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Sobre um telhado de barro vermelho queimado de sol, em uma noite sufocante e úmida sob um estrelado céu tropical, estou eu, que me chamo José Antônio Maria Vaz, e espero pelo fim do mundo. Estou sujo e febril, minhas roupas se penduram esfarrapadas como se fugissem de meu corpo magro. Nos bolsos carrego farinha de trigo e isso significa mais para mim do que se estivessem cheios de ouro. Pois há um ano eu era alguém, era um padeiro, ao contrário de hoje que não sou nada, apenas um mendigo que, inquieto, passa seus dias sob um sol escaldante, para depois passar noites intermináveis em cima de um telhado abandonado. Mas até os mendigos têm um caráter que lhes dá identidade, alguma coisa que os diferencia de todos os outros que estendem suas mãos nas esquinas, como se quisessem doá-las ou vender todos os seus dedos, um a um.
José Antônio Maria Vaz é o maltrapilho que ficou conhecido como o cronista do vento.
Meus lábios se mexem, sem parar, vinte e quatro horas por dia, como se eu contasse uma história que alguém jamais conseguiu terminar de escutar. É como se eu, finalmente, tivesse aceitado que o vento que sopra do mar para o continente seja meu único ouvinte, sempre atencioso, pacientemente à espera, como um velho padre, de que a confissão termine.
De noite me recolho a este telhado abandonado, já que aqui tenho uma vista e um espaço. As constelações são mudas, elas não me aplaudem, mas seus olhos brilham e sinto que posso falar direto na orelha do infinito. Além disso, posso abaixar a cabeça e ver a cidade se espalhando, a cidade noturna, onde fogueiras inquietas queimam e dançam, cães invisíveis riem, e admiro todas as pessoas que dormem ali, respiram, sonham e amam, enquanto eu, em cima de meu telhado, falo de uma pessoa que não existe mais.
Eu, José Antônio Maria Vaz, sou também uma parte dessa cidade que se agarra ladeira abaixo até a boca do rio. As casas escalam a ladeira como macacos e, à cada dia que passa, parece que a população cresce mais. Chegando do interior desconhecido, das savanas e das florestas destruídas e mortas, até a costa marítima, onde se situam as cidades.
Ali se jogam como se não reparassem nos olhares de inimizade que despertam.
Ninguém sabe dizer ao certo o que comem ou onde moram. São tragados pelas cidades e se tornam parte delas. E todos os dias chegam mais estranhos, todos com suas trouxas e cestas. Esbeltas mulheres negras com idênticas trouxas de roupas sobre as cabeças nobres, caminhando como filas de pequenos pontos negros no horizonte. Mais e mais crianças nascem e mais casas se agarram à ladeira para depois serem levadas abaixo pelas nuvens de tempestades que chegam como bandidos assassinos.
Assim tem sido desde que todos se lembram e, à noite, muitos ficam acordados querendo saber como tudo vai terminar.
Quando será que a cidade despencará ladeira abaixo e será tragada pelo mar?
Quando será que o peso de toda essa gente se tornará excessivo?
Quando o mundo acabará?
Uma vez eu, José Antônio Maria Vaz, também fiquei acordado, querendo saber.
Já não mais. Não mais desde que conheci Nélio e o carreguei para o telhado e o vi morrer.
Todas as preocupações que um dia tive agora não existem mais. Para dizer melhor, compreendi que existe uma grande diferença entre estar com medo e estar preocupado.
Até isso Nélio me explicou.
- Ter medo é como sofrer de uma fome insaciável, mas podemos lutar contra as preocupações.
Eu me lembro de suas palavras e agora sei que ele estava certo. Posso estar aqui, olhando a cidade noturna, suas fogueiras, e posso me lembrar de tudo que ele disse nas nove noites que estivemos juntos e que o vi morrer.
E o telhado também é uma parte viva dessa história. É como se eu estivesse no fundo do mar. Afundei e já não posso prosseguir. Estou no fundo de minha própria história; foi aqui, neste telhado, que tudo começou e que tudo também terminou.
Às vezes consigo definir minha missão desta maneira: eu vou estar eternamente andando em cima deste telhado, de um lado para outro, dirigindo minhas palavras para as estrelas. Essa é minha missão para todo o sempre.
E esta é minha história extraordinária que acredito ser impossível esquecer.
Foi naquela noite, no final de novembro, um ano atrás, quando a lua cheia luzia depois de uma forte chuva, que deitei Nélio naquele colchão sujo, onde nove dias depois, exatamente ao nascer da aurora, ele morreria. Naquela altura ele já havia perdido muito sangue, as ataduras que eu mesmo havia improvisado, com pedaços de minhas roupas gastas, não ajudaram muito. Ele sabia, bem antes que eu, que logo não existiria mais.
Foi também quando tudo se iniciou, como se uma nova e extraordinária maneira de contar o tempo tivesse começado. Isso me lembro com clareza, embora já tenha se passado um ano daquela noite e muita coisa tenha acontecido em minha vida.
Eu me lembro da lua no céu escuro.
Eu me lembro dela como um reflexo no rosto pálido de Nélio onde brilhavam gotas salgadas de suor enquanto a vida vagarosamente, quase com cuidado, como se não quisesse acordar alguém, deixava seu corpo.
Naquela manhã bem cedo, depois da nona noite, quando Nélio morreu, algo muito importante também terminou. Tenho dificuldade em esclarecer melhor o que quero dizer. Mas às vezes sinto como se minha vida estivesse rodeada por um grande vazio. Como se estivesse dentro de um enorme aposento de tecido invisível de onde não consigo sair.
Foi assim que me senti naquela manhã quando Nélio morreu humildemente, abandonado por todos, tendo apenas a mim por testemunha.
Depois, quando tudo terminou, fiz como ele havia me pedido.
Carreguei seu corpo, descendo pela sinuosa escadaria até a padaria onde o calor era sempre tão forte que jamais me acostumei. Eu estava sozinho naquela noite, o grande forno já quente à espera do pão que logo seria assado para os famintos da manhã. Coloquei seu corpo no forno, fechei a porta e esperei exatamente uma hora. O tempo que ele havia dito que levaria para seu corpo desaparecer.
Depois, quando abri a porta do forno, não havia nada. Seu espírito passou por mim em um sopro, como uma brisa fria naquele calor infernal, para então deixar de existir.
Retornei ao telhado. Lá fiquei até o anoitecer. E foi então, sob as estrelas e um luar quase inexistente, com a suave brisa do oceano Índico acariciando meu rosto, no meio do meu pesar, que compreendi que seria eu a pessoa que deveria contar a história de Nélio.
Simplesmente não havia mais ninguém que pudesse fazê-lo. Nenhuma outra pessoa a não ser eu. Ninguém mesmo.
E a história tem de ser contada. Ela não pode ficar como mais uma memória abandonada e exilada em um cérebro humano capaz também de guardar tanto lixo.
Pois foi assim: Nélio não foi apenas um menino pobre e sujo de rua. Foi, acima de tudo, uma pessoa excepcional, indecifrável, ambíguo, como um pássaro raro do qual todos falam mas que na verdade ninguém viu. Embora tivesse somente dez anos quando morreu, carregava consigo a
experiência e a sabedoria de vida de quem viveu cem anos.
Nélio - se era esse realmente seu nome, porque às vezes referia-se a si mesmo por outro - cercou-se de uma faixa magnética invisível que ninguém conseguiu penetrar. Todos - até a polícia brutal e os comerciantes indianos constantemente nervosos - o tratavam com respeito. Muitos procuravam seus conselhos ou procuravam ficar próximos prestando atenção, na esperança de que um pouco de seu poder secreto lhes fosse transmitido.
E agora Nélio está morto.
Preso a uma febre profunda ele corajosamente suou seu último suspiro.
Uma solitária vaga propagou-se pelos oceanos do mundo, depois tudo terminou e o silêncio, no seu vazio, foi amedrontador. Fiquei de pé e olhei as estrelas e pensei que nada seria como antes.
Sabia o que muitos pensavam. Eu mesmo havia pensado a mesma coisa. Que Nélio, na verdade, não era uma pessoa e sim um deus. Um desses deuses esquecidos que, por teimosia ou audácia, retornara à Terra e se escondera no corpo magro de Nélio. Ou, se ele não era um deus, era pelo menos um santo. Um santo que era menino de rua.
E agora está morto. Ausente.
A suave brisa do mar que acariciava minha face passou de repente a ser fria e cheia de ameaças. Meu olhar pousou sobre a cidade escura que se agarrava à ladeira em direção ao mar, vi as fogueiras queimando e os poucos postes de luz onde as borboletas bruxas dançavam e pensei: aqui Nélio viveu durante pouco tempo, no nosso meio. E sou o único que conhece toda sua história. A mim ele se entregou quando foi ferido e o carreguei para o telhado e o deitei sobre o colchão sujo do qual ele nunca mais se levantaria.
- Não é porque tenho medo de ser esquecido, disse ele. - É para que vocês mesmos não se esqueçam de quem são.
Nélio nos lembrou de quem realmente éramos. Pessoas que carregam um poder secreto que ignoramos possuir.
Nélio foi uma pessoa excepcional. A sua presença fazia com que todos nos sentíssemos excepcionais.
Esse era seu segredo.
É noite no oceano Índico.
Nélio está morto.
E por mais improvável que pareça, tive a impressão de que morreu sem ao menos sentir medo.
Como isso é possível? Que uma criança de dez anos morra sem demonstrar nenhum sinal de terror sobre o fato de que não mais continuará vivendo?
Não compreendo isso. De forma alguma.
Eu, que sou uma pessoa adulta, não consigo pensar na morte sem sentir uma mão gelada me apertando a garganta. Mas Nélio apenas sorriu. Evidentemente, havia outros segredos que não compartilhou comigo. Isso é extraordinário, já que ele foi uma pessoa extremamente generosa com o pouco que possuía, que eram suas sujas camisas de algodão da Índia, ou com seus constantes e surpreendentes pensamentos.
O fato de Nélio já não existir é para mim um sinal de que logo o mundo acabará.
Ou estou errado?
Estou em cima do telhado e penso na primeira vez que o vi, quando estava caído no chão sujo e tinha sido alvejado pela bala de um assassino confuso.
A suave brisa noturna que vem do mar me auxilia a recordar.
Nélio costumava perguntar:
- Você pode sentir o sabor do vento?
Nunca sabia o que responder. Pode o vento realmente ter algum sabor?
Isso era o que Nélio queria dizer.
- De especiarias misteriosas, ele disse, acho que na sétima noite. Como se estivesse a nos contar sobre acontecimentos e pessoas longe daqui. Que não podemos ver. Mas podemos conhecer aspirando o vento para o fundo da boca e depois engolindo-o.
Assim era Nélio. Ele queria dizer que se podia comer o vento.
Que o vento podia aliviar a fome.
E, agora, quando tento me recordar do que ouvi durante as nove noites que passei com ele, vejo que minha memória não parece ser melhor ou pior do que a de qualquer outra pessoa. Também sei que vivo em uma época em que as pessoas passam mais tempo tentando esquecer do que lembrar. Por isso compreendo claramente meu receio. As pessoas vivem para criar e compartilhar com outros suas boas memórias. Mas se formos honestos, compreenderemos que esta é uma época escura, tão escura quanto a cidade
abaixo dos meus pés, as estrelas brilham forçadamente sobre nossa terra descuidada e as boas memórias são tão poucas que aquele grande aposento em nosso cérebro, onde as memórias são armazenadas, está vazio e fechado.
É estranho que eu diga isso.
Não sou uma pessoa pessimista. Sorrio bem mais que choro.
Mesmo agora que sou mendigo e maltrapilho, conservei em meu corpo o coração alegre de padeiro.
Mas percebo que tenho dificuldade em esclarecer o que quero dizer.
Se alguém, como eu, assou pão em uma padaria quente e sufocante desde os seis anos de idade, esse alguém também não teria facilidade com as palavras.
Nunca fui à escola. Aprendi a ler em jornais velhos e rasgados, quase sempre tão velhos que, quando a cidade era mencionada, era ainda por seu nome colonial que há muito fora mudado. Aprendi a ler enquanto esperávamos que o pão assasse nos fornos. Foi o velho padeiro, Fernando, quem me ensinou. Ainda posso me lembrar claramente daquelas noites em que ele ralhava e rogava pragas por causa da minha preguiça.
- As letras e as palavras não vêm até as pessoas, ele suspirava.
- São as pessoas que devem ir até elas.
E afinal aprendi. Aprendi a me dar bem com as palavras, mesmo que à distância e sempre com o sentimento de não merecê-las.
Mas as palavras continuam me sendo estranhas. Mesmo agora, quando tento contar o que penso ou sinto. Devo tentar, no entanto. Não posso esperar mais. Um ano já se passou.
Ainda não falei sobre a areia branca, o ruído das palmas e os tubarões que às vezes podemos ver logo depois do cais do porto em ruínas.
Vou fazer isso depois.
Agora vou falar de Nélio, o extraordinário. Ele que veio para a cidade de lugar nenhum. Ele que morou dentro de uma estátua eqüestre que, esquecida por todos, ficava em uma praça da cidade.
E é justamente aqui que devo começar minha história.
Tudo sempre começa com o vento, misterioso e sedutor, que sopra sobre nossa cidade vindo do oceano Índico, eternamente em movimento.
Eu, José Antônio Maria Vaz, um homem sozinho no telhado, sob o estrelado céu tropical, tenho uma história para contar.
A PRIMEIRA NOITE
Quando o tiroteio ocorreu naquela noite fatal, e encontrei Nélio banhado em seu próprio sangue, eu já trabalhava na padaria da incomparável Dona Esmeralda havia muitos anos. Ninguém agüentara trabalhar ali por tanto tempo quanto eu.
Dona Esmeralda era uma mulher assombrosa e não havia quem na cidade
- e todos sabiam quem era ela - não a admirasse secretamente ou a julgasse maluca. Quando Nélio, sem que ela soubesse, ficou e morreu no telhado da padaria, Dona Esmeralda estava com mais de noventa anos. Havia aqueles que diziam que ela já havia completado cem, mas ninguém podia dizer ao certo. A única coisa que se podia dizer com certeza sobre Dona Esmeralda era que ninguém sabia ao certo. Era como se ela existisse desde o início dos tempos, fizesse parte da cidade e de sua fundação. Tampouco alguém podia imaginar que havia sido jovem. Sempre teve noventa ou, quem sabe, cem anos.
Ela sempre dirigia seu velho carro em alta velocidade e com a capota abaixada, às vezes por um lado da rua, outras vezes pelo outro. Suas roupas eram sempre de seda esvoaçante, o chapéu preso debaixo do queixo enrugado por uma fita larga. Embora tenha sido sempre muito velha, explicávamos aos turistas, que por pouco conseguiam escapar de serem atropelados por sua louca velocidade, que ela era a filha mais nova do difamado governador da cidade, Dom Joaquim Leonardo dos Santos que, durante sua legendária vida escandalosa, havia, dentre outras coisas, enchido as praças centrais da cidade com uma infinidade de estátuas. Sobre Dom Joaquim circulavam incontáveis histórias, sem deixar de incluir a enorme quantidade de filhos ilegítimos que deixara. Com sua esposa, que parecia um pássaro, Dona Celestina, ele tivera três filhas, dentre as quais Esmeralda era a que mais se parecia com ele, não fisicamente mas no modo de ser.
Dom Joaquim pertencera a uma das mais antigas famílias coloniais que chegaram no meio do século passado, vindas do outro lado do oceano. Sua família se tornara em pouco tempo uma das mais influentes no país. Os irmãos de Dom Joaquim conseguiram posições de prestígio como grandes caçadores de animais selvagens, sacerdotes e militares, pela mineração de pedras preciosas em províncias remotas. Ele havia se lançado desde muito jovem na confusa política local. Já que o país era administrado como uma província do outro lado do oceano, e não havendo possibilidades de controle, os governadores locais nomeados podiam, de modo geral, fazer como bem entendiam. Nas raras vezes em que a desconfiança aumentava, funcionários do governo eram enviados, por via marítima, para controlar o que ocorria realmente dentro da administração colonial. Uma vez Dom Joaquim encheu o escritório deles de cobras, outra vez contratou vários tocadores de tambores e os colocou na casa ao lado; logo depois os
funcionários do governo ficaram loucos ou deprimidos, prontos para voltar o mais rápido possível no primeiro navio que velejasse em direção à Europa. Os relatórios eram sempre tranqüilizadores, tudo estava bem na colônia e, para se certificar de que assim seria, Dom Joaquim colocava em seus bolsos, quando ia despedir-se deles no cais, saquinhos de pano cheios de pedras preciosas.
A primeira vez em que Dom Joaquim foi escolhido para ser o governador da cidade em uma eleição local não tinha mais do que vinte anos. Seu opositor, um velho coronel amável e ingênuo, desistira da campanha eleitoral depois que Dom Joaquim, com muita habilidade, espalhou o boato de que o homem fora preso em sua juventude, quando ainda vivia além-mar, por um crime não conhecido. Apesar das acusações serem falsas o coronel percebeu que jamais poderia combater os boatos e desistiu. Como em todas as outras eleições, a fraude eleitoral era a principal condição imposta pelos organizadores e ele ganhou com uma margem larga, que ultrapassava o número total de eleitores registrados no momento. O componente mais importante de sua campanha eleitoral havia sido a promessa de aumentar consideravelmente o número dos feriados locais se ganhasse a eleição, algo que cumpriu imediatamente quando tomou posse e se apresentou pela primeira vez nas escadarias do palácio do governo, com seu chapéu de penas e de três pontas na cabeça, o mais distinto símbolo da conquista de seu novo valor democrático. A primeira medida de Dom Joaquim, como governador eleito, foi mandar que construíssem um balcão na frente do palácio, de onde poderia, em momentos oportunos, fazer discursos aos habitantes da cidade. Depois de eleito tomou todo o cuidado para que ninguém jamais pudesse desafiar seu alto cargo como governador, e foi reeleito nos sessenta anos seguintes com uma margem cada vez maior, embora na época a população estivesse em declínio. Quando finalmente morreu, já fazia tempo que não se mostrava em público. Àquela altura, estava tão confuso e instável nas profundezas de sua velhice que às vezes achava que já havia morrido e, de noite, dormia em um caixão ao lado de sua larga cama no palácio governamental. Ninguém tivera a coragem de questionar o fato de que continuava como governador, todos o temiam e,
quando finalmente morreu, quando saía de seu caixão, como se quisesse mais uma vez arrastar-se até o balcão e olhar a cidade que se tornara irreconhecível em seus muitos anos no poder, ninguém teve coragem de fazer alguma coisa até que, depois de alguns dias no forte calor, ele começou a feder.
Ele foi o pai de Dona Esmeralda e ela se parecia com ele. Quando em fúria atravessava a cidade em seu carro conversível, ela podia ver por toda parte as pesadas estátuas que invadiam as praças e todas a faziam recordar seu pai.
Dom Joaquim esteve sempre vigilante ante o mínimo sinal de inquietação e descontentamento revolucionário no país. Durante sua juventude, havia estabelecido um grupo de polícia secreta que todos conheciam, mas que oficialmente não existia. Sua incumbência única era a de se misturar com a população e ficar atento para os mínimos sinais de inquietação. Ao mesmo tempo, Dom Joaquim reagia prontamente quando uma revolução em algum país vizinho jogava seus opressores atuais na prisão, expulsava-os para fora do país ou colocava-os diante dos canos de fuzis. Sem demora, fazia uma oferta pelas estátuas que as furiosas multidões derrubavam. Pagava bem e as estátuas eram transportadas por barcos ou por carretas até a cidade. Lá os antigos nomes inscritos eram apagados e Dom Joaquim ordenava que nelas fossem gravados os nomes de seus familiares. Como sua família era de simples descendência rural, ele, sem o menor escrúpulo de consciência, inventou um novo quadro genealógico para si mesmo. E assim a cidade se encheu com estátuas de antigos generais pertencentes a uma família que jamais existiu. Como as revoluções nos países vizinhos eram contínuas, a abundância de estátuas era tão grande que ele foi obrigado a construir novas praças para que todas as que comprasse tivessem um lugar. Quando finalmente morreu, todos os lugares imagináveis ao ar livre estavam cheios de monumentos britânicos, alemães, franceses e portugueses que agora faziam parte do grupo de generais, filósofos e descobridores com os quais a inesgotável imaginação de Dom Joaquim havia dotado sua família.
Todas essas memórias de Dom Joaquim e sua vida passaram por sua filha Dona Esmeralda e seus eternos noventa anos em grande velocidade, durante sua inquieta busca por um significado para sua própria vida. Ela havia se casado quatro vezes, nunca mais que um ano de cada vez, pois quase imediatamente se aborrecia e os homens que escolhia fugiam de medo de seu impetuoso temperamento. Não teve nenhum filho - embora corresse um boato de que tinha um filho secreto em algum lugar, que um dia apareceria e, seguindo as pegadas do avô, seria escolhido para governador.
Mas nenhum filho aparecera e a vida de Dona Esmeralda continuou mudando de trajetória em sua inquieta busca por algo que ela jamais saberia o que era.
Durante aquela época na vida da cidade, que também poderia ser chamada de época da Dona Esmeralda, a guerra colonial chegou até o país, um dos últimos em todo o continente africano. Os jovens que haviam decidido realizar seu inevitável dever histórico e libertar o país do cada vez mais debilitado poder colonial atravessaram a fronteira do norte para o país vizinho, que já se libertara de seu passado, estabelecera suas próprias bases, sua universidade, para depois, quando a hora fosse
considerada certa, regressarem, dessa vez carregados de armas e confiança.
A guerra começara em uma escura noite de setembro, quando um chefe do posto local recebeu um tiro no dedo polegar, de um soldado de dezenove anos, que mais tarde seria o primeiro comandante militar do país independente. Nos primeiros cinco anos de guerra, o país do outro lado do oceano havia recusado de todas as maneiras aceitar o que estava acontecendo. Nas suas propagandas os membros do exército revolucionário eram chamados de terroristas extraviados, criminosos perturbados, e a população foi encorajada a lhes dar um puxão de orelha em vez de escutar seus mal-intencionados discursos dizendo que um outro tempo e um outro mundo estavam a esperar. No entanto, pouco a pouco, o poder colonial foi forçado a compreender que os jovens estavam extremamente determinados e que era bastante óbvio que haviam cativado o ouvido da população traiçoeira. Um exército colonial foi enviado às pressas e começaram a bombardear a esmo, onde acreditavam que os revolucionários libertadores
tinham suas bases e, sem que se dessem conta do fato, foram de derrota a derrota. Até o último momento todos os que haviam vindo para o país como colonizadores se recusavam a aceitar o que estava para acontecer. Até quando os jovens revolucionários cercaram a capital e estavam somente alguns quilômetros fora da zona residencial negra, os colonizadores brancos continuaram a administrar e a planejar um futuro que nunca aconteceria.
Somente depois, quando a derrota era um fato e o país havia proclamado sua independência, é que descobriram a longa fila de lápides brancas no cemitério. Ali se encontravam os jovens, muitas vezes com não mais de dezoito ou dezenove anos, que haviam vindo pelo oceano para tomar parte de uma guerra da qual nada entendiam e para serem mortos por soldados que nunca viram. Isso causou o caos na cidade, muitos dos colonizadores fugiram precipitadamente, deixando suas casas, seus carros,
seus jardins, seus sapatos, suas amantes negras, pisoteando uns aos outros na sala de embarque do aeroporto e brigando por lugares nos navios que deixariam o porto.
Os que foram suficientemente precavidos haviam trocado seu dinheiro e seus bens por pedras preciosas, que agora estavam em saquinhos de pano pendurados por dentro das camisas suadas. Os outros deixaram tudo para trás e abandonaram o país, amaldiçoando os revolucionários injustos que haviam tomado o que possuíam.
Embora Dona Esmeralda jamais se interessasse por questões políticas, e naquela época já tivesse no mínimo oitenta anos, havia entendido desde cedo, provavelmente por puro instinto, que os jovens revolucionários ganhariam a guerra.
De fato uma nova era estava para chegar, e ela foi forçada a escolher sua posição. Não houve dificuldades para que entendesse que pertencia aos jovens revolucionários. Ela combateria com uma mistura de alegria e ódio aquela burocracia opressora que parecia ser a única dádiva do poder colonial para sua longínqua província. Colocou o chapéu da cor mais escura que possuía, possivelmente com o intuito de camuflar sua intenção traiçoeira, e dirigiu seu carro saindo da cidade na direção norte. Na estrada, passou por várias barreiras militares onde tentaram em vão fazer com que ela retornasse, advertindo-a de que estaria entrando no território controlado pelos revolucionários cruéis que confiscariam seu carro, arrancariam seu chapéu e cortariam sua garganta. Quando, apesar disso, ela continuou, julgaram que fosse maluca, e foi ali, naquelas barreiras, que surgiu o rumor de que Dona Esmeralda era louca.
Ela realmente foi parada pelos jovens revolucionários, mas eles nem arrancaram seu chapéu, nem cortaram sua garganta. Ao contrário, a trataram com carinho e respeito.
Em uma das bases vizinhas, um comandante local lhe perguntou as razões pelas quais viajava sozinha em seu grande conversível. Então, sem rodeios, ela comunicou que queria se alistar no exército revolucionário e tirou de sua bolsa uma velha pistola enferrujada que pertencera a seu pai. Esse jovem comandante, que se chamava Lorenzo e que mais tarde cairia em desgraça por causa de sua exagerada cobiça pelas mulheres dos outros, mandou-a seguir até uma base que ficava mais adiante, uns 100 quilômetros mato adentro, onde um comandante de alto escalão do exército revolucionário poderia decidir melhor o que deveria ser feito. Esse homem, que se chamava Marcelino e era coronel no exército revolucionário, conhecia bem de nome o velho governador Dom Joaquim. Deu boas-vindas a Dona Esmeralda, deu-lhe um boné militar em troca do chapéu berrante e conduziu pessoalmente sua educação sobre as doutrinas ideológicas nas quais a rebelião revolucionária se fundava. Depois enviou Dona Esmeralda
para um hospital ambulante onde achou que ela seria de mais utilidade. Sob a liderança de alguns médicos cubanos ela aprendeu, em muito pouco tempo, a auxiliar em complicadas operações. Ali ficou durante toda a guerra colonial e, quando os novos líderes finalmente fizeram sua entrada triunfal na cidade, a população atônita pôde ver o tão conhecido carro conversível, que estivera ausente das ruas da cidade por alguns anos, retornar com Dona Esmeralda de chofer e um dos líderes da revolução em pé, acenando no banco traseiro. Durante o caos reinante na inebriante época após a independência, ela foi consultada pelo novo presidente sobre que papel queria desempenhar na transformação revolucionária da velha sociedade.
- Quero fundar um teatro, ela respondeu sem hesitar.
O presidente, surpreso, tentou persuadi-la a assumir um cargo de maior importância revolucionária, mas ela estava decidida. Finalmente ele entendeu que nada podia fazer para que ela mudasse de idéia. Promulgou um decreto que mais tarde o ministro da Cultura confirmou, entregando a Dona Esmeralda a responsabilidade do único edifício de teatro da cidade.
Assim começou a nova era. Dona Esmeralda estava tão ocupada com sua nova vida que nem notou que as estátuas adquiridas por seu pai com tanto custo do patrimônio de diversas ditaduras foram novamente derrubadas e transportadas até um forte onde foram guardadas ou derretidas. A cidade, que até então era caracterizada por seus parentes imaginários, estava se transformando sem que ela percebesse. Passava todo seu tempo no prédio de teatro escuro e arruinado que havia muito estava abandonado. Seu estado decaíra até se assemelhar a um esgoto, o fedor era medonho e os ratos, tão grandes quanto gatos, dominavam o palco entre os velhos e apodrecidos bastidores.
Com energia feroz Dona Esmeralda começou por declarar guerra aos ratos e ao mau cheiro, e depois se atirou impetuosamente a um ataque que tinha como única meta a recuperação do teatro que jazia como um navio náufrago. Ninguém que a viu durante esse período pôde deixar de notar que a loucura de Dona Esmeralda havia chegado ao máximo. Com aversão e mal disfarçado menosprezo podiam constatar que ela estava se ocupando de um trabalho absolutamente desnecessário, o maior pecado que uma pessoa poderia cometer. De vez em quando ela conseguia ajuda dos jovens, tão ociosos como ignorantes no que dizia respeito ao teatro. Dona Esmeralda costumava dizer que era como um filme sem projetor e, às vezes, quando prometia aos que possuíam aptidão natural para o teatro que um dia iriam provar seu talento no palco até então ainda inundado pelo esgoto, ela conseguia induzi-los a amarrar as saias, arregaçar as calças e andar em círculos na lama, caçar ratos com um pedaço de pau e arrastar para fora
os cenários apodrecidos.
Depois de seis meses conseguiu que o palco e a platéia, com suas cadeiras de plástico vermelho quebradas, fossem recuperados, e também que o sistema elétrico finalmente funcionasse. Foi um grande momento quando ela acendeu as luzes pela primeira vez. Dois dos refletores de trinta anos de idade explodiram imediatamente com fortes estrondos. Para Dona Esmeralda isso foi como uma salva de foguetes. Agora, finalmente, poderia ver seu teatro e o que viu a convenceu de que estava certa, embora
ninguém soubesse ainda o que ela pretendia.
Daí mais seis meses, ela reuniu um grupo de pessoas bem dispostas a sua volta e escreveu uma peça sobre uma lagartixa que sempre aconselhava seu rei erroneamente. Era uma peça com mais de seis horas de duração. Dona Esmeralda construiu os cenários, costurou os trajes, dirigiu os atores e fez todos os papéis para os quais não havia ator. Ela enviara convites para o presidente e para o ministro da Cultura, que não andavam inteiramente satisfeitos com sua recusa em dar ouvidos aos conselhos de vários burocratas do Ministério sobre como administrar um teatro. Uma forte tempestade interrompeu a eletricidade exatamente quando o espetáculo ia começar. O presidente enviara suas desculpas por não poder comparecer, mas o corpulento Adelinho Manjate, antigo sapateiro, atualmente ministro da Cultura por conta do seu sucesso como dançarino durante seus anos de soldado revolucionário, se encontrava presente. O espetáculo teve um atraso de várias horas, e as goteiras caíam incessantemente do telhado sobre um público bem vestido porém cada vez mais descontente.
Já eram mais de dez horas da noite quando Dona Esmeralda pôde acender os refletores e os primeiros atores, que haviam esquecido suas falas, apareceram no palco. O espetáculo foi uma estranha aventura que só terminou ao amanhecer do dia. Nenhum dos presentes, incluindo os atores,
conseguiu entender o conteúdo da peça, porém nenhum deles esqueceria a experiência pela qual passou. Quando, nas primeiras horas da manhã, Dona Esmeralda finalmente ficou sozinha no seu palco, irradiava uma estranha felicidade que somente os que conseguiram realizar o impossível sentem. Pensou saudosa em seu pai, o antigo governador, que não estava vivo para presenciar esse grande momento, e de repente compreendeu que estava com fome. Não havia tido tempo para comer durante o ano que passara.
Ela saiu pela cidade, a chuva havia cessado, o perfume refrescante das acácias em flores que orlavam as ruas centrais da cidade estava no ar. Olhou com curiosidade as pessoas que encontrava, como se pela primeira vez entendesse que não estava só na cidade, e descobriu que todas as estátuas que seu pai passara a vida inteira comprando para enfeitar as praças haviam desaparecido de repente. Por um instante se sentiu velha e triste diante do fato de que evidentemente a nova era significava que nada seria como antes. Mas seu sentimento de triunfo era mais forte que o de tristeza e esquecendo-se rapidamente desses pensamentos parou em um café, sentou-se em uma mesa, pediu uma taça de conhaque e uma porção de pão. Enquanto comia o pão, pensava em como iria conseguir dinheiro para continuar ativando o teatro. Foi então que percebeu que a velha bilheteria e o café abandonado que pertenciam ao salão do teatro poderiam ser transformados em uma padaria. Com a venda de pão, poderia conseguir o dinheiro de que necessitava. Ela comeu o resto do pão, levantou-se, regressou até o teatro e começou imediatamente a arrumar o espaço para dar lugar aos grandes tabuleiros onde se amassa a farinha para fazer o pão e para os fornos. A fim de conseguir o dinheiro para os investimentos necessários vendeu seu carro para um funcionário da embaixada inglesa e, depois de três meses, abriu as portas da padaria.
Eu, José Antônio Maria Vaz, procurei Dona Esmeralda assim que o boato de que ela abriria uma padaria se alastrou pela cidade. Naquela época eu trabalhava para o padeiro Felisberto, na região do porto, e não tinha a menor intenção de parar. Mesmo assim não pude resistir e, depois do trabalho, fui à procura de Dona Esmeralda que naquele momento estava contratando padeiro. Uma longa fila de pessoas se estendia a partir da baixa porta lateral do teatro. Apesar de saber que não fazia sentido me coloquei no final da fila. Não pude resistir à tentação de ficar e uma vez na vida chegar perto da notável Dona Esmeralda. Quando finalmente chegou minha vez, me deixaram entrar e me levaram até um aposento onde uma reluzente masseira inoxidável estava à espera para começar a trabalhar. No meio do aposento, sentada em um banquinho, estava Dona Esmeralda com um longo vestido de seda e um grande chapéu florido na cabeça.
Ela me olhou com seriedade. Em seu olhar havia algo de curioso, como se estivesse se perguntando se já me conhecia. E de repente acenou com a cabeça, como se chegasse a uma resolução importante.
- Você parece um padeiro, ela disse. Você tem nome?
- José Antônio Maria Vaz, respondi. Desde os seis anos faço pão.
Eu lhe contei onde trabalhava, mas não tive certeza se ela me ouviu.
- Quanto é que Felisberto lhe paga? ela interrompeu.
- Cento e trinta mil, respondi.
- Eu lhe pago 129 mil, disse. Se você quiser realmente trabalhar aqui se contentará em receber menos do que recebe com Felisberto.
Concordei com a cabeça. Assim fui contratado. Há mais de cinco anos. Mas ainda posso me lembrar daquele momento como se tivesse acabado de acontecer.
Dona Esmeralda me pediu para começar imediatamente. Ela queria que eu a ajudasse a planejar a compra da farinha de trigo, do açúcar, do fermento, da manteiga e dos ovos. Naqueles longos dias e noites, quando trabalhamos juntos antes da abertura da padaria, ela me contou sua vida. É assim que posso explicar o fato de saber tudo que sei sobre ela. Foi através dela que comecei a entender a cidade na qual vivia e o meu país.
Não consigo saber se Dona Esmeralda era louca ou não. Mas com toda certeza posso dizer que ela tinha uma energia e determinação que eu jamais vira antes.
As pessoas em sua volta podiam cair por terra de cansaço, somente por vê-la se ocupando com seu teatro e sua padaria. Apesar de ter entre oitenta a noventa anos de idade, jamais descansava. Muitas noites, nem se importava em ir para casa e se enrolava sobre alguns sacos de farinha de trigo, dizia boa-noite aos padeiros e se levantava novamente daí a meia hora, cheia de energia como se tivesse acordado depois de uma longa noite de sono. De vez em quando, enquanto esperávamos que a massa fermentasse, costumávamos discutir sobre o que ou quando Dona Esmeralda realmente comia. Freqüentemente ela raspava a massa das bordas da masseira com os dedos. Ninguém jamais a vira comer qualquer outra coisa. Porém, sempre mantinha uma garrafa de conhaque por perto. Achávamos que era assim que recobrava sua energia, mas como éramos pessoas humildes que nunca havíamos tido oportunidade ou dinheiro para provar as bebidas importadas, festejando somente com cachaça, discutíamos se sua garrafa continha algo que também a mantinha jovem. Conhecia Dona Esmeralda algum curandeiro que desse à sua bebida propriedades mágicas?
Quando eu, José Antônio Maria Vaz, cheguei pela primeira vez à padaria de Dona Esmeralda, à qual ela deu o nome de O Sagrado Pão, tinha acabado de fazer dezoito anos.
Era agora um padeiro qualificado, embora ainda não tivesse um diploma. Mas eu fazia pão desde os seis anos. Foi meu pai quem me levou até seu tio, mestre Fernando, dono de uma padaria no bairro africano que ficava depois do aeroporto. Meu pai, que durante toda sua vida foi um homem cheio de fantasias, um dia contemplou minhas mãos e decidiu que eram adequadas para fazer croissants. Meu futuro e minha subsistência seriam como padeiro.
Como todos os outros africanos, éramos pobres. Eu cresci durante um tempo em que ninguém ouvia falar dos jovens revolucionários que cruzavam a fronteira do norte. Ninguém poderia jamais imaginar que os brancos, que eram donos de nosso país e de nossas vidas, teriam o seu poder questionado e que um dia fugiriam precipitadamente para nunca mais voltar. Por muitas gerações havíamos sido obrigados a abaixar nossas cabeças em submissão. Embora agora eu saiba que a opressão nunca poderá ser um hábito, e mesmo que naquela época já existisse uma oposição silenciosa contra todos os brancos que governavam nossas vidas, não havia ninguém, a não ser os jovens revolucionários, que acreditava seriamente que algo poderia ser mudado. Meu pai, que passou sua longa vida conversando sem parar, em várias oportunidades, quando tinha certeza de que nenhum branco poderia entender o que dizia, amaldiçoava os que haviam cruzado o oceano e nos obrigado a trabalhar em suas plantações de chá e de frutas. No entanto isso só complicava as coisas e nunca levava a nada mais que palavras.
Durante quarenta anos meu pai sentou-se debaixo de uma árvore, entre barracões e choupanas, em uma praça do bairro. Sentava-se à sombra e conversava com outros homens desempregados, enquanto esperava que a comida que minha mãe preparava em uma fogueira ficasse pronta. Ele conversava sem parar, todos esses anos, enquanto minha mãe, cansada, escutava sem prestar atenção ao que ele dizia. Mesmo assim acredito que foi sua linda voz que fez com que ela um dia se apaixonasse por ele. Juntos tiveram onze filhos, eu o oitavo, e sete cresceram e sobreviveram. Meu pai, Zeca Antônio, veio de uma das distantes províncias do oeste e falava sempre que um dia pegaria sua família e regressaria para lá. Ele conheceu a minha mãe, Graça, quase imediatamente depois de sua chegada à cidade, ela havia nascido ali, e também foi seduzida por suas palavras, e eles construíram sua modesta moradia no bairro que devia seu crescimento ao novo aeroporto. Nenhum deles sabia ler ou escrever e, dos seu filhos, finalmente só eu e uma das minhas irmãs conseguimos aprender a decifrar as letras e as palavras.
Foi somente depois, quando os jovens revolucionários chegaram à cidade e as estátuas de Dom Joaquim foram derrubadas dos pedestais, que as pessoas se indignaram. Foi como se só então percebessem os longos séculos de injustiça a que foram sujeitados e presumiram que a liberdade e independência, da qual os jovens revolucionários falavam, queria dizer liberdade para não trabalhar. Quando entenderam que a independência queria dizer que deveriam trabalhar tanto quanto antes, e que além disso
teriam que decidir por si mesmos, planejar o trabalho que deveria ser feito, houve muitos que no fundo de suas almas se sentiram bastante confusos.
Alguns anos depois que os brancos desapareceram para o outro lado do oceano, eu ouvia meu pai criticando-os em segredo, assim como no passado criticara os tempos coloniais, reclamando contra os estragos feitos pelos jovens revolucionários, e com seriedade começando a expressar saudades pelos velhos tempos, quando havia ordem e método, e os brancos ainda decidiam no que é que devíamos pensar. Foi uma época cheia de confusão quando, de repente, não precisavam chamar ninguém de patrão e deviam chamar a todos de camarada. Foi uma época em que todas as coisas mudaram mas que, mesmo assim, permaneceram como antes - embora de maneira diferente.
Foi também nessa época que a guerra civil começou.
Os jovens revolucionários, que agora eram senhores de meia-idade e saíam em seus Mercedes pretos, acompanhados por policiais de motocicletas com sirenas ligadas, chamavam os outros nessa guerra de bandidos. Podíamos entender que os responsáveis eram os brancos que haviam fugido e que agora sonhavam retornar. Eles haviam instituído um exército de bandidos negros. Um dia retornariam e devolveriam as estátuas de Dom Joaquim às praças, e recuperariam o direito de decidir sobre o que deveríamos pensar, e os revolucionários de meia-idade seriam obrigados a ir embora pela fronteira do norte. A partir daí, em nome dos brancos, os bandidos cometiam atrocidades, e todos nutríamos um grande medo de que ganhassem a guerra. O tratado de paz foi assinado e o líder dos bandidos veio até a cidade e foi abraçado pelo presidente. Os brancos, por essa época, já haviam retornado. Eram, porém, outro tipo de brancos, que vieram de países de nomes estranhos, e que não vieram para nos colocar de volta nas plantações de chá e de frutas, mas para nos ajudar a restaurar os estragos da guerra. Muitos deles compravam pão da Dona Esmeralda. Sabíamos que nosso pão era bom. Se algo ocorresse e o pão saísse malfeito Dona Esmeralda fechava imediatamente as portas da padaria e não abria até que o pão recuperasse sua qualidade anterior.
Desde o início eu gostei de trabalhar para Dona Esmeralda, embora às vezes ela fosse caprichosa e temperamental e raramente tivesse dinheiro para pagar os salários quando chegava o final do mês. A proximidade do teatro era algo que dera à minha vida um novo significado cheio de estranhas experiências. Dona Esmeralda, pouco tempo depois da legendária estréia, havia organizado um grupo de atores que nada faria além de representar. Para muitos, isso era um exagero escandaloso de sua parte.
Queria ela dizer que pessoas poderiam ser pagas para subir em um palco, algumas noites por semana? Poderia o teatro ser algo mais do que um passatempo? Dona Esmeralda naturalmente defendia com paixão seus objetivos e reuniu à sua volta pessoas que considerava serem os melhores atores do país. Durante o dia ensaiavam as novas peças e à noite apresentavam os espetáculos.
Havia uma escada de caracol que levava da padaria até o telhado do teatro. Imediatamente abaixo do telhado de zinco poderíamos rastejar pelo poço, antigamente usado para as imensas máquinas de ar-condicionado. Através de uma abertura podíamos depois descer até um aposento onde ficava, como um animal pré-histórico, um velho projetar de filmes. Pelos buracos na parede podíamos acompanhar o que acontecia no palco iluminado. Dona Esmeralda sabia que geralmente, quando os padeiros tinham uma folga, assistiam aos ensaios, e nos encorajava a fazer isso para depois
contar-lhe o que achávamos da apresentação. Também costumava nos dizer que, se fizéssemos silêncio, poderíamos sentar na arquibancada de cima, quando uma peça estivesse pronta e fosse representada integralmente.
Eu que sou padeiro, e que somente aos quinze anos aprendi a ler, graças aos velhos jornais e à luta ferrenha de mestre Fernando contra minha preguiça, não posso naturalmente falar sobre as peças que Dona Esmeralda e seus atores criavam. Mesmo assim, acredito que entendi que muitos dos jovens atores eram bons; em todo caso nós da padaria acreditávamos naquilo que faziam, nas pessoas ou animais que representavam, e ríamos com freqüência. Acredito também que posso dizer que Dona Esmeralda não era uma boa escritora de peças. Podíamos ouvir freqüentemente, enquanto nos arrastávamos pelo poço, como Dona Esmeralda e os atores discutiam. Os atores não entendiam o que ela queria dizer com suas peças e Dona Esmeralda ficava com raiva por não conseguir explicar ou persuadir os atores a fazer como queria. Às vezes faziam uma cena terrível, como se os ensaios fossem por si mesmo uma representação dramática. Mas sempre terminava como Dona Esmeralda queria. Era ela quem pagava os salários dos atores, era ela quem tinha a maior perseverança. Para nós, que trabalhávamos na padaria, era como se tivéssemos o privilégio, que pelo menos em parte compensava o salário que às vezes não era pago ou o era com bastante atraso, de ter a possibilidade de ver os mundos incessantemente criados e exterminados naquele palco de teatro que Dona Esmeralda reconquistara do esgoto fedido.
Houve momentos de grande magia naquele pequeno palco, iluminado pelos refletores antigos que às vezes queimavam com um forte estalo. Ainda posso ver como os espíritos flutuavam sobre o palco, em forma de flores
de pano amarelas que Dona Esmeralda jogava enquanto se apoiava nas passarelas perigosamente apodrecidas acima do palco.
Lembro com arrepios do navio de escravos e sua carga a gemer deslizando sobre o palco, com velas esvoaçantes feitas de velhos lençóis e sacos de farinha de trigo, e uma âncora que parecia pesar mil quilos apesar de ser somente papel molhado e esticado em uma armação de arame.
Os atores vagueando pelo espaço e pelo tempo com a incompreensível peça de Dona Esmeralda como guia. Nós, padeiros, vestidos de branco, subíamos até o poço ou sentávamos em jornais, para não sujar as poltronas da arquibancada de cima e, quando ríamos, era um sinal para Dona Esmeralda de que o espetáculo estava pronto e que era hora de abrir a bilheteria e anunciar a nova peça.
Todos em segredo amavam a jovem e linda Elisa, a maior estrela de Dona Esmeralda, que tinha apenas dezesseis anos de idade, mas enfeitiçava todos com sua naturalidade no palco, quer representasse o papel de uma prostituta cínica, fortemente maquiada, em alguma das peças mais realistas de Dona Esmeralda, ou de uma mulher que poeticamente balançava um balde de água na cabeça às margens de um rio imaginário cujas águas invisíveis corriam pelo palco. Todos nós, padeiros, a amávamos, e todos sentimos um longo e profundo pesar quando, um dia, ela deixou de fazer parte do teatro. Um funcionário estrangeiro da embaixada, que uma noite visitara o teatro, retornara durante vinte e três apresentações seguidas para depois propor casamento a Elisa, e eles viajaram para um país do além-mar. Pensei com freqüência no que Dona Esmeralda sentira naquele momento, se ficara triste ou decepcionada, ou se ficara furiosa. Ela nunca disse nada.
Alguns meses depois ela encontrou Marguerida, que logo fez com que a memória de Elisa se apagasse. O mundo do teatro era um mundo que jamais parecia acabar.
Para mim, José Antônio Maria Vaz, o fato de ter encontrado trabalho e clemência perante os olhos de Dona Esmeralda na primeira vez em que a vi significou uma nova vida. Depois cheguei a pensar que, se meu pai nada fizera além de falar toda sua vida, ainda assim havia acertado ao falar sobre minhas mãos.
Eu realmente era um padeiro, havia encontrado meu lugar certo na vida, aquele lugar que todos procuram mas poucos encontram. Fiz amigos entre os outros padeiros e as meninas chatas que ficavam atrás do balcão, vendendo os pães frescos e cheirosos. Conheci todas as pessoas que viviam perto do teatro, na larga avenida que atravessava a cidade em direção ao velho forte, onde as estátuas de Dom Joaquim estavam abandonadas. Também fiz amizade com todos os meninos de rua que dormiam em caixas de papelão e carros enferrujados, e viviam do que encontravam nas latas de lixos, do que conseguiam roubar e depois vender, ou vender para depois roubar de volta.
Foi então que pela primeira vez ouvi falar de Nélio.
Não consigo lembrar quem foi que mencionou seu nome. Talvez tenha sido Sebastião, o velho soldado que perdera uma das pernas e morava no vão da escada do estúdio do eternamente triste fotógrafo indiano Abu Cassamos, do outro lado da rua do café que era de propriedade do eternamente bêbado senhor Leopoldo, um dos brancos que não fizera parte da grande fuga e nunca retornara ao seu país da outra ponta do oceano. Ele entretinha os poucos fregueses que procuravam seu estabelecimento sujo com intermináveis maldições sobre como tudo piorara depois que os jovens revolucionários invadiram a cidade e tomaram o poder.
- Todos riem, ele costumava dizer. Mas do que é que riem? Por que tudo foi para o inferno? Esses negros deviam era chorar. Aqueles eram outros tempos, antes...
Poderia ter sido um deles. Mas também poderia ter sido outra pessoa, talvez um freguês ocasional da padaria. O que lembro claramente foram as palavras usadas, as palavras que me fizeram compreender pela primeira vez que existia um menino de rua que era especial e que se chamava Nélio.
- O presidente deveria nomeá-lo seu conselheiro. Ele é a pessoa mais sábia que existe em nosso país.
Alguns dias mais tarde uma das meninas chatas que vendia pão o apontou para mim, acho que foi a pequena e delgada Dinoka, que sempre sacudia sedutoramente o traseiro quando havia um homem por perto. Ela apontou para um grupo de meninos de rua que tinha seu quartel-general perto do teatro. O menino que seria Nélio era o menor de todos. Talvez, naquela época, tivesse nove anos.
- Ele nunca foi espancado, disse Dinoka admirada. Pense nisso, um menino de rua que nunca foi espancado.
A vida dos meninos de rua era uma vida difícil. Quando iam parar na rua, geralmente não havia retorno. Viviam sujos, dormiam nas suas caixas de papelão e nos carros enferrujados, apanhavam comida onde podiam, bebiam água das fontes quebradas, que ainda sobreviviam dos tempos de Dom Joaquim. Quando chovia, costumavam chutar lama nos carros estacionados nas portas dos bancos para depois se oferecerem inocentemente para
lavá-los quando os donos saíam para tomar o café da tarde no Scala ou
no Continental. Roubavam quando podiam, carregavam sacos de farinha para Dona Esmeralda em troca de pão velho, e sabiam que a vida nunca seria fácil.
Os diversos grupos de meninos de rua tinham seu território delimitado e organizavam suas vidas em pequenas ditaduras, sendo que o líder possuía poder absoluto para sentenciar e executar um castigo. Geralmente brigavam entre si, com outros grupos que invadiam seu território, e com a polícia, que sempre suspeitava que tivessem roubado o que ela não conseguia encontrar.
Eles caçavam cachorros selvagens, capturavam ratos com engenhosas arapucas que encharcavam na gasolina tirada dos carros e davam gritos de alegria quando viam os ratos se queimarem.
Todos vinham de lugares diferentes e todos tinham sua própria história. Alguns haviam perdido seus pais na longa guerra, outros não tinham nenhuma memória de que algum dia tivessem tido pais. Muitos haviam fugido de padrastos e madrastas, outros foram simplesmente jogados para fora de casa quando não havia mais lugar ou comida para eles.
Mas eles riam o tempo todo. Às vezes, quando a padaria estava muito quente e o pão ainda não podia ser retirado dos fornos, eu ia para a rua e os via, eles riam sempre, mesmo quando estavam com fome, cansados ou doentes. Riam sem parar, até da ira do bêbado Leopoldo. Que saía correndo do seu café para a rua, quando achava que eles estavam fazendo muita algazarra, e jogava latas vazias de cerveja contra eles, embora soubesse que no dia seguinte elas estariam enfileiradas na porta do café e lhe causariam grande transtorno quando abrisse as portas.
Muitas eram as histórias sobre Nélio. Sobre sua astúcia e sagacidade, sua capacidade de fazer justiça e especialmente sobre como evitava castigos. Também escutei rumores de que possuía poderes mágicos, que trazia consigo o espírito de um falecido curandeiro que, no princípio dos tempos, quando a cidade ainda mal existia, exercera seu poder sobre as pessoas que viviam na boca daquele grande rio. Portanto, eu sabia da sua existência. Entendia que ele era especial.
Mas nunca havia falado com ele. Não antes daquela noite quando estava sozinho na padaria e, de repente, ouvi os disparos vindos de dentro do teatro. Subi correndo a escada de caracol e me dirigi cautelosamente para a arquibancada de cima. Para minha surpresa, descobri que os refletores estavam acesos e que lá havia um cenário que não havia visto antes.
E no meio da luz estava Nélio. O sangue corria de seu corpo, tornando-se quase preto contra o branco de sua camisa de algodão indiano. Fiquei no escuro com o coração palpitando e tentei pensar. Quem o baleara? Por que ele estava no palco no meio da noite, banhado de luz e de sangue? Tentei escutar algum ruído, mas o silêncio reinava.
Depois escutei que respirava com dificuldade, ali onde estava no palco. Corri escada abaixo no escuro, o tempo todo com medo de alguém aparecer na escuridão e me apontar uma arma de fogo. Quando finalmente cheguei ao palco e me ajoelhei ao seu lado, pensei que já estivesse morto. Porém, como se tivesse me escutado, ele abriu os olhos, que ainda estavam lúcidos, embora já tivesse perdido muito sangue.
- Vou buscar ajuda, eu disse.
Ele fez que não com a cabeça.
- Me carregue até o telhado, falou. Não necessito de nada além de ar.
Tirei meu avental branco, sacudi o pó da farinha de trigo e o rasguei em tiras. Então fiz uma compressa em seu peito, onde ele fora baleado, levantei-o e carreguei-o pela estreita escada que levava ao telhado. Lá eu colocara um colchão que encontrei uma manhã no lixo fora da padaria. Ali o deitei. Cheguei meu rosto bem perto da sua boca para sentir se ainda respirava. Quando me certifiquei de que ainda vivia, me apressei até os fornos, apanhei água e uma lanterna e retornei ao telhado.
- Tenho que ir buscar ajuda, eu disse novamente. Aqui você não pode ficar.
Novamente ele sacudiu a cabeça.
- Quero ficar aqui. Não estou morrendo. Ainda não.
Sua voz estava tão segura que não pude protestar, embora no fundo soubesse que ele necessitava mais que tudo de um médico.
Ele virou a cabeça e me olhou.
- Aqui é fresco, disse. Quero ficar aqui.
Eu havia me sentado a seu lado. De vez em quando molhava seus lábios com água. Como ele fora atingido no peito, não me atrevia a deixá-lo beber.
Essa foi a primeira noite.
Sentei-me ao seu lado no colchão. Às vezes, quando ele parecia adormecer, eu descia até os fornos para não deixar o pão queimar.
Quando ainda faltava muito para o amanhecer, ele abriu os olhos. O sangue parará de correr, o curativo no seu peito magro havia coagulado.
- Tranqüilidade, ele disse. Aqui ouso libertar minha alma.
Eu não sabia o que responder. As palavras soavam estranhas, já que vinham de um menino de apenas dez anos.
O que ele queria dizer?
Muito tempo depois eu compreenderia.
Isso foi tudo o que ele disse.
O resto da noite, a primeira noite, ele ficou calado.
A SEGUNDA NOITE
As vezes, gostaria de saber por que o nascer do sol desperta tanta melancolia na minha alma. Muitas vezes eu ficava de pé no telhado depois de uma longa noite na padaria, onde ocasionalmente o calor era tão forte que me sentia como se levado à loucura. Nas poucas horas do amanhecer, quando a cidade estava justamente às margens do despertar, sentia a fresca brisa matutina vinda do oceano Índico, via o sol sair do oceano como uma imensa bola e sentia uma profunda melancolia no meu cérebro
cansado.
Talvez a tristeza fosse uma saudação dos espíritos que se importam até com um simples padeiro? Um lembrete de que a morte espera também por mim?
Exatamente naquela manhã, no entanto, no segundo dia, quando Nélio já havia ficado naquele colchão sujo por muitas horas, não tive tempo de pensar nos espíritos. Geralmente, eu tirava o pó e o suor acumulados na longa noite na padaria me lavando junto a uma bomba d'água atrás do teatro, onde os dois carpinteiros trabalhavam construindo cenários para os espetáculos de Dona Esmeralda. Depois costumava caminhar pela cidade, que pelas manhãs ainda cheirava a frescor, indo para a casa que dividia com meu irmão, Augustinho, e sua família, em um bairro que ficava na ladeira mais alta, nas margens do rio. Mas nessa manhã fiquei.
Isso não era exatamente uma raridade, pois às vezes me deitava e dormia à sombra daquela árvore que muitos anos atrás fincara suas raízes entre o teatro e a loja do fotógrafo indiano.
Era também o único que subia até o telhado. Eu havia resguardado como meu segredo a quase invisível continuação da escada de caracol e a enferrujada porta de metal. Não estou nem certo se Dona Esmeralda sabia de sua existência. Acredito que ela nunca tenha colocado os pés no telhado. Se havia algo na vida que não a interessava era uma vista panorâmica, não importando o quanto pudesse ser deslumbrante.
Nessa manhã, quando Nélio estava deitado no telhado com sua respiração difícil, não pude ir para casa. Tive que ficar. Lavei-me apressadamente na bomba d'água e em seguida fui até a senhora Muwulene, que morava em uma garagem atrás do tribunal, a alguns quarteirões do teatro. A senhora Muwulene adquirira a fama de ser uma feiticeira má quando os colonizadores brancos tentaram, de maneira desastrosa e com crescente desânimo, proibir o que eles desdenhosamente consideravam nossa supersticiosidade primitiva. Os brancos nunca compreenderam a importância dos espíritos na vida de uma pessoa. Nunca compreenderam a necessidade de estar nas boas graças das almas dos antepassados, nunca entenderam que a vida de uma pessoa é uma constante luta para manter os espíritos de bom humor. Provavelmente foi por isso que, no final, os brancos perderam a guerra e foram forçados a devolver nosso país. Foram os injuriados espíritos, em primeiro lugar, que ganharam a guerra e não os jovens revolucionários. No entanto, para surpresa da senhora Muwulene e de todos nós, os jovens revolucionários foram ainda mais determinados no seu preconceito contra nosso hábito de adorar os espíritos e de arranjar nossas vidas de acordo com seus desejos. A senhora Muwulene era uma feiticeira que usava cobras para adivinhar o futuro e o estado de saúde das pessoas. Ela vivia então na ilha fora da cidade, que podia ser vista do telhado da padaria em dias claros. Durante um grande comício na ilha, o encarregado político local, que provavelmente não teria mais que dezessete anos, havia, de acordo com as instruções emitidas pelos jovens revolucionários, ordenado que os feiticeiros e curandeiros, incluindo a senhora Muwulene, renunciassem imediatamente a seus poderes sobrenaturais e que em seu lugar fizessem o curso básico de enfermagem. Caso contrário iriam para a cadeia. Todos, a não ser a senhora Muwulene, cederam imediatamente, pois o encarregado político informara que a prisão seria o depósito de gelo da fábrica de peixes que os brancos haviam abandonado
precipitadamente quando os jovens revolucionários tomaram o poder. Porém, antes de partir, haviam danificado as máquinas de fazer gelo. O cheiro de peixe podre ficara no ar da ilha por muitos anos. A senhora Muwulene não tinha nenhuma intenção de renunciar a seus poderes sobrenaturais. Ela chegou ao comício com uma cesta cheia de cobras, e foi o murmúrio ameaçador que subiu da multidão quando o encarregado político estava prestes a prendê-la que o fez imediatamente desistir de seu propósito.
Mais tarde a senhora Muwulene mudou para a cidade e se estabeleceu com suas cobras na garagem atrás do tribunal. Às vezes, acontecia das cobras fugirem e serpentearem para dentro da sala de audiência onde transcorria um julgamento. O pânico irrompia e o julgamento era interrompido, enquanto a senhora Muwulene se arrastava em círculos
recolhendo as cobras que, na maioria das vezes, se escondiam no canto escuro atrás da pesada mesa dos promotores e dos advogados, feita da madeira negra e resistente parecida com ferro que existe somente em nosso país.
Era até a senhora Muwulene que eu estava indo, e ela sorriu com sua boca desdentada quando me viu chegar. Contei o que se passava, que precisava de algumas ervas que poderiam curar um jovem que fora baleado no peito e que por essa razão perdera muito sangue.
A senhora Muwulene nunca questionou o ocorrido. Porém quis saber se o jovem era canhoto, se havia nascido em um domingo ou em um dia em que o vento soprava do norte. Respondi que não sabia. A senhora Muwulene suspirou e lamentou que eu tivesse me preparado tão mal para a visita e depois misturou algumas folhas esmagadas com um líquido transparente, que despejou em uma garrafa vazia de loção de barbear. Paguei e retornei apressadamente para a padaria. De acordo com as instruções da senhora Muwulene misturei o conteúdo da garrafa com água e subi para o telhado onde Nélio estava. Ele não se movera desde que o deixei, e estava deitado imóvel no colchão. Pensei precipitadamente que estivesse morto. Mas quando me ajoelhei ao seu lado ele abriu os olhos e me olhou.
Será que enxergamos uma pessoa moribunda com mais clareza do que o usual?
Somente quando se está perto da morte é que as feições de uma pessoa se mostram como na verdade são?
Pensei nisso enquanto lhe dava a mistura líquida para beber. Eu ainda estava preocupado pensando que a bebida percorreria caminhos proibidos no seu peito estraçalhado. Compreendi, porém, que era um risco que deveria correr, não havia outra alternativa, já que ele não me permitia ir buscar ajuda ou que o levasse em um carrinho de mão até o hospital que ficava em um morro, no alto da cidade. Depois que ele bebeu, repousei novamente sua cabeça sobre o colchão. Ele fechou os olhos com dificuldade e pude observá-lo e pensar que mesmo pessoas completamente negras, como ele e eu, também podiam perder sua cor. Senti em sua testa que tinha febre e fiquei na esperança de que a senhora Muwulene tivesse misturado suas melhores ervas.
Nélio tinha dez anos, talvez onze. Mesmo assim tive a impressão de que era uma pessoa muito velha a que estava deitada no colchão a minha frente. Talvez porque a difícil vida de menino de rua significasse outro tipo de envelhecimento do que o nosso, de pessoas comuns? Um cachorro que tem quinze anos já é muito velho. Será que era assim com Nélio? Eu não podia responder às minhas perguntas e pensei com desespero que dentro de pouco tempo ele estaria morto. Mas logo pude ouvir, por sua respiração, que ele caíra em sono profundo. Parecia que as ervas da senhora Muwulene tinham abaixado imediatamente a febre, sua testa já estava menos quente.
Fiquei de pé e olhei para a cidade enquanto comia um pedaço do pão que assara durante a noite.
Como era manhãzinha sabia que o teatro ainda estaria vazio. Era raro que os atores começassem os ensaios antes das dez da manhã. Nélio dormia, sua respiração estava tranqüila, e eu desci a escada e retornei ao palco, onde o drama noturno ocorrera. A velha faxineira Cashilda batia um pano contra as poltronas fazendo a poeira voar. Era tão velha que parecia não enxergar ou ouvir. Algumas vezes acontecia que trocava a noite pelo dia e entrava no teatro durante um espetáculo e começava a limpar as cadeiras enquanto o público estava sentado. Quando os atores escutavam o barulho do pano batendo contra as poltronas e ao mesmo tempo o protesto indignado
vindo da escura platéia, interrompiam imediatamente a peça, e um deles descia do palco e explicava para Cashilda que era noite, que não era manhã, e que ela não podia bater nas poltronas quando pessoas que pagaram para ver o espetáculo estavam sentadas ali.
O espetáculo podia, então, continuar. O teatro estava sempre sujo, já que Cashilda era velha e cansada. Dona Esmeralda, porém, não tinha coração para mandá-la embora.
Quando desci até a platéia ela não notou minha presença. Olhei para o palco e descobri que o cenário da noite anterior desaparecera. Fitei o palco com incredulidade. Será que eu havia me enganado? Não, eu tinha certeza. Não havia sido nem imaginação nem sonho. Havia um cenário, um céu azul e infinito, uma paisagem de ondulante capim-elefante. E agora ele havia desaparecido. Agora havia somente uma porta como marcação da nova peça que Dona Esmeralda começara a ensaiar.
Por que Nélio caíra no palco sob a luz dos refletores? O que acontecia no teatro vazio durante a noite? Quem atirara nele? Subi no palco e pude ver as manchas escuras de sangue. Era sangue de verdade e não uma ilusão teatral que restara de um espetáculo passado.
Meus pensamentos foram interrompidos quando, de repente, Cashilda me viu com seus olhos obtusos. Pensou que eu fosse um dos atores e que o ensaio havia começado. Ela falava muito alto, pois era surda, e começou a gritar pedindo desculpas por ainda não ter terminado a limpeza.
- Tudo bem, gritei de volta. Não sou ator. Sou padeiro.
Mas ela não entendeu o que eu disse. Para ela eu era um ator madrugador. Deixei o palco e retornei para o telhado. Nélio dormia. Pensei que deveria colocar um curativo novo em seu peito. Mas não quis tocá-lo, não quis acordá-lo. Sentei-me à sombra de uma das chaminés e olhei para a cidade. Na distância, ouvia o ruído das pessoas que durante mais um dia se esforçariam ao máximo para sobreviver. Vi na minha frente as milhares e milhares de pessoas que, com os dentes aferrados, acreditavam no inútil sonho de que o dia de hoje, apesar de tudo, seria melhor do que o dia que passou. Mas ao mesmo tempo eu queria que eles parassem e pensassem: em cima do telhado de Dona Esmeralda há um menino de rua que está morrendo.
Devo ter adormecido ali na sombra da chaminé. Quando acordei já era tarde. Sentei-me de repente e por um momento não sabia onde estava. Tinha sonhado com meu pai, ele falava comigo sem parar, e eu não podia me lembrar de nenhuma palavra que dizia. Depois me lembrei do que tinha acontecido e fui até o colchão onde Nélio estava. Ele dormia, seu rosto estava muito pálido, mas sua respiração continuava tranqüila e sua testa estava fresca. Como eu estava com fome, deixei o telhado e desci até o quintal da padaria onde há uma cobertura de folhas de coqueiros trançadas. Ali os padeiros comem suas refeições, e o cozinheiro, Albano, ainda tinha sobras de arroz e verduras que servira mais cedo no dia.
Quando recebi meu prato e comecei a comer, vi que estava com muita fome. Dentro de algumas horas começaria a trabalhar novamente, a noite seria longa e eu não sabia por quanto tempo as ervas da senhora Muwulene poderiam abaixar a febre de Nélio.
Eu tinha acabado de comer e empurrado o prato para longe de mim quando Albano, que era grande e gordo e sempre cheirava à loção de barbear feita em casa, sentou-se no banco à minha frente e secou o suor do rosto com seu avental sujo.
- A polícia esteve aqui, ele disse.
Prendi a respiração.
- Por quê?
Albano deu de ombros.
- Por que a polícia veio? disse. Para fazer perguntas, para espionar, e para matar o tempo.
Eu entendi o que ele queria dizer. Ninguém acreditava na polícia. Eles raramente resolviam algum crime, o percentual de crimes que resolviam era quase inexistente. Por outro lado, aceitavam subornos de boa vontade e todos sabiam como muitas vezes se aliavam aos ladrões e dividiam os objetos apreendidos antes de informar, desgostosos, às vítimas dos roubos que infelizmente nada tinha sido encontrado.
- Perguntas sobre o quê? indaguei.
- Alguém escutou disparos durante a noite, disse Albano. Daqui do teatro ou da padaria. Você escutou algo?
Albano é um amigo. Eu gosto dele e não só da comida que ele faz. Eu poderia ter lhe contado o ocorrido. Eu poderia vir a precisar de alguém com quem dividir Nélio. Mesmo assim não disse nada. Até hoje não compreendo a razão. Mas acredito que foi pelo fato de saber que Nélio não gostaria. Quando o carreguei para o telhado ele pedira silêncio e tranqüilidade, e eu havia interpretado isso como se ele quisesse ser deixado em paz, com as dores e pensamentos que só ele conhecia.
- Nada, respondi. Se alguém tivesse disparado uma arma eu teria ouvido.
- Foi isso que respondemos, disse Albano.
- Eles acreditaram?
- Quem sabe no que a polícia acredita? respondeu Albano. De qualquer maneira, quem é que se importa?
Para mudar de assunto pedi para que embrulhasse em jornal um pouco do arroz e das verduras que haviam sobrado para que eu tivesse algo para comer durante a noite. Não sabia se Nélio iria poder comer. Mas pensei que arroz e verduras era melhor do que pão. Albano fez como pedi e fui para a padaria onde as meninas chatas que vendiam pão varriam o assoalho e limpavam as prateleiras enquanto os últimos fregueses compravam os pães que ainda sobravam. Me preparei para a noite, falei com Júlio, o menino que era meu ajudante de fazer massa, e lhe disse o quanto de farinha de trigo ele deveria buscar na despensa. Algumas horas mais tarde ficamos sozinhos, e um pouco antes da meia-noite Júlio também se foi. Fiz os primeiros pães. Depois de colocar os tabuleiros no forno me apressei em subir a escada para o telhado. Quando cheguei lá Nélio estava acordado.
Foi na segunda noite que ele começou a contar sua história.
Em algum lugar rua abaixo, atrás de uma casa em ruínas que ficava ao lado do teatro, uma mulher estava de pé no escuro e socava milho para o dia seguinte. Ela cantava enquanto socava com o pesado pilão de madeira. Me sentei ao lado de Nélio e escutamos sua canção e o ritmo repetitivo e incansável do pilão que batia como um coração.
- Quando escuto um pilão socando milho penso na minha mãe, disse Nélio, e sua voz soou inesperadamente forte. Eu penso nela e gostaria de saber se ela ainda vive.
Depois contou sobre sua infância e os terríveis acontecimentos que o haviam jogado em um mundo desconhecido, e como vira o mar pela primeira vez, e como finalmente chegara até essa cidade. Ele não prosseguia sem interrupções. De vez em quando se cansava, a febre retornava e ficava inconsciente. Mas sempre regressava, era como se mergulhasse no mar e desaparecesse, para finalmente voltar à superfície, porém em lugar completamente diferente.
Pouco antes do amanhecer ele também comeu do arroz e das verduras que Albano havia me dado. Todas as vezes em que ele se afundava em sua febre, eu retornava até os fornos e, como se Nélio tivesse um acordo secreto com o fogo, seu período de silêncio ocorria sempre quando eu precisava tirar o pão que já estava pronto e colocar novos tabuleiros no forno.
Foi naquela noite que ele começou a me contar a história de sua vida.
Mas eu ainda não havia compreendido como a história da vida dele iria decididamente mudar a minha.
Ele crescera em uma aldeia que ficava muito distante das grandes planícies, em um desfiladeiro junto às altas montanhas que demarcavam as fronteiras de uma área onde as pessoas falavam uma língua incompreensível e possuíam hábitos estranhos. A aldeia não era grande, os casebres eram de barro queimado e, no meio, um tronco sustentava o telhado feito de junco entrelaçado, que tiravam do rio vizinho, onde os crocodilos esperavam em emboscada logo abaixo da superfície da água, e os hipopótamos mugiam de noite. Ele crescera com seus vários irmãos, sua mãe Solange e seu pai Hermenegildo. Esse fora um tempo feliz; ele não conseguia se lembrar de uma vez sequer ter se deitado com fome na esteira onde dormia e repartia seu cobertor com os irmãos. Sempre tinham milho ou sorgo e junto com seus irmãos ele descobrira onde as abelhas escondiam o mel.
Seu pai ficava ausente durante longos períodos. Ele sabia que Hermenegildo trabalhava nas minas num país distante, porém não sabia o que era uma mina, a não ser que era um espaço oco que entrava para o fundo da terra. Lá havia pedras brilhantes que os brancos pagavam a ele para buscar. Quando ele regressava sempre trazia presentes e para si mesmo sempre comprava um chapéu novo. Para Nélio, os chapéus de seu pai foram a primeira evidência de um mundo desconhecido. Tentava imaginar
como seria quando ele próprio viveria aquele momento fantástico de colocar um chapéu na cabeça, um chapéu de abas largas e com uma faixa de couro para transpiração no lado interno da copa.
A primeira lembrança que tinha de sua vida era seu pai levantando-o para o alto em direção ao céu, para que ele pudesse saudar o sol.
Quando Hermenegildo estava em casa o tempo parava e o mundo era perfeito. Quando ele partia por um dos caminhos que seguiam as curvas do rio, e ia para as altas montanhas onde havia uma estrada e talvez também um ônibus que o levaria de volta às minas, a vida voltava a ser o que era antes. Assim ele se lembrava dos seus primeiros anos, como dois tempos diversos, um tempo e uma vida quando seu pai estava em casa, e outro quando estava só com sua mãe e irmãos. Quando tinha cinco anos começou a cuidar das cabras com os outros meninos, aprendeu a atirar nos pássaros com estilingue, e as complicadas lutas com varas que todos os meninos da aldeia tinham que dominar. Em uma ocasião um leopardo apareceu nas proximidades da aldeia, em outra um leão foi ouvido rugindo à distância. Todas as manhãs ele acordava com sua mãe socando milho do lado de fora do casebre, com um pilão tão pesado que ele nem conseguia levantar. E ela cantava como se buscasse força nos tons que saíam de sua garganta.
A catástrofe surgiu como uma fera invisível na noite.
Ele havia adormecido, aquele era um dos períodos mais quentes do ano, e ainda podia recordar que se deitara nu na esteira; havia jogado para longe a coberta, seu corpo estava molhado de suor e seus sonhos perturbados pelo calor sufocante.
Inesperadamente o mundo explodiu, uma forte luz branca o arrancou de seu sono, alguém gritou, talvez um de seus irmãos, talvez sua mãe. No meio do caos que se irrompeu ele foi pisoteado; ainda não havia compreendido o que acontecia e também não conseguia encontrar suas calças. Foi lançado nu no meio da catástrofe e finalmente compreendeu
que eram bandidos que haviam chegado furtivamente na escuridão, que haviam chegado para matar, roubar e queimar.
O ataque ocorreu ao amanhecer. O fogo ateado nos casebres luzia com tal intensidade que ninguém percebeu que o sol já nascera. Foi como se o sol houvesse de súbito surgido do nada, e então a aldeia já estava queimada até o chão, muitos haviam sido mortos a pancadas, cortados a machadadas, furados com afiadas varas de aço, esmagados com porretes de pau.
Logo depois tudo se acalmou, ele ainda não conseguira encontrar suas calças e estava de cócoras atrás de um balaio onde sua mãe guardava o milho colhido algumas semanas atrás. O fedor e o chamuscado vindos dos casebres queimados eram muito fortes, era um cheiro do qual ele jamais se esqueceria. Assim cheirava o mundo quando acabou no meio de fumaça, fogo e caos. Esse era o fedor quando as pessoas eram arrancadas de seus sonhos para enfrentar a morte que chegava com os bandidos de roupas rasgadas, embriagados de cachaça, drogados de soruma (haxixe africano). O silêncio era total e os bandidos reuniram os sobreviventes, talvez a metade dos habitantes da aldeia, homens, mulheres, crianças, na clareira entre os casebres onde usualmente dançavam e tocavam tambores quando havia festas. Nélio
calou-se como se as palavras lhe faltassem. Depois olhou para mim e continuou sua história.
- Foi como se os espíritos de nossos antepassados também tivessem se reunido, pairando perturbados ao redor, como se eles, assim como nós, tivessem sido brutalmente arrancados dos seus lugares invisíveis de repouso. Eu continuei agachado atrás do balaio. Mesmo compreendendo o que ocorria, eu estava com mais medo por estar sem calças, caso algum dos bandidos de repente me visse e me arrastasse até a clareira. Tentei me fazer invisível debaixo do meu manto de medo e esperei pelo que iria
acontecer. Eram uns quinze bandidos. Eu ainda não sabia contar, mas eles eram aproximadamente o dobro do número de cabras do rebanho que costumava vigiar, e elas eram, na maioria das vezes, sete ou oito cabras. Os bandidos estavam sujos e vestiam roupas ainda piores que as nossas. Alguns calçavam botas de soldado grosseiras e sem laços, outros estavam descalços. Alguns levavam espingardas e usavam cartucheiras como cintos, outros seguravam facas compridas, machados, machetes, porretes. Todos eram jovens, alguns apenas um pouco mais velhos que eu, e os que eram mais novos se escondiam em segundo plano segurando agitadamente suas armas.
Mesmo eles tinham sangue nas roupas, nos rostos, assim como nas mãos e nos pés.
Havia também um líder, um homem que era mais velho que os outros,
e era o único que usava uma jaqueta de uniforme manchada e um boné de soldado rasgado. Quando ele abriu a boca pude ver que lhe faltavam muitos dentes, talvez não possuísse mais nenhum. Estava bêbado como os outros, mas também parecia embriagado do poder que exercia sobre nossa aldeia, agora que todas as casas estavam queimadas, que muitos de nós já estávamos mortos, e os sobreviventes estavam tomados de um grande medo. De vez em quando gesticulava no ar com um dos braços, como se os espíritos perturbados o irritassem. Em seguida, começou a gritar, quase como os pássaros que sobrevoavam o rio quando as mulheres buscavam água. Ele falava nossa língua, com um sotaque que parecia vir de um lugar
próximo às altas montanhas. Disse que vieram para nos libertar. Que vieram para nos libertar do partido e do governo que nos dominava, o partido dos jovens revolucionários. Se recusássemos a nos deixar libertar, eles iriam nos matar. Eles tinham queimado nossa aldeia e matado muita gente para demonstrar que encaravam com seriedade seus
esforços de nos libertar e nos ajudar a viver uma vida melhor. Agora queriam alimentos e precisariam de ajuda para carregá-los para longe da aldeia. Pensei com terror no balaio, atrás do qual eu estava escondido. Nele havia milho. Quando levantassem o balaio iriam me encontrar. Tentei me fazer ainda mais invisível. Chorando, comecei a cavar a areia, como se ainda tivesse tempo para fazer um buraco no qual poderia desaparecer. Ao mesmo tempo tentei localizar meu pai entre aqueles que estavam reunidos, como gado, na clareira, o lugar de festa que agora tinha se transformado em um cemitério, rodeado de pessoas esfarrapadas com olhos densos e armas ensangüentadas. Não o vi e pensei que ele, da mesma forma que eu, se escondera atrás de um dos casebres queimados. O homem que era o líder dos bandidos continuou a falar. Disse que não vieram só para nos libertar, que alguns de nós teríamos a oportunidade de tomar parte na sua missão permanente contra outras aldeias que também seriam libertadas. Ouvindo essas palavras, todas as pessoas reunidas ficaram preocupadas e começaram a lamentar e a chorar.
Foi então que vi minha mãe. Ela estava espremida atrás das outras mulheres. Nas costas carregava minha irmã que havia nascido algumas semanas antes. Seu rosto, habitualmente tão belo, estava contorcido pela mesma ansiedade que o das outras mulheres.
Ao mesmo tempo ela buscava com o olhar alguém que não conseguia encontrar. Subitamente percebi que ela estava me procurando. Naquele momento compreendi, apesar de tudo que já sentira antes, o que significa ter uma mãe e perdê-la, da mesma forma como talvez já tivesse perdido meu pai.
De repente os bandidos se inquietaram. Começaram a bater nos que estavam ao seu redor, chutando os velhos e as mulheres, golpeando alguns dos meninos mais velhos que eu no pescoço e gritando para que eles reunissem as cabras. Depois começaram a organizar todas as pessoas reunidas em uma longa fila, a preocupação e o lamento aumentaram e eu, sem que percebesse, havia também começado a chorar. Algumas das mulheres jovens foram empurradas para o lado e, quando entenderam que seriam obrigadas a seguir os bandidos ao deixarem a aldeia como prisioneiras, elas despedaçaram suas roupas.
Naquele instante algo horrível aconteceu. Um dos homens, vendo que levavam sua mulher, teve coragem suficiente para sair da fila e dizer que não permitiria que levassem sua mulher para longe dele. Eu vi quem era, era Alfredo, primo de meu pai, um homem que era um bom pescador e que nunca falava mal de ninguém. Agora ele demonstrava ter a coragem que não sabia possuir, saindo da fila como se estivesse entrando em uma outra vida, colocando-se no caminho para proteger sua apavorada mulher. Naquele
momento, ele não só defendeu sua honra e a de sua mulher como a de todos nós. Foi como se sua ação investisse contra o medo que todos nós sentíamos. O líder dos bandidos o olhou de boca aberta sem entender. Depois deu ordem a um dos meninos mais novos que o seguiam. O menino, que talvez tivesse treze anos, deu um passo à frente e sem hesitar cortou a cabeça de Alfredo com um machado. A cabeça rolou pela areia e a tingiu de vermelho, o corpo também caiu jorrando sangue pela garganta. Isso tudo aconteceu tão rapidamente que ninguém entendeu o que havia ocorrido.
No meio do silêncio o menino começou a rir. Ele limpou o machado na sua camisa. E riu.
Foi quando entendi que ele também estava com medo. Um machado invisível descansava contra seu pescoço.
Um violento grito partiu da multidão amedrontada que eram meus amigos, meus vizinhos, meus parentes. Vi minha mãe tampar os olhos com as mãos e me odiei por ser tão pequeno, por estar com medo e por não poder ajudá-la. Os bandidos estavam nervosos, eles gritavam e espancavam, juntavam os alimentos que encontravam, por razões inexplicáveis não viram o balaio de milho atrás do qual eu me escondia, e a seguir começaram a levar uma parte das mulheres jovens. Para o meu pavor notei que também
empurravam minha mãe, ela ainda era jovem e eles a queriam consigo. Ela gritou e chamou o nome do meu pai, eles a espancaram, mas ela continuou a resistir.
Foi aí que não pude mais continuar escondido atrás do balaio de milho. Eu ainda estava sem calças. Vi como eles tentavam levar minha mãe de mim e isso era algo que não podia acontecer. Eu fiquei de pé e corri nu pelo areal onde a cabeça de Alfredo estava entregue a um enxame de moscas verdes, e segurei com toda a força na tanga de minha mãe. O líder dos bandidos, que parecia especialmente interessado nela, me olhou surpreso.
Depois percebeu que eu era filho dela. Todos diziam que parecíamos bastante um com o outro. De repente ele arrancou minha irmãzinha das costas de minha mãe. Ali ela estava segura da mesma maneira que eu uma vez estivera. Foi em direção a um grande almofariz que as mulheres usavam para socar milho e dentro dele colocou minha irmã. Depois apanhou o pesado pilão e o estendeu em direção à minha mãe.
- Estou com fome, disse. Soque agora o milho e o que tem dentro do almofariz para que possamos comer.
Minha mãe tentou chegar até o almofariz. Ela gritava e se debatia, mas ele a mantinha longe. Por fim ele a espancou para que ela caísse no chão e ao mesmo tempo me agarrou pelo braço.
- Você escolhe, ele gritou para minha mãe, e sua voz saiu com um estranho tom sibilante, quase como um animal, já que faltavam dentes em sua boca.
- Eu corto a cabeça desse franguinho aqui, continuou. Eu corto a cabeça dele se você não me der comida.
Minha mãe estava caída no chão e gritava. Ela tentou engatinhar para o almofariz onde minha irmã estava enfiada. Eu notei que urinei de medo, a maldade que me segurava era tão grande e tão incompreensível que eu queria apenas morrer. Eu queria estar morto, que minha mãe estivesse morta, mas que minha irmãzinha vivesse.
Alguém deveria tirá-la dali e colocá-la nas suas costas. Uma das irmãs de minha mãe que também era sua mãe iria recuperar sua vida. Ninguém precisaria morrer, socado pelo pilão de um almofariz de milho. A morte jamais mereceria tal vítima.
De repente foi como se o homem sem dentes houvesse desistido. Ele gritou algumas ordens bruscas para os que esperavam. Começaram a levar as cabras, as mulheres e os meninos adolescentes que carregavam nas cabeças os alimentos que haviam encontrado na aldeia. Eles me arrastaram consigo e minha mãe, que tentava se libertar e apanhar minha irmã que havia começado a chorar dentro do almofariz.
Ele deve ter ouvido os seus fracos gritos vindos do fundo do almofariz. Porque de repente apanhou o pilão que estava caído no chão, bem perto da cabeça de Alfredo. Olhou para ele como se por um instante não soubesse por que o segurava.
A seguir o homem sem dentes, que tinha vindo com seus homens como se fossem feras na noite para nos matar em nome da liberdade, levantou o pilão e socou no almofariz até que minha irmã parasse de gritar.
Minha mãe escutou quando os gritos cessaram. Ela se virou e viu o que estava acontecendo, como o homem sem dentes socou pela última vez o almofariz, e como depois tudo era silêncio.
Naquele momento foi como se todo o mundo tivesse morrido. Embora muitos de nós ainda estivéssemos vivos, estávamos mesmo assim mortos. Até os espíritos inquietos que flutuavam ao redor caíram como uma chuva de pedras frias e mortas pelo chão.
Eu me lembro muito pouco do que aconteceu depois. Minha mãe, que havia desmaiado, foi carregada e levada pelos bandidos. Eu, que continuava nu, fiquei com meu corpo coberto de arranhões dos afiados galhos espinhosos do matagal que atravessávamos a caminho de um lugar que nenhum de nós sabia onde ficava. Eu pensei que íamos como assombrações por uma paisagem que já não vivia, um número de pessoas que estavam mortas, os bandidos que estavam mortos, e respirávamos um ar que também estava morto. Não havia mais vida, ela havia se acabado quando minha irmãzinha cessara de gritar. O rio que às vezes vislumbrávamos através do matagal estava morto, a água estava morta, o sol que queimava no céu estava morto, nossos passos cansados estavam mortos. Nós éramos uma caravana de mortos que havia deixado a vida para trás. Estávamos a caminho do eterno nada.
Andávamos quando estava escuro e andávamos de madrugada. À nossa frente iam batedores que o homem sem dentes enviava. Quando descobriam gente nas proximidades pegávamos longos desvios. Durante os dias esperávamos pela escuridão, abrigados em densos bosques de árvores.
Os bandidos então começaram a dividir as mulheres entre si. Mas ninguém quis ficar com minha mãe. Ela chorava o tempo todo e não parava nem quando a chutavam ou espancavam. Eu tentava ficar sempre perto dela. Eu ainda não tinha calças e uma das mulheres rasgou um pedaço de sua tanga que amarrei em volta do meu corpo. Os bandidos forçavam as mulheres a fazer a comida que depois comiam sem dividirem conosco. Quando terminavam de comer, geralmente arrastavam as mulheres para trás das
moitas e, quando voltavam, as roupas das mulheres estavam rasgadas e desordenadas e eu podia ver que elas se sentiam envergonhadas. Os bandidos bebiam o tempo todo de recipientes que continham cachaça. Às vezes começavam a brigar. Mas a maior parte das vezes dormiam, quando o homem sem dentes não os mandava vigiar ou dar batidas.
Arrastávamo-nos por uma paisagem que parecia abandonada de todas as formas de vida. Nem pássaros havia. Pelo sol eu podia ver que íamos primeiro para o norte, depois um dia viramos para o leste. Mas nenhum de nós ainda sabia para onde estávamos indo. Não tínhamos permissão para falar uns com os outros, somente podíamos responder às perguntas que algum dos bandidos nos fazia. Eu observava os meninos que eram um pouco mais velhos que eu. Apesar de serem crianças que quase ainda não haviam
se desenvolvido, comportavam-se como se fossem homens muito velhos. Com freqüência eu me sentava escondido e olhava o menino que cortara a cabeça de Alfredo com seu machado. Pensei em como ele, apavorado, tinha rido. Pensei em como seu espírito seria recebido um dia pelos mortos, pelos seus antepassados. Pensei se o castigariam. Eu só sabia que os espíritos também castigavam uns aos outros por crimes que haviam cometido quando estavam vivos.
Uma noite, bem tarde, chegamos a um planalto. Durante vários dias
o caminho que seguíamos se tornara cada vez mais íngreme. Quando chegamos, já havia outros bandidos, alguns casebres mal construídos, uma fogueira e muitas armas. Entendemos que havíamos chegado a uma das bases, um lugar inacessível, no qual os bandidos se escondiam e que os jovens revolucionários raramente encontravam. Da primeira noite só me lembro do quanto estávamos cansados. Minha mãe havia parado de chorar, também havia
parado de falar, e eu pensei que seu coração havia paralisado de tristeza pelos que haviam ficado para trás na aldeia queimada. Fomos empurrados para dentro de um dos casebres dos bandidos. Depois me deitei durante muito tempo, no escuro, no duro chão batido e escutei como os bandidos bebiam vinho de palmeira até ficarem bêbados, como às vezes discutiam e às vezes cantavam canções indecorosas ou xingavam os jovens revolucionários. Tive dificuldades em dormir, pois estava com muita fome. Era como se animais raivosos mordessem sem parar pequenos furos no meu estômago por onde toda minha força vagarosamente escorria, como as
últimas gotas de água de um rio seco. Mesmo assim devo ter adormecido.
Quando novamente amanheceu, acordei de um sono profundo. Fomos tirados do casebre e vi que os bandidos estavam sentados em um círculo, como se tivessem organizado um conselho. Entendi imediatamente que já não era o homem sem dentes quem tomava as decisões, lá havia um outro homem, pequeno de tamanho, com olhos mesquinhos e apertados, que parecia ser quem agora liderava os bandidos. Fomos levados para o centro do círculo e ordenados a sentar. O dia estava muito abafado, nuvens negras
acumulavam-se na distância em gigantescas sombras que com certeza traziam muita chuva. O homem de olhos mesquinhos vestia um uniforme que estava inteiro e limpo. Ele se colocou à nossa frente e nos deu boas-vindas ao planalto que era uma área liberada. Explicou que era aqui que moraríamos dali em diante. Que de maneiras diferentes iríamos fazer parte da guerra contra os jovens revolucionários, que deveríamos estar preparados para sacrificar nossas vidas se assim fosse necessário, e que obedeceríamos
a todas as ordens que recebêssemos - se quiséssemos continuar vivendo. Em seguida recebemos comida e água para beber. Apesar de estarmos todos com muita fome, não houve ninguém que comesse mais do que extremamente pouco. Ainda estávamos possuídos por um medo tão grande que nossos estômagos haviam encolhido, como se também quisessem se fazer invisíveis. Depois, todos os meninos, inclusive eu, fomos avisados de que seguiríamos o homem de olhos mesquinhos e alguns dos bandidos que carregavam armas. Minha mãe tentou me segurar, suas mãos eram como garras no meu braço, mas olhei para ela e disse que era melhor que eu os acompanhasse. Eu com toda certeza voltaria. Se eu ficasse agora eles talvez me matassem. Levantei e segui os outros.
Essa foi a última vez que vi minha mãe. Suas mãos que freqüentemente me acariciavam a testa, se agarraram em volta de meu braço como uma garra. Suas unhas penetraram minha pele tão profundamente que comecei a sangrar. Seus dedos se comunicaram comigo. Tal era seu medo de que também me perderia.
Eu me levantei e não olhei para trás.
Seguimos por um caminho até chegarmos a um desfiladeiro que cortava o planalto como uma fenda. Ali paramos, éramos tantos meninos quanto os dedos das minhas mãos, e eu era o mais novo. Os outros eram os meus amigos, meus irmãos e meus companheiros de brinquedo.
Em seguida tudo aconteceu com tremenda rapidez. O homem de olhos mesquinhos veio de repente em minha direção e me deu uma espingarda que era muito pesada. Depois me disse para eu colocar meu dedo no gatilho e dar um tiro no menino que estava na minha frente. Mesmo não entendendo o que ele queria dizer me enchi novamente de um grande receio.
- Se quiser viver, você tem que atirar nele, repetiu o homem de olhos mesquinhos. Se você não atirar, não é homem. Então não merecerá continuar vivendo.
- Eu não posso atirar em meu irmão, eu disse. Também não sou nenhum homem. Eu sou apenas uma criança.
Foi como se ele não tivesse ouvido o que eu havia dito.
- Atire se você quiser viver, disse. Atire nele.
O menino na minha frente se chamava Tiko. Era filho de um dos irmãos de meu pai e sempre brincávamos juntos, embora ele fosse alguns anos mais velho do que eu. Agora ele estava na minha frente e chorava. Olhei para ele e sabia que nunca poderia lhe dar um tiro. Nem mesmo para salvar minha própria vida. Entendi que o homem de olhos mesquinhos estava falando sério. Ele iria me matar, talvez com suas próprias mãos, se não fizesse como mandava.
Naquele instante me tornei um adulto, embora ainda fosse apenas uma criança. Tomei uma decisão que certamente significaria minha morte. Mas se não fizesse o que sabia que deveria fazer, minha vida perderia todo o seu significado. Eu não podia atirar em meu irmão.
Pensei na minha irmã que fora morta no almofariz. Queria que ela estivesse presente na minha cabeça quando eu morresse. Eu sabia que logo nos encontraríamos quando me matassem.
Segurei o gatilho com meu dedo, mirei apressadamente a espingarda no homem de olhos miúdos, e atirei. O tiro o atingiu no meio do peito e ele foi jogado no chão. Ainda posso me lembrar da sua cara de surpresa antes de morrer. A seguir joguei a espingarda para longe de mim e corri o mais depressa que pude para o caminho por onde havíamos vindo.
Esperei que alguém atirasse em mim pelas costas, dentro de minha cabeça vi minha irmã o tempo todo, e corri tão rapidamente que meus pés descalços mal tocaram o solo pedregoso. Na realidade não era eu quem corria, era a vida que trazia dentro de mim que corria, e eu sabia que logo eles me alcançariam e que eu morreria.
Mais tarde aprendi que há momentos na vida em que não somos mais do que o que fazemos. E aquela vez eu era um par de pés e de pernas que corriam, nada mais.
Cheguei até o lugar onde o caminho se dividia, e corri para a esquerda, embora aquele não fosse o caminho que havíamos usado. Cheguei até um despenhadeiro de onde não poderia prosseguir. Então continuei por fora do caminho, seguindo a borda íngreme do despenhadeiro até que ela começou a se inclinar para baixo e foi possível escorregar da sua beirada até o vale que se estendia abaixo. Ainda não haviam conseguido me apanhar. Quando alcancei o fundo do vale, me levantei e, pela primeira
vez, olhei para trás. Não avistei nenhum bandido. Continuei caminhando pelo vale completamente plano e que parecia ser infinito. Quando escureceu, parei perto de uma árvore e escalei seus galhos mais altos e frondosos. Estava com muita sede e usei minhas últimas forças para conseguir subir na árvore.
Ao amanhecer, continuei. Não sabia para onde ia, pensava na minha mãe e na minha irmã, no meu pai e na aldeia queimada. Pensava também no irmão que não matara e no homem de olhos mesquinhos e miúdos. Eu era apenas uma criança. Mas já matara uma pessoa.
À tardinha, quando meus lábios tinham rachado de sede, cheguei a um riacho. Bebi até perder a sede e depois me sentei à sombra de uns arbustos. Ainda não estava claro para mim que os bandidos tinham me deixado escapar. Também não sabia o que iria fazer. Recordo a imensa solidão que senti nas margens daquele riacho.
Era como se o mundo tivesse acabado e eu tivesse sido deixado sozinho. Para qualquer lado que fosse eu ficaria sozinho.
Eu estava errado, porém. Pois foi quando estava sentado à sombra dos arbustos que de repente notei uma pessoa do outro lado do riacho estreito. Foi ali que conheci o anão branco que mais tarde me traria até esta cidade.
Já era madrugada quando Nélio se calou. Uma chuva fina começara a cair, e eu o cobri com sacos de farinha de trigo. Senti em sua testa que a febre havia retornado. Antes de me levantar para ir buscar mais das ervas da senhora Muwulene, pensei longamente no que ele contara. Eu ainda não sabia o que havia ocorrido durante a noite no palco. O que ele fazia lá? Quem atirara nele?
Nélio dormiu
Eu me levantei e flexionei minhas costas, que estavam cansadas.
Depois deixei-o sozinho com seus sonhos sobre os quais eu nada sabia.
A TERCEIRA NOITE
Durante a noite seguinte achei que Nélio iria morrer, sem que eu jamais soubesse por que havia sido baleado. Por longos momentos era consumido pela febre alta que possuía seu corpo. Quando delirava e se jogava de um lado para o outro no colchão, era como uma pessoa no último estágio da fatal malária, não havia nada que eu, ou outra pessoa, pudesse fazer por ele. Ele deixaria a vida sem terminar sua história.
Mas ele combateu até mesmo essa crise, ele ainda era mais forte do que a febre causada pelo ferimento e, quando o dia novamente raiou, sua testa estava mais fria e ele dormia tranqüilo. Até comera um pouco de pão antes de adormecer. No decorrer do dia eu também adormeci. Peguei uma esteira emprestada da senhora Muwulene quando busquei as ervas.
Eu lhe disse o que ocorrera, pois sabia que poderia confiar nela. Não contei toda a verdade, nem que era Nélio, um menino de rua, que estava deitado no telhado do teatro ou que levara um tiro. Disse apenas que alguém havia se ferido, alguém que precisava de minha ajuda. Ela não disse nada e tão-somente misturou novas ervas, dentre as quais amassou algumas pequenas folhas vermelhas e brilhantes, folhas que eu nunca tinha visto antes. Mas não perguntei o que eram. De qualquer maneira ela não teria me contado. Teria me tratado com a mesma arrogância esnobe com que tratou o jovem político quando ele tentara lhe tirar suas cobras.
Já era tarde da noite quando Nélio continuou sua história. Eu tinha despachado meu ajudante para casa, tudo estava pronto para um noite solitária na padaria e ninguém parecia suspeitar que meus pensamentos estavam longe dos fornos, estavam no telhado onde Nélio estava deitado.
Uma coisa havia acontecido durante o dia que, acredito, teve a ver com o disparo que feriu Nélio. Foi Rosa, uma das meninas chatas que vendia o pão que fazíamos, que comentou que o grupo de meninos de rua
que geralmente ficava do lado de fora do teatro e da padaria tinha desaparecido. Quando saí à rua, imediatamente vi que se tratava do grupo de Nélio. Perguntei a um dos outros meninos que, por algum motivo, era conhecido como o Nariz, se ele sabia para onde tinham ido.
- Foram embora, ele respondeu simplesmente. Foram embora. Talvez tenham encontrado alguma rua melhor. Com carros mais caros. Onde se consegue ser pago com mais dinheiro para sujá-los e depois lavar.
Eu não posso responder inteiramente, com honestidade, se era mais forte minha curiosidade ou minha preocupação com Nélio. Mas, com meus antepassados de testemunhas, espero que tenha sido minha preocupação.
Naquela noite não pude deixar de lhe perguntar o que havia acontecido. Nélio não se surpreendeu com a pergunta. Sua resposta foi evasiva e determinada.
- Eu ainda não cheguei lá, disse. Eu ainda não cheguei nem aqui nesta cidade.
Depois me olhou diretamente nos olhos e falou como um velho sábio e não como aquele pálido e magro menino de dez anos de idade que estava deitado à minha frente, no colchão sujo que eu encontrara no lixo.
- Estou contando para prolongar minha vida, disse. Da mesma maneira como foi a própria vida que correu quando fugi dos bandidos, agora são as minhas palavras descrevendo o ocorrido que me mantêm com vida.
Naquele momento compreendi que Nélio sabia que iria morrer. Ele sabia disso o tempo todo. Não contava sua vida para mim, ele contava para si próprio e para os espíritos, os espíritos de seus antepassados, que invisivelmente flutuavam a sua volta, ali debaixo do telhado, esperando que ele retornasse para eles e para a vida que veio antes e que seguirá depois.
Não perguntei mais nada. Agora sabia que ele viveria o tempo suficiente para que pudesse responder a todas minhas perguntas, quando finalmente chegasse à noite quando foi baleado.
Também naquela noite troquei o curativo do seu peito. Eu havia comprado tiras de pano da senhora Muwulene. Para minha surpresa as tiras haviam sido rasgadas de uma bandeira, sem que eu pudesse identificar o país. Também podia ser um dos velhos estandartes coloniais que fora abandonado ou talvez escondido em um escuro sótão e que ninguém soubesse o que fazer com ele. Ela molhou as tiras no banho de ervas e me disse para esperar até que a brisa marítima tivesse refrescado o ar antes de trocar o curativo. Na errante luz do lampião pude ver que os dois buracos feitos pelas balas haviam começado a enegrecer. As balas não atravessaram seu corpo, não havia nenhum outro buraco nas suas costas.
Nélio também tinha sido baleado de frente. E já que havia respingos de pólvora na sua camisa, a pessoa que segurou a arma devia estar bem perto dele.
Nélio sabia quem o baleara. Mas isso não queria dizer que sabia o porquê.
Ou sabia? Nas noites em que ficou no telhado e esperou que os espíritos viessem apanhá-lo, nunca o vi agitar-se com pensamentos sobre o acontecido. Ele havia esperado pelo ocorrido? Eu me queimava para saber a resposta. No entanto, só lhe perguntei uma vez.
Sabia que ele contava sua história assim como vivíamos nossas vidas. Os acontecimentos não eram atirados de qualquer maneira; eles ocorriam novamente na mesma ordem, através de suas palavras.
O dia de hoje sempre chega antes do dia de amanhã.
Mesmo tentando ser cuidadoso, Nélio sentiu dor quando troquei a atadura pegajosa e coagulada pelas tiras de bandeira que a senhora Muwulene havia mergulhado no banho de folhas vermelhas. Vi quando ele cerrou os dentes e desmaiou por curtos segundos quando fui obrigado a puxar um pedaço da atadura que ficara presa dentro de uma das feridas. Depois ficou quieto por muito tempo. A mulher que lhe lembrava sua mãe estava no escuro, embaixo de nosso telhado, socando milho em seu pilão. Me arrepiei com a memória do que Nélio contara na noite anterior. Eu não cessava de me perguntar de onde vinha a maldade das pessoas. Por que a crueldade sempre tem face humana? Exatamente o que a fazia tão desumana?
Aquela noite eu tinha muito o que fazer na padaria. De uma seita religiosa que atuava na cidade, Dona Esmeralda recebera uma encomenda de um tipo especial de pão que deveria ser assado por mais tempo do que o normal. Eu tinha feito esse pão muitas vezes. Por isso sabia que deveria ser mais atencioso do que o normal. Finalmente terminei o pão da seita. Quando retornei ao telhado Nélio estava acordado. Eu lhe dei de beber. A noite estava muito clara, as estrelas pareciam estar perto. De algum lugar ouvimos o som de tambores na noite. A mulher do milho havia se silenciado. Uma outra mulher riu alto e com paixão. Depois até ela se calou. Os cachorros uivavam e se acasalavam no escuro, um caminhão com um motor tossindo aos arrancos passou pela rua do teatro.
Foi então que Nélio retornou ao rio, onde havia sucumbido ao cansaço e caído para descansar depois de sua longa fuga dos bandidos. Quando continuou sua história, sua voz estava diferente da noite anterior, quando havia soado pensativa, às vezes triste e dura. Agora havia alegria na sua voz, porque os bandidos já não estavam atrás dele.
Do outro lado do rio ele vira uma pessoa. Primeiro pensou que fosse um animal, talvez um daqueles raros leões brancos sobre os quais ouvira os velhos da aldeia contar, os leões que pressagiavam grandes acontecimentos, mas que ninguém sabia dizer se seriam acontecimentos bons ou ruins. Depois viu que não era um animal, era uma pessoa, uma pessoa que não só era pequena como também bem branca, um albino.
Agachou-se já que não sabia se também existiam bandidos que eram pequenos e brancos. O anão do outro lado do rio, porém, já o tinha visto e gritou para ele em uma língua quase idêntica à sua.
- O que faz uma criança sozinha aqui na beira do rio? A voz dele era esganiçada e aguda. O que faz uma criança na beira de um rio quando não há nenhuma aldeia por perto? Você está perdido?
- Sim, Nélio respondeu. Eu estou perdido.
- Então você ainda verá coisas pelas quais não esperava, prosseguiu o anão. Venha até aqui. Há um lugar raso logo abaixo da árvore caída no rio.
Nélio atravessou o rio onde um tronco de árvore meio podre estava afundado na lama. Quando chegou até o anão, ele estava sentado no chão com as pernas cruzadas e começara a mascar uma raiz, que lavara cuidadosamente na água do rio. Ao seu lado estava uma grande mala de viagem de couro com finos adornos de metal. Nélio nunca vira uma mala em sua vida. Pensou que se fosse um pouquinho maior poderia ser a casa que o anão levava consigo.
O anão desdobrou um pedaço de pano ao seu lado e pegou outra raiz que estendeu na direção de Nélio. Ele aceitou, já que fazia bastante tempo que tinha comido, e começou a mascar. A raiz tinha um gosto amargo, ele nunca vira uma raiz como aquela e pensou que já estava em um lugar onde as coisas que cresciam na terra eram diferentes das que existiam na aldeia que foi queimada.
- Não coma tão depressa! gritou o anão, e Nélio ficou imediatamente com medo de que, apesar de tudo, ele tivesse encontrado um bandido disfarçado de anão e albino.
Nélio começou sem demora a mastigar mais devagar. Comeram em silêncio. Embora o anão, que ainda não tinha dito seu nome, estivesse sentado a alguns metros dele, Nélio pôde sentir que cheirava como uma flor, um aroma doce, quase como o de uma mulher que se apronta para um homem.
Levaram muito tempo para mascar a raiz. O anão ainda continuava calado. Finalmente, quando só restava o caule, e ele o usara para limpar seus dentes, começou novamente a falar.
- Você tem nome? gritou, como se não pudesse falar de outra maneira a não ser essa, tentando ser escutado pelo mundo inteiro.
- Nélio.
O anão contemplou-o pensativo.
- Nunca ouvi esse nome antes, disse. Esse não é nenhum nome para um negro. É um nome de branco, curto e sem significado.
- Foi o irmão mais velho de meu pai quem me deu esse nome.
- Esse nome não lhe fará feliz, disse o anão após alguns instantes de silêncio, sem explicar o que queria dizer. Depois de um instante levantou-se para seguir avante.
Nélio também se levantou. Então notou que era mais alto do que o anão à sua frente.
- Para onde você vai? gritou o anão.
- Para parte alguma, respondeu Nélio e percebeu que também fora contagiado pela voz estridente do anão. Para parte alguma! gritou.
- Não grite! gritou o anão. Estou aqui perto de você. Eu escuto. Minhas pernas e meus braços podem ser curtos. Minhas orelhas, no entanto, são grandes e aguçadas. Uma pessoa que não está a caminho de lugar algum dificilmente poderá fazer companhia a uma pessoa que não vai para nenhuma parte. Mas podemos tentar. Você pode me acompanhar se carregar minha mala.
- Para onde você vai? perguntou Nélio. Você também tem nome?
- Yabu Bata, o anão respondeu e colocou a mala na cabeça de Nélio. Para seu alívio, Nélio notou que não estava pesada.
- O que você tem dentro da mala? perguntou Nélio.
- Você pergunta demais, gritou o anão. A minha mala está vazia. Eu a trago comigo para o caso de encontrar algo que necessite levar.
Começaram a andar. O anão andava rápido, com as pernas tortas pisoteando a terra seca. Eles seguiram o rio na direção sul.
Quando haviam andado durante muitas horas e o sol já começava a se aproximar do horizonte, o anão parou de repente como se tivesse acabado de pensar em algo.
- Agora vou responder à sua pergunta sobre para onde vou. Eu sonhei que deveria partir e procurar o caminho que me colocasse no rumo certo.
Nélio havia abaixado a mala e enxugado o suor de seu rosto.
- Que caminho? perguntou.
- Que caminho, repetiu o anão com raiva. O caminho do meu sonho. Que me colocará no rumo certo. Não pergunte tanto. Temos muito que caminhar.
- Como é que você sabe disso? perguntou Nélio.
Yabu Bata olhou-o pensativo antes de responder.
- Um caminho que vemos em um sonho e que nos colocará no rumo certo não pode estar perto, ele finalmente respondeu. Aquilo que é importante é sempre difícil de alcançar.
Quando a luz da noite brilhava no horizonte fizeram acampamento. Pararam perto de um cupinzeiro, no meio de uma grande planície. De uma árvore solitária uma coruja os contemplava com olhos vigilantes.
- Vamos ficar aqui? perguntou Nélio. Não vamos subir em uma árvore? E se os animais selvagens vierem?
- Você não sabe de nada, respondeu Yabu Bata irritado. Ninguém lhe ensinou. Você está perdido e deveria estar contente por ter lhe deixado carregar minha mala. Nós vamos, naturalmente, dormir dentro do cupinzeiro. Agora me ajude. Não faça tantas perguntas.
Com grande força, Yabu Bata atacou a casca dura com uma faca pesada que carregava dependurada em seu cinto. Nélio percebeu que ele era muito forte. Ajudou a empurrar para longe o barro duro que Yabu Bata escavava.
Por fim ele fez uma abertura na cavidade que existia dentro do cupinzeiro.
- Jogue dentro um pouco de capim, disse a seguir.
- Por quê?
- Você continua perguntando demais. Faça como eu digo.
Nélio colheu capim até Yabu Bata dizer que bastava. Depois tirou do seu bolso uma pedra e fez fogo. O capim queimou dentro do cupinzeiro. De repente Nélio pulou para trás e caiu tropeçando na mala de Yabu Bata. Duas cobras saíram do cupinzeiro e desapareceram no capinzal.
- Agora estamos sós, riu Yabu Bata por entre os dentes. Agora podemos entrar e nos deitar.
Dentro do cupinzeiro ficou apertado depois que Yabu Bata colocou sua mala diante da abertura. Seus corpos roçavam um no outro e Nélio sentiu o forte aroma do perfume penetrar seu nariz. Mas não queria perguntar por que Yabu Bata cheirava como mulher. Um anão e um albino podem possuir muitos poderes misteriosos que não devemos desafiar sem necessidade. Em vez disso ele deveria sentir-se agradecido por ter a permissão de seguir Yabu Bata e de carregar sua mala na cabeça.
- Você fugiu dos bandidos, disse Yabu Bata de repente no escuro. Você não está perdido. Por que você está mentindo para mim?
Nélio pensou que Yabu Bata podia ler seus pensamentos. Ele não podia manter nenhum segredo do albino que nunca iria morrer. Todos sabiam que os albinos vivem para sempre. Não possuem alma, jamais precisam ir para a outra vida, eles existem sempre aqui, brancos e visíveis. Como foi que ele tinha se esquecido disso?
- Eles chegaram de noite e queimaram a aldeia, respondeu Nélio. Mataram muitas pessoas. Também mataram nossos cachorros. Eles queriam que eu matasse meu irmão. Então fugi.
Yabu Bata suspirou no escuro.
- Eles matam tantos, disse com tristeza. Por fim, matarão todos. As cobras possuirão a terra. Os espíritos preocupados procurarão por todos os mortos que não poderão encontrar.
- Eles sempre existiram? perguntou Nélio. Os bandidos? Quem são as mães dos bandidos?
- Agora vamos dormir, respondeu Yabu Bata, irritado. Perguntas devem ser feitas quando o sol puder rir de todas as nossas tolices. Agora vamos dormir. Amanhã com certeza teremos muito que andar. Ninguém sabe.
Deitaram juntos no escuro. Nélio podia sentir o hálito de Yabu Bata contra seu pescoço. A respiração calma dele fez com que seu medo desaparecesse, como se também necessitasse de descanso. Nélio quis saber, em um de seus últimos pensamentos antes de dormir, se Yabu Bata poderia ajudá-lo a conseguir um par de calças.
Muitos dias se passaram debaixo de um sol abrasador sem que Yabu Bata achasse o caminho com que tinha sonhado. Às vezes mal tinham o que comer e, embora Yabu Bata houvesse prometido lhe arrumar um par de calças, ele ainda usava a tanga rasgada em volta de seu corpo. Distanciaram-se cada vez mais das altas montanhas sem que por isso se livrassem dos bandidos. Passaram por outras aldeias que haviam sido queimadas, onde almas penadas sentadas fitavam adiante. Em diversas ocasiões, Yabu Bata tinha parado quando via pessoas à distância. Se tivesse a mínima suspeita de que pudessem ser bandidos, eles se deitavam no capim e não se moviam até se encontrarem novamente sozinhos. Em geral andavam em silêncio, pois Nélio havia entendido que Yabu Bata raramente estava disposto a responder perguntas. Como ele estava com medo de que Yabu Bata se cansasse de sua companhia e o mandasse embora, ficava calado a não ser quando tinha certeza absoluta de que Yabu Bata teria tempo para ele. Aprendeu que o humor de Yabu Bata dependia de terem comido ou não.
Em uma ocasião, quando tinham não só milho como também haviam conseguido pescar alguns peixes em um rio e comeram até ficarem fartos, Yabu Bata começou a cantar com sua voz esganiçada. Cantava tão alto que Nélio ficou com medo de que os bandidos o escutassem de longe e viessem furtivamente. Mas nenhum bandido apareceu e Yabu Bata, depois de ter adormecido, em meio a roncos altos, por alguns minutos para digerir a comida, se sentou de repente e olhou para Nélio.
- Eu venho da Montanha Corcunda, disse. Se meu pai ainda estiver vivo ele certamente possui mais animais do que quando parti. Minha mãe tecia tapetes, meu tio talhava esculturas na madeira negra. Eu aprendi a ser ferreiro, apesar de meus braços serem tão curtos. Se não tivesse sonhado eu ainda seria um ferreiro. Minha mulher talvez ainda espere por mim, assim como os meus quatro filhos, todos tão altos e pretos como você.
Nélio pensou que talvez ele já estivesse procurando seu caminho por alguns meses, talvez desde que a chuva cessara. Quando perguntou, porém, recebeu uma resposta que não esperava.
- Você é ainda tão jovem que acredita que um mês é muito tempo, respondeu Yabu Bata. Tenho buscado meu caminho há dezenove anos, oito meses e quatro dias. Se tiver sorte o encontrarei antes que mais dezenove anos se passem. Se tiver azar ou se minha vida for curta, jamais o encontrarei. Então continuarei a procurar quando já tiver começado a viver com meus antepassados.
Nélio sentou em silêncio, meditando sobre o que Yabu Bata havia dito. De repente começou a preocupar-se que talvez fosse esperado que carregasse a mala até quando Yabu Bata encontrasse o caminho com o qual um dia havia sonhado, talvez por mais dezenove anos. Hesitou por muito tempo se ousaria dizer o que pensava para Yabu Bata, que se irritava facilmente. Mas no final sentiu-se obrigado.
- Eu não posso te seguir por dezenove anos, disse com cuidado.
- Nem eu contava com isso, respondeu Yabu Bata com raiva. Já comecei a me cansar de ver sua cara todos os dias. Quando chegarmos ao mar nos separaremos. Depois disso você poderá tratar de sua própria vida.
- Mar, disse Nélio. O que é isso?
Talvez seu pai tivesse alguma vez lhe contado sobre um rio que era tão largo que não se podia ver o outro lado. Ele tinha uma vaga memória de ter ouvido falar em uma enorme quantidade de água que rugia e se lançava contra a terra e arrastava consigo pessoas e animais. Naquela época tinha pensado que era apenas um conto que seu pai gostava de contar. Será que o mar era uma coisa que realmente existia?
- Gostaria muito de ir com você até o mar, ele disse.
- Não estamos muito longe, disse Yabu Bata. Em todo caso, menos que dezenove anos.
Chegaram até o mar de tarde, uma semana depois. Chegaram a uma colina quando de repente Yabu Bata parou e apontou. Nélio estava alguns passos atrás. Ficou paralisado e nem se deu conta de colocar a mala no chão quando deparou com aquela água azul estendida à sua frente. Sem que pudesse explicar por quê, sentiu de imediato que havia chegado em casa.
Ele que nem certeza tinha de que o mar existia, que pensara que era só uma invenção de seu pai. Agora tinha-o à sua frente e tinha imediatamente sentido-se em casa.
Uma pessoa podia também sentir-se em casa em um lugar em que jamais esteve antes.
Ou teríamos gravado em nossa consciência, desde o primeiro instante que nascemos, como um traço humano básico, que nos sentiríamos em casa nas proximidades do oceano? Nélio estava ao lado de Yabu Bata, olhando o mar que o tempo todo parecia crescer diante de seus olhos, e tinha esses
pensamentos. Eram pensamentos que nasciam naturalmente, sem nenhum esforço, pensamentos que o surpreendiam porque nunca havia pensado em algo parecido em sua vida.
Não foi mais além que isso, pois Yabu Bata interrompeu seus pensamentos.
- O mar é perigoso para os que não sabem nadar, Yabu Bata disse.
- Nadar, disse Nélio. O que é isso?
Yabu Bata suspirou.
- Estou contente porque logo vamos nos separar, ele disse. Você não sabe nada. E você pergunta tudo. Eu envelheceria rapidamente se fosse obrigado a responder a todas as suas perguntas. Nadar é boiar na água e ao mesmo tempo se deslocar para diante.
Nélio, que havia crescido perto de um rio cheio de crocodilos, nunca pensara que uma pessoa pudesse se mover dentro da água. Água era para beber, para lavar e para dar vida ao milho e à cassava (mandioca). Mas para se mover dentro dela?
Eles desceram até a praia, até o mar que rolava de um lado para outro.
- Não permita que a mala se molhe, disse Yabu Bata. Eu não quero carregar mala molhada quando for embora daqui. Em seguida foi até a água, depois de dobrar a bainha da calça nas suas pernas curtas e tortas. Nélio ficou ao lado da mala para que pudesse levantá-la rapidamente se o mar chegasse mais perto. A areia branca estava bem quente. Yabu Bata ia e vinha de um lado para o outro e jogava água em seu rosto.
Quando voltou, disse a Nélio para fazer a mesma coisa.
- É refrescante, disse. O coração bate mais vagarosamente, o sangue corre mais tranqüilo.
Nélio foi até a água. Quando curvou-se e bebeu, o gosto era ruim. Enquanto ele cuspia, Yabu Bata sentou-se na areia e riu satisfeito.
- Quando Deus criou o mar, ele o fez com grande sabedoria, gritou Yabu Bata. Como ele não queria que as pessoas bebessem toda sua água azul, ele a fez salgada.
Nélio saiu do mar e sentou-se na areia ao lado de Yabu Bata. Sentaram calados por horas, olhando a água que constantemente mudava, constantemente se movia. Yabu Bata comprou peixe de alguns pescadores que passaram por ali e depois os assaram em uma fogueira abrigados por uma duna de areia. À noite, deitaram-se esparramados na areia, olhando as estrelas. Na distância, a água batia contra a praia.
- Amanhã o deixarei, disse Yabu Bata, de repente, quebrando o silêncio. Eu lhe trouxe até o mar como havia prometido.
- Você também me prometeu um par de calças, disse Nélio.
- Você é um menino atrevido, respondeu Yabu Bata com raiva. As pessoas prometem tanto quanto gostariam de cumprir suas promessas. Mas não é sempre possível realizar tudo que queremos. Gostaríamos de viver eternamente. No entanto, isso não é possível. Gostaríamos de ver nossos inimigos perecerem em seus próprios infortúnios. Mas isso também nem sempre é possível. Gostaríamos de um par de calças. Às vezes isso não é possível. Quando você ficar adulto, entenderá.
- Entender o quê? Nélio respondeu, sem tentar esconder que estava descontente e decepcionado.
- Entender que devemos aprender a esquecer as promessas feitas por outros.
- Não acredito nisso, disse Nélio.
- Estou contente por nos separarmos amanhã, respondeu Yabu Bata irritado. Você não só é curioso, como também se opõe quando as pessoas mais velhas e sábias lhe falam sobre a vida.
Novamente ficaram calados. As estrelas esperavam.
- Amanhã quando eu acordar, perguntou Nélio, você já terá partido?
- Naturalmente isso depende de quando você acordar, respondeu Yabu Bata. Mas espero já ter ido quando você abrir os olhos. Não gosto de despedidas. Nem mesmo de meninos curiosos.
Nélio ficou acordado por muito tempo, deitado na areia, muito tempo depois que a respiração de Yabu Bata se tornara profunda e mesmo depois que começara a roncar. Foi como se Nélio pela primeira vez tivesse entendido que amanhã seria deixado a sós. Pensou que a primeira coisa que teria a aprender era nunca ter a certeza de que teria sempre alguém ao seu lado. Muitas vezes seu pai, Hermenegildo, havia lhe dito que a pior coisa que poderia acontecer a uma pessoa era ser deixada sozinha. Uma pessoa que não tivesse família não era ninguém. Era como se a pessoa não existisse. Podíamos perder tudo, nossos bens materiais e até mesmo nossa sanidade, se tomássemos muita cachaça. A tudo isso ainda poderíamos sobreviver. Tudo menos não ter alguém, sua família, todas suas mães, suas irmãs e irmãos. Talvez essa fosse a maior injustiça que os bandidos lhe causaram.
Eles tinham roubado sua família. De repente Nélio sentiu-se muito triste, ali na areia fresca com Yabu Bata roncando do seu lado. Para dizer a verdade, o que ele queria mais que tudo era arrastar-se para mais perto de Yabu Bata, tão perto que pudesse sentir as batidas do seu coração. Porém não se atreveu. Yabu Bata certamente acordaria e ficaria com raiva. Ele continuou deitado e pensou em tudo que tinha acontecido, desde a noite quando a escuridão explodira no luzir das armas de fogo dos bandidos. Pensou na sua irmã morta, no homem de olhos mesquinhos que matara e no seu irmão que ainda vivia. Amanhã seria deixado sozinho, não tinha nem um par de calças e não sabia para onde ir. Pensou que essa seria a última pergunta que deveria fazer a Yabu Bata, a pergunta mais importante de sua vida até agora.
Para onde deveria ir? Onde estava seu futuro? Teria esse desaparecido na noite em que os bandidos chegaram e mataram até os cachorros? Ou era aqui, no mar, onde não poderia mais seguir caminhando, que tudo terminaria, era aqui que deveria ficar?
Ele adormeceu e dormiu perturbado. Durante toda a noite sonhou que Yabu Bata já tinha acordado e se preparava para a partida. Quando finalmente acordou, bem cedinho, a mala ainda estava do seu lado. Yabu Bata tinha tirado sua roupa e estava nu no mar. Seu corpo torto reluzia
contra a água enquanto ele se lavava. Nélio pensou que uma pessoa que fica nua no mar era uma pessoa muito distinta. Na água do mar podemos ver como uma pessoa realmente é.
Yabu Bata retornou à praia e não pareceu contente por ver que Nélio acordara. Vestiu-se e sacudiu a água de seu cabelo anelado e louro desbotado.
- Eu sei que você acha que pergunto demais, disse Nélio. Por isso penso em lhe perguntar só mais uma coisa antes de você partir.
Yabu Bata por um instante pareceu sentir-se triste porque iriam se separar. Sentou-se na areia ao lado da mala e inclinou sua cabeça até as mãos.
- Às vezes gostaria de saber se um dia acharei o caminho dos meus sonhos, disse. Todas as noites sonho que estou de volta à minha aldeia na Montanha Corcunda, que estou na minha ferraria. Mas quando acordo estou sempre em algum outro lugar. Sempre me pergunto por que Deus deu às pessoas o poder de sonhar. Por que ver um caminho no sonho para depois, talvez, nunca encontrá-lo? Por que retornar, nos sonhos, à ferraria para depois acordar e estar deitado na areia perto do mar?
Por muito tempo Yabu Bata ficou com a cabeça nas mãos meditando sobre por que sonhamos. Depois endireitou-se e olhou para Nélio.
- Sobre o que você quer perguntar? disse ele.
- Para onde devo ir?
Yabu sacudiu a cabeça pensativo.
- Essa foi a melhor pergunta que você fez até agora, disse. Eu gostaria de respondê-la. Para onde vai, no entanto, é só você que poderá responder.
- Quero ir para um lugar onde tenha um par de calças, respondeu Nélio decidido.
- Calças existem em todos os lugares, disse Yabu Bata. Penso que o melhor que você poderá fazer é seguir o mar diretamente para o sul. Lá existem pessoas, lá existem cidades. Para lá é que você deve ir.
- É muito longe? perguntou Nélio.
- Você disse que tinha só uma pergunta, disse Yabu Bata. Quando acabo de respondê-la, você vem com a próxima pergunta. O mesmo caminho tanto pode ser longo como curto. Isso depende de onde você vem e para onde você vai.
Depois Yabu Bata de repente começou a rir. Apanhou um punhado de areia e o jogou por cima de sua cabeça como se tivesse perdido o juízo.
- Como se na verdade eu não fosse sentir sua falta, disse quando se acalmou.
Abriu a mala e apanhou uma pequena bolsa de couro. Abriu-a e dela tirou algumas notas que deu a Nélio.
- Aqui você tem o bastante para comprar suas calças, disse. Todas as vezes em que a usar você se lembrará de mim, Yabu Bata.
- Não tenho nada para lhe dar, respondeu Nélio.
- Dê algo para alguma outra pessoa quando você um dia tiver algo para dar, respondeu Yabu Bata e colocou a bolsa de volta na sua mala.
Em seguida levantou-se e apanhou sua mala.
- Existem dois caminhos nesta vida, ele disse. O caminho que leva uma pessoa à perdição. Esse é o caminho que seguimos contra nossa própria sabedoria. O outro caminho é o caminho que devemos seguir. Aquele que nos levará ao lugar certo.
Depois começou a caminhar ao longo da praia. Ele nunca olhou para atrás. Nélio o seguiu com o olhar até seus olhos começarem a doer na forte luz do sol luzindo na areia branca. A última coisa que viu foi um indistinto ponto que flutuava como fumaça diluída no calor.
Nélio seguiu o mar para o sul. Tentou não pensar na grande solidão que o rodeava. Sentia tanto falta da mala, que por tanto tempo carregara na sua cabeça, como de Yabu Bata. Mas agora sabia que jamais tornaria a vê-lo. Nunca saberia se tinha ou não encontrado seu caminho.
Dois dias mais tarde Nélio chegou a uma pequena cidade com casas baixas, reunidas em uma só rua. Parou diante de uma delas onde havia roupas penduradas em uma instável armação de madeira. Um indiano que parecia ter passado fome durante muito tempo, que de tão magro estava descarnado, saiu da escuridão de dentro da casa. Dele Nélio comprou um par de calças de algodão vermelho-escuro. Depois de pagar foi para trás da casa, tirou a tanga rasgada e vestiu as calças. Enrolou a tanga com habilidade na cabeça, como proteção contra o sol forte. Quando retornou à rua, o indiano estava do lado de fora e pendurava um novo par de calças na armação de madeira.
- Para onde você está indo? perguntou o indiano.
- Para o sul, respondeu Nélio.
- As calças duram muito tempo, respondeu o indiano pensativo.
Nélio seguiu o mar. Todas as noites dormia atrás de uma duna de areia. Todo amanhecer tirava suas calças e entrava na água, se lavando como Yabu Bata. Quando tinha fome parava e ajudava os pescadores a puxarem seus barcos para terra e a limpar suas redes. Eles lhe davam comida e ele continuava seu caminho quando estava satisfeito. A paisagem mudava, mas o mar continuava o mesmo. À distância, viu montanhas e planícies, florestas com árvores cinzas e quebradas, pântanos e desertos. Ele caminhava sem pensar para onde ia. Ainda estava deixando algo para trás, e esperava por um sinal que esclarecesse seu destino. Durante noites viu a lua lentamente transformar-se de uma estreita fatia até ficar cheia e em seguida desaparecer. Pensou que já havia caminhado por vários dias e, no entanto, o mar parecia o mesmo. Às vezes encontrava
pessoas com as quais caminhava por alguns dias, mas na maioria das vezes seguia sozinho. Todos perguntavam para onde ia. Ele contava sobre os bandidos, a aldeia queimada, mas nunca mencionava que se recusara a matar seu irmão e que em vez disso matara o homem de olhos miúdos e mesquinhos. Quando repetiam sua pergunta - para onde ia - ele respondia que não sabia. Durante esse tempo entendeu que as pessoas sempre querem saber para onde as outras estão indo. Era uma pergunta que unia as pessoas.
Um dia, de manhã cedo, chegou às margens de um rio. Viu uma ponte caída e pensou que deveria procurar alguém que tivesse um barco para levá-lo para o outro lado, quando viu uma pessoa sentada em uma pedra perto da água. Quando se aproximou, de repente ficou incerto. A pele dela era escamosa, parecia mais um animal do que uma velha. Porém, ela já escutara e virara sua cabeça e o olhava fixamente. Então ele viu que era uma lagartixa, disfarçada de humana e mulher. Ou talvez fosse o
contrário, talvez fosse uma mulher velha que se disfarçava de sábia lagartixa. Ele aproximou-se um pouco, porém se manteve o tempo todo fora do alcance de sua língua. Ele sabia que estava com sorte. Se encontramos uma lagartixa podemos lhe pedir conselho. Até os reis ouviam quando uma lagartixa proferia em sussurros como o país deveria ser governado. Ele escutara histórias sobre como o líder dos jovens revolucionários tinha seu jardim cheio de lagartixas, as quais convocava constantemente para um conselho. Nélio sentou-se no chão. A lagartixa seguia seus movimentos com os olhos fixos.
- Não quero incomodar, ele disse. Mas preciso de conselho. Já estou caminhando há muitos dias, sem saber para onde ir. Espero por um sinal que nunca vem.
- Quando uma pessoa é tão jovem como você, só existe um lugar para onde ir, respondeu a lagartixa com uma voz que soava como um relógio. Seu caminho o levará para casa.
Nélio então contou resumidamente o que havia ocorrido. Estava o tempo todo preocupado que a lagartixa perdesse a paciência e com sibilos desaparecesse no capinzal que crescia às margens do rio.
Quando calou-se, a lagartixa tirou uma garrafa de dentro de uma trouxa que levava ao lado e bebeu alguns goles grandes. Para sua surpresa, Nélio pôde sentir o cheiro de vinho de palma. A lagartixa bebeu e fez caretas. Nélio pensou que o mundo era cheio de acontecimentos inesperados. Ninguém havia lhe contado que uma lagartixa também podia ser viciada no tipo de bebida que as pessoas tomavam quando queriam se embriagar.
- Sou velha, respondeu a lagartixa. Não sei mais se dou bons conselhos. As pessoas têm cada vez menos respeito pela sabedoria. Todos parecem seguir o caminho da insensatez, não se importam com o que dizemos, nós que ainda possuímos o que resta da velha sabedoria.
A lagartixa bebeu novamente e começou a balançar de um lado para o outro na pedra. Nélio teve medo de que dormisse antes de lhe dar sua resposta.
- Atravesse o rio, disse ela finalmente, quase distraída, como se seu cérebro já estivesse cheio de outros pensamentos. Atravesse o rio e caminhe por mais alguns dias. Então você chegará a uma grande cidade onde as casas escalam como macacos as escarpas dos rochedos em direção ao mar. Lá as pessoas já são tantas que não faria nenhuma diferença se chegasse uma mais. Lá você poderá desaparecer e surgir novamente como a pessoa que gostaria de ser.
Antes que Nélio pudesse fazer mais perguntas a lagartixa desapareceu no capim com movimentos desajeitados. Ele pensou sobre o que ouvira e decidiu que esse era o sinal que esperava.
Ao mesmo tempo viu um homem que lançava sua canoa nas águas do rio. Levantou-se e correu até o homem que já estava com o remo nas mãos.
Uma hora mais tarde Nélio pisou na outra margem do rio e continuou sua caminhada.
No final de uma tarde chegou à cidade. Subira um morro e estava muito cansado.
Não podia dizer quanto tempo tinha caminhado. Seus pés estavam feridos, as calças que comprara já estavam gastas e muito sujas. Mas agora ele via a silhueta da cidade que se erguia nas ladeiras íngremes em direção ao mar.
Ele tinha finalmente chegado.
Apesar de nunca ter estado ali antes, foi invadido imediatamente pelo mesmo sentimento de quando vira o mar pela primeira vez com Yabu Bata. Na silhueta da grande cidade, uma silhueta absolutamente desconhecida, da qual não tinha, nem em suas fantasias, nenhuma noção, ele sem demora sentiu-se em casa. Era a segunda vez que se sentia rico, com uma inesperada sensação de posse. Isso lhe fez pensar que todas as pessoas que são obrigadas a fugir de uma guerra, de uma epidemia ou de uma
catástrofe da natureza possuíam em algum lugar um outro lar que as esperava. O importante era continuar até esse ponto onde todas nossas forças se esgotam. É bem ali, quando o cansaço se transforma em um punho de aço protegendo os últimos restos de perseverança, que você encontrará o lar que nem sabia existir.
Ele chegou à cidade no final de uma tarde, quando o curto crepúsculo coloria o céu de vermelho. À distância, sentou-se na macia areia e observou a interminável quantidade de casas, pessoas, carros barulhentos e ônibus enferrujados.
Não viu casebres em lugar algum, não pôde imaginar que algum lugar dessa cidade fosse semelhante às aldeias.
Também sentiu o medo dentro de si. Talvez a cidade pertencesse aos bandidos? Ele não podia saber. Ainda não tinha coragem de entrar na cidade. Esperaria até o amanhecer do dia seguinte. Na distância, a cidade se acostumaria com a sua presença. Ele sabia que agora sua missão mais importante era a de se manter vivo. Essa é a incumbência mais importante que um ser humano pode ter.
Assim, Nélio encontrou seu lar nas proximidades do oceano.
No dia seguinte deixou-se absorver pelas pessoas, as ruas e as casas deterioradas.
Esse foi o seu primeiro dia ali.
No final, ao amanhecer, ele estava muito cansado. Havia falado com uma voz tão baixa que fui obrigado a me inclinar para perto de seu rosto a fim de poder escutar o que dizia.
Depois, quando se calou, adormeceu instantaneamente.
Fiquei sentado ao seu lado por muito tempo, com medo de que ele nunca mais acordasse. E pensei que jamais saberia o que ocorrera naquela noite no teatro, aquela noite que já parecia ser tão remota, aquela noite em que ele fora baleado.
Coloquei uma toalha molhada em sua testa e desci as escadas. De longe podia escutar Dona Esmeralda. Às vezes ela chegava cedo na padaria e controlava se todos os presentes tinham chegado na hora certa.
Fiquei parado na escada escura. Será que ela poderia ver através
de mim que Nélio estava deitado no telhado? Será que veria que fiquei acordado a noite toda, ouvindo uma história que não queria que terminasse?
Eu não sabia. Então continuei a descer as escadas.
A QUARTA NOITE
Dona Esmeralda não notou minha presença quando desci a escada.
Nessa manhã, uma grande comoção tomava todos nas ruas perto da padaria e do teatro. Os padeiros, seus assistentes, as meninas chatas que vendiam o pão, os vigias, estavam todos na porta em volta de Dona Esmeralda e olhando para a rua. Como também sou tão curioso como os demais, esqueci por um momento Nélio com sua febre alta deitado no telhado. Às vezes penso que não existe algo que controle mais as pessoas do que a curiosidade. Por isso, de certa maneira, me perdoei por tê-lo esquecido durante alguns instantes. Perguntei ao padeiro que estava do meu lado, acho que era o Alberto, o que estava acontecendo. Ao mesmo tempo, vi um grupo grande de meninos movendo-se agitadamente na rua, de um lado para outro. Bloqueavam o tráfego, jogavam fora o lixo das lixeiras em frente das casas e gritavam e berravam.
- Nélio desapareceu, respondeu Alberto.
Senti como se algo me agarrasse o coração.
- Nélio, eu disse. Que Nélio?
Dona Esmeralda, que era capaz de escutar tudo dito à sua volta, virou-se e me olhou pensativa.
- Todos sabem quem é Nélio, disse com voz penetrante. O divino Nélio, que ninguém consegue castigar.
- É claro que sei quem é Nélio, disse desculpando-me. - Ele desapareceu? - continuei virado para Alberto, depois que Dona Esmeralda dirigiu novamente o olhar para a rua.
- Ele sumiu, respondeu Alberto. Os meninos de rua suspeitam que esteja preso.
- Quem iria conseguir prendê-lo?
- Os meninos de rua acham que é uma conspiração. De todos que nunca conseguiram castigá-lo.
- Isso não é provável, eu disse hesitante. Onde ele poderia estar preso?
- Como é que eu poderia saber? respondeu Alberto.
A comoção continuou durante o dia todo. Os meninos de rua que pareciam ser milhares continuaram a causar desordem. A polícia foi chamada e, na expectativa, observava tudo das calçadas. Mas os comandantes que suavam debaixo de pesados bonés não os autorizavam a interferir.
Alguém também disse ter visto o ministro do Interior, o temível mestiço Dimande, passar em seu carro blindado para ter uma posição sobre a situação. Só mais à tardinha a comoção causada pelos meninos acalmou. Reuniram-se em bandos para depois se separarem em pequenos grupos e desaparecer em diversas direções pela cidade. Embora eu estivesse muito cansado, não tive tempo para dormir durante o dia. Meu irmão também enviara um de seus vizinhos para saber se eu estava doente, já que não aparecia em casa havia alguns dias. Escrevi um bilhete em um dos sacos marrons de pão dizendo que no momento estava trabalhando tanto que não tinha tempo de voltar para casa. Mas que tudo estava bem e que não havia nenhuma razão para se preocuparem comigo. Fui para trás da padaria, tirei a roupa por trás das telhas de zinco enferrujadas que formavam um espaço à parte e me lavei debaixo da bomba d'água. Depois fui até a senhora Muwulene e comprei mais compressas que ela mergulhou em seu banho de
ervas secretas. Tive a impressão de que ela suspeitava que Nélio era meu paciente, que ele tinha de alguma maneira se ferido. Enquanto estava em sua garagem escura onde o cheiro de amoníaco e ervas desconhecidas era forte, pensei seriamente em fazê-la saber do que estava acontecendo. Talvez pudesse pedir para dar uma olhada em Nélio que estava deitado no telhado? Quando vi os milhares de meninos de rua agitando-se, entendi a tremenda responsabilidade que assumira. O que aconteceria se Nélio morresse e descobrissem que eu tentara tratá-lo no telhado, sem tê-lo levado a um médico? Quando Nélio já não pudesse falar, quem acreditaria quando eu contasse que ele quis ficar no telhado? Ninguém acreditaria. Possivelmente me arrastariam para a rua, a polícia ignoraria e eu seria linchado com pancadas, apedrejado, molhado com gasolina e queimado.
Mas não disse nada à senhora Muwulene. Era como se já fosse tarde demais. Eu havia me responsabilizado por Nélio e deveria carregar sozinho essa responsabilidade até que ele me pedisse para removê-lo do telhado. Depois da minha visita à senhora Muwulene, fui até o grande mercado e comprei comida. Comprei galinha cozida e verduras, meu dinheiro não deu para comprar mais nada. Havia agitação no mercado. Embora os meninos de rua não estivessem ali correndo e procurando Nélio, havia muitos famintos mendigando comida, muito mais do que o normal. Eu sabia que os refugiados chegavam sem parar à cidade. Os bandidos atacavam por todo o país, corria
um rumor de que os soldados dos jovens revolucionários haviam fugido quando os bandidos chegaram e mais e mais pessoas teriam sido obrigadas a abandonar apressadamente seus lares.
Pensei no que Nélio contara e entendi algo do terrível destino que afetava meu país.
A atual guerra dividia famílias, irmão contra irmão, e por trás de todos esses acontecimentos, à distância, em outro país, existiam mãos invisíveis que orientavam os bandidos. Eram os brancos que uma vez foram obrigados a ir embora e agora procuravam um meio de retornar. No meu íntimo pude ver as estátuas de Dom Joaquim voltando para nossas praças e de repente senti-me furioso com os acontecimentos. Eles não só arremessaram Nélio, sem lar, em um vazio, como também perseguiam toda uma população que fugia, pessoas inocentes, simples, que nunca tinham feito nada além de tentar viver em paz uns com os outros, pessoas que nunca deixaram sequer um estranho passar por suas casas com fome. Quando retornei do mercado para a padaria, pensei estar vendo a cidade de maneira diferente. Ela era nosso último reduto de defesa contra os bandidos e as estátuas que ameaçavam nos aniquilar.
Pensei em como tudo terminaria. Sem que pudesse explicar para mim mesmo, tornara-se importante para todos da cidade Nélio se encontrar no telhado da padaria e continuar vivo. A história que ele me contava era uma história que pertencia a todos.
Com o resto do dinheiro que tinha, comprei uma camisa de um menino de rua que as vendia. Elas eram baratas e percebi que eram de má qualidade. Porém não queria que Nélio usasse mais a mesma camisa. Ela estava suada e suja e eu precisava lavá-la. Quando voltei para a padaria, escapuli imediatamente para o telhado para ver se Nélio ainda dormia. Para minha surpresa vi um gato cinza, enrolado aos pés do seu colchão. Primeiro achei que deveria tirá-lo dali, ele com certeza deveria estar cheio de pulgas. Mas deixei que ficasse.
Nélio dormia profundamente e sua testa não estava tão quente como de madrugada. Sentei-me próximo à chaminé e o observei. Ainda era difícil decidir se quem estava à minha frente era um menino de dez anos ou um homem muito velho. Ao anoitecer, o gato levantou-se de repente do colchão
e, no escuro, desapareceu silenciosamente na cumeeira do telhado. Nélio continuou dormindo. Comi metade da comida que comprara no mercado e depois desci para a padaria para começar o trabalho noturno. Enquanto inspecionava o trabalho do meu ajudante, que era novo e ainda não aprendera em que ordem a farinha de trigo, os ovos, o açúcar, a água e a manteiga deveriam ser misturados, eu refletia se contaria a Nélio o que ocorrera durante o dia. Eu estava incerto de como ele reagiria. Ficaria
contente por sentirem sua falta? Ou ficaria deprimido? Também devo admitir que, talvez mais que tudo, gostaria que isso o fizesse me contar o que ocorrera e quem tentara matá-lo.
O tempo todo eu estava certo de que não fora um acidente. Para mim, havia sido um desconhecido servente da maldade que apontara sua arma contra Nélio. Pensei que fosse o homem de olhos miúdos que seguira seu rastro até a cidade e o encontrara. Mas não podia acreditar que fosse assim. Também isso não esclarecia por que o fato ocorrera no palco iluminado do teatro, no meio da noite.
Briguei com meu ajudante, que era preguiçoso e desinteressado no trabalho. Ameacei reclamar a Dona Esmeralda. Mas ele apenas riu e cantarolou monótonas canções que inventava enquanto descuidadamente trabalhava com a farinha de trigo e a água.
Quando finalmente pude mandá-lo para casa, o relógio marcava pouco mais da meia-noite. Assei os primeiros pães e enchi as outras fôrmas. Quando elas também estavam dentro do forno, apressei-me em subir para o telhado. Uma brisa calma vinha do mar. Na distância pude ver os relâmpagos de uma tempestade que passava.
Quando cheguei, Nélio estava acordado. Ele sorriu quando me viu.
Dei-lhe a comida que comprara e a água misturada com as ervas da senhora Muwulene.
- Dormi por muito tempo, ele disse. E sonhei que me encontrava novamente com Yabu Bata.
- Ele encontrou seu caminho? perguntei com cuidado. Nélio me olhou pensativo.
- Por que lhe perguntaria isso? disse. Yabu Bata procurava seu caminho na vida real. Por que lhe perguntaria sobre isso se o encontrei em um sonho?
Agora, um ano depois desses acontecimentos no telhado, nas noites antes de Nélio morrer e quando recebi extraordinárias explicações sobre o ocorrido, ainda não posso dizer se compreendi o que Nélio me respondeu sobre o caminho de Yabu Bata. Tenho o pressentimento de que ele tentou me dizer algo importante. Mas meu cérebro ainda não está maduro para me deixar compreender todas suas palavras. Às vezes duvido se viverei o tempo suficiente para chegar a esse momento.
Troquei o curativo. Quando vi que o ferimento enegrecera ainda mais, não pude esconder meu medo. Também pensei sentir um cheiro fraco da morte que já existia na ferida infeccionada.
- Tenho que levá-lo para o hospital, eu disse.
- Ainda não, Nélio respondeu. Eu direi quando isso for necessário.
Suas palavras foram tão firmes que eu não soube protestar. A aura especial de convicção com a qual Nélio se cercara desde que emergira de uma estátua eqüestre e se mostrara ao mundo não o havia abandonado, mesmo estando muito doente.
Justamente nessa noite, a quarta noite, ele falou muito na estátua que se tornara seu lar na cidade e no lugar secreto para onde podia sempre retornar com seus pensamentos.
Nélio entrou na cidade ao amanhecer do dia seguinte ao que chegara. Passara a noite na praia, debaixo de um barco de pesca virado. Seguira o fluxo de pessoas, caminhões lotados, ônibus enferrujados, carrinhos de mão e carros para a cidade. Assombrou-se diante dos prédios e ficou com medo de que as pessoas que via através das janelas quebradas caíssem na sua cabeça. Ele seguira o fluxo da multidão sem fazer parte dela, fora levado por ela e queria saber para onde estava indo. Seus primeiros dias
na cidade, ele se lembra como uma interminável caminhada, dia e noite, que foi no início confusa e assustadora, para depois se tornar cada vez mais prazerosa, e até finalmente sentir que chegara no núcleo, onde tudo que acontecia, todos os incidentes, todas as pessoas estavam reunidas, ali naquele único ponto. Assim ele aprendeu a conhecer a cidade. Apanhava restos de comida nas latas de lixo, aprendendo a sobreviver imitando as ações das outras criança que, como ele, também viviam na rua.
As primeiras noites dormira em um cemitério na periferia da cidade. Foi ali também que pensou ter encontrado um amigo e sofreu uma grande decepção. Durante o primeiro dia, que também fora o dia mais longo, seu pé ficara cheio ,de feridas, já que não estavam acostumados ao asfalto ou pavimentos de pedras ásperas. Além disso, tropeçara e caíra nos buracos que enchiam as ruas e as calçadas da cidade. Aprendeu que tinha que escolher, o tempo todo, se olharia para as mercadorias expostas nas vitrinas ou se continuaria caminhando. Se, por acaso, se interessasse em acompanhar uma briga entre um homem e uma mulher, não poderia continuar andando.
Quando começou a escurecer ele se encontrava na periferia da cidade. Atrás de um portão meio caído em um muro viu algumas árvores. Pensou que poderia subir em uma delas, incerto se a cidade possuía seus próprios animais selvagens que caçavam de noite as pessoas que moravam na rua. Mas quando, com cuidado, esgueirou-se pelo portão, descobriu que se encontrava em um cemitério. Não parecia o lugar onde enterravam seus mortos na aldeia queimada, simples montes de terra, às vezes decorados
com paus amarrados juntos formando cruzes. Aqui as sepulturas eram construídas de pedra e cal, com pinturas de porcelana quase desintegradas e rachadas. Muitas das sepulturas tinham caído aos pedaços. Era como se ele estivesse em um cemitério de monumentos de sepulturas e não em um cemitério para pessoas que haviam se reunido aos seus espíritos. Algumas das sepulturas eram tão grandes que pareciam pequenas casas, decoradas com cruzes de gesso branco, algumas com grades de metal nas aberturas.
Ele estava muito cansado, e viu outras pessoas se enrolarem em cobertores ou pedaços de papelão entre as sepulturas;. Do lado de fora de algumas das sepulturas que pareciam casas, mulheres cozinhavam sobre uma fogueira enquanto suas famílias esperavam no fundo. Nélio viu que as árvores não eram suficientemente altas, para que pudesse subi-las. Uma das sepulturas que estava em ruínas parecia estar abandonada. Ali entrou e aninhou-se no escuro. Adormeceu quase de imediato convencido de estar rodeado por pessoas e espíritos que não queriam lhe fazer mal.
Quando acordou de madrugada viu que não estava sozinho na sepultura suja. Um homem estava deitado, perto da outra parede. Ele tinha um colchão e um cobertor que puxara até o queixo. Em um cabide, pendurara suas roupas, um terno, uma camisa branca e uma gravata. Na parede da sepultura, de onde um dos ladrilhos havia caído, também havia um espelho para se barbear. Nélio sentou-se com cuidado, pronto para escapulir, quando de repente notou o pé do homem esticado para fora da coberta.
Primeiro, pensou que o homem dormia com seus sapatos nos pés. Depois, quando cuidadosamente se abaixou para olhar mais de perto, viu que não eram sapatos de verdade. O homem pintara sapatos nos pés, sapatos brancos com orlas vermelhas e cadarços azuis. Nélio observou assombrado o pé calçado. No mesmo instante, o homem acordou de sobressalto e sentou-se no colchão. Era muito magro e tinha olhos vivos e penetrantes. Nélio teve a impressão de que ele lutara para acordar, assim como um criminoso se livra das mãos firmes de seu perseguidor.
- Quem é você? perguntou o homem. De noite quando cheguei em casa você dormia. Não quis acordá-lo. Embora esta seja minha casa. Sou um homem amigável.
- Não sabia que esta era a casa de alguém, respondeu Nélio.
- Todas as casas nesta cidade têm dono, respondeu o homem. Aqui existem muitas pessoas e poucas casas.
- Eu vou embora, disse Nélio.
- Por que você está sentado olhando para meus sapatos? perguntou o homem.
- Pensei que fossem somente um par de pés, respondeu Nélio. Mas agora vejo que estava enganado.
- Durmo sempre calçado com meus sapatos, disse o homem. Senão corro
o risco de alguém roubá-los. Para roubar meus sapatos, o ladrão, infelizmente, precisaria também cortar meus pés. Isso seria um desastre.
Depois mostrou a Nélio o cordão que tinha amarrado entre o cabide onde o terno estava dependurado e o seu dedo indicador. Se alguém tentasse roubar o terno durante a noite ele acordaria.
- Você pode me chamar de senhor Castigo, disse o homem levantando-se e começando a se vestir. Você tem nome? O que você sabe fazer? Ou você é tão preguiçoso e ignorante como as outras pessoas?
- Meu nome é Nélio.
Depois pensou no que sabia fazer na realidade.
- Sei carregar malas na cabeça, respondeu ele.
Senhor Castigo o observou divertido.
- Uma excelente profissão, respondeu. O mundo precisa de pessoas que podem equilibrar malas em suas cabeças duras. Você sabe segurar um espelho sem deixá-lo cair?
Nélio segurou o espelho enquanto o senhor Castigo, habilmente, dava um laço na sua gravata.
Quando estava satisfeito, acenou contente com a cabeça para o espelho, pendurando-o novamente na parede, e dobrou seu cobertor. Acenou então para que Nélio o seguisse. Depois que passaram pelo portão, que se dependurava torcido nas dobradiças, o homem de sapatos pintados parou e o olhou.
- Você está limpo demais, disse e agachou-se apanhando terra nas mãos e esfregando no rosto de Nélio. Nélio tentou resistir, mas o senhor Castigo o segurava firme no braço.
- Você quer viver, você quer sobreviver ou o que você quer? perguntou. Posso ver que você acabou de chegar à cidade. Agora estou lhe dando a oportunidade de sobreviver. Se fizer como eu digo. Você entendeu?
Nélio assentiu.
- Ande alguns passos atrás de mim, continuou o senhor Castigo. Não nos conhecemos. Pare onde eu parar, ande quando eu andar. Lembre-se disso por enquanto. Mais tarde, ensinarei o resto.
Caminharam para a cidade. Senhor Castigo parou em uma esquina e comprou uma cebola. Nélio fez como ele disse, parando alguns metros atrás, e depois continuou seguindo o homem de sapatos pintados. Desceram a ladeira até chegar nas largas ruas que Nélio vira no dia anterior. Passaram por um café onde muitas pessoas brancas estavam sentadas, bebendo em copos e xícaras. Quando deixaram o café para trás, o senhor Castigo, de repente, arrastou Nélio para debaixo de uma escada escura que fedia à urina.
- Carregar malas na cabeça é um trabalho honesto, esperado das pessoas, disse o senhor Castigo e sorriu. Mas agora lhe ensinarei a base de todo o trabalho humano, a ocupação mais honrada que uma pessoa pode ter.
- Quero mesmo aprender isso, respondeu Nélio.
- Mendigar, continuou o senhor Castigo. Despertar compaixão por sua sujeira e miséria e sua fome. Ajudar o próximo a ser generoso. Agora você vai para a rua. Quando pessoas brancas passarem, estique a mão, chore e peça dinheiro. Para dar comida para seus irmãos, de quem você toma conta sozinho. Seu pai morreu, sua mãe morreu, você está sozinho no mundo. Você entendeu?
- Minha mãe está viva, Nélio protestou. Talvez meu pai também.
Senhor Castigo ficou irado e seus olhos cuspiram fogo.
- Você quer viver, você quer sobreviver, ou quer o quê? gritou, enquanto sacudia Nélio, e sua mão no braço dele era como uma garra. Se digo que estão mortos, então estão mortos. Agora, neste momento enquanto você mendiga.
- Não posso chorar sem ter uma razão, disse Nélio. Senhor Castigo tirou a cebola do bolso, cortou no meio com seus dentes e segurou firme o pescoço de Nélio. Esfregou a cebola nos olhos de Nélio até que ardessem e queimassem e que seu olhar ficasse embaçado de lágrimas. Depois, empurrou Nélio para a rua. Ele tentou fazer como lhe foi ordenado, esticou sua mão para os brancos que passavam e tentou em sussurros explicar que não comia
há muitos dias, por uma semana, por um mês. Uma mulher parou de repente, ela era muito gorda e a sua pele era totalmente rosada.
- Você está mentindo, disse. Se você não tivesse comido por um mês já teria morrido há muito tempo.
Depois continuou seu caminho sem lhe dar coisa alguma.
Senhor Castigo estava por perto. Toda vez que alguém parava e começava a procurar em seus bolsos dinheiro para dar a Nélio, ele se aproximava, como se estivesse somente de passagem, e depois retornava apressado para o lugar de onde viera.
Foi somente depois que Nélio entendeu o que na realidade ocorria. Ao meio-dia, quando o calor estava muito forte e Nélio cambaleava de cansaço e de sede, o senhor Castigo disse que iriam descansar. Desceram para o bairro do porto que Nélio vira na distância no dia anterior. Na parede de uma casa estava dependurada uma cortina de plástico branca que o senhor Castigo empurrou para o lado. Dentro do aposento estava escuro. Nélio teve dificuldades em enxergar pois seus olhos ainda ardiam. Uma mulher sem dentes e suja, fedendo a vinho azedo, trouxe uma garrafa de cerveja e um prato de comida para o senhor Castigo. Ele deu instruções para Nélio receber um pedaço de pão e água. Quando ia pagar, tirou do bolso uma carteira e sorriu.
- Você se lembra do homem de chapéu azul que não quis lhe dar coisa alguma? perguntou.
Nélio assentiu. Quando viu a carteira, teve um pressentimento, ainda embora não compreendesse por completo. Senhor Castigo bebeu tanto durante o almoço que ficou bêbado. Nélio sentiu um mal-estar crescente por estar em companhia dele. Embora não soubesse o que iria fazer, não queria mendigar. Não podia entender como essa era a ocupação mais honrada que uma pessoa poderia ter. Então por que as pessoas na aldeia queimada falavam de mendigos com desdém ou compaixão?
Muitas vezes era difícil diferenciar esses sentimentos. De repente o senhor Castigo tirou outra carteira do bolso e mais uma, que era vermelha e pertencia a uma mulher. Nélio compreendeu que o homem de sapatos pintados era um ladrão de carteiras. Era por isso que se aproximava quando as pessoas paravam para dar dinheiro a Nélio e depois se afastava apressadamente. Nélio resolveu de imediato fugir do senhor Castigo. Devia existir uma outra maneira de sobreviver na cidade. Mas foi como se o homem do outro lado da mesa pudesse ler seus pensamentos. Debruçou-se sobre a mesa e com uma mão agarrou Nélio pelo queixo e encarou-o com olhos brilhantes.
- Nem pense, ele disse. Nem pense em tentar fugir. Não importa o que fizer, o encontrarei. Todo policial nesta cidade é meu amigo. Se pedir para procurar você, eles o farão. Nem pense nisso.
Ele soltou a mão e depois se ocupou em beber mais cerveja e esvaziar as carteiras. A mulher sem dentes veio e ficou do lado dele, observando tudo. De vez em quando tentava apanhar algumas das notas, mas o senhor Castigo era cuidadoso e batia em sua mão. Era como se fosse uma brincadeira brutal entre os dois. Nélio arrastou-se novamente para sua cadeira, sentando-se no mais fundo das sombras. Tinha dificuldades em entender como é que um ladrão poderia ser um bom amigo da polícia. Talvez
fosse assim na cidade, tudo era o contrário do habitual, ele tentou pensar. Mesmo assim estava certo de que o senhor Castigo falara daquela maneira para o amedrontar. Se ele não fosse embora agora tudo ficaria ainda pior. Logo ficaria cego com toda a cebola que ele esfregaria nos seus olhos.
A oportunidade surgiu quando o senhor Castigo adormeceu do outro lado da mesa. A cabeça caída contra a parede, ele roncava com a boca aberta. A mulher sem dentes desapareceu em um quarto que cheirava à gordura queimada.
Nélio levantou-se lentamente da cadeira e recuou até a porta. Com cuidado empurrou para o lado a cortina de plástico. Um raio de sol tocou rapidamente o rosto do senhor Castigo sem que o acordasse. Assim que Nélio saiu para a rua começou a correr. A todo momento esperava que a mão do senhor Castigo o agarrasse no pescoço. Ou que o homem de olhos miúdos tivesse retornado do mundo dos mortos para se vingar. Ou o homem sem dentes. Nélio correu o mais rápido que pôde. Foi somente quando estava longe, cercado pela multidão de pessoas que se reunia do lado de fora do mercado, é que parou para respirar. Bebeu água da fonte quebrada, apanhando jatos de água que jorravam da boca de um peixe artificial e lavou o suor do rosto. Tentou o tempo todo se fazer invisível. Olhou para todos os lados e pensou que o senhor Castigo com certeza o procuraria. Havia muitos policiais do lado de fora do mercado. Nélio notou que possuíam o mesmo tipo de armas que os bandidos carregavam. O mesmo tipo que havia segurado nas mãos quando iria atirar em Tiko. Como poderia a polícia e os bandidos possuírem o mesmo tipo de arma? Será mesmo verdade que a polícia era amiga de um ladrão de carteiras?
Quando o policial se aproximou da fonte, ele saiu de lá. No bolso tinha o dinheiro que juntara mendigando. Quando contou viu que tinha um quarto da quantia que Yabu Bata lhe dera para comprar uma calça. Isso daria para comida por dois dias, se comesse o mínimo possível. Por dois dias, viveria como um mendigo. Depois decidiria o que faria para sobreviver. Ele seguiu uma das longas ruas que acompanhavam a praia, saindo da cidade. Era orlada de palmeiras e de bancos quebrados. O mar refrescava e as palmeiras davam sombra. Viu uma escada que levava diretamente ao mar. Ali sentou-se e mergulhou seus pés doloridos na água. Mas não teve coragem de ficar ali por muito tempo. Se o senhor Castigo o descobrisse ele estaria perdido. Sua única saída seria se jogar no mar. Naquela noite dormiu em um carro enferrujado que encontrou em uma rua na periferia da cidade. Quando teve certeza de que ninguém mais estava dentro dele, arrastou seu corpo para o que ainda restava do banco de trás e tentou se fazer o mais confortável possível. Ratos faziam ruído ao seu redor. Seu sono foi perturbado, os sonhos o apalpavam com seus dedos importunes. Nos sonhos, viu seu pai, a aldeia que não tinha sido queimada. Sua mãe também estava por perto, embora não pudesse vê-la. O dia era claro e sem nuvens. Algo estava errado, porém, um vento frio soprava no sonho. Primeiro não sabia o que estava errado. Depois compreendeu que o sol desaparecera. Olhou para o céu. A luz era muito forte mas sem nenhuma fonte. Era como se alguém tivesse recortado o sol e o retirado do céu. Mas então de onde vinha a luz? No mesmo instante percebeu que na realidade era noite, que eram os bandidos que chegavam,
e eles de repente estavam a sua volta e ele tentou fugir.
Acordou e bateu um dos joelhos em uma borda de metal do carro. Viu
um cachorro sem dono que o observava do lado de fora. À distância, ouviu alguém rindo e um rádio ligado. Devia ser o meio da noite. O sonho o deixara triste. Pensou que o mais difícil era a solidão. De alguma maneira estava certo que conseguiria comida para sobreviver. Mas o que faria para curar sua solidão? Deixou o carro de madrugada sem ter nenhuma resposta.
Naquele mesmo dia encontrou a estátua que seria seu lar no tempo em que viveu na cidade. Em sua caminhada a esmo, fugindo da ameaçadora sombra do senhor Castigo, à procura do remédio contra sua solidão, chegara a uma parte central da cidade que ainda não conhecia. Apertado no meio dos prédios, havia um lugar aberto, uma praça quase circular. No meio havia uma grande estátua eqüestre. Nélio nunca vira uma estátua ou um cavalo. Primeiro pensou que fosse um jumento. Mas quando ousou perguntar a um dos velhos que estava sentado no pedestal da estátua, à sombra daquele formidável animal, se na realidade jumentos assim tão grandes existiam, eles riram dele.
- Jumento maior é aquele que faz esse tipo de pergunta, eles responderam e riram satisfeitos do seu engenhoso sarcasmo. Nélio compreendeu que fizera uma pergunta estúpida. Sabia que era com grande alegria que os mais velhos conferiam a imbecilidade aos jovens. Um dos velhos, contudo, um homem com uma bengala e uma tosse estridente, tinha explicado que era um cavalo, um cavalo árabe e que o homem sentado no cavalo era um famoso general que pertencera à família do difamado governador Dom Joaquim. Também ficou sabendo que algo não dera certo na campanha dos jovens revolucionários para derrubar e retirar todas as estátuas que, de uma maneira desagradável, lembravam uma época que acabara.
- Não podemos exterminar estatuas, disse o velho pensativo. Não podemos exterminar uma estátua como fazemos pisando em um inseto. Podemos retirá-las, derretê-las. Mas exterminá-las, não podemos.
Nélio ficou sabendo que a estátua fora esquecida. Depois houve uma grande briga sobre quem na realidade era o responsável e essa briga ainda acontecia. Enquanto isso a estátua ainda estava de pé. Nélio andou ao seu redor, dando várias voltas. O homem sentado no cavalo tinha um capacete na cabeça e apontava uma espada na direção de uma loja indiana que vendia tecidos, do outro lado da praça. Nélio sentou-se no seu pedestal, a uma certa distância dos velhos, e pensou que ali, perto daquela estátua perdida, é que queria ficar. Na pequena praça, onde as pessoas de repente paravam de correr e andavam devagar e com dignidade, onde os carros eram
poucos e os outros barulhos da cidade eram filtrados pelos prédios que
a cercavam; era ali que ele queria ficar. Era como o silêncio atrás das dunas de areia perto do mar onde dormira, na sua longa caminhada até a cidade. Ou como uma clareira em uma das matas de árvores de madeira
negra que existiam perto da sua aldeia. Ficou sentado no pedestal da estátua a tarde toda, mudando de lugar junto com os velhos, quando a sombra se movia, e contemplando o que ocorria na praça. Viu os comerciantes indianos e suas mulheres com véus sobre os cabelos e os ombros, preocupados nas portas de suas lojas escuras, esperando fregueses. À sombra das grandes acácias as mulheres sentavam em suas esteiras e construíam pequenas pirâmides de frutas, verduras e raízes de mandioca para vender. Suas crianças engatinhavam ao seu redor. Quando alguma das mulheres adormecia no calor, uma das outras cuidava das crianças. Na maioria das vezes sentavam caladas, às vezes cantavam, às vezes discussões violentas rompiam e terminavam com a mesma rapidez com que começavam. Nélio não entendia tudo que diziam, a língua delas era diferente da sua. Pelos desdenhosos comentários feitos pelos velhos, no entanto, pôde entender que as mulheres, fiéis à sua índole, brigavam sobre tudo o que não era importante. Depois os velhos começaram a brigar entre si sobre esse assunto, sobre o que deveria ser considerado importante na vida.
Do outro lado da praça havia uma pequena igreja, onde um padre vestido de preto de vez em quando espreitava pela porta, como se esperasse que a igreja fosse receber a visita inesperada de almas perturbadas precisando de consolo. Mas ninguém vinha, e ele mais uma vez fechava a porta para logo depois de novo olhar para fora. O padre era um homem branco, de barba, e completamente sem cabelos na cabeça.
Nas várias casas em volta da praça moravam pessoas, muitas pessoas. Por todos os lados havia roupas penduradas, crianças gritavam e brincavam nas calçadas. Quando faziam demasiado barulho, os velhos as ameaçavam, mas as crianças quase nem notavam. Várias vezes Nélio sentira queimar o desejo de correr até elas e participar de suas brincadeiras. Porém, sabia que não podia. Quando viera para a cidade havia deixado para trás sua infância, sua idade, como uma pele invisível na praia onde dormira na última noite antes de ser devorado pelas ruas. Estar ali sentado na sombra da estátua eqüestre, junto com os velhos, já era um sinal das grandes mudanças que ocorreram naquela noite em que os bandidos queimaram sua aldeia. Aqui, neste lugar aberto, havia conseguido dominar pela primeira vez a angústia que o possuía. Foi como se tivesse encontrado uma aldeia no meio da cidade.
Na mesma noite também encontrou sua morada. Os velhos, um depois
do outro, haviam se levantado e desaparecido na escuridão, em direção
às espeluncas onde passavam as noites. O sol tinha se posto, os comerciantes indianos indecisos, quase com tristeza, foram obrigados a reconhecer que os últimos fregueses já tinham ido, e fecharam as portas abaixando sobre elas as pesadas grades. No lugar deles, vieram os vigias negros, com longos casacos rasgados e sacos com cobertores e coxas de frango gordurosas. Acenderam suas fogueiras e começaram a fazer chá. Só quando os comerciantes indianos desapareceram em seus carros é que comeram e se prepararam para dormir. As crianças pararam de brincar, chamadas por suas mães, as roupas foram recolhidas, o cheiro de caril e pimenta misturava-se com o vento vindo do oceano Índico. Nélio finalmente ficara sozinho no pedestal da estátua eqüestre. Comeu um pedaço de frango que comprara de um homem que tinha sua cozinha sobre um fogão de carvão em uma velha lata de óleo. Não queria deixar aquele lugar que encontrara quando fugia do senhor Castigo e pensou que só quando fugimos é que encontramos os segredos do mundo, que de outra maneira continuariam desconhecidos.
De repente, ao anoitecer, descobriu uma entrada debaixo da barriga do cavalo, bem perto da perna dianteira erguida. Quando puxou a maçaneta enferrujada a portinhola se abriu, e ele entendeu que a estátua era oca, havia ali um espaço vazio. Arrastou-se para dentro do cavalo. Fracos raios de luz, como se fossem das estrelas, iluminavam através dos buracos da narina do cavalo e dos olhos do cavaleiro com a espada e o capacete. Soube de imediato que encontrara sua moradia. A estátua era tão grande
que podia ficar de pé dentro dela. Ficou bastante contente por ter encontrado essa morada. Acima de sua cabeça teria sempre o homem com sua espada desembainhada para protegê-lo. No interior do cavalo poderia sonhar tranqüilo. Aqui poderia crescer, arrumar uma mulher, ver seus filhos crescerem. Muitos eram seus pensamentos naquela noite. A angústia recuou vagarosamente. Quando finalmente adormeceu, sua cabeça descansou contra a perna esquerda traseira do cavalo, e o joelho dobrado serviu como um travesseiro.
Acordou de madrugada com um homem rindo como um louco, do lado de fora da estátua. Quando saiu pela portinhola da barriga do cavalo, viu que era o padre, vestido de negro, andando perturbado de um lado para o outro, em frente à porta da pequena igreja. Gesticulava com os braços em uma conversa resmungada, como se não estivesse sozinho mas com uma pessoa invisível ao seu lado. Brigava, agitava os braços com raiva, e de vez em quando começava a rir loucamente. Nélio pensou que brigava com os espíritos maus ou amaldiçoados que tinham se reunido do lado de fora da igreja durante a noite. Depois, no entanto, quando os velhos retornavam para seus lugares, à sombra do pedestal da estátua, ele ficou sabendo que o velho padre, que se chamava Manuel Oliveira, perdera a razão já há muitos anos. Quando os jovens revolucionários tomaram o poder e marcharam para a cidade, ele imediatamente ficara louco, se de medo ou de raiva, ninguém poderia responder. Seus sermões condenando os jovens revolucionários eram tão furiosos, que ninguém da sua velha paróquia tinha, afinal, coragem para assistir às suas missas, com medo de serem presos pela polícia de segurança que os jovens revolucionários tinham criado e autorizado a vigiar e prender dissidentes, principalmente os que acham que os tempos coloniais eram os bons tempos.
Manuel Oliveira continuou então a fazer sermões mesmo diante de bancos vazios. Às vezes alguém da polícia de segurança visitava suas prolongadas missas, diante do que, excitado por ter um ouvinte, ele intensificava seu violento ataque. No começo demonstraram tolerância com o velho padre que sofria de senilidade e loucura. Tinham se contentado em publicar um comunidade geral proibindo visitas a sua igreja, deixando-o fazer sermões ao ar livre, na porta da igreja, ficaram fartos. Manuel Oliveira foi enviado para uma casa de correções para dissidentes, nas distantes províncias do norte. Durante esse período também o ameaçaram de execução nas escadas da igreja, se não parasse com seu insensato ataque contra o novo governo. No final, deixaram que retornasse a sua igreja. Pensaram que ele se cansaria, o que também finalmente aconteceu. Agora, passava seus dias silencioso dentro da igreja, em contínua e inútil espera de que seu Deus lhe explicasse por que sua igreja estava vazia, o que tinha realmente acontecido. Só nas primeiras horas da manhã o resto de sua antiga loucura ousava retornar. Para os vigias, esse era o sinal diário de que deviam acordar e esperar pelo retorno dos comerciantes. Eles, então, diriam que tudo estava tranqüilo, que não tinham dormido e que, decididamente, haviam ficado acordados durante toda a noite. Depois, mais ou menos ao mesmo tempo que Manuel Oliveira desaparecia no seu silêncio, dentro de sua igreja, os vigias juntavam seus cobertores e apressavam-se para o trabalho que mantinham durante o dia. Tudo isso os velhos contaram para Nélio, e ninguém pareceu suspeitar que ele tinha encontrado uma moradia na estátua que os protegia do sol. Ele viu quando uma das mulheres na casa vizinha colocou um prato com comida na porta da igreja, e pensou novamente que era como estar em casa, na aldeia que os bandidos tinham queimado.
Durante o tempo seguinte Nélio aprendeu a sobreviver na cidade, mantendo os olhos abertos. Uma vez viu novamente o senhor Castigo, que estava muito bêbado, com seu terno manchado e rasgado. Não tinha mais medo dele.
Nélio passava muito tempo observando crianças da mesma idade que viviam na rua. De longe, seguia seus esforços para lavar carros, mendigar, vender e roubar o que conseguiam pôr as mãos. Aprendeu como os meninos mais velhos controlavam os mais novos e pensou que seu lugar era no meio deles. Em suas caminhadas pela cidade também encontrou um bairro muito calmo, onde as ruas não eram cheias de lixo ou de buracos. Grandes casas brancas, sem rachaduras, cercadas de vastos jardins, escondidas
detrás de cercas altas. Ali também havia crianças da mesma idade que ele. Mas logo descobriu que elas não o viam, que seus olhos não o enxergavam. Era entre os outros, os que como ele lutavam para sobreviver, o lugar a que pertencia.
Também compreendeu que era muito difícil para uma criança que de repente se encontra nas ruas penetrar e ser aceita no meio dos que já viviam ali e guardavam seus territórios. Muitos eram empurrados para longe, eram golpeados, se escondiam, mas retornavam, pois não tinham outro lugar para ir. No final, uma parte deles desaparecia, e ninguém perguntava por eles. Nélio às vezes ficava acordado na barriga do cavalo, a cabeça descansando contra a perna traseira esquerda, pensando se havia um paraíso especial para os meninos de rua, onde pudessem continuar sua obstinada vida dançante, faminta e risonha.
Nélio calou-se, quase no meio de uma sentença. Estava perto do amanhecer, o céu do leste já começara a luzir na fraca luz
vermelho-amarelada que anunciava o sol. Podia ver pelo seu rosto que estava muito cansado, e pensei que ele adormecera quando de repente começou novamente a falar.
- A oportunidade chegou de maneira inesperada. Um dia tive a oportunidade de me reunir a um grupo de meninos de rua, esse que você já conhece, os que vivem aqui fora, na rua. Um dia aconteceu algo que mudou tudo. Foi por um mero acaso que eu estava presente. Mas a vida não é mesmo uma longa corrente de coincidências?
Esperei por uma continuação. No entanto, ela não vinha. Nélio havia fechado os olhos. Logo adormeceria. Sua respiração era ofegante. Eu estava com medo do que veria quando trocasse seu curativo. Mesmo assim sabia que a vida o mantinha. Ele jamais me deixaria sem saber o que acontecera quando se tornara parte do grupo de meninos de rua que viviam na rua do lado de fora do teatro e da padaria e lá faziam suas artimanhas.
Eu sabia que haveria uma continuação.
Levantei-me, fui até a beira do telhado e olhei para a cidade. Notei que estava muito cansado.
Mais tarde, quando fiz minha visita diária à senhora Muwulene, visitei a praça onde estava a estátua eqüestre. Os velhos estavam lá, sentados à sombra, tudo era como Nélio descrevera. Sentei-me perto das pernas do cavalo e vi a portinhola que levava ao seu aposento secreto. Por um instante fiquei tentado a abri-la e entrar. Não fiz isso, porém. Seria como ofendê-lo. Saí dali apressadamente. Tomara dinheiro emprestado de uma das meninas chatas para comprar comida. Faltavam ainda dez dias para que Dona Esmeralda talvez pagasse meu pequeno salário, se na ocasião ela tivesse algum dinheiro, o que nem sempre acontecia.
O dia estava muito quente. Uma tempestade com trovões acumulava-se no horizonte. Apressei-me de volta para o telhado onde Nélio estava em sono profundo e preparei um abrigo contra chuvas com velhos sacos de farinha de trigo.
Assim que terminei, a chuva começou a cair.
Mas Nélio não notou. Ele dormia.
A QUINTA NOITE
A chuva parou e uma noite fresca e límpida caiu sobre a cidade. Eu dormira algumas horas encostado na chaminé, em cima de jornais velhos, já que o telhado ainda estava molhado depois da pesada chuva. Era quase meia-noite e eu ia justamente descer as escadas de caracol até o calor da padaria para controlar o trabalho do meu negligente assistente, quando Nélio de repente interrompeu o silêncio e disse que precisava ir ao banheiro. Já que ele tinha comido tão pouco durante os dias e as noites que estivera no colchão, eu tinha esquecido completamente de me preparar para isso. Desci a escada e saí para o quintal onde uma das meninas chatas que vendiam pão estava com um dos padeiros do turno do dia. Eu os encontrei em uma situação que não era fácil de ignorar e notei que fiquei vermelho, e em seguida apanhei apressadamente o balde usado para jogar lixo fora e retornei para o telhado. Atrás de mim pude ouvir a raiva do padeiro por ter sido interrompido e a risadinha envergonhada da menina. Rasguei um pedaço do jornal e coloquei ao lado do balde. Depois ajudei Nélio a levantar-se e o deixei sozinho. Quando retornei ele estava novamente deitado no colchão. Vi que estava suado do esforço que fizera e me envergonhei de não ter preparado algo melhor para ele.
- Seu trabalho lhe espera, ele disse.
- Eu volto logo, respondi. Meu ajudante não sabe a quantidade de farinha de trigo ou de sal que deve misturar para que o pão saia como Dona Esmeralda quer.
Saí dali com o balde na mão. Levei duas horas para organizar o trabalho daquela noite. Os olhos do meu ajudante estavam envidraçados. Quando percebi que ele fumara soruma e se encontrava em uma terra distante, não pude me controlar e dei-lhe um tapa na cara. Gritei
que agora eu estava farto e que Dona Esmeralda o mandaria embora imediatamente assim que contasse a ela o quanto ele era indigno de confiança. Depois disso tudo andou ainda mais devagar. O ajudante mal podia ficar de pé e tive que carregar os pesados sacos de farinha de trigo, já que não queria deixá-lo ir sozinho até o depósito. Além de tudo a lenha no forno não estava boa aquela noite. Levei muito tempo para conseguir que esquentasse o suficiente para colocar as primeiras assadeiras no forno. Enrolei a massa e assei o pão o mais depressa possível. Mesmo assim já era tarde da noite quando pude mandar o ajudante embora e retornar ao telhado. Nélio estava acordado quando cheguei. Para minha felicidade ele comera as frutas e o pedaço de pão com uma grossa
camada de manteiga que eu deixara ao lado do seu colchão. Também vestia a camisa que eu lavara para ele durante o dia. Pensei que um milagre estivesse acontecendo. O fato de ter ido ao banheiro significava que seu estômago não estava seriamente ferido. O fato de ter comido significava que sua vida estava retornando. Talvez as ervas da senhora Muwulene estivessem, apesar de tudo, curando sua ferida.
Quando troquei seu curativo, porém, fiquei novamente triste. A ferida enegrecera ainda mais, tinha pus e cheirava muito mal. Senti que deveria lhe dizer que morreria se não fosse levado para um hospital onde os médicos poderiam retirar a bala que estava envenenando seu corpo. Mas ele só sorriu e acenou com a cabeça.
- Direi quando for a hora certa, respondeu.
Tentei limpar a ferida da melhor forma possível, sem causar muita dor. Podia ver como ele se esforçava ao máximo para não demonstrar que sofria. Depois recoloquei tiras limpas e lhe dei água para beber. Ele afundou-se novamente no colchão. À luz do lampião pude ver como seu rosto emagrecera durante esses quatro dias que estivera comigo. Sua pele negra esticava sobre os ossos da face, os olhos pareciam ter afundado em volta das cavidades, os lábios estavam rachados e ele também começara a perder seu cabelo de carapinha. Pensei que ele deveria descansar, em vez de passar as noites contando sua história. Não podia negar minha curiosidade, queria suas palavras, uma depois da outra, pois desconfiava que sua história de alguma forma também era a minha. Compreendi que deveria ter paciência. No silêncio, se ele deixasse a narrativa descansar, teria mais possibilidades de sarar.
Mas quando me pediu que sentasse no colchão para continuar sua história, nunca pensei em lhe pedir para parar, para refletir em como era importante que descansasse. Como nas noites anteriores, ele continuou sua caminhada pela cidade, por sua vida. Um pouco antes do amanhecer alguns solitários pingos de chuva caíram. Mas foi só. O resto foi silêncio, de vez em quando interrompido por cães que latiam e chamavam uns aos outros, em algum lugar na escuridão.
Ele meditava muitas vezes sobre o poder que o acaso exercia sobre as pessoas.
As pequenas palavras se e se não eram mais importantes que todas as outras palavras. Ninguém podia ignorá-las, ninguém podia negar que sempre estavam próximas das pessoas, como símbolos dos imprevistos que formam nossas vidas. Ele saiu de manhã para uma de suas caminhadas a esmo pela cidade, aquelas que traziam as maiores aventuras, e quando estava bem perto do teatro e da padaria, viu um grupo de policiais que havia prendido um menino de rua e batia nele furiosamente com cassetetes
pretos. Nélio já o notara antes, ele era o líder de um bando de meninos de rua e seu nome era Cosmos. Como a maioria dos que lideravam seu grupo de meninos e vigiavam seus territórios, ele era alguns anos mais velho que os outros, talvez tivesse treze ou quatorze anos. Nélio o notara porque ele raramente batia nos meninos menores, nem mesmo gritava com eles nem mandava-os fazer coisas desnecessárias.
Quando ele o viu sendo espancado pelos policiais, sem saber o que tinha acontecido, sabia que devia ajudá-lo. Tentou apressadamente pensar no que fazer. Novamente o acaso veio à sua ajuda. Ele se encontrava em uma esquina onde havia um sinaleiro que regulava o tráfego que, justamente ali, era muito intenso. Algumas semanas antes ele observara
o conserto daquele sinaleiro. Dois homens de macacão abriram uma caixa
de metal enferrujada que ficava ao lado, e regularam a luz, desligando
e ligando alguns interruptores. A fechadura estava quebrada. Mas isso
não era evidente. Nélio não demorou a se decidir e sem mais nem menos ajoelhou-se ao lado da caixa de metal, como se ele, como todos os outros meninos de rua, estivesse simplesmente sentando ou deitando-se no meio da rua para dormir por estar cansado. Manejou cuidadosamente a porta de metal, enfiou seu braço magro, encontrou os interruptores e começou a mexer neles, enquanto fingia dormir. O caos imediatamente se iniciou no tráfego, a luz verde e a vermelha pareciam estar envolvidas em um duelo. Os carros ficaram presos em uma complicada confusão no meio do amplo cruzamento, todos buzinavam, as filas se tornaram longas de imediato e
os que estavam dentro de seus carros e não podiam ver o que estava acontecendo saíam para a rua e começavam, indignados, a brigar com os
que estavam nas proximidades. Os policiais perceberam que algo havia acontecido e, vendo a violenta confusão que ocorria no cruzamento,
soltaram Cosmos e foram averiguar o motivo da desordem. Àquela altura, Nélio já se afastara da caixa de metal, o sinaleiro funcionava como devia, e ninguém podia explicar o ocorrido. Cosmos, inchado, furioso e com os olhos cheios de lágrimas, estava sentado na calçada quando Nélio chegou perto dele e se sentou a seu lado.
Depois contou o que tinha feito. Nélio não tivera a menor dúvida que acreditariam nele. E não se equivocou. Cosmos começou a rir e, quando os outros meninos do esfarrapado bando estavam a sua volta, contou o que tinha ocorrido.
- A quem você pertence? ele perguntou a Nélio.
- Não pertenço a ninguém.
- Agora você pertence a nós.
Naquele instante Nélio deixou para trás a grande solidão. Começou uma vida ao lado de Cosmos, Tristeza, Mandioca, Pecado, Júlio e Alfredo Bomba. Com eles, dividiria quase tudo. A única coisa que manteve para si foi sua estátua. Cosmos indagou no começo por que ele não dormia nas caixas de papelão na escadaria do Ministério da Justiça, como os outros. Nélio então respondera que sofria de uma doença que fazia com que ele dormisse em lugares diferentes todas as noites. Disse isso com tal
segurança que Cosmos acreditou nele de imediato e sabiamente sugeriu que tentassem juntar dinheiro para que pudessem visitar um curandeiro que cuidasse dessa estranha doença. Nélio respondeu sem pestanejar que não havia nada que desejasse mais que isso, pois sabia que nunca conseguiriam juntar o dinheiro.
Nélio encontrou seu lugar no bando sem interferir com ninguém. Todos tinham suas posições para resguardar, elas podiam às vezes diminuir ou aumentar, e o tempo todo era Cosmos quem decidia, às vezes com capricho, às vezes com prudência e com bom senso. Nélio, no entanto, desde o primeiro momento traçou seu próprio caminho no bando. Primeiro Cosmos e depois também os outros, até e por último Tristeza, que tinha uma cabeça vagarosa, reconheceram que Nélio não era como as outras pessoas. Era uma pessoa com sua identidade própria. Ele se comportava como os outros, aprendia rapidamente a linguagem que usavam e seus costumes, mesmo assim era diferente e de tal maneira que ninguém jamais pensou em questionar por que ele era desse modo.
Cosmos teve um sonho, uma noite, que somente depois de muito tempo
é que contou para Nélio, mas nunca para os outros. Ele sonhou que Nélio era uma pessoa seca de sol, como uma fruta ou um peixe, que tinha gosto melhor que qualquer outra coisa, e que durava o quanto uma pessoa estivesse com fome. Cosmos perguntou se Nélio poderia explicar esse sonho. Ele fez isso numa ocasião em que estavam sozinhos, porque não ficaria bem para ele como líder do bando fazer perguntas. Era como se ele tivesse todas as respostas. Mas Nélio disse que o sonho com certeza era
inspiração divina e que somente Cosmos poderia interpretar. Ele mesmo não tinha essa capacidade, ele vinha de uma região distante onde as pessoas raramente tinham revelações divinas em seus sonhos. Cosmos ficou tão tocado pela resposta que, no domingo seguinte, deu ordem a todo o bando para que se lavasse e o seguisse até a grande catedral para participar da missa da noite. Mas quando Tristeza não pôde mais segurar o riso e Alfredo Bomba adormeceu no chão de pedra da igreja, foram colocados para fora e nunca mais voltaram.
- Deus existe até nas latas de lixo, gritou Cosmos com desdenho para o zelador que, furioso, os colocara para fora. Depois correram o mais rápido que puderam, em diferentes direções para não serem apanhados e, em seguida, reuniram-se novamente em frente ao teatro. Cosmos ficou com tanta raiva que até deixou de punir Mandioca e o perdoou por ter perdido o livro de liturgia que Cosmos roubara do bolso do casaco de um dos padres vestidos de preto e passara para Mandioca, que tinha os maiores
bolsos da calça no grupo. Muito tempo depois, ele murmurou algo sobre a possibilidade de começar um movimento religioso que se referisse somente à vida dos meninos de rua. Através desse movimento, o Deus dos grupos de maltrapilhos, que deveria existir em algum lugar, renasceria. No entanto, como chegavam ao período mais quente do ano, ele acabou achando tudo cada vez mais fatigante e deixou a coisa pendente.
Cosmos entendeu de imediato que Nélio não tinha procurado o grupo com a intenção de, na oportunidade certa, desafiar sua liderança e tomar o poder. No começo estava inseguro, já que nunca passara por isso ou ouvira falar sobre o assunto. No começo, suspeitou que Nélio mentia, e pediu em segredo a Pecado e Mandioca para que com perguntas inocentes tentassem descobrir se Nélio era mais do que aquela pessoa mansa e recatada que aparentava ser. Mas finalmente ficou convencido de que Nélio era mesmo a pessoa extraordinária que o impressionara desde a primeira vez em que se encontraram. Nélio não era nada além do que era. Pessoa semelhante ele nunca conhecera antes. Como podia uma pessoa aparentar ser exatamente aquilo que era? Tirando sua estranha doença, ele não parecia ter nenhum segredo imprevisto. Cosmos contou pessoalmente a Nélio sobre esses pensamentos, muito tempo depois, quando planejava, no maior segredo, deixar o grupo para começar sua longa viagem para um outro mundo. Nélio ficou surpreso com o que ouvia. Nunca esperou que sua presença no grupo pudesse despertar tantos sentimentos em Cosmos. Por outro lado ele sentira, durante muito tempo, que os outros no grupo, principalmente Júlio e Pecado e mais tarde até mesmo Deolinda, quando ela já havia imposto sua presença ao grupo, tinham dificuldades em aceitar sua presença. Foi nessa época que surgiu o rumor de que ele tinha uma capacidade sem igual de evitar castigos.
Era principalmente Júlio que o provocava, o agressivo Júlio que quase não podia falar e, para compensar, usava os punhos cerrados, pulos e chutes como a linguagem que descrevia e comentava o mundo em que era forçado a viver. Todos no grupo tinham suas próprias histórias; todos, apesar de sua infância, tinham personalidades bem desenvolvidas e pareciam formar o mais sujo e também o mais digno grupo de meninos de rua em toda a cidade. Muito tempo depois Nélio entendeu que foi essa dignidade suja e esfarrapada que tanto irritara a polícia a ponto de decidirem incutir medo em Cosmos, um medo que ele depois passaria para os demais do grupo. A polícia não conseguira, porém, e Nélio sentia como se vivesse em uma fortaleza itinerante, saltitante e risonha, sob cuja proteção, tanto ele como os outros, eram invulneráveis. Tinha pouco a pouco aprendido a conhecer cada um e entender que eram adultos apesar de serem crianças, que eram velhos embora mal tivessem chegado à puberdade, pois suas histórias estendiam-se sobre o abismo da experiência; cada um herói, canalha e vítima no seu próprio drama. Isso estava gravado nos seus nomes e nos corpos negros.
Mandioca, menino alto de pés grandes e dedo mindinho torto na mão esquerda. Ele tinha os maiores bolsos nas calças e ali deixava crescer cebolas e tomates. Todas as manhãs regava a terra que colocara nos bolsos e eles gotejavam constantemente. Essa era sua forma de exorcismo, seu anseio de poder, um dia, retornar para a aldeia da qual não se lembrava mas que, mesmo assim, existia no fundo de sua consciência, aquela aldeia da qual sua família fugira quando chegara o aviso de que os bandidos
estavam a caminho. Eram muitos e viajaram de ônibus e, quando acreditaram estar salvos, o ataque ocorrera repentinamente. O ônibus começou a pegar fogo, ele foi jogado em uma moita onde mais tarde, meio morto e desidratado, foi encontrado por algumas freiras estrangeiras que recitaram muitas orações e em seguida o levaram para um orfanato na cidade. Quando aprendeu a andar, ele mesmo dizia que seu único interesse era fugir, ir embora para sua aldeia. Mas nunca chegou a passar do centro
da cidade e viveu nas ruas desde seus quatro anos. Com freqüência era levado, por instituições de caridade do mundo inteiro e por pessoas bem intencionadas, para diversos orfanatos, porém sempre fugia outra vez para as ruas, pois sabia que um dia começaria sua caminhada de volta para casa. Ele não queria tomar banho, deitar em uma cama ou usar roupas limpas. Queria ter bolsos grandes onde coubesse a terra que era tão importante para ele como seu próprio sangue. Em cada pessoa que encontrava nas ruas procurava reconhecer seu pai ou sua mãe, sem saber como eles se pareciam. Procurava seus irmãos, suas irmãs, seus tios, suas tias, seus primos e seus vizinhos, os quais nunca vira e que nem sabia se existiam. Podia com freqüência afundar-se em uma grande tristeza. E também podia, com a mesma freqüência, balançar nos decorativos leões de pedra no peitoril do lado de fora do Ministério da Justiça e dançar uma música que somente ele podia ouvir.
Se Mandioca era alto e carregava terra em seus bolsos, Júlio era exatamente o oposto, pequeno e atarracado, com pedras e pontas de ferro enfiadas nos cabelos e nas franjas de suas roupas esfarrapadas. Júlio acordava gritando todas as noites, enxergando monstros deformados que, no escuro, vinham em sua direção. Os outros que dormiam perto dele nas caixas de papelão, sob cobertores rasgados, estavam acostumados a ser acordados todas as noites. Eles, cada um por seu turno, diziam a Júlio
que ali não havia nenhum monstro, que ali não havia nenhum bandido, que ali só havia a cidade deserta e as caixas de papelão e os cobertores rasgados. Durante o dia, quando estava claro, Júlio continuava caçando seus monstros. Mas seu medo era a noite que chegaria incondicionalmente, e a longa corrente de noites e monstros com quem lutaria enquanto estivesse vivo.
Nunca dizia uma palavra desnecessária, levava uma touca rosa de banho puxada até os olhos e estava sempre preparado caso todos que encontrasse lhe quisessem fazer mal. Por isso se defendia com brigas, brigava com tudo e com todos, com os carros enferrujados e quebrados, com as latas de lixo, com os ratos e gatos e cachorros e os outros do bando. Às vezes acontecia de perder a calma e brigar até com Cosmos, que naturalmente era bem mais forte e se via obrigado a afundar a cabeça dele no cano de esgoto quebrado atrás da garagem de consertar carros, onde os ladrões dos subúrbios encomendavam as placas para os carros que roubavam durante a noite. Júlio carregava um segredo que ninguém conhecia, quase nem mesmo ele. Uma única vez, quando achara uma garrafa quase cheia de vinho e bebera tudo de um gole só, ficara tão bêbado que se viu sem querer revelando pelo menos uma parte da verdade, e Nélio - que foi com quem conversou - compreendeu aos poucos, nas sentenças entrecortadas, incoerentes e mal formuladas, que Júlio havia sido obrigado a fazer aquilo que ele escapara de fazer, matar uma outra pessoa para continuar vivendo. Nélio entendeu que ele foi obrigado a matar seu próprio pai, com um cacete de pau ou um machado e que, a seguir, se tornara uma daquelas terríveis criança-soldado que os bandidos sempre enviavam na frente quando atacavam uma aldeia ou um ônibus ou pessoas que trabalhavam nas suas lavouras. Ninguém sabia como tinha vindo parar na cidade. Mas não chegara sozinho, desde o primeiro dia já tinha sua touca de banho e seus
invisíveis companheiros, os monstros que nunca paravam de atormentá-lo.
Pecado não tinha nenhum monstro no cérebro, tinha-os na vida real, em um dos subúrbios da cidade. Seu pai desaparecera sem deixar rastros, ele podia somente lembrar de um pai que ria quando deixara o casebre onde moravam, para nunca mais voltar. Seu pai era uma risada sem rosto. Eles eram sete irmãos, sua mãe vendia verduras no mercado; ela levantava quatro horas da manhã e ia até a velha e arruinada arena de touros, onde podia comprar mais barato. Depois carregava a cesta até o mercado e só retornava para casa quando já estava escuro.
Pecado nunca a viu sorrir. Também não se lembrava dela triste, só esgotada, exausta, desamparada. Se seu pai era uma risada sem rosto, sua mãe era um rosto onde todas as feições desaparecera, o nariz desintegrara-se, olhos, dentes e o sorriso que teria uma vez existido.
Um dia um novo homem chegou na casa, tudo agora ficaria bem, um novo homem, um pai, que se sentaria na sombra e gritaria por comida. Pecado o odiou desde o momento em que ele pisou na soleira da porta, ele não queria nenhum padrasto, e o homem que entrou parecia saber o que ele pensava, pois se apresentou derrubando Pecado no chão e deslocando um de seus ombros. Em seguida, espancou todos seus irmãos, um de cada vez, passava seus dias espancando-os, enquanto a mãe saía na sua eterna
caminhada com a cesta de verduras que os mantinha vivos. No fim, Pecado, farto, decidiu honrar seu nome e com um tijolo golpeou a cabeça do homem que havia mudado para o colchão de sua mãe. Golpeara com a força de todos seus irmãos em suas mãos - ele tinha apenas seis anos - e depois fugiu para as ruas, pois lugar nenhum poderia ser pior do que sua casa. No primeiro ano teve esperança de que sua mãe o procurasse. Porém, ela nunca veio. Ele a via somente de longe, onde ela se sentava em sua banca e vendia alface e às vezes também tomates. Mas nunca voltou para casa e finalmente a memória de sua mãe ficara tão obscura e remota quanto a de seu pai como uma risada sem rosto.
Também havia Alfredo Bomba, o menor deles e com um braço só. Nascera rejeitado e com um ombro aleijado, em outra cidade, e viera com o irmão mais velho para a cidade grande à procura, senão da felicidade, pelo menos de um pouco menos de infelicidade. Ele se escondia constantemente atrás de um bom humor, a não ser quando mendigava, porque então chorava e sabia todos os truques. Não tinha um braço, mas os que o viam chegavam a pensar que tudo lhe faltava e viam somente aquela mão esticada e lá colocavam o dinheiro para sua própria salvação. Ele era o que podia dar a Cosmos, todos os dias, a maior quantia de dinheiro e essa era sua missão na vida, ser o que mais contribuía, e isso ele ostentava com alegria e orgulho.
Do seu lado estava sempre Tristeza, com sua inteligência vagarosa. Era o desesperado filho adotivo da pobreza, seu cérebro nunca recebera o tão necessário oxigênio, ele nunca aprendera a pensar a não ser muito lentamente. Para sua mãe, ele fora a décima segunda dolorosa lembrança de que ela ainda vivia e, depois de ter colocado o nome no seu décimo primeiro filho de Miséria, sobrara somente um, Tristeza, e morrera no mesmo dia em que ele nasceu depois de sussurrar no ouvido da exausta e
faminta enfermeira que ela queria que o nome dele fosse exatamente aquele, sendo a última coisa que dissera, Tristeza.
Nélio escutava admirado suas histórias e viu que era um deles, possuíam as mesmas raízes e as mesmas experiências. Nas histórias dos outros encontrara a si mesmo como se todos trouxessem dentro de si uma aldeia queimada. Muitas vezes, quando deitava dentro da barriga do cavalo e esperava o sono chegar, pensava que haviam nascido da mesma mãe. Uma mulher que fora jovem e cheia de energia, mas que os bandidos, os monstros, a pobreza haviam transformado em uma sombra corcunda e sem dentes. Ele sabia que era isso o que tinham em comum - não ter nada, ter nascido para o mundo sem querer ou ter sido jogado nele por mísseis criados por bandidos e monstros.
A missão que tinham na vida era uma só: sobreviver.
Durante o dia ele podia ver os ricos que saíam e entravam em seus carros brilhantes na larga avenida no centro da cidade, homens brancos, homens negros, indianos. Por intermédio de Cosmos, ficara sabendo o quanto esses carros custavam. O preço era tão exorbitante que era como se Cosmos falasse da distância até uma estrela e não do preço de um carro. Com essas pessoas ricas, Nélio pôde também descobrir sua pobreza. Entre esses ricos, que constantemente pareciam estar a caminho de uma missão urgente, e o grupo de meninos de rua, existia um abismo que ele via se abrir todos os dias. Esse abismo era atravessado quando eles chegavam apressadamente aos postos e pediam para vigiar ou para lavar o carro enquanto o homem negro, branco ou indiano que descia do carro com sua pasta ia executar sua importante missão. Nélio perguntou uma vez a Cosmos quem eram esses homens, o que carregavam em suas pastas e por que sempre pareciam estar ocupados. Cosmos não tinha resposta mas reconheceu que poderia ser valioso saber.
Pouco tempo depois, numa ocasião adequada, instruiu Mandioca e Tristeza para que arrombassem um carro e roubassem uma pasta. Em seguida se esconderam atrás do posto de gasolina e abriram a pasta. Mandioca fantasiara que estaria cheia de dinheiro. Mas quando a destrancaram e abriram, encontraram somente os restos secos de uma lagartixa. Esse foi um momento mágico, pois eles nunca imaginaram que uma lagartixa morta seria o grande segredo da riqueza.
- Eles carregam animais mortos em suas pastas, disse Cosmos pensativo. Talvez sejam lagartixas especiais que os protegem contra espíritos maus?
- É uma lagartixa normal, disse Mandioca depois de pegá-la,
examiná-la com cuidado e, no final, cheirá-la.
- Mesmo assim isso deve ter algum significado, disse Cosmos.
- Vamos, em todo caso, demonstrar que agora sabemos o que carregam em suas pastas, disse Nélio.
Não sabia de onde havia tirado essa idéia, nem essa ou muitas outras que tinha. Parecia que possuía um lugar secreto dentro da sua cabeça onde os pensamentos inesperados vigiavam o instante oportuno para se libertarem.
- Como poderíamos fazer isso sem sermos pegos? perguntou Cosmos.
Nélio pensou sobre o assunto. De repente sabia.
- Pegamos uma lagartixa viva e colocamos na pasta, disse. Depois deixamos a pasta outra vez no carro. Mandioca e Tristeza abrirão a porta do carro de maneira que ninguém notará que foi arrombada. O homem terá algo em que pensar para o resto de sua vida. Teremos poder sobre ele. Saberemos o que aconteceu. Mas ele não.
Cosmos assentiu, concordando. Em seguida chamou Alfredo Bomba e lhe instruiu para que, sem demora, apanhasse uma das lagartixas que corriam para cima e para baixo nos troncos das árvores ou se escondiam nas rachaduras das fachadas das casas. Ele ficou imóvel perto da árvore, colocou sua mão no tronco e depois esperou até uma lagartixa chegar bem perto. Então fechou a mão e a lagartixa ficou presa entre o seu polegar e o indicador.
Nélio quis saber onde ele aprendera esse truque.
Alfredo Bomba ficou surpreso com a pergunta.
- Aprendi observando como as lagartixas apanham insetos, disse.
Como era Tristeza que estava vigiando o carro, ele e Mandioca não tiveram nenhuma dificuldade para mais uma vez arrombar a porta do carro e colocar a pasta de volta. Quando o dono do carro retornou, deu a Tristeza uma nota de cinco mil, por ter vigiado o carro tão bem.
Desde esse momento Cosmos e Nélio ficaram obcecados pela descoberta que tinham feito. Eles podiam dominar o mundo, entrando onde queriam sem ser vistos e deixando seu misterioso rastro, que significaria o inexplicável e às vezes também o terror para quem os encontrasse. Olhavam a cidade à sua volta, a lagartixa na pasta tinha lhes dado poder e eles decidiram desafiar sua pobreza. Cosmos tomava todas as decisões. Mas era Nélio quem as sussurrava em seu ouvido. Em seguida repartiam as tarefas
entre os demais e, juntos, depois, admiravam seus troféus.
Pelo sinuoso cano de esgoto, debaixo dos pés dos vigias armados, entraram uma noite na maior loja da cidade. Cosmos se viu obrigado a bater em Júlio e Alfredo para que não enchessem seus bolsos com os objetos de valor que havia dentro da loja.
Não estavam ali para roubar, mas para deixar seu rastro e apanhar um troféu. Sob a liderança de Cosmos e Nélio, colocaram aparelhos de rádios dentro dos grandes congeladores, encheram as cestas vazias de pão com sapatos e penduraram frangos congelados em cabides no departamento de roupas para senhoras. A última coisa que fizeram foi desparafusar a placa de latão pendurada na entrada principal, lembrança da ocasião quando o presidente havia inaugurado o grande estabelecimento. Pecado pregou ali uma lagartixa morta encontrada por Alfredo Bomba e deixaram a loja noturna tão silenciosamente como entraram. No outro dia Cosmos e Nélio estavam na porta quando a loja abriu. Observaram a superstição entre os vigias, em seguida a surpresa dos chefes de controle quando viram que nada fora roubado. Quando a polícia chegou, a lagartixa morta de Alfredo estava em uma bandeja de prata e ninguém ousava tocá-la.
Outra noite, visitaram o grande hotel branco que ficava em uma colina sobre o mar. Entraram pelo tubo de ventilação, localizado no escarpado do lado do mar. Subindo um nos ombros do outro conseguiram alcançá-lo e finalmente viram-se nas grandes salas de pisos de mármore e de urnas de flores de um metro de altura. Moveram-se com grande cuidado, pois os recepcionistas, vigias e os hóspedes acordados estavam de vigília nas salas banhadas de luz. No café com suas poltronas macias comeram os bolos que ainda restavam na geladeira brilhante. Dali também levaram a placa dourada que ficava entre duas colunas, em memória de quando Dom Joaquim, muitos anos atrás, inaugurara o novo hotel. Alfredo colocou sua lagartixa no lugar da placa. Nélio colocou, com cuidado, um pedaço de bolo na boca da lagartixa antes de novamente desaparecerem pelo duto da ventilação.
Jamais ficaram sabendo o que aconteceu no outro dia, pois nunca conseguiriam passar pelos vigias nas portas giratórias do hotel. Mesmo assim podiam fazer uma idéia.
Nélio e Cosmos tornaram-se cada vez mais corajosos. Entraram no parlamento, desparafusaram o cabo do microfone e em seu lugar colocaram uma lagartixa morta.
Desafiavam-se mutuamente para mostrarem, até para os outros, sua superioridade. Desafiaram a vaidade presunçosa da riqueza derrubando no asfalto, um pouco antes do teatro, duas motocicletas policiais de escolta, quando um minicortejo passava. Tinham notado que as primeiras motocicletas de cada cortejo sempre passavam pela faixa do meio da larga avenida, um pouco antes do cruzamento. Quando as sirenes uivaram e os motoristas viraram para os lados, Tristeza e Júlio colocaram rapidamente
cacos pretos de vidro na faixa do meio e se esconderam atrás de um carro estacionado. Depois, quando os motociclistas caíram e o cortejo foi obrigado a parar, colocaram uma lagartixa no meio dos cacos pretos de vidro.
Durante muito tempo Nélio e Cosmos discutiram sobre qual seria o maior desafio que poderiam se propor. Avaliaram a possibilidade de libertar todos os detentos da prisão da cidade, cada um com uma lagartixa na mão. Pensaram por muito tempo em fazer uma transmissão da estação de rádio da cidade uma noite. O que finalmente concordaram em fazer, porém, foi entrar uma noite no palácio presidencial, ir até o quarto do presidente e deixar uma lagartixa na sua mesa de cabeceira. Este seria o último desafio. Depois as lagartixas desapareceriam.
Mas ninguém jamais poderia estar completamente seguro de que não retornariam.
Levaram mais de um ano para preparar a visita ao quarto do presidente. Durante esse tempo continuaram sua vida inquieta e agitada nas ruas. Brigando com outros grupos sobre territórios, vivendo em contínuo conflito com os comerciantes indianos, com a polícia e com eles mesmos. Lavavam e vigiavam carros, procuravam comida nas latas de lixo e aperfeiçoavam a arte de mendigar de Alfredo Bomba. De vez em quando, eram importunados pelo mundo de fora, freqüentemente em forma de pessoas brancas que falavam muito mal sua língua. Queriam levar todo o grupo para o que descreviam como uma casa grande onde havia comida, banheiras e um deus. Cosmos costumava pedir a Mandioca para segui-los e investigar sobre a questão. Mandioca, porém, geralmente já estava de volta no dia seguinte e informava que novamente era uma instituição onde queriam mudá-los e lhes tirar o direito de viverem na rua.
Às vezes vinham pessoas de bonés, carregando grandes câmaras, e pediam-lhes que fizessem poses. Cosmos imediatamente exigia pagamento, e os homens com as câmaras e as mulheres magras com suas canetas nas mãos geralmente iam embora com caras descontentes.
Quando os homens com as câmaras estavam dispostos a pagar, eles posavam de boa vontade. Vangloriavam-se com as expressões de fome, dor, carência, sujeira, brutalidade, ladroeira e inocente alegria. Cosmos os instruía e cada um deles tinha sua missão. Com o dinheiro costumavam comprar comida, na maioria da vezes frango, que assavam no cais quebrado. Os dias com os homens das câmaras e as mulheres magras com as canetas eram dias de fartura. Depois deitavam sob a sombra dos coqueiros e conversavam. Cosmos deixava Nélio deitar ao seu lado, mas os outros mantinham uma respeitável distância. Cosmos costumava olhar para o mar, mastigar os últimos ossos de frango e falar sobre tudo, menos de si mesmo. As raízes de Cosmos era algo que Nélio sempre quisera saber. Porém sabia que Cosmos jamais responderia se ele começasse a fazer perguntas. Nélio às vezes pensava que Cosmos era uma pessoa que já viera pronta. Já nascera como era e tampouco mudaria. Isso também podia esclarecer por que ele nunca falava de seu passado. Não falava porque seu passado não existia.
Os dias de fartura podiam induzir Cosmos a um estado de reflexão filosófico e sonhador.
- Se você perguntar a Tristeza ou Alfredo Bomba o que mais querem na vida, o que acha que responderiam?
Nélio pensou sobre o assunto.
- Dariam respostas diferentes, respondeu ele.
- Não estou certo, disse Cosmos. Existe algo que é mais importante que tudo mais? Mães e barrigas cheias e aldeias distantes e roupas e carros e dinheiro?
Ficaram em silêncio enquanto Nélio pensava.
- Carteira de identidade, disse finalmente. Um papel com fotografia que diz que somos exatamente aquele que somos e mais ninguém.
- Eu sabia que você acertaria, disse Cosmos. E com isso que sonhamos. Carteira de identidade. Mas não para saber quem somos. Isso já sabemos. Mas para ter um papel que nos dê o direito de ser quem somos.
- Nunca tive uma carteira de identidade, disse Nélio pensativo.
- Devíamos arrumar isso, disse Cosmos. Depois de visitar o quarto do presidente, arrumaremos nossas carteiras de identidade.
- O que acontecerá se formos apanhados? perguntou Nélio. O que acontecerá se o presidente acordar?
- Ele certamente gritará por socorro, respondeu Cosmos. Fará como Júlio. Achará que está sonhando com monstros.
- Se eu fosse o presidente, disse Nélio, o que eu faria?
- Você comeria até ficar cheio todos os dias.
- Eu comeria até ficar cheio todos os dias. E depois?
- Construiria as aldeias que os bandidos queimaram. Procuraria sua mãe e seu pai e seus irmãos. Tentaria encontrar Yabu Bata. Colocaria o homem sem dentes na prisão. Você teria muito o que fazer.
Cosmos bocejou.
- Se eu fosse o presidente renunciaria, ele disse e virou-se de lado para dormir. Como teria um líder de um grupo de meninos de rua tempo para ser presidente?
Costumavam terminar os dias de fartura com uma visita ao local de festas que ficava em uma área cercada entre o cais e os apertados becos onde os bares nunca fechavam antes do sol nascer. Mesmo quando tinham dinheiro a idéia de pagar para entrar era repugnante. Eles tinham sua entrada própria por trás de uma das cozinhas sujas do restaurante onde a gordura queimava nas jamais limpas bocas de fogão. Entravam através de um buraco no muro que eles mesmos tinham feito e depois tampado com
torrões de terra. Conheciam a grande Adelaida, de pé com sua espátula e seu rosto banhado de suor. Ela era mulata e pesava quase 150 quilos. Quando chegou no restaurante para trabalhar de cozinheira dez anos atrás, o dono foi obrigado a aumentar a cozinha para lhe dar lugar, pois ela dançava e cantava enquanto cozinhava. A comida que preparava não era nada especial, mas havia um boato de que o que servia tinha efeitos mágicos sobre o desejo e a capacidade tanto dos homens como das mulheres. O que significava que o restaurante estava sempre cheio. Adelaida tinha um salário alto, pois compreendera seu valor, e ela vigiava com prazer a passagem secreta usada pelos meninos de rua.
O local de festas era um labirinto de restaurantes e bares, pequenos compartimentos onde uma pessoa podia ler seu futuro ou ser tatuado por misteriosos homens pequenos, escuros e das distantes ilhas do oceano Índico. No meio de um espaço aberto havia uma roda-gigante em que ninguém ousara andar nos últimos vinte anos, pois as correntes enferrujadas dos assentos tinham se arrebentado. O dono, senhor Rodrigues, que há mais de sessenta anos, durante a época de Dom Joaquim, importara a grande roda, ainda podia ser encontrado ali todas as noites. Como se fosse um poço de desejos, as pessoas compravam um bilhete, embora não pudessem nem andar, e, ao mesmo tempo, desejavam a si mesmas uma longa vida. O senhor Rodrigues, que tinha uma tosse seca de fumar e que vivia de uvas passas, sentava em sua pequena bilheteria e jogava xadrez consigo mesmo. Durante todos esses anos que passara no local de festas ele adquiriu uma grande
habilidade de perder de si mesmo. Sabia que não era um bom jogador de xadrez. Mas dentro dele havia um gênio secreto que era um mestre imbatível. Ao lado da roda-gigante, havia algumas bancas de loteria e um lugar para pequenos carros elétricos de corrida.
O grande carrossel, cujo motor já não funcionava desde alguns anos antes dos jovens revolucionários tomarem o poder, atualmente era acionado manualmente. Os donos do carrossel tinham fugido de medo, pois acreditavam que todos os brancos seriam decapitados pelos novos governantes. Tinham deixado vazar todo o óleo do motor e, em conseqüência, o carrossel quebrou. Isso ocorreu uma noite quando estavam sozinhos no local de festas e tinham bebido grande quantidade de vinho e andado no carrossel até fundir o motor. No dia seguinte desapareceram. Mas cortaram as cabeças dos cavalos de pau para se vingar da nova época que não os deixaria continuar vivendo sua confortável vida colonial. Ninguém conseguiu encontrar as cabeças cortadas dos cavalos e tampouco substituí-las por novas. Por isso o carrossel ainda tinha cavalos sem cabeças. Cosmos ordenou a todos, a não ser Alfredo, que empurrassem. Sozinho no seu reino de cavalos sem cabeças, Alfredo sentara no cavalo líder e dava voltas e voltas em torno da terra. Por aquele instante de felicidade ele estava preparado a mendigar para os outros enquanto vivesse. Andavam pelo lugar de festa, observando os acontecimentos; eram interessados espectadores das brigas que surgiam e se desfaziam com a mesma rapidez, estudavam com curiosidade as mulheres meio nuas que procuravam fregueses e discutiam suas favoritas tão alto que muitas vezes eram mandados embora. Esses dias de fartura eram dias em que o tempo parava, a vida era algo mais do que somente sobrevivência.
No começo do segundo ano em que Nélio viveu com o bando liderado por Cosmos, fizeram sua visita noturna ao presidente. Entraram no palácio cercado e rigorosamente guardado, escondendo-se nas grandes cestas de roupas lavadas que eram entregues uma vez por mês no palácio pela lavanderia ministerial. Esperaram em um dos porões até o anoitecer e logo depois saíram furtivamente pela mansão silenciosa. Durante muito tempo antes dessa noite, tinham feito perguntas inocentes a diversas pessoas
que trabalhavam no palácio presidencial e ficaram sabendo como era a casa, onde havia escadas e guardas, e em que quarto o presidente dormia. Podia acontecer que ele visitasse a mulher, que tinha seu próprio quarto, mas depois sempre retornava a sua cama. Exatamente quando estavam a caminho do segundo andar do palácio, abaixaram-se rapidamente na escada escura. Escutaram uma porta abrir e fechar em algum lugar acima deles. Em seguida tinham visto o presidente à luz da lua e ele estava completamente
nu. Silenciosamente passara por cima das cabeças deles, a caminho de seu quarto. Esse fora um momento que nenhum deles jamais esqueceria. Cosmos os ameaçara de serem castigados todos os dias, durante três meses, se um deles contasse o que tinham visto. Ninguém precisava saber que seu presidente se mostrara nu para alguns de seus súditos.
Esperaram na escada até Cosmos achar que o presidente adormecera. Cuidadosamente continuaram adiante e abriram a porta do quarto. No luar que penetrava pela janela viram a sombra daquele homem negro em sua cama e ouviram sua respiração tranqüila. Ficaram em volta da cama, segurando a respiração. Em seguida, Alfredo Bomba colocou uma lagartixa morta na mesa de cabeceira e deixaram o quarto.
O que nunca ficaram sabendo foi que o presidente alguns minutos mais tarde abriu os olhos no escuro. Ele sonhara com algo que cheirava, o odor ruim da pobreza. Quando abriu os olhos no escuro, o cheiro estava presente como se o tivesse seguido do sono. Depois ficou acordado por muito tempo e pensou no que o sonho significava. Que ele fazia pouco para remediar a pobreza que parecia se alastrar pelo país como uma doença contagiosa. Procurou, preocupado, uma resposta sem encontrá-la até que adormeceu novamente, um pouco antes do amanhecer.
Mas ele não encontrou a lagartixa que estava em sua mesa de cabeceira. De manhã, quando o presidente com seus olhos cheios de sono tomou banho e se vestiu, ainda não a tinha visto.
Um criado assustado chamou o encarregado da segurança do presidente, o qual por sua vez, em grande sigilo, chamou o chefe da polícia secreta. Após inúmeras reuniões extremamente confidenciais decidiram nada informar ao presidente. Ao mesmo tempo triplicaram, também secretamente, a guarda do palácio presidencial.
Um curto tempo depois desse último triunfo, Cosmos sofreu uma melancolia que surpreendeu a todos, inclusive ele mesmo. Uma noite, justo quando Nélio estava a caminho de sua estátua, Cosmos o chamou de lado e disse que a partir do dia seguinte Nélio assumiria a liderança do grupo. Ele iria embora e entregava a Nélio essa responsabilidade até retornar. No cais havia um navio cargueiro que velejaria para o leste, ao nascer do sol do dia seguinte. Cosmos se esconderia a bordo para começar uma viagem
que achava que seria a única coisa que poderia lhe devolver novamente o bom humor.
- Eles nunca me reconhecerão como seu líder, disse Nélio. Eles dirão que o matei.
- Eles irão sentir minha falta, disse Cosmos. Por isso você é o único líder possível. Pois você é quem está mais próximo a mim.
Nélio tentou protestar.
- Não diga mais nada, disse Cosmos. Acho que às vezes devemos nos separar. Eu ficarei bem.
Em seguida tirou do bolso uma lagartixa morta e sorriu.
No dia seguinte ele foi embora. Nunca mais tiveram notícias dele.
Ele desapareceu com o navio que velejava direto para o sol nascente.
No mesmo instante em que Nélio contava sobre o desaparecimento de Cosmos, o sol nasceu no horizonte. O sol africano, vermelho como seda, jorrando seus raios sobre a cidade que acordava. Eu podia ver que Nélio estava cansado. Justo quando ia deixá-lo começou a tossir.
Quando me virei vi que escorria sangue de sua boca. Pensei que agora tudo acabaria. Nélio morreria. Mas ele ergueu sua mão e acenou.
- Parece pior do que é, disse ele cansado. Não morrerei sem que você saiba disso.
Logo o sangue parou de correr. Perguntei se havia algo que queria.
- Só água, disse. Depois irei dormir.
Fiquei no telhado até que adormecesse. Em seguida desci até a padaria. Como Dona Esmeralda já tinha chegado, contei-lhe sobre o ajudante incompetente com quem tinha trabalhado à noite.
Escutei minha própria voz, e as palavras que seguiam. Elas eram estranhas e irreais, como se eu estivesse sendo totalmente devorado pelo moribundo Nélio e sua história. Dona Esmeralda pareceu não notar nada. Levantou-se do banco, amarrou a fita de seu chapéu debaixo do queixo e disse que iria substituir imediatamente o ajudante incapaz por uma pessoa melhor.
Em seguida saí pela cidade. De algum lugar, me virei e olhei para o telhado do teatro.
A tarde e a noite ainda estavam distantes.
A SEXTA NOITE
Naquele dia um vento frio soprou de repente pela cidade. Não era raro isso ocorrer justamente durante a época mais quente do ano, porém, mesmo sabendo disso, o acontecimento foi inesperado para todos. Uma vez, muito tempo atrás, quando a cidade tinha apenas algumas casas perto da boca do rio, um boato se espalhara que uma geleira podia ser vista, mais ou menos onde agora os tubarões vagavam com suas barbatanas dorsais quase invisíveis acima da superfície da água. Durante alguns dias a boca do rio
congelara e as pessoas podiam atravessar o rio pisando no gelo. Embora tudo isso, com toda certeza, não tenha ocorrido, podíamos, nesses dias quando o vento frio soprava pelo país vindo do sul, ver pessoas, sobretudo os velhos, em pé no cais da cidade contemplando o horizonte para ver se a geleira depois de todos esses anos retornaria.
A verdade era óbvia, aquilo que ocorrera uma vez não era apenas um boato.
Eu adormecera à sombra de uma árvore na beira do cais onde atracavam os enferrujados barcos de travessia que iam e vinham no rio. De repente, acordei porque estava com frio. Já era tarde e me apressei de volta para a padaria. Estava exatamente a caminho do telhado para ver se Nélio ainda dormia, quando ouvi alguém me chamando. Era uma das moças chatas do balcão que disse que Dona Esmeralda perguntara por mim. Eu deveria procurá-la sem perda de tempo, embora no momento ela se encontrasse no teatro ensaiando uma nova peça com seus atores.
Imediatamente fiquei muito preocupado. Raramente ocorria de Dona Esmeralda querer ser incomodada quando estava no teatro. Perguntei à moça, que era a Rosa, agora me lembro, a Rosa grande e gorda, que amava apaixonadamente um alfaiate que a deixara há mais de quinze anos, o que é que Dona Esmeralda queria.
- Quem sabe o que ela quer? respondera Rosa. Mas acho melhor você se apressar. Ela já esperou muito.
Pensei que ela devia ter descoberto que Nélio estava no telhado. Ela sabia que tinha sido eu quem o levara para lá. Agora me demitiria por ter escondido algo.
Quando, com cuidado, pisei no escuro salão eu estava cheio de maus pressentimentos. No palco, na mesma luz de refletores em que encontrara Nélio banhado em sangue, vi os atores representando. Estavam enfiados em estranhas fantasias cinzas que pareciam cheias de ar. Em seus rostos estavam pendurados objetos compridos semelhantes a um cano, parecendo cordas grossas, que dificultavam seus movimentos. Fiquei parado na porta fascinado pelos objetos semelhantes a balões que tropeçavam em seus
narizes.
Demorei um instante antes de entender que representavam elefantes. Podia ver as costas de Dona Esmeralda. Ela se sentava sempre no mesmo lugar, mais ou menos no meio do salão, quando dirigia seus ensaios. Como a peça era representada no palco, me detive antes de me aproximar.
Tive dificuldades em entender o conteúdo da peça, pois era impossível compreender as palavras dos atores atrás das suas longas trompas dependuradas. Porém me pareceu escutar que soavam impacientes. Chutavam irritados as trompas, moviam-se desajeitada e pesadamente com as fantasias que com certeza também eram muito quentes.
A peça prosseguiu sem interrupções. Pensei que não podia esperar
mais e me dirigi com cautela pelo corredor do meio até as costas de Dona Esmeralda. Ela tirara o chapéu e o colocara na poltrona vizinha.
Sentava-se imóvel.
Quando cheguei até ela descobri que estava dormindo. Mesmo assim se sentava reta, seu queixo não caíra até o peito. Os atores no palco não podiam notar que ela dormia. Exatamente quando ia me retirar, ela acordou de supetão e me viu. Mostrou com uma mão que deveria me sentar ao seu lado. Movi com cuidado a garrafa de conhaque da cadeira vizinha e me sentei. O tempo todo os elefantes gritavam coisas indecifráveis uns para os outros no palco. Dona Esmeralda debruçou-se para perto de mim e sussurrou no meu ouvido.
- O que você acha da nossa nova peça?
- Parece muito boa, sussurrei de volta.
- É sobre uma manada de elefantes com problemas religiosos, ela continuou. É uma lembrança da época ruim em que meu pai ainda regia este país. No final da peça ele mesmo entrará no palco com sua espada na mão. Se encontrar alguém que possa representá-lo. Os elefantes são, na realidade, soldados revolucionários.
Devo admitir que não compreendi nada do ela queria dizer. Como os atores pareciam irritados em cima do palco, creio que eles também não compreendiam o conteúdo da peça. Mas não tive coragem de dizer nada além do que já tinha dito, que tudo parecia estar muito bem.
Dona Esmeralda assentiu satisfeita e parecia já ter se esquecido da minha presença. Ela seguia o que acontecia no palco com uma expressão encantada de alegria infantil. Observei-a furtivamente e pensei que talvez fosse justamente essa alegria que recordava uma criança que a fazia continuar viva, apesar de ter no mínimo noventa ou talvez até mesmo cem anos.
Pensei que tivesse esquecido que eu estava sentado ali ao seu lado quando de repente ela me olhou.
- Demiti seu ajudante, ela disse. Como é mesmo o nome dele?
- Júlio.
- Disse a ele para arrumar um instrumento e tentar ser músico. Acho que tem jeito para isso.
Embora Dona Esmeralda sempre tentasse evitar ao máximo demitir as pessoas que contratava, isso nem sempre acontecia. Mas não deixava ninguém ir embora sem que aconselhasse a que tipo de ocupação deveria se dedicar no futuro. Eu sabia que ela quase sempre acertava. Tentei
imaginar, sem nenhum sucesso, que tipo de instrumento seria ideal para Júlio.
- O novo ajudante virá hoje à noite, disse Dona Esmeralda interrompendo meus pensamentos. É por isso que mandei chamá-lo. Contratei uma mulher.
- Uma mulher? Mas os sacos de farinha de trigo são pesados!
- Maria é muito forte. Ela é muito forte e é bonita.
A conversa terminou. Dona Esmeralda sinalizou para que eu fosse embora. Deixei o salão escuro, agradecido por ela não ter me chamado para falar de Nélio.
Ela havia dito que Maria era tão forte como bonita. E por Deus, ela estava certa! Pois quando tarde da noite fui até a padaria para dar início ao meu trabalho, lá encontrei a mulher mais linda que já vira em minha vida. Foi amor à primeira vista. Naquele instante não existia nada além dela. Nos demos as mãos.
- Meu nome é Maria, ela disse.
"Eu te amo", pensei em dizer. Mas é claro que não disse. Disse somente meu nome.
- Eu também me chamo Maria, respondi. José Antônio Maria. Os sacos de farinha de trigo são muito pesados.
Aos pés dela havia um saco, um de listras azuis e vermelhas. Ela agachou dobrando os joelhos e o levantou acima de sua cabeça.
Como podia uma mulher ser tão forte? Como podia uma mulher ser tão forte e ao mesmo tempo tão linda?
- Você já trabalhou em uma padaria antes? perguntei.
- Sim, ela disse. Sei como misturar a massa.
Isso ela sabia. Só precisei lhe explicar o quanto de massa fazíamos durante uma noite, e quais eram os desejos especiais de Dona Esmeralda. Ela assentiu com a cabeça e depois jamais precisei corrigi-la.
Ela era tão linda que eu muitas vezes esqueci Nélio e foi somente quando a deixei ir, à meia-noite, que ele retornou a minha consciência, mesmo assim depois que saí à rua para ver se algum homem esperava por Maria. Mas ela desaparecera sozinha na noite. Naquele momento, dentro de minha cabeça, me casei com ela.
Foi só quando já estava na escada de caracol rumo ao telhado que me lembrei aonde ia e por que estava indo. Imediatamente fiquei com remorso. Alguém estava morrendo no telhado e eu só pensava na minha nova ajudante Maria. Me arrependi, embora fosse difícil, e depois me apressei para o telhado.
Nélio estava acordado quando cheguei. Mais cedo na noite, antes de Maria ter chegado, eu pegara emprestado um velho cobertor do vigia que ficava do lado de fora da loja do fotógrafo indiano. Dei-lhe um pão e
uma caixa de fósforo com chá para que ele emprestasse o cobertor. Eu o colocara sobre Nélio para protegê-lo dos ventos frios que sopravam sobre a cidade. Dei-lhe as ervas da senhora Muwulene e me sentei ao seu lado enquanto ele passava por nova crise de febre. O ar frio parecia ter-lhe
feito bem. Ele sorriu quando me viu.
Naquele momento, era um menino de dez anos. No momento seguinte voltava a ser um homem muito velho. Isso mudava o tempo todo. Nunca sabia o que veria a minha frente. A única coisa certa era que agora ele já estava no telhado há cinco dias e noites, esta era a sexta noite e sua ferida no peito enegrecera ainda mais.
Talvez fosse meu encontro com Maria que me influenciara, não sei. Mas quando troquei o curativo e vi que ele mostrava o sintoma inconfundível de septicemia, não pude deixar de dizer o que pensava.
- Você vai morrer se ficar aqui no telhado.
- Não tenho medo de morrer, ele respondeu.
- Você não precisa morrer, eu disse. Se puder levá-lo daqui. Para um hospital. As balas no seu corpo precisam ser removidas.
- Eu direi quando, ele respondeu, como em muitas outras vezes.
- Agora sou eu que digo, respondi. Tenho que levá-lo agora. Senão você morrerá.
- Não, ele disse. Não morrerei.
O que é que me fez acreditar nele? Como foi que me fez concordar com algo que sabia não estar certo?
A resposta é que não sei. Mas o poder dele era tão grande que nos curvávamos diante de suas palavras.
Naquela noite ele contou sobre a época depois que Cosmos se escondeu a bordo de um navio e desapareceu em sua viagem em direção ao nascer do sol. De madrugada, quando começou a se cansar, pude sentir que o ar fresco desaparecera. Quando me levantei para deixá-lo e olhei em direção ao mar, também não pude ver geleira alguma.
Na manhã em que Cosmos foi embora e Nélio contou aos outros que de agora em diante seria o líder do bando, tudo ocorreu com muita calma. Uma troca de liderança podia às vezes significar que preocupações e oposições obscuras seriam forçadas à tona. Nélio disse que Cosmos um dia voltaria e que tudo voltaria a ser como antes. Ele não via necessidade de mudar coisa alguma. O que sabia sobre ser um líder aprendera com Cosmos.
No entanto, isso não era totalmente verdade. Durante as noites em que ficou na barriga do cavalo e sem sono, esperando pelo amanhecer e pela furiosa prece do insano padre risonho, tinha pensado que seria exatamente como Cosmos. Mas que seria um pouco mais. Seria ainda um pouco mais paciente com Tristeza, riria ainda um pouco mais da infinidade de histórias que Alfredo Bomba constantemente contava. Desse modo esperava manter a autoridade que Cosmos havia mantido no grupo.
O único que o desafiou durante esses primeiros tempos foi Júlio.
- Você sabe onde Cosmos está, Júlio dizia de repente, quando Nélio, à noite, dividia o dinheiro que ganhavam durante o dia, vigiando e lavando carros.
Isso causava tensão imediata entre os outros. Nélio sabia que deveria aceitar o desafio e de uma vez por todas esclarecer para Júlio por que Cosmos o escolhera como seu sucessor.
- Ele me escolheu como líder porque sabia que era o único que não contaria para onde ele foi, respondeu Nélio e continuou a dividir o dinheiro.
Júlio pensou sobre o que a resposta realmente significava. Naquela noite não disse mais nada.
- Não podemos ter um líder que não durma junto conosco, ele disse na segunda noite.
Nélio estava preparado para esse questionamento. Ele sabia que Júlio usaria as diferenças entre ele e Cosmos. E encontrara duas grandes diferenças entre eles. Uma era que Nélio morava sozinho e outra que ele não era mais velho que os outros.
- Tudo continuará como na época de Cosmos, respondeu Nélio. Por isso continuarei dormindo onde quiser.
- Um líder tem que ser mais velho, disse Júlio.
- Sobre isso você tem que falar é com Cosmos, Nélio respondeu. Tenho certeza de que ele lhe dará a resposta que você quer.
Júlio parou de desafiar Nélio quando percebeu que não chegava a lugar algum. O grupo ficou contente com o fato da mudança acontecer sem que nada os ameaçasse de separação. Logo os outros meninos de rua da cidade também ficaram sabendo que Nélio, apesar de sua pouca idade, assumira a liderança depois que Cosmos fora embora em uma viagem secreta.
Foi também durante esse tempo que Nélio começou a meditar ainda
mais sobre por que o mundo era como era. Viu diante de si uma prolongada vida nas ruas da cidade. Quando um dia fosse velho e comesse sua última refeição, também a tiraria das latas de lixo tal como fazia agora. Não era a vida realmente nada mais que isso? Nada além disso? Ele se lembrava das palavras que o anão branco, Yabu Bata, dissera antes de se separarem. Que existiam dois caminhos, um era o caminho que nos levava na direção certa e outro era o caminho da loucura e nos levava diretamente para a perdição. Qual dos caminhos finalmente escolhera quando naquela manhã entrara na cidade? Será que deveria ter continuado seguindo a interminável orla do mar?
Na sua vida possuía somente uma missão, a de sobreviver. Quando tinha esses pensamentos ficava perturbado.
Preciso fazer algo mais, pensou. Preciso fazer algo mais do que somente sobreviver.
Durante essa época havia adquirido também alguns costumes que contribuíram para lhe dar a imagem de uma pessoa estranha. No entanto, ele nunca soube dos rumores que o cercavam.
Todas as manhãs, quando acordava, perguntava a si mesmo se conseguiria viver mais um dia com o nome Nélio. Nos dias em que sentia seu nome como se fosse um fardo, ele escolhia outro nome. Costumava perguntar a um dos meninos que brincavam nas proximidades da estátua eqüestre como se chamava e usava esse nome durante o dia. Ninguém descobrira ainda que ele transformara a estátua em sua moradia. Ele sempre abria a portinhola cuidadosamente quando Manuel Oliveira começava a rir do lado de fora de sua igreja vazia e escapulia o mais rápido que podia. Em seguida, se apressava pela cidade rumo à escadaria do Departamento da Justiça onde os outros mais ou menos ao mesmo tempo começavam a acordar. Preferiam não estar dormindo quando os vigias chegassem para abrir, pois eram brutalmente mandados embora e suas caixas de papelão podiam ser rasgadas com chutes.
Os dias dos meninos de rua eram sempre a mesma coisa, sem que nada se repetisse.
Sempre acontecia algo que ninguém esperava. Mas Nélio se mantinha cada vez mais à parte dos outros e podia às vezes ficar irritado quando não o deixavam em paz. Muitas vezes seus pensamentos eram interrompidos quando Júlio começava a brigar com Pecado ou com alguém de outro grupo de
meninos de rua. Então era forçado a agir para que a desordem não se espalhasse e para restaurar a calma.
Quando entrava no meio de uma briga, tudo imediatamente se acalmava. Ninguém jamais vira alguém levantar a mão contra ele, nem mesmo Júlio. Tampouco ninguém podia entender por que ele sempre evitava se envolver em brigas. Havia um boato de que ele tinha um pai que era um feiticeiro desconhecido, de poder excepcional, que por sua vez doara esse poder ao filho.
De onde o boato havia surgido, ninguém sabia dizer. Mas um dia, quando Nélio estava sentado encostado contra uma árvore logo depois da padaria de Dona Esmeralda, estudando um mapa sujo e rasgado da África que Alfredo Bomba encontrara em uma lata de lixo no dia anterior, uma sombra de repente caiu sobre ele. Quando olhou para cima uma mulher jovem com uma criança nos braços estava de pé à sua frente.
- Minha filha está doente, disse a mulher com voz chorosa.
- Então ela deve tomar remédio, respondeu Nélio. Mas não tenho nenhum remédio para dar.
Nélio retornou a seus pensamentos. A mulher não foi embora. O tempo passou. Depois de mais de uma hora Nélio olhou novamente para ela.
- Não tenho nenhum remédio, repetiu. Se sua filha estava doente uma hora atrás, agora deve estar ainda mais.
A mulher trazia a criança enrolada contra seu peito. Então, tirou-a dali, ajoelhou-se e a estendeu para Nélio. Muitas pessoas haviam se reunido em volta deles. Nélio sentiu-se incomodado.
Ele tinha um grande respeito pelos feiticeiros e os curandeiros que dominavam poderes secretos, que podiam conversar com as angustiadas almas penadas, que podiam pôr em fuga o mal e libertar o bem que cada pessoa trazia dentro de si. Compreendeu que a mulher que lhe estendia a criança achava que ele era um feiticeiro. Isso lhe deu medo. Os feiticeiros mortos iriam lhe castigar duramente se ele se fizesse passar por um deles.
- Você está enganada, disse para a mulher. Vá a um curandeiro. Lhe darei dinheiro. Se você for embora daqui.
A mulher não se moveu. Nélio viu Júlio e os outros observando com curiosidade o que estava acontecendo. Notou que começara a suar.
- Vá embora, ele disse novamente. Não posso ajudá-la. Sou apenas uma criança.
De repente a mulher começou a apelar para os que estavam reunidos no círculo que crescia cada vez mais.
- Minha filha está doente, ela reclamou. Ele não quer ajudar.
Um murmúrio insatisfeito escapou imediatamente dos que estavam reunidos ali e tomaram o partido da mulher. Nélio compreendeu que a
única coisa que poderia fazer era pegar a criança e segurá-la nos braços. Observou que os lábios da criança estavam secos e rachados.
- Dê-lhe água fervida com sal, disse para a mulher, lembrando-se do que sua mãe costumava lhe dar.
A mulher pegou a criança, sorriu e colocou algumas notas amassadas diante dos pés de Nélio. A multidão começou a se dissipar.
- Nem mesmo Cosmos era curandeiro, disse Pecado, surpreso. Você pode fazer com que as pulgas parem de sugar meu sangue?
Alguns dias mais tarde a mulher com a criança retornou. A criança estava novamente saudável. Nélio supôs que a água fervida e o sal tinham feito o milagre. Mas daquele instante em diante esparramou-se o boato de que Nélio possuía a força divina da cura. Para não arriscar ser pego em flagrante como falso curandeiro, Nélio compreendera que a única coisa que poderia fazer era espalhar mais um boato. Reuniu o grupo à sua volta.
- Se muitas pessoas começarem a vir para que eu as cure não haverá nenhuma possibilidade de poder continuar como líder. Por isso, quero que vocês saiam e espalhem que só recebo pessoas doentes quando estiver sentado exatamente onde estava quando aquela mulher me procurou. Somente ali. Em nenhum outro lugar.
A partir daquele instante Nélio evitou sentar-se à sombra daquela árvore onde antes costumava ir quando queria ficar sozinho e meditar sobre suas perguntas indecifráveis. Embora nunca mais tivesse carregado uma criança doente nos braços, ele recebera um manto invisível sobre os ombros do qual ninguém o podia libertar. Nélio, que era tão novo e que mesmo assim era o sucessor de Cosmos, era um homem com poderes mágicos e sobrenaturais. Nélio se tornara uma pessoa conhecida na cidade. Muitos começaram a vir até ele para pedir conselhos. Nélio jamais se esforçara para dar respostas sábias. Dizia apenas o que pensava. Se não entendesse a pergunta, ele dizia. Se não tivesse algo a dizer, ficava calado. Um outro boato dizia que Nélio um dia faria um grande milagre. Ninguém sabia qual o milagre, mas todos esperavam que seria algo muito grande que faria sua cidade ficar conhecida no mundo inteiro.
Nélio, no entanto, não nutria nenhum pensamento de fazer algo mágico ou milagroso. Esforçava-se somente para realizar alguma coisa que significasse que sua vida seria algo mais do que apenas sobrevivência. Ao mesmo tempo, levava sua responsabilidade como sucessor de Cosmos a sério.
Tentava o tempo todo cuidar para que se lavassem e não ficassem doentes. Durante várias ocasiões, quebrara as garrafas de vinho meio vazias que Júlio achava para embriagar-se.
Durante os raros momentos em que não estavam ocupados com a própria sobrevivência, deitavam e cochilavam na calçada, em algum lugar onde houvesse sombra, e Nélio escutava os sonhos deles. Descobrira que os sonhos existiam nos outros tão sólidos como existiam dentro dele. Pensava que os sonhos viveriam sempre, por mais dura que fosse a vida deles. Dentro de cada um havia uma semente, tão forte e tão preciosa como um diamante. Eram sonhos de outros dias, de um reencontro, de uma cama para dormir, um telhado sobre a cabeça, uma carteira de identidade.
Nélio percebeu que sabedoria era somar uma coisa com a outra. Se alguém perguntasse quais eram as necessidades básicas de uma pessoa, ele saberia de imediato qual a resposta mais importante: um telhado e uma carteira de identidade. Era disso que uma pessoa precisava, além de comida, água, um par de calças e um cobertor. Era por ter um telhado sobre a cabeça e uma carteira de identidade no bolso que as pessoas se distinguiam dos animais. O primeiro passo para uma vida decente, um caminho para fora da pobreza, era construir um telhado e conseguir uma carteira de identidade. Quando fosse a hora, ele cuidaria para que os que Cosmos colocara sob sua responsabilidade pudessem começar a longa caminhada para deixar as ruas.
Nélio escutava os sonhos deles e ficava muitas vezes zangado quando os sonhos eram insensatos e irrealizáveis. Embora sempre tentasse evitar demonstrar que estava zangado, às vezes não podia deixar de dizer. Quando Tristeza, durante um longo período, perturbara o descanso da tarde com infinitas explicações de como ele um dia começaria seu banco, Nélio se manifestou. Acordou os que haviam conseguido dormir e pregara um sermão.
- Todos nós podemos falar sobre nossos sonhos. Sonhamos quando sonhamos e continuamos sonhando quando falamos sobre o que sonhamos. Isso é bom. Mas não é bom fazer como Tristeza. Não é um bom sonho acreditar que um dia abriremos um banco. Especialmente quando não sabemos nem contar. Isso é bobagem. Por isso deste momento em diante Tristeza falará menos em seu banco. Especialmente quando estivermos tentando dormir.
A seguir ficaram calados. Todos ficaram satisfeitos de poderem dormir em paz.
Mas Tristeza, que tinha dificuldades em entender o que pensava, pediu a Nélio para repetir o que dissera e, dessa vez, falar mais devagar. Nélio foi possuído por um sentimento de pesar quando viu o quanto Tristeza ficara magoado por seu sonho ter sido proibido. Entendeu imediatamente que deveria dar a ele outro sonho para que não perdesse
sua energia vital.
- Você deve se exercitar para pensar mais rápido, disse Nélio. É com isso que você irá sonhar. Que você um dia poderá pensar da mesma maneira que nós. Quando você aprender a fazer isso, juntaremos dinheiro para que você possa comprar um par de tênis.
Tristeza o olhou com incredulidade.
- Estou falando sério, disse Nélio. Costumo dizer coisas e depois não as cumpro?
Tristeza sacudiu a cabeça.
- Você mesmo poderá entrar na loja e escolher o tênis que quiser, disse Nélio. Em seguida você tirará o dinheiro do seu bolso e pagará.
- Assim tão rápido eu jamais aprenderei a pensar, disse Tristeza.
- Você terá seu tênis quando tiver aprendido a pensar só um pouco mais depressa do que pensa agora.
- Eu não sei como fazer.
- Você pensa em muita coisa ao mesmo tempo. É por isso que sua cabeça está sempre confusa. Aprenda a pensar em uma coisa de cada vez, nada mais.
- Em que devo pensar?
- Pense que está muito quente, disse Nélio. Pense o quanto seria bom se dormíssemos e no pouco que ficaríamos irritados com você se você não falasse o tempo todo no seu banco. Pense nisso até que você mesmo durma. Depois lhe darei algo mais em que pensar.
- Um tênis, disse Tristeza.
- Sim, disse Nélio. Um tênis. Agora fique calado! Pense. E durma.
Depois, quando Tristeza adormeceu, Nélio continuou acordado, à sombra de sua árvore. Tentou imaginar Tristeza em dez anos, e em vinte, como um adulto. Ficou novamente pesaroso pensando que Tristeza com certeza não viveria tanto tempo. O mundo não era feito para meninos de rua que pensavam devagar.
Uma manhã Alfredo Bomba veio até Nélio, que se encontrava sentado distraído, raspando a sujeira de seus pés com uma faca cega e quebrada. Ele contou que durante a noite sonhara que o dia seguinte era seu aniversário.
- Você não sabe em que dia você nasceu, disse Nélio.
- Sonhei que sabia, respondeu Alfredo Bomba. Por que sonharia algo que não é verdade?
Nélio olhou-o, pensativo. Depois colocou suas mãos juntas e
levantou-se.
- Você está certo, disse. Certamente você faz aniversário amanhã. Vamos comemorar seu aniversário. Me deixe agora para que eu possa pensar em seu aniversário em paz.
Quando Nélio resolvia um problema ou pensava em algo até que não houvesse mais nenhum aspecto em que pensar, sempre queria ficar sozinho. Não conseguia pensar quando os outros faziam bagunça à sua volta. Costumava sentar-se na grama marrom queimada, atrás do posto de gasolina, onde sua única companhia era um par de cabras magras. Era para lá que ia agora para poder pensar sobre o aniversário de Alfredo Bomba. Depois de uma hora sabia o que faria. Chamou o grupo para uma reunião. Júlio chegou
carregando uma caixa meio cheia de tomates que caíra de um ônibus sobrecarregado. Com rapidez, tiraram os pedaços de tomates podres e comeram o resto. Nélio esperou até que a caixa estivesse quase vazia antes de começar a falar.
- Amanhã é um grande dia. Alfredo Bomba faz aniversário. Ele sonhou com isso e, com certeza, é verdade. Provavelmente fará nove anos, ou dez ou possivelmente onze. Mas isso não tem importância. Nada proíbe Alfredo Bomba de ter a idade que quiser. Amanhã festejaremos o aniversário de Alfredo Bomba.
Nélio apontou para uma casa vizinha ao posto de gasolina. Na época de Dom Joaquim, ela havia pertencido a um rico dono de grandes plantações de chá nas distantes províncias do oeste. Quando os jovens revolucionários tomaram o poder, a casa ficou por muito tempo vazia e abandonada. Mas nos últimos anos ali moraram pessoas brancas que vinham para o país para ajudar, eram chamados de cooperantes (funcionários dos programas internacionais de subsídios). No momento, nela vivia um homem de cabelos completamente louros e que vinha de um país que ninguém sabia onde ficava.
Nélio ficara sabendo uma vez que o homem era dinamarquês, sem entender bem o que isso queria dizer.
Nélio pensou muitas vezes sobre esses cooperantes. Que andavam vestidos com calções e sandálias e carregavam suas pequenas bolsas com dinheiro em um cinto em volta da cintura. Nélio pensou que talvez esse fosse o uniforme deles. Tinham carros grandes e eram quase sempre amáveis com os meninos de rua e davam muito dinheiro quando um deles vigiava seus carros. Seus rostos pareciam ficar vermelhos do sol e tentavam sempre demonstrar que não sentiam medo de tantas pessoas negras que sempre querem o dinheiro deles, embora Nélio tenha descoberto que na realidade sim, sentiam.
Nélio apontou para a casa.
- Amanhã é sábado. O que quer dizer que o dinamarquês encherá seu carro com colchões, cadeiras, caixas de comida. Depois não retornará até o dia seguinte, no domingo. A empregada dele estará de folga e o
guarda-noturno tem sempre um sono muito pesado. Júlio também poderá tentar encontrar uma garrafa de vinho para lhe dar. Assim, ele dormirá
um sono ainda mais pesado. Como o homem que mora lá é dinamarquês e cooperante, ele está aqui para ajudar os pobres do nosso país. Nós somos pobres. Portanto, ele poderá nos ajudar a festejar o aniversário de Alfredo Bomba. Celebraremos o aniversário na casa dele.
Suas palavras causaram uma tempestade de protestos. Nélio sabia que todos achariam sua idéia excelente mas tentariam falar de tudo que poderia causar problemas.
- Não podemos arrombar a casa, disse Mandioca. A polícia virá. Nós festejaríamos o aniversário na cadeia. Eles irão nos bater muito. Especialmente em Alfredo Bomba, já que seu aniversário é o culpado de tudo.
- Não vamos arrombar, disse Nélio. Explicarei mais tarde.
- Como a casa não é nossa, não podemos fazer barulho, disse Júlio. Mas não podemos ficar sem fazer barulho. Como comemorar um aniversário sem fazer barulho?
- Não abriremos as janelas, disse Nélio. E não vamos quebrar nada.
- Não poderemos acender as luzes, disse Pecado. Ficaremos no escuro em uma casa estranha? Muita coisa vai ser quebrada, querendo ou não.
- O dinamarquês sempre deixa as luzes acesas quando viaja, disse Nélio. Para que nenhum ladrão arrombe a casa.
Ele respondeu a todas objeções e depois explicou como fariam para entrar na casa.
- Mandioca é quem entre nós pode fazer duas coisas melhor que os outros. Em parte porque parece ser o mais miserável e o mais faminto de todos. Em parte porque ele pode ficar calado e sem se mover por muito tempo. Por isso Mandioca irá até a porta e tocará a campainha. O cooperante abrirá. Então você cambaleará e cairá desmaiado dentro da casa. O cooperante ficará muito nervoso, irá buscar água para lhe dar. Depois de alguns minutos, você se sentirá melhor e pedirá para usar o banheiro. Quando estiver sozinho lá dentro você vai destrancar a janela de modo que ninguém note. Depois agradecerá por tudo que o cooperante fez. Ele irá também com certeza lhe dar dinheiro, já que você está com tanta fome. Então você voltará para cá.
- Se tenho que parecer estar com fome então tenho que estar cheio, disse Mandioca. Se eu estiver com fome e precisar parecer que estou com fome, ficará parecendo que estou apenas com raiva.
Nélio apontou para a caixa de tomates.
- O resto dos tomates é para Mandioca, disse. Você só tem que pensar em uma coisa quando estiver dentro da casa. Se precisar fazer xixi quando estiver dentro do banheiro, então você terá que fazer xixi no banco que tem uma tampa. Você não fará xixi na pia onde está a torneira da água. Entendeu?
- Não vou fazer xixi, disse Mandioca. Que pia?
- Você verá quando estiver lá, disse Nélio. Agora vamos esperar aqui até o cooperante chegar em casa.
- O que acontece se ele não viajar amanhã? disse Júlio.
- Todos os cooperantes ficam na praia até ficarem vermelhos no sábado e domingo, disse Mandioca. Nélio está certo.
- Eu nunca comemorei meu aniversário, disse Alfredo Bomba. Como é que se faz?
- As pessoas comem, dançam e cantam, disse Nélio. E é exatamente o que também faremos. Vamos nos lavar e dormir em camas e ter um telhado sobre nossas cabeças. Podemos olhar imagens na televisão dele.
- Talvez ele não tenha televisão.
- Todos os cooperantes têm televisão, disse Nélio. Eles têm cabelos louros e têm televisão. É importante que vocês aprendam isso de uma vez por todas.
Mandioca desmaiou na porta da casa do dinamarquês, destrancou a janela do banheiro e ganhou vinte mil quando recuperou-se e deixou a casa. No dia seguinte, estavam na rua e acenaram adeus para o homem de cabelos claros quando ele partiu com seu carro. No final da tarde Júlio conseguiu uma garrafa meio cheia de vinho. Às oito da noite, o
guarda-noturno adormeceu e eles entraram no jardim pelos fundos da casa. Subindo nos ombros de Mandioca, Tristeza alcançou a janela e enfiou-se lá dentro. Em seguida, abriu a porta como Nélio o instruíra. Se esconderam nas sombras e esperaram que um par de policiais passasse pela rua. Depois saíram apressadamente das sombras e desapareceram pela porta. Nélio disse para ficarem quietos e não se moverem até que ele terminasse de ver se todas as cortinas estavam cerradas. Depois reuniu-os à sua volta no vestíbulo.
- Agora todo mundo vai tomar banho. É especialmente importante que nossos pés estejam limpos.
Como ele não acreditava na boa vontade que tinham de ficarem limpos, trancou todos dentro do banheiro e disse que poderiam sair, um a um, quando ele mesmo tivesse examinado se estavam limpos o suficiente. Depois andou pela casa, abriu as duas geladeiras, decidiu onde iriam dormir, ligou a televisão e, por último, guardou alguns vasos de porcelana que poderiam facilmente cair no chão e quebrar.
Júlio teve que lavar seus pés duas vezes antes que Nélio ficasse satisfeito. Logo depois reuniu-os na cozinha.
- Os cooperantes sempre têm muita comida na geladeira, disse. Tenho certeza de que o homem que mora aqui ficaria contente se festejássemos o aniversário de Alfredo Bomba com uma boa refeição. Agora vamos fazer comida.
Nélio começou a trabalhar como se estivesse planejando uma campanha. Mandioca preparou as verduras, enquanto Júlio e Pecado cozinharam o arroz. Alfredo Bomba e Tristeza ajudaram os outros, enquanto Nélio cortava um pedaço de carne em pedacinhos e os fritava. Quando a comida ficou pronta, sentaram-se na grande mesa; tinham encontrado suco na despensa e olharam para Nélio para ver se podiam começar a comer.
- Hoje talvez seja mesmo o aniversário de Alfredo Bomba, ele disse. Pelo menos foi o que ele sonhou. Agora podemos comer.
Muitas vezes durante a refeição Nélio teve que interferir quando parecia que iam brigar por causa dos pedaços de carne. Quando Júlio começou a fazer muito barulho, sem que ele mesmo aparentemente se desse conta, Nélio cheirou seu copo e viu que ele havia misturado suco com bebida alcoólica. Sem que Júlio notasse, trocou rapidamente o copo com o seu e depois despejou-o na pia. Depois, quando acharam dois pacotes de sorvete no grande congelador, começaram a dançar com a música de um rádio que Nélio trouxera da sala grande. Pensou que seria melhor se continuassem na cozinha. Lá não havia nenhum tapete para sujar e o assoalho era de cerâmica que poderia ser facilmente lavada. No começo sentou-se de lado e observou a dança. Em algum lugar em sua cabeça, pensou escutar os sons de uma timbila (instrumento tradicional africano de percussão) e dos tambores da aldeia que os bandidos queimaram. De repente, todos se encontravam ao seu redor na cozinha do dinamarquês, os espíritos que o procuravam, todos os mortos e todos os que talvez só estivessem perdidos e que ainda viviam. Ele percebeu que estava a caminho de sentir-se tão triste que estragaria a festa de Alfredo Bomba com sua cara de melancolia. Levantou-se de sua cadeira e misturou-se à dança. Dançou como se estivesse em um nevoeiro,
até o suor correr por sua testa. Continuaram a dançar até tarde da noite, dançaram até não terem mais passos nos pés ou quadris.
Alfredo Bomba já tinha adormecido debaixo da grande mesa. Nélio mostrou onde dormiriam, alguns na cama do dinamarquês, outros nos sofás. Quando a casa estava em silêncio, Nélio foi até a cozinha e a limpou. De madrugada, ninguém, a não ser que abrisse a geladeira ou o congelador, poderia dizer que alguém estivera ali. Nélio andou pelos quartos silenciosos e viu o grupo que dormia.
Repentinamente teve a impressão de que andava em vários tempos e mundos ao mesmo tempo. Era como se tivesse recordações do pequeno bosque perto da aldeia onde havia crescido e que os bandidos chegaram para queimar. Eles nunca queimavam as árvores. A mata crescia há centenas de anos. Todas as vezes em que uma criança nascia uma árvore era plantada. Podíamos ver pela árvore a idade de uma pessoa. As mais altas e com os troncos mais grossos, aquelas que davam as maiores sombras, pertenciam
às pessoas que já haviam retornado ao mundo dos espíritos. Mas as árvores dos vivos e dos mortos ficavam no mesmo bosque, procuravam sua nutrição na mesma terra e da mesma chuva. As árvores que ainda não tinham sido plantadas estavam lá e esperavam por crianças que ainda não haviam nascido. Assim cresceria a floresta e a idade da aldeia estaria sempre lá. Ninguém podia ver por uma árvore a morte de uma pessoa, somente seu nascimento.
Ele olhou para os que dormiam e pensou que andava em um mundo que talvez ainda não existisse. No futuro dormiriam em camas, em sofás e sonhariam os sonhos que somente as pessoas bem alimentadas sonham. O futuro talvez parecesse com a casa do dinamarquês.
Foi um momento quando pensou ver algo que os velhos diziam ser o maior milagre que uma pessoa poderia presenciar. Ver o passado e o futuro no mesmo instante. Sabia que nunca esqueceria a noite que passaram na casa do dinamarquês. Alfredo Bomba lembraria de seu aniversário e Nélio, da sensação de flutuar livre através do tempo.
Podemos voar sem asas visíveis, pensou Nélio. As asas existem dentro de nós, se tivermos a sorte de encontrá-las.
O primeiro a acordar foi Tristeza.
- No que devo pensar hoje? perguntou.
- Pense em como se sente tendo os pés limpos, respondeu Nélio.
Acordaram e esfregaram o sono dos olhos. Primeiro olharam a sua volta com surpresa, depois se lembraram de onde estavam. Ainda era bem cedo. Nélio pôde ver, olhando pelas cortinas, que o vigia ainda dormia.
- Está na hora de ir embora, disse. Da mesma maneira que entramos.
- Como é que você sabia que tinha tanta comida no armário que é frio? perguntou de repente Júlio.
- Um homem que vem para casa todos os dias com grandes cestas cheias de comida não poderia comer tudo sozinho de uma vez. Uma pergunta a que você mesmo poderia ter respondido sem a minha ajuda.
Deixaram a casa do dinamarquês, assim como entraram, sem ser notados.
- O que ele dirá, perguntou Alfredo Bomba preocupado, quando descobrir que toda a comida desapareceu?
- Não sei, disse Nélio. Talvez o que os outros brancos que vivem em nosso mundo dizem. Que a África e os negros são incompreensíveis.
- E somos? perguntou Alfredo Bomba. Nós somos incompreensíveis?
- Não nós. Mas o mundo em que vivemos pode ser às vezes difícil de entender.
Saíram para a rua e sabiam que partilhavam um grande segredo. Nélio pôde ver que começaram a olhar nas latas de lixo e a pedir para vigiar carros com maior energia do que usualmente tinham tão cedo.
Pensou que tinha feito uma coisa boa. Por isso nunca mais fariam a mesma coisa.
Naquela manhã Nélio estava muito cansado. Disse que iria sentar-se
à sombra de sua árvore e que não queria ser incomodado. Eles também deveriam tentar não brigar ou fazer muita bagunça perto dele.
Mas quando chegou a sua árvore, assustou-se. Alguém estava sentado lá. Alguém que nunca vira antes. Ele ficou irritado diante do fato de seu lugar na árvore não estar sendo respeitado. Ninguém a não ser ele tinha permissão de se sentar ali.
Foi até a árvore e então descobriu que era uma menina que estava sentada lá. Ela era toda branca, albina, como Yabu Bata.
Esperei por uma continuação que não veio. Nélio interrompeu sua história e mergulhou em seus pensamentos. Em seguida me olhou.
- Eu me lembro de ter pensado que isso devia significar algo importante, disse, e agora sua voz estava fraca, e pensei na ferida que enegrecia e fedia debaixo do curativo.
- Pensei que isso significava algo importante, ele continuou. Primeiro Yabu Bata havia me mostrado o caminho para a cidade. E agora, uma menina de roupas rasgadas estava sentada na sombra debaixo de minha árvore. Pensei que isso tinha que ter significado. E realmente teve.
Pensei novamente em minha mulher. A nova ajudante que ninguém acompanhou até sua casa durante a noite. Eu já estava excitado com o fato de que iria encontrá-la novamente na noite seguinte.
- Eu vejo que você pensa em algo que lhe faz feliz, disse Nélio. Se não estivesse tão cansado eu pediria para você me contar.
- Você deve descansar, eu disse. Depois vou levá-lo para o hospital.
Mas Nélio não respondeu. Ele já fechara os olhos.
Levantei para deixar o telhado.
A sexta noite terminara.
A SÉTIMA NOITE
Podemos ouvir pelos passos de uma pessoa que ela está apaixonada? Se for assim, o que acredito que seja, então Maria deve ter entendido que meu coração era dela quando entrei na padaria na segunda noite em que juntos assaríamos o pão de Dona Esmeralda. Estava muito quente e ela usava um vestido de pano fino, através do qual os contornos do seu corpo ficaram bem visíveis. Ela já havia começado a trabalhar quando desci do telhado e sorriu quando me viu.
Agora, mais de um ano depois, penso que se tudo tivesse sido diferente, se Nélio não tivesse morrido e eu deixado meu trabalho com Dona Esmeralda para em seguida ressurgir como o cronista do vento, talvez Maria e eu tivéssemos nos tornado um casal. Mas isso nunca aconteceu e hoje já não é possível, pois ela agora está com outro. Eu a vi na cidade, e na ocasião um homem estava bem do seu lado, acho que ele vende pássaros em um dos mercados da cidade, e a barriga dela estava bem grande. Embora nosso tempo juntos tenha sido curto e embora nunca chegasse a saber se meus sentimentos por Maria eram correspondidos, eu a guardo na memória como uma das grandes alegrias de minha vida. Uma alegria que também traz dentro de si a semente da maior tristeza.
Foi como se algo culminasse em minha vida durante os dias em que Nélio ficou no telhado e foi consumido pela ferida negra que o envenenou e que no final lhe tirou a vida. Acredito que seja assim que devemos dizer, que a vida lhe foi tirada. A morte sempre chega sem ser convidada, importunando e causando desordem. No caso de Nélio, porém, a morte chegou carregando um pé-de-cabra e arrombou seu corpo e roubou seu espírito.
Depois, quando tirei meu chapéu branco, pendurei meu avental e deixei a padaria de Dona Esmeralda, uma outra vida começou. Para essa vida não poderia levar Maria, mesmo se quisesse. Como poderia ter pedido a ela
que me seguisse no mundo como esposa de um homem que voluntariamente escolhera ser um mendigo? Como faria para que ela entendesse que isso para mim era uma necessidade?
Mas tenho visto Maria pelas ruas da cidade. E ela continua muito bonita. E jamais a esquecerei. Quando um dia ficar sabendo que minha hora chegou, quando os espíritos chamarem por mim, fecharei meus olhos e a verei e juntamente com sua imagem deixarei esta terra.
Acredito que isso fará a morte mais fácil. Pelo menos é o que espero. Como sou uma pessoa simples e comum, sinto medo do desconhecido como todos os outros. No entanto, meu medo não é pelo fato da vida ser curta. O calafrio e a escuridão que se apoderam de mim me dizem que ficarei morto por um tempo colossal. Espero que meu espírito crie asas. Não posso me sentar imóvel à sombra de uma árvore durante todo o tempo que passar na desconhecida paisagem da eternidade.
Acredito que uma pessoa possa ouvir nos passos de outra que ela está apaixonada. Os pés mal tocam a superfície da terra, todos os medos são vencidos e o tempo é como a névoa, bem cedo em uma madrugada.
Maria foi a melhor ajudante que tive. Perguntei a ela onde havia trabalhado antes e como Dona Esmeralda a encontrara. Mas ela apenas sorria e jamais recebi resposta alguma.
Vê-la trabalhar era como ver alguém cantar.
Quando vemos alguém trabalhar como ela começamos também a cantar.
Acredito que tenha feito o melhor pão da minha vida durante aquelas noites, quando Maria misturava a massa e eu a seguia até a rua logo depois da meia-noite e a via desaparecer na escuridão. Já ficava ansiando pela noite seguinte, quando ela retornaria. De uma maneira infantil, e talvez até imatura, me preocupava achando que ela desapareceria na escuridão para nunca mais voltar. Mas ela retornava, e seus vestidos eram sempre leves e ela me dava seu lindo sorriso quando eu descia do telhado.
Gostaria de ter podido lhe contar sobre Nélio. Pensei que ela poderia trocar o curativo dele melhor que eu e que talvez conseguisse convencê-lo de que agora era a hora de se deixar levar do telhado para o hospital se quisesse continuar vivendo.
Nunca lhe disse nada, porém. Também nunca mencionei seu nome para Nélio.
Lá em cima, debaixo das estrelas, só existia ele e eu.
Quando retornei ao telhado depois que coloquei os primeiros tabuleiros no forno quente, tive a impressão de que ele esperava por
mim. Será que havia melhorado? A ferida estava ainda mais escura e segurei a respiração ao trocar o curativo, pois o fedor incomodava. Mas poderia um processo de cura, que me era invisível, ocorrer? Senti sua testa e recebi a deprimente resposta. Estava quente novamente. Misturei as ervas da senhora Muwulene com água e ele bebeu, mas com grande esforço. De repente, percebi que ele nunca havia perguntado que tipo de ervas eu estava lhe dando. Desde o instante em que o trouxera para o telhado, ele jamais questionou minha habilidade de tomar conta dele.
Ou será que desde o começo, quando foi atingido pelo tiro, sabia que estava além de receber ajuda?
Queria não estar sozinho com essa responsabilidade. Era grande demais para que a carregasse sozinho. Mas não havia ninguém com quem dividi-la. Agora simplesmente era tarde demais.
Ajudei-o a vestir a camisa limpa depois de colocar um curativo novo. Como estava muito quente, tirei seu cobertor e o utilizei como um travesseiro a mais sob sua cabeça. Ele estava muito cansado, mas seus olhos pareciam estranhamente límpidos. Novamente tive a impressão de que ele podia ver através de mim.
Naquele instante, quando olhou para mim, era o menino de dez anos que estava lá, com duas balas em seu corpo. Mas quando a febre retornou, transformou-se de novo em um homem muito velho. Pensei que não só sua consciência era capaz de vagar sem obstáculos entre o passado e o futuro, entre o mundo dos espíritos e o mundo em que junto vivíamos. Também seu corpo podia transformar sua idade, o menino que era e o homem velho que nunca chegaria a ser, já que estava morrendo.
- Os espíritos de nossos antepassados têm rosto? perguntei, de repente. Não sei de onde veio essa pergunta. Foi como se só soubesse o que dissera depois de ter dito.
- As pessoas têm rostos, respondeu Nélio. Os espíritos não têm nenhum rosto. Mesmo assim os reconhecemos. Sabemos quem é quem. Os espíritos também não possuem olhos ou bocas ou orelhas. Mesmo assim podem ver, falar e escutar.
- Como é que você sabe? perguntei.
- Os espíritos estão aqui à nossa volta, ele respondeu. Eles estão aqui. No entanto, não podemos vê-los. O importante é saber que eles, sim, podem nos ver.
Não perguntei mais nada. Não tinha certeza se realmente compreendera o que ele quis dizer. Mas não queria cansá-lo desnecessariamente.
Aquela noite ele contou sobre a chegada da albina.
Ela que apareceu na manhã depois de terem celebrado o aniversário de Alfredo Bomba na casa do dinamarquês. Suas roupas estavam rasgadas, o rosto cheio de marcas de queimaduras, conseqüência do sol forte, e era albina. Escutou Nélio se aproximando e se virou precipitadamente em sua direção.
O que você faz aqui no meu lugar debaixo da árvore? Nélio perguntou.
- Uma sombra não é uma casa que pode ter um dono, a albina respondeu. Pretendo continuar sentada aqui.
Durante todo seu tempo de rua Nélio nunca fora desafiado como agora pela albina. Ao mesmo tempo teve a impressão de que ela era insegura e talvez dócil também. Ele ficou de cócoras perto dela e começou a conversar.
- Como é que você se chama?
- Deolinda.
- De onde você vem?
- Do mesmo lugar que você. De lugar nenhum.
- O que você faz aqui?
- Eu quero ficar aqui.
Foram interrompidos por Júlio que, da carroceria de um caminhão enferrujado que vigiava para o dono, viu a menina debaixo da árvore. Com um grito terrível, veio correndo.
- O que faz uma albina aqui? Você não sabe que albino significa má sorte?
- Não significo má sorte, respondeu a menina e levantou-se.
- Você vai sumir daqui, gritou Júlio e avançou contra ela de punhos cerrados. Nélio não teve tempo de interferir. Mas nem precisaria. A albina reagiu com muita rapidez e jogou Júlio no chão. Ali ele ficou deitado, observando atônito Deolinda se inclinar sobre ele.
- Não significo nenhuma má sorte, disse a menina. Posso bater em qualquer um. Eu quero ficar aqui.
- Não queremos nenhum albino aqui, disse Júlio e levantou-se.
- Ela se chama Deolinda, disse Nélio. Volte para o caminhão. Ela foi mais forte que você.
Júlio saiu dali. Nélio viu quando reuniu os outros do grupo na carroceria do caminhão. Nenhum deles iria querer ter uma albina no grupo. Ele também pensava que seria melhor se ela desaparecesse. O grupo não poderia ficar muito grande. Pois então ele teria menos controle e, por sua vez, o grupo teria menos controle sobre si.
- Você se sentou no meu lugar, ele disse. Isso é proibido. Saia daqui! Não podemos ter uma menina entre nós. Você não sabe fazer nada que não sabemos.
- Eu posso ler, disse Deolinda. Eu posso fazer muitas coisas.
Nélio estava certo que ela mentia.
O maior problema era, no entanto, completamente outro. Ela era uma menina. Poucas meninas viviam na rua. Na maioria das vezes, eram ainda mais maltratadas que os meninos.
Ele achou que precisava ficar sozinho para pensar.
- Vá embora, ele disse. Mostre o que pode fazer. Arrume dois frangos assados. Depois decidirei.
Deolinda se foi. Ela levava uma pequena bolsa de ráfia em um ombro. O vestido estava rasgado, mas ela se movia como se a qualquer momento pudesse começar a dançar. Nélio sentou-se em seu lugar na sombra da árvore. O que Cosmos faria? pensou. Tentou ver Cosmos à sua frente, a bordo do navio, muito distante, muito perto do sol. Tentou escutar sua voz.
"Você é louco se deixá-la entrar no grupo", pensou ter ouvido a voz de Cosmos.
"Ela pode ler", objetou Nélio. "Nunca ouvi falar de um menino de rua que soubesse ler. Muito menos uma menina."
"Você viu os olhos dela", disse Cosmos, e Nélio achou que sua voz parecia irritada. "Você viu que são vermelhos e inflamados? Só temos olhos assim se lemos. Em seguida ficaremos cegos."
"Todos os albinos possuem olhos vermelhos", disse Nélio. "Mesmo os que não sabem ler."
Ele escutou como Cosmos suspirara.
"Então deixe-a ficar", disse Cosmos. "Mas mande-a embora assim que houver problemas."
Nélio assentiu. Ele deixaria que ela ficasse. Mas só se ela voltasse com dois frangos assados.
A noite chegou sem que ela retornasse. Nélio pensou Que ela compreendera que não poderia ficar e por isso não tentara conseguir os frangos e retornar. Júlio estava muito satisfeito e disse que, se a encontrasse novamente nas ruas, bateria nela até matar. Quando Mandioca lembrou que Júlio havia sido derrubado por uma albina, deu início a uma violenta briga que Nélio teve grande dificuldade para apartar. Começara com Júlio jogando-se sobre Mandioca. Quando Alfredo Bomba interferiu, porém, a raiva dos dois se transferiu contra ele. Nélio sabia que uma
briga de meninos de rua tinha suas próprias leis e podia tomar um rumo inesperado.
- Ela foi embora, ele disse quando a briga terminou. Talvez volte, talvez não. Até então podemos esquecer que ela existe.
Começaram a se organizar para a noite.
- Em que penso agora? perguntou Tristeza.
- Pense na noite na casa do dinamarquês, respondeu Nélio.
- Parei de pensar em meu banco, disse Tristeza orgulhoso.
- Uma vez por semana você poderá pensar nele, disse Nélio. Mas nunca na hora do nosso descanso.
Na manhã do dia seguinte Deolinda estava de volta. Nélio viu que ela estava novamente sentada debaixo de sua árvore. Quando foi até lá, ela tirou de sua bolsa dois frangos assados.
- Onde foi que os conseguiu? perguntou Nélio.
- Um embaixador deu um grande jantar no seu jardim. Pulei a cerca e fui até a cozinha quando ninguém me via.
Nélio não sabia o que era um embaixador. Porém, não queria demonstrar para Deolinda que não sabia. Ele provou um dos frangos.
- Tem pouca pimenta, disse.
Deolinda abriu sua bolsa e tirou um pequeno vidro.
- Pimenta, disse.
O grupo se aproximou com cuidado. Nélio repartiu os dois frangos entre eles. No começo, Júlio se recusou a aceitar sua parte, mas finalmente a puxou com um safanão e sentou-se um pouco afastado. Daquele instante em diante, Deolinda se tornou um deles. Nélio se lembrou das palavras que Cosmos dissera, a quem ele pertencia, e que daquele instante em diante ela seria um deles. Agora haviam aceitado Deolinda, e Nélio sabia que o grupo estava completo. Nunca mais aceitariam um novo membro sem que primeiro um deles houvesse desaparecido.
Quando o frango acabou, ele disse para Júlio sentar-se mais perto.
- De agora em diante, Deolinda ficará conosco. Isso quer dizer que ninguém poderá bater nela sem primeiro pedir minha permissão. Como ela é nova por aqui receberá somente meio quinhão do nosso dinheiro. Quando acharmos que merece, então receberá tanto quanto o resto de nós. Ninguém tampouco poderá chamá-la de albina se ela não quiser. Por outro lado, Deolinda não poderá se aproveitar do fato de ser menina. Ela será exatamente como todos nós.
Nélio pensou se havia esquecido de algo. Depois de hesitar um pouco, complementou.
- Se Deolinda quiser ficar a sós para fazer xixi, tem a permissão. Além disso, ela terá seu próprio cobertor quando fizer frio de noite. Mas o cobertor ela mesmo tem que arrumar.
Nélio olhou à sua volta, se alguém gostaria de falar.
- O que faremos com ela? disse Júlio. Ela não é nem negra nem branca e traz má sorte.
Para a surpresa de todos foi Tristeza que respondeu à questão de Júlio.
- Talvez isso seja bom. Quando ela estiver conosco, é albina. Quando estiver com os brancos, é branca. Ela pode ser os dois, nós e eles.
- Uma boa resposta, disse Nélio. Logo você merecerá seu tênis.
Não demorou muito para que Nélio compreendesse que havia acertado ao deixar Deolinda fazer parte do grupo. Ela sabia mendigar, sabia ver as possibilidades nas diversas situações que inesperadamente ocorriam nas ruas. Além disso, sabia brigar e podia se defender. Logo ninguém se atrevia a mexer com ela sem correr o risco dela provar ser mais forte. Apenas Júlio continuava demonstrando abertamente sua insatisfação com a presença dela. Nélio começou a suspeitar que um dia Júlio talvez deixasse o grupo por outro grupo de meninos. Chamou Júlio para os fundos do posto de gasolina e sem rodeios perguntou se ele estava se preparando para ir embora.
- Não, disse Júlio.
Nélio viu que ele mentia. Mas entendeu que não existia nada que pudesse fazer se Júlio decidisse deixá-los.
Demorou muito tempo antes que Nélio começasse a entender o que forçara Deolinda a ir para as ruas. Quando perguntava, ela respondia com raiva que isso não era da conta de ninguém. Foi só quando abriu sua bolsa de ráfia, enquanto ela dormia, e viu a fotografia de um homem e de uma mulher, que começou a entender o que ocorrera. O rosto do homem fora apagado. As feições tinham sido raspadas com unha ou uma pedra. Nélio colocou a fotografia de volta e se envergonhou de ter aberto a bolsa.
Nunca devíamos forçar alguém a contar um segredo; não tínhamos nenhum direito de roubar fatos para saciar nossa curiosidade.
Nélio se lembrou do que sua mãe uma vez dissera: uma pessoa não tem
o direito de arrombar, como um ladrão na noite, o coração de uma outra pessoa.
Nélio logo notou que Deolinda e Mandioca ficaram amigos. Muitas vezes ficavam de cócoras nas ruas, cochichavam um com o outro e começavam a dar risada. Se Júlio estivesse por perto chutava as folhas com raiva ao redor deles sem ter coragem de interrompê-los. Mas ela não parecia notar seu comportamento.
Uma noite, quando Nélio estava a caminho de sua casa na estátua, notou que Deolinda o seguia. Seu primeiro pensamento foi parar e dizer para ela retornar para junto dos outros. Depois, viu que agora existia a possibilidade de ficar sabendo o que a forçara a ir para as ruas. Quando chegaram à pequena praça, agora deserta, a não ser pelos guardas-noturnos adormecidos e o homem que vendia pernas de frangos na sua lata de carvão aceso, sentou-se no pedestal da estátua. Deolinda ficou na esquina e tentou se esconder nas sombras. Mas ele a chamou, dizendo que a tinha visto. Ele achou que ela ficaria envergonhada por ter sido descoberta.
- Quem disse que você poderia me seguir? disse Nélio.
- Eu queria ver onde você mora, ela respondeu, e o fitou nos olhos.
- Você poderá me seguir a vida inteira. Mesmo assim nunca ficará sabendo onde moro.
- Por que não?
- Porque posso desaparecer de repente.
- Isso eu queria ver.
Nélio concordou.
- Se conseguir desaparecer sem que você consiga notar, o que você me dará em troca?
- Não quero fazer xogo-xogo (relação sexual).
Nélio ficou envergonhado. Ele sabia o que xogo-xogo era. Mas nunca tinha feito. Ele sabia que ainda não era adulto o suficiente para querer fazer isso.
- Eu só quero saber de onde você é. Nada mais.
- Por que você quer saber isso?
- Você não pode continuar no grupo se eu não souber de onde você é. O que fazia no dia anterior ao que se sentou em meu lugar na sombra da árvore? Por que se sentou lá? Eu tenho muitas perguntas.
Ele viu que ela pensava. Depois concordou.
- Você não pode desaparecer sem que eu note. Por isso eu responderei às suas perguntas.
- Fique de costas e feche os olhos. Tampe os ouvidos. Conte até dez. Você sabe contar?
- Sei fazer tudo. Eu posso contar e ler e escrever.
- Como foi que aprendeu?
Ela não respondeu.
- Fique de costas, disse ele. Feche os olhos e conte alto até dez. Tampe os ouvidos ao mesmo tempo com suas mãos. Se você olhar, ficará cega.
Nélio notou que ela recuara. Percebeu que até ela havia escutado falar de seus poderes sobrenaturais.
Ela virou de costas, fechou os olhos e começou a contar. Nélio abriu a portinhola com rapidez e se arrastou para dentro do cavalo. Através de um buraco no cavaleiro ele podia vê-la. Ela terminou de contar e se virou. A praça estava deserta, não havia nenhum lugar onde ele pudesse ter se escondido, e não teria tido tempo de correr até a esquina e desaparecer.
Nélio tentou interpretar os pensamentos de Deolinda através do seu rosto. Percebeu que ela estava diante de algo que não esperava.
Em seguida, ela foi embora. Nélio esperou até ter certeza de que
ela deixara a praça. Então saiu novamente pela portinhola e correu pelas ruas desertas, percorrendo o caminho mais curto que conhecia, até chegar ao prédio do Departamento de Justiça, onde o resto do grupo já estava deitado e dormindo. Ele sentou-se debaixo de sua árvore e esperou. Quando a viu chegar, levantou-se e foi ao seu encontro. Ela se assustou quando o viu.
- Desapareci e agora reapareci, disse ele.
Esticou sua mão para ela.
- Pegue na minha mão. Está quente. Não é nenhuma sombra ou fantasma que está aqui.
Com as pontas dos seus dedos ela tocou com cuidado a mão dele.
- As pessoas dormem muito, disse Nélio. Vamos usar a noite para conversar.
Ele a levou até o Jardim Botânico que ficava na ladeira do hospital. O portão estava trancado com uma grossa corrente e cadeado. Mas Nélio sabia onde havia um buraco na cerca. Por ali entraram e ele a levou para um banco que ainda não estava quebrado. Exatamente ao lado do Jardim Botânico ficava um hotel, e sua placa iluminava o lugar onde o banco estava localizado.
O rosto dela estava muito branco.
Nélio olhou para suas roupas rasgadas e pensou que logo deveriam juntar dinheiro para que ela pudesse comprar roupas novas.
Não precisou fazer perguntas. Ela mesma começou a falar de sua vida e ele percebeu que, para ela, isso era um alívio, e escutou com atenção o que ela tinha a dizer.
Ela nascera em um dos subúrbios mais pobres da cidade, uma área de barracos que cercava o depósito de lixo da cidade. Nasceu e era albina. Seu pai se recusou a vê-la, acusando a mãe de ter concebido o bebê com um homem morto com quem se encontrava durante as noites em segredo no cemitério. Ele então expulsou sua mãe de casa. Por sua mãe, ela ficaria sabendo depois, essa foi uma época de grande desespero. Mas a mãe jamais a matara, jamais a sufocara ou a enterrara no meio do lixo para poder
voltar para seu marido.
Ela partiu com sua filha para uma aldeia que ficava a muitos dias de caminhada. Ali tinha uma irmã com. quem poderia morar. Seus outros filhos ficaram com o pai e ela sentia tanto a falta deles que durante muito tempo quase morreu. Um dia, depois de muitos meses, chegou uma mensagem do homem, dizendo que ela jamais precisaria retornar, ele havia arrumado uma nova mulher que nunca lhe daria um albino como filho. As crianças ficariam com ele e ele amaldiçoava a desonra que ela lhe causara
sendo infiel com um fantasma no cemitério.
- Nasci com um fantasma como pai, disse Deolinda, e era como se ela cuspisse enquanto falava. Hoje, que cresci e sei das coisas, vejo que isso não é verdade. Mas meu pai é mesmo um fantasma, embora ainda esteja vivo.
- Quantos anos você tem? Nélio perguntou.
Ela deu de ombros.
- Onze anos. Ou quinze. Ou noventa.
- Acho que você tem doze, disse Nélio.
- Se eu tiver doze vou continuar tendo doze pelo resto da minha vida, disse. Por que é que temos de trocar nossa idade por outra?
- Já pensei a mesma coisa, disse Nélio. Penso que vou continuar tendo dez anos até que um dia me canse. Aí então passarei a ter noventa e três.
Os sapos cantavam no reservatório do Jardim Botânico. Deolinda tirou algumas bananas meio podres de dentro da sua bolsa de ráfia e as repartiram.
Quando aprendeu a andar e já vivera por quatro estações de chuva, ela compreendeu com seriedade que era diferente. No entanto aí, então, quando precisaria de sua mãe mais do que de qualquer outra coisa, a mãe enlouquecera de tal maneira que nem um famoso curandeiro que mandaram buscar em outra aldeia pôde curá-la. Ela parou completamente de comer, não quis mais trançar seus cabelos e começou a andar pela aldeia sem roupas. Finalmente, a irmã teve que trancá-la em um barracão e fechar
a porta com pregos. Através das ripas da parede lhe davam água. Foi ali dentro também que ela morreu uma noite depois de ter furado os olhos com a farpa afiada de um pedaço de bambu que dava suporte ao telhado. A última coisa que Deolinda se lembrava da mãe era de suas mãos esticadas para fora das ripas da parede do barracão. Era tudo que parecia restar dela. Duas mãos vazias que nervosamente se esfregavam uma na outra.
Mais tarde, quando a mãe morreu, a irmã mudou. Acusava Deolinda pela morte da irmã. Deolinda apanhava com freqüência e às vezes não tinha o que comer. Ela tentou entender o porquê dessa mudança mas ninguém pôde lhe responder. Por isso ela também começou a acreditar que era culpada de todas as acusações que lhe faziam, que havia sido escolhida para pagar todos os crimes que seus ancestrais haviam cometido. Compreendeu que não poderia continuar na aldeia e o único em que pensou que poderia ajudá-la era seu pai. Ela deixou a aldeia uma noite quando todos dormiam e jamais retornou.
Quando chegou à cidade e procurou a casa do pai, que ficava nas proximidades do fedido depósito de lixo, ele correu atrás dela com um pedaço de pau e lhe disse para nunca mais voltar. Depois, só lhe restaram as ruas da cidade. Muitas vezes as freiras a levavam para um orfanato. Mas ela nunca ficou mais do que alguns dias. Nas ruas da cidade existiam outros tão brancos quanto ela. Uma parte deles possuía até carros, tinha trabalho e morava em casas adequadas. Ela descobriu que eles também
tinham filhos negros. Nas ruas da cidade ela não era a única diferente.
- Viverei até poder ter filhos, ela disse. Terei mil filhos e eles serão todos negros. Depois, quando não puder mais ter filhos, matarei meu pai.
- Essa não é uma boa idéia, disse Nélio pensativo. Se você tiver mesmo de matá-lo, então é melhor que peça a outra pessoa. Não acho que seja bom ir para a prisão.
- Quero que você me ensine a desaparecer, disse Deolinda.
- Não posso fazer isso, ele disse. Eu mesmo não sei como faço. Em vez disso, responda por que você quis ficar conosco.
Ela ficou calada por muito tempo. Nélio podia ver que hesitava. Ele fechou os olhos para dormir um instante no banco enquanto esperava.
Acordou com um pulo quando ela lhe tocou no ombro.
- Você dorme, ela disse.
- Não gosto de esperar por coisa alguma, disse Nélio. Em vez de esperar faço outra coisa. No momento essa coisa é dormir.
- Cosmos é meu irmão.
Ele ficou muito surpreso. Pensou por muito tempo sobre o que ela disse. Podia realmente ser verdade?
- Ele viu quando meu pai correu atrás de mim com um pedaço de pau. Ele ainda vivia em casa. Depois nosso pai começou a bater até nele. Ele veio para a cidade e se tornou o líder dos que dormem nas escadas. Às vezes, nos encontrávamos em segredo. Ele me disse que poderia vir aqui quando ele tivesse saído na sua viagem. Foi ele também que me ensinou a ler, escrever e a contar.
- Mas como ele sabia que eu aceitaria você?
- Ele acreditava que você o faria.
Nélio continuou a pensar nas estranhas notícias que recebera.
- Foi por isso que Cosmos foi embora em sua viagem? perguntou ele depois. Para que você pudesse vir até nós?
- Talvez.
- Cosmos devia estar pendurado na parede de uma igreja, disse Nélio pensativo. Não a sua pessoa, mas sua fotografia. Seu rosto esculpido em madeira. Como um santo.
Deixaram o Jardim Botânico pelo mesmo buraco que entraram.
- Quando eu ficar grande cantarei para o mundo inteiro, disse Deolinda de repente, enquanto andavam pela cidade vazia.
- Você sabe cantar?
- Sim, disse Deolinda. Eu posso cantar e minha voz é muito negra.
- A língua de todas as pessoas é vermelha, disse Nélio. Assim como o sangue. Existem muitas coisas em que podemos pensar. Muitas coisas estranhas.
Deolinda enrolou-se em seu cobertor ao lado de Mandioca. Tristeza e Mandioca estavam deitados um de cada lado de Júlio, que estava dentro da sua caixa de papelão e havia fechado as bordas. Eram como dois vigias, prontos para quando Júlio fosse atacado pelos monstros, sempre esperando de emboscada em seus sonhos. Nélio observou pensativo o grupo de maltrapilhos. Em seguida, foi para seu lar na estátua. Pensou no que Deolinda lhe contara. A caminho de casa passou por um grande hotel onde
pessoas vestidas para uma festa estavam entrando em seus carros. Parou por um instante e observou a riqueza. Depois continuou seu caminho para casa.
Mas quando entrou na estátua e descansou sua cabeça na perna esquerda do cavalo, não conseguiu dormir, embora já fosse tarde da noite. Começou a pensar na vida que tinha vivido, antes dos bandidos chegarem às escondidas na noite e queimarem sua aldeia. Era como se fosse sugado para o passado por um vento invisível. De repente, a barriga do cavalo estava cheia de espíritos que semeavam lembranças sobre ele. Foi dominado por uma grande tristeza, tão grande que quase se tornou pesada demais para seu magro corpo suportar.
“Era de madrugada. A terra seca redemoinhava fora do barraco.
Sua mãe socava milho. E cantava. Ele acordava na esteira dentro do barraco escuro. O cheiro de madeira queimada penetrava pela abertura
do barraco. O cheiro de madeira queimada que todas as manhãs fazia-o lembrar que vivia mais um dia. Quando saiu sob o forte sol podia ver
que tudo era verdade. Sua mãe batia o pesado pilão contra o milho, sua irmã recém-nascida pendurada nas costas dela...”
Ele levantou-se e ficou de pé dentro da barriga do cavalo, sua cabeça dentro do peito do cavaleiro. Era como se o cavalo vivesse. Pensou que muito em breve deveria retornar para casa. Tinha que saber o que havia acontecido, quem ainda vivia e quem não.
Os espíritos que pairavam à sua volta não tinham rosto. O tempo todo ele tinha medo de sentir de repente a presença de seu pai, ou de sua mãe, ou de seus irmãos. Então eles estariam mortos. E ele teria ainda mais dificuldades em viver, viver a vida que vivia agora, que era somente sobrevivência.
Nélio depois lembraria daquela época como uma época em que nunca dançava, nem mesmo sorria. Não podia esconder que estava triste, e
também não via por que tentar. Ficava irritado com freqüência por ser constantemente incomodado, por Júlio que sempre ia de uma briga para outra, por Tristeza que vinha todos os dias perguntar no que deveria pensar e quando poderia comprar seu par de tênis. Nélio irritava-se e
ficava com raiva, e depois ficava ainda mais triste por pensar que havia feito algo que Cosmos nunca faria. Deolinda, que notara que ele queria ser deixado em paz, tentava protegê-lo. Ela afugentava o grupo quando podia e cuidava para que Nélio tivesse algo para comer sem que ele mesmo tivesse que procurar no lixo por sobras de comida.
Nélio pensava em Cosmos com freqüência, enquanto sentava-se à sombra de sua árvore. Queria saber se ele ainda vivia, se havia se afogado no mar, ou se chegara tão perto do sol que pegara fogo e se queimara. Queria saber se Yabu Bata encontrara o caminho que procurava havia mais de dezenove anos.
Quando os pensamentos se tornavam pesados demais, deixava a rua e fazia longas caminhadas sozinho. Os outros, então, enviavam alguém atrás dele, para cuidar que ele não fosse direto para o mar e desaparecesse.
É claro que Nélio notava que alguém sempre o seguia à distância. Normalmente parava, se virava e dizia que queria ser deixado em paz. Nem isso, porém, agora tinha forças para fazer. Caminhava e caminhava, às vezes ia tão longe que chegava ao lugar que sentara na noite anterior
à sua primeira entrada na cidade. Muitas vezes retornava quando a noite já caía.
Foi Mandioca que sugeriu tentarem alegrar Nélio dando-lhe um cachorro. Muitas vezes sentavam-se e conversavam, preocupados, sobre a ausência de Nélio e seu semblante triste.
- Ele pensa demais, disse Júlio. Cosmos nunca pensava assim tantos pensamentos. Ele está doente da cabeça. Ela está inchada de tanto ele caminhar e pensar.
- O que ele precisa é de um cachorro, disse Mandioca. Se temos um cachorro não temos tempo para pensar.
- O que você sabe de cachorros? perguntou Deolinda.
- Eu tive um cachorro uma vez, disse Mandioca triste.
- O que aconteceu com ele? perguntou Deolinda.
- Ele fugiu, respondeu Mandioca. Procuro por ele todos os dias. Talvez ele esteja procurando por mim.
- Deve ter morrido há muito tempo, disse Júlio, com raiva. Cachorros morrem mais rápido do que as pessoas.
Quase houve uma briga entre Mandioca e Júlio. Mas Pecado entrou no meio e disse que deveriam se preocupar com Nélio e não brigar.
Depois de terem falado sobre os prós e os contras da possibilidade de arrumarem um cachorro para Nélio, decidiram que valeria a pena tentar. No dia seguinte capturaram um cachorro marrom perto do cais. Ele mordeu Júlio na mão mas, mesmo assim, conseguiram colocar uma coleira em volta do seu pescoço e o puxaram triunfantes. Nélio estava sentado à sombra de sua árvore quando chegaram com o cachorro.
- Queremos lhe dar um cachorro para que você fique de bom humor, disse Pecado. Ele não tem nome. Ele também precisa ser amansado. Além disso, mordeu Júlio na mão. Mas com certeza poderá ser uma boa companhia.
Nélio olhou para o cachorro que ora latia, ora rosnava. Pensou nos cachorros que os bandidos mataram quando queimaram sua aldeia. Pegou a coleira que Alfredo Bomba segurava.
- Agradeço muito por vocês terem pego um cachorro para mim. Aceito o presente e lhe dou o nome de Rico. Um cachorro de rua é mais pobre do que nós. Mesmo assim posso lhe dar um bom nome. Ficarei com ele até amanhã. Depois o soltarei. Mas ele continuará sendo meu cachorro. Amanhã também estarei de bom humor. Agora vão embora e me deixem em paz.
Durante a noite, o cachorro ficou preso do lado de fora da estátua eqüestre e latiu. De madrugada Nélio o soltou. Ele fugiu imediatamente dali e Nélio nunca mais viu Rico. Durante a noite, quando ficou acordado por causa dos latidos do cachorro, pensou que precisava fazer algo com seu mau humor. Não poderia continuar sendo o líder do grupo se sempre estivesse impaciente e irritado. Também não poderia deixá-los, pois prometera a Cosmos. Não havia nenhum deles que pudesse tomar a liderança.
A única em que poderia pensar era Deolinda. Só que isso nunca funcionaria. Um albino que, além de tudo, era uma menina não poderia liderar um grupo de indomáveis meninos de rua.
No dia seguinte reuniu-os à sua volta, atrás do posto de gasolina.
- Tenho tido muito em que pensar nesses últimos tempos. Mas tem sido difícil, já que vocês estão sempre fazendo bagunça. Mas de hoje em diante tudo será diferente. Já não sentarei com tanta freqüência sozinho na sombra da árvore.
As palavras dele tiveram o efeito que esperava. Podia ver que se sentiram melhor. Para demonstrar que realmente estava de volta ao seu normal, deu ordem para todos trabalharem extra e não dormirem desnecessariamente à tarde. Com o dinheiro que conseguissem, Tristeza poderia entrar em uma loja de sapatos e escolher um par de tênis. Além disso, de agora em diante, Deolinda receberia a mesma quantidade que os outros. E eles comprariam um vestido novo para ela.
- Uma coisa é que nós tenhamos roupas rasgadas, disse Nélio. Mas Deolinda é uma menina. Ela tem de estar adequadamente vestida. Mas você precisa se lavar direito antes de colocar o vestido novo. Você também conservará o velho. Você o usará quando estiver procurando comida no lixo.
Alguns dias mais tarde Tristeza entrou com a cabeça erguida em uma loja de sapatos e quando saiu tinha um par de tênis branco nos pés. Na mesma tarde, Deolinda também comprou um vestido que era vermelho e que tinha barra branca em volta dos braços.
- Eu pensei que pudesse afugentar todos os pensamentos tristes, disse finalmente Nélio, quando a madrugada já estava próxima, na manhã do oitavo dia. Mas eu estava equivocado. Pois alguns dias mais tarde algo aconteceu, que fez Deolinda desaparecer e nunca mais voltar. Além disso, Alfredo Bomba começou a se comportar estranhamente.
Nélio calou-se bruscamente, como se, de repente, tivesse falado demais.
- Alfredo Bomba, eu disse, tentando ajudá-lo a continuar.
Nélio olhou para mim demoradamente antes de responder. Na luz avermelhada da manhã, vi que suava. Estava novamente a caminho de uma recaída febril.
Finalmente, quando já começava achar que ele adormecera, abriu novamente sua boca.
- Alfredo começou a se comportar estranhamente. E tudo o que aconteceu terminou com você me achando e me trazendo aqui para cima do telhado.
Compreendi que estávamos no final da história. Agora eu ficaria sabendo o que ocorrera naquela noite no teatro deserto. Talvez tivesse que esperar mais uma noite antes que soubesse a resposta que queria saber.
Nélio estava deitado com os olhos fechados. Eu colocara um copo de água ao lado do colchão. Me levantei cuidadosamente para descer até o jardim e me lavar. Pensei em lavar também minha roupa, que começava a feder.
Então Nélio falou novamente. Falou sem abrir os olhos.
- Não é fácil morrer, disse. É a única coisa que ninguém pode nos ensinar com antecedência.
Ele não disse mais nada. Quando desci a escada de caracol, eu estava com medo. Já não podia evitar o pensamento, já não podia me enganar com falsas esperanças.
Nélio morreria no telhado. Ele soube disso o tempo todo.
Sentei-me na escuridão da escada e chorei. Não choro com freqüência. Não podia nem me lembrar da última vez que isso tinha acontecido. Sou uma pessoa que ri. Mas, naquela manhã, sentei-me na escada escura e chorei, e pensei que já era tarde para tudo e que um menino de dez anos que é um homem velho é, mesmo assim, apenas uma criança.
Uma criança deveria viver, não morrer.
Peguei dinheiro emprestado de uma das meninas chatas do balcão e depois fui até as barracas da cidade e bebi cachaça. Logo depois, fiquei bêbado e adormeci no chão.
Quando acordei muitas horas depois, alguém roubara meus sapatos e tive que retornar descalço para a padaria.
Eu me lembro de que o dia estava muito quente. O mar estava parado. Me lavei por muito tempo debaixo da bomba de água no quintal.
Quando Maria chegou, caminhando, eu estava na rua e esperava por ela. Não me cansava de seu sorriso. Meus pensamentos, porém, estavam o tempo todo com Nélio, deitado lá em cima. Ninguém o ensinou como se comportar quando estivesse morrendo.
Existe maior solidão? Quando uma pessoa está morrendo, e não há ninguém ao seu redor para lhe ensinar o que fazer?
Pensei naquela grande solidão e o que senti então nunca mais me abandonou.
À meia-noite levei de novo Maria até a rua. Depois de dar alguns passos, ela virou-se e acenou.
Em seguida, retornei ao telhado.
Essa foi a oitava noite.
A OITAVA NOITE
Quando retornei para o telhado e vi Nélio, ele já estava morto.
Fiquei parado imóvel e algo me apertou o coração.
Não lembro mais o que pensei naquele momento.
Acredito, no entanto, que seja assim, quando uma outra pessoa morre, a vida que carregamos dentro de nós se protege, convocando todas suas forças para manter a morte à distância.
Na presença da morte a vida sempre se torna mais nítida.
Só que não consigo lembrar o que pensei.
Então vi que estava errado. Não estava morto, ele ainda vivia. Ou se estivera morto por alguns segundos, então havia retornado à vida quando
o chamei. Eu sussurrei o nome dele, Nélio, e de repente ele se moveu,
um movimento muito fraco e mesmo assim distinto contra o colchão. Me ajoelhei ao seu lado e me inclinei, encostando meu rosto em sua boca, e senti que ele ainda respirava.
Mas ele ainda estava ali ou estava indo embora? Devo ter entrado em pânico, pois comecei a sacudi-lo e chamar seu nome. Se o sono ou o desmaio são as únicas experiências pelas quais passamos que podem nos ensinar o que a morte quer dizer, ele já estava muito longe. Sacudi um corpo que parecia estar morto. Ele pesava tão pouco que foi como sacudir um feixe de penas, ou uma casca vazia, de onde o espírito já partira.
E finalmente ele retornou, ainda que sem querer, para a vida, e abriu os olhos. Estava muito cansado e parecia também estar perdido e confuso. Não estou nem certo de que me reconheceu. Demorou muito tempo para que eu ficasse novamente calmo. Dei a ele água e as ervas da senhora Muwulene para beber.
- Sonhei que tinha morrido, ele disse. Quando quis voltar novamente à superfície, algo segurou minhas pernas. Depois consegui me libertar. Mas fiz isso somente porque ainda não terminei minha história.
Depois troquei seu curativo. Agora todo seu peito estava infeccionado. Faixas escuras se espalhavam em direção à virilha e
aos ombros. O mau cheiro era difícil de suportar. Pensei que isso não fazia sentido, as balas espalhavam o veneno em seu corpo cada vez com mais velocidade, e sua resistência foi obrigada a resignar-se.
- Tenho que levá-lo para o hospital, disse.
- Minha história ainda não terminou, ele respondeu. Eu não disse
mais nada. Sabia que nunca teria permissão para levá-lo ao hospital. Ele ficaria no telhado até morrer.
Ninguém tinha dinheiro para me emprestar. Aquele mês Dona Esmeralda estava muito atrasada com nossos salários. Para dar a Nélio algo de comer, cozinhei alguns ovos que pertenciam à padaria e os amassei em um copo. Fui forçado a lhe dar de comer e ele comeu muito devagar. Depois arrumei o cobertor debaixo de sua cabeça. A noite era abafada e sem vento. Ele deitou-se e olhou para o límpido céu noturno onde as estrelas brilhavam.
- Opixa murima orera. Mweri wahòkhwa ori mutokwène, etheneri ehala yàraka, disse, de repente.
Fiquei surpreso diante de suas palavras. Me lembrei de que uma vez havia escutado uma mulher muito velha na minha aldeia dizer a mesma coisa:
A lua desaparece depois de ficar grande, as estrelas continuam a brilhar mesmo sendo pequenas.
Olhei para o céu.
- A lua retorna, disse eu.
- As estrelas não têm memória, respondeu Nélio. Para elas, a lua é sempre uma desconhecida que chega para uma visita e depois vai embora. Entre as estrelas, a lua é uma eterna desconhecida.
Os cães latiam inquietos na noite abafada. Tambores tocavam à distância, do outro lado da boca do rio. Fogueiras queimavam e pensei ver pequenas sombras que se moviam ao ritmo das batidas dos tambores.
Nélio acreditou que Deolinda viera para ficar. Mas ele estava errado. Como dormia em sua estátua durante as noites, não tinha conhecimento do que estava acontecendo. Foi somente quando Mandioca, um dia, veio e se sentou ao seu lado na sombra de árvore que ele compreendeu que tudo não estava como deveria estar. Mandioca estava inseguro e atrapalhado. Ele sentou-se e revirou uma cebola entre os dedos. Não era comum que Mandioca procurasse sua companhia sozinho. Por isso Nélio compreendeu que Mandioca trazia consigo algo importante, que o preocupava.
- O que é que você quer? perguntou, depois de ficarem em silêncio por um tempo.
- Nada, respondeu Mandioca.
Nélio percebeu que ainda precisavam de mais tempo antes que Mandioca se sentisse pronto para começar a falar.
- A sombra ainda está grande, disse Nélio. Ficarei aqui até que ela desapareça. Antes disso você tem que me dizer o que é que você quer.
Mandioca escavou nos bolsos onde suas plantas cresciam. Dobrou os bolsos para que o sol iluminasse as folhas. Antes, Nélio já havia percebido atônito que plantas realmente podiam crescer nos bolsos de Mandioca. Era como se o próprio Mandioca fosse uma planta, uma árvore jovem, onde os braços ainda eram pequenos galhos sem folhas.
- Alguma coisa não está bem, disse finalmente Mandioca, quando a sombra já havia começado a diminuir.
- Isso que você disse não quer dizer nada, disse Nélio. Fale com clareza se você quiser falar comigo. Não resmungue.
- É o Júlio, disse Mandioca.
Nélio achou que Mandioca parecia estar no meio de uma luta com as palavras.
- O que está acontecendo com Júlio?
Ficaram novamente em silêncio. Nélio suspirou e continuou olhando
a sombra que se retraía. Uma lagartixa se enfiou entre seus pés e desapareceu entre uma fresta no cascalho.
- O que está acontecendo com Júlio? repetiu.
Depois de uma longa e vagarosa introdução, a resposta de Mandioca veio com uma surpreendente rapidez.
- Júlio quer fazer xogo-xogo com a albina, disse Mandioca. Mas não acho que a albina quer.
Nélio pesou por um instante o que ouvira antes de fazer a próxima pergunta.
- Ele disse isso?
- Ele já tentou.
- E o que aconteceu?
- A albina não quis.
- Não a chame de albina. Nós decidimos que iríamos usar seu nome próprio.
- Deolinda não quis.
- Quando isso aconteceu?
- Durante a noite.
- O que aconteceu?
- Júlio achou que todos estavam dormindo. Mas eu estava acordado. Júlio tirou o cobertor da albina.
- Ela se chama Deolinda.
- Júlio tirou o cobertor de Deolinda.
- O que aconteceu depois?
- Ele levantou a saia dela para ver como é que ela era por baixo.
- Ele viu? Deolinda não usa nada por baixo da saia?
- Eu não sei. Deolinda acordou.
- O que aconteceu então?
- Júlio quis que ela levantasse a saia para mostrar como é que ela era.
- Ela fez isso?
- Ela ficou com raiva e novamente deitou-se para dormir.
- O que Júlio disse?
- Ele disse que na próxima noite eles iriam fazer xogo-xogo, ela querendo ou não. Senão Júlio iria bater nela.
- E a próxima noite é esta noite?
Mandioca fez que sim com a cabeça. Aquela longa conversa o deixara cansado. Nélio mudou de lugar na sombra que agora era muito pequena e pensou no que havia escutado.
- Se Deolinda não quer fazer xogo-xogo com Júlio ela conseguirá evitar que isso aconteça. Ela já o derrubou de costas uma vez.
Nélio considerou que a conversa terminara. Mandioca, porém, continuou sentado.
- Você quer algo mais?
- Talvez Júlio não saiba que é perigoso fazer xogo-xogo com uma albina.
- Por que seria perigoso?
- Todos sabem que ficamos presos.
- Presos?
- Júlio ficará preso. Ele nunca mais se soltará. Isso vai parecer muito estranho.
- Isso aí é invenção. Não é verdade.
- Talvez Deolinda não saiba disso.
Nélio compreendeu que a verdadeira preocupação de Mandioca era se Júlio ficaria preso ou não.
- Nada irá acontecer, disse ele. Agora a sombra acabou. Não precisamos mais falar sobre isso.
Mas, à noite, quando Nélio dormia dentro da barriga do cavalo, acordou com pesadelos. Vira o rosto de Deolinda na sua frente, e estava contorcido de medo ou raiva, e ela falava com ele sem que entendesse o que ela dizia. Cheio de maus pressentimentos colocou suas calças e saiu pela portinhola. Depois, correu o mais rápido que pôde pela cidade. E quando chegou até as escadas onde o grupo estava deitado entre caixas de papelão e cobertores, Deolinda havia desaparecido.
Mandioca estava acordado.
- Onde está Deolinda? perguntou em voz baixa para não acordar os outros.
- Ela foi embora, respondeu Mandioca.
- Eu sonhei com ela. O que aconteceu?
- Júlio fez xogo-xogo com ela. Mesmo ela não querendo. Mas ele não ficou preso.
Nélio notou que ele estava com muita raiva.
- Onde está Júlio?
- Ele está dormindo na sua caixa.
Nélio chutou a caixa de papelão onde Júlio passava suas noites em constante luta com seus monstros. Ele levantou a tampa e disse para Júlio sair. Enquanto isso, os outros também começaram a acordar. Quando Júlio saiu de sua caixa, Nélio viu imediatamente que ele estava com o rosto arranhado. Isso fez com que ficasse com tanta raiva que quase perdeu a razão. A marca no rosto de Júlio era a tentativa de Deolinda de se proteger. Deu um puxão na camisa de Júlio e o arrastou para fora da caixa. Os outros ficaram perturbados. Nunca haviam visto Nélio assim com tanta raiva.
- Onde está Deolinda? perguntou Nélio com a voz trêmula.
- Não sei, respondeu Júlio. Eu estava dormindo.
- Mas antes você fez xogo-xogo com ela! gritou Nélio. Ela não queria. Eu não estava aqui. Mas ela me veio no sonho e me contou o que aconteceu.
- Ela queria, disse Júlio.
- Então por que ela arranhou seu rosto? Você mente, Júlio.
Nélio o soltou e começou a puxar os cobertores dos outros que se assombravam diante de sua fúria.
- Esta noite ninguém dorme mais! ele gritou. Saiam e procurem por ela. Não voltem até que a tenham encontrado. Ela é uma de nós. Júlio fez algo muito ruim com ela. Alguém viu em que direção ela desapareceu?
Pecado apontou na direção do cais.
- Vão! gritou Nélio. Procurem por ela. Mas não você, Júlio. Você ficará aqui e vigiará os cobertores dos outros. Sente em sua caixa. E não saia daí sem primeiro me perguntar. Vão! Não voltem sem ela!
Procuraram a noite toda por Deolinda. E continuaram a procurá-la no dia seguinte. Ela havia desaparecido. Perguntaram aos outros meninos se a tinham visto. Ela desaparecera sem deixar rastros.
Depois de quatro dias, Nélio viu que não fazia mais sentido
procurá-la. A preocupação do grupo era grande e ele decidiu suspender a busca. Durante todo esse tempo, Júlio fora mantido em sua caixa como em uma prisão, atrás do posto de gasolina. Nélio havia ponderado sobre como castigá-lo pela agressão. Mas fora em vão. Não chegou a nenhuma conclusão sobre o que fazer. No final se deu por vencido. Ele os reuniu e disse que não iriam mais procurar Deolinda.
- Ela foi embora e com certeza não voltará. Não sabemos onde está. Devemos parar quando não sabemos mais onde procurar. Ela foi embora, pois Júlio fez algo contra ela que não deveria ter feito. Para dizer a verdade deveríamos bater nele todos os dias durante várias semanas e mantê-lo fechado dentro de sua caixa por um ano. Mas acredito que na realidade não foi Júlio quem causou a partida de Deolinda. Acredito que tenham sido os monstros dentro da sua cabeça, eles são os culpados. Por isso não vamos bater nele. Ele também não vai precisar ficar sentado dentro de sua caixa. Mas o que aconteceu não foi bom.
Nélio ficou calado e olhou à sua volta. Gostaria de saber se eles haviam entendido o que queria dizer. Júlio era o único que parecia satisfeito. Nélio pensou que na próxima vez que alguém quisesse bater
em Júlio não interferiria. Ainda que Júlio tivesse monstros na sua cabeça, eles não eram os culpados de tudo.
Em segredo, Nélio continuou a procurar Deolinda. Viu que sentia sua falta e se preocupava com o que ela poderia ter feito. Às vezes achava que ela estava bem perto, que andava do seu lado, com sua bolsa de ráfia no ombro. Nélio sabia que um albino poderia viver e estar morto ao mesmo tempo. Talvez ela tivesse escolhido deixar este mundo e ir para o outro, onde ninguém poderia vê-la mas onde ela poderia ver tudo que quisesse ver.
Um dia Júlio caiu na rua e sofreu um profundo corte na testa. Depois Nélio examinou com cuidado o lugar onde ele caíra. Ali não havia nada que poderia ter causado uma queda. A explicação deveria ser que Deolinda esticara sua perna invisível na frente dele.
Ela estava ao redor deles.
No entanto, não retornaria.
Durante esse período Nélio sentava longos momentos sob a sombra
de sua árvore e estudava o sujo e rasgado mapa do mundo que Tristeza achara em uma lata de lixo e lhe dera de presente. O fotógrafo indiano Abu Cassamo, que tinha sua loja ao lado do teatro e padaria, explicara
os nomes dos vários mares e países. Explicou como eram as grandes cordilheiras, onde estavam os desertos, onde o gelo de quilômetros de altura dominava. Abu Cassamo, em cuja loja quase nunca entravam fregueses, tinha um rosto melancólico e nunca falava com alguém que não lhe dirigisse a palavra primeiro. Era extremamente cortês e cumprimentava até Nélio, quando ele vinha a sua loja e entrava na escuridão onde os refletores estavam apagados, as câmaras cobertas com pedaços de panos pretos e o cheiro de caril era forte.
Através de Abu Cassamo, que falava baixo e com sotaque quase cantante, o mundo lhe era esclarecido.
Nélio folheava as páginas sujas do atlas e pensava que vivia em um mundo ruim. Onde é que as pessoas encontrariam forças ou alegria para resistir? Ele vivia em um mundo onde bandidos queimavam aldeias, onde as pessoas estavam constantemente em fuga, onde as ruas estavam cercadas de todos os mortos e de todos os destroços de carros, ônibus e carroças quebradas ou queimadas. Ele vivia em um mundo onde os mortos não tinham permissão de estar mortos. Eram afugentados de suas sepulturas ou de suas árvores, estavam em fuga da mesma forma como os que ainda continuavam vivos. E os vivos, eles eram tão pobres que eram obrigados a mandar seus filhos viver como ratos nas ruas. Mas os ratos viviam muito melhor, pois os ratos ainda tinham seu pêlo quando as noites eram frias.
Nélio às vezes tirava os olhos de seu mapa e observava as pessoas que passavam apressadas por ele sem vê-lo. Eles estavam vivos ou já estavam mortos? Às vezes acontecia de ir até o quebra-mar do cais e tentava enxergar tubarões que apareciam fora da boca do rio. Estavam também mortas as ondas que rolavam para as praias? Onde haveria vida nessa época ruim? Onde encontrariam as forças e alegria de que necessitavam para resistir?
Ele se inclinava sobre seus mapas, ficava acordado dentro da barriga do cavalo, ou passava as tardes olhando o mar perdido em seus pensamentos. Tinha a impressão de que, onde quer que estivesse, estaria no centro do mundo e da maldade. Devia ser assim, pois pensava nas mesmas coisas onde quer que estivesse. Se Deolinda ainda estivesse presente, talvez pudesse falar com ela sobre tudo em que pensava. Os outros não o compreenderiam. Ficariam preocupados e correriam imediatamente e pegariam
um novo cachorro para lhe dar.
Mas ela retornava em sonhos, e às vezes trazia Cosmos consigo. Nélio lhe perguntava para onde tinha ido naquela noite quando fora atacada pelos monstros de Júlio. Sua resposta, no entanto, era tão evasiva que ele entendeu que ela não queria que a procurasse.
- Não preciso de nenhuma casa, ela lhe disse em um de seus sonhos. Eu construí um esconderijo. Lá tenho toda a liberdade de que necessito.
Assim é o mundo, pensava Nélio, quando Manuel Oliveira saudava o
dia e o acordava com suas loucas risadas do lado de fora do cavalo.
As pessoas não constróem mais casas, elas constróem esconderijos.
Deolinda desaparecera. Fortes tempestades caíram sobre a cidade, chovera sem parar por onze dias e as casas mal construídas nas ladeiras acima da boca do rio despencaram e os tubarões puxaram e arrastaram as pessoas mortas da praia. Ninguém passara por coisa igual, nem mesmo as pessoas que eram tão velhas que era duvidoso que ainda estivessem realmente vivas. Uma época que fora um presságio. Os bandidos agora haviam chegado tão perto da cidade que às vezes entravam, queimavam e matavam dentro dos subúrbios. Às vezes, Nélio pensava que, se morresse dentro da barriga do cavalo, sua vida seria incompreensível. Como explicaria para seus antepassados, quando os encontrasse, que havia nascido de gente boa em uma aldeia que não era um esconderijo mas um lar para as pessoas, e no final acabara parando de respirar na barriga de uma estátua eqüestre esquecida em uma praça da cidade grande? Eles pensariam que mentia, que tentava enganá-los, e o mandariam embora; eles o afugentariam de volta para a vida, e lá os bandidos estariam esperando com suas facas e espingardas e seu incompreensível desejo de matar os que viviam e deixar a terra deserta.
Muitas vezes observava suas mãos, ou se olhava no caco de espelho que Pecado usava para fazer fogo. Procurava por um sinal de que já começara a envelhecer. Não podia deixar de saber que um menino de dez anos que pensava tantos pensamentos envelheceria muito rapidamente. Procurava rugas em seu rosto, os primeiros cabelos brancos, uma fraqueza ou tremura, de repente, nas pernas. Muitas vezes era possuído pelo medo de acordar uma manhã como um velho aturdido sem dentes, e que nem mesmo com
o máximo de esforço conseguiria lembrar-se do seu próprio nome. Seus pensamentos eram como uma doença grave que carregava dentro de si e que podia atacá-lo quando menos esperava.
Durante aquela época foi o grupo que o manteve vivo. Na sua luta diária pela sobrevivência havia instantes em que os pensamentos paravam de persegui-lo.
Mas ele tinha um pressentimento, o tempo todo, que algo iria acabar. Acordava todas as manhãs com a impressão de que algo, do qual já deveria sentir medo, aconteceria.
As tempestades passaram. A chuva cessara e as ruas barrentas começaram a secar. Mais uma vez fazia muito calor. Todos os dias procuravam novamente os lugares com sombra para descansar.
Foi então que Nélio descobriu que algo estava errado com Alfredo Bomba. Quando acabavam de descansar, ele queria continuar dormindo. Nélio perguntou se não estava se sentindo bem. Então ele reclamou que estava sempre cansado, como se o sono lhe tirasse todas as forças.
- Você sente dor? perguntou Nélio.
- Não muita, respondeu Alfredo Bomba.
- Onde?
Alfredo apontou para um lado de sua barriga.
- Dores no estômago, disse Nélio encorajando-o. Isso passa.
Alfredo concordou.
- Dói só um pouquinho.
Alguns dias mais tarde, Nélio viu que Alfredo Bomba não tinha dores de estômago. Ele começou a ter febre, não queria comer e estava muito pálido.
- Temos que arrumar um carrinho de mão, disse Nélio para os outros. Alfredo Bomba está doente. Temos que levá-lo para o hospital.
- Podemos pegar emprestado um xuva shita duma do lado de fora do mercado, disse Pecado. E é claro que vão querer ser pagos.
- Serão pagos, disse Nélio. Me dê o dinheiro que vocês têm.
Um monte de notas amarrotadas de mil foram colocadas diante de seus pés.
- Isso deve ser suficiente, decidiu Nélio. Mandioca e Pecado vão buscar o carrinho. Mas não parem para conversar com conhecidos.
Levaram Alfredo Bomba para o hospital em uma esfarrapada procissão. Muitos dos que os viram acharam que o pálido menino no carrinho já estava morto. Eles se ajoelhavam, faziam o sinal-da-cruz, ou olhavam para outro lado. Quando chegaram ao hospital, carregaram Alfredo até a sala de emergência cheia de pessoas doentes e feridas.
- É melhor você ficar lá fora, vigiando o carrinho, disse Nélio para Júlio. Senão corremos o risco de alguém roubá-lo.
- Aqui cheira mau, disse Júlio.
- Pessoas doentes não cheiram bem, disse Nélio. Agora vá! E não durma!
Alfredo Bomba sentou-se no chão, pálido e angustiado, em um canto.
Uma enfermeira irritada veio e perguntou o que havia de errado com ele.
- Ele está doente, disse Nélio. Vocês é que têm de dizer o que há de errado com ele.
Passaram muitas horas antes que alguém novamente se interessasse por Alfredo Bomba. Nélio fez Pecado ficar ali para ajudá-lo e enviou o resto para que tentassem encontrar comida.
Já era noite quando dois enfermeiros chegaram empurrando uma maca e levantaram Alfredo Bomba.
- Ele não tem nenhum parente? perguntou um dos enfermeiros.
- Ele tem a mim, disse Nélio. Não precisa de mais ninguém.
- Você é irmão dele?
- Sou seu irmão e seu pai e seu tio e seu primo, respondeu Nélio.
- Como é o nome dele?
- Alfredo Bomba.
- Bomba não é bem um nome.
- Então ele tem um nome que não existe. Mas ele tem dor na barriga. E é uma dor que existe.
Empurraram a maca para dentro da sala de exame que já estava superlotada de pessoas resmungando e gemendo. O cheiro de suor e sujeira era muito forte. Nélio afugentou uma barata que tateava a face suada de Alfredo Bomba com suas antenas.
Um médico, grande e gordo, entrou na sala. Parou ao lado da maca e olhou para Alfredo Bomba.
- Você está com dor na barriga? perguntou bruscamente.
- Ele está muito doente, respondeu Nélio.
O médico resmungou algo inaudível, depois levantou a camisa suja de Alfredo Bomba e começou a apertar sua barriga. Um outro médico que passava também parou ao lado da maca. Conversaram um com o outro sem que Nélio entendesse o que diziam. O outro médico também começou a apertar a barriga de Alfredo Bomba.
- Por que é que apertam com tanta força? gemeu Alfredo Bomba.
- Os médicos apertam para que seus dedos possam falar com a doença que existe aí dentro.
- Devíamos ter ido para um curandeiro, disse Alfredo Bomba. Está doendo muito.
Os dois médicos pararam de examinar.
- Ele pode ficar aqui, disse o médico gordo. Agora sua voz soava bem menos brusca.
- O que há de errado com ele? perguntou Nélio.
- É o que vamos descobrir, respondeu o médico.
- Talvez ele tenha lombrigas, sugeriu Nélio.
- Com certeza ele tem, respondeu o médico. Isso aqui, porém, é outra coisa.
Alfredo Bomba dormiu aquela noite em uma cama que repartiu com outro enfermo. Nélio mandou embora os outros com o carrinho de mão e passou a noite no chão, deitado debaixo da cama de Alfredo. No dia seguinte fizeram exame de sangue em Alfredo Bomba. O braço dele estava tão magro que mal conseguiram lhe enfiar a agulha. No dia seguinte fizeram mais um exame.
Nada aconteceu em seguida. Quando já havia passado três dias Nélio começou a pensar que tinham se esquecido de Alfredo Bomba. Na manhã seguinte, no entanto, veio uma enfermeira e chamou Nélio. Ele a seguiu por corredores onde quase não conseguiam passar porque pessoas enfermas estavam deitadas por todos os lados no chão. Ela o levou até um aposento onde um pedaço de papelão estava pregado em uma janela quebrada. O médico gordo que primeiro havia apertado a barriga de Alfredo Bomba estava sentado atrás de uma escrivaninha.
- Aquele menino tem pai? perguntou e Nélio notou que ele soava muito cansado.
- Ele tem somente a mim, respondeu Nélio. Ele mora na rua.
O médico acenou lentamente com a cabeça.
- Então é com você que tenho que falar, esticou a mão e disse que se chamava Anselmo.
- Alfredo Bomba está muito doente, disse Anselmo. Ele morrerá logo.
- Eu não quero isso, respondeu Nélio. Posso conseguir dinheiro para todos os remédios necessários.
- Não se trata de dinheiro nem de remédios, disse Anselmo. É que Alfredo Bomba tem uma doença incurável. Ele tem um tumor no fígado. Como nem você nem ele sabem o que é um fígado, não vou tentar explicar. Esse tumor já se espalhou pelo corpo dele. Não há nada que possamos fazer para salvar sua vida. Podemos aliviar seu sofrimento. Nada mais.
Nélio ficou calado.
Foi como se as palavras do médico Anselmo transferissem uma parte da dor que Alfredo Bomba sentia para sua própria barriga. Não conseguia pensar que Alfredo Bomba iria morrer. Mesmo assim sabia que era verdade.
- Ele não tem mesmo pai? perguntou Anselmo novamente. Nenhuma tia, nenhum avô?
- Ele tem a mim e aos outros, disse Nélio. Quanto tempo ele tem que ficar aqui no hospital?
- Ele pode ficar aqui até morrer. Ou ele pode ir com você agora. Com ajuda dos remédios as dores quase desaparecerão.
Nélio levantou-se. Viu que o homem do outro lado da escrivaninha pensava ter um menino de dez anos na sua frente. Mas Nélio se sentia como se tivesse cem anos.
- Ele vai conosco, disse Nélio. Seus últimos dias serão os melhores que já viveu.
Deixaram o hospital. Nélio recebeu um envelope de pílulas que deveria dar a Alfredo Bomba quando ele sentisse dor. Nélio perguntou se ele queria retornar para a rua no carrinho de mão, mas Alfredo Bomba disse que não. Andaram ladeira abaixo, do lado da sombra na rua.
- Eu sei que vou morrer, disse Alfredo Bomba de repente.
- Você não vai morrer, disse Nélio. Tenho seu remédio aqui no meu bolso.
- Mesmo assim sei que vou morrer, disse Alfredo Bomba, depois de um instante.
- Você não ouve o que digo? perguntou Nélio com raiva. Continuaram em silêncio.
Mais tarde, quando Alfredo Bomba estava deitado e dormia, Nélio reuniu os outros à sua volta e contou o que o médico dissera.
- Ele pode desejar o que quiser, disse Nélio. Nós daremos a ele o que quiser.
- Ele pode ficar com meus tênis, disse Tristeza.
- Alfredo Bomba nunca gostou de ter sapatos em seus pés, disse Nélio. Além disso, o pé dele é menor que o seu. Só ele poderá nos dizer o que é que deseja ter.
Naquela noite Nélio não foi para sua estátua dormir na barriga do cavalo. Fizeram uma fogueira atrás do posto de gasolina. Todos se esforçaram ao máximo durante o dia para ganhar dinheiro suficiente para que pudessem cozinhar um banquete no fogo. Alfredo Bomba sentou-se mais próximo ao fogo, enrolado em um cobertor, já que estava com frio. Nélio havia lhe dado uma pílula. A dor havia desaparecido, porém ele não tinha energia para fazer mais do que provar a comida que tinham feito para ele.
- Você com certeza ficará bom logo, disse Nélio. Mas de agora em diante você pode desejar o que quiser.
Alfredo Bomba pareceu não entender o que Nélio dissera.
- O que eu quiser? disse ele devagar.
- O que você quiser.
- Nunca ouvi falar em uma pessoa que pudesse desejar o que quisesse e conseguir.
- Então você será a primeira, disse Nélio.
Alfredo Bomba ficou sentado por muito tempo em silêncio refletindo sobre o que Nélio dissera. Júlio e Mandioca desapareciam de vez em quando para procurar mais madeira e manter a fogueira acesa. A cidade cada vez mais silenciosa, o silêncio se apoderou do grupo em volta da fogueira.
Depois Alfredo Bomba falou.
- Eu me lembro de que minha mãe me contava algo muito estranho quando eu era pequeno. Ela dizia que era verdade, mas eu sempre pensei que fosse só uma história, dessas que se contam para as crianças. Mas nunca me esqueci do que ela contava. Talvez agora deva tentar descobrir se era verdade ou não.
- Uma mãe não mente para os filhos, disse Mandioca.
- Silêncio, disse Nélio. Não o interrompa. Deixe que fale em paz.
- Que existe um lugar onde os vivos e os mortos se encontram, disse Alfredo Bomba. Esse lugar seria como um grande jardim, onde corre um rio. No meio do rio existe uma ilha feita só de areia. Depois que visitamos essa ilha não precisamos sentir medo de mais nada. Se agora posso desejar o que quiser, então desejo ir até lá.
- Sim, disse Nélio, quando Alfredo Bomba se silenciou. Já ouvi falar nesse rio e em uma ilha comprida de areia. Também já ouvi falar que lá existe um tipo de lagartixa que sabe cantar. Mas pode ser que eu esteja errado. Acho que você está certo em querer visitar esse lugar.
- Eu não sei onde fica, disse Alfredo Bomba. Como podemos viajar sem saber para onde ir?
- Vamos nos informar, disse Nélio. Tenho um mapa do mundo. Aquele que Tristeza achou na lata de lixo. Amanhã cedo falarei com o fotógrafo, Abu Cassamo. Talvez ele saiba.
- Você realmente acha que é possível? perguntou Alfredo Bomba.
- Sim, disse Nélio. Eu acho que é possível.
Alfredo Bomba encolheu-se sob seu cobertor perto da fogueira e adormeceu.
- Nós também vamos viajar, disse Nélio mais tarde. Vamos precisar de muito dinheiro e descobrir onde é que fica esse lugar. Não temos muito tempo antes que Alfredo Bomba fique tão doente a ponto de não poder fazer sua viagem.
- O rio não existe e a ilha também não, disse Júlio. Não quero ajudar a enganá-lo. É melhor deixarmos que ele vá ao cinema todas as noites. Acho que Alfredo Bomba nunca foi ao cinema.
- Eles nunca o deixarão entrar, disse Mandioca. Ele não tem sapatos. Temos que ter sapatos e o bilhete de entrada para ir ao cinema. Se tivermos somente o bilhete de entrada, não nos deixam entrar.
- Às vezes vocês falam demais, disse Nélio, sem esconder sua irritação. Nós encontraremos esse lugar e vamos arrumar muito dinheiro para viajar até lá. Agora é melhor dormir. Amanhã teremos muito o que fazer. Para demonstrar que falo sério eu também dormirei aqui esta noite.
- Não é bom se você também ficar doente, disse Tristeza preocupado.
- Alfredo Bomba está mais doente que eu, disse Nélio.
É a única coisa que tem importância.
Organizaram-se para passar a noite. Júlio entrou em sua caixa de papelão e fechou a tampa. Nélio se encolheu ao lado de Alfredo Bomba.
Ele pensou que havia assumido uma responsabilidade muito grande. Alfredo Bomba esperava aquilo que desejava. Ninguém tinha o direito de decepcionar uma pessoa que estava prestes a morrer.
Aquela noite Nélio dormiu mal e foi perseguido por sonhos ruins. Todos os sonhos que o atormentaram tinham uma face que o fazia se lembrar dos jovens bandidos segurando as espingardas cobertas de sangue. Tinham levado suas calças e sua habilidade de pensar e sentir. Ele se encontrava às margens de um rio e descobriu seu rosto espelhado nas águas. E viu um fantasma, um homem velho com olhos fundos e uma barba suja. Do outro lado do rio, Yabu Bata gritara algo para ele, mas ele não entendeu o que foi. Acordou antes de clarear. Alfredo Bomba dormia ao seu lado, de costas e de boca aberta, como uma criancinha. Nélio pensou que seria sábio começar esse dia importante tentando compreender os sonhos daquela noite. Aprendera com seu pai que os sonhos sempre contêm presságios. Podiam ser enigmáticos, mas nossa missão era decifrar os presságios e depois
segui-los.
"Uma pessoa dorme para sonhar", seu pai havia dito. "Depois acordamos para ter a possibilidade de decifrar nossos sonhos."
Nélio pensou que seria mais fácil se estivesse deitado dentro da barriga do cavalo. Lá tinha o hábito de interpretar seus sonhos. Precisava estar a sós quando escutava a voz da noite falando com ele. Ali, cercado pelo grupo adormecido, não se sentia tranqüilo.
Quando Nélio vislumbrou a primeira luz da manhã no céu, levantou-se cuidadosamente para não acordar os outros e foi pelas ruas desertas até a loja de Abu Cassamo. Colocou o ouvido contra a porta e pôde escutar o barulho de pés se arrastando lá dentro. Bateu levemente na porta e esperou. Abu Cassamo entreabriu a porta com cuidado depois de ter destrancado todos os cadeados e correntes de segurança que lhe serviam de proteção contra o mundo de fora no qual não confiava. Seus eternos olhos
melancólicos contemplaram Nélio, em pé do lado de fora.
- Venho mais uma vez com meus mapas, disse Nélio. Além disso, tenho uma pergunta para fazer.
Abu Cassamo deixou-o entrar no sombrio ateliê. Depois se agachou diante de um fogão a álcool onde fazia café seguindo um complicado ritual. Nélio sentou-se em um banquinho e esperou. Pendurados nas paredes havia cartazes rasgados de turismo em cores berrantes e absurdas que Nélio presumiu serem do continente indiano que Abu Cassamo jamais visitaria.
Quando Abu Cassamo esvaziou o pequeno copo de café, limpou a boca e se sentou no banquinho diante de Nélio, que tinha seus mapas rasgados nas mãos. Explicou a Abu Cassamo por que viera. Mas falou do desejo de Alfredo Bomba como se fosse seu.
- Uma vez fiz uma promessa para meu pai que visitaria essa ilha, disse Nélio. À noite sonhei que agora é a hora certa para fazer essa viagem. Meu pai ficará muito contrariado se eu não fizer como combinamos.
- Eu presumo que seu pai esteja morto, disse Abu Cassamo pensativo.
- Ele ficaria com raiva mesmo se ainda vivesse, disse Nélio. Não acredito que sua raiva tenha diminuído depois que se afogou em um buraco cheio de água quando delirava com malária.
Abu Cassamo pegou o atlas e acendeu o último dos refletores fotográficos que ainda funcionava. Nélio esperou e notou que retornava lentamente para o passado, para muito tempo antes dos bandidos chegarem e queimarem sua aldeia. Foi somente muitas horas depois, quando Abu Cassamo folheava a última página do atlas, que ele retornou à realidade.
- Não posso ajudar, disse Abu Cassamo. A ilha onde seu pai lhe espera não está no mapa. Esse é um mapa muito ruim.
- Eu o encontrei no lixo, disse Nélio. Agora entendo por que alguém o jogou fora.
- O mundo só pode ser retratado por mapas ruins, disse Abu Cassamo. Como é que poderíamos fazer um mapa perfeito de algo que é tão malcuidado como nosso mundo?
Ficaram sentados em silêncio.
- Como achamos uma ilha que não existe no mapa? perguntou Nélio finalmente.
- Não achamos, respondeu Abu Cassamo. Acho que o melhor que você pode fazer é beber uputso (bebida alcoólica caseira destilada da castanha de caju) e dançar e conversar com seu pai. Às vezes, até os mortos podem nos mostrar caminhos que não sabemos existir.
Nélio não pôde deixar de notar o meio-tom de desprezo na voz de Abu Cassamo. Ele sabia que os indianos eram parecidos com os brancos, pois nunca haviam entendido por que as pessoas negras amiúde dançam e conversam com seus antepassados. Os indianos tinham medo, da mesma forma que os brancos, e escondiam seu medo demonstrando desprezo, porém o faziam com muito mais discrição que os brancos, pois eram homens de negócios e não queriam se tornar inimigos de alguém que talvez um dia viesse a ser um freguês inesperado.
- Seguirei seu conselho, disse Nélio. Mas também tenho outra pergunta. Quem poderia me dar todo o dinheiro de que necessito para fazer essa longa viagem? E além disso comprar um terno para meu pai?
- Não sabia que os espíritos usavam ternos, disse Abu Cassamo.
- Meu pai diz que sim. Quando sonho com ele, está sempre usando o mesmo terno que está cada vez mais surrado e gasto.
- Conheço somente uma pessoa que talvez possa lhe dar dinheiro, disse Abu Cassamo. Ele se chama Suleman e é tão rico quanto o grande Kahn, embora ninguém saiba disso, pois Suleman não quer contribuir para a construção da nova mesquita.
- Por que ele me daria dinheiro?
- Assim como eu, ele é indiano, disse Abu Cassamo. No entanto,
sente-se mal por ter vivido por tanto tempo no meio de pessoas negras como você. Hoje em dia ele tem tanto medo de maus espíritos e augúrios que não tem nem mais coragem de fazer negócios. Ele se fechou dentro
de sua casa e nunca sai. Se você disser que lhe enviei talvez o deixe entrar.
- Como é que você o conhece? perguntou Nélio.
- Ele foi meu último cliente, respondeu Abu Cassamo triste. Na última fotografia que tirei é possível ver como seus olhos brilham de medo.
- Talvez ele deva ir comigo até a ilha, disse Nélio. Onde mora esse homem que se chama Suleman?
- Em uma casa que parece ter sido demolida ao lado da antiga prisão, disse Abu Cassamo. Suleman uma vez destruiu o segundo andar com suas próprias mãos quando foi enganado em um grande negócio. Ele se castigou por ter sido tão confiante. Isso aconteceu muitos anos atrás, quando ele ainda não acreditava que maus espíritos e maus augúrios podiam afetá-lo.
Nélio levantou-se para ir embora. Já era tarde do dia. Ele tinha muita fome.
- Você nunca come? perguntou.
- Somente quando tenho fome, respondeu Abu Cassamo e hoje não é um desses dias.
- Vou deixar que me fotografe, disse Nélio, quando retornar da minha viagem. Você também tirará fotos dos outros com quem vivo aqui na rua. Você revelará as fotos, e nós escolheremos as melhores e as colocaremos em molduras. Em seguida lhe pagaremos pelo seu trabalho.
- Em que parede vocês pendurarão as fotos? perguntou Abu Cassamo quando já tinha deixado Nélio sair para a rua.
- Atrás do posto de gasolina, disse Nélio. Ali tem um muro que é muito bonito. Quando chover, naturalmente, vamos cobri-las com sacos.
No outro dia Nélio atravessou a cidade até a casa demolida de Suleman. Abriu o portão e entrou no jardim que mais parecia um cemitério descuidado. Na grama seca se encontrava uma corrente enferrujada de cachorro, como uma lembrança de impetuosos latidos de cão. Nélio bateu na porta. De repente, uma portinhola muito pequena se abriu logo acima da soleira da porta. Um dedo grosso apontou para fora indicando que Nélio se deitasse no chão de modo que seu rosto ficasse na mesma altura que a portinhola. O dedo desapareceu, Nélio se esticou no chão e olhou direto para um olho.
- Vim para falar com Suleman sobre uma ilha onde o medo acaba, disse Nélio. Foi Abu Cassamo que me enviou aqui.
O olho desapareceu e a porta se entreabriu. Nélio pensou por um instante que os indianos abrem suas portas somente pela metade, talvez por medo, mas também por economia. Nélio entrou na casa demolida onde as cortinas estavam cerradas. O ar cheirava a algo desconhecido e estava muito escuro. Quando seus olhos se acostumaram à escuridão, viu que a casa estava completamente sem mobília. A única coisa que existia ali era dinheiro. Por todos os lados havia pilhas de notas, todas amarradas com cordão. Era todo esse dinheiro que causava o cheiro que Nélio não havia reconhecido. No meio de todo esse dinheiro, como se estivesse protegido por uma muralha de pacotes de notas de dinheiro, estava Suleman. Ele era pequeno e muito gordo. Seu cabelo havia caído de sua cabeça, sua barba era rala e usava um par de óculos cuja armação de um lado era presa por uma fita adesiva suja. Nélio apresentou sua questão para Suleman, que escutou suas palavras de olhos fechados. Quando ele se silenciou, Suleman fez um gesto de fadiga com os braços.
- Não tenho nenhum dinheiro para dispensar, disse. O pouco que ainda me resta, como você pode ver, já está hipotecado. Também não posso seguir você nessa viagem. Por trás dessa porta esperam todos os que querem me fazer mal. À noite, escuto quando arranham as paredes da casa. Se desfizeram de meus cães de guarda com pedaços de carne envenenados.
- Nós poderíamos sair quando estivesse escuro, sugeriu Nélio.
- Pior ainda, disse Suleman. Talvez até desse certo sob a forte luz do dia, mas não tenho coragem. Além disso, estou muito gordo e minha aparência não é boa. Devo continuar aqui e vigiar o dinheiro que ainda tenho. Já fui um homem rico, tão rico quanto o Kahn. Agora a riqueza me tornou pobre, diminuindo de uma maneira que não entendo. Tudo já está hipotecado.
- Acho que não precisaria mais do que um dos pequenos pacotes, disse Nélio com cuidado e abaixou seu tom de voz para que seu pedido parecesse menor por ser feito em voz baixa.
- Não tenho nenhum dinheiro para dar, disse Suleman, e Nélio notou que ele começava a se irritar. Todos querem dinheiro. Não posso deixar esta casa sem ser rodeado por mendigos. É mais fácil contar os que não precisam de nada. Os mendigos mendigam até entre si. Os mortos na terra gritam por dinheiro. Eu já dei tudo que um dia possuí. O que ainda tenho aqui será para pagar minhas dívidas quando morrer. O dinheiro no canto perto da janela é para pagar meu enterro, o dinheiro do outro lado da porta é para pagar o casamento de meus primos e os filhos ilegítimos
de meus filhos desleais que ninguém além de mim quer reconhecer. Tenho preparado esmolas, multas, subornos, e tudo está contado. Não há nenhum dinheiro para um terno para seu pai e uma viagem até essa ilha da qual você fala. Mesmo se ela não existisse, mesmo se você fosse um vigarista, e eu me deixasse enganar, não tenho nenhum dinheiro para lhe dar.
- Um menininho está para morrer, disse Nélio. Sua alma poderia depois lhe proteger.
- Minha casa está cheia das almas de todos que já me pediram dinheiro e deram como garantia sua alma quando morressem. Mas tive algum proveito disso?
Nélio deixou a casa de Suleman compreendendo que os caminhos por que andara durante esses últimos dias não o levaram mais perto de seu objetivo.
Naquela noite reuniu o grupo à sua volta. Esperou até que Alfredo Bomba adormecesse para começar a falar.
- Abu Cassamo não pôde encontrar o lugar de que a mãe de Alfredo Bomba falava. Como Abu Cassamo nunca tem clientes que querem ser fotografados, pode empregar todo seu tempo estudando o atlas. Por isso não é necessário perguntar a mais ninguém. Também não temos nem tempo para procurar a mãe de Alfredo Bomba. Nem é certo que ela ainda esteja viva. Tampouco conseguimos dinheiro.
Ele olhou à sua volta. Todos olharam para outro lado, pois não tinham nada a dizer.
No final foi Tristeza quem quebrou o silêncio.
- Apesar de tudo talvez seja melhor ficar com meus tênis. Agora que ele está doente talvez seus pés fiquem maiores.
- Por que fariam isso? perguntou Nélio.
- Pessoas doentes incham, murmurou Tristeza. O sangue se esconde da morte lá embaixo nos pés.
Nélio ponderou um pouco sobre o estranho discurso de Tristeza. Aprendera que Tristeza, apesar de pensar muito devagar, podia às vezes dizer coisas dignas de reflexão.
- Alfredo Bomba não quer nenhum tênis, disse depois. Ele quer visitar aquela ilha onde o medo abandona as pessoas. Nosso primeiro problema é que não sabemos onde ela fica. Nosso segundo problema é que, mesmo se soubermos, não temos dinheiro suficiente para fazer a viagem.
- Essa ilha não existe, disse Júlio.
- Talvez não, respondeu Nélio pensativo. Mas esse é o menor problema.
Notou que eles o olhavam com curiosidade. O que é que ele queria dizer? Nélio levantou a mão, impedindo as perguntas. Naquele exato momento não queria nenhuma pergunta a mais. Em algum lugar da sua cabeça um plano começava a se formar, um plano que também lhe daria a resposta de como poderiam realizar o desejo de Alfredo Bomba. Levantou-se e passou pelo posto de gasolina e parou do outro lado da rua, onde se localizava a loja de fotografia de Abu Cassamo, ao lado do prédio do teatro e padaria.
Uma das peças de Dona Esmeralda acabara de terminar. Os espectadores saíam e desapareciam em várias direções na escuridão. Os vigias começaram a trancar as portas e as luzes da entrada foram apagadas, uma depois da outra. Tudo isso ele observou, ao mesmo tempo que seguia um sinuoso caminho entre o espesso matagal de espinhos na sua cabeça. Viu dentro
de si como fariam para viajar para a ilha que ficava em uma parte desconhecida do mundo, ou talvez em um mundo que nem existia.
Retornou ao grupo que o esperava. Alfredo Bomba dormia.
- Eu encontrei a ilha, disse ele. Ela não está nos mapas que Abu Cassamo tentou decifrar em vão. Além disso, ela está tão próxima que não precisamos de nenhum dinheiro para fazer a viagem.
- Onde? perguntou Júlio.
- Do outro lado da rua, disse Nélio. Ela fica no teatro de Dona Esmeralda. À noite o teatro fica vazio. O palco é abandonado, pois os atores vão dormir. O que não tem lá, nós mesmos faremos. Mesmo a ilha que ninguém sabe onde fica pode ser fabricada. Mesmo um sonho pode ser tirado da cabeça e se transformar em um objeto. À noite, quando os vigias do lado de fora adormecerem, entraremos por uma das janelas quebradas do lado de trás, onde Dona Esmeralda guarda as fantasias. Depois acenderemos
as luzes do palco e começaremos a ensaiar uma peça que será sobre a ilha que a mãe de Alfredo Bomba lhe contou.
- Mas nenhum de nós sabe como fazer, disse Mandioca.
- Então aprenderemos, respondeu Nélio.
- Alguns dos vigias fora do teatro estão armados, disse Júlio.
- Faremos silêncio, disse Nélio.
Naquele mesmo dia, depois da meia-noite, quando os vigias adormeceram do lado de fora da entrada do teatro, eles foram até a parte de trás e entraram pela janela quebrada do vestiário. Haviam deixado Tristeza com Alfredo Bomba, pois ele nunca conseguiria aprender a representar ou a se mover da maneira certa no palco. Usaram fósforos até chegar no palco e lá acenderam os fortes refletores pendurados em cima do palco.
O palco estava completamente vazio.
Eles estavam de pé na platéia. Nélio pensava então que o palco parecia uma boca, uma boca aberta, que esperava pelo alimento que eles lhe dariam.
Em seguida começaram a fabricar a ilha.
Nélio sorriu seu cansado sorriso na luz da manhã. À distância, do outro lado do rio, uma tempestade se formava. Compreendi que estávamos nos aproximando do fim, tanto da sua história como da sua vida.
Eu não disse nada. Apenas olhei para ele e sorri. O que eu realmente podia dizer?
Depois me levantei e desci para a padaria.
A ÚLTIMA NOITE
No último dia em que Nélio viveu, o sol estava muito perto de meu espírito. Quando esvaziei meus pulmões, o ar saiu como chamas e caiu como cinzas negras contra as pedras das ruas da cidade. Eu jamais, nem antes ou depois, senti um calor como o daquele dia. Não havia alívio em parte alguma, mesmo o vento que vinha do mar para a cidade parecia ofegar de fadiga. Eu caminhava preocupado pelas ruas, lutando por um lugar sob as sombras secas onde as pessoas procuravam alívio em vão, e lutando contra uma crescente tontura que o tempo todo queria me jogar no chão. Era como se eu não mais soubesse onde estava, como se tudo que estivesse acontecendo comigo fosse um equívoco pelo qual ninguém era realmente responsável ou se importava. Pela primeira vez vi o mundo como ele era, o mundo que Nélio havia compreendido antes mesmo de se tornar um adulto.
O que era que eu parecia ver? O motor enferrujado de um trator queimado falava comigo como um irônico poema, em um mundo que estava prestes a desabar diante de meus olhos. Eu vi um menino, um menino de rua, que furiosamente açoitava a areia, como se castigasse a terra por sua própria miséria. Um abutre solitário voou em silêncio sobre minha cabeça. Flutuando nos redemoinhos do vento, insensível aos raios de sol que crivavam suas penas. Às vezes a sombra do pássaro caía sobre minha cabeça como uma carga de ferro me espremendo contra o chão. Eu vi um homem negro e velho, nu, de pé ao lado de uma bomba d'água, se lavando.
Apesar do calor, ele esfregava seu corpo com energia impetuosa, como se rasgasse uma pele usada e velha. Aquele dia debaixo do sol impiedoso descobri a verdadeira face da cidade. Vi como os pobres são obrigados a devorar suas vidas cruas. Nunca sobrava tempo para que preparassem suas vidas, eram constantemente obrigados a lutar pelo derradeiro reduto da sobrevivência. Vi esse templo do absurdo que era a cidade e talvez também o mundo, e o semelhante ao meu redor. Eu estava no meio da escura catedral da impotência. Os muros caíam lentamente por terra e levantavam uma pesada camada de poeira, os vitrais coloridos das janelas haviam há muito desaparecido. Olhei à minha volta e todos que estavam ao meu redor eram pobres. Os outros, os ricos, se mantinham longe das ruas, se escondiam em seus abrigos cercados de muros, onde o ar era mantido sempre fresco pelo silvo de máquinas.
O mundo já não era redondo, ele voltara a ser chato e a cidade estava na sua extremidade. Se as pesadas chuvas um dia arrancassem novamente as casas das ladeiras, elas não apenas deslizariam até o rio mas seriam jogadas das extremidades onde não havia nenhum fundo a esperá-las.
Aquele dia a cidade pareceu deparar com uma repentina invasão, não de grilos mas de evangelizadores. De todos os lugares, de cima de muros, caixas, bancos e latas de lixos, atraíam pessoas com suas vozes chorosas e clamantes, seus rostos suados e mãos suplicantes.
As pessoas se reuniam ao redor, balançando os corpos, fechando os olhos e pensando que tudo seria diferente quando novamente os abrissem. Vi pessoas caírem pelo chão em convulsões, outras que fugiam como cachorros vencidos, outros que se rejubilavam sem que o restante de nós entendêssemos o porquê. Eu, que sempre esperei que o final do mundo ocorresse no meio de chuva, nuvens negras, terremotos e milhares de raios, comecei a acreditar que havia me enganado. O mundo acabaria debaixo daquele sol implacável. Pensei que todos os nossos antepassados haviam se reunido, deviam ser milhares, e haviam se cansado de todo o sofrimento que os vivos causavam uns aos outros. Em um conjunto final nos unificaríamos no outro mundo. As ruas pelas quais andava agora no final seriam somente uma lembrança para os que nunca conseguiram aprender a esquecer.
Passei por uma casa onde um homem louco começara de repente a jogar sua mobília pela janela. Chamava o tempo todo por seu irmão, Fernando, que não via desde que os bandidos trouxeram a guerra para nosso país. Eu o vi justamente no instante em que jogava fora sua cama. Ela bateu contra a calçada, o colchão rasgando, ripas de madeira quebrando. Por que não gritei para que ele parasse? Por que apenas continuei andando? Ainda não sei. O último dia em que Nélio viveu é como um prolongado trecho de um sonho do qual consigo me lembrar parcialmente. Algo estava para acabar na minha vida. Eu havia de repente começado a compreender o significado do que Nélio me contara. Talvez eu também estivesse com medo do inevitável? Que sua história terminaria, que tudo ficaria evidente e que ele morreria daquela ferida terrível em seu peito? Pensei que a morte para os pobres, para pessoas como Nélio e eu, era a única coisa que a vida nos dava de graça.
Pensei que éramos obrigados a engolir nossas vidas cruas. Depois a morte nos esperava.
Não tínhamos jamais a possibilidade de sentir alegria, polir nossas memórias até que reluzisse, não temer o dia de amanhã.
Foi só quando começou a escurecer que retornei à padaria. Dona Esmeralda estava do lado de fora da loja e discutia agitadamente com o homem que entregava farinha de trigo. Era uma briga que já ocorria havia mil anos e que continuaria ocorrendo por mais mil. Esperei até que o homem cabisbaixo fosse embora e que Dona Esmeralda desaparecesse dentro do teatro para forçar os atores a colocar suas trompas e ensaiar, mesmo naquele calor insuportável. Exatamente quando pisei na soleira da porta
da padaria me lembrei de que esquecera de comprar as ervas da senhora Muwulene. Mas não me importei com isso. Eu sabia que já não adiantava.
Assei meu pão e olhei distraído o belo corpo de Maria, transparente através de seu vestido fino. A noite trouxera ar fresco do mar. À minha volta, a cidade dormia para poder lidar com o dia de amanhã quando o sol brilharia com a mesma intensidade.
Pensei no menino que açoitava furiosamente a terra. Pensei se ele ainda estava lá, lutando contra sua própria desgraça, ou se tinha algum lugar para dormir.
Logo depois da meia-noite, Maria foi para casa. Eu me escondi no escuro e a vi se lavando no mesmo chuveiro que eu geralmente usava. Seu corpo nu brilhava à luz das estrelas curiosas, e senti de repente uma excitação, sabendo que poderia resistir a ir até ela e puxá-la para mim. Sua beleza era como tudo que era lindo, misterioso. Eu queria que Nélio estivesse do meu lado e a visse, compartilhando com ele o segredo de Maria. Seria uma lembrança que ele levaria para o outro mundo. Sem saber
por quê, pensei que os espíritos jamais ficavam nus. Mas talvez eu esteja errado. Não sei.
Quando subi para o telhado vi que o gato havia retornado. Estava deitado perto do rosto de Nélio. Parei na soleira da porta da escada de caracol e observei o que parecia ser uma conversa entre o gato e Nélio. Um vento frio tocou rapidamente meu rosto e fez com que me arrepiasse. Os mortos já haviam começado a se reunir à espera de que Nélio os seguisse. Quem era o gato, eu não podia responder. Mas deve ter sentido minha presença, pois virou de repente a cabeça e me olhou com seus olhos frios. Quando piscaram pensei que fosse o homem de olhos miúdos, o homem que Nélio matara, e que agora o reencontrava. Apanhei uma pequena pedra que encontrei no telhado e a joguei contra o lado do colchão. O gato se levantou e desapareceu por cima da cumeeira. Quando cheguei até o colchão vi que Nélio estava muito pálido. Senti sua testa, ele estava com febre, e seus olhos vidrados com aquela expressão vazia que havia visto antes. Mesmo assim sorriu para mim.
- O dia foi muito quente, ele disse com uma voz baixa e frágil.
Dei-lhe água para beber. No seu copo misturei a última porção que ainda restava das ervas da senhora Muwulene.
Ouvimos novamente a mulher que de noite se preparava para o dia seguinte.
Seu pilão socava o milho. E ela cantava.
- Tudo acaba, disse Nélio. Tudo acaba e tudo começa novamente.
Ele levantou uma de suas mãos que era muito magra e apontou para as estrelas, que nessa noite estavam claras e próximas. O céu estava mais perto do telhado para fazer menor o quarto de descanso de Nélio.
- Meu pai era um homem muito sábio, disse Nélio. Ele me ensinou a olhar para as estrelas quando a vida se torna difícil. Quando, em seguida, retornasse o olhar para a terra, o que um momento atrás parecia ser poderoso se tornaria pequeno e simples.
Eu lhe dei mais água, depois senti seu pulso que estava rápido e irregular. A hora do desfecho finalmente se aproximava.
Nélio me olhou em silêncio. Sua história já começara, embora ainda fosse somente um brilho em seus olhos cansados. Mas ele ainda parecia não temer aquilo que o esperava. Estava completamente calmo.
Podemos amar a morte?
Não recebi nenhuma resposta de Nélio enquanto ele vivia. No entanto, continuo a esperar que uma solitária borboleta pouse ao meu lado e me dê a mensagem de Nélio que espero. E por isso que às vezes, na minha solidão, danço no telhado e fico bêbado.
Eu espero e vou continuar a esperar sempre.
Depois, Nélio começou pela última vez sua história, e eu sabia que naquela noite ele chegaria ao fim. Ele contou de como subiram no palco vazio à luz dos refletores. As sombras dos cenários murmuravam sobre a presença deles. O palco respirava, tudo o que durante o ano havia sido representado ali parecia acordar de novo para a vida. Eles se encontravam no meio de um caótico universo de peças, réplicas, entradas e saídas. Havia sido um momento mágico.
Nélio reunira o grupo à sua volta, exatamente no meio do palco. Ele notara que estavam nervosos, que sentiam a presença dos acontecimentos que haviam sido representados ali e que agora ressuscitavam. Nélio pensou que não eram somente um grupo de meninos de rua que representaria uma peça para o moribundo Alfredo Bomba. Eram também público e haviam acordado de volta para a vida as velhas peças, importunando-as no meio de sua longa noite.
Começaram a percorrer o teatro investigando que objetos, conjunto
de peças rejeitadas de antigos cenários, fantasias e perucas usariam. Nélio havia dado ordens rigorosas de que nada deveria ser tocado sem seu consentimento, e que tudo que fosse usado deveria ser colocado de volta em seu devido lugar. Aquela primeira noite se tornou uma longa brincadeira onde Nélio, de seu lugar no meio do palco, observava os outros aparecerem por trás dos cenários vestidos de forma irreconhecível. De vez em quando era obrigado a pedir que fizessem silêncio, pois se esqueciam de que não tinham permissão para estar dentro do teatro. Lembrava-se de como Júlio o avisara sobre os vigias armados, do lado de fora da rua.
Ele os viu fantasiarem-se com alegria infantil e desinibida. Toda vez que algum deles surgia no palco com uma nova fantasia uma mudança imediata ocorria em toda a cena. Um drama surgia, sem falas, sem atos, sem outra intenção senão a de que todos pudessem criar um outro mundo além daquele em que habitualmente viviam. Pecado apareceu sob as luzes vestido em um brilhante casaco de seda vermelha. Nos pés calçava sapatos brancos e movia-se no palco com se fosse capaz de vencer a força da
gravidade enquanto esperava atrás dos cenários. Logo em seguida Júlio apareceu sob os refletores, transformado em um deus, ou talvez uma flor, até então desconhecida. Começou a recitar um texto incoerente enquanto dignamente se movia em círculos em volta de Nélio. Mandioca se fantasiara com várias figuras de animais e também criara um animal que ninguém vira antes. Com a traseira de crocodilo, as pernas de ratos, o peito de um inseto e a cabeça de uma zebra, ele se arrastava pelo palco e emitia sons que Nélio também nunca ouvira.
Enquanto observava essa parada de variações e sonhos, com entradas e elementos constantemente inesperados, a peça começou a se formar em sua cabeça. Pensou na viagem, no momento quando estivessem à beira do rio e vislumbrassem a ilha à distância, a travessia e finalmente a chegada. Compreendeu que não era nada menos que o paraíso que deveriam tentar retratar. Como o paraíso não existia, ele deveria tentar imaginá-lo como seria no mundo de Alfredo Bomba. Teria que criar um paraíso no qual
Alfredo Bomba se sentisse em casa. Durante essa primeira noite não disse muitas palavras. Observou pensativo, quase sonhadoramente, os vários objetos e fantasias que eram carregados para dentro e fora do palco. Anotava na memória o que via. Quando achou que a madrugava se aproximava, os reuniu à sua volta e disse que agora deveriam colocar tudo no devido lugar, apagar qualquer traço de sua estada e depois deixar o teatro assim como entraram, sem ser notados.
- Amanhã começaremos a ensaiar, terminou dizendo. Durante três noites faremos todos os preparativos. Na quarta noite faremos nossa viagem, junto com Alfredo Bomba.
Quando saíram na luz da madrugada e retornaram para o lugar onde Tristeza esperava com Alfredo Bomba, Nélio pôde ver imediatamente que ele havia piorado. Por um instante, ficou preocupado pensando que Alfredo Bomba não viveria o bastante para que tivessem tempo de lhe mostrar sua apresentação. Pediu aos outros silêncio e que não fizessem bagunça para não incomodar o doente. Em seguida, sentou-se ao lado de Alfredo Bomba e conversou longamente com ele.
- Vamos viajar, disse Nélio. Vamos carregá-lo o caminho todo. A viagem não será longa.
- Eu estou com medo, murmurara Alfredo Bomba.
- Você não precisa ter medo, disse Nélio encorajando-o.
- Tenho medo de que Júlio me carregue, disse Alfredo Bomba. Ele vai me deixar cair sem querer ou de propósito.
- Eu o ameaçarei de apanhar com uma vara se o deixar cair, disse Nélio. Júlio não gosta de ser castigado com vara.
Alfredo Bomba não ficou totalmente convencido pelas palavras de Nélio. Mas estava demasiado cansado para fazer alguma objeção. Nélio lhe deu mais uma pílula e depois chamou Pecado e pediu-lhe para massagear os pés de Alfredo Bomba.
- Para que fazer isso? perguntou Pecado, desconfiado. Ele não está com frio.
- O sangue não deve se esconder em seus pés, respondeu Nélio. Faça como eu disse.
Mandioca massageou os pés de Alfredo Bomba, enquanto Nélio cuidava para que, em turnos, os outros enxugassem o suor de sua testa e trouxessem sempre água fria para ele beber. Os que não eram necessários para cuidar de Alfredo Bomba foram enviados para a rua, para lavar carros e comprar gelo e pão com o dinheiro que ganhassem. O calor era incessante e alguém sempre estava ao lado da cabeça de Alfredo Bomba, abanando-o com um pedaço de uma sombrinha quebrada. Logo depois da meia-noite, quando os vigias haviam sentado nas escadas do teatro e começaram a jogar baralho, eles se insinuaram novamente no teatro pelas janelas quebradas na parte de trás do prédio.
Aquela noite começaram a ensaiar a peça. Nélio reuniu-os à sua volta, no palco.
- Nenhum de nós sabe coisa alguma sobre teatro, disse Nélio. Mesmo assim, temos que fazer tudo sem ajuda. Mas isso é algo que sabemos mais do que qualquer um. Sobreviver sem ajuda de ninguém.
- Eu quero representar um monstro, disse Júlio.
- Você poderá representar um monstro, disse Nélio. Mas só se parar de me interromper antes que eu termine de falar. O mais importante é que Alfredo Bomba esqueça que está doente e onde é que está. Pois então poderemos levá-lo para onde quisermos. Além disso, esperaremos até que tenha adormecido. Somente então é que o traremos aqui. Quando reabrir os olhos pensará que está sonhando.
- Será difícil conseguir traze-lo dormindo pela janela quebrada, disse Pecado preocupado.
- Há uma porta do lado de trás, disse Nélio. Na noite antes da nossa peça a destrancaremos.
Em seguida começaram a ensaiar a viagem para a ilha sobre a qual a mãe de Alfredo Bomba havia lhe contado uma vez. Tentaram criar um sonho que tivesse a mesma força da realidade. Nélio se sentia inseguro o tempo todo. Parecia que tateava seu caminho na escuridão de um aposento. Era obrigado a ficar com raiva, freqüentemente, pois os outros não faziam como queria ou faziam muita bagunça. Logo ficou claro que Júlio e Mandioca eram os que chegavam mais perto da total falta de talento para
representar. Júlio encontrou a cabeça de um monstro que se recusava a retirar, embora nunca conseguisse aprender quando deveria entrar no palco, o que deveria fazer ou o que deveria dizer. Finalmente, Nélio perdeu a paciência e o mandou enrolar um pedaço de tecido azul à sua volta e representar o mar.
- O que é que vou falar? perguntou Júlio.
- O mar não fala, disse Nélio. O mar é infinito, ele oscila ou fica parado. Você não dirá nada, já que o mar não fala.
- Isso parece ser uma parte muito chata, objetou Júlio.
- Mas importante, respondeu Nélio. Se você continuar fazendo objeções não poderá continuar participando.
Quem mostrou ter mais talento natural para representar foi Pecado. Além disso, ele se lembrava de tudo que Nélio dizia, entrando no palco na hora certa e dizendo as palavras que Nélio queria ouvir. Nélio iria tomar conta das luzes, apagando-as e trocando de cores quando fosse necessário. Embora estivessem muito cansados, ele os estimulava a continuar. Todas as manhãs quando saíam do prédio do teatro, pálidos e fatigados, podiam ver que Alfredo Bomba se entregara ainda mais à sua doença, que agora avançava com rapidez para o final. Não tinham muito tempo.
Na terceira noite ensaiaram toda a peça que haviam criado. Apesar de Júlio ter adormecido nos bastidores, roncando dentro da sua cabeça de monstro, quase tudo saiu como Nélio desejava.
Quando ele se sentava nas pranchas de madeira acima do palco e observava o que acontecia embaixo, ao mesmo tempo em que trabalhava a
luz dos refletores, se esquecia de onde estava. A viagem para a ilha se despia de sua camada exterior de sonho para se tornar uma viagem verdadeira que acontecia diante dos seus olhos.
Depois, quando reuniram-se novamente no palco, disse a Júlio que ele não podia adormecer nos bastidores e comunicou a todos que agora estavam prontos. Que a peça não poderia ficar melhor.
- Antes de ir embora esta noite, vamos destrancar a porta de trás. Isso quer dizer que amanhã à noite carregaremos Alfredo Bomba para cá, para que ele possa estar presente.
- Ele não vai desconfiar? quis saber Mandioca.
- Quando ele desconfiar já estará participando, respondeu Nélio. É por isso que estamos fazendo tudo isso.
- Ele talvez não entenda nada, disse Pecado. Ele talvez fique tão decepcionado que não vá nem querer ver o final. Talvez durma.
Nélio não teve forças para responder. Nada mudaria. Tudo que restava era esperar pela noite seguinte. Apenas disse que deveriam arrumar tudo para que pudessem deixar o teatro antes do amanhecer.
Pela manhã, Nélio viu que Alfredo Bomba não viveria muitos dias. Ele havia parado de comer, sua pele esticara contra seu crânio, seus olhos afundaram ainda mais. Eles sentavam ao seu redor, calados, cansados e com medo. Todos sentiam a mesma insegurança por estarem tão perto da morte.
Um pouco antes de escurecer, uma pesada chuva caiu sobre a cidade. Cobriram Alfredo Bomba com uma velha lona que estava jogada perto do posto de gasolina. Mas ele parecia não notar nada, estava profundamente imerso em seus sonhos perturbados.
- Pessoas velhas é que morrem, disse Júlio de repente, limpando a água da chuva do seu rosto. As pessoas velhas é que morrem. Não crianças. Nem mesmo se vivem só na rua, como Alfredo Bomba.
- Você tem toda razão, disse Nélio. Isso é algo que esse mundo deveria aprender.
Júlio sentou calado na chuva observando Alfredo Bomba.
- Os espíritos podem morrer? perguntou depois. Da mesma forma que as pessoas?
Nélio balançou a cabeça.
- Não, disse. Os espíritos não estão vivos ou mortos. Eles simplesmente existem.
- Eu acho que será muito melhor para Alfredo Bomba do que é agora, disse Júlio.
- Os velhos é que morrem, disse Nélio. Não as crianças.
- Eu acho que ele voltará como um cachorro, disse Júlio, hesitante. Alfredo Bomba gosta de cachorros. Os cachorros gostam dele.
- Você com certeza tem razão, disse Nélio. Agora não diga mais nada.
A chuva parou tarde da noite. Alfredo Bomba dormia. Todos estavam tensos. A todo instante, Pecado saía para a rua e ficava de olho nos vigias armados do lado de fora do teatro.
- Os vigias esta noite são Armandio e Júlio, disse ele. Armandio que é gordo já está dormindo. Mas Júlio costuma ficar acordado.
- Eles não ouvirão nada, disse Nélio. Logo iremos. Mais cedo nesse dia, Nélio havia ido até o mercado e tomara emprestados dois grossos cabos de vassoura de um fazedor de vassouras que conhecia. No caminho de volta, de repente encontrou o senhor Castigo, que estava sendo arrastado por uma rua entre dois policiais. Tinha apanhado e estava sangrando, suas roupas estavam rasgadas como se uma multidão furiosa tivesse tentado fazê-lo em pedaços. Ele também viu Nélio. Por um curto e confuso instante, ele tentou lembrar-se de quem era aquele menino com os dois cabos de vassoura. Mas Nélio duvidou de que o tivesse reconhecido.
O senhor Castigo é um presságio, ele pensou. Ele foi pego em flagrante e apanhado. Na cela escura da cadeia apanhará ainda mais. Dele em breve restará somente algo que um dia talvez tenha sido um ser humano. Se não tivesse fugido, agora talvez fosse como ele.
Com a ajuda de duas camisolas que enfiaram nos dois cabos de vassouras, confeccionaram uma maça. Quando passava da meia-noite, levantaram Alfredo Bomba - que delirava - e o carregaram para o outro lado da rua deserta. Escutaram em silêncio antes de abrir a porta de trás e desaparecerem dentro do teatro. Enquanto Nélio tateava seu caminho na escuridão até o controle de luz, os outros esperavam atrás do palco. Nélio deixou uma fraca luz da manhã, um suave reflexo rosa sobre um mar que ainda dormia, invadir o chão escuro do palco. Retornou até os outros e deitaram a maça ao lado da rampa, na parte dianteira do palco. Nélio sentou-se ao lado de Alfredo Bomba enquanto os outros desapareceram para se preparar. Ele ainda não queria acordá-lo. Sentiu sua testa e ela estava muito quente.
Depois de um instante, Júlio apontou sua cabeça de monstro por trás dos cenários e sussurrou que estavam pronto. Nélio assentiu. Logo, o vento começou a soprar. Saindo de trás dos bastidores, das bocas de Pecado, Mandioca e dos outros. Cuidadosamente Nélio acordou Alfredo Bomba. Arrastando-o de mansinho para fora de seu estupor. Quando ele abriu os olhos, Nélio se inclinou bem perto de sua face.
- Você está ouvindo o vento? perguntou.
Alfredo Bomba escutou. Depois, assentiu fracamente.
- É o vento do mar, disse Nélio. Estamos a caminho da ilha sobre a qual sua mãe lhe contou.
- Eu devo ter dormido, disse Alfredo Bomba. Eu dormi? Onde estamos?
- Em um navio, disse Nélio e balançou lentamente a parte superior de seu corpo. Você está sentindo as ondas?
Alfredo Bomba assentiu novamente. Nélio ajudou-o a se sentar e encostar suas costas contra o canto do proscênio. Em seguida, deixou Alfredo Bomba e retornou para o controle de luz.
“Na sua avançada velhice, quando a morte já havia se enraizado em seu corpo, o velho Alfredo Bomba fez a viagem com a qual havia sonhado e se preparado a vida inteira. Uma noite, quando a maré estava alta, ele vadeou até um pequeno barco de pesca de velas triangulares que o levaria ao longo da costa até a boca de um rio que somente aqueles em quem suas mães confiavam poderiam encontrar. A bordo do barco de pesca havia um timoneiro invisível, um cachorro, um homem com um saco de arroz e um náufrago monstro que, de vez em quando, se mostrava ao lado da embarcação. Navegavam pelas estrelas e mantinham curso fixo para a segunda estrela de Pégaso. Um pouco antes da aurora, passaram por uma forte tempestade vinda do nordeste, quando o vento se jogou contra as velas, o trovão deu estrondos e os raios se cruzaram. Quando o mar se acalmou novamente, o monstro parecia ter se afogado na ondas, e o homem com o saco de arroz estava imóvel na proa buscando a boca do rio. O cachorro se deitou ao lado de Alfredo Bomba. Ele tinha mãos em vez de patas, mas Alfredo Bomba compreendeu, com toda a sabedoria de sua velhice, que viagens ao longo de costas desconhecidas significava companhia de criaturas estranhas, que jamais havíamos visto antes. Ao amanhecer aproximaram-se da terra. A costa era cheia de precipícios. O homem na proa ofereceu ao mar uma mão cheia de arroz e o no apareceu entre os rochedos. Velejaram depois rio acima que, desde o começo, era muito largo. O monstro tinha retornado na figura de um crocodilo. Mas Alfredo Bomba se sentia seguro o tempo todo na companhia do timoneiro invisível, do cachorro e do homem com o saco de arroz. Nas praias do rio, ele via pessoas que lhe acenavam. Alfredo Bomba o tempo todo teve a
impressão de que conhecia os que acenavam, da mesma maneira que acreditava que o cachorro ao seu lado era um cachorro que conhecia de sua vida anterior. Mas achava que isso havia ocorrido quando ainda era muito jovem, ainda apenas uma criança.
Quando já tinham navegado durante muito tempo, sua embarcação acostou contra o invisível banco de areia no meio do rio. O cachorro se levantou com suas pernas de aparência humana, pegou o saco de arroz e vadeou em direção a uma ilha que ficava perto do lugar onde o barco acostara. O homem de pé na proa, que durante toda a viagem sem interrupção observara o mar, agora virou sua cabeça pela primeira vez. Alfredo Bomba pensou reconhecê-lo. Era uma face que lhe chegava flutuando do passado. Depois se lembrou de quem era.
- Pecado, disse. E realmente você?
- Pecado foi meu pai. Eu sou o filho dele.
- Eu me lembro dele, disse Alfredo Bomba sonhando. Você se parece muito com ele. Mas ele não tinha um bigode torto debaixo de seu nariz.
- Chegamos. Eu o ajudarei a desembarcar.
O filho de Pecado ajudou o fraco Alfredo Bomba a desembarcar. Foram por um momento levados pelo mar que parecia tecido de seda azul. Vadearam por um breve momento antes de alcançarem a terra. A luz, agora, era bem mais forte, como se o sol tivesse se multiplicado e brilhasse acima de sua cabeça com muitos olhos. O filho de Pecado sentou-o em uma cadeira de descanso e abriu um guarda-sol sobre sua cabeça. O cachorro deitou-se novamente ao seu lado, o barco e o crocodilo haviam desaparecido. Tudo estava muito silencioso.
- O que aconteceu com seu pai? perguntou Alfredo Bomba, notando que o silêncio da pequena ilha de areia o transportara para o passado, com uma velocidade vertiginosa.
- Foi meu filho que o trouxe até aqui, respondeu Pecado. Eu sou o pai dele.
Alfredo Bomba olhou-o surpreso. Em seguida, notou que o bigode tinha desaparecido. Era realmente Pecado quem estava sentado ao seu lado.
- Faz tanto tempo, disse Alfredo Bomba, e notou que o mar rolava lentamente para mais perto de seu corpo. As ondas começaram a balançar bem ao lado de sua pele.
- Até você envelheceu, continuou ele, ainda olhando surpreso para Pecado.
Pecado sorriu. Depois apontou para o rio. Alfredo Bomba olhou com os olhos semicerrados sob a forte luz do sol. Viu Nélio se aproximando com as pernas de suas calças enroladas. Do seu lado estavam Júlio, Mandioca, Tristeza. Logo estavam todos reunidos ao seu redor. Ele viu que todos estavam velhos, como ele também estava.
- Pensei que nunca iríamos nos encontrar novamente, disse Alfredo Bomba. Não entendo mais por que ficava constantemente com medo.
- Estamos aqui, disse Nélio. Onde amigos se encontram não há nenhum lugar para o medo.
Alfredo Bomba sentiu que as vagas que trazia dentro de si cresciam cada vez mais fortes. Elas estavam prestes a carregá-lo para algo desconhecido mas já não temido. A água estava quente e ele se sentia agradavelmente sonolento. A luz do sol era muito forte e as faces ao seu redor estavam prestes a se apagar lentamente.
- Quem é que me trouxe até aqui? ele perguntou. Eu deveria agradecer o timoneiro.
- Foi sua mãe, disse a voz que pertencia a Nélio, mas já não conseguia ver seu rosto.
- Onde ela está? perguntou Alfredo Bomba. Não consigo vê-la.
- Ela está atrás de você, disse alguém, e agora era o cachorro deitado ao seu lado quem falava.
Alfredo Bomba não tinha forças para virar a cabeça. Mas sentiu o calor do hálito dela no seu pescoço. As vagas ondulavam dentro dele, ele estava muito cansado e pensou que já fazia tempo que dormira. Fechou os olhos, sua mãe estava sentada bem atrás dele na areia, e ele agora sabia que tinha ficado com medo sem razão. O que tinha ocorrido continuaria a ocorrer, seus amigos continuariam sempre a existir ao seu redor.
Em seguida o sol se apagou ao seu redor, um depois do outro. Ele sorriu ao pensar no estranho cachorro que tinha mãos em vez de patas. Ele deveria tentar se lembrar daquilo para contar a Nélio quando acordasse. Um cachorro que tinha mãos em vez de patas...”
Eles ficaram ao seu redor e o viram dormir.
- Ele está sorrindo, disse Júlio. Mas não aplaudiu. Acho que ficou com medo do monstro.
- Fique calado, disse Nélio. Você fala demais, Júlio. Nélio observou o rosto de Alfredo Bomba. Ali havia uma expressão que não conhecia.
Então compreendeu que Alfredo Bomba estava morto. Deu um passo para trás.
- Ele está morto, disse Nélio.
No começo, não entenderam o que ele queria dizer. Depois viram por si mesmos que Alfredo Bomba já não respirava e pularam para trás.
- Fomos assim tão ruins? disse Mandioca.
- Acho que fizemos o melhor que podíamos ter feito, respondeu Nélio, e sua voz estava cheia de pesar.
Nenhum deles disse mais nada. Júlio virou as costas e moveu-se para dentro da cabeça de monstro.
Um rato arranhava debaixo do chão do palco.
Depois tudo ocorreu com muita velocidade.
As portas do fundo da sala foram abertas. Alguém gritou. Na forte
luz dos refletores não podiam ver quem era. Todos, a não ser Nélio, fugiram para os bastidores. Alguém continuou a gritar, Nélio entendeu
que ele deveria colocar suas mãos para o alto, que deveria se entregar. Ele continuou de pé na frente de Alfredo Bomba, que estava sentado morto na cadeira de descanso e pensou que até um menino de rua merecia ser defendido. Depois, foi até a rampa para explicar que nada havia acontecido. Dois tiros foram disparados um atrás do outro. Nélio foi jogado para trás e caiu deitado no chão do palco, bem diante dos pés de Alfredo Bomba. Sentiu que seu olhar ficava turvo e que começava a afundar. Percebeu vagamente que alguém estava em pé do seu lado e o observava. Talvez fosse Júlio, um dos vigias de fora do teatro. Mas o rosto não era claro e ele não estava certo de que reconhecia a voz. Também poderia ser a face transparente da morte. Que chegara para levar Alfredo Bomba e que agora decidira também me levar, pensou ele.
O rosto que se inclinou sobre ele desapareceu. Ele ouviu passos apressados que se afastavam. Depois tudo ficou muito silencioso. A luz dos refletores era muito forte. Ele fechou os olhos. Toda vez que respirava uma dor o cortava. Era como se tivesse um buraco direto através do corpo todo. Apesar da dor tentou entender o que ocorrera. Deve ter sido o trovão, ele pensou. Eu deveria ter compreendido que o barulho de quando alguém puxava e sacudia a placa de fazer trovão poderia ser ouvido da rua. Os vigias começariam a ficar nervosos e pensariam que éramos ladrões que tínhamos arrombado para entrar. E eles atiraram porque estavam com medo de que atirássemos neles. Se tivesse ficado completamente parado talvez vissem que eu era apenas uma criança.
Ele ouviu passos novamente. Dessa vez não era de um estranho.
Eram pés magros que cuidadosamente tocavam no chão do palco. O grupo retornava. Ele abriu os olhos e viu seus rostos assustados. Ele se esforçou ao máximo para que não notassem o quanto sentia dor.
- Vocês devem levar Alfredo Bomba embora, ele disse. Vocês não
podem deitá-lo na rua ou numa valeta. Vocês têm que dar a ele um funeral de verdade. Levem-no até o necrotério e dêem ao vigia noturno todo o dinheiro que ainda possuem. Então o levem para o cemitério quando clarear. Mas antes de sair, coloquem tudo de volta em seus lugares, como estava quando chegamos.
- Você vai continuar deitado aqui? perguntou Júlio.
- Eu vou apenas descansar, disse Nélio. Depois vou atrás de vocês. Façam como eu digo. Mesmo sangrando do jeito que está, isso não é tão sério como parece. Ande logo. A madrugada está para chegar.
Fizeram como ele disse, penduraram as fantasias, levantaram Alfredo Bomba e em seguida o tiraram dali.
Ao redor de Nélio tudo retornou ao silêncio. Ele tentou sentir se iria morrer logo, ou se demoraria. O buraco no seu corpo não parecia aumentar. Ainda sentia muita dor quando respirava. Mesmo assim entendeu que não iria morrer de imediato. Ele ainda não seguiria Alfredo Bomba.
Nélio falava de olhos fechados. De vez em quando, sua voz era tão fraca que tive dificuldades em entender o que dizia. Mas agora abriu seu olhos e me olhou.
- O resto você mesmo pode contar, disse ele. Fiquei deitado no palco, você veio e me carregou até o telhado. Há quanto tempo estou aqui não sei dizer.
- Esta é a nona noite, disse eu.
- A nona e última noite, respondeu Nélio. Sinto que já não agüentarei muito tempo. Eu já estou me abandonando.
- Eu tenho que levá-lo para o hospital, eu disse. Lá existem médicos que podem curá-lo.
Nélio me olhou longamente antes de responder.
- Ninguém pode me curar. Você sabe disso.
Eu lhe dei água para beber. Não havia mais nada que eu pudesse fazer.
Em algum, lugar na escuridão ouvimos dois bêbados brigar. Coloquei minha mão na sua testa e senti que estava muito quente.
- Não tenho mais nada para contar, disse Nélio. Parece que minha vida foi muito longa. Estou contente por ter sido você quem me encontrou e me carregou para o telhado. Quero também lhe pedir para queimar meu corpo quando já não mais viver.
Ele viu que eu me assustara com a idéia.
- Como é que você poderá me carregar daqui? ele perguntou. Como é que vai poder explicar que eu estava aqui no telhado e que morri? Você tem que queimar meu corpo para se ver livre de mim.
Eu vi que ele estava certo.
- Demorará uma hora para que eu desapareça, disse ele. Meu corpo é muito pequeno.
Depois tudo aconteceu com rapidez.
Ele me pediu para lhe fazer esse último favor e compreendeu que eu cumpriria seu desejo e me pediu mais uma vez para lhe trazer água para beber. Em seguida fechou os olhos e foi-se embora do mundo. Seu rosto estava muito sereno.
Quais foram suas últimas palavras? Ele disse alguma coisa a mais?
Ainda hoje, depois de um ano, continuo incerto. Mas não acredito que tenha dito nada mais.
Meu corpo é muito pequeno.
Isso foi a última coisa que disse.
A noite estava tranqüila. Eu me sentei e olhei seu rosto pálido sob a luz incerta do lampião.
Eu me lembro de que o rosto dele, por uma estranha razão, me lembrava o oceano. Ali estava gravada a presença do infinito.
Uma esquecida tempestade de vento pousou sua mão sobre o telhado, de repente, refrescando. Quando ela passou, Nélio estava morto.
E a nona noite foi ao encontro da madrugada.
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A MADRUGADA
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Jamais esquecerei aquela manhã.
Quando deixei a padaria saí para uma aurora que jamais vira antes. Ou será que eram meus olhos que haviam se transformado? Para que finalmente agora pudessem captar o segredo da luz, o vermelho da manhã que era da cor do espírito invisível de Nélio, flutuando livre no seu próprio universo? Fiquei completamente parado na rua, o conhecimento que Nélio me transmitira em cima do telhado, de que uma pessoa sempre está no centro do mundo, onde quer que esteja, mostrou-se agora com absoluta clareza.
Um rato estava sentado no canto da boca quebrada do esgoto e me observava com olhos fixos.
Naquele instante a terra tremeu ligeiramente. Nunca antes eu havia passado por aquilo, mesmo assim sabia o que estava acontecendo. Os velhos que passaram por isso durante o primeiro ano do governo de Dom Joaquim haviam contado como a terra começara a tremer, como o solo se abrira e as casas se sacudiram ao mesmo tempo. Os que haviam vivido uma longa vida e se lembravam tinham sempre esperado que os tremores retornariam um dia e a terra novamente se abriria em fendas. Eu sabia que era por isso que os velhos se recusavam a subir escadas, ou ter suas camas no primeiro ou segundo andares em casas da cidade de pedra. Eles queriam morar no solo,
perto da terra, ainda que uma fenda pudesse se abrir exatamente debaixo de seus pés. Eles preferiam ser devorados pela terra quente a ser esmagados pela colisão da casa.
Os tremores duraram muito pouco, pouco mais que dez segundos. O cimento caiu das paredes da padaria, uma janela estremeceu. O rato desapareceu debaixo da terra. Foi só isso. Em seguida tudo retornou à calma. As pessoas que levantavam cedo e que se encontravam na rua, os meninos de rua que acordaram aturdidos, os trabalhadores e empregados a caminho de suas várias ocupações, pararam o passo. Foi como se o tremor na realidade não fosse sentido fisicamente, fosse mais como um som que pensamos ouvir, um pressentimento de que algo incomum está prestes a ocorrer. Quando terminou, tudo ficou muito silencioso. A cidade segurou a respiração. E logo um violento tumulto irrompeu. Pessoas saíram de suas casas, muitas ainda vestidas com suas roupas de dormir. Algumas carregavam caixinhas com suas coisas de valores, outras pareciam não ter pensado, apanhando o objeto mais próximo. Vi pessoas saindo com pequenos espelhos, leques, uma frigideira. Estavam muito próximas do pânico, todos
se colocaram no meio da rua em pequenos grupos agitados para que uma casa não caísse sobre eles.
Então notei algo muito estranho. Todos olhavam para cima, para o céu e o sol, embora o tremor tivesse vindo de baixo, um invisível movimento na terra. Eu ainda não entendi por que foi assim, embora tenha refletido muito durante esse ano que passou.
Devo ter sido o único que não sentiu medo. Não porque sou corajoso
e não sinto medo, mas porque era o único que sabia o que acontecera. O tremor que ouvimos, ou sentimos como um estranho presságio, era o espírito de Nélio que se libertara dos últimos vínculos com este mundo, e com uma força violenta se jogara através das barreiras transparentes das fronteiras para o outro mundo, onde seus antepassados e os que uma vez viveram na aldeia queimada o esperavam. Alfredo Bomba também estaria lá e a vida se tornaria uma distante lembrança, como um misterioso sonho que não conseguimos recordar completamente. Olhei para os grupos de pessoas e pensei que deveria subir no teto de um carro e explicar o que havia ocorrido. Mas não fiz isso. Apenas fui embora dali, em direção à praia, onde me sentei à sombra de uma árvore cujas raízes a areia desnudara quase totalmente. Me sentei e olhei para o mar, para os pequenos barcos de pesca com suas velas triangulares, a caminho do largo rastro de sol.
A tristeza pesava. A dignidade com que Nélio deixara este mundo só podia parcialmente aliviar a dor de ter sido deixado sozinho. Ao mesmo tempo não sabia se podia confiar totalmente em meu próprio discernimento. Eu estava cansado depois de uma longa noite, estava fatigado como nunca antes em minha vida.
Também adormeci ali na areia, debaixo da árvore onde estava. Os sonhos eram perturbados, Nélio vivia, ele se transformara em um cachorro que eu, correndo pela cidade, procurava. Quando acordei, estava coberto de suor e com muita sede. Pude ver pelo sol que dormira por muitas horas. Fui até a beira da água e lavei o rosto. Quando retornei para a cidade, notei que a inquietude da manhã desaparecera. Aqui e acolá as pessoas se reuniam e conversavam sobre o extraordinário tremor de terra, que já parecia ser uma memória distante. Agora começaram a esperar pela próxima vez, talvez em cem anos, quando aconteceria novamente.
Cheguei até a padaria e vi que os padeiros estavam tirando as fôrmas de pão do forno. Ao lado de um dos fornos encontrei de repente um pedaço do curativo que Nélio usara em volta de seu peito na última noite. Devia ter caído quando coloquei seu corpo no fogo. Olhei a minha volta, apanhei e joguei o tecido rapidamente no fogo.
Em seguida fui até o quintal e lavei todo o corpo. Pensei que agora deveria retornar à casa que dividia com meu irmão e sua família. Minha vida voltaria a ser o que era antes de ter escutado os disparos no teatro vazio naquela noite. Nélio morrera. Por outro lado, existia Maria, seu sorriso, e todo o pão que ainda faltava assar nas incontáveis noites à nossa frente.
Ainda era cedo, no entanto. Subi até o telhado e quase esperei que Nélio ainda estivesse lá, com seu rosto pálido e febril. Mas o colchão estava vazio, marcado por seu corpo magro. Eu o sacudi e o encostei contra o chaminé para arejar. Dobrei o cobertor que iria devolver para o vigia. Depois, não havia nada mais a fazer. Enfiei o copo com as ervas da senhora Muwulene no bolso. Justo quando ia embora, vi o gato que algumas noites atrás viera para uma visita e se enrolara aos pés de Nélio. Tentei atraí-lo sem nenhum resultado. Ele se manteve a uma cautelosa distância. Quando me levantei para ir embora, ele ainda estava sentado e me observava. Essa foi a última vez em que o vi. Em todas as outras noites que passei no telhado, ele jamais retornou.
Às vezes penso que Nélio o tenha levado consigo para o outro mundo. Talvez os gatos possam passar vivos para o mundo dos mortos?
Quando desci do telhado, Dona Esmeralda tinha chegado. Ela trazia uma bolsa de dinheiro consigo, só Deus sabe onde o conseguira, sentou-se em seu banquinho e pagou os salários com seus dedos magros e enrugados. Embora não fosse avarenta, ela parecia sempre ter dificuldades em se desfazer do dinheiro. Eu achava que sabia o porquê. Eram tantas as coisas de que ela precisava para seu teatro, tantas as maneiras que gostaria de usar o dinheiro. Não para si. Dona Esmeralda nunca comprava nada para si mesma. Aquele chapéu que usava tinha certamente cinqüenta anos, assim como seus vestidos e os sapatos gastos que levava nos pés.
- Você notou o tremor? perguntou ela de repente.
- Sim, respondi. A terra tremeu. Duas vezes, como em um sonho que nos estremece diante de algo inesperado.
- Eu me lembro de quando aconteceu da última vez, disse ela. Foi durante o tempo de meu pai. Os padres pensaram que era um presságio de que a terra iria acabar.
Não dissemos mais nada. Paguei de volta o dinheiro que pegara emprestado das meninas do balcão e depois saí pela cidade. Os meninos
de rua procuravam comida nas latas de lixo, os comerciantes indianos abaixavam as pesadas persianas de ferro sobre as janelas e portas, o cheiro de mingau de milho sendo cozido estava no ar, e ninguém,
absolutamente ninguém, sabia que Nélio estava morto.
Sem saber por quê, parei na frente de uma loja indiana e entrei em sua penumbra. Tudo estava como devia ser. Atrás de uma caixa de registro, sentava um mulher indiana gorda, vigiando seus vendedores negros. Um homem muito velho perguntou respeitoso o que eu desejava.
- Desejo Nélio de volta, disse eu. Desejo que ele retorne à vida.
O velho me olhou, pensativo.
- Não temos isso, disse lentamente. Mas o senhor pode tentar na loja do outro lado da rua. Eles possuem mercadorias fora do comum. Eles importam diretamente do país onde os olhos das pessoas são puxados.
Eu lhe agradeci.
Em seguida, comprei um chapéu. Eu os vi pendurados na parede e apontei para o do meio.
- Um chapéu é bom no calor, disse o velho e o apanhou com uma longa vara munida de garras.
O chapéu era branco e tinha uma faixa preta à sua volta. Ele escreveu em um papel para que eu pagasse à mulher do caixa. Quando ia pagar vi que custava mais da metade do meu salário mensal. Apanhei meu chapéu, coloquei-o na cabeça e saí novamente para o sol.
Fui até um café e comi. Minha cabeça estava vazia.
À noite retornei para a padaria. Maria já havia chegado.
O vestido dela era fino e leve, seu sorriso era muito grande.
- Você notou o tremor? perguntei.
- Não, ela disse e sorriu. Eu estava dormindo. Em seguida, começamos a trabalhar.
Logo depois da meia-noite eu a acompanhei até a rua. Quando nos separamos, rocei seu braço.
Ela sorriu.
Naquela noite não subi ao telhado. Quando precisava de ar, saía até a rua e me sentava nas escadas.
No dia seguinte fui para a casa de meu irmão e sua família. Ficaram contentes em me ver. Minha cunhada quis saber se eu estava doente.
- Uma pessoa que compra um chapéu novo não está doente, disse meu irmão. Um homem pode fazer o que quiser. Se quiser, vai para casa, se não quiser, não vai.
Fiquei acordado por muito tempo na minha cama e ouvi todos os barulhos que penetravam pelas paredes finas.
Compreendi que alguma coisa estava acontecendo dentro de mim. Mas não sabia o quê.
Ainda não.
Passaram algumas semanas. Eu assava meu pão, roçava no braço de
Maria e pendurava meu chapéu em um gancho perto dos fornos. Em algumas ocasiões, quando não encontrava forças para ir para casa de manhã, entrava no duto de ventilação e assistia aos ensaios da peça de Dona Esmeralda com os elefantes revolucionários. Vários atores tentaram desempenhar o papel de Dom Joaquim, mas nenhum foi bom o bastante perante os olhos de Dona Esmeralda. Os atores pareciam cada vez mais confusos com o conteúdo da peça. Tentavam representá-la de várias maneiras diferentes, como tragédia e comédia, como farsa e comédia. Mas, de todas as maneiras que tentavam, as trompas atrapalhavam. Em uma ocasião a linda, jovem e mimada Elena começou a chorar em cena. Foi extraordinário vê-la tentando secar as lágrimas por trás da trompa. Foi a única vez que ri depois da morte de Nélio. Uma única risada que flutuou sem gravidade naquele espaço onde eu já não me sentia em casa.
Então uma noite acompanhei Maria até a rua, vi-a sorrir, vi-a ir embora. Retornei para a padaria e enfiei uma fôrma no forno e fechei sua porta.
Foi então que soube que essa seria a última noite que trabalharia para Dona Esmeralda.
Eu deixaria tudo pronto. De manhã me lavaria atrás da padaria, depois apanharia meu chapéu e sairia dali para nunca mais voltar.
Compreendi que não poderia mais ser um padeiro. Tinha uma outra missão no tempo que ainda restava da minha vida. Eu tinha que contar a história de Nélio. O mundo não podia ficar sem ouvi-la. Ela não podia ser esquecida.
Ainda posso, depois de mais de um ano, me lembrar daquele momento com muita clareza. Finalmente tomara uma decisão. Uma decisão que já existia dentro de mim, mas que não compreendera antes daquele momento o quanto era necessária. Pensei que iria ter saudades do cheiro de pão fresco. Que sentiria saudades de Maria e de seus vestidos etéreos. Talvez sentisse saudades até de Dona Esmeralda e de seu teatro?
Mesmo assim não foi um momento difícil. Acho que é mais certo dizer que foi fácil.
De manhã, depois que me lavei e apanhei meu chapéu, esperei por Dona Esmeralda para lhe comunicar minha decisão. Mas ela demorou. No final, fui até uma das meninas chatas que ficavam no balcão.
- Já terminei, disse, e levantei o chapéu. Diga a Dona Esmeralda que José Antônio Maria Vaz já não trabalha aqui. Diga a ela que fui muito feliz durante o tempo em que trabalhei aqui. Diga a ela também que eu nunca mais, enquanto estiver vivo, farei pão para outra padaria.
Foi com Rosa que falei? Lembro-me somente da sua expressão de surpresa. Quem seria tão burro a ponto de parar, por vontade própria, de trabalhar para Dona Esmeralda? Com milhões de pessoas sem trabalho, sem dinheiro, sem comida?
- Você ouviu a coisa certa. Agora vou e não volto mais. No entanto, isso não era completamente verdade. Eu já decidira que à noite esperaria por Maria. Eu a encontraria uma vez para lhe dizer adeus e desejar-lhe sorte em seu futuro. Talvez no meu íntimo esperasse que ela fosse comigo? Não sei. Mas para onde ela iria comigo? Para onde eu realmente estava indo?
Minha resposta era que não sabia. Eu era portador de uma missão importante, mas não sabia que direção tomar.
Quando deixei a padaria naquela última manhã senti uma grande liberdade. Não sabia nem por que sentir pesar por Nélio.
Talvez devesse antes sentir pesar por Alfredo Bomba que, certamente, não estava gostando de onde estava. Ele, com certeza, durante muito tempo sentiria saudades da vida na rua, do grupo, das latas de lixo, das caixas de papelão do lado de fora do Ministério da Justiça.
É mesmo assim. Uma pessoa pode sentir saudades de uma lata de lixo ou de uma vida eterna. Isso dependia completamente das circunstâncias.
Fui até a praça da estátua eqüestre de Nélio. Quando cheguei lá descobri para meu assombro que ela caíra. Na praça havia uma grande multidão, os comerciantes indianos não tinham aberto suas lojas, e Manuel Oliveira escancarava as portas de sua igreja.
A estátua eqüestre caíra.
Entendi que os tremores haviam sido suficientes para que o pedestal da pesada estátua quebrasse. O cavalo de bronze caiu de lado, o capacete do cavaleiro foi esmagado. Era o resto de uma outra época que se espatifava no solo. Os jornalistas da cidade escreviam, um fotógrafo tirava fotografias, as crianças já haviam começado a brincar e a pular no último monumento de Dom Joaquim.
A igreja de Manuel estava cheia de gente. Recitavam maquinalmente suas preces como proteção e exorcismo para que os tremores não retornassem. O velho Manuel estava de pé embaixo da alta cruz negra na parte traseira da igreja e observava o milagre que ocorrera. Talvez chorasse, eu estava tão longe que não podia ter certeza. Saí dali e pensei que o espírito de Nélio flutuava sobre minha cabeça. O sofrimento dele terminara, as balas em seu corpo não poderiam mais envenená-lo. Como última saudação ele deixara o cavalo, em cuja barriga havia morado, espatifar-se no chão. Sentei-me depois por muitas horas em um banco perto do hospital de onde podia ver toda a cidade. Na distância, se forçasse os olhos, poderia também enxergar o telhado onde Nélio ficara durante as nove noites em que contara sua história.
Eu tinha muito no que pensar. Onde moraria? De que viveria? Quem daria para uma pessoa que só tem uma história para contar o alimento de que necessita? Eu me sentei ali no banco na sombra e fiquei cada vez mais preocupado.
Depois pensei nas crianças que vivem nas ruas, em Nélio, Alfredo Bomba, Pecado e nos outros. Eles encontravam sua comida nas latas de lixo, a refeição gratuita dos pobres. Aquela comida também seria a minha. Eu poderia morar onde quer que fosse. Como uma lagartixa, poderia procurar uma rachadura suficientemente grande em um muro. Existiam caixas de papelão, destroços de carros enferrujados. A cidade estava cheia de moradias que não custavam nada.
Eu sabia que não poderia continuar morando com meu irmão e sua família. Essa era uma moradia que pertencia à vida que eu estava abandonando. Levantei-me do banco e me senti especialmente animado. Eu me preocupara sem necessidade. Eu era um homem rico. Eu tinha a história de Nélio para contar. Não precisava de nada mais.
À noite esperei por Maria no escuro, do lado de fora da padaria. Quando a vi chegando, não tive coragem de ir até ela. Tentei me esconder no escuro. Porém, ela já tinha me visto, seu vestido era leve e ela sorriu. Saí do escuro, me sentindo quase como o ator que saía dos bastidores para um palco iluminado. Passei rapidamente a mão no rosto para ver se ali não havia nenhuma tromba presa ao meu nariz. Depois levantei o chapéu.
- Maria, eu disse. Como poderei um dia esquecer uma mulher que dorme tão pesado que nem um tremor de terra consegue acordá-la? Com o que você sonhava?
Ela riu e sacudiu suas longas tranças negras.
- Meus sonhos pertencem só a mim, ela disse. Mas gosto do seu chapéu. Ele fica bem em você.
- Eu o comprei para que pudesse levantá-lo para você, respondi.
Ela ficou muito séria.
- O que você faz aqui fora?
Eu tirara meu chapéu e o segurava contra o peito como se estivesse em um enterro.
Em seguida lhe contei o que era. Que tudo acabara. Que eu havia deixado o emprego.
- Por quê? ela perguntou quando me calei.
- Tenho uma história que devo contar, disse eu.
Para minha grande surpresa ela pareceu me entender. Não parecia tão surpresa como a menina do balcão.
- Temos que fazer aquilo que devemos fazer, disse ela.
Depois nos separamos. Ela estava com pressa para chegar à padaria. Não queria chegar atrasada. Não tive nem tempo de roçar seu braço. Essa foi a última vez em que ela esteve tão perto de mim.
Depois disso eu a vi pelas ruas da cidade, com outro homem, e ela estava grávida, mas isso sempre à distância.
Maria, a mulher que jamais esquecerei, está perto de mim, à minha volta. A Maria que às vezes vejo, à distância, nas ruas, é outra.
Eu a vi indo embora. Uma vez se virou, acenou e sorriu. Levantei o chapéu e o segurei na mão até ela desaparecer. Depois nunca mais coloquei o chapéu de volta na cabeça. Não necessitava mais dele. Coloquei-o em cima de uma lata de lixo nas proximidades. Creio que um dia vi o resto de meu chapéu na cabeça de um menino de rua. Parecia que o chapéu estava bem ali onde estava.
Um ano se passou após a morte de Nélio.
Vi Maria desaparecer e fui ao encontro de minha nova vida. Comecei a viver como mendigo, buscando comida nas latas de lixo, dormindo nas fendas das casas e dos muros e comecei a contar minha história.
O grupo de Nélio havia se separado. Voltei a ver Júlio, que se juntara ao grupo mais louco de meninos que ficavam do lado de fora do mercado central. Ele estava como sempre. Para todos os lugares que ia, levava consigo uma caixa de papelão. Imaginei se ele, algum dia, conseguiria matar os monstros que carregava dentro de si. Ainda que agora tivesse uma faca que amolava freqüentemente.
Pecado, vi uma vez quando andava no bairro rico da cidade. Ele vendia flores em uma esquina. Imaginei que ele as cultivava em seus bolsos da mesma maneira que Mandioca. Acredito que vendia bem, pois se vestia com roupas limpas e inteiras.
Encontrei Tristeza uma vez, do lado de fora de um café onde os turistas e os cooperantes geralmente se encontravam. Ele adormecera no meio da calçada e seu tênis desaparecera. Estava novamente descalço. Era o menino de rua mais sujo que eu havia visto. Fedia. Tinha feridas com pus nas mordidas de pulgas e sarnas, e ele se coçava e se arranhava enquanto dormia. Estava muito magro e pensei que Nélio estava certo. Ele não viveria muito tempo neste mundo que não precisava de pessoas que
pensavam devagar. Saí de lá sem acordá-lo e nunca mais voltei a vê-lo.
Mandioca desapareceu. Pensei por muito tempo que sofrera um acidente, que estava morto. Mas depois fiquei sabendo que ele, por vontade própria, havia procurado uma das grandes casas onde as freiras de hábitos brancos davam às crianças roupa e comida. Ele decidira ficar. Não creio que jamais volte para as ruas.
Revi até Deolinda.
É a pior lembrança que tenho desse ano depois que Nélio ficou no telhado e morreu.
Era tarde uma noite, em uma das ruas centrais, eu passava pelo bairro onde estão localizados os restaurantes ao ar livre, indo em direção ao bairro dos ricos, onde muitos cooperantes possuem suas casas. Não lembro para onde estava indo, já que raramente estou a caminho de algum lugar a não ser aonde meus passos me levam. As meninas, geralmente, ficavam nas esquinas das ruas e se ofereciam. Sempre achei embaraçoso passar por elas e geralmente olhava para a rua ou para o outro lado. Mas em uma esquina, tarde da noite, eu vi Deolinda. Ela estava muito maquiada, quase irreconhecível, usando roupas provocantes e batendo os pés na pedra da calçada com impaciência. Ao passar, parei e me virei. Eu esperava que Cosmos retornasse um dia de sua viagem e tomasse conta de sua irmã.
Esperava que não fosse tarde demais.
Nas noites quando estou a caminho de meu telhado, às vezes paro em frente de algum restaurante onde posso escutar música. Quando escuto os tons monótonos mas bonitos da timbila, volto na memória às noites que passei junto de Nélio. Posso ficar horas ali escutando. Da música surgem vozes, já muito esquecidas, exceto por mim.
Uma única vez fui até o grande cemitério onde Nélio passou uma noite no mausoléu do senhor Castigo. Procurei o lugar onde os indigentes eram enterrados. Ali, em algum lugar, descansavam os restos mortais de Alfredo Bomba. Lá embaixo sua perna já se misturara com a de outros, enterrados ali, apinhados uns nos outros, o queixo de um contra a mão do outro, e eles clamavam, como em coro, em grande desespero seu destino. Pensei ter sentido a dança perturbada de todos os espíritos que não haviam encontrado descanso e, enquanto os espíritos não descansassem, a guerra continuaria a devastar este país.
Minha história está próxima de um final. Eu contei tudo e vou novamente recomeçar.
Eu sei que sou chamado o cronista do vento porque ninguém consegue ouvir o que tenho a dizer.
Mas sei que o dia vai chegar.
Ele vem porque tem que vir.
Um ano já passou desde que os tiros foram disparados. Eu passo minhas noites no telhado do teatro. É lá que me sinto em casa.
O padeiro que trabalha nas horas silenciosas da noite, o que ficou no meu lugar, jamais diz algo sobre minha presença ali. Ele também às vezes reparte sua comida comigo.
Eu preciso da tranqüilidade que existe lá em cima no telhado, depois dos longos dias debaixo do sol ardente. Eu ainda tenho meu colchão. Lá posso me deitar e olhar para as estrelas antes de dormir. Lá posso pensar em tudo que Nélio me disse antes de morrer, e sei que tenho que continuar a contar sua história, embora apenas os ventos do mar escutem o que tenho a dizer. Tenho que continuar contando sobre esta terra que se afunda cada vez mais fundo em seu mal-estar, onde as pessoas são forçadas a viver para esquecer e não para lembrar. Tenho que continuar a falar para que os sonhos não fiquem quentes de febre, esfriem e por fim morram. É como se
Nélio quisesse colocar sua mão na testa do mundo e misturar as ervas da senhora Muwulene em todos os rios e mares da terra. A terra se afunda cada vez mais, os grupos de meninos de rua são cada vez mais numerosos e se tornam cada vez maiores, meninos que vivem no mais pobre de todos os países, no país dos meninos de rua.
Minha história termina e constantemente recomeça. Até que finalmente fique como um tom invisível, banhado no eterno sussurro do vento do mar. Existindo nos pingos da chuva que caem sobre a terra seca, existindo finalmente no ar que respiramos. Eu sei que é verdade aquilo que Nélio disse, que a nossa última esperança é não esquecer quem somos, que somos pessoas que nunca poderemos governar os ventos mornos do mar, mas que talvez um dia consigamos entender por que os ventos devem sempre soprar.
Eu, José Antônio Maria Vaz, um homem solitário em um telhado, sob um céu tropical cheio de estrelas, tenho uma história para contar.
Henning Mankell
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