenhum momento ele mencionara que da sua linhagem, um, era hipotecado, e o outro, desonrado.

Victorine, cuja mão direita esquecera sua astúcia no cumprimento de seus deveres de maneira sombria no Castelo de Crowley, foi enganada, e se tornou uma veemente defensora do dissoluto Adonis[116] dos salões de Paris.

Quando o Senhor Mark voltou, ele ficou consternado e chocado, encontrando o Conde e Theresa aos seus pés, suplicando-lhe que perdoasse seu casamento, um casamento que, embora incompleto quanto as formas legais, estava completo demais para ser cancelado diante dos amigos mais próximos de Theresa.

A Duquesa acusou seu primo de perfídia e o Senhor Mark não disse nada, porém, sua saúde falhou a partir daquela época, e ele envelheceu em seus cabelos grisalhos.

Houve algum barulho, não sei o quê, entre o Senhor Mark e a contagem no que diz respeito ao controle e disposição da fortuna que Theresa herdou de sua mãe.

O Conde obteve a vitória, devido à natureza diferente das leis francesas em relação às inglesas, e isto fez o Senhor Mark abjurar o país e a cidade que ele amava há tanto tempo.

Daí em diante, ele jurou, que seu pé nunca tocaria o solo francês e se Theresa gostasse dele e quisesse vê-lo, devia ir ao Castelo Crowley. Ela seria bem-vinda como filha que era, mas seu marido não entraria nos portões do castelo enquanto o Senhor Mark vivesse.

Durante alguns meses, ele não quis conversar com Duke, pelo seu retorno tardio de sua viagem e de sua demora em se juntar a eles em Paris, por isso, o casamento de Theresa com o Conde fora realizado.

Porém, quando Duke voltou para casa, deprimido de espírito e submisso ao seu tio, mesmo sob uma culpa injusta, o Senhor Mark o perdoou no decorrer de um dia de verão, e doravante acrescentou outra dívida moral contra o Conde.

Duke não contou ao seu tio a lamentável má notícia que ouvira sobre o Conde, em Paris, onde encontrara a melhor parte da nobreza francesa sentindo pena da adorável herdeira inglesa que fora envolvida em um casamento com um dos mais desonestos de sua ordem, um jogador leviano.

Ele não podia deixar Paris sem ver Theresa, que ele acreditava ainda não estar familiarizada com sua chegada à cidade, então, ele foi visitá-la em uma noite.

Ela estava sentada, sozinha, esplendidamente vestida e bela. Theresa deu um passo à frente para cumprimentá-lo, mal acatando o anúncio de seu nome, pois, ela percebera o rastro de um homem e imaginava que fosse seu marido, vindo acompanhá-la a alguma grande recepção.

Duke viu a rápida mudança da esperança para a decepção em seu rosto, e ela falou imediatamente sua razão.

— Adolphe prometeu vir e me buscar! Eu dificilmente esperava uma visita sua, primo Duke! — falou, recuperando-se em uma reserva bastante orgulhosa. — Passou uma quinzena, penso, desde que soube que você chegou a Paris. Desisti de toda a expectativa da honra de uma visita sua.

Duke sentiu que, como ela ouvira falar de sua presença na cidade, seria estranho apresentar desculpas que tanto ela quanto ele, deviam saber que eram falsas, ou explicações, cuja própria verdade seria ofensiva para a esposa amorosa, confiante e enganada.

Assim, ele virou a conversa para suas viagens, seu coração ardia por Theresa o tempo todo, ao notar sua atenção errante quando ela ouvia qualquer som passageiro.

Dez, onze, doze horas... Ele não a abandonou. Ele achou que sua presença era um conforto e um prazer para ela naquela esperança de avistar seu marido, mas quando uma hora bateu, ela disse que alguns negócios inesperados prenderam seu marido, e ela ficou feliz com isso, pois, sempre se sentira cansada demais para sair, e, além disso, a consequência feliz da demora de seu marido, fora aquela longa conversa com Duke.

Ele não a viu novamente após a despedida educada, nem viu seu marido de maneira alguma. Seja por mero acaso, ou com um propósito cuidadosamente disfarçado.

Duke escreveu várias cartas pedindo um encontro, com a certeza de encontrar o Conde e a Condessa em casa, a fim de desejar-lhes adeus antes de partir para a Inglaterra.

Tudo em vão.

Entretanto, ele não disse nada ao Senhor Mark sobre tudo isso. Ele só tentou preencher o vazio na vida do velho pai, e ficou entre o Senhor Mark e os caseiros, aos quais, o velho não estava disposto a se mostrar desacompanhado sem a bela filha, que tantas vezes fora sua companheira em suas caminhadas e passeios, antes daquele inverno de mau presságio em Paris.

Ele estava grato por devolver a longa bondade que seu tio lhe mostrara na infância, por ser útil em sua deserção, e expiar, em alguma medida, sua negligência no desejo de seu tio em voltar para Paris.

Depois da longa excitação da viagem, e associar tudo o que era mais cultivado e ver tudo o que era mais famoso na Europa, ficar calado naquele magnífico e monótono castelo velho, com o Senhor Mark, era tudo que Duke precisava.

O presbitério estava próximo e, ocasionalmente, o Senhor Hawtrey vinha visitar seu o Senhor Mark em seus problemas, contudo, o pai sofrido manteve o clérigo à distância, mesmo sabendo que era seu irmão em idade e em circunstâncias, pois, o Senhor Hawtrey tinha um filho único e era uma menina.

Mesmo sendo afastado, o Senhor Hawtrey estava apoiando ele em sua tristeza, entretanto, o velho Mark estava orgulhoso demais para suportar isso, de fato, e, às vezes, ele era tão rude com seu velho vizinho, que Duke ia ao presbitério na manhã seguinte, para acalmar os ânimos.

E assim, gradual e imperceptivelmente, seu coração foi atraído para Bessy.

Sua mãe se inclinava e angulava habilmente. A princípio, quase não ousava ter esperança, depois, lembrando-se de sua descendência da mesma linhagem que Duke, ela planejava e começava a trabalhar com habilidade e vigor.

Era um perigoso jogo, uma vez que a felicidade de sua filha estava na mesa.

Como a simples Bessy, criada no campo, atrairia o homem viajado, realizado, bom e gentil, que ela via todos os dias, e que a tratava com a gentil familiaridade de um irmão?

Bessy era uma donzela inglesa, pura e de bom coração, com pensamentos sensatos, e prudência em todos os seus hábitos diários, não desejando conhecimentos e experiências exageradas, mas, apenas o bastante para entender o porquê das coisas, acrescentando a isso, sua bela figura: uma tez brilhante e saudável, dentes adoráveis e bastante beleza em suas outras características.

Após estar secretamente apaixonada por Duke com todo o seu coração por quase um ano, o adorando como um santo no altar, ele descobriu que, de todas as mulheres que ele já conhecera, exceto, talvez, a perdida Theresa, Bessy Hawtrey faria dele, o mais feliz dos homens.

O Senhor Mark resmungou um pouco, porém, ele vivia resmungando de tudo. Pobre homem velho, agora sem filhos!

Quanto ao vigário, ele ficou estupefato e quase desmaiou.

— Você já pensou o suficiente sobre isso, Senhor Duke? — perguntou o vigário. — Os jovens estão aptos a fazer as coisas com pressa e se arrependem em seguida. Bessy é uma boa menina! Deus a abençoe! Ela não foi educada para ser uma boa esposa para você, Duke! Pelo menos, é o que as pessoas falarão. Embora, eu possa dizer que ela sabe um pouco de matemática. A ensinei, Senhor Duke!

— Posso ir e perguntar-lhe? Só quero sua permissão! — insistiu Duke.

— Sim, vá! Mas talvez seja melhor você pedir primeiro à mãe dela. Ela vai gostar de ser informada de tudo!

Entretanto, Duke não se importou com a mulher. Ele correu através da porta aberta do presbitério, para as salas de reunião e chamou suavemente Bessy.

Quando ela se aproximou, ele a pegou pela mão e a levou para o jardim, na parte de trás do pomar, e lá, ele conquistou sua noiva para que fosse aquecido ambos os corações.

Os habitantes do Castelo de Crowley e as pessoas pacatas da aldeia vizinha de Crowley, ouviram apenas um pouco sobre a Condessa, como era a forma de chamar Theresa.

O Senhor Mark recebeu dela algumas cartas, é verdade, e leu-as repetidas vezes, chorando e suspirando. As guardou cuidadosamente em um maço dentro de uma gaveta, mas as cartas eram como flechas de dor para ele.

Ninguém conhecia seu conteúdo, e mesmo as conhecendo, jamais teriam sonhado com a completa miséria de quem escrevia.

O amor desaparecera há muito tempo da habitação daquele casal, uma habitação, não um lar, mesmo em seus dias mais brilhantes.

O amor saíra pela janela, muito antes que a pobreza entrasse pela porta. No entanto, aquele marido sombrio que nunca demorou a seguir seus planos desonestos, perdeu os últimos resquícios de seu caráter de homem, e a partir daí, sendo este, quase o único pecado que baniu os homens da boa sociedade naqueles dias, ele teve que jogar onde e como podia.

O dinheiro de Theresa foi usado nas várias rodadas de jogos, como seu pobre pai furioso previra.

De um lado para o outro, e sem o consentimento dela, sua caixa de joias fora roubada, os diamantes ao redor do medalhão que segurava o retrato de sua mãe, foram arrancados e colhidos sem nenhuma mão cuidadosa.

Victorine encontrou Theresa chorando como se seu coração se partisse devido às pobres relíquias.

— Oh! Mamãe! Minha mãe! — ela soluçou, segurando o retrato esmagado e desfigurado como explicação de seu pesar.

Ela estava sentada no chão, no qual se jogara na primeira descoberta sobre o roubo.

Victorine sentou-se ao seu lado, levando a cabeça de Theresa sobre o peito e a acalmando. Ela não fez nenhuma pergunta a Theresa, que teria escolhido responder, porque Victorine sabia tudo, sem que o nome do Conde passasse pelos lábios de nenhuma delas.

Daquele momento em diante, Victorine o observava, como um tigre observa sua presa.

Quando as cartas vieram da Inglaterra, as três cartas, uma do Senhor Mark e duas de Duke e Bessy, anunciando à aproximação do casamento deles, Theresa as levou para Victorine.

Os lábios de Theresa foram apertados, suas bochechas que eram pálidas ficaram ainda mais. Ela esperou que Victorine falasse algo, porém, nenhuma palavra a francesa pronunciou, mas ela colocou as cartas uma sobre a outra, e as rasgou em duas, jogando os pedaços no chão, e passando seus pés sobre o papel.

— Oh! Victorine! — gritou Theresa, consternada com o ardor que ia além de sua própria idolatria. — Nunca esperei uma notícia dessas! Nunca pensei nisso, mesmo que pareça ser o curso natural das coisas!

— Não é natural! É infame o fato de Duke ter amado você uma vez, e não esperar por oportunidades futuras, e tomar aquela pobre menina do presbitério. Ah! O Senhor Mark pensa o mesmo, porque posso ver em suas letras! Sinto muito por rasgar sua carta. Ele sente e sabe que o Senhor Duke Brownlow devia esperar... Alguém esperou catorze anos, não é verdade? O Conde não viverá para sempre!

Theresa não viu o significado perverso quando estas últimas palavras foram ditas.

Mais um ano caminhou fortemente no curso de miséria para Theresa.

Essa mesma revolução do tempo trouxe paz e alegria ao casal inglês, esforçando-se humildemente para cumprir seus deveres como filhos para com o infeliz e desertado Senhor Mark. Eles tiveram sua recompensa no nascimento de uma pequena menina. No entanto, perto deste nascimento, seguiu-se uma grande tristeza.

O bom pastor morreu após uma curta e repentina doença. Depois, veio o habitual problema após a morte de um clérigo. A viúva teve que deixar o presbitério, o lar de uma vida, e procurar um novo lugar de descanso para seus anos de velhice.

Felizmente, o novo vigário era um solteiro, o tutor que acompanhara Duke em sua grande viagem, e foi pedido que ele permitisse que a viúva de seu antecessor permanecesse no presbitério como sua governanta.

Bessy gostaria que sua mãe morasse no castelo, e este curso seria infinitamente preferido pela Senhora Hawtrey, que, de fato, sugeriu o desejo à filha, mas o Senhor Mark foi obstinadamente contra, e não poupou seus comentários cáusticos sobre a Senhora Hawtrey.

Ele não perdoara completamente o casamento de Duke, embora, ele gostasse muito de Bessy. O Senhor Mark se referiu a este casamento à boa administração da Senhora Hawtrey ao juntar os jovens, e ele foi explícito na expressão de sua opinião.

Pobre Theresa! A cada dia ela arruinava mais e mais amargamente o seu casamento. Muitas e muitas vezes, ela gritava quando estava sozinha na calada da noite:

— Não posso suportar mais! Não consigo suportar!

Entretanto, novamente à luz do dia, seu orgulho a ajudava a manter seu infortúnio para si, sem que os outros tivessem conhecimento. Ela não podia suportar a simpatia feroz e o olhar de piedade nos olhos de Victorine.

Theresa poderia voltar para casa como uma pobre pródiga para seu pai, se Duke e Bessy não estivessem morando com ele. Ela lamentava que o casal, como ela imaginava, estava reinado triunfante em seu lugar, tanto no coração de seu pai, como em sua casa.

Mas a verdade era o contrário do que Theresa pensava, porque seu pai odiava as ternas atenções que lhe eram dadas por aqueles que não eram sua Theresa, sua única filha, por cuja presença ele ansiava em dor miserável e silenciosa.

Então, novamente para retornar para Theresa, seu marido tinha seus acessos de gentileza para com ela. Isso acontecia em momentos marcados, quando ele tivera muita sorte no jogo, se ouvira outros homens a admirando, e assim, ele voltava, por alguns momentos, à sua lealdade, e atraia de volta o pobre coração torturado, apenas para esmagá-lo de novo.

Um dia, depois de um curto período de calma, carícias e leviandade, ela descobriu algo, não sei o quê, mas isso a revoltou.

Sua perspicácia e língua afiada falaram a maioria dos insultos cortantes.

No início, ele sorriu, como se estivesse se divertindo ao ver como ela estava escalando seu cérebro para encontrar discursos raivosos, mas, em algum momento do discurso, ela tocou em alguma ferida dele e o Conde, mesmo não perdendo o sorriso zombeteiro no rosto, deixou seus olhos piscarem em fogo espantoso, e sua pesada mão fechada caiu sobre o ombro branco dela, com um golpe terrível!

Ela se levantou, de frente para ele, sem lágrimas, mas branca e raivosa.

— Oh! Pobre velho! — era tudo o que ela dizia, tremendo por todos os lados, mas com os olhos fixos no rosto covarde dele.

Ele encolheu-se do olhar dela, riu em voz alta para esconder qualquer sentimento que pudesse estar escondido em seu olhar e saiu da sala.

Ela só disse novamente:

— O pobre velho! O pobre velho solitário! — e ela caiu em uma cadeira.

Theresa não ficara sentada por mais de um minuto, porque a campainha tocou. Era alguém do escritório do Conde.

Victorine atendeu e Theresa se levantou.

— Você? Eu queria os outros aqui! Todos aqui para testemunharem! Todos eles verão como seu senhor trata a sua esposa! Olhe aqui! — ela empurrou o lenço do ombro, e a marca estava ali, vermelha e inchada. — Chame todos! Quero que venham aqui! Victorine, Amadée, Jean, Adèle, todos! Terei o testemunho deles! — e ela caiu tremendo e chorando.

Victorine não disse nada, mas foi ao armário onde guardava remédios, dos quais só ela conhecia as propriedades, e levou para sua querida tomar. O remédio era calmante.

Theresa se inclinou para trás em sua cadeira, ainda soluçando muito, até que finalmente caiu em uma espécie de sonolência.

Victorine levantou suavemente o lenço, que caíra e olhou para o hematoma. Ela não falou, mas seu rosto inteiro estava temeroso. Após olhar para Theresa, ela sorriu e tocou a suave carne machucada com seus lábios, como se Theresa fosse aquela criança de vinte anos atrás.

Macia como o toque foi Theresa tremendo, e começou a falar, meio acordada.

— Eles chegaram? — ela murmurou. — Amadée, Jean, Adèle? — mas sem esperar por uma resposta, ela adormeceu novamente.

Victorine voltou silenciosamente para o armário onde guardava os remédios, e ficou lá, misturando algo sem fazer barulho.

Quando ela fez o que queria, levou Theresa para o quarto e olhou para ela, ainda dormindo. A mulher começou a arrumar o quarto.

Sem cortinas de seda azuis e espelhos prateados. O apartamento na Rua Louis Le Grand não lembrava mais a elegância de tempos não tão distantes.

Um tecido indiano desbotado cobria a janela, havia os sinais desordenados da presença tardia do conde e um frasco de licor vazio.

O tempo todo, Victorine arranjava este quarto e dizia para si:

— Finalmente! Até que enfim!

Theresa dormiu durante o dia, até tarde da noite, inclinada para trás onde caíra. Ela estava tão imóvel que Victorine ficou alarmada. Uma ou duas vezes, a velha mulher sentiu seu pulso, e olhou com fervor para o rosto manchado de lágrimas.

Ela levantou com muito cuidado uma das pálpebras e espreitou os olhos de Theresa. Aparentemente satisfeita, ela saiu para fazer a janta.

Novamente ela sentou em profundo silêncio, sem se mexer, mas na rua, as carruagens começaram a rolar, e os criados de libré[117] e os portadores de tochas gritaram os nomes e títulos de seus mestres, para mostrar que carruagem, naquela estreita rua abaixo, tinha direito a precedência.

Uma carruagem parou no prédio do qual elas ocupavam o terceiro andar. Então, o sino do apartamento de Theresa tocou alto e violentamente.

Victorine saiu para ver o que incomodava sua querida, como ela chamava Theresa, a senhora adormecida.

Ela encontrou aqueles criados trazendo seu amo, o Conde, morto. Morto com uma espada recebida em alguma luta infame.

Victorine ficou de pé e olhou para ele.

— Melhor assim! — murmurou. — Melhor assim! Meu senhor, você levará isto contigo, para onde quer que sua alma malvada esteja fugindo! —ela lhe deu um golpe no ombro, exatamente onde estava o hematoma de Theresa.

Seu toque fora leve, mas, a irreverência para com o morto, suscitou indignação até mesmo dos portadores endurecidos do corpo.

Ela virou as costas para o cadáver, foi até seu armário, retirou a mistura que fizera com tanto cuidado, derramou-a sobre o chão de madeira nua, e a manchou com o pé.

Uma quinzena depois, quando não havia notícias de Theresa, uma pobre cadeira foi vista das janelas do castelo, sendo lentamente levada pelo caminho da carruagem até o portão.

Ninguém pensou em quem era, porque talvez fosse algum amigo da governanta ou parente humilde da Senhora Duke, pois, muitos parentes dela, só perceberam que Bessy existia, após seu casamento.

Ninguém notou muito a carruagem mal feita, até que o porteiro se assustou com o som do grande sino descascando, e, ao abrir as portas do salão, viu de pé, diante dele, a Senhora Victorine dos velhos tempos, porém, mais magra, com semblante de luto. Na cadeira estava Theresa, na tristeza profunda de viuvez daqueles dias. Ela olhou com saudade o lugar, além de olhar para Joseph, o porteiro do castelo.

— Meu pai! — ela chorou avidamente, antes que a Victorine pudesse falar.

— O Senhor Mark está bem? — Victorine perguntou, mas, seu primeiro pensamento foi perguntar se ele estava vivo, contudo, ela não se atreveu a pronunciar a palavra.

— Chame o Senhor Duke! — disse Joseph, falando para algum criado atrás dele.

Então, Joseph respondeu:

— Deus a abençoe, Senhorita Theresa! Que Deus a abençoe! O Senhor Mark está bem, mesmo que ele tenha mudado tristemente nos últimos tempos.

Victorine ignorou sua fala e questionou:

— Onde está o Senhor Duke? Chame-o! Theresa não pode ficar na porta o dia todo!

Este foi o retorno de Theresa para casa.

Ninguém jamais soube o quanto ela sofrera desde que saiu de casa. Porque se alguém soubesse, Victorine não se vestiria de luto, dolorosamente contra sua vontade, com o propósito de manter a ficção mentirosa de que Theresa tivera um casamento próspero e feliz. Ela ficava sempre indignada quando os servos a indagavam sobre a vida de Theresa fora do castelo.

O que passou entre Theresa e seu pai naquela primeira conversa, ninguém jamais soube. Se ela lhe contou algo de sua vida de casada ou se apenas acalmou as lágrimas que ele derramou ao vê-la novamente, pela doce repetição de palavras ternas e carícias, como se ela ainda fosse uma criança, ninguém jamais soube. Nem Duke, nem sua esposa, jamais ouviram sua alusão ao tempo em que Theresa passara em Paris, exceto da maneira mais superficial possível.

O Senhor Mark estava ansioso para mostrar a ela que tudo estava perdoado, e tirou Bessy do lugar de dama do castelo, e fez com que Theresa assumisse a chefia da casa, e sentasse à mesa, onde a dona do castelo deve sentar.

Bessy abaixou a cabeça e desistiu de falar qualquer palavra, porque Duke sempre teve mais inveja da posição de dama de sua esposa do que ela podia sentir, mas Theresa se recusou a assumir qualquer lugar na casa, dizendo, de maneira lânguida, que agora lhe parecia habitual, que a manutenção da casa inglesa e todos os arranjos domésticos eram desgastantes para ela e que se Bessy continuasse a agir como dama, assim evitaria os deveres naturais de Theresa, mesmo que em algum momento futuro, ela fosse obrigada a fazer.

Bessy consentiu, tentando lembrar o que Theresa gostava, e como as coisas eram ordenadas nos velhos tempos de Theresa. Ela desejava que os criados sentissem que a Condessa tinha direitos iguais aos dela na administração da casa. No entanto, ela, a quem a governanta levava suas contas e em cujas mãos, com o poder de conferir favores e privilégios, seria sempre mantida pelos criados como a verdadeira patroa. E, assim, as reivindicações de Theresa logo se afundaram.

No início, ela estava muito lânguida para cuidar de tudo, e somente desejava um descanso tranquilo na companhia de seu pai.

Pai e filha sentavam, às vezes, durante horas, de mãos dadas ou caminhavam pelos jardins, quase sem falar, mas felizes, porque estavam mais uma vez juntos e em termos fraternais.

Theresa foi largando a tristeza durante este tempo de paz tranquila. O rosto pálido, de ansiedade forrado com traços de sofrimento, fora relaxado na suave luz do sol que entrava nos olhos, e a cor voltava para as bochechas.

Mas, no outono após o retorno de Theresa, o Senhor Mark morreu. Sua morte fora um declínio gradual de força, e seus últimos momentos foram passados em seus braços.

Seu novo infortúnio a jogou de volta na tristeza que ela abraçara quando voltou, viúva, para o Castelo Crowley. Ela se fechou em seu quarto, e não permitiu que ninguém se aproximasse dela, a não ser Victorine.

Nem Duke, nem Bessy foram admitidos no quarto escurecido, que ela havia pendurado na porta, um pano preto em estado fúnebre solene.

A vida de Victorine desde o seu retorno ao castelo fora tudo, menos pacífica. Novos poderes surgiram no quarto da governanta.

Victorine observava em seu lugar uma empregada, muito mais exigente que ela, e uma nova governanta reinou no lugar dela, que antes era apenas um eco das opiniões de Victorine.

O temperamento de Victorine também não foi melhorado por seus quatro anos no exterior, e havia uma disposição geral entre os criados para resistir a toda sua assunção de autoridade. Ela sentiu sua impotência após uma ou duas brigas, mas valorizou sua vingança.

Se ela perdera o poder sobre a casa, no entanto, não havia diminuição de sua influência sobre sua patroa. Foi neste momento que finalmente Victorine atraiu a Condessa para fora de sua reclusão sombria.

Quase a única criatura de quem Victorine cuidava, além de Theresa, era a pequena Mary, sua filha. O que havia de suavidade na natureza Victorine, parecia sair para a criança, no entanto, se a criança fosse um menino era provável que Victorine não cuidasse da mesma maneira. Mary jamais fora tratada pela mãe da mesma maneira que a Victorine francesa tratava Theresa.

Victorine mandou Mary para o quarto da Condessa, e falando que não tivesse medo, e que pedisse à senhora em seu balbuciar infantil, para sair e ver o boneco de neve de Mary, porque ela sabia que a pequena colocaria sua mão no quarto de Theresa, e assim, teria mais sucesso que qualquer outra pessoa.

Saiu Theresa do quarto, triste, segurando Mary pela mão. Elas foram, sem serem observadas como pensavam, para a grande janela da sala, e olharam para o pátio. Depois, Theresa voltou para seu quarto, mas o luto estava quebrado, e antes que o inverno terminasse, Theresa caiu em seus velhos hábitos, e, às vezes, sorriu e riu até que os visitantes, por acaso, falassem novamente de sua rara beleza e de sua graça cortês.

Era perceptível que Theresa reviveu primeiro o interesse em Duke. Depois, ela se cansou dos pequenos cuidados de Bessy e da conversa sobre a casa, seus afazes, os criados, sobre mãe e o presbitério, e até sobre a paróquia.

Ela questionou Duke sobre suas viagens e mostrou interesse na apreciação das nações estrangeiras. Theresa percebeu os poderes latentes da mente de Duke, e ficou impaciente com o fato de sua família permanecer adormecida na reclusão do país.

Theresa falara em deixar o Castelo de Crowley, e encontrar algum outro lar, logo após a morte de seu pai, mas tanto Bessy quanto Duke a persuadiram a ficar com eles, dizendo Bessy, na pura inocência de seu coração, o quanto ela estava feliz que, nos cuidados crescentes de sua filha, Duke teria uma amiga perto dele.

Cerca de um ano após a morte do Senhor Mark, o membro da corte de Sussex morreu, e Theresa se propôs a agitar Duke para assumir seu lugar, no entanto, com alguma dificuldade, visto como Bessy era passiva e resistia ao esquema à sua maneira tranquila.

Theresa foi vitoriosa em suas investidas, e Duke foi eleito.

Ela estava irritada com o entorpecimento de Bessy, e pelo fraco interesse da esposa de Duke em todas as coisas além de ser uma boa companheira.

Uma vez, quando Theresa tentou fazer Bessy perceber como a Senhora Duke poderia brilhar e se erguer em sua nova esfera, Bessy explodiu em lágrimas, e disse:

— Você fala como se sua presença aqui não fosse nada, e sua fama em Londres fosse tudo! Somos felizes desde que casamos! Não quero mudar!

— Não mude o tom da conversa! Estamos falando de seu marido... Quando Duke está em casa... — exclamou Theresa. — Ele quer falar com você sobre política, notícias estrangeiras e grandes interesses públicos! Mas você o arrasta para baixo, até seu nível de cuidados caseiros e monótonos. Duke não precisa saber quantos pratos foram lavados!

— Eu? — perguntou Bessy. — Será que o arrasto para baixo? Eu gostaria de ser mais inteligente, mas você sabe, Theresa... Nunca fui inteligente em nada, além de ser uma dona de casa!

Theresa foi tocada por um momento por esta humildade.

— No entanto, Bessy! Você tem uma grande capacidade de julgamento, se quiser, mas deve exercitá-la! Tente interessar-se por tudo o que Duke se interessa, além de fazê-lo tentar interessar-se por assuntos internos!

Contudo, de alguma forma, a conversa das duas terminou em insatisfação de ambos os lados, e os criados concordaram, por indução e não por palavras, que as duas senhoras não estavam nos termos mais cordiais, por mais amistosas que desejassem ser e se esforçassem para aparecer.

A Senhora Hawtrey também permitiu que seu ciúme por Theresa se aprofundassem no desgosto. Ela tinha ciúmes porque, de alguma forma irracional, ela pensara que a presença de Theresa no castelo era o motivo pelo qual Bessy não era incentivada a ocupar seu honroso posto após a morte de Senhor Mark, como se não houvesse quartos o suficiente para abrigar um deserto de viúvas no castelo, se o proprietário assim o desejasse.

Duke tinha ideias bem fixas em sua mente, e uma delas, era a repugnância de sua sogra. Ele deu uma grande quantia de dinheiro, esperando que a mulher ousasse sair do castelo.

Tendo agora os meios para viajar, a Senhora Hawtrey se dirigiu com bastante frequência a lugares termais, como os que estavam em voga naqueles dias, e foi visitar as casas daqueles amigos, que ocasionalmente vinham visitar a prima Bessy no castelo.

Theresa pouco se importava com a frieza da Senhora Hawtrey, porque, talvez, nunca percebera isso. Ela também desistiu de brigar com Bessy, porque era inútil tentar fazer dela uma companheira intelectual ambiciosa para seu marido.

Ele falara sobre política, escrevera um jornal que fazia muito barulho pelas ruas, e assim, o ministro o procurara, e tentou vinculá-lo ao governo.

Theresa, com sua experiência parisiense sobre a forma como as mulheres influenciavam a política, daria tudo para que os Brownlows tomassem um lugar em Londres. Ela ansiava ver os grandes políticos no meio da luta pelo lugar de poder, que era o centro brilhante de tudo o que valia a pena ouvir e ver no reino.

Fora alguma conversa sobre política que Bessy suplicara seriamente contra ela, enquanto Theresa ficara sentada em silêncio indignada, até que não aguentou mais a discussão, indo para a sala de estar, onde Victorine estava trabalhando. Ali, suas palavras reprimidas encontraram um respiro, não dirigido a Victorine, mas não contido diante dela:

— Não posso suportar vê-la apertado sua mente estreita, ouvindo seus fracos argumentos egoístas, porque ela sente que estaria fora de seu lugar, se caminhasse com Duke pela política! Pobre Duke! Ele está atrapalhando sua vida porque está ao lado dessa mulher! O que ele fará? Colocará sua natureza forte para o lado e buscará ser fraco e tolo? Oh! Se Duke ficasse sem ela... Como ele brilharia! Como ele brilharia! Oh! Céus!

E, ali, ela afundou no silêncio, observada pelos olhos furtivos da Victorine.

Duke superara tudo por alguma grande explosão de eloquência, e o país ressoava com suas palavras.

Ele desceu ao Castelo de Crowley para um recesso parlamentar, que ocorreu quase imediatamente depois da fala de Theresa.

Theresa calculou as horas de cada parte da complicada viagem, e sabia o exato momento de sua chegada, mas a filha de Duke estava doente e absorveu toda a atenção de Bessy. Ela estava no quarto junto ao berço onde a criança dormia, quando seu marido chegou cavalgando até o portão do castelo.

Theresa estava no portão, o esperando. Seus cabelos sopravam em cachos desgrenhados, enquanto o capuz de seu manto caía para trás de suas costas, seus lábios se separavam com uma recepção sem fôlego, seus olhos brilhavam de amor e orgulho.

Duke era o homem que toda a Londres cantava sua fama crescente, mas que em sua casa, Theresa parecia ser a única pessoa que o apreciava.

Os criados se aglomeraram no grande salão, pois, já havia algum tempo que Duke estava longe de casa. Victorine estava lá, com um chapéu, esperando Theresa e quando Duke perguntou sobre sua esposa, o mordomo afirmou que ela estava com a criança.

Victorine tratou de afirmar que a criança estava muito doente, com a voz familiar de uma velha criada, para aliviar a ansiedade de Duke. Assim, ela continuou:

— A Senhora Bessy acredita que a criança está muito doente, e ela não consegue pensar em nada além da pobre criança, e a observação perpétua a deixou nervosa!

A criança estava realmente doente, e depois de uma breve saudação ao marido, Bessy voltou ao seu quarto, deixando Theresa cuidando de seu marido.

Naquela noite, Theresa deu lugar à outra explosão de comentários depreciativos sobre a pobre Bessy, e Victorine pensou ler um segredo muito profundo no coração de Theresa.

A criança não saía dos braços de sua mãe e a doença se agravou, e a pobre bebê estava perto da morte. Um pouco de creme para massagear suas dores, fora reservado para a pequena criatura que chorava, e Victorine o pegara sem querer para fazer um cosmético para Theresa.

Quando a criada encarregada a reprovou, começou uma discussão sobre o direito de sua respectiva senhora de dar ordens na casa. Antes do fim da disputa, coisas muito fortes foram ditas de ambos os lados.

A criança morreu. A herdeira estava sem vida, os criados estavam em desespero sussurrante, e com palavras quase silenciosas sobre o luto.

Duke sentiu a vaidade da fama, em comparação com a vida de um bebê.

Theresa estava cheia de simpatia pelo orgulhoso marido de Bessy, mas não se atrevia a expressá-la, assim, seu coração se tornava terno.

Victorine lamentou a morte à sua própria maneira. Bessy ficou sem palavras e sem lágrimas, e não se preocupava com vozes amorosas, nem com toques suaves. Também não comia, nem bebia, também não dormia ou chorava.

— Mande chamar sua mãe! — disse o médico, examinando Bessy.

A Senhora Hawtrey estava fora em suas visitas aos primos, e as cartas que lhe falavam da doença de sua neta não a alcançaram devido às lentas travessias das correspondências no país naqueles dias. Então, ela foi chamada com a ajuda de um mensageiro, que procurou a mulher por todos os cantos, era o meio mais rápido e seguro que o correio.

Enquanto isso, as enfermeiras exaustas por sua vigilância, encontraram em Mary a ajuda para consolar Bessy. A empregada sentou com Bessy por uma noite ou duas.

Duke, por vezes, através das horas escuras, olhava o rosto branco imóvel, semelhante a de um morto, porém, os suspiros de Bessy afirmavam que ela estava viva.

O médico deu remédios em vão, e depois tentou novamente.

Naquela noite, Victorine, sentou-se no lugar de Mary, por volta da meia-noite, Duke se aproximou, com a luz sombreada.

— Silêncio! — sussurrou Victorine, com seu dedo nos lábios. — Ela dormiu finalmente!

Quando o dia nasceu pálido, Bessy ainda dormia. O médico veio, e caminhou na ponta dos pés, regozijando-se com o efeito de seus remédios.

Todos ficaram em volta da cama,

Duke, Theresa e Victorine.

De repente, o médico mudou o semblante, e olhou assustado para Bessy. Ele sentiu o pulso da paciente, colocou seu ouvido nos lábios abertos dela, pediu um copo e uma pena. O espelho não estava embaçado, as delicadas fibras não se agitavam. Bessy estava morta.

Alguns meses depois, Theresa estava novamente sobrecarregada de dor, ou melhor, devo dizer, de remorso, pois, Bessy desaparecera e enterrada fora de suas vistas. E a sombra de Bessy, com todas as suas virtudes inocentes, sua familiaridade feminina, vieram vividamente à mente de Theresa, não como qualidades cansativas, mas como admiráveis encantos, das quais ela fora cega demais para perceber o valor.

Bessy fora sua antiga companheira, nos dias felizes da infância inocente. Theresa preferiu evadir-se a ter que procurar a companhia de Duke naquele momento.

Ela permaneceu no castelo, é verdade, e a Senhora Hawtrey, queria continuar onde estava, e veio morar sob o mesmo teto.

Duke sentiu a morte de sua esposa profundamente, mas razoavelmente, como se tornou seu caráter. Ele ficou perplexo com as explosões de pesar de Theresa, sabendo que ela e Bessy não viveram em perfeita harmonia.

Duke vivia em Londres, como um estadista em ascensão, e quando, no outono, ele passou algum tempo no castelo, estava cheio de admiração pela forma estranhamente paciente com que Theresa se comportava em relação à velha senhora.

Parecia que, na ausência de Duke, a Senhora Hawtrey assumira o poder absoluto no castelo, e que a inspirada Theresa se submeteu aos seus desejos com ainda mais docilidade do que sua própria filha fizera.

Para Mary, Theresa sempre foi gentil e indulgente.

Outro outono veio, e antes de partir, velhos laços foram renovados, e Theresa se comprometeu a se tornar a esposa de seu primo.

Duas pessoas foram fortemente afetadas por esta notícia quando ela foi promulgada:

Uma, e isto foi natural nas circunstâncias, foi a Senhora Hawtrey, que escolheu ressentir-se do casamento como uma profunda ofensa pessoal, bem como à memória de sua filha, e que rejeitou firmemente todas as súplicas de Theresa, e o convite de Duke para continuar vivendo no castelo. Então, ela partiu para uma pousada no vilarejo.

A outra pessoa afetada pela notícia foi Victorine.

Por ser uma mulher de meia-idade seca e energética, ela, na época do noivado de Theresa, afundou na languidez passiva da vida avançada. Parecia que ela não sentia mais necessidade de esforço. Ela buscava a solidão, não queria nada além de sentar em seu quarto ao lado do vestiário de Theresa, às vezes, submergida em um devaneio, e, por vezes, empregada em uma peça de tricô com atividade quase espasmódica. Mesmo assim, para onde quer que Theresa fosse, para lá estava Victorine.

Theresa imaginara que sua Vivtorine preferiria ser deixada no castelo, na tranquilidade reconfortante do campo, a acompanhá-la e ao marido até a casa em Grosvenor, que eles habitavam na temporada parlamentar. Mas a mera oferta de uma escolha parecia irritar a Victorine de forma inexpressiva.

Ela encarou a proposta como um sinal de que Theresa a considerava antiga e incapaz, e que estava cansada dela, desejando suplantar seus serviços por uma empregada mais jovem.

Parecia impossível desalojar esta ideia de sua cabeça, o que levou a frequentes explosões de temperamento, nas quais ela violentamente repreendeu Theresa por sua ingratidão para com sua seguidora tão fiel.

Um dia, Victorine foi um pouco mais longe em suas expressões que de costume, e Theresa, geralmente tão tolerante com ela, finalmente se voltou contra.

— Realmente, Victorine! — falou Theresa com sua voz irritada. — Isto é uma miséria para nós! Você diz que se sente mal quando estou perto de você, que minha ingratidão é tal grande que seria rejeitada pelos demônios. O que posso e devo fazer? Você diz que está infeliz quando está perto de mim? Devemos, então, nos separar? Seria isso o preço para sua felicidade?

— Enfim, chegamos neste ponto! — exclamou Victorine. — Em meu país, eles consideram um edifício seguro contra os ventos e tempestades e toda a devastação do tempo, se a primeira argamassa usada fora temperada com sangue humano. Mas nem mesmo nosso segredo comum, embora fora temperado com sangue, pode manter nossas vidas unidas! Quanto menos, todo o cuidado e amor que dediquei nos dias de minha juventude e força!

Theresa chegou perto da cadeira em que Victorine estava sentada. Ela pegou sua mão e a segurou rapidamente.

— Fale, Victorine! — disse ela, rouca. — Me diga o que você quer dizer com isso. Qual é o nosso segredo comum? O que você quer dizer com o fato de ser um segredo de sangue? Fale! Porque quero saber!

— Como se você não soubesse! — respondeu Victorine, com dureza. — Você não se lembra de minhas visitas a Bianconi, o químico italiano no Marais, há muito tempo? — ela olhou no rosto de Theresa, para ver se suas palavras sugeriam um significado mais profundo do que o ouvido.

— Você me disse que foi lá para aprender a composição de certos unguentos, cosméticos e remédios caseiros.

— E paguei pelo meu conhecimento também! — disse Victorine, com um risinho baixo. — Aprendi mais do que mencionou, minha Condessa! Aprendi a natureza secreta de muitos remédios, e francamente, aprendi a arte do envenenamento! — ela se levantou. — Foi para o seu bem que aprendi! Por você!

Theresa ficou branca e tentou não se mexer, nem desviar seus olhos dos que a desafiavam.

— Pelo meu bem, Victorine?

— Sim! Tudo estava pronto para seu marido, quando o trouxeram morto para casa!

— Graças a Deus! Sua morte não se encontra à sua porta!

— Graças a Deus? — zombou Victorine. — O desejo de sua morte está à sua porta e a intenção de livrar-se dele está à minha porta também. Não tenho vergonha disso. Não! Não foi por mim que fiz o que fiz, mas, porque você sofreu tanto. Ele golpeara você.

— Oh! Victorine! — lamentou Theresa, com um arrepio. — Esses dias já passaram. Não vamos lembrar isso agora! Eu era tão perversa e miserável. Agora estou feliz, tão feliz, que, deixe-me tentar fazer você feliz também!

— Você deveria tentar! — disse Victorine ainda com semblante tenso. — Não vê como a ação incompleta, uma vez parada pelo destino, foi tentada novamente, e com sucesso, e você está agora colhendo o benefício do meu pecado, se foi pecado realmente.

— Victorine! Não sei o que diz! — Theresa exclamou com um terror, que a fez tremer.

— Não é verdade? A Senhora Hawtrey, a camponesa do presbitério de Crowley, precisava dormir, e esquecer a morte da criancinha que estava pressionando seu cérebro. Ajudei o médico até o fim. Ela dorme agora com seu bebê, e, se as histórias que os padres contam sobre os Céus forem verdadeiras... E, você, minha bela rainha, você reina em seu lugar! Não me trate como se eu fosse louca para tirar a tua parcela de culpa! Já ouvi falar destes truques, quando o crime fora cometido. Afirma que sou louca e corre para se livrar do pecado.

Naquela noite, Duke ficou surpreso com o pedido de sua esposa para que ela o deixasse e voltasse com Victorine e seus outros servos para o isolamento do Castelo de Crowley.

Ela, a grande mulher londrina, a poderosa feiticeira da sociedade, querida esposa e verdadeira companheira, com este súbito desejo em se aposentar da cidade e voltar para o campo, deixou seu marido pensativo sobre qual motivo a teria feito mudar. Seria um problema de saúde?

Naquela noite ainda, ela mostrara sua beleza deslumbrante com espírito brilhante e quando amanheceu, ela ainda estava cintilante.

Theresa negou que estivesse de alguma forma indisposta, e parecia subitamente tão relutante em falar de si, e deprimida, que Duke não pensou duas vezes e concedeu seu desejo em voltar para o castelo.

Ele sentiu muito a falta dela. Acabaram-se os cafés da manhã agradáveis, animados por seu senso e inteligência, aplaudidos por seus modos carinhosos. Não havia mais sua silhueta gentil para sentar-se ao seu lado por longas horas sem cansaço.

Quando ele entrou nas reuniões, não mais encontrou a mulher mais adorável de lá.

Quando voltou para casa, à noite, não havia ninguém para se interessar por seus discursos, para indignar tudo o que o aborrecia, e para se encantar e se orgulhar de toda a admiração que ele conquistara.

Ele ansiava pelo momento em que poderia ir ao castelo, por um dia ou dois, para ver sua esposa, uma vez que suas cartas pareciam monótonas e sem graça. Não é de admirar que suas cartas saíssem de um coração pesado, sabendo o que ela sabia.

Ela mal se atrevia a se aproximar da Victorine, cujo humor se tornava tão variável como se ela fosse de fato a mulher louca que zombara de Theresa.

Às vezes, Victorine ficara infeliz porque Theresa parecia doente e profundamente deprimida. Outras vezes, ela ficara com raiva, porque Theresa se afastava dela e a evitava.

Assim, desgastando sua vida, a saúde de Victorine piorava a cada dia, durante aquele verão.

O único conforto de Theresa parecia ser a pequena amizade com Mary, que retribuía o carinho da Condessa com toda a bela demonstração de sua idade.

Ela carregou a pequena donzela nos braços quando visitava Victorine em seu quarto, e Mary brincava em seu armário, enquanto a velha francesa penteava os cabelos de sua querida Theresa com suas mãos trêmulas e doentes.

Para evitar ofender Victorine, Theresa não contratou nenhuma empregada. Isso evitaria brigas e conversas exageradas com Victorine. Theresa pedia ajuda para a pequena Mary, pois, a presença da criança era uma restrição sagrada até mesmo na língua de Victorine, e, às vezes, ela diminuía seu temperamento feroz, para acariciar a pequena criatura brincando de joelhos.

Theresa se abatia naquela vida horrível. Ela procurou a Senhora Hawtrey, e rezou para que ela viesse em uma longa visita ao castelo.

— Estou sozinha, volte para o Castelo! — afirmou ela, pedindo a companhia da senhora como um favor.

A Senhora Hawtrey era difícil de convencer, mas quanto mais ela resistia, mais Theresa tentava convencê-la. E, quando a mulher aceitou voltar para o castelo, percebera que nem sua filha fora tão obediente e humilde em seus mais suaves desejos quanto a orgulhosa Theresa era agora.

Duke desceu para ver sua querida esposa, e ele ficou em total consternação com seu olhar. No entanto, ela disse estar bem, mas apenas cansada. Se ela tinha algo a mais em sua mente, ela recusou-lhe sua confiança.

Ele a observava de perto, tentando antecipar os menores desejos dela. Ele viu o terno afeto dela por Mary, e pensou nunca ter visto uma mãe tão adorável e terna para um filho de outra mulher.

Ele se perguntava sobre a paciência dela com a Senhora Hawtrey, lembrando-se de quantas vezes ele esgotara sua paciência com sua sogra, e como a brilhante Theresa havia anteriormente escarnecido e desprezado a esposa do vigário. Com este sentido renovado das virtudes e encantos de sua querida, a ideia de perdê-la era terrível demais para suportar.

Ele não escutava nenhum pedido ou objeção.

Antes de retornar à cidade, onde sua presença era uma necessidade política, ele buscara os melhores conselhos médicos que se podia ter na vila.

Os médicos vieram, eles não podiam fazer muito por Theresa, se sua veemente afirmação fosse verdadeira que ela não tinha nada em mente. Nada!

— Vá com seu marido e tome uma mudança de ar. Brighthelmstone é um vilarejo tranquilo à beira-mar. Consinta, como uma dama graciosa, em ir lá por algumas semanas!

Assim, Theresa, desgastada com a oposição, consentiu, e Duke fez todos os arranjos para levá-la, com Mary e o conjunto necessário de criados, a Brighton, como a chamamos agora.

Ele resolveu que a assistente pessoal de Theresa seria alguma mulher jovem o suficiente para observar e esperar sua patroa, e não Victorine, para quem Theresa era uma criada. Mas deste plano, nem Theresa ou Victorine sabiam de nada até que a primeira estivesse na carruagem com seu marido, alguns quilômetros de distância do castelo.

Então ele, um pouco exultante na boa administração de poupar a esposa da dor e dos problemas da decisão, disse-lhe que Victorine foi deixada para trás, e que uma nova criada londrina a esperaria no final de sua viagem.

Theresa exclamou apenas:

— Oh! O que dirá Victorine? — e cobriu seu rosto, sentando-se tremendo e sem palavras.

O que Victorine disse quando descobriu o truque, como ela chamou, foi terrível demais para ser repetido. Ela se chicoteou em uma paixão sem comando. A mulher então ficou tão real e gravemente doente, que os criados foram buscar a Senhora Hawtrey com terror e aflição. No entanto, quando aquela senhora chegou, Victorine fechou os olhos e se recusou a olhar para ela.

— Oh! Sua filha! Não vou olhar para você! — ela tremia o tempo todo. — Traga a Condessa de volta para mim. Deixe-a enfrentar a mulher morta ali parada, não o farei. Eles queriam que ela dormisse, e assim fez a Condessa, para que ela entrasse em seu lugar no Céu! Theresa! Theresa, onde você está? O que fiz em seu lugar? Você foi embora, e me deixou sozinha com a mulher morta! Era a mesma droga que o médico deu, afinal! Contudo, ele deu pouco, eu dei muito. Minha senhora, a Condessa gastou bem seu dinheiro, quando me enviou ao velho italiano para aprender as porções do ofício dele, e um uso discriminatório de drogas venenosas. Eu fazia os venenos e Theresa lucrou com isso. Agora, Theresa é esposa, e me deixou aqui sozinha com a mulher morta. Theresa! Theresa! Volte e me salve da mulher morta!

A Senhora Hawtrey ficou de pé, horrorizada.

— Busque o vigário! — disse ela, sob seu fôlego, para um criado.

— O médico da vila está chegando! — afirmou alguém por perto. — Como ela delira! É delírio?

— Não é delírio! — garantiu a mãe de Bessy. — Quem dera que fosse!

Theresa teve um dia feliz com seu marido em Brighthelmstone, antes dele partir de volta para Londres. Ela o observava cavalgando, e seu criado o acompanhando com sua maleta.

Muitas e muitas vezes, Duke olhou para trás para observar a figura de sua esposa, acenando com seu lenço, até que uma curva da estrada a escondeu de sua vista. Ele tinha que passar por um pequeno vilarejo, dez milhas de sua casa, e lá, um criado, com suas cartas, e mais bagagem, o esperava.

Ele encontrou uma carta misteriosa e imperativa, exigindo sua presença imediata no Castelo de Crowley.

Algo no rosto assustado do servo do castelo levou Duke a interrogá-lo. Mas tudo o que ele podia dizer era que Victorine estava morrendo e que a Senhora Hawtrey falara que depois daquela carta, Duke não voltaria, portanto, não precisava de bagagem. Algo estava por trás daquele chamado, evidentemente.

Duke voltou para casa rapidamente e quando chegou ao castelo, o vigário estava olhando por ele.

— Meu querido menino! — disse ele, falando da mesma maneira de anos atrás, quando ele era o tutor de Duke. — Prepare-se!

— Para quê? — perguntou Duke, abruptamente. — Victorine está morta? — questionou.

— Não! Ela diz que não morrerá até que tenha o visto, e a perdoe, se a Senhora Hawtrey não o fizer. Mas primeiro... Leia isto! — o velho homem entregara um pedaço de papel, escrito pelas mãos do vigário. — É uma confissão terrível, feita por Victorine em minha frente, acreditando estar a ponto de morrer!

Duke leu o papel, contendo pouco mais detalhes do que já dei.

Ali, estavam as horríveis palavras, escritas na mão curta do vigário, que costumava escrever seus sermões suaves de prosa, e que seu pupilo conhecia o caráter de outrora.

Duke leu-a duas vezes. Então, ele afirmou:

— Ela está delirando, pobre criatura!

Mas o sangue de seu coração corria frio, e preferia permanecer em dúvida, até o dia de sua morte.

Ele subiu as escadas, três degraus de cada vez, e depois se virou e encarou o vigário, com um ar de calma severa.

— Desejo vê-la sozinha! Saíam todos!

As mulheres que a observavam saíram, e depois Duke fora até à cabeceira da cama, onde Victorine estava sentada, meio apoiada em almofadas. Ele a observara em todos os seus feitos e sua aparência, a encarando em seus olhos ocos horríveis.

— Victorine, vou ler a confissão em voz alta para você. Talvez sua mente andara vagando, mas você me entende agora?

Um murmúrio fraco de concordância encontrou seu ouvido atento e ele continuou:

— Se alguma afirmação neste documento não for verdadeira, faça-me um sinal. Levante sua mão, pelo amor de Deus!

Ele leu lentamente, linha após linha, sem sinal, sem mão erguida.

No final ela falou, e ele inclinou a cabeça para ouvir.

— A Condessa Theresa, você sabe... Ela que me deixou para morrer sozinha! Ela... — então a força mortal falhou, e Duke foi deixado sozinho.

Victorine morreu.

Ele permaneceu no quarto por muitos minutos, bem quieto. Então, ele deixou o quarto, e disse ao primeiro criado que encontrou:

— Victorine está morta! Prepare o funeral!

Ele encontrou o vigário, que estava o esperando, e teve uma longa conversa com ele.

Duke enviou uma criada confidencial para avisar Theresa e Mary, sob algum pretexto, pouco cuidadoso ou plausível.

Seu humor estava desesperado, e ele parecia esquecer quase tudo menos Bessy, sua primeira esposa e noiva inocente.

Theresa não podia poupar sua queridinha e ficou perplexa com a convocação, mas uma explicação para isso estava por vir em um ou dois dias. E a notícia chegou:

“Victorine está morta, não preciso dizer mais nada.

Ela não podia levar seu terrível segredo para o próximo mundo, mas contou a todos.

Não consigo pensar em nada além de minha pobre Bessy, entregue à crueldade de tal mulher.

E, você, Theresa, deixo-a em sua consciência, pois, dormiu nos meus braços.

Doravante, sou um estranho para você.

Quando você receber isto, estarei deixado a Inglaterra. Qual será nosso próximo passo? Não sei. Meu procurador fará por você o que você precisar.”

Theresa tocou seu sino com uma pressa louca e gritou:

— Traga-me um cavalo! Peça a William, que esteja pronto para cavalgar comigo, ao longo da costa, até Dover!

Eles galoparam durante a noite. Mas quando chegaram a Dover, olharam para o mar, com as velas brancas do navio que levavam Duke para longe.

Theresa chegou tarde demais, e isso lhe partiu o coração.

Ela está enterrada no adro da igreja de Dover.

Após longos anos, Duke voltou à Inglaterra, casado, mas seu lugar no parlamento fora ocupado pelo marido de sua filha, que vendeu o Castelo de Crowley a um estranho.

Fim.


Os Problemas de Bessy

— Mãe, comprei um bilhete para o Southport! — disse Bessy Lee, ao irromper em um quarto, onde uma mulher pálida e doente se deitava. — Você não está contente? — perguntou ela, enquanto sua mãe se movia desconfortavelmente.

— Sim, querida! Estou muito grata a você, mas sua súbita chegada fez meu coração tremer e sufocar!

Os olhos da pobre Bessy encheram-se de lágrimas, mas eram lágrimas de meia raiva. Ela tomara tais dores, desde que o médico disse que Southport era a única coisa boa para sua mãe. Bessy lutara para conseguir um pedido para que sua mãe fosse a instituição de caridade, e agora, sua mãe parecia mais abatida pelo barulho que ela fizera ao entrar, do que feliz em receber a notícia que ela trazia.

A Senhora Lee pegou sua mão e tentou falar, mas, como disse, ela estava quase sufocada com a palpitação no seu coração.

— Você pensa que parece bobagem isso de ficar assustada por coisa tão pequena, mas não é totalmente bobagem. Sou tão fraca, que cada pequeno barulho, me dá um susto e tanto. Tentarei melhorar, por Deus, quando voltar de Southport! Estou tão feliz que você conseguiu o pedido, uma vez que você se preocupou muito com isso! — a Senhora Lee suspirou.

— Você não quer ir? — perguntou Bessy, com muita tristeza. — Você sempre parece tão triste e ansiosa quando falamos sobre isso.

— Em parte, é o meu estar doente que me deixa ansiosa, sei bem. — resmungou a Senhora Lee. — Entretanto, parece que tantas coisas podem acontecer comigo longe de vocês.

Bessy se sentiu um pouco impaciente, porque os jovens com saúde forte mal conseguiam entender os medos que assolavam os inválidos. Ela era uma garota bondosa, mas um pouco obstinada. Ela esqueceu que sua mãe teve que lutar muito desde que ficou viúva, e que sua doença a deixava nervosa.

— Que bobagem, mãe! O que pode acontecer? Posso cuidar da casa e dos pequenos! Tom e Jem estão crescidos, sabem se cuidar. O que vai acontecer?

— Jenny pode cair no fogo. — murmurou a velha, que encontrou pouco conforto em conversar daquela maneira. — O relógio de seu pai pode ser roubado enquanto você está conversando com os vizinhos, ou...

— Mamãe! Você sabe que tenho a responsabilidade de Jenny desde que papai morreu, e desde que você começou a sair para lavar roupas, tranco o relógio do pai em uma caixa, em nosso quarto.

— Então, Tom e Jem não saberão a hora certa para ir à fábrica. Além disso, Bessy... — falou ela, levantando-se. — Eles não passam de jovens rapazes, e há uma tentação que sempre deseja levar os rapazes para longe de suas casas, se estas casas não forem confortáveis e agradáveis para eles. É o que mais receio! Tenho me preocupado com isso, todo o tempo em que estive doente, por perder o poder de fazer desta casa, o lugar mais purificado e brilhante que eles conhecem. Mas não adianta se preocupar... — resmungou, caindo fraco sobre a cama e suspirando. — Devo deixar a casa nas mãos de Deus!

Bessy ficou em silêncio por um ou dois minutos. Então, ela protestou:

— Bem, mãe... Tentarei tornar a casa confortável para os meninos, se você não se importa em tomar o seu lugar por algum tempo, mas mantenha sua mente calma e vá para Southport tranquila e alegre!

— Vou tentar... — ansiou a Senhora Lee, segurando a mão de Bessy, olhando para cima e encarando seus olhos.

Na quarta-feira seguinte, ela partiu, saindo de casa com o coração pesado, o que, no entanto, ela lutou contra, e colocou fé em seu coração, mas desejou que suas três semanas em Southport terminassem rapidamente.

Tom e Jem eram mais velhos que Bessy, que tinha quinze anos. Depois vieram Bill e Mary, e depois a pequena Jenny. Todos eles eram bons filhos, mas tinham defeitos.

Tom e Jem ajudavam no sustento da família com seus ganhos na fábrica, e entregavam seus salários, muito alegremente, à mãe, que insistia que um pouco deste salário seria colocado no banco, em uma poupança.

Foi uma de suas tristezas, quando o médico lhe pediu uma delicadeza cara na forma de dieta durante sua doença, coisa que ela afirmou que podia viver sem ela, mas seus meninos foram ao banco e tiraram o dinheiro deles para conseguir a alimentação adequada para a Senhora Lee.

Os alimentos em questão não custavam um quarto do valor de suas economias, mas eles adiaram a devolução do restante para o banco, dizendo que a conta do médico ainda não fora paga, e que parecia bobo estar sempre levando dinheiro para dentro e fora de casa.

Enquanto isso, a Senhora Lee temia que o dinheiro fosse gasto e implorou que fosse devolvido para a poupança. Isto não foi feito quando ela partiu para Southport.

Bill e Mary iam para a escola. A pequena Jenny era a querida de todos, e se divertia em casa, sendo o encargo especial de sua irmã Bessy, quando sua mãe costumava sair para lavar roupas.

A Senhora Lee, entretanto, sempre fez questão de dar aos filhos que estavam em casa, um café da manhã confortável às sete horas, antes de partir para o seu dia de trabalho e preparava o jantar dos meninos, para Bessy aquecer para eles. Ela também ficara ansiosa para voltar quando a noite caísse, para estar em casa logo após seus filhos, e muitos de seus empregadores respeitavam seu desejo, e, pensando que ela era trabalhadora conscienciosa, cuidaram para deixá-la em liberdade no início da noite.

Bessy sentiu-se muito orgulhosa quando voltou para casa, após ver sua mãe pegando o trem naquele começo de manhã.

Ela olhou em volta da casa, com um novo sentimento de propriedade, e depois foi pegar a pequena Jenny, na vizinha, onde ela ficara enquanto Bessy fora para a estação.

A vizinha lhe pedira para ficar e conversar um pouco, mas ela respondeu que não podia, porque estava perto da hora do almoço, e recusou também o convite que lhe fora dado para visitá-la em uma noite futura. Ela estava cheia de bons planos e resoluções e não queria perder tempo com conversas sem propósito.

Naquela tarde, ela pegou Jenny e foi até a casa de seu professor para pedir emprestado um livro, já que ela queria pedir a um de seus irmãos para ler, à noite, enquanto ela trabalhava nos afazeres domésticos. Ela sabia que era um livro que Jem gostaria, uma vez que, embora nunca o tivesse lido, um de seus colegas de escola lhe falara que o livro era sobre o mar, as ilhas desérticas e as árvores de casulo, exatamente as coisas que Jem gostava de ouvir. E ela acreditava que todos ficariam felizes naquela noite.

Ela apressou Jenny para dormir antes que seus irmãos chegassem da fábrica. Porém, Jenny não gostava de ir tão cedo para a cama, e teve que ser subornada e persuadida a desistir do prazer de sentar-se no joelho de Tom, e, quando ela estava na cama, não conseguiu dormir, e manteve um pequeno gemido de angústia.

Bessy continuava chamando-a, primeiro por tons suaves e depois tons aguçados, na espera do retorno de seus irmãos e enquanto isso, Bessy ajudava Bill e Mary nas tarefas das aulas do dia seguinte, e preparava seu trabalho para uma noite feliz.

Logo os meninos mais velhos entraram.

— Onde está Jenny? — perguntou Tom, ao colocar os pés em casa.

— A coloquei na cama, estava na hora de Jenny dormir! — afirmou Bessy. — Pedi emprestado um livro para você ler para mim, enquanto me atrevo a costurar as meias!

— A mãe nunca a põe na cama tão cedo! — reclamou Tom, insatisfeito.

— Mas ela não ficaria quieta ao ouvir a nossa leitura. — concluiu Bessy.

— Não quero ler! — esbravejou Tom. — Quero que Jenny sente-se no meu joelho, como sempre faz, enquanto janto!

— Tom! Meu querido Tom! — chamou a pequena Jenny, que ouvira a sua voz, e, talvez, um pouco da conversa.

Tom deu dois passos e pegou Jenny em seus braços, em sua roupa de dormir. A menina olhou para Bessy, meio triunfante, mas assustada. Bessy não falou, mas ela estava evidentemente muito aborrecida.

Tom começou a comer seu mingau com Jenny em seu joelho. Bessy sentou-se em silêncio, amuada, ainda irritada com os irmãos, porque seu irmão não parecia se importar com o fato dela pedir emprestado um livro que ele tanto gostava.

Ela se irritou com seus erros, pronta para cair sobre a primeira pessoa que pudesse dar o menor motivo para a raiva.

A pobre Jenny, por algum movimento brusco, derrubou o jarro de leite, e fez um grande respingo no chão branco e limpo de Bessy. Isso bastava para Bessy soltar a sua ira.

— Não importa! — disse Tom, enquanto Jenny começava a chorar. — Também gosto do meu mingau sem leite!

— Oh! Não importa? — disse Bessy, com sua cor subindo pelas bochechas, e a respiração ficando mais curta. — Não importa sujar nada, Jenny? Porque sou quem limpa, não é? Mas vou fazer você se importar! — continuou ela, enquanto ela pegava um olhar de Jem para Tom.

Bessy deu um tabefe na cabeça de Jenny, e, no momento em que ela fez isso, ela se arrependeu, desejando dar uma bofetada em seu próprio rosto para controlar a sua fúria, pois, ela amava muito a pequena Jenny, e viu que ela realmente a machucou.

Jem gritou:

— Que vergonha, Bessy!

Tom, com seu excesso de simpatia pelos erros de sua irmãzinha, verificou de volta qualquer expressão que Bessy pudesse proferir de tristeza e arrependimento.

Ela se sentou ali, dez vezes mais infeliz que antes do acidente, endurecendo seu coração para as repreensões de sua consciência, mas sentindo profundamente que ela agira de forma errada.

Ninguém parecia reparar nela. Aquela noite, que ela esperava que fosse maravilhosa, virara um pequeno pesadelo e os outros, que nunca pensaram sobre isso, estavam todos quietos, pelo menos, na aparência, enquanto ela estava tão miserável.

Por um lado, ela sentiu o toque de uma mãozinha macia tocando sua mão. Ela olhou para ver quem era, era Mary, que até agora estava ocupada aprendendo suas lições, mas desconfortavelmente consciente do espírito discordante que prevalecia na sala. A menina tinha finalmente se aventurado até Bessy, a mais infeliz naquela casa.

A menina apenas quis expressar seu jeito gentil, sua simpatia para confortar a tristeza de Bessy.

Mary não era uma criança ligeira em seus modos, ela era desajeitada e não parecia ter muitas palavras para contar sobre seus sentimentos, mas era muito carinhosa e amorosa, e se submetia mansa e humildemente as pequenas repreensões que frequentemente sua mãe lhe dava.

— Querida Bessy! Boa noite! — sussurrou, beijando sua irmã, e, ao beijo suave, os olhos de Bessy se encheram de lágrimas, e seu coração começou a derreter.

— Jenny... — continuou Mary, indo para a menina mimada. — Você virá para a cama comigo. Contarei histórias sobre a escola, e cantarei minhas canções, enquanto coloco a minha roupa de dormir. Vem, pequenina! — afirmou a pequena Mary, estendendo seus braços.

Jenny foi tentada por este discurso e correra para a cama em um estado de espírito mais razoável que qualquer um ousara esperar.

Tudo parecia claro e aberto para a leitura, mas cada um estava orgulhoso demais para propor qualquer avanço. Jem, de fato, parecia esquecer completamente o livro, ele estava ocupado em assoviar e tirar lascas de um pedaço de madeira.

Finalmente Tom, por um grande esforço, perguntou:

— Bessy, podemos ler o livro agora?

— Não! — disse Jem. — Não comece a ler, pois, devo sair e tentar fazer Ned Bates me dar um pedaço de madeira. Este livro não serve para nada!

— Oh! — lamentou Bessy. — Não quero que ninguém leia este livro, se não aprecia a leitura! Mas sei que mamãe ficaria mais feliz se você parasse em casa quieto, em vez de correr para o Ned Bates a esta hora da noite.

— Sei o que a mamãe gostaria, tão bem quanto você, e não vou ouvir sermão por uma menina! — garantiu Jem, pegando seu boné e saindo.

Tom bocejou e foi para a cama. Bessy ficou sentada, chorando durante a noite.

— Tanto quanto eu pensava e planejava! Tenho certeza de que tentei fazer o que estava certo, e fazer os meninos felizes em casa. E, ainda assim, nada aconteceu como eu queria que acontecesse. Todos parecem revoltados comigo. Tom pegou Jenny, quando ela deveria estar na cama. Jem não se importou em ler um trecho do livro que pedi emprestado justamente para ele, e sentou rindo. Vi que ele preferia não ter o livro para ler. Parece tudo tão vexatório. Mary... Não! Mary foi uma ajuda e conforto, como ela sempre é, creio. Mary sempre se esforça para ajudar as pessoas, e tenho certeza de que ela não faz à metade do trabalho que faço para agradar!

Jem voltou logo, desapontado porque Ned Bates não estava em casa, e não conseguiu lhe dar nenhuma madeira de freixo. Bessy afirmou que isso fora um pequeno castigo de Deus por desobedecer aos desejos de sua mãe e sair naquela hora da noite, e, o irmão e a irmã falaram raivosamente um com o outro, até o andar de cima, e se separaram sem sequer dizer boa noite.

Jenny estava dormindo quando Bessy entrou no quarto que compartilhava com suas irmãs e sua mãe, mas ela viu os olhos despertos de Mary, olhando para Bessy entrar.

— Oh! Mary! Gostaria que a mamãe estivesse de volta! Os meninos se importariam com ela, e agora vejo que eles simplesmente vão se meter em encrenca para me maltratar e atormentar.

— Não penso que seja por isso... — começou Mary suavemente. — Jem queria mesmo aquele pedaço de madeira. Sei, porque ele me falou pela manhã que queria muito. Ele quer fazer uma cunha para evitar que a janela se agite nas noites ventosas, você sabe como nossa mãe se esquece.

No dia seguinte, a pequena Mary, a caminho da escola, passou pela casa de Ned Bates para pedir um pedaço de madeira para seu irmão Jem. Ela o trouxe para casa na hora do almoço, e pediu-lhe que seu irmão arrumasse a janela e assim, ele podia assoviar em paz, enquanto Tom ou Bessy liam em voz alta.

Mary disse a Jenny que se apressaria com suas aulas, de modo a estar pronta para dormir mais cedo e conversar com a pequenina sobre a escola, que era um lugar grandioso e maravilhoso aos olhos de Jenny, e assim, a menina se preparou calma e gentilmente para uma noite feliz, atendendo todos e entregando a felicidade que cada um desejava.

Enquanto Mary estava assim, ocupada preparando-se para uma noite feliz, Bessy passou parte da tarde na casa da Senhora Foster, vizinha de sua mãe.

A Senhora Foster era uma viúva idosa, muito elegante, que ganhara parte de seu sustento trabalhando para as lojas onde todos os tipos de tricô eram vendidos, e a atenção de Bessy foi atraída, logo que entrou, por um pedaço de tricô de lã muito bonito, com um novo ponto que seria usado como uma cobertura quente para os pés.

Após admirar a bela aparência, Bessy pensou como poderia, aquela peça, ser útil para sua mãe, e quando a Senhora Foster ouviu isso, ela se ofereceu para ensinar Bessy a fazer tricô. Mas de onde vinham as lãs?

Aquelas que a Senhora Foster usavam, eram fornecidas pela loja, e ela era uma mulher muito pobre para dar presentes, embora rica o suficiente, como todos nós somos, para dar ajuda de muitas outras maneiras e disposta a ensinar, o que alguns de nós não somos capazes de fazer.

As duas se sentaram perplexas.

— Quanto você disse que custa? — perguntou Bessy finalmente.

— Bem! Com certeza serão mais de dois xelins se for lã alemã. Você compra por dezoito centavos, se puder se contentar com o fio inglês.

— Não tenho dezoito centavos! — afirmou Bessy em um lamento.

— Posso emprestar para você. — ponderou a Senhora Foster. — Se eu tiver certeza de ter o dinheiro de volta antes de segunda-feira! Porque preciso pagar parte do aluguel. Você teria certeza, você consegue?

— Oh! Sim! — suspirou Bessy ansiosamente. — Pelo menos, tentarei. Mas talvez seja melhor não aceitar, pois, não sei onde posso conseguir dinheiro. O que Tom e Jem ganham é pouco, apenas o suficiente para a comida, agora que nossa mãe está incapacitada de lavar as roupas para fora, tudo ficou pior.

— Eles são bons rapazes obedientes, uma vez que ajudam sua mãe sem reclamar. — lamentou a Senhora Foster, suspirando, pois, ela pensou em seus próprios meninos, que a deixaram na velhice para trabalhar, com a visão desbotada e a força enfraquecida.

— Oh! Mamãe faz com que cada um deles guarde um xelim para si! — exclamou Bessy, em um tom de queixa, pois, ela queria dinheiro e estava inclinada a invejar qualquer um que o possuísse.

— Isso está certo! — garantiu a Senhora Foster. — Aqueles que o ganham, devem guardar um pouco para si. É o justo!

— Sobre a lã e estes dezoito centavos... Quem me dera ser um menino e poder ganhar dinheiro! Gostaria que mamãe me deixasse trabalhar na fábrica.

— Oh! Bessy! Que disparates! Tua mãe sabe o que é melhor para ti. Não quero ouvir-te reclamar da escolha de sua mãe, que fora a mais certa! Talvez, eu possa te ajudar a ganhar os dezoito centavos. A Senhora Scott, da loja de lã penteada, me disse que ela precisava de alguém para limpar a loja, no sábado, ou seria a casa? Falha-me a memória agora! Enfim... Você é uma boa garota, forte e pode fazer o trabalho. Devo dizer que você irá? Então, não me importo se lhe emprestar meus dezoito centavos. Você me pagará antes que eu pague meu aluguel na segunda-feira.

— Oh! Obrigada, querida Senhora Foster! — sorriu Bessy. — Posso limpar tão bem quanto qualquer mulher. Mamãe diz isso com frequência. Farei o meu melhor no sábado, mas, eles não a culparão por falar por mim?

— Oh! Bessy, eles não o farão, tenho certeza! Se você fizer o seu melhor. Você é uma boa garota.

Bessy demorou algum tempo, esperando que a Senhora Foster pudesse se lembrar de sua oferta em lhe emprestar o dinheiro, mas, achando que ela esquecera, aventurou-se a relembrar a velha mulher gentil. E fora evidente que não era nada, além de esquecimento, pois, a velha senhora se apressou para pegar seu bule de chá e tirou dele o dinheiro necessário.

— Obrigada, Senhora Foster!

— De nada, Bessy! Desde que eu tenha certeza de que ele será pago até segunda-feira. — continuou ela, enquanto via Bessy colocar seu gorro e se preparar para sair. — Fique! Você deve pegar os padrões de lã, e ir à loja certa, no nos portões de Santa Mary. Ora! Sua mãe não voltará nestas três semanas, criança! Acalme-se!

— Não! Não posso ficar esperando, e quero me preparar, antes que escureça. Vou comprar a lã... E, na volta, por favor! Ensine-me rapidamente o ponto de tricô.

Mesmo com toda a boa vontade de Bessy, Mary e Bill tiveram que ficar esperando naquele fim de tarde, pois, embora a vizinha, em cuja casa a chave foi deixada, pudesse deixá-los entrar na casa, não havia ceia pronta para eles no retorno da escola, Jenny estava fora, passando a tarde com uma companheira de traquinagens, o fogo estava quase apagado, o leite deixado na casa de um vizinho, assim, a casa estava totalmente sem conforto para as pobres crianças cansadas.

Bill resmungava terrivelmente, a cabeça de Mary doía, e os tons da voz de seu irmão, enquanto ele reclamava, lhe davam dor, e por um minuto, ela se sentiu inclinada a sentar e chorar.

No entanto, ela pensou em muitas pequenas frases que ela ouvira de seu professor, como:

“Nunca reclame do que você pode curar.”

“Seja resistente!”

Várias outras frases curtas de descrição semelhante passaram pela cabeça da menina. Então, ela começou a fazer a fogueira, pedindo para Bill buscar algumas lascas, e quando ele lhe deu a resposta rouca, que não via nenhum uso em fazer uma fogueira, porque não havia nada para cozinhar, ela foi e trouxe a lenha sem uma palavra de reclamação.

Bill esbravejou:

— Me dê este fole! Você não está soprando da maneira correta. As garotas nunca sopram direito!

Ele descobriu que Mary era sábia em preparar um fogo brilhante, pois, antes que o sopro terminasse, o vizinho com quem o leite ficara, o trouxe, e a pequena Mary preparou o mingau tão bem quanto sua mãe. Eles acabaram o mingau quando Bessy chegou, quase sem fôlego, porque ela se lembrara, de repente, no meio de sua aula de tricô, que Bill e Mary já estavam em casa depois da escola.

— Oh! — suspirou cansada. — Corri tanto! Tive medo de que o fogo se apagasse. Onde está Jenny? Você não estava com ela? Como você veio da escola sem ela? Oh! Tola Mary! Tenho certeza de que já lhe disse várias vezes sobre ficar de olhos abertos ao lado de Jenny! Agora não chore, criança tola! A melhor coisa que você pode fazer é descobrir onde está Jenny! — reclamou Bessy sem dar importância aos cuidados de Mary.

— Mas minhas lições, Bessy! Elas são tão ruins de aprender. Amanhã será o dia da tabuada! Não posso sair procurando Jenny. — suplicou Mary.

— Bobagem! A tabuada é fácil! Posso dizer até dezesseis vezes dezesseis em pouco tempo!

— Mas você sabe a tabuada, eu não, Bessy! Sou muito tola, e minha cabeça dói tanto de um dia para o outro!

— Bem! O ar da rua vai fazer bem, se está com dores de cabeça. Realmente, Mary, procure Jenny, porque estou ocupada, e você sabe que Bill é muito descuidado para ir buscar Jenny pelas ruas, e, além disso, você sempre pode administrar Jenny.

Mary suspirou e foi buscar sua irmã.

Bessy sentou-se ao seu tricô. Bill foi até ela com algumas perguntas sobre sua lição. Ela lhe disse a resposta sem olhar para o livro, dando respostas erradas, mas Bill não se importou e continuou perguntando, tão contente como se estivesse certo:

— Doze polegadas fazem um xelim! — ele sorriu.

Mary trouxe Jenny para casa em segurança. De fato, Mary sempre teve sucesso em tudo, exceto em aprender bem suas lições, e, às vezes, se o professor pudesse saber quantas tarefas recaíam sobre Mary, ele não pensaria que a pobre garota era lenta, embora o professor apreciasse plenamente a doçura e a humildade na disposição de Mary.

De noite, ela se esforçou nas lições e tudo isso sem nenhum uso. Sua cabeça doía, então, ela não conseguia se lembrar do que tentava aprender.

Ela ansiava por ir até sua mãe, cujas mãos frias, ao redor de sua testa, pareciam sempre lhe fazer muito bem, e cujas palavras suaves e amorosas eram uma grande ajuda para ela quando ela tinha que suportar a dor.

Ela arranjara tantos planos para aquela noite, e agora todos estavam ansiosos para ver Bessy tricotar. Entretanto, Mary não viu isto na luz clara em que a coloquei diante de vocês. Ela só lamentava não poder apressar suas lições, como prometera para Jenny, que a encarava pelo não cumprimento de suas palavras.

Jenny ainda estava de pé quando Tom e Jem entraram.

Eles falaram com muita firmeza com Bessy por não ter seu mingau pronto, e, enquanto ela se defendia, Mary, mesmo correndo o risco de lições imperfeitas, começou a preparar o jantar para seus irmãos. Ela fez tudo tão silenciosamente, que antes que eles percebessem, ela estava colocando o mingau na mesa e Bessy, de repente, envergonhada e tocada pela ajuda silenciosa de Mary, inclinou-se e a beijou, pois, mais uma vez, ela pensou em ajudar seus irmãos e deixou a lição de lado.

Mary atirou seus braços no pescoço de Bessy e começou a chorar, porque a pequena marca de afeto foi para o seu coração, já que ela desejara tanto uma palavra ou sinal de amor em seu sofrimento.

— Querida! — exclamou Jem. — Não chore como um bebê! — ele falou com muita gentileza. — Qual é o problema? A velha dor de cabeça voltou? Não importa! Vá para a cama, e você se sentirá melhor pela manhã.

— Não posso ir para a cama! Não fiz toda a minha lição. — Mary falou, tentando parecer feliz, embora as lágrimas estivessem em seus olhos.

— Tola! — disse Bill triunfantemente.

— Venha aqui! — disse Jem. — Tenho tempo suficiente. Agora vamos ver a difícil lição!

A ajuda de Jem logo permitiu que Mary finalizasse sua lição, mas, enquanto isso, Jenny e Bill brigavam, apesar da repreensão de Bessy, administrada em pequenas doses duras, enquanto ela olhava para cima a partir de seu tricô que absorvia tudo.

— Bem... — disse Tom. — Com este motim de um lado, e a lição monótona do outro, com Bessy cruzando as linhas, posso entender o que faz um homem sair para passar as noites fora de casa!

Bessy olhou para cima, e, de repente, despertou para uma sensação do perigo que sua mãe temia.

Ela pensou que foi uma sorte seu trabalho na Senhora Scott cair em um sábado, e não em algum outro dia da semana, pois, Mary estaria em casa, e atenderia às necessidades domésticas de todos.

Assim, Bessy sentia-se menos culpada em deixar o posto de trabalho que sua mãe lhe designara, e que ela prometera cumprir. Ela estava tão ansiosa por seus planos que ela não pensava em nada realmente, senão, ela teria visto muitas coisas às quais ela parecia estar cega.

Quando as lições de Mary para segunda-feira seriam aprendidas?

Bessy sabia tão bem quanto nós que a aprendizagem das lições era um trabalho duro para Mary.

Se Mary trabalhasse o máximo que pudesse depois da escola matinal, dificilmente limparia a casa de forma brilhante e confortável, antes que seus irmãos chegassem da fábrica.

Então, Mary faria isso no sábado, no início da tarde, com baldes de água, as cadeiras amontoadas, uma sobre a outra, e as mesas colocadas em cima da cômoda, que eram os objetos mais proeminentes da casa, e sendo assim, não haveria tentação para os rapazes. Além disso, Mary, cansada, por mais gentil que fosse, não seria capaz de cuidar de todos, como Bessy, uma garota inteligente e espirituosa, podia facilmente fazer. Mas Bessy não pensou nisso.

O que ela pensou foi na agradável surpresa que ela daria a sua mãe pela cobertura quente e bonita para seus pés. Bessy ansiava apresentar o presente no seu retorno para casa. E se ela fizesse as tarefas que se comprometeu na partida de sua mãe, se elas fossem compatíveis com seu plano de estar um dia inteiro ausente de casa, a fim de ganhar o dinheiro para as lãs, o projeto da surpresa seria inocente e louvável.

Bessy preparou tudo para o jantar, antes de sair de casa naquela manhã de sábado. Ela fez uma torta de batata, pronta para ser colocada no forno e também foi muito particular ao dizer para Mary o que seria limpo, então ela beijou as crianças e correu para a casa da Senhora Scott.

Mary tinha bastante medo da responsabilidade que lhe impunha, mas mesmo assim, ela estava satisfeita por Bessy confiar que ela podia fazer tanto.

Ela levou Jenny para a vizinha sempre atribulada, enquanto ela e Bill foram à escola, mas ela ficou bastante assustada quando a Senhora Jones começou a resmungar sobre essas frequentes visitas da criança.

— Eu estava pronta para cuidar da menina quando sua mãe estava doente, porque havia razão para isso. E a criança é boa, se não fizer traquinagens, mas sei de crianças que se você dá a mão, querem o braço inteiro. Onde está Bessy que não se importa com sua própria irmã?

— Ela precisou trabalhar! — disse Mary, apertando a mãozinha da irmã na dela, pois, ela tinha medo da raiva da Senhora Jones.

— Eu sairia para trabalhar todos os dias da semana, se eu tivesse a coragem para incomodar outras pessoas com meus filhos! — esbravejou a Senhora Jones em um tom surdo.

— Devo levá-la de volta, senhora? — questionou Mary timidamente, embora ela soubesse que isso implicaria em ficar longe da escola.

A Senhora Jones rosnou, mas não mordeu, pelo menos, não desta vez.

— Não! — exclamou a mulher. — Você pode deixá-la comigo. Suponho que ela já tomou seu café da manhã!

— Sim! Vou buscá-la assim que puder, depois das doze.

Mary nunca pensou em nenhuma dificuldade, porque elas pareciam ser os acontecimentos naturais da vida, e como ela gerenciava as coisas mal, ela sempre se sentia culpada. Mesmo assim, ela estava um pouco agitada com a repreensão da Senhora Jones e desejou levar Jenny de volta para casa. Suas lições não foram bem feitas, devido à distração de sua mente.

Quando ela foi para Jenny, descobriu que a Senhora Jones, arrependida de suas palavras afiadas, oferecera para a menina, pão e melaço, e a deixou muito à vontade, tanto que Jenny não estava pronta para deixar suas pequenas brincadeiras, quando Mary pediu para irem. Jenny não estava com humor para se apressar. Mary pensou na torta de batata e seus irmãos, e quase chorou, já que Jenny, desatenta as súplicas de sua irmã, queria ficar para brincar mais um pouco.

— Serei obrigada a ir e deixá-la, Jenny! Devo preparar o jantar!

— Não me importo! — resmungou Jenny. — Não quero jantar, e posso voltar para casa muito bem sozinha!

Mary ansiava por dar-lhe um susto, mas ela pensou em sua mãe, que estava sempre tão ansiosa com Jenny, e ela não o fez. Ela continuou tentando pacientemente atraí-la para frente, e finalmente elas estavam em casa.

Mary agitou o fogo, que, para toda a aparência era bastante negro, e depois de muitas tentativas, ele se acendeu, mas o forno estava frio. Ela colocou a torta e soprou o fogo, mas a pasta estava bastante branca quando seus irmãos chegaram a casa, ansiosos e famintos.

— Oh! Mary! Que boa dona-de-casa você é! — zombou Tom. — Qualquer outra pessoa se lembraria de colocar a torta a tempo.

Os olhos de Mary encheram-se de lágrimas, mas ela não tentou se justificar. Ela continuou soprando, até que Jem pegou o fole e gentilmente ajudou a levantou o fogo.

Jem era sempre gentil. Ele deu para Tom o melhor lado assado da torta, calmamente tomou o lado mais branco da massa, e pegou as batatas mais duras. Ele percebeu Mary observando-o, e falou:

— Mary, eu gostaria que guardasse o resto da torta para aquecê-la depois, na hora do jantar, não há nada melhor como a torta de batata aquecida na segunda vez!

Tom saiu dizendo:

— Mary, eu não gostaria de tê-la como esposa, de forma alguma! Ora, meu almoço nunca estaria pronto, e sua cara triste me tiraria o apetite, se o estivesse!

Mas Jem a beijou e sorriu:

— Deixa para lá, Mary! Vamos viver juntos, a solteirona e o solteirão!

Assim, ela conseguiu se dedicar com espírito à limpeza, pensando que nunca houve um irmão tão bom como Jem, e, enquanto ela se debruçava sobre suas perfeições, ela pensava ser uma benção ter um irmão bondoso, e sentia seu coração cheio de gratidão a Ele.

Ela vasculhou e limpou a casa com toda a seriedade. Jenny a ajudou durante algum tempo, encantada por poder tocar e levantar as coisas do lugar, contudo, ela ficou cansada e Bill estava fora das portas da casa, então, Mary teve que fazer tudo sozinha, ficando muito nervosa e assustada, para que tudo estivesse pronto antes que Tom voltasse para casa.

E, quanto mais assustada ela ficava, pior ela se dava.

Suas mãos tremeram e as coisas escorregaram delas, e assim, não conseguiu levantar os móveis pesados rapidamente e o relógio bateu a hora do retorno de seus irmãos, quando tudo devia estar arrumado e pronto para o chá. Ela desistiu em desespero, e começou a chorar.

— Oh! Bessy! Bessy, por que você foi embora? Tentei muito e não consigo! — choramingou em voz alta, como se Bessy pudesse ouvir.

— Querida Mary, não chore! — disse Jenny. — Vou ajudá-la. Sou muito forte. Posso fazer qualquer coisa. Posso levantar essa chaleira do fogo!

A chaleira estava cheia de água fervente, pronta para Mary. Jenny pegou a alça e a arrastou ao longo da barra sobre o fogo. Mary saltou de terror para frente, para deter a menina. No momento seguinte, seu braço e seu lado estavam cheios de dor ardente, o que a deixou tonta, e Jenny chorava apaixonadamente ao seu lado.

— Oh! Mary! Mary! Mary! Minha mão está escaldada. O que devo fazer? Não posso suportar!

Ela continuava apertando a mão para esfriá-la pela ação do ar, mas Mary pensava que ela mesma estava morrendo, tão aguda e terrível era a dor. Ela mal podia evitar gritar, mas ela sentia que, se uma vez começasse, não pararia, então, ficou quieta, gemendo e as lágrimas corriam pelo seu rosto como chuva.

— Vá! Jenny! — gemeu Mary. — Corra até algum vizinho e diga que preciso de ajuda.

— Não posso! Não posso! Minhas mãos doem tanto! — reclamou Jenny.

Porém, ela voou loucamente para fora de casa no minuto seguinte, gritando:

— Mary está morta! Venha!

Mary não podia mais suportar a dor e desmaiara, de fato, como se estivesse morta. Os vizinhos se juntaram, e um correu para o médico.

Em cinco minutos, Tom e Jem voltaram para casa. Se é que aquilo se parecia com uma casa, porque pessoas que eles mal conheciam estavam nela, e a quantidade de pessoas fez com que a casa parecesse que jamais fora limpa, já que tudo estava em desordem e sujo com o pisoteio de muitos pés.

Jenny ainda chorava apaixonadamente, mas meio confortada por ser atualmente a única autoridade sobre como o caso aconteceu.

Enquanto gemidos fracos do quarto lá em cima, onde algumas mulheres estavam cortando a roupa da pobre Mary, preparando-se para a inspeção médica, Jem disse:

— Alguém pode ir até à Senhora Scott e chamar Bessy. O lugar dela é aqui com Mary!

Então, ele dispensou silenciosamente todas as pessoas desnecessárias e inúteis, sentindo-se seguro de que, em caso de qualquer doença, o silêncio era a melhor coisa.

Depois, os irmãos subiram as escadas.

O rosto de Mary estava escarlate com dor violenta, mas ela sorriu um pouco através de suas lágrimas ao ver Jem e ela falou:

— Acho que não foi culpa de ninguém, Jem! Era muito pesado para levantar!

— Você está com muita dor, querida? — perguntou Jem, em um sussurro.

— Julgo que estou morta, Jem! Creio mesmo que estou. Eu queria ver mamãe novamente.

— Bobagem! — disse a mulher que ajudara Mary.

Pois, como ela disse depois, se Mary morria ou vivia, chorar era uma coisa ruim para ela. Quando a mulher viu que a menina estava pronta para chorar ao pensar em sua mãe, embora Mary suportasse corajosamente todo o tempo em que as roupas eram cortadas, ela tentou a repreender.

O rosto de Bessy, que ficara vermelho com uma corrida dura, desbotou para um branco morto quando viu Mary. Ela parecia tão chocada, que Jem não tinha coragem para culpá-la, embora, no minuto anterior à sua chegada, ele estivesse se sentindo muito zangado com ela.

Bessy ficou parada aos pés da cama de Mary, sem dizer uma palavra, enquanto o médico examinou e sentiu seu pulso. Apenas grandes lágrimas redondas se juntaram em seus olhos, e rolaram pelas bochechas abaixo, enquanto ela observava Mary tremer de dor.

Jem seguiu o médico até o andar de baixo. Então, Bessy foi e ajoelhou-se ao lado de Mary, e enxugou as lágrimas que estavam escorregando pelo pequeno rosto.

— Está doendo, Mary? — perguntou Bessy.

— Oh! Sim! Sim! Se eu falar, vou gritar! Eu não estava zangada, estava? Eu não queria estar, mas eu mal sei o que estou dizendo! — gemeu a pequena Mary. — Por favor, me perdoe, Bessy, se eu estava zangada.

— Deus me perdoe! — lamentou Bessy, muito baixo.

Eram as primeiras palavras que ela falara desde que voltara para casa, mas não podia haver mais conversas entre as irmãs, uma vez que estava ali, ao lado delas, a mulher que ajudava Mary.

Logo, Jem veio até a porta e acenou. Bessy levantou-se e foi com ele para baixo. Jem parecia muito nervoso, mas não tão triste como antes da chegada do médico.

— Ele diz que ela deve ir para a enfermaria.

— Oh! Jem! Quero cuidar dela! — exclamou Bessy implorando. — Foi tudo culpa minha! — ela engasgou-se com o choro. — Penso que posso fazer isso, para fazer as pazes.

— Minha querida Bessy. — Jem suspirou, porque antes de ver Bessy, ele pensou que nunca mais a chamaria de querida, mas agora ele começou. — Minha querida Bessy, ambos queremos que Mary melhore, não é mesmo? Tenho certeza que sim. Queremos tomar a melhor maneira de fazê-la melhorar, seja qual for o tratamento. Bem, então, penso que não devemos estar considerando o que deveríamos gostar, mas o que o médico, que estudou para isso, pensa. Não consigo me lembrar de tudo o que ele disse, mas ele afirmou que todas as feridas na pele precisavam de mais e melhor ar para cicatrizar. Mary ficando aqui, será ruim. E lá, o médico a verá duas vezes ao dia, se necessário.

Bessy balançou a cabeça, mas não conseguiu falar no início. Finalmente, ela falou:

— Jem, eu queria fazer algo! Ninguém pode cuidar dela como posso.

Jem ficou em silêncio. Ele pegou a mão de Bessy, pois, queria dizer algo a ela que tinha medo de vexá-la, e mesmo assim, ele julgava que deveria dizer.

— Bessy! Quando mamãe foi embora, você planejou fazer todas as coisas bem em casa, e fazer todos felizes. Sei que você tentou. Agora, posso lhe dizer como creio que você errou? Não fique brava, Bessy!

— Acho que nunca mais terei espírito suficiente em mim para ficar com raiva. — disse Bessy, humildemente e com tristeza.

— Mas, não se preocupe demais com Mary. O médico tem boas esperanças, se conseguir levá-la para a enfermaria. Agora, vou lhe dizer onde você se enganou depois que mamãe partiu. Veja, Bessy! Você queria nos fazer felizes do seu jeito. Assim como você quer agora cuidar de Mary do seu jeito. Até onde posso perceber, aquelas pessoas que fazem o lar mais feliz, são pessoas que tentam descobrir como outros pensam e ajudá-los a realizar seus desejos até onde eles podem. Você sabe, você queria que ouvíssemos seu livro, e muito gentil foi você pensar nele, contudo, você vê, um queria assoviar, e outro queria fazer isto ou aquilo, e então, você estava irritada com todos nós. Se eu estivesse em seu lugar, eu teria planejado tal acordo para os outros. Entenda, somente os que observam a cena, sabem onde os erros se escondem e vi o que você fez com a pobre Mary no dia seguinte. Deveríamos ser muito mais felizes. Mary pensou como encaminharia nossos planos, em vez de tentar nos impor um plano próprio. Ela me arranjou a lenha para branquear, e levou os pequenos para a cama, para que a casa ficasse quieta, se você quisesse alguma leitura, como ela pensava que você queria. Notei, que algumas pessoas conseguem fazer um lar feliz. Outras, podem tentar, mas não conseguem.

— Ouso dizer ser verdade. — resmungou Bessy. — Às vezes, todos vocês andam por aí como se não soubessem o que fazer. Eu pensei que ler agradaria a todos vocês.

Jem foi tocado pela maneira humilde de falar de Bessy, tão diferente de sua maneira habitual, alegre e autoconfiante, então, ele respondeu:

— Sei que sim, querida. Muitas vezes, deveríamos ter ficado contentes quando não tínhamos nada para fazer, como você diz.

— Prometi à mamãe tentar fazer vocês felizes, e este é o fim de tudo! — lastimou Bessy, começando a chorar de novo.

— Mas, Bessy! Creio que você não estava pensando em sua promessa quando você se preparou para sair e trabalhar para conseguir lã, certo?

— Pensei em ganhar dinheiro!

— Não ficamos felizes por ganhar dinheiro. Temos o suficiente, com cuidado e gerenciamento. Se queria isso, deveria estar em casa, com uma cara brilhante, pronta para nos receber, não acha, querida Bessy?

— Não queria o dinheiro para casa. Eu queria fazer para a mamãe um presente de uma coisa tão bonita.

— Pobre mãe! Receio que tenhamos que mandá-la para casa agora. Ela só esteve três dias em Southport!

— Oh! — falou Bessy, assustada. — Não mande chamar a mãe! O médico disse tanto sobre sua ida para Southport. Que seria a única coisa boa para ela. Isso vai matá-la, Jem! De fato, vai! Você não sabe como ela está fraca e assustada. Oh! Jem! Jem!

Jem sentiu a verdade do que sua irmã estava dizendo. Por fim, ele resolveu deixar o assunto para o médico decidir, pois, ele assistira a sua mãe, e agora sabia exatamente o perigo que havia em relação a Mary.

— Você não vai mandar chamar a mamãe? — suplicou Bessy para o irmão. — Se for a melhor coisa para Mary... Enfim... Vou lavar as coisas dela até a noite, e tudo estará pronto para ela ir à enfermaria. Não vou pensar em mim, Jem.

— Bem! Preciso falar com o médico! — garantiu Jem. — Não devemos tentar consertar, só porque o desejamos, mas, porque está certo.

Durante a noite inteira, Bessy lavou e engomou as roupas de Mary, e ainda estava pronta para atender Mary quando Jem a chamava.

Bessy pegou a mão escaldada de Jenny e a banhou com a loção que o médico enviou e tudo foi feito com tanta mansidão e paciência, que até Tom ficou impressionado com ela, e admirava a mudança.

O médico chegou muito cedo. Ele preparara tudo para a admissão de Mary na enfermaria. Jem o consultou para mandar chamar sua mãe de volta. Bessy sentou-se tremendo, esperando sua resposta.

— Não estou muito disposto a sancionar qualquer dissimulação. No entanto, como você diz, sua mãe está em um estado muito delicado. Isso pode fazer muito mal, se ela tivesse algum choque. Bem! Suponhamos que, por esta vez, assumo isto. Se Mary continuar como espero, porquê... Bem! Bem! Veremos... Cuidado, porque sua mãe será informada de tudo quando ela voltar para casa. Se nossa pobre Mary piorar, o que julgo pouco provável, pois, sabemos dos cuidados da enfermaria, mas... Se ela piorar, escreverei à sua mãe, e farei com uma amiga gentil que tenho em Southport a ajude a voltar para casa. E agora... — falou ele, voltando-se, de repente, para Bessy. — Diga-me! O que você estava fazendo em casa, quando isso aconteceu? Sua mãe não a deixou no comando de todos em casa?

— Sim, senhor! — murmurou Bessy, tremendo. — Pensei que ganharia dinheiro para fazer um presente para mamãe!

— Pensou em dar-lhe um belo presente? Que presente maravilhoso você acaba de entregar para a sua mãe! Direi o seguinte... Nunca descuide do trabalho claramente disposto por Deus ou pelo homem, para ir trabalhar por conta própria, de acordo com seus desejos. Deus sabe para o que você está mais apta. Faça isso! Depois espere, se você não vê nitidamente seu próximo dever. Você não vai ficar ociosa por muito tempo neste mundo, se estiver pronta para uma convocação. Agora, deixe-me ver se Mary está pronta para ir à enfermaria.

Jem estava segurando a mão de Bessy.

— Ela lavou tudo, tornando o enxoval apto para uma rainha. Nossa Bessy trabalhou a noite toda. Vou com Mary, porque sou forte.

— Isso mesmo! — o médico respondeu e olhou para Bessy. — Mesmo quando você quiser estar a serviço dos outros, não pense em como agradar a si.

Não tenho muito mais a lhe dizer sobre Bessy. Este triste acidente de Mary, a fez muito bem, embora lhe custara tanta amargura no início. Ele lhe ensinou várias lições sobre responsabilidades e cuidados, que devemos ter, quando somos encarregados de certas funções.

Mary e Bessy cuidavam dessas funções com a maior fidelidade e zelo.

A mãe ficou em Southport em seu tempo integral, e voltou para casa com a saúde recuperada.

Então, Bessy colocou seus braços em volta do pescoço de sua mãe, e contou tudo, mais severamente que o médico ou Jem, quando eles contaram a mesma história depois.

Fim.


O Jardineiro Inglês do Xá

Os fatos da seguinte narração foram comunicados pelo Senhor Burton, o jardineiro chefe do Parque Teddesley, em Staffordshire.

Fui informado anteriormente, que ele estava há um ou dois anos a serviço do Xá[118] da Pérsia, e isto me levou a questioná-lo a respeito dos motivos que o levaram tão longe da Inglaterra, e da maneira de vida que ele levava em Teerã.

Eu estava tão interessado nos detalhes que ele me deu, que fiz anotações na época, que permitiram elaborar o seguinte relato:

O Senhor Burton era um homem fino e saudável, no auge da vida, cuja aparência anunciaria sua nação em todo o mundo.

Ele completara sua formação como jardineiro na Knight, quando, em 1848, um pedido foi feito para ele, em nome do Xá da Pérsia, pelo Coronel Sheil, o enviado inglês na corte de Teerã, que propôs ao Senhor Burton que retornasse à Pérsia com o segundo secretário da embaixada, Mirza Oosan Koola, e assumisse o comando dos Jardins Reais de Teerã.

Para isso, ele receberia um salário de cem libras por ano, com quartos providenciados para ele, e um quinhão de dois xelins por dia para sua alimentação e do criado nativo, que ele achasse necessário empregar.

Esta perspectiva e o desejo, tão natural para os jovens, de ver países além dos seus, levou o Senhor Burton a aceitar a proposta.

O Mirza Oosan Koola e ele deixaram Southampton no dia 29 de setembro de 1848, e partiram a vapor para Constantinopla. A partir daí, viajaram, sem acidentes, para a capital da Pérsia. A sede do governo fora removida para Teerã, cerca de setenta anos antes, quando a dinastia Kujur tornou-se possuidora do trono persa.

Sua facção era predominante no norte da Pérsia e, consequentemente, eles se sentiam mais seguros em Teerã do que na antiga capital do sul.

Teerã está situada no meio de uma ampla planície, de 200 a 300 milhas de comprimento, que tem uma aparência mais sombria, sendo totalmente inculta, e cujo solo é leve, de argila avermelhada, que se pulveriza após um longo tempo seco, e depois se eleva, como grandes nuvens de areia, às vezes, até obscurecendo o sol em várias horas do dia, por vários dias sucessivos.

Entretanto, notícias aguardavam o Senhor Burton em sua chegada a Teerã. O Xá, que encarregara o Coronel Sheil de contratar um jardineiro inglês, estava morto. Seu sucessor pouco se importava com jardinagem ou com os compromissos de seu predecessor.

O coração do Senhor Burton afundou um pouco dentro dele, mas, tendo um espírito inglês robusto e de grande fé na embaixada britânica, ele insistiu no cumprimento parcial do contrato.

Até que a negociação fosse concluída, o Senhor Burton ficou alojado na casa do Mirza Oosan Koola. O Senhor Burton foi, portanto, durante um mês, membro de uma família persa, pertencente a uma das classes médias altas.

O modo usual de viver em uma casa parecia quase o mesmo em tudo o que se enquadrava na observação do Senhor Burton.

Os persas se levantavam ao nascer do sol, quando tomavam uma xícara de café.

As poucas horas do dia em que eles concordavam a trabalhar de qualquer forma, eram desde o nascer do sol até às sete ou oito horas da manhã. Depois disso, o calor se tornava tão intenso, frequentemente quarenta e cinco graus à sombra, fazendo todos se sustentarem nas portas, deitados nas esteiras, em passagens ou quartos.

Às dez horas, eles tinham sua primeira refeição substancial, que consistia em carneiro e arroz, cozidos em uma panela rude sobre um fogo de carvão vegetal, construído fora das portas. Às vezes, além deste prato, eles tinham uma espécie de sopa, ou carne de água, que é a tradução literal do nome persa, feita de água, carneiro, cebola, salsa, galinha, arroz, frutas secas, damascos, amêndoas e nozes. Como podemos adivinhar pela multiplicidade dos ingredientes, era um prato delicado.

Às quatro horas, os persas ofegantes, quase desgastados pelo calor do dia, tomavam uma xícara de chá fortemente perfumado, com um pouco de suco de laranja amargo espremido nele, e depois deste tônico, eles recuperavam a força suficiente para fumar e relaxar.

O jantar era a grande refeição do dia, para a qual eles convidavam os amigos. Não diferia do café da manhã, mas era feita uma sobremesa, na qual se introduzia vinho ocasionalmente, mas que consistia sempre de melões e frutas secas.

A ceia era trazida em uma bandeja de estanho, mas o Senhor Burton observou que os pratos de estanho eram muito sujos. Um pedaço de tecido comum era espalhado no chão, com bolos e pães colocados sobre ele. Eles não tinham colheres para a sopa, ou para a carne de água, mas ensopavam o pão, ou o enrolavam em uma forma oca, e pescavam a comida.

Eles tinham colheres, mas para o leite de cabra azedo com gelo, que parecia ser uma de suas iguarias. O gelo era trazido das montanhas, e vendido bem barato nos empórios. O açúcar e o sal eram abocanhados com este leite de cabra azedo e gelado.

Fumar narguilé[119] seduzia as horas da noite de forma muito agradável. Eles arrancavam uma quantidade de flores de rosas e as colocavam na água por onde passava a fumaça, mas as rosas duravam apenas um mês na estação.

Mirza Oosan Koola tinha algumas cadeiras na casa para o uso dos senhores da Embaixada.

Finalmente, a negociação a respeito do Senhor Burton foi encerrada. Seus amigos na Embaixada insistiram para que o atual Xá o instalasse como jardineiro real com o salário proposto por seu antecessor.

Assim, cerca de um mês após sua chegada a Teerã, ele tomou posse de dois quartos apropriados ao seu uso, no jardim de El Kanai.

Este jardim consistia de seis acres, com uma muralha de lama ao redor. Havia avenidas de árvores frutíferas plantadas, com lucernas crescendo sob elas, que eram cortadas para o alimento dos cavalos no estábulo real, mas a lucerna e as árvores deram ao jardim real o aspecto de um pomar inglês, e por certo, fora uma perspectiva muito desencantadora para um jardineiro bem treinado, acostumado com nossos canteiros de flores e hortifrutigranjeiros.

As árvores frutíferas eram damascos, maçãs, peras e cerejas, esta última, da mesma descrição que a nossa, mas de qualidade mais fina. Os damascos eram do tipo que o Senhor Burton nunca avistara antes, com grandes grãos doces. Ele trouxe algumas sementes com ele para a Inglaterra, e as deu ao seu antigo mestre, o Senhor Knight.

Se este terreno quadrado repleto de orquídeas, cercado por uma parede de lama, era a perspectiva sem ânimo, lá fora, os dois quartos que o Senhor Burton habitaria não eram muito mais atraentes.

Desprovidos de todos os móveis, com pisos de lama e palha batidos juntos, eles não continham sequer as esteiras que desempenhavam tantos papéis nas casas persas.

O primeiro cuidado do Senhor Burton foi comprar tapetes e contratar um criado para cozinhar para ele.

O povo da Embaixada lhe enviou os vários fardos de sementes, raízes e implementos, que ele trouxera consigo da Inglaterra, e esperava em pouco tempo introduzir algumas melhorias na jardinagem persa, porém, ele ainda desconhecia as pessoas com as quais ele tinha que lidar.

Antes que ele estivesse bem instalado em seus dois quartos, enquanto ele ainda estava desempacotando seus fardos ingleses, alguns estucadores nativos lhe disseram que, do lado de fora de sua porta de madeira, que se prendia apenas com uma leve corrente, seis homens o esperavam para fazer-lhe o mal, motivados pelo fato dele ser um estrangeiro, e na esperança de obter a posse de parte do conteúdo desses fardos.

Eram duas milhas até a Embaixada, e o Senhor Burton estava sem um amigo mais próximo, porque seus próprios informantes não o apoiavam, mas preferiram se regozijar de sua falta de empenho. Mas, sendo um homem corajoso e resoluto, ele escolheu uma foice entre seus implementos ingleses, abriu a porta e começou a se dirigir aos seis homens, que estavam de cócoras perto da entrada, o melhor dialeto persa que ele conseguia reunir em suas palavras.

Sua eloquência persa, ou possivelmente a visão da foice empunhada por um homem robusto e determinado, produziu o efeito desejado. Os seis homens, felizmente, foram embora, sem atacar, pois, qualquer esforço de autodefesa de sua parte teria reforçado o sentimento de hostilidade, já forte contra ele.

Mais uma vez, ele foi deixado em silêncio para desempacotar seus bens, com a luz sombreada que duas janelas podiam dar. Todavia, quando suas ferramentas foram desempacotadas e selecionadas com cuidado e um coração esperançoso na Inglaterra, ele pensou em como e quem deveria usá-las.

Os homens nomeados como jardineiros sob ele, não trabalhariam, porque nunca eram pagos. Se o Senhor Burton os fizesse trabalhar, ele deveria pagá-los, falaram eles.

Ele os persuadiu a trabalhar, durante as horas em que o esforço era possível, até mesmo para um nativo. O Senhor Burton começou a perguntar como esses homens eram pagos, ou se sua história era verdadeira, sobre que eles nunca eram pagos realmente.

Era verdade que os salários pelo trabalho feito para o Xá, eram dados de forma muito irregular. E, quando o dinheiro não era dado, ele era pago na forma de benefícios, em algum portão de uma cidade, ou em algum banho público, umas cem ou cento e vinte milhas de distância, sendo tais portões e banhos, propriedade real.

Raramente o pagamento de salários era honesto, e é claro que o roubo era também abundante, e isso facilitava a desculpa do não pagamento em dinheiro e sim, em favores, porque os roubos eram efetuados em um piscar de olhos dos oficiais reais.

Os jardineiros sob o comando do Senhor Burton, por exemplo, recolhiam com cuidado as flores que ele cultivava e as apresentavam a qualquer chefe que entrasse no El Kanai, e o presente que recebiam, por sua vez, constituía seu único meio de subsistência.

Às vezes, o Senhor Burton era o único trabalhador deste jardim, e ele tinha o encargo de vinte acres quadrados em tamanho, e a alguma distância de El Kanai, onde ele morava.

Quando o tempo quente chegou, ele ficou doente de diarreia, e durante três meses, ficou cansado e doente em sua esteira, incapaz de superintender, se houvesse jardineiros, ou de trabalhar por conta própria, se não houvesse nenhum.

Depois de se recuperar, ele parecia sem esperança de fazer qualquer bem em tal clima, e entre tal povo.

O Xá se interessou pouco pela horticultura.

Às vezes, ele entrava nos jardins de El Kanai, no qual seu palácio estava situado, e fazia, através de um intérprete, algumas perguntas, de uma maneira lânguida e cansada.

Por vezes, quando o Senhor Burton tinha algum legume pronto, ele mesmo pedia licença para apresentá-lo ao Xá, então, ele tecia uma cesta dos galhos do choupo-branco, a árvore que mais abundava na grande planície estéril ao redor de Teerã, e, enchendo isto com alfaces, ervilhas ou produtos similares do jardim, ele era introduzido com muita cerimônia em uma das cortes ou pequenos pátios, como o Senhor Burton uma vez os chamou irreverentemente, pertencente ao palácio.

Ali, em uma espécie de varanda projetada de uma das janelas, o Xá sentou-se e o jardineiro inglês, sem sapatos, mas com a pele de cordeiro cobrindo sua cabeça, fez uma reverência três vezes, enquanto entregava sua cesta para ser entregue ao Xá.

O Senhor Burton não fez a salaam[120] persa, considerando uma obediência tão escravagista que não era digna para um europeu.

O Xá recebeu estas cestas de legumes, algumas das quais eram novas para ele, com grande indiferença, não se importando em fazer qualquer pergunta.

O espírito de curiosidade, porém, estava vivo no harém, e, um dia, o Senhor Burton ficou surpreso ao receber um comando para ir semear algumas sementes em uma das cortes do harém, porque este era o desejo da rainha-mãe.

Assim, levando alguns pacotes de sementes de flores comuns, ele passou por algumas salas do palácio, antes de chegar às cortes, que abriam uma dentro da outra.

Estas salas, o Senhor Burton considerou pouco melhor, seja em tamanho, construção ou móveis, do que seu jardim-moradia, mas havia alguns cômodos neste palácio real que eram esplêndidos, um forrado com chapa de vidro, e vários deles equipados com as belas janelas pintadas, pelas quais a Pérsia era celebrada.

Ao entrar nas cortes pertencentes ao harém, o Senhor Burton se viu atendido por três ou quatro soldados e dois eunucos[121], todos com espadas desembainhadas, que eles faziam questão de segurar acima deles, mais para sua diversão, especialmente porque eles desejavam os vislumbres ocasionais das senhoras espreitadoras.

Antes de passar de um pátio para outro, um ou dois soldados o seguiam, para proteger suas costas, porque se alguém entrasse no pátio onde o Xá estava, os soldados o agarrariam, o amontoariam em um canto escuro, e virariam seu rosto para a parede, e o Xá, enquanto isso, passava por baixo da capa do grande manto de seu criado, algo como o que faz o pintinho espreitando debaixo da asa da galinha.

Qualquer que fora o perigo do belo jovem inglês, ele, pelo menos, não se sentia particularmente atraído pela aparência das mulheres do harém.

O maior elogio que ele podia dar era que uma ou duas eram toleravelmente bonitas, e, ao ser pressionado por detalhes, ele disse que aquelas senhoras do harém, das quais ele vislumbrou, se assemelhavam a todas as outras mulheres persas, por terem características muito amplas, compleições muito grosseiras e olhos grandes.

Elas, assim como os homens, pintavam as sobrancelhas, de modo a fazê-las parecer que se encontravam. E isso deixava o rosto com uma construção robusta. Estas foram as observações que o Senhor Burton fez, ao passar pelos pátios que o levavam ao pequeno jardim, onde ele semearia as sementes de flores. Ali, a rainha-mãe sentou-se em uma varanda projetada, mas, assim que viu o estranho, ela se retirou.

Ela tinha cerca de trinta e cinco anos, e possuía muita influência no país, o que, por ser uma mulher cruel e ambiciosa, produzira grandes males.

Um dia, a empregada da Senhora Sheil, que acompanhara sua senhora em uma visita às mulheres do harém, se encontrou com uma francesa que morava lá, há mais de vinte anos. Ela parecia perfeitamente contente com sua situação, e não tinha vontade de trocá-la por nenhuma outra.

Por vezes, o Senhor Burton enviava flores para o harém. Flores peruanas, calêndulas africanas, cepas e violetas plantadas ao longo dos lados das trilhas entre planos e choupos, eram as flores que ele recolhia para formar um belo buquê.

Contudo, toda jardinagem era um trabalho cansativo e constante, devido ao grande calor do clima e a escassez de água, principalmente, porque não havia nenhum serviço ou assistência a ser derivada de nenhum outro homem.

Os homens designados para ajudá-lo eram descuidados e preguiçosos e com o passar do tempo, pioraram. Ele não tinha meios de impor obediência ou atenção, e, se tivesse, não ousaria usá-los, porque aumentaria o ódio que se prendia a ele, como um estrangeiro.

Além disso, ninguém se importava se os jardins floresciam ou decaíam. Se não fosse pela bondade de alguns dos residentes ingleses, entre os quais ele mencionou especialmente o Senhor Reads, sua situação seria totalmente intolerável.

Não havia nada na vida externa do lugar que pudesse compensar sua decepção, pelo menos, ele não percebera nada.

Um dia, ao cruzar o mercado, ele viu oito homens deitados de cabeça cortada, executados por serem fanáticos religiosos, que assumiram o caráter de profetas.

Em outro momento, seis homens foram mortos por roubo em estradas, e o modo de morrer estava cheio de horror. Eles foram pendurados de cabeça para baixo, com o braço direito e a perna cortada, um deles arrastou a vida neste estado por três dias.

Mesmo as punições menores, cruéis e vingativas, eram sempre onde o poder da execução das leis era incerto.

Uma das penas infligidas por delitos leves era ter uma corda passada pelas narinas, e ser conduzido por três dias sucessivos através dos bazares e mercados, por um pregoeiro, proclamando a caráter do delito cometido.

A cegueira era muito comum.

O Senhor Burton observava frequentemente seis ou oito homens cegos andando em um cordel, cada um com seu braço direito no ombro de seu precursor. Por vezes, a cegueira era causada por oftalmia[122], produzida pela poeira, e, às vezes, por indícios de que o Xá tinha em seu poder a punição de arrancar ambos, ou um dos olhos.

O bisavô do atual Xá, Aga Mohammed, o fundador da dinastia Kujur, tinha grandes cestas-cheias de olhos de seus inimigos, apresentadas a ele, após sua ascensão ao trono.

Vamos mudar o assunto, para a essência aromática das rosas, embora todos os perfumes da Arábia não possam adocicar a memória daquela última frase que escrevi.

A essência aromática de rosas era feita e vendida nos empórios, a rosa empregada era a comum, que era recolhida antes que o súbito nascer do sol quente fizesse com que o orvalho evaporasse.

Ao lado dessas essências e seus vendedores, podia-se ver os judeus, vendendo bugigangas e os armênios, cristãos de nome, e, como tal, não vinculados por nenhuma lei de Maomé, vendendo um vinho tinto adocicado e destilado feito do refugo das uvas e parecido com o gin, enquanto, através das barracas, os homens caminhavam, tendo sacos de couro nas costas, contendo água ruim e suja, e um pedaço de gelo em uma bacia, na qual eles despejavam para seus clientes.

O gelo era trazido das montanhas e vendido à taxa de três moedas de cobre. Trinta dessas moedas faziam um koraun, uma moeda de prata, que se convertida em nossa moeda inglesa, seria no valor de onze pences, e dez korauns faziam um tomaun, uma moeda de ouro no valor de nove xelins.

A água potável era obtida de canais abertos ou de tanques, nos quais eram feitas toda a lavagem que os persas davam às suas roupas.

Eles não usavam sabão, nem para fazer a barba, mas água com sabão seria preferível ao líquido obtido dessas fontes, com vermes flutuando em sua superfície.

Não é de se admirar que a cólera retornasse, a cada três anos, e era um flagelo fatal, especialmente quando sabíamos que os médicos e barbeiros de Teerã, como antigamente na Inglaterra, unissem as duas profissões e que o grande recurso em todos os casos de doença era a arnica.

Além dos empórios, onde eram vendidos mantimentos e bebidas de vários tipos, havia outras barracas, para sedas, tapetes, peças bordadas, algo como os xales indianos, no entanto, menores em tamanho, comprados pelos europeus para coletes, e os xales de caxemira, que mesmo ali, e embora nem sempre novos, eram comprados por altos preços de cinquenta a cem libras.

Os que foram apresentados às senhoras da Embaixada valiam, em Teerã, cem libras cada um. Havia também capuzes de pele de cordeiro, ou tarbush [123], com cerca de meio metro de altura, de forma cônica e aberta, ou sem coroa, na parte superior, mais pesada que um chapéu e mais frio, devido à ventilação produzida por esta abertura.

Nenhum europeu usava chapéu, exceto um ou dois na Embaixada. Os materiais de algodão eram usados para vestidos pelo povo comum, fabricados em Teerã. Havia poucos artigos vendidos, de manufatura britânica, nos empórios, mas as coisas francesas, alemãs e russas, eram abundantes.

O gosto por relógios era uma fraqueza persa. Algumas das classes superiores usavam dois de cada vez, como os dançarinos ingleses há sessenta anos, e, às vezes, estes dois relógios estavam com seus ponteiros parados.

Não é de se admirar, portanto, que um pequeno relojoeiro alemão, que estava estabelecido em Teerã, estivesse fazendo sua fortuna.

O modo de calcular o tempo era do nascer ao pôr do sol, com orações sendo ditas pelos fiéis antes de cada um deles. O dia e a noite, eram divididos em tempos de três horas de duração, subdividindo o tempo entre o nascer do sol e o meio-dia, do meio-dia ao pôr do sol.

O Senhor Burton pouco viu as cerimônias religiosas dos persas. Ele nunca estivera dentro de uma mesquita, mas vira pessoas rezando nas horas indicadas, na expiração de cada relógio ao longo do dia, em plataformas elevadas, erguidas para esse fim, para cima e para baixo da cidade.

A forma de lavar as mãos antes de rezar, era feita pelas pessoas do campo na planície poeirenta, usando terra em vez de água, o artigo mais purificador dos dois, após ouvir o relato do Senhor Burton sobre o estado dos drenos e tanques em Teerã.

Os sacerdotes eram reconhecidos pelos turbantes brancos que usavam como uma distinção de classe, e nosso jardineiro inglês não parecia entrar em contato com nenhum deles, exceto em encontros ocasionais nas ruas.

Nas ruas, as mulheres andavam veladas e cobertas com seus véus, sendo transparentes apenas aos olhos, de modo a permitir que observassem sem serem vistas, enquanto seus mantos desajeitados e sem forma, impediam efetivamente todo reconhecimento, mesmo de marido ou pai.

Na classe superior, as esposas de Mirzas ou nobres, eram transportadas em uma espécie de carrinho de mão coberto, de um lugar para outro. Esta espécie de carruagem rude segurava duas senhoras, sentadas na vertical, e tinha uma pequena porta de cada lado. A carruagem era impulsionada por um homem antes e um atrás.

Mesmo que estas peculiaridades nacionais fossem suficientemente inovadoras para despertar a curiosidade, o Senhor Burton não tinha nada para aliviar a monotonia de sua vida, que era muito desesperada na linha da horticultura.

Por isso, afundou-se em uma grande similaridade.

As mudanças caseiras foram do mesmo modo que a migração do vigário de Wakefield, da cama azul para a marrom, durante três ou quatro meses na estação quente.

Foi assim que Senhor Burton transportou sua esteira pela escadaria de lama, que seguia de seus quartos através de um alçapão até o telhado plano, e dormiu lá.

Quando o tempo quente acabou, o Senhor Burton desceu sob a cobertura. Ele se sentiu completamente cansado e provavelmente se perguntou menos sobre o que fizera em sua primeira chegada à forma preguiçosa em que os nativos trabalhavam, sentados, por exemplo, para construir um muro.

A indiferença, que sua religião pode dignificar em algumas coisas no fatalismo, parecia prevalecer em todos os lugares e em cada pessoa. Eles comiam suas ervilhas e feijões sem casca, em vez de se incomodarem desnecessariamente.

Duas vezes no ano, houve grandes festivais religiosos, o que despertou todo o povo para a animação e o entusiasmo.

Uma, na primavera foi a Noruz[124], realizada simultaneamente nas diversas partes da cidade.

A maior representação de todas, foi no mercado, onde trinta ou quarenta mil pessoas compareceram.

Havia celebrações como peças teatrais. O tema da peça era a morte dos filhos de Ali[125]. Os persas eram chamados de seguidores de Ali, e, como tal, considerados como cismáticos pelos turcos mais ortodoxos, que não acreditam nos três sucessores de Maomé. A encenação era admiravelmente realizada, e excitava os persas a chorar apaixonadamente.

Esta era a tradição dos persas, e, embora não corroborada por nenhuma lenda europeia, ela era tão fielmente acreditada pelos persas, que há muito tempo esperavam que os europeus tivessem um grau de bondade, muito diferente do sentimento com o qual eles eram considerados pelos turcos que odiavam Ali.

A outra festa religiosa acontecia em algum momento do mês de agosto, e tinha muito da mesma descrição. Algum evento que o Senhor Burton acreditava ser a morte de Maomé, era dramatizado em todos os lugares públicos abertos.

O choro e a lamentação eram tão gerais nesta representação quanto na outra. O próprio Senhor Burton disse:

— Chorei, porque era impossível não chorar ao ver tanto lamento e comoção! — e se desculpou pelo que ele evidentemente considerava uma fraqueza, dizendo que todos lá estavam fazendo o mesmo.

Às vezes, o Xá cavalgava com seus acompanhantes. Mas atrás, ao redor, vinha uma ralé de um, dois, ou mesmo três mil, em cavalos, mulas, burros ou correndo a pé, em seus trapos, acenando ao vento, todos, qualquer um, de qualquer maneira.

Os soldados presentes não contribuíram para a regularidade ou uniformidade da cena, pois, não havia uma altura regulamentar, corriam lado a lado, o anão de quatro pés de altura e dez joias, e seu irmão, que se eleva acima dele, na estatura de seis pés.

Em estranho contraste com este tumulto selvagem e desordenado público, era um dos divertimentos do Xá, que consistia em ouvir o Senhor Burgess, o intérprete inglês nomeado, que traduzia o Times Illustrated News e, ocasionalmente, livros em inglês, para o prazer do Xá.

É de se perguntar que ideias, certas palavras transmitem, representativas da ordem e da regularidade uniforme da Inglaterra.

Em outubro de 1849, o Coronel Shiel retornou a Teerã, após sua estada na Inglaterra, e logo depois foi combinado que o Senhor Burton deixaria a Pérsia, e encurtaria seu tempo de compromisso com o Xá pela metade.

Assim que completou um ano em Teerã, ele começou a fazer preparativos para voltar à Europa, e por volta de Março de 1850, ele chegou a Constantinopla, onde permaneceu mais uns doze meses.

A lembrança da vida oriental do Senhor Burton deve estar em estranho contraste com o conforto regular e ordenado de sua existência atual.

Fim.


Os Tosquiadores de Cúmbria

Há três ou quatro anos, passamos parte de um verão em um dos pântanos da vila de Keswick. Ficamos hospedados na casa de um pequeno estadista, que acrescentou à sua ocupação de criador de ovelhas, o de um fabricante de lã.

Seu rebanho não era grande, mas ele comprou as ovelhas de outras pessoas, seja por encomenda ou para seus próprios propósitos, e sua vida parecia unir muitos modos de trabalho agradáveis e variados.

Um dia, sua bela esposa nos propôs que a acompanhássemos a uma tosquia de ovelhas, um pouco distante, a ser realizada na casa de um dos clientes de seu marido, onde ela estava certa de que seríamos bem-vindos, e onde veríamos uma tosquia antiga, como não era comum encontrarmos agora nos vales.

Não sei o motivo, mas preguiçosos, recusamos o convite dela. Pode ser que o dia fora um dia de cortar lenha, mesmo para julho, ou um dia de timidez, mas qualquer que fora o motivo, ele desapareceu de forma muito inexplicável logo após ela partir, e a oportunidade parecia escapar por entre nossos dedos.

O dia estava mais quente do que nunca, e deveríamos ter o dobro dos motivos para correr atrás de anfitriã para nos apresentar e acompanhá-la. No entanto, era tão grande nosso desejo de ir, que explodimos nos obstáculos ao vento, se é que havia algum naquele dia, e, obtendo as direções necessárias da fazenda, partimos em nossa caminhada de cinco milhas, cerca de uma hora, em um dia sem nuvens, na primeira quinzena de julho.

Nosso grupo consistia em duas pessoas adultas e quatro crianças, e a mais nova, quase um bebê, que teve que ser carregada a maior parte desse longo caminho.

Passamos por Keswick, e vimos os grupos de passeantes que navegavam de barco, sobre os quais, nós, como residentes durante um mês na vila, olhávamos com certo desprezo os meros estranhos, que, com certeza iam errar, perder o rumo, serem impostos por guias ou admirar as coisas erradas e nunca ver as coisas certas.

Depois de andarmos pela longa vila, chegamos a uma parte da estrada onde havia uma sombra verde, os galhos tocavam e se entrelaçavam por cima.

Enquanto a estrada era reta, no primeiro quarto de hora caminhado, conseguíamos ver a abertura da luz azul no horizonte, e notar o estremecimento do ar luminoso aquecido, além da sombra densa em que nos movíamos.

Ocasionalmente, vislumbrávamos o lago prateado, que brilhava através das árvores, e, na quietude do meio-dia, podíamos ouvir o suave bater da água na praia de seixos, o único som que ouvíamos, exceto o baixo e profundo zumbido de miríades de insetos revelando suas vidas de verão.

Tínhamos concordado que falar nos deixava mais cansados e ofegantes, então, assim como os pássaros, estávamos silenciosos.

Novamente, na estrada ensolarada quente e brilhante, o sol feroz acima nos tocava. Nossas cabeças nos faziam sentir saudades de estar em casa, mas tínhamos passado a metade do caminho, e seguir, era mais curto que voltar.

Deixamos a estrada e começamos a subir as colinas. A subida parecia desanimadora, mas a cada passo, ganhávamos mais frescor do ar, e a grama curta da montanha era suave e fria, em comparação com a estrada quente.

As pequenas brisas errantes que vinham, por vezes, estavam carregadas de aromas perfumados, tomilho selvagem, rosa-branca, e, por fim, chegamos a um riacho que se tornava complexo, em cujos bancos esponjosos cresciam grandes arbustos do pântano, dando um odor ardido ao ar.

Quando nossa respiração nos falhou durante aquela caminhada íngreme, tivemos um desvio invariável pelo qual esperávamos escapar da citação:

“Você é gordo e com pouco fôlego!”

Admiramos as belas vistas, que a partir de cada elevação sucessiva, se tornavam cada vez mais belas, e, finalmente empoleirados em um nível que parecia nada mais que uma mera prateleira de rocha, vimos nosso paraíso destinado: uma fazenda de pedra cinza.

Lá estava ela, bem no alto de nossas cabeças, acima do lago onde estávamos, com casas ao redor, para justificar o nome escocês de uma cidade, e perto dela, um daqueles grandes sicômoros[126], tão comuns em situações similares por toda a Cúmbria e Westmoreland.

Mais um puxão de pernas longo e então deveríamos estar lá.

Aplaudindo os pequenos, pobres e cansados, partimos bravamente para aquele último pedaço de caminho íngreme e rochoso, e não olhamos para trás, até ficarmos na frescura do alpendre[127] profundo, olhando para o lago natural vítreo de Derwent Water[128], muito abaixo, refletindo cada tonalidade do céu azul, em cores mais escuras e cheias de tons.

As grandes árvores que se deitavam no fundo profundo e sentíamos como se estivéssemos perto o suficiente para suportar nossos pés se escolhêssemos saltar e caminhar sobre eles.

Bem na frente de onde estávamos, havia um parapeito do campo rochoso que rodeava a casa.

Batemos à porta, mas era evidente que não éramos ouvidos no alegre barulho das vozes em nós, e nossa velha timidez original voltou.

Alguém nos descobriu, e uma calorosa explosão de acolhida hospitaleira se seguiu.

Em um minuto foi entendido quem éramos, nossa verdadeira anfitriã não era menos urgente em sua civilidade do que nossa anfitriã temporária, e ambas, juntas, nos empurraram da porta de entrada para uma grande sala que se abria.

Nesta sala, fomos colocados e o alívio imediato de sua frieza escura para nossos corpos superaquecidos e olhos deslumbrados, foi inexpressivamente refrescante.

As paredes eram tão grossas que havia espaço para um assento de janela muito confortável, sem que houvesse qualquer projeção para dentro da sala, e a longa forma baixa impedia que a linha do céu ficasse excepcionalmente achatada, mesmo àquela altura, e assim, a luz era subjugada, com a tonalidade comum através da sala se aprofundando na escuridão, onde o olho caía sobre aquela cama estupenda, com seus ornamentos em tons de marrom profundo, e a estrutura parecia suficientemente grande para que seis ou sete pessoas se deitassem confortavelmente ali, sem sequer tocarem umas às outras.

Ali perto, estava um grande cântaro cheio de ramos de flores balsâmicas da montanha, com pequenos pedaços de alecrim e lavanda espalhados pela sala, em parte, como aprendi depois, para evitar que pés incautos escorregassem sobre o chão de carvalho polido.

Quando percebemos tudo, descansamos e nos esfriamos.

Este local da casa era quase um salão em grandeza. Ao longo, de um lado, havia uma cômoda de carvalho, toda decorada com as mesmas lavandas, das quais fragmentos estavam espalhados pelo chão do quarto. Por cima desta cômoda, havia prateleiras brilhantes com o mais requintado estanho polido. Em frente à porta do quarto, estava a grande lareira hospitaleira, e no canto direito da chaminé, o armário do mestre.

Você sabe o que é um armário do mestre?

O Senhor Wordsworth teria lhe dito:

“É um armário com cerca de um pé de altura, por um e meio de largura, expressamente reservado para o uso do senhor da casa. Ali, ele pode guardar suas coisas, como almanaques e, embora nenhuma porta impeça o acesso de qualquer mão, neste armário aberto, suas propriedades peculiares descansam seguras, pois, não é o armário do mestre?”

A lareira estava aquecida e isso deu uma graça e vivacidade à sala, e sendo mantida nos limites adequados, parecia não mais que o necessário para ferver a chaleira.

Pois, devo dizer, que no exato minuto da nossa chegada, a anfitriã, assim designarei a esposa do fazendeiro, cuja casa seria realizada a tosquia de ovelhas, propôs um chá, embora não tivéssemos almoçado, porque era apenas pouco mais de três horas da tarde, ainda assim, com base no princípio de Fazer em Roma como os romanos fazem, concordamos, gratos por nos oferecerem qualquer refresco, com falta de água e mingau, depois de nossa longa e cansativa caminhada.

Enquanto o chá estava sendo preparado, propusemos à Senhora C., nossa verdadeira anfitriã, que fôssemos ver a tosquia de ovelhas.

Ela nos levou para um quintal, onde o processo estava acontecendo.

Quero dizer que o quintal era um lugar muito diferente do que um londrino designaria como sendo um quintal, porque, no alto da montanha, era um espaço de cerca de quarenta metros por vinte, ofuscado pelo nobre sicômoro.

E, nesta profunda e fresca sombra verde, sentaram-se dois ou três homens de cabelos grisalhos, fumando seus cachimbos, e observando os procedimentos com uma complacência plácida, que tinha um sabor de desprezo pela degeneração dos tempos atuais, uma espécie de:

“Ah! Eles não sabem o que é uma boa tosquia hoje em dia!”

Aquela sombra redonda do sicômoro, e os anciãos que ali estavam sentados olhando, eram as únicas coisas que não estavam cheias de movimento e vida no pátio.

O pátio era delimitado por uma parede de pedra cinza, e os pântanos subiam acima dela até o topo da montanha.

Olhávamos sobre as paredes baixas para os espaços brilhantes com a pavimentação amarela e o primeiro jato de água da urze roxa. A sombra da casa da fazenda caiu sobre este quintal, de modo que ficara fresca no aspecto, exceto pelos rudes rostos dos tosquiadores ávidos e os saiotes de linho de cor alegre das mulheres, dobrando os vestidos encolhidos.

Quando entramos no pátio pela primeira vez, cada canto dele parecia tão cheio de movimento quanto um friso antigo e, assim, tinha que ser estudado antes que eu pudesse verificar as diferentes ações e propósitos envolvidos.

À esquerda, havia um campo de pequeno porte, cheio de sol e luz, com o ar aquecido, tremendo sobre os rebanhos de ovelhas desnorteadas, que estavam aprisionadas lá em cima, esperando sua vez de serem tosquiadas.

No portão, pelo qual entrava para pátio, estava um grupo de meninos de olhos arregalados, ofegantes como as ovelhas, não como elas por medo, mas por excitação e esforço alegre. Seus rostos foram enxaguados com um vermelho quase marrom, seus lábios escarlates foram separados em sorrisos, e os olhos tinham aquele peculiar brilho azul, que só é ganho por uma vida livre no ar puro e alegre.

Assim que estes rapazes viram que uma ovelha era desejada pelos tosquiadores, eles saltavam em direção a uma no campo, que nada mais era que um teimoso velho carneiro, e o puxaram, empurraram e gritaram, às vezes, montando nas costas do pobre animal, segurando seus chifres e o animal dava cabeçadas. Os rapazes levavam o animal até o tosquiador, como se fossem pequenos vitoriosos, brilhantes e ruborizados com a conquista.

Os tosquiadores sentavam cada um em um longo banco. O rebanho de ovelhas que seriam tosquiadas nesta ocasião, consistia em mais de mil, e onze tosquiadores famosos chegaram, caminhando de muitas milhas de distância, para testar suas habilidades, um contra o outro, pois, as tosquias de ovelhas eram uma espécie de Olimpíadas Rurais.

Todos eles eram homens jovens em seu auge, fortes e bem feitos, sem casaco ou colete, com mangas de camisa viradas para cima. Sentavam-se cada um sobre o banco e pegavam as ovelhas, as levantando e as colocando deitadas por um golpe de destreza nas costas, e assim, começavam a tosquiar a lã da cauda e debaixo das partes[129], depois amarravam as duas patas traseiras com as patas dianteiras, e as colocavam primeiro de um lado e depois do outro, até que o velo[130] se soltasse em uma peça inteira.

A arte era tosquiar toda a lã, e ainda assim, não ferir as ovelhas por nenhum corte incômodo e se tal acidente ocorresse, uma mistura de alcatrão e manteiga era imediatamente aplicada.

Cada ferida era uma mancha na fama do tosquiador.

Tosquiar bem e perfeitamente, e ainda assim fazê-lo rapidamente, mostrava o esmero dos cortadores.

Se você considerar o peso e a rudeza do animal, o calor geral do tempo, você verá que, com justiça, cortar ou tosquiar era considerado um trabalho muito difícil.

Quando a ovelha era dividida entre seu velo e sua pele, ela se tornava propriedade de duas pessoas. As mulheres apreendiam o velo e, ao lado de uma cômoda temporária, neste caso, feita de tábuas colocadas sobre barris, dobravam as mantas de lã para cima.

Isto novamente era uma arte, por mais simples que parecia. As esposas e filhas do fazendeiro de Langdale Head eram famosas por isso. Elas começavam dobrando as pernas e depois enrolavam todo o velo para cima, amarrando-as, e a habilidade consistia, não apenas em fazer isso rápida e firmemente, mas em certos puxões artísticos da lã, de modo a exibir as partes mais finas, e não esmagando a fibra, para fazê-la parecer grosseira ao comprador.

Assim, seis mulheres bem humoradas eram empregadas nesta função. Elas riam, falavam alguns causos alegres que chegavam aos ouvidos dos tosquiadores ocupados, que estavam muito sérios em seu trabalho para responder, embora um deles, ocasionalmente, corando as bochechas e com brilho nos olhos, respondesse às mulheres.

Mas eles reservavam suas réplicas, se tivessem alguma, até a noite, quando o trabalho do dia terminava, e quando, na licença de humor campestre, imagino, alguns dos atrevidos oradores se encontravam.

Ainda assim, os aplausos vinham do grupo de mulheres, embora, por vezes, um dos velhos sentados à sombra de um sicômoro, tirasse seu cachimbo da boca para cuspir, e, antes de recomeçar a enviar as suaves coroas brancas de fumaça, ele assentia, carregando uma risada curta e profunda, com um:

— Muito bem, Maggie! Dê-lhe, moça! Pois, com a inveja não grosseira da idade em relação à juventude, os velhos avôs sempre participaram com as mulheres contra os jovens. Estes tosquiaram, atirando as ovelhas no chão com força suave, prontos para que a tropa de meninos a arrastasse para o lado direito do pátio da fazenda, onde as casas estão, e onde as coisas do campo foram amontoadas e empilhadas.

Do sol, na sombra escura da casa, uma panela de brasas vermelhas brilhou em um tripé, e sobre eles, foi colocada uma bacia de ferro segurando alcatrão e rabanete.

A tropa de meninos da direita arrastou as pobres ovelhas nuas para serem apaixonadas, ou seja, marcadas com as iniciais ou cifra do proprietário.

Neste caso, o sinal do possuidor era um círculo ou mancha de um lado, e uma linha reta do outro, e depois, que as ovelhas eram marcadas, elas eram devolvidas para o pasto, e a multidão de cordeiros marcados a ferro e fogo, enviavam um gemido incessante para suas mães perdidas, e cada um descobrira a ovelha a quem pertencia, no momento em que ela fora expulsa do pátio, e o contentamento plácido das ovelhas que andavam pela encosta, com seus cordeirinhos trotando com elas, deu o toque necessário de paz e repouso à cena.

Havia todos os elementos clássicos para a representação da vida. Os velhos, donzelas, jovens e crianças do Salmista[131].

Ficamos muito felizes em ter visto a tosquia de ovelhas, embora a estrada fosse quente, longa e poeirenta, e ainda não tínhamos almoçado e estávamos com fome.

Quando tínhamos compreendido as ações separadas da cena ocupada, começamos a notar os indivíduos.

Logo escolhi uma mulher jovem, muito bonita, como objeto de admiração e interesse. Ela estava ao lado de uma mulher de meia-idade, que tinha uma semelhança suficiente para indicá-la como a mãe. Ambas estavam dobrando as lãs, contudo, a mãe falava o tempo todo com uma voz rica, um riso e olhar alegre, enquanto a filha pendia sua cabeça silenciosamente sobre seu trabalho, e eu só podia adivinhar a beleza de seus olhos pela sombra nebulosa de seus cílios.

A jovem estava bem vestida e, evidentemente, colocara seu vestido de domingo, embora não fosse um dia de celebração. A saia leve estava enfiada em um monte atrás, a fim de estar fora de seus passos, o saiote listrado de azul e escarlate, revelava as meias de algodão azul, comuns naquela parte do campo, e os sapatos de couro bonitos e limpos.

A garota colocara seu cabelo castanho atrás das orelhas, mas se ela soubesse quantas vezes seu rosto corou, acho que ela sustentaria aquele véu natural sobre sua delicada bochecha. Ela corava cada vez mais fundo, porque um dos tosquiadores, em cada intervalo de seu trabalho, olhava para ela e suspirava.

Nenhum deles disse uma palavra, embora ambos estivessem tão conscientes do outro quanto poderiam estar, e a mãe dela, com um olhar lateral, tomou conhecimento do caso, de tempos em tempos, sem nenhuma expressão desagradável.

Eu chegara até aqui, em minha carreira de observação, quando nossa anfitriã veio nos dizer que o chá estava pronto. Levantamos duramente de onde estávamos sentados, e fomos para dentro de casa.

Lá, ao redor, havia filas de matrizes de ovelhas sedadas, algumas com bebês, outras sem. Elas foram solicitadas de cima de montanhas, devido aos felinos selvagens, e através de vales profundos.

Fomos conduzidos a uma mesa de chá, na qual, apesar de nossas súplicas, ninguém se sentava, a não ser nossa anfitriã, que derramou o chá de um lado para o outro.

Atrás de nós, na cômoda, havia pratos empilhados com bolo de sementes, uma massa folhada com groselhas dentro, pão e manteiga simples, bolos quentes untados com mel, típico bolo irlandês, e grandes pedaços de queijo novo para serem colocados entre as fatias de mel, e assim, tostados improvisadamente.

Havia dois bules pretos na bandeja, e tomando um destes em sua mão esquerda, e o outro na direita, nossa anfitriã segurava os dois no alto, e habilmente despejando de cada um, na mesma xícara. Os bules continham chá-verde e preto, e esta era sua maneira de misturá-los, o que ela considerava muito melhor, que se as duas folhas fossem misturadas.

As xícaras de chá eram dosadas com cubos de fino açúcar, e o rico creme amarelo perfumado foi jogado dentro, mas muito parcimoniosamente.

Então, bebi chá, forte como conhaque, doce como xarope, e tive que gemer em segredo sobre os nervos de meus filhos.

Meus filhos encontraram algo mais para gemer antes do fim da refeição, a esposa do bom fazendeiro lhes deu manteiga doce em seu bolo de aveia.

A manteiga doce era feita de manteiga, açúcar e rum derretidos e envasados, e era, no conjunto, o composto mais nauseante que já provei.

Meus pobres filhos pensaram assim, como pude perceber por seus olhos brilhantes pálidos e lábios trêmulos, enquanto, em vão, tentavam passar pelo que seus estômagos que rejeitavam aquela doçura.

Peguei seus pedaços e os comi, a fim de poupar os sentimentos de nossa anfitriã, que, evidentemente considerava a manteiga doce como uma delicadeza de escolha. Mas logo ela percebeu que eles estavam sem manteiga doce e ela os incitou a tomar um pouco mais, e me pediu que não a raspasse, pois, ela tinha o bastante para distribuir para todos.

Esta manteiga doce era feita para ocasiões especiais, como Pentecostes e Natal e nestas duas estações, todos os batizados em uma família eram geralmente realizados.

Após comer e ainda com estávamos, achávamos difícil chegar às ideias de nossa anfitriã sobre o dever antes de nós.

Ela me levou para a verdadeira cozinha, para me mostrar os preparativos em andamento para o refresco das setenta pessoas que lá estavam e depois se reuniriam.

Rodadas de carne bovina, presuntos, filetes de vitela e pernas de carneiro, indiscriminadamente com pudins de ameixa, para cima e para baixo, em uma grande caldeira, da qual surgiu um vapor, quando ela levantou a tampa, lembrando excessivamente um banquete de casamento.

A semelhança aumentou quando nos mostraram outra caldeira fora das portas, colocada sobre uma estrutura temporária de tijolos, e igualmente cheia como a outra, se, de fato, não mais.

Neste exato momento, ouvimos ruídos agradáveis que contavam a vida feliz tão próxima, e ainda fora da vista de qualquer um deles, olhando para a relva, as rochas e a crista roxa da montanha, cuja base oposta caiu em Watendlat.

O portão do pátio foi aberto, e minha beleza rústica entrou correndo com o rosto dela em chamas.

Quando ela nos viu, parou, e estava prestes a virar, quando foi seguida, e a entrada foi bloqueada pelo jovem tosquiador bonito. Vi um olhar de conhecimento no rosto de minha anfitriã, enquanto ela me conduzia calmamente por outro caminho.

— Quem é aquela linda garota? — perguntei.

— É Isabel Crosthwaite! — respondeu ela. — Sua mãe é prima do meu marido, ela é viúva de um estadista perto de Appleby. Isabel é sua única filha.

“Herdeira de grande beleza!” pensei, mas tudo o que eu disse foi:

— Quem é o jovem que está com ela?

— Ah! — falou a anfitriã, olhando para mim com surpresa. — Ele é o nosso Tom. Veja! Seu pai, eu e Margaret Crosthwaite acreditamos que estes jovens vão se casar. Tom está muito disposto, mas ela é jovem e medrosa, mas aceitará! Ele não será o melhor tosquiador deste dia, como foi no ano passado em Buttermere, mas talvez, ele seja no próximo ano.

Isabel mergulhou no meio do círculo de matrizes, como no círculo Eleusiniano[132], para obter um santuário contra a perseguição de seu pretendente.

A garota parecia tão verdadeiramente irritada que não detestei sua mãe, e julgava o jovem indigno dela. Vi sua mãe chegar e tomar em seus braços uma pequena criança órfã, que eu soube que ela pegara de um mendigo na beira da estrada e que estava morrendo.

Esta criança pairava sobre a mulher, e a chamava de mãe em tons tão confiantes, que me reconciliei com a viúva casamenteira, em nome de seu coração caridoso.

E, quanto ao jovem, o rosto que ele apresentava de tempos em tempos na porta aberta, para ser escutado e repreendido ali por todas as mulheres, enquanto Isabel virava as costas resolutamente para ele e fingia estar muito ocupada cortando pão e manteiga, me fez ter muita pena dele, embora, nós, espectadores experientes, pudéssemos ver o fim de toda essa timidez e ruborização, assim como se estivéssemos na igreja em um casamento.

Das quatro às cinco horas, em um dia de verão, é uma espécie de segundo meio-dia para o calor.

Estávamos nesta altura, procurando uma brisa, e parecia tão desagradável pensar em ir mais uma vez para o bosque lá embaixo, e enfrentar o caminho ressequido e poeirento, que resignamos de bom grado e preguiçosamente para ficar um pouco mais tarde e talvez jantar ali.

Assim, passei mais uma vez pelo quintal movimentado e, observando, cruzei entre homens, mulheres, meninos, ovelhas e cães latindo, chegando a um homem velho, sentado sob o sicômoro, que fora apontado para mim como o dono das ovelhas e da fazenda.

Por alguns minutos, ele continuou a soprar com afinco, mas eu sabia que seu acanhamento não surgira de nenhuma falta de simpatia, mas da timidez que era a característica da maioria das pessoas de Westmoreland e Cúmbria.

Ele começou a falar, e me deu muitas informações sobre suas ovelhas e quantas estavam sobre seu poder, cerca de mil e cinquenta, que era um grande número, comparado com as outras fazendas que tinham umas seiscentas em média.

O velho homem mostrou seu rebanho, com seus dedos apontados, gloriosamente. O pasto se estendia por dez milhas sobre as colinas em uma direção, ele não podia dizer exatamente a que distância em outra.

Ele arrendara a fazenda fazia mais de sete anos e na expiração do aluguel, o estoque era novamente numerado e avaliado da mesma forma. Se as ovelhas fossem improdutivas ou fugissem, o locatário teria que pagar por sua depreciação em dinheiro, e se tivessem melhorado em qualidade, o locador lhe pagava.

É claro que todas as ovelhas eram da raça Suffolk, as famosas ovelhas de cara pretas, que eram aptas para a luta e resistência. Essas ovelhas eram capazes pastar em grama escassa, que crescia nas colinas.

Para tomar conta de seu rebanho, ele empregava três pastores, e Tom era um deles. Eles tinham outros trabalhos na fazenda, pois, a fazenda estava em lugar baixo em comparação com as alturas arejadas para as quais estas ovelhas se misturavam.

O ano do pastor começava antes do dia 20 de março, quando as ovelhas deviam estar todas em segurança nos pastos caseiros, caso elas ou seus cordeiros precisassem de cuidados extras na hora de pastar.

Por volta do dia 16 de junho, começava a lavagem das ovelhas. Antigamente, os homens ficavam descalços em um riacho, represando a água para fazer uma piscina com sua espuma contínua, e estes homens pegavam as ovelhas, que lhes eram atiradas pelas pessoas nas margens, e as esfregavam e as limpavam bem, mas agora, infelizmente, as pessoas se contentam em jogá-las de cabeça para baixo, e pensam que já as lavaram o suficiente.

Este procedimento era administrado em uma quinzena após a tosquia ou o corte, e as pessoas, a vinte milhas de distância, eram convidadas a fazê-lo, mas não como fora há cinquenta anos.

Ainda assim, se uma família possuísse um tosquiador hábil na pessoa de um filho, ou se a boa esposa pudesse dobrar bem e habilmente as mantas de lã, eles estavam certos de que teriam uma semana alegre em tempo de tosquia, passando de fazenda em fazenda, em feliz sucessão, dando sua ajuda, banqueteando-se com a gordura da manteiga doce, entre outras coisas, até que, por sua vez, pedissem ajuda aos vizinhos.

Em resumo, os bons e velhos corações de ovelha são levados a cabo da mesma maneira que uma Abelha Americana.

Assim que o corte terminava, as ovelhas eram entregues as colinas, onde seu maior inimigo era a mosca. Os corvos faziam mal aos cordeiros jovens em maio e junho, e os pastores escalavam as íngremes rochas cinzentas para tomar um ninho de corvo com infinita alegria e prazer, mas nenhum pastor podia salvar suas ovelhas da terrível mosca, que se enterrava no pobre animal, e colocava seus ovos e, as larvas comiam a pobre ovelha.

Para evitar isto, tanto quanto possível, os pastores subiam as colinas, cerca de duas vezes por semana no verão, e, enviando seus fiéis cães para recolherem as ovelhas em grandes círculos. Os cães corriam por fora e as mantinham dentro.

O pastor, de olhos rápidos, ficava no meio e, se uma ovelha se esforçasse para se coçar, o cão era convocado e a ovelha infectada era tomada para ser examinada, a parte contaminada era cortada e salva.

Em alguns verões, dezenas de ovelhas eram mortas. O trovão e o tempo próximo eram peculiarmente produtivos desta praga. A próxima operação que o pastor tinha que atender era em meados ou fins de outubro, quando as ovelhas eram abatidas para serem salgadas, e um homem extra, era normalmente contratado na fazenda por uma semana.

Mas não era hora de banquete ou de festa, como um corte. Ali, reinava um negócio sóbrio.

Os homens se sentavam em seus bancos e passavam sobre a pobre ovelha indefesa uma mistura de alcatrão e manteiga ruim ou gordura grosseira, que supostamente promovia o crescimento e a finura da lã, prevenindo doenças de pele.

A marca de propriedade era renovada com alcatrão e rabanete adicionais, e as ovelhas eram enviadas mais uma vez para a sua caminhada arejada, onde os ventos do inverno começavam a canalizar e a soprar, e a chamar seus irmãos para longe do norte gelado.

Uma vez por semana, os pastores subiam e vasculhavam as colinas, olhando as ovelhas e vendo como o pasto durava. Este era um momento perigoso e selvagem para os pastores.

A neve e as brumas, mais temíveis até do que a neve, podiam vir, e não faltavam histórias, na ceia de Natal, sobre os homens que subiam para as colinas desoladas e nunca mais foram vistos, mas cujas vozes ainda eram ouvidas, chamando seus cães ou proferindo gritos ferozes de desespero em busca de ajuda, e assim, eles chamarão até o fim dos tempos, até que seus ossos branqueados tenham ressuscitado.

Em meados de janeiro, era necessário muito cuidado, pois, nesta época as ovelhas estavam fracas e magras com falta de alimento, e com o excesso de frio. No entanto, como as ovelhas da montanha não comiam nabos, mas se alimentavam com feno, era um pedaço de economia atrasar o início da alimentação o máximo de tempo possível, e para conhecer o exato momento crítico do tempo, requeria tanta habilidade quanto o pai de Emma no agradável romance da Senhorita Austen, que exigiu sua papa:

“Fina, mas não muito fina, grossa, mas não muito grossa.”

E assim, o Calendário do Pastor trabalhava de novo no tempo de nascimentos dos novos cordeiros!

Deve ser um emprego agradável, lembrando uma das linhas do Wordsworth[133]:

“Naquele clima justo, o solitário rebanho se esticava.

Na grama macia, durante a metade do dia de verão...”

Enquanto eu divagava em pensamento, meu anfitrião me falava dos preços da lã naquele ano. A lã era vendida pelo metro quadrado, ele esperava receber dez ou doze xelins por peça. E eram necessários três ou quatro ovelhas para fazer metro quadrado de lã, mas antes da chegada da lã australiana, o mesmo metro recebia vinte xelins, e às vezes, mais.

Porém, novamente suspiramos sobre a degeneração dos tempos.

O homem pegou seu cachimbo como uma consolação, e lembrei da longa caminhada de volta para casa, e dos pequenos cansados, que não estavam, por certo, preocupados.

Então, com muito pesar, partimos.

O violinista chegara, enquanto dávamos adeus.

A sombra da casa espalhara demais o pátio, os meninos eram em maior número do que as ovelhas que ficaram para serem tosquiadas, as mulheres ocupadas, estavam dando grandes rodadas de carne bovina, e além de toda a provisão que eu vira nas caldeiras, os fornos estavam regando tortas de sementes, e bolos cheios de amêndoas e passas.

Ao descer a colina, passamos por uma pequena ponte rústica com um grande arbusto de amieiro perto dela.

Debaixo, Isabel sentada, rosada como sempre, mas com sorrisos tímidos, enquanto Tom se deitava aos pés dela, e olhava nos olhos de sua amada. Seu fiel cão pastor sentou-se ao seu lado, mas bateu sua cauda em vão, na esperança de obter algum carinho. Seu mestre estava muito absorvido pelo amor para observar o cão.

Pobre cão!

Todo cão tem o seu dia, e o seu não era este décimo dia de julho.

Fim.


Curioso, se for Verdade

Antes, você se divertia com meu orgulho pela minha descendência daquela irmã de Calvin, que se casou com um Whittingham, reitor de Durham. Duvido que eu consiga respeito pela distinta relação que me levou à França, com o propósito de examinar registros e arquivos, pensando que me permitiria descobrir descendentes colaterais do grande reformador, com os quais eu chamaria de primos.

Não vou falar-lhe de meus problemas e aventuras nesta pesquisa, você não se importaria com isso, mas algo tão curioso me surpreendeu, em uma noite do agosto passado, que se eu não estivesse perfeitamente certo de estar bem desperto, tomaria como um sonho.

Para o propósito que citei, era necessário que eu fizesse uma visita as minhas origens, assim por dizer. Eu havia rastreado descendentes da família Calvin fora da Normandia até o centro da França, mas julguei necessário ter uma espécie de permissão do bispo da diocese, antes que eu pudesse ver certos documentos familiares, que caíram na posse da Igreja, e, como eu tinha vários amigos ingleses em Tours, esperei a resposta ao meu pedido ao Senhor de..., daquela cidade.

Estava pronto para aceitar qualquer convite, mas recebi poucos, e, às vezes, não sabia o que fazer com minhas noites.

As mesas de jogos abriam suas apostas às cinco horas da tarde. Eu não queria ir nas salas privadas, também não gostava do ambiente dos jantares, não podia jogar no bilhar, e o aspecto de meus colegas convidados era despretensioso o suficiente para fazer com que eu não quisesse entrar em nenhum jogo com eles.

Assim, geralmente me levantava da mesa cedo e tentava aproveitar ao máximo a luz restante das noites de agosto, caminhando rapidamente para explorar o campo vizinho, porque no meio do dia era muito quente para este propósito e melhor aproveitado em espreguiçadeiras ou em um banco nos Boulevards, ouvindo preguiçosamente a banda distante, e notando com igual preguiça, os rostos e figuras das mulheres que passavam por ali.

Uma quinta-feira à noite, 18 de agosto, fui mais longe que o normal em minha caminhada e descobri ser mais tarde do que eu imaginava, quando fiz uma pausa para voltar. Eu idealizava que faria uma volta, porque tinha noção aceitável da direção em que eu estava, para ver que ao virar uma faixa estreita e reta à minha esquerda, eu encurtaria meu caminho de volta para Tours.

E, assim acredito que fiz, tentei encontrar uma saída no lugar certo, mas os caminhos eram quase desconhecidos naquela parte da França, e minha trilha, rígida e reta como qualquer rua, marcada em uma perspectiva terrivelmente desaparecida pela fileira regular de álamos de cada lado, parecia interminável.

É claro que a noite chegou, e eu estava na escuridão.

Na Inglaterra eu teria a chance de ver uma luz em alguma chalé e perguntar meu caminho aos habitantes, mas ali, não pude ver tal visão bem-vinda, de fato, porque os camponeses franceses iam para a cama com a luz do dia do verão. Então, se houvesse alguma habitação no bairro vizinho, nunca os perceberia.

Acredito que caminhei duas horas na escuridão, vi o contorno escuro de uma madeira em um dos lados da estrada, e, impacientemente descuidado de todas as leis florestais e penalidades para os invasores, fiz meu caminho, pensando que se o pior acontecesse, eu encontraria algum abrigo secreto onde pudesse me deitar e descansar, até que a luz da manhã me desse uma chance de encontrar meu caminho de volta para Tours.

Diante de mim, uma floresta densa, com árvores jovens, muito bem plantadas para serem mais que caules esbeltos crescendo até uma boa altura, com folhagem escassa em seus cumes.

Em direção à floresta mais densa, e uma vez lá, afrouxei meu ritmo, começando minha procura por um lugar para me proteger. Sim! Eu estava procurando uma gruta, caverna, qualquer buraco, inclusive, uma toca de coelho serviria, na pior das hipóteses.

Eu era tão delicado quanto o neto de Lochiel[134], que deixou seu neto indignado com o luxo de seu travesseiro. Eu sentia o úmido orvalho, não havia pressa, porque eu perdera toda a esperança de pernoitar entre quatro paredes, e me movimentava sem afobação, confiando que não havia lobos para serem apalpados de sua sonolência de verão pelos meus passos.

Vi um castelo, um quarto de milha diante de mim, no final do que parecia ser uma estrada antiga irregular, enquanto caminhava sem rumo.

Grande, imponente e escuro era seu contorno contra o céu escuro da noite, alguns arbustos subiam para a luz fraca das estrelas, e, mais ainda, embora eu não pudesse ver os detalhes do castelo que estava enfrentando, era suficientemente evidente que havia luzes em muitas janelas, como se houvesse algum grande entretenimento acontecendo.

“Eles são pessoas hospitaleiras! Talvez eles me deem uma cama. Suponho que os proprietários franceses não tenham armadilhas e cavalos tão abundantes quanto os cavalheiros ingleses, mas eles estão evidentemente fazendo uma grande festa, e alguns de seus convidados podem ser de Tours, e me darão ajuda para volta para o Lion d'Or. Não vou ser orgulhoso, preciso de ajuda!”

Então, colocando um pouco de brisa e espírito corajoso em minha caminhada, subi até a porta, que estava aberta, mostrando um grande salão iluminado, com armadura e afins, penduradas nas paredes, cujos detalhes não tive tempo de notar, uma vez que, no instante em que fiquei no limiar da porta, apareceu um homem enorme, com uma roupa estranha e antiga, uma espécie de farda, que se adaptava bem ao aspecto geral da casa.

Ele me perguntou qual era o meu nome e de onde eu surgia, em um francês tão curiosamente pronunciado, que eu pensei ter me chocado com um novo patoá[135].

Pensei que ele não era muito sábio, e mesmo assim, fui civilizado para responder suas perguntas:

— Meu nome é Whittingham, Richard Whittingham! Um cavalheiro inglês, hospedado em...

Para minha surpresa infinita, uma luz de inteligência veio sobre o rosto do gigante, ele franziu a testa, e disse, ainda no mesmo curioso dialeto, que eu era bem-vindo, e que minha presença era esperada há muito tempo.

“Há muito tempo esperado? O que significava isso?” pensei.

Teria eu tropeçado em um ninho de relações ao lado de John Calvin, que ouvira falar de minhas pesquisas genealógicas, e estava gratificado e interessado por elas?

Todavia, eu estava muito contente em estar sob um abrigo naquela noite para pensar que era necessário prestar contas de minha agradável recepção antes de desfrutar dela.

Assim que ele abriu os grandes e pesados batentes da porta que levava do salão para o interior, ele se virou e disse:

— O Senhor Geanquilleur não veio com você?

— Não! Estou completamente sozinho, perdi meu caminho!

E prossegui com minha explicação, quando ele, como se bastante indiferente ao que eu falava, subiu uma grande escadaria de pedra, tão larga quanto os cômodos, e tendo em cada porta, enormes fechaduras de ferro em uma estrutura pesada, destravou com a solene lentidão da idade.

De fato, um estranho e misterioso assombro dos séculos que passaram desde que este castelo fora construído, veio sobre mim, enquanto eu esperava o giro das pesadas chaves nas antigas fechaduras.

Eu quase imaginei ouvir um murmúrio impetuoso, como o som incessante de um mar distante, vindo das grandes e vazias galerias que se abriam de cada lado da escadaria larga, e que seriam pouco percebidas na escuridão acima de nós.

Era como se as vozes de gerações antigas de homens, ainda ecoassem e edificassem no ar silencioso.

Era curioso também, o homem diante de mim, ponderadamente firme, com suas frágeis e velhas mãos lutando em vão para manter no alto a tocha que segurava firmemente diante dele. Estranho, digo eu, que ele era o único servo que eu via nos vastos corredores e passagens, ou na grande escadaria.

Detidamente estávamos diante das portas douradas que levavam ao salão, onde a família ou uma multidão, devido ao grande zumbido das vozes, estava reunida.

Fiquei apavorado quando lembrei que ele ia me apresentar diante de todos, empoeirado e manchado da viagem, com um traje matinal que nem era o meu melhor, sem que eu soubesse quantas senhoras e cavalheiros se reuniam ali, mas o velho obstinado estava evidentemente inclinado a me levar diretamente ao seu senhor, e não deu atenção às minhas palavras.

As portas se abriram e fui empurrado para um salão curiosamente cheio de luz pálida, que não culminou em nenhum ponto, nem saiu de nenhum centro, muito menos cintilou com nenhum movimento do ar, mas encheu cada recanto, tornando todas as coisas delicadamente distintas, diferente de nossa luz de vela, como é a diferença entre uma clara atmosfera do sul e a de nossa Inglaterra nebulosa.

No primeiro momento, não me entusiasmou, porque o salão estava cheio de pessoas intencionadas em suas próprias conversas.

No entanto, o homem foi até uma bela senhora de meia-idade, ricamente vestida daquela maneira antiga que a moda trouxe de volta nos últimos anos, e, esperando primeiro uma atitude dele de profundo respeito, até que sua atenção caísse sobre ele. O homem disse a ela meu nome e algo a meu respeito, até onde pude adivinhar pelos gestos de um e pelo olhar repentino do outro.

Ela veio imediatamente em minha direção, com as mais amigáveis ações de saudação, mesmo antes de ter avançado o suficiente para falar.

— Foi estranho, não foi?

Não entendi a pergunta e respeitosamente a cumprimentei.

Suas palavras e sotaque eram as do camponês mais comum do campo. No entanto, ela parecia de alto nível social, com semblante austero e expressão um pouco menos viva e inquisitiva.

Perguntei mentalmente o motivo para não entender a pergunta, porque eu estudara muito sobre as partes antigas de Tours e seu dialeto, principalmente das pessoas que moravam em Marche Au Vendredi e lugares similares.

A bela anfitriã se ofereceu para me apresentar ao seu marido, um cavalheiro, que se vestia de maneira mais peculiar que ela, no extremo desse estilo de vestir.

Pensei que na França, como na Inglaterra, algumas pessoas levavam a moda ao excesso tal, que as tornavam ridículas.

No entanto, ele falou, ainda em patoá, de seu prazer em me conhecer, e me levou a uma estranha e desconfortável cadeira, que se assemelhava ao restante dos móveis, que tomaria seu lugar sem qualquer anacronismo ao lado do Hotel Cluny.

Então, novamente começou o barulho das vozes francesas, que minha chegada teve, por um instante, interrompido.

Ao meu lado, sentou-se uma senhora de aparência muito doce, que talvez fosse de grande beleza em sua juventude, e seria encantadora na velhice pela naturalidade de seu semblante. Ela era, no entanto, extremamente gorda, e ao ver seus pés deitados diante dela em uma almofada, percebi imediatamente que eles estavam tão inchados a ponto de torná-la incapaz de andar, o que provavelmente fez ela se parecer com uma boneca. Suas mãos eram gordinhas e pequenas, mas de textura um tanto grosseira, não tão limpas quanto deviam ser, e, ao todo, não tão aristocráticas como o rosto encantador. Seu vestido era de soberbo veludo negro, enfeitado com diamantes bordados no decote.

Não muito longe dela, estava o menor homenzinho que vi em toda a minha vida, de proporções tão admiráveis, que ninguém o chamaria de anão, porque, geralmente, associamos algo de deformidade com essa palavra, mas ainda assim, ele tinha um olhar de duende e sabedoria sagaz em seu rosto, que manchava a impressão que seus traços delicados, regulares e pequenos teriam transmitido de outra forma.

Na verdade, não penso que ele era bem igual ao resto das pessoas, porque sua roupa era inadequada para a ocasião, e ele aparentemente era um convidado verdadeiro, enquanto, eu era um convidado involuntário, e um ou dois de seus gestos e ações, eram mais parecidos com os truques de um rústico inculto, que qualquer outra coisa.

Para explicar o que quero dizer:

Suas botas tinham evidentemente visto muito serviço, suas solas foram refeitas, refeitas e novamente refeitas até o limite dos poderes do sapateiro. Por que ele as usara? Porque era o único par que tinha? E, o que pode ser mais inoportuno que a pobreza?

Então, mais uma vez, ele tinha um truque desconfortável de colocar a mão na garganta, como se esperasse encontrar algo nela, e também o hábito embaraçoso, que não acho que ele pudesse ter copiado do Doutor Johnson, porque provavelmente ele nunca ouvira falar dele, de tentar sempre refazer seus passos nas tábuas exatas em que ele pisara para chegar a qualquer parte da sala.

Além disso, para resolver a questão, o ouvi falar dele como Senhor Poucet, sem nenhum de aristocrático prefixo, e quase todos os outros na sala eram marqueses, de qualquer forma.

Digo, quase todos, uma vez que um dos convidados, pensei que fosse um servo, mas pela influência extraordinária que ele parecia ter sobre o homem que tomei por seu senhor, e que não fez nada sem, aparentemente, ser incitado por este homem, que magnificamente vestido, entretanto, mal à vontade em suas roupas, como se fossem feitas para outro, era um homem de aparência fraca, porém, bonito.

Seu seguidor vestia algo ao estilo de um caçador, mas afinal, não era uma roupa de caçador nova, era algo mais velho, botas na metade de suas pernas, ridiculamente pequenas, que ele as arrastava enquanto caminhava, como se fossem grandes demais para seus pés pequenos, e uma abundância de peles cinzentas, como casaco, manto e boné.

Você sabe como certos semblantes lembram perpetuamente algum animal!

Bem, este caçador, como o chamarei por falta de um nome melhor, era extremamente parecido com o grande gato Tom, que você já viu tantas vezes em meus aposentos, e riu muitas vezes, pela sua assombrosa gravidade de comportamento.

Os cabelos cinzentos que o gato Tom tinha, os mesmos cabelos cinzentos, o caçador possuía. Os bigodes grisalhos que ofuscavam o lábio superior do gato Tom, os bigodes grisalhos escondiam os do caçador. As pupilas dos olhos de Tom se dilatavam e se contraiam como eu pensava que só as pupilas dos gatos podiam fazer, até que vi as do caçador. Com certeza, astuto como Tom era, o caçador tinha a vantagem na expressão mais inteligente.

Ele parecia obter um balanço mais completo sobre seu mestre ou patrono, cuja aparência ele observava, e cujos passos ele seguia com uma espécie de interesse desconfiado que me intrigou muito.

Havia vários outros grupos, na parte mais distante do salão, todos da velha escola estadual, grandiosos e nobres, que conjecturei a partir de sua orientação.

Eles pareciam conhecer-se perfeitamente, como se tivessem o hábito de se encontrar frequentemente. Mas fui interrompido em minhas observações pelo pequeno cavalheiro do lado oposto da sala, que se aproximou para tomar um lugar ao meu lado.

Não era difícil para um francês começar uma conversa, e tão graciosamente a conversa começou que ficamos quase confidentes antes de dez minutos.

Eu estava bem ciente de que a acolhida que todos me davam, desde o homem que abrira a porta até a dama vivaz e o manso senhor do castelo, era destinada a alguma outra pessoa. Mas isso exigia um grau de coragem moral, da qual eu não podia me gabar, ou a autoconfiança e os poderes de conversação de um homem mais corajoso e inteligente que eu para lidar com uma situação tão desastrosamente afortunada.

No entanto, o pequeno homem ao meu lado se insinuou tanto em minha confiança, que eu pensara que podia transformá-lo em um amigo e aliado.

— A senhora está envelhecendo de forma perceptível. — ponderou, no meio da minha perplexidade, olhando para nossa anfitriã.

— Ela ainda tem muito para viver! — respondi.

— Isso não é estranho? — continuou ele, baixando sua voz. — Como as mulheres invariavelmente elogiam os ausentes, ou os que partiram, como se fossem anjos da luz, enquanto os vivos... — ele encolheu seus pequenos ombros, e fez uma pausa expressiva. — Acredita nisso? Ela está sempre elogiando o falecido marido até que, de fato, nós, os convidados, ficamos bastante perplexos, porque sabemos sobre o caráter do falecido Senhor de Retz, que era bastante notório. Todo mundo já ouviu falar dele.

“Todo o mundo, menos eu!” pensei, mas fiz um barulho de concordância.

Naquele instante, o senhor, nosso anfitrião, veio até mim, e com um olhar civilizado de ternura, como uma criança que vai até sua mãe para perguntar algo, indagou como estava o meu gato.

“Como estava o meu gato?” pensei.

O que o homem poderia querer saber? Meu gato? Será que ele se referira ao Tom, sem cauda, nascido na Ilha de Man, e, que naquela hora da noite, estaria supostamente mantendo a guarda contra as incursões de ratos e camundongos em meus aposentos em Londres?

Tom estava em boas condições com alguns de meus amigos. Ele era muito estimado por eles por sua gravidade de comportamento e pelo modo sábio de piscar os olhos. Mas, será que a fama dele teria atravessado o Canal?

Entretanto, uma resposta devia ser devolvida ao inquérito, porque o rosto do senhor estava dobrado para o meu, com um olhar de ansiedade educada. Assim, assumi uma expressão de gratidão, e lhe assegurei que, no melhor de minha crença, meu gato estava de saúde notavelmente boa.

— Que maravilha! Ele está bem, então!

— Perfeitamente bem, senhor! — confirmei, em um labirinto de admiração por esta profunda solicitude em um gato sem cauda, que perdera um pé e meia orelha em alguma armadilha cruel.

Meu anfitrião sorriu docemente, dirigindo algumas palavras ao meu pequeno companheiro, e passou adiante.

— Como são cansativos esses aristocratas! — resmungou o rapaz com um ligeiro escárnio, após o homem virar as costas. — A conversa dele raramente se estende a mais de duas sentenças para qualquer um. Nesse momento, suas faculdades já estão esgotadas, e ele precisa de um refresco de silêncio. Você, eu e o senhor, estamos, de qualquer forma, endividados com nossa própria inteligência pela ascensão no mundo.

Novamente fiquei perplexo!

Como você sabe, sou bastante orgulhoso de minha descendência de famílias que, se não são nobres, são aliadas à nobreza, e quanto à minha ascensão no mundo, se eu tivesse ascendido alguma vez na vida, seria igual às qualidades semelhantes aos balões. Porém, era minha deixa para concordar, então, sorri novamente.

— De minha parte... — falou o rapaz. — Se um homem não se apega a ninharias, se sabe como acrescentar ou reter fatos judiciosamente e não é sentimental em seu desfile de humanidade, ele está certo de afixar um de ou von em seu nome, e terminar seus dias em conforto. Há um exemplo do que estou dizendo. — e ele olhou furtivamente para o senhor de aparência fraca de servo, inteligente e afiado, a quem chamei de caçador.

O Senhor le Marquis não seria nada, além de um filho de moleiro, se não fossem os talentos de seu servo. Será que o senhor conhecia seus antecedentes?

Eu ia fazer algumas observações sobre as mudanças na ordem dos pares, desde os dias de Luís XVI, tentando ser muito sensato e histórico, quando houve uma pequena comoção entre o povo do outro lado da sala.

A comida em vidrarias pitorescas, entraram por trás da tapeçaria, suponho, pois, não as vi entrar, apesar de meus pés estarem bem em frente à porta, e os servos estavam entregando as bebidas e os pequenos frascos que são considerados refrescos, mas que pareciam bastante fracos ao meu apetite faminto.

Estes homens de pé estavam solenemente em frente a uma senhora, linda, esplêndida como o amanhecer, mas adormecia em um magnífico sofá.

Um cavalheiro mostrava muita irritação pelos babados inoportunos do vestido da mulher, que suspeitei ser seu marido, e estava tentando acordá-la com ações não muito distantes de tremores ríspidos. Tudo em vão, ela estava bastante inconsciente de seu incômodo, dos sorrisos do povo, ou da solenidade automática do criado de libré à espera, e da ansiedade perplexa dos anfitriões.

Meu parceiro se sentou com uma zombaria, como se sua curiosidade fosse saciada em desprezo.

— Moralistas fariam uma infinidade de comentários sábios sobre aquela cena! — sorriu. — Em primeiro lugar, note a posição ridícula em que sua supersticiosa reverência pelo posto e título coloca todas essas pessoas. Como o Senhor ali, que é um príncipe reinante sobre algum principado minúsculo, cuja situação exata ainda ninguém descobriu. Ninguém deve se aventurar a tomar seu copo de água com açúcar, até que a Senhora Princesa desperte, e, a julgar pela experiência, esses pobres lacaios podem ter que ficar de pé por um século, antes que isso aconteça. A seguir, sempre falando como moralista, você observará como é difícil romper com os maus hábitos adquiridos na juventude!

Só então, o príncipe conseguiu, por que meios que não vi, despertar a bela adormecida. Todavia, no início, ela não se lembrava de onde estava, e olhando para o marido com olhos amorosos, sorriu e disse:

— É você, meu príncipe?

No entanto, ele estava demasiado consciente da diversão suprimida dos espectadores e de seu aborrecimento consequente, para ser reciprocamente terno, e se afastou com alguma pequena expressão francesa, melhor traduzida para o inglês como um palavrão que sou incapaz de mencionar.

Após beber um copo de vinho delicioso de alguma qualidade desconhecida, minha coragem estava em melhor situação que antes, e afirmei ao meu parceiro cínico, que admito que estava começando a desgostar, que eu perdera meu caminho no bosque, e chegara ao castelo por engano.

Ele pareceu muito escarnecido com minha história, falou que a mesma coisa acontecera com ele, mais de uma vez, e me afirmou que eu tinha mais sorte que ele, porque, pelo seu relato, ele estava em considerável perigo de vida.

Ele terminou sua história fazendo-me admirar suas botas, que ele disse que ainda usava, remendadas por mais que fossem, e toda sua excelente qualidade perdida pelos remendos, porque eram de primeira qualidade para longas excursões pedestres.

— Embora, de fato... — ele acabou dizendo. — A nova moda das ferrovias pareça exceder a necessidade desta descrição das botas.

Quando o consultei para saber se eu devia me apresentar ao meu anfitrião e à minha anfitriã como um viajante benevolente, em vez do convidado, pelo qual havia tomado o nome, ele exclamou:

— De forma alguma! Odeio tal moralidade reticente!

Ele parecia muito ofendido por minha pergunta inocente, como se parecesse condenar a si próprio. Ele ficou ofendido e silencioso, e exatamente naquele momento, peguei os olhos doces e atraentes da senhora do lado oposto, aquela senhora que nomeei no início como não estando mais na flor da juventude, enferma em relação aos pés, que foram apoiados em uma almofada elevada diante dela. Seu olhar parecia dizer:

“Venha aqui! Vamos conversar.”

E, com um laço de desculpa silenciosa para meu companheiro zombador, me apresentei à velha senhora. Ela reconheceu minha vinda com o gesto de agradecimento suave e, meio apologético, disse:

— É um pouco irritante ser incapaz de se mover em noites como esta, entretanto, é um castigo justo para mim por minhas vaidades iniciais. Meus pobres pés, que eram tão pequenos, estão agora se vingando de minha crueldade em forçá-los a usar sapatos minúsculos. Além disso, senhor! — ela sorriu. — Pensei ser possível que você estivesse cansado das palavras maliciosas de seu parceiro. Ele não carregou o melhor caráter em sua juventude, e tais homens são certamente cínicos em sua velhice.

— Quem é ele? — perguntei com brusquidão inglesa.

— Seu nome é Poucet, e seu pai era, creio eu, um lenhador ou algo do gênero. Eles contam histórias tristes de conivência com assassinato, ingratidão e obtenção de dinheiro com falsas pretensões, mas vocês me entenderão tão mal quanto ele, se eu continuar com minhas calúnias. Ao contrário, admiremos a adorável senhora que se aproxima de nós, com rosas na mão, nunca a vejo sem rosas, elas estão tão intimamente ligadas à sua história, como você sem dúvida sabe. Ah! A beleza! — disse ela à senhora, que se aproximava de nós.

As duas sorriram e a mulher, sentada com seus pés inchados, continuou:

— É como se você viesse até mim, agora que não posso mais ir até você. — ela voltou seus olhos para mim, e graciosamente me atraindo para a conversa. — Você deve saber que, nos conhecemos quando ambas se casaram, e somos quase como irmãs desde então. Há tantos pontos de semelhança em nossas circunstâncias, e acho que posso dizer que tivemos cada uma, duas irmãs mais velhas, as minhas eram apenas meias-irmãs, porém, que não foram tão amáveis conosco como poderiam ser.

— Oh! Lamento! — suspirou a outra senhora. — Desde que casamos com príncipes! — continuou a mesma senhora, com um sorriso que não tinha nada de indelicado. — Pois, nos casamos muito acima do tempo certo para casar, e éramos pouco pontuais em nossos hábitos, e, em consequência desta nossa falha, tivemos que sofrer mortificação e dor.

— Vocês são encantadoras! — disse um sussurro bem perto de mim.

— E charmosas! — foi dito em voz alta por outra voz.

Me virei, e vi o astuto caçador, como um gato, incitando seu mestre a fazer discursos civis.

As senhoras se curvaram com o reconhecimento altivo, que mostra que os elogios de tal fonte são de mau gosto, no entanto, nosso trio de conversas foi interrompido, e lamentei por isso.

O marquês parecia ser agitado para fazer aquele único discurso, e esperava que não fosse esperado que ele proferisse mais, enquanto atrás dele estava o caçador, meio impertinente e bajulador em seus modos e atitudes.

As damas, que eram damas de verdade, pareciam lamentar a inépcia do marquês, e lhe dirigiram algumas perguntas triviais, adaptando-se aos assuntos sobre os quais ele não teria dificuldade em responder.

O caçador, por sua vez, falava sozinho em um tom rosnado de voz. Desisti de esboçar qualquer palavra pela interrupção em uma conversa que prometia ser tão agradável, e não pude deixar de ouvir suas palavras.

— Realmente, Carabás[136] se torna mais estúpido a cada dia. Tenho capacidade para descalçar suas botas e deixá-lo à sua sorte! Fui destinado a um tribunal e, pra um tribunal irei. Farei minha própria fortuna, como fiz com a dele. O imperador apreciará meus talentos! — e esquecendo as boas maneiras em sua raiva, ele cuspiu para a direita e para a esquerda, no assoalho partido.

Logo depois, um homem de aparência muito agradável, veio em direção às duas senhoras, levando até elas uma mulher delicada, vestida de branco suave. Não creio que houvesse um pouco de cor em sua face para contrastar com o brando da roupa. Pareceu-me ouvi-la cantarolar, enquanto se dirigia até nós.

— A Senhora de Mioumiou estava ansiosa para vê-la! — falou o homem, dirigindo-se à senhora com as rosas.

A senhora branca continuava olhando para o caçador, como se eles se conhecessem, o que me intrigou muito, já que eles eram de uma classe social tão diferente.

No entanto, os nervos deles estavam evidentemente presos à mesma melodia, uma vez que havia som atrás da tapeçaria, que era mais parecido com o espalhamento de ratos do que qualquer outra coisa.

Tanto a Senhora de Mioumiou quanto o caçador, começaram com olhares mais ansiosos em seus semblantes, e por seus movimentos inquietos, o ofegar da senhora e a dilatação ardente de seus olhos, podia-se ver que sons comuns afetavam ambos de uma maneira muito diferente do resto da sala. O marido da adorável senhora com as rosas se dirigiu a mim.

— Estamos muito decepcionados ao descobrir que o senhor não está acompanhado por seu compatriota, o grande Jean de Angleterre. Não sei pronunciar seu nome corretamente. — e ele olhou para mim para ajudá-lo.

— O grande Jean de Angleterre? — falei.

Agora, quem era o grande Jean de Angleterre? John Bull? John Russell? John Bright?

— Jean! Jean! — continuou o cavalheiro, vendo meu constrangimento.

— Ah! Estes terríveis nomes ingleses. Jean de Geanquilleur!

Fui sábio como sempre, e, ainda assim, o nome me pareceu familiar, mas ligeiramente disfarçado. Repeti para mim mesmo. Era poderoso como John, o Grande Assassino, contudo, seus amigos sempre o chamavam de Jack, o digno.

Eu disse o nome em voz alta.

— Ah! É isso! — exclamou. — Por que ele não o acompanhou à nossa pequena reunião de hoje, à noite?

Eu já estava bastante intrigado, mas esta pergunta séria aumentou consideravelmente a minha perplexidade.

Jack, o Grande Assassino era um amigo íntimo meu, até onde a tinta e o papel podiam manter uma amizade, todavia, eu não ouvia seu nome mencionado perto de meus ouvidos há anos, e de qualquer forma, eu sabia que ele se encantava com os cavaleiros do Rei Arthur, que jazem entrincheirados até o sopro das trombetas de quatro poderosos reis que os chamou para ajudar na necessidade da Inglaterra.

Então, respondi respeitosamente que há muito tempo eu não ouvia nada sobre meu compatriota, no entanto, eu estava certo de que ele ficaria feliz na presente reunião de amigos tão agradáveis. Ele se curvou, e então, a mulher com os pés inchados, pegou a palavra.

— Hoje é a noite do ano, em que dizem que esta grande floresta velha ao redor do castelo é assombrada pelo fantasma de uma pequena camponesa, que um dia viveu por aqui. A tradição é que ela foi devorada por um lobo. Em dias anteriores, a vi fora da janela, ao final da galeria. Se você for avistar o lado de fora ao luar, você poderá, possivelmente, ver a criança fantasma.

Com um movimento suave, a senhora com as rosas, deu sua mão para mim e fomos a uma grande janela, olhando para a floresta, na qual eu havia perdido meu caminho.

As copas das árvores de grande porte se encontravam imóveis embaixo de nós, naquela luz pálida e sem movimento, que mostrava objetos quase tão distintos na forma, embora não na cor, como de dia.

Olhamos para baixo nas inúmeras trilhas, que pareciam convergir de todos os lados para o grande e velho castelo, de repente, através de uma, bem perto de nós, passou a figura de uma menina de capuz, que tomava o lugar do chapéu de uma camponesa na França.

Ela tinha uma cesta em um braço, com sua cabeça virada para o lado, e lá estava o lobo. Quase diria estar lambendo a mão dela, como se no amor penitente, ele pedisse perdão. Ele não parecia um lobo real, de carne e ossos, mas sim, um lobo fantasma.

— Olhe! — exclamou minha bela companheira. — Embora, morta há tanto tempo, sua simples história de bondade e simplicidade confiante, permanece no coração de todos os que já ouviram falar dela. Os camponeses dizem que quem ver esta criança fantasma nesta data, terá boa sorte o ano inteiro. Esperemos que partilhemos da boa sorte! Ah! Aqui está a Senhora de Retz, ela mantém o nome de seu primeiro marido, porque ele era do mais alto nível do que o presente marido! — a nossa anfitriã nos acompanhou.

— Se o Senhor gosta de belezas... — sorriu ela, percebendo que eu estava olhando para a vista da grande janela. — Talvez goste de admirar o retrato! — ela suspirou, com uma pequena afeição de dor. — Você conhece o retrato a que faço alusão? — dirigindo-se à minha companheira, que se curvou e sorriu um pouco maliciosamente, enquanto eu seguia o exemplo da senhora.

Fui atrás dela até a outra ponta do salão, observando com curiosidade, ela observando o que estava passando, seja em palavras ou em ação de cada pessoa.

Quando ficamos em frente à parede da extremidade, percebi um retrato de um homem bonito, de aparência peculiar, com, apesar de sua boa aparência, uma expressão muito feroz e carrancuda.

Minha anfitriã apertou suas mãos, enquanto seus braços estavam pendurados na frente, e suspirou mais uma vez. Então, metade em solilóquio, disse ela:

— Ele era o amor de minha juventude, seu caráter austero, porém, masculino, tocou pela primeira vez este meu coração. Quando... Quando deixarei de lamentar sua perda?

Não a conhecendo o suficiente para responder a pergunta, se, de fato, não fosse suficientemente respondida pelo fato dela estar em seu segundo casamento, senti-me constrangido e comentei:

— O semblante dele, me parece como algo que já vi antes, em uma gravura de um quadro histórico, acho. Ao olhar para ele, sinto que ele segura uma senhora pelos cabelos, e a ameaça com sua espada, enquanto dois cavaleiros estão subindo as escadas apressadamente, aparentemente apenas a tempo de salvar a vida da pobre mulher.

— Por Deus! Você descreve com muita precisão uma passagem miserável de minha vida, que muitas vezes tem sido representada sob uma falsa luz! O melhor dos maridos! — ela soluçou, e ficou ligeiramente inarticulada com seu pesar. — Eu era jovem e curiosa, ele estava zangado com minha desobediência... Oh! Prefiro não lembrar... E assim, fiquei viúva!

Após o devido respeito por suas lágrimas, aventurei-me a sugerir algum consolo corriqueiro. Ela se virou bruscamente.

— Não, senhor! Meu único consolo é que nunca perdoei os meus irmãos que interferiram de forma tão cruel, de maneira tão inoportuna, entre meu querido marido e eu. Para citar meu amigo, o Senhor de Sganarelle. Essas são pequenas coisas que ocasionalmente são necessárias na amizade. Cinco ou seis golpes de espada entre pessoas que se amam, apenas revigoram o afeto. Você observa que a coloração não é bem o que deveria ser? — ela desconversou, deixando a profunda lástima sobre seu passado ser coberta por uma corriqueira pergunta sobre a tonalidade do retrato.

— Nesta luz, a barba tem uma tonalidade peculiar! — respondi.

— Sim! O pintor não lhe fez justiça. Ficou muito bonito e lhe deu um ar tão distinto, bem diferente da realidade. Fique! Eu lhe mostrarei a cor exata, se você chegar perto do retrato!

E aproximando-se da luz, ela tirou uma pulseira de cabelo, com um magnífico fecho de pérolas. Era peculiar, certamente. Eu não sabia o que dizer.

— Sua preciosa e adorável barba! — disse ela. — E as pérolas vão tão bem com o delicado azul!

Sua conversa era estranha e eu apenas tentava entender o que ela queria dizer.

Seu marido, o segundo, que viera até nós, e esperou até que o olho dela caísse sobre ele, antes de se aventurar a falar, então, falou:

— É estranho que o Senhor Ogre ainda não tenha chegado!

— Não é de todo estranho! — exclamou ela, com muita garra. — Ele sempre foi muito estúpido, e constantemente desaba em erros. Ele é um sujeito crédulo e covarde. Não é de todo estranho! — ela voltou-se para seu marido. — Então, todos teriam seus direitos, e nós não teríamos mais problemas. Não é verdade, senhor? — ela me olhou, dirigindo a palavra para mim.

— Se eu estivesse na Inglaterra, imagino que a senhora estivesse falando do projeto de reforma. Não entendo nada que fala! Estou em completa ignorância!

E assim que falei, as grandes portas dobráveis foram abertas de par em par, e cada membro daquela reunião começou a se levantar para cumprimentar uma velhinha, apoiando-se em uma varinha fina.

— Senhora la Feemarraine! — foi anunciada por um coro de vozes doces e estridentes.

E em um momento, abri meus olhos, deitado na grama perto de uma árvore oca de carvalho, com a glória inclinada do dia que amanhecia brilhante no meu rosto, e milhares de pássaros e insetos delicados dando suas boas-vindas ao rudimentar esplendor.

Fim.


Tio Peter

— Eu estava dizendo, senhor... Que passei o dia em Elsmore.

— Sim, o ouvi! Não repita porque isso acrescenta à dor que suas contínuas visitas lá me dão. Charles! Temos a necessidade de falarmos sobre isso.

Um longo silêncio tocou os dois.

Peter Merton olhou para o fogo com as sobrancelhas contraídas, seu sobrinho corou as bochechas por um momento, nervoso e desconfortável sobre sua cadeira, e acabou caindo na mesma ocupação que absorveu seu tio.

Era uma sala pequena, em uma casa muito grande, na qual eles se sentaram. A noite estava fria e úmida, embora ainda não fosse agosto, e o fogo ardente e os decantadores[137] brilhantes sobre a mesa eram os únicos objetos de aparência genial na sala, as cadeiras, que eram apenas três, pareciam bastante desconfortáveis, as paredes eram cobertas com um papel desbotado, estavam nuas e sem adornos, não havia praticamente nenhum tapete, e muito pouca mobília na sala. Um relógio grande e antigo, com um som alto e monótono no canto, enchia, mas não aliviava, a pausa na conversa.

— O vi falando com Thompson na pousada hoje. O que ele diz sobre os pássaros nesta estação? — falou o tio, com uma voz gentil, como se ele desejasse que o discurso fluísse facilmente.

Não há nada mais problemático e desconcertante quando se tem algo em mente que deve ser falado, mas seu companheiro de conversa declina toda a comunicação para um assunto comum da vida cotidiana, apenas para fugir do assunto realmente importante.

O Capitão Merton estava precisamente nesta posição desconfortável e desconcertante. Sua tarefa se tornou mais difícil, sem dúvida, pela forma como sua última observação fora recebida, e qualquer atraso tornaria isso muito mais fácil que naquele momento.

— Não sei nada sobre isso! — respondeu ele. — Era sobre outra coisa, querido tio, que eu queria falar com você! — ele fez uma pausa, sua voz vacilou ligeiramente, e sua cor veio, embora sua testa crescesse fixa e determinada, à medida que prosseguia. — Queria falar sobre Elsmore!

O rosto de seu tio escureceu de novo, porém, ele não falou e o sobrinho continuou:

— Se eu visse uma sombra de razão para o preconceito irresponsável que o senhor nutre contra a família de Elsmore, eu não continuaria uma intimidade com ela, que, como o senhor sabe, foi iniciada involuntariamente. Pelo contrário, cada dia seguinte me mostrou um novo traço de simplicidade e bondade, e, uma nobreza tão verdadeira como se você, querido tio, tivesse aceitado as propostas de Senhor Elsmore e assim, há muito tempo, você mesmo seria o primeiro a reconhecer.

— Ao que este longo preâmbulo conduz, Charles? Que o Senhor Bertrand, condescendido em pedir emprestado uma centena ou duas, e não pode fazer o negócio sem a intervenção de seu tio rico? — perguntou o velho, com um sorriso amargo. — Pois, isto... — acrescentou ele. — É o fim e objeto comum de tais intimidades, como a sua e a dele, o filho de um comerciante londrino com o filho de um conde inglês.

— A família de minha mãe era tão nobre quanto a dele! — exclamou o jovem.

Tio Peter tremeu e ficou pálido, agarrando rigidamente os braços de sua cadeira sem almofada. O Capitão Merton viu imediatamente a impropriedade de uma exclamação dirigida ao seu tio paterno, mas não era o momento para desculpas. Sua história devia ser contada.

— Não era sobre o Senhor Bertrand que eu queria falar... — continuou ele. — Mas sobre sua irmã, a Senhorita Helena.

Ele fez uma pausa.

Seu tio certamente o aliviaria de qualquer outra revelação, porque havia apenas uma causa que normalmente induz um jovem, como o Capitão Merton, a falar assim formalmente com um tio idoso e seu guardião, sobre uma jovem senhora conhecida, porém, o tio Peter ficou descorado e imóvel, nada seria mais desencorajador que aquela expressão sombria que apareceu e se instalou em seu semblante. Até mesmo o brilho vermelho da luz de fogo que caiu sobre ele, não podia remover seu matiz branco incomum.

— Sobre a Senhorita Helena, para cuja mão desejo fazer propostas ao Senhor Elsmore, mas antes de fazê-lo, desejo seus conselhos e sua aprovação, tio!

— Aconselhamento e aprovação? Eu o aconselho a se casar ou a aprovar seu casamento com qualquer Senhorita Helena nesta Terra. — respondeu o velho homem em voz alta. — Não, Charles! Venha até mim, e me diga que não deseja se casar com a filha daquele homem miserável! Me diga qualquer coisa, menos que deseja casar com uma filha daquela orgulhosa classe falsa à qual a senhora Helena pertence. Mas não... — continuou ele, após um intervalo, durante o qual se levantou da cadeira, e andou pela sala de forma agitada. — Não! Não! Toda essa excitação é desnecessária, faça sua proposta, meu rapaz, e veja se seus amigos de boa classe os escutarão quando pronunciar que ao se casar com ela, você perde a ajuda de seu tio rico, e toda a esperança de se tornar seu herdeiro.

— Direi isso! — exclamou o jovem.

Ele se levantou, enquanto falava, na graça de sua figura alta e firme e cabeça arremessada para trás, com uma resolução profundamente estabelecida estampada em cada linha de suas feições bonitas de sua raça, entretanto, uma gentileza o tocou ao contemplar a velha figura trêmula que o confrontava. As lembranças da antiga bondade e do cuidado terno e ansioso, desde sua infância, voltaram.

Então, passou diante dele, a visão de uma velhice sombria e desoladora para o tio, caso a consumação que o velho ameaçou, realmente ocorresse. Ele precisava induzi-lo a se render.

— Tio! Você me conhece, e sabe que não sou um mercenário que pensa em sua riqueza. Você sabe que minha culpa é olhar muito pouco em tais assuntos em vez de muito, por isso, ouso lhe implorar que reconsidere as palavras que você proferiu. Admito que fosse desnecessário este meu pedido de conselho e aprovação, quando minha escolha já fora feita. Senti que seria assim, ou eu deveria tê-lo consultado antes, pois, agora é impossível retroceder.

— Impossível retroceder? Você certamente não se propôs e aceitou com a força das expectativas do Senhor Elsmore!

— Não disse nenhuma palavra ao Senhor Elsmore, mas falei com a sua filha, o que um homem não pode deixar de dizer. Oh! Tio! Você devia conhecê-la! Ela é tão boa, gentil, bela e verdadeira. Vá até às cabanas de suas propriedades, e veja se ela é aquela que você idealiza como uma mulher de sua classe.

O velho caminhou lentamente até a mesa do escritório, que ficava entre as duas janelas da sala. Ele destravou uma gaveta e extraiu dela uma caixa, abriu a tampa, mas não olhou para o que lá continha, e ofereceu, à distância de um braço, ao seu sobrinho.

— Ela é tão bonita assim? — questionou ele.

O Capitão Merton recebeu a caixa, havia dentro dela um retrato de uma mulher muito bonita. Era uma figura de proporções requintadas, o vestido era de veludo escuro, sobre o qual brilhavam diamantes, que também eram vistos nas ricas madeixas de seus cabelos castanhos profundos, e uma criança pequena brincava aos seus pés, mas parecia estar fora de harmonia com a figura principal, cujo excesso de beleza oriental, régio e atraente, não parecia familiarizada com sentimentos caseiros. O olhar da senhora não observava para baixo, mas, para cima, com certa paixão que o pintor tinha bem retratado em suas profundezas escuras.

Charles Merton olhou para o retrato, fascinado enquanto olhava. Foi uma reminiscência real ou uma fantasia que parecia associar aquela sobrancelha orgulhosa e bochecha resplandecente com alguma distância tênue em sua própria vida?

— Quem é ela? — perguntou ele longamente. — Diga-me, tio! Quem é ela?

— Direi o quê e depois lhe direi quem é. Ela também era filha de um conde inglês, pobre e orgulhoso. Ela casou-se com um rico plebeu devido à sua fortuna. Ela gastou a maior parte dessa herança, depois o deixou, escolhendo como novo marido um de verdadeira nobreza. A mulher do retrato era a sua mãe, Charles! Vá para o Senhor Elsmore agora com sua proposta, mas tenha cuidado com a miséria e a tristeza que brotam de tais casamentos.

O Capitão Merton ainda olhava para o retrato.

— Onde ela está agora? — perguntou ele.

— Ela está morta! — respondeu seu tio, brevemente.

O jovem ainda cultivava os olhos fixos no lindo rosto de sua falecida mãe. Ele perdeu o brilho dos olhos, o rosto ficou pálido e dolorido, seus olhos se escureceram e ficaram repletos de lágrimas.

Era uma história para a qual ele já estava, em algum grau, preparado, pelas meias pistas e dissimulações com as quais todas as menções ao nome de sua mãe foram sempre cercadas.

Voltava completamente à memória aquele rosto, o mesmo que uma vez, há muitos anos, se dobrara sobre sua pequena cama, e quando ele levantou a sua cabeça para encontrá-la, ela pousara uma lágrima em vez de um beijo, na bochecha de seu filho.

Quando o Capitão Merton voltou para seu quarto naquela noite, ele considerou sua posição, caso seu tio persistisse em suas intenções declaradas, mas a contemplação não fez diferença na decisão a que ele chegara.

Ele faria sua proposta no dia seguinte, para o senhor Elsmore, no desejo de tomar a mão de sua filha. Suas finanças atingiam quase dois mil por ano, uma renda resultante dos restos da fortuna, outrora, enorme de seu pai, seriamente cuidada durante sua infância pela mão cuidadosa de seu tio. Ele também tinha sua comissão, e ainda pensava que o Senhor Elsmore não seria desfavorável ao seu pedido.

Sobre a Senhorita Helena, ele não pensara sobre estes problemas que seu tio estava apontando em sua direção.

O quarto em que o jovem se entregava a tais pensamentos era vasto, bem iluminado e mobiliado com todas as coisas de luxo modernas, onde seu camareiro se movia silenciosamente, uma vez que ele fazia os arranjos necessários antes de deixar seu senhor dormir.

Entretanto, havia outro quarto, rude, pouco mobiliado, em um canto daquela vasta mansão, na qual entravam as visões douradas que logo encheram o cérebro do jovem.

Naquele quarto, sombras nebulosas pairavam sobre o espírito de Peter Merton, sombras que nunca estiveram completamente ausentes de sua vida, mas, que naquele momento, se aprofundaram e se intensificaram como não faziam há anos.

As palavras que seu sobrinho pronunciara, pareciam apagar toda a luz daquele futuro, para o qual ele raramente era propenso a buscar.

E o passado se ergueu diante dele, cenas nunca esquecidas, mórbidas em sua vida solitária, mais uma vez foram espalhadas perante seus olhos.

Charles Merton, pai do Capitão Merton, era seu único irmão, e ele o amou com mais que afeto fraterno, um afeto cuja quase paixão, a masculinidade e os anos seguintes, só haviam se aprofundado. Ele resistira aos comentários zombadores de seus colegas de escola, nos primeiros dias e nos posteriores, às influências duras, frias e separadoras daquela vida na qual, muitos de seus anos de sucesso passaram.

Quando Charles Merton se casou com a bela Senhora Augusta Trevor, houve uma ruptura no relacionamento entre os irmãos, mas no peito de um deles, em todo caso, o velho sentimento nunca foi erradicado ou diminuído.

Rodeada por um círculo alegre e dissipado da sociedade da moda naquela época, a Senhora Augusta desencorajou as frequentes visitas do Senhor Peter Merton, até onde estava em seu poder, e seu marido, fraco de caráter e agindo inteiramente sob sua influência, não fez nenhum esforço para atrair seu irmão.

Para o Senhor Peter Merton, a sociedade em que seu irmão estava apoiado, era repugnante aos seus gostos e inconformista aos seus hábitos.

Lá na sala de visitas de sua cunhada, durante suas breves visitas, Peter Merton absorvera aqueles preconceitos contra a classe à qual a Senhora Augusta pertencia, e de uma conduta que justificaria a desaprovação de certos indivíduos que a compunham.

Ele percebera seu irmão rir por trás das costas, e a si mesmo depois, como se ele fosse um indivíduo inferior e que seu nascimento fora um mero acidente.

Tudo isso seria esquecido, mas os acontecimentos devido à extravagância imprudente da Senhora Augusta, sua fuga com o Senhor Marchdale, a vida arruinada de seu irmão, que não se prolongou por muito tempo após a ocorrência, a sensação amarga de seus erros que o levaram a um resultado tão terrível que assombrou Charles Merton e por fim, seu pedido quase moribundo de que seu filho pudesse, se possível, ser poupado de uma vida como a sua.

Com o coração repleto de preconceito, ele determinou que a criança deixada ao seu cargo fosse protegida de todo contato com aquela classe da sociedade que forjara sua família com injustiça e miséria tão invejosa.

Ele manteve-se afastado de todas as famílias nobres de sua vila, e criou o menino na mais estrita reclusão, uma reclusão que foi feita vã e inútil pelo desejo ardente e incessante concebido no início da infância, e confirmado pelo avanço dos anos no jovem de Charles, para uma vida militar.

Em vão, seu tio tentou dissuadi-lo, porque uma vida de ociosidade não era de seu gosto e nenhuma outra profissão, além de armas, era tolerável.

Ele não quis ir para a faculdade, porque ele não queria ser desviado de seu propósito, mas não foi assim, de fato, porque ele passou por Oxford de forma digna de crédito, graduou-se lá e depois reivindicou o cumprimento da promessa de seu tio, que se o seu desejo, depois disso, continuasse inalterado, ele seria gratificado.

Seu tio ainda tentava e o menino se manteve isolado da nobreza vizinha do condado, mas isso fora fútil pela circunstância do Senhor Bertrand, o filho mais velho do Senhor Elsmore, porque ele estava no mesmo regimento que Charles Merton, e logo se tornara seu amigo mais íntimo.

Tudo isso, o velho reviu em seu quarto rude e solitário, e ele também chegou à sua resolução, que se este casamento que estava no pensamento de seu sobrinho acontecesse, deveria fechar todo o interesse ou interferência de sua parte em suas preocupações.

Raramente o Capitão Merton acordava cedo, a tempo do café da manhã de seu tio, o que foi invariavelmente sucedido por um passeio pelo bosque, onde o velho homem era visto de manhã, pisando a grama curta em seus sapatos robustos, e negociando a destruição dos cardos, se é que tal coisa era encontrada, com bengala, que ele carregava sendo o único acessório formidável que gostava de empunhar.

O tio Peter não era um homem a ser posto fora da exatidão mecânica de sua vida, devido a uma noite sem dormir e uma emoção imprevisível.

Ele deu seu passeio habitual na manhã após a conversa que relatamos, confirmando-se, a cada passo que ele dava, na decisão em que chegou.

Ao se aproximar da casa, na volta, encontrou seu sobrinho à porta, puxando suas luvas, preparando-se para sair de casa.

— Bom dia, tio!

— Bom dia, Charles! Posso perguntar para qual lugar você vai tão cedo?

— Para a casa do Senhor Elsmore, tio! Desejo encontrá-lo em casa, antes dele ir para seus afazeres. Estou certo que o encontrarei ainda tomando seu café da manhã!

— Você pode me deixar dizer uma palavra antes de ir?

— Quantas o senhor quiser! Mas, temo que não alterarão meu propósito.

Eles entraram na sala onde sentaram na noite anterior e ambos estavam perfeitamente calmos, com uma determinação resoluta que as palavras, de nenhum dos dois, alteraria seus temperamentos.

— Charles... — começou o velho. — Você dirá ao Senhor Elsmore qual é sua fortuna, tenho certeza. E, você lhe dirá que após dar este passo, você não tem nada a esperar de mim. Você é obrigado a lhe dizer mais, penso, sobre os últimos compromissos que fiz para você, antes de alcançar sua idade adulta.

A testa do jovem cresceu carmesim.

— Direi tudo o que é necessário para que um homem de honra, que aspira à mão da filha de alguém, deve afirmar.

Eles se separaram.

As rodas leves da carruagem do jovem deslizaram rapidamente sobre o caminho suave, que levava à Elsmore, todavia, seu coração ainda mais velozmente atravessou a distância, e reagira à entrevista, que o aguardava há muito tempo, antes de chegar aos portões da velha mansão.

Tio Peter sentou, ficando assim durante toda a manhã, naquela pequena e nua sala, curvando-se sob a tristeza daquela existência desolada que doravante ele sentia que o esperava até a sepultura.

Será que seu propósito se perdeu? Não! Ele ganhou força pela própria miséria, que ele previu que assistiria à sua execução.

O Senhor Elsmore recebeu o jovem amavelmente, e seu processo não foi desfavorável. Ele tinha, de fato, percebido há algum tempo o afeto que crescera entre Charles Merton e sua filha Helena, e se ele sentisse que a união deles era indesejável ou impossível, ele teria tempo, antes que isso pusesse um fim à intimidade deles.

Mas as perspectivas sobre os ganhos do jovem estavam mudadas. O Senhor Elsmore parecia estar com um ar sério, já que não era um homem rico, e tendo uma grande família, podia dar pouco as suas filhas, mas era tarde demais, ele sentiu, para iniciar uma oposição e seu consentimento foi finalmente obtido.

O Capitão Merton continuaria no exército, trocando seu lugar nas tropas para evitar a chance de serviço no exterior.

Ele fez a revelação ao Senhor Elsmore, que seu tio o incitara tão seriamente a fazer?

Não! Ele o achou inútil e desnecessário. Ele pensou, enquanto caminhava pelo ar livre, que era tão supérfluo quanto indesejável confessar ao Senhor Elsmore todas as fábulas de sua infância, das quais ele sentia que agora emergia e se emancipava para sempre.

Se ele soubesse a profundidade da sombra que as ofensas do passado lançavam sobre o presente, talvez não sentisse tão leve e descuidado como se sentiu.

Possivelmente, ele refletisse sobre as circunstâncias de tentação que ele caíra quando jovem, e que se ele estava mudado o bastante para enfrentar a tentação, se ele fosse colocado novamente no meio de tais circunstâncias. Contudo, ele sentiu-se bem e não refletiu assim naquele dia, porque o presente era suficiente.

Ele não se arrependeu do passado e não se parou de pensar no futuro.

As horas voavam rapidamente e sem marcas, enquanto ele sentava ao lado de sua noiva nos salões de Elsmore, ou caminhava com a Senhorita Helena pelo bosque, que ainda não perdera sua tonalidade e beleza de verão.

Ela, com sua graça e encanto tranquilo, e frescor de seu amor, se você a tivesse visto, não teria se maravilhado de que, na presença dela, ele esquecera tudo ao seu lado.

A noite chegou e ele voltou para Hursleigh, a morada de seu tio. Era tarde quando ele chegou, e seu tio se apressara para descansar.

No dia seguinte, ele voltaria ao trabalho.

Ele levantou cedo e encontrou seu tio na mesa do café da manhã. Depois disso, ele lhe comunicou brevemente o resultado de sua visita a Elsmore, no dia anterior. A comunicação foi recebida em silêncio, e assim, ele deixou Hursleigh, no início do dia para a cidade do condado, na qual seu regimento estava aquartelado.

Seu coração estava cheio de felicidade, que ele mal podia apreciar como merecia a mudança que acabara de ocorrer em suas perspectivas, nem sentir a tristeza da separação dele e seu tio, e o que até então, fora sua casa.

A falta de motivos contra a Senhorita Helena o agravava tanto, que ele não podia sentir muito arrependimento ao despedir-se de seu tio. Havia também, em sua mente, uma nuvem dourada de esperança flutuando sobre o futuro, que ele sentiu que seu tio e suas objeções eventualmente cederia, e o único obstáculo à sua felicidade seria removido a tempo, em todo caso.

Entretanto, havia certa facilidade do tio Peter em pensamentos incômodos sobre Charles Merton, o que fazia com que qualquer tristeza, especialmente uma como esta, pairasse mais facilmente sobre ele que sobre outra.

— Há alguma carta, Thomas? — perguntou o Senhor Peter Merton, ao retornar de uma caminhada anormal e um ritmo incomum, na qual ele se entregara imediatamente após a partida de seu sobrinho.

— Há duas, senhor. As cartas estão em sua mesa, no escritório.

O tio Peter apressou-se para lá. Ele geralmente não tinha muito entusiasmo com suas correspondências, mas, naquela manhã, ele desejava alguma distração.

As duas cartas estavam sobre a mesa. Ele conhecia a caligrafia de uma delas, e a deixou de lado, a outra era um pedido de ajuda, de alguma instituição de caridade.

O velho sempre recebia muitas dessas, e respondia sempre nobremente, porém, era momento infeliz para que tal pedido chegasse as suas mãos.

Ele jogou a carta para o lado, impacientemente, sem entrar no mérito do caso, e quando pareceu reconsiderar o assunto, dobrou-a e a colocou no bolso esquerdo do seu casaco, de onde provavelmente a tiraria e a jogaria no chão enquanto caminhasse.

Tio Peter voltou sua atenção para a primeira carta, a qual ele não parecia considerar muito interesse. Ela foi escrita em uma mão italiana clara, grande e ousada. A carta consistia em três folhas de papel creme, muito finos. A primeira foi preenchida com perguntas sobre sua saúde e frases fluídas de solicitude afetuosa e um querido Hursleigh. A segunda, com um relato abreviado da história anual da família da Senhora que escrevera a carta, e a terceira o felicitando pela aproximação de seu sobrinho com a Senhorita Helena, e concluiu que algumas jarras de vinho, cuja conservação fora supervisionada pelas queridas filhas, seguiam com a carta. Ela implorou que ele aceitasse seu presente.

Era a Senhora Howard, uma prima, da qual o Senhor Peter Merton vira pouco, mas o suficiente para suspeitar sobre a sua simpatia.

Ela sempre enviava presentes para demostrar o afeto que o Senhor Peter não admirava. Eram presuntos, perus, conservas e cartas expressivas, da mais alta estima e afetuoso respeito.

Os presentes foram entregues à governanta, e as cartas seriam respondidas em um estilo duro e rude, que contrastaria singularmente com as cartas enviadas pela Senhora Howard.

Ela era viúva, com duas filhas. Seu marido fora médico e a deixara em circunstâncias abastadas. Porém, ela vivia na cidade do condado, onde era o objeto principal da vida de muitas pessoas. A mulher, infelizmente, sem qualquer outra ocupação, passava as tarde em companhia de seus vizinhos. Ela tinha se esforçado continuamente, mas até então ineficaz, para diminuir a distância entre Hursleigh e Laurel Lodge, e convencer de sua estima em relação ao rico, mas excêntrico Senhor Merton. Poucas pessoas acreditariam em sua afeição tão generosa.

Peter Merton leu a carta até o final. Um sorriso sombrio passou por cima de seu rosto quando ele a leu, e ainda a segurando, os pensamentos em sua mente passaram certamente menos desfavoráveis à Senhora Howard que qualquer outro que tivesse sucedido à leitura de qualquer uma de suas cartas anteriores.

Sim, ele podia estar interessado em todas aquelas expressões de solicitude e consideração, mas, de alguma forma, não olhava para aquele momento como costumavam olhar.

Há um silêncio e solidão do coração, no qual pesamos não muito bem a verdade ou falsidade daqueles tons que rompem com sua monotonia e obscuridade.

Ele se sentou imediatamente e respondeu à carta. Ele geralmente deixara tais cartas por muitos dias sem resposta, todavia, ele queria responder, e seu coração estava amolecido.

Sua resposta era tão diferente de todas as que ela recebera até então dele, que a Senhora Howard fez questão de lê-la em voz alta para todos os seus visitantes matinais na quinzena seguinte. Ela alterou todos os graus positivos para os superlativos ao longo de toda a sua leitura, e fez uma ou duas outras extemporâneas alterações, ou melhor, exageros consideráveis, que soaram realmente que o primo era afetuoso quanto tanto se poderia desejar, e muito mais do que se poderia esperar.

O Capitão Merton viu pouco o seu tio antes de seu casamento, e depois dele, suas visitas pararam.

Ele estava tão feliz naquela sua vida de casado, que tudo o que o precedeu parecia um sonho do qual ele havia emergido.

Seu casamento com a agora Senhora Helena, o introduziu imediatamente em um novo e grande círculo de conhecidos, e ele entrou avidamente nos atraentes prazeres da sociedade londrina, dos quais ele pouco vira antes.

Sua casa era pequena, mas requintadamente bem harmonizada. Sua esposa tinha um grande círculo de admiradores, que protestaram, afirmando que o Capitão era um sortudo.

Dois anos correram de felicidade inquietante para ambos, dos quais não há nada a dizer, apenas que eles foram felizes. Então, as pequenas nuvens surgiram, escurecendo vagarosamente a borda do horizonte, juntando-se lentamente na escuridão e no volume, até que se penduraram sobre suas cabeças, e a tempestade caiu. Um deles, há muito tempo havia visto a aproximação, mas o outro estava totalmente despreparado.

É para o final do terceiro ano da vida de casados que devemos transportar nossos leitores.

A temporada em Londres estava em seu auge e, embora a noite chegasse ao fim, o Capitão Merton e a Senhora Helena, estavam em sua sala de desenho.

Era uma sala encantadora, com quadros requintados dos artistas da moda. Uma ou duas estátuas de mármore branco subiam entre as janelas, totalmente abertas, mas nem uma lufada de ar agitava as cortinas, de delicadas rendas com as quais eram sombreadas. O dia fora intoleravelmente quente, e havia uma opressão no ar que era quase avassalador.

O Capitão Merton estava deitado no sofá e a Senhora Helena, ao piano. Ela tocava admiravelmente, mas, enquanto suas mãos deslizavam sobre as teclas, sua mente estava chamando o velho e simples ar, que, às vezes, vêm sobre o coração, como sonhos do passado longínquo de poder e ternura, muitas vezes não sentidos em composições mais elaboradas.

Enquanto tocava algo do encanto que só a voz humana pode transmitir por completo, as notas claras ressoavam distintas e articuladas nos ouvidos de seu marido.

Quem conhecesse as palavras que ela tocava, diria que elas nunca foram sentidas por ele de maneira mais viva que naquele instante, uma vez que ela tocava apenas o ar.

Um súbito e vívido relâmpago azul e bifurcado iluminou o apartamento. A Senhora Helena levantou-se do piano e sentou em um assento ao lado do sofá que ele estava deitado desconfortavelmente entre as almofadas, não ouvindo exatamente a música dela, pois, seus pensamentos estavam longe, mas isso o acalmou, e sempre que ela parava, ele falava:

“Continue!” e ela continuava, trazendo ar após ar.

Quando o relâmpago chegou, ele não lhe pediu para continuar tocando, e ela veio ficou ao dele, encostando a testa por um momento na mão dele, que pairava sobre uma das almofadas.

Ele não falou, nem ela. E o relâmpago azul foi sucedido de outro, e o trovão desceu sobre suas cabeças quase sem intervalo.

Um criado entrou com velas, porém, eles ordenaram que fossem retiradas novamente, e sentaram-se, observando a tempestade.

Por fim, a tempestade diminuiu e o céu azul-claro da noite de verão apareceu, marcado ali e acolá, uma estrela prateada e o cheiro doce das flores na sacada, tocado pela chuva, foi empurrado para dentro da sala.

A Senhora Helena estava arrebatada de espanto e admiração intensa, absorvida pela vista que tinha diante de si. Ela esquecera tudo naquele momento.

Não foi bem assim com o Capitão Merton. Nenhuma mudança no aspecto do mundo externo poderia dar-lhe um momento de intervalo da ansiedade naquele momento, e que, por muito tempo, vinha lutando em seu peito.

Suavizado pela influência da cena e da hora, ele olhou para o céu, e como as últimas nuvens confusas e escuras estavam se precipitando para fora da vista, ele desejou que alguma brisa favorável como aquelas, passasse sobre sua vida, levando para longe dele, aquelas nuvens de problemas e desolação que pareciam pesar em sua cabeça.

Ele não quis manter tais pensamentos, muito menos, expressá-los, mas ele fez as duas coisas.

Seu tom de voz era de tristeza e queixa, de um homem que se esforçava para culpar circunstâncias em que ele mesmo era o único culpado, e que procurava ocasiões para aliviar sua insegurança.

— Não há problema! — afirmou a Senhora Helena, calmamente. — Sei como se sente, querido Charles! Sei o quanto é difícil. Mas, há um problema pior... É ver você, que amo, suportando tal sofrimento no qual não sou permitida participar.

— Há coisa pior! — respondeu o Capitão Merton, amargamente. — Escolher entre te acalmar com uma ilusão ou machucar com uma verdade.

— Podemos suportar qualquer coisa. — disse a Senhora Helena, em sua voz suave e baixa.

E, mais uma vez, eles se calaram.

Ela olhou para o céu claro e calmo, para as estrelas brilhantes, e seu espírito reuniu forças.

— Podemos suportar! — repetiu. — Charles! Posso suportar tudo o que você tem a dizer, tudo menos ouvir... — acrescentou ela, gentilmente. — Seu silêncio! Porque você me ama muito pouco para não me deixar simpatizar com sua dor. Sinto que não vou ouvir seus lamentos.

— Está errada! — exclamou ele. — Chama isso de meu pesar ou minha tristeza? É o seu pesar, o seu pesar, Helena! É a minha vergonha!

A Senhora Helena ficou pálida, mas ela respondeu imediatamente:

— Então, o problema sou eu?

O criado entrou novamente com velas, que ele colocou sobre as mesas, e juntou as dobras escuras das cortinas de cetim, e desapareceu.

Era, como já dissemos, uma bela sala. Os gabinetes estavam ali, mesas de marchetaria[138], com malaquite[139] e mosaico florentino, tapetes macios, retratos ricos e pedras preciosas da arte moderna. Um gosto refinado as reuniram para serem admiradas.

O Capitão Merton levantou-se do sofá e andou para cima e para baixo na sala.

— Esta é uma linda sala... — lamentou. — É uma linda casa! Você a deixaria, Helena?

— Sim! — assegurou. — Posso deixá-la! Posso desistir de tudo, de tudo desde que eu tenha você, Charles! Quero o que éramos um para o outro, e não quero viver com este horror sombrio e secreto, que sempre se levantou entre nós, e nos separa dia após dia. Só me diga tudo o que sente. Vamos nos ajudar e talvez, tenhamos que sofrer juntos. Será mais leve para nós dois, se andarmos juntos.

Ele foi até ela e se jogou em uma almofada baixa aos seus pés, e lhe contou tudo, como um ladrão diante do policial.

Ele voltou aos primeiros momentos de seu pecado, revelando seus motivos para ela e explicando as razões de não falar esta confissão antes de seu casamento. Porque se achava livre para sempre do vício de sua juventude. E na sociedade em que ele fora lançado em Londres, a velha tentação se repetira, e ele afundara sob ela. Ele se debruçou sobre as fascinações do jogo, e disse ser impossível resistir a elas. Ele sabia e lembrava haver um ponto ao qual ele poderia ter resistido, porém, ele não o fez, e estava perdido.

— No entanto, eu imaginava, às vezes, que ficaria quieto, se não fosse o meu amor por você, querida Helena. Pensei que pararia quando a metade do meu dinheiro estava perdido, mas pela agonia de submetê-la a uma privação, e assim, na esperança de ganhar tudo de volta que perdera, arrisquei tudo e perdi tudo! Oh! Helena! — prosseguiu ele. — Agora você sabe tudo! Arruinei nossa vida! Arruinei a mim, você e nossa filha! Eu queria ter coragem para desejar que você voltasse para seu pai. Prefiro perder você a ter que ver você e nossa pequena sofrendo.

— Não verás! — respondeu ela. — Como conseguiu pensar, Charles, que eu o deixaria em tal momento, quando a minha presença ajudaria e talvez o salvaria. Mas o que deve ser feito? Isso, devemos considerar. Não temos absolutamente nada?

Ela tinha a mente clara e prática que era encontrada em pessoas de extrema sensibilidade, e podia encontrar qualquer problema, se apenas o visse, e força para lutar com este problema quando o avistasse. Ela também tinha aquela capacidade ilimitada de sofrimento, que existe no coração de algumas mulheres.

— Perdi tudo o que pude perder! — respondeu ele. — Não tenho nada! Você tem o que seu pai lhe deu, eu perderia isso também, se tivesse apostado! — acrescentou ele, amargamente.

— E, nossa filha? — perguntou ela.

— Tem uma provisão de minha propriedade que eu não podia tocar.

— Teremos, então, trezentos por ano, Charles! Não estamos arruinados de maneira alguma. — disse ela, sorrindo. — Podemos viver disso!

— Como? Onde? — perguntou ele.

— Oh! De inúmeras maneiras e em inúmeros lugares. — replicou ela. — Há lugares encantadores na costa inglesa, onde podemos ter algum chalé para vivermos felizes. Já estou cansada de Londres. Podemos nos separar de todas essas coisas. — articulou ela, olhando ao redor da sala, com o coração leve. — Todas essas coisas requintadas não nos trouxeram paz.

— Não! — contrapôs ele, pensativo. — Helena, não é possível viver aqui na Inglaterra. Devemos ir para o exterior.

— Vamos para o exterior! — rebateu alegremente. — Vamos para alguma cidade belga barata, com seus amplos mercados, casas lendárias e igrejas esplêndidas. Charles! Seremos muito felizes em qualquer lugar, certo? — disse ela. — Apenas devemos permanecer juntos!

— Helena! Você é um anjo! Você é meu anjo! — murmurou ele. — Meu bom anjo!

Ele olhou para o rosto dela, o cabelo marrom macio, a calma, o silêncio santo de sua beleza, a tristeza, ternura, e o amor.

Um estranho pensamento disparou como uma pancada em seu coração, sobre que ele a perderia, porque tinha tão pouco para dar a ela. Foi um pensamento mórbido, mas foram alguns momentos antes que ele o sacudisse para fora do seu coração, e, finalmente ele o dominou e se voltou novamente para rever a situação deles.

— E seu pai? — questionou ele a seguir. — O que ele vai pensar? O que ele vai dizer, Helena? O enganei cruelmente, assim como você!

— Escreverei para meu pai. — respondeu ela, calmamente. — Ele está em Florença com Alicia. É melhor apenas uma carta, porque visitar meu pai pode ser doloroso para você agora.

Tudo foi arranjado naquela noite. O que eles tinham seria vendido. Seus compromissos seriam cancelados, e eles viajaria para a Bélgica, um refúgio para a pobreza, que ele agora carregava e que caía sobre ele na Inglaterra.

Havia apenas um recurso que se apresentava a ele uma e outra vez, em suas dificuldades, e que fora repetidamente rejeitado, ou seja, escrever ao seu tio Peter, e contar-lhe tudo e pedir sua ajuda.

Seu orgulho se revoltou contra a tarefa, porque antes, ele não fizera nenhuma abertura para uma reconciliação, mas naquela noite, depois que sua esposa fora cuidar de sua filha, ele sentiu que precisava tentar.

Ele sentou e escreveu uma carta, com uma forte convicção esperançosa que amoleceria o coração do velho para a situação dele. Seu tio não tinha outras relações, além dele, e ele sabia que tio Peter se importava com ele. Mesmo que parecesse impossível, seu tio apareceria para ajudá-lo em sua angústia.

A carta foi enviada e todos os arranjos foram adiados até que uma resposta pudesse chegar.

Devemos voltar para Hursleigh.

Era uma noite brilhante de verão, o ar estava repleto de um delicioso frescor da tempestade da noite anterior. O ápice dos desejos da Senhora Howard e o fim de suas longas esperanças fora alcançado.

Ela estava como convidada na casa de seu primo, sentada em uma grande cadeira à moda antiga, atraída para uma das janelas do grande salão, que fora descoberta pelas cortinas, com móveis antigos polidos e retratos pendurados para sua recepção.

— Julia! — exclamou ela, com aquela benignidade especial que a caracterizava desde sua entrada em Hursleight. — Seu tio gosta de música. Façamos uma canção!

Não sei o motivo dela chamar o Senhor Peter Merton de tio para sua filha, pois, a Senhora Howard era apenas prima dele.

Mas, ela disse que o tio Peter caminhava tão naturalmente, que elas não podiam e não se dirigiriam a ele por nenhum outro título.

Era bem verdade que Peter Merton gostava de música. Ele tinha um ouvido admirável e um gosto natural considerável, mas, ele encolheu os ombros sob a proposta, porque ele ouvira mais de uma das canções da Senhorita Julia, e desde a primeira fala, ele desejava silenciar o canto da jovem, porém, sem ferir seus sentimentos.

No entanto, não houve fuga, pelo menos, não imediata, então, ele se inclinou para trás resignado, e a jovem senhora sentou-se, passando a mão sobre as teclas, prestes a começar sua apresentação, quando a Senhora Howard levantou-se de sua cadeira, avançou e colocou sua mão sobre o ombro de sua filha.

— Um momento, minha querida! Você não perguntou ao seu querido tio o que ele quer ouvir. Que estilo de música você prefere, senhor? — ela o olhou pelo canto dos olhos. — Minha filha canta de tudo! Francês, alemão, italiano, escocês, irlandês ou nosso inglês. Qual deseja?

A Senhora Howard não se enganava em seu conhecimento dos gostos das pessoas. Ela esperava, com confiança quando fez este anúncio imponente, que a escolha do Senhor Peter Merton seria por uma balada inglesa, e estava preparada para exclamar a superioridade das baladas inglesas a qualquer outro estilo de música, mas ela ficou decepcionada quando ele disse:

— Alemão, por favor!

A Senhorita Julia Howard corou e, olhou de uma ponta a outra, o livro de canções, depois voltou novamente.

— Temo não ter uma canção alemã para você, tio! — lamentou.

— Não temos uma canção alemã? — questionou a Senhora Howard. — Onde estão todas as suas canções alemãs, filha querida?

— Nunca tive, senão uma, você sabe, mamãe! — respondeu a Senhorita Julia, simplesmente. — Aquela... Você sabe, que aprendi com meu professor de canto.

— Surpreendente! — murmurou a Senhora Howard.

Ela estava se esforçando para apresentar sua filha em Hursleigh como uma jovem altamente realizada, o que a Senhorita Julia não tinha nem a sorte de ser, nem o engano de fingir ser.

— Cante o que tiver, minha querida! — sorriu a mãe de Julia.

A Senhorita Howard começou Annie Laurie, que ela cantou durante um semitom muito baixo. O Senhor Peter Merton levantou-se silenciosamente, porque tinha cartas para escrever e caminhou para seu escritório.

Um criado entrou com cartas na mão, quando o Senhor Peter estava saindo da sala de música.

— Alguma carta para mim, Thomas? — perguntou.

— Não, senhor! Acho que são todas para a Senhora Howard.

O Senhor Peter Merton deixou a sala.

A Senhora Howard pegou as cartas, eram três. Ela era incansável em escrever e receber cartas, porém, as deixou de lado por um momento, enquanto fazia uma censura breve e afiada à filha, pelo que ela chamou de a exposição vergonhosa que ela acabara de fazer de sua ignorância.

A Senhorita Julia deixou a sala para digerir a repreensão materna, aos prantos e a Senhora Howard foi deixada sozinha com suas cartas.

Não, não eram suas cartas, de fato, havia uma das três, para Peter Merton.

Ela estava prestes a chamar o criado para levá-la ao escritório do Senhor Merton, quando seu olho foi preso pela caligrafia. Era a mesma, muito notável, que ela notara em um livro manuscrito, no dia anterior. Era do Capitão Merton.

Sua mão estava a meio caminho da corda do sino que chamaria o criado, mas ela a prendeu e, recolhendo as três cartas, retirou-se para seu quarto.

Seu primeiro procedimento ao entrar no quarto foi trancar a porta, então, ela sentou-se e examinou o exterior da carta, mas, graças ao envelope de papel grosso, seu conteúdo era impenetrável até mesmo à sua hábil manipulação.

Ela sentiu uma convicção intuitiva de que o conteúdo da carta era importante. Peter Merton confiara a ela muito do que o leitor já sabia. Ela sabia que nenhuma comunicação ocorrera entre eles desde o casamento do sobrinho, e não se adequava de forma alguma, aos planos agora amadurecidos em seu cérebro, que qualquer um deles estava iniciando.

No entanto, era uma coisa perigosa abrir uma carta, e poderia não valer a pena, afinal, correr o risco, seria perfeitamente inócuo.

Ela ficou por alguns minutos em profundo pensamento e depois tocou a campainha, que fora respondido por sua empregada.

— Hannah! Você pode me trazer um jarro de água quente? — foi o pedido dela. — Quero muito quente, pois, tenho dor de cabeça, e desejo tomar um pouco de sal aromático.

O pedido foi logo obedecido.

— Devo misturá-lo para a senhora? — perguntou Hannah.

— Não! Obrigada, querida Hannah! — falou a Senhora Howard, sem rodeios. — Pode me deixar sozinha?

Hannah partiu novamente e ela trancou a porta.

A Senhora Howard pegou a carta em suas mãos e a colocou sobre a abertura estreita do jarro, sobre a água fervente. Em poucos instantes a cola do envelope cedeu e ela foi capaz de extrair o conteúdo sem medo de ser detectado, caso achasse desejável substituí-lo, e apresentar a carta ao tio Peter.

Ela a leu a carta. A descrição tocante da miséria dele e do heroísmo de sua esposa, o apelo afetuoso à bondade de seu tio, a confissão plena e não extenuada de sua culpa e loucura. Nem uma palavra daquela carta foi perdida, porque a Senhora Howard leu tudo realmente.

Ela a redobrou e depois a colocou na gaveta inferior de sua cômoda, e a trancou cuidadosamente. Ela correu seus dedos através de suas outras cartas, e desceu ao salão para fazer chá para o Senhor Peter Merton, com um rosto calmo, seu habitual sorriso imperturbável e um pouco mais falante do que era seu costume.

O Senhor Peter Merton pensou, que mesmo com todas as suas pequenas falhas, algumas das quais ele viu com singular inteligência, ela era uma mulher muito agradável e bem disposta.

Devemos novamente passar adiante alguns anos em nossa história.

Quatro anos se passaram desde os últimos eventos relacionados.

A cada ano, a Senhora Howard fazia uma visita mais longa que a última a Hursleigh, no entanto, por mais estranho que seja dizer, por mais que o fato acima possa militar contra a afirmação, ela não cresceu sobre os afetos de Peter Merton.

O engano não vive a longo prazo, pode ser bem-sucedido em qualquer ocasião em particular, como na época da carta do Capitão Merton, mas a falsidade e dissimulações diárias, de hora em hora, de uma mulher como a Senhora Howard destruiriam todo sentimento de consideração e respeito, em uma mente honesta e verdadeira como a do tio Peter.

Ela também errou, ao prolongar suas visitas por tanto tempo. Ela estava mais apta a ficar uma semana do que um mês em uma casa.

Em uma semana, você ficaria encantado com ela, mas em um mês, você estaria enojado.

Por que, então, o Senhor Merton a convidou?

Porque era um homem solitário e precisava, ele sentiu, à medida que envelhecia, de uma espécie de gentileza para tornar a vida mais sustentável.

Ele viu o valor da bondade dela, porque o eco, das vastas salas da velha mansão, tinha se tornado sombrio e angustiante para ele.

A Senhora Howard já estava há quase três meses em Hursleigh, e mostrava os sintomas de uma intenção em ocupar seus aposentos por completo.

O Senhor Merton estava cansado de sua companhia e estava procurando, em vão, um pretexto para se livrar de sua visita, nada ilustre, que procurava permanecer em seus atuais aposentos.

A saúde do Senhor Peter Merton estava visivelmente em declínio. Ele parecia mais velho do que realmente era, porque, na verdade, ele mal podia ser chamado de velho.

Ele estava nervoso e não tinha nem sono, nem apetite. Na verdade, ele estava se tornando nada, além de um anfitrião agradável para visitantes menos perturbadores que a Senhora Howard e suas filhas.

Como elas deixariam o querido velho em tal estado? Era impossível!

Elas tinham muitos compromissos para o verão, mas todas cediam ao dever primordial de permanecer em Hursleigh.

A Senhora Howard estava continuamente implicando e o tio Peter não conseguia expulsar violentamente de sua casa as pessoas que estavam dispostas a ficar nela.

Por fim, ele estava realmente ficando doente, cada vez pior, e cansado, não só da Senhora Howard e de suas filhas, mas de Hursleigh e da vida.

Havia algo decididamente errado em algum lugar.

A Senhora Howard implorou que ele visse o Senhor Evans, o médico da vila, mas ele não tinha confiança no Senhor Evans, e não quis vê-lo.

Ele decidiu finalmente ir à cidade para consultar o Doutor A., cujo conselho ele encontrara de grande utilidade em um tempo muito distante de sua vida.

O Senhor Merton não viajava até Londres há anos, e seria um forte poder motivador para deixar Hursleigh.

Logo após o café, em uma manhã, para o espanto da Senhora Howard, a carruagem foi até a porta. O Senhor Merton não manifestara suas intenções a ela, para que ela não insistisse em acompanhá-lo. A carruagem não precisou esperar muito, quando ele apareceu na sala, equipado para sua viagem.

— Bem, senhoras... — falou o tio Peter. — Vocês poderão se divertir, espero, por um dia ou dois sem seu anfitrião. Senhora Howard, vou à cidade para consultar o Doutor A. Pensei nisso por muito tempo e decidi finalmente.

— Para a cidade, senhor? Sozinho? — questionou a Senhora Howard. — Julia! Eleanor! Minhas queridas! Não devemos permitir isso! Iremos com o Senhor, uma ou todas. Se o Senhor nos avisasse de sua intenção, estaríamos prontas neste momento.

— Agora é tarde demais! Minha cara Senhora! — olhando para seu relógio, exclamou ele. — Mas terei tempo, se a carruagem correr, de pegar o próximo trem. Adeus, Senhora Howard! Adeus, meninas!

Ele se apressou antes que fosse possível prendê-lo e a Senhora Howard prometer uma prontidão impossível em se preparar para acompanhá-lo ou sugerir esperar pelo próximo trem, ou qualquer coisa do gênero.

A Senhora Howard viu a roda da carruagem girar e varrer a trilha, com uma obscura antecipação de alguma calamidade iminente, uma exceção singular a todos os hábitos comuns da vida do tio Peter.

O trem seguiu em asas rápidas para Londres, o Senhor Merton quase foi o primeiro a descer do trem. A manhã clara e o movimento rápido já o faziam esquecer qualquer doença existente nele.

Ele tomou uma carruagem e seguiu para a casa do Doutor A., com quem ele marcara uma consulta.

O Doutor o recebeu com cortesia, já que eram velhos amigos, e expressou muito pesar por ver o velho amigo tão magro e doente.

Após ouvir todos os sintomas de seu caso, ele prometeu escrever uma receita para o velho amigo.

— Mas... — começou ele. — O que eu recomendaria a você, é conseguir o mais rápido possível para mudança de ar, cenário e sociedade, mudança tudo... Compreende, meu amigo?

— É exatamente isso que desejo! — falou o tio Peter. — Porém, creio que isso é muito difícil de fazer.

— Basta querer! — ele sorriu e fez uma pausa. — Se você seguir meu conselho, caro amigo, não voltará de maneira alguma para Hursleigh. Você se sentará e escreverá para dizer que desejo que fique por alguns dias sob meu olhar. Se hospede em alguma boa pousada por algumas semanas para respirar outros ares. Sugiro uma pousada na Bélgica, cujo ar e água, tenho certeza, o curariam em pouco tempo.

O Senhor Merton ficou pensativo, porque dificilmente aceitaria deixar Hursleigh e ir para o continente, mas seu amigo colocou luz em todas as dificuldades onde o Senhor Merton colocava sombras.

Eram apenas duas horas de travessia marítima e Merton falava francês.

— Vou dar para você algumas recomendações. Você encontrará a Senhora A., ela está no andar acima, na sala de desenho.

Foi uma carta embaraçosa para escrever, mas o tio Peter a escreveu e enviou a Hursleigh por seu servo, com ordens para fazer as malas e ficar em tratamento por algumas semanas.

Enquanto a carta era enviada por seu criado, ele se sentou e estudou o mapa das linhas ferroviárias da belgas. Ele não conseguia ver Bruxelas na rota para a pousada de águas termais, mas ele queria visitar Bruxelas, e faria um desvio muito leve para poder vê-la.

O Capitão Merton e a Senhora Helena residiam lá, e ele não desejava vê-los. Eles não mostraram grande desejo para sua amizade, por que, então, ele manifestaria alguma para a deles?

Não! Ele certamente não os veria, mas veria Bruxelas, apesar disso, se todos foram para Bruxelas, por que não ele?

Ele ouvira boatos sobre a história de seu sobrinho desde seu casamento, mas o boato não explicava a história certa, havia o fato de que o Capitão Merton estava acabado, que ele vendera sua casa, móveis, retratos e fora para o exterior.

O mundo podia observar, mas o mundo nunca se contenta em ver resultados simples e diretos, sem saber ou fingir saber, a causa ou causas que os levaram até lá.

Tio Peter analisava a memória. A elegância dos móveis, carruagens, vestidos, joias e diversões da Senhora Helena Merton, se misturavam com o relato dos infortúnios da pobre Merton, e assim, o tio Peter acreditou que a culpa da miséria do seu sobrinho era responsabilidade da extravagância da Senhora Helena.

Ele julgou pelo que ouviu. Como podia ver ou saber que era o Capitão Merton a pessoa extravagante, e que sua esposa encolhera os ombros, devastada?

A Senhora Howard, a partir de certas informações que possuía, podia corrigir a história que chegou aos ouvidos do tio Peter sobre os desastres de seu sobrinho, mas, por razões óbvias, ela renunciou isso e exagerou, sobre os leves relatos flutuantes que ouvira contra a prudência mundana da Senhora Helena.

— O primeiro ato acabou. — dizia continuamente o tio Peter para si, desde que as notícias chegaram até ele.

Ele decidira, desde o primeiro momento, que Charles Merton tomaria o mesmo caminho que seu pai fizera. Ele pensara que com esperanças e fortuna arruinadas como seu pai, ele buscaria sua ajuda e amizade, então, Hursleigh seria a sua casa novamente.

Sua experiência fora muito limitada e suas obstinadas preposições contra uma classe, o cegaram de tal forma que ele ficou consideravelmente surpreso que a Senhora Helena, após arruinar seu sobrinho, não tivesse o abandonado imediatamente.

Entretanto, já haviam se passado alguns anos desde que o primeiro ato do drama que o tio Peter há muito tempo representara em sua mente, e não parecia haver perspectiva de que o segundo fosse realizado.

Ele ouviu que os Mertons estavam vivendo em Bruxelas, que eles tinham uma filha e que não estavam muito bem. Isso era tudo que ele sabia.

Tio Peter estava decepcionado por seu sobrinho não pedir ajuda, e por mais que ele julgasse que não devia o ajudar, o velho tio gostaria de ser solicitado a fazê-lo.

Ele sentia uma espécie de curiosidade, misturada, sem dúvida, com afeto duradouro, que ele escolheu reconhecer, para aproveitar a coincidência de ir à Bélgica, e de seu sobrinho residir lá.

Sendo assim, ele julgaria os fatos um pouco mais por sua observação do que pelos relatos dos outros.

Grande foi a consternação em Hursleigh quando a carta do Senhor Merton chegou.

A Senhora Howard a leu e releu, mas não conseguiu extrair dela nenhum conforto, mesmo gentil e muito educado.

Implorou para o criado que não apressasse a partida das malas, com o pretexto de acompanhá-lo em Londres.

Como a Senhora Howard não tinha, de fato, nenhum compromisso, e como ela sugerira a todos os seus correspondentes da cidade onde residia, que seria provavelmente um tempo considerável até que ela pudesse retornar ao seu doce lar e renunciar ao querido, mas árduo dever que assumira, ela achou melhor, para salvar as aparências, levar suas filhas por um mês à beira-mar, depois ela retornaria à Laurel Lodge.

Assim o fez, explicando aos seus amigos que a mudança em seus planos fora causada pela necessidade de descanso, dela, no caso.

No final de uma noite de verão, quando a escuridão começou a descer sobre a cidade e as luzes nas lojas estavam acesas, um senhor idoso fora visto andando sem propósito pelas ruas de Bruxelas, enquanto a luz do dia durava, ele confinara suas perambulações, principalmente ao bairro da igreja de São Gudule.

Ele caminhara em volta e ao redor dela, e vagava por algum tempo dentro da igreja, e ainda assim, a beleza peculiar de seu exterior e interior fora vislumbrada pelo velho homem, pois, sua mente estava cheia de outros pensamentos, dos quais as novas cenas em que ele se encontrava, não conseguiam desviá-lo.

Finalmente escureceu, e ele caminhou lentamente para outro bairro da cidade, e poderia ser visto por algum tempo, andando para trás e para frente, antes de uma fileira de casas brancas altas, no lado oposto da rua.

Ele olhou ansiosamente para as janelas superiores de uma destas, mas nenhuma luz apareceu nelas, nem qualquer sinal de habitação humana na casa, exceto na parte inferior da mesma, que foi instalada uma loja.

Finalmente, tendo olhado seriamente para cima, enquanto caminhava por algum tempo, parecia chegar a uma decisão súbita, e assim, atravessou a rua e entrou na loja.

Quando fez isso, encontrou uma mulher alta, elegantemente vestida, que o olhou, sem se levantar, do lado oposto do balcão.

A senhora evidentemente imaginou que seu silêncio e confusão resultavam da incapacidade de expressar seus desejos em uma linguagem que ela entenderia. Ela, portanto, com um sorriso de boa índole, mas um inglês muito indiferente, fez uma sugestão sobre luvas, que eram a compra habitual feita em sua loja por seus clientes masculinos.

Peter Merton lembrou de seu francês em um momento, e aceitou a recomendação das luvas, cuja escolha ele prolongou por algum tempo, e então, perguntou casualmente, se não havia um cavalheiro e uma senhora, ingleses, alojados na casa acima da loja.

O rosto da senhora brilhou ao ouvir:

— Sim! Havia certas pessoas assim na casa. O Senhor desejava vê-las? Ah! Que infelicidade! Lembro-me que eles deixaram Bruxelas, alguns dias atrás, com sua encantadora menina, que não estava muito bem, então, resolveram mudar de ar.

Ela lamentou que ele fosse um amigo do casal e pensou se ele deixaria seu cartão ou nome, para que ela lhes dissesse quando surgissem na loja.

Não! Ele não fez isso.

A senhora não estava de modo algum desconcertada. Ele procedeu a falar sobre a beleza e todas as várias qualidades agradáveis que ela descobrira neles, desde que se hospedaram em sua casa. Eles pareciam ter todas as virtudes sob o sol, mas, acrescentou a senhora, quando ela havia esgotado seu panegírico:

— São muito pobres! Pobrezinhos!

— Como suportam isso? — perguntou o tio Peter.

A lojista pareceu surpresa com sua pergunta, mas procedeu imediatamente para respondê-la.

— O Capitão Merton foi o que mais sofreu, sua esposa sempre aceitou tudo. Ela é tão boa e religiosa, que um protestante teria inveja de sua maneira de viver.

O Senhor Merton ficou um pouco surpreso e muito desapontado com o que ouviu. Tirou seu chapéu e deu adeus à senhora, voltando a caminhar pelas ruas, em direção a pousada onde se hospedara.

Cabisbaixo, foi para seu quarto, onde se deitou, pensando em muitas coisas. Ele não dormira, mesmo que soubesse que na manhã seguinte, ele partiria para uma estância termal.

Era um dia chuvoso, e o campo por onde ele passava era muito desinteressante. Seu espírito estava muito deprimido, ele continuava se perguntando, de novo e de novo, o motivo de deixar Hursleigh, a Senhora Howard e a Inglaterra.

A chuva cessara, mas ainda estava úmida e desconfortável. Ele entrou na grande carruagem, que o transportaria da estação ferroviária até seu destino, que ficava a alguma distância dela.

Ele teria observado antes, que o caráter do cenário mudara muito, que em vez do campo, plano e desinteressante, pelo qual sua viagem se estendia inicialmente, mudava para colinas, riachos selvagens, castelos e casas de campo, deitados agradavelmente e intercalados entre eles, por todos os lados.

Ele estava sentado em sua carruagem, absorvido em seus reflexos melancólicos, e bastante despreocupado com o aspecto do mundo externo.

Enquanto a carruagem roncava desconfortavelmente, ele olhou através de suas janelas trêmulas, e com toda a disposição para encontrar falhas, não podia deixar de ser atingido e satisfeito com a estrada pitoresca pela qual eles passavam.

Apesar da chuva que caía, havia uma estranha leveza no ar, através da qual, quando as sombras da noite começaram a cair, ele viu pequenos vagalumes flutuando em todas as direções, sob a mata que contornava a beira da estrada.

Para um inglês solitário, aquele lugar estrangeiro era um pouco igual, particularmente, se ele não estiver inclinado a entrar nas diversões do lugar, como foi o caso do tio Peter.

Ele não jogava bilhar, nem críquete, que eram umas das facilidades que ele encontraria lá.

Tio Peter não viu ninguém que conhecia, portanto, não foi convidado a participar de nenhum dos piqueniques, cavalgadas e outras festas levantadas por seus compatriotas que, pela busca por saúde ou diversão, se reuniam no mesmo local.

Ele evitava todos os lugares habituais de balneários públicos e percorria longas distâncias até a bela vizinhança, ao fundo, com pôneis robustos e curtos sobre suas pernas, o que, para dizer a verdade, ele preferia.

A comida era variada, não apenas para o corpo, mas para o apetite mental de alguém tão observador como ele. Ele também tinha livros ingleses, como em Hursleigh. E, assim, ele caiu, em poucos dias, em uma espécie de rotina, que, se não fosse prazer, certamente era mais parecida com a vida que ele levava em Hursleigh com a Senhora Howard, sua convidada, a contragosto.

Em uma manhã de peculiar beleza, ele caminhara uma milha ou mais até o campo, seguindo uma rota que antes não tomara e a trilha o conduzia, por caminhos sinuosos, ao longo da beira de um rio perto da montanha que se branqueava sob seus pés.

A cena era um tanto artificial, a mão da arte humana tinha evidentemente ajudado ali a mão da natureza, mas era suficientemente agradável, no forte calor do meio-dia.

Ele se abrigara abaixo das altas e graciosas faias que se elevavam de um lado para o outro, e ouvira a queda das águas correntes.

Tio Peter trazia consigo um livro e um guarda-chuva. Ele se sentou em um pitoresco fragmento de rocha marrom, no qual colocou seu primeiro lenço de bolso, com cuidado, abrindo seu livro, mas não leu muito, caiu em um devaneio, de longe, mais agradável que qualquer outro que ele fizera durante muito tempo.

A dura geada, que anos de solidão e preconceito se acumularam sobre seu coração, derreteu diante das influências geniais da cena e hora.

Seus pensamentos voltaram aos seus primeiros dias de sua infância, que eram os únicos que foram iluminados por um forte afeto em sua vida.

Nenhuma sombra de amargura ou de melancolia inquietante pairava sobre seu coração, tudo era sol ao seu redor e dentro dele.

Penso que, se seu sobrinho estivesse diante dele naquele momento, ele não hesitara em perdoar cada erro e renunciado a todo preconceito.

No entanto, a figura que finalmente o perturbara do agradável estado de serenidade mental era uma jovem e brilhante serviçal belga, com uma espécie de casaco de palha, uma anágua preta, de toucas brancas sobre seus traços rosados, cabelos tenros, trançados e marrons, ao lado de uma menina, de beleza singular, e não de menos notável inteligência e vivacidade de maneira.

Seu riso e sua voz ressoaram pelo caminho muito antes de chegarem à sua vista, e quando viraram a esquina formada por uma massa de rocha coberta de madeira e flores silvestres, ele ouviu claramente o que elas diziam.

— Aqui está o velho lugar! — disse a menina. — Vamos sentar? Vou dar-lhe outra lição em inglês.

A mulher riu, olhou em volta, e seus olhos caíram sobre o tio Peter, que estava sentado perto delas, com sua figura, a princípio, escondida pelas rochas e pelos galhos salientes das árvores.

Ele se levantou imediatamente, pegou seu guarda-chuva e caminhou abruptamente em direção oposta, não aborrecido por ter suas reflexões solitárias interrompidas.

Ele andou por um caminho pequeno, e novamente se sentou, onde estava completamente fora do alcance das duas vozes, nem estava em perigo de interrompê-las.

O velho não pensara muitos sobre, porém, quando as duas figuras que ele avistara antes, atravessaram a ponte de madeira que pairava sobre o riacho que ele acabara de atravessar, e avançaram diretamente em direção a ele, com a menina segurando na mão um lenço de bolso, que ele deixara para trás em sua saída precipitada, ele não soube o que fazer.

Ela se apresentou com certa graça e delicadeza inata, tão diferente da graça e delicadeza de uma criança francesa, que ele imediatamente descobriu que ela era inglesa, embora fora em francês que ela falou ao se apresentar, pois, ela explicou que encontrara seu lenço de bolso sobre a rocha que ele estivera sentado.

— Obrigado! — ele respondeu em inglês, com um sorriso raro, que ele escondera durante anos.

O rosto da criança brilhava como um raio de deleite inesperado que se rompeu sobre ela e acrescentava estranhamente um brilho à sua beleza.

— Você é inglês? — perguntou a menina. — Mamãe e papai são ingleses também, mas eu nunca estive na Inglaterra. Nunca, pelo menos, desde que me lembro. Eu estive na Inglaterra uma vez, mas isso foi há anos. Você vai me contar tudo sobre a Inglaterra? Você vive há muito tempo lá?

Todos pensavam que o tio Peter não gostava de crianças, mas a afirmação era falsa. Ele gostava delas e muitas vezes, desejava continuar perto delas, mas não podia fazê-lo. Ele fora, uma e outra vez, tão mortificado pelo mau sucesso de suas rudes propostas para elas, que durante anos, deixou de estar perto de qualquer uma.

Entretanto, ali estava uma criança que parecia levá-lo imediatamente à doçura. Ela não tinha medo de certa dureza nele, que desencorajara outras crianças, talvez, porque ele estava menos rude naquela manhã.

A menina sentou a seu lado sem hesitar, e falou com ele com uma facilidade e graça que o cativou de imediato, e, aparentemente também a mulher belga, que ficou olhando, ocasionalmente, admirando os dois.

— Acredito que papai e mamãe gostariam de você. — afirmou a menina, musicalmente, após conversar com ele por algum tempo. — Eles não veem muitas pessoas, quase nenhum inglês, mas penso que eles gostariam de você! Você pode me dizer seu nome, para que eu possa contar-lhes tudo sobre você?

— Meu nome é Merton. — replicou o tio Peter.

— Isso é muito estranho. Temos o mesmo nome? — indagou a menina. — Chamo-me Merton, Helena Merton!

O tio Peter olhou fixamente para a menina, a verdade lhe passou de imediato. Não havia grande semelhança de traço com seu sobrinho, mas havia tons na voz dela como a de Charles Merton, mas ainda mais lhe pareceu a de seu irmão.

— Você pode me dizer o nome cristão de seu pai? — perguntou ele, em voz baixa. — Minha filhinha...

— Sim! Papai se chama Charles.

Ele ficou por um instante em silêncio e indeciso sobre o que seria seus movimentos futuros.

Se seu sobrinho e esposa estavam ali, ele certamente deveria deixar o lugar, foi seu primeiro pensamento.

Ele precisava fazer isso?

Era seu segundo pensamento.

Seus pensamentos condenaram seus preconceitos, cuja loucura, ele começava a ver mais claramente, e também uma velhice desolada, aplaudida apenas pela amizade corruptível de uma mulher como a Senhora Howard.

Por que não se reconciliar imediatamente com seu sobrinho e, com aquela criança, que ele já sentia poder amar, e assim, voltar a encher de alegria a velha casa de Hursleigh?

Mas como se reconciliar?

Quem faria as primeiras aberturas para isso?

Ele não teria coragem e seu sobrinho?

Se ele não as fizera antes, seria provável que ele as fizesse agora?

Então, o pensamento da Senhora Helena se repetiu, a quem ele há tanto tempo estava acostumado a imaginar como altiva, desdenhosa e extravagante, mas com a imagem diferente de caráter, transmitida pela dona da loja em Bruxelas. Ele tentava mudar os sentimentos em relação à esposa de seu sobrinho naquele instante.

— Charles é o nome cristão de papai. — repetiu a menina. — Agora você vai me dizer o seu?

— Não tem importância. — respondeu seriamente o tio Peter.

Outro silêncio os tocou, mas quebrado novamente pela menininha.

— Está chovendo! — exclamou a menina. — Veja que grandes gotas!

Elas eram realmente grandes, as primeiras de uma chuva pesada, que caíram pretas e largas sobre as pedras ao seu lado. Mais grossas e mais rápidas elas vieram, até que as árvores não conseguiam ser abrigo, e, em extensão, a melhor coisa para ser feita era correr e chegar em casa o mais rápido possível.

— Nossa casa não fica longe. — falou a menina. — Há árvores o caminho todo!

Eles se apressaram e ganharam a estrada alta, sombreados por uma longa fileira de limas. Tio Peter andava a passos largos, protegendo a menina com seu grande guarda-chuva, mas tirando pouco proveito da proteção, até chegarem a uma pequena casa branca, separada da estrada, com um jardim em frente a ela.

— Esta é nossa casa! Você quer entrar?

— Não, obrigado! — replicou tio Peter.

Ele a viu protegida da chuva no alpendre da velha casa, e se apressou para se afastar.

Tio Peter quase lamentou ter feito isso depois, perdendo a oportunidade para uma reconciliação que pudesse ocorrer.

O velho homem não duvidou que a menina contaria sua história, e que seria imediatamente descoberto quem ele era, e cada passo que ele ouvia durante o resto do dia, perto da porta de seu quarto, ele imaginava ser de seu sobrinho.

Mas, Charles Merton estava naquele dia em negócios, e a Senhora Helena estava muito absorvida pela ansiedade de saber que sua filha andou na chuva, e não se importou com a história de um velho cavalheiro, inglês, que tinha lhe dado a proteção de seu guarda-chuva.

— Não é estranho, mamãe, que seu nome era Merton? — persistiu a pequena Helena.

— Muito! — disse a Senhora Helena. — Você não devia pegar chuva, ainda está doente!

A chuva continuou durante todo aquele dia, e também na maior parte do dia seguinte, mas à noite, tio Peter considerou se aventurar a sair de seu quarto, ao qual ele estivera preso durante a maior parte do tempo da chuva.

Ele deu uma pequena caminhada na direção oposta à casa de seu sobrinho, depois, foi por um curto tempo olhar os jornais. Mas quando ele pegou o Times, o jornal não conseguiu chamar sua atenção o suficiente para entendê-lo.

O velho Merton se sentiu nervoso e desconfortável e lançava seus olhos continuamente sobre o grupo de pessoas igualmente ocupadas. Tio Peter olhava para cima, a cada nova entrada na sala, mas não encarava nenhum rosto que agora havia se familiarizado, e que estavam acostumados a frequentar o lugar.

Finalmente ele jogou o jornal para baixo e caminhou até as mesas de jogos, e encarou duas delas. Havia lá rostos velhos, e jovens ansiosos, mas eles não o interessavam.

Havia um jovem inglês vestido na moda, perdendo descuidadamente uma montanha baixa de pequenas peças de ouro, e uma mulher leviana, da classe burguesa, acumulando com a rapidez de um lobo, uma montanha alta de grandes peças prateadas. Mas seu olho caminhou sobre todos, e não descansou sobre nenhum, então, ele deu um suspiro de alívio, talvez, porque não encontrou o que tão estranhamente desejava e como, inexplicavelmente, temia ver ali. Ele pegou seu chapéu e desceu as escadas.

No arco escuro que levava à rua, duas pessoas falavam. Ele parou involuntariamente, preso pelos tons de uma das duas vozes.

— Acho que vou entrar, e procurar uma mesa! — disse uma voz.

— Não! Você não entrará! — disse a outra. — Vamos tomar um chá!

— Nunca tomo chá! — disse a primeira voz, hesitante.

— Em todo caso, você não vai lá, ou se for, você não vai jogar! Minha experiência fora tão assustadora. — a voz ali, que ele reconhecera, ficou baixa, mas era perfeitamente distinta em seu ouvido intenso. — Você não me negará o direito te dar um conselho.

— Como você leva a sério a perda de uma peça de cinco francos?

— Sim! Porque uma fortuna pode segui-la. Venha comigo!

— Bem, você deve me prometer uma canção da Senhora Helena para compensar a minha abnegação.

Eles saíram. Era luar, mas o pavimento era sombreado pelas altas casas brancas, e nenhum dos dois percebeu a figura do velho, que os seguia a alguma distância.

O tio Peter viu os dois entrarem na casa onde ele deixara a menina. As janelas superiores estavam abertas, e vozes, que ocasionalmente soltavam uma risada leve, podiam ser ouvidas por ele quando estava do lado de fora.

Ele permaneceu lá por muito tempo, depois veio o som de um piano e de uma voz feminina, profunda, rica e clara.

Parecia uma bússola incomum e de cultivo considerável. Primeiro, ele ouviu uma elaborada peça de música estrangeira, em seguida, alguns acordes foram tocados, e canções inglesas mais simples foram cantadas. Ele podia ouvir as palavras delas nitidamente.

Uma delas, ele conhecia bem, e que gostara muito em dias passados, porém, ele não a ouvia há muito tempo, e a canção passou por cima de sua memória com um poder que lhe trouxe as lágrimas aos olhos.

Era uma das melodias irlandesas:

“Muitas vezes, na noite de inverno.”

As palavras da última estrofe ressoaram em seus ouvidos. Ele não conseguia sacudi-las para fora de seus ouvidos. O velho andava para cima e para baixo, repetindo-as. Porque deviam ser escritas por ele mesmo, porque descrevia a situação em que ele estava por tanto tempo.

Finalmente, a porta da frente se abriu, e o visitante partiu. Eles estavam sozinhos, Charles Merton e sua esposa.

Um impulso irresistível veio sobre o velho e ele caminhou até a porta e tocou a campainha.

A porta fora aberta por um velho servo do Capitão Merton, que permaneceu com eles através de todas as suas privações, e que o reconheceu de imediato.

Ele o conduziu imediatamente pelas escadas. O velho Peter estava nervoso o que não é incomum em tais circunstâncias.

Eles ficaram felizes em vê-lo e, claro, surpresos.

Charles Merton o apresentou a sua esposa. Imediatamente o tio Peter largou o último de seus preconceitos, se é que algum ainda permanecia em seu coração.

Tudo parecia ser natural, e no curso comum das coisas, como se ele passasse todas as noites com eles durante meses, e ele se sentia em casa.

Eles falavam de assuntos comuns, ofereceram chá para ele, o que ele recusou, e então, quando ele se levantou para partir, Charles Merton disse, em seus velhos tons francos:

— Você nos deixará vê-lo novamente, tio? Ainda não o apresentei para a minha pequena Helena!

— Tomarei o café da manhã com você amanhã! — confirmou o tio Peter. — Se você me permitir, mas não preciso de uma apresentação para Helena, já somos amigos.

Ele explicou seu encontro anterior, e a Senhora Helena ficou surpresa, é claro, que ela não detectara de imediato quem era o companheiro da criança.

Ele surgiu na manhã seguinte, para o café da manhã, e propôs uma caminhada com seu sobrinho, e no decorrer da qual, através de uma série de perguntas contundentes, ele descobriu toda a história.

— Por que você não me contou tudo isso antes? — questionou tio Peter, quando ele entendera tudo.

— Escrevi antes sobre deixar a Inglaterra, lhe contando muito do que você me perguntou agora, contudo, não recebi nenhuma resposta à minha carta. Sabendo sobre o meu caráter, pode entender o motivo para não voltar a escrever.

— Escreveu-me antes de deixar a Inglaterra? Nunca recebi sua carta! Não ouvi falar de você desde seu casamento.

— É surpreendente que você não tenha recebido minha carta. A carreguei até o correio, ansioso demais por uma resposta, e tomei todas as precauções para que ela chegasse ao seu destino. Eu ansiava que não receberia uma resposta, porque eu julgava que isso destruiria sua fortaleza heroica, ao ajudar em nossas dificuldades. Mas era uma ilusão esperar a sua ajuda! No entanto... — continuou ele. — Estou feliz, querido tio, que você não recebeu minha carta, porque, se eu saísse facilmente dos meus problemas, talvez nunca aprendesse, como aprendi a superar tão completamente os hábitos maléficos. Eu não conheceria a força e gentileza de caráter da minha esposa, nem teria enfrentado o meu egoísmo e pecado. Aprendi muito nestes últimos anos, pois, estudei muito, com a esperança de transformar meu trabalho em fonte para melhorar nossa posição. Mas estou principalmente grato às lições morais que recebi dela e me sinto o mais valioso e o indelével de todos.

Tio Peter ficou tristemente perplexo com a carta que faltava.

Após descobrir o sumiço da carta, ele tinha pouca esperança de obter qualquer informação sobre o assunto, mas conversou com seu criado, quando entrou em seu quarto naquela noite:

— Thompson, soube esta manhã que uma carta enviada por meu sobrinho, há quatro anos, uma, de grande importância, nunca chegou até mim.

— Explicarei, Senhor! — exclamou o velho criado, rápida e indignadamente.

Tio Peter processou suas investigações, e soube que a carta chegara ao devido tempo à Hursleigh.

Thompson lembrou-se da chegada da carta, e das expectativas que foram compostas sobre ela entre os antigos criados, lembrou-se de levar para o salão por um novo criado, recém-contratado, que não estivera presente na discussão do tio e sobrinho, e que não sabia nada sobre o Capitão.

Ele sempre teve suas suspeitas de que seu amo nunca recebeu aquela carta, e estava mergulhando em uma história muito desfavorável, entretida por várias pequenas circunstâncias contra a Senhora Howard, na sala dos criados, mas que ele sabia que seu amo não daria ouvidos para as reflexões dele sobre um convidado seu.

Entretanto, a culpa pendia contra a Senhora Howard, ele pensou muito tempo em como seria correto agir a respeito.

Hursleigh é agora uma mansão mais feliz. Fora remodelada por música, flores e a alegre voz da infância, adornando seus cômodos, outrora desertos.

Não é um lugar, mesmo agora, onde muita diversão da vizinhança continua, mas o Senhor Elsmore e sua família são sempre bem-vindos, e, às vezes, algumas das famílias vizinhas são convidadas a visitar a mansão.

A Senhora Howard não é mais vista ali, nem suas filhas. Alguns falam que ela recebeu uma carta na mão apertada do tio Peter, que chegou, quando ela estava no meio de um círculo seleto de pessoas que conversavam com ela pela manhã. Ela leu parte dela em voz alta, que descreveu toda a restauração da saúde de seu querido parente e de seu propósito de retornar rapidamente para Hursleigh, mas, de repente, foi notado que ela parou de ler, lendo rapidamente para si, ficando pálida e levantando-se de sua cadeira, com um pedido de desculpas apressado, deixando a sala e seus visitantes.

Um sino foi tocado rapidamente, e falam que o pequeno jarro de água muito quente, que Hannah levou então para cima em resposta a ele, foi realmente usado para o propósito para o qual era exigido, diluir uma dose muito considerável de sais aromatizantes.

Fim.


O Ramo Torto

Não muitos anos após o início deste século, um casal digno do nome de Huntroyd ocupou uma pequena fazenda no norte de Yorkshire.

Eles se casaram no final da vida, embora fossem muito jovens quando começaram namorar.

Nathan Huntroyd fora servo da fazenda do pai de Hester Rose, e se apaixonou pela donzela em uma época em que seus pais pensavam que ela arranjaria pretendente melhor, e assim, sem muita consulta aos sentimentos da garota, eles dispensaram Nathan, de uma maneira um tanto cavalheiresca.

Nathan se afastara muito de suas antigas ligações, quando um tio dele morreu. O tio deixara Nathan, nesta época com mais de quarenta anos, com dinheiro suficiente para estocar uma pequena fazenda, e ainda ter dinheiro para colocar no banco, para tempos ruins.

O homem ouviu que seu velho amor, Hester, não estava casada como ele sempre supôs que ela fosse, mas que era uma pobre criada, na cidade de Ripon.

O pai de Hester tivera uma sucessão de infortúnios, sua mãe estava morta, e seu único irmão estava lutando para criar uma grande família. Hester, uma empregada trabalhadora, de aparência caseira, estava com trinta e sete anos.

Nathan teve uma espécie de satisfação rosnada, que só durou um ou dois minutos, ao ouvir estas voltas da roda da fortuna.

Ele não fez muitas observações inteligíveis ao seu informante, e a ninguém mais ele disse uma palavra. Entretanto, alguns dias depois, ele se apresentou, vestido com sua melhor roupa de domingo, na porta de trás da casa de Thompson, em Ripon.

Hester permaneceu ali, em resposta ao bom som que ele fazia. Ela, com a luz cheia sobre ela, e ele, na sombra. Por um momento, houve silêncio.

Ele estava observando o rosto e a figura de seu antigo amor, que estava vinte anos sem ser visto. A beleza da juventude desaparecera completamente e ela era, como eu disse, de aparência caseira, simples, mas com a pele prezada e olhos francos e agradáveis.

Sua figura não era mais redonda, mas arrumada com um vestido azul, amarrado na cintura por seu avental branco, e, seu saiote de linho vermelho curto, mostrava seus pés e tornozelos.

Seu grande amor não caiu em êxtase. Ele simplesmente disse para si:

— É ela quem eu quero! — e imediatamente começou a investir sua atenção em Hester.

— Hester... Sou Nathan, aquele que seu pai descartou. Sou o homem que queria você como esposa, vinte anos atrás. Desde então, não tenho pensado muito sobre o matrimônio. Todavia, meu tio Ben morreu, deixando-me um pequeno pacote de dinheiro no banco, e peguei a Fazenda Nab-End, colocando um pouco de estoque. Quero uma esposa. Tenho algumas coisas relacionadas aos laticínios. Vendo cavalos e fiz a oferta de um lote de pinheiros. Isso é tudo. Se você me aceitar, irei buscá-la, assim que o feno for empilhado.

Hester exclamou:

— Entre e sente-se!

Ele entrou e sentou.

Durante algum tempo, ela não deu muita atenção para ele, porque estava prestes a preparar o jantar para a família, entretanto, ele assistiu aos movimentos bruscos dela, e repetiu para si:

— Será uma boa esposa!

Após cerca de vinte minutos de silêncio, ele se levantou, dizendo:

— Bem, Hester, estou indo... Quando devo voltar novamente?

— Por favor! Fique! — falou Hester, em um tom que ela tentou fazer leve e indiferente.

Ele viu que sua cor ia e vinha, e que ela tremia enquanto se movia.

Em outro momento, Hester fora beijada, mas, quando ela olhou em volta para repreender o fazendeiro de meia-idade, ele pareceu tão inteiramente composto, que ela hesitou e ele disse:

— Estou determinado! Espero que você também! É o mês de salário. Hoje é o sexto dia do mês. O oitavo de julho é o dia do nosso casamento. Não devemos perder tempo em cortejar, e o casamento não deve demorar muito. Dois dias é muito tempo em nosso tempo de vida.

Foi como um sonho, porém, Hester resolveu não pensar mais sobre até que seu trabalho terminasse. E, quando tudo estava limpo para a noite, ela foi e avisou sua senhora, contando-lhe toda a história de sua vida em pouquíssimas palavras.

Naquela noite, ela se casou na casa da Senhora Thompson.

Deste casamento nasceu um menino, Benjamin.

Poucos anos após seu nascimento, o irmão de Hester morreu em Leeds, deixando dez ou doze filhos.

Hester sofreu amargamente com essa perda, e Nathan mostrou a ela muita simpatia, embora não pudesse deixar de lembrar que Jack Rose acrescentara insultos à amargura de sua juventude.

Nathan ajudou sua esposa a se preparar para ir para Leeds. Ele fez com que as dificuldades se tornassem insignificantes. Ele encheu a bolsa, para que ela pudesse ter meios de aliviar as necessidades imediatas da família de seu irmão. E, quando ela estava partindo, ele correu atrás do trem.

— Pare! Pare! — chorou ele. — Hetty, se quiser... Se não for demais para ti... Traga com você, uma das filhas de Jack para te ajudar. Temos o suficiente e de sobra.

O trem seguiu, enquanto Hester tinha uma dor silenciosa de gratidão em seu coração, para com seu marido e para Deus.

Foi assim que a pequena Bessy Rose veio a ser uma ajudante na fazenda.

A virtude encontrou sua própria recompensa neste caso, de uma forma clara e tangível, que não precisa iludir as pessoas a pensar que essa é a natureza habitual das recompensas da virtude.

Bessy cresceu como uma garota brilhante e ativa, um conforto diário para seus tios. Ela era tão querida no lar, que eles julgavam a garota como sendo digna para se casar com seu único filho Benjamin, que era a perfeição aos seus olhos.

Não é frequente que duas pessoas simples e caseiras tenham um filho de beleza incomum, e Benjamin Huntroyd foi um desses casos excepcionais.

O agricultor trabalhador e cuidadoso, e a mãe, que sempre fora bem comportada em seus melhores dias, produziram um menino que poderia ser filho de um conde pela graça e beleza. Até mesmo os escudeiros de caça da vila, encheram os cavalos para admirá-lo, enquanto ele abria os portões da fazenda.

Ele não tinha timidez, estava muito acostumado, desde seus primeiros anos, com a admiração de estranhos e adoração de seus pais.

Quanto a Bessy Rose, ele governou imperiosamente o coração dela, desde o momento em que ela o viu pela primeira vez. E, à medida que eles cresciam, o amor crescia também. Seus tios a amavam tanto, que era seu dever amar o mais querido de todos.

Em cada sintoma inconsciente do amor da jovem pelo primo, seus pais sorriam e piscavam o olho. Tudo acontecia como eles desejavam, logo, Bessy seria esposa de Benjamin.

A casa podia continuar como estava. Nathan e Hester afundando no resto dos anos, e renunciando aos cuidados e autoridade daqueles queridos, mas seu filho e Bessy precisavam compartilhar seu amor.

Porém, Benjamin levou tudo isso muito a sério. Ele fora enviado a uma escola diurna na cidade vizinha, uma escola de gramática, no alto grau de negligência, na qual a maioria dessas escolas era há trinta anos.

Seu pai e sua mãe sabiam pouco sobre o aprendizado. Tudo o que eles sabiam, e isso direcionou sua escolha de uma escola, era que não podiam, por qualquer possibilidade, se separar de seu querido e enviá-lo para um internato. Que alguma escolaridade ele deve ter, e que o filho do Escudeiro Pollard foi para a Escola de Gramática Highminster.

O filho do Escudeiro Pollard, e muitos outros filhos destinados a fazer doer o coração de seus pais, frequentaram esta escola.

Benjamin era naturalmente inteligente demais para continuar sendo burro, então, se ele escolhesse assim, não havia nada na Escola de Gramática Highminster que impedisse que ele fosse um burro da primeira linha, entretanto, para toda aparência, ele se tornou inteligente e cavalheiro.

Seus pais ficaram orgulhosos de seus ares e graças como provas de seu refinamento, quando ele voltava para casa para as férias, embora este refinamento escondia a expressão de seu desprezo pelos modos familiares de seus pais e a ignorância dele.

Aos dezoito anos, ele era um articulado ajudante no escritório de advocacia em Highminster, uma vez que ele se recusara a se tornar um mero fazendeiro, ou seja, um fazendeiro trabalhador e honesto como seu pai.

Bessy Rose era a única pessoa que estava insatisfeita com os atos de Benjamin, porque a menina de 14 anos sentiu instintivamente que havia algo de errado com ele.

Infelizmente, depois de dois anos, ela adorava sua sombra, e não via nada errado com o cortejador e bonito primo Benjamin e ousou chama-lo de bondoso. Pois, Benjamin descobrira que a maneira de seduzir seus pais, por cada indulgência que ele desejava, era fingir transmitir seu amor para a linda prima, Bessy Rose.

Ele se importava apenas o suficiente com ela para fazer este trabalho necessário e cuidar para não ser desagradável no momento em que o realizava.

Entretanto, ele julgou cansativo lembrar de pequenas reivindicações, quando ela não estava mais presente:

As cartas que ele prometera durante sua ausência semanal em Highminster, as comissões insignificantes que ela lhe pedira para fazer por ela.

Estes detalhes foram considerados, à luz dos problemas, e, mesmo quando ele estava com ela, o rapaz se ressentiu das indagações que ela fazia sobre seu modo de passar o tempo, ou sobre as mulheres que ele conhecia em Highminster.

Quando seu aprendizado terminou, nada o atraía naquela fazenda. Ele queria ir a Londres, por um ano ou dois.

O pobre fazendeiro Huntroyd estava começando a se arrepender de sua ambição em fazer de seu filho Benjamin um cavalheiro, contudo, era tarde demais para se arrepender.

Tanto o pai, quanto a mãe sentiram isso, e, por mais tristes que estivessem, eles não se calaram e nem concordaram com a proposta de Benjamin, quando ele a fez pela primeira vez.

Bessy, através de suas lágrimas, notou que seus tios pareciam cansados naquela noite, e se sentaram de mãos dadas em frente a lareira, olhando de braços cruzados para a chama brilhante, como se vissem nela, a imagem de suas vidas.

Bessy se agitou entre as coisas da ceia, enquanto as guardava depois da partida de Benjamin, fazendo mais barulho que o habitual, como se o barulho e agitação fossem o que ela precisava para evitar que estourasse seu pranto, e, tendo um olhar aguçado de Nathan e Hester, ela evitou olhar naquela direção novamente, por medo de encarar seus rostos melancólicos, porque isso faria suas lágrimas transbordarem.

— Sente-se, moça! Sente-se! Traga o banco para a lareira. Vamos conversar um pouco sobre os planos do rapaz. — disse Nathan, finalmente, se animando para falar.

Bessy veio e sentou diante do fogo, e jogou seu avental sobre o rosto, enquanto descansava a cabeça sobre as duas mãos.

Nathan sentiu que uma das duas mulheres ali, derramaria suas lágrimas primeiro. Então, ele pensou que deveria falar, na esperança de evitar as lágrimas.

— Já ouviu falar deste plano louco antes, Bessy?

— Não! Nunca! — sua voz veio abafada e mudou debaixo de seu avental.

Hester sentiu, como se o tom, tanto da pergunta como da resposta, implicasse em culpa, e isto ela não podia suportar.

— Deveríamos olhar para ele. Não é culpa dele.

— Quem falou ser culpa dele? — perguntou Nathan, um tanto quanto apagado. — Algumas semanas o tornariam um advogado tão bom quanto qualquer juiz entre eles. Lawson, o advogado, me disse que nosso filho quer ficar lá por um ano ou dois. — Nathan balançou a cabeça.

— Este é o seu desejo? — falou Bessy, abaixando seu avental, com seu rosto todo em chamas, e olhos inchados. — Não vejo mal nisso. Os homens não são como as garotas, para serem queimados à sua própria fogueira como um bandido. É apropriado para um jovem ir ao exterior e ver o mundo, antes que ele se instale em um lugar.

A mão de Hester procurou a de Bessy, e as duas mulheres se uniram em simpática provocação a qualquer culpa que seria jogada sobre o amado rapaz ausente.

Nathan disse apenas:

— Não! Não! Não finalizamos assim esta conversa! O que está feito, está feito, e pior, é obra minha! Sei que as necessidades fazem de meu filho um cavalheiro, e nós que pagamos por isso.

— Querido tio! Posso ajudar nos afazeres! Podemos arrecadar dinheiro com o trabalho.

— Moça! — exclamou Nathan solenemente. — Não estava falando em dinheiro. Falava de pagamentos com os cuidados do coração, e com o peso da alma. Londres é um lugar onde o diabo mantém a corte tão bem quanto o Rei George, e meu pobre rapaz caiu nas garras dele. Não sei o que meu filho fará quando se aproximar dele.

— Não o deixe ir, então! — reclamou Hester, pela primeira vez, tomando esta visão, porque até então, ela só pensara na sua dor ao se separar dele. — Se você pensa assim, querido tio, mantenha-o aqui, seguro sob nossos olhos.

— Não! — quase gritou Nathan. — Ele já passou do tempo da sua vida para ficar sob nossas asas. Ora! Não há ninguém sobre nós que saiba onde ele está neste momento, e ele não desapareceu da nossa vista. Ele é grande demais para ser colocado de volta no berço, minha querida!

— Quem me dera que ele fosse um bebezinho deitado em meus braços novamente! Foi um dia doloroso quando o desmamei, e acho que a vida está ficando cada vez mais difícil, a cada curva que ele se aproxima da masculinidade. — Hester suspirou.

— Não fale asneiras! Seja grata! Ele voltará dentro de um ano, ou talvez um pouco mais, para se estabelecer em uma cidade tranquila como a nossa, com uma esposa. Nós, ao entrarmos na velhice, deixaremos a fazenda para nosso querido advogado Benjamin.

E assim, o bom Nathan, com seu coração pesado tentou acalmar as duas mulheres. Mas, dos três, seus olhos foram os que demoraram mais para se fechar, suas apreensões, as mais profundas.

“Duvido que o que falei, vire realidade!” foi o pensamento que o manteve acordado até o amanhecer. “Deus seja misericordioso comigo e com Hester, quando ele partir! Que Deus seja misericordioso!”

Na manhã seguinte, Nathan montou Moggy, o cavalo de sua carroça, para ir até Highminster e conversar com o Senhor Lawson.

Qualquer um que o visse sair de seu quintal seria atingido com a mudança em seu semblante que era visível quando ele voltou. Uma mudança maior que um dia de trabalho incomum produziria em um homem de sua idade.

Ele quase não segurava as rédeas. Sua cabeça estava dobrada para frente, os olhos encarando algo invisível. Mas, ao se aproximar de casa no retorno, ele tentou se recuperar.

— Não há necessidade de se preocupar com ele. — afirmou Nathan. — Rapazes serão rapazes. Eu não pensava que ele tinha dentro de si o desejo de ser como ele é. Bem! Ele vai ter mais sabedoria. De qualquer forma, é melhor tirá-lo de perto de garotos tão maus como Will Hawker e afins. São eles que desviaram meu garoto. Ele era um bom rapaz até conhecê-los. — ele falara sozinho.

Ele colocou todas as suas preocupações em segundo plano, quando entrou na casa, onde Bessy e sua esposa o esperavam na porta, e correram para tirar seu grande casaco.

— Aqui, mulheres! Aqui! Podem me ajudar a tirar o casaco? — e ele continuou falando, tentando mantê-las afastadas por um tempo do assunto que todos tinham no coração.

Porém, não havia como adiar o assunto para sempre, e, devido às repetidas perguntas de sua esposa, ele foi obrigado a dizer o suficiente para entristecer as duas, e ainda assim, o valente homem de idade, segurava a pior parte em seu peito.

No dia seguinte, Benjamin voltou para casa, por uma semana ou duas, antes de fazer seu grande começo em Londres.

Seu pai o manteve à distância, e foi solene e quieto à sua maneira para o jovem.

Bessy, que mostrara raiva o suficiente no início, e falara muitos discursos afiados, começou a se arrepender, e depois, a se sentir magoada e descontente por seu tio perseverar tanto em sua maneira fria e reservada. Era difícil compreender que Benjamin simplesmente ia deixá-los!

Sua tia, que tremia, ocupada com as prensas e gavetas, como se tivesse medo de pensar no passado ou no futuro, e uma ou duas vezes, fora atrás de seu filho. Ela, de repente, parou sobre a figura sentada dele, e beijou sua bochecha, acariciando seu cabelo.

Bessy lembrou depois, longos anos depois, como ele jogara a cabeça para fora, com irritabilidade nervosa em uma dessas ocasiões, murmurando, e a tia dela não ouviu, mas Bessy ouviu.

— Me deixe sozinho!

Para Bessy ele era bastante gracioso. Nenhuma outra palavra expressava seu jeito. Ele não era caloroso, nem terno, mas havia uma suposição de cortesia, mesmo com o resmungão para sua mãe, ou seu silêncio sombrio diante de seu pai.

Uma ou duas vezes, ele se aventurou em um elogio a Bessy por sua aparência. Ela ficou parada e olhou para ele com espanto.

— Meus olhos mudaram? — perguntou ela.

Bessy ficou pensando em seu belo discurso sobre os olhos dela.

Muitos dias, depois que ele se foi, ela olhava com seriedade no minúsculo espelho oblongo, que pendia contra a parede de seu pequeno quarto, para examinar os olhos que ele elogiara, murmurando para si:

— Olhos cinzentos e bonitos! Olhos cinzentos e bonitos!

Até que ela pendurava o espelho novamente, com uma risada repentina e um rosado nas bochechas.

Nos dias em que ele fora para a cidade chamada Londres, Bessy tentou esquecer tudo o que ia contra o sentimento de afeto e dever que um filho devia aos seus pais.

Por exemplo, ela desejava que ele não tivesse se oposto às camisas feitas em casa, que sua mãe e ela tiveram tanto prazer em costurar para ele. Ele, talvez, não soubesse como o tecido fora fiado com cuidado e uniformidade, do branqueamento do fio no prado mais ensolarado, o linho, no retorno do tecelão, colocado espalhado novamente sobre a grama delicada do verão, e regado cuidadosamente, noite após noite, quando não havia orvalho para realizar o gentil trabalho.

Ele não sabia, pois, ninguém além de Bessy sabia, quantos pontos grandes e falsos pelos olhos falhados de sua tia, que ainda gostava de fazer a parte mais importante da costura sozinha, Bessy tinha que refazer, à noite, em seu quarto, com seus dedos delicados, costurado novamente na calada da noite.

Tudo isso ele não compreendia, ou ele não teria reclamado da textura grosseira, e a antiquada marca dessas camisas, e solicitou sua mãe a dar-lhe parte de ovos e manteiga, com o intuito de comprar linho mais requintado em Highminster.

Quando, uma vez descoberta aquela pequena e preciosa maneira de sua mãe em adquirir dinheiro, Bessy não quis saber o quanto sua tia guardava de moedas, confundindo guinéus com xelins, ou apenas o contrário, de modo que a quantidade raramente era a mesma no velho bule preto.

Mas, este filho, esta esperança, este amor, ainda tinha um estranho poder de fascinação sobre a casa.

Na noite anterior à sua partida, ele se sentou entre seus pais, com uma mão de cada lado, e Bessy no velho banco, com a cabeça deitada no joelho de sua tia, olhando para ele, até que o olhar dele encontrou o dela, que fez cair os olhos da jovem, e apenas suspirou.

Ele ficou conversando naquela noite com seu pai, muito depois das mulheres irem para a cama. No entanto, as mulheres não dormiram.

Sua mãe, de cabelos grisalhos, não dormiu naquela noite de outono, e Bessy ouviu seu tio subir as escadas com passos pesados, e ir até à meia velha que o servia como poupança, e contar os guinéus dourados. E, uma vez ele parou, mas novamente contou de novo. Outra longa pausa, na qual ela podia apenas ouvir indistintamente palavras contínuas. Talvez fosse um conselho, uma oração, pois, estava na voz de seu tio, e então, pai e filho subiram para a cama.

O quarto de Bessy estava apenas separado de seu primo por uma fina divisória de madeira, e o último som que ela ouviu diante de seus olhos cansados de chorar, fechando-se em sono, foram os guinéus se apertando um sobre o outro, em intervalos regulares, como se Benjamin estivesse jogando sobre a cama o presente de seu pai.

Depois que ele se foi, Bessy desejou que ele a pedisse para caminhar com ele, por boa parte do caminho até Highminster. Ela estava toda pronta, suas coisas dispostas na cama, contudo, ela não podia acompanhá-lo sem convite formal.

A pequena família tentou fechar a falta do rapaz o melhor que podia. Pareciam se colocar em seu trabalho diário com vigor incomum, entretanto, de alguma forma, quando a noite chegava, pouco fora arranjado.

Os corações pesados nunca fazem trabalho leve, e não havia como dizer quanto cuidado e ansiedade cada um deles tinha que suportar em segredo no campo, no estábulo ou na leiteria.

Antes, ele voltava todos os sábados, embora não se oferecesse para o trabalho árduo da fazenda, mas, agora, ele estava fora, e o inverno sombrio estava chegando.

A visão dos velhos falhou, e as noites foram longas e tristes, apesar de tudo que Bessy falasse ou fizesse. Ele não escrevia com tanta frequência, então, cada um pensava, apesar que cada um estivesse pronto para defendê-lo de qualquer um dos outros que expressasse tal pensamento em voz alta.

— Certamente, nunca mais haverá um inverno tão sombrio e miserável como este! — falou Bessy para si.

Houve uma grande mudança em Nathan e Hester Huntroyd durante o último ano.

Na primavera anterior, quando Benjamin ainda era o assunto de mais esperanças que medos, seu pai e sua mãe pareciam, o que posso chamar de um casal idoso de meia-idade feliz, pessoas que ainda tinham disposição para o trabalho.

Não foi apenas sua ausência que causou a mudança, eles pareciam frágeis e velhos, como se os problemas naturais de cada dia, fossem um fardo maior do que eles podiam suportar, uma vez que Nathan ouvira relatos tristes sobre seu único filho, e os falara solenemente à sua esposa, como coisas ruins demais para serem acreditadas, e ainda assim:

“Deus nos ajude! Se ele é de fato um rapaz como este, Deus nos ajude!”

Seus olhos se tornaram secos demais e ocos para muitas lágrimas. Sentaram-se juntos, de mãos dadas, tremeram, suspiraram, e não falaram muitas palavras, nem ousaram olhar um para o outro, e então, Hester falou:

— O coração dos jovens se parte um pouco. — ali, a voz da velha mulher se partiu em uma espécie de grito e ela lutou para que suas palavras seguintes fossem boas. — Nós lhe dizemos que ele é obrigado a gostar dela, e, talvez, se ela o cuidar e o amar, isso trará algum benefício para nosso filho.

— Que Deus o conceda! — disse Nathan.

— Deus o concederá! — repetiu Hester, as palavras do marido, gemendo apaixonadamente suas palavras, e depois as repetindo, infelizmente.

— Se existe um mau lugar para mentir, este lugar é Highminster. — resmungou ela, longamente, como se estivesse impaciente com o silêncio. — Nunca conheci tal lugar para levantar histórias tão mentirosas!

— Mas, Bessy não sabe nada sobre isso. Isso é uma bênção! — Nathan respondeu.

Todavia, se eles não acreditavam nas mentiras, por que pareciam consumidos pela tristeza?

Depois, veio outro ano, outro inverno, ainda mais miserável que o último.

Naquele ano, veio Benjamin, um jovem malvado, duro, com modos ilusórios e bonitos para fazer com que sua aparência fosse marcante para aqueles a quem o aspecto de um jovem londrino, da mais baixa ordem, é estranho e novo.

A princípio, enquanto ele caminhava com um ar de indiferença, seus pais sentiam uma espécie simples de admiração por ele, como se ele não fosse filho deles, mas um verdadeiro cavalheiro, contudo, eles tinham o instinto em sua natureza para saberem, depois de alguns minutos passados, que ele não era um verdadeiro príncipe.

— O que ele quer dizer? — indagou Hester à sobrinha dela, assim que elas ficaram sozinhas.

Benjamin mentia como se sua língua fosse cortada. E a velha mãe acreditava que Londres era ruim feito um dia quente de agosto, porque estragara seu filho amado.

— Acho que ele parece muito melhor, tia. Ele agora tem aqueles bigodes à moda antiga. — disse Bessy, corando, ainda na lembrança do beijo que ele lhe dera ao vê-la pela primeira vez, que ela julgava ser uma promessa.

Pobre menina! Apaixonada, ela pensava que, apesar de seu longo silêncio na escrita de cartas, ele ainda a via como sua esposa.

Havia coisas sobre ele que nenhum deles gostava, ainda que nunca falassem delas, entretanto, também havia algo que os gratificava, na forma como ele permanecia calado, em vez de procurar variedade, como fizera anteriormente, indo constantemente para a cidade vizinha.

Seu pai pagara todas as dívidas que ele conhecia, logo depois que Benjamin partira para Londres, assim, não havia nenhuma queixa que seus pais conhecessem para alarmá-lo, e mantê-lo em casa.

Ele saiu pela manhã com o velho, seu pai, e ficou ao seu lado, enquanto Nathan contornava seus campos, com o andar ocupado, mesmo doente, limitado seu coração da expressão do que estava acontecendo, porque seu filho parecia se interessar muito pelos assuntos agrícolas, e permaneceu pacientemente ao seu lado, enquanto ele comparava sua pequena fazenda com os grandes escorpiões que pairavam sobre a sebe[140] de seu vizinho.

— É uma maneira desleixada, você vê, de vender o leite... As pessoas não se importam se é bom ou não, de modo que elas tenham sua pitada de leite para o café da manhã. Mas olhe para a manteiga que Bessy produz, que habilidade ela mostra! É um prazer ver sua cesta, pronta para ir ao mercado. Não é uma felicidade ver os baldes cheios de água de amido azul que as vacas dão? Nossa Bessy é uma espertalhona! Às vezes, penso que você é a favor de cumprir as leis, e a levar para o comércio quando você se casar com ela, porque ela sabe vender bem a manteiga.

Esta era uma maneira hábil de verificar se havia algum fundamento para o desejo e a oração do velho fazendeiro, desejo este que era Benjamin desistir da lei e voltar à ocupação primitiva de seu pai.

Nathan ousou esperar, já que seu filho não fizera muito por sua profissão, devido, como ele falara, à sua falta de conexão. A fazenda, o gado e a esposa estavam prontos para a sua mão, e Nathan não podia confiar em si com segurança, em seus momentos mais desprotegidos, para censurar seu filho.

Então, o velho ouviu com doloroso interesse a resposta que seu filho estava evidentemente lutando para dar, tossindo um pouco e assoando seu nariz antes de falar.

— Bem... Veja! Pai! A lei é um meio de vida precário, um homem... Como posso me expressar! — ele suspirou. — Não tem nenhum meio de se firmar na profissão, a menos que ele seja conhecido pelos juízes e advogados mais famosos. Agora, veja! Minha mãe e você não têm nenhum conhecido que possa colocar exatamente nessa linha. Porém, felizmente, encontrei um homem, um amigo, que é realmente um sujeito de primeira classe, conheceu todo mundo, desde o Senhor Chancellor até o mais baixo. Ele me ofereceu uma participação em seus negócios, uma parceria, em resumo. — hesitou um pouco.

— Tenho certeza de que esse é um cavalheiro pouco comum. — disse Nathan. — Gostaria de agradecer-lhe, pois, não são muitos que ajudariam um jovem. A maioria deles, quando estão tendo um pouco de sorte, fogem com ela para guardá-la para si e a devoram em um canto. Qual é o nome dele? Eu queria saber.

— Por certo, muito do que você disse é verdade, à risca. As pessoas não gostam de compartilhar a sua boa sorte, como você diz.

— Quanto mais crédito eles tiverem... Menos sorte compartilham... — quebrou Nathan.

— Sim! Veja! Mesmo um sujeito tão bom como meu amigo Cavendish, ele não gosta de dar a metade de sua boa prática por nada. Ele espera um equivalente.

— Um equivalente? — questionou Nathan e sua voz caíra em um sussurro. — O que pode ser isso? Há sempre algum significado em grandes palavras, presumo, embora eu não seja suficientemente bom para entendê-lo.

— Porque, neste caso, o equivalente que ele exige para me levar para a sociedade londrina, e conseguir trabalhando em um bom escritório, são trezentas libras.

Benjamin olhou de lado, para ver como seu pai recebia a proposta, mas o velho bateu com a bengala no fundo do chão, e, encostando uma mão sobre ela, olhou em volta para o filho.

— Então, seu bom amigo pode ir e ser enforcado. Trezentas libras? Maldito seja eu também, porque se eu soubesse onde conseguir, eu seria feito de tolo por este homem!

Ele já estava sem fôlego a esta altura. Seu filho levou as primeiras palavras de seu pai em silêncio obstinado, porque era a explosão de surpresa que ele esperara de seu pai, e não o desencorajou.

— Pense, senhor! A oferta é boa!

— Senhor? Por que me chama de Senhor? São os seus modos agora? Sou simplesmente Nathan Huntroyd, que nunca assumiu a condição de cavalheiro? Mas, até este momento servi. Tenho um filho me pedindo trezentas libras! Meu filho está diante de mim, como se eu fosse uma vaca, e não tenho nada a fazer a não ser deixar cair meu leite para a primeira pessoa que me acaricia.

— Bem, pai... — disse Benjamin, com uma afeição de franqueza. — Então, não há nada para mim a não ser fazer como planejei muitas vezes antes, ir e emigrar.

— O quê? — esbravejou seu pai, olhando para ele com firmeza.

— Emigrar! Ir para a América, Índia, ou alguma colônia onde há uma abertura para um jovem de espírito como eu.

Benjamin reservara esta proposta para seu trunfo, esperando por meio dele, convencer seu pai a dar as trezentas libras. No entanto, para sua surpresa, seu pai arrancou sua bengala do buraco que fizera quando a empurrou com veemência para o chão, e caminhou quatro ou cinco passos e parou. Houve um silêncio mortal por alguns minutos.

— Talvez seja a melhor coisa que se possa fazer. — suspirou o velho Nathan.

Benjamin rangeu seus dentes. Foi a sorte do pobre Nathan que ele não olhou para trás, porque avistaria o olhar que seu filho lhe deu.

— Mas seria difícil para nós! Para Hester e para mim, pois, seja você um bom homem ou não, você é nossa carne e nosso sangue. O único filho e, se você não é o que um pai deseja... Pode ser que isso seja culpa de nosso orgulho.

Isso mataria a sua mãe de tristeza, se ele fosse para América, e Bessy, também, a moça que pensava tanto nele!

O discurso, originalmente dirigido ao seu filho, tinha se desviado para um monólogo ouvido por Benjamin, porém, como se tudo tivesse sido dito a ele. Depois de uma pausa de reflexão, seu pai se virou:

— Você, rapaz! Você não tem outros amigos? Outras pessoas que possam fazer isso, por menos de trezentas libras?

— Nenhum deles pode me dar as mesmas facilidades. — respondeu o ambicioso Benjamin, percebendo sinais de desistência de seu pai em negar a ajuda.

— Bem, então... Você pode dizer a ele que não é aqui, nem ele, nem você, que vai tocar nas trezentas libras que guardo. Não nego ter o dinheiro, mas isso é uma reserva para dias ruins. E, uma parte deste dinheiro é para Bessy, que é como uma filha para nós.

— Mas Bessy deve ser sua verdadeira filha algum dia, quando eu tiver um lar para levá-la. — replicou Benjamin.

Sua mente rapidamente pensou que ao se casar com a pobre garota, ele teria a parte dela do dinheiro.

Benjamin, na frente de seus pais, tratava Bessy como se realmente fosse sua noiva, mas bastava a garota virar as costas com seus pais, para ele virar os olhos e pensar que ela não servia para nada, além de passar panos no chão.

Entretanto, ele não era exatamente falso ao falar que queria ela como sua esposa, já que o pensamento estava em sua mente, embora, ele recorresse a Bessy para trabalhar com seu pai, em seu lugar.

— Será um dia de festa para nós? — indagou o velho. — Se deseja casar com Bessy, boa moça que é, vou conseguir os trezentos que precisa! Tenho duzentas libras no banco. Mas, dois trovões levaram as duas vacas e estou com quinze libras devido ao bezerro, é um pedido de Bessy. Ela quer cuidar do pobrezinho.

Benjamin deu um olhar aguçado para seu pai, para ver se ele estava dizendo a verdade, e o velho continuou:

— Não posso fazer isso! Embora eu goste de pensar como eu ajudaria no casamento. Ainda há a novilha negra a ser vendida, e isso vai custar umas dez libras, mas um acordo não será necessário para a semente do milho, porque o arável do ano passado foi ruim, e pensei em tentar o milho neste ano... Vou te dizer uma coisa, rapaz! Vou fazer como se Bessy te empreste cem libras, porém, você deve dar-lhe um pedido de casamento e assim, terá o dinheiro do banco, e tente falar com seu amigo advogado, para que deixe uma parte do que ele te ofereceu. Não pretendo enganá-lo, mas você deve obter uma parte justa pelo dinheiro. Às vezes, acho que você é tolo! Agora, quero que você busque o direito de reaver este dinheiro, porque é justo. Quero que você seja tão brando, a ponto dele pensar que você pode ser enganado.

O velho sabia que a quantia era maior que a aplicada em termos assim sugeridos. Ele sabia que o filho usaria o dinheiro de maneira menos honrosa.

Após alguma hesitação, Benjamin concordou em receber as duzentas libras, e prometeu empregá-las da melhor maneira possível ao se estabelecer no negócio.

Ele teve, no entanto, uma estranha aspiração após as quinze libras adicionais que restavam.

“São as minhas quinze libras!” pensou.

Logo perdeu um pouco de sua complacência habitual por Bessy naquela noite, uma vez que fixou a ideia de que havia dinheiro sendo depositado no nome de Bessy, e a ressentiu mesmo em sua imaginação.

Ele pensou mais sobre essas quinze libras que não teria a posse, do que as duzentas, que foram humildemente poupadas.

Enquanto isso, Nathan estava com um espírito incomum naquela noite. Ele permanecia generoso e afetuoso com uma satisfação inconsciente em ajudar duas pessoas no caminho da felicidade, mas com o sacrifício de suas economias.

O fato de confiar tão amplamente em seu filho, parecia tornar Benjamin mais digno de confiança na estimativa de seu pai.

A única ideia que ele tentou banir foi que, se tudo acontecesse como ele esperava, tanto Benjamin como Bessy se estabeleceriam longe da fazenda, entretanto, ele tinha uma confiança infantil de que:

“Deus cuidaria dele e de sua esposa. Não adianta olhar para muito longe.”

Bessy teve que ouvir muitas piadas ininteligíveis de seu tio naquela noite, porque ele não duvidava que Benjamin lhe contara tudo o que se passara, porém, na verdade, seu filho não dissera uma palavra a sua prima sobre o assunto.

Quando o velho casal estava na cama, Nathan contou a sua esposa a promessa que fizera ao seu filho, e o plano de vida que o avanço das duzentas libras ia promover.

A pobre Hester ficou um pouco assustada com a súbita mudança no destino da soma, que ela pensara há muito tempo com orgulho que era o dinheiro do banco. Mas, ela estava disposta a se separar daquele dinheiro se fosse necessário para Benjamin.

Ela só pensava como a tal soma seria necessária, e isso era um quebra-cabeça para Hester. Sua perplexidade foi abalada pela ideia esmagadora, não apenas do nosso Ben se estabelecer em Londres, mas de Bessy ir para lá também, como sua esposa.

Este grande problema engoliu todo o interesse pelo dinheiro, e Hester tremeu suspirando a noite toda com angústia.

Pela manhã, enquanto Bessy amassava o pão, sua tia, que se sentou à lareira de uma maneira incomum, e começou:

— Penso que vamos ao armazém para comprar nosso pão, e isso é uma coisa à qual nunca pensei em fazer enquanto vivesse.

Bessy olhou para cima do pão com surpresa.

— Querida tia. Por que fala assim? Para que você quer pegar o pão do padeiro, tia? Esta massa vai subir tão alto como uma pipa no vento sul.

— Não tenho força para amassar como fiz uma vez, isso me quebra as costas, e, quando você for para Londres, acho que vamos comprar nosso pão pela primeira vez na minha vida.

— Não vou para Londres! — resmungou Bessy, amassando com mais força a massa do pão, e seu rosto corou, seja pela ideia que passava por sua cabeça, ou pelo esforço.

— Nosso Ben vai ser um grande advogado londrino, e você sabe que ele não vai demorar muito, e voltará para te buscar.

— Tia... — começou Bessy, despindo os braços da massa, mas ainda não olhando para cima. — Se isso é tudo, não se preocupe. Ben terá muitas coisas na cabeça antes de se estabelecer, seja com olhos nos negócios ou no casamento. Às vezes, me pergunto... — disse ela, com crescente veemência. — Por que continuo pensando nele? Pois, não acredito que ele pensa em mim quando estou fora de suas vistas. Tenho em mente que devo esquecê-lo, quando ele nos deixa e devo cuidar um pouco de nossa vida.

— Que vergonha, menina! Se ele está planejando e se propondo, tudo é por tua causa! Ainda ontem, enquanto ele falava com seu tio, ele mencionava você na conversa. Mas, enquanto o casamento não chega, continue nos afazeres.

A velha mulher começou a chorar aquele choro sem lágrimas, típico dos idosos.

Bessy apressou-se em confortá-la, e as duas conversaram, lamentaram, esperaram e planejaram os próximos dias.

Nathan e seu filho voltaram de Highminster naquela noite, com seus negócios transacionados da maneira mais satisfatória para o velho.

Eles chegaram a casa, cansados, mas Nathan estava contente, não tão bem-disposto como na noite anterior, mas tranquilo em sua mente, quanto na véspera da partida de seu filho.

Bessy, agradavelmente estava agitada pela história de que sua tia falou na manhã, sobre o verdadeiro amor de seu primo por ela:

“O que desejamos ardentemente acreditar há muito tempo.”

A pobre garota pensava no plano que resultaria em seu casamento, e isso a deixava corada, por muitas vezes.

Enquanto ela caminhava da cozinha para os laticínios, Benjamin a puxou para ele, e lhe deu um beijo. A todas essas expressões, o casal de idosos ficou cego, e, à medida que a noite avançava, cada um ficava mais triste e silencioso, pensando na despedida que seria no dia seguinte.

Com o passar das horas, Bessy também ficou subjugada, e, sua simples astúcia foi exercida para conseguir que Benjamin se sentasse ao lado de sua mãe, cujo coração estava ansioso por ele, como Bessy viu.

Quando o filho dela foi colocado ao seu lado, e ela conseguira a posse da mão dele, a velha mulher continuou a acariciá-lo, murmurando longas palavras de carinho como se ele ainda fosse uma criancinha, mas tudo isso era cansativo para ele.

Enquanto ele cortejava Bessy, ele não tinha sono, mas ao lado da mãe, ele bocejara alto. Bessy pensava que ele não precisava agir daquela maneira ofensiva. A mãe dele estava triste e apenas queria ficar perto do filho, seu único filho.

— Você está cansado, meu rapaz? — disse a velha com lágrimas nos olhos.

A pobre mãe colocou sua mão carinhosamente no ombro dele, mas sua mão caiu, quando ele se levantou de repente, e afirmou:

— Sim, eu cansado! Vou para a cama!

E com um beijo rude e descuidado, olhando para Bessy como se estivesse cansado de seu namorico, e deixou os três para reunir seus pensamentos lentamente, e seguir para o seu quarto.

Ele parecia impaciente com eles por terem se levantado na manhã seguinte e não falarem um discurso de adeus como ele imaginava.

Bejamin se foi, e eles voltaram para casa, se acomodando, ao longo dia, no trabalho, sem muitas palavras sobre sua perda. Eles não tiveram tempo para conversas desnecessárias, uma vez que muitas tarefas foram deixadas por fazer, durante a curta visita do rapaz. O trabalho devia ser feito, e eles tinham que trabalhar o dobro.

O trabalho duro foi seu conforto para os pensamentos em torno de Benjamin.

Durante algum tempo, as cartas de Benjamin, se não frequentes, estavam cheias de relatos exultantes de sua boa ação. É verdade que os detalhes eram um tanto vagos de sua prosperidade, entretanto, o fato era amplo e inequivocamente declarado.

Depois, vieram pausas mais longas, cartas mais curtas, alteradas no tom.

Cerca de um ano depois, Nathan recebeu uma carta que o deixou perplexo e o irritou excessivamente.

Algo dera errado, o que, Benjamin não disse, mas a carta terminou com um pedido de envio do restante das economias de seu pai, seja na estocagem ou no banco.

O ano não fora próspero para Nathan. Havia uma epidemia entre o gado, e ele sofrera com seus vizinhos, e, além disso, o preço das vacas, quando ele comprara algumas para reparar seu estoque perdido, era mais alto que ele jamais havia se lembrado antes.

As quinze libras no gado, que Benjamin deixou, diminuíram para pouco mais de três, e isso exigiu dele uma ação peremptória!

Antes de Nathan transmitir o conteúdo desta carta a qualquer um, porque Bessy e sua tia foram ao mercado na carroça do vizinho, ele pegou tinta e papel, e escreveu de volta à Bem, muito explícito e negativo.

Benjamin tivera a sua parte. Seu pai não podia fazer mais do que já fizera, porque ele não tinha mais o que lhe dar. Essa era a essência da carta.

A carta foi escrita, selada, e entregue ao carteiro, retornando a Highminster após sua jornada de distribuição e coleta, antes que Hester e Bessy voltassem do mercado.

Fora um dia agradável ao lado dos vizinhos e de fofoca sociável. Os preços dos suplementos estavam altos e mesmo assim, elas estavam de bom humor, apenas cansadas, e cheias de pequenas notícias.

Passou-se algum tempo antes que elas descobrissem o que aborrecia o velho homem. E, percebendo que a sua depressão era causada por algo além dos poderes de prestação de contas das compras do mercado, elas o incitaram a dizer-lhes qual era o problema.

Sua raiva não explodira, mas aumentara bastante, e habituando-se a ela, ele expressou em termos bons e resolutos, e, muito antes de terminar, as duas mulheres estavam tão tristes, se não zangadas, como ele estava.

Bessy foi aquela que se conformou mais rapidamente, porque encontrou um respiro para a sua tristeza.

Essa tristeza era sobre a maneira como seu primo a tratava e, porque ela acreditava que ele não escrevera tal carta ao seu pai, a menos que sua falta de dinheiro fosse muito urgente e real, embora, ela julgava ser muito estranha a rapidez como ele perdera tanto dinheiro, depois de um monte ser dado a ele.

Bessy tirou todas as suas economias de sessenta e cinco centavos de xelins, desde que ela era uma criança. Pegou todo o dinheiro que ganhara com os ovos de duas galinhas. Ela juntou o total, e estavam acima de duas libras, duas libras e sete centavos, para falar com precisão, e, deixando de fora os centavos, como um ninho de ovos para suas economias futuras, ela compôs o resto em uma pequena parcela, e a enviou com uma carta, para o endereço de Benjamin, em Londres:

Para Benjamin:

Doutor Benjamin, titio perdeu duas vacas e uma abundância de dinheiro.

Ele está angustiado, e perturbado. Portanto, não tem como lhe ajudar no momento.

Espero que o que envio, o ajude.

De sua prima.

Elizabeth Rose.

Quando a carta foi enviada, Bessy começou novamente a se debruçar sobre seu trabalho. Ela não esperava reconhecimento, mas ela mantinha a fé no transportador, que levava o dinheiro para York, de onde eram enviados para Londres depois, que ela tinha certeza de que ele receberia e isso o ajudaria.

Entretanto, ela segurava um anseio secreto pelos agradecimentos de Benjamin, e algumas das velhas palavras de amor que ela ficara sem, por tanto tempo.

Ela até pensou, quando, dia após dia, semana após semana sem uma resposta, que ele estaria terminando seus assuntos na Londres cansada, desperdiçada, e voltando para a fazenda para agradecer-lhe pessoalmente.

Um dia, sua tia estava lá em cima, inspecionando a marca de queijos do verão, e seu tio, no campo.

O carteiro trouxe uma carta para a cozinha de Bessy.

O carteiro, naqueles dias, tinha poucas cartas para distribuir, e só eram enviadas de Highminster uma vez por semana, para o distrito em que a fazenda estava situada, e, naquelas ocasiões, o carteiro costumava fazer chamadas matinais para as diversas pessoas, para as quais tinham cartas.

Assim, meio de pé junto à cômoda, meio sentado nela, ele começou a remexer sua mala.

— É uma coisa estranha que tenho para Nathan desta vez. Tenho medo de que a carta traga más notícias nela, visto como há um carimbo em cima dela, afirmando que o destinatário não foi encontrado.

— Deus! Tenha piedade! — quase gritou Bessy, e sentou-se na cadeira mais próxima, tão branca como um lençol.

Em um instante, porém, ela se levantou, e, arrancando a sinistra carta das mãos do homem, empurrou-o diante dela para fora de casa, e disse:

— Vá! Vá! Antes que titia desça e o veja!

Bessy correu com o carteiro, ele passou pelo portão da fazenda e foi embora, e ela, continuou correndo o mais forte que pôde, até chegar ao campo onde esperava encontrar seu tio.

— Tio! — gritou ela sem fôlego. — O que é isso? Oh! Tio, fale! Ele está morto?

As mãos de Nathan tremeram e seus olhos ficaram arregalados.

— Me diga o que é! — Nathan falou com a voz fraca.

— É uma carta, tio! Sua carta para Benjamin... Há palavras escritas nela de o destinatário não foi encontrado, então, eles a enviaram de volta para o remetente, no caso, o senhor!

Nathan tomara a carta de volta em suas mãos, enquanto se esforçava para entender o que Bessy capitara em um relance.

Porém, ele chegou a uma conclusão diferente.

— Ele está morto! — garantiu. — O rapaz está morto! Meu rapaz!

Nathan sentou-se no chão onde estava, e cobriu seu rosto com as mãos velhas.

A carta devolvida a ele era a carta que ele havia escrito, com infinitas dores, para contar ao seu filho, as razões pelas quais ele não podia enviar a ele o dinheiro exigido. E agora, Benjamin estava morto.

O velho pulou imediatamente para a conclusão de que seu filho morrera de fome, sem dinheiro, em um lugar selvagem e estranho. Tudo o que ele podia dizer no início era:

— Meu coração, Bessy! Meu coração está partido!

Ele colocou sua mão no coração, ainda mantendo seus olhos fechados, como se nunca mais quisesse ver a luz do dia.

Bessy estava ao seu lado em um instante, segurando-o em seus braços.

— Não, tio! Ele não está morto! Apenas não foi encontrado! A carta não diz que ele morreu, não pense assim. Ele podia estar fora da pousada onde vive naquele momento e os preguiçosos daquele lugar sabem onde encontrá-lo, mas não o fizeram, e, eles apenas enviam a carta de volta, em vez de tentar falar com Mark Benson. Os pastores sempre falam sobre a preguiça do povo do sul do país. Ele não está morto, tio! Talvez, ele tenha se mudado para um lugar mais barato, pois, aquele advogado o enganou, você pensa isso, certo? E ele vai tentar viver com o mínimo que puder. A carta não diz que ele está morto.

Naquele instante, Bessy estava chorando de agitação, querendo acreditar firmemente em sua visão do caso, e sentira a abertura da carta desfavorecida como um grande alívio.

Logo, ela começou a insistir, com palavras e ações, que ele não se sentasse mais na grama úmida, então, ela o puxou para cima, pois, ele estava muito rígido.

Ela o fez andar, repetindo, vez ou outra, sua solução do caso, sempre com as mesmas palavras, começando sempre de novo:

— Ele não está morto...

Nathan balançou a cabeça e tentou ser convencido, mas a crença constante em seu coração afirmava o contrário.

Ele parecia tão mortalmente doente ao voltar para casa com Bessy, porque ela não o deixaria continuar seu dia de trabalho naquelas condições, que sua esposa se certificou de que ele resfriara, e ele, cansado e indiferente à vida, estava feliz em se deitar e fechar os olhos.

Nem Bessy, nem ele, falaram da carta novamente, nem quando estavam a sós.

Nathan levantou-se novamente, um homem mais velho em aparência uns dez anos, para aquela semana de cama.

Sua esposa lhe deu muitas repreensões sobre sua imprudência por sentar-se no campo molhado. Ela também começava a ficar desconfortável com o silêncio prolongado e contínuo de Benjamin.

A pobre velha não podia escrever, porque não sabia, mas ela insistia, muitas vezes, para que seu marido enviasse uma carta para pedir notícias de seu filho.

Ele não disse nada em resposta por algum tempo, então, depois de muita insistência, ele lhe disse que escreveria no próximo domingo à tarde.

Domingo era seu dia para escrever cartas, e naquele domingo ele pretendia ir à igreja pela primeira vez, desde sua doença.

No sábado, ele foi muito persistente, contra a vontade de sua esposa, apoiada por Bessy, na resolução de ir à Highminster.

A mudança lhe faria bem, mas ele chegou em casa, cansado, e um pouco misterioso. Quando ele foi para o celeiro, a última coisa que ele fazia à noite em sua rotina, ele pediu a Bessy para ir com ele, e segurar a lanterna, enquanto olhava para uma vaca enferma, e, quando eles estavam bem longe de casa, ele tirou uma pequena fita de tecido preto do bolso e disse:

— Você pode pôr isso no chapéu? Vai dar um pouco de conforto para mim, porque sei que meu rapaz está morto, embora eu não fale sobre isso, por medo de sofrer e minha querida esposa também.

— O colocarei, tio... Mas, ele não está morto! — Bessy falou soluçando.

— Sei! Sei, querida! Não desejo que outras pessoas guardem minha opinião, todavia, preciso expressar um pouco de respeito para com meu filho. Vou usar um casaco preto, mas ela me veria colocando isso no meu casaco. Ela não perceberá se você prender isso no meu chapéu. Ela está perdendo a visão.

Então, Nathan foi à igreja com uma faixa de luto, tão estreita quanto Bessy pode costura-la, ao redor de seu chapéu.

Tal é a contradição da natureza humana que, embora ele estivesse muito ansioso que sua esposa não ouvisse falar de sua convicção sobre seu filho morto, ele ficou meio ferido que nenhum de seus vizinhos notou seu sinal de luto a ponto de perguntar por quem ele o usava.

Mas depois de um tempo, quando eles não ouviram uma palavra sobre Benjamin, a família se perguntou o que acontecera com ele e este sentimento cresceu tão dolorosamente e forte, que Nathan não guardou mais para si a ideia e falou para a pobre Hester. No entanto, ela a rejeitou com toda a sua vontade, coração e alma.

Ela não queria acreditar que seu único filho Benjamin morrera sem nenhum sinal de amor ou de despedida honrosa. Nenhum argumento a abalaria com isso.

Ela acreditava que, se todos os meios naturais de comunicação entre ela e ele fossem cortados no último momento supremo, se a morte tivesse chegado a ele em um instante repentino e inesperado, seu intenso amor se tornaria sobrenaturalmente consciente do vazio.

Nathan, às vezes, queria pensar como a esposa, que ainda nutria esperanças de saber sobre o filho, mesmo que em forma de fantasma, porém, em outros momentos, ele queria a simpatia dela em seu pesar, sua repreensão, sua pergunta cansativa sobre como e o que o velho fizera de errado no tratamento de seu filho.

Bessy foi convencida, primeiro por sua tia, depois por seu tio, honestamente convencida, de ambos os lados da discussão, e assim, capaz de simpatizar com cada um deles.

Contudo, ela perdeu sua juventude em poucos meses, aparentando ser uma senhora de meia-idade, muito antes que deveria ser, e raramente sorria e não mais cantava.

Novos arranjos foram necessários para inibir o golpe que caiu tão miseravelmente sobre as energias de toda a fazenda.

Nathan não podia mais dirigir seus dois homens com comandos firmes e perdeu a vontade de cuidar das vacas.

Hester perdeu seu interesse no laticínio, para o qual, de fato, sua crescente perda de vista a incapacitava.

Bessy improvisava o trabalho de campo, atendia as vacas, pegava os ovos das galinhas e fazia queijo. Ela arranjava tudo bem, não mais alegremente, mas ela precisava manter a fazenda de pé.

Ela não se arrependeu quando seu tio, em uma noite, disse a sua tia e a ela, que um fazendeiro vizinho, Kirkby, havia lhe feito uma oferta para tirar um punhado de terra de suas mãos, e que o deixaria apenas com pasto suficiente para duas vacas, e nenhuma lavoura para cuidar, enquanto o fazendeiro Kirkby não desejava interferir em nada na casa, apenas teria prazer em usar parte do terreno para seu gado.

— Duas vacas! Isso nos dará oito ou dez quilos de manteiga para levar ao mercado no verão. — ele falou.

— Sim! — disse sua esposa. — Você não terá que ir tão longe, se for apenas o Aster-Toft. E, Bessy terá que amarrar seu queijo e fazer manteiga de creme. Me sentirei muito à vontade para experimentar a manteiga de creme.

Quando Hester foi deixada sozinha com Bessy, ela disse, em alusão a esta mudança de plano:

— Estou grata ao Senhor, pois, eu estava com medo de que Nathan tivesse que se desfazer da fazenda, e então, Benjamin não saberia onde nos encontrar, quando ele voltasse. Ele foi para lá para fazer sua fortuna, mas voltará. Mantenha seu coração com ele, Bessy! Ele voltará! É uma bela história sobre o filho pródigo, que engatinhava entre os porcos e voltou para a zelosa casa de seu pai. Tenho certeza de que nosso Nathan estará pronto para perdoá-lo, amá-lo e fazer muito por nosso filho em breve. Será como uma ressurreição para o nosso Nathan.

O fazendeiro Kirkby, então, tomou de longe a maior parte da terra pertencente à fazenda Nab-End, e o trabalho sobre o resto. Sobre as duas vacas restantes, foi facilmente feito por três pares de mãos dispostas, com um pouco de assistência ocasional.

A família Kirkby foi agradável em lidar com isso. Havia um filho, um solteirão rígido e sério, que era muito reservado e metódico sobre seu trabalho, e raramente falava com qualquer um.

Entretanto, Nathan pensou que John Kirkby estava cuidando de Bessy, e isso gerou um grande problema em sua mente, por ser a primeira vez que ele teve que enfrentar os efeitos de sua crença na morte de seu filho, e ele descobriu, para sua surpresa, que ele não tinha aquela fé implícita que facilitaria olhar Bessy como a esposa de um homem, que não fora seu filho.

Como, no entanto, John Kirkby não parecia ter pressa em tornar suas intenções explícitas para Bessy, se é que de fato tinha alguma.

Seu ciúme em nome de seu filho perdido se apoderou de Nathan, mas, as pessoas, velhas e em profunda tristeza, às vezes, ficam irritáveis, mas podem se arrepender e lutar contra sua irritabilidade depois.

Houve dias em que Bessy teve que suportar a irritação de seu tio, mas ela o amava e o respeitava tanto, que, por mais alto que seu temperamento fosse, por vezes, cruel, ela nunca lhe devolveu uma palavra dura ou impaciente, já que ela tinha convicção do profundo e verdadeiro afeto de Nathan por ela, e da dependência total e muito doce de sua tia.

Um dia, no entanto, estava perto do final de novembro, e Bessy teve um bom interesse, que parecia mais do que normalmente irracional, por parte de seu tio.

A verdade é que uma das vacas de Kirkby estava doente, e John Kirkby estava no pátio da fazenda e Bessy, interessada no animal, e ajudara a preparar um purê para ser dado quente para a criatura doente.

Se John estivesse fora do caminho, não haveria ninguém mais ansioso sobre o caso que Nathan, porque ele era naturalmente bondoso, e também, porque ele estava bastante orgulhoso de sua reputação de conhecimento sobre as doenças do gado.

Mas, porque John estava prestes a ajudar, Nathan não fez nada, e escolheu não pensar sobre a vaca, mas sobre o garoto e a garota, e o que eles pretendiam. John tinha mais de quarenta anos, e Bessy tinha quase vinte e oito, então, os termos garoto e garota não se aplicavam exatamente ao seu caso.

Quando Bessy trouxe o leite de suas vacas, às cinco e meia da tarde, Nathan mandou-a fechar as portas, e a mandou parar sua ajuda com a vaca doente. Bessy ficou surpresa e um pouco aborrecida com o tom dele, porém, ela sentou-se para o jantar sem reclamar.

Por muitos anos, o costume de Nathan era olhar para fora, no batente da porta, para ver o tempo. E quando, por volta das oito e meia, ele pegou sua bengala e saiu, a dois ou três passos da porta, que se abria para o lugar onde eles estavam sentados, Hester colocou sua mão no ombro de sua sobrinha e disse:

— Não perguntei antes porque sei que meu marido está muito irritado, mas como está a pobre vaca?

— Muito enferma! John Kirkby estava cuidando dela com um doutor.

Seu tio voltara da porta e levara à leitura de um capítulo da Bíblia em voz alta, a última coisa para ser feita antes de dormir.

Ele não conseguia ler fluentemente, e, muitas vezes, hesitava muito sobre uma palavra, a qual ele se equivocou longamente, mas o fato de abrir o livro parecia acalmar aqueles velhos pais enlutados, pois, os versos davam tranquilidade e segurança na presença de Deus, e os retirava dos cuidados e problemas deste mundo para aquele futuro que, por mais tênue e vago que fosse, era para seus corações devotos, o descanso seguro e certo.

Neste pequeno momento de silêncio, Nathan estava sentado com seus óculos, a vela entre ele e a Bíblia, jogando uma luz forte em seu rosto reverente e sincero, e Hester, sentada do outro lado do fogo, com sua cabeça curvada em escuta atenta, por vezes, sacudindo-a e gemendo um pouco, falando Amém com fervor e, ao lado de sua tia, estava Bessy, que tinha a mente um pouco vagando para alguns cuidados caseiros, ou daqueles que estavam ausentes.

Esta pequena pausa tranquila, digo, foi grata e reconfortante para a casa, como uma canção de ninar para uma criança cansada.

Todavia, naquela noite, Bessy, sentada em frente à longa e baixa janela, apenas sombreada por alguns gerânios que cresciam no peitoril, e à porta ao lado daquela janela pela qual seu tio passara, nem um quarto de hora antes, viu o trinco de madeira da porta se levantar suavemente, quase sem ruído.

Ela ficou assustada, e assistiu atentamente, mas estava perfeitamente imóvel. Ela pensou ser porque a porta não caíra em seu devido lugar, quando seu tio entrara e trancara a porta. Isso foi o suficiente para deixá-la desconfortável.

Antes de subir, porém, ela foi até a janela, para olhar a escuridão, mas tudo estava parado. Nada para ser visto ou ser ouvido. Então, os três subiram tranquilamente para a cama.

A porta da frente abria-se na direção do quarto do casal. À esquerda, ao entrar neste agradável lugar da casa, e em ângulos próximos à direita com a entrada, estava uma porta que levava a pequena sala, que era o orgulho de Hester e Bessy, embora não tão confortável quanto o quarto, e usada como sala de estar. Havia a lareira, o baú de gavetas, um conjunto de porcelanas de cores vivas, e um tapete brilhante no chão, mas todos falharam em dar o aspecto do conforto caseiro e da delicada limpeza da casa.

Sobre esta sala, estava o quarto em que Benjamin dormira quando era um menino, e quando estava em casa.

Era mantido em uma espécie de prontidão para ele. A cama ainda estava lá, na qual ninguém dormia desde a última vez que ele deitará ali, oito ou nove anos atrás, e, às vezes, uma panela de aquecimento era levada silenciosamente por sua velha mãe, e a cama era completamente arejada.

Entretanto, isto ela fez na ausência de seu marido, e sem dizer uma palavra a ninguém. Nem Bessy se ofereceu para ajudá-la, embora seus olhos, muitas vezes, se enchessem de lágrimas, pois, ela via sua tia ainda esperançosa.

O quarto se tornara um receptáculo para todas as coisas não utilizadas, e havia sempre um canto dele apropriado para armazenar as maçãs do inverno.

À esquerda, de frente para o fogo, do lado oposto à janela e à porta externa, havia duas outras portas, a da direita levava a cozinha, que tinha um telhado inclinado, e mais uma porta, que se abria para o pátio da fazenda.

Na escada, abaixo dela havia um armário, com tesouros domésticos guardados, e, além disso, estava a leiteria, sobre a qual Bessy dormia, com sua pequena janela do quarto que se abria logo acima do telhado inclinado da cozinha traseira.

Não havia persianas em nenhuma das janelas, nem para cima, nem para baixo. A casa foi construída de pedra, e havia uma estrutura pesada do mesmo material ao redor das janelas do casarão.

Às nove horas, naquela noite, da qual estou falando, todos subiram para a cama, um horário diferente do habitual, porque a queima de velas era vista como uma extravagância.

No entanto, Bessy não conseguia dormir, ainda que, em geral, ela estivesse em profundo sono cinco minutos após sua cabeça tocar o travesseiro.

Seus pensamentos correram sobre as chances da vaca de John Kirkby, e um pouco de medo de que a desordem pudesse ser epidêmica e se espalhar para seu próprio gado.

Através de todos esses cuidados, veio uma lembrança viva e desconfortável do modo como a porta de entrada subiu e desceu, sem nenhuma razão para explicar isso.

Ela se sentia mais segura agora do que lá embaixo, porque temia ser um movimento real, e nenhum efeito de sua imaginação.

Bessy desejava que isso tivesse acontecido quando seu tio estava lendo, que ela pudesse ir imediatamente até a porta, e se convencesse da causa.

Seus pensamentos corriam desconfortáveis sobre o sobrenatural, e dali para Benjamin, seu querido primo e companheiro de brincadeira, seu primeiro namorado.

Ela entregara seus pensamentos como se Benjamin estivesse perdido para sempre, mas não morto. Bessy pensou ternamente nele, em perdoar seus erros, porque acreditava que ele havia se desviado em seus últimos anos, mas que existia em sua lembrança a criança inocente, o rapaz espirituoso, o jovem bonito e arrojado.

Se as atenções silenciosas de John Kirkby alguma vez traíssem seus desejos a Bessy, se, de fato, ele tivesse algum desejo sobre o assunto, seu primeiro sentimento seria comparar seu rosto e figura de meia-idade, batido pelo tempo, com o rosto e figura que ela se lembrava bem, mas nunca mais esperava ver nesta vida.

Pensando assim, ela ficou inquieta e não conseguiu mais dormir.

De repente, sentada na cama, ela ouvira algum barulho que a despertara, mas que não foi repetido por algum tempo. Certamente o barulho vinha do quarto de seu tio. Por certo, seu tio estava acordado, mas, por um minuto ou dois, não houve mais nenhum som. Então, ela o ouviu abrir a porta e descer as escadas, com passos apressados e tropeçantes.

Ela pensava que sua tia devia estar doente, e saiu apressadamente da cama, colocando seu saiote com as mãos apressadas e trêmulas, e abrindo a porta de seu quarto. Ao descer as escadas, viu a porta da frente aberta, e uma briga, como dos pés de várias pessoas, e muitas palavras rudes e apaixonadas, faladas roucamente abaixo da respiração.

Ela rapidamente pensou sobre que eles viviam sozinhos, seu tio tinha a reputação de estar bem financeiramente pelo fato de vender a fazenda. E que era uma bênção a vaca de John Kirkby estar doente, pois, havia vários homens observando o animal no celeiro logo a frente. Ela voltou, abriu sua janela, se espremeu, escorregou e correu descalça, sem fôlego para o celeiro.

— John! John! Pelo amor de Deus! Venha depressa! Há ladrões na casa, titio e titia serão assassinados! — ela sussurrou ofegante, com sotaque aterrorizado, através da porta do celeiro fechada.

Em um momento, a porta foi aberta, John e o vaqueiro estavam ali, prontos para agir, se eles a entendessem corretamente. Novamente ela repetiu suas palavras, com explicações quebradas, meio ininteligíveis, do que ela ainda não entendia direito.

— A porta da frente está aberta, digamos assim? — questionou John, armando-se com uma forquilha, enquanto o vaqueiro pegou outro implemento. — Então, acho que é melhor agirmos assim ... Entramos na casa, e apanhá-los a todos em uma armadilha.

— Corra! Corra! — era tudo o que Bessy podia dizer, pegando o braço de John Kirkby, e puxando-o.

Rapidamente os três correram para a casa ao virar a esquina, e a porta estava aberta. Os homens carregavam a lamparina na bainha, que usavam no celeiro e, pela súbita luz oblonga que ela lançava, Bessy viu o principal objeto de sua ansiedade, seu tio, deitado atordoado e indefeso, no chão da cozinha.

Seu primeiro pensamento foi para ele, pois, ela não tinha ideia de que sua tia estava em perigo imediato, embora ela ouvisse o barulho dos pés e vozes ferozes subjugadas lá em cima.

— Não vamos deixá-los escapar! — disse o corajoso John Kirkby, destemido por uma boa causa, embora, ele não soubesse quantos poderiam existir acima.

O vaqueiro prendeu e trancou a porta, dizendo:

— Lá! — em um tom desafiador, enquanto ele colocava a chave em seu bolso.

Era para ser uma luta de vida ou morte, para uma captura efetiva ou uma fuga desesperada.

Ajoelhada ao lado de seu tio, que não falava e não dava nenhum sinal de consciência. Bessy levantou a sua cabeça, tirando uma almofada da cadeira e colocando-a debaixo dele. Ela ansiava por água na cozinha dos fundos, mas o som de uma luta violenta, de golpes pesados, e de xingamentos baixos, ditos através de dentes cerrados e paixão murmurada, como se a respiração fosse muito necessária para que a ação fosse desperdiçada na fala, a manteve quieta ao lado do tio, onde a escuridão podia ser sentida, tão espessa e profunda.

Em uma pausa do batimento de seu coração, um terror súbito e a atingiu. Ela percebeu, daquela forma estranha em que a presença de uma criatura viva força nossa consciência, que alguém estava perto dela, mantendo-se tão quieto quanto ela.

Não foi a respiração do pobre homem velho que ela ouviu, nem a radiação de sua presença que ela sentiu. Outra pessoa estava ali, outro ladrão, talvez, saindo para guardar o homem velho, com intenção assassina, se sua consciência retornasse.

Bessy sabia, que naquela situação, a pessoa não perderia tempo em tentar matá-la ou seu tio, porque a fuga era o meu mais sensato, mas a porta estar trancada.

No entanto, com o conhecimento de que ele estava ali, perto dela, imóvel, silencioso como a sepultura, com medo, seria mortal os pensamentos não ditos em seu coração. Ela desejava ter uma visão mais aguçada e forte, mais acostumada à escuridão, capaz de discernir sua figura e postura, e olhar para ela como uma fera selvagem.

Bessy não podia deixar de encolher-se da visão que sua fantasia apresentava, e ainda assim, a luta continuava lá em cima. Os pés escorregando, os golpes soprando, a queda de objetos pelo chão e os fortes suspiros para respirar, enquanto os lutadores faziam uma pausa por um instante.

Em uma dessas pausas, Bessy se sentiu consciente de um movimento rastejante próximo a ela, que cessou quando o barulho da luta acima morreu, e foi retomada quando começou novamente.

Ela estava ciente disso por alguma vibração sutil do ar, em vez do toque ou som. Bessy estava certa de que aquele que estava perto dela, em um minuto, e enquanto ela se ajoelhava, estava, no minuto seguinte, passando furtivamente em direção à porta interior, que levava à escadaria.

A mulher pensou que ele ia se juntar e fortalecer seus cúmplices, e, com um grande grito, ela saltou atrás dele, mas assim que chegou à porta, através da qual uma porção de luz fraca da sala superior veio, ela viu um homem jogado lá embaixo, com tanta violência que ele caiu quase aos seus pés, enquanto a figura escura e arrepiante deslizava de repente para a esquerda, e entrou no armário abaixo das escadas.

Bessy não teve tempo para perguntar se, ao fazer isso, ele tinha ou não planejado ajudar seus cúmplices em sua luta desesperada.

Ele era um inimigo, um assaltante, era tudo o que ela sabia, e a jovem saltou para a porta do armário, e em um instante a trancou do lado de fora. Então, ela ficou assustada, ofegante, naquele canto escuro, aterrorizada, para que o homem que estava diante dela não fosse o John Kirkby ou o vaqueiro.

Se fosse um desses dois amigos, o que seria do seu tio, de sua tia e dela mesma?

Mas, em poucos minutos, tudo acabou, seus dois defensores desceram lenta e pesadamente as escadas, arrastando com eles, um homem, feroz, amuado, desesperado e incapacitado com golpes terríveis, o que fez de seu rosto uma massa sangrenta e inchada.

Quanto a isso, nem John, nem o vaqueiro, estavam muito mais apresentáveis. Um deles levou a lamparina em seus dentes, já que toda a força deles foi absorvida pelo peso do companheiro que estavam carregando.

— Tomem cuidado! — alertou Bessy. — Há um sujeito logo abaixo de seus pés. Não sei se ele está morto ou vivo, e o titio está deitado no chão logo depois.

Eles ficaram parados nas escadas por um momento. Depois o ladrão que eles jogaram lá embaixo mexeu e gemeu.

— Bessy. — disse John. — Vá ao estábulo e pegue cordas para amarrarmos estes infelizes, e nós vamos livrar a casa deles.

Bessy estava de volta em poucos minutos.

Quando ela entrou, havia mais luz na casa.

— Ele está com a perna quebrada. — garantiu John, acenando em direção ao homem ainda deitado no chão.

Bessy sentiu pena dele enquanto eles o amarravam, não com muita gentileza. Sua evidente agonia, enquanto eles o viravam, fez Bessy correr para conseguir um copo de água para umedecer os lábios do homem.

— Preciso deixar você sozinha! — exclamou John. — Ele está com perna quebrada, amarrado e não pode se mexer. Volto logo! — disse ele, olhando para o assaltante, que estava de pé, ensanguentado, com o ódio caído em seu rosto amuado.

Seu olhar chamou a atenção de Bessy, pois, o dela caiu sobre ele com pavor tão evidente que o fez sorrir, e isso impediu que as palavras que estavam nos lábios de Bessy fossem ditas.

Ela não ousou dizer diante dele, que um cúmplice capaz ainda permanecia na casa, para que, de alguma forma, a porta, que o conservava prisioneiro, não se abrisse e a luta não se renovasse. Então, ela só disse a John, quando ele estava saindo da casa:

— Não fique muito longe, porque tenho medo de ser deixada com este homem.

— Ele não te fará mal! — afirmou John.

— Volte logo, John!

— Sim, voltarei! — garantiu ele, meio contente. — Voltarei, não tenha medo!

Então, Bessy fechou a porta depois deles, mas não a trancou, por medo de infortúnios na casa, e foi mais uma vez até seu tio, cuja respiração, por esta altura, era mais fácil do que quando ela voltara para casa pela primeira vez com John e o vaqueiro.

Também, pela luz do fogo, ela podia agora ver que ele recebera um golpe na cabeça, o que provavelmente foi o motivo de seu desmaio. Ao redor desta ferida, que sangrava, Bessy colocou panos mergulhados em água fria, deixando-o por um tempo. Acendeu uma vela, e estava prestes a subir para sua tia, quando, ao passar próxima ao ladrão preso e incapacitado, ouviu seu nome urgentemente chamado:

— Bessy! Bessy!

No início, a voz soou tão perto que ela pensou ser o desgraçado inconsciente aos seus pés. Porém, mais uma vez, aquela voz vibrava com ela.

— Bessy! Bessy! Pelo amor de Deus, deixe-me sair!

Ela foi até a porta do armário das escadas e tentou falar, mas não conseguiu, seu coração bateu terrivelmente.

Novamente, perto de seu ouvido:

— Bessy! Bessy! Eles vão voltar! Deixe-me sair! Pelo amor de Deus, deixem-me sair!

O homem começou a chutar violentamente a porta.

— Silêncio! Silêncio! — disse ela, com um pavor terrível, mas com uma vontade de resistir fortemente à sua convicção. — Quem é você? — perguntou.

Mas ela sabia... Sabia muito bem quem era.

— Sou eu! Benjamin! Deixe-me sair, fugirei para fora da Inglaterra amanhã à noite, para nunca mais voltar, e você terá todo o dinheiro do meu pai.

— Você pensa que me importo com isso? — perguntou Bessy com veemência, sentindo as mãos trêmulas na fechadura. — Eu gostaria que não houvesse dinheiro no mundo, antes que você chegasse a este ponto. Eu não deixaria você solto, porque deve pagar por seus erros, mas por medo de partir o coração de seus pais, vou deixar você ir. E desejo nunca mais olhar para você.

Mas, antes que ela terminasse seu discurso, ele fora para a escuridão, deixando a porta aberta.

Com um novo terror em sua mente, Bessy fechou-a de novo, e a trancou desta vez. Então, ela se sentou na primeira cadeira, e aliviou sua alma, dando um grande e amargo grito, mesmo que ela soubesse que não era hora de ceder, e, levantando-se, como se cada um de seus membros fosse um peso enfadonho, ela entrou na cozinha dos fundos, e tomou um copo de água. Para sua surpresa, ela ouviu a voz de seu tio dizendo fraco:

— Leve-me para cima, e deite-me ao lado dela.

Contudo, Bessy não podia carregá-lo, ela só podia ajudar seus esforços tênues para subir as escadas, e, quando ele estava lá, sentado ofegante na primeira cadeira que ela encontrou, John Kirkby e Atkinson voltaram.

John veio em seu auxílio. Sua tia deitou-se do outro lado da cama em um desmaio, e seu tio sentou-se triste. Bessy temia a morte imediata de ambos.

Entretanto, John a animou, levantando o velho em sua cama novamente, e, enquanto Bessy tentava compor os membros da pobre Hester em uma posição de descanso, John desceu para pegar uma garrafa de gin, que era sempre mantida em um armário, em casos de emergência.

— Eles tiveram um susto doloroso. — lamentou, balançando a cabeça, enquanto ele despejava um pouco de gin e água quente em suas bocas, com uma colher de chá.

Bessy massageou os pés frios deles.

— Pobres velhinhos!

Ele olhou com ternura para eles, e Bessy o abençoou em seu coração por esse olhar.

— Mandei Atkinson para a fazenda. Bob e Jack vieram do celeiro para cuidar de outro homem. Está amordaçado, mas murmurou muitas palavras sem sentido.

— Não dê atenção ao que ele diz! — falou a pobre Bessy, em um novo pânico que a assolava. — As pessoas de sua espécie não se importam em arrastar outras pessoas para suas travessuras. Estou feliz por ele estar amordaçado.

— Bem! Mas o que eu estava dizendo era isto... Atkinson e eu levaremos o outro homem para o celeiro e teremos trabalho para cuidar deles e da vaca. Vou selar a velha égua e cavalgar para chamar o doutor de Highminster. Trarei o Doutor Preston para ver Nathan e Hester primeiro, e para o sujeito de pernas quebradas. Lamento que ele se encontrou com seus infortúnios em uma linha de vida errada.

— Sim. — disse Bessy.

— Há um olhar de bom-senso que volta para a seus semblantes cruéis, porém, pecam.

Eles suprimiam aquele gin e água.

Bessy o seguiu, e avistou os homens fora de casa. Ela não ousou fechar a porta até que eles passassem pela esquina da casa, tão forte foi sua temível convicção de que Benjamin estava à espreita, procurando novamente entrar.

Ela correu de volta para a cozinha, trancou a porta, e empurrou a cômoda contra ela, fechando os olhos ao passar pela janela sem cortinas, por medo de vislumbrar um rosto branco pressionado contra o vidro, olhando para ela.

O pobre casal de idosos ficou quieto e sem palavras, embora a posição de Hester tivesse mudado ligeiramente. Ela se virara um pouco de lado para o marido, colocado seu braço enrugado ao redor do pescoço dele, mas ele estava exatamente como Bessy o deixara, com os panos molhados ao redor de sua cabeça, olhos fechados e inconsciente de tudo o que se passava ao redor, com os olhos da morte o espreitando.

Sua esposa falava um pouco, e, por vezes, disse alguma palavra de agradecimento.

Durante o resto daquela noite terrível, Bessy cuidou do pobre casal de idosos, com seu coração atordoado e machucado em seus sentimentos, cumprindo seu dever piedoso, quase como um sonho.

A manhã de novembro foi longa. Bessy não percebeu nenhuma mudança, nem para pior, nem para melhor, antes que o médico chegasse, por volta das oito horas.

John Kirkby o trouxe, mas ainda falando da captura dos dois assaltantes.

Até onde Bessy pôde perceber, a participação daquele terceiro homem era desconhecida. Foi um alívio, quase repugnante, que causou seu terrível medo, que a assombrara durante toda a noite, e que, de fato, paralisara seu pensar.

Ela pensava com uma vivacidade aguda e febril, devido, sem dúvida, à noite sem dormir que ela passara. Bessy tinha quase certeza de que seu tio, e possivelmente sua tia, reconheceram Benjamin, mas havia uma pequena chance de que eles não o tivessem visto. Sendo assim, ela devia se calar.

Quanto a Nathan, ele não proferira nenhuma palavra. Foi o silêncio de sua tia que fez Bessy temer que Hester sabia sobre Benjamin.

O médico examinou os dois, olhou atentamente para a ferida na cabeça de Nathan, fez perguntas que Hester respondeu em um breve sem querer, e Nathan com seus olhos fechados, como se até mesmo a visão de um estranho fosse uma cruel amargura para ele.

Bessy respondeu, em seu lugar, a tudo que podia responder, respeitando seu estado, e seguiu o médico, com um coração palpitante.

Quando desceu, Bessy percebeu que John havia aberto a porta externa para deixar entrar um pouco de ar fresco, escovado a lareira e feito a fogueira, colocando as cadeiras e a mesa em seus lugares certos.

Ele avermelhou um pouco, quando o olho de Bessy caiu sobre seu rosto inchado e espancado, mas tentou sorrir:

— Veja! Sou um solteirão abelhudo, e só pensei em como ajudar um pouco. Como eles estão, doutor? — ele desviou o olhar.

— Bem... O pobre casal de idosos teve um choque terrível. Vou mandar-lhes um remédio calmante para baixar o pulso, e uma loção para a cabeça do velho. O ferimento está cicatrizando, mas sangrou muito. Pode haver uma dose de inflamação.

E, assim continuou, dando instruções a Bessy para mantê-los calmamente na cama durante todo o dia. Dessas instruções, ela percebeu que eles não estavam, como ela temia durante toda a noite, perto da morte. O médico esperava que eles se recuperassem, embora, necessitassem de cuidados.

Ela desejou que eles estivessem aos pés do altar da igreja e orassem agradecidos.

Bessy quis chorar, porque a vida lhe pareceu tão cruel, e a lembrança daquela voz subjugada do ladrão oculto que a feriu a alma, a assombrava.

Enquanto Bessy lamentava, John preparara as coisas para o café da manhã, com a delicadeza de uma mulher.

Ao lado de sua oficialidade ao pressionar o Doutor Preston a tomar uma xícara de chá, Bessy queria que ele fosse embora e a deixasse sozinha com seus pensamentos.

Ela não sabia que tudo era feito porque John a amava. O homem, de fala dura e curta, pensava o tempo todo sobre como ela parecia doente e miserável, e tentava, com ternos artifícios, fazer com que seu senso de hospitalidade lhe incumbisse em compartilhar a refeição com Doutor Preston.

— Foi uma noite de terror. Devemos agora esquecer isso, mesmo que tenhamos algumas marcas. Um deles vai levar as marcas até o dia de sua morte, não vai, doutor?

— Ele mal terá a perna para suportar seu julgamento daqui a quinze dias.

— Sim! Oh! Eu estava me esquecendo! Bessy, você terá que ir testemunhar perante o Juiz Royds. Os policiais me exigiram que levasse você para relatar o ocorrido. Não tenha medo, não será um trabalho longo, embora não seja agradável. Você terá que responder às perguntas sobre como tudo ocorreu.

Ninguém sabia a razão da palidez e olhos enevoados de Bessy. Ninguém sabia como ela temia testemunhar e ser forçada a falar do envolvimento de Benjamin no bando de assaltantes. Mesmo assim, ela desejava que a lei seguisse seus calcanhares, suficientemente rápido para pegá-lo.

Ela respondeu às perguntas, falando não mais o que era necessário, por medo de tornar sua história menos clara. Bessy era conhecida pelo seu bom caráter, e Royds e seu escrivão, fizeram o exame o menos importante possível.

Quando tudo acabou, e John a estava levando de volta, ele expressou sua alegria de que havia provas suficientes para condenar os homens, sem convocar Nathan e Hester para identificá-los.

Bessy estava tão cansada que mal entendia o que ele queria dizer.

Jane Kirkby, irmã de John, ficou com ela por uma semana ou mais, e foi um conforto indescritível, porque, caso contrário, ela pensaria estar enlouquecendo, com o rosto de seu tio sempre a lembrando, em sua expressão pedregosa de agonia, daquela noite temerosa.

Sua tia era mais suave em sua tristeza, em sua natureza fiel e piedosa, mas era fácil ver como seu coração sangrava interiormente. Ela recuperou suas forças mais cedo que seu marido, mas, ao se recuperar, o médico percebeu a rápida aproximação da cegueira total.

Quando Bessy falava que apenas dois homens estavam no dia do assalto, seu tio não fizera nenhuma pergunta sobre isso, mesmo que ela tivesse retido todas as informações a respeito do caso, mas ela notou o olhar rápido, atento e expectante dele.

Lamentando que Benjamin fosse suspeito ou apanhado, e isso deixaria os dois velhos ainda mais tristes, ela se apressou em aliviar a ansiedade do velho, sempre contando tudo o que ouvira, agradecida pela recuperação deles, à medida que os dias passavam.

Dia após dia, Bessy tinha motivos para pensar que sua tia sabia mais do que mostrara no início.

Havia algo tão humilde e tocante na maneira cega de Hester em apoiar Nathan, austero e inocente. A pobre mulher se esforçava muitíssimo para consolá-lo na profunda agonia.

O rosto de sua tia olhava em branco para o dele, lágrimas correndo lentamente de seus olhos sem visão, enquanto ela repetia textos como os que ouvira na igreja em dias mais felizes, e que ela pensava que, em sua verdadeira e simples piedade, o consolariam.

No entanto, sua tia ficava cada vez mais triste.

Três ou quatro dias antes do julgamento, duas convocações foram enviadas para os idosos.

Nem Bessy, nem John, muito menos Jane, conseguiam entender isto, pois, foram informados de que suas provas seriam suficientes para condenar.

Mas, infelizmente, o fato era que o advogado, empregado para defender os prisioneiros, ouvira deles que havia uma terceira pessoa envolvida, e escutara quem era essa terceira pessoa, e assim, o advogado queria, se possível, diminuir a culpa de seus clientes, provando que eles não passavam de ferramentas nas mãos de alguém que tinha, a partir de seu conhecimento superior das instalações e dos costumes diários dos habitantes, o plano em mente.

Para isso, era necessário ter a prova dos pais, que, como disseram os presos, podiam reconhecer a voz do jovem, seu filho.

Pois, ninguém sabia que Bessy também podia testemunhar a presença do filho ingrato. O advogado suspeitava que Benjamin escapara da Inglaterra, deixando a culpa para seus cúmplices.

Espantado, perplexo e cansado, o velho casal chegou a York, em companhia de John e Bessy, na véspera do dia do julgamento.

Nathan ainda estava tão contido, que Bessy não conseguia adivinhar o que se passava em sua mente. Ele era quase passivo sob as carícias trêmulas de sua velha esposa e pouco consciente delas, tão rígido era o seu comportamento.

Bessy temia, às vezes, que a esposa de Nathan estava se tornando infantil, porque tinha evidentemente um amor tão grande e ansioso por seu marido, que sua memória parecia estar indo em seus esforços para derreter a frieza de seu aspecto e modos. Ela parecia esquecer o motivo dele estar tão mudado, em suas pequenas tentativas de trazê-lo de volta ao seu antigo eu.

— Eles, com certeza, nunca os torturarão, quando virem que velhos são! — falou Bessy, na manhã do julgamento, com um medo sombrio pairando sobre sua mente. — Eles não serão tão cruéis, certo?

Mas certo foi assim:

O advogado olhou para o juiz, quase apologético, enquanto avistava um velho homem rouco e triste, sentando na cadeira reservada para as testemunhas. A defesa entrou em cena, e Nathan Huntroyd foi chamado para falar.

— É necessário, em nome de meus clientes, meu senhor, que eu siga um curso que, por todas as outras razões, lamento.

— Vá em frente! — disse o juiz. — O que é certo e legal, deve ser feito.

Mas, o homem idoso, cobriu sua boca trêmula com a mão, seu rosto estava cinzento e imóvel, seus olhos ocos e solenes, depois colocou suas duas mãos em cada lado da cadeira, preparado para dar suas respostas às perguntas, cuja natureza ele começava a prever, mas que não se encolhia de responder com veracidade.

— As pedras se levantaram contra o pecador! — murmurou ele.

— Seu nome é Nathan Huntroyd, creio.

— Sim, sou eu.

— Você vive na fazenda Nab-End?

— Vivo lá.

— Você se lembra da noite de novembro, do dia 12?

— Sim!

— Você despertou naquela noite por algum barulho, creio eu. O que foi isso?

Os olhos do velho se fixaram em seu questionador, com o olhar de uma criatura trazida à baía, e este olhar assombraria o advogado até o dia de sua morte.

— Foi um lançamento de pedras contra nossa janela.

— Você o ouviu no início?

— Não.

— O que o despertou, então?

— Minha esposa despertou.

— E, então ambos ouviram as pedras. Vocês ouviram mais algo?

Houve uma longa pausa e depois um baixo e claro:

— Sim!

— O quê?

— Nosso Benjamin nos pedindo para deixá-lo entrar.

— Você pensou ser ele, não foi?

— Disse para minha esposa. — o velho respondeu em voz alta. — Volte a dormir! Está pensando que os bêbados são agora o nosso Benjamin? Ele está morto!

— E, ela?

— Ela disse ser realmente o nosso Benjamin e, que por certo, ele estava machucado e ansiava entrar. Mas, eu a mandei não dar ouvidos aos seus sonhos, e me virei para o outro lado e voltei a dormir.

— O que ela fez? Dormiu?

Uma longa pausa de todos os presentes foi sentida e Nathan disse:

— Não!

— O que você fez então? Meu senhor, sou obrigado a fazer estas dolorosas perguntas.

— Vi que ela se calou. Ela pensava que ele voltaria para nós, como no Evangelho, você sabe... A história do filho pródigo. — sua voz sufocou um pouco, mas ele tentou estabilizá-la, e assim que conseguiu, continuou. — Ela disse, se eu não me levantasse, ela se levantaria, e só então ouvi uma voz. Não sou de acreditar em coisas assombrosas, senhores. Sou um homem doente, mas afirmo que alguém falou nossos nomes, afirmou estar com frio e fome e desejava entrar.

— E essa voz foi?

— Parecia a voz do nosso Benjamin! Vejo aonde quer chegar, senhor, e vou dizer a verdade. Não disse ser o nosso Benjamin enquanto falava, mas sim, que era como sua voz.

— Isso é tudo o que quero, meu bom amigo. E, com a força desse pedido, dito na voz de seu filho, você desceu e abriu a porta para esses dois prisioneiros, e para um terceiro homem, Benjamin.

Nathan acenou com a cabeça e até mesmo aquele conselho foi misericordioso demais para forçá-lo a colocar mais em palavras.

— Chame Hester Huntroyd!

Uma mulher velha, com um rosto doce, gentil e carinhoso, cujos olhos estavam evidentemente cegos, sentou-se na cadeira das testemunhas e mansamente curvada para a presença daqueles a quem ela fora ensinada a respeitar, porém, uma presença que ela não podia ver.

Havia algo em seu aspecto humilde e cego, enquanto ela esperava que algo fosse perguntado, que tocava todos que a viam, inexpressivamente.

Novamente o advogado pediu desculpas, mas o juiz não pôde responder com palavras. Seu rosto tremia por todos os lados, e o júri olhou com desconforto para o advogado do prisioneiro.

Aquele senhor viu que ele poderia ir longe demais, e com piedade, apenas fez algumas perguntas. Então, recapitulando apressadamente o que tomara do depoimento de Nathan, ele disse:

— Você acreditava ser a voz de seu filho pedindo para ser deixado entrar?

— Sim! Nosso Benjamin voltou para casa, tenho certeza. Somente quero saber para onde ele foi.

Ela virou a cabeça, como se estivesse ouvindo a voz de seu filho, no silêncio do tribunal.

— Ele voltou para casa naquela noite, e seu marido desceu para deixá-lo entrar...

— Bem! Acredito que ele o fez. Houve um grande barulho de gente lá embaixo.

— Você ouviu a voz de seu filho Benjamin entre os outros?

— Pergunta isso para fazer-lhe mal, senhor? — indagou, evidenciando saber o que o homem queria ao fazer as indagações.

— Esse não é o meu objetivo. Acredito que ele deixou a Inglaterra, portanto, nada que você possa dizer, lhe fará mal. Você ouviu a voz de seu filho?

— Sim, senhor! Com certeza ouvi.

— E alguns homens subiram ao seu quarto? O que eles disseram?

— Eles foram para onde Nathan guardava sua meia.

— E você... O que você disse a eles?

— Não falei onde estava a meia.

— O que você fez então?

Uma tonalidade de relutância lhe apareceu no rosto, como se ela começasse a perceber as causas e consequências.

— Apenas gritei o nome de Bessy, minha sobrinha, senhor.

— Você ouviu alguém gritar do fundo das escadas?

Ela olhou, mesmo sem ver, para ele com piedade, mas não respondeu.

— Cavalheiros do júri, quero chamar sua atenção particular para este fato. Ela reconhece ouvir alguém gritar, uma terceira pessoa. Uma terceira pessoa gritou para os dois acima. O que ele disse? Esta é a última pergunta com a qual os incomodarei. O que a terceira pessoa, deixada para trás, lá embaixo, disse?

Sua boca se abriu duas ou três vezes como se falasse, ela esticou seus braços implorando, mas nenhuma palavra veio, e ela caiu de volta nos braços dos que lhe eram mais próximos. Nathan se forçou para alcançar sua esposa.

— Senhor juiz... Foi meu filho, meu único filho, que nos chamou para abrir a porta, e segurou a garganta da mãe, para que ela parasse de fazer barulho, quando desmaiou e chorou por sua sobrinha para ajudar. E, agora você tem a verdade, a verdade, e vou deixar você com a verdade e o julgamento de Deus, pela maneira como você chegou a isso.

Antes da noite, a mãe foi atingida pela paralisia, e deitou-se no leito de morte.

Mas o coração partido foi para casa, para ser consolado por Deus.

Fim.


Meu Professor Francês

A casa do meu pai ficava no campo, umas sete milhas de distância da cidade mais próxima. Ele era oficial na marinha, mas um acidente o incapacitou de servir novamente.

Pouco depois, ele desistiu de sua comissão e de seu meio-pagamento. Papai tinha um pouco de dinheiro guardado, e minha mãe estava sem um tostão. Ele comprou uma casa, numa propriedade de uns dez ou doze acres de terra, e se estabeleceu como um fazendeiro amador em uma escala muito pequena.

Minha mãe se alegrou com suas pequenas tarefas, e quando meu pai lamentou, como fez muitas vezes, que nenhuma terra estava à venda na vizinhança, pude vê-la fixando uma soma em sua cabeça:

“Se em doze acres ele perde cem libras por ano, qual seria nosso estrago financeiro, em cento e cinquenta?”

Entretanto, quando meu pai foi empurrado para o assunto do dinheiro que gastava em sua lavoura de marinheiro, ele falava constantemente:

— Pense na saúde e no prazer que temos com o cultivo dos campos ao nosso redor! É algo que devemos fazer, e que aguardamos ansiosamente todos os dias.

E isto era verdade e meu pai se limitava a estes argumentos, e minha mãe o deixava sozinho para não o aborrecer.

Para os estranhos, ele ainda afirmava estar apto a expandir o retorno que sua fazenda lhe trazia, e, algumas vezes, ele teve que moderar suas declarações, quando captou o olhar de alerta de minha mãe, mostrando-lhe que ela não estava gostando do tom de sua conversa, e surda à sua voz.

Quanto à felicidade que surgia de nosso modo de vida, isso não devia ser calculado em dezenas ou centenas de libras.

Éramos apenas duas filhas, eu e minha irmã, e minha mãe empreendeu a maior parte de nossa educação.

Nós a ajudávamos nos cuidados caseiros durante parte da manhã, depois, a rotina de lições, como ela aprendera quando era uma garota.

Estudávamos a história da Inglaterra de Goldsmith, história antiga de Rollins, gramática de Lindley Murray, e muita costura, muita realmente.

Minha mãe, às vezes, suspirava e desejava poder nos comprar um piano, para nos ensinar o pouco de música que sabia, mas, muitos dos hábitos eram caros do meu querido pai, pelo menos, para uma pessoa que tinha uma renda igual a dele.

Quando ele não estava nas atividades agrícolas silenciosas, ele se voltava para a vida social, desfrutando dos jantares para os quais, era convidado por seus vizinhos mais abastados, e especialmente encantado em retribuir-lhes o elogio, convidando os vizinhos para jantares em nossa casa.

Seria muito frequente a recorrência desses jantares, se não fosse pela prudência de minha mãe. Porém, nunca fomos capazes de comprar o piano, porque isso exigia um gasto maior de dinheiro, algo que não tínhamos.

Ouso dizer que cresceríamos ignorantes de qualquer língua, a não ser a nossa, se não fossem os hábitos sociais de meu pai, o que nos levou a aprender o francês de uma maneira muito inesperada.

Nossos pais foram jantar com o General Ashburton, um dos guardas que cuidavam da vila e da floresta em volta, e lá, se encontraram com um cavalheiro emigrante, o Senhor de Chalabre, que escapara de maneira incrível de um perigo eminente e estava, consequentemente, em nosso pequeno círculo florestal, como um grande leão e uma causa digna de uma série de jantares.

O General Ashburton o conhecera na França, sob circunstâncias muito diferentes, e ele não estava preparado para o pedido silencioso e digno, feito por seu convidado, em uma tarde, depois que o Senhor de Chalabre estivera cerca de quinze dias na floresta, para que fosse professor de francês, se ele pudesse fazê-lo conscientemente.

Aos protestos do General, o Senhor de Chalabre, sorrindo, respondeu, por uma garantia suposta que sua nova ocupação seria por um curto espaço de tempo, e que a boa causa deveria triunfar.

Foi antes do fatal 21 de janeiro de 1793, e então, ainda sorrindo, ele fortaleceu sua posição, citando inúmeras instâncias fora dos clássicos, de heróis e patriotas, generais e comandantes, que foram reduzidos pela roda da fortuna cruel, a adotar alguma ocupação muito abaixo de sua original.

Ele encerrou seu discurso, informando ao General que, confiando em sua bondade em atuar como juiz, ele tomara um quarto, por alguns meses em uma pequena fazenda, que estava no centro do nosso círculo de conhecidos.

O General era um cavalheiro demasiadamente minucioso para dizer algo, entretanto, estava feliz em fazer o que podia para encaminhar o Senhor de Chalabre para algum trabalho, e como meu pai foi a primeira pessoa com quem ele se encontrou depois desta conversa, foi-nos anunciado, na mesma noite em que a conversa aconteceu, que aprenderíamos imediatamente o francês.

Realmente acredito que, se meu pai pudesse persuadir minha mãe a se juntar a ele, formaríamos uma classe francesa de pai, mãe e duas filhas, pelo relato do Senhor de Chalabre depois durante uma das aulas. Deste modo, fomos instaladas na dignidade em ser suas primeiras alunas de francês.

Meu pai estava ansioso para que tivéssemos uma lição a cada dois dias, ostensivamente, para que pudéssemos nos dedicar mais rapidamente, e fazer jus à conta trimestral que ele pagava, e também, para que o Senhor de Chalabre tivesse mais do seu tempo ocupado com este trabalho.

Minha mãe interferiu gentilmente e acalmou seu marido, afirmando que duas aulas por semana eram o suficiente.

Ah! Nossas lições felizes! Lembro-me delas agora, à distância de mais de cinquenta anos entre meus pensamentos e aqueles acontecimentos.

Nossa casa estava situada à beira da floresta, com campos desmatados. Não era uma boa terra para o trevo, contudo, meu pai sempre semeava punhados de semente de trevo, porque minha mãe gostava muito do cheiro perfumado deles em seus passeios noturnos, e através desses trevos, corria um caminho que levava até à floresta.

Um quarto de milha além, em uma caminhada na grama macia, fina e aplainada, sob os longos e baixos galhos das faias, chegávamos à velha casa de tijolos vermelhos, onde o Senhor de Chalabre estava hospedado.

Não, que fôssemos lá para tomar nossas lições, porque isso seria uma ofensa ao seu espírito de educador, entretanto, como nossos pais eram seus vizinhos mais próximos, houve um constante intercâmbio de pequenas mensagens e cartas, que nós, meninas, ficávamos muito felizes em levar ao nosso querido professor, o Senhor de Chalabre.

Além disso, se nossa mãe terminasse bem cedo as lições, ela diria:

“Vocês foram boas meninas! Agora, podem correr até o ponto mais alto no campo do trevo, e ver se o Senhor de Chalabre está chegando. Se ele estiver indo para casa, vocês podem caminhar até lá, o seguindo, mas cuidem de andar na parte mais limpa do caminho, pois, vocês sabem que ele não gosta de botas sujas em sua porta!”

Tudo isso era muito bonito na teoria, mas, como em muitas teorias, a dificuldade era colocá-la em prática.

Se deslizássemos para o lado do caminho onde a água ficava mais tempo parada, ele se curvaria e se retiraria para trás de nós, para um lugar ainda mais úmido, deixando a parte limpa para nós, no entanto, quando chegávamos em sua casa, suas botas polidas estavam sem um grão de sujeira, enquanto nossos sapatos estavam cobertos de lama.

Outra pequena cerimônia, à qual tivemos que nos acostumar, era o hábito dele em tirar o chapéu, quando nos aproximávamos, e passar por nós segurando-o na mão.

Ele usava uma peruca, frisada e amarrada em um rabo de cavalo, mas tínhamos sempre a sensação de que ele nos honrava demais, e que não sabia quantos anos ou quão jovens éramos, até que um dia o vimos, longe de nossa casa, ao lado de uma camponesa e fazendo a mesma delicadeza e cortesia, levantando primeiro sua cesta de ovos, e então, pegando a lapela[141] forrada de seda de seu casaco, espalhando a palma de sua mão para que ela descansasse seus dedos, e, ao invés disso, ela pegou sua pequena mão branca e deixou todo o seu peso sobre a mão dele.

Ele carregou a cesta dela, até onde seus caminhos estavam juntos, e a partir daquele momento, ficamos menos tímidas em receber suas cortesias, percebendo que ele considerava uma delicada estima necessária por sermos mulheres. E não importava se a mulher era velha ou jovem, rica ou pobre.

Então, como eu disse, descíamos o campo de trevos de uma maneira um tanto encorajada, e através da porta de entrada que se abria em nosso jardim, que era tão rico em seus cheiros variados, quanto o campo do trevo fora em seu único aroma puro, nossa mãe nos esperava ali, e de alguma forma, nossa vida era passada dessa maneira, fora das portas e dentro das portas, tanto no inverno, como no verão, e parecia termos nossas lições de francês mais frequentemente no jardim, que em casa, porque havia uma árvore no gramado, perto da janela da sala de visitas, e o caminho mais curto para carregar uma mesa e cadeiras, e o resto da parafernália da lição, se minha mãe não proibisse uma aula ao ar livre.

O Senhor de Chalabre usava, uma espécie de traje matinal, que era um casaco, colete e calças, tudo feito de tecido cinza grosseiro, que ele comprara na vizinhança, com seu chapéu escovado, e sua peruca perfeitamente posta em sua cabeça.

O traje de meu pai estava sempre errado, e a única coisa que ele queria era uma flor em seu casaco. Às vezes, eu imaginava que ele omitia propositalmente a coleta de uma das rosas que se aglomeravam na casa da fazenda, de modo a dar a minha mãe o prazer de abater seus cravos e rosas preferidos para compor seu buquê, como ele gostava de chamá-lo.

O Senhor de Chalabre pegara aquela bela palavra campo, e a adotou como sua palavra favorita, habituando-se na primeira sílaba com toda a suavidade lânguida de um sotaque italiano. Muitas vezes, eu e Mary tentávamos falar com este sotaque, porque admirávamos sua maneira de falar.

Uma vez sentadas à mesa, seja em casa ou fora dela, éramos obrigadas a assistir às nossas aulas, e, nos fazia perceber ser uma parte do mesmo código cavalheiresco, que usava, tão útil aos indefesos, para fazer valer a mais leve pretensão do dever, ao máximo.

Ele não preparava as lições. A paciência e o recurso ele ilustrou e aplicou em cada preceito, a incansável doçura com que ele fez nossas teimosas línguas inglesas pronunciarem certas palavras, e, a simplicidade de temperamento que nunca variou, foram como nunca vi igual.

Se nos perguntássemos sobre estas qualidades quando éramos crianças, que fora o maior tempo que nós estivemos com ele, porque crescemos ao seu lado até sua emigração, diríamos que ele era um homem de ação rápida e impulsiva, com a educação correta implícita na circunstância.

Ele, aos quinze anos, fora um tenente de alma no regimento da Rainha, e, consequentemente, isso era visível na maneira rígida para dominar a língua que tinha para ensinar.

Por duas vezes, tínhamos férias para atender à sua triste conveniência. Os feriados não foram o Natal, no meio do verão, Páscoa ou Dia de São Miguel.

Eram dias corriqueiros, onde nossa mãe estava muito ocupada e precisava de ajuda. Isso, para nós, era um feriado, embora, envolvesse mais trabalho que nossas aulas regulares.

Levávamos e trazíamos recados, com botas sujas e empoeiradas, cantávamos canções alegres, ritmadas com as batidas de nossos corações.

Se o dia estivesse muito bom, nosso querido pai, cujo espírito estava bastante apto a variar com o tempo, viria com seu rosto vivo, gentil e bronzeado, se oferecendo para ajudar no dia de tormenta de minha mãe.

— É uma vergonha enclausurar coisas tão jovens em uma casa, quando toda a natureza brinca no ar e no sol. — ele falava.

Gramática! O que era isso, senão a arte de arranjar palavras?

Geografia! Ele se comprometia a nos ensinar mais geografia, em uma tarde de inverno, contando-nos sobre os países onde estivera, com apenas um mapa em sua frente, do que poderíamos aprender em dez anos, com aquele livro estúpido, todo cheio de palavras rígidas.

Quanto ao francês, por que aprender? Papai não gostaria que o Senhor de Chalabre pensasse que desprezávamos as lições que ele se esforçava tanto para nos dar, e que devíamos nos levantar mais cedo para aprender o nosso francês. Prometemos por aclamação, e nossa mãe, por vezes sorridente, em outras, relutante, sempre foi obrigada a ceder.

Estas eram as ocasiões habituais de nossas férias.

Em duas circunstâncias, tivemos uma quinzena inteira de aulas de francês. Uma em janeiro e outra, em outubro. Não vimos nosso querido professor francês durante o outro período. Fomos, por várias vezes, ao topo do campo de trevo, para procurar com nossos olhos atarefados no contorno verde-escuro da floresta, o nosso professor, e se pudéssemos ter visto sua figura naquela sombra, teríamos esquecido a proibição, que tornava a floresta um terreno proibido.

Naquela época, estava na moda manter as crianças menos informadas sobre os assuntos que interessavam aos pais. Uma espécie de conversa hieroglífica ou de códigos era usada para esconder o significado de muito do que se dizia, se as crianças estivessem presentes.

Minha mãe era proficiente nesta maneira de falar, e tínhamos certo prazer em deixar nosso pai perplexo ao inventar um novo código, por assim dizer, todos os dias.

Por exemplo, por algum tempo, me chamava Martia, porque eu era muito alta para a minha idade, e, assim, meu pai começou a entender o nome, um tempo depois que aprendi a erguer minhas orelhas sempre que Martia era pronunciada, minha mãe me transformou de repente em mastro, a partir do hábito que adquiri de encostar meu comprimento lânguido contra uma parede.

Vi a perplexidade de meu pai em relação ao nome por alguns dias, e teria o ajudado a sair dessa perplexidade, mas não o fiz. E, sendo assim, quando o infeliz Luís XVI foi executado, a notícia era terrível demais para ser colocada em inglês simples, e extraordinária demais para ser comunicada para nós, meras crianças.

Não conseguimos encontrar imediatamente a pista para o código de que se falava. Ouvimos falar sobre a Íris fora derrubada e vimos o entusiasmo honesto e leal de meu pai a respeito disso, e a reserva tranquila, que sempre foi motivo de alguma tristeza secreta por parte de minha mãe.

Não tivemos lições de francês, e, de alguma forma, a pobre Iris, espancada e dilacerada pela tempestade, foi a culpada por isso.

Muitas semanas depois disso, soubemos o motivo completo da profunda depressão do Senhor de Chalabre, quando ele veio até nós.

Ele balançou a cabeça quando minha mãe lhe ofereceu, timidamente, uma xícara de chá, naquela primeira manhã em que recomeçamos as aulas.

O Senhor Chalabre estava de luto, profundo, naquele dia, todo vestido de preto com a dor do abandono. Conhecíamos bem o significado do próximo anúncio hieroglífico:

“Os meninos malvados e cruéis quebraram a cabeça do lírio-branco.”

O lírio-branco era aquela bela rainha, cujo retrato nos fora mostrado uma vez, com seus olhos azuis e seu esplêndido olhar resoluto, sua abundância de cabelos levemente empapados, seu pescoço branco enfeitado com cordões de pérolas.

Poderíamos chorar, se tivéssemos ousado, quando ouvimos as palavras misteriosas, porém, transparentes.

Choraríamos à noite, sentadas na cama, com os braços em volta do pescoço uma da outra, e jurando, à nossa maneira fraca, apaixonada e infantil, que se vivêssemos o suficiente, a morte daquela senhora seria vingada.

Todos que se lembram desse tempo, podem contar o estremecer de horror que emocionou o país ao ouvir falar desta última execução.

No momento, não havia tempo para qualquer consideração pelos horrores silenciosos sofridos durante séculos pelo povo, que se levantou em sua loucura contra seus governantes.

Este último golpe mudou nosso querido Senhor de Chalabre. Nunca mais o vi com a mesma alegria que existia antes deste tempo. Havia lágrimas muito próximas por trás de seus sorrisos.

Meu pai foi vê-lo, quando ele estava cerca de uma semana ausente de nós, sem nenhuma razão dada, porque não conhecíamos o horror que o sol olhara!

Assim que meu pai partiu, minha mãe nos encarregou de fazer as costuras pertencentes as roupas de cama dos quartos de hóspedes, e que fosse o mais parecido possível com as costuras de um salão de festas.

Meu pai esperava trazer o Senhor de Chalabre de volta para uma visita a nós, todavia, ele provavelmente gostaria de ficar sozinho e poderíamos mover qualquer item da mobília que gostávamos, se achássemos que isso o deixaria confortável.

Acredito que o General Ashburton fizera um convite semelhante ao de meu pai, entretanto, ele falhara em sua investida. Meu pai tentou, como entendi depois, de uma maneira muito inconsciente e característica. Ele insistira em seu convite ao Senhor de Chalabre, e recebeu uma decisão tão negativa, que ficou sem esperança, desistindo do assunto.

Logo, o Senhor de Chalabre começou a aliviar seu coração, contando-lhe todos os detalhes e meu pai sustentou a respiração para ouvir, e seu coração honesto não pôde mais se conter, e as lágrimas correram pelo seu rosto.

Sua simpatia não afetada pelos acontecimentos tocou o Senhor de Chalabre, e uma hora depois, vimos nosso querido professor francês, descendo a encosta dos trevos, apoiando-se no braço de meu pai, o qual ele oferecera involuntariamente como apoio a alguém em apuros, embora meu pai fosse ligeiramente manco e mais velho, dez ou quinze anos que o Senhor de Chalabre.

Durante um ano após esse tempo, o Senhor de Chalabre não usou nenhuma flor, e depois disso, até o dia de sua morte, nenhuma alegre e colorida rosa ou cravo o despertaria.

Observamos secretamente seu gosto, e sempre tivemos o cuidado de levar flores brancas para ele. Notei também que em seu braço esquerdo, sob a manga do casaco, ele sempre usava uma pequena faixa de luto. Ele viveu até os 81 anos, e até seu último respiro, ele seguiu usando a faixa.

O Senhor de Chalabre era um dos favoritos do círculo de amizades em torno da floresta. Ele era uma grande aquisição para os jantares sociáveis que estavam perpetuamente acontecendo, ainda que algumas das famílias se esforçassem em ser aristocráticas, virando o nariz para qualquer um que se envolvesse com a política, no entanto, em grande parte, o Senhor de Chalabre, em razão de seu bom sangue, sua lealdade e ousadas ações de um bom cavalheiro, era sempre um convidado honrado.

Ele tomou sua pobreza e os simples hábitos que ela impunha, de maneira natural, como um mero acidente insignificante de sua vida, sobre o qual, nem ocultação, nem vergonha seriam necessárias.

Sabemos que alguns servos, muitas vezes, são muito mais pseudoaristocráticos que seus senhores. Por estas características, o cavalheiro francês era amado e respeitado.

Ele ensinava de manhã, e, à noite, fazia sua aparição, vestido com delicadeza, como convidado do jantar.

O Senhor de Chalabre vinha vagarosamente pela lama da floresta, e, em nossa pequena sala, ele puxava um estojo, contendo uma escova preta e uma pasta de escurecimento, e polia suas botas novamente, falando em seu inglês quebrado, com o criado parado na frente da porta.

Depois que nossas lições terminavam, ele relaxava e conversava um pouco com meu pai.

Vivíamos longe de qualquer carpinteiro ou marceneiro, e, se uma fechadura estava fora de ordem, o Senhor de Chalabre fazia a coisa certa para nós. Se alguma caixa era desejada, seus dedos engenhosos a faziam antes do dia da nossa aula.

Ele fez bobinadores para a seda de minha mãe, criou um conjunto de xadrez para meu pai, e esculpiu uma elegante na caixa do relógio, e também vestiu pequenas bonecas com linho para nós, em resumo, como ele disse:

“Meu coração está partido, mas para as ferramentas estão inteiras.”

Seus dons engenhosos não foram empregados somente para nós. A esposa do fazendeiro, onde ele se hospedou, tinha inúmeros feitos do Senhor de Chalabre em sua casa. Lembro-me de uma tábua de pasta, feita em padrão francês, que não deslizava sobre uma cômoda, como ele observara a tábua de pasta inglesa dela.

Susan, a filha do fazendeiro, também tinha sua caixa de trabalho para nos mostrar, e seu primo tinha uma bengala maravilhosa, com uma extraordinária cabeça demoníaca esculpida nela, tudo isso feito pelo Senhor de Chalabre.

O agricultor, a esposa do fazendeiro, Susan, Robert e todos estavam repletos de seus artesanatos.

Crescemos de crianças para meninas, e de meninas para mulheres, e ainda o Senhor de Chalabre ensinava, amado e honrado sua missão, e nenhum jantar em um raio de cinco milhas, era considerado completo sem ele, e os de dez milhas de distância se esforçavam para oferecer-lhe uma cama para que ele pernoitasse para que eles não perdessem sua companhia.

A bela e alegre Susan, quando tinha dezesseis anos fora abandonada pelo infiel Robert. E, aos trinta e dois, estava à espera do Senhor de Chalabre.

Minha pobre mãe estava morta. Minha irmã estava noiva de um jovem tenente, que estava em seu navio no Mediterrâneo.

Meu pai era ainda um jovem em seu coração, e, de fato, em muitos de seus modos, apenas seu cabelo era branco, e a maneira de mancar o deixava com passos lentos.

O tio de meu pai lhe deixara uma fortuna considerável, por isso, ele cultivava o seu coração jovem, mas perdia uma soma anual de dinheiro sem dar muita importância, porque não havia mais as reprovações dos olhos de minha mãe para serem temidas.

As coisas estavam nestas condições quando a paz de 1814 foi declarada. Ouvimos tantos e tão contraditórios rumores, que estávamos inclinadas a duvidar até mesmo da Gazeta, um jornal de responsabilidade sobre os fatos, e estávamos discutindo as probabilidades com veemência fervorosa, quando o Senhor de Chalabre entrou na sala sem avisar e, sem fôlego:

— Meus amigos! Que alegria! — pronunciou ele. — Os Bourbons! — ele não podia continuar.

Suas feições, não seus dedos, trabalhavam com agitação, no entanto, ele não podia falar. Meu pai se apressou a aliviá-lo.

— Ouvimos a boa notícia! — papai olhou para nós. — Olhem meninas! É bem verdade desta vez. — ele voltou os olhos para o Senhor de Chalabre. — O felicito, meu querido amigo! Estou contente! — e ele agarrou a mão do Senhor de Chalabre em sua choradeira sincera, e encerrou a agitação nervosa do professor francês, administrando inconscientemente uma dose bastante severa de dor saudável.

— Vou para Londres! Vou nesta tarde para ver meu soberano. Meu soberano estará em uma reunião amanhã no Hotel de Grillon. Vou me apresentar! Vestirei meu uniforme da Grande Corporação, que está um pouco velho e as traças já comeram um pouco do tecido, mas não importa! Eles foram vistos por Maria Antonieta, o que lhes dá uma graça eterna!

Ele andou pela sala de forma ansiosa e precipitada. Havia algo em sua mente, e, com nosso pai, ficamos em silêncio por um momento ou dois.

— Não! — exclamou o Senhor de Chalabre, após um momento de pausa. — Não posso dizer adeus! Porque voltarei para dizer, queridos amigos, meu adeus, realmente. Eu era um pobre emigrante. Os nobres ingleses me tomaram como amigo e me acolheram em suas casas. Chalabre é uma grande mansão e meus amigos ingleses não me abandonarão! Meus amigos devem me visitar em meu país natal, e prometo que nenhum mendigo inglês passará pelas portas de Chalabre sem ser aquecido, vestido e alimentado. Não direi adeus. Vou agora, mas voltarei!

Meu pai insistiu em levar o Senhor de Chalabre em seu passeio na cidade mais próxima, pela qual passava o correio de Londres, e, durante o pouco tempo que passou, antes que meu pai estivesse pronto, o Senhor de Chalabre nos contou algo mais sobre Chalabre.

Ele nunca falara de sua casa ancestral a nenhum de nós, e assim, sabíamos pouco sobre sua condição em seu país de origem.

O General Ashburton tinha se encontrado com ele em Paris, em uma reunião. Nesta reunião, a sociedade, avaliava os homens por sua inteligência, talento e brilho de caráter e não por sua riqueza e posição hereditária.

Foi assim que descobrimos que ele era herdeiro de propriedades consideráveis na Normandia, dono de um velho castelo em Chalabre, entretanto, tudo isso ele deixara para trás, ao emigrar.

— Ah! Se sua querida pobre mãe estivesse viva agora! Eu poderia enviar para ela as tais rosas raras e esplêndidas de Chalabre. Muitas vezes, quando a observava cuidando de um pobre espécime, ansiava em segredo pelo meu jardim de rosas em Chalabre. Ah! A Senhorita Fanny, teria uma bela coroa de flores, vinda de Chalabre.

Sua fala fora uma alusão ao noivado de minha irmã, um fato bem conhecido por ele, como fiel amigo da família.

Meu pai voltou animado do passeio, e começou a planejar, naquela mesma noite, como organizar suas colheitas para o ano seguinte, e, como melhor reservar tempo para uma visita ao castelo de Chalabre, e quanto a nós, creio que não havia necessidade de adiar nossa viagem francesa para além do outono.

O Senhor de Chalabre voltou em alguns dias. No entanto, nos explicou, dizendo que ele encontrara Londres mais cheia e ocupada que esperava, e, que era esfumaçada e sombria, onde as árvores já estavam entrando em folha.

Quando o pressionamos um pouco mais para falar sobre a sua recepção em Grillon[142], ele riu de si, por esquecer a disposição do Conde de Provence em dias anteriores, em se tornar vigoroso, por isso, ficou consternado com a massa de corpulência que Louis XVIII apresentou, enquanto ele estava na longa sala de visitas do hotel.

— O que ele disse a você? — perguntou Fanny. — Como ele o recebeu quando você foi apresentado?

Um raio de dor passou por cima de seu rosto.

— Oh! Sua majestade não reconheceu meu nome. Não era de se esperar que ele reconhecesse, apesar de que, seja um nome de admiração na Normandia, e tenho... Bem! Meu nome hoje não vale nada! O Duque de Duras lembrou de uma ou duas circunstâncias que envolveram meu nome. Eu julgava que sua majestade não esquecera minhas origens, porém, se esqueci, devido à pressão de longos anos de exílio, como ele se lembraria de mim? Ele falou que me esperar nas Tulherias[143]. Sua esperança é a minha lei, agora. Vou me preparar para a minha partida. Se sua majestade não precisar de minha espada, transformo-a em um arado em Chalabre. Ah! Meu amigo! Não esquecerei toda a ciência agrícola que aprendi com você! — ele falou, olhando para papai.

Um presente de cem libras não agradaria tanto meu pai quanto este último discurso. Ele começou imediatamente a perguntar sobre o solo, de uma maneira que fez nosso pobre Senhor de Chalabre encolher seus ombros em desespero de sua ignorância.

— Não importa! — afirmou meu pai. — Roma não foi construída em um dia. Passou-se muito tempo antes que eu aprendesse tudo o que sei agora. Tive medo de não sair de casa neste outono, mas percebo que você precisará de alguém que o aconselhe a preparar o terreno para as colheitas do próximo ano.

Então, o Senhor de Chalabre deixou nossa vizinhança, afirmando que deveríamos fazer-lhe uma visita, em seu castelo normando, no mês de setembro.

Ele não ficara contente até que persuadisse todos que lhe mostraram gentileza. Ele esperou até que todos prometessem uma visita, em algum momento determinado.

Quanto ao seu amigo, o senhorio na fazenda, sua senhora e Susan, ele usara o pretexto de que as criadas francesas não tinham noção de limpeza, assim como os camponeses franceses eram negligentes com o gado, deste modo, era absolutamente necessário levar alguém da Inglaterra para colocar os assuntos do castelo de Chalabre em ordem, e o fazendeiro Dobson e sua esposa, consideraram o favor bastante recíproco.

Durante algum tempo, não tivemos notícias de nosso amigo. A guerra tornara a divisa entre a França e a Inglaterra muito incerta, então, fomos obrigadas a esperar, tentando ser pacientes, e foi assim que nossa visita de outono à França foi silenciosamente abandonada, e meu pai nos deu longas explicações sobre o desordenado estado de coisas em um país que sofrera tanto quanto a França, e nos deu um sermão severo sobre a loucura em querer visitar o castelo, mesmo naquelas circunstâncias perigosas.

Sabíamos, o tempo todo, que o discurso era repetido para acalmar sua própria impaciência, e que a censura era o que ele sentia precisar.

Finalmente chegou a carta.

Houve uma tentativa corajosa de alegria nela, o que quase me fez chorar, mais do que qualquer reclamação teria feito.

O Senhor de Chalabre esperava manter seu cargo como tenente no regimento de Gardes du Corps[144], um grupo assinado pelo próprio Luís XVI, em 1791, mas, seria remodelado ou reformado, esqueci o que pretendiam, e o Senhor de Chalabre nos garantiu que o seu pedido fora recusado, e que não era o único caso em que os candidatos foram rejeitados.

Ele tentara nos Cent Suisses[145], também nos Gardes du Porte[146], e por fim, no regime dos Mousquetasires[147], mas todos estavam cheios.

Não era uma coisa gloriosa para a França ter tantos filhos corajosos prontos para lutar pelo lado da honra e da lealdade?

Quando mencionei isso perto de Fanny, ela respondeu que era uma vergonha!

Meu pai, depois de um grunhido ou dois, falou que o Senhor de Chalabre teria mais tempo para cuidar de sua propriedade negligenciada.

Aquele inverno estava cheio de incidentes em nossa casa. Como, muitas vezes acontece, quando uma família parece sem mudanças há anos, e então, finalmente acontece um evento importante, outro certamente seguirá.

O noivo de Fanny voltou, se casaram e nos deixaram em paz, meu pai e eu. O navio de seu marido estava ancorado no Mediterrâneo, e eles morariam em Malta, com alguns de seus parentes lá. Não sei se foi a agitação de despedir-se dela, entretanto, meu pai foi atingido pelas emoções, e a sua saúde caiu em uma invalidez, por um derrame paralítico, logo após sua partida, e meus interesses foram confinados aos relatos flutuantes de um quarto doente.

Não me preocupava com os problemas estrangeiros que abalavam a Europa com tremor universal. Minhas esperanças e meus medos estavam centrados em um corpo humano frágil, meu querido e amado pai.

Mantive uma carta do Senhor de Chalabre no bolso durante dias, incapaz de encontrar tempo para decifrar seus hieróglifos franceses, por fim, a li em voz alta para meu pobre pai, para testar seu poder de interesse duradouro.

As notícias na carta eram deprimentes para aquele inverno sombrio. Um rico fabricante de Rouen comprara o Castelo Chalabre. Seu filho, M. du Fay, foi protegido por Louis XVIII, porque o governo prometeu ser estável, na esperança de não afetar o tingimento e a venda de lãs vermelhas da Turquia, e assim, a consequência legal natural foi que M. du Fay, não seria perturbado em sua propriedade comprada.

Meu pai se preocupou em saber esta decepção do nosso pobre amigo, porém, apenas por um dia, e esqueceu tudo no dia seguinte.

Depois, veio os acontecimentos apressados daquela primavera, a batalha de Waterloo[148], e para meu pobre pai, em sua segunda infância, a escolha de um pudim diário era muito mais importante que estes acontecimentos.

Em um domingo, naquele mês de agosto de 1815, fui à igreja. Fazia muitas semanas que eu não deixava meu pai sozinho.

Parecia que minha juventude falecera, desaparecera sem aviso, sem deixar nenhum vestígio para trás.

Após a missa, passei pela longa grama até a parte não frequentada do pátio da igreja, onde minha querida mãe estava enterrada.

Uma grinalda de flores amarelas jazia sobre seu túmulo e a oferenda me pegara de surpresa, porque eu conhecia o costume estrangeiro, embora nunca vira uma grinalda antes. A peguei e li uma palavra nas letras negras florais, era simplesmente:

“Adeus!”

Eu sabia, desde o primeiro momento em que a vi, que o Senhor de Chalabre voltara para a Inglaterra. Tal sinal de consideração era uma característica dele, e não podia brotar de mais ninguém. Contudo, me perguntei se podia ser ele mesmo, porque não ouvi ou vi nada sobre ele, nada! Nenhuma notícia chegara para mim desde que a Senhora Ashburton me disse que seu marido se encontrou com ele na Bélgica, apressando-se a se oferecer como voluntário a um dos onze generais nomeados pelo Duc de Feltre para receber tais candidaturas.

O próprio General Ashburton falecera em Bruxelas, em consequência de ferimentos recebidos em Waterloo.

Quando a lembrança de todas essas circunstâncias se juntou em minha mente, descobri estar me aproximando do caminho de campo, que levava para fora da estrada, rumo à nossa casa, e seguia para a fazenda do Senhor Dobson. Lá, de repente, decidi ir, e ouvir se eles sabiam algo a respeito de seu antigo hóspede.

Ao subir o caminho do jardim que levava à casa, encontrei o Senhor de Chalabre. Ele estava olhando abstraído pela janela do que costumava ser sua sala de estar. Em um instante, ele se juntou a mim no jardim.

Se minha juventude tivesse voado para longe, sua juventude desaparecera por completo. Ele parecia mais velho uns vinte anos, mas nos deixara, fazia doze meses.

Ele fora notavelmente delicado em suas roupas e em todas as outras coisas, mas agora, ele estava descuidado, quase à beira do desleixo.

O Senhor de Chalabre perguntou sobre minha irmã, depois, meu pai, de uma maneira que evidenciou o interesse mais profundo e respeitoso, porém, pareceu que ele apressou pergunta atrás de pergunta, ao invés de parar e me deixar falar.

— Volto aqui para minhas obrigações, as únicas obrigações que tenho. O bom Deus não me achou apto a assumir nenhum cargo mais alto. Doravante, sou o fiel professor de francês. O diligente e pontual professor de francês, nada mais! Mas, espero ensinar a língua francesa como um cavalheiro e um cristão. Devo fazer o meu melhor. Para o futuro, a gramática e a construção gramatical são meus bens, meu brasão! — ele disse isto com uma humildade orgulhosa que impediu qualquer resposta.

Eu só podia mudar de assunto, e insisti para que ele visitasse meu pobre pai doente. Ele, então, respondeu:

— Visitar os doentes é meu dever e prazer! Para a mera sociedade, renuncio a tudo isso. Isso agora está além de minha posição, à qual me acomodo com todas as minhas forças!

Assim, quando ele passou uma hora com meu pai, trouxe um pequeno maço de papéis impressos, anunciando os termos em que ele, o Senhor Chalabre, porque o de fora abandonado para sempre, estava desejoso de ensinar francês, e um pequeno parágrafo no final da folha de papel, solicitava o patrocínio das escolas.

No passado, o não ensino nas escolas fora a linha que marcava o Senhor de Chalabre a começar a ensinar mais como um profissional amador que com qualquer intenção de dedicar sua vida a ela.

Ele me pediu, respeitosamente, que distribuísse estes papéis onde eu entendesse ser conveniente. Digo respeitosamente de forma consciente, não havia nenhuma das velhas galanterias diferenciais, como as oferecidas por um cavalheiro a uma senhora, sua igual em nascimento e fortuna, ao invés disso, havia o pedido e a declaração de um trabalhador oferecendo suas qualidades ao seu empregador.

Somente no quarto de meu pai, ele era o antigo Senhor de Chalabre. Ele parecia compreender como seriam vãs todas as tentativas de recontar ou explicar as circunstâncias que o levaram tão decididamente a tomar um nível inferior na sociedade.

Para meu pai, até o dia de sua morte, o Senhor de Chalabre manteve a velha base, assumindo uma alegria que ele nunca fingiu sentir em nenhum outro lugar. O Senhor de Chalabre ouviu os interesses infantis de meu pai com uma verdadeira e bondosa simpatia, pela qual sempre me senti grata, embora, ele propositalmente colocara uma reserva entre mim e ele, como uma barreira a qualquer expressão de tal sentimento de minha parte.

Suas lições anteriores foram mantidas em tão alta estima por aqueles que tinham o privilégio de recebê-las, que logo ele foi procurado por todos os lados.

As escolas das duas principais cidades do condado apresentaram suas reivindicações, e consideraram um favor receber suas instruções.

De manhã, ele estava procurando onde lecionar, ao meio-dia, ele tinha um emprego, e à noite, ele estava noivo!

Suas únicas visitas foram pagas ao meu pai, que as procurava com uma espécie de saudade infantil. Um dia, para minha surpresa, ele pediu permissão para falar comigo, a sós, por um instante. Ele ficou em silêncio por um momento, virando seu chapéu na mão.

— Você tem o direito de saber! Você foi a minha primeira aluna. Na próxima terça-feira, me caso com a Senhorita Susan Dobson, mulher boa e respeitável, cuja felicidade quero dedicar minha vida, quando eu não estiver ocupado com os deveres de instrução.

Ele olhou para mim, esperando talvez um parabéns, no entanto, fiquei muito atordoada com a surpresa, porque a rechonchuda, ruiva, com bochechas de maçã, chamada Susan, que, quando corava, ficava com a cor de uma beterraba, que não sabia uma palavra de francês, que considerava a nação francesa como se fosse os montanheses comedores de sapos e inimigos nacionais da Inglaterra, estava se casando com o Senhor de Chalabre.

Depois, pensei que talvez essa mesma ignorância constituísse um de seus encantos.

Nenhuma palavra, alusão, silêncio expressivo, ou lamentáveis suspiros simpáticos, poderiam lembrar o Senhor de Chalabre do passado amargo, que ele estava evidentemente se esforçando para esquecer.

E, certamente, nunca um homem teria uma esposa mais dedicada e admirável quanto a pobre Susan.

A Senhora Chalabre me chamou, após seu casamento, com um grau de dignidade sóbria, rústica e feliz, que eu não teria previsto em Susan Dobson.

Eles moravam em um pequeno chalé, nas bordas da floresta, com um jardim ao redor, algumas vacas, porcos e aves, que seriam seu trabalho. Ela tinha um criado rude para ajudá-la, e no escasso lazer que ele tinha, seu marido cuidava do jardim e das abelhas. A Senhora Chalabre tomou conta do chalé bem mobiliado com evidente orgulho.

“O Senhor Chalabre fazia isso!”

“O Senhor Chalabre montara a estante!”

Ele era evidentemente um homem de recursos! Ela não se cansava de afirmar seus feitos.

Em um pequeno armário pertencente ao Senhor Chalabre, havia um retrato a lápis, elaborado para a condição de uma má gravação de livro de bolso, e isso chamou minha atenção, e fiquei olhando para desenho.

Representava uma casa alta, estreita, de tamanho considerável, com quatro torres em cada canto e, um pátio rígido formava o primeiro plano.

— É o Castelo Chalabre? — indaguei.

— Nunca perguntei. — ela respondeu. — Meu Senhor Chalabre nem sempre gosta que lhe façam perguntas. É a imagem de algum lugar que ele gosta muito, uma vez que, ele não me deixa tirar o pó, por medo de que eu manche a gravura.

O casamento de Senhor Chalabre não reduziu o número de suas visitas ao meu pai.

Até a morte do meu amado pai, ele foi fiel em fazer tudo o que podia para aliviar a tristeza do quarto do doente. Contudo, um abismo que ele abrira, separou qualquer relação de amizade livre e sem reservas que existia anteriormente entre nós.

Eu costumava visitar a sua esposa.

Não podia esquecer os primeiros dias, nem os passeios até o topo do campo dos trevos, as aulas diárias, o carinho que minha mãe tinha pelo cavalheiro emigrante, ou as mil pequenas gentilezas que ele demostrara a minha irmã ausente e a mim também.

Ele não esqueceu também disso, e as deixou nas câmaras fechadas e seladas de seu coração. Assim, por causa dele, tentei me tornar amiga de sua esposa, e ela aprendeu a me olhar como tal.

Era meu trabalho costurar as roupas para o esperado bebê Chalabre, e mesmo a Senhora Chalabre me oferecendo o cargo, eles procuraram uma cuidadora para a menina que nasceria.

Eu considerava a pequena e bonita Susan como se fosse a minha afilhada e me comprometi, secretamente, a sempre cuidar dela.

Antes de dois meses após a morte de meu pai, nasceu uma irmã da pequena Susan, e o coração humano do Senhor de Chalabre subjugou seu orgulho, e assim, a criança teria o bonito nome de sua mãe francesa, embora a França não pudesse encontrar lugar para ele e o expulsara.

Aquela garotinha mais nova se chamaria Aimée.

Quando meu pai morreu, Fanny e seu marido me incitaram a deixar Brookfield, e ir morar com eles em Valetta.

A propriedade foi deixada para nós, mas um inquilino elegível se ofereceu, e minha saúde, que sofrera durante meu longo tempo de cuidados de papai, tornou desejável a busca por alguma mudança e ambiente mais quente.

Assim, fui para o exterior, com o desejo de viver lá apenas por um ano, mas, de alguma forma, aquele ano se tornou o resto da minha vida.

Malta e Gênova foram, desde então, meus locais de residência. Ocasionalmente, é verdade, eu visitava a Inglaterra, mas nunca a vi como minha casa desde que a deixei, há trinta anos.

Durante estas visitas, vi os Chalabres.

Ele tinha se tornado mais absorvido em sua ocupação do que nunca, publicara alguns livros com a gramática francesa, do qual me apresentou uma cópia, tendo alguma dificuldade para explicar seu conteúdo.

Sua esposa parecia feliz, ainda com seu rosto redondo e corado. A fazenda, que estava sob sua administração, impulsionara, e quanto às duas filhas, por trás da timidez inglesa, elas tinham uma boa dose do picante espírito francês.

As induzi a dar alguns passeios comigo, com o objetivo de lhes fazer algumas perguntas que tornariam nossa amizade uma realidade e não meramente um sentimento hereditário, contudo, elas me indagaram, com inúmeras perguntas sobre a França, que evidentemente consideravam como seu país.

— Como você sabe tudo sobre os hábitos e costumes franceses? — perguntou Susan.

— Seu pai lhe fala muito sobre a França? — perguntei.

— Às vezes, quando estamos sozinhas com ele, nunca quando alguém está por perto! — respondeu Susan, a mais velha, uma garota de aspecto nobre, de vinte anos. — Penso que ele não fala da França na frente de nossa mãe, por medo de machucá-la.

— Creio... — prosseguiu a pequena Aimée. — Que seu coração fica muito cheio de lembranças. Isso o obriga a falar para nós, porque muitos dos pensamentos não podem ser ditos em inglês.

— Então, suponho, vocês são duas famosas estudiosas francesas?

— Oh! Sim! Papai sempre nos fala em francês. É a nossa língua!

Entretanto, mesmo com toda a sua devoção ao pai e ao país, elas eram filhas muito carinhosas e obedientes à mãe.

Eram as companheiras de sua mãe realmente, no conforto do agradável trabalho caseiro, porém, eram também as confidentes dos anseios daquele pobre exilado pela França, as ouvintes ansiosas de causos de seus primeiros dias de exílio.

Suas palavras forjaram Susan para fazer a resolução de que, se alguma vez ela se sentisse livre dos deveres e responsabilidades da casa, ela se tornaria uma Irmã de Caridade, como Anne-Marguérite de Chalabre, tia-avó de seu pai, e modelo de santidade feminina. Quanto a Aimée, ela nunca deixaria seu pai, e isso era tudo o que ela tinha claro ao imaginar seu futuro.

Há três anos, eu estava em Paris. Uma amiga minha que morava lá, sendo inglesa de nascimento, entretanto, casada com um professor alemão, e muito francesa de maneiras e costumes, me pediu para ir à casa dela em uma noite. Eu estava longe de estar bem e inclinada a não me agitar.

— Oh! Venha! — implorou ela. — Tenho uma boa razão! Realmente, uma razão tentadora. Talvez esta mesma noite seja feita uma peça poética em minha casa. Um romance vivo! Agora, você vai resistir?

— O que é isso? — questionei, pois, ela tinha o hábito de exagerar em romances.

— Uma jovem está chegando, não na primeira juventude, mas ainda jovem e muito bonita. Filha de um emigrante francês, que meu marido conheceu na Bélgica, e que vive na Inglaterra desde então.

— Perdão, mas qual é o nome dela? — interrompi, despertada para o interesse.

— De Chalabre. Você a conhece?

— Quero vê-la! Há quanto tempo ela está em Paris? É Susan ou Aimée?

— Deve ir à reunião, querida. Seja paciente, vá e terá respostas a todas as suas perguntas.

Me afundei de volta na cadeira. Alguns de meus amigos eram bastante demorados, e era bom se acomodar em uma posição confortável, antes que eles começassem a falar.

— Falei, um minuto atrás, que meu marido conhecera o Senhor de Chalabre na Bélgica, em 1815. Desde então, eles mantêm correspondências, não muito frequentes, é verdade, porque o Senhor de Chalabre é um mestre francês na Inglaterra, e meu marido, um professor em Paris. Contudo, eles conseguem se comunicar sobre o que acontece e o que estão fazendo, uma ou duas vezes por ano. Porém, eu nunca vi o Senhor de Chalabre.

— O conheço bem! — afirmei.

— Há um ano, sua esposa morreu, ela era inglesa, e fora uma longa e sofrida doença. Sua filha mais velha se dedicara a ela com a doçura paciente de um anjo, como ele nos disse, e posso acreditar em suas palavras. Entretanto, depois da morte de sua mãe, o mundo, ao que parece, se tornou desagradável para ela. Ela se acostumara às meias luzes, às vozes abafadas, ao pensamento constante dos outros, exigido um quarto para um doente, e, ao barulho e à azáfama de pessoas saudáveis exigindo sua ajuda. Por isso, ela suplicou ao seu pai que a permitisse se tornar uma Irmã da Caridade. Ela lhe disse que negaria qualquer pretendente que se oferecesse para casar com ela e levá-la para longe da casa de seu pai e sua irmã. Quando ela foi chamada pela religião, ele deu seu consentimento, mas não sua aprovação total, e escreveu ao meu marido para me implorar que a recebesse aqui, enquanto procurávamos um convento no qual ela pudesse ser recebida. Ela está comigo há dois meses, mas ela vai para casa, na próxima semana, a menos que...

— Perdão, mas você não disse que ela desejava se tornar uma Irmã da Caridade?

— É verdade! Entretanto, ela é muito velha para ser admitida na ordem. Ela tem vinte e oito anos. Foi uma grande decepção para ela, que suportou com muita paciência e mansidão e posso ver como ela a sentiu profundamente. O que pretendo com este cenário poético? Meu marido teve um aluno há cerca de dez anos, um tal M. du Fay, um jovem inteligente e científico, um dos primeiros comerciantes de Rouen. Seu avô comprou a propriedade ancestral de Senhor de Chalabre. O atual M. du Fay veio a Paris a negócios, há dois ou três dias, e convidou meu marido para um jantar, e de alguma forma, esta história de Susan Chalabre veio à tona, em consequência de perguntas que meu marido estava fazendo, e sobre a escolta que a levaria até à Inglaterra.

M. du Fay pareceu interessado na história, e perguntou ao meu marido o deixaria conversar com Susan. Ele vem hoje. Ele estava no jantar no outro dia, você o viu?

Fui para a casa dela, mais na esperança de ver Susan Chalabre, e ouvir algumas notícias, usando uma justiça poética. Eu pensava estar certa, e ainda assim, estava errada.

Susan Chalabre era uma mulher triste, gentil, de aparência dedicada, não muito diferente daquele retrato sagrado de Ary Scheffer[149]. Ela era silenciosa porque seu querido plano de vida foi extirpado. Ela falou comigo um pouco, de maneira suave e amigável, respondendo a qualquer pergunta que fiz, mas, quanto aos cavalheiros, sua indiferença e reserva os impossibilitou de entrarem em qualquer conversa com ela, e o encontro foi indiscutivelmente raso.

— Oh! Meu romance! Minha justiça poética! Antes que a noite acabe pela metade, desisto de todos os meus castelos no ar por uma conversa bem sustentada de dez minutos de duração. Agora não riam de mim, pois, não posso suportar a noite!

Tal foi o discurso de despedida de meu amigo.

Não a vi por dois dias, mas no terceiro, minha amiga veio brilhando de excitação.

— Afinal de contas, você pode me felicitar! Se não foi justiça poética, é justiça prosaica! Exceto pelo romance que é uma coisa melhor!

— O que você quer dizer? — questionei. — Certamente M. du Fay não propôs para Susan?

— Não! Mas aquele charmoso M. de Frez, seu amigo, o fez, isto é, não propôs, mas falou! Não falando claramente, porém, parece que ele perguntou ao M. du Fay, de quem ele era confidente, se ele pretendia prosseguir em sua ideia de casar. De Frez disse que ele viria até nós, para pedir ajuda, pois, ele ficara encantado com ela, seus olhares, voz, silêncio, e todas as suas qualidades. Combinamos que seríamos a sua escolta para a Inglaterra. Ele tem negócios lá, e quanto a Susan, ela não sabe nada. Toda sua ansiedade é voltar para casa. E, afinal, M. de Frez vive a cinco léguas do Castelo de Chalabre, para que ela possa ir e ver o velho lugar sempre que quiser.

Quando fui despedir-me de Susan, ela parecia tão inconsciente e digna como sempre. Nenhuma ideia de um pretendente jamais lhe passou pela cabeça.

Ela considerava M. de Frez como uma espécie de incômodo necessário para a viagem. Eu não tinha muitas esperanças para ele, e mesmo assim, ele era um homem agradável, e meus amigos descreveram que seu caráter permanecia firme e elevado.

Em três meses, passei o inverno em Roma. Em quatro, soube que o casamento de Susan Chalabre acontecera.

Quais foram os passos entre o frio, a indiferença civil que observei em relação ao seu companheiro de viagem, e o amor total que uma mulher como Susan Chalabre tem para um homem antes de chamá-lo de marido, nunca entendi.

Escrevi ao meu velho mestre francês para felicitá-lo, como eu acreditava honestamente poder, pelo casamento de sua filha.

Passaram alguns meses antes que eu recebesse sua resposta. E ela foi:

“Querida amiga, velha aluna e filha do meu amado amigo morto. Sou um velho de oitenta anos que caminha em direção ao túmulo. Não posso escrever muitas palavras, mas minha mão lhe dirá que venha para a casa de Aimée e seu marido. Eles pediram que venha ver o lugar de nascimento do velho pai, enquanto ele ainda está vivo para mostrá-lo a você. Tenho o mesmo quarto no Castelo de Chalabre que era meu, quando era menino, e minha mãe vinha para me abençoar todas as noites. Susan mora perto de nós. Que o bom Deus abençoe meus genros, Bertrand de Frez e Alphonse du Fay, pois, Ele me abençoou por toda a minha vida. Penso em seu pai e sua mãe, minha querida! Espero que não se ofenda por missas que pedi pelo descanso de suas almas. Se cometi tal erro, Deus perdoará.”

Meu coração poderia interpretar acarta, mesmo sem a bonita carta de Aimée e seu marido, que acompanhava a carta do meu mestre, e que contava como o M. du Fay veio ao casamento de seu amigo, e assim, se apaixonara pela irmã caçula, e nela, viu seu destino.

O carinho suave e tímido de Aimée era mais ao seu gosto que Susan. No entanto, a pequena Aimée conseguiu governar imperiosamente no Castelo de Chalabre, ou melhor, seu marido ficou encantado em satisfazer todos os seus desejos, enquanto Susan, à sua maneira grandiosa, fez uma pompa de sua obediência conjugal. Mas ambas eram boas esposas e filhas.

Neste último verão, você avistaria um homem velho, vestido de cinza, com flores brancas em seu casaco, com sua mão segurando a pequena mão de um neto, levando uma senhora idosa sobre os terrenos do Castelo de Chalabre, andando cambaleante e instável.

— Aqui, minha mãe me deu adeus quando fui pela primeira vez ao regimento. Eu estava impaciente para ir. Cavalguei, mas olhando para trás, então vi o semblante triste de minha mãe. Saí correndo, joguei as rédeas e corri de volta para mais um abraço. Ela falou: “Meu valente menino! Seja fiel a Deus e ao seu rei!”. Depois nunca mais a vi, porém, a verei em breve, e direi que fui fiel tanto ao meu Deus, quanto ao meu rei.

Agora, ele contou tudo a sua mãe.

Fim.


A História do Escudeiro

No ano de 1769, a pequena cidade de Barford foi jogada em um estado de grande excitação pelo conhecimento que um cavalheiro estivera olhando para a antiga casa do Senhor Clavering.

Esta casa não estava nem na cidade, nem no campo. Ela ficava na periferia de Barford, à beira da estrada que levava até Derby. O último ocupante da casa fora o Senhor Clavering, um senhor de Northumberland, de boa família, que viera morar em Barford, enquanto ele era apenas o filho mais novo, mas quando alguns irmãos mais velhos da família morreram, ele voltou para tomar posse da propriedade da família.

A casa da qual falo, chamava-se Casa Branca, por estar coberta por cerâmica acinzentada. Tinha um bom jardim, e o Senhor Clavering construíra estábulos no quintal, no fundo do pátio, que foi considerado o último melhoramento da residência.

Esperava-se que o objetivo de uma boa cavalariça[150] fosse deixar a casa atrativa, por estar em um condado de caça.

Havia muitos quartos, alguns entravam através de outros, até o número de cinco, levando um além do outro, com várias salas pequenas, revestidas de madeira e depois, pintadas com uma pesada cor de ardósia, uma boa sala de jantar, e uma de desenho acima dela, ambas olhando para o jardim, com agradáveis janelas de proa.

Esta foi a acomodação oferecida pela Casa Branca. Não parecia muito tentadora para estranhos, embora o bom povo de Barford tivesse se esforçado muito para afirmar ser a maior casa da cidade, e uma casa na qual pessoas da cidade e pessoas do condado tinham se encontrado frequentemente nos jantares amigáveis do Senhor Clavering.

Para apreciar esta circunstância de agradável recordação, você devia viver alguns anos em uma pequena cidade do interior, rodeada de assentos de cavalheiros, então, entenderia como uma cortesia de um membro de uma família do condado eleva os indivíduos que o recebiam.

Menciono estas coisas para que você possa ter uma ideia da conveniência de deixar a Casa Branca na imaginação do povo de Barford e para tornar a mistura espessa e lajeada, você acrescentaria a azáfama, o mistério e a importância que cada pequeno evento ou causa, assumia em uma pequena cidade, e então, talvez, não seria de se admirar que o povo acompanhasse o cavalheiro, mencionado anteriormente, até a porta da Casa Branca, e o povo esperasse sob os auspícios do Senhor Jones, o escrivão, e mais trinta pessoas se juntavam à multidão maravilhada antes de sua saída, e esperavam por migalhas de sabedoria que pudessem recolher, antes de serem ameaçados à distância auditiva.

Depois, saíam o cavalheiro e o escrivão. O último estava falando, enquanto ele seguia o primeiro além do limite. O cavalheiro era alto, bem-vestido, bonito, entretanto, havia um olhar sinistro e frio em seu contemplar azul-claro e de rápida visão, o que um observador atento não gostaria.

Não havia observadores aguçados entre os meninos mal condicionados. Eles estavam muito próximos, e o cavalheiro, levantando sua mão direita, na qual ele carregava seu cavalo, deu um ou dois golpes bruscos para o mais próximo, com um olhar de prazer selvagem em seu rosto, enquanto eles se afastavam assustados. Um instante depois, sua expressão mudara.

— Aqui! — chamou ele, sacando um punhado de moedas de prata e cobre, jogando-o no meio deles. — Lutem por ele! Lutem contra os seus, meus rapazes! Venham esta tarde, às três, ao George, e os darei mais um pouco!

Então, os rapazes se apressaram, enquanto ele se afastara, rindo satisfeito.

— Vou me divertir um pouco com aqueles rapazes. — murmurou ele. — Vou ensiná-los a não me atormentarem! Eu lhe direi o que vou fazer. — ele olhou para o escrivão. — Farei o dinheiro tão quente na pá de fogo que queimará seus dedos. E assim tomarei a casa!

O Senhor Jones concordou em ir até o George às duas da tarde, mas, de alguma forma, ele teve um desgosto. O Senhor Jones não diria, nem para si, que um homem com uma bolsa cheia de dinheiro, que guardava muitos cavalos e falava familiarmente de nobres, pensava em tomar a Casa Branca, então, ele podia ser tudo, menos um cavalheiro.

Entretanto, ainda assim, a inquieta dúvida sobre quem seria esse Senhor Robinson Higgins, encheu a mente do escrivão, muito tempo depois que o Senhor Higgins, os criados do Senhor Higgins e o cavalo do Senhor Higgins tomarem posse da Casa Branca.

A Casa Branca foi pintada, desta vez, de cor amarelo pálido, e colocada em reparo minucioso pelo proprietário acomodado e encantado, enquanto seu inquilino parecia inclinado a gastar qualquer quantia de dinheiro em decorações internas, que eram vistosas e eficazes em seu caráter, o suficiente para fazer da Casa Branca, a maravilha de nove dias, para o bom povo de Barford.

As tintas da cor ardósia se tornaram rosa, e foram misturadas com ouro, os corrimões antigos foram substituídos por novos, dourados, entretanto, os estábulos eram um espetáculo para ser visto.

Desde os tempos do Imperador Romano, nunca houve tal provisão para os cuidados, o conforto e a saúde dos cavalos.

Os cavalos foram conduzidos através de Barford, cobertos até os olhos, mas curvando seus pescoços arqueados e delicados, empinando com passos curtos e altos, em aflição reprimida.

Apenas um ajudante veio com eles, porém, os animais exigiram o cuidado de três homens. O Senhor Higgins, no entanto, preferiu envolver dois garotos que moravam fora de Barford, e o povo aprovou sua preferência, porque dar emprego aos rapazes, e estes recebendo treinamento nos estábulos do Senhor Higgins, serviria em fazendas de Doncaster ou Newmarket, se assim quisessem depois.

O distrito de Derbyshire, no qual Barford estava situada, era muito próximo de Leicestershire para não suportar uma caçada e um bando de cães de caça.

O mestre dos cães de caça era o Senhor Harry Manley, que era um caçador nato. Ele media um homem pelo comprimento de seu garfo, não pela expressão de seu semblante ou pela forma de sua cabeça.

No entanto, como o Senhor Harry costumava observar, havia algo como um garfo muito longo, então, sua aprovação foi retida até que ele avistasse um homem a cavalo, seu assento ali era quadrado, sua mão leve e sua coragem boa.

O Senhor Harry o saudou como um irmão, e assim, o Senhor Higgins participou da primeira reunião da temporada, como amador.

Os caçadores de Barford ousavam na cavalgada, e seu conhecimento do campo veio por natureza, contudo, este homem, que ninguém conhecia, estava sentado em seu cavalo, ambos calmos, sem um pelo virado para a pele lustrosa deste último, dirigindo-se supremamente ao velho caçador, enquanto ele cortava a cauda da raposa, e ele, o velho, que estava irritado mesmo sob a mais leve censura do Senhor Harry, voou sobre qualquer outro membro da caça que ousasse pronunciar uma palavra contra seus sessenta anos de experiência como cavalariço e caça.

Isaac Wormeley estava ouvindo mansamente a sabedoria deste estranho, porém, às vezes, dando um de seus olhares rápidos e astuciosos, não muito diferente do olhar afiado do pobre Reynard, já falecido, em volta do qual os cães uivavam, sem se harmonizar com o chicote curto, que estava no bolso velho do Wormeley.

Quando o Senhor Harry cavalgou no mato morto e grama molhada, e seguido pelos membros da caça, como um por um que passaram, o Senhor Higgins tirou seu chapéu e fez uma reverência, meio insolente, com um sorriso de espreita no canto do olho para o descontentamento de um ou dois dos retardatários.

— Uma corrida famosa, senhor. — afirmou o Senhor Harry. — A primeira vez que você caça em nosso campo, mas espero que o vejamos com frequência.

— Espero me tornar um membro da caça, senhor. — confirmou o Senhor Higgins.

— Estou muito feliz e orgulhoso por receber um cavaleiro tão ousado entre nós. Permita-me apresentar o mestre dos cães. — ele se agarrou ao seu bolso do colete, para tomar o cartão no qual seu nome estava formalmente escrito. — Alguns amigos tem a gentileza de voltar para casa comigo para jantar, posso pedir a honra?

— Meu nome é Higgins! — respondeu o desconhecido, fazendo uma reverência baixa. — Vim recentemente para ocupar a Casa Branca em Barford, e ainda não apresentei minhas cartas de apresentação.

— Esqueça! — respondeu Senhor Harry. — Um homem com um cavalo como o seu, pode subir a qualquer porta do condado. Sou um homem de Leicestershire, e você será um convidado bem-vindo. Senhor Higgins, terei orgulho de conhecê-lo melhor em minha mesa de jantar.

O Senhor Higgins sabia muito bem como melhorar a simpatia assim iniciada. Ele sabia cantar uma boa canção, contar uma adequada história, e era bem versado em piadas, com muito desse senso mundano aguçado, que parece um instinto em alguns homens, e que neste caso, o ensinou sobre quem ele podia brincar com tais piadas, com impunidade de seu ressentimento e com uma segurança de aplausos dos mais turbulentos, veementes ou prósperos.

No final de doze meses, o Senhor Robinson Higgins era, fora de casa, o membro mais popular da caça Barford. Vencera todos um par de vezes, como observou seu primeiro patrono, o Senhor Harry, em uma noite, quando estavam deixando a mesa de jantar de um velho escudeiro de caça da vizinhança.

— Porque, sabe... — falou o escudeiro Hearn, segurando o Senhor Harry pela ponta do seu casaco. — Quero dizer... Veja! Esta jovem faísca está parecendo doce para Catherine, e ela é uma boa garota que terá dez mil libras a menos, no dia em que for casada, pela vontade de sua mãe, e, desculpe-me, Senhor Harry, mas não gostaria que minha garota fosse jogava nisso.

O bondoso coração do Senhor Harry ficou tocado pela ansiedade trêmula e lacrimosa do escudeiro Hearn, que ele parou e voltou para a sala de jantar para dizer, com mais asseverações do que gostaria de dar:

— Meu bom escudeiro! Posso dizer, conheço esse homem muito bem a essa altura. É um bom companheiro. Se eu tivesse vinte filhas, ele deveria ter que escolher uma delas.

O escudeiro Hearn não pensou em perguntar os embasamentos da opinião de seu velho amigo sobre o Senhor Higgins, porque os fundamentos foram ditos com muita seriedade para que quaisquer dúvidas passassem pela cabeça do velho homem, quanto à possibilidade de não estar bem fundamentada.

O Senhor Hearn não era um cético, nem um pensador ou suspeito por natureza. Foi simplesmente seu amor por Catherine, sua única filha, que provocou sua ansiedade neste caso, e, depois que Senhor Harry falara, o velho cambaleou a mente, embora suas pernas não estivessem muito firmes também, e cambaleassem para a sala de visitas, onde, sua filha Catherine e o Senhor Higgins se aproximavam. Ele sussurrava e ela ouvia, com olhos cabisbaixos.

Ela parecia tão feliz, da mesma maneira que sua falecida mãe olhara quando o escudeiro era um jovem, e que todo o pensamento dele era para agradá-la mais.

Barford e a Casa Branca, não estavam distantes uma hora de viagem, e, mesmo quando estes pensamentos passaram por sua mente, ele perguntou ao Senhor Higgins, se ele ficaria a noite toda, a lua nova estava pronta, as estradas, escuras e Catherine olhou para cima, com uma ansiedade muito grande, que, no entanto, não tinha muita dúvida da resposta.

O incentivo do velho escudeiro pegou a todos de surpresa e em uma manhã, a Senhorita Catherine Hearn estava desaparecida, e quando, de acordo com o costume em tais casos, foi encontrado um bilhete dizendo que ela fugira com o homem de seu coração, e ido para Gretna Green.

Ninguém imaginava o motivo da jovem não esperar tranquilamente em casa e casar na igreja, porque ela sempre fora uma menina romântica e sentimental, muito bonita, carinhosa e carente.

Seu pai indulgente, ficou profundamente magoado com essa falta de confiança. E, ainda ouviu a declaração do Senhor Nathaniel Hearn, seu filho, de que ele e sua esposa não ajudariam o jovem casal.

— Espere até ver, Nat! — disse o velho escudeiro, tremendo com suas angustiantes antecipações da discórdia familiar.

— Quem é este sujeito? De onde ele vem? Quais são os seus meios de sobrevivência? Quem é sua família?

— Ele vem do sul, de Surrey ou Somersetshire. Esqueço qual agora, e ele tem boa renda. Diz que não se importa mais com dinheiro do que com água, ele gasta como um príncipe, Nat! Não sei quem é sua família, mas ele usa um brasão na sela de seu cavalo, e vai regularmente buscar seus aluguéis em suas propriedades no sul. Oh! Nat! Se você fosse amigável, eu ficaria satisfeito com o casamento de Kitty.

O Senhor Nathaniel Hearn se vangloriou e murmurou um ou dois juramentos para si. O pobre velho pai estava colhendo as consequências de sua fraca indulgência para com seus dois filhos.

O Senhor e a Senhora Nathaniel Hearn se mantiveram separados de Catherine e seu marido, e o Escudeiro Hearn nunca os convidou para o casarão Levison, embora fosse sua casa.

De fato, o Escudeiro Hearn ia visitar a Casa Branca, e se ele passava uma noite lá, ele queria voltar para casa no dia seguinte, um equívoco que foi interpretado pelo rude e orgulhoso Nathaniel.

Mas os jovens Senhor e Senhora Hearn foram os únicos que não os visitaram na Casa Branca. O Senhor e a Senhora Higgins eram decididamente mais populares que seu irmão da Senhora Higgins e cunhada.

Ela era uma anfitriã muito bonita, de temperamento suave, e sua educação refinada ignorava aqueles de pouca educação que se reuniam ao redor de seu marido. Ela tinha sorrisos afetuosos, tanto para as pessoas da cidade, quanto para as do condado, e inconscientemente pegou um admirável segundo lugar no projeto de seu marido em se tornar universalmente popular.

Entretanto, sempre há alguém para fazer comentários rudes e tirar conclusões grosseiras e de premissas rasas, em todos os lugares, e, em Barford esta ave de rapina era a Senhorita Pratt.

Ela não caçava, então, a admirável cavalgada do Senhor Higgins não chamava sua atenção. Ela não bebia, sendo assim, os vinhos selecionados e tão luxuosamente distribuídos entre seus convidados, nunca abrandavam a Senhorita Pratt. Ela não podia suportar canções cômicas ou piadas, porque sua aprovação era inconquistável e os segredos da popularidade constituíam o grande encanto do Senhor Higgins. Então, a Senhorita Pratt sentou e observou.

Seu rosto parecia imóvel no final de qualquer uma das melhores histórias que o Senhor Higgins contasse, e havia um olhar aguçado, parecido com uma agulha, de seus olhinhos desenfreados, que o Senhor Higgins sentiu, em vez de ver, e que o fez tremer, mesmo em um dia quente, quando aquele olhar caiu sobre ele.

O Senhor Higgins convidou a Senhora Pratt para jantar, mantendo a cordialidade, e fez uma bela doação para os pobres da capela. Tudo em vão.

A Senhorita Pratt não mexeu um músculo do seu rosto em direção à graciosidade, e o Senhor Higgins estava consciente que, apesar de todos os seus esforços para cativar o Senhor Davis, havia uma influência secreta do outro lado, lançando dúvidas e suspeitas, com interpretações maldosas de tudo o que ele dizia ou fazia.

A Senhorita Pratt, a pequena solteirona, que vivia com oitenta libras por ano, era o espinho no pé do popular Senhor Higgins, ainda que ela nunca lhe dissesse uma palavra incivil, pelo contrário, ela o tratava com uma civilidade rígida e elaborada.

O espinho era a dor para a Senhora Higgins. Eles não tinham filhos! Oh! Como ela se levantava e invejava o movimento descuidado e ocupado de meia dúzia de crianças, e, então, quando observada, seguia com um profundo suspiro de pesar.

Foi notado que o Senhor Higgins era notavelmente cuidadoso com sua saúde. Ele comia, bebia, se exercitava e descansava, por algumas regras secretas que lhe eram próprias, mas ocasionalmente, explodindo em excesso, é verdade, porém, somente em raras ocasiões, como a volta das visitas nas fazendas do sul, após receber seus aluguéis.

No caminho não havia coches[151] em uma distância de quarenta milhas de Barford, e ele, como a maioria dos cavalheiros do campo, preferira cavalgar.

Correu o boato de que ele se calou e bebeu por alguns dias após seu retorno. Mas ninguém foi admitido a estas libertinagens.

Um dia, que eles se lembraram bem depois, os cães de caça se encontraram não muito longe da cidade, e uma raposa foi encontrada, em uma parte da relva selvagem, onde começava o cerco de alguns dos habitantes mais ricos da cidade, desejosos em construir suas casas um pouco mais no campo que aquelas em que viviam até então.

Entre estes, estava o Senhor Dudgeon, advogado em Barford, e o agente de todas as famílias do condado. O escritório de Dudgeon administrava os arrendamentos, os casamentos e os testamentos por gerações.

O pai do Senhor Dudgeon tinha a responsabilidade de cobrar os aluguéis dos proprietários, assim como o Senhor Dudgeon tinha na época em que falo, e como seu filho e o filho de seu filho, fazem desde então.

Para eles o negócio era um patrimônio hereditário, e algo do velho sentimento feudal misturava-se a uma espécie de humildade orgulhosa na sua posição em relação aos escudeiros, cujos segredos familiares, eles dominavam, e os mistérios, fortunas e propriedades eram mais conhecidos pelos senhores Dudgeons que por eles mesmos.

O Senhor John Dudgeon construíra uma casa em Wildbury Heath, uma mera cabana como ele a chamava, mas apesar de apenas dois andares de altura, ela se espalhou por toda parte, e os trabalhadores de Derby foram enviados para tornar o interior o mais completo possível.

Os jardins também eram requintados na disposição, e muito extensos, e não se cultivava uma flor simples neles, mas as espécies mais raras.

Foi uma tortura para o dono deste lugar delicado quando, no dia da caça da raposa que mencionei, depois de uma longa corrida, durante a qual o animal caminhara em um círculo de muitos quilômetros, refugiando-se no jardim, e o Senhor Dudgeon ficou atônito, quando um cavalheiro caçador, com a insolência descuidada dos escudeiros daqueles dias e lugar, atravessou o gramado, batendo na janela da sala de jantar com seu chicote, pedindo permissão.

— Não! O que é isso? — rosnou o Senhor Dudgeon engolindo o resto que queria falar ao perceber quem era o homem em sua frente.

O Senhor Dudgeon se obrigou a sorrir, então, ele deu ordens apressadas para que fosse feito o almoço para dar boas-vindas aceitáveis.

Ele se aborreceu com a entrada das botas sujas em sua sala requintadamente limpa, e se sentiu grato pelo cuidado com que o Senhor Higgins se movimentava, laboriosa e silenciosamente na ponta dos pés, enquanto reconhecia os cômodos com um olhar curioso.

— Vou construir uma casa, Dudgeon. E, por minha palavra, penso que não aceitaria um modelo melhor que o seu.

— Oh! Meu pobre chalé seria muito pequeno para dar qualquer exemplo de moradia que anseia construir, Senhor Higgins. — respondeu o Senhor Dudgeon, esfregando gentilmente as mãos, ao elogio.

— De jeito nenhum! De jeito nenhum! Deixe-me ver. Você tem a sala de jantar, sala de desenho... — ele hesitou, e o Senhor Dudgeon preencheu o espaço em branco como ele esperava.

— Quatro salas de estar e os quartos. No entanto, permita-me que lhe mostre a casa. Confesso que me esforcei em arranjá-la e, apesar de ser muito menor do deseja para si, posso dar-lhe algumas dicas.

Assim, eles deixaram os senhores no almoço, com suas bocas e pratos bem cheios, envoltos no cheiro da raposa no ar, e inspecionaram cuidadosamente todas as salas do andar térreo.

O Senhor Dudgeon falou:

— Se você não estiver cansado, Senhor Higgins... Vou te mostrar meu hobby. Vamos subir, e lhe mostrarei meu santuário.

O santuário do Senhor Dudgeon era a sala central, sobre o alpendre, que formava uma varanda, e que era cuidadosamente preenchida com flores escolhidas, em vasos. No interior, havia muitos arranjos elegantes para esconder a verdadeira força exigida pela natureza particular dos negócios do Senhor Dudgeon, e, embora seu escritório estivesse em Barford, ele guardava, como ele informou ao Senhor Higgins, o que era mais valioso ali, como sendo mais seguro que um escritório, que era trancado e deixado sozinho todas as noites.

Entretanto, como o Senhor Higgins o lembrou com um golpe manhoso na lateral do ombro quando se encontraram em seguida, sua casa não estava muito segura.

Uma quinzena depois que os senhores da caça Barford almoçaram lá, o cofre do Senhor Dudgeon, em seu santuário lá em cima, com o misterioso parafuso de mola à janela, inventado por ele e cujo segredo só era conhecido pelo inventor e alguns de seus amigos mais íntimos, aos quais ele orgulhosamente mostrara este cofre, contendo as rendas de Natal, coletadas de meia dúzia de senhorios, porque não havia nenhum banco mais perto do que Derby, foi violado, e o secretamente rico Senhor Dudgeon, percebera isso, porque fora obrigado a fazer uma visita ao santuário.

Os policiais daqueles dias eram bastante incapazes de obter qualquer pista do ladrão, e embora um ou dois vagabundos fossem levados perante o Senhor Dunover e o Senhor Higgins, os magistrados que compareceram na sala do tribunal em Barford, não tinham nenhuma prova contra eles, e após algumas noites presos, eles foram colocados em liberdade.

Entretanto, tornou-se uma piada para o Senhor Higgins perguntar ao Senhor Dudgeon, de tempos em tempos, se ele recomendaria um lugar seguro para seus valores, ou, se fizera, ultimamente, mais alguma invenção para proteger as casas de assaltantes.

Cerca de dois anos após o ocorrido, e sete anos após o Senhor Higgins estar casado, em uma noite de terça-feira, o Senhor Davis estava sentado, lendo as notícias na sala de café de George Inn. Ele era membro de um clube de cavalheiros que se reunia lá, ocasionalmente, para brindar suas aptidões, ler os poucos jornais e revistas publicados naqueles dias, conversar sobre o mercado em Derby e os preços em todo o país.

Então, naquela noite de geada negra, poucas pessoas permaneciam na sala. O Senhor Davis estava ansioso para terminar um artigo da revista Gentleman, porque escrevia trechos sobre o que lia, já que não conseguia, com sua pequena renda, comprar um exemplar.

Então, ele ficou até tarde lá. Já passava das nove, e, enquanto ele escrevia, o Senhor Higgins entrou.

O homem estava pálido e abatido pelo frio. O Senhor Davis, que tivera por algum tempo a posse exclusiva do fogo, moveu-se educadamente de um lado, e entregou ao recém-chegado, o único jornal londrino que a sala oferecia.

O Senhor Higgins o aceitou e fez algumas observações sobre a intensa friagem do tempo, porém, o Senhor Davis estava muito determinado em finalizar a sua escrita, dando respostas rasas. O Senhor Higgins puxou sua cadeira para mais perto do fogo e colocou seus pés na beirada, dando um arrepio audível. Ele depositou o jornal em uma extremidade da mesa perto dele, e sentou olhando para as brasas vermelhas do fogo, agachando-se sobre elas, como se sua medula estivesse gelada, e disse longamente:

— Não há relato do assassinato em Bath neste jornal?

O Senhor Davis, que terminara de tomar suas anotações e se preparava para sair, parou e perguntou:

— Houve algum assassinato em Bath? Não! Não vi nada disso, quem foi assassinado?

— Oh! Foi um assassinato chocante e terrível. — falou o Senhor Higgins, não levantando seu olhar do fogo, mas com os olhos dilatados, até que o branco ao redor, fosse visto em volta deles. — Um assassinato terrível! Um assassinato terrível! O que será do assassino? Posso imaginar o centro vermelho e brilhante daquele olhar de fogo, e ver como ele estava infinitamente distante, e como a distância o amplia em algo horrível e insaciável.

— Meu caro senhor, você está febril! Como você treme! — concluiu o Senhor Davis, pensando que seu companheiro tinha sintomas de febre, e que ele estava delirando.

— Oh! Não! — resmungou o Senhor Higgins. — Não estou febril. É a noite que está tão fria!

Por um tempo ele conversou com o Senhor Davis sobre o artigo da revista, porque ele se interessava mais pelas atividades do Senhor Davis que a maioria das pessoas em Barford.

Aproximou-se das dez, e o Senhor Davis se levantou para ir para casa, para seus alojamentos.

— Não, Davis! Não vá! Quero você aqui! Tomaremos uma garrafa de vinho do porto, juntos. Quero lhe contar sobre este assassinato. — continuou ele, pendendo a voz e falando rouco. — Ela era uma mulher velha e ele a matou. Ela estava sentada, lendo sua Bíblia, à sua lareira.

Ele olhou para o Senhor Davis com um estranho contemplar de busca, como se tentasse encontrar alguma simpatia no horror que a ideia lhe apresentava.

— Quem o senhor quer dizer, meu caro? Que assassinato? Ninguém foi assassinado aqui!

— Não! Seu tolo! Eu disse que foi em Bath. — resmungou o Senhor Higgins, com súbita paixão, e, depois, acalmando-se na mais aveludada maneira, e colocou a mão no Senhor Higgins.

Ali, enquanto eles olhavam para o fogo, e gentilmente os detinham, o Senhor Higgins começou a narração do crime do qual ele estava tão envolvido, contudo, sua voz e sua maneira de agir foram limitadas a uma quietude pedregosa e ele não ousou olhar no rosto do Senhor Davis.

— Ela vivia em uma pequena casa, em uma rua tranquila, à moda antiga, com a sua empregada. As pessoas diziam que ela era uma boa e velha mulher, porém, acumulava dinheiro e nunca dava para os pobres. Senhor Davis, é perverso não dar aos pobres, não é? Sempre ofereço dinheiro aos pobres, porque uma vez li na Bíblia que a caridade cobre uma multidão de pecados. A velha malvada nunca deu, mas acumulou seu dinheiro. Alguém ouviu falar sobre isso, e digo, que ela jogou a tentação no seu caminho. Deus a castigaria por isso. Este homem, ou talvez seja uma mulher, quem sabe? Enfim, esta pessoa ouviu que ela ia à igreja de manhã, e sua empregada, à tarde. Enquanto a empregada estava na igreja, a rua e a casa estavam bastante quietas, pela escuridão de uma tarde de inverno chegando. Ela lia, com a cabeça debruçada sobre a Bíblia... Não ajudar os pobres é um pecado que Deus vingará mais cedo ou mais tarde, certo? Então, um vulto veio no crepúsculo, subindo as escadas, e aquela pessoa de quem lhe falei, surgiu na sala. No início daquele suposto 14 de janeiro, pois, você entende, tudo isso é mera adivinhação, acredito que ele pediu civilmente o dinheiro, ou para dizer-lhe onde estava, mas a velha avarenta o desafiou, e não pediu misericórdia, nem entregou suas chaves, mesmo quando ele a ameaçou, e ela não se importou. Deus! Senhor Davis, uma vez sonhei, quando era um menino inocente, que eu ousaria cometer um crime como este, e acordei chorando. Minha mãe me consolou, essa é a razão de tremer tanto agora. Que frio! Está muito frio!

— Será que ele assassinou a velha senhora? — perguntou o Senhor Davis. — Peço desculpas, senhor, mas estou interessado em sua história.

— Sim! Ele cortou a garganta da mulher, e ali ela ainda está deitada em sua pequena sala quieta, com o rosto virado para cima e toda branca, no meio de uma poça de sangue. Senhor Davis, este vinho não é melhor que água, eu preciso beber um pouco de conhaque!

O Senhor Davis ficou horrorizado com a história, o que parecia o fascinar tanto quanto o seu companheiro.

— Há alguma pista sobre o assassino? — questionou o Senhor Davis.

O Senhor Higgins bebeu meio copo de conhaque antes de responder.

— Não! Nenhuma pista. Eles nunca serão capazes de descobrir, e nem devemos pensar se ele se arrependeu e fez uma penitência amarga por seu crime. Será que haverá misericórdia para ele no último dia?

— Deus é o único que sabe! — respondeu o Senhor Davis, com solenidade. — É uma história horrível! — continuou. — Mal consigo sair desta sala de luz quente e sair para a escuridão, após ouvi-la. Mas devo me retirar! — ele se levantou, abotoando seu grande casaco. — Só posso dizer que espero e confio que eles descubram o assassino e o enforquem. Se você seguir meu conselho, Senhor Higgins, você terá sua cama aquecida e beberá um pouco de leite.

Na manhã seguinte, o Senhor Davis foi chamar a Senhorita Pratt, que não estava muito bem, e, como maneira de ser agradável e divertido, ele contou a ela tudo o que ouvira na noite anterior sobre o assassinato em Bath, e a Senhorita Pratt se interessou muito no destino da velha senhora, por uma semelhança em sua situação, visto como, ela também acumulou dinheiro, só tinha uma criada e ficava em casa sozinha aos domingos, à tarde, para permitir que sua criada fosse à igreja.

— Quando tudo isso aconteceu? — perguntou ela.

— Não sei se o Senhor Higgins deu o nome do dia, e ainda assim, acho que foi neste último domingo.

— Hoje é quarta-feira. As más notícias viajam rápido.

— Sim! O Senhor Higgins pensou que estaria no jornal londrino.

— Não estaria, porque é muito recente! Até chegar aos ouvidos dos editores, isso demoraria muito mais tempo. Onde o Senhor Higgins soube de tudo isso?

— Não sei porque não perguntei. Penso que ele voltou para casa ontem, após voltar do sul em suas idas para receber seus aluguéis. Alguém disse para ele, suponho.

A Senhorita Pratt grunhiu. Ela costumava descarregar sua antipatia e suspeita pelo Senhor Higgins em um grunhido sempre que seu nome era mencionado.

— Bem, não o verei por alguns dias. Godfred Merton me pediu para ir e ficar com ele e sua irmã, e penso que isso me fará bem. Além disso... — acrescentou. — Estas noites de inverno e estes assassinos, me fazem pensar que vivo com uma criada e isso é pouco, em caso de necessidade.

A Senhora Pratt fora para a casa de seu primo, o Senhor Merton. Ele era uma autoridade ativa e desfrutava de sua reputação como tal.

Um dia, ele chegou, com cartas em suas mãos:

— Mau relato da moral de sua pequena cidade aqui, Jessy! — disse ele, tocando uma de suas cartas. — Você tem um assassino entre vocês, ou algum amigo seu, é amigo de um assassino. Aqui está o relato de uma pobre velhinha em Bath, que teve sua garganta cortada no domingo passado, e tenho uma carta do escritório, pedindo para emprestar-lhes minha ajuda no caso para descobrir o culpado. Parece que o assassino, antes de ir para seu horrível trabalho, bateu em um barril de vinho de gengibre que a velha senhora preparara e um pedaço de carta foi encontrado depois, mas com os dizeres soltos: ns, Esc, arford, egworth, sendo assim, podemos pensar engenhosamente que significa Barford e Kegworth. Por outro lado, há uma alusão a um cavalo de raça, conjecturo, embora o nome seja suficientemente singular: Rei galopante da Igreja.

A Senhorita Pratt lembrou o nome imediatamente.

— O Senhor Nat Hearn tem ou tinha um cavalo com esse nome ridículo.

— O Senhor Nat Hearn? — repetiu o Senhor Merton, tomando nota e olhando para o fragmento da carta.

— Há também um pedaço de uma pequena chave, quebrada, na tentativa fútil de abrir um baú. Mas a chave é insignificante. A carta é aquilo em que devemos confiar.

— O Senhor Davis falou que o Senhor Higgins lhe disse algo sobre o dia 14?

— Higgins! — exclamou o Senhor Merton. — Então, as letras ns é do nome Higgins, o sujeito que fugiu com a irmã de Nat Hearn?

— Sim! — assentiu a Senhorita Pratt.

— ns... — repetiu o Senhor Merton. — É horrível demais para se pensar. O genro do velho Escudeiro Hearn, aquele caçador! Quem mais em Barford tem nomes que terminam em ns?

— Há Jackson, Higginson, Blenkinsop, Davis, e Jones. Mas, primo! Uma coisa me impressiona... Como o Senhor Higgins soube de tudo isso para contar ao Senhor Davis na terça-feira o que acontecera no domingo, à tarde?

Não há necessidade de acrescentar nada. Higgins era tão evidente como sendo culpado como Claude Duval[152].

O marido de Kate Hearn cobrou seus aluguéis, como muitos outros cavalheiros do dia, mas, com azar em uma ou duas de suas aventuras, e ouvindo relatos exagerados da riqueza acumulada da velha senhora de Bath, ele foi levado do roubo ao assassinato, e foi enforcado por seu crime em Derby, no ano de 1775.

Ele não fora um marido indelicado, e sua pobre esposa se instalou em Derby para estar perto dele em seus últimos momentos, seus horríveis últimos momentos.

Seu velho pai foi com ela para todos os lugares, exceto para a cela do genro e torceu seu coração acusando-se constantemente de promover seu casamento com um homem do qual ele conhecia tão pouco.

Ele abdicou seus compromissos em favor de seu filho Nathaniel. Nat era próspero, e o pai tolo e indefeso não podia ser útil para ele, mas para sua filha viúva, o velho pai estava em tudo. Ele era seu cavaleiro, protetor, companheiro, e mais fiel amigo. Ele somente se recusou a assumir o cargo do Conselho, abanando sua cabeça tristemente, e dizendo:

— 14 de janeiro...

E para a sua filha, ele falou:

— Ah! Kate! Se eu fosse mais sábio para te aconselhar melhor, não seria uma exilada aqui em Bruxelas, encolhendo-se da vista de cada pessoa inglesa, como se todos soubessem a tua história.

Vi a Casa Branca há um mês. Já teve mais de vinte inquilinos, e há muitas histórias sobre a casa, contadas desde que o Senhor Higgins a ocupou, mas ainda assim, a tradição em Barford diz que, uma vez um homem que vivia lá, e acumulava tesouros incontáveis. As riquezas mal adquiridas ainda permanecem emparedadas em algum cômodo escondido, mas em que parte da casa, ninguém sabe.

Você se tornará inquilino, e tentará descobrir este misterioso esconderijo?

Posso fornecer o endereço exato a qualquer candidato que o deseje.

Fim.


Canções Gregas Modernas

Encontrei um livro francês, que me interessei muito, e, por este livro não ser tão popular, imagino que algum relato dele possa não ser desagradável para meus leitores.

Falo do livro Canções Populares da Grécia Moderna do escritor C. Fauriel[153].

O Senhor Fauriel era um grego, apesar do nome francês e da língua em que escrevia. A maneira que ele colecionou estas canções populares, assemelha-se ao do Senhor Walter Scott, em Contos da Fronteira escocesa.

Em ambos os casos, há um discurso preliminar que explica os modos e o caráter peculiar do povo, entre os quais estas canções circulavam, e a história de cujos antepassados e heróis populares, eles comemoravam.

Este discurso e as notas explicativas, davam o principal interesse ao livro, pois, relatavam os hábitos, costumes e tradições de um povo sobre o qual estamos sempre virando as costas e esquecendo a riqueza do patrimônio destes antepassados. No entanto, como há quatro milhões de homens que reivindicam uma descendência direta de pessoas mais refinadas, vale a pena aprender algo sobre isso.

O Senhor Fauriel dividia a poesia da Grécia moderna em dois modos: obras de literatura, com escrita composta, corrigida e revisada, de acordo com as regras da arte, e as canções reais, com poemas que brotavam do coração da nação, sempre que estes eram profundamente agitados e circulavam de homem para homem, com a rapidez das chamas jamais escritas, porém, nunca esquecidas.

Algumas canções estavam relacionadas aos eventos rotineiros e populares.

Primeiro, tomemos as canções caseiras.

Duas festas que eram celebradas em cada casa.

A primeira era no dia de Ano Novo que é a festa de São Basílio, de acordo com a Igreja Grega.

O relato que Senhor Fauriel fez, me faz lembrar muito um dia de Ano Novo escocês.

Os jovens passavam de uma casa para outra, até que todos os seus amigos fossem visitados, trazendo consigo, presentes, depois, indo em procissão alegre, saudar os outros conhecidos.

Porém, ao invés do nosso “Desejo-lhes um feliz ano novo!”, os jovens gregos, ao entrar nas casas, cantavam alguns versos em homenagem ao chefe de família, outros, em homenagem à esposa, e os filhos da casa tinham cada um, o seu canto, nem as filhas eram esquecidas. Por último, aqueles que estavam ausentes ou mortos, recebiam este elogio.

A lembrança dos perdidos era cantada com luto e tristeza, mas, nenhum membro da família era deixado de fora na festa de São Basílio, enquanto, alguns caminhavam pelas ruas, cantando em honra ao santo.

Uma vez, na Inglaterra, fui muito bem recebido por uma família grega, que me permitiu testemunhar suas cerimônias do dia de Páscoa, o que, na expressão de bons votos e nas felicitações de todos os senhores aos seus amigos, creio que se assemelha a uma festa de São Basílio, sem as canções.

A família consistia de uma mãe grega, uma filha adorável e um filho que deixou sua casa neste dia para visitar seus amigos.

Em um canto da pequena sala de desenho inglesa, havia uma mesa coberta com doces de aspecto suave, tudo como se o brilho do pôr do sol repousasse sobre suas cores âmbar e carmesim, e havia decantadores, contendo líquidos misteriosos para combinar.

Chegava um cavalheiro grego atrás do outro, com alguma frase curta, que irrompeu como se abafasse a perfeição da alegria.

Era o grego para Cristo ressuscitou!

Então, todos apertavam as mãos, os visitantes saboreavam as guloseimas como joias, depois disso, corriam para outro lugar, e, para ter seus lugares ocupados por outras tropas de amigos. Todavia, não tinha as canções, nem sei se, em nosso clima frio do norte, os gregos continuavam a festa da próxima primavera.

Na Grécia, a festa era realizada no dia primeiro de março, e seria, muitas vezes, uma saudação antecipada para a primavera na Inglaterra.

Neste belo feriado, as crianças se juntavam aos jovens e cantavam nas ruas, pedindo pequenos presentes para homenagear o tempo de suavidade e renascimento, em resposta, cada um lhes dava um ovo ou algum pedaço de queijo.

A canção era aquela que, por sua graça, sopro da primavera e flores que perfumavam, era conhecida em muitos países, assim como na Grécia, sob o nome do Canto da Andorinha.

As crianças carregavam consigo a figura de uma andorinha rudemente cortada em madeira, presa a uma espécie de pequeno moinho de vento, que era girado por um pedaço de corda amarrada a um cilindro.

Os gregos modernos eram um povo essencialmente comercial. Ouvi um ditado que mostra a opinião popular de seus talentos de barganha:

“São necessários dois ingleses para enganar um escocês, dois escoceses para enganar um judeu, e dois judeus para enganar um grego!”

Este talento para o comércio, somado à pobreza de seu país, e a posse incerta de propriedades, fez com vários gregos se tornassem comerciantes em outros países, entretanto, eles sofriam muito ao deixarem suas casas, e quanto mais perto das montanhas, mais choravam, e sua tristeza, bem como sua alegria, era expressa pelo canto.

Quando alguém partia para uma terra estranha, seus amigos e companheiros se encontravam em sua casa para compartilhar com ele uma última ceia, e, depois disso, o acompanhavam em uma parte de seu caminho, como Orpah e Ruth[154] acompanharam Noemi[155]. E, enquanto caminhavam, eles cantavam.

Existiam canções distintas, de tempos imemoriais, para a triste ocasião da partida de sua terra natal, a Grécia, e outras eram feitas no local, a partir dos sentimentos excitados do momento.

Havia uma história contada de um jovem, o mais novo de três irmãos, entretanto, pouco amado por sua mãe. O pobre sujeito se esforçou, em vão, para ganhar um pouco do afeto que foi derramado sobre seus irmãos mais velhos, e, finalmente, ele decidiu se tornar um exilado daquele lar que não era um lar para ele. Assim, ele partiu, acompanhado por seus jovens amigos, seus irmãos, irmãs e, devido a uma questão de boas maneiras, por sua mãe também.

Quatro ou cinco milhas de sua casa, havia um pequeno desfiladeiro pelo qual o caminho se estreitava. Este era o ponto determinado da separação, e ali, entre os ecos rochosos, eram cantadas as canções mais tristes de despedida.

De repente, o jovem montou sobre uma pedra e improvisou um poema sobre os sofrimentos que experimentara da indiferença de sua mãe.

Ele chorou para que ela o abençoasse, pelo menos uma vez, antes de ir embora para sempre, com algo da súplica selvagem de Esaú[156], quando ele estava diante de Isaac:

“Abençoa-me!”

O estranho apelo poético não foi em vão. A mãe esperou a canção improvisada terminar, um pouco impaciente com o sermão repentino, e, após isso, ela cantou seu arrependimento e prometeu, se ele voltasse para casa, ela seria uma mãe melhor.

O Senhor Fauriel não diz mais nada sobre, porque, talvez, não houve o velho final de conto de fadas, afixado nesta história verdadeira como:

“E viveram juntos muito felizes para sempre.”

Agora vamos ouvir sobre as canções de casamento.

A vida parecia uma ópera entre os gregos modernos, porque, para todas as emoções e todos os eventos, existia o alívio do canto.

No entanto, um casamento era um tempo de canto para os seres humanos e também os pássaros.

Entre os gregos, jovens de ambos os sexos, eram mantidos separados e não se encontravam, exceto por ocasião de alguma festa pública, quando o jovem grego fazia a escolha de sua noiva e pedia o consentimento de seus pais.

Se eles acertavam o casamento, tudo era preparado para o noivado, contudo, os jovens não tinham permissão para se encontrarem novamente até o evento.

Em partes da Grécia onde era permitido ao jovem declarar sua paixão, não por palavras, ele tentava encontrar sua noiva em algum caminho ou lugar, para atirar-lhe uma maçã ou flor. Após o lançamento do objeto, sua única chance de se encontrar novamente com seu amor era na fonte, à qual todas as donzelas gregas iam para tirar água, como Rebekah[157].

A cerimônia de noivado era muito simples.

Em uma noite marcada, eles se encontravam na presença de um padre, na casa do pai do noivo, ou na dos pais da noiva eleita. Após a assinatura do contrato matrimonial, duas jovens traziam a noiva donzela, que estava coberta por um véu, e a apresentavam ao seu noivo, que a tomava pela mão e a conduzia até o padre. Eles trocavam alianças diante do padre, que lhes dava a bênção. A noiva se isolava, mas o resto da família permanecia, e passava o dia em alegria, bebendo a saúde do jovem casal.

O intervalo entre o noivado e o casamento podia ser de apenas algumas horas, meses ou anos, entretanto, qualquer que fosse o espaço de tempo, os noivos não podiam mais se encontrar até o dia do casamento.

Três ou quatro dias antes dessa hora, o pai e a mãe da noiva enviavam para as pessoas próximas, cartas com um convite, cada uma dessas cartas era acompanhada pelo presente de uma garrafa de vinho para o convidado. As respostas chegavam com acompanhamentos ainda mais substanciais.

Aqueles que tinham grande prazer em aceitar, enviavam um presente com sua resposta. O presente mais frequente era um cordeiro, embrulhado com flores, porém, os mais pobres enviavam seu quarto de carneiro como sua contribuição para a festa de casamento.

Na véspera do casamento, ou melhor, durante a noite, os amigos de cada lado chegavam para a cerimônia de aproximação.

O noivo era barbeado pelo pai de sua noiva, de maneira muito séria e digna, na presença de todas as moças convidadas.

Imagine a atitude do noivo ansioso e imóvel, sob as mãos do barbeiro não muito hábil, sendo seu nariz levemente erguido entre um dedo e um polegar, enquanto as moças olhavam seriamente para a graciosa operação!

A noiva era adornada por suas jovens companheiras, que a vestiam de branco e a cobriam com um longo véu.

Na manhã seguinte, o jovem e todos os seus amigos saíam para procurar a noiva e levá-la da casa de seu pai. Ela, em canções tão antigas quanto as ruínas dos velhos templos que os rodeavam, cantava seu triste adeus ao pai, que a cuidou e protegeu até então, para a mãe, que deu à luz e a acarinhou. A jovem noiva também dava adeus à sua virgindade, à sua casa de infância, à fonte de onde ela pegava diariamente a água, às árvores, que sombreavam suas brincadeiras infantis e, por vezes, ela cedia lugar às lágrimas.

Por consequência, de acordo com o uso imemorial, a madrinha da noiva se voltava para a procissão alegre e simpática, e dizia, em uma frase que se tornou proverbial em tais ocasiões:

“Deixe-a em paz! Ela chora!”

E a noiva devia responder:

“Leve-me embora, mas deixa-me chorar!”

Após o cortejo levar a noiva à casa de seu marido, a festa era encerrada na igreja, onde era realizada a cerimônia religiosa.

Depois, voltavam para a residência do noivo, onde todos se sentavam e se banqueteavam, exceto a noiva, que permanecia velada, sozinha, até o meio do banquete, quando a madrinha se aproximava, soltava seu véu, que caía e a jovem ficava corada, exposta aos olhos de todos os convidados.

No dia seguinte, ela era entregue à apresentação de danças peculiares de um casamento. No terceiro dia, os parentes e amigos se encontravam e levavam a noiva até a fonte, de onde ela enchia um novo vaso de barro. Em seguida, dançavam em círculos em torno da fonte.

Em cada uma das cerimônias que contei, assim brevemente, uma canção apropriada à ocasião era entoada. A canção explicava o motivo de cada ato. Até mesmo a barba possuía sua canção, posta à parte.

Entretanto, algumas das maneiras que descrevi eram muito poéticas e cheias de significado.

O caráter das canções matrimoniais era terno, alegre e esperançoso, no entanto, o caráter das canções fúnebres era totalmente desesperador e triste.

Quando alguém morria, sua esposa, sua mãe e suas irmãs, se aproximavam do pobre corpo imóvel e fechavam suavemente os olhos e a boca. Depois, saíam de casa e caminhavam para a casa de um parente, onde se vestiam de branco, como para alguma ocasião nupcial feliz, porém, com a única diferença, de que seus cabelos podiam fluir desgrenhados e descobertos.

Outras mulheres estavam ocupadas com o cadáver. O corpo era vestido com as melhores roupas que o morto possuía, e, a seguir, era colocado em uma cama baixa, com o rosto descoberto e voltado para o leste, enquanto os braços se cruzavam pacificamente sobre o peito.

Quando todos esses preparativos acabassem, as mulheres de branco voltavam à casa, de luto, deixando a porta aberta para que todos que desejassem, mais uma vez contemplar a face do falecido, pudessem entrar.

Todos que se aproximavam da cama, choravam em voz alta, sem restrições. Assim que estivessem um pouco mais calmos, alguém começava a entoar a canção fúnebre, um costume comum aos antigos hebreus, e os irlandeses mais modernos, com sua agudeza e enumeração clara dos bens, das bênçãos e do amor que o falecido possuía neste mundo que deixou.

Nas montanhas da Grécia, a mais próxima e querida da família, levantava sua voz, pela primeira vez, na canção fúnebre e ela era seguida por outras, irmãs ou amigas.

O Senhor Fauriel deu um exemplo do estilo de personificação dramática de eventos comuns na canção fúnebre.

Uma mulher camponesa, de cerca de vinte e cinco anos, perdera seu marido, que a deixou com dois filhos pequenos.

Ela era extremamente inculta, vivendo sua vida silenciosa e autocontida, comum às mulheres gregas. Entretanto, havia algo muito marcante na maneira como ela começara a lamentar o cadáver, e logo ela se dirigiu a ele, e cantou:

— Vi na porta de nossa casa, sim! Vi na porta de nossa casa, um jovem de alta estatura e aspecto ameaçador, tendo asas como as nuvens brancas. Ele estava na soleira de nossa porta, com uma espada nua em sua mão. “Mulher...” perguntou ele: “Seu marido está?”, e respondi que ele estava lá, penteando os cabelos de nosso pequeno Nicolau, e acariciando-o. Falei: “Não entres! Ó jovem brilhante e terrível, assustarás nosso filhinho!”, mas o homem de asas brancas brilhantes não atendeu minhas palavras. Ele entrou e me esforcei para impedi-lo, ó meu marido! Lutei, mas ele era mais forte que eu. Ele passou por mim e ousou tocar em ti, ó meu amado! Te golpeou com sua espada. Ele golpeou o pai de nosso pequeno Nicolau. E, aqui! Aqui está nosso filhinho, nosso Nicolau.

Nestas palavras, ela, soluçando, se atirou sobre o cadáver de seu marido. Algumas mulheres a pegaram e a tiraram de perto do morto, contudo, ela se dirigiu novamente ao seu falecido marido. Ela perguntou como poderia viver sem ele, como protegeria seus filhos sem o braço forte dele para ajudar. Ela lembrou dos primeiros dias de seu casamento, como eles se amavam e cuidavam da infância de seus dois filhinhos e só cessou o lamento, quando suas forças falharam completamente, e deitou ao lado do cadáver, em um desmaio como a própria morte.

Ocasionalmente, havia alguém entre o conjunto de enlutados que também perdera recentemente uma pessoa amada, e cujo coração cheio, ainda ansiava a simpatia em suas tristezas ou alegrias que os mortos estavam sempre prontos para dar, enquanto ainda estavam vivos.

Estas pessoas assumiam a tensão, e, em uma canção usada desde tempos imemoriais, eles conjuravam os mortos que estavam diante deles, sendo os mensageiros de boas palavras.

A superstição semelhante prevalece nas Terras Altas, e todos se lembram do pequeno poema da Senhora Hemans sobre este assunto.

Mas vamos saltar, como o Doutor Fausto[158] de Lancashire para a Grécia.

Naquele país, algumas das pessoas ao redor do cadáver não se contentavam em enviar mensagens aos seus amigos mortos. Eles colocavam flores e outros sinais de lembrança sobre o corpo, suplicando ao falecido, cujos restos mortais jaziam diante deles, que levassem suas flores e presentes para aqueles que se foram antes.

Estas mensagens de adeus eram expressas em canções, e não cessavam até que o corpo fosse colocado na cova.

Durante um ano, seus parentes só podiam cantar aquelas canções, e não qualquer canção, por mais piedosa que fossem, porque neste costume, isso era proibido.

O aniversário da morte era mantido por uma dupla reunião dos amigos, que caminhavam em procissão ao túmulo, e cantavam, mais uma vez, seu adeus.

Se um grego morria longe da Grécia, eles substituíam uma efígie pelo verdadeiro cadáver, reuniam-se para a despedida, entretanto, com um agravante de tristeza e desespero, porque ele morrera longe de sua terra brilhante.

Porém, o mais comovente canto era aqueles dirigidos pelas mães aos bebês que perderam.

Quando a criança morria muito jovem, ninguém, a não ser a mãe, entoava a canção. O laço entre eles era muito próximo para permitir que um estranho interferisse com seu pesar. Todavia, seu filho perdido tomava o desenho de cada coisa bonita da natureza em sua mente. Era uma flor quebrada, uma ave jovem caída do ninho e morta, um cordeirinho de um ano, deitado morto ao lado de sua mãe.

Era o direito exclusivo das mulheres de cantar a canção fúnebre de seus infantes.

Os homens despediam-se de seu companheiro e amigo em algumas palavras simples de prosa, beijando a boca do falecido antes de sair de casa. Entretanto, há dois séculos, entre as montanhas da Grécia, os pastores cantavam seus lamentos também.

O significado original do costume está desaparecendo.

As mulheres são contratadas para expressar um luto assumido em versos formais, onde antigamente, a angústia dos mais próximos e queridos, lhes dava o dom da improvisação.

Antes de continuar a explicar o caráter e o tema das canções ocasionais, talvez fosse melhor mencionar qual classe de homens circulava entre os camponeses da Grécia, bem como, através das ilhas do arquipélago.

Não havia mendigos nestes países, exceto os cegos, porque, com o céu azul e ensolarado acima deles e o solo fértil sob seus pés, era vergonhoso viver de esmolas.

Os cegos eram uma classe excepcional, eles iam de casa em casa, recebendo uma recepção adequada em cada uma, já que eram trovadores errantes desde a época de Homero[159].

Alguns aprenderam um número imenso de canções. Sua memória era seu estoque no comércio e seu meio de vida. Eles nunca ficavam muito tempo em um lugar. Atravessavam a Grécia de ponta a ponta, e tinham um dom maravilhoso em adaptar a escolha de canções ao caráter dos habitantes do lugar onde as cantavam.

Eles geralmente preferiam os simples aldeões como público, aos mais sofisticados habitantes da cidade, e, nas cidades, eles ficavam nos subúrbios, não entrando nas ruas movimentadas do centro, e sabiam, por experiência e instinto, que a parte mais ignorante de uma população era sempre a menos questionável e a mais suscetível de impressões.

Os turcos perseguiam esses trovadores cegos com a mais suprema insensibilidade, mas os gregos os recebiam afetuosamente nas festas da aldeia chamadas Panegírico[160], e se não houvesse vários cantores cegos presentes, o povo cairia deprimido como Hamlet[161] sem a parte de Hamlet.

Eles tinham a lira, um instrumento de cinco cordas, tocado com um arco para ser o acompanhamento de suas canções, e se dividiam em dois conjuntos: aqueles que lembravam o que aprenderam com os outros, e, aqueles que criavam canções, além de suas reservas de memória.

Estes últimos, em seus longos e tranquilos passeios, em seus caminhos selvagens e grandiosos, se voltavam para dentro e lembravam tudo o que despertara sua curiosidade ou imaginação, seja na história tradicional de sua terra natal, ou nos relatos de aldeia de algum herói local.

Alguns dos trovadores espalharam a fama, cujos feitos eram desconhecidos além da vizinha montanha, de costa a costa.

De fato, estes mendigos cegos eram os romancistas e os historiadores da Grécia moderna.

Estas canções eram entoadas em ares particulares. O poeta também era músico, para usar o improviso, e assim, seria um trovador completo.

Houve um que viveu no final do século passado em Auspelatria, na Tessália, sob a sombra do Monte Ossa.

Seu nome era Gavoyanius, ou John, O Cego. Ele era extremamente velho, e no exercício de seus talentos, ele acumulara uma riqueza considerável, assim, na época, ele vivia à vontade em uma bela casa e recebia as visitas daqueles que desejavam ouvir e estavam prontos para pagar por suas canções.

Os soldados albaneses dos Paxá[162], gregos degenerados que serviam os turcos e que não encontravam ninguém para cantar suas façanhas, costumavam pagar a John, O Cego, para cantar sua fama, e, quanto mais alto o elogio, maior o pagamento.

Era uma alusão aos panegíricos que eram festas em homenagem ao santo padroeiro de algum povoado, onde se realizava o encontro de dos vilarejos ao redor, fazendo com que seus habitantes chegassem e se alegrassem.

Em resumo, eles tinham uma estreita semelhança com os velórios na Inglaterra, já que estas celebrações eram sempre realizadas aos domingos, depois do dia do santo a quem a igreja dedicava. Porém, havia algumas pequenas diferenças entre um panegírico grego e os velórios ingleses, o festival oriental era mais alegre e de caráter simples.

Na noite anterior a um panegírico, as pessoas dos vilarejos vizinhos chegavam em grupos ao local de encontro, o povo colocava seus melhores trajes e marchavam em direção à alegre música.

Quando chegavam ao seu destino, apressavam-se a armar suas tendas, e aqueles que não eram suficientemente ricos para possuir a tela necessária, arrancavam galhos de árvores, e faziam uma cobertura folhosa para se protegerem do orvalho e dos raios da lua, porque acreditavam que o orvalho e o luar eram prejudiciais à saúde.

No dia da festa, todos iam ao culto na igreja para honrar o santo padroeiro. Quando voltavam para suas casas ou tendas, não havia festa para compartilhar, porque cada família preparava sua refeição separada, que tinha em sua base, a carne de carneiro assada e cordeiro grelhado.

Depois do jantar, começava a dança. Cada aldeia dançava separadamente e se alegrava sozinha até a hora do jantar. Após isso, eles faziam visitas uns aos outros, ou ouviam os trovadores cegos, que acompanhavam cada grupo de aldeões.

Os trovadores do dia encontravam um público atento e numeroso nos grupos que ao redor deles, no frescor da noite, sentavam no gramado macio, esmagando abaixo deles o jacinto azul que torna o solo roxo e odoroso, outros, encostados em pedaços de pedra, escutando com inquestionável avidez, e todos, por algum momento, esqueciam que os turcos eram seus vizinhos.

Muitas canções foram compostas expressamente para estas ocasiões, e não houve um modo mais seguro para assegurar sua popularidade que essa, porque uma vez cantada pela primeira vez em um panegírico, circulava no dia seguinte por oito ou dez vilarejos.

Algumas canções eram literalmente canções no velho sentido provençal das palavras. Elas eram cantadas exclusivamente pelos dançarinos, enquanto eles dançavam. Na verdade, era uma característica da poesia popular grega, tão frequentemente destinada a ser cantada, enquanto os cantores dançavam.

A dança era uma bela imitação das emoções e movimentos que a canção descrevia.

Cada província tinha sua própria dança e canção peculiar, apropriada para o distrito, desde sempre.

É claro que a dança não era uma mera imitação da canção cantada, entretanto, o caráter da dança dependia da canção. Se esta última se referia aos atos de armas ou façanhas de guerreiros, os movimentos eram abruptos e decididos, se a canção era sobre amor, condenada e desprezada pelos montanhistas austeros, os movimentos da dança correspondente eram suaves e graciosos.

Das antigas espécies de cantos, aqueles relacionados às batalhas, a história tinha quase invariavelmente um ladrão para um herói. Contudo, não devemos julgar tudo por seu nome.

Devo explicar algo sobre o verdadeiro caráter dos ladrões.

Quando os turcos conquistaram as províncias gregas pela primeira vez, havia montanhistas nativos que se recusavam a reconhecer o governo islâmico, e consideravam a posse turca das terras dos gregos, seus antepassados, como nada menos que roubo.

Esses camponeses das montanhas desciam em bandos armados sobre as planícies férteis e cidades luxuosas, despojando os turcos e aqueles que se submetiam calmamente ao seu domínio, e mesmo assim eram roubados. Com isso, os montanhistas receberam o nome de ladrões.

Entretanto, nossos ancestrais saxões fizeram o mesmo com os normandos. Robin Hood era um ladrão inglês, levando apenas o que ele pensava ser adquirido injustamente, mas por ele era injustamente mantido.

Os turcos julgaram difícil fazer guerra contra esses guerrilheiros, porque eles fugiam para os recantos selvagens e rochosos das montanhas quando perseguidos.

Assim, os sábios e cautelosos conquistadores tentaram fazer amigos, e os conseguiram parcialmente, em troca de certos privilégios.

Uma parte dos montanhistas se organizou em uma espécie de milícia, porém, havia sempre um remanescente rude e austero, que perseverava em seus hábitos independentes e seu sangue de ladrão.

Com o passar do tempo, muitos deles, oprimidos pelos turcos, que não mais os temiam, voltaram ao seu estado primitivo de hostilidade contra seus conquistadores, começando a saquear de novo e retomando o nome de ladrões.

Era uma afronta para o capitão da milícia, porque devia preservar a ordem, deixar ser tratado injustamente por um turco. Sendo assim, ele imediatamente transformava-se em um ladrão também, e roubava os ladrões com o prazer que jamais experimentara na preservação da paz.

Assim, como pode ser facilmente imaginado, os ladrões que ontem eram fracos, podiam ser fortes hoje, tanto em número, quanto em inteligência, respeitando os movimentos dos grandes comboios designados para guardar tesouros.

Eles viviam em lugares selvagens, com suas espadas nas mãos, às vezes, à beira da fome absoluta, mas raramente esquecendo serem gregos, e desejando apenas roubar dos turcos.

Os rebanhos dos turcos eram roubados durante a noite, mas raramente os dos gregos, a menos que, de fato, fizessem amizade com os opressores que viviam entre eles.

Às vezes, um homem azarado era feito prisioneiro pelos ladrões, e tinha que pagar um alto resgate por sua liberdade.

Novamente, eles eram como Robin Hood e seus homens, no ódio que carregavam aos monges, e estes últimos não eram lentos em se vingar, porque sempre que podiam, eles davam informações aos turcos onde poderiam surpreender um grupo de ladrões famintos.

Às vezes, os ladrões, quando pressionados pela fome e por um inimigo sempre vigilante, enviavam uma mensagem para uma aldeia que, certa quantia fosse paga em um lugar especificado, em um determinado dia, e, se não fosse paga, todas as casas seriam queimadas.

Os pobres aldeões estavam entre dois fogos. Se eles dessem aos ladrões, os turcos lhes tirariam todos os seus bens, se eles não dessem aos ladrões após tal aviso, a ameaça seria certamente cumprida.

Portanto, antes de darem aos ladrões, a advertência geralmente tinha que ser repetida. Se eles não mostrassem sinais de concordância após a segunda advertência, a terceira e última, vinha em um pedaço de papel queimado nos quatro cantos, e os pobres aldeões não ousavam mais recusar.

Eles davam o que lhes fora pedido, os turcos levavam o resto de seus pertences, e ficavam nus no mundo para se tornarem ladrões também, se quisessem.

Os ladrões vigiavam constantemente todo o dia. À noite, seus caminhos nas montanhas eram praticamente inacessíveis, e eles dormiam ao ar livre, envoltos em peles de cabra, em camas feitas de folhas.

Eles partiam em uma expedição, que era sempre à noite, e, quanto mais escura e tempestuosa, melhor para seu propósito.

Em seus esconderijos nas montanhas, eles praticavam o tiro, adquirindo habilidades extraordinárias como atiradores desportivos. Eles tinham espingardas de um comprimento incomum, com as quais, alguns dos mais experientes podiam atingir um ovo pendurado por um fio, em um galho de uma árvore, a uma distância de duzentos passos. Outros, ainda mais habilidosos, podiam enviar uma bala através de um anel.

Os ladrões, por longa prática, adquiriram tal rapidez de visão, que muitos deles conseguiam ao observar de onde procedia um clarão da fogueira de um inimigo, escolhiam o homem e o ceifavam com seu rifle.

Eles chamavam isto de disparar sobre o fogo. Além destes exercícios, os ladrões praticavam alguns que lhes chegavam dos antigos gregos.

Um dos principais deles era o jogo do disco, que era para lançar, e quem o lançava mais longe era o vencedor. Eles também eram famosos saltadores, e histórias maravilhosas eram contadas sobre eles nesta qualidade.

Um herói ladrão, o Capitão Niko Isaras, tinha autoridade para pular sete cavalos de pé. Há outra anedota registrada de um homem que saltou sobre três carroças carregadas com pedras, até a altura de sete ou oito pés. Suas façanhas na corrida foram igualmente maravilhosas, para não dizer, incríveis.

Eles contavam que um homem correu tão rápido que seus calcanhares tocaram seus ouvidos. Não havia dúvida de que um ladrão era incomparável em seu poder de fazer longas marchas. Eles também eram capazes de suportar uma fome extraordinária, de acordo com o Senhor Fauriel, que afirmava que estes homens podiam suportar combates de três dias e noites, sem comer, beber ou dormir.

A mesma resistência era conhecida em suportar as torturas que certamente os esperavam, se fossem pegos vivos.

Ter seus membros esmagados por golpes repetidos de um martelo de ferro era um modo comum de execução, havia outros, mais raros, horríveis demais para serem mencionados.

Não é à toa que se tornou um brinde favorito entre os ladrões desejar um ao outro: Um tiro certeiro por bala.

Entretanto, o que era mais prejudicial ao seu senso de honra, era o pavor de ter suas cabeças, após a morte, expostas a todos os insultos que os turcos conceberiam.

O pedido do ferido ladrão aos seus camaradas era de cortar sua cabeça e levá-la para longe, na montanha, longe do alcance dos turcos. Assim, em uma de suas canções, o ladrão cantou:

“Ó meu irmão, corta-me a cabeça! Não deixe que os turcos que passam por lá vejam minha vergonha. Meus inimigos abanarão a cabeça e rirão. Mas minha mãe... Minha mãe morrerá de tristeza.”

Toda a honra era dada à morte daquele que fora morto em batalha. Ele era chamado de vítima e os sobreviventes lamentavam com orgulho, enquanto, aquele que morrera de doença em sua cama, era visto com uma espécie de vergonha e repugnância.

Os ladrões, no meio de sua vida selvagem e bárbara, preservavam muitos sentimentos cavalheirescos e nobres. Eles podiam ser simples, mas não vulgares, ferozes, mas nunca cruéis.

Eles eram cheios de delicada honra no tratamento de suas mulheres, mesmo quando estas eram as esposas ou filhas daqueles que tinham relações mais profundamente feridas e ultrajadas.

Um capitão ladrão, que insultou uma mulher turca, feita prisioneira, foi imediatamente morto por seus soldados, como indigno de comandar homens corajosos.

Suas canções estavam cheias de alusões sobre como suas prisioneiras femininas eram tratadas. Imagens da Virgem penduradas em alguma fenda rochosa fizeram sua capela, onde eles realizavam suas devoções com a maior piedade.

Alguns dos ladrões faziam peregrinações a Jerusalém a pé, mas com suas espingardas nas costas. Nenhum ladrão era conhecido por ser um renegado.

Os horrores os esperavam, por recusassem a religião islâmica, e seguindo fiéis a sua fé, vivos ou mortos, com ou sem cabeças. E, eles morreram por negarem deixar suas rochas selvagens e as gargantas da montanha que eram sua casa.

Nessas casas, as mulheres cozinhavam a carne de cabras, enquanto as crianças brincavam ao ar livre. Amigos secretos, escondidos nas planícies férteis, forneciam o vinho em abundância para lavar suas festas homéricas.

O Monte Olimpo era o porão especial dos ladrões, não tão alto como alguns dos Alpes ou dos Pirineus, e era inabitável no inverno, devido à neve.

Por vezes, eles eram obrigados a descer. Eles primeiro escondiam seus braços e munições, enrolando-as bem em pano de cera e cobrindo-os com pedras. Depois, se dispersavam e procuravam algum abrigo hospitaleiro entre os ilhéus jônicos, sob a proteção do governo veneziano.

Entretanto, eles nunca se misturavam com a população grega, pela qual tinham que passar. Eles preservavam seus trajes nacionais, porte orgulhoso, altivo e tez brilhante, o que tornou sua grande beleza ainda mais distinta.

Os gregos os olhavam com admiração, porque estes eram os homens que ousavam desafiar os turcos. Em cada casa grega pendia um retrato rude de algum herói ladrão, e sua fama era o tema principal de todas as canções populares.

Foram os ladrões que contribuíram principalmente para o estabelecimento do reino da Grécia.

Os gregos estremeceriam se pensassem que preservavam alguma das antigas superstições pagãs, no entanto, sem que soubessem, grande parte da crença pagã estava misturada com suas observâncias tradicionais.

Eles falavam de seus antepassados helênicos como gigantes, que outrora habitavam o país onde agora moravam. Estes gigantes eram tão altos quanto os choupos mais altos, e, se caíssem, morreriam, não conseguindo se levantar novamente.

O juramento mais terrível entre estes velhos pagãos, de acordo com a tradição grega moderna, era:

“Que eu caia, se não for assim!”

Muitas das superstições derivadas de seus antepassados eram comuns a todas as nações, como a necessidade de falar uma benção quando alguém espirrava. Isso se dava para evitar a entrada de um espírito maligno em tais momentos. Havia superstições sobre o mau-olhado, ou o presságio da morte pelo latido dos cães e assim por diante.

Todos sabiam como a província de Tessália era famosa nos tempos antigos por seus mágicos. Tessália ainda é a sede dos bruxos e feiticeiros, assim diz o relatório popular, que afirma que estes mágicos podem tirar a lua do céu por uma simples ordem, um remanescente das antigas invocações a Hécate[163], que transformava a lua em uma vaca, da qual extraia leite que tinha um poder irresistível de encantamento.

Em toda a Grécia eles acreditavam na feitiçaria. Os Hamadryads[164], as Ninfas[165], as Nereidas[166], e mais um punhado de seres misteriosos, sob os quais os antigos gregos personificavam os diferentes objetos da natureza, e acreditavam que cada árvore, rocha e fonte, tinha seu gênio guardião, que tomava qualquer forma que o agradasse, no entanto, mais frequentemente a de uma serpente ou de um dragão, e estava sempre atento para defender o objeto que era colocado sob seus cuidados, e com a existência do qual seu próprio espírito estava amarrado.

A peste era personificada, como creio ter lido também, assim como o caso em algumas das cidades do interior da Escócia. Creio que Hugh Miller[167] a mencionara em algum lugar, como uma mulher cega, indo de casa em casa, dando morte a todos que ela tocava, mas, como ela só podia apalpar pelos lados das paredes, aqueles que escapavam, ficavam no meio das ruas ou no centro dos quartos.

Esta era provavelmente uma superstição moderna. Todavia, novamente, a peste era personificada como o antigo destino em muitos lugares e não mais como uma mulher cega, mas sim, três. As Três Fúrias:

Uma, segurava um pergaminho, no qual ela escrevia o nome dos que estavam designados para morrer, a segunda, tinha a tesoura, com a qual ela ceifava o fio da vida, e a terceira carregava a vassoura da destruição, que varria os mortos de suas habitações.

As Fúrias não são mais conhecidas, mas cada uma fora lembrada em Eumenides[168], assim como na Escócia, as chamadas fadas, que roubavam crianças e faziam algumas travessuras e eram chamadas de boas.

Existe o mesmo desejo demonstrado de conciliar a varíola, que é até hoje, um terrível flagelo entre as famílias gregas.

A varíola é personificada como uma mulher que adora as crianças, porém, que pode ser apaziguada sendo invocada com um nome grego que significa aquela que misericordiosamente poupa. A varíola, de fato, é universalmente falada como Eulógia[169], a bem falada, aquela que todos são obrigados, sob pena de terríveis penalidades, a nomear com respeito.

Algumas de suas superstições eram uma mistura confusa de várias crenças antigas. Por exemplo, dizia-se que ao redor do cume do Monte Scardamyla, três belas donzelas dançavam perpetuamente. A princípio, elas mostravam beleza inigualável, mas tinham as pernas e os pés de cabras. Quem se aproximava daquele lugar encantado, primeiro, era obrigado a beijá-las, depois, era despedaçado e jogado para baixo das pedras.

Esta é evidentemente uma mistura de três crenças antigas: os Oreads, os Satyrs e as Graces.

A morte era personificada sob a forma de um velho homem austero, que vinha para convocar os vivos para deixar a luz do dia. Ele era chamado de Charon, embora fosse mais coerente chamá-lo de Mercúrio. Ele podia se transformar em um pássaro ou outro animal, de fato, ele tomava qualquer forma sob a qual ele quisesse surpreender melhor aqueles que não pensavam o suficiente sobre a morte. Ele não tinha poder sobre aqueles que estavam constantemente se lembrando de sua existência.

Estes eram alguns dos costumes e superstições gregas que o Senhor Fauriel contava antes de introduzir suas canções ao aviso do leitor.

A tradução das canções para o francês é literal, a partir dela, podemos julgar o raciocínio e sabor individual das canções.

Abruptas, selvagens e dramáticas eram elas, não muito diferentes, em vivacidade de pintura e rápida transição de uma parte para outra, que alguns dos poemas menores de Robert Browning[170], que eram cheios de cor, não havia descrição de sentimento, porque as ações dos personagens principais diziam claramente como se sentiram.

 

 

 


Boas Maneiras

Victor Cousin, o filósofo francês, empreendeu uma nova tarefa nos últimos anos, em uma continuação de seu estudo de metafísica, porém, ele começou a escrever as biografias de algumas das celebradas mulheres francesas do século XVII.

Ao fazer sua lista, ele teve o cuidado de distinguir entre as autoras e as mulheres de espírito. Classificou estas últimas, infinitamente mais elevadas em todos os pontos de vista.

A primeira de sua série, era Jacqueline Pascal, a irmã de Blaise, conhecida em Port Royal como a Irmã Eufêmia, uma mulher santa e pura.

A segunda, que o filósofo escolheu como tema para sua biografia, era aquela bela e esplêndida pecadora da Fronde, a Duquesa de Longueville, de cabelos lisos.

Ele desenhava os contornos puros e perfeitos do caráter de Jacqueline Pascal e com um lápis de traço severo e reto, ele pintava a adorável Duquesa com o carinho, a admirando e o exagero de um amante. Em consequência, alguém de Paris escreveu para ele o seguinte epitáfio:

“Aqui jaz Victor Cousin, o grande filósofo, apaixonado pela Duquesa de Longueville, que morreu um século e meio antes de seu nascimento.”

Mesmo os amigos insignificantes desta Duquesa tornam-se queridos e ilustres ele. Não faz muito tempo que ele contribuiu com um artigo sobre a Madame de Sablé para a Revue des Deux Mondes, que desde então, foi publicado separadamente, e que sugeriu os pensamentos e desejos que agora vou apresentar ao público paciente.

Esta Madame de Sablé foi, em seu auge, uma convidada habitual do Hotel Rambouillet, a soberba habitação que foi o centro da espirituosidade e do saber, assim como a sociedade pomposa e presunçosa de Paris, nos dias de Luís XIII.

Quando estas reuniões chegaram ao fim, após a morte de Madame de Rambouillet, e antes de Molière[171] transformar a tradição do mesmo, em requintado ridículo, houve várias tentativas de formar círculos que preservariam parte do refinamento monumental do Hotel Rambouillet.

A Madame de Sablé, uma dócil de nascença, inteligente, sem dúvida, por ser associada à Voiture, Madame de Sévigné e outros no grande hotel, cujas reuniões deviam ser deliciosas na época, embora, aquele perverso Molière pisara entre nós e eles, e só podemos ver essas cenas como ele queria.

Ela, amiga da resplandecente Duquesa de Longueville, teve reuniões semanais que o Senhor Cousin classificou muito acima dos sábados mais pretensiosos de Senhora de Scudéry.

Em resumo, a última página de suas memórias sobre a Madame de Sablé, onde nós, ingleses de fato, estamos aptos a elogiar a moral e a religião da pessoa, cuja vida escrevemos, é dedicada com perfeição e louvor.

A Madame de Sablé tinha todos os requisitos que lhe permitiam realizar estas reuniões com honra a si e prazer aos amigos.

Além deste feito coroador, a boa senhora francesa parecia ser bastante comum. Ela era bem-nascida, casada com um marido tranquilo, e, sem dúvida, teve seus pequenos flertes depois que ficou viúva. O Senhor Cousin falou sobre isso, entretanto, nunca foram escandalosos ou proeminentes perante o público.

Passada a meia-idade, ela começou o processo de fazer sua salvação, e inclinou-se para a religião. Se dedicou a comer coisas delicadas, apesar de seu Jansenismo[172], e tinha uma amiga, que a acompanhou durante toda a sua vida.

O Senhor Cousin nos dizia que ela não era notável em nenhuma coisa ou qualidade, e atribui a esse simples e único fato, o sucesso de sua vida.

Desde que li estas memórias de Madame de Sablé, penso muito e profundamente sobre o assunto.

No início, eu estava inclinado a rir da extrema importância que era dada a esta arte de receber pessoas. Pensando bem... Preciso dar um nome melhor, porque essa tradução não vai servir! Vamos dizer que a arte de fazer a sala. Oh! Esta frase é ainda pior, porque isso implica no estado e na reserva da realeza, então, chamaremos de: a arte de Sabléar.

Porém, quando pensei em minha experiência na sociedade inglesa, das noites temidas antes de chegarem os convidados, suspirei na lembrança, porque eram tão inefavelmente monótonas, percebendo que Sablé exigia, como o Senhor Cousin aludiu, a união de muitas qualidades excelentes e de pequenas graças não contestáveis.

Perguntei para alguns franceses se me dariam a receita, uma vez que parecia provável que fosse tradicional, se não ainda existente em sua nação.

Oh! Leitores dignos! Devemos descobrir a arte perdida do Sabléar. Sendo assim, disse a senhora francesa:

— Uma mulher para ser bem sucedida no Sabléar deve passar a juventude, mas não tocando o poder de atração. Ela deve fazer isso por seus modos doces e graciosos, seu tato rápido e pronto em perceber aqueles que não tiveram sua parte de atenção, ou desviar a conversa de qualquer assunto que possa dar dor a qualquer um dos presentes.

— Essas regras são boas na Inglaterra. — falei, e ela prosseguiu.

— Ela nunca foi proeminente em nada. Ela manteve o silêncio quando alguém falava. As bandeiras da conversa ela jogou para o lado, com o mesmo espírito com o qual noto que as jovens damas da casa, onde um baile é dado, ficam em silêncio até que os dançarinos estejam cansados, e depois saltam para o centro da sala, para continuar o espírito e a música, até que os outros estejam prontos para começar de novo.

— Mas... — falou o cavalheiro francês. — Mesmo neste momento, quando os assuntos para a conversa são procurados, ela aconselharia, em vez de ampliar perguntas ou dar suas próprias opiniões.

— Certamente! — concordou a senhora. — Madame Récamier, cujos salões foram os mais perfeitos deste século, sempre reteve suas opiniões sobre livros, homens ou medidas, até que, todos ao seu redor, falassem. Então, ela, por assim dizer, as coletou e harmonizou, dizendo uma coisa gentil aqui e outra ali. Falando sempre com seu senso calmo, até que as pessoas mais oprimidas aprendessem a entender o ponto de vista umas das outras, o que é uma grande coisa para os oponentes fazerem.

— O número de pessoas que você recebe é outra consideração. Eu diria não menos de doze ou mais de vinte. — continuou o cavalheiro. — As noites são designadas, digamos, semanal e quinzenalmente, no início de janeiro, que é a nossa estação. Coloque uma hora adiantada para abrir a sala. As pessoas são pegas em seu frescor, antes que fiquem exaustas por outras partes.

A senhora falou:

— De minha parte, prefiro apanhar meus amigos depois que eles deixam recepções mais grandiosas. Porque assim, os comentários, a sagacidade, a razão e a sátira que guardaram durante a noite de silêncio imposto ou de discursos cerimoniosos, serão bem aproveitados depois.

— Uma pequena sátira bem-humorada é um tempero muito agradável. — respondeu o cavalheiro. — Mas deve ser bem-humorada e os ouvintes também. A conversa deve ser geral, e não conversas separadas em um canto, pelo qual os ingleses tão frequentemente se distinguem. Você não entra na sociedade para trocar segredos com seus amigos íntimos, você vai para se tornar agradável aos presentes ali e, para ajudar a todos a passar uma noite feliz.

— Estranhos não devem ser admitidos! — afirmou a senhora, assumindo a tensão. — Eles não começariam de forma justa a conversa com os outros, eles ignorariam as alusões que se referem às conversas das noites anteriores e não entenderiam as expressões. Refiro-me àquelas declarações com relação com ocorrências ou os espirituosos do passado, comuns aos que têm o hábito de se encontrarem.

— Madame de Duras e Madame Récamier nunca fizeram avanços a nenhum estranho. Seus salões foram os melhores que Paris conheceu nesta geração. Todos os que desejavam ser admitidos, tinham que esperar e provar sua aptidão, sendo agradáveis em outro lugar, para ganhar seu diploma, por assim dizer, entre o círculo de conhecidos dessas senhoras, e, finalmente, era um grande favor a ser recebido em suas reuniões, após passarem nestes testes.

— Isso fez com que nestas reuniões houve a falta de muitas celebridades. — lamentou o cavalheiro.

— Oh! — exclamou a dama. — Celebridades! O que tem a ver com elas na sociedade? Como celebridades, elas são simplesmente estorvos. Não é porque um homem descobriu um planeta, que ele possa conversar agradavelmente, mesmo sobre seus próprios súditos, porque, muitas vezes, as pessoas são desafiadas por uma ação ou expressão que não podem compreender. O escritor de livros, por exemplo, não pode se dar ao luxo de falar vinte páginas por nada, de modo que, ou ele fica em profundo silêncio, ou dá meros detalhes de sua mente. Estou falando agora dele como uma mera celebridade, e justificando a sabedoria das senhoras de quem estávamos falando, em não procurar essas pessoas. Alguns de seus amigos foram as pessoas mais celebradas de sua época, mas eram tratados de igual maneira. Então... — suspirou ela, voltando-se para mim. — Acredito que vocês, ingleses, estragam a perfeição da conversa, ao terem suas salas iluminadas brilhantemente para uma noite, cujo encanto depende do que se ouve, como para uma noite em que a juventude e a beleza vão ser exibidas, entre flores, festões e ornamentos bonitos. Eu não teria uma sala que afetasse as pessoas em sua primeira entrada nela, mas há uma espécie de luz da lua em comparação à luz do sol, na qual as pessoas falam mais livre e naturalmente, onde as pessoas tímidas, entrarão em uma conversa sem o pavor de cada mudança de cor ou movimento involuntário sendo visto. Assim como somos sempre mais confidenciais sobre uma lareira do que em qualquer outro lugar, e, mulheres falam mais abertamente no quarto pouco iluminado na hora de dormir.

— Isso é sobre a timidez! — completou o cavalheiro. — Pessoas tímidas coram a face involuntariamente, um movimento impróprio do semblante, sobre o assunto que estão falando. Creio que estas pessoas não entrariam de nenhuma maneira na sociedade. Mas, como as mulheres estão muito mais sujeitas a esta fraqueza nervosa que os homens, a preponderância das pessoas em um salão sempre estará ao lado dos homens.

Penso que não ganhei mais informações sobre a arte perdida de meus amigos franceses. Vamos ver se minha própria experiência na Inglaterra pode fornecer mais ideias.

Primeiro, tomemos os preparativos a serem feitos antes que sua casa possa receber a sociedade.

É claro que não estou me referindo aos preparativos necessários para dançar ou as noites musicais, daquelas conversas agradáveis e relações sociais felizes.

Elas podem ser jantares, chás... Não importa como são chamadas as reuniões, desde que seu fim esteja definido. Dê um jantar em nome de Lúculo[173], contudo, tome cuidado para que haja algo, além da mera comida e vinho, para que sua engorda seja agradável na hora de comer e após, ser lembrada, caso contrário, é melhor empacotar as porções em um prato delicado, e enviar separadamente em bandejas de água quente, para que possam comer confortavelmente, escondidos atrás de uma porta, como Sancho Panza[174].

No entanto, não vejo o motivo para sermos como ermitões, porque imagino que haja uma graça na preparação, uma espécie de chamada festiva de trombeta, que é certa e apropriada para distinguir o dia em que recebemos nossos amigos dos dias comuns, não marcados por tais pedras brancas.

O pensamento e o cuidado que tomamos para que eles se coloquem diante do nosso melhor, pode implicar em alguma abnegação em nossos dias menos afortunados.

Estive em casas onde todos, desde a cozinheira até a anfitriã, trabalharam com prazer em duas frentes, porque os amigos estavam chegando, e tudo devia ser agradável, e precisava estar brilhante, limpo e bonito. Os preparativos feitos neste espírito acolhedor e hospitaleiro, não cansariam ninguém.

Sim! Gosto de um pouco de pompa, luxo e imponência que marcar os dias felizes em receber amigos como uma celebração.

Meus amigos provavelmente ficariam surpresos, alguns usam bonés e algumas perucas, se eu lhes fornecesse guirlandas de flores, à maneira dos antigos gregos, mas, creio que seja melhor colocar um honesto buquê de flores, em um vaso comum de cerâmica branca, ao lado de um épergne[175] de prata.

Uma flor ou duas, ao lado do prato de cada pessoa não estaria fora do caminho da gentileza, e, quanto as despesas, isso não importa.

Cozinheiros agindo no espírito simpático que descrevi, dariam o melhor de si, desde ferver bem as batatas, até enviar todos os pratos na melhor ordem possível.

Tenho uma ideia de que, quando for morar em na cidade que desejo, não antes do próximo Natal, terei uma espécie de aparador de água quente, como já vi em grandes casas, e que nada aparecerá na mesa, a não ser o que é agradável aos olhos.

Por mais simples que seja a comida, eu a faria para meus amigos, e teria o respeito de apresentá-la à mesa tão bem disposta quanto meus pobres meios permitissem, e para este fim, ao invés de uma variedade de pratos, eu dirigiria meus cuidados para alguns, como a carne de vaca e carneiro, e os gansos podem nos lembrar os pavões de Juno[176].

Agora, as flores como ornamento, afastariam nossos pensamentos ruins para se envolverem em sua beleza e fragrância únicas. Eu estava quase certo de que a Madame de Sablé tinha flores em seu salão, e, como ela mesma gostava de delicadezas, posso imaginar a suave benevolência de seu caráter, deliciando-se com alguns preparativos, feitos de manhã, para os amigos antecipados da noite.

Posso imaginar seus pães doces guisados em uma panela de prata, ou salada em suas mãos delicadas, gordas e brancas, não que eu as tenha visto, e perto dela, uma panela de prata.

Antes, eu era ignorante o suficiente para pensar que tais coisas só eram usadas na cozinha da Bela Adormecida, ou nos preparativos para o casamento de Riquet com o Topete[177], porém, me garantiram que existem tais coisas, e que elas conferem um sabor muito delicado, então, afirmo novamente que Madame de Sablé cozinhou pães doces para suas amigas em uma panela de prata.

Ela conhecia muito bem o verdadeiro valor de seus amigos. A panela de prata, na qual todos eles iriam se encontrar, o óleo, com seus vários ingredientes, suavizaria os sentimentos de todos.

“Dos pães doces, eles receberão das mãos de Sablé, de nenhum outro mais.”

Entretanto, parte do meu cuidado de antemão deve ir para o artigo de espera.

Não me importaria de não ter nenhum garçom, pimenta, sal, pão e condimentos ao alcance ou ao lado de todos.

Pequenas atenções de um convidado a outro, tendem a tirar o caráter egoísta do mero ato de comer, e, além disso, os convidados seriam, ou deveriam ser, muito bem-educados e delicados de tato.

Há algo gracioso e bondoso na pouca atenção com que um convidado ajuda silenciosamente o seu vizinho. Considero uma melhor abertura para a amizade, se meu vizinho desconhecido me passasse o sal em silêncio, ou entendesse que gosto de açúcar em minha sopa. Isso seria uma maneira melhor de apresentação que falar o nome completo e título.

Mas, para voltar ao tema da espera. Sempre acreditei que o encanto daqueles pequenos jantares famosos desde os tempos imemoriais das óperas, era que não havia uma espera formal ou um arranjo excessivamente cuidadoso da mesa, porque uma doce negligência permeava tudo, muito compatível com a verdadeira elegância.

A perfeição da espera é nomeada na história como o Gato Branco, onde, se você se lembra, o príncipe herói é esperado pelas mãos sem corpo, enquanto senta à mesa com o Gato Branco e é servido com aquele delicado fricassê de ratos. Por mãos sem corpo, está muito longe de significar mãos sem cabeça.

No verão passado, eu estava hospedado em uma casa servida por criados de fala mole e de mãos de veludo.

Um dia, o mordomo tocou uma colher com um garfo, o dono da casa olhou para ele como Júpiter teria olhado para Hebe, quando ela deu aquele passo desajeitado.

— Nenhum barulho, senhor! Por favor!

Nós, assim como o criado, fomos abafados no silêncio solene da sala.

Ainda assim, explosões, embates e barulhos na mesa lateral, perturbavam a conversa.

Agora penso nisso, Madame de Sablé tomara o Gato Branco por seu modelo, e, houve, evidentemente, a mesma facilidade ruidosa e graça sobre os movimentos, o mesmo ronronar, momentos felizes, inarticulados de satisfação, quando rodeados de circunstâncias agradáveis, foram pronunciados por ambos.

Minha boca regara antes no relato daquele fricassê de ratos, preparado especialmente para o Gato Branco, e o Senhor Cousin alude mais de uma vez ao amor de Madame de Sablé pela doçura.

A Madame de Sablé evitou a sociedade das mulheres literárias, e assim, tenho certeza, fez o Gato Branco. Ambos tinham um senso instintivo que era confortável e amavam o lar com afeto tenaz.

Penso que Madame de Sablé tinha esse toque, porque ela sabia como comandar um espetáculo. Você não vê a conexão entre o ciganismo e a arte de ser uma boa anfitriã e receber agradavelmente? Vejo, mas não tenho certeza se posso explicar isso.

Em primeiro lugar, os ciganos são pessoas de impulso rápido e prontas para a ação, entram em novas ideias e modos, envoltos em alegria, ardor e energia, sendo férteis em recursos para se eximirem das várias dificuldades de suas vidas errantes.

Eles devem ter um alto desrespeito pelas reuniões, e ainda assim dominam um poder de adaptação graciosa. Evidentemente, eles têm um senso vívido do pitoresco e um amor à aventura, que se mostra em ação e simpatia com os feitos alheios.

Agora, qual destas qualidades não era da Madame de Sablé?

Pelo que lemos da vida de sua contemporânea, Madame de Sevigné, vemos serem necessários expedicionários improvisados naqueles tempos, quando o pensamento da manhã fazia o prazer da noite, e, quando as pessoas se apoderavam de seus prazeres de:

“O ar superior irrompe em vida.”

Mais especialmente, se fosse necessário recorrer a alguma solução incomum, dando todo o sabor de um piquenique. Torrar pão em uma sala de visitas, coaxar um fogo quase extinguido com açúcar mascavo, jornais e foles, virar uma caixa de cabeça para baixo para virar um assento e cobrir com um pedaço de veludo, estas são as únicas coisas que podem nos chamar para um esforço inesperado.

Porém, vivi em outros tempos e lugares. Estive no coração e nas profundezas do País de Gales, umas três milhas da casa do alto xerife do condado, que estava dando um jantar em um determinado dia, para o cavalheiro com quem eu estava hospedado.

Ele estava saindo de sua casa em seu pequeno carriole[178] norueguês, e estávamos prestes a nos sentar para jantar, quando um homem subiu apressado.

Peixes, caça e aves. Eles tinham todas as iguarias de sua terra, mas o açougueiro do mercado mais próximo falhara com eles.

Depois que a sopa e o peixe foram retirados, houve uma longa pausa, a janta esfriara em seu passeio, e tinha que ser reaquecida, uma mensagem foi levada ao anfitrião, que imediatamente confiou sua perplexidade aos seus convidados, e perguntou se eles esperariam pela janta ou teriam a ordem mudada dos pratos, e comeriam o terceiro antes do segundo.

Todos desfrutaram do alegre dilema, o gelo estava quebrado, e tudo continuava agradável, onde havia uma mistura bastante heterogênea de política e opiniões.

Os jantares naquela época em partes do País de Gales eram um pouco regulamentados pela chegada dos pequenos veleiros, que, tendo descarregado sua carga em Bristol ou Liverpool, traziam de volta, compras comissionadas para as diferentes famílias.

Uma arca de laranjas para o Senhor Williams ou Senhor Wynn era um sinal seguro que um deles faria um jantar enquanto o ferro estava quente, porque deviam comer enquanto as laranjas estavam frescas.

Um homem cavalgou por todas as diferentes casas, quando algum fazendeiro planejou um evento para matar uma vaca, e seguia perguntando que parte cada família tomaria.

Os conhecidos visitantes viviam a dez ou doze milhas uns dos outros, separados por estradas ruins e montanhosas. A lua tinha sempre que ser consultada antes de emitir convites, e então, o modo de proceder era geralmente algo parecido com isto:

Os amigos convidados vinham jantar às cinco horas ou seis e meia da tarde. Estes eram sempre os que vinham de maior distância, porque os vizinhos mais próximos, surgiam mais tarde, no começo da noite.

Depois que os cavalheiros saíam da sala de jantar, o salão estava livre para a dança. Os fragmentos do jantar, preparados por cozinheiros da casa, eram retirados e o chá era dirigido para alguns convidados e os dançarinos continuavam alegremente, até o café da manhã das sete ou oito horas, depois cavalgavam para suas casas.

Nunca estive em uma dessas reuniões, embora, ficara em uma casa que recebia essas reuniões. Eu era considerado muito jovem, mas, pelo que ouvi, eram realmente encontros excessivamente agradáveis e sociáveis, apesar de não serem parecidos e terem o direito de ser classificados com os salões da Madame de Sablé.

Voltando ao fato de que um caráter ligeiramente cigano e improvisado, seja na anfitriã, nos arranjos ou nas diversões, acrescenta um ar agudo ao encanto, semelhantes aos agradáveis chás que acontecem em muitas casas por volta das cinco horas.

Lembro-me destes chás, que eram guardados em uma grande sala de estudos, geralmente o cômodo mais triste que se pode imaginar. Nunca vi isto em plena luz do dia.

Apenas sei que era alto e grande, e fomos a ela por uma longa galeria e uma vasta biblioteca, pela qual nunca passamos em nenhum outro momento, tendo a sala acessível às crianças em dias anteriores por uma escadaria privada, com grandes galhos de árvores, varrendo as janelas com um longo gemido, como se fossem torturados pelo vento. No pátio, dois veleiros irlandeses estavam prontos para se misturarem com os espanhóis estranhos e, um papagaio na sala, falava na escuridão em que seu poleiro estava colocado. As paredes da sala pareciam recuar como em um sonho, e, em vez delas, a cintilante luz de fogo pintou florestas tropicais ou fiordes[179] noruegueses, de acordo com a vontade de nossos conferencistas.

Sei que este chá era nominalmente privado para as senhoras, mas os cavalheiros entravam na maioria das vezes por acidente, porque o fogo precisava ser sacudido e troncos de madeira precisavam de reposição.

Então, havia uma chaleira preta, velha demais para ser usada na cozinha, que vazava e cuspia contra as chamas azuis e cor de enxofre, porém, a água de onde saía, fazia o melhor chá do mundo, que bebíamos em xícaras incomparáveis, as relíquias de vários conjuntos da sala.

Comemos pão e manteiga na escuridão com um vigor de apetite que desaparecera bastante no jantar bem iluminado das oito horas.

Quem comeu não sei, pois, corremos de nossos lugares ao redor da lareira para a mesa de chá, no crepúsculo, perto da janela, e, depois voltamos na ponta dos pés para ouvir uma das histórias das ilhas selvagens, encantadas com especiarias no arquipélago oriental ou cidades soterradas no extremo México.

O homem costumava olhar para o fogo, desenhar e pintar com palavras, de uma maneira perfeitamente maravilhosa, com uma arte sem igual.

Nosso anfitrião era cientista, um nome de alta reputação, ele também nos falou de maravilhosas descobertas, estranhas suposições, vislumbres em algo distante e totalmente onírico.

Seu filho estivera na Noruega, pescando, então, quando estava sentado após a caça, ele também falava de aventuras de uma forma natural e enérgica.

As meninas, ocupadas com a pesada chaleira, e com a fabricação de chá, por vezes, colocavam alguma palavra naquela conversa.

No jantar, o anfitrião não falou de nada mais inteligível que a matemática francesa. O herdeiro não fez um acordo infinito de nada sobre os Shakespeare e copos musicais daquele dia, e o viajante nos deu latitudes e longitudes, taxas de população, exportações e importações, com a maior precisão.

Lembrando da lareira e seu fogo brilhante, me faz lembrar de Madame de Sablé. Claro que eram de madeira, estando em Paris, mas acredito que, mesmo que ela tivesse vivido em um país de carvão, ela teria queimado madeira por preferência instintiva, como uma senhora que um dia conheci, que sempre ordenou que fosse criado um pedaço de carvão canelado se algum dia seus amigos parecessem silenciosos e abatidos.

Um fogo de lenha tem uma espécie de vida espiritual, dançante, de olhar de relance sobre ela.

É um companheiro do elfo, crepitando, sibilando, borbulhando, jogando fora seus lindos jatos de chamas vivas e multicoloridas.

Os melhores fogos de madeira que conheço são os de Keswick. Fazer lápis de chumbo é o negócio do lugar, as lascas de cedro para perfumar, e os desbastes do pinheiro fazem um fogo como a Madame de Sablé gostaria de fazer.

Os assentos seriam confortáveis, creio. Eles não seriam feitos de qualquer madeira, nem cobertos de forma muito magnífica, mas os corpos de seus amigos descansariam neles em atitudes simples e sem constrangimentos.

Ninguém pode concordar, empoleirado em uma cadeira que não oferece espaço para um apoio adequado. Desafio a sagacidade profissional, para continuar a pronunciar palavras em uma cadeira com as costas duras e eretas, ou com as pernas miseravelmente penduradas.

Não! As cadeiras da Madame de Sablé eram adequadas e provavelmente variadas para todos os gostos.

Imagino, da mesma forma, que ela tivesse aquele jeito plácido e bondoso, que nunca mostraria nenhum descontrole. Imagino também, que houvesse um acolhimento pronto para todos, mesmo que alguns chegassem um pouco mais cedo que o esperado.

Uma vez, fiquei muito impressionado com a criação perfeita de uma velha herbácea galesa, com quem bebi chá, um chá que afinal não era chá, porque era uma infusão de bálsamo e folhas pretas de groselha, com uma pitada de flor de lima para lhe dar um sabor peculiar. Ela tinha se gabado da delicadeza desta bebida para mim no dia anterior, e eu implorara para ser autorizado a ir beber uma xícara com ela.

A única desvantagem era que ela só tinha uma xícara, mas ela imediatamente se convenceu de que tinha dois pires, e ela usaria como xícara. Eu estava ansioso para chegar a tempo, por isso cheguei muito cedo.

Ela não fizera o pó e a fricção quando cheguei, mas não fez barulho. Ela ficou feliz em me ver, e calmamente deu as boas-vindas, embora eu tivesse vindo muito antes que ela desejava.

Ela me deu uma cadeira, se sentou com seus saiotes e avental. Falou comigo como se não tivesse um cuidado ou pensamento em sua mente, mas o prazer do tempo presente.

De um lado para o outro, ao mover-se pela sala, ela escorregou por trás da cortina, ainda conversando. Ouvi o respingo de água, e uma gaveta aberta, então, minha anfitriã emergiu abeiçada, limpa e agraciada, mas nem um pouco agradável ou à sua vontade do que fora durante a meia hora anterior em seu vestido de trabalho.

Há um conjunto de pessoas que vestem suas roupas agradáveis. Ali, mais uma vez, estudei o assunto e o resultado é que acho as pessoas mais agradáveis, desta descrição, na sociedade em seu segundo melhor vestido que em seus melhores vestidos. Estes últimos são novos e as pessoas de quem estou falando nunca se sentem completamente em casa neles, nunca perdem a consciência de finura incomum até que a primeira mancha fora feita.

Com seus melhores vestidos, eles vestem uma finura incomum de linguagem, parecem mudar de atitude e personalidade. E, ainda há alguns, muito longe de serem vaidosos, que nunca são agradáveis como quando têm uma ideia fraca e meio definida de que estão parecendo o seu melhor, não em finura, mas em ar, arranjo ou compleição.

Tenho a noção de que a Madame do Sablé, com seus bons instintos, estava ciente disso, e que havia um ou dois segredos sobre os móveis e a disposição da luz em seu salão, que se perdem nestes dias degenerados.

Ouvi, que cometemos um grande erro ao decorar nossas salas de recepção com todas as cores leves e delicadas, a profusão de ornamentos, e as manchas de nossos rostos, em sua figura humana, que nossos antepassados e os grandes pintores sabiam melhor, com seus fundos um tanto sombrios e pesados, aliviando ou jogando para fora em pleno relevo, a figura arredondada e a delicada tez de pêssego.

Imagino que o salão da Madame do Sablé foi decorado com uma profunda sobriedade de tons quentes, iluminado por flores, e pessoas alegres e animadas, em um vestido brilhante que se perderia hoje em dia contra nossas paredes de cetim, tapetes floridos, e dourados por toda a parte.

Então, de alguma maneira, a conversa deve ter fluido naturalmente em sentido ou em bobagem, como pode ser o caso. As pessoas iam à sua casa, bem preparadas para qualquer evento. Pode ser que a espirituosidade tenha se apresentado mais alto, cintilante, crepitante, saltando e chamando ecos por toda parte, ou que as pessoas falaram com toda sua força e sabedoria, sobre algum assunto grave e importante do dia, daquela maneira que entendemos como sério.

De qualquer forma, seja sério ou leve, as pessoas não subiam aos salões da Madame de Sablé com o propósito de ser um ou outro. Elas se deixavam levar pelo assunto da conversa e pelo humor do momento.

Visitei um grupo de pessoas que se esforçavam para ser racionais. Falavam o que eles chamavam de sentido, mas o que chamo de platitude, até que eu ansiava, como Southey[180], em seu livro titulado Doutor sair com uma palavra interminável, sem sentido, como um alívio para meu desespero de não pensar em mais nada que fosse sensato.

Teria me feito bem dizer, e eu teria começado de novo na direção racional. Mas, nunca o fiz. Afundei no silêncio inútil, que espero que fosse tomado pela sabedoria.

Deixe-me apenas dizer que há apenas uma coisa mais cansativa que uma noite em que todos tentam ser profundos e sensatos e tentam ser espirituosos.

Tenho uma sensação desagradável de esforço da falta de naturalidade em ambos os momentos, quando a tentativa eterna, mesmo quando bem-sucedida, de ser inteligente e divertido, é a pior das duas.

As pessoas tentam dizer coisas brilhantes ao invés de verdadeiras. Elas não apenas capturam o superficial e ridículo em outras pessoas e em eventos em geral, mas, de olhar constantemente para os sujeitos por piadas e sátiras, elas se tornam possuídas de uma espécie de suscetibilidade dolorosa, e sentem medo do que falam, e não ousam ceder a qualquer expressão de sentimento, nobre indignação ou entusiasmo.

Este cansaço é muito diferente do humor, que brota e força sua saída de forma irresistível, e suscita sorrisos, mas não muito distante das lágrimas.

Alguns amigos de Madame de Sablé também sabiam como narrar.

Muito simples, diz você?

Digo que não!

Acredito que a arte de contar uma história nasce com algumas pessoas, e estas a tinham na perfeição, entretanto, todas podem adquirir alguma experiência nela, antes de lançar-se no confuso, complexo e hesitante relato que as vezes se ouve, de eventos que não têm nem unidade, cor, vida, ou terminam neles.

Porém, todos falam de um caráter assumido, em vez de mostraram o que realmente são, porque isso ampliaria o conhecimento uns dos outros sobre as infinitas e belas capacidades da natureza humana.

Sempre que vejo os rostos sedados, com sua boa, mas ansiosa expressão, me lembro de que eu estava, muito tempo atrás, em uma festa como esta, com cada um mostrando sua sabedoria, e a transmitido para o bem da reunião e um ou dois tinham o senso de dever, sem qualquer interesse especial no assunto, de nos contar alguma nova descoberta científica, cujos detalhes estavam errados, como descobri depois. Se eles estivessem certos, seriam mais sábios que nós. Porque, ali, qualquer informação seria motivo para uma conversa saudável.

Diante disso, uma bela, audaciosa, de Gotham, que todos que a olhavam ficavam apaixonados, e, com um sério e hesitante assombro, ajoelhamo-nos em volta de uma mesa circular à sua palavra de comando.

Ela fez um círculo, pegando uma pena a partir de alguma almofada no sofá, e nos disse que o jogaria no ar, e qualquer um de nós que estivesse por perto, sopraria para evitar que a pena caísse sobre a mesa.

Ficamos surpresos com nossa própria obediência a este mandato ridículo e sem sentido, oferecido com uma imperiosidade graciosa, como se fosse demasiado real para ser disputado. Nos ajoelhamos, soprando com a máxima intencionalidade, parecendo um grupo de idosos.

— Tolos! — você diria.

Não! Meu caro leitor. Eu ia dizer:

— Quase querubins idosos!

Contudo, zombar de nós mesmos era melhor que nada.

Vou mencionar outra reunião, onde um jogo seria uma bênção.

Foi na casa de um comerciante muito respeitável. Fomos às quatro e meia da tarde e encontramos uma sala bem aquecida, com bloco sobre bloco de carvão não queimado atrás do fogo.

Sobre a mesa, havia uma bandeja com vinho e bolo, laranjas, amêndoas e passas, que experimentamos. Em meia hora chegou o chá, com pão e manteiga e três bolachas e meia.

Este foi um procedimento sério com chá, café, pães variados, aves frias, língua, presunto, carnes envasadas e não sei mais o quê.

O chá durou cerca de uma hora, depois, o bolo e a bandeja de vinho foram restaurados em seu lugar anterior.

O estoque de assuntos de interesse comum estava ficando baixo e, apesar de nossa boa vontade, ocorreram longos períodos de silêncio, produzindo uma quietude, o que fez com que nosso anfitrião atacasse nervosamente o fogo e o agitasse um brilho maior de calor intenso, e a anfitriã, invariavelmente se levantara em tais momentos, e nos exortava a comer outro pedaço de bolo.

Na primeira fatia, me diverti, na segunda, gostei, quando peguei a terceira, quase não consegui engolir, e a quarta urgiu e suspirei, na quinta, passou em minha mente a desconfortável parte da Viagem Sentimental de Sterne[181] onde ele alimenta um burro com macacos, e quando a da sexta chegou, me levantei para sair quase implorando, e ela surpresa e indignada, me saudou:

— Você certamente não vai antes do jantar! Certo?

Parei. Comi aquela ceia. Lebre assada, peru, presunto cozido, torta de maçã e queijo tostado.

Não admira que eu esteja velho antes do meu tempo. Porque envelheci muitos anos naquela noite.

Porém, aquelas boas pessoas estavam realmente se esforçando, gastando dinheiro para que a noite passasse agradável, mas a única maneira que eles faziam para divertir seus convidados, era dando-lhes bastante para comer.

Se pedissem a um de seus filhos, sem dúvida surgiriam meia dúzia de jogos, e jogaríamos quando nossos interesses comuns falharam, mas o resto da noite fora silenciosa.

Por que, em pequenos grupos de pessoas, onde as pessoas perderam o ânimo da conversa que se arrastara diante das horas, não podiam recorrer com mais frequência aos jogos?

Todos conheciam algum jogo de cartas. É claro que jogá-las bem, requer um pouco mais de esforço de intelecto do que citar o senso e a sabedoria de outras pessoas e falar sobre ciência. Mas acho que não é preciso tanta reflexão, memória e consideração, como é preciso para estudar a ciência do bem comer e beber.

Um profundo conhecimento deste ramo do aprendizado parece absorver todas as faculdades antes que ele fosse levado para qualquer coisa como perfeição.

Portanto, não considero os jogos como implicando tanto cansaço mental quanto um homem deve sofrer antes de estar qualificado para decidir sobre os pratos.

Uma vez, notei o olhar desgastado e ansioso de um famoso convidado, quando chamado por seu anfitrião, não menos ansioso para decidir sobre os méritos de uma salada, misturada por nenhuma mão, como você pode adivinhar, mas as do anfitrião em questão.

O convidado, doutor da arte de viver bem, provou, pausou e degustou novamente, então, com gentil solenidade, deu seu parecer condenatório.

Eu estava ao seu lado na mesa, e, lentamente virando seu rosto meditativo de lua cheia para mim, ele me deu a valiosa informação de que para comer uma salada na perfeição, alguém deveria ter coragem.

O anfitrião, assim por diante, levou todos os pratos para o convidado experimentar. Um olhar desastroso para sopa, enquanto franzia a testa para o peixe, e, mesmo que os vegetais estivessem lavados, fatiados, misturados e cozidos, tudo em um quarto de hora, ele ainda tinha o semblante tenso.

Me curvei como na presença de um mestre, e senti, que não era de se admirar, que sua cabeça estivesse careca e seu rosto fortemente enrugado.

Eu não disse nada sobre livros. Contudo, estou certo de que, se Madame de Sablé vivesse agora, eles seriam vistos em seu salão como parte de seus móveis indispensáveis, não trazidos para fora de sua biblioteca e espalhados aqui e ali, quando os amigos estavam chegando, mas como presenças habituais em sua sala, para manter uma sensação de calor, conforto e companheirismo.

Colocar os livros como uma espécie de preparação para uma noite, para fazê-la passar agradavelmente, está correndo um grande risco. Porque, em primeiro lugar, os livros são escolhidos por essas pessoas, e em tais ocasiões, mais pelo seu exterior que pelo interior. E, que eles são um mero material com o qual a sabedoria ou sagacidade se constrói. Então, se as pessoas não souberem como usar o material, elas não irão sugerir nada.

Imagino que a Madame de Sablé teria os volumes que ela estava lendo, ou aqueles que, sendo novos, continham qualquer assunto de interesse atual, deixados naturalmente perto de seus convidados. Eu também imaginaria que seus convidados não se sentiriam obrigados a falar continuamente, tivessem eles algo a dizer ou não, mas que haveria pausas de um silêncio não desagradável, uma escuridão silenciosa também, da qual eles teriam a certeza de que as pequenas estrelas brilhariam em breve.

Posso acreditar que em tais pausas de descanso, alguém abriria um livro, e pegaria uma frase sugestiva, e isso acenderia um novo fluxo de conversa. Entretanto, não posso imaginar nenhuma grande preparação para o que seria dito entre as pessoas, porque cada uma trazia o pensamento e sentimento individual.

Se as pessoas são realmente boas e sábias, sua bondade e sabedoria fluem inconscientemente, e se beneficiam como a luz do sol.

Portanto, livros para referência e sugestão improvisada, mas nunca livros para servir de textos para uma palestra.

As gravuras se enquadram em algo como as mesmas regras. Para alguns, dizem tudo, para mentes ignorantes e despreparadas, nada.

Lembro-me de notar isso ao observar como as pessoas olhavam para um livro muito valioso, pertencente a um conhecido meu, que continha retratos gravados e autênticos de quase todas as pessoas possíveis, desde o rei e o imperador, até mendigos e criminosos notórios, incluindo todos os homens, mulheres e atores famosos, cujas semelhanças seriam obtidas.

Para alguns, este portfólio deu alimento para observação, meditação e conversa. Trouxe diante deles toda a tragédia humana, variedade de cenários, fantasias e agrupamentos em segundo plano, repletos de figuras convocadas pela imaginação deles. Outros, os pegaram e os deitaram, simplesmente dizendo:

— Este é um rosto bonito!

— Oh! Que par de sobrancelhas!

— Vejam este vestido esquisito!

No entanto, afinal de contas, ter algo para se ocupar e olhar é um alívio e de uso para as pessoas que, sem estarem conscientes, estão nervosas por não estarem acostumadas com a sociedade!

Lembre-se, quando você, com suas ricas moedas de ouro de pensamento e seu nobre poder de expressão de escolha, olhar algumas gravuras insignificantes, você daria valor a Madame de Sablé, onde o fluxo simpático e intelectual da conversa levaria você e seus fragmentos dourados consigo, por sua força suave, irrequieta e gentil.

Fim.


Finalmente

O Doutor Brown era pobre, mas tinha ambições. Ele fora estudar sua profissão em Edimburgo, e sua energia, habilidade e boa conduta despertaram alguns professores.

Uma vez, apresentado às senhoras de boas famílias, sua aparência boa e modos agradáveis, fizeram dele um favorito universal, e, talvez, nenhum outro estudante recebera tantos convites para dançar ou fora tão frequentemente escolhido para preencher uma vaga de último momento na mesa de jantar.

Ninguém sabia quem ele era ou de onde ele surgira. Ele não tinha parentes próximos, como fora observado uma ou duas vezes, assim, ele evidentemente não fora prejudicado com conexões familiares ruins. Ele estava de luto por sua mãe, quando chegou à faculdade pela primeira vez.

Tudo isso foi recordado pelo Professor Frazer e por sua sobrinha Margaret, quando ela estava diante dele, em uma manhã em seu escritório, dizendo-lhe, com voz baixa, mas resoluta, que, na noite anterior, o Doutor James Brown a pedira em casamento e que ela aceitara, então, ele pretendia chamar o Professor Frazer, seu tio e tutor natural, naquela mesma manhã, para obter seu consentimento para seu noivado.

O Professor Frazer estava perfeitamente ciente, à maneira de Margaret, que seu consentimento era considerado como uma mera formalidade, já que sua mente estava formada, e ele teve, mais de uma vez, a oportunidade de descobrir quão inflexível ela poderia ser.

No entanto, ele também era do mesmo sangue, e se apegou às suas próprias opiniões, da mesma maneira obstinada. A consequência disso foi, com frequência, que o tio e a sobrinha argumentavam em amarguras mútuas de sentimento, sem alterar as opiniões um do outro, porém, o professor Frazer não podia se conter nesta ocasião, de todas as outras.

— Então, Margaret! Você vai ser uma mendiga, uma vez que, aquele rapaz, o tal Brown tem pouco ou nenhum dinheiro para pensar em se casar. Você seria a Senhora Kennedy, se quisesse!

— Eu não poderia, tio!

— Bobagem, criança! O Senhor Alexander é um homem agradável, de meia-idade, se você quiser... Bem, uma mulher faz o seu caminho, mas, se eu tivesse a noção de que este jovem estava entrando sorrateiramente em minha casa para convencê-la a gostar dele, o teria barrado antes que sua tia o convidasse para jantar. Ah! Você pode murmurar, entretanto, digo, nenhum cavalheiro jamais entraria em minha casa para seduzir os afetos de minha sobrinha, sem antes me informar de suas intenções e pedir minha autorização.

— O Doutor Brown é um cavalheiro, tio Frazer! Não importa o que pense sobre ele!

— É o que vamos ver! É o que vamos ver! Quem se importa com a opinião de uma menina doente de amor? Ele é um rapaz bonito, plausível, de bom endereço. Não pretendo negar sua capacidade. Porém, há algo nele que nunca apreciei, e agora está contabilizado. O Senhor Alexander... Ora! Ora! Sua tia ficará desapontada com você, Margaret! Você sempre foi uma garota obstinada. Este James Brown já lhe disse quem eram seus pais, o que faziam e de onde ele vem? Não pergunto sobre seu antepassado, já que ele não se parece com um rapaz que tenha antepassados, e você, uma Frazer de Lovat! Que vergonha, Margaret! Quem é este James Brown?

— Ele é James Brown, doutor em Medicina da Universidade de Edimburgo. Um jovem bom e inteligente, a quem amo de todo o coração. — respondeu Margaret, corando as bochechas.

— Maldição! É esse o modo de uma donzela falar? De onde ele vem? Quem são seus parentes? A menos que ele possa dar um bom relato de sua família e suas perspectivas, apenas vou lhe pedir que vá embora. Espero que entenda, Margaret.

— Tio! — os olhos dela se encheram de lágrimas quentes e indignadas. — Tenho idade para escolher o que quero! Você sabe que ele é bom e inteligente, senão, por que você o deixou tantas vezes visitar a sua casa? Me casarei com ele, e não com seus parentes! Além disso, ele é um órfão. Duvido que ele tenha algum parente com o qual mantenha algum vínculo. Ele não tem irmãos, nem irmãs. Não me interessa de onde ele vem.

— Quem era seu pai? — perguntou friamente o professor Frazer.

— Não sei! Por que me intrometeria em cada particular de sua família? Por que devo perguntar sobre quem era seu pai, qual era o nome de solteira de sua mãe ou quando sua avó se casou?

— Ora! Recordo-me que já ouvi a Senhorita Margaret Frazer falar muito a favor de uma longa linhagem de ancestrais sem manchas do passado.

— Esqueci sobre a nossa linhagem, suponho, quando falei assim. Simon, o Senhor Lovat, é um tio-avô digno de crédito para os Frazers! Se todas as histórias fossem verdadeiras, ele seria enforcado como um criminoso, ao invés de decapitado como um cavalheiro leal.

— Oh! Se você está determinada a sujar nossa família, então, que entre James Brown! Ficarei agradecido por ele concordar em casar com uma Frazer.

— Tio... — suspirou Margaret, chorando. — Não nos deixemos separar na raiva! Nos amamos. Você é bom para mim, assim como minha tia. Porém, dei minha palavra ao Doutor Brown, e devo cumpri-la. Vou amá-lo, mesmo que ele seja o filho de um lavrador. Não esperamos ser ricos. Ele tem algumas centenas para começar a vida, e tenho minhas próprias centenas por ano.

— Ora! Ora, criança! Não chore! Parece que você resolveu tudo sozinha! Por isso, lavo minhas mãos! Me livro de toda responsabilidade sobre este casamento. Você dirá à sua tia que arranjos fará com o Doutor Brown sobre o seu casamento, e farei o que você desejar no assunto. Mas, não envie o jovem a mim para pedir meu consentimento! Não o dou, nem o retenho. Seria diferente, se fosse o Senhor Alexander.

— Oh! Tio Frazer, não fale assim! Veja o Doutor Brown, e diga-lhe que você consente! Preciso de sua benção! Parece tão desolado ter que caminhar sozinha, como se ninguém fosse da família ou se importasse comigo.

A porta foi aberta e o Doutor James Brown foi anunciado. Margaret se apressou, e, antes que ele soubesse, o professor dera uma espécie de consentimento, sem fazer nenhuma pergunta ao jovem feliz, que se apressou a procurar sua noiva, deixando seu tio murmurando para si.

Tanto o Doutor quanto a Senhora Frazer se opunham tão fortemente ao noivado de Margaret, que não puderam deixar de mostrá-lo de maneira implicitamente, embora tivessem a graça de manter o silêncio.

Margaret sentiu ainda mais esta oposição que seu noivo não era bem-vindo. Seu prazer em vê-lo foi destruído pelo senso de frieza com que era recebido, e ela cedeu, de bom grado, ao desejo dele em um noivado curto, o que era contrário ao plano original deles, que era de esperar até que ele se estabelecesse em Londres, e com uma renda tal que tornasse seu casamento um passo prudente.

O Doutor e a Senhora Frazer não contrapuseram nem aprovaram. Margaret escolheria a oposição mais veemente que esta frieza. Entretanto, isso a fez o carinho ser redobrado ao seu noivo caloroso e simpático. Ela não falava com ele sobre o comportamento de seus tios. Porque, enquanto seu noivo aparentemente não percebesse, ela não o despertaria para aqueles olhares e múrmuros.

Margaret era uma garota prudente e sensata, embora acostumada a um grau de conforto na casa de seu tio, que quase se resumia ao luxo, porém, ela desistiria resolutamente desse luxo, quando a ocasião o exigia.

Quando o Doutor Brown foi para Londres para procurar e preparar seu novo lar, ela ordenou que ele não fizesse nada, além dos preparativos mais necessários para sua recepção. Porque ela superintenderia tudo o que lhe faltasse, quando chegasse.

Ele tinha alguns móveis antigos, armazenados em um armazém, que foram de sua mãe. Ele propôs vendê-los para comprar novos em seu lugar. Margaret o convenceu a não fazer isso e que os usasse. A casa do casal seria uma de estilo escocês, há muito ligada à família Frazer, que teria uma única criada e um servo, que o Doutor Brown contratou em Londres, logo após ter fixado sua residência.

Ele se chamava Crawford, que vivera por muitos anos com um cavalheiro fora do país, de caráter excelente, em resposta às perguntas do Doutor Brown.

Crawford era uma espécie de pau para toda obra e o Doutor Brown, em cada carta a Margaret, tinha alguma nova realização de seu servo para relacionar.

Isto ele fez com plenitude e entusiasmo, porque Margaret questionara ligeiramente sobre começar a vida de casados com um servo, mas cedera aos argumentos do Doutor Brown sobre a necessidade de manter uma aparência respeitável, porque ele não queria assustar seus pacientes com a aparência da velha Christie, que falava um inglês tão ininteligível.

Crawford era um carpinteiro tão bom, que podia colocar prateleiras, ajustar dobradiças defeituosas e consertar fechaduras.

Um dia, quando seu mestre estava muito ocupado para sair para o jantar, Crawford, improvisou uma omelete tão boa quanto a que o Doutor Brown provara em Paris, quando estava estudando lá.

Em resumo, Crawford era um homem de muitas qualidades, e Margaret estava convencida de que o Doutor Brown estava certo em sua decisão em ter um servo, mesmo antes que ela fosse respeitosamente saudada por Crawford, quando ele abriu a porta de sua nova casa para o casal, após sua curta viagem de casamento.

O Doutor Brown tinha muito medo de que Margaret pensasse que a casa estava nua e sem alegria, em seu estado meio mobiliado, uma vez que ele obedecera às injunções dela e comprado poucos móveis, além das poucas coisas que ele herdara de sua mãe.

Seu grandioso consultório estava completamente organizado, pronto para os pacientes, e foi bem calculado para causar uma boa impressão.

Havia um tapete no chão, que fora de sua mãe, que estava ainda em bom estado de conservação e dava ao consultório o ar de respeitabilidade que peças de móveis bonitas carregam quando parece não ser compradas apenas para a ocasião, mas são em algum grau, hereditárias.

A mesma aparência impregnou a sala. A mesa, comprada em segunda mão, o bureau[182], que fora de sua mãe, as cadeiras de couro, tão hereditárias quanto o bureau, as prateleiras que Crawford colocara para os livros médicos do Doutor Brown, um retrato na parede que dava um aspecto tão agradável à sala, que tanto o Doutor quanto a Senhora Brown pensaram, naquela noite, que a pobreza era algo tão confortável quanto a riqueza.

Crawford se aventurara a tomar a liberdade de colocar algumas flores no quarto, na sua humilde maneira de receber sua Senhora. Eram flores do final do outono, misturadas com a ideia do verão com toques de inverno, sugerida pelo pequeno fogo brilhante na grade.

Christie fez deliciosos scones[183] para o chá, e a Senhora Frazer compensara sua falta de genialidade, tão bem quanto podia, por marmelada e presuntos de carneiro.

O Doutor Brown queria mostrar conforto para Margaret, e quase com um gemido, ele olhava quantos quartos ainda estavam por mobiliar e o quanto faltava para ser feito, mas, ela riu do alarme dele para que ela não se decepcionasse com sua nova casa, e declarou que não gostaria de nada melhor que planejar e conseguir que, com seu talento para estofados e Crawford para marcenaria, os quartos fossem mobiliados como por magia, e nenhuma conta de dívida, que eram as consequências habituais do conforto, seria apresentada.

Porém, com a manhã e a luz do dia, a ansiedade do doutor Brown voltou. Ele viu e sentiu cada fenda no teto, cada mancha no papel, não para ele mesmo, mas para Margaret. Ele estava constantemente pensando e comparando a casa deles com a que ela deixara. Ele parecia firmemente com medo de que ela não se arrependesse de casar com ele.

Esta inquietação mórbida era o único inconveniente para sua grande felicidade, e, para acabar com isso, Margaret foi levada a despesas muito além de sua intenção original.

Ela comprou algumas peças, mas foi sozinha, porque se seu marido fosse às compras com ela, ele se sentiria miserável ao suspeitar que ela negava qualquer luxo para economizar. Ela aprendeu a evitar levá-lo às compras, porque, assim, ela escolheria a coisa mais barata, embora fosse a mais feia, e deste modo, ela dizia calmamente ao comerciante que não podia pagar isto ou aquilo. Então, quando ela voltava da loja depois de uma dessas ocasiões, ele falava:

— Oh! Margaret! Eu não devia ter me casado com você. Você deve me perdoar, porque te amo, sou egoísta e te prendo em coisas tão miseráveis!

— Perdoar você, James? — suspirou ela. — Por me fazer tão feliz? Por que você pensa que me importo com luxo? Não volte a falar assim, por favor!

— Oh! Margaret! Peço que me perdoe.

Crawford era tudo o que ele prometera ser e mais que se desejava. Ele era a mão direita de Margaret em todos os seus planos domésticos, de uma maneira que irritava Christie.

Esta rixa entre Christie e Crawford foi, de fato, o maior desconforto da casa. Crawford foi silenciosamente triunfante em seu conhecimento superior de Londres em ajudar sua senhora, e no consequente privilégio de ser frequentemente consultado.

Christie estava sempre lamentando sobre a Escócia, e insinuando que Margaret negligenciara alguém que seguira sua sorte em um país estranho. Reclamando que sua senhora fazia de um estranho seu favorito, porque ele não era tão bom quanto aparentava, como ela, às vezes, afirmava.

Entretanto, como ela nunca trouxe nenhuma prova de suas vagas acusações, Margaret não optou por questioná-la, afirmando ser apenas uma crise de ciúmes e isso logo passaria. Portanto, as quatro pessoas que formavam esta família, viviam juntas em harmonia tolerável.

O Doutor Brown estava mais que satisfeito com sua casa, seus servos, suas perspectivas profissionais e com sua pequena e enérgica esposa.

Margaret, por vezes, ficava surpresa pelo temperamento de seu marido, mas a tendência disso não era enfraquecer seu afeto, mas chamar a atenção para um sentimento de piedade pelos seus sofrimentos mórbidos e suspeitos, uma piedade pronta para ser transformada em simpatia, assim que ela pudesse descobrir a causa definitiva para a ocasional depressão de espírito de seu marido.

Christie não fingiu gostar de Crawford, porém, como Margaret recusou-se calmamente a ouvir seus resmungos e descontentamento e, como o próprio Crawford era quase dolorosamente solícito para obter a boa opinião da velha escocesa, não houve nenhuma ruptura entre eles.

No geral, o popular e bem-sucedido Doutor Brown era, aparentemente, a pessoa mais ansiosa de sua família. E não havia uma grande causa para isso, considerando seus assuntos financeiros.

Por um daqueles felizes acidentes que, às vezes, levantam um homem de suas lutas e o levam para um terreno tranquilo e livre de problemas, ele deu um grande passo em seu progresso profissional, e sua renda proveniente desta fonte seria tão grande, quanto Margaret e ele previam em seus piores momentos, com a probabilidade de um aumento constante, com o passar dos anos.

Devo explicar melhor:

Margaret tinha bastante, mais de cem por ano, às vezes, de fato, seus dividendos chegavam a cento e trinta ou quarenta libras, mas sobre isso ela não ousou falar.

O Doutor Brown tinha dezessete centenas dos três mil deixados por sua mãe, e disso, ele teve que pagar por alguns dos móveis, apesar de todas as súplicas de Margaret para não serem compradas e as contas dessas compras chegaram cerca de uma semana antes do momento em que os eventos que vou narrar aconteceram.

É claro que estas contas eram mais que a prudente Margaret esperava, e ela estava um pouco desanimada por saber quanto dinheiro seria necessário para liquidá-las. Contudo, como ela notara muitas vezes antes, qualquer causa real de ansiedade ou decepção não parecia afetar a alegria de seu marido.

Ele riu de sua consternação devido às contas, sacudiu o dinheiro do trabalho daquele dia em seus bolsos, contou para ela e calculou a renda provável do ano, a partir dos ganhos daquele dia.

Margaret pegou os guinéus e os levou para o andar de cima, em silêncio, para a escrivaninha do marido, tendo aprendido a difícil arte de tentar engolir seus cuidados caseiros na presença de seu marido. Quando ela voltou, ele somara as contas.

— Duzentas e trinta e seis libras! — confirmou, arrumando as contas, para limpar a mesa para o chá, quando Crawford trouxe as xícaras. — Ora! Não creio que seja tanto assim! Eu esperava mais dívidas. Amanhã, irei à cidade para vender algumas ações e deixarei seu pequeno coração à vontade, minha querida! Agora, esqueça isso e tome uma xícara de chá. Ganhar é melhor que economizar. Estou ganhando uma taxa boa. Dê-me um bom chá, Maggie! Porque tive um bom dia de trabalho.

Eles estavam sentados no consultório do médico, para uma melhor economia de fogo. Porém, para aumentar o desconforto de Margaret, a chaminé soltou fumaça naquela noite. Ela segurara a língua de qualquer palavra repugnante, pois, se lembrava do velho provérbio sobre uma chaminé fumegante e uma esposa repreendida, entretanto, ela estava mais irritada com as fumaças que vinham sobre seu belo vestido branco do que se importava em mostrar, e foi, em um tom mais agudo que o habitual ela pediu a Crawford que tomasse cuidado e mandasse varrer a chaminé.

Na manhã seguinte, tudo desaparecera brilhantemente. Seu marido a convencera de que seus assuntos financeiros estavam indo bem, o fogo ardia na hora do café da manhã, e o sol não despontado, brilhava sutilmente nas janelas.

Margaret ficou surpresa quando Crawford lhe disse que não encontrara um homem para limpar a chaminé naquele amanhecer, mas que ele tentara arranjar as brasas na grelha, de modo que, pelo menos, naquela manhã, sua senhora não se aborreceria e, no dia seguinte, ele teria o cuidado de garantir uma varredura.

Margaret agradeceu-lhe e aceitou o que ele falara. Ela decidiu ir e pagar todas as suas contas, e enviar algumas cartas na manhã seguinte, e seu marido prometeu ir à cidade e fornecer-lhe o dinheiro.

Ele lhe mostrou as notas naquela noite, trancou-as em seu escritório, e na manhã seguinte, elas desapareceram!

O Doutor Brown foi até sua sala de jantar, e, cantando uma velha música escocesa ele saiu para ir ao escritório. Ele não voltou do escritório e Margaret foi procurá-lo. Ele estava sentado na cadeira mais próxima à escrivaninha, encostando sua cabeça nela, em uma atitude de profundo desânimo.

Ele não parecia ouvir os passos de Margaret, pois, ela se colocou entre os tapetes enrolados e cadeiras empilhadas, uma sobre a outra, e teve que tocá-lo no ombro, antes de despertá-lo.

— James! James! — chamou em alarme.

Ele olhou para ela, quase como se não a reconhecesse.

— Oh! Margaret! — lamentou, pegando as mãos dela, e escondeu o rosto dele no pescoço da esposa.

— Caríssimo amor, o que é isso? — perguntou ela, pensando que ele estivesse doente.

— Alguém esteve no meu escritório, ontem à noite! — gemeu, sem olhar para cima, nem se mexer.

— Levou o dinheiro? — questionou Margaret, em um instante compreendendo o que acontecera.

Foi um grande golpe, uma grande perda, muito maior que as poucas libras extras, com as quais as contas excederam seus cálculos. No entanto, parecia que ela suportaria melhor isso que seu marido.

— Oh! Querido! Isso é ruim, mas afinal de contas... Você sabe! — falou, tentando levantar o rosto dele, para que ela pudesse olhar em seus olhos, e dar-lhe o incentivo de seu honesto amor. — No início, pensei que você estava mortalmente doente, e todas as possibilidades terríveis correram por minha mente! Então, é um alívio tão grande, descobrir ser apenas dinheiro!

— Somente dinheiro? — ele ecoou com tristeza, evitando seu olhar, como se não suportasse mostrar-lhe o quanto o sentia.

— E, afinal... O ladrão não pode ir longe. Porque ele estava aqui ontem à noite. Devemos pedir que Crawford chame a polícia. Você não guardou os números das notas?

A campainha tocou enquanto ela falava.

— Não! Não as memorizei, nem fiz anotações sobre.

Uma ajudante de Christie apareceu na porta com seu balde de água quente. Margaret olhou em seu rosto, como se estivesse lendo culpa ou inocência. Ela era uma protegida de Christie, uma viúva honesta, decente, com uma grande família para manter pelo seu trabalho, esse era o caráter no qual Margaret a engajara para o serviço.

Medrosa em seu vestido, porque não podia poupar dinheiro ou tempo para estar limpa, sua pele parecia saudável e cuidada, ela tinha uma aparência simples e não parecia de forma alguma assustada, nem surpresa ao ver o Doutor e a Senhora Brown de pé, no meio da sala, em perplexidade e angústia desagradáveis.

Ela se dedicou a limpeza sem tomar nenhuma nota em particular sobre eles. As suspeitas de Margaret se estabeleceram ainda mais distintamente no homem que limpara a chaminé, mas ele não teria ido longe, as notas mal teriam entrado em circulação, porque a soma não seria gasta por tal homem em tão pouco tempo, e a restauração do dinheiro foi seu primeiro e único objeto.

Ela mal tinha um pensamento para as tarefas subsequentes, tais como a acusação do infrator e as consequências do crime.

Enquanto suas energias estavam voltadas para a rápida recuperação do dinheiro, e rapidamente revendo as medidas necessárias a serem tomadas, seu marido sentou-se, derramado em sua cadeira, como dizem os alemães, e nenhuma força nele se manteve em qualquer atitude que exigisse o menor esforço. O rosto afundado, miserável, com aquele prenúncio das linhas de idade que a aflição repentina é apta a chamar os rostos mais jovens e suaves.

— Precisamos de Crawford! — exclamou Margaret, puxando o sino novamente com veemência.

E em um instante ele apareceu à porta.

— Oh! Crawford!

— Há algum problema, minha Senhora? — perguntou o servo, como se estivesse alarmado em uma incomum decomposição por seu violento chamado. — Eu acabara de virar a esquina com a carta que o mestre me deu, ontem à noite, para ir ao correio, e, quando voltei, Christie me disse que a senhora me chamara. Peço desculpas pela demora, mas apressei-me o mais que pude! — e, de fato, seu fôlego chegou rapidamente, com seu rosto cheio de ansiedade penitente.

— Oh! Crawford! Receio que o varredor da chaminé entrara no escritório de seu mestre e levado todo o dinheiro que ele colocou lá na noite passada. De qualquer forma, ele se foi. Você o deixou sozinho na sala?

— Não posso afirmar, senhora! Talvez, tenha o deixado. Sim! Creio que sim! Lembro-me agora... Eu tinha meu trabalho a fazer e pensei que a ajudante ficaria lá. Fui para minha despensa, e algum tempo depois que Christie veio até mim, reclamando que a Senhora Roberts estava atrasada, percebi que ele estava sozinho. Mas, querida senhora, quem pensaria haver tanta maldade nele?

— Como foi que ele entrou no escritório? — questionou Margaret, voltando-se para seu marido. — A fechadura estava quebrada?

Ele se despertou, com aquele acordar do sono doentio.

— Suponho que eu virara a chave sem fechá-la ontem à noite. A escrivaninha estava fechada, não trancada, quando fui até ela nesta manhã. O cadeado foi aberto. — ele recaiu em um silêncio inativo e pensativo.

— De qualquer forma, não adianta perder tempo em perguntas agora. Vá, Crawford! O mais rápido que puder, e traga um policial. Você sabe o nome do homem que limpou a chaminé, é claro! — acrescentou ela, enquanto Crawford se preparava para deixar a sala.

— Sinto muito, mas acabei pegando o primeiro que estava passando na rua. Se eu pudesse saber...

Margaret se afastara com um gesto impaciente de desespero. Crawford foi, sem mais uma palavra, procurar um policial.

Em vão, sua esposa tentou persuadir o Doutor Brown a provar o café da manhã, e uma xícara de chá era tudo o que ele conseguira engolir, e isso foi tomado apressadamente, para limpar sua garganta seca, enquanto ele ouvia a voz de Crawford falando com o policial, a quem ele conduzia.

O policial ouviu tudo e disse pouco. Depois, veio o inspetor. O Doutor Brown parecia deixar toda a conversa com Crawford, que aparentemente estava confortável naquela situação.

Margaret ficou infinitamente aflita e consternada com o efeito que o roubo tinha sobre as energias de seu marido.

A provável perda de tal soma já era suficientemente ruim, mas havia algo tão fraco e de caráter tão pobre, em afetar tão fortemente seu marido, a ponto de matar toda energia e destruir toda fonte esperançosa? Margaret não ousava definir seu sentimento, nem a causa disso, porque ela tinha o fato diante de si, perpetuamente. Se ela fosse julgar seu marido apenas a partir daquela manhã, ela aprenderia a confiar somente em si, em todos os casos de emergência.

O inspetor se voltou repetidamente de Crawford para Doutor e Senhora Brown, para obter respostas às suas perguntas. Foi Margaret que respondeu, com frases curtas e concisas, muito diferentes das longas respostas de Crawford, envolvendo explicações minuciosas.

O inspetor pediu para falar a sós com a Senhora Brown. Ela o seguiu até a sala, passando pelo ofendido Crawford e seu marido desanimado.

O inspetor deu um olhar aguçado para a ajudante, que continuava a sua rotina com indiferença, a mandou para fora da sala e depois, perguntou a Margaret de onde Crawford veio, quanto tempo ele vivera com eles, e várias outras perguntas, todas, mostrando a direção que suas suspeitas tomaram, assustando Margaret, mas ela respondeu rapidamente a todas as perguntas e, no final, observou de perto, o rosto do inspetor, esperando pelo reconhecimento da suspeita.

Ele conduziu o caminho de volta para a outra sala, sem uma palavra, no entanto, Crawford saíra, e o Doutor Brown estava tentando ler as cartas da manhã, que acabaram de ser entregues, mas suas mãos tremiam tanto, que ele não conseguia ver uma linha.

— Doutor Brown... — disse o inspetor. — Tenho poucas dúvidas de que seu criado cometera este roubo. O julgo por toda sua maneira e ansiedade em contar a história. Em tentar lançar suspeitas sobre o homem que limpara a chaminé, cujo nome, nem morada ele pode dar, pelo menos ele diz que não. Sua esposa nos diz que ele já saiu de casa nesta manhã, mesmo antes de chamar um policial, assim, não há dúvida que ele encontrou meios para esconder ou descartar o dinheiro, e você diz que não sabe os números das notas. No entanto, isso provavelmente pode ser averiguado.

Neste momento, Christie bateu à porta e, em um estado de grande agitação, exigiu falar com Margaret. Ela levantou um estoque adicional de circunstâncias suspeitas que incriminavam seu companheiro de serviço.

Ela esperava ser apontada por iniciar a ideia da culpa de Crawford, e ficou bastante surpresa ao ser ouvida com atenção pelo inspetor.

Isto a levou a contar muitas outras pequenas coisas, todas com relação a Crawford, que pelo pavor de ser considerada ciumenta e briguenta, a levara a esconder de seu mestre. No final de sua história, o inspetor disse:

— Não pode haver dúvidas sobre o que devemos fazer agora. Senhor! Nos dê a autorização para levar o seu criado. Ele será levado perante o juiz, e há provas suficientes para que ele ficará detido por uma semana, durante a qual poderemos rastrear as notas, e deixá-lo preso.

— Devo acusar meu criado? — perguntou o Doutor Brown, quase pálido. — Para mim, uma séria perda de dinheiro, mas haverá as despesas adicionais da acusação, a perda de tempo. Oh!

Ele parou e viu os olhos indignados de sua esposa, e encolheu-se de seu olhar de reprovação inconsciente.

— Sim, inspetor! O entrego. Faça o que quiser. Faça o que é certo! É claro que assumo as consequências. Assumimos as consequências! Não é verdade, Margaret? — sua voz estava séria, mas baixa, da qual Margaret achou melhor não considerar.

— Diga-nos exatamente o que fazer. — disse ela, muito fria e silenciosamente, dirigindo-se ao policial.

Ele deu as orientações necessárias quanto ao atendimento deles, no escritório da polícia, e trazendo Christie como testemunha. Depois, o inspetor foi embora para tomar medidas para prender Crawford.

Margaret esperava ouvir sons de comoção na casa, se, de fato, o próprio Crawford não tivesse tomado o alarme e escapado. Mas, quando ela sugeriu a fuga ao inspetor, o homem sorriu, dizendo quando ouviu pela primeira vez a acusação, ele colocara um policial à vista da casa, para observar toda a entrada ou saída, de modo que o paradeiro de Crawford logo seria descoberto, se ele tentasse escapar.

A atenção de Margaret foi dirigida ao seu marido. Ele estava fazendo preparativos apressados para partir em sua ronda de visitas, e, evidentemente, não desejava ter nenhuma conversa com ela sobre o assunto do evento da manhã.

Ele prometeu estar de volta às onze horas, antes disso, o inspetor lhes assegurou que sua presença não seria necessária. Uma ou duas vezes, o Doutor Brown disse, como se para si:

— É algo miserável!

De fato, Margaret sentiu ser assim, e, que a necessidade de falar e agir imediatamente terminara. Ela começou a imaginar ser muito dura no sentimento comum, enquanto não sofrera como seu marido, ao descobrir que o criado, que eles aprenderam a considerar como um amigo, e a olhar como tendo seus interesses tão calorosamente no coração, era, com toda a probabilidade, um ladrão traiçoeiro.

Ela se lembrou de todas as suas belas marcas de atenção para com ela, desde o dia em que ele a acolhera em sua nova casa com seu humilde vaso de flores, e no dia anterior, quando, vendo o cansaço dela, ele sem que ela pedisse, fez uma xícara de café, café como nenhum outro.

Não era de se admirar que seu marido sentisse esta descoberta de traição de maneira aguda. Era ela a dura e egoísta, pensando mais na recuperação do dinheiro que na terrível decepção de caráter, se a acusação contra Crawford fosse verdadeira.

Às onze horas, seu marido voltou. Christie pensara na ocasião de aparecer no escritório de polícia, digno de suas roupas de domingo. Margaret e seu marido, pareciam tão pálidos e tristes como se fossem os acusados e não os acusadores.

O Doutor Brown encolheu-se de encontrar os olhos de Crawford, quando foram colocados frente a frente. No entanto, Crawford estava tentando, Margaret estava certa disso, chamar a atenção de seu mestre. Então, ele olhou para Margaret com uma expressão que ela não conseguia entender.

De fato, todo o caráter de seu rosto fora mudado. Do olhar calmo e suave de obediência atenta, ele assumira uma insolente e ameaçadora expressão de desafio, sorrindo ocasionalmente, da maneira desagradável, quando o Doutor Brown falara da escrivaninha e de seu conteúdo.

Ele ficou em prisão preventiva por uma semana, mas, as provas ainda estavam longe de ser conclusivas. A fiança foi oferecida por seu irmão, um respeitável comerciante, bem conhecido em sua vizinhança, e a quem Crawford enviara um pedido de ajuda, devido à sua prisão.

Então, Crawford estava novamente à solta, para desgosto de Christie, que tirou suas roupas de domingo, ao voltar para casa, com o coração pesado, rezando que não fossem todos assassinados em suas camas, antes que a semana acabasse.

É preciso confessar que Margaret não estava totalmente livre dos medos da vingança de Crawford, porque seus olhos avistaram a malícia e vingança dele para com ela e seu marido, enquanto eles davam suas provas diante do policial.

Entretanto, sua ausência no lar deu a Margaret o suficiente para evitar que ela vivesse em temores tolos. O afastamento dele fez um vazio terrível em seu conforto diário, que nem Margaret, nem Christie, podiam preencher, e era necessário que tudo continuasse bem, porque os nervos do Doutor Brown receberam um tremor tão grande ao descobrir a culpa de seu servo de confiança favorito, que Margaret foi levada, às vezes, a temer uma doença grave.

Ele se movia sobre o quarto à noite, gemendo, quando pensava que ela estava dormindo, e pela manhã, ele exigia a máxima persuasão para sair e ver seus pacientes.

O Doutor Brown estava pior que nunca, após consultar o advogado que contratara para conduzir a acusação. Havia, como Margaret percebeu, algum mistério no caso, já que ele avidamente pegou suas cartas do correio, indo até à porta, assim que ouviu a batida, e escondendo dela, suas instruções.

Com o passar da semana, sua miséria nervosa aumentou.

Uma noite, as velas não foram acesas, ele estava sentado em frente ao fogo, em uma atitude indiferente, descansando a cabeça sobre sua mão, que se apoiava em seu joelho. Margaret decidiu sondar e descobrir a causa da ferida que ele escondeu com cuidado constante. Ela pegou um banquinho e sentou-se aos pés dele, pegando a sua mão na dela.

— Ouça, querido James! Vou contar uma velha história que uma vez ouvi. Ela pode lhe interessar. Havia dois órfãos, menino e menina, embora, eles fossem um jovem homem e uma jovem mulher em anos. Eles não eram irmãos, e se apaixonaram, da mesma maneira tola e carinhosa que você e eu nos apaixonamos, você se lembra? Bem... A menina estava entre seu povo, mas o rapaz estava longe do seu, se é que ele tinha algum vivo. Mas a garota o amava tanto, que, às vezes, ela pensava estar feliz por ele não ter ninguém para cuidar dele, mas, apenas ela. Seus amigos não gostavam dele tanto quanto ela, porque, talvez, fossem pessoas sábias, sérias e frias, e ela, ouso dizer, era muito tola. Eles não queriam que ela se casasse com o rapaz, o que era apenas estupidez deles, pois, não tinham uma palavra a dizer contra ele. Entretanto, cerca de uma semana antes do dia do casamento estar marcado, eles encontraram algo... — ela viu a mão de seu marido, que tentava se soltar de sua mão e continuou: — Meu querido amor, não tire sua mão! Não trema, apenas escute! A tia da menina veio até ela e falou que ela devia desistir de seu amor, porque o pai dele cometera um crime e o filho carregava aquele fardo patriarcal. O casamento não poderia acontecer. Mas, a garota se levantou e disse que se ele conheceu aquela grande tristeza e vergonha, ele precisa ainda mais do meu amor. A menina falou que não ia deixá-lo, nem abandoná-lo, mas amá-lo ainda mais. E, cobrou de sua tia, uma benção. Eu realmente creio que aquela garota assustou sua tia, de alguma forma estranha. Porém, quando foi deixada sozinha, ela chorou longa e tristemente, por pensar qual sombra repousava sobre o coração daquele que ela tanto amava, e ela queria se esforçar para aliviar sua vida, e tirar dele aquele fardo. — ela terminara, enquanto ele inclinava sua cabeça sobre o ombro dela e chorava as lágrimas terríveis.

— Deus te abençoe! — exclamou ele longamente. — Você sabe tudo, e não se encolhe de mim. Oh! Que covarde miserável e enganoso eu fora! Sofri! Sim! Sofri o suficiente para enlouquecer, e, se eu fosse apenas corajoso, pouparia todos destes doze longos meses de agonia. Mas, é certo que eu devia ser punido. E, você sabia disso antes mesmo de nos casarmos! Por que não falou?

— Eu não podia falar, porque você teria rompido seu noivado comigo. Você teria rompido, sob circunstâncias semelhantes, se nossos casos fossem invertidos?

— Não sei... Talvez eu fugisse, pois, não sou tão corajoso, bom e forte como você, minha Margaret. O que eu faria? Não sei. Deixe-me dizer-lhe mais... Andamos, minha mãe e eu, agradecidos por nosso nome ser tão comum, mas nos encolhendo de toda alusão, de uma forma que ninguém podia entender. Viver em uma cidade da corte era uma tortura. Papai era filho de um clérigo digno, bem conhecido de seus irmãos... Mas ele cometeu um grande erro. Eu tinha que ser educado. Nos mudados para outra cidade, pois, minha mãe não suportava separar-se de mim, e fui enviado para uma escola diurna. Éramos muito pobres naquele tempo... A esposa e filho de um condenado. Mas, quando eu tinha uns catorze anos, meu pai morreu na prisão, deixando uma grande fortuna. Tudo isso veio até nós. Minha mãe se calou, chorou e rezou por um dia inteiro. Então, ela me chamou e aconselhou. Nos comprometemos solenemente a doar o dinheiro para alguma instituição de caridade, assim que eu fosse legalmente responsável pela herança. Até então, os juros eram cobrados, a cada centavo, embora, às vezes, estivéssemos em grande angústia por dinheiro. Minha educação custava tanto, mas, como poderíamos dizer que forma o dinheiro fora acumulado? — ele deixou cair sua voz. — Logo que eu tinha vinte e um anos, os jornais postaram com admiração sobre o doador desconhecido de certas somas. Detestei os elogios. Me encolhi de toda a lembrança de meu pai. Lembrei-me dele vagamente, porém, ele estava sempre tão zangado e violento com minha mãe. Minha pobre e gentil mãe! Margaret, ela amava meu pai, e, por ela, tenho tentado, desde a sua morte, sentir-me bondoso com a memória dele. Logo após a morte de minha mãe, vim a conhecer você, minha joia, meu tesouro!

Depois de um tempo, ele recomeçou.

— Margaret! Você não sabe o pior... Após a morte de minha mãe, encontrei um pacote de jornais, de reportagens sobre o julgamento de meu pai. Pobre alma! Por que razão ela os guardara? Não sei dizer. Eles estavam cobertos de anotações na caligrafia dela, e, por essa razão, os guardei. Foi muito tocante ler seu registro dos dias passados em sua inocência solitária, enquanto ele se embrulhava cada vez mais no crime. Guardei este pacote, como eu pensava ser seguro, em uma gaveta secreta de meu escritório, mas aquele desgraçado do Crawford se apoderou dessas cartas. Perdi os papéis naquela manhã, e isso foi infinitamente pior que a perder o dinheiro. Agora Crawford ameaça trazer este fato terrível, diante de todos, se ele puder e seu advogado pode fazê-lo, creio eu. De qualquer forma, será divulgado ao mundo. Eu, que passei a minha vida com medo desta hora, agora a enfrento. Ainda assim, se ao menos pudesse ser evitado! Quem empregará o filho de Brown, o conhecido falsificador? Perderei meu emprego. Os homens olharão para mim como se eu estivesse pronto, em suas portas, para o crime. Às vezes, temo que o crime seja hereditário! Oh! Margaret! O que devo fazer?

— O que você pode fazer? — perguntou ela.

— Posso me recusar a processar aquele desgraçado!

— Deixar Crawford livre? Você sabe que ele é culpado!

— Sei que ele é culpado.

— Então, simplesmente, você não pode fazer nada. Você não pode soltar um criminoso.

— Se eu não o fizer, chegaremos à vergonha e à pobreza. É com você que me importo, não comigo! Nunca deveria ter me casado!

— Ouça-me! Não me importo com a pobreza, e, quanto à vergonha, eu sentiria vinte vezes mais dolorosamente, se consentirmos em selecionar os culpados, de qualquer medo ou por qualquer motivo egoísta nosso. Não posso fingir que não o sentirei quando a verdade for conhecida pela primeira vez. Mas, minha vergonha se transformará em orgulho, enquanto o observo viver. Você se tornou mórbido, querido marido, por ter algo a esconder durante toda sua vida. Deixe o mundo saber a verdade. Você irá adiante, sendo um homem livre, honesto e honrado, capaz de fazer seu trabalho futuro, sem medo.

— Aquele canalha do Crawford enviou uma resposta à sua nota impudente. — disse Christie, colocando sua cabeça à porta.

— Fique! Posso escrevê-la? — disse Margaret.

Ela escreveu:

“O que quer que você faça ou diga, só há um curso aberto para nós. Nenhuma ameaça pode impedir seu mestre de cumprir seu dever. Margaret Brown.”

— Pronto! — afirmou ela. — Ele verá que sei tudo.

A nota de Margaret apenas enfureceu, mas não desanimou, Crawford. Antes de uma semana, todos que se preocupavam, sabiam que o Doutor Brown, o jovem médico em ascensão, era filho do notório Brown, o falsificador.

Todas as consequências aconteceram, como ele preverá. Crawford teve que sofrer uma sentença severa. O Doutor Brown e sua esposa, tiveram que sair de casa e ir para uma menor, diminuindo suas despesas, ajudados com todo o zelo pela fiel Christie.

Entretanto, o Doutor Brown estava mais leve do que jamais fora antes em sua vida consciente. Seu pé estava agora firmemente plantado no chão, e cada passo que ele subia, era um ganho certo.

As pessoas diziam que Margaret fora vista, naqueles piores momentos, de mãos e joelhos, limpando o degrau de sua porta. No entanto, não acredito nisso, já que Christie nunca a deixaria fazer isso.

Quanto às minhas provas, só posso dizer que, da última vez que estive em Londres, vi uma placa com os dizeres:

“Doutor James Brown”

Estava pendurada na porta de uma bela casa, em uma esplêndida praça. Enquanto olhava, vi um carrinho de bebê subir até a porta, e uma senhora sair e entrar naquela casa, que certamente era a Margaret Frazer, dos velhos tempos, mais graciosa e imponente.

Mas, enquanto observava e pensava, a vi chegar à janela da sala, com um bebê nos braços, e todo o rosto dela derreteu em um sorriso de infinita doçura.

Fim.


A Gaiola de Cranford

Contei algo sobre meus amigos da Cranford desde 1856? Acho que não.

Você se lembra dos Gordons, não se lembra?

Jessie Brown, que casou com seu velho amor, o Major Gordon, e de pobre, tornou-se uma senhora bastante rica, mas nunca esqueceu nenhuma de suas velhas amigas em Cranford.

Bem! Os Gordons estavam viajando para o exterior, pois, eles gostavam muito de viajar. Eles estavam em Paris, em maio de 1856, durante todo o verão, mas o Senhor Ludovic estava chegando à Inglaterra em breve, então, a Senhora Gordon me escreveu a palavra.

Fiquei contente por ela me dizer, já que justamente naquele momento eu estava esperando para dar um pequeno presente à Senhorita Pole, então escrevi à Senhora Gordon, e pedi que ela escolhesse algo bonito, novo e da moda, que fosse aceitável para a Senhorita Pole.

Eu estava hospedada na casa da Senhorita Pole e ela acabara de falar muito sobre os bonés da Senhora Fitz Adam serem muito antigos, o que suponho que me fez colocar essa palavra, mas depois, desejei enviar a carta, dizendo que meu presente não estava muito na moda, pois, existe tal coisa, posso garantir-lhe!

O preço do meu presente não era para ser mais de vinte xelins, mas essa é uma soma muito agradável se você a colocar humildade nisso, embora possa não soar tanto, se você só a chamar de soberana.

A Senhora Gordon me escreveu de volta, contente, por ajudar seus velhos amigos. Ela me disse que saíra para um dia de compras antes de entrar no país, e que conseguira uma gaiola da mais nova e elegante descrição, e pensou que não poderia fazer melhor do que conseguir outra igual como presente para a Senhorita Pole, porque as gaiolas eram bem feitas em Paris que em qualquer outro lugar.

Fiquei bastante consternada quando li esta carta, pois, por mais bonita que fosse uma gaiola, não era este presente que pretendia dar a Senhorita Pole, porque era um presente para ela, não para seu papagaio.

Tentei encontrar razões contra a ideia, e pedir apenas um novo boné, facilmente encontrado nos Johnsons, porque pensei que o presente que a Senhora Gordon iria escolher para mim em Paris seria um elegante chapéu, uma espécie de cruz entre um turbante e um boné, como vejo que a maioria das mulheres de Paris usam. Para a Senhora Pole não se aventurar a comprar um no Senhor Johnson, eu precisava aconselhá-la, e eu iria o mais rápido possível, e asseguraria o boné do Senhor Johnson, antes que qualquer outro comprador o pegasse.

— Por que, Mary? — perguntou ela. — Ontem você estava desejando aquele boné. Você disse e sabe que o lilás é uma cor muito velha para mim, e o verde, muito jovem, e que a mistura é muito imprópria.

— Sim! Eu sei. — respondi. — Mas pensei melhor sobre isso. Pensei muito sobre isso ontem à noite, e penso que eles se neutralizariam mutuamente, e as sombras de qualquer cor são, você sabe, complementares.

Eu não tinha certeza do que afirmava, mas tinha uma ideia em minha cabeça, embora não a conseguisse expressar.

Ela me levou para a sala.

— Criança! Você não sabe o que está dizendo. E, além disso, não quero elogios nesta época de vida. Também fiquei acordada pensando no boné. Só compro um pronto, uma vez por ano, e é claro que é uma questão a ser considerada. Cheguei à conclusão de que você tinha toda a razão.

— Oh! Querida Senhorita Pole! Eu estava completamente errada, se você soubesse, eu achei que era um boné muito bonito.

— Bem! Faça apenas o que você quer fazer. Você é quase tão ruim quanto a Senhorita Matty em sua maneira de falar, embora eu goste muito de você. Mary, não quero dizer, porque temo que não goste, mas você deve ver que você é muito descontrolada e confusa. É a verdade, então, você não se importará se eu falar isso.

Foi só porque parecia ser a verdade naquela época que me importei, e, desesperada, pensei em contar tudo a ela sobre a gaiola.

— Eu não quis dizer o que disse, não acho lilás muito velho ou verde, muito jovem. Penso que a mistura se torna muito interessante para você, e acredito que você nunca terá um boné tão bonito, pelo menos em Cranford.

— Então, Mary Smith, você ainda insiste?

— Eu queria dizer! Oh! Senhorita Pole, eu queria surpreendê-la com um presente de Paris, e pensei que seria um boné. A Senhora Gordon escolherá, e o Senhor Ludovic vai trazer. Ouso dizer que agora está na Inglaterra, porém, não é um boné. Eu não queria que você comprasse o boné da Johnson, porque eu estava indo comprar outro para você.

A Senhorita Pole achou este discurso confuso, não tenho dúvidas, embora ela não o tenha dito, apenas fez um estranho barulho de perplexidade. Continuei:

— Escrevi à Senhora Gordon e pedi que lhe comprasse um presente, algo novo e bonito. Eu queria que fosse um vestido, mas suponho que não o disse, pensei que seria um boné, pois, Paris é tão famosa por bonés, e é.

— Você é uma boa garota, Mary!

Eu tinha mais de trinta anos, mas não me neguei a ser chamada de garota, e, de fato, geralmente me sentia como uma garota em Cranford, onde todos eram muito mais velhos que eu. Ela continuou:

— Quando você quer uma coisa, diga o que você quer, é a melhor maneira. Agora, suponho que a Senhora Gordon comprou algo bem diferente? Um par de sapatos, ouso dizer, pois, as pessoas falam dos sapatos parisienses. De qualquer forma, estou igualmente grata a você, Mary! Minha querida! Mas você não deve gastar seu dinheiro comigo.

— Não foi muito dinheiro, e não foi um par de sapatos. Você vai me deixar ir e pegar o boné, não vai? Ele é tão bonito, alguém com certeza o pegará. Ficará linda com o boné!

— Mary! Mary! Lembre-se de quem é o pai das mentiras.

— Ele não é meu pai! — exclamei, com pressa, pois, vi a Senhora Fitz Adam descer a rua em direção à loja do Senhor Johnson. — Vou comer minhas palavras. Só me deixe correr e comprar aquele boné! Aquele boné bonito.

— Bem! Foge, criança!

Trouxe-o de volta, em triunfo abaixo do nariz da Senhora Fitz Adam, enquanto ela estava pendurada em meditação sobre ele. Me apressei para o quarto da Senhorita Pole ao som de uma batida dupla na porta, quando descobri ser a Senhorita Matty e o Senhor Peter. A Senhorita Pole não conseguiu resistir à oportunidade de exibi-la, e disse de forma solene à Senhorita Matty:

— Posso falar com você por alguns minutos em particular?

Eu conhecia bem demais a delicadeza feminina para explicar a que este prelúdio grave levaria, consciente de como imediatamente o tremor ansioso de Senhorita Matty seria aliviado pela visão do boné. Eu tinha que continuar falando com o Senhor Peter, no entanto, ele preferia estar no quarto, e ouvir as observações e comentários.

Falamos sobre o novo boné o dia todo, e que vestimentas ele combinaria.

A Senhorita Pole, não mais jovem, como ela se chamava, depois de uma pequena luta com as palavras, embora aos sessenta e cinco anos, ela não precisasse ter corado como se estivesse contando uma mentira.

Finalmente guardou o boné. Assim, mudamos de assunto. Ficamos em silêncio por um tempo, com uma vela entre nós, quando a Senhorita Pole começou:

— Foi muito gentil da sua parte, Mary, pensar em me dar um presente de Paris.

— Oh! Fiquei muito feliz em lhe oferecer algo! Espero que você goste, embora não seja o que eu esperava.

— Tenho certeza que vou gostar! Uma surpresa é sempre tão agradável.

— Creio que a Senhora Gordon fez uma escolha muito estranha.

— Me pergunto o que será. Não gosto de perguntar, mas há muita ansiedade. Lembro-me de ouvir a querida Senhorita Jenkyns dizer que a ansiedade era a alma do prazer, ou algo assim.

— Devo dizer-lhe o que é?

— Como você quiser, minha querida. Se lhe agradar, estou bem disposta a ouvir.

— Talvez seja melhor não. É algo bem diferente do que eu esperava e queria conseguir, e não tenho certeza se gosto também.

— Alivie sua mente, se você quiser, Mary. Em todas as decepções, a simpatia é um grande bálsamo.

— Bem, então... É algo que não é para você, é para Polly. É uma gaiola. A Senhora Gordon diz que eles fazem uns tão bonitos em Paris.

Vi que a primeira emoção da Senhora Pole foi a decepção. Contudo, ela gostava muito de sua cacatua, e o pensamento de sua esperteza em sua nova morada a fez se reconciliar em um momento, além disso, ela me agradeceu muito por planejar um presente para ela.

— Polly! Sua velha gaiola está ruim. Polly a bica continuamente com seu bico afiado. Ouso dizer que a Senhora Gordon notou isso quando falou comigo no outubro passado. Pensarei sempre em você, Mary, quando ver a gaiola. Agora podemos tê-la na sala de visitas, pois, ouso dizer que uma gaiola francesa será um belo ornamento para a sala.

E, assim ela continuou falando, até que nos encantamos muito com a ideia de Polly em sua nova residência, apresentável até mesmo para a ilustre Senhora Jamieson.

Na manhã seguinte, a Senhora Pole disse que sonhara com Polly com seu novo boné na cabeça, enquanto ela se sentava em um poleiro na nova gaiola e o admirava. Então, como se tivesse vergonha de revelar o fato de imaginar tal tolice em seu sono, ela passou rapidamente para a filosofia dos sonhos, citando algum livro que ela lera ultimamente, profundo e confuso para que eu o entendesse.

Depois do café da manhã, falamos sobre o boné por cerca de uma hora, e então, como era um belo dia, caminhamos para o jardim, onde a gaiola de Polly foi pendurada em um prego do lado de fora da janela da cozinha.

Ela clamou e gritou para a sua dona, que foi à procura de uma amêndoa para ela. Enquanto isso, examinei sua gaiola, velha e descolorida seu vime, feita desajeitadamente por um fabricante de cestas de Cranford.

Tirei a carta da Senhora Gordon, ela era datada do dia 15, e esta era o vigésimo dia do mês, pois, eu a guardara em segredo por dois dias no bolso. O Senhor Ludovic estava a ponto de partir para a Inglaterra quando ela escreveu.

— Pobre Polly! — sussurrei, enquanto a Senhorita Pole, retornava, para oferecer a amêndoa.

— Ah! Polly não sabe que gaiola bonita ela vai ter. — disse ela, falando com a cacatua como faria com uma criança.

Depois se voltando para mim, perguntou quando eu pensava que ela viria? Contamos as datas e talvez, se tivéssemos sorte, chegaria naquele dia. Então, ela chamou sua serviçal Fanny e a mandou sair e comprar um grande prego forte o suficiente para suportar Polly e a nova gaiola, e pesamos a gaiola em nossas mãos, e no seu retorno ela viria para a sala de desenho, com o prego e um martelo.

Fanny voltou, batemos o prego, com solene seriedade, na parede da casa, do lado de fora da janela da sala de visitas, pois, como a Senhorita Pole observou, quando eu não estava lá, ela não tinha ninguém com quem conversar, e como no verão ela geralmente sentava-se com a janela aberta, ela podia combinar dois propósitos: dar ar e sol a Polly, e ter sua agradável companhia em suas horas solitárias.

— Quando chover, minha querida, ou até mesmo em um sol muito quente, levarei a gaiola para dentro. Não quero que seu belo presente seja estragado pelo tempo. Foi muito gentil de sua parte pensar nisso, estou muito satisfeita. E gosto mais da gaiola que qualquer presente como um mero vestido, e a querida Senhora Gordon mostrou toda sua bela observação habitual ao lembrar-se de minha cacatua Polly.

A Cacatua Polly era seu grande nome, eu só o ouvira uma ou duas vezes a Senhorita Pole falar dessa maneira formal, exceto quando ela estava falando com os criados, então, ela sempre dava a sua designação completa, assim como a maioria das pessoas chama suas filhas de senhorita, ao falar delas aos estranhos ou criados.

Mas como Polly teria uma nova jaula, e de Paris, a Senhorita Pole evidentemente achou necessário tratá-la com respeito incomum.

Fomos obrigadas a sair para enviar algumas cartas, mas deixamos ordens rigorosas com Fanny sobre o que fazer se a gaiola chegasse em nossa ausência, como, tínhamos calculado que poderia acontecer.

A Senhorita Pole ficou pronta, abraçada a um xale na porta da cozinha, eu atrás dela, com Fanny atrás de mim e a cozinheira nos olhando.

— Fanny, coloque Polly na gaiola nova, caso ela apareça nas mãos do entregador. Lembre-se, os pássaros têm seus sentimentos tanto quanto nós! Não a apresse a decidir.

— Acho que uma amêndoa a ajudaria a superar seus sentimentos. — disse Fanny, deixando cair uma reverência em cada discurso, como lhe ensinaram a fazer em sua escola de caridade.

— Uma ideia muito boa! Muito boa! Se eu tiver minhas chaves no bolso, darei uma amêndoa para ela. Penso que ela com certeza vai gostar da vista da janela para a rua, ela gosta de ver as pessoas, creio.

— É apenas um olhar monótono para o jardim, agora com flores bobas. — disse a cozinheira, tocada por esta alusão à alegria da rua, em contraste com a vista de sua janela da cozinha.

— É um olhar muito bom para as pessoas ocupadas. — falou a Senhorita Pole, severamente.

Então, sentindo que ela provavelmente ficaria magoada com sua velha criada, ela se retirou com uma dignidade mansa, sendo surda a alguma resposta aguçada, e é claro que eu, sendo obrigada a manter a ordem, era surda também. Se a verdade tem que ser dita, apressamos nossos passos, até batemos a porta da rua atrás de nós.

Chamamos a Senhorita Matty, é claro, e depois a Senhora Hoggins. Parecia que a má sorte nos levava a ir às duas únicas casas de Cranford, onde havia o incômodo de um homem, e em ambos os lugares, o homem estava onde não devia estar, isto é, em sua própria casa.

A Senhorita Pole, por civilidade a mim, porque ela estava realmente feliz com a gaiola para Polly, e, porque todos nós em Cranford confiávamos na simpatia de nossos vizinhos no mais ínfimo pormenor que nos interessava, disse à Senhorita Matty ao Senhor Peter, e ao Senhor e à Senhora Hoggins, que estavam de pé, na sala de visitas, comendo pão e queijo. Como a Senhorita Pole disse depois, que não havia refinamento em Cranford, mesmo abençoada como era, com tantos cientistas de famílias do condado. Porque pão e queijo em uma sala de visitas, com as cebolas em seguida, era um ultraje!

Mas por toda a banalidade do Senhor Hoggins, a Senhorita Pole contou a ele sobre o presente que estava prestes a receber.

— É uma nova gaiola para Polly, você sabe, Senhor Hoggins. Você se lembra dela?

— Só espero que a nova gaiola seja tão forte quanto bonita. — ele pegou um olhar de sua esposa, creio, pois, ele parou de comer. — Somos velhos amigos, Polly e eu. Estarei na rua nesta tarde, talvez entre e veja esta gaiola parisiense inteligente.

— Faça isso! — comemorou a Senhorita Pole, com entusiasmo. — Ou, se você estiver com pressa, olhe para a janela da minha sala de visitas. Se a gaiola chegar, ela estará pendurada lá, e Polly dentro dela.

Passamos pelo trem de Londres há algum tempo, então, não ficamos surpresas quando voltamos para casa para ver Fanny meio fora da janela, evidentemente, ajudando ou atrapalhando a cozinheira. Levantamos a cabeça, mas não havia nenhuma gaiola pendurada. Apressamos os passos.

Tanto Fanny como a cozinheira, nos encontraram na passagem da porta.

— Por favor, senhora! — disse Fanny. — Não há fundo para a gaiola, e Polly voaria para longe.

— Não há parte de cima também! — exclamou a cozinheira. — Ele sairia por cima muito facilmente.

— Deixe-me ver! — disse a Senhorita Pole, passando ao lado delas e pensando, com sua inteligência superior, o que era necessário para colocar as coisas em ordem.

No chão, havia um feixe, ou um círculo de arcos. A cozinheira pegou algo entre o dedo e o polegar, e levantou o presente inestético de Paris. Como eu gostaria que ela tivesse ficado lá! Mas a ambição tola já levou as pessoas à ruína antes, e meus vinte xelins desapareceram. Com certeza, havia algum uso pretendido pelo criador da coisa diante de nós.

— Você não acha que é uma ratoeira, senhora? — perguntou Fanny, deixando cair sua pequena reverência.

Para responder, a cozinheira levantou a gaiola, e mostrou como os ratos facilmente sairiam e Fanny encolheu de costas envergonhada. A cozinheira foi evidentemente colocada contra a nova invenção, e murmurou sobre o fato de ser uma coisa francesa e assim, dávamos valor como as cozinheiras francesas, ameixas francesas, coisas desagradáveis secas francesas, rolos franceses...

As boas maneiras de Senhorita Pole e o desejo de fazer o melhor na minha presença, a induziu a tentar afogar os murmúrios da cozinheira.

— Na verdade, acredito que será uma gaiola muito bonita para a Polly. Como ficará satisfeita em passar de uma argola para outra, como uma escada. Com uma ou duas tábuas na parte inferior, e bem amarrada na parte superior.

Fanny ficou impressionada com uma nova ideia.

— Por favor, senhora! Minha cunhada tem uma tia como dama de companhia com a filha de Senhor John. Eles disseram, que ela usava saiotes de arcos de ferro.

— Disparate, Fanny! — gritamos.

Pois, tal coisa não fora ouvida, muito menos em Cranford, e eu era bastante olhada à luz por todas as lavadeiras de Cranford, porque eu tinha dois saiotes com cordas.

— Vá se meter na sua vida, moça! — resmungou a cozinheira, com o maior desprezo. — Vou garantir que vamos administrar a gaiola sem a sua ajuda.

— Está perto da hora do jantar, Fanny! A toalha não foi colocada na mesa! — reclamou a Senhorita Pole, esperando que o comentário cortasse as duas, mas a cozinheira não queria ir.

Ela ficou no degrau inferior da escada, segurando a perplexidade de Paris no ar.

— Pode servir para secar a carne! — zombou ela. — Cubra-a com pano. É uma boa estrutura, creio, de qualquer forma! — ela segurava sua cabeça de um lado, como boa conhecedora de carne que era.

A Senhora Pole falou:

— Você tem certeza de que a Senhora Gordon a chamou de gaiola, Mary? Porque ela é uma mulher de palavra, e não a teria chamado assim se não fosse.

— Veja aqui, tenho a carta no bolso. Perguntei se compraria algo com o valor de... Hum! Hum! Não importa!

Mostrei a carta:

“Querida Mary, você gostaria que fosse algo da moda e bonito para a querida Senhorita Pole. Decidi, depois de pensar muito, por uma das novas gaiolas que são feitas muito mais leves e elegantes em Paris que na Inglaterra. De fato, não tenho certeza se alguma vez chegaram até você, pois, não faz um mês desde que vi o primeiro deste exemplar em Paris.”

— Ela diz algo sobre Polly? — perguntou a Senhorita Pole. — Isso resolveria o assunto imediatamente.

— Não! Nada!

Fanny apareceu na passagem com a bandeja cheia de coisas para jantar em suas mãos. Quando ela as colocou no chão, ficou na porta da sala de jantar, tendo uma vista distante do artigo.

— Por favor, senhora! Parece uma anágua sem nada nela, de fato, parece. Perdão!

Todavia, ela apenas tirou a objeção da cozinheira aborrecida, e aproveitei a oportunidade para tirar a coisa da mão da cozinheira, e levá-la para cima, já que era tempo para se preparar para o jantar. Porém, tínhamos muito pouco apetite para nossa refeição, e continuamos constantemente fazendo sugestões, uma para a outra, sobre a natureza e o propósito da gaiola parisiense, e, constantemente esnobando a pobrezinha Fanny que repetia:

— Por favor, senhora! Acredito ser uma espécie de anágua, de fato, acredito!

A Senhorita Pole se virou contra ela com quase tanta veemência quanto a cozinheira fizera, apenas em linguagem diferente.

— Não seja tão tola, Fanny! Não continue falando sobre o que você não entende.

Então, nossa donzela ficou muda pelo resto da refeição. Depois do jantar, levamos Polly lá para cima em sua velha gaiola, estendi a nova, e a viramos de todas as maneiras. A Senhorita Pole reclamou:

— Coloque Polly de volta e feche-a em sua gaiola. Você segura esta coisa francesa!

“Infelizmente meu presente seria chamado de coisa!” pensei.

— Eu coserei um fundo nela.

Então, segurei e ela coseu, depois costurei um pouco enquanto ela segurava, até que tudo estivesse feito. Assim como tínhamos colocado Polly, e estávamos fechando o topo com um belo pedaço de fita amarela antiga, e, de fato, não era uma gaiola de má aparência.

Depois de todo o nosso esforço, o Senhor Hoggins subiu as escadas, sendo visto por Fanny antes de ter tempo para bater à porta.

— Olá! — falou ele, quase cambaleando sobre nós, enquanto estávamos sentadas no chão, em nosso trabalho. — O que é isto?

— É o belo presente para Polly. — afirmou a Senhorita Pole, levantando-se com a maior dignidade possível. — Mary comprou de Paris para mim.

A Senhorita Pole estava muito animada já que conseguimos costurar a gaiola da Polly, e eu estava aliviada.

O Senhor Hoggins começou a rir à sua maneira banal e barulhenta.

— Para Polly! Ha! Ha! É para você, Senhorita Pole! Ha! Ha! É uma nova invenção para segurar seus vestidos! Ha! Ha! Ha!

— Senhor Hoggins! Você pode ser um cirurgião e muito inteligente, mas nada, nem mesmo sua profissão, lhe dá o direito de ser desbocado.

A Senhorita Pole estava completamente agitada, e eu tremia nos meus sapatos. Mas o Senhor Hoggins só sabia rir mais e mais. Polly gritou para acompanhar as gargalhadas dele, mas a Senhorita Pole ficou de pé em rígida propriedade, com o rosto corado.

— Peço desculpas, Senhorita Pole! Porém, tenho quase certeza de que estou certo. Não é nenhuma indecência que eu possa ver, minha esposa e a Senhora Fitz Adam levam um livro de moda de Paris entre elas, e não posso deixar de ver as últimas invenções da moda. Ha! Ha! Ha! Ha! Olha, Polly, vai usar saias! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha!

Logo depois o Senhor Peter entrou, porque a Senhorita Matty estava curiosa para saber se o presente esperado chegara.

O Senhor Hoggins pegou-os pelo braço e apontou a gaiola no chão, mas não conseguiu explicar, porque não parava de rir e a Senhorita Pole ponderou:

— Embora eu não esteja acostumada a dar uma explicação de minha conduta aos cavalheiros, ainda assim, sendo insultada em minha própria casa pelo Senhor Hoggins, devo apelar para o irmão de meu velho amigo. Este artigo é uma anágua de senhora ou uma gaiola de pássaro?

Ela o reteve enquanto fazia este inquérito solene. O Senhor Hoggins aproveitou o momento para sair da sala, envergonhado, como eu supunha, mas, era para ir buscar o livro de moda de sua esposa, e, antes que eu tivesse terminado a narração da história infeliz, ele voltou, segurando a página aberta do artigo.

Mas o Senhor Peter sempre teve uma maneira suave de afastar a raiva, seja por sua diversão ou por um elogio.

— É uma gaiola! — disse ele, curvando-se à senhorita Pole. — Mas é uma gaiola para um anjo, ao invés de um pássaro! Venha, Hoggins, quero falar com você!

Com um pedido de desculpas, ele tirou o cirurgião ofensor e vitorioso da presença da Senhorita Pole. Durante um bom tempo não dissemos nada, e ficamos envergonhadas pela sabedoria superior da pequena Fanny.

Quando ela trouxe o chá, nossos espíritos ressuscitaram, e a Senhorita Pole propôs que cortássemos os pedaços de aço ou osso de baleia, como ela afirmou ser a gaiola, que, para fazer justiça, eram muito elásticos, e fizéssemos duas anáguas inglesas muito confortáveis com a ajuda de um pedaço de seda tingida, que a Senhorita Pole tinha no armário.

 

 

 

 

[1] Suporte de metal, normalmente de um par, que segura a lenha na lareira.
[2] Instrumento musical da família dos aerofones de teclas, tocado por meio de um ou mais manuais e uma pedaleira.
[3] Corneta acústica. Aparelho tubular ou com formato de funil que coletam as ondas sonoras e levam-nas para dentro do ouvido.
[4] Espécie de planta trepadeira.
[5] Árvores que chegam a medir até 10 metros de altura. Pertencem à família das fagáceas. Possuem folhas discolores, ligeiramente espinhosas, flores masculinas em amentos, as femininas em panículas e frutos ovoides, revestidos, em parte, por escamas.
[6] Arbusto de folha persistente, da família das Aquifoliaceae, cultivado normalmente para efeitos ornamentais devido aos seus frutos vermelhos.
[7] Bebida alcoólica quente feita à base de rum, água e açúcar.
[8] Oficial, cuja função vem imediatamente abaixo a do comandante de um navio. É quem assume o comando da embarcação em caso de incapacidade, de impedimento ou morte do capitão.
[9] Tecido muito leve e transparente, usado na confecção de vestuário feminino.
[10] Relativo à Nova Inglaterra (região dos EUA).
[11] Roupão, o mesmo que robe de chambre.
[12] Doença infectocontagiosa aguda, provocada pela bactéria Estreptococo beta hemolítico do grupo A, que acomete especialmente as crianças de 2 a 10 anos.
[13] Excessivamente severo ou rigoroso.
[14] Tecido leve e transparente.
[15] Tecido originário da Índia, de pouca qualidade, com estamparia com cores fortes.
[16] Raça de ovinos (ovelhas) originária do Sul de Portugal, com cruzamentos com o merino francês. Sua lã é de excelente qualidade térmica.
[17] Órgão presente nas plantas trepadeiras com capacidade de prender e agarrar ramos.
[18] Pequeno bolo granulado e comumente produzido sob forma arredondada, sua origem é francesa.
[19] Grupo étnico e social de indivíduos perseguidos e que constituíam uma minoria socialmente desprezada.
[20] Região histórico-cultural, localizada no extremo norte da Espanha e no extremo sudoeste da França, cortada pela cadeia montanhosa dos Pirenéus e banhada pelo Golfo da Biscaia.
[21] Cinquenta gramas.
[22] Servo do profeta Eliseu, gozava de uma posição de poder, mas era corrupto, fazendo mau uso de sua autoridade para enganar Naamã, o sírio, um general afetado pela lepra.
[23] Poema de guerra, inglês, do século XVII, escrito por Samuel Butler.
[24] Dança popular do Sul da Itália e composição musical, em compasso binário composto.
[25] Guerreiros nórdicos ferozes, que estão relacionados a um culto específico ao deus Odin. Eles despertavam em uma fúria incontrolável antes de qualquer batalha.
[26] Frase escrita sobre túmulos, mausoléus para homenagear pessoas ali sepultadas.
[27] Vale e passe alto na área de maior beleza natural da floresta de Bowland, Lancashire, Inglaterra.
[28] Período da História da Inglaterra que vai da conquista, pelos anglo-saxões, da porção meridional da ilha da Grã-Bretanha, até o momento em que os vikings começaram as incursões na ilha.
[29] Prática que visa o desenvolvimento espiritual. Muitas vezes, essa prática consiste na renúncia ao prazer e na não satisfação de algumas necessidades primárias.
[30] Raça de cães britânica chamada “Cocker Spaniel inglês” de porte médio. O nome “Spaniel” caracteriza que o cão tem pelagem longa e sedosa, com orelhas caídas.
[31] Honorável Sociedade em Londres. É uma das quatro “Inns of Court” (associação dos profissionais advogados e juízes).
[32] Refere-se simultaneamente à ciência e à arte de descrever os brasões de armas ou escudos, que foi desenvolvida na Europa a partir do século XII.
[33] Aquele adepto ao jacobitismo, movimento político dos séculos XVII e XVIII na Grã-Bretanha.
[34] Flores do campo.
[35] Prece litúrgica estruturada na forma de curtas invocações a Deus, a Jesus Cristo, à Virgem, aos santos.
[36] Rosa de Saron é uma expressão bíblica que se encontra no Antigo Testamento. Saron (região da Palestina) era um vale fértil que produzia belas flores.
[37] Expressão Bíblica para evocar Deus e a Sua proteção.
[38] Expressão Bíblica para evocação de Maria, mãe de Jesus.
[39] Flores de cor violeta.
[40] Ordem religiosa católica feminina de clausura monástica denominada Santa Clara ou Ordem das Clarissas.
[41] Povo do Flandres, de classe baixa. Camponeses.
[42] Cidade no Noroeste da Inglaterra.
[43] “A mente é seu próprio lugar e ela está em si mesma. Pode fazer Céus do inferno, e também inferno de Céus.”
[44] John Milton (1608 – 1674), poeta inglês.
[45] A meia coroa era uma denominação de dinheiro britânico, equivalente a dois xelins e seis pence, ou um oitavo de uma libra.
[46] Dinheiro britânico.
[47] Nota da tradutora: Foi mantido o formato original do nome. Traduzindo para o português, seria chamado de: o jornal “Folha Voadora”.
[48] Nota da tradutora: Foi mantido o formato original do nome. Traduzindo para o português, seria chamado de: o jornal “Inspetor”.
[49] Poema de Robert Burns.
[50] Poeta Escocês (1759 – 1796).
[51] Expressão latina: “Para o bem do povo!”
[52] Unidade medida de capacidade agrária, originalmente medida por bolsas ou sacos. Utilizado para contagem de grãos, frutos, etc.
[53] Doença que se desenvolve rapidamente em crianças. É causada por uma infecção viral das vias aéreas superiores, localizado na garganta. É caracterizada por uma tosse forte e respiração ofegante.
[54] Parapeito.
[55] Antiga moeda inglesa, equivalente a 21 xelins.
[56] Ser mitológico das Ilhas britânicas de carácter brincalhão e travesso. A sua popularidade advém de ser uma das personagens da peça de William Shakespeare, “Sonho de Uma Noite de Verão”.
[57] Owain Glyndwr, ou Owain Glyn Dwr foi um governante galês e o último galês nativo para manter o título príncipe de Gales, mas para muitos, visto como um rei não oficial.
[58] Hotspur é um apelido do Senhor Henry Percy (1364-1403).
[59] Sinal que Deus colocou em Caim após matar seu irmão Abel. Mas que não é descrita na Bíblia qual é realmente a marca, e há especulações ainda hoje sobre o que seria o tal sinal.
[60] Um dos treze condados históricos do País de Gales
[61] Cidade, situada em Gwynedd, país de Gales.
[62] Espécie de pinheiro.
[63] Colégio da Universidade de Cambridge, Inglaterra.
[64] Pequena aldeia.
[65] Lenda que envolve o rei da Frígia e Alexandre, o Grande. É comumente usada como metáfora de um problema insolúvel resolvido facilmente por ardil astuto ou por "pensar fora da caixa".
[66] Tragédia clássica de Sófocles.
[67] Dança folclórica, de origem escocesa. O Carretel é uma das quatro danças tradicionais, sendo as outras o gabarito, o strathspey e a valsa.
[68] Canção e marcha militar que tradicionalmente descreve os eventos durante o cerco de sete anos ao Castelo Harlech entre 1461 e 1468.
[69] Canção chamada “Trezentas Libras”.
[70] Canção Galesa improvisada.
[71] Tramazeira. Árvore de tamanho mediano, raramente ultrapassando os 15 metros de altura.
[72] Seres vivos muito complexos que constituem uma simbiose de um organismo formado por um fungo e uma alga ou cianobactéria.
[73] Plantas que crescem em águas paradas ou de movimentação lenta.
[74] Lado de onde sopra o vento.
[75] Árvore da espécie gimnospérmicas arborescentes da família das taxáceas.
[76] Agrupamento de igrejas que tem como finalidade um melhor desenvolvimento do ministério pastoral, para o bem dos fiéis, permitindo uma melhor comunicação entre o bispo e os párocos.
[77] Ilha que faz parte das Pequenas Antilhas, no Caribe. Região ultramarina da França.
[78] Esporte que utiliza bola e tacos, cuja origem remonta ao sul da Inglaterra, durante o ano de 1566. Considerado parecido com o basebol, foi inspirado num rudimentar jogo rural medieval chamado stoolball. Foi adotado pela nobreza no século XVII.
[79] Rei da Grã-Bretanha entre 23 de janeiro de 1698 a 11 de junho de 1727.
[80] Maior poeta romântico inglês. (1770 – 1850).
[81] Pintura, de 1764, chamada “The Lake of Nemi or Speculum Dianæ” de Richard Wilson (1713 - 1782).
[82] Este poema fora escrito por Gaskell para a sua filha. Elizabeth foi incentivada pelo marido a escrever romances para diminuir a sua tristeza após a morte da menina.
[83] Foi mantida a formatação original do poema.
[84] Flor azul. Dizem que as lágrimas derramadas nas pétalas pela Virgem Maria deram a cor azul à flor.
[85] Tribo mais oriental da Haudenosaunee, ou Confederação Iroquesa.
[86] Carruagem rápida para viagem construída nos séculos XVIII e início do século XIX. Geralmente tinha um corpo fechado sobre quatro rodas, sentava duas a quatro pessoas e era puxado por dois ou quatro cavalos.
[87] Cadeira portátil, aberta ou fechada, suportada por duas varas laterais. Carregada por pessoas.
[88] Brobdingnag é uma terra fictícia do romance satírico de 1726 chamado: “As Viagens de Gulliver” de poeta satirista Jonathan Swift.
[89] Cor de tecido opaca de tonalidade marrom, por vezes, clara.
[90] Tecido pintada à mão e tingido com mordente, originário da Índia, muito exportado para a Europa durante o século XVIII e no início do século XIX.
[91] São seres vivos muito complexos que constituem uma simbiose de um organismo formado por um fungo (o micobionte) e uma alga ou cianobactéria (o fotobionte ou ficobionte).
[92] São aves de grande porte, geralmente com plumagem em tons de cinzento, branco e castanho.
[93] O leitelho ou leite de manteiga é um líquido que se obtém com o batimento da nata em manteiga.
[94] Nest ou Nesta, é o galês para o nome Agnes.
[95] Nome do livro de Willian Godwin escrito em 1794. Resumidamente é o relato fascinante de um jovem cuja curiosidade o leva a investigar um assassinato do passado. Também é uma poderosa exposição dos males e injustiças do sistema político e social na Grã-Bretanha de 1790.
[96] Personagem criado por William Shakespeare para sua peça, “Muito Barulho por Nada”. Descrito como “policial noturna”, com uma visão inflada de sua própria importância como líder de um grupo de vigias policiais cômicos.
[97] Locomotiva a vapor, inventada pelo engenheiro britânico Herbert William Garratt, sendo articulada em três partes.
[98] Personagem bíblico.
[99] Geena é um vale em torno da Cidade Antiga de Jerusalém, e que veio a tornar-se um depósito onde o lixo era incinerado. Também conhecido como local de suplício eterno pelo fogo ou Inferno.
[100] Agag é um nome ou título semita do noroeste aplicado a um rei bíblico. Foi sugerido que "Agag" era um nome dinástico dos reis de Amaleque, assim como Faraó foi usado como um nome dinástico para os antigos egípcios.
[101] Numa passagem bíblica em “Efésios” a frase “Príncipe do Ar” se refere ao Diabo.
[102] É uma mulher mencionada no Livro de Juízes na Bíblia Hebraica, como a heroína que matou Sisera para libertar Israel das tropas do rei Jabin.
[103] Chefe do exército de Canaã, no reinado de Jabim. Juntamente com este rei oprimiram os israelitas durante 20 anos. Ele tinha uma reputação como um guerreiro invencível, embora ainda jovem.
[104] Documento histórico assinado em Nantes a 30 de abril de 1598 pelo rei da França Henrique IV.
[105] Embarcação de pequeno porte a vela.
[106] Tropas de perseguição contra protestantes.
[107] Esposa de Rei Luiz XIV
[108] Indivíduo que cuida de animais em cavalarias ou coudelarias, palafreneiro, estribeiro.
[109] Livro: A História de Sandford & Merton (1783–89) escrito por Thomas Day.
[110] Militar pertencente a um tipo especial de corporação, que tem o encargo de velar pela ordem e segurança pública na França.
[111] Membro de uma seita protestante inglesa, a Sociedade dos Amigos, fundada no século XVII.
[112] Allan Cunningham (1791 – 1839) foi um botânico e explorador inglês.
[113] Clément Marot (1496 – 1544) foi um poeta francês Renascentista.
[114] Michel Eyquem de Montaigne (1533 - 1592) foi um jurista, político, filósofo, escritor, cético e humanista francês, considerado como o inventor do ensaio pessoal.
[115] Soldado especializado no lançamento de granadas.
[116] Deus mitológico, jovem e belo.
[117] Capa sem mangas, com aberturas nas cavas, por onde passam os braços e na frente, onde é presa apenas no colarinho, deixando aparecer a veste inferior, na sua parte do peito.
[118] Título ou nomeação atribuída aos soberanos do Irã (antiga Pérsia), anterior à revolução islâmica do Irã ou revolução iraniana, que ocorreu em 1979.
[119] Espécie de cachimbo muito us. por hindus, persas e turcos, constituído de um fornilho, um tubo longo e um pequeno recipiente contendo água perfumada, pelo qual passa a fumaça antes de chegar à boca.
[120] Expressão de cumprimento utilizada por muçulmanos.
[121] Homem que teve sua genitália removida parcial ou totalmente, por motivação bélica, punição criminal ou imposição religiosa. Se convertido a eunuco já adulto, o indivíduo perde a capacidade de reprodução e tem uma substancial perda hormonal em seu organismo.
[122] Inflamação do olho.
[123] Pequeno chapéu de feltro ou pano, muitas vezes utilizados em conjunto com um turbante.
[124] Festa tradicional que celebra o Ano Novo do calendário persa.
[125] Primo-genro de Maomé.
[126] Espécie de figueira de raízes profundas e ramos fortes que produz figos de qualidade inferior.
[127] Varanda que estabelece uma graduação bastante marcada entre os espaços interiores e exteriores de uma residência, protegendo-a da incidência direta da radiação solar e da chuva.
[128] Um dos principais corpos d'água do Lake District National Park, no Noroeste da Inglaterra.
[129] Órgãos genitais externos e excretores.
[130] Pelagem da ovelha.
[131] Aquele que compõe Salmos.
[132] Os mistérios de Elêusis eram ritos de iniciação ao culto das deusas agrícolas Deméter e Perséfone, que se celebravam em Elêusis, localidade da Grécia próxima a Atenas. Eram considerados os de maior importância entre todos os que se celebravam na antiguidade.
[133] Poeta inglês.
[134] Chefe hereditário do Clã Cameron, tradicionalmente leal à exilada Casa de Stuart.
[135] Palavra de origem francesa que designa o falar essencialmente oral, praticado em uma localidade ou grupo de localidades, principalmente rurais.
[136] Marquês de Carabás é o nome imaginário de um dos personagens do conto ‘O Gato de Botas’ de Charles Perrault, publicado pela primeira vez em 1697.
[137] Recipiente de fundo largo e abertura estreita utilizado para separar sedimentos de um determinado líquido.
[138] Arte ou técnica de ornamentar as superfícies planas de móveis, painéis, pisos, tetos, através da aplicação de materiais diversos, tais como: madeira, metais, madrepérola, pedras, plásticos, marfim, tendo como principal suporte a madeira.
[139] Mineral do grupo dos carbonatos de tons verdes.
[140] Cerca-viva.
[141] Num casaco, a parte anterior ou superior que se encontra virada para o lado de fora.
[142] Cidade francesa.
[143] Os jardins das Tulherias compõem um parque parisiense situado na margem direita do rio Sena, entre a praça da Concórdia e o Arco do Triunfo do Carrossel.
[144] Regimento de couraceiros da cavalaria de guarda do Exército prussiano.
[145] Grupo de infantaria de elite a serviço do Rei da França entre 1471 e 1830.
[146] Companhia militar do Rei da França durante o Antigo Regime.
[147] Grupo de Mosqueteiros.
[148] Confronto militar ocorrido a 18 de Junho de 1815 perto de Waterloo, na atual Bélgica.
[149] Pintor francês de ascendência neerlandesa e do movimento do Romantismo.
[150] Edifício para alojamento de cavalos, muares e burros, cocheira, estrebaria, estábulo.
[151] Carruagem antiga.
[152] Ladrão de estradas francês na Restauração na Inglaterra.
[153] Claude Charles Fauriel foi historiador, filólogo e crítico francês.
[154] Personagens bíblicos.
[155] Personagem bíblico.
[156] Personagem do Antigo Testamento, era filho de Isaac e Rebeca e irmão gémeo de Jacó, com quem se zangou por este lhe ter usurpado a bênção dada por seu pai, Isaac.
[157] Personagem bíblico.
[158] Peça de teatro escrita por Christopher Marlowe em 1588 ou 1592.
[159] Poeta épico da Grécia Antiga, ao qual tradicionalmente se atribui a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisseia.
[160] Discurso, originário da Grécia Antiga, de caráter encomiástico ou laudatório que era pronunciado em grandes reuniões festivas do povo.
[161] Tragédia escrita por William Shakespeare.
[162] Denominação dada entre os turcos aos governadores de províncias do Império Otomano dado a generais e governadores dignatários, e correspondia ao título de "Excelência" usado no Ocidente.
[163] Deusa grega.
[164] Na mitologia grega, são as oito filhas do casamento de Óxylos, filho de Óreas com Hamadryás, sua própria irmã, chamavam-se: Carya, Balanos, Crania, Morea, Aigeiros, Ptelea, Ampelos e Syce. Cada uma delas seria protetora de uma espécie diferente de árvore, entre estas a vinha, a figueira e a aveleira.
[165] Na mitologia grega, são espíritos naturais femininos, ligados a um local ou objeto particular da natureza.
[166] As nereidas ou nereides eram as cinquenta filhas de Nereu e de Dóris. Nereu compartilhava com elas as águas do mar Egeu.
[167] Geólogo e escritor escocês autodidata, folclorista e cristão evangélico.
[168] Tragédia grega, de autoria de Ésquilo. Faz parte da trilogia Oresteia, que inclui também as tragédias Agamemnon e Coéforas.
[169] Coisa benta.
[170] Poeta e dramaturgo inglês.
[171] Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, foi um dramaturgo francês, além de ator e encenador, considerado um dos mestres da comédia satírica.
[172] O jansenismo é uma doutrina religiosa inspirada nas ideias de um bispo de Ypres, Cornelius Otto Jansenius.
[173] Político da República Romana eleito cônsul em 74 a.C.
[174] Personagem do livro Don Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes.
[175] Peça central da mesa que geralmente é feita de prata, mas pode ser feita de qualquer metal, vidro ou porcelana.
[176] Esposa de Júpiter e rainha dos deuses.
[177] Conto de fadas de Charles Perrault.
[178] Carruagem do séc. XIX de duas rodas puxada por um só cavalo, semelhante ao trenó.
[179] Grande entrada de mar entre altas montanhas rochosas, originada por erosão causada pelo gelo de antigo glaciar.
[180] Historiador, escritor e poeta britânico da escola do romantismo.
[181] Laurence Sterne foi um escritor e clérigo anglicano irlandês, famoso pelo seu romance A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy.
[182] Mesa de escrever com gavetas, conhecida como escrivaninha.
[183] Pãozinho típico da Inglaterra, que é degustado normalmente no chá da tarde inglês.

 

 

                                                                  Elizabeth Gaskell

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades