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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COLETÂNEA DE CONTOS / Henrique Portugal
COLETÂNEA DE CONTOS / Henrique Portugal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Ao Correr das Teclas

Quando, há já algum tempo, fui martelando as teclas da minha máquina de escrever, velha companheira de mais de vinte anos de estudos e trabalho, fi-lo apenas por mero passatempo. Não pretendia mais que exercitar os dedos, o espírito, tentar arrumar ideias e pensar um pouco em coisas diversas, tão diversas como a amizade e a forma dela nascer e consolidar-se, a cegueira,total ou parcial, e o resultado de comportamentos de deficientes e seus familiares, as consequências desses comportamentos, a degradação moral e social, nomeadamente das camadas mais novas, por mais vulneráveis aos ataques do flagelo que é a droga, alguns factores dessa vulnerabilidade, e por aí fora.

Como facilmente se compreenderá, não tive preocupações de abordagem exaustiva de tais questões, limitando-me a pegar em factos e situações reais que serviram de ponto de partida para a construção de pequenas histórias ficcionadas.

A guerra, e quem a viveu sabe-o, é uma escola, um campo privilegiado para lançar sementes de amizade, de ódio, de amor, de compreensão, de espírito de sacrifício.

Quantos jovens fizeram a guerra, viram morrer companheiros, quer em combate, quer por negligência na condução de veículos, quer ainda por não terem sabido ouvir conselhos de quem conhecia estradas, rios e mares daquelas terras? Por raiva, mataram, como mataram para não morrer.


Regressados, muitos deles sem trazerem marcas físicas desses tempos, mas com outras invisíveis bem mais profundas e graves, aprenderam o que era a amizade nascida no perigo, o que era a injustiça de chefes arrogantes e prepotentes, que se escudavam nos galões e nas estrelas do generalato, aprenderam a capacidade de reagir ao infortúnio de um ferimento grave que se superava com um sorriso e com brincadeiras. Tall aprendizagem era e foi-lhes útil, permitiu-lhes saber ouvir e ser solidários.

Era, foi, esse conjunto de sentimentos que levou à grandeza de actos, incompreensíveis para quem não tenha vivido «na mata» e para quem muitas dessas atitudes, quando relatadas em papel, não passam de mero irrealismo piegas.

Igualmente conheci gente que, embora não tivesse estado na guerra, viveu guerras bem mais violentas, demolidoras, que, como todas, deixaram profundas marcas, visíveis ou não.


Quantos nasceram no seio de famílias que, por desinteresse e incúria na obtenção de informações, adquiriram deficiências irreversíveis? Quantos nasceram no seio de famílias em que o duiálogo tinha sempre e sempre o mesmo emissor sem que pudesse haver som de retorno? Quantos,por vergonha dos pais, foram encaixotados em asilos, ou instituições similares, de onde saíram ao fim de uma vida sem que estivessem preparados para uma liberdade, que encontraram fora dos muros de onde partiram, caíndo numa verdadeira ratoeira, que é a sociedade em que estamos inseridos? Quantos mergulharam nos mundos da droga, da prostituição, da degradação moral? Quantos, por excesso de autoritarismo, que não de autoridade, ou por libertinagem, que não liberdade, se afundaram nos tais mundos obscuros? Quantos, já deficientes, ou afectados por doenças congénitas, e sabedores que, sem quaisquer margens para dúvidas, teriam filhos nas mesmas condições, permitiram a vinda a este mundo de novas gentes que carregam a mesma cruz contra a qual os pais, despudoradamente vociferam?

Manda a verdade que eu diga que algumas das figuras, em cujas realidades me inspirei, quiseram, puderam e conseguiram vencer obstáculos incomensuráveis. São hoje a imagem viva e actuante do que é a vitória da tenacidade contra as adversidades.

As minhas preocupações, mal alinhavadas e pior expostas, fruto de uma vida que não tem sido das mais fáceis, têm sido transmitidas a várias gerações de crianças e jovens com quem trabalhei e trabalho, baseando-me no desejo que um exemplo sirva de lição. Lamentavelmente, na maior parte das situações, sinto-me perfeitamente impotente e penso que, de facto, talvez os peixes escutassem e entendessem melhor a mensagem que Santo António lhes pregava. Na realidade, a ideia que o mal só acontece aos outros cega os espíritos e, em boa verdade, nada é pior que tal tipo de cegueira. Quantos, novos ou velhos, começando por mim próprio, não quiseram Ver que um conselho de Mãe não se destina a "chatear" e que as suas cautelas não são medos de "velhos", mas sim fruto da experiências de vidas e tão maiores quanto mais longas elas forem; na minha terra, a tradição confere aos Velhos o estatuto de sabedores. Bom, mesmo, seria que todos e cada um pudessemos pensar que também nos incluímos no grupo dos tais outros. Não fora eu um "cego" e hoje não o seria de facto.

Alonguei-me já demais e por isso me penitencio. Todavia, se as tais ideias que foram sendo arrumadas ao correr das teclas puderem servir para despertar alguém ou algo, talvez tenha valido a pena "teclar" e engolir recordações e sentimentos dolorosos que elas fizeram renascer.


 

Diálogo mudo

O batedor do pelotão seguia uns cem metros adiante do grupo, transportando o detector de minas. Um pouco atrás, protegendo-o, dois soldados perscrutavam o mato que ladeava a picada (caminho de terra com carácter provisório, por entre a vegetação). O resto do grupo seguia espalhado, aberto em leque, por entre o capim alto, ou em fila, de cada um dos lados do caminho. O silêncio quase absoluto só era quebrado pelo diminuto ruído provocado pelas pesadas botas daqueles quase trinta homens. Os seus olhos pareciam querer perfurar a densa vegetação tropical, onde os pássaros não cantavam nem as cobras se mostravam.

O comandante do grupo não tirava os olhos do companheiro que seguia na frente. Era um jovem alferes, recém-chegado ao teatro das operações, numa zona das mais perigosas. O seu antecessor tivera o cuidado de o prevenir quanto ao perigo real, para ele e seus comandados, se um erro se cometesse, por pequeno que fosse. Uma feia cicatriz e algumas marcas de pólvora na face e no peito foram argumentos convincentes. Ali estava com uma arma nas mãos, a imagem da mulher no pensamento e um crucifixo ao peito. A confiança que tinha na arma, que dominava com à vontade, a ideia de regresso a casa e a fé que lhe transmitia a cruz acalmavam-no quase totalmente.

Parou. O batedor parara e gesticulava. Mandou dispersar os homens e fez-lhes sinal para que se deitassem. Lá na frente, o detector soava continuamente e o seu portador referenciou um local. Depois regressou com os seus protectores.


-- Marquei o lugar, meu alferes.

-- Cala-te, pá! Não fales em postos. Aqui somos todos soldados. -- e em voz mais alta: -- Fala ali com o nosso capitão.           Cometera o primeiro erro: esquecera-se de avisar os homens que na mata não deveriam dirigir-se a alguém, chamando pela patente. O comandante, dissera-lhe o outro alferes experimentado, é sempre o primeiro a alvejar e a abater. Ele próprio o aprendera. Sabia que uma unidade sem comandante era imediatamente reduzida a meia força, pelo choque psicológico que a perda de um chefe era para os subordinados. A testa cobriu-se--lhe de suor e sentiu-se aterrorizado, enquanto um calafrio lhe percorria a coluna. Agarrou a arma com mais força e de um salto mudou de posição. Na verdade, na picada não estava bem. Era um alvo demasiado claro.

Apesar de quase não se ter ouvido a voz do batedor, o alferes olhou em redor, tentando perceber algo de suspeito. Apenas viu os seus homens no meio do alto capim, por detrás das árvores e das pedras. Sabia que naqueles locais a voz parecia ser amplificada por causa do profundo silêncio, factor que era complementado e agravado pela extraordinária acuidade da visão, da audição e do olfacto que caracterizava o inimigo, muito experimentado na vida da mata.

Dominou-se. Com um aceno chamou um camarada. Um rapaz seco, entroncado, cabelos loiros e olhos de cor indefinida aproximou-se rastejando sem ruído.


-- Sílvio! O Almeida detectou uma mina. Vai levantá-la. Vou distribuir os homens em círculo para te protegerem. Leva cinco contigo e distribui-os como entenderes. Dentro de meia hora está tudo em ordem. Farás então o trabalho.

-- Certo. Detectaste e referenciaste ou teremos de a procurar, Almeida?

-- Não. Marquei a zona e só temos que procurar naquele sítio, mas calculo onde está. Quase que juro que a descobri.

-- Traz o detector e vem comigo. -- e para o alferes:            -- Vamos marcar a hora. Quantas tens?

-- Dez e vinte e seis. Marcamos os vinte e sete. Aos cinquenta e sete começas a actuar. OK? Atenção!... 3, 2, 1, hora!

-- Hora! Até já.

--Sorte, Sílvio.

-- Obrigado. Um bocado faz sempre jeito.

O chilrear de um pássaro fez-se ouvir e o inesperado do som provocou um estremecimento no alferes. Sílvio olhou para onde parecia estar o pássaro, mas nada viu. A partir de pouca distância a folhagem muito densa era quase impenetrável. Almeida também tentou, mas igualmente ficou na ignorância.

Passaram minutos, poucos, e enquanto Sílvio e os companheiros rastejavam rapidamente para o objectivo, o resto do pessoal espalhava-se pela zona. Esta era a primeira situação tensa que viviam.


A calma de Sílvio inspirava confiança. Intenso treino com explosivos permitia-lhe manusear esse material com à vontade e a intensa preparação física e psicológica haviam feito dele o que se poderia designar um homem sem nervos. Era o único veterano do grupo e esta seria a sua última operação como furriel. Dentro de uma semana regressaria ao quartel e logo depois à vida civil. A seguir casaria. Esperava-o uma mulher encantadora e como tinha o futuro garantido, este apresentava-se maravilhoso. Sem dúvida as perspectivas eram risonhas. Ao dar-se conta destes pensamentos, Sílvio disse para consigo:

-- "Isso fica para depois, rapaz. Pensa no que vais fazer e deixa o casamento sossegado. Precisas de ter calma, rapaz.".

Olhou para trás. Ninguém à vista, o que queria dizer que aqueles "maçaricos" estavam prontos para a acção. O relógio marcava dez horas e cinquenta e cinco minutos. Faltavam dois. Dos cinco acompanhantes, só Almeida estava ao seu lado. Mostrou-lhe o relógio, voltou a tapá-lo e apontou com a cabeça para a circunferência marcada na terra seca. Um pouco à sua esquerda uma pequeníssima altura de terra remexida despertara-lhe a atenção. Almeida acenou afirmativamente.

Muito lento, seguro, aproximou-se. Pôs-se de joelhos e muito devagar começou a afastar a terra. Os movimentos eram lentos mas precisos, cautelosos. O suor escorria-lhe pela face, mas agora não podia limpá-lo.

-- Maldito calor. -- murmurou.

Continuou a remover a terra e não tardou a aparecer um engenho metálico diante dos seus olhos.

-- Não está mal, não senhor. Contigo posso eu bem. Já te conheço de gingeira. -- disse com os seus botões. -- Trato já de ti.


Desembainhou a grande faca-de-mato e escavou à volta da mina. Localizou o detonador e fez sinal a Almeida. Este, acocorado na picada, seguia atentamente os movimentos de Sílvio. A última vez que olhara em volta, nada de anormal lhe despertara a atenção. Voltou a olhar em redor e pareceu-lhe que viu um ramo a mexer.

-- Olá! Nenhum de nós tem raça de macaco, para estar ali empoleirado. Deve ser algum gajo a querer chatear. -- pensou em voz alta.

Sílvio parou de escavar e olhou-o interrogativamente. O soldado fez-lhe sinal para se afastar e apontou a arma para a árvore. O furriel guardou a faca e começou a recuar. Almeida mordeu os lábios, disparou e ao mesmo tempo ouviu a outra rajada. A retirada de Sílvio foi interrompida por uma bala que alcançara o fim desejado. Da árvore caiu alguma coisa e aquela arma foi silenciada. Começou então um tiroteio infernal.

Sem se preocupar com a própria segurança, Almeida precipitou-se para o camarada ferido e arrastou-o para dentro do capim. Respirou aliviado. A bala atingira a cabeça do companheiro que estava inconsciente, mas parecendo ter sido de raspão e não ser grave. Em redor deles o tiroteio começava a diminuir de intensidade. Os "turras" deviam ser poucos.

Quando Sílvio abriu os olhos, a cara bolachuda de Almeida apareceu-lhe sorridente.

-- Parece que me acertaram. Que aconteceu?

-- Levou com um tiro, mas teve sorte. Aquele cabrão não tinha pontaria nenhuma. Mas eu tive!

-- Já me lembro. Avisaste-me de qualquer coisa, mas não sei mais nada.

-- Um "turra" fez fogo quando se ia a pirar, mas eu mandei o gajo abaixo.

-- Pelos vistos safaste-me de uma boa. Obrigado.


-- Quem o safou foi esse macaco que não teve pontaria. Caramba! Não percebo para que é que os gajos querem as armas? Eu não falhei, porra!

-- Ainda bem que os gajos são ceguinhos, porque senão tu e eu estávamos lixados. Ouve, Almeida!? Daqui vês a mina?

Vendo a resposta afirmativa do companheiro, Sílvio quis levantar-se, mas sentiu uma vertigem.

-- Caraças! Bem! Manda-lhe um fogacho e faz estoirar essa merda. Assim como assim, com este arraial ninguém fica a saber que estamos aqui.

-- Ainda está com vontade de brincar?! Não percebo como, mas... Já lhe faço a vontade.

Entre outros, o tiro passou despercebido, mas a explosão violenta impôs de novo o silêncio. Passaram minutos que pareceram anos e o silêncio continuou.

Os soldados estavam sem perceber. Teria o inimigo desaparecido?

Meia hora depois, Sílvio, com a cabeça ligada, o alferes e os restantes furrieis conferenciavam. Para o veterano não era novidade o que tinha acontecido: só um inimigo fora ali colocado para impedir que a mina fosse levantada, ou mesmo que o grupo avançasse. Era vulgar que um homem bom conhecedor do terreno conseguisse imobilizar durante horas, até mesmo um batalhão, dando um tiro daqui e fugindo, disparando dali e voltando a escapar, para fazer fogo doutro local diferente. Assim acontecera.


Ao fim do dia regressaram ao acampamento. Sílvio sentia-se totalmente recomposto e contava com os últimos dias sem preocupações. Aquela fora a sua derradeira operação. Apesar da sua juventude e preparação, começava a fazer-se sentir o peso de dois anos de actividade, quase sempre em zonas operacionais.

A semana passou depressa. Do ferimento de dias atrás somente um risco na testa lembrava a anormalidade. Ia começar a sua tarefa derradeira: levantar todas as armadilhas de protecção ao acampamento. Tinham sido colocadas umas dezenas de granadas, devidamente armadilhadas, que era preciso remover para evitar acidentes com os futuros ocupantes do acampamento. Seria um trabalho fácil, se bem que perigoso e por isso demorado. Almeida iria ajudá-lo na tarefa. Era um indivíduo seguro e Sílvio confiava nele. Quando dias antes fora um alvo privilegiado para o "turra", A presença de espírito e a fria ausência de medo que demonstrara eram boa recomendação. De facto, era precisa muita frieza para neutralizar uma a uma as granadas amarradas umas às outras por um finíssimo fio de nylon e com as cavilhas de segurança presas por um escasso milímetro.

-- Não te esqueças que tens de ter um extremo cuidado com estas "gabas". Não te esqueças que o primeiro erro que cometeres pode ser o último, se não houver um milagre.

-- Eu sei, Sílvio. Não se preocupe. Você é que tem que ter cuidado, porque na semana passada conseguiu escapar. Como foi a segunda vez que esteve para "lerpar" e não há duas sem três, ponha-se a pau.

-- Tens razão, mas que diabo, seria azar a mais. - Não vai haver problemas. Até logo "meu furriel".

-- Até logo "nosso pronto".


As palavras do soldado não lhe abandonavam o pensamento:

-- "Não há duas sem três... Não há duas sem três...".

Cada granada retirada era menos uma possibilidade de se concretizar a hipótese de acidente e tudo ia correndo bem. A manhã cedeu lugar a uma tarde quente e húmida, que fazia os corpos encharcarem-se com um suor pegajoso e irritante. A tensão, a que os dois homens estavam submetidos, fazia aumentar a transpiração. A refeição fora ligeira pois era necessário um cérebro pouco sobrecarregado, desperto e todos os sentidos afinados.

Sílvio aproximou-se de uma granada que calculou ser das suas últimas. Gestos cautelosos, bem medidos, levaram-lhe as mãos ao engenho. Tinha os pés imóveis. Sabia que, se os mexesse, qualquer daqueles gravetos poderia provocar a deflagração. Agarrou simultâneamente na granada e na cavilha. Aquela também já não o preocupava mais. Empurrou a cavilha e nesse momento soou uma detonação, mas nem sequer pestanejou. Acabou de neutralizar o explosivo e largou a correr na direcção do estrondo.

-- "Não se preocupe. Você é que tem que ter cuidado... Não há duas sem três...".

Crispou a mão na granada, que não largara, e a face contraiu-se-lhe.

-- Que aconteceu? Almeida!!!

-- Raios partam a sorte. Esta merda explodiu e o Almeida está ferido.

-- Onde está ele, caraças?

-- Está ali, meu furriel. O enfermeiro já foi buscar material e o nosso alferes mandou pedir um helicóptero.


Sílvio debruçou-se sobre o amigo. Uma lágrima, teimosa, correu-lhe cara abaixo. Olhou as mãos esfaceladas de Almeida e abanou tristemente a cabeça.

-- Almeida!? Estás a ouvir-me? Sou o Sílvio!

Imobilidade e silêncio foram a resposta.

-- Afaste-se, meu furriel. Vou-lhe dar uma injecção para ele não acordar. Está a perder muito sangue e vamos ter que lhe dar, mas não tenho nem uma gota.

-- O meu é internacional. Tire o que for preciso.

-- Obrigado, meu furriel, mas não é suficiente. Dois de vocês vão buscar a maca à viatura.

-- Precisa de ajuda? -- inquiriu Sílvio.

-- Já vou precisar. Mas o que eu precisava aqui era um médico. Vamos ver o que vou fazer.

A maca chegou com os dois homens que mais pareciam voar que correr.

-- Agarre-lhe as pernas, meu furriel. Vocês ponham a maca ao lado do gajo. Assim está bem. Levante agora, meu furriel.

Sílvio mandou afastar os soldados que os rodeavam, pedindo ao mesmo tempo:

-- Voluntários para darem sangue?! O Almeida tem tipo O. O internacional também serve.

Vários homens partiram a correr para a ambulância, desapertando a camisa. Quando a maca chegou havia uma fila longa de voluntários. O cabo enfermeiro puxou de um maço de algodão e de um frasco de água oxigenada, despejou alguma na testa de Almeida e limpou a seguir. Repetiu a operação até a cara do ferido estar limpa. Sílvio respirou fundo.


-- Felizmente os olhos não foram muito atingidos.

-- Com gravidade não, mas foram. Não deve ter grandes problemas com a vista. Já com as mãos... nada digo. Isto está feio.

-- Já pedimos o "héli". Só agora é que conseguimos comunicação porque o rádio tinha "pifado" e foi uma porra. Daqui a uma hora e pouco está cá. Tu, Sílvio, tens de acabar de levantar as armadilhas.

-- OK! Vou tirar sangue e depois trato disso.

-- O quê? Depois de tirar sangue? Mas...

-- Mas qual quê?... Tiro sangue e a seguir desarmadilho as granadas. Se entendes que não está bem, quando chegarmos participa ao nosso capitão e Se me deres oito dias, ele dá quinze. Sempre descanso umas merditas.

-- Não te exaltes nem sejas sarcástico. Sabes bem que não vou participar coisa nenhuma. Antes pelo contrário. Compreendo o teu estado de espírito. Ele safou-te da outra vez e estás no teu direito de querer retribuir-lhe. Aliás, se isso te satisfaz, posso dizer-te que o capitão me disse há minutos pelo rádio, que a comunicação que mandámos no outro dia foi transformada numa proposta para uma Cruz de Guerra.

Sílvio, que se levantara, murmurou, voltando a sentar- -se pesadamente:

-- Não há dúvida que o destino é irónico: tira-lhe as mãos e dá-lhe uma cruz. Uma não; duas! E as duas de guerra!

-- Venha cá, meu furriel. Ponha aqui o braço e vamos ao sangue. Quanto posso tirar? Faço a pergunta porque estão muitos voluntários.


-- Tira o que for preciso. Todo, se for necessário, ouviste?

-- Tenha calma que não é. O Almeida está bera, mas não lerpa desta. Já limpei o gajo e está porreiro.

-- Se não fosses preciso a esse desgraçado, rebentava--te. Está porreiro, hem??? Sem mãos e com certeza sem a vista e dizes que está porreiro?

O rapaz parecia ter crescido e estava desfigurado. O enfermeiro, de olhos muito abertos, estava confundido. O ar tranquilizador que pretendera dar às suas palavras, não havia surtido o efeito desejado; pelo contrário.

-- Desculpe, meu furriel, e não se irrite. Já fiz os pensos ao Almeida e o estado dele não é tão grave como julga. A vista está queimada, mas parece que é superficial e estou convencido que recupera. As mãos é que é o pior, mas também não é caso para desesperarmos. É preciso que seja tratado a tempo e, se o "héli" não demorar, tudo vai correr bem. Agora não perca mais tempo. Dê cá o braço.

Aproximou-se um soldado a correr.

-- O nosso alferes disse para aqueles que derem sangue irem ter com o cozinheiro, porque há leite e latas de carne para vocês.

O primeiro a dirigir-se para lá foi Sílvio. Sentia-se acabrunhado e custou-lhe a engolir o alimento.

-- Não te esqueças das armadilhas que faltam. Ainda tens ali para um tempito.

-- Está bem. Vou descansar um quarto de hora e tratarei disso.


Entregou a caneca ao cozinheiro e começou a andar. O alferes seguiu-o até que um bidão lhes serviu de assento.

-- Desculpa as minhas palavras de há bocado. Estava enervado.

-- Eu sei e não ouvi o que disseste. Mas diz-me uma coisa: que pensas fazer?

-- Em que aspecto? Referes-te ao Almeida?

-- Sim. Ele não tem família e o exército pouco fará por ele, como deves saber. É mais um.

-- Deixa-o estar consciente e resolveremos. Se ele quiser, fica comigo por estas terras.

-- Já pensaste que estás para casar? E se a tua miúda não quiser que o faças?

-- Isso é problema dela. Se casar comigo, só terá de agradecer a este homem. Se não fosse ele naquela manhã, ela tinha de procurar outro. Se não quiser compreender o que pretendo, será como se eu tivesse sido abatido.

-- Já reparaste que se trata do teu futuro?

-- E o Almeida pensou no dele quando saltou para a picada e abateu o "turra"? Sabia se era só aquele ou se havia outros que o lixassem? Além disso, ele apenas foi fazer este trabalho para me ajudar. Não era obrigado.

-- Tens razão mais uma vez. Tentarei arranjar maneira de o Almeida receber uma pensão. Não vai ser muito, mas ajuda. Na participação vou dizer que foi em operação. Não é totalmente mentira e de certeza que pega.


-- Agradeço-te por ele. Ouve bem o que te vou dizer: se a minha noiva não aceitar, que vá à vida dela. Dou-te a minha palavra.

-- Não a conheço, mas, se ela for como tu, tenho a certeza que não precisas de a mandar dar essa volta. De certeza que ela aceitará o que resolveres. Obrigado pela lição que me deste. O nosso capitão também vai gostar de saber.

-- Não precisas de lhe dizer. Participa só o acidente e não digas mais nada. É assunto meu. Vou-me às granadas. Espero que por hoje não haja mais nada.

Encaminhou-se para onde ficara o mapa e em seguida desapareceu por entre as árvores que cercavam o acampamento. Ao fim da tarde, já após a partida de Almeida, deu por terminado o trabalho.

Na madrugada seguinte partiram. Ele para recomeçar a vida civil e os restantes para novas posições.

 

O almoço acabara e Anabela preparava-se para a costumeira arrumação da cozinha quando a campainha soou.

-- Quem será a esta hora? O Sílvio só deve chegar ao meio da tarde e portanto só aparece à noite. Bem, já se vê. -- monologou.

Limpou as mãos, tirou o avental e dirigiu-se para a porta.

-- Sílvio! Não te esperava tão cedo. Pensava que só aparecias logo à noite ou amanhã.

-- Olá, Anabela. Estás bem? E os teus velhotes?

-- Anabela?! Que se passa, Sílvio, para me tratares assim?


-- Desculpa, Bela, mas estou muito preocupado. Preocupado e triste.

-- Já contas. Entra para a sala. Os pais já saíram e eu estava a acabar de arrumar o que faltava. Conta lá, mas não deve ser nada de importância. O importante é que já estás aqui. Graças a Deus, regressaste bem.

-- Graças a Deus e ao Almeida.

-- Que aconteceu? Esta marca na testa...? -- interrogou, enquanto passava os dedos pela cicatriz.

-- Esta marca na testa podia ser um buraco, irmão de mais uns tantos que me podiam ter transformado num cadáver, mas o Almeida safou-me. Abateu o "turra". Mas já te conto em pormenor. Dá-me qualquer coisa fresca, por favor.

Anabela beijou o noivo e não tardou. Depois de esperar que acabasse de beber, com preocupada curiosidade, inquiriu Sílvio sobre o que acontecera.

-- Como vês, Bela, estou bastante melhor que esse homem. Infinitamente melhor. Mas não chores, que as lágrimas nada remedeiam.

-- Ouve, Sílvio. Como viverá o Almeida sem ter ninguém que o ajude? Como poderá viver sem as mãos e sem a vista?

-- As mãos não serão grande problema. O pior é se ele não recupera a vista. Pensei que talvez quisesses ir comigo ao hospital, daqui a pouco. Que dizes?

-- Se te disser que não, vais lá sozinho?

-- De certeza que te deixo aqui. Mas é uma pergunta, ou uma negativa?


-- Era uma experiência, querido. É por coisas destas que te adoro. Dá-me cinco minutos e estou pronta.

O rapaz quedou-se a pensar na oportunidade de expor à noiva a sua decisão, naquele momento. Ou seria melhor aguardar para depois da visita? Continuou absorto e a chegada de Anabela passou-lhe despercebida. As mãos dela a deslizarem-lhe pelo cabelo fizeram-no voltar à realidade.

-- Ah! Já estás pronta. Não te senti chegar.

-- Já cheguei há uns minutos e fiquei a olhar para ti. Preocupa-te tanto esse teu camarada?

-- Sim, Bela. Vamos embora senão chegamos atrasados.

Não demoraram muito a percorrer a razoável distância que separava a casa do hospital e a localização do soldado também foi rápida.

Na cama, cabeça e braços ligados, imóvel, mas com o seu habitual sorriso, Almeida parecia dormir. Ao ouvir passos, que se detinham junto da sua cama, virou a cabeça, inquiridor.

-- Estás acordado, Almeida?

-- Olá, meu furriel, já chegou?

-- Já cheguei e já não sou furriel. Sou Sílvio e trouxe a Anabela, a minha noiva.

-- A senhora desculpe não me levantar, mas compreenderá.

-- Deixa-te estar, Almeida. O Sílvio contou-me tudo e não sabes como te estou imensamente grata. E não me chames senhora. Para ti sou a Anabela.


-- Obrigado pela vossa visita e pela vossa amizade. A mim não tem nada que agradecer. O que aconteceu com o meu furriel, quer dizer, com o Sílvio, podia ter acontecido com outro ou comigo e o Sílvio fazia o mesmo.

-- Eu sei, Almeida, mas fui eu o beneficiado. Que te disseram os médicos? Que tens na cabeça?

-- As mãos é como vêem. Na cabeça, disseram só que os olhos foram atingidos, mas que não é grave. Disseram-me que tenho que ser operado e vou ser evaquado para a Metrópole.

-- Com quem vives, Almeida? Que vais fazer quando saíres do hospital? -- perguntou Anabela, tentando não deixar transparecer a angústia e a preocupação que a dominavam.

-- Ainda não sei. -- e depois de um curto silêncio: -- Que pode fazer um homem sem mãos, sem ninguém e sem dinheiro?

-- O nosso alferes participou de modo a tentar arranjar-te uma pensão. Mas de qualquer forma tens razão, porque é muito pouco. Vou falar com o nosso comandante de Companhia para saber o que irá acontecer.

-- Não se preocupe mais comigo, Sílvio. Os tipos que resolvam como quiserem. Assim como assim, não devo morrer de fome, porque sempre há quem dê um pratito de sopa.

-- Está bem. Mas deixa-me fazer o que pretendo. Quando partes?

-- Lá para o fim da semana ou então, para a outra.

Almeida mantinha o seu sorriso e a expressão de Sílvio era agora menos carregada. Anabela olhava espantada aquele homem que assim minimizava uma situação que, para o futuro, nada augurava de animador.

-- Ouve com atenção o que temos para te dizer. Não quero falar alto, porque os outros não precisam de saber.

Intrigados, Almeida e Sílvio voltaram-se para Anabela.


-- Como sabes, casamos dentro de dias. Se não sabias, fazemos-te a participação. Se puderes e quiseres viremos buscar- -te. A tua presença seria mais que um prazer, mas o importante não é isso. O Sílvio já tem um bom emprego garantido e eu vou começar a trabalhar em breve. Não será muito o que ganharemos, mas deve chegar. A nossa casa tem dois quartos, mas, se não tivesse, resolvia-se da mesma maneira. Penso que o Sílvio não se vai importar, se eu te perguntar se queres vir para junto de nós depois de seres operado e de recuperares. Bem vês, um prato de sopa não fica caro. Que achas, Sílvio?

Os dois homens mantiveram-se em silêncio. Um soluço abafado desprendeu-se da garganta do ferido. A confusão no seu espírito era tremenda. Não compreendia bem o que estava a acontecer. Pensava, sem encontrar resposta, qual seria a causa daquela atitude.

Pela face de Sílvio, pela segunda vez em poucas horas, rolou uma lágrima e nos olhos, para além da surpresa, espelhou-se uma profunda gratidão.

-- É verdade, Almeida. Queremos que venhas para junto de nós. Com os diabos! Ganharemos para comer uns bons bifes, porque só a sopa é pouco e a Bela é uma óptima cozinheira. -- gracejou para disfarçar a comoção.

-- Obrigado. -- a voz de Almeida era pouco mais que um sussurro.

-- «E se ela não aceitar?

-- O problema é dela, mas estou certo que aceita.»

-- Eu tinha razão. Ela aceitou a minha proposta. -- pensou em voz alta.


-- Que dizes?

-- Nada, Bela. Estava só a lembrar-me de uma conversa que tive com o alferes do pelotão. Não disse nada. Conto-te depois. -- e falando para o ex-companheiro de armas: -- Sabes o que te digo? É por estas e por outras que gosto dela e me vou casar.

-- A vocês desejo todas as felicidades que merecem. Não me vou esquecer da vossa oferta e vou voltar e, se o médico me deixar, vou comer uma fatia do vosso bolo.

-- Viremos buscar-te. Agora vamos porque precisas de descansar. Sorte, Almeida. Até amanhã.

-- Adeus, Almeida. Sabes que gostei muito de te conhecer?! E obrigada por me teres deixado vir o Sílvio.

Afastaram-se da cama e logo que deixou de os ouvir Almeida deu livre expansão a toda a tensão emocional acumulada e chorou, tal criança a quem faltara algo; mas agora a causa era inversa. Ele também era amigo do seu amigo, correcto e honesto, na sua quase ignorância, e capaz de tudo para salvar um amigo, até dar a vida. Sorriu por entre as lágrimas.

-- Se Deus existe, obrigado a Ele pela oferta que me fez. Que quero mais? Perdi as mãos e os olhos, se calhar, mas acabo de ganhar uma família. Vou voltar, tenho a certeza. E vou voltar bom. Tenho de voltar. Tenho de voltar. Tenho de voltar...

A repetir a sua determinação, esgotado, adormeceu finalmente.  

 


Lá fora, felizes, em silêncio e olhos nos olhos, Anabela e Sílvio tomavam o caminho de regresso a casa, em diálogo mudo.

Recortes da conversa de dias antes com o alferes prepassavam pelo pensamento do rapaz:

-- «Já pensaste que estás para casar? E se a tua miúda não quiser que o faças?

-- Isso é problema dela. Se casar comigo, só terá de agradecer a este homem. Se não fosse ele (...) tinha de procurar outro. Se não quiser (...) será como se eu tivesse sido abatido.

-- Já reparaste que se trata do teu futuro?

-- E quando o Almeida saltou para a picada (...) pensou no dele? Sabia se era só aquele, ou se havia outros que o lixassem? Ele apenas foi fazer este trabalho para me ajudar. Não era obrigado a fazê-lo.(...)

-- ... Ouve bem o que te vou dizer: se a minha noiva não aceitar, que vá à vida dela. Dou-te a minha palavra.

-- Não a conheço, mas tenho a certeza que (...) não terás de a mandar dar essa volta.».

Ela era como ele e a prova estava ali.

Para quê as palavras?

Porquê?

Num dos topos do salão rectangular ficava o palco quase sem decoração e parecendo bastante quente. Ao longo das paredes laterais, de um dos lados havia três grandes janelas e em frente, na parede oposta, três portas que davam acesso a um terraço. Ao fundo, na parede fronteira ao palco, rasgava-se uma outra janela larga por onde era possível ver um largo rodeado de edifícios velhos, que serviam para habitações, lojas e armazéns. Mesas descobertas e as respectivas cadeiras rodeavam todo o interior da sala e encostados à parede encontravam-se assentos diversos.

No palco, as luzes tiravam reflexos da bateria preta salpicada de minúsculos pontos, que pareciam lantejoulas em vestido de noite e davam ideia de céu carregado de miríades de estrelas. O tecido preto e o revestimento, igualmente negro, dos amplificadores contrastava com a cor clara do órgão, com o dourado das câmaras de eco e bem assim, realçavam o prateado dos microfones.

A cerca de uma hora da actuação, na noite quente e húmida, os músicos estavam já encharcados, apesar da leveza dos tecidos dos fatos que envergavam. O suor escorria-lhes pelo rosto e enquanto passavam uma vista de olhos pela sala, que aos poucos se ia animando, entretinham-se a trocar comentários diversos.

-- Estamos lixados, irmão. Com este calor, das duas, uma: ou apanho uma "torcida" ou toco em cuecas.


-- O problema é teu, pá. Já topaste aquela "minha" que te está a "galar"? Se te pões em cuecas, com o teu físico, podes ter a certeza que ela "dá à sola". Nunca mais acreditas que, de gente, só tens a figura.

-- A figura e o fato do grupo. O "gajo" tem a mania que é "engatatão". -- e para o que alvitrara a sessão de streap tease: --Não és homem nem és nada se esta noite não a "engatares". Mas não te dispas porque senão, tocamos só para a organização.

Rindo despreocupadamente, com a alegria própria dos seus dezassete ou dezoito anos, os três saíram da sala, caminho do bar. Antes dos espectáculos tagarelavam sempre assim, metendo-se uns com os outros. No bar reuniram-se aos três restantes elementos do conjunto, contabilizaram os trocaditos perdidos, que rebuscaram cuidadosamente nos bolsos, pediram um "fino" para cada um e um refrigerante para o vocalista.

-- Este puto nunca mais aprende a beber como gente? Não precisas apanhar uma "tosga", mas bebe um "fino", pá. A gasosa faz-te mais sede.

-- Prefiro ter sede. Até pode ser que se arranje qualquer coisa para a matar. Está quase sempre aí um parceiro que entra com uns "wisquesitos". -- respondeu o pequeno vocalista. -- Se não, paciência. Quando acabar a farra vamos até à praia e damos um mergulhito.. Sabe bem à noite. Temos por onde nos espalhar e até se perde a sede. E tu, vê lá se paras! Já vais na quarta e tinhamos combinado que só se bebia um copo. Estás a abusar. Ao menos, jantaste?


Os cinco olharam para o companheiro, que acabara de beber a quarta cerveja, não com um olhar crítico por ele faltar ao combinado, mas com uma certa preocupação. De facto, não estavam aborrecidos com Rui; estavam, isso sim, apreensivos. A amizade que os unia não os deixava contabilizar o que comiam ou bebiam em grupo: o que tivesse uns trocos pagava, mas sabia que no dia seguinte, se estivesse "liso", outro suportava os gastos. Era assim que funcionavam. Eles sabiam que antes de ir para as actuações Rui pouco ou nada comia e a chamada de atenção devia-se a tal. Conheciam bem o amigo e não ignoravam que a bebida nem sempre lhe fazia o mesmo efeito, independentemente da quantidade: já o tinham visto com uma bebedeira em grande, por causa de duas cervejas, mas noutra ocasião, uma dúzia delas não lhe provocara senão uma verbosidade pouco habitual e bastante divertida. Também se lembraram que ele regressaria a casa na mota e que esta não era de deitar fora. Na verdade, 250 cc, praticamente nova e bem afinada, a "trotinete", como lhe chamavam, podia não chegar direita.

Tomaram os lugares no palco. As violas ouviram-se, o órgão juntou-se a elas e a bateria também soou. Experimentaram-se os microfones. Estava tudo a postos.

De cima, do palco, dominava-se todo o salão. O "Puto" piscou o olho a Armando e sem se preocupar em ser discreto, apontou com a cabeça para a candidata a "engate" de Jorge.

-- Topas aquela "minha" ali? O Jorge diz que esta noite a engata.

-- Chê!, "Puto"! Não vês os velhos a olhar?

-- Está bem, está bem, não fiques à rasca. -- e o rapaz riu da aflição de Jorge.

-- Bem, malta...


Rui baixou a cabeça. Embora se contassem já por dezenas as suas presenças em palco, não começava nunca sem ser de cabeça baixa. Deu o sinal, três toques quase inaudíveis, e os primeiros acordes de um instrumental melodioso ouviram-se no salão e também no exterior. O "Puto" começou a saudação, enquanto a descontracção chegava a cada um. Rui ia levantando a cabeça.

A noite foi vendo escoar lentamente os minutos. A animação tinha atingido o auge. O samba, o velho samba irrompeu. Os bailarinos gingavam e pulavam com vigor. O ritmo contagiara todos e no palco nenhum dos músicos estava quieto. A transpiração abundante escorria-lhes caras abaixo, ensopava-lhes as camisas, mas eles não cediam. Só quando o número terminou repararam que a pista estava deserta. Todos haviam parado e limitavam-se a fitar a vibração que cada um dos tocadores deixava transparecer nos olhos e com o corpo. Uma ovação tremenda explodiu. Os seis olharam-se entre si e quase simultâneamente dirigiram-se a Rui. Este, extenuado, mas alegre e com um sorriso rasgado, não percebia bem as felicitações dos companheiros. Considerava-se um vulgar baterista, sem peneiras; só um tipo bem disposto, mexido.

-- Isto está porreiro, Rui. A farra está em grande, meu irmão. -- comentou Pépé agarrado ao seu "bacalhau", de que tirara acordes de encantamento. -- Que é que tens hoje, estás com os copos?

-- Nada disso. Estou seco, mas tenho que esperar. E como me estás a insultar, lixas-te e pagas o copo.

-- Estou teso, mas está bem. Ok, irmão. Vamos dar "show", continua.


O calor e a humidade mantinham-se intensos, mas ninguém parecia senti-los. Bateram as duas da madrugada e minutos volvidos soou o indicativo do agrupamento, enquanto as despedidas foram sendo feitas. A sala ia ficando vazia aos poucos.

-- Bem, malta, -- perguntou o "Puto" que embrulhava os fios dos micros, ao mesmo tempo que os outros arrumavam o seu material -- sempre vamos para a praia? Temos boleia e tu não precisas da "trotinete", ó pazinho. Sempre vens connosco?

-- E amanhã, como é? -- perguntou Rui, em jeito de resposta -- Quem vem carregar a aparelhagem e montá-la para a farra dos Fernandos? Estão a pensar ir para a sorna a que horas?

-- Lá para as quatro ou cinco. Arranca com a gente.

Rui ficou calado. Acabou de fechar o tripé do prato e respondeu com ar cansado.

-- É tarde. Não disse nada em casa e a "Velha" fica em pulgas, se eu não aparecer à hora habitual. Vão vocês e eu amanhã venho cá buscar esta merda. Divirtam-se. Boleia... alguém quer?

-- Vê lá se levas tautau no "tutu", seu copinho de leite.

Perante a negativa à sua oferta de boleia, Rui despediu-se. Chegando à poeta parou e voltou para trás. Os amigos pensaram que ele resolvera acompanhá-los. Momentos depois Rui recomeçou a andar, mas uma vez mais retrocedeu e fitou os companheiros.

-- Afinal, vens ou não vens com a gente? -- inquiriram.

-- Não, não vou. Foi porreira esta noite, não foi? Afinal, engataste o "borracho", Jorge? -- riu e acenou. -- Tchau, malta, até amanhã, ou talvez não. Divirtam-se.

Jorge encolheu os ombros e resmungou:


-- Este gajo está esquisito. Arrancou, parou, voltou a arrancar, voltou a parar, voltou para trás, despede-se assim... Fez uma actuação que foi um espectáculo... Mau!...

-- Que é que estás para aí a rezar, ó "Zé das Osgas"?

Sem se mostrar chateado, Jorge olhou Pépé, frustrando as intenções deste e retorquiu, continuando com a sua tarefa:

-- Nada, nada. Estava só a pensar.

Dez minutos mais tarde os sete ou oito rapazes dirigiam-se para a praia, tagarelando em alta vozearia.

Entretanto, Rui partira. A casa não era muito distante. Sentia-se bem e embora a noite continuasse quente, sempre se estava melhor que na sala. A mota roncou, mas o rapaz desligou-a. Desmontou e iniciou o regresso ao clube. Porém, dois ou três passos apenas e retrocedei. Montou na "trotinete", ligou o motor e partiu, enquanto pensava, para se convencer, que a praia àquela hora era um disparate. Esperando que o encarnado cedesse lugar ao verde, Rui pensou que poderia fazer uma surpresa à malta e logo que o sinal lho permitiu, arrancou. Virou para a rua que o levaria à praia. Contudo, não percorrera ainda dois quarteirões e nova decisão fê-lo inverter a marcha, caminho de casa.           Continuava alegre, bem disposto, e a deslocação do ar era-lhe agradável no calor húmido daquela madrugada. Mantinha-se na memória a actuação há pouco terminada e o seu samba, de que tanto gostava e pusera os presentes ao rubro, continuava a martelar-lhe a cabeça; um ritmo quente como a sua terra, como a noite, como ele próprio se sentia pela satisfação, pela sua força interior, pela vivacidade dos seus dezoito anos.


Apesar da velocidade a que já seguia, parou ao ver um amigo dos que há pouca saíra do clube. Trocaram algumas palavras e ao contrário do que era um costume seu, recusou a boleia que lhe era pedida. Queria chegar a casa para se deitar. Contudo, pensou depois, apenas seria preciso fazer um pequeno desvio que o faria perder uns escassos cinco minutos. Sentia pressa de chegar.

Porquê? Não o sabia.

Pelo caminho que levava, uma rua mais fácil, mas menos rápida por causa dos sentidos únicos e das proibições de mudanças de direcção, estava a cerca de dez minutos de casa, da cama e da mãe. Por uma outra, não a mais fácil, mas a mais rápida e que sempre percorria quando tinha pressa, demoraria três ou quatro minutos. Se acelerasse, a velocidade compensaria a distância.

Luziu o vermelho do semáforo. A ânsia, o cansaço, a embriaguez da velocidade e do ritmo, que lhe martelava incessantemente a cabeça, impuseram-se à sua cautela de condutor. Acelerou e... passou aquele primeiro cruzamento. O ponteiro do velocímetro encostou à direita; o motor aumentou o ronco. Rui olhava em frente, para o semáforo do cruzamento seguinte e apostou em passá-lo.

-- "Vai, Rui, passa. Vai, Rui, passa." -- ribombava-lhe a ordem na cabeça.

A falta de uma árvore permitia que um minúsculo candeeiro cumprisse a sua missão. Rui sentiu-se momentâneamente encadeado. Por instinto, tentou reduzir a velocidade da mota. A atenção concentrou-se nesse esforço. Foi-lhe inaudível o pequeno ruído de um carro que se fazia ao cruzamento. Mais que uma real visão do perigo, um quase pressentimento, um pressentimento de que algo de terrível ia acontecer preencheu-lhe o espírito e o corpo.


Mais que ouviu, sentiu um barulho índefinível. Sentiu-se rebolar pelo chão, depois de um vôo interminável. Tentou levantar-se. As luzes acendiam e apagavam. O som de muitas vozes, de correrias chegava-lhe aos ouvidos. Após duas tentativas vãs, conseguiu levantar-se, mas cambaleou. Duas mãos seguraram-no fortemente.

-- Então, Rui, aguenta-te, pá. Tem calma, que já tratamos de ti.

O ferido ouviu um carro deter-se junto de si. Quatro mãos agarraram-no em peso, enquanto alguém lhe cobria a cara com um pedaço de pano. A cara estava molhada e ao passar uma das mãos por ela verificou que era um líquido viscoso. Meteram-no veículo que partiu veloz, apitando insistentemente.

-- Sai-me da frente, senão levas uma purrada. -- gritou o motorista, afrouxando e virando à esquerda com uma forte inclinação e um intenso e agudo chiar de travões. A carrinha que se apresentava pela direita parou. Dentro, Jorge emudeceu, ao mesmo tempo que Armando comentava:

-- Este vai jantar? Quem será o gajo?

Como era de calcular, só lhe respondeu o silêncio que se fizera dentro da viatura.

Sem grandes pressas seguiram o carro que transportava o ferido, já que o caminho para a praia tinha passagem obrigatória pela frente do hospital.

Horas depois, já para o fim da manhã, o toque do telefone acordou Jorge e a voz de Pépé, embargada pelos soluços, ouviu-se:.


-- Jorge!? Sabes quem era o gajo que passou por nós esta madrugada, para ir "jantar"? -- calou-se por momentos -- Era o Rui! Passei há bocado pela casa dele e vi a "trotinete" feita num oito. Fui lá e contaram-me. Agora vou arrancar para o hospital.

A tarde ia alta quando Rui despertou.

Sentindo os movimentos tolhidos, apalpou-se. Cabeça, braços e tronco estavam ligados.

Uma vez mais, como fizera durante o vôo e a viagem para o hospital, horas antes, perguntou para si:

-- Por que me aconteceu isto a mim? Porquê, meu Deus? Por que me aconteceu isto a mim? Porquê, porquê?

De novo, a resposta não surgiu. Na verdade, pensou, como responder a uma pergunta que não tem uma resposta humanamente lógica? Só uma quase certeza tinha e que suscitava novas interrogações: o quê ou quem o empurrara para aquilo?

Encolheu os ombros.

Começou a entrar numa fase de delírio, sem suspeitar que a resposta lhe seria dada anos mais tarde.

 

Crime!

-- Bom dia, Senhor doutor. Dá licença?

-- Então, o que se passa?

-- É por causa da menina. Descobrimos que não vê e viemos cá para ouvir o Senhor doutor.

-- Vamos preencher a ficha e já se vai ver. O nome da menina?

-- Chama-se Clara Silva.

-- Data de nascimento?

-- 7 de Fevereiro de 1956.

-- Vamos lá ver o que há. Olá pequenina. És muito engraçada, sabes?

Como se percebesse e agradecesse o elogio o bebé sorriu.

O exame não demorou muito e sem alarme surgiu o diagnóstico:

-- A menina tem de ser operada, mas é cedo. Cinco meses é demasiado cedo. Dentro de três meses ou quatro será o ideal. É um glaucoma e como sabem não é perigoso, se for descoberto a tempo, tratado, vigiado e operado na ocasião devida. Até cerca do ano e meio não haverá problemas, mas depois disso pode vir a causar uma cegueira total e irrecuperável. têm de ter cuidado e até lá vão fazer o tratamento que vou indicar.

Numa folha de papel uns rabiscos, significando a luta aconselhável até à operação.

-- Dentro de três meses marcaremos a operação e tudo se resolverá. Adeus, minha pequenina.


A criança riu de novo.

-- Bom dia, Senhor doutor.

-- Bom dia e até breve. Dentro de três meses, não esqueçam.

No exterior a temperatura era agradável. O sol brilhava e uma brisa suave amenizava o ambiente.

-- Que achas, mulher?

-- Ora. Tu caminhas daqui a dois meses e eu abalo contigo. Lá também há médicos e além disso a gente não sabemos quanto custa a operação.

-- Isso não é causa. Podemos voltar e perguntamos ao senhor doutor, mas quer-me parecer que não é lá muito dinheiro. Temos algum dinheiro junto e se for preciso pede-se um empréstimo. A tua viagem pode esperar. Vais logo que a menina for operada e possa passar sem o senhor doutor. Não percebo nada disto, mas quer-me parecer que não deve ser muito tempo.

-- Abalo contigo. Vais para essas terras e ainda por lá passas mal. Não conheces as Áfricas e eu não quero ficar cá sozinha.

-- Mas a menina tem que ser operada. Eu já não sou um garoto e sei-me governar só. Ficas cá com os outros filhos e o tempo passa depressa.

-- Não quero. Lá também deve haver doutores.

-- Também há, mas a gente não sabe se são bons. Este já conhece a gente e tem fama cá na terra. Então, a menina fica cá com os teus pais e vai depois. Eles sabem tratar dela.

-- Não deixo a menina e não fico. Abalo contigo para as Áfricas.


A brisa soprou mais forte e uma nuvem cinzenta encobriu o sol. Clara chorou, apenas um vagido, e depois voltou a adormecer. O casal continuou a andar, agora em silêncio. Ela impunha a sua vontade e ele aceitava sem grandes reticências. Quando Clara entrou em casa ao colo da mãe, o sol ainda estava encoberto. Abriu os olhitos quando a deitaram no berço e novo choro se fez ouvir, curto e baixo. A fralda estava seca, tinha comido há cerca de uma hora e dentes ainda não apareciam. A mãe olhou para ela, o pai veio espreitar, na mão um copo de vinho.

 

O navio encostou à amurada do cais. A escada de desembarque já estava descida e a Polícia e bem assim a Guarda Fiscal já haviam subido para bordo. Começou a saída dos passageiros.

Um casal com quatro filhos ao lado e um ao colo dirigiu-se ao balcão dos serviços aduaneiros do porto. Malas foram abertas, papelada preenchida e entregue, bagageiro que se procurava e finalmente tudo ficou resolvido.

A etapa seguinte era o alojamento, a apresentação ao serviço e uma deslocação, se assim se determinasse. E na verdade, dias depois a família lá partiu de novo. No entanto, desta feita a viagem seria bastante mais penosa.


O clima africano era totalmente diverso do metropolitano. O sol escaldava, o calor era sufocante e a humidade tornava os corpos pegajosos. As crianças estavam irrequietas; não estavam acostumadas a um tal calor e a cada passo pediam água para se refrescarem o que, longe de acontecer, ainda piorava a situação. Cada novo copo que era bebido fazia aumentar a transpiração que escorria e empapava, como se os corpos com as roupas tivessem saído de uma tina de água. O caminho era péssimo; a estrada, de terra mal batida, tinha mais buracos que uma rede.

Os solavancos do carro, a extensão do caminho percorrido, o calor e a sede começavam a ser insuportáveis.

Deitada no berço, Clara acordara há algum tempo e de todos era a que mais se manifestava. Os bracitos não paravam e as pernas pareciam a de um ciclista em plena actividade. Chorava ininterruptamente e assim contribuía para aumentar a excitação nervosa dos restantes. A hora do biberão já passara havia um bocado. A camisolinha de lã estava ensopada; estava-se em plena época das chuvas, a estação quente naquela região de África.

 

 

O pequeno monomotor deslizou na curta pista e elevou-se lentamente. No seu interior Clara olhava, meio intrigada, a actuação do piloto.

Olhava para fora, mas nada, ou quase nada, lhe era permitido ver. Na verdade, apenas conseguia divisar os vultos e mesmo esses, se fossem de objectos muito próximos. Na linda carinha de Clara algo destoava: olhos um tanto desorbitados revelavam, a quem a não conhecesse, que qualquer coisa estava mal.

-- Mamã, não vamos pa casa? -- a sua voz suave fez sorrir o piloto. -- Eu queio a mana. Não gosto estai aqui.


-- Está sossegada. Agora vamos passear e depois vamos para casa para tu ires com a mana brincar. Faz ó-ó.

-- Não queio. Queio bincar co a mana.

-- Agora não podes. Toma este papel e rasga.

Clara era dócil e depressa se acomodava, se a soubessem convencer. Como todas as crianças era linda, meiga, suave, encantadora, em suma.

Cerca de dois anos haviam decorrido desde aquela manhã em que, na terra natal, o médico prevenira da necessidade da intervenção cirúrgica tendente a evitar a evolução da doença que atingira os ternos olhitos de Clara.

Na doce inocência da sua infância, enquanto rasgava o papel que lhe deram, a menina não podia suspeitar que a estúpida teimosia e ignorância da mãe e a falta de autoridade do pai, a quem interessava o vinho e a mulher, sobre todas as coisas, iriam traçar-lhe um caminho tortuoso no futuro.

Já há muito fora ultrapassado o prazo do ano e meio que o médico referira como limite para uma operação com resultados positivos, mas só agora aqueles seres, estupidamente egoístas e pouco evoluídos, se decidiam a uma visita a um oftalmologista. Sim, em África havia médicos, mas eram seres humanos e não deuses. E só estes seriam realizadores de milagres.

Farta de rasgar papel, Clara adormecera e o sorriso suave iluminava-lhe o rosto lindo.

Cerca do meio dia a avioneta aterrou, mas só na manhã do dia seguinte teriam ligação para o seu destino.

 


O doutor Williams era um homem alto e seco, queimado pelo sol, aparentando uns cincoenta anos. Para os doentes era afável e cordial. Era um americano, pastor protestante que se encarregava de divulgar o cristianismo, e médico que praticava a medicina em terras de África, por amor ao próximo e gratuitamente, quando as autoridades da classe o permitiam, ou cobrando àqueles que possuíssem algo de seu, mas quantias pouco mais que simbólicas para manter o seu pequeno hospital. A sua fama de médico cirurgião e de homem íntegro há muito se espalhara por todo o território.

              Olhou a mulher baixa e quase gorda que entrava no consultório e a seguir fixou-se na menina que trazia ao colo.

-- Sinhora pode sentar aqui neste cadeira. Hello, meu querida, que passa contigo?

-- Bom dia, Sr. Dr. Vim cá por causa da Clara, que é cega, e a gente queria saber se se pode fazer alguma coisa.

-- Vamos ver o menina. Como chama?

-- Clara.

-- Tem um nome bonita, sabes?

-- Shabo. Chamo-me Clara e tenho estes anos. E tu como chamas-te? -- perguntou, enquanto espetava dois deditos.

-- Minha nome Williams. Sabes dizer?

-- Wimils é feio, nã goto. O meu pai é mais bonito.

-- Lovely child. -- o doutor riu com gosto e repetiu: -- Lovely child. Vem cá.

Clara agarrou-se com mais força ao pescoço da mãe, que a empurrou. A criança começou a chorar.

-- Vai ao senhor doutor e está calada. Ninguém te vai fazer mal.


Clara gritou ainda mais.

-- Deixa estar o menina. Vou escrever ficha e depois vou ver as olhos dela.

Preenchida a ficha rapidamente, levantou-se, aproximou-se de Clara e acariciou-a. Fez ouvir a voz calma e a menina pareceu tranquilizar-se.

-- Vem comigo. Nao fazer mal. Anda no minha cola. Estou triste porque nao gostas minha nome e se tu nao vens para mim vou chorar.

-- O teu nome é feio, mas nã queio que choies.

Clara estendeu os braços e a mãe olhou-a admirada. Era muito arisca e raramente ia para o colo de alguém, senão do pai, dela própria, da irmã ou de António.

O Dr. Williams sentou-a na marquesa e com todo o cuidado abriu-lhe as pálpebras, observando atentamente. Clara, muito sossegada, sorria.

-- Penso nao vou poder fazer nada. Demorou muito tempo para trazer o menina. Tem uma glaucoma e operaçao tinha de fazer quando o menina tinha uma ano e meio. Mas eu tento salvar o olho da Clara.

Sem perceber a verdade, Clara agarrava a mão de Williams, sorrindo sempre.

A porta abriu-se e no umbral desenhou-se a elevada estatura do Dr. Williams, ainda com a touca e a sua habitual expressão indecifrável.

-- Como está o senhora? Acabou a operaçao e Clara vai no quarta daqui mais dez minutas.


-- Bom dia, senhor doutor. Como é que a operação correu? Acha que a menina vai ficar boa?

-- Muito difícil saber. Senhora veio muito tarde e doença agora tem muito grave. Só pode saber depois. Dez dias ou quinze para eu ver.

-- Mas, senhor doutor, preciso de abalar para junto do marido e dos filhos. Eles estão sozinhos.

-- Nao tem uma criado que pode cozinhar? Nao tem filha crescido que pode ajudar pai e as irmaos?

-- Temos um criado e a minha filha mais velha já tem doze anos.

-- Entao, marido pode comer, filha ajuda irmaos e arruma casa. Clara tem de ficar algum tempo para eu ver. Ela precisa mais ajuda que sua marido e outras filhos.

-- Tenho que me ir embora. Já saí de casa há cinco dias e não sei o que é que está a acontecer lá.

-- Sua problema para ficar mais tempo é dinheira, eu empresta e depois senhora manda.

-- Não é por causa do dinheiro. Não trouxe muito, mas chega para as despesas.

-- Entao senhora tem dinheiro, sua marido nao morre com fome, filha pode arranjar casa e Clara preciso ficar. Porquê vai embora?

A voz do médico era seca e os olhos fitavam aquela mulher, como que tentando perceber tamanho empenho num regresso que tanto poderia prejudicar o encanto que era a criança, que poucos metros além dormia ainda sob o efeito da anestesia. E pensava, como tinha sido possível deixar uma doença chegar àquele estado, por um estúpido egoísmo como o que aquela mãe patenteava.


-- Está bem, senhora vai embora, mas só quando passa mais três dias. Amanhã vou fazer tratamentos nos olhas da Clara e digo como os olhas estao. Até amanhã.

Virou costas deixando-a na sala. A mulher resmungou em voz baixa:

-- Quem manda em mim sou eu. Não querem lá ver este fulano? O meu homem está à minha espera. Não é por me ir já que a miúda vai ficar pior.

Quanta verdade, nesta afirmação. Já há algum tempo que o caso de Clara era irrecuperável e só um milagre lhe poderia salvar a visão. Um médico nada poderia fazer e muito menos aquele que, pese embora o facto de ser um óptimo cirurgião, não era um oftalmologista.

Três dias passados, com um dos olhos tapados com gaze e a recomendação da necessidade de uma nova operação, desta feita ao outro olho, Clara e a Mãe iniciavam a viagem de regresso. Toda uma noite de comboio até onde pudessem apanhar um avião que as levaria à capital onde, como na vinda, fariam um transbordo. Demorariam dois dias, entre viagens e esperas.

O pequeno avião tocou a pista e finalmente, poucos minutos depois, a pequena Clara papagueava alegremente com a irmã. Era ainda cedo, na manhã, quando chegaram a casa.


Antes de sair para o serviço, os pais trocaram algumas breves palavras sobre o tratamento feito e a fazer e logo a seguir, muito pouco tempo após a chegada, fecharam-se no quarto. Uma semana passara desde a operação e onze dias se haviam escoado desde a partida; sim, ela tinha de regressar. Os desejos incontroláveis, quase animalescos, a cama, o marido obrigavam-na a regressar. A menina... ora, estava cega e não podia voltar a ver. Para quê preocupações?

 

-- António! Onde estás? Vem cá.

Um preto grandão, com um sorriso ainda mais grandão no rosto, abeirou-se de Clara. Ela estendeu-lhe os braços e o rapaz pegou-a ao colo.

-- A minina me chamaste? Estás querer o quê?

-- António, a Clara quer bolinho. Dá-me.

-- Bôro já acabaste e o mãe inda não fizeste mais. Como vai dar bôro na Crara?

A miúda começou a espernear e desatou numa tal gritaria que a mãe em breve veio indagar sobre o acontecido.

-- Quero bolo. Tenho fome e o António não me quer dar bolo.

-- Já não há bolo, Clara. Cala-te, senão apanhas uma palmada. O teu pai está a dormir e não quero que acordes ele.

António olhou a patroa e acariciou Clara.

-- Não choras mais, Crara. António te vou levar de passear no bixcreta. Queres vir?

-- Quero, quero. Leva-me! A Clara não vai chorar mais.


A vida da menina nada mais era que isto: brincar com um irmão, que entretanto nascera, passear com a irmã que mais se preocupava com ela e andar de bicicleta com António, o servente do serviço do pai. Seria uma infância quase igual às demais, não fora a impossibilidade de acompanhar as outras crianças da sua idade, para quem era um peso a cegueira de Clara, linda e meiga nos seus seis anos.

Radiante coo o passeio na bixcreta, como dizia António no seu português macarrónico, Clara esquecera o bolo. O irmão mais pequeno acordara entretanto e lá foram os dois para as suas habituais brincadeiras isoladas. Jorge era o encarregado de, à sucapa, trazer da despensa a farinha com que depois faziam os bolos, nome pomposo que davam à massa feita só com a farinha, açúcar e água; colocada depois em forminhas de latão, eram postas na grelha do frigorífico a petróleo, o seu fogão, como diziam. A seguir era o besuntar das roupas, das caras dos bonecos e qualquer outra coisa que viesse à ideia, terminada que fora a refeição dos "filhos".

Nesta rotina se foram escoando dias, meses, anos. Um dia, ao regressar do serviço, já tocado como era costume, o pai sentou Clara sobre os joelhos e perguntou-lhe:

-- Queres ir andar de avião?

-- Que é um avião, papá?

-- É um pópó que anda no ar. Tem duas asas e três rodas.

-- Se não tinha rodas, parecia um passarinho?

O pai riu com gosto por causa da comparação e a garota mirou-o.

-- Parecia um passarinho, sim senhor. Mas queres ir no avião?

-- E a mana e o Jorge também vão?

-- Não. Vais tu e a mãe a visitar um senhor e depois vens outra vez.

-- Quem é o senhor. É daqui?


-- Não. É um senhor doutor que vai tratar os teus olhos. Queres ficar a ver?

-- Quero, quero! Pra ficar a ver quero ir a esse senhor. Quando é que vamos?

-- Para a semana que vem.

Nessa noite a menina sonhou que via campos verdejantes, com grandes árvores carregadas de apetitosos frutos e um riozinho que lhe acenava, convidando-a a correr ao lado dele, até desaparecer por detrás de um monte muito alto, no cimo do qual um anjo a olhava sorrindo.

 

-- Tu és muito bonita, sabes? Como te chamas?

-- Chamo-me Clara, mas não sei se sou bonita. Não posso ver a minha cara como as outras meninas. O meu pai disse que eu vou ficar a ver, quando for visitar um senhor.

-- Gostavas de ver a tua cara? E flores? Gostas de flores? São muito bonitas.

-- Só gosto de rosas porque cheiram bem. Mas picam-me.

-- Está bem. Prometo-te que vais ver a tua cara, as flores, os passarinhos e as coisas todas de que gostas.

-- E posso ver as cores? Eu já sei que há azul, branco, preto, encarnado e amarelo. Há mais cores?

-- Há sim e depois vais conhecê-las. -- e virando-se para a mulher: -- Depois de amanhã a senhora esteja no hospital às oito horas. Vou operá-la às dez. Depois, dentro de oito dias tirarei os pontos e a senhora poderá regressar.


-- Quanto é que vamos ter de pagar da operação? O senhor doutor, como sabe, não somos ricos. É só o meu marido a ganhar e o ordenado dele é pequeno.

-- Ainda não lhe pedi nada, mas fica já resolvido. Só vai ter de pagar o internamento pois pela intervenção nada terá a pagar. Vou falar com o Sr. Director para se ver da possibilidade da redução no preço do quarto.

 

Decorrera um mês e desde que fora operada Clara não tivera um queixume; dir-se-ia que a vontade de ver funcionara como um anestésico. Já podia ver as flores e gostava de outras, que não só de rosas, mas ainda mais destas que a já não picavam tanto. Corria, saltava, não parava um minuto. Parecia querer recuperar todo o tempo perdido. Para ela, a escuridão passara. Porém, desconhecia o que o médico dissera dias antes à mãe:

-- Como a senhora sabe, a Clara tem um glaucoma e quando este é operado oportunamente tem recuperação. Os senhores deixaram passar muito tempo e o que se pode fazer agora é muito pouco. A menina vai recuperar a visão, mas será só por alguns anos e poucos. Cerca dos dez começará a perder e nada mais se poderá fazer. Como disse, o vosso atraso e a intervenção do Dr. Williams foram desastrosos para os olhos da vossa filha.

Esta a verdade, a trágica verdade que Clara ignorava. Até quando?


A família mudara-se para a capital, para onde o pai de Clara fora transferido. No bairro, como todas as crianças, depressa fizeram amizades. Clara era aceite, se bem que posta de lado em certas brincadeiras. Na realidade, o seu grau de visão era reduzido e frequentemente tropeçava nos mais diversos obstáculos. Por parte dos companheiros o facto era sempre objecto de galhofa. Com o correr dos dias a pequena cega foi-se afastando lentamente do grupo que, por seu turno, nada tentou para a reintegração. Estava cada vez mais só. O próprio irmão juntava-se às outras crianças, abandonando-a.

O dia a dia pesava cada vez mais a Clara. Sentia-se abandonada pelos irmãos e pelos amigos. Apercebia-se que o tratamento que os pais lhe dispensavam era diferente do dos irmãos e sentia-se triste. Num canto do quintal, sem que ninguém a visse, chorava. No seu íntimo agitava-se algo desconhecido.

"Quem fez as pessoas cegas? Eu não fiz mal a ninguém. Por que é que vejo pouco e todos se riem de mim?" -- pensava, na sua solidão.

               Clara chegara já à idade escolar. Com atenção seguia tudo o que dizia respeito aos irmãos e aos companheiros que, de manhã uns e à tarde outros, quase haviam desaparecido. Às perguntas da garota, uns e outros respondiam invariavelmente:

-- Vamos para a escola e brincamos lá.

Cada uma destas palavras martelava-lhe os ouvidos: "Vamos para a escola".

Ela também queria ir para a escola, mas os pais não a mandavam. Um dia, dois, três, sempre a mesma pergunta e sempre a mesma resposta:

-- Vamos para a escola.

Chamou um dos companheiros de brincadeiras:

-- Carlos, Carlos! Vem cá. Quero-te perguntar uma coisa.


-- Já vou. Depois de lanchar vou aí, está bem?

-- Está. -- respondeu contrafeita. E deitando uma isca:                -- Tenho uma coisa para ti.

-- Vou já. O que é que tens para mim? -- a isca pegara.

-- Gostas de ir à escola?

-- Não gosto nada. A professora é velha, gorda e feia e só podemos brincar no recreio. De resto temos que estar dentro da sala e fazer cópias, contas e ler a lição e aprender a tabuada. Se a gente fala a professora bate-nos com uma régua. Não gosto da escola. E agora dá-me o que tens para mim. Quero ir lanchar.

Clara tirou uma pastilha elástica do bolso do vestido e com ela na mão Carlos partiu em correria desordenada.

"Não gosto nada. (...) só podemos brincar no recreio. (...) temos que estar dentro da sala e fazer cópias, contas e ler a lição e aprender a tabuada... não gosto nada...".  

Enquanto se dirigia para a cozinha, procurando a mãe, os pensamentos atropelavam-se-lhe no espírito.

-- Mãe?! Mãe, onde está?

-- Que me queres? Não vês que estou a preparar o jantar? Já é tarde. Não me chateies agora.

-- Eu não quero chatear, só quero perguntar uma coisa.

-- Daqui a bocado. Agora não. Desanda lá pró pé da tua irmã e pergunta ao teu pai quando ele chegar.

A pequena deu meia volta e saiu silenciosamente.

-- Não fiz mal nenhum. Por que é que falou assim? É má. -- murmurou.


Triste, muito triste, procurou a irmã, a mais nova das duas que tinha. Gostava muito dela e de todos os irmãos era ela a que mais se preocupava com ela.

-- Posso vir para aqui, para ao pé de ti, Fátima?

-- Podes sim, Clarinha. Senta-te aí e não faças barulho porque estou a fazer os meus deveres.

Do rosto da menina desapareceu o sorriso que lho enfeitara quando a irmã assentira na sua presença.

               "Não gosto... a professora é velha... temos que fazer cópias..."

-- Fátima, estás a fazer uma cópia?

-- Já estou quase a acabar e depois vamos brincar, está bem?

-- Está. -- fez uma pausa e de novo interrompeu: -- O que é uma cópia, Fátima?

A irmã não respondeu e Clara não insistiu. Esperou pouco. Fátima acabou, fechou o livro e virou-se para ela:

-- Uma cópia?

-- Sim. O Carlos disse que na escola faziam cópias, mas eu não sei o que é uma cópia.

-- Eu estive a fazer uma. A professora marca uma lição do livro e depois temos de copiar para o caderno, percebes?

-- Não. O que é copiar?

-- Copiar é repetir no caderno o que estamos a ler no livro. Temos que escrever todas as palavras da lição no caderno para aprendermos.

-- Agora já percebi. O Carlos disse que não gosta de andar na escola. E tu gostas? Não tens medo de apanhar com a régua?


-- Não. A nossa professora só bate quando a gente está distraídos a falar ou quando não fazemos os deveres.

-- Então, por que é que o Carlos não gosta da escola e tem medo de apanhar?

-- Ó! Com certeza ele não faz os deveres ou então está sempre a brincar na aula. Anda comigo, vamos brincar um bocadinho.

-- Ó Fátima! Eu não posso ir para a tua escola?

A rapariga olhou a irmã, abanou negativamente a cabeça e mentalmente deu a resposta. Deu a mão a Clara e saíram para o quintal.

Já anoitecera e a miudagem recolhera a casa depois de mais um dia de escola, de traquinice, igual a tantos outros de tantas crianças, mas totalmente diverso do dia a dia de muitas outras, de Clara, por exemplo.

-- Anda Clara, corre. O papá vem aí.

De mão dada com a irmã correu. Fátima saltou, mas Clara tropeçou e caiu: a fraca visão não a deixara ver a pedra que a irmã saltara. O pai levantou-a.

-- Magoaste-te filha? -- soluçando, a garota fez que não com a cabeça. -- Então, por que choras? E a ti não te disse já para teres cuidado com a tua irmã? Não vês que ela é cega e não pode correr?

-- Não sou cega nada. Eu também vejo.

Mais que uma negativa, foi um grito de revolta que saiu do íntimo da pequena Clara. -- Não quero ser cega.

O homem não redarguiu. Sentia a revolta da filha, porém não se preocupou muito. Aquilo passaria em breve.


No dia seguinte, à hora a que as irmãs deviam ir para a escola, Clara estava acordada. Viu as duas saírem para tomar o pequeno almoço, regressando ao quarto minutos volvidos e logo partirem de novo, desta feita para as aulas.

-- Até logo Clara. Dorme, que ainda é cedo.

-- Não quero dormir mais. -- e duas lágrimas rolaram pela face da garota.

 

Dias a passarem, folhas de calendário a serem viradas, mas a vida, essa continuava sem alterações.

-- Tu nunca vais à escola porquê, miúda?

-- Não sei e não me chamo miúda, chamo-me Clara. E Tu?

-- Chamo-me Chico, ando na escola e moro na outra rua. Queres vir ver onde é? Vamos lá a correr e vimos já.

-- A minha mãe não me deixa. Diz que eu posso cair e partir a cabeça.

-- Oh, só parte a cabeça quem é cego. Sabes o que é um cego?

-- Eu não sou cega e se dizes que sou, atiro-te uma pedra e parto-te a cabeça.

-- És cega, sim, e não tenho medo de ti.

Rapidamente Clara abaixou-se e agarrou numa pedra que atirou ao miúdo. Não lhe partiu a cabeça, mas ele não deixou de a sentir com força no peito; fugiu.


Estava naquele bairro há apenas duas semanas e não admirava, pois, a curiosidade da garotada relativamente à nova vizinhança miúda. Para Clara iam recomeçar os problemas. O primeiro já acontecera.

Entrou em casa e foi brincar com os bonecos.

Não queria que os miúdos do bairro a voltassem a importunar acerca da sua visão e pensou na melhor ideia para os enganar.

-- Fátima, tens um caderno velho para me dares?

-- Para que queres um caderno velho?

-- Hoje um miúdo perguntou-me se eu não ia à escola e eu disse-lhe que não. Depois ele disse para eu ir ver a casa dele e chamou-me cega por eu não querer correr. Não quero que me chamem mais cega.

-- Deixa lá, Clarinha. Amanhã dizes-me quem é esse miúdo e eu bato-lhe.

-- Não quero que lhe batas. Ele pode ter mais força do que tu e eu já lhe dei uma pedrada. Se tu me deres um caderno, eu posso fingir que vou prá escola e eles já não se metem comigo.

-- Está bem, dou-te um caderno, mas a mãe não te vai deixar sair de casa.

-- Vais ver que deixa. Digo-lhe que vou contigo e quando chegar ao parque, volto para trás. Eles vêem-me ir contigo e pensam que também ando na escola.

-- Por que gostavas tanto de ir à escola, Clara?

-- E tu, por que é que gostas?

-- Mas eu tenho que ir. Tenho que aprender a ler e a escrever para ir trabalhar.

-- Pois é, tu podes e eu não, porque sou cega.

Fátima sentou a irmã nos joelhos, brincando com os seus cabelos, ao ver que um ar triste lhe aflorara o rosto.


-- Qualquer dia há-des poder ver e depois já podes estudar.

-- Sabes uma coisa, Fátima? Gostava de estudar muito para ser doutora e curar todas as pessoas. Não gosto de doenças e ha muita gente doente.

-- Toma lá este caderno. Espera aí, que eu vou procurar o livro da Primeira e dou-to. Agora vai pedir à mãe para ires comigo. Mas já sabes que não te podes demorar a almoçar senão, não te levo comigo.

Contente Clara correu para a porta.

-- Mãe! Posso ir com a Fátima, quando ela sair depois do almoço?

-- És doida? Que é que vais com ela fazer para a escola?

-- Só vou até ao parque e depois volto para casa. Levo um livro e um caderno que a mana me deu e os miúdos daqui pensam que vou estudar e não me perguntam mais nada.

-- Está bem, vais, mas só até ao parque. Mas tens de comer a sopa toda.

-- Já tenho oito anos e não é preciso a mãe me dizer como diz ao Jorge.


Após o almoço e tal como estabelecera com Fátima, lá foram juntas. Chegada, que foi, ao parque e depois de se terem cruzado com outros garotos de volta ou a caminho das aulas, Clara despediu-se da irmã. Já de regresso pensou que, se fizesse o mesmo trajecto podiam descobrir o truque; por outro lado, não conhecia bem o outro caminho, pois ainda não o explorara com os irmãos, mas não se perderia. Daria a volta ao parque e por certo retomaria a rua. Mais volta menos volta e estaria em casa. Devagar, não fosse tropeçar nalgum pedregulho, começou a andar. Tudo corria bem, até que um enorme cão começou a ladrar furiosamente dentro de um quintal.

Se coisas havia que aterrassem Clara, uma delas era o ladrar de um cão. A recordação de uma mordidela, quando ainda quase cheirava a cueiros, impelia-a a um descontrole total, sempre que pressentia qualquer animal. Para não fugir à regra, desatou a correr, enquanto gritava pela mãe. Todavia, quer esta quer a irmã estavam longe e não a podiam ouvir. Que fazer?

-- Leão! Quieto! Anda cá pequena, não corras tanto que podes cair.

Mas o terror de Clara era tanto que nada ouvia, nem a ordem ao cão, que se calara entretanto, nem o chamamento do dono do bicho. Pedras, paus, buracos, nada parecia deter a garota, cujos pés pareciam nem tocar o chão. Sem se aperceber, passou a esquina do parque. Um pouco à frente já não havia casas e o caminho de terra batida não era muito utilizado. Quando conseguiu dominar-se e parar, Clara sentiu-se perdida. Não via o muro do parque e em seu redor só divisava capim alto.

-- Onde estou eu? Perdi-me. Como é que vou fazer para voltar para a minha casa?


               Para quem não tivesse o pequeno grau de visão de Clara, seria fácil a resposta, pois num raio de cinquenta metros em redor tinha a solução; mas esta não estava ao alcance da infeliz criança. Começou a chorar. As lágrimas nada resolveriam, mas serviriam para desabafar e minutos volvidos acalmou-se um pouco, embora se continuassem a ouvir soluços profundos. E se o cão aparecesse outra vez?

-- Anda cá, miúda. Não me ouviste chamar?

-- Eu não. Queria ir para a minha casa, mas perdi-me. Eu vinha perto do muro do parque e um cão quis-me morder.

-- O cão não te faz mal. É meu e está preso. Queres ir vê-lo?

-- Não! Tenho medo dos cães. Um já me mordeu.

-- O Leão não te morde. Gosta muito de crianças. Mas está bem. Onde moras? Nunca te vi por aqui.

-- Moro na outra rua do outro lado do parque. O meu pai é guarda e só moramos aqui há um mês.

-- Mas estás tão perto do parque. Não vês ali aquele muro?

-- Não, só vejo capim e árvores.

-- Não vês? Ah, és cega. Que tens nessa vista?

-- Não sou cega nada, só vejo mal.

-- Não percebo estes pais. Os cegos não devem andar sozinhos na rua. E se caísses? Vem cá, minha pequena.

Tomou Clara nos braços. Ela já não tinha medo do cão; ao colo daquele homem o cão não lhe iria fazer mal. Rapidamente alcançaram o parque e Clara disse ao homem que a levava cuidadosamente:

-- Ponha-me no chão. Se o cão não me vem morder, já sei ir sozinha. Quer ver? Não me diga nada.

-- Não, não, prefiro levar-te ao colo.

-- Não é preciso. Ponha-me no chão.

Já no chão, Clara perguntou ao companheiro:


-- Por que é que os cegos não podem vir sozinhos para a rua?

-- Porque se podem perder, como tu, porque pode aparecer um cão e não podem fugir, podem cair e outras coisas.

-- Quais coisas?

-- Ora, muitas coisas.

-- Olhe, já estamos na minha rua. Conheço este portão amarelo. A minha casa é já ali.

A mãe de Clara, à porta do quintal, olhou com estranheza para a filha e para o acompanhante.

-- Então, não vieste por ali porquê?

-- Eu vinha pelo outro lado da rua, para os meninos não me verem, e um cão começou a ladrar e eu tive medo. Este senhor foi-me buscar e veio comigo.

-- Como está a senhora? O meu cão está preso, mas ladra sempre que passa alguém perto do portão e a menina assustou-se. Começou a correr e podia-se ter magoado. A senhora e o seu marido não a deviam deixar andar só na rua. Qualquer dia tem um desgosto.

-- A minha filha é cega, mas ainda vê um pouquinho e como vê todas as miúdas ir à escola, também quer ir. E como não pode ir à escola, ela finge que vai para as outras não verem que ela é cega.

-- Ela cá não pode ir, mas em Lisboa já há escolas para cegos. Se ela gosta tanto e quer ir, por que não a mandam para lá?

-- Ora. Ela ainda é muito pequena e precisa de estar perto da gente.


-- A menina tem oito ou nove anos, não? É alta, mas vê-se que é nova. Olhe que esta era a melhor idade para ela ir. Até acho que ela já devia ter entrado numa escola dessas.

-- Ela ainda é muito novinha e a gente também não tem dinheiro.

-- E a Assistência não ajuda? Já trataram de alguma coisa?

-- Nós não. Eu não percebo nada dessas coisas e o meu marido não tem tempo.

-- Bem, minha senhora, a menina está entregue e eu tenho mais que fazer.

Irritado, o homem voltou costas. "Eu não percebo nada dessas coisas e o meu marido não tem tempo", pensava enquanto se afastava e comentou em surdina:

-- Francamente... não tem tempo. Ora esta, hem?

 

Bateram à porta e, largando o pano da loiça, Clara foi abrir.

-- Mora aqui o Sr. Silva?

-- Mora, mas não está cá agora. Foi para o trabalho e só está a minha mãe.

-- Chama a mãe, por favor. Diz que está aqui uma assistente social para lhe falar.

-- Pode entrar. Tem aqui uma cadeira. Sente-se, enquanto vou chamar a minha mãe.

A assistente social olhou para a mocinha que saía da sala. Que significavam aqueles óculos escuros? Pensava nisso quando a gorda dona de casa entrou.


-- Faz favor.

-- Venho por causa de um pedido que o seu marido fez, para um lugar nos nossos serviços. Creio ser para a sua filha. É para a que me abriu a porta?

-- Não, não. Essa é cega e é muito novinha. O emprego era para a outra mais velhita.

-- Ah, esta não é a Fátima. Como se chama?

-- Chama-se Clara e só tem onze anos. A Fátima já tem catorze, mas agora não está cá, saiu.

-- Muito bem. Sobre o assunto da Fátima, lamento mas não pode entrar para o lugar em aberto. Como sabem, para se entrar para o Estado é preciso ter dezoito anos. Se ela já tivesse dezassete, talvez se pudesse dar um jeito, mas assim não.

-- Paciência. Pode ser que apareça alguma coisa.

-- Haverá uma possibilidade, mas é uma ideia minha. Se os senhores quiserem, poderei arranjar-lhe um lugar como aprendiza de cabeleireira ou de modista. Conheço algumas pessoas que trabalham nisso e não teria dificuldade. Bem sei que ganharia muito pouco, mas sempre seria melhor que estar aqui fechada em casa. Inclusivamente, com o que ganhasse, poderia pagar os estudos. Enquanto é nova é que deve estudar.

-- Estudar mais para quê? Ela fez a quarta classe e já lhe chega muito bem. Menos tenho eu e ainda não morri à fome. Os estudo são bons para os rapazes. As raparigas querem ir para a escola, mas é só para andarem aí no laró, feitas desavergonhadas.              --Sabe, minha senhora? Estudei cerca de catorze anos e nunca fui uma desavergonhada.


-- A senhora já não é destes tempos. Falo das raparigas modernas.

A assistente, uma rapariga de vinte e muito poucos anos, preferiu não responder. Aquela mulher complicava-lhe com o sistema nervoso. Mudou de assunto.

-- A sua filha mais nova já cegou há muito tempo?

-- É cega desde que nasceu. Foi operada aos dois anos e meio, mas o burro do médico deu-lhe cabo da vista. Depois foi outra vez operada e ficou a ver um bocadito, mas o senhor doutor que a tratou diz que ela vai cegar de todo.

-- Qual foi a causa da cegueira da menina?

-- Ela tem um "glucoma", ou lá como isso se diz.

-- Gostava de falar com a... como disse que ela se chama?

-- Clara. Vou chamar ela. Deve estar a lavar a loiça ou algum trapo.

A rapariga não demorou a responder ao chamamento.

-- Esta senhora quer falar contigo. Que estavas a fazer? Estavas a lavar alguma coisa?

-- Estava a lavar a loiça do almoço. Gosto muito e como não posso estudar nem trabalhar...

-- Por que não o fazes, se gostas?

-- Porque sou cega e como sou cega não posso. Só trabalha quem não é cega.

-- Tu gostarias de estudar ou de trabalhar?

-- Gostava muito, mas...

-- Sabes que em Portugal há escolas para cegos?

-- Não senhora, não sabia. Ninguém me diz nada e por isso não sei nada dessas coisas.


-- Se os teus pais deixarem, queres que trate das coisas para ires para Lisboa?

-- Quero, quero! E depois já posso trabalhar quando for crescida? Já não vou precisar de estar à espera que me dêem tudo. E também posso andar sozinha na rua?

-- Nessas escolas aprendes a ler, a escrever, ensinam-te a lavar roupa, a passar a ferro, a fazer a cama, lavar o chão e talvez até aprendas a cozinhar.

-- Oh! Já sei fazer isso quase tudo, cá em casa. Só não sei cozinhar e passar a ferro. A minha mãe diz que eu me posso queimar.

A conversa entre as duas prosseguia. Clara, que se tornara muito reservada, parecia simpatizar com a visita; só assim a mãe compreendia a sua azáfama a ir buscar e levar bonecos que apresentava pelos nomes. Mas nada de estranho estava a acontecer: pela primeira vez Clara encontrava alguém que se dirigia a ela com toda a naturalidade, falando-lhe como com qualquer garota da sua idade. Além disso, ensinava-lhe coisas que ela pensava não existirem, como uma escola, estudar, trabalhar. Que enorme fortuna encerravam essas expressões.

 

O grande avião rolou pela pista, pouco depois imobilizou-se na placa e os passageiros começaram a descer.

-- A irmã vê alguém que possa resolver o nosso assunto? Não seria melhor irmos tentar chegar junto do autocarro?


-- Talvez não valha a pena. A nossa Madre disse que a menina vinha com a hospedeira. Podemos esperar perto do gabinete da Polícia. Toda a gente tem de passar por lá e assim é fácil descobri-la.

Sim, toda a gente tinha de passar pelo gabinete da Polícia e Clara não seria uma excepção. Uma hospedeira e uma rapariga alta e magra, cabelo curto e com um sorriso nos lábios acercavam-se de braço dado.

-- Já saíram os passageiros quase todos e ela sem aparecer. Não teria vindo? Será aquela que ali vem com a hospedeira?

-- Não me parece, irmã. É uma miúda de doze anos e aquela já tem uns quinze ou dezasseis.

A funcionária da transportadora aérea dirigiu-se às duas religiosas:

-- Por favor, irmãs. Estão à espera de uma moça que vem de África para um internato?

-- De facto, é o que aqui nos traz. A Clara é esta menina? O que há a fazer para desembaraçar as bagagens?

-- Bem, Clara. Estas duas irmãs encarregam-se de si. Nós tivemos muito prazer em a conhecer e acompanhar e só lhe desejo todas as felicidades do mundo. As irmãs podem aguardar um pouco, por favor, que eu tratarei de tudo.

-- Adeus e muito obrigada.


Dentro de um quarto de hora estariam a caminho de casa e para Clara uma nova vida iria começar. Estava longe da ignorância estúpida e estupidificante da mãe, da maldade infantil, mas maldade, das crianças do bairro e da total incompreensão e malvadez de alguns adultos, longe, enfim, de toda uma vida oca de significado. Mas não seria demasiado tarde? Tudo quanto ouvira aos pais, aos irmãos, a alguns companheiros de brincadeiras, a alguns desconhecidos, não a teria marcado profundamente? Teria ainda tempo de evitar tremendos traumas psicológicos, que aquele sorriso triste e lindo de adolescente deixava adivinhar?

 

-- Esta é a tua cama. À frente há uma janela e entre ela e o canto da camarata está um armário e tens lá uma gaveta para pores as tuas coisas. A roupa vai toda para a rouparia e quando precisares de alguma coisa para vestires, pedes à irmã roupeira. Nessa cama, ao lado da tua, dorme a Ana Maria e na da frente dorme a Laura.

-- Sim senhora, irmã. Obrigada.

-- A Ana Maria já te vem buscar. Ela vai mostrar-te a casa, que irás conhecendo aos poucos porque é muito grande. Tem cuidado para não caíres nas escadas.

Afastou-se e Clara sentou-se na cama, à espera. Como iria ser agora? As novas amigas iriam esclarecê-la, assim contava.

-- Clara!?

Estava absorta e aquela voz assustou-a.

-- Estou aqui sentada. Quem me chama?

-- Eu sou a Ana Maria e a Laura já vem aí também. A irmã mandou a gente para aqui para te ajudarmos. De onde é que tu vens?

-- Venho de Angola. Vivo lá desde pequenina.


-- És preta? E sabes falar português como a gente? Pensei que lá só se falava a língua dos pretos.

-- Não. -- respondeu a recém-chegada, rindo com gosto. -- Lá fala-se português e os pretos têm a língua deles, mas também falam português, senão ninguém os entendia. E tu, já estás aqui há muito tempo?

-- Desde os quatro anos e como já tenho onze... estou há sete anos. Mas já estou farta.

-- Não gostas de estar cá? O que é que costumam fazer?

-- Olha: as mais pequenas têm que fazer as camas, ajudam a arrumar a casa e depois do almoço temos escola com uma senhora. Eu ando na Terceira e a Laura também.

-- Não tens pais? Por que é que vieste para cá com quatro anos?

-- Os meus pais são pobres e como não me podiam mandar ao estrangeiro para ser tratada, mandaram-me para aqui e cá estou          "-- Afinal, não sou só eu que sou cega. Ela não está triste. Não se importa por ser cega?".

Os pensamentos galopavam-lhe pelo espírito, mas sentiu-se mais acompanhada.

Um mês passado desde que viera de sua casa e o tão ansiosamente esperado momento chegara: era o primeiro dia de escola. Ia aprender a ler e a escrever, finalmente. Não poderia ser médica, é certo, mas poderia aprender qualquer coisa.

-- Temos gente nova. Muito bem. Tu vieste de África, não é verdade Clara?

-- É sim, minha senhora.

-- Vens com vontade de trabalhar? Já te devem ter dito que não gosto de gente preguiçosa.


-- Se não for muito difícil, aprendo depressa. A senhora vai ver.

A promessa de Clara foi cumprida e no fim desse ano fez o exame da Terceira Classe. As ajudas das condiscípulas foi preciosa: uma ensinou-lhe as contas, outra a escrita e uma outra a leitura. Clara, que queria escrever depressa a sua primeira carta, fazia redacções atrás de redacções e lá estava a amiga para dar a opinião. Não seria muito válida, que a limitava a Terceira Classe, que também fazia. Entre todas, as composições iam sendo feitas e lá foi escrita a almejada primeira carta.

Aprendera, entretanto, uma outra coisa: o valor da amizade. Entre ela, Ana Maria e Laura estabelecera-se um forte laço e eram mais ou menos inseparáveis. Até nas férias o grupo se mantinha, já que por razões de diversa ordem nenhuma delas saía do internato. Eram as brincadeiras, as correrias no quintal, as canções que ouviam na rádio e trauteavam, quando as freiras estavam longe pois de contrário lá vinha a repreensão, eram os que fazeres diários, era, em suma, o quotidiano de um internato. Até as penitências das diferentes quadras religiosas ou dos castigos eram feitas em conjunto.


A Quarta Classe igualmente não foi grande obstáculo a vencer, que a inteligência e força de vontade de Clara recusavam tão pequena dificuldade. Agora era frequente ser ela a ajudar as amigas, aquelas que outrora lhe haviam dado a mão. Mas o exame não foi feito. Atrasos na resolução de questões surgidas obstaram a que Clara tivesse toda a documentação a tempo de ser inscrita. A incúria da irmã encarregada de tal assunto revoltou--a. Um ano de internamento já era muito e dois seriam demais. Quanto tempo teria de ali permanecer ainda? Também não queria voltar a casa, o que seria retroceder no caminho que já trilhara. seria um sacrifício, mas manter-se-ia naquela instituição. As irmãs seriam apenas mais uma penitência a cumprir entre outras. E pensava em Ana Maria, em Laura e outras que há muitos mais anos ali se encontravam internadas e isso atenuava o caminho que lhe faltava para atingir a sua meta. Afinal, o tempo corre sempre velozmente; dois ou três anos nada seriam.

 

-- Dá licença, Madre?

-- Entra, Clara. Mandei-te chamar para te dizer que no fim do mês começas o teu estágio. Depois regressarás a tua casa, para junto dos teus pais, ou poderás ficar aqui no lar, se arranjares uma colocação.

-- Gostaria muito de ver os meus pais, mas, em boa verdade, preferia um emprego e se me dá a oportunidade de aqui permanecer até resolver a minha vida, tanto melhor. Agradeço-lhe, Madre.

-- Dentro de dias vais fazer um exame oftalmológico e outros, para ingressares no Centro. Dir-te-ei depois o dia.

O dia chegou rapidamente. Um vulgaríssimo exame clínico, radiografia aos pulmões, colheitas de sangue para análises. Para a tarde ficaram os olhos. Também aqui não houve novidade, pois não era a primeira vez que consultava um oftalmologista.

-- Você já foi operada!?


-- Sim, senhor doutor. Tinha dois anos e meio quando me operaram a esse olho.

-- Quando a operaram, ou quando lhe deram cabo do olho? É diferente.

-- Eu sei, mas não queria ir tão longe. Mais tarde, já com seis ou sete anos, não tenho bem a certeza, fui operada ao outro olho e recuperei a visão, mas só em pequeno grau.

-- Seis ou sete anos, disse? Hum...

-- Mais ou menos isso, mas não estou certa. Mas o que se passa? Porquê esse desabafo, senhor doutor?

-- Dois anos e meio e seis anos! Muito bem. Muito bem, não! Muito mal! Muitíssimo mal. Péssimo, é a expressão certa.

Clara sentia-se tensa com o comportamento daquele médico. Uma terrível suspeita explodiu-lhe no espírito.

-- Você deveria ter sido operada até ao ano e meio. Depois desse período operatório não há possibilidade de recuperação. Por que não a operaram mais cedo? Não descobriram a sua doença?

-- Descobriram sim. Segundo a minha mãe me disse, um médico da minha terra quis fazer a operação quando eu tinha oito meses, mas como os meus pais partiram para África, para onde o meu pai foi transferido, só fui operada aos dois anos.

-- Por que não a deixaram para ser operada. Os seus pais deveriam ter sido informados de tudo e tinham de ter pensado que o atraso seria perigoso. O meu colega deve tê-los prevenido.

O sorriso que geralmente enfeitava o rosto lindo e suave de Clara dera lugar a um esgar de medo, de expectativa.

-- Quer dizer que meus pais...?


-- Sim, minha pequena, os seus pais condenaram-na à cegueira irremediável. Tenha coragem. Vá, não chore. Só conseguirá que lhe doam os olhos.

Clara engoliu em seco. Em poucos minutos todo o mundo lhe ruíra sobre a cabeça e parecia que todo esse peso a amarfanhava e impedia de se mexer. Os olhos brilhavam-lhe estranhamente, mas nem uma lágrima. Desaparecera a Clara que gritava e esperneava quando a chamavam cega; a criança crescera e era já uma mulherzinha. Os seus dezassete anos já lhe tinham ensinado muito da vida. Estava preparada para a cegueira, mas não para uma notícia daquelas.

-- Então, só tenho de agradecer a minha cegueira aos meus pais. Qual dos dois é o mais culpado: a minha mãe, que não ficou comigo e não me quis deixar com a minha avó, ou o meu pai, que concordou com ela?

-- Penso que os dois, minha filha.

Durante minutos reinou o silêncio.

-- Quando precisar de alguma coisa, procure-me. Vá, tenha calma. Verá que é só mais um problema que vai ultrapassar, estou certo. Vou chamar a irmã que a acompanha.

Clara ia absorta e não deu pelo caminho. Só despertou quando a irmã, que durante todo o percurso não cessara de a interrogar sobre o que tinha acontecido, lhe disse que estava em casa.

Como um autómato, foi para a camarata e deixou-se cair na cama. Ao senti-la, Ana Maria pôs o livro de lado.

-- Então Clarita, como foram as coisas?

-- Deixa-me. Não me apetece falar. Não quero falar com ninguém. Ninguém! Percebes?


As lágrimas, que contivera a custo, começaram a rolar faces abaixo. O tom de voz que empregara fez com que Ana desse um salto. Que se passaria com a amiga?

              Saiu da camarata a correr e voltou rapidamente com Laura. Sentaram-se, ladeando a amiga que soluçava baixinho. Pegaram-lhe nas mãos e quedaram-se silenciosas. Estavam desconcertadas e sem saber o que fazer.

-- É horrível, é horrível. -- murmurava Clara.

As duas encolheram os ombros. Era horrível, o quê?

-- É horrível. É para isto que uma pessoa nasce? Tinha sido melhor se eu não nascesse. Por que é que foi o meu irmão a morrer e não eu?

-- Fica aqui com ela, Anita. Vou chamar a madre.

Laura precipitou-se para a porta e chocou com alguém que nesse momento vinha a entrar.

-- Onde ia a correr tanto, menina?

-- Ia à sua procura, Madre.A Clara não está bem.

-- Já sei. A irmã disse-me e eu telefonei para o médico. Ela tem razão para estar triste, mas não deve dramatizar.

-- O que é que aconteceu Madre?

-- Depois o saberão. Vai à enfermaria e pede à irmã Sofia que te dê um calmante e traz também um copo de água.

Clara e Ana continuavam sentadas. O choro passara e só se escutava a voz sumida:

-- É para isto que se nasce? Que interesse tem a vida assim?

-- Tens de te acalmar, Clara. Acaba com o choro, anda. Tens de te acalmar, tens de te acalmar.


-- Como é que vocês estariam se vos dissessem que, por ignorância, por estupidez, por bebedeira e por tantas coisas mais, os vossos pais eram os únicos culpados da vossa cegueira? Sim, como estariam vocês?

O tilintar de vidros partidos fez com que a Madre se voltasse pressurosamente. O copo, que Laura trazia, saltara-lhe da mão ao ouvir tal interrogação. As pernas de Ana tremiam-lhe e ela sentou-se. Sabiam toda a história da companheira e de imediato perceberam a intensidade do drama que se desenrolava no íntimo da amiga.

-- A Clara tem razão, Madre. É horrível.

O habitual sorriso de Clara não passava agora de um nervoso arreganhar de dentes. A sua calma característica desaparecera como que por encanto. Queria fugir, desaparecer. Mas para quê? De que lhe valeria desaparecer, de quem quer que fosse, se o pensamento a não abandonaria? Aquele pensamento estaria sempre presente. Só havia uma solução!

 

-- Ainda bem que já saí das freiras. Aqui no Centro ando mais à vontade. I o meu pai dizia muitas vezes que o vinho lhe dava alegria e que o ajudava a resolver os problemas. Vou experimentar. Talvez isto passe, se eu beber uma porcaria qualquer que seja forte. Quando sair logo, já compro uma mixórdia dessas.


À tardinha, depois das aulas, Clara foi a um café das imediações e pediu uma garrafa duma bebida forte. Era para oferecer, disse. Saiu com uma garrafa de brandy cuidadosamente embrulhada. Esse passou a ser o companheiro da rapariga.

Sabia que, se no Centro topassem com a bebida, não lhe faltariam candidatos a sócios. Fechou a porta do quarto e abriu a garrafa. Custou-lhe um pouco; falta de prática. Deitou uma quantidade no único copo de que dispunha. Brandy com sabor a pasta dentífrica não devia ser lá grande coisa, mas a exclusividade do recipiente a isso obrigava. Mas nem tudo era mau: a pasta disfarçaria o sabor da bebida.

Molhou os lábios, que arderam, e o vapor do álcool fê--la torcer o nariz, numa careta que teria feito rir quem a visse, sisudo que fosse.

-- Bolas, Clara. Vê se te resolves, rapariga.

E engoliu uma golada. Desceu-lhe o fogo ao estômago e subiu-lhe intenso calor do estômago à cabeça. Sentiu-se sufocar, as lágrimas saltaram-lhe e desatou a tossir. Largou o copo, levantou-se precipitadamente e tentou abrir a porta.

-- Que coisa horrível, esta beberragem! Como há quem goste disto!? -- pensava, enquanto a chave lhe desobedecia.

-- Parece que esta maldita chave está viva.

Por fim, a chave tornou-se obediente: a porta abriu-se. A sensação de calor era desesperante. O estômago já não lhe ardia, mas a cabeça parecia querer estoirar-lhe. Abriu a torneira do lavatório e bebeu com sofreguidão. A água aliviou-a um pouco. Fez concha com as mãos, molhou a cara e sentiu-se bastante melhor ao contacto do líquido frio. Sentia-se tonta. Insegura, dirigiu--se para o quarto.


Onde estaria o copo? Procurou sobre a cama, mas nada. Sobre o tapete estava a garrafa. Ainda bem que tivera o cuidado de a fechar. Mas o copo... Onde estaria o malandrim? Pôs-se de gatas, apalpou debaixo da cama e molhou a mão.

-- Querem ver que fiz xixi? -- resmungou. Era brandy que se derramara do copo. -- Ora bolas! Só me faltava mais esta: ter de limpar esta merda toda.

Tirou uma toalha do armário, voltou a ajoelhar-se e iniciou a esfregadela. Achou piada ao sucedido.

Quis pôr-se em pé, mas o chão, malandro como só ele, começou a andar à roda muito depressa, debaixo dos seus pés e Clara estatelou-se. E riu.

-- Está quieto, meu sacrista. Se não paras quieto, não me levanto e se ficares parado, prometo que te dou um banho amanhã.

Deu um soluço e bateu com a cabeça na cama. Voltou a rir. Achava engraçada a forma como pronunciava as palavras; tinha piada a língua a enrolar-se-lhe na boca quando falava. Deixou-se estar sentada no tapete. Estendeu uma perna e o copo saiu disparado contra a parede.

-- Vês como apareceste? E já levaste um chuto, para não seres esperto.

A gatinhar e tagarelando sempre foi até ao sítio onde estava o recipiente a cheirar a álcool, em vez do habitual cheiro a dentífrico. Finalmente levantou-se, mas foi sol de pouca dura. Voltou a cair e desta feita sobre a cama.

-- Ó tempo volta pra trás... -- cantarolou: -- Que estupidez. Para que há-de ele voltar pra trás? Prá frente é que é!


Prosseguiu o monólogo: os pais, os irmãos, a Fátima, o Chico, que levara a pedrada, o senhor do cão, a Ana Maria e a Laura, todos a visitaram para falar com ela. Até que adormeceu.

No dia seguinte, quando acordou, não se lembrava de nada. Só a boca seca e o cheiro de brandy, na toalha, lhe disseram que algo estranho acontecera. O quê? Foi a pergunta que durante todo o dia fez a si própria.

Nessa tarde repetiu a experiência, mas dessa vez bebeu em pequenos golos. Afinal, não queimava tanto e aquele calor interior até que era agradável. A dose também foi menor e embora tivesse ficado um pouco tonta, sentiu-se bem disposta. Apeteceu--lhe cantar e dançar. Com a língua entaramelada trauteou uma musiqueta qualquer e ensaiou uns passos, que pretendeu de dança.             E o brandy, no fim das aulas, passou a ser rotina. Só que a dose ia aumentando de dia para dia. No Centro, ninguém parecia reparar no que se passava com aquela estagiária.

 

-- Sente-se, Clara. Temos de conversar a sério.

O rosto da moça apresentava o ar carregado que se tornara característico, desde aquela tarde da consulta de oftalmologia, e que só a bebida fazia desaparecer.

-- Escuto-a, Sra. Directora. -- também a voz já não tinha a mesma doçura: era fria, seca e um tudo nada mais rouca.

-- Quero dizer-lhe que foi feita a sua avaliação e o seu estágio terminará dentro de uma semana. Sairá, pois, no fim do mês.

-- Muito obrigada. Posso retirar-me?


-- Não, Clara, volte a sentar-se. Disse-lhe que tinhamos de conversar a sério e quero dizer-lhe o que me preocupa em si.

-- Como queira. Faça o favor de dizer.

-- Temos estado a observar o seu comportamento e quero felicitá-la pela sua exemplar disciplina. No entanto, não nos passou despercebido que, de quando em vez, parecia ter bebido.

-- É todos os dias e não de quando em vez. -- rectificou.

-- Acha certo, esse modo de agir?

-- A senhora felicitou-me pelo meu comportamento, não é verdade? Muito bem. Se, quando bebo, não importuno ninguém, não provoco incidentes, nada tem a dizer-me. Se bebo, é assunto meu. Ninguém, nem mesmo os meus pais, têm de me dizer o que quer que seja. Não admito que ninguém... ninguém, ouviu?... se meta na minha vida.

-- Acalme-se e não seja tão agressiva. No seu estado, não é aconselhável.

-- No meu estado? Qual estado? Que quer dizer?

-- Você sabe tão bem como eu. Mas da sua gravidez só sabemos duas pessoas, além de si, é claro.

-- Se quiser, pode dizer a quem quiser que não me importo.

-- Já lhe pedi para não ser tão agressiva. Esse assunto só lhe diz respeito a si e a mim, enquanto directora. Ouça: há uma vaga numa fábrica aqui nos arredores. No começo o ordenado não é grande, mas chega para si e para o seu filho.

-- Ele não vai nascer. Não vai ser um desgraçado, como a mãe.


-- Que diz, Clara? Você está louca?

--Não, nada disso. Mas tenha calma. Agora é a minha vez de recomendar. Agradeço o ter-se lembrado de mim e aceito o lugar, se o facto de não ter o meu filho não for impedimento. Quanto ao bébé, para quê nascer? A quem é que ele iria chamar pai?

-- Clara, que insinua?

-- Não insinuo, afirmo. Tenho mantido relações com vários rapazes...

-- Clara!... -- a voz da directora era trémula. Estava estupfacta. Parecia-lhe que um enorme peso se lhe abatia sobre a cabeça. -- Por que faz isso, Clara? É simplesmente horrível.


-- A sério que quer saber? Está bem, eu conto. A minha infância foi mais ou menos igual à de tantas crianças e, se não fossem os impedimentos para eu fazer certas coisas, que os meus pais levantavam, tinha mesmo sido igual. Dos meus irmãos, apenas o mais novo se aproximava de mim e me acarinhava; os outros diziam que não queriam que os chateasse com a minha cegueira e punham-me de parte. Repetiam-me constantemente que os cegos deviam estar sentados, quietos e calados e um deles chegou a dizer na minha cara que deviam ter-me morto quando viram que era cega. Ele tinha treze anos e eu cinco; nunca mais me esqueci. A minha mãe estava connosco, ouviu e calou. Na altura apenas gritei que não queria morrer e a minha mãe, para me fazer calar, deu-me uma chinelada no rabo. Aliás, eu era o bombo da festa porque, como não podia fugir, levava por mim e por eles. O meu pai bebia muito e mesmo não estando bêbedo, não podia contar com ele para nada. O meu irmão mais novo cresceu e passou-se para o lado dos outros; uma das minhas irmãs, ainda assim, foi-se preocupando comigo. Como vê, o panorama com a minha família era muito lindo.

-- Olhe, Clara, eu... Por amor de...


-- Por favor, não me interrompa. Queria saber e estou a contar-lhe. Fora de minha casa a coisa era semelhante. Os miúdos gozavam-me e só quando a Fátima me acompanhava é que me deixavam brincar. Mas eu só fazia número. Deixavam-se apanhar depressa, para eu não os atrasar na brincadeira e, se eu chorava, riam-se de mim. Muitas vezes apedrejaram-me. Eram crianças, eu sei, mas essas atitudes causavam-me uma dor imensa e a necessidade que eu tinha de carinho foi-se tornando cada vez mais imperiosa; mas em casa era como lhe contei. Depois foi o tempo da escola: os meus irmãos e os outros garotos frequentavam-na e eu tinha de ficar em casa. Só depois do médico que me operou dizer à minha mãe para me deixar à vontade, é que comecei a lavar a loiça e o chão. Não quebrava nada, mas, quando alguma coisa aparecia partida, era eu que levava a tareia que competia a outro. Mais uma coisa, para terminar: lembro-me muito bem de como algumas pessoas me falavam. Cada "coitadinha da menina, é ceguinha", que eu ouvia e hoje sei que não era por maldade que o diziam, era como se uma faca me entrasse no peito. Tinha vontade de fugir ou de lhes bater. Como não podia fazer uma coisa nem outra, desatava a chorar e o resultado invariavelmente era uma bofetada ou uma descompostura, quando chegava a casa. Ainda me recordo, como se fosse hoje, do que um homem me disse num autocarro. Ia muita gente para a praia e eu entrei com as minhas irmãs. Uma senhora, que ia em pé, pediu para nos deixarem passar e para me darem o lugar. Um graduado da polícia, que tinha de se deslocar só um pouco, ficou irritado e disse que, quem tinha filhos cegos, devia ter vergonha de os trazer à rua. Foi a única vez que alguém me defendeu: um senhor disse umas certas verdades a esse graduado e toda a gente apoiou. Furioso, o polícia saiu do autocarro. Para acabar, as madres! Chega, ou quer mais, senhora directora?

-- Chega, Clara. Compreendo-te.

-- O bébé, o meu bébé, nascerá cego e eu não quero que ele passe o que eu passei e por isso, não o deixarei nascer.              -- Mas hoje os tempos são outros.

-- São, são. Mudaram os tempos, mudaram as moscas, mas mais nada. Tudo continua a cheirar mal.

-- Compreendo a tua intenção, mas acho que deverias pensar um pouco melhor. De qualquer maneira, se não desistires da ideia, ajudar-te-ei. Conheço um bom médico que também te compreenderá e ajudará. Pensa bem e amanhã dir-me-ás alguma coisa. Gostas de teatro? Queres ir logo comigo?

-- Gosto e agradeço, embora não aceite. Uma bêbeda a seu lado não é um bom cartão de visita ou de apresentação.

-- Tu não és uma bêbeda, Clara.

-- Não vale a pena chamar as coisas por outros nomes. Agradeço-lhe muito, porque as suas palavras me fizeram muito bem, apesar de poucas.

Pela primeira vez, desde há muitos meses, e sem ser por efeito do álcool, um leve sorriso apareceu por momentos naquele rosto suave e lindo.

 


Clara era agora uma sombra do que fora. Olheiras profundas, uma palidez intensa, tremuras constantes, cabelo em permanente desalinho, mastigar ininterrupto, como se mascasse pastilha elástica, eram indícios seguros de se estar em presença de mais uma transviada.

Perdera o emprego na fábrica. Eram constantes os atrasos na entrada, de manhã, e frequentes as faltas.  

               -- Que fazes aqui, rapariga? Já te avisei que não te quero ver por estes lados.

-- Tento ganhar a minha vida. Não estou a roubar nada, pois não? Então, deixe-me.

-- Sabes muito bem que a prostituição é proibida. Pelo menos, é proibido que se pratique tão às claras. Vá, desanda, antes que te leve para a esquadra.

-- Ora! Já não era a primeira vez e até era um favor que me fazia. A comida não presta, mas sempre se come qualquer coisa, ao passo que, cá fora, às vezes não morfo nada.

Um homem, ainda novo, aproximou-se quando o polícia se afastou e desapareceu na esquina.

-- Que te queria o chui? Chateou-te?

Ela acenou afirmativamente e ele prosseguiu:

-- Hoje não engataste nenhum. Não ganhas, não há "boi".

-- Há muito quem venda e em comprimidos ainda há mais. Nas farmácias há muita coisa e até se vendem sem receita. Se não estás contente com a sorte, pira-te, desaparece.

A bofetada que levou fê-la estatelar.


A sua vida era pouco agradável. Aquele animal com forma de homem dominara-a por causa da droga. Cada dia lhe exigia mais dinheiro pelo maço. Descobrira, por uma amiga, que uma coisa mais forte e menos dispendiosa lhe estava ao alcance e decidiu que não mais se sujeitaria àquele explorador.

 

A transpiração cobria-lhe a testa e os brancos lençóis estavam completamente revolvidos. Clara estava agitada e o médico, da porta do quarto, contemplou-a com comiseração. Que estaria por detrás de toda aquela miséria humana?

Tomou o pulso à enferma e abanou a cabeça. Que poderia fazer por aquela mulher tão jovem, à beira do fim? Chamou a enfermeira e aplicou uma injecção. O efeito seria rápido e ela acalmar-se-ia então. Sentou-se na beira da cama e quedou-se a olhá-la. Estava na sua hora de folga e não tinha preocupações com outros doentes. Assim, estaria até lhe apetecer. Poderia ser preciso actuar e a enfermeira de turno não podia ali ficar permanentemente. Com um pouco de sorte e se a débil vontade de Clara quisesse, talvez escapasse de um fim que se anunciava muito próximo. Ele tentaria completá-las.

Restava-lhe saber o que poderia toda a ciência contra toda uma vida sofrida, amargurada e desencorajada.

 

Lili

Uma vez mais levantei os olhos e fixei-os na urna em que ela jazia. Lentamente, com o olhar percorri o seu corpo até o deter no rosto. Estava serena, no leito de morte, como se toda a sua vida sempre tivesse sido amor e paz. Pela minha mente, qual fita de cinema, desfilavam mil imagens e a sua voz meiga soava-me nos ouvidos. Uma lágrima rolou-me pela face.

"-- Vem cá imediatamente, Lili.

-- Eu não fiz por mal, papá. Não me batas.

-- Não quero saber se fizeste por bem ou por mal. Quantas vezes te disse já que não andasses a correr para trás e para a frente aqui na sala? Pensas que não tenho mais nada que fazer, senão andar a correr para o vidraceiro, por tua causa?

Acabou de tirar o cinto. Os olhos da garota esbugalharam-se.

-- Não vale a pena pores-te a chorar.

A tira de couro silvou no ar e ouviu-se um estalo seco quando encontrou o corpito trémulo.

-- Não!!! Perdoa-me papá, não volto a fazer. Não!!!

O grito, todo dor e revolta, ribombou por toda a casa."

Dei um salto na cadeira. Apertei a cabeça entre as mãos e olhei em redor. Não, não havia ali crianças. De novo fixei a urna. O lindo rosto da minha Lili parecia reflectir uma expressão de terror. Esfreguei os olhos e outra vez ouvi-lhe a voz:

-- Não!!!


À minha volta todos pareciam acusar-me. Fiz um esforço e, um por um, olhei todos os presentes; tristeza era tudo quanto se podia ver neles. Serenando um pouco, voltei a sentar-me. Limpei os olhos e tornei a mergulhar nas minhas recordações.

"-- Mamã, Papá, passei no exame. Dispensei da oral e agora já posso descansar um pouco, não posso?

Olhou o pai.

-- Parabéns, Lili, sinto-me feliz. O teu trabalho foi recompensado. -- a voz da mãe estava embargada pela comoção e pela alegria.

Minha filha olhou-me interrogativamente.

-- Vê lá se te calas e não me interrompas.

Voltei à leitura do jornal, mas pude ver a profunda tristeza que se lhe espelhou na carita juvenil.

-- Não achas que a nossa filha merece um pouco mais que essa tua secura? Pelo menos hoje, homem de Deus!...

-- Já disse que não me interrompam. Irra! Quando é que posso estar descansado? Ponham-se a andar para a cozinha. É lá o vosso lugar.

As duas saíram e os soluços delas chegaram-me aos ouvidos."

Voltei à realidade. Ali, junto a mim, chorava Manuela, a melhor amiga de Lili. Levantei-me, aproximei-me um pequeno passo e detive-me. A moça engoliu as lágrimas e limitou-se a dizer secamente:

-- Os meus sentimentos. Espero que a Lili tenha agora o que não teve em vida.


Foi como se uma pancada me tivesse acertado em cheio na cabeça. Caí pesadamente na cadeira. Saltaram-me as lágrimas e a face de Lili pareceu abrir-se num sorriso. Tinha-lhe visto um assim no dia em que acordara da intervenção cirúrgica a que fora submetido.

"-- Papá? Como se sente? Não esteja preocupado porque agora já está tudo melhor. Daqui a pouco já vai estar bom, verá.

Esbocei um esgar, que pretendia ser um sorriso, mas ela compreendeu e apertou um pouco a minha mão.

-- Obrigada pelo seu sorriso, Papá. Foi tão bonito. Mas não deve falar. -- disse-me ao ver que ia abrir a boca."

Uma vez mais consegui retomar o meu estado de espírito. O rosto de minha filha estava na mesma.

-- Que se passa comigo? - interroguei-me num murmúrio.

-- Como disse? -- alguém perguntou ao meu lado.

-- Nada, não disse nada. Estava apenas a pensar em voz alta.

-- O senhor está com mau aspecto. Sente-se bem? Quer que lhe mande buscar alguma coisa para tomar?

-- Não vale a pena, obrigado. Não se incomode.

A minha interlocutora era Nela. Nos olhos li-lhe uma acusação, só isso, uma acusação. Ela afastou-se e deteve-se junto da urna. Ficou imóvel, olhar parado, lágrimas deslizando-lhe lentamente faces abaixo. Fitou-me e não tive forças para lhe enfrentar o olhar. Sentia-me cada vez mais abatido. Estava só, sem a companheira de tantos anos, que também já partira deste mundo, e agora sem a filha. Que ia ser de mim? Parecia-me que, pouco a pouco, começava a compreender. Observei o que me rodeava.

"-- Alice! Precisamos ter uma conversa. -- chamei com voz agreste.


-- Como queira, pai. Mas antes, se não se importa, queria fazer-lhe uma pergunta: trata-se de uma conversa ou vai ser um monólogo, como das outras vezes, em que apenas farei o papel de assistente?

-- Não te admito faltas de respeito.

-- Faltas de respeito? É o Pai quem me fala em faltas de respeito? Quais faltas e qual respeito? Faltas a quem?

-- Cala-te e já! Quem pergunta sou eu. Tu só respondes, mas vê como o fazes.

-- Como queira, Pai.

-- Disseram-me que te entendes com um fulano. Sim ou não?

-- Depende do que é para si «entender com um fulano». Se considera como tal um namoro sério, responsável, é verdade. Mas, se pelo contrário o Pai usa a expressão com um sentido que significa as suas relações com uma certa senhora fora desta casa, num desrespeito total pela sua mulher e pela sua filha, digo-lhe que não. Além disso...

A frase foi cortada por um violento estalo.

-- Tu atreves-te a falar assim ao teu pai? Não te disse já que não admito faltas de respeito?

E nova bofetada fez abanar a cabeça de Lili, mas ela não desarmou:

-- Além disso, ele não é um «fulano», é um homem decente, tem educação e vive do seu trabalho. O que tem, ganhou--o, não roubou.

Ela calou-se, mas continuou a olhar-me de frente; nenhuma lágrima, nenhuma expressão de dor.


-- Aviso-te já que, de hoje em diante, isso acabou. Ai de ti que eu saiba que continuas nessa vida.

-- Até ter uma razão de peso, que justifique essa ordem, não a aceito. Penso que o Pai já percebeu que não tem à frente a miúda a quem dava tareias de cinto, só por ela ter partido um simples vidro duma porta, ou porque sujava o assento do carro com um rebuçado. Creio que é a altura de começar a resolver os meus próprios problemas e de escolher o meu caminho.

-- Enquanto eu for vivo, não escolhes coisa nenhuma. Fazes o que eu quiser e mais nada. E acabou-se a conversa.

-- Seja, acabou, mas antes só mais uma coisa: nem com estalos, nem com socos, nem com cinturadas me fará mudar de ideias, se eu entender que estão certas.

-- Veremos!"

Lembrava-me como se tudo tivesse acabado de acontecer. Como eu, ela era teimosa e isso agradava-me e irritava-me ao mesmo tempo.

O silêncio na sala era quase absoluto e apenas Nela soluçava, enquanto acariciava a face gelada da amiga. Olhava alternadamente para ela e para mim. Não me sentia bem: as pernas tremiam-me e estavam sem forças, o coração oprimia-se-me no peito e sentia um nó na garganta. Quis respirar fundo, mas não consegui.

"-- Há dias avisei-te que estavas proibida de voltar a falar com esse animal. Afinal, quem manda aqui?


-- Também eu disse qualquer coisa de que o senhor se esqueceu, mas não me importo de lho repetir: enquanto não me explicar o que tem de mal esse homem, que agora ofensivamente chama animal, não lhe obedecerei. E não resolverá nada com tareias.

-- Não tenho que te dar explicações das ordens que te dou. O respeito que me deves obriga-te a isso.

-- Disse respeito? Que sabe de respeito? Sabe como se consegue o respeito dum filho?

-- És tu que me vai ensinar? Quem te ensina sou eu e começo já. -- e uma violenta bofetada fez rodar a cabeça de Lili. -- Na verdade, há muito tempo que aprendi e não te admito esse ar irónico, rapariga. Que aprendeste tu, daquilo que te ensinei?

-- Sei bem que, depois do que vou dizer, me espera uma tareia. Mas primeiro ouça bem o que tenho para despejar. O respeito a um pai precisa de algo mais que tareia, precisa, acima de tudo, que o pai também saiba respeitar. Sim, ele tem de saber respeitar a casa, a mulher, os filhos e quem o rodeia; precisa de saber ser carinhoso, terno, compreensivo, premiar quando se merecer o prémio ou castigar quando for caso disso. É preciso que, quando chegue a casa, nela entre um ser humano e não um martelo pronto a malhar como em ferro frio. A minha Mãe não era de ferro e eu também não sou. Para merecer respeito, devia ter sido uma pessoa e, acima de tudo, um pai. Sabe o que é ser pai? Não é fazer um filho e depois moer-lhe o físico com pancada e o espírito com terror. Ser pai obriga a muito mais do que recebi, para além das moidelas do corpo e do espírito.

-- Acabaste? Então, começo eu.

A cólera cegava-me. Jamais alguém me falara assim. O som das pancadas soava por toda a casa. Mãos e pés não paravam e o alvo era o que calhasse do corpo da minha filha."


As pancadas ressoavam. Repentinamente trazido à realidade, olhei para onde se ouvia o som e respirei aliviado. Ninguém batia em ninguém. Levantei-me e dirigi-me para a sala contígua, onde um homem consertava algo que nem sequer vi. Regressei ao meu lugar e ao passar ao lado do corpo de minha filha detive-me, mirando-lhe o rosto. Pareceu sorrir-me tristemente e reparei que na sua cara alguma coisa era diferente, mas não consegui perceber o que era. Retomei o lugar na cadeira.

Cruzei o meu olhar com o de Nela e estremeci com o fulgor que nele vi. Baixei a cabeça.

"-- Já acabou? Como estamos a falar à vez, continuo.

-- Ainda não te chegou o que já levaste?


-- Quem sabe é o senhor, mas antes que me emudeça terá de ouvir mais umas coisas. É qualquer coisa que nunca pensei em dizer-lhe, apesar da minha revolta, mas hoje ouvirá. Se não houvesse quem lhe contasse o que há e o que não há, não estávamos agora com esta conversa; mas infelizmente há sempre quem meta o nariz onde não é chamado. Se essa mulher reles que pretendeu pôr no lugar da minha Mãe, felizmente fora desta casa, se preocupasse com ela e com a filha, talvez nada disto tivesse acontecido. Se ela se preocupasse com a casa e com o marido, que vocês atraiçoam, talvez não tivesse tempo para se meter na minha vida. Ela nada tem a ver comigo, nem a minha Mãe a encarregou de me educar, felizmente. Com que direito quer ela indicar o meu caminho? Espere um pouco mais, pai, bata tudo de uma vez para não se cansar muito. Deixe-me acabar e depois já pode dar liberdade aos seus instintos bestiais. Sim, porque animal não é o homem com quem namoro; animal é o senhor com o seu comportamento. Animal no sentido mais prejurativo que a palavra pode ter. Ouviu? Estou farta de viver consigo nesta casa. Vou para qualquer parte, mas aqui não ficarei., garanto-lhe.

-- Pensaste bem no que disseste? Responde: pensaste bem no que disseste?

-- Pensei e só lamento ter uma educação que me impede de lhe falar de outro modo. Merecia palavras mais baixas.

Uma hora mais tarde, Lili ainda chorava fechada no seu quarto. Através da porta saíam os soluços que não soltara desde que começara a conversa e até que ali se trancara. Mantivera sempre um ar de superior desprezo, que agora desaparecera."

Uma porta bateu e os soluços interromperam-se. Fitei a porta da sala por onde o padre acabava de entrar. Nela deixou de soluçar. Tinha os olhos secos e pisados. Todos se levantaram e fez-se silêncio absoluto.

Acerquei-me do féretro e parei aos pés. Dali ainda podia ver por uns minutos, os últimos, a cara linda de minha filha.

-- É com profunda tristeza, meus irmãos, que nos encontramos reunidos neste lugar, para a derradeira despedida à nossa irmã Alice, que tão prematuramente nos deixou para...

Comecei a ouvir a voz do padre cada vez mais longe.

"-- Alice!? Onde estás? Onde, diabo, se teria metido esta rapariga? Onde estás, Alice? Será que está no quarto? Não, aqui não está. E na varanda? Talvez lá esteja. Alice? Estás na varanda? -- o silêncio foi a resposta. -- Para onde teria ido esta rapariga? Quando queria ter uma conversa com ela, desaparece.

Enquanto percorria a casa, o monólogo continuava:


-- Ontem ela disse que ia sair de casa. Será que...

No quarto da filha as gavetas estavam abertas, vazias, e no guarda-vestidos, também aberto, nada havia. Numa folha de papel, sobre a cama, qualquer coisa estava escrita:

«Como lhe disse, deixo esta casa. Parto com mágoa e alívio ao mesmo tempo. A Mãe, no Além, perdoar-me-á este acto. Não me procure, pois recuso-me a regressar porque, sendo já maior, não pode obrigar-me a um regresso. Adeus e que Deus lhe perdoe. Eu tentarei perdoar e esquecer. Alice»

A folha de papel caiu no chão.

-- Por que partiste, Alice? Agora que me ensinaste, agora que eu vejo claro e tudo iria mudar, tu partiste? Por que não teria eu sido melhor? Por que é que ninguém me disse antes o que me disseste ontem? Porquê?

Grossas lágrimas rolaram-me pelas faces."

-- Por que partiste, irmã? Deus, nos seus insondáveis desígnios, achou ser este o momento de te chamar para a sua companhia. Por que partiste, perguntaram todos estes teus amigos e familiares, mas não obtiveram resposta para este mistério.

Em meu redor havia muitos rostos molhados.

-- Dentro de momentos estarás a caminho da tua última morada, onde descansarás na paz do Senhor. Oremos pela nossa irmã Alice.

A sala foi percorrida por um murmúrio.


"-- O senhor diz, então, que a sua filha desapareceu de casa. Um momento, que vou pedir àquelas pessoas que falem um pouco mais baixo. -- retirou-se para regressar instantes depois. -- Não faz ideia nenhuma do local para onde ela tenha ido? A casa de uma amiga, de uma pessoa de família, sei lá.

-- Amigas ela tinha muitas, mas desconheço as suas moradas; família não temos cá; talvez o namorado saiba alguma coisa.

-- O senhor vai dar-me o endereço da casa e do local de trabalho do rapaz e pode retirar-se. Logo que saibamos alguma coisa, contactaremos consigo. Boa tarde.

-- Boa tarde, agente.

Meia hora depois Nela abria-me a porta de casa e olhou--me com admiração.

-- Entre, por favor. Os meus pais não estão, mas não devem demorar muito. Pode esperar, se quiser.

-- Obrigado, mas é a si que procuro. A Lili desapareceu de casa e ando a tentar encontrá-la.

-- Eu sei.

-- Sabe? Onde está ela?

-- Não sei. Telefonou-me esta manhã e disse-me que teve de sair de casa por causa duma discussão que tiveram ontem. Não me quis dizer onde estava e pediu-me para telefonar para o Zé Carlos, para lhe dizer que o procuraria dentro de dias. Pareceu--me muito triste.

-- E estava, por certo.

E em poucos minutos a amiga de Lili ficou a saber tudo o que acontecera.

-- Como vê, Nela, ela tem razão para estar triste. Só espero que não faça nenhum disparate.


-- Agora não vale a pena estar a chorar. Nada remedeia com lágrimas e lamentações. O senhor devia ter pensado em tudo isso. A Lili contava-me tudo e, para ser franca, não sei como uma pessoa pode aguentar tanto.

-- Compreendo as suas recriminações, a sua dureza e aceito-as, mas de uma coisa pode estar certa: fui educado assim e pensei que seria a melhor forma de educar. Que podia eu fazer, se nunca ninguém me disse que eu estava errado?

-- Em parte tem razão. Mas o senhor é suficientemente culto e inteligente bastante para pensar que j´não estava em 1800 e que a sua filha era uma rapariga de agora.

-- Esse foi o meu erro.

-- Como o senhor, faço votos para que ela não tenha feito nem faça nenhum disparate. Se ela voltar a telefonar e quiser, tentarei resolver a questão. Ela pode ficar aqui, pois de certeza que os meus pais não se vão opor. Digo-lhes tudo o que aconteceu."

Voltei à minha triste realidade. Somente alguns segundos se tinham esgotado e o padre continuava as suas orações, repetidas por toda a gente. Já não devia faltar muito para a levarem. Uma campainha tocou e recordei o momento, dias antes, em que som idêntico me fizera sair da desesperante espera em que caíra com o desaparecimento de minha filha. Uma centelha de esperança prepassara-me a alma, para logo depois eu voltar a mergulhar num desespero ainda maior. Pegara no telefone:

"-- Estou sim. É você, Nela? Que aconteceu? Encontrou--a?

-- Sim. Está preparado para sair? Vou já para aí e seguimos no mesmo táxi.


-- Mas, onde está ela? Espere por mim, que vamos no meu carro.

-- O senhor não estará em condições de conduzir e eu passo já por aí. A Lili está no hospital. O Zé telefonou-me agora mesmo. Até já.

-- No hospital, a minha filha?! Oh, não!

Não foi muito o tempo que demorámos a chegar ao hospital.

-- Olá Zé. Já sabes o que se passou?

-- Ainda não. O médico está com ela, mas não deve demorar. Já está lá há bastante tempo. Este senhor que te acompanha é o pai da Alice?

-- Sim, sou o pai da Lili. E o senhor é o noivo dela?

-- Se não fosse a sua atitude de há meses atrás e o seu comportamento inaceitável, seria, mas assim, não sei o que sou. Só sei que a mulher de quem gosto está naquela sala e em perigo de vida.

-- Não sejas tão duro, Zé. Ele é o pai e nestes meses tem sofrido muito.

-- Deixe-o, Nela. O Zé tem razão, mas talvez um dia me possa compreender e perdoar.

-- Como soubeste que ela estava aqui?

-- Segundo me disseram, a Alice tinha na carteira um papel com o meu endereço e número de telefone e, como não havia nenhum documento, entraram em contacto comigo. Telefonei-te e vim para aqui esperar, mas não sei ao certo o quê.

-- Quem é o senhor José Carlos?

-- Sou eu, doutor. Como está a Alice? Este é o pai dela, esta é uma amiga e eu sou o noivo.


-- Creio que terão de se preparar para receberem uma má notícia, a qualquer momento. A Alice, como diz que ela se chama, está bastante mal, mais concretamente, ela está em coma. Fizemos o que era possível e de momento só nos resta esperar.

-- Por favor, Sr. doutor. Qual é o estado real da minha filha? Salve-a, por favor.

-- Já lhe disse que tentaremos tudo. Vou mandar uma enfermeira. O senhor está muito excitado e precisa de ter calma. Agora volto para junto da doente. Até já.

-- É incrível como uma pessoa cheia de saúde pode ficar assim, de um momento para o outro. Que te parece, Zé?

-- De um momento para o outro? Mas há meses que não sabíamos nada dela. De qualquer modo, há muitas causas que levam a este estado. Esperem um pouco. O médico está a chamar.

-- Ouça, Nela, que acha que vai acontecer? Por que é que o médico o chamou?

-- Não sei. Esperemos.

Arrastaram-se os minutos, longos, enervantes. Zé e o médico regressaram à sala.

-- Nela, A Alice...

-- A sua filha acaba de falecer, senhor... Nada pudemos fazer Ela tinha ingerido uma grande quantidade de um produto que a vitimou.

-- Carlos... Não é possível! Oh, meu Deus!

-- Doutor, não, não é verdade! Digam-me que não é verdade! Alice, minha filha, que fizeste? E que te fiz eu? Como vou poder viver assim? Não quero ficar só, sem ti. Não quero.


-- Venha comigo. Deite-se um pouco. Vocês podem entrar, se quiserem. A Alice vai ser transladada para uma outra sala, onde poderão vê-la por instantes.

-- Eu também vou com eles. Quero ver a minha filha.

-- Está bem, irá, mas primeiro vai tomar isto. Tome, beba. Vocês esperem um pouco. Iremos todos porque posso ser preciso.

-- Certo, doutor, e obrigado.

Na marquesa, Alice parecia dormir e só a sua completa imobilidade ditava a triste realidade. Não dormia."

-- Meus irmãos, chegou a hora da despedida. Que Deus, todo misericordioso, tenha a nossa irmã Alice em eterno descanso. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amen.

Um soluço desprendeu-se-me do peito. Nela abraçou-se ao corpo rígido, soluçando violentamente. Pela porta, por onde começavam a sair os presentes, entrou José Carlos, pálido e com profundas olheiras. Passou por mim sem proferir palavra. Suavemente beijou a testa de Alice, acariciou-a e afastou-se. Suavemente, também, retirou Nela de junto da urna.

Cheguei-me para fitar aquele rosto meigo e belo, apesar de tudo. Fez-se silêncio total à minha volta. Murmurara algumas palavras que levaram Zé e Nela a aproximarem-se de mim:

-- Por que morreste, minha Lili. Se é verdade que o espírito continua vivo, saberás que tudo o que fiz não foi por mal.

-- O médico entregou isto para si. Estava na carteira da Lili.

-- Ó Nela, por que fez ela isto? Que foi que a matou?


Os dois jovens entreolharam-se e da boca de Carlos saíram só três letras:

-- LSD.

-- Droga?

Esbugalhei os olhos perante o aceno afirmativo, enquanto parecia sentir o mundo a desabar sobre mim.

-- Excesso de droga, «over dose». -- disse Nela, entre soluços.

-- Lili, minha filha querida, perdoa-me, se é que tenho perdão.

Nela abriu o envelope trazido há minutos e dele retirou um bocado de papel onde podia ler-se «Para meu Pai» e deu-o ao destroço humano que chorava convulsivamente, agarrado ao corpo da filha.

«Adeus, Papá. Embora tarde, compreendi-o. Perdoe-me se o fiz sofrer, pois eu também o perdoei. Um último beijo da sua filha, que o adorava. Lili».

              Carlos leu e Nela escutou. Nos olhos de ambos lia-se uma extrema compaixão, ao retirarem o corpo inanimado de cima do féretro.

A tampa caiu lentamente, fechando-se a caixa negra.

Abri os olhos sem saber bem o que se passara e fixei, ainda por instantes, o rosto de Lili. Pareceu-me ver o seu sorriso terno e a sua voz meiga soou-me nos ouvidos:

-- «Adeus, Papá.»

A urna acabou de ser fechada e pegaram nela. Eu, Carlos e Manuela seguimo-la.

 

Acuso, também!

-- Tem a palavra o arguido para alegações em sua defesa, se entender que tem algo mais que possa interessar ao Tribunal.

O acusado levantou-se e com voz alta e calma dirigiu-se ao Juiz:

-- Como é do conhecimento deste Tribunal, a defesa tem de ser feita por mim próprio, uma vez que não me seria possível suportar as despesas que adviriam da constituição de um patrono e, por outro lado, a designação de um defensor oficioso, não me ofereceu as garantias necessárias para a defesa da causa que aqui se julga e de que eu seria bem apoiado. Não me refiro a incapacidade ou a incompetência deste meu patrono, mas tão somente às características que reputo de necessárias e que ele e praticamente ninguém tem. Além disso, como é permitido ao arguido este momento em que invocará as suas razões pergunto, pois a V. Exa., Meritíssimo Juiz, se me é facultado conciliar os dois momentos, isto é, intervir como defesa e como réu? Se assim for, pergunto se poderei fazê-lo do modo um pouco mais prolongado?

O Juiz reflectiu um pouco e dirigiu-se ao Magistrado do Ministério Público:

-- Acaba V. Exa. de ouvir a pretensão do arguido. Embora fugindo às normas, vê inconveniente na satisfação do pedido?


O Magistrado ponderou a situação e, começando a ordenar algumas notas, respondeu não haver qualquer inconveniente e assim, faria as alegações julgadas pertinentes. A defesa far-se-ia ouvir, então, no final da intervenção do Delegado do Procurador da República.


-- Meritíssimo Juiz, Ilustre colega, Patrono do arguido. Este Tribunal encontra-se reunido a fim de julgar um acto que, à face da lei, e da moral, não pode ser aceite, pois nada há que justifique a violência gratuita. A pedido do Ministério Público, o arguido foi sujeito a exames psiquiátricos, já que se pretendia agir com toda a isenção e justiça. Se o arguido fosse afectado por uma qualquer doença do foro psiquiátrico, talvez se pudesse entender o seu acto; todavia, os exames revelam a mais completa sanidade mental. Analisou-se o comportamento do arguido no seio da família, no emprego e no seu círculo de amizades, e soube-se que se trata de um indivíduo algo temperamental, mas não agindo por instinto, quero dizer, capaz de reagir a uma situação menos positiva, mas sempre de forma racional. Aliás, a sua frieza ficou bem patente pois, ao longo das sessões que aqui tiveram lugar, nunca manifestou qualquer reacção, mesmo quando se fez o relato pormenorizado do seu crime. Poderá dizer-se que esse acto foi premeditado pois, caso contrário, o réu teria manifestado o seu arrependimento ou, pelo menos, uma qualquer nota de emoção. Termino, Meritíssimo Juiz, afirmando a convicção de um acto premeditado que levou à morte um homem honesto, bom marido e excelente pai, homem cumpridor dos seus deveres. Reafirma-se a convicção de que o acto praticado não resultou de uma situação de doença mental, mas de uma intenção gratuita da violência pela violência. Pede-se pois, ao douto Tribunal, a que V. Exa. preside, que faça justiça, que puna severamente o arguido, que aqui se demonstrou ser um criminoso,

para que a sua punição sirva de exemplo a outros, no futuro.

Fez-se silêncio. Todos pareciam querer digerir o breve, mas inflamado discurso, da acusação.

A voz do Juiz, dando a palavra ao arguido, soou.

O acusado levantou-se e aguardou que cessasse o zumbido de fundo.



-- Meritíssimo Juiz, Digníssimo Sr. Delegado do Procurador da República. Tentarei ser breve, objectivo e claro, pois pretendo que todos ouçam e entendam as minhas razões e, se me alongar demasiado, talvez não consiga alcançar tal desiderato. Disse, o Digníssimo representante do Ministério Público, que cometi um crime. Tenho de limitar-me a confessá-lo; fui, de facto, o autor material de um crime; contudo, permito-me chamar a vossa atenção para a existência de um autor moral, que identificarei um pouco adiante. Referiu-se a minha sanidade mental e tenho de limitar-me a reconhecê-la; todavia, ninguém ignora, qualquer ser humano tem alterações do seu comportamento, que em geral são provocadas por factores extrínsecos ao indivíduo. Fui rotulado de temperamental, mas não impulsivo, e terei de limitar-me a concordar; porém, se me é permitida a referência à sabedoria popular, direi que «cão que ladra não morde». Sou, de facto, um temperamental que fala muito e alto, mas age poucas vezes. Fui acusado de ter morto um homem e de não ter demonstrado aqui qualquer emoção ou sinal de arrependimento. Tenho de limitar-me a reconhecer que sim. Todavia, quero manifestar aqui e agora o meu arrependimento, não pelo acto mas porque dele resultou o desaparecimento de um homem, que apenas foi o bode expiatório de uma série de crimes e de atentados de toda a ordem, da responsabilidade do autor moral do meu crime e que, disse-o já, identificarei adiante. Fui acusado de matar, praticando a violência pela violência. Tenho de reconhecer que matei e portanto usei da violência; contudo deixarei em suspenso a outra parte da questão, a que se refere à violência gratuita. Fui acusado de matar um bom chefe de família, um bom pai, um cidadão zeloso e cumpridor dos seus deveres. Tenho de confessar, sem hipocrisia, que me encontro penalizado pela situação de viuvez e de orfandade que criei. Porém, quanto à outra questão, a que diz respeito ao cidadão zeloso e cumpridor, deixarei o assunto em suspenso. Fui acusado de criminoso violento e por isso foi pedida uma severa sanção que também pudesse servir de exemplo a outros. Terei de reconhecer que fui um criminoso e por isso terei de considerar justa a sanção e que ela possa servir de exemplo a outros; mas, mais importante ainda, é que ela sirva de exemplo, não só aos autores materiais como eu, mas também e com o mesmo rigor, aos autores morais de cada crime. Fui acusado de ter morto um homem, cumpridor de normas impostas pela sociedade em que vivemos. Aceito a acusação de assassínio, - a sua voz tornou- -se cheia - mas não posso aceitar os qualificativos atribuídos à vítima. Seja-me permitido que a partir de agora passe à minha defesa com a mesma humildade com que reconheci o meu crime. É o momento, ilustríssimos senhores membros deste Tribunal, de desmascarar o autor moral desse crime: aqui e agora... -e a sua voz mais forte, mais dura, mais calma soou como um estampido:- acuso este Tribunal, V. Exa., Meritíssimo Juiz, V. Exa., Sr. Delegado do Procurador da República, V. Exas., Srs. funcionários da justiça, os senhores assistentes e a sociedade, na qual me incluo, de serem, em partes iguais, responsáveis morais do crime que aqui se julga.

O barulho na sala era ensurdecedor. O Juiz, pálido, deixou extravasar os sentimentos e após a reposição da ordem, tomou a palavra:

-- Quer o arguido justificar essa afirmação? Este Tribunal, embora atingido, aguarda a cabal justificação de tal acusação.

-- Obrigado a V. Exa.. Quer e pode, V. Exa., descrever com todo o rigor o objecto que apresento? É um pedido que faço a uma entidade idónea, acima de toda e qualquer suspeita.

-- O que o arguido exibe é uma bengala de alumínio polido, onde se vêem algumas mossas e bastante torta, como se fosse um stick de hóquei.

-- Grato a V. Exa.. É, de facto, uma bengala amolgada e torta. Está assim por descuido, por gosto? Não! Está assim porque alguém, inconsciente e displicentemente, ma entortou com um carro. Grave, porém, é que isso aconteceu em cima de um passeio bastante largo, quando o réu nele caminhava bem junto da parede, por segurança e na impossibilidade de o fazer por qualquer outro espaço desse passeio, tão atulhado estava de obstáculos, na sua maioria de quatro rodas. E agora quererá V. Exa., Sr. Delegado do Procurador da República, descrever aos presentes, o que vê na minha cara?


-- Bem. Vejo uns óculos tortos, uma cara mal barbeada que, reparo agora, apresenta uma cicatriz no queixo. Vejo também uma cicatriz na testa e parece que mais nada, para além do que todas as pessoas têm.

-- Obrigado a V. Exa.. Cumpre-me dizer aqui as causas de tais marcas. A cicatriz no queixo resultou de uma queda violenta, quando um certo dia me preparava para descer uma escada de acesso ao metropolitano. Um indivíduo, que nem sequer parou para me socorrer, se fosse caso disso, passou por mim em passo acelerado e, sem se preocupar com o que quer que fosse, deu um pontapé violento na bengala. Incapaz de parar a tempo, não me apercebi da escada e desci os vinte degraus de cabeça e de uma vez só. A marca na testa fi-la quando, confiantemente, caminhava por um passeio; um condutor tinha estacionado aí a sua camioneta, atravessada, e nem sequer se preocupou minimamente em ter alguém que avisasse e acautelasse quaisquer situações.

Parou para descansar e volvidos segundos prosseguiu:

-- Quer, V. Exa., Sr. Oficial de Justiça, ler este papel?

-- É uma declaração do banco de urgência do hospital, em que se refere que o Sr. João da Silva ali recebeu tratamento a escoriações profundas, resultantes de um atropelamento.


-- Obrigado a V. Exa.. Esclareço o Tribunal que esse atropelamento ocorreu em cima de uma passadeira, quando o semáforo dava passagem aos peões, e foi presenciado por um polícia, o mesmo que me acompanhou ao hospital. O que aconteceu ao motorista? Nada! Alegou-se que eu não vejo e passara fora de tempo e da passadeira. Até o próprio polícia acabou por afirmar que apenas chegara ao local depois do acidente. No entanto, o seu apito e a indicação para que atravessasse foram os sinais que eu tivera para o fazer e foi ele que de imediato me socorreu. Várias vezes recorri às autoridades e as respostas foram, invariavelmente, as mesmas: «Não vê que não há lugares para estacionar? Coitados dos homens. Não vê que estão a descarregar? Você não devia andar sozinho na rua. Etc. Etc. Etc.!». Noutra ocasião, interrogado um agente da autoridade acerca de uma situação de estacionamento, que obstruía totalmente

um passeio, respondeu que era ao tribunal e não a ele que competia resolver a questão. Pergunto agora: quantas vezes o tribunal, em geral, e V. Exa., Meritíssimo, em particular, deram sentença favorável a um cidadão que se queixe dessas agressões?

O Juiz olhou fixamente o acusado e, mais para si próprio que para o arguido, murmurou:

-- Na verdade, nenhuma. -e em voz alta- Pode continuar, por favor!?

-- Certamente. Permita-se-me que faça uma outra pergunta a cada um de vós: se se encontrassem em apuros e aparecesse alguém para vos ajudar e um terceiro que, mesmo vendo a marca de uma deficiência, insultuosamente vos apelidasse de bêbedos, que faríeis? Que reacção teríeis?

Calou-se e ficou na expectativa. Por entre os murmúrios ouviu um comentário:

-- Se fosse comigo, levava um tiro na tola ou dava-lhe com um porrete.

Deixou que passassem uns minutos e retomou a palavra:


-- Foram apenas alguns exemplos, muito poucos, das inúmeras agressões que neste país, intitulado estado de direito, são feitas às minorias, numa das quais me incluo, e de que diariamente sou vítima, desde há mais de trinta anos. Que fez, ou faz, esta sociedade contra os que prevaricam a cada instante? Que fez, ou faz, esta sociedade aos alcoólicos que, à sombra de uma inconsciência voluntariamente criada, matam por essas estradas? Matei um homem, é verdade. Dizem-no cumpridor das regras criadas e impostas pela nossa sociedade; no entanto, esse homem, apelidado de zeloso e cumpridor, prevaricou, agrediu, desrespeitou as normas. Mão é verdade que morreu esfaqueado por mim? É! Não é verdade que me atropelou em cima de um passeio? É! Não é verdade que me insultou quando lhe bati com a bengala no carro, em defesa e resposta ao atropelamento de que fui vítima? Não é verdade que, segundo revelou a autópsia, esse homem tinha no sangue uma quantidade de álcool superior à permitida por lei aos condutores? E não é verdade que ele era um, entre muitos outros iguais? Matei um homem e estou arrependido. Não por tê-lo morto, mas porque ele foi o bode expiatório dos crimes cometidos, por todos contra todos. Como respeitar quem não respeita? Como não fazer justiça pelas próprias mãos, quando a Justiça, que deveria garantir os meus direitos, não actua como deve, antes ignorando os prevaricadores? Matei um homem porque é impossível matar toda a sociedade e esta, meus senhores, não é boa. Só é bom e justo o Estado que zela pelos direitos e defende as suas minorias desfavorecidas. Por isso, acuso a sociedade deste país de co-autoria neste crime. Por isso acusei V. Exas., Meritíssimo Juiz, Sr. Delegado do Procurador da República, e a todos vós. Por isso vos considero co-autores do meu crime.

O ruído na sala era intenso e só a custo o juiz conseguiu fazer ouvir a referência à suspensão da audiência e à sua reabertura para daí a duas semanas.


Reaberta a audiência, a expectativa era grande. À entrada do juiz fez-se um silêncio profundo. A sua toga negra impunha solenidade, mais que a habitual.

Ao ouvir a ordem para que o fizesse, o arguido levantou-se, preparando-se para ouvir a sentença.

-- Após o cumprimento dos preceitos legais...

Enquanto o juiz lia o libélo, a legislação em que se suportaria a sentença e tecia considerações de ordem doutrinária, o acusado, alheio à leitura, cogitava acerca do atingir ou não dos objectivos a que se propusera: vibrar um golpe violento na consciência colectiva que o envolvia. Prestou atenção.

-- ... e assim, este Tribunal considera o arguido, João da Silva, culpado de homicídio não premeditado. Considera que a morte praticada resultou de um acto irreflectido, induzido por um conjunto de factores, entre os quais se conta o modo insultuoso e ofensivo como a vítima também actuou; considera, ainda, como factores atenuantes as razões invocadas pela defesa e o carácter primário que o crime revestiu; igualmente foi tido em atenção o estado de embriaguez da vítima, que esteve na origem do atropelamento e o arrependimento aqui manifestado pelo arguido. Nesta conformidade condena-se o arguido em três anos de prisão, com a pena suspensa por dois anos e ao pagamento das despesas judiciais. Apela-se para a consciência do acusado, a fim de que possa ser evitado qualquer outro acto que revista carácter de violência. Está encerrada a audiência.

O acusado permaneceu imóvel, como que hipnotizado.

-- Anda, João. Acabou e venceste.


Não ouvira a bengala da companheira e até mesmo a sua voz lhe soou distante.

-- Sim, acabou. Mas, de facto, não venci. --a amargura embargou-lhe a voz:- Só teria vencido se o meu acto pudesse fazer mudar as coisas. Mas nesta sociedade podre, onde o desrespeito merece respeito, onde a imoralidade é moralmente aceite, onde o perverso é louvado, não venci. Para ter vencido, não deveria ter morto um homem; deveria, sim, exterminar esta sociedade, mas isso não é possível. Na verdade, não venci. Vamos para casa e aproveitamos para dar mais uns momentos de prazer e de glória aos heróis que fazem com que nos transformemos em criminosos. Vamos.

 

                                                                               Henrique Portugal 

 

 

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