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Mistral Vernati, o grande campeão de Fórmula Um, está em coma no hospital, depois de um terrível acidente na pista de Monza. Enquanto Mistral luta pela vida, uma pequena multidão de personagens move-se à sua volta, com motivações diversas e nem sempre confessáveis. Maria, a companheira, o seu primeiro e único amor; a mãe, que nunca conseguiu compreender as suas opções de vida, mas para quem ele era a sua razão de viver; Chantal, a mulher que nunca o libertou de um casamento falhado, e que mesmo naquele momento dramático só pensa em arruiná-lo; os filhos, Manuel e Fiamma. Entre recordações e segredos, descobriremos a verdadeira história de Mistral e Maria.
Sveva Casati Modignani, apresenta-nos uma história tão romântica quanto dolorosa, dando vida a figuras inesquecíveis que animam a soberba intriga deste romance.
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- Quando no teu horizonte aparecer a primeira nuvem, deves deixar de correr. Promete-me - repetia-lhe a mãe, que não percebia nada de carros e raciocinava com a sensatez dos
camponeses.
Ele, de todas as vezes, repetia a promessa para tranquilizar a pobre senhora, que vivia angustiada com a paixão de Mistral pelos carros de competição.
Tinham passado alguns anos desde que uma nuvem mensageira de tempestade aparecera, pela primeira vez, no seu céu vitorioso. Depois tinha havido outras nuvens, outros temporais
que lhe causaram um desconforto crescente. No entanto, Mistral tinha continuado a correr. E a vencer. E ainda corria e vencia.
Mistral Vernati era o piloto mais rápido da história do automobilismo mundial. Já por quatro vezes campeão do mundo de Fórmula Um, preparava-se para vencer o seu quinto campeonato,
como o mítico Manuel Fangio. Depois deixaria de correr. Não para respeitar finalmente uma antiga promessa, mas porque já tinha 38 anos e acusava os primeiros sinais de cansaço.
A vida tinha-lhe dado tudo: glória, riqueza, mulheres extraordinárias, emoções soberbas e uma família feliz.
No início da sua aventura desportiva, ninguém apostaria naquele rapaz irrequieto e um pouco desajeitado. "Vai estourar na primeira curva", diziam os entendidos. "As suas raízes
estão na areia de uma praia da Romagna. O seu futuro é mais inconsistente do que uma miragem", diziam outros.
Mistral tinha nascido numa casa pobre, no centro histórico de
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Cesenatico, voltada para os tanques de conservação do peixe. Nos nossos dias, são considerados uma atração turística, enquanto noutros tempos continham, sobre neve bem prensada,
as reservas alimentares de toda a aldeia.
O pai era pescador e chamava-se Talemico. Pescava poveracce 1, as ostras dos pobres, e peixe miúdo. Sonhava pescar uma baleia e obter glória, dinheiro e uma história para
contar durante o resto dos seus dias.
A mãe, Adèle Plouvin, era oriunda da Provença, e contrapunha aos sonhos do marido o seu sólido bom senso camponês.
Quando Talemico desapareceu no mar, numa noite de tempestade, Adèle foi obrigada a procurar sustento para si e para o único filho. Aproveitando um talento especial para dar
injeções, improvisou um trabalho de enfermeira. Os glúteos daquela pequena comunidade não tinham segredos para ela. Na sua pitoresca linguagem da Romagna, arredondando graciosamente
os erres, à francesa, costumava dizer, com orgulho:
- Ninguém sabe dar injeções como eu. Tenho um gesto delicado. Sou uma especialista.
Detinha-se com satisfação naquela última palavra. Por isso, em pouco tempo, toda a gente acabou por lhe chamar "a Especialista".
Tinha dado ao filho o nome de Mistral para recordar o vento frio e seco de noroeste que sopra, selvagem, sobre a Provença e ele, fazendo honra ao próprio nome, tinha entrado
pela vida dentro com o ímpeto de um ciclone.
Naquele belo domingo de setembro, Mistral preparava-se para vencer o quinto campeonato do mundo de Fórmula Um. E ia vencê-lo precisamente no circuito de Monza onde, quinze
anos antes, se tinha estreado em Fórmula Três.
Depois tencionava retirar-se, mas as pessoas iam continuar a falar dele como de uma lenda. Ia entrar na história do automobilismo, como Nuvolari e Fangio.
Mistral Vernati era um piloto amado não apenas pelos apaixonados
1 Variedade de amêijoa que se encontra no Mediterrâneo. (N. T.)
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das corridas. Toda a gente gostava dele porque era bonito, um excelente piloto e, sobretudo, porque tinha coração e cabeça.
Nele, paixão e racionalidade fundiam-se de uma forma tão perfeita que lhe permitiam atingir metas impossíveis para outros. No entanto, havia já algum tempo, o seu espírito
crítico sugeria-lhe que tinha chegado o momento de pôr de lado aquele ímpeto de competir. Passava de vitória em vitória com a consciência de já não ser o número um, sabendo
que em pista havia pilotos melhores do que ele, autênticos fora de série que esperavam o automóvel certo para lhe arrebatarem o lugar de honra no degrau mais alto do pódio.
Raul Romero era um deles. Era o seu delfim, o jovem colega de equipa que ele mesmo tinha descoberto e quase imposto à equipa. Tinha o pé pesado no acelerador, e Mistral só
não tinha sido ultrapassado por Romero porque as férreas leis da equipa não o permitiam.
Quando os especialistas consideravam Mistral um potro irrequieto e agressivo, ele sabia que era um cavalo de raça, nascido para vencer. Agora que todos o consideravam um campeão
imbatível, Mistral tinha a consciência de que não tinha mais nada a dar à Fórmula Um. Era um astro no ocaso e queria sair antes que o seu mito se desmoronasse, transformando-se
numa efémera estrela-cadente: uma emoção logo esquecida.
Mistral liderava a classificação do ano com 84 pontos. Seguia-o Mário Angeli, que corria na Benetton, com 62 pontos e uma vitória no campeonato do mundo. Raul Romero estava
em terceiro, com 58 pontos e uma grande vontade de vencer.
O contrato de Mistral terminava no fim do ano. Depois de Monza ia correr o Grande Prémio de Portugal, do Japão e da Austrália, mais como turista do que como piloto. Queria
vencer o seu quinto campeonato mundial para acabar em beleza. Depois ia dedicar-se aos negócios, às suas empresas de Paris, de Milão e da Cote d'Azur. Ia ter muito tempo para
dedicar à mulher e aos filhos e, finalmente, a mãe, que nunca se tinha conformado com a sua carreira de piloto, ia ter paz.
Não tinha falado com ninguém sobre aquela decisão. Nem sequer a confessara a Maria, a sua companheira. Só durante os treinos do circuito de Monza, em agosto, lançara um sinal,
a ela e aos homens da sua equipa.
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Era hora de almoço, e estavam todos no restaurante em frente às boxes. Estava muito calor, e Maria pensava com alívio na casa nas montanhas suíças, perto de St. Moritz, onde
tinha deixado os filhos ao cuidado de Rachele. Ela e Mistral iriam ter com eles no dia seguinte, fugindo do calor insuportável daqueles dias tórridos.
- Tenho saudades dos anos 70 - começou Mistral, falando mais consigo mesmo do que com os outros. Todos, incluindo Maria, ficaram atentos. - Foi o melhor período. Estou a pensar
em Lauda, Fittipaldi, Andretti, Peterson, Stewart - disse, enumerando os seus ídolos. - Eu era um miúdo e eles eram os meus heróis. As pessoas gostavam deles porque eram capazes
de dar a vida para não nos desiludir. Correr era uma aventura entusiasmante, não um negócio. Divertíamo-nos a olhar para eles e eles divertiam-se a correr. Hoje, um piloto
que morre durante uma competição é um louco. Tudo é tão terrivelmente computadorizado que temos a impressão de conduzir um carro telecomandado. Os fora de série dessa altura
já não existem. Somos todos uns meninos cortejados pelos patrocinadores, que pagam mais do que deviam para fugir ao aumento dos impostos. Somos assistidos meticulosamente
pelos nossos engenheiros, que se empenham ferozmente para nos darem um automóvel cada vez mais seguro e mais veloz.
Maria olhou para ele, arregalando os grandes olhos dourados. Nunca o tinha ouvido falar daquela maneira, embora se conhecessem desde que eram crianças e ela soubesse tudo
sobre ele. Mistral sempre olhara para o futuro quase com sofreguidão, nunca lamentando aquilo que deixava para trás. Maria, comovida e um pouco perdida, pousou-lhe afetuosamente
uma mão no ombro.
Mistral era um homem bonito e tinha a compleição sólida e harmoniosa dos atletas. O seu sorriso tinha um traço de inocência infantil, apesar de os olhos azuis, que uma farta
cabeleira escura fazia realçar, terem uma expressão forte e decidida.
Maria apaixonara-se por Mistral quando era ainda uma adolescente e continuara a amá-lo mesmo durante aqueles longos anos em que se tinham perdido de vista. Quando voltaram
a encontrar-se e se aperceberam de que tinham nascido um para o outro, ela já tinha tido uma filha. Chamava-se Fiamma.
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Mistral olhou para aquela menina, que tinha os cabelos vermelhos como as folhas de outono, e procurou durante muito tempo as palavras certas para exprimir o seu próprio espanto:
Fiamma era uma menina com síndrome de Down, meiguíssima, com uns olhos repletos de curiosidade e de alegria.
- A Fiamma é um dom do Senhor - avançou Maria, com uma voz firme. - Vais ter de a amar a ela como me amas a mim. Só assim eu posso pensar na nossa vida em comum - concluiu.
Mistral tornou-se num pai maravilhoso para Fiamma, e afirmava que não podia desejar uma filha melhor. Da sua união com Maria, em seguida, nasceu o pequeno Manuel: olhos e
cabelos cor de breu.
Maria tinha orgulho nos filhos e no companheiro. As palavras que Mistral acabava de pronunciar levavam-na a esperar que talvez em breve acabassem com aquela vida vagabunda
e pudessem juntos estabelecer-se na grande casa de Modena, ao abrigo da vida frenética dos autódromos e da vida social.
Ele olhou para ela, acariciou-lhe a mão e sorriu-lhe.
- Não concordas, Maria? - Procurava a sua aprovação. - Hoje já não existem os fora de série do passado. Sem a televisão, todos nós, campeões de Fórmula Um, seríamos uns perfeitos
desconhecidos.
Giordano Sacerdote, o diretor da equipa, interveio para atenuar o ceticismo de Mistral.
- Não é um problema que te diga respeito. Tu nunca precisaste do palco da televisão para pores a multidão em delírio. Sabes muito bem disso. Para além do mais, a falsa modéstia
não te fica bem.
Giordano, antes de se tornar diretor desportivo de uma equipa de Fórmula Um, tinha sido uma estrela no mundo da publicidade. Um dos seus clientes mais importantes era Peter
Strauss, dono da marca Bluesky: "Os jeans mais vendidos no mundo", como garantia o slogan. Giordano era um criativo nato. A ideia de inventar uma equipa com a marca Bluesky
tinha sido sua, e Strauss agarrara-a imediatamente, com entusiasmo, porque era um grande aficionado dos carros de corrida.
Assim, graças ao incondicional apoio económico de Strauss, Giordano abandonou a publicidade e lançou-se, de corpo e alma, na nova empresa. Garantiu a colaboração de um mestre
de mecânica,
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o engenheiro Andrea Soria, e agarrou Mistral Vernati, que estava à espera de entrar na Ferrari. Giordano e Mistral entenderam-se desde o primeiro encontro e nasceu imediatamente
entre eles uma amizade verdadeira.
- Não me entendeste - esclareceu Mistral. - Não estou à procura de elogios. Queria dizer que o mundo do automobilismo, nestes últimos vinte anos, mudou muito e, da maneira
que está, já não me entusiasma - explicou o campeão. - Se o trabalho não for também divertimento, torna-se num fardo - concluiu com amargura.
- Tudo muda - observou Soria. - O mundo, os carros, o público, nós e as nossas opiniões. Só os campeões permanecem.
Raul Romero seguia com atenção este diálogo, o olhar gélido fixo em Mistral. Aquelas palavras tinham-no feito entender que o seu momento não estava longe. E ia ser precisamente
ele a derrubar da sela o velho cowboy, fazendo-o rebolar na poeira do rodeio.
- Hoje, toda a gente pensa que se um piloto vence uma competição, o mérito é dos técnicos - continuou Mistral. - A Bluesky fornece-me o melhor automóvel, portanto eu venço.
Não concordas também, Raul?
Raul sorriu, sem responder.
- Quando te vi correr pela primeira vez em Fórmula Indy, lembrei-me de quando tinha a tua idade - continuou Mistral -, o mesmo pé pesado no acelerador, a mente lúcida, os
nervos de aço e uma grande vontade de subir ao pódio dos vencedores. Faltava-te a classe. Mas na Indy a classe conta pouco e, em qualquer caso, tinha a certeza de que a ias
adquirir.
- Pois. O Mistral não me largava, tentava convencer-me a fazer-te um contrato - interveio Giordano. - Cedi por desespero. É claro que me tinha apercebido do teu valor, mas
sem a insistência dele talvez não tivesses entrado tão cedo numa equipa de Fórmula Um.
- Pensava que tinha dependido também das minhas modestas qualidades - ironizou Raul, revelando, porém, uma irritação evidente por aquela obrigação de reconhecimento em relação
a Vernati.
- No entanto, ensinei-te alguns truques - disse o campeão. - O resto, aprendeste sozinho. Tinhas isso escrito no código genético.
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- Contigo aprendi que a classe é um ponto forte na Fórmula Um - admitiu Raul. - Classe e cabeça. Não é assim, campeão? É proibido falar de coragem - acrescentou num tom crítico.
Mistral não se apercebeu da provocação.
- Precisamente. Até porque, como dizia aquele general inglês, quando um exército precisa de heróis é porque é um péssimo exército.
- E quando um piloto precisa de coragem é porque é um péssimo piloto - repetiu Raul, sem nenhuma convicção.
- Tu estás convencido de que, utilizando toda a tua coragem, me podias derrubar. Ou estou enganado? - acusou-o abertamente Mistral.
A verdade tinha vindo à tona e, agora, tudo podia acontecer. Uma palavra errada de Raul, naquele momento, poderia quebrar a atmosfera serena que deve reinar numa equipa. E
então haveria problemas para toda a gente: para os pilotos, para os engenheiros, para os mecânicos, para a equipa no seu conjunto. As rivalidades no interior de uma equipa
devem ser contidas com um subtil jogo de equilíbrios. Era a primeira lição que Raul tinha aprendido ao assumir o contrato com a Bluesky.
Tinha na ponta da língua as palavras certas, e uma grande vontade de gritar àquela ilustre assembleia que o único campeão, agora, era ele. Claro, ia surpreender toda a gente
ao infringir as ordens da equipa, que criavam uma couraça protetora em volta do número um e, sobretudo, que defendiam os maciços financiamentos dos patrocinadores, um razoável
número de milhares de milhões que, ao fim de cada temporada, aqueles senhores dividiam entre eles.
Raul estava cansado dos restos que os comensais do banquete, bondade deles, lhe atiravam. Agora que tinha intuído a intenção de Mistral de querer retirar-se, já não precisava
de esperar. Talvez tentasse roubar o primeiro lugar ao companheiro de equipa ali mesmo, em Monza. Teria até um mérito maior, porque continuava a correr em condições de inferioridade,
com um carro que nunca estava tão afinado como ele gostaria. Conseguiria vencer se apostasse naquela coragem que Mistral tentava sistematicamente destruir. Apetecia-lhe gritar:
"Eu é que vos vou mostrar quem é o campeão".
Mas limitou-se a dedicar a Mistral um sorriso diplomático:
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- Eu não quero, e não posso, derrubar-te, Mistral. Sabes isso muito bem - garantiu, com um tom sincero. Ninguém acreditou nele.
O autódromo de Monza, naquele domingo sufocante de meados de setembro, parecia uma colmeia enlouquecida.
Milhares de espectadores ruidosos apinhavam-se na proximidade da pista e nas tribunas à espera que se desencadeasse o ruído dos motores. Por todo o lado, viam-se bandeiras,
T-shirts e bonés multicolores com os logotipos das equipas mais famosas. Com intervalos cada vez mais curtos, os altifalantes repetiam comunicados ensurdecedores e avisos
relativos à segurança do público e dos pilotos. Os jovens, que tinham dançado toda a noite na Curva Parabólica ao som das bandas rock, ocupavam os lugares mais próximos da
pista, de onde esperavam ver melhor as performances dos seus campeões. Nas boxes e nas autocaravanas, o entusiasmo estava ao rubro. Mecânicos e técnicos andavam numa azáfama
em volta dos carros, para dar os últimos retoques. As televisões de todo o mundo transmitiam em direto, mostrando os preparativos para a competição e a enorme multidão de
adeptos.
Mistral era o favorito. Nos treinos cronometrados tinha conquistado a polé position. Raul Romero era o segundo. Os especialistas consideravam que a equipa da Bluesky tinha
a vitória na mão.
Mistral e Maria tinham chegado ao autódromo de helicóptero. Como sempre, ela ficava junto dele até à entrada nas boxes. Depois isolava-se na grande autocaravana da equipa
e assistia à corrida pela televisão. Preferia ficar sozinha. Assim evitava ter de entrar em conversas e fazer comentários. Também nos dias que precediam as competições, Maria
preferia dedicar todo o seu tempo apenas a Mistral, evitando a companhia dos amigos. Na autocaravana esperava-a Angelo, o fisioterapeuta cego que, há vários anos, acompanhava
o campeão. Antes de cada corrida, fazia-lhe uma massagem que relaxava sobretudo os músculos do pescoço, a parte do corpo mais sujeita às vibrações. Mistral, sob a orientação
de Angelo, fazia regularmente exercícios físicos especiais, bastante cansativos, para fortalecer aqueles músculos.
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Depois da massagem, Matteo Spada, o médico da equipa, verificou a tensão arterial e o ritmo cardíaco, trocando alguns comentários divertidos com Maria e com Mistral, que conhecia
desde o tempo em que o piloto era apenas um mecânico de automóveis de rally. Matteo e Angelo eram da Romagna, tal como o campeão; juntamente com alguns outros membros da equipa,
seus conterrâneos, eram referidos, no ambiente da Fórmula Um, como "o Clã da Romagna".
Uma hospedeira ofereceu a Maria um "café" de cevada e a Mistral uma abundante bebida vitamínica, de acordo com as prescrições do médico.
O campeão vestiu a roupa à prova de fogo, desde o fato interior até ao fato-macaco Sparco, novo em folha, de um bonito azul-celeste: a cor da Bluesky. Eram dez horas da manhã.
Dali a meia hora começaria a fase de aquecimento e os treinos livres para preparação da corrida. Mistral aproximou-se de Maria, fez-lhe uma carícia no rosto e disse-lhe:
- Está tudo em ordem. Fica sossegada.
Eram as primeiras palavras que lhe dirigia desde que, naquela manhã, tinham entrado no helicóptero. Ela assentiu com um gesto de cabeça e depois, pela pequena janela da caravana,
viu-o afastar-se em direção à box com o seu passo largo.
Subiu ao piso superior da grande caravana, onde ficava a cozinha. O c/íe/estava a preparar o almoço. Comiam sempre ali, antes de todas as corridas, para evitar possíveis distrações
e aborrecimentos, jornalistas incluídos.
- Estou com uma fome danada - confessou ao cozinheiro. Chamava-se Primo, era de Modena, como Enzo Ferrari, ia a caminho dos 60 anos e era um mago da cozinha dietética. Sem
gorduras nem molhos, conseguia preparar pratos muito apetitosos.
- Tal como é costume - brincou Primo, que a recebeu com um sorriso luminoso.
Antes de qualquer competição, Maria era atacada por uma fome irrefreável. Era uma reação nervosa à tensão. Primo sabia disso. Conhecia as fraquezas gastronómicas de todos
os elementos da equipa: Mistral não tolerava o alho e a cebola, Giordano e a mulher, Sarah,
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devoravam a salada temperada com azeite de Badia a Coltibuono, Maria tinha um fraco por bolos com chantilly, o engenheiro Soda comia apenas costeletas grelhadas.
A autocaravana da Bluesky era a sua casa há muitos anos. Ele vivia bem naquele grande veículo de 12 metros, pintado de azul-celeste com letras brancas, dotado, no interior,
de uma cozinha ultramoderna, de um bar cheio de espelhos e latões, de uma sala para descanso que parecia uma caixa de bombons, de uma salinha em nogueira e veludo, de uma
casa de banho em fibra de vidro e espelhos e de um gabinete com telefones e computadores onde se reuniam pilotos e dirigentes.
O cozinheiro colocou à frente de Maria uma sanduíche quente e crocante. Ela devorou-a como se aquilo fosse a primeira refeição depois de um longo jejum.
- Já me sinto melhor - concluiu, satisfeita.
- Vai correr tudo bem, Maria. Como sempre - garantiu Primo, para a sossegar.
Maria olhou para o relógio que tinha no pulso. Eram dez e meia. Mistral já estava na pista. Esperava que os treinos de aquecimento não revelassem problemas graves que tivessem
escapado aos controlos anteriores.
Ao longo dos anos, Maria tinha adquirido a sensibilidade e a competência de um técnico e sabia que as quatro horas que medeiam entre o fim do treino livre e o início da corrida
podem ser utilizadas para resolver pequenos problemas, tais como melhorar a aerodinâmica ou corrigir a dureza dos pneus. Porém, se os problemas forem mais complexos, o tempo
disponível não é suficiente para os resolver. De qualquer modo, os técnicos e os mecânicos tinham trabalhado toda a noite para controlar minuciosamente os automóveis.
- Obrigada por tudo, Primo - disse Maria. - Vou esperar pelo Mistral.
Regressou à pequena sala e, pela janela, observou as boxes. Se o seu campeão se dirigisse à autocaravana sozinho, significava que estava tudo em ordem. Se o visse com Giordano
e com Andrea, era sinal de que havia algum problema.
Mistral, sozinho, aproximava-se com um passo descontraído e tranquilo. No entanto, Maria apercebeu-se de uma estranha
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inquietação, que o sol esplendoroso daquele belo domingo de setembro não conseguia dissipar. Reparou que os cabelos negros de Mistral lhe desenhavam sobre a testa uma onda
quase infantil. Amava-o apaixonadamente. De repente, à tensão pela aproximação da corrida sobrepôs-se um medo desconhecido, uma angústia indecifrável.
Recordou aquele almoço de agosto, no restaurante, e as palavras de Mistral sobre os tempos heróicos do automobilismo. A forma como tinha provocado e desafiado o jovem companheiro
de equipa. Não era próprio dele procurar uma briga, provocar tensões. E, no entanto, tinha-o feito. Porquê? Mistral queria vencer o seu quinto campeonato ou desencadear um
duelo? Pensamentos sombrios começavam a apoderar-se dela.
Aproximou-se da porta da autocaravana e viu Mistral a entrar na zona da sombra do toldo. Os altifalantes multiplicavam o eco dos comunicados. O cheiro do carburante queimado
enchia o ar, os motores rugiam, a multidão parecia um formigueiro enlouquecido. Faltavam quatro horas para a partida, e era então que o rugido dos motores cortava literalmente
a respiração.
Maria sorriu a Mistral e logo se materializou ao lado deste a figura maciça de Raul. Tinha nos lábios um esgar indecifrável. Cumprimen-tou-a com um gesto da mão. Depois afastou-se
para se dirigir à sua autocaravana. Era mais pequena, com um equipamento improvisado. Depois daquele conflito de agosto, Giordano tinha conseguido evitar que os dois estivessem
juntos mais do que o estritamente necessário.
Mistral entrou na autocaravana. Maria esforçou-se por parecer tranquila.
- Vai dar-te água pela barba - comentou, referindo-se a Raul. Mistral enfiou-se no vestiário.
- É a história que se repete - replicou. - Conheci outro rapaz parecido com ele. O mesmo sorriso irritante, a mesma arrogância de campeão.
Falava de um tempo distante, quando abria caminho à cotovelada no mundo dos automóveis de competição e Maria era uma sombra vaga nas memórias da sua primeira juventude.
- Aposto que esse rapaz és tu - disse ela, com um ar malicioso.
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- Mas que intuição, minha Cabeça Vermelha 2 - respondeu Mistral, ao mesmo tempo que lhe despenteava com uma mão os cabelos acobreados.
- Vá. Despe esse fato. - Maria sorriu. Aquele epíteto, inventado pelo pai, transportava-os aos anos da adolescência. - Naquele tempo, quem era o campeão?
- O grande Francis Moss. Conheces perfeitamente. Um homem de muito respeito. Mas tinha demasiado coração e pouca cabeça. Eu tinha muita cabeça e um bloco de gelo no lugar
do coração.
- Pois. Se assim não fosse, não me terias abandonado para correr atrás de carros e mulheres de moral duvidosa - tentou brincar, sem demasiada convicção.
Mistral, em cuecas e T-shirt, deixou-se cair no sofá.
- Tu também sabes que o Raul é melhor do que eu - admitiu, quase com indiferença. E prosseguiu: - Toda a gente sabe. É uma roda que gira, como diria a Especialista. Mas vai
ter de ficar atrás de mim até eu me retirar.
- Ou seja, depois de teres conquistado o quinto campeonato do mundo - corrigiu-o Maria. Aninhou-se aos pés dele e abraçou-lhe os joelhos. - Que necessidade tens tu de mais
uma vitória? És o melhor, Mistral - disse, contendo um soluço.
- Sou o último da fila - confessou com amargura. - Há meses que, na pista, os rails me parecem cada vez mais estreitos, as nuvens me fazem sombra e olho demasiado sobre os
ombros para não me deixar ultrapassar. Pronto, finalmente disse-o. E agora deixa-me só. Já sabes que preciso de me concentrar.
Naquele mesmo instante, ergueu um muro entre ele e o resto do mundo. Maria saiu em silêncio e foi sentar-se à porta da auto-caravana. Mistral acabava de lhe fazer uma confissão
grave e importante, que a fez estremecer.
Mistral envergava o fato-macaco da Bluesky. O seu corpo encaixava na perfeição no assento do automóvel, concebido expressamente para ele. Ergueu o olhar: não havia vestígio
de nuvens naquele
2 Testa Rossa no original; referência a um modelo da Ferrari. (N. T.)
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esplêndido céu azul. Encontrou a posição perfeita no seu monolugar e sentiu-se pronto para captar e coordenar todas as reações do carro. Deixou que o mecânico o prendesse
ao habitáculo em seis pontos: ombros, cintura e coxas. Mistral e o seu Bluesky eram agora uma peça única.
Quando o motor começou a rugir, um arrepio, quase um choque elétrico, atravessou-lhe o corpo. Tinha chegado aquele momento mágico, o instante miraculoso que punha em perfeita
sintonia o homem e a máquina. Iam vibrar, palpitar, sofrer e combater juntos, percorrendo cinquenta e três vezes os 5750 metros da pista, em direção à meta. O ar à volta dele
fazia ondas, devido ao sobreaquecimento dos motores.
Mistral era um feixe de nervos que obedecia a duas únicas solicitações: correr o mais rapidamente possível e vencer.
Ao sinal convencionado, dirigiu-se para a grelha de partida. Ocupou o seu lugar na polé position. Pouco mais atrás, à sua direita, estava o Bluesky de Raul Romero. Na segunda
fila estavam Mário Angeli, da Benetton, e Christian Ferre, da Ferrari. Seguiam-se McLaren, Williams, Lotus, Tyrrel, Ligier, Sauber, Minardi, Jordan, Larousse.
Mistral corria com o carro número 1. Raul com o número 2. Na grelha de partida havia vinte e seis concorrentes que, independentemente das possibilidades dos seus automóveis,
tinham intenções de vencer.
A bandeira verde abriu caminho para a volta de reconhecimento. Mistral sentia-se bem. Conhecia cada metro daquela pista. Aquela longa, insidiosa tira de asfalto provocava-lhe
emoções comparáveis apenas a uma relação amorosa. Monza era a sua pista, como Maria era a sua mulher. Ninguém lhe poderia tirar nem uma nem outra.
Os carros regressaram à reta e retomaram as posições de partida. Os olhares dos pilotos estavam pregados no semáforo vermelho. Mais alguns intermináveis instantes, e os carros
lançar-se-iam sobre a pista como feras.
Entre o apagar do semáforo vermelho e o acender do verde, o tempo médio de reação de um piloto é de cerca de duas décimas de segundo. O de Mistral era pouco superior a um
décimo e meio: era um dos seus pontos de força. Disparou como um raio no mesmo
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instante em que se apagava o vermelho, perseguido de perto pelo outro Bluesky, pelo Benetton e pelo Ferrari.
A partida é um dos momentos mais exaltantes da competição e pode influir de um modo determinante no andamento da corrida.
Mistral percorreu à frente a reta que precede a dupla chicane Good Year, distanciando-se alguns metros do grupo dos perseguidores, comandado por Raul Romero.
O campeão estava tranquilo. Ninguém, naquele troço, teria a potência e o espaço necessários para o ultrapassar. Nem mesmo Raul que, no entanto, não iria largar facilmente
a presa. Mistral controlava-o no pequeno espelho retrovisor e pensou que havia um ponto em que Raul poderia passar à frente dele: o estreitamento da chicane.
Reduziu rapidamente as mudanças com o botão automático e entrou na primeira chicane a 140 quilómetros por hora. Saiu em terceira, a 149. Quando enfrentou a Curva Grande voava
a 250 quilómetros por hora.
Com o pesado fato à prova de fogo vestido, naquele soalheiro domingo de setembro, o calor era sufocante. Saiu da Ponte Campari e deu mais uma olhadela ao espelho retrovisor.
Tenaz e implacável, o Bluesky de Romero perseguia-o, tendo quase ao seu lado o Benetton de Mário Angeli. Mistral reduziu a mudança para entrar o melhor possível na chicane
que se aproximava, a delia Roggia. Estava bem e suportava sem esforço as tremendas vibrações do automóvel.
À entrada da primeira curva, a Curva di Lesmo, atingiu os 250 quilómetros, acelerou na segunda curva e saiu a 190. Controlava bem a respiração para obter o máximo rendimento
do seu físico.
Quando emergiu da passagem subterrânea, olhou mais uma vez para o espelho retrovisor. De Raul não havia nem sombra. Estava só, à frente de todos. Agora tinha de fazer a chicane
seguinte, a Variante Ascari, imediatamente antes da Curva Parabólica, que começa estreita e alarga progressivamente, tornando-se numa curva interminável que tem de ser feita
em constante aceleração.
Estava concentrado ao máximo. Se a sua concentração não fosse tão absoluta, teria recordado o acidente de Warwick, precisamente naquele ponto, dois anos antes.
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Via rádio, o cronometrista da equipa indicou-lhe que tinha concluído a terceira volta mais rápida: um minuto, vinte e quatro segundos e vinte e sete centésimos.
Mistral sorriu, satisfeito, mas poderia ter feito melhor. Com os pneus adequados, durante os treinos, tinha feito um minuto e vinte e um segundos.
Os pneus mais duros que estava a usar aguentavam bem o calor da tarde. Sabia que devia, em qualquer caso, fazer uma mudança, a meio da corrida. Via rádio, perguntou pela posição
dos outros. Mário Angeli não o preocupava. Por "outros" queria dizer Raul. Mas não disse.
- Está tudo bem - sossegou-o o engenheiro Soria. - Quanto ao Raul, sabes que não se pode exceder.
Esta garantia aborreceu-o. Queria que Raul corresse livremente, mostrando toda a sua garra. Ele tencionava vencer de uma forma limpa. As estratégias da equipa não lhe diziam
respeito. Não precisava que o protegessem da bravura do jovem argentino. Mistral tinha, em qualquer caso, uma vantagem sobre ele: a experiência adquirida em muitos anos de
competição.
Havia algo de inquietante na determinação daquele rapaz em medir-se com ele. Talvez lhe tivesse já adivinhado o motivo, mas nunca tinha tido ocasião para falar sobre isso
com Raul, abertamente. Um dia havia de o fazer.
Naquele momento, porém, estava concentrado apenas no desenvolvimento da corrida. O carro estava a comportar-se muito bem: aerodinâmica excelente, rigidez certa do chassi,
extraordinária aderência ao solo, tanto nas curvas como na travagem.
Quando passou em frente às boxes assinalaram-lhe que tinha melhorado em alguns centésimos de segundo a volta anterior.
Na décima quinta volta tinha ultrapassado cinco pilotos e separavam-no de Raul, que comandava os seus perseguidores, doze segundos. A sorte favorecera-o na Chicane Ascari,
onde o Benetton de Mário Angeli tinha saído da pista, pondo fim a um duelo iniciado na partida. Naquele momento, os dois Bluesky pareciam não ter rivais que pudessem ameaçar
a sua supremacia. Enquanto passava em frente às boxes, Mistral viu que era apresentado o cartaz que
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chamava o número dois para a troca de pneus: era o carro de Raul. Mistral pensou que talvez o jovem tivesse exigido demasiado aos pneus e precisasse de os substituir, enquanto
os seus, mais duros, resistiam ainda.
Mas chegou também para ele a ordem de entrar. Ignorou-a. Pararia apenas quando a vantagem sobre Raul tivesse aumentado mais um pouco. Contava com o facto de, atrás de si,
o segundo Benetton e o primeiro Ferrari terem tornado difícil a reentrada de Raul, depois daquela paragem forçada.
Corria com a mesma paixão dos 20 anos. Queria aquele grande prémio para encerrar em beleza uma carreira extraordinária, a última coroa de louros para imprimir uma marca indelével
na memória do público que há anos o acompanhava e o idolatrava. Ninguém esqueceria o seu nome, tal como o de Fangio, Nuvolari e Villeneuve.
O sonho estava prestes a realizar-se. Cumpria voltas sobre voltas, continuando a sua marcha triunfal. Saiu disparado da Chicane delia Roggia, acelerou e lançou um olhar ao
retrovisor. Aquilo que viu desorientou-o. O Bluesky de Raul, inexplicavelmente, seguia-o de perto. Como teria o piloto argentino conseguido anular todos aqueles segundos que
o separavam dele no momento do último contacto via rádio? Por que razão não lhe tinham comunicado isso das boxes? A única explicação plausível era que Raul, tal como ele,
devia ter ignorado a ordem para entrar. Naquele momento, os seus pneus estavam num ponto de desgaste que ele tinha de parar. Mas os de Raul deviam estar em condições ainda
piores. Pensamentos perigosos corriam o risco de penetrar a barreira defensiva que tinha erigido entre ele e o resto do mundo, comprometendo o êxito da corrida.
Mistral estava só, com o seu automóvel, e tinha de decidir, contando unicamente com as suas próprias forças. Num lapso de tempo rapidíssimo, oscilou diante dos seus olhos
a bandeira vermelha às riscas amarelas. Assinalava óleo na pista. O aviso não o impediu de entrar na Curva di Lesmo a mais de 270 quilómetros por hora. Quantas vezes tinha
ignorado as sugestões vindas das boxes, para não se deixar ultrapassar? Correra-lhe sempre bem. A sua inteligência tinha-o guiado para além dos receios dos dirigentes da equipa.
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Desta vez, porém, tinha perdido a concentração necessária e a frieza habitual.
Raul estava em cima dele: era um desafio, e Mistral aceitou-o. Os dois companheiros rivais encetaram um duelo de sangue. Raul, traído pelo pavimento sujo, na tentativa de
ultrapassar Mistral tocou na roda traseira do seu carro. Mistral procurou uma via de fuga, mas não conseguiu evitar o impacto com a berma. Na sequência do choque, a roda anterior
direita separou-se e o carro capotou. Bateu nos rails de lado. O motor saiu disparado e o carro partiu-se em dois. Motor e eixo traseiro saltaram sobre o asfalto.
Mistral estava ainda no habitáculo, firmemente ancorado ao assento, quando um posterior impacto fez ceder a parte traseira do carro. Os cintos soltaram-se e Mistral voou para
fora do habitáculo. Sentiu-se a ser projetado para o alto, como se já não existisse força de gravidade, para o azul daquele céu de setembro ameaçado por uma nuvem distante.
Depois caiu na escuridão, ao mesmo tempo que da multidão se elevava um arrepiante grito de horror.
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Mistral estava estendido no chão, fora da pista. O médico do autódromo tinha-lhe retirado o capacete. Parecia que a vida se tinha esquecido daquele corpo, imóvel sobre a relva.
Os automóveis completavam, rugindo, voltas sobre voltas. Não havia lugar à piedade. O imperativo, para todos os participantes na competição, era correr e vencer.
Raul Romero, que tinha provocado o acidente, voava concentradíssimo em direção à meta, ignorando as suas próprias responsabilidades. Não sabia em que condições estaria Mistral,
nem se preocupava em perguntar. Tudo o que lhe importava era assegurar a primeira vitória num Grande Prémio. E estava prestes a obtê-la.
O médico, ajoelhado ao lado do piloto, levantou-lhe as pálpebras e com uma minúscula pilha tentou ler, na complexa geografia dos olhos, os sinais de possíveis hemorragias
internas. Era a única forma de avançar um primeiro diagnóstico. Mais tarde, quando Mistral tivesse já sido transportado para o hospital, a TAC e a ressonância magnética nuclear
definiriam melhor a situação.
- O que é que achas? - perguntou uma voz ao lado dele.
O médico continuou a exploração com a ajuda da pequena luz. Ergueu o rosto e encontrou o olhar ansioso de Giordano que, das boxes, tinha conseguido chegar até ali, juntamente
com o Dr. Spada.
- As pupilas estão desiguais - murmurou. Era um mau sinal.
- E então? - quis saber Giordano.
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O médico não respondeu. Extraiu da mala um martelinho com a cabeça de borracha.
- Fiz-te uma pergunta - insistiu, desorientado, o diretor da equipa.
- Não tenho nenhuma resposta - replicou o médico, com uma voz firme, e começou a controlar com o martelinho a capacidade de reação de Mistral. Naquele momento, Giordano ergueu
os olhos para a pista e viu passar, como um raio, o Bluesky de Romero, já dono incontestável da corrida.
No fim de contas, conseguiu, pensou Giordano. A vitória ficava em casa. Mas a que preço?, interrogou-se, desesperado, ao mesmo tempo que observava o amigo.
Viu Mistral reagir debilmente quando o pequeno martelo atingiu a articulação do joelho esquerdo.
- Excluiria uma lesão da medula - disse o médico, enquanto se erguia para dar lugar à maca. Os enfermeiros, com mil e uma cautelas, amarraram o corpo do piloto e meteram-no
na ambulância.
O Grande Prémio estava a chegar ao fim e as câmaras de televisão que seguiam a corrida alternavam as imagens de Romero, lançado em direção à vitória, com as da ambulância
que, de sirenes ligadas, se afastava da pista. Com intervalos regulares, era repetido nos ecrãs o espetacular acidente que tinha posto o campeão fora da competição.
O prognóstico que prenunciava Mistral Vernati pela quinta vez campeão do mundo, como o legendário Manuel Fangio, tinha sido subvertido. A nuvem branca que aparecera ao longe,
no céu, aproximava-se velozmente, aumentando de tamanho, e estava agora escura, assumindo um aspeto ameaçador.
Maria tinha chegado à pista num veículo de socorro um instante antes de a ambulância partir, e estava agora sentada ao lado de Mistral.
- Como é que ele está? - perguntou num sussurro ao Dr. Spada, que estava junto dela.
- O pulso está bom - respondeu, evasivo. A sua expressão era aparentemente tranquila, mas percebia-se que estava muito preocupado.
- Tudo o resto me parece preocupante - constatou Maria, num tom neutro. Era um pedaço de gelo. O coração batia regularmente,
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mas ela não experimentava qualquer emoção. Tinha visto, na televisão da autocaravana, o monolugar de Mistral desfazer-se em pedaços e o homem que amava sair disparado como
um projétil, e depois cair pesadamente no chão. Tinha observado, petrificada, as imagens que se sucediam no pequeno ecrã, como se o protagonista daquele acidente não fosse
Mistral. O manequim que voava em direção ao céu não podia ser o homem com quem tinha partilhado tantos dias e tantas noites da sua vida. Era apenas uma ficção proposta pelos
ecrãs de televisão para um público distraído que estava sentado, tranquilo, na sala de estar de casa. À sequência em câmara lenta do acidente seguira-se, implacável, a publicidade
dos chocolates e dos dentífricos.
A ambulância parou ao lado de um helicóptero, cujas grandes pás estavam preparadas para começarem a rodar no ar, cada vez mais escuro pela aproximação do temporal. O campeão
foi içado para bordo, depois subiram Maria e o médico.
- Queres um calmante? - perguntou Matteo Spada.
- Estou calmíssima - garantiu, de um modo inexpressivo.
- Daqui a poucos minutos estamos na clínica - disse, fingindo que acreditava nela.
O helicóptero ergueu-se na vertical, sobrevoou a pista e apontou a Milão, em direção ao hospital.
Maria acariciou num gesto mecânico a testa e os cabelos de Mistral, cuja imobilidade acentuava nela uma estranha, indefinível sensação, como quando ao acordar de um pesadelo,
não se restabeleceram ainda as fronteiras entre o sonho e a realidade.
- Matteo, o que é que se está a passar com Mistral? - perguntou Maria. - Quero dizer - esclareceu -, se está em condições de perceber o que se passa à volta dele ou se está
completamente mergulhado na escuridão.
- Está em coma. As suas capacidades de pensar e de sentir apagaram-se. É como se um interruptor tivesse desligado qualquer contacto com a realidade - respondeu o médico.
- O interruptor pode voltar a ligar-se? - insistiu ela.
- Espero que sim, mas uma resposta definitiva só será dada pelos exames clínicos. Por isso estamos a voar em direção ao hospital.
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E se Mistral não acordasse? Maria esperou que, nesse caso, para ela e para Mistral houvesse um Senhor misericordioso que os fizesse repousar a ambos num prado verdejante.
Mistral correria ao seu encontro para a envolver nos seus braços e lhe sussurrar palavras de amor. Ela retribuiria as carícias e beijaria a sua boca. Os dois juntos, para
sempre. Ao formular esta prece, nos lábios de Maria surgiu a sombra de um sorriso.
O helicóptero estava a aterrar num grande terraço do hospital. Assim que o motor foi desligado, foi uma sucessão de rostos desconhecidos, batas brancas, corredores infinitos,
palavras incompreensíveis. Maria sentia-se como um pedaço de cortiça sacudido pelas ondas de um mar tempestuoso. Respirou profundamente de alívio quando, finalmente, encontrou
ao seu lado Sarah, a mulher de Giordano Sacerdote, e Matteo.
Um médico conduziu-os até uma pequena sala. Havia uma secretária, duas cadeiras de plástico branco, uma marquesa e um pequeno armário cheio de medicamentos.
- Podem esperar aqui - disse o jovem de bata branca. - Não é um palácio, mas sempre é melhor do que ficar no corredor - acrescentou, referindo-se ao espaço junto ao Serviço
de Urgência. - Assim que tivermos resultados das primeiras análises, vimos informá-los.
Era um tratamento de exceção, que Maria apreciou sinceramente. Sentou-se ao lado de Sarah, enquanto o Dr. Spada se aproximou da janela riscada pela chuva. Estavam todos muito
tensos e preocupados. O ar estava impregnado do cheiro acre dos desin-fetantes.
- Alguém tem um cigarro? - perguntou Maria. Tinha-se esquecido da carteira na autocaravana. Não era uma fumadora inveterada, mas naquele momento tinha absoluta necessidade
de fumar.
Sarah ofereceu-lhe um slim do seu maço. Maria acendeu-o, deu duas passas e depois apagou-o no cinzeiro que estava em cima da secretária. Tinha um sabor horrível.
- Diz-me exatamente o que é que estão a fazer ao Mistral - pediu a Matteo, após um longo silêncio.
- Estão a operá-lo ao baço - respondeu o Dr. Spada. - Têm que lho extrair porque há uma hemorragia.
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- É possível viver sem o baço? - perguntou Maria.
- Há muitas pessoas que não o têm e vivem perfeitamente - garantiu-lhe, sabendo que os problemas de Mistral naquele momento eram muito mais graves do que isso.
- Depois de lhe tirarem o baço o que vão fazer? - insistiu ela.
- Ligam os vasos e fazem uma transfusão.
- E se por acaso lhe derem sangue infetado? Se calhar até com o vírus da SIDA?
- Não há aqui sangue infetado. Juro-te - garantiu Spada, esperando tranquilizá-la.
- Foi por causa da hemorragia no baço que o Mistral perdeu a consciência? - Tentava desesperadamente fixar alguns pontos seguros.
- Não sabemos com certeza. Espero que em breve nos venham dar alguma notícia mais precisa.
Sarah observava Maria com uma pena infinita. Giordano, o marido, tinha-lhe explicado exatamente o alcance dos problemas causados pelo acidente e estava decididamente pessimista
sobre a sorte de Mistral.
Uma enfermeira levou-lhes café em copos de plástico.
- Achei que lhes ia saber bem - disse, a sorrir, ao mesmo tempo que pousava os copos na secretária. Olhou para Maria, que tantas vezes vira em fotografias nos jornais, ao
lado do campeão, e por isso quisera de alguma forma exprimir a sua solidariedade. Limitou-se a sorrir-lhe mais uma vez e saiu silenciosamente.
Sarah e Matteo beberam o café, que estava morno e horrível. O cheiro, ao espalhar-se pela sala saturada de odores desagradáveis, causou a Maria uma forte náusea. Pousou o
copo em que acabara de pegar, ao mesmo tempo que um suor frio lhe humedecia a testa e uma pontada dolorosa lhe apertava o estômago.
- Onde é a casa de banho? - perguntou debilmente, enquanto levava uma mão à boca.
Matteo amparou-a prontamente e levou-a à casa de banho, na sala ao lado. Maria vomitou o medo, a tensão e o desespero. Depois sentiu-se melhor e Matteo conseguiu injetar-lhe
um sedativo e convencê-la a estender-se na marquesa.
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O calmante não atuou imediatamente, e Maria continuou com as perguntas.
- O que há mais para além do problema do baço? - A sua voz era ténue, quase um sussurro.
- Mistral está em coma devido a um traumatismo craniano - confessou o Dr. Spada, rendendo-se. - A TAC revelou uma hemorragia na artéria meníngea que está a comprimir a massa
cerebral...
Parecia que Maria tinha adormecido, mas continuou:
- Ouvi... falar... de uma coisa... uma luxação... - as palavras começavam a misturar-se-lhe nos lábios.
Lá fora recrudescia o temporal com aguaceiros violentos e trovões que faziam tremer os vidros.
-Até o céu chora... pela nossa dor - teve ainda forças para acrescentar.
- Fica tranquila, Maria. Vai correr tudo bem - disse Sarah, para a animar.
- Os meus filhos - murmurou.
- A Fiamma e o Manuel estão a caminho de Milão com a Rachele. Estão bem, não te preocupes - disse Sarah.
Maria não a ouviu. Finalmente tinha adormecido. Por isso não soube imediatamente que a intervenção no baço tinha corrido bem, que as fraturas tinham sido tratadas e que estava
a decorrer uma delicada operação ao cérebro para remover o hematoma.
O Dr. Spada estava em contacto permanente com a sala de operações e com os dirigentes da Bluesky que, apesar da vitória de Raul Romero, não sentiam nenhuma vontade de festejar.
Amigos e conhecidos afluíam ao hospital e permaneciam na sala de espera do Serviço de Politraumatizados, onde Mistral lutava para sobreviver. Jornalistas e repórteres fotográficos
cercavam o hospital à espera de notícias que, no entanto, tardavam a chegar. A intervenção ao cérebro revelara-se muito delicada e complexa. Cerca da meia-noite, tudo estava
terminado. O chefe da equipa de Neurocirurgia, o professor Aldo Salemi, dirigiu-se ao pequeno gabinete onde Maria repousava, acompanhada por Sarah e Matteo. Foi o próprio
professor quem a informou, assim que ela acordou.
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- Correu tudo bem - disse-lhe. - Agora o seu marido está a descansar.
Ela teve alguma dificuldade, durante alguns instantes, em entrar na realidade.
- Isso significa que o Mistral está fora de perigo? - perguntou, ao mesmo tempo que se sentava na marquesa e, com um gesto automático, passava uma mão pelos cabelos para os
arranjar. Olhou para o homem que estava à frente dela. Tinha um ar severo, os cabelos muito brancos e macios, as pálpebras marcadas pelo cansaço. Vestia uma bata verde apertada
nas costas e calçava umas socas brancas.
- O senhor quem é? - perguntou, ao mesmo tempo que se levantava da marquesa. Sentia-se fraca e aturdida e precisou de reunir todas as suas forças para se manter dignamente
erguida.
- Sou Aldo Salemi. O seu marido apresentava um hematoma provocado por uma hemorragia na artéria meníngea, que foi removido. Reagiu bem à intervenção. Fizemos o melhor que
podíamos. O tempo dirá se podemos continuar a ter esperança.
- E qual é o prognóstico? - continuou Maria.
- Para já, é preciso ter confiança - respondeu-lhe, com um sorriso cansado.
- Só queria saber se está otimista - insistiu.
- Sempre - garantiu-lhe. - Se eu não tivesse esperança, ainda que ténue, não tinha arriscado a intervenção. Mistral Vernati é um campeão que eu admiro, mas é sobretudo um
homem com uma constituição física extraordinariamente forte e resistente. Sim, estou otimista. Mas também estou cansado. Agora vou repousar.
- Se houver necessidade de o contactar? Quero dizer, se o Mistral... se houver uma emergência... - a ansiedade e a confiança sincera que Maria estava a demonstrar-lhe fizeram
sorrir de novo o cirurgião.
- Vou passar a noite no hospital - sossegou-a.
- Estou-lhe muito grata, professor.
Maria estendeu-lhe a mão para apertar a dele.
- Não tem motivos para isso - replicou ele. - Por muito que isto lhe possa parecer banal, eu apenas cumpri o meu dever.
- Posso vê-lo? - perguntou com uma voz hesitante.
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- Só através de um vidro - disse o professor Salemi. - O seu marido está na Sala de Reanimação. A sua respiração é regulada por uma máquina e as funções vitais dependem de
toda uma série de cânulas. Tivemos de o sedar para evitar crises epiléticas. Em suma, não está em condições de reconhecer ninguém. Ainda o quer ver?
- Mais do que nunca - insistiu ela, enchendo-se de coragem.
A descrição do cirurgião tinha-a aterrorizado, mas o desejo de ver Mistral era mais forte do que o seu medo. Maria gostaria de se aproximar da cama do companheiro para constatar
que estava bem, para o ver sorrir, para o ouvir dizer que em breve voltaria para junto dela e dos filhos.
Seguiu o cirurgião e Matteo que, relutantes, a conduziram à Unidade de Cuidados Intensivos.
Uma janela retangular, de vidros duplos, enquadrava uma pequena sala debilmente iluminada por uma claridade azulada. Havia aparelhos de várias dimensões e uma pequena cama
onde jazia uma figura humana envolvida em ligaduras imaculadas. Aquilo era Mistral Vernati, o ás da Fórmula Um. Se faltasse de repente a corrente elétrica, se alguém neutralizasse
aquele emaranhado de fios e de cânulas, ele deixaria de viver. Maria observava-o hipnotizada, sem conseguir pensar em nada. Estranhamente, ao fim de alguns minutos, a situação
pareceu-lhe menos assustadora do que era na realidade.
- Eu acho que ele vai sobreviver e ficar bem - disse baixinho.
- É isso que desejamos - sussurrou-lhe Matteo. - Agora vou levar-te ao hotel.
Deu-lhe o braço e ela seguiu-o sem reagir, ao mesmo tempo que dirigia um pálido sorriso de despedida ao professor Salemi.
Um enfermeiro conduziu Maria e o Dr. Spada através de um labirinto de corredores. Enfiaram-se num elevador e desceram ao rés do chão.
- Vão sair pela porta que dá para o jardim - explicou o enfermeiro. - O percurso é um pouco mais longo, mas assim evitamos jornalistas e curiosos.
Tinham começado a percorrer um longo corredor secundário quando Maria viu Sarah e Giordano envolvidos numa discussão com uma mulher alta e magra, muito elegante. Estavam de
pé em frente
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a uma máquina de bebidas e aquela mulher, de aspeto decididamente aristocrata, criava um contraste singular com a desolação daquele ambiente: paredes manchadas, copos de papel
atirados para o chão no meio de pontas de cigarro e invólucros de plástico que continham restos de comida.
- Sinto muito, madame Honfleur - dizia Giordano. - Não posso de forma nenhuma ajudá-la.
O diretor da equipa ostentava a expressão furiosa dos piores momentos. Falava francês, uma língua que Maria conhecia perfeitamente. Também Sarah apresentava uma expressão
pouco cordial. A mulher, que Maria via apenas de costas, parecia muito combativa.
- Oh, meu Deus - sussurrou Maria, detendo-se de repente, ao mesmo tempo que apertava a mão de Matteo, quase à procura de proteção.
O enfermeiro observava-os, com um ar interrogativo, sem fazer perguntas.
- E não me chame madame Honfleur - admoestou a mulher, com uma voz irritada. - Eu sou madame Vernati, mulher legítima de Mistral Vernati. Vim expressamente de Paris para estar
junto do meu marido. E nenhum de vós conseguirá impedir-me.
Era mesmo Chantal, Chantal Honfleur, a condessa Henriette Chantal Honfleur, a mulher de quem Mistral estava separado. A harpia, como a definia o campeão, que há cinco anos,
servindo-se de falaciosas subtilezas legais, lhe negava o divórcio. Era efetivamente a bela e detestável Chantal, herdeira de uma ilustre família francesa que há várias décadas
produzia champanhe de uma marca prestigiada, o Honfleur, precisamente. Era também proprietária de uma griffe, Henriette Chantal, que produzia roupa e acessórios femininos
e tinha showrooms nas maiores cidades do mundo.
Maria reuniu todas as suas forças e continuou a caminhar.
A condessa viu-a e olhou para ela como para um inseto importuno.
Maria recordou as palavras de Mistral, quando lhe falara dela pela primeira vez: "Como é a tua mulher?", tinha-lhe perguntado. E Mistral respondeu, descrevendo-a perfeitamente:
"Bonita, loira, rica, pérfida".
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A francesa dirigiu-se a ela, falando num italiano desenvolto:
- Senhora Guidi, porque acho que é mesmo a Maria Guidi, a amante do meu marido, não é verdade?
Maria olhou para ela sem pestanejar.
- Desapareça daqui - prosseguiu Chantal, erguendo a voz de um modo vulgar. - Faça desaparecer também estes seus amigos. Nenhum de vós vai conseguir manter-me longe do meu
marido.
Apertando com força o braço de Matteo, Maria passou ao lado dela e prosseguiu, sem dizer uma palavra.
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Adèle Vernati questionara-se muitas vezes sobre as razões que teriam levado o filho a casar com aquela aristocrata francesa de muitos apelidos e, com a filosofia sintética
que a caracterizava, concluíra que Mistral tinha "caído como um patinho".
Ela não gostava nada daquela condessa de nariz empinado. En-contrara-a uma única vez, muitos meses depois de Mistral ter casado com ela, e entre Adèle e Chantal nascera imediatamente
uma violenta antipatia. Naquela época, os jovens recém-casados arrulhavam ainda como pombos apaixonados e ocupavam os primeiros lugares nas classificações dos casais célebres,
glorificados pelas publicações da imprensa cor-de-rosa. Em seguida, sempre nas mesmas publicações, continuaram a figurar entre os casais mais atingidos por mexericos e maledicências.
Por fim, mais nada. Adèle deu um suspiro de alívio. Chantal Honfleur e Mistral Vernati continuavam a dar que falar, mas separadamente. Já era uma consolação. Mas durou pouco,
porque como um raio num céu sereno o filho apareceu em público ao lado de uma beleza de cabelos de fogo que Adèle reconheceu imediatamente: era Maria, a filha dos Guidi de
Cannucceto. Tinha perdido o rasto da rapariga, desde que ela deixara a Romagna. De repente, voltava a aparecer, como que evocada do nada, ao lado de Mistral. Adèle conhecia-a
bem quando era uma menina. Mas não sabia em que tipo de mulher se tinha tornado. Apertou os lábios, em sinal de contrariedade. Entre as escolhas importantes de Mistral, não
havia uma única que ela tivesse partilhado. Aceitava aquele filho tal como era e amava-o muitíssimo, apesar de não aprovar a vida que levava.
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Segundo Adèle, Mistral era a consequência de um erro que tinha cometido quarenta anos antes, quando era jovem e, em aberto conflito com a sua própria família, decidiu casar
com Talemico Vernati, um espantoso jovem sem eira nem beira, absolutamente desprovido de dinheiro, pescador no inverno, quando o mar estava muitas vezes tempestuoso, e banheiro
no verão, quando o litoral da Romagna se povoava de jovens bonitas.
Mistral, o único filho, era perfeitamente idêntico a Talemico. Naquela extraordinária semelhança física e de carácter residia o erro de partida: ela nunca devia ter renegado
as suas origens provençais para se casar com aquele maldito, adoradíssimo rapaz da Romagna.
Por tudo isso, Adèle estava convencida de que também toda a existência de Mistral era uma grande trapalhada. Da mesma forma que tinha censurado à aristocrática Chantal o seu
cinismo e a sua maldade, também considerava Maria uma mulher muito duvidosa, uma vez que era mãe de uma filha "incorreta" que tivera, e além do mais, de um homem que nem sequer
tinha casado com ela. E, se um erro se perdoa, dois eram de mais: tinha tido um filho do seu Mistral sem ser mulher dele e, há anos, viviam alegremente todos juntos "sem serem
uma verdadeira família". Conclusão lapidar que, de resto, não tinha em linha de conta o facto de Mistral não poder casar com Maria porque Chantal não lhe concedia o divórcio.
Finalmente, Adèle considerava a profissão do filho apenas uma brincadeira perigosa, um ofício de saltimbanco que "hoje está e amanhã já não está". Em suma, estava mesmo cansada
daquele único filho que nunca escutara os seus sábios conselhos. Se fosse capaz, gostaria de cortar aquele cordão umbilical que ainda, e apesar de tudo, a ligava a ele. Ficaria
feliz se pudesse deixar de o amar. Mas não podia. Passavam os anos e Mistral continuava a ser a luz do seu coração, a sua razão de viver.
Quando o filho era pequeno, Adèle sonhava fazer dele um contabilista, com um emprego fixo no Credito Romagnolo ou na Cassa Rurale. Ou talvez um funcionário dos Correios onde,
com a sua inteligência, faria seguramente carreira. Queria para ele um trabalho seguro, sólido.
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Ele, pelo contrário, nunca pensara seriamente no futuro, nem nela que, mais dia, menos dia, acabaria por morrer de ataque cardíaco.
O sangue de Talemico corria nele com o ímpeto de um rio a transbordar e derrubava todas as imposições e todas as regras. Mistral sempre fora assim, desde os tempos da escola.
A professora queixava-se: "O seu filho tem bicho-carpinteiro dentro dele. Não é estúpido. Pelo contrário. Mas não tem vontade de estudar. Eu diria até que é inteligente, mas
não se aplica". E acrescentava: "Gosta de correr, de brincar; tem uma imaginação fértil".
Mistral, por sua vez, aprendia com grande rapidez apenas as coisas de que gostava. Aos 10 anos sabia desmontar e voltar a montar motores, como o mecânico que o recebia na
sua oficina, ou talvez melhor ainda. Com 11 anos, juntando as melhores peças de sucata, construiu uma motorizada que conseguia competir com os últimos modelos que o mercado
oferecia. Com aquela máquina que montou, corria pelas estradas com os cabelos ao vento, de peito feito, sempre no limite do risco. As nódoas negras e as escoriações eram o
testemunho daquelas corridas insensatas.
- O que vale é que para cada criança há um anjo da guarda - consolava-se a pobre Adèle. - Mas tu não dás sossego ao teu anjo - resmungava afetuosamente, enquanto lhe tratava
as feridas.
A Especialista já não sabia para que santo se virar.
- Que pecados é que eu cometi para merecer um filho assim? -interrogava-se, desesperada. Olhava com raiva para os rapazes da idade do filho, que estudavam, com resultados
mais ou menos satisfatórios, e brincavam como todas as crianças normais. Armavam algumas confusões, mas deixavam os pais viver em paz.
Invejava as outras mães, que exibiam orgulhosamente os sucessos escolares dos filhos. Provavelmente, a dificuldade em educar Mistral tinha que ver com o facto de os outros
rapazes terem um pai. Adèle ia-se convencendo de que, se o seu Talemico ainda fosse vivo, Mistral não teria crescido tão louco e desenfreado.
Quando ficou aprovado, à tangente, no exame final do 3.° ciclo, Mistral rapaz decidiu abandonar a escola.
- Não quero continuar a ir à escola - disse. - Nunca serei nem contabilista nem funcionário público. O meu futuro é outro.
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Adèle, no auge do desespero, deu-lhe uma estrondosa bofetada. Ele não reagiu.
- Até me podes torturar - disse, sem verter uma lágrima -, mas eu não volto para a escola. No entanto, podes ter a certeza de que um dia vais ter orgulho em mim.
- O que é que tu queres fazer? - perguntou ela, desconcertada com tanta determinação.
- Vou trabalhar. Vou ter uma profissão que me agrade. Talvez, mais cedo ou mais tarde, volte até a estudar. Mas sou eu que vou decidir isso. Não me apetece ir para a escola
aquecer o lugar. Quero trabalhar - repetiu, decidido.
- Por estes lados só podes trabalhar como empregado num hotel ou numa pensão de terceira categoria - comentou a mãe, desconsolada.
- Vou trabalhar com o Primo - anunciou ele.
Primo Briganti era um mecânico vigarista mas versátil, que sabia reparar todos os meios de locomoção que tivessem um motor: desde a Solex até ao automóvel de grande cilindrada.
Tinha aquilo que era definido impropriamente como "a oficina". Não fazia milagres, nem podia ser considerado um génio, mas os carros que passavam pelas suas mãos ficavam sempre
a andar.
Adèle conhecia-o bem. Sabia até que tinha um grande sinal na nádega esquerda e que a mulher tinha uma ceratose seborreica na direita. Era uma enfermeira e poderia escrever
um ensaio sobre as nádegas dos seus conterrâneos.
Aquele anúncio, em qualquer caso, devia tê-la tranquilizado; porém, disse-lhe, abanando a cabeça:
- Malditos sejam os carros e quem os inventou. Tu és a minha desgraça - suspirou tristemente. - Porque é que não estudas? Um diploma é importante para garantir um futuro -
concluiu, com um grande nó na garganta.
Mistral sabia que a fazia sofrer. Mas sentia dentro de si uma força que o empurrava na direção oposta aos desejos da mãe. Por isso afagou-lhe o rosto para lhe dizer o quanto
gostava dela.
Com o primeiro ordenado, comprou-lhe um lenço de seda e pousou-o em cima da cama dela. Adèle abraçou-o, comovida, e cobriu-o de beijos.
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- O que vais fazer com o resto do teu salário? - perguntou.
- Já o gastei. Comprei um kart em segunda mão - respondeu ele, com um fio de voz. Sabia que lhe dava mais um desgosto.
O coração de Adèle deu um salto e, por um instante, faltou-lhe a respiração.
- Faz o que quiseres - murmurou por fim, resignada.
- No próximo domingo vou entrar numa corrida - acrescentou ele, decidido a dizer tudo.
- Faz o que te apetecer - repetiu Adèle, já incapaz de reagir. - Enforca-te.
A partir daí, confiou na boa sorte. Não podia morrer de angústia de cada vez que ele corria e levava para casa aquelas malditas placas, taças e prémios em dinheiro que se
apressava a pôr de lado. Ainda que ele lhe oferecesse dinheiro, ela não o aceitaria, porque não era ganho com um trabalho sério.
Mistral, porém, era feliz. Corria, participava nas competições e, cada vez com mais frequência, ficava em primeiro lugar.
Passaram os anos e aconteceram muitas coisas. A vida de Mistral mudou completamente, enquanto a de Adèle decorria sempre igual. Também a casa de Cesenatico continuou como
estava, apesar de Mistral ser muito generoso com a mãe. No entanto, ela depositava todo o dinheiro que ele lhe mandava na Cassa Rurale ed Artigiana, de Sala, onde o seu velho
amigo Sante lhe garantia o máximo rendimento. Mais cedo ou mais tarde, o filho podia precisar dele.
Um dia, quando já era um campeão e corria no campeonato de Fórmula Um, Mistral foi ter com ela e anunciou-lhe alegremente:
- Estou a fazer carreira, não precisas de continuar a preocupar-te com o meu futuro. Olha, até os jornais falam do teu filho.
E mostrou-lhe, orgulhoso, um artigo publicado no Corriere delia Sera.
Ela olhou-o diretamente nos olhos e disse:
- Eu acredito em ti, mas tu tens de acreditar em mim. Quando vires uma nuvem no teu horizonte vitorioso, deves deixar de correr. Promete-me.
Mistral sorriu, divertido, perante aquela espécie de profecia e gracejou:
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- Sabes quantas nuvens eu já vi, e quantas irão ainda passar no meu céu?
- Quando já não te sentires tão seguro de ti e começares a duvidar das tuas forças, deves parar. Jura-me que te vais lembrar disso.
Mas Mistral esqueceu-se. Adèle assistiu àquele espetacular acidente de Monza no ecrã da televisão e viu o filho ser projetado bem alto, para em seguida se estatelar na berma
da pista.
Poucos minutos depois, uma vizinha bateu-lhe à porta.
- Era o seu filho, aquele do acidente? - perguntou a mulher, com um ar aflito.
- É o meu filho - respondeu Adèle, sentada diante do televisor, incapaz de reagir. - Agora volte para sua casa, deixe-me só - murmurou.
A vizinha não teve coragem de fazer mais perguntas e foi-se embora.
Enquanto Adèle tentava recuperar, aterrorizada com aquilo que acabara de ver, tocou o telefone. Era o Dr. Matteo Spada.
- Como está o Mistral? - perguntou ela, fazendo-se forte.
- Os médicos estão otimistas - disse Matteo.
- Eu também estou - afirmou.
- Já partiu daqui um carro para a ir buscar - comunicou-lhe. - Vão trazê-la para vir ver o seu filho. Esteja calma.
- Obrigada, Matteo - disse Adèle, com a voz quebrada pela comoção.
À volta da casa de Adèle, na pequena praça, amigos e conhecidos esperavam que ela saísse para terem alguma notícia mais atual do que as que eram transmitidas pela televisão
e pela rádio. Estavam todos em silêncio, diante daquelas paredes corroídas pelo ar marítimo e pelos anos.
Ao fim de algumas horas, uma limusina azul parou, com um leve rumor, diante da casa de Adèle. Sandro Mingardi, o motorista disponibilizado pela Bluesky, saiu do carro. Era
um belo homem, à volta dos 40 anos, com um sorriso aberto. Nascido e criado em Forli, fazia parte, de pleno direito, do Clã da Romagna.
Adèle apareceu imediatamente à porta. Vestia um saia-casaco de seda azul às flores e tinha pendurada no braço uma carteira de
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camurça preta, a primeira que lhe viera à mão. Sandro foi ao encontro dela e ela abraçou-o.
- Então, vamos? - perguntou, ao mesmo tempo que os olhos se enchiam de lágrimas.
Da pequena multidão silenciosa destacou-se o prior da Igreja dos Capuchinhos. Aproximou-se de Adèle e ofereceu-lhe um pequeno terço.
- Reze. Também nós vamos rezar. Deus é bom e misericordioso. Adèle pegou no rosário, entrou no carro e desatou a chorar.
Assim que Adèle chegou ao hospital, Matteo Spada acompa-nhou-a até à Sala de Reanimação, onde ela pôde ver o filho através do vidro.
- Como é que ele está? - perguntou Adèle, num sussurro, sem afastar os olhos daquele corpo imóvel.
- Estamos com muita, muita esperança - respondeu Matteo, para tentar sossegá-la.
- É bom que a convença a ir para o hotel - aconselhou, em voz baixa, o médico de serviço, dirigindo-se ao Dr. Spada.
Depois de um longo silêncio, Adèle, apertando na mão o pequeno terço que lhe tinha dado o padre capuchinho, afastou-se do vidro e foi sentar-se numa cadeira que estava encostada
à parede em frente.
- Se não incomodar, gostava de passar aqui o resto da noite -anunciou aos dois médicos.
Começou a rezar o terço e pediu por aquele filho que era toda a sua vida, ao mesmo tempo que mil e uma recordações lhe chegavam do passado.
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Adèle Plouvin, intimidada, estava sentada a uma mesa da gelataria Nuovo Fiore, na praça do Grand Hotel de Cesenatico. Quase ficava escondida pela figura imponente da tia Pauline,
que a tinha acompanhado a Itália para passar uma semana de férias. Uma pequena orquestra tocava valsas, mazurcas e polcas. Casais de todas as idades dançavam sem trégua ao
som daqueles temas que se espalhavam no ar daquela bela noite de verão.
Adèle sentia-se como que imersa na atmosfera mágica de um filme, um daqueles que via no cinema de Bonnieux, ao domingo à noite, quando a família Plouvin, depois de despir
a roupa do trabalho, deixava a propriedade mergulhada nas vinhas e, de caleche, ia até à aldeia. O pai Plouvin, com os três filhos, ia para a taberna, enquanto a mãe, as duas
filhas e a irmã Pauline iam ao cinema.
Adèle nunca tinha ultrapassado os limites da sua região. Tinha ido a Bordeaux, apenas uma vez. Da grande cidade só recordava o hospital, onde tinha ficado durante muito tempo
para tratar da sua perna doente.
Agora, com 20 anos, depois de a irmã de 18 se ter casado à pressa no segundo mês de gravidez, tinha recebido o presente inesperado daquela viagem a Itália. Nunca tinha estado
no litoral, antes dessa altura, e sentia um vago aturdimento com o cheiro da maresia que pairava na grande praça inundada de luzes.
O vestido de voile de seda verde, que tinha sido da mãe Plouvin e que a tia Pauline tinha adaptado ao corpo dela, fazia-a sentir-se um pouco ridícula. Esse desconforto aumentou
quando se apercebeu de
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que um rapaz lindíssimo, de uma mesa vizinha, estava a olhar insistentemente para ela. Nunca ninguém a tinha observado daquela maneira descarada e com tanto interesse. Será
que estava a troçar dela? Procurou proteção, aproximando-se do corpo maciço da tia. O rapaz levantou-se, revelando uma figura imponente e harmoniosa, sublinhada pela alvura
de uma camisa aberta sobre o peito onde brilhava uma medalha de ouro. Os amigos que estavam com ele continuaram sentados.
- Voulez-vous âanser avec moi, mademoiselle?. - perguntou, num francês fluente.
Adèle olhou para ele, espantada. Teria ele ouvido as suas conversas com a tia Pauline? Decidiu não indagar.
- Está admirada por eu falar a sua língua? - perguntou a sorrir. - Aqui, na Romagna, muita gente fala francês - esclareceu com orgulho.
- A questão é que eu não sei dançar - balbuciou ela, ao mesmo tempo que se agarrava à cadeira de ferro.
- Deixe-se levar - garantiu o rapaz, com uma voz insinuante e um olhar particularmente intenso.
Os amigos, na mesa, acompanhavam com satisfação aquela abordagem, conduzida com tanta mestria.
- Não tenhas medo - sussurrou a tia Pauline que, se pudesse, teria voado entre os braços daquele rapaz.
Adèle levantou-se lentamente e deu alguns passos para chegar junto do seu cavalheiro, revelando uma ligeira instabilidade.
- Como vê, coxeio um pouco - disse, corando ligeiramente ao declarar o seu defeito físico que, de resto, era quase impercetível.
- Um acidente? - perguntou ele.
- Não, a consequência de uma poliomielite, quando era criança.
- Não nos vamos com certeza deixar condicionar por esse pormenor insignificante - declarou ele, cortesmente.
Rodeou-lhe a cintura com o braço e, apertando-a contra ele, lançou-se às voltas por entre os outros pares.
Quando era pequena, os rapazes de Bonnieux chamavam-lhe "a coxa" e riam-se dela. Por isso, Adèle tinha-se convencido de que nunca ninguém lhe faria a corte. Sentia-se feliz
nos braços daquele jovem e experimentava uma embriaguez desconhecida.
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- Eu sou o Telemico Vernati - apresentou-se. - No verão sou banheiro e no inverno pescador.
- Eu chamo-me Adèle Plouvin. Pertenço a uma família de agricultores - respondeu ela, assumindo um certo ar importante. - Mas não somos ricos - apressou-se a esclarecer, com
receio de ter exagerado.
Talemico explodiu numa gargalhada sonora.
- Nós somos tão pobres que em minha casa a miséria se corta à faca - brincou, e acrescentou alegremente: - Fomos feitos um para o outro.
Adèle deixou-se contagiar pela gargalhada do rapaz e continuaram a dançar e a rir descontraidamente até ficarem com os olhos cheios de lágrimas.
Quando a música cessou, ele afastou-a um pouco e olhou para ela com um ar desconfiado:
- Mas a menina Adèle está a passar umas férias caras. Estavam em pé, parados no meio da praça.
- Ganhei-as - apressou-se a esclarecer. - Eu própria, enquanto não recebemos pelo correio o dinheiro e os bilhetes, não acreditei. Ganhei estas férias ao participar num concurso
realizado por uma empresa que produz meias de nylon - explicou, divertida.
Talemico olhava para aquela rapariga simples, um pouco triste, com um ar doce e uns olhos carregados de espanto e comparou-a com as turistas desenvoltas e desinibidas que
frequentavam habitualmente as praias da Romagna.
- És mesmo bonita - disse o rapaz com uma tal, indubitável, sinceridade que Adèle se comoveu.
Foi assim que se conheceram e se apaixonaram. Talemico tinha 25 anos. Havia de morrer antes de cumprir os 28, após um casamento que durou menos de três anos. Adèle, depois
de ficar sozinha, não voltou a casar. Talemico era insubstituível: mulherengo, mentiroso, mas generoso e com um talento especial para inventar histórias maravilhosas. Tinha
tido por ela um respeito muito semelhante à veneração. Foi o primeiro e o único a aceitá-la com a sua debilidade, conseguindo fazê-la esquecer um defeito que, antes de o encontrar,
lhe tinha condicionado a vida.
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Adèle recordava os meses em que trazia no ventre o seu menino como os mais belos de toda a sua existência. Talemico pegava nela ao colo e embalava-a, a ela e ao filho que
crescia dentro dela, com uma ternura infinita.
Quando Mistral nasceu, Talemico organizou uma festa que compensou a frieza dos Plouvin, que, mesmo naquela ocasião, tinham reafirmado a absoluta desaprovação daquela união,
com a sua total ausência. Depois do casamento da filha, nunca mais a quiseram ver.
Houve uma tentativa de aproximação quando ela ficou viúva, mas que resultou num fracasso. Talvez um dia, Adèle regressasse à Provença, não tanto para rever a família, mas
para dar a conhecer a Mistral a terra onde ela tinha nascido e crescido. Assim, continuou a viver em Cesenatico, onde o filho cresceu. Nele, que tanto se parecia com Talemico,
Adèle colocou todas as suas esperanças. Mistral tinha-a traído, tinha-a desiludido. Talvez no nome que escolhera para ele, estivesse encerrado um destino violento. Tinha crescido
como um vento selvagem e indomável. Nunca fizera nada para satisfazer os desejos da mãe. Estava possuído pelo demónio da velocidade e seguia unicamente o seu apelo irresistível.
Era ali que o tinha levado a sua maldita paixão. Adèle, sentada, em frente à Sala de Reanimação, rezava em voz baixa, oferecendo a Nossa Senhora a sua própria vida em troca
da vida do filho.
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Na elegante suite ocupada por Giordano Sacerdote, em Villa d'Este, decorria, em ritmo acelerado, uma reunião tempestuosa que tinha como protagonistas, para além dele próprio,
diretor desportivo da Bluesky, o jovem Raul Romero e Andrea Soria. Tinham passado vinte e quatro horas desde o acidente de Mistral, era segunda-feira, e precisavam de abordar
duas questões escaldantes: o estado de saúde do campeão e o golpe de mão do jovem piloto que tinha provocado aquele acidente espetacular. Enquanto Mistral continuava suspenso
entre a vida e a morte, Romero era literalmente assediado pelos sponsors que lhe ofereciam contratos de ouro.
Gianni Strauss, o dono da equipa, anunciara a sua chegada de Nova Iorque. Giordano, que tinha passado a noite no hospital para acompanhar a evolução de Mistral, estava furioso
com o piloto argentino, enquanto Andrea se esforçava por controlar as faíscas que podiam desencadear uma reação em cadeia que, no estado em que estavam as coisas, não ajudaria
ninguém.
- Interrogo-me se não devíamos rescindir o contrato - ameaçou o diretor desportivo.
- Se o contrato o prevê, não serei com certeza eu que me vou opor a isso - disse Romero, que sabia perfeitamente que era, naquele momento, um dos pilotos mais cotados do mercado.
O contrato com uma outra equipa proporcionar-lhe-ia vantagens bem mais interessantes.
- Olha, rapaz, não gostei da tua atitude. Nem o público gostou do que fizeste ontem - resmungou Soria. - Enquanto estavas no pódio
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a abrir a tua garrafa de champanhe, eu estava no meio das pessoas. Aquilo que ouvi a teu respeito não era muito lisonjeiro.
- Já te disse que sinto muito - replicou o argentino. - Queria ganhar, isso é verdade, mas não à custa da vida de Mistral. Seguia-o de perto, eu tinha o pé bem no fundo no
acelerador e ele, provavelmente, levantou o dele. Sei lá! O que sei é que venci porque sou o melhor. Porque segui o meu instinto.
Giordano, ao ouvi-lo falar daquela maneira, teve vontade de lhe arrancar a cabeça.
- És o típico produto dos anos 90. Só cinismo, nada de sentimentos - acusou-o.
- É verdade - ironizou Romero. - As vossas lamentações sobre a beleza do tempo passado fazem-me rir. Até porque nesse tempo eu não existia. Isto é o presente. Para mim, está
ótimo assim. Tu dizes que eu sou cínico, eu digo que uso a cabeça. Quando se quer ganhar, tem de se pôr a cabeça a funcionar. O coração deixo-o para os padres e para as mulheres.
No que diz respeito ao Mistral, já te disse que lamento muito. Lamento profundamente. O que mais devo fazer? Devia dar um tiro a mim mesmo por aquilo que lhe aconteceu?
Giordano levantou-se da poltrona de um salto e agarrou-o pela T-shirt, pronto para o levantar em peso.
Era uma situação tremenda, que não envolvia apenas os dois homens, mas que podia provocar ruturas insanáveis no interior da equipa, que já perdera o seu campeão.
- Chega - interveio Soria, separando os dois adversários. - Não tens razão, e sabes disso. Também a imprensa o sabe. Se por um lado te exalta, do ponto de vista humano condena-te
- disse, ao mesmo tempo que apontava para os jornais que cobriam a mesa. - Percebo a tua vontade de ganhar, mas há um limite para tudo. A tua forma de lutar nas competições
é, no mínimo, criticável. Ultrapassar daquela forma, é uma atitude censurável e perigosa. Sabemo-lo nós, sabem-no os comissários e sabe-o o público.
- Isso é uma ameaça? - interrompeu-o Raul, com o seu belo rosto impassível.
- É apenas um aviso, um aviso paternal. Hoje pensas que és indispensável, mas talvez te enganes. Atualmente, o Bluesky é um dos
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automóveis mais competitivos. Quando um carro atinge estes níveis de desempenho, nenhum piloto é insubstituível. Tenta refletir sobre este ponto e depois modera a tua atitude
- concluiu Soria, com o tom pacato de quem não precisa de levantar a voz para impor o seu ponto de vista.
Raul enterrou-se na poltrona e baixou os olhos para fitar a ponta dos mocassins. Estava desesperado pelo que tinha acontecido a Mistral, mas não ousava confessá-lo nem a ele
mesmo. Na noite anterior, tinha passado mais de uma hora a deambular à volta do hospital, à espera de arranjar coragem para entrar, falar com Maria, explicar-lhe o que tinha
acontecido, pedir-lhe desculpa. Mas não conseguiu fazê-lo. Receava, perante a dor daquela mulher, desatar num pranto e perder aquela patina de cinismo que precisava de conservar
a todo o custo. Recordava o aviso do pai: "Um homem verdadeiro nunca chora, só choram os piegas". Ele tremia com a ideia de ser considerado como tal. Construir a sua imagem
- a personagem do jovem estouvado, duro, imbatível, surdo ao apelo dos sentimentos - tinha sido um exercício muito duro e difícil. Tinha conseguido e não podia facilitar logo
agora.
Giordano aproximou-se da mesa onde tinha sido servido o pequeno-almoço. Naquela noite dormira pouquíssimo e sentia-se em frangalhos. Sarah tinha tentado convencê-lo a dormir
algumas horas, adiando aquela reunião para a tarde. Mas não conseguiu convencê-lo: a Bluesky era a sua vida, os destinos da equipa eram demasiado importantes para ele e Mistral
era como um irmão, para além de ser o seu campeão.
Serviu-se de uma generosa dose de café, amargo, a ferver, tal como ele gostava. Giordano afirmava que o café era um remédio fantástico contra a tensão e as crises nervosas.
Bebeu uma chávena de uma só vez, apesar de saber que, naquela ocasião, aquilo não bastaria para o fazer reencontrar a tranquilidade necessária.
Um bom líder de equipa não pode permitir que os seus pilotos pisem as regras do jogo, pondo em perigo a vida de pessoas e os milhões que vale uma equipa. Quando uma equipa
não funciona, a responsabilidade não é dos engenheiros projetistas, dos mecânicos ou dos pilotos: é apenas do diretor desportivo. Disso Giordano tinha
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a perfeita consciência, e sabia que devia ter informado Gianni Strauss sobre o acidente de Mistral. Gianni, o filho do grande Peter, tinha herdado do pai a altivez e a arrogância,
mas não a genialidade. A ideia de ter de o enfrentar e assumir a sua falha causava-lhe arrepios. Como que evocado por aquele pensamento, Gianni Strauss entrou na sala: sem
bater e sem se dignar sequer dedicar aos presentes um gesto de saudação.
Era um homem de 40 anos, de figura esguia e nervosa, uns óculos com armação de ouro que emolduravam uns grandes olhos azuis, os cabelos loiros que se iam tornando mais raros
nas têmporas, a pele clara e o olhar frio e cortante.
Dizia-se que se parecia com a mãe, que tinha sido uma pianista de talento. Dela herdara a paixão pela música. Gianni tinha-se licenciado em piano no Conservatório de Viena
e sempre se mantivera afastado dos negócios da família até à morte do pai, Peter, que lhe deixara uma fortuna incalculável, incluindo a marca Bluesky.
Gianni ficou imóvel ao lado da porta e fixou o seu olhar gélido nos três homens, que aguardavam.
Por último fitou Giordano, que se sentiu na mira de uma espingarda de precisão.
- Quanto nos vai custar esta brincadeira? - perguntou friamente.
Não gostava de automobilismo, não sabia nada de Fórmula Um e tinha uma aversão pessoal pelos pilotos aos quais, provavelmente, invejava a força, a coragem e a agressividade.
Para além do mais, detestava a iniciativa publicitária do pai, que Giordano Sacerdote conduzia com uma extraordinária eficácia. Para ele, a equipa Bluesky era uma espécie
de festa em movimento, para divertimento de uma centena de empregados, que todos os anos custava muitos milhões.
Esta convicção de Gianni Strauss era verdadeira apenas em parte, porque aquele enorme investimento financeiro era inteiramente recuperado com o retorno publicitário. Tanto
Gianni como Giordano sabiam perfeitamente disso.
As oficinas de Ramsgate, no Kent, a uma hora de comboio de Londres, construíam todos os anos seis automóveis, apesar de apenas dois participarem nas competições, e a perda
de um carro constituía um dano considerável.
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- Eu fiz uma pergunta - repetiu Strauss secamente.
- Sabes perfeitamente quanto nos custa - respondeu Giordano, esforçando-se por manter a calma. - Aquilo que não podemos quantificar é quanto o Mistral vai pagar por esta brincadeira.
- Pois é - admitiu Gianni Strauss, mudando de tom. - Mas sabemos bem a quem temos de agradecer - sibilou, desviando o olhar para o jovem piloto argentino.
- Aprecio o teu estilo conciso - replicou Romero, em tom irónico.
- És mesmo tu, o homem sem pecado, que pode atirar a primeira pedra - acrescentou em ar de desafio.
Na sala tinha-se feito silêncio e os olhares de todos estavam concentrados nos dois adversários.
Raul parecia não ter nenhum medo do poderoso industrial.
- És o tipo certo para premiar os merecedores e punir os culpados - insistiu, enquanto Gianni não reagia.
Strauss tentou um sorriso de escárnio.
- Imagina se ias perder a oportunidade de te exibires numa vulgar telenovela sul-americana.
Naquele momento, Giordano Sacerdote sentiu-se na obrigação de intervir. O acidente de Monza não o tinha obviamente divertido. Aquilo que estava a acontecer agora, porém, agradava-lhe
ainda menos, porque não sabia a que é que Strauss se referia. E preferia ignorá-lo.
Havia um homem em perigo de vida, uma perda de milhões, a imagem da Bluesky para salvar e uma época de competição para levar até ao fim, se possível de uma forma honrada.
Ele era o diretor desportivo e tinha de salvar o que pudesse ser salvo.
- A culpa é minha - acusou-se a si mesmo, dirigindo-se a Gianni.
- Não soube dar rédea curta a este jovem. Por outro lado, e não o digo para me justificar, os cavalos de raça não se deixam domar com muita facilidade. Talvez eu esteja a
envelhecer e comece a perder capacidades. Uma coisa é certa: o acidente foi uma consequência da minha permissividade. Portanto, eu diria que se há alguma coisa a discutir
é entre nós. Quanto aos outros, é melhor excluí-los - disse, num tom decidido.
Gianni olhou para ele, irritado.
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- Apetece-me acabar com isto e livrar-me desta tralha toda - replicou, evitando responder à letra. - Ainda que vendesse ao desbarato, ao preço mais esfarrapado, conseguia
levar para casa uns quarenta mil milhões. Nos tempos que correm, seria uma boa lufada de oxigénio.
O gelo que se seguiu era exatamente a reação que Gianni esperava, e ficou satisfeito por isso. O engenheiro Soria sentiu uma pontada no estômago. Tentou lembrar-se onde tinha
deixado os comprimidos Maalox, que controlavam a incomodativa duodenite que se reacendia nos momentos de tensão. Aquele doido varrido estava disposto a ceder em bloco a equipa
que era o seu orgulho e a sua vida. A quem venderia? Estaria já em negociações com alguém? E os seus homens? O seu esforço de anos? As inovações que estava a introduzir no
motor?
Foi Raul quem rompeu o silêncio. Fê-lo de uma forma inesperada, revelando um aspeto de si próprio que ninguém conhecia.
- Não há dúvidas quanto ao facto de eu ser responsável por aquilo que aconteceu - disse com calma, dirigindo-se a Gianni. - Mas tu és indubitavelmente um filho da puta.
Strauss aguentou a ofensa sem reagir.
- Então estás mesmo decidido a prosseguir com a tua cena? -perguntou, gélido.
- Provavelmente fui tomado por um ataque de dignidade e quero ir até ao fim. - Raul olhava-o diretamente nos olhos, e prosseguiu: - Desde o momento em que entraste nesta sala,
submeteste-nos a um interrogatório, humilhaste-nos e ameaçaste-nos. Apenas evitaste um ponto de todo este processo, o único em que devias ter tocado, imediatamente, com uma
simples pergunta: Como está o Mistral? Ele fez os teus jeans darem a volta ao mundo, cobrindo-os de ouro. Vende a Bluesky, se é isso que tu queres, ou fica com ela. Pessoalmente,
a tua decisão deixa-me completamente indiferente: eu, em relação a ti, fico por aqui.
Com poucas palavras, Raul tinha-se resgatado a ele próprio, a Mistral e a toda a equipa. Aquele jovem cínico, devorado pela ambição, estava a bater-se por todos eles. Defendia
o campeão, cuja vida estava pendente dos automatismos do Serviço de Reanimação, Gior-dano Sacerdote, Andrea Soria, os técnicos e os mecânicos: todos eles
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profissionais extraordinários. Lutava por aquele conjunto de talentos, de criatividade e de coragem que alimentava a glória de um clamoroso idiota desprovido de sentimentos.
Sobretudo, Raul era movido pela admiração e pelo afeto que tinha por Mistral e pelo sentimento de culpa que experimentava ao sabê-lo em perigo de vida. Por isso, não sentiu
sequer a mão gélida e seca que o atingiu na face. Ouviu apenas as palavras que se seguiram:
- Maricas estúpido - sibilou Gianni, colocando naquela ofensa todo o veneno que tinha no corpo -, vê lá se entras nos eixos, ou acabaram-se as corridas para ti.
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Florette Roussel era a filha única de um conhecido e estimado advogado parisiense, especialista em Direito Penal, cuja casa era frequentada pela fina flor da finança, da política
e da imprensa internacional. A jovem não tinha uma particular predileção pelo estudo, mas tinha classe e possuía uma elegância inata. Quando o advogado Emile Roussel se apercebeu
de que a filha nunca terminaria o curso de Direito, conseguiu que a contratassem para a redação da revista Vogue, que era uma coisa que lhe interessava muitíssimo.
Durante algum tempo, moveu-se com cautela por entre as frivolidades dos criadores de moda e o vedetismo dos grandes fotógrafos, evitou habilmente as facadas das colegas e,
aproveitando uma extraordinária inata capacidade de organização, conquistou a simpatia da diretora da revista. Bem depressa, porém, aquele mundo de lantejoulas começou a aborrecê-la.
Por isso, no próprio dia em que lhe foi confiada a responsabilidade de um importante setor da revista, pediu a demissão.
Florette tinha-se apercebido também de que estava grávida. Quando comunicou a notícia ao futuro pai, um homem ambicioso e sem escrúpulos por quem se tinha apaixonado, ele
declarou que um filho, naquele momento, não estava nos seus planos. Por isso, disse-lhe adeus.
Naquele ambiente frequentado pela fascinante Florette, apesar de se viverem os anos 70 e de se falar com desenvoltura de liberdade sexual, ter um filho sem um pai assumido
continuava a ser um problema.
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Não obstante, Florette decidiu ter a criança. Quando a criança completou 5 anos, deu uma grande festa na sua casa de Paris, na avenue Niel. Entre os convidados estava a condessa
Chantal Hon-fieur com o marido, um piloto italiano que corria em Fórmula Dois e se chamava Mistral Vernati. Depois daquele primeiro encontro casual, Florette e Mistral tiveram
oportunidade de se conhecerem melhor e nasceu entre eles um entendimento que se transformou rapidamente numa amizade profunda e duradoura. Apesar de serem muito diferentes,
de condição social diversa, cultura e maneira de viver distinta, os dois jovens amigos respeitavam-se sinceramente e gostavam muito um do outro. Mistral propôs a Florette
que ela administrasse a sua carreira que se encontrava em rápida ascensão, tarefa que ela aceitou com entusiasmo, conquistada também pelas suas histórias sobre o mundo das
corridas e do automobilismo.
Florette entrou na vida de Mistral com a leveza de uma pena e a alucinante eficiência de um manager. Passou a ser a ligação entre o campeão e a imprensa. Tratou da sua imagem
pública e organizou entrevistas, sessões fotográficas e aparições televisivas. Escrevia artigos sobre ele que eram publicados em jornais e revistas da especialidade. Quando
se tratou de definir a sua remuneração, ela pediu uma percentagem sobre os ganhos de Mistral. Nas últimas épocas tinha chegado a ganhar meio milhão de dólares por ano: uma
quantia considerável mesmo para ela, que já dispunha de muito dinheiro.
Florette era o anjo da guarda de Mistral. Quando o campeão, depois do acidente, foi internado no hospital, mandou transferir a sua bagagem e a de Maria para uma suite do Hotel
Plaza, em Milão, preocupando-se também com que essa informação não se espalhasse.
Tinha escolhido aquele hotel porque era o mais próximo do hospital. Assim, quando Maria saiu da Unidade de Cuidados Intensivos com o Dr. Spada, ela estava à espera dela para
a levar ao hotel. Entretanto, tinha tomado medidas no sentido de mandar vir as crianças, que já tinham chegado a Milão na companhia de Rachele, uma mulher da Romagna, de origem
camponesa, que se ocupava a tempo inteiro de Manuel e de Fiamma, com a doçura de uma mãe e a intransigência de um sargento.
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Quando Adèle Plouvin foi obrigada à viva força a deixar o Serviço de Reanimação, foi levada para o mesmo hotel, onde encontrou Rachele e os netos à espera dela. Estava com
um ar abatido, os olhos vermelhos de tanto chorar, e coxeava de uma forma muito mais visível do que o habitual.
Manuel correu ao encontro dela e saltou-lhe para o pescoço, ao mesmo tempo que lhe perguntava, com a desconcertante sinceridade das crianças:
- É verdade que o pai está a morrer?
Fiamma, entretanto, sorria com a candura desarmante das crianças com síndrome de Down e esperava um sinal de Adèle para se abraçar a ela.
- O teu pai está a melhorar e vai regressar em breve para te meter na ordem, Manuel - tentou brincar a avó. Depois olhou para Fiamma e sentiu o coração palpitar dolorosamente.
Gostava muitíssimo daquela menina, que aceitara como se fosse também filha de Mistral. Soltou-se do abraço de Manuel e aproximou-se dela.
- Dá-me um beijo - disse-lhe com doçura. Fiamma sufocou-a no seu abraço impetuoso.
- Estiveste a comer uvas? - perguntou a pequena. Adèle ficou espantada com aquela interrogação.
- Porque é que me perguntas isso?
- Porque estás com um cheiro bom de uva americana. Eu gosto de uva americana - explicou. Fiamma estava ansiosa por ter notícias de Mistral mas não tinha coragem para perguntar.
Adèle dirigiu-se a uma sala de estar grande e luminosa. Avançava com um passo incerto, sobre o tapete espesso, em direção a uma poltrona de damasco. Tinha dificuldade em caminhar.
Fiamma apercebeu-se e deu-lhe uma mão para a ajudar.
- A Florette diz que tens de descansar, avó, e que há um quarto para ti ali ao fundo - indicou Fiamma, ao mesmo tempo que tentava orientá-la na direção certa.
- Mas quem é essa Florette que me dá ordens sem me conhecer? - protestou Adèle, que caminhava com passos curtos. - Vocês estão sempre rodeados de gente estranha, que põe e
dispõe como muda o vento - resmungou.
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- A Florette é a Florette - tentou explicar Fiamma. - Toda a gente faz o que ela diz. Até o pai lhe obedece - concluiu a criança.
- A Florette sou eu - disse uma mulher, entrando na sala.
Era tão alta e magra que, num primeiro momento, fez lembrar a Adèle os espantalhos que, em pequena, via nos campos em volta da propriedade onde vivia. Quando a mulher se aproximou,
ficou impressionada com a sua beleza. Podia ter uns 35 anos, ou talvez mais. O corpo esguio e seco era, no entanto, muito feminino. Tinha os cabelos curtíssimos e um pouco
grisalhos, o rosto bronzeado, os olhos dourados como os de um gato, um nariz pequeno, lábios estreitos e cheios. É isso que ela parece, pensou Adèle: um felino pronto a atacar
a presa.
- A senhora é a famosa avó Adèle, suponho. - Florette sorriu levemente, enquanto lhe estendia uma mão que Adèle não pôde deixar de apertar ao mesmo tempo que, finalmente,
chegava à poltrona, onde se deixou cair, exausta.
As duas crianças foram ter com ela e, com um salto, instalaram-se sobre os grandes braços acolchoados. Mistral já tinha descrito o mau feitio de Adèle a Florette, que não
se afligiu com aquele comportamento desagradável. Pelo contrário, olhou para ela com uma pena infinita. Também ela era mãe e se inquietava constantemente por causa do filho,
já adulto, de quem estivera sempre demasiado afastada. Para além do mais, o facto de o seu Charles estar prestes a casar-se, perturbava-a profundamente. A notícia tinha-a
apanhado de surpresa dois dias antes e decidira ir ter com ele a Paris depois do Grande Prémio de Monza, mas o acidente de Mistral veio alterar os seus planos.
- Tomei a liberdade de lhe mandar preparar um quarto para que possa descansar - disse Florette.
- Agradeço-lhe - respondeu Adèle. - Estou muito cansada.
- Aqui está em sua casa, madame Adèle - disse Florette, a sorrir. - Diga-me se lhe posso ser útil em alguma coisa - acrescentou.
- Só Deus, se me ouvir, me pode ajudar - suspirou Adèle.
- Se a senhora acredita, Deus vai ouvir as suas preces - garantiu Florette.
Adèle fechou os olhos e, com um gesto de cabeça, exprimiu toda
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a sua convicção na ajuda do céu. As crianças estavam ao lado dela e observavam-na com curiosidade.
- Talvez devesse mesmo aproveitar aquela cama de que me falava, mas não é fácil juntar todas as minhas forças para me levantar, agora que me sentei nesta poltrona - confessou.
Depois voltou-se para os netos: - Onde está a vossa mãe?
- A mãe está a dormir - disse Fiamma.
- Como é que ela consegue dormir com esta gente toda à volta? -comentou Adèle.
- De facto, não consigo. Aqui estou eu - declarou Maria, que tinha aparecido à porta. Foi até junto de Adèle, debruçou-se sobre ela e deu-lhe um beijo em cada face.
- Não se pode dizer que estejas com muito bom aspeto - comentou Adèle com doçura, enquanto observava o rosto de Maria, marcado pela ansiedade e pelo cansaço.
- Mas deixa lá que tu estás uma flor - tentou ela brincar. Adèle conhecia Maria desde que ela era uma criança, e ao vê-la
depois de tantos anos ficou admirada com a sua beleza. Mas agora parecia subitamente envelhecida. Sentiu uma grande solidariedade e sentiu um profundo impulso de gratidão
pelo amor que ela dedicava ao seu filho.
- Também vai superar desta vez - disse Maria, e suspirou.
- Porque não havia de superar? - rebateu Adèle, para a animar.
- Estou contente por estares aqui.
- Vamos ajudar-nos uma à outra, vais ver - disse Adèle. - Mas agora vais ter de me dizer onde é o quarto que me reservaram. Nestes grandes hotéis perco-me como num labirinto.
Poupou-a à habitual litania sobre aquela maneira de viver que ela não apreciava. Florette acompanhou-a ao quarto, enquanto o pequeno Manuel saltitava, feliz, à volta delas.
Maria ficou com Fiamma e sentaram-se num sofá, uma ao lado da outra.
- Quando é que o pai vai ficar bom? - perguntou a menina. Maria afagou-lhe os cabelos que lhe caíam sobre os ombros, lisos
e acobreados, com reflexos de mel.
- Ainda vai demorar algum tempo - respondeu.
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- Quanto? - insistiu Fiamma, que precisava de certezas.
- Não sei, mas vai ficar bom, e é isso que importa.
- Então é como se já estivesse bom - concluiu Fiamma.
- Sim, é isso mesmo. - Maria continuou a acariciá-la.
Do corredor chegou a voz de Florette, que falava com um homem. Fiamma chegou-se muito à mãe, à procura de proteção. Estavam sós no centro da grande sala de estar inundada
de luz. Foi assim que Gianni Strauss as viu quando surgiu à porta.
Maria fitou-o longamente, em silêncio. Também Fiamma o observou. Tinha um aspeto inquietante, que lhe incutia medo, e o seu pequeno coração começou a bater com força.
- Olá, Maria - disse Gianni, ao mesmo tempo que entrava na sala e se detinha a poucos passos delas.
- O que queres? - perguntou ela, secamente.
- Vim de Nova Iorque logo que soube - respondeu Gianni. O tom da sua voz era insolitamente respeitoso.
- Devo agradecer-te? - replicou Maria, em tom hostil.
- Não é preciso - concluiu, baixando a voz. Florette andava por perto, pronta para intervir.
- Vi a condessa no hospital - comunicou-lhe, sem o convidar a sentar-se. - Parece que chegou com os advogados dela.
- É provável.
- Os abutres sentem o cheiro da herança - observou ela.
- Não te esqueças que a condessa é ainda a mulher legítima do Mistral - avisou Gianni.
Maria apertou com mais força, entre as suas, a mão de Fiamma.
- É a tua filha? - perguntou finalmente Gianni. Sabia, como toda a gente, que Maria tinha uma filha com síndrome de Down, mas nunca a tinha visto.
Maria anuiu.
- Deve ter 12 anos - disse cautelosamente.
- Tens boa memória - respondeu ela.
- Nasceu pouco depois da morte do meu pai - prosseguiu ele.
- O Peter nunca a viu - esclareceu Maria. Gianni estava visivelmente embaraçado e observava Fiamma como se no olhar mei-guíssimo daquela criança, no seu aspeto, procurasse
uma resposta
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para as suas interrogações, uma confirmação para as suas dúvidas. - É mesmo tua irmã - murmurou Maria -, já era tempo de a conheceres.
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7
Gianni Strauss, sem dizer uma palavra, foi sentar-se na poltrona que Adèle tinha ocupado pouco antes. Parecia confuso, atrapalhado.
- Estou... chocado - balbuciou.
- Porque te confirmei aquilo que sabias há muito tempo? - retorquiu Maria, agressiva, ao mesmo tempo que fazia um sinal a Florette para que levasse dali a filha.
- Mãe, tenho mesmo de me ir embora? - perguntou Fiamma, perturbada pela estranha conversa que a mãe estava a ter com aquele desconhecido.
- Sim, querida, tens mesmo de te ir embora - confirmou Maria. Fiamma obedeceu, sem insistir. Quando ficaram sozinhos, Gianni
Strauss respirou fundo, como se estivesse com falta de oxigénio.
- Estou chocado - repetiu.
- Já o disseste - sublinhou Maria. - Não vejo razão para isso -acrescentou secamente.
- Sei tão pouco da vida do meu pai, e não sei praticamente nada sobre esta menina.
- Se ao menos tivesses querido saber, tudo teria sido diferente.
- Não conseguia ser teu amigo. Detestei-te com todas as minhas forças - confessou.
- Para quê desenterrar o passado? Deixemos as coisas como estão.
- Não posso, depois de ter visto a menina.
- Mas sabias da existência dela.
- Mas nunca a tinha visto. Agora mudou tudo para mim. Consegues entender? - E acrescentou: - Chama-se mesmo Fiamma?
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- Não achas que é um nome bonito?
- Fica-lhe bem. - Gianni cobriu o rosto com as mãos durante alguns instantes e depois murmurou: - O meu pai tinha casado contigo, de certeza, se não tivesse morrido.
- Casar nunca foi importante para mim.
- Teria sido determinante para a Fiamma.
- A Fiamma tem um pai.
- Arrisca-se a perdê-lo também a ele - insistiu Gianni. Maria fulminou-o com um olhar de fogo.
- Essa é a mentira mais grosseira que eu alguma vez ouvi. E por que razão te preocupas com tanto interesse com a minha vida e com a dos meus filhos?
Quando o grande Peter Strauss era vivo, Gianni sempre a hostilizara. Depois da morte do pai, tinha-a ignorado completamente, mesmo sabendo que ela esperava um filho. O pai
nunca fizera disso um mistério para ninguém, pelo contrário, falava no assunto com orgulho. Na véspera de um encontro decisivo com os advogados para definir as condições do
divórcio entre ele e a mulher, Marianne Fuks, Peter tinha perdido a vida num acidente de viação. O automóvel em que viajava sozinho tinha sido destruído por um veículo pesado
na estrada particular que subia do lago de Como em direção à sua residência. Tinha-se perdido o rasto daquele camião e o acidente foi arquivado. A morte do pai permaneceu
como um dos mistérios que tinham afetado a sua existência.
- Escuta, Maria. É provável que o Mistral sobreviva. Assim espero. Mas temos de agir, contando com o pior - insistia Gianni.
- E então? - respondeu ela, cortante.
- Tens de agir de forma a não ficares, pela segunda vez, com uma mão atrás e outra à frente.
- E, no entanto, nesse teu assomo de generosidade há qualquer coisa que não me convence - observou Maria.
- Nunca confias em ninguém? - censurou Gianni.
- Sempre que o fiz dei por mim num sarilho. Por isso, continuo a perguntar-te por que motivo estás tão preocupado comigo.
Gianni levantou-se e foi sentar-se perto dela, no sofá.
- Digamos que os anos limam as arestas, que a vida muda as
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pessoas. Não podemos esquecer que a herdeira legítima do Mistral, em caso de morte, é a Chantal Honfleur. Se ele morresse - continuou, imperturbável - toda a sua fortuna passava
para a mulher. Tens ideia daquilo que o Mistral possui?
O discurso de Gianni continuava a deixar Maria na mais profunda indiferença.
- É rico, eu sei, mas sem ele nada mais teria sentido para mim. Nem a sua riqueza.
A empresa de Mistral tinha uma faturação anual superior a trinta milhões de dólares. Em Montecarlo, a PromoMi geria imóveis e possuía agências de publicidade, concessionários
de automóveis e muitas outras empresas. Os escritórios, dotados de um centro de congressos, ocupavam um edifício de seis andares. Em Paris, havia a Publiasso-ciated, que tratava
da imagem de Mistral e administrava os interesses de muitas figuras do desporto. Em Milão, havia uma sociedade de promoção que atuava no mercado europeu para a gestão dos
sponsors.
Maria estava ao corrente de tudo isso, mas aquela imensa fortuna não significava nada sem Mistral.
- Deves tomar a iniciativa e encostá-la à parede, neutralizando-lhe todos os movimentos - aconselhou Gianni. - Tens dois filhos para criar e Mistral acumulou para eles um
imenso património.
Maria olhou-o com suspeição.
- Não quererás, por acaso, servir-te de mim para passar uma rasteira à condessa?
Gianni corou até à raiz dos cabelos.
- E por que razão faria isso?
- Sabes simular a dor, mas não a ingenuidade - replicou Maria. - Tu tens umas contas a ajustar com a francesa e estás desejoso que ela caia num precipício. Mas queres que
seja a minha mão a empurrá-la para o abismo.
Gianni ergueu-se de repente.
- Estás a dizer disparates - disse, agressivo, com uma voz estridente.
- O mundo é pequeno, Gianni, e acaba por se saber sempre tudo de todos.
- Só queria ajudar-te - mentiu, enquanto se levantava.
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- Aprecio a intenção. - Maria tinha acertado em cheio.
- Se mudares de ideias, considera-me à tua completa disposição -tentou ainda Gianni, pousando sobre a mesa o seu cartão de visita.
- Não vai ser preciso nada. Porque o Mistral vai sobreviver. Disso eu tenho a certeza.
Enfiou por cima dos sapatos uns protetores de plástico azul, vestiu uma bata da mesma cor e recolheu os cabelos dentro de uma touca. Uma pequena máscara tapava-lhe a boca.
Assim vestida, pôde entrar na Unidade dos Cuidados Intensivos, para onde tinham transferido Mistral que, finalmente, tinha sido desligado do pulmão artificial.
- Só pode ficar alguns minutos - disse a enfermeira, ao mesmo tempo que lhe indicava uma cadeira aos pés da cama.
Maria sentou-se e ficou imóvel a perscrutar todos os pormenores daquele rosto sofredor, marcado por umas olheiras profundas e por uns lábios exangues. Parecia estar a dormir.
- Comporta-te como uma pessoa responsável - disse-lhe devagar, como se ele pudesse ouvi-la -, não nos deixes. As crianças estão sempre a falar-me de ti e estão à tua espera.
Também a tua mãe está connosco. Precisamos todos de ti. Gostaria de contar-te alguma coisa engraçada para te fazer sorrir, mas não consigo. - Os olhos encheram-se de lágrimas.
Pouco antes, Maria tinha falado com um médico que fizera os possíveis por tranquilizá-la. Tinha-lhe dito que o coma podia estender-se durante dias, mas que a atividade cerebral
de Mistral estava íntegra.
- Sabes qual é a coisa que mais desejo neste momento? - continuou Maria. - Gostava de me enfiar nessa cama e partilhar contigo o teu sofrimento. Mas só posso ficar aqui sentada
a olhar para ti. Dentro de uns momentos, vão mandar-me embora e vou ter de te deixar. - Levantou-se, lentamente, para fazer uma carícia ligeira na mão de Mistral. Sentou-se
novamente e, fitando aquele rosto imóvel, recordou o primeiro encontro de ambos.
Maria tinha 18 anos, e a sua maior ambição, nessa altura, era aprender a profissão de cabeleireira no estabelecimento de Wanda, em Cesenatico, o mais frequentado de toda a
Romagna.
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Ela ia de bicicleta, de Cannucceto, e à entrada da via Roma um prego furou-lhe um pneu. Maria ficou desesperada, porque aquele acidente ia atrasá-la. Mistral, parado em frente
à oficina de Primo Bri-ganti, tinha seguido a cena com aquele seu ar indolente e descarado.
- Precisas de ajuda? - perguntou, sem se mexer um milímetro.
- Estou disposta a tudo para pôr esta caranguejola a funcionar -respondeu prontamente Maria.
- Mesmo ao sacrifício supremo? - brincou ele.
- Se me compuseres já o pneu, faço tudo o que quiseres - propôs ela.
Em poucos minutos, Mistral desmontou o pneu, reparou a câmara de ar, lubrificou as correntes e ajustou os pedais.
- Pronto. Está como nova - disse, satisfeito.
- Quanto te devo? - perguntou, ansiosa por recuperar o tempo perdido.
- Sabes perfeitamente - respondeu, com um ar malicioso.
- Não pensaste que eu estava a falar a sério, pois não? - rebateu Maria.
- Para mim, uma palavra equivale a um contrato - declarou solenemente.
- É melhor dizeres-me quanto te devo - rematou Maria.
- Não te preocupes, quando chegar o momento eu apareço para cobrar - concluiu Mistral, a sorrir, e ajudou-a a montar na bicicleta.
Maria arrancou, e um arrepio subtil fez-lhe palpitar o coração. Agora, fitando o rosto imóvel de Mistral, Maria murmurou:
- Apaixonei-me por ti naquele momento e nunca mais deixei de te amar.
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LA ROMAGNA
1972
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Silvano Vaccari conduzia o Lancia coupé com o entusiasmo de um jovem, apesar de andar já pelos 50 anos. Não aparentava a idade que tinha, apesar da calvície e do excesso de
peso.
Lúcio Battisti, na rádio, cantava que o seu amor era inabalável e desafiava o tempo e o vento.
Sentada ao seu lado, Rosilde Fabbri estava em êxtase. A luz do entardecer pulverizava a ouro e púrpura o horizonte.
Rosilde era uma jovem de seios imponentes, que poucos anos antes tinha estado muito perto de se tornar Miss Emilia-Romagna.
- Que poema - disse, com um ar sonhador, acompanhando a letra da canção.
Silvano levantou-lhe a saia e enfiou-lhe a mão nas cuecas. Ela sorriu e não tentou sequer uma débil defesa. Era tão querido, o Silvano, que não tinha coragem para lhe negar
aquela pequena liberdade. Mas consultou o relógio que trazia no pulso, um pequeno e precioso Jaeger Lecoultre de platina e brilhantes. Um presente de Silvano.
- Achas que chegamos a tempo? - perguntou.
O trânsito de sábado era bastante intenso e ele fazia os possíveis por manter a velocidade média que tinha planeado.
- Prometi-te que estavas em casa por volta das sete e não te vais atrasar nem um minuto. Não vamos fazer sofrer o teu marido - esclareceu.
- Até porque ele ia fazer-me sofrer a mim - observou Rosilde, sentindo ainda na face os cinco dedos escaldantes do seu Matteo que,
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uns dias antes, por causa de uma simples suspeita, estivera quase a mandá-la para o hospital.
- É a sua maneira de gostar de mim - tinha justificado. Também ela amava o marido, Matteo Spada, médico respeitado
do Serviço de Cardiologia do Hospital de Cesena, mas não sabia fugir às tentações. Era uma mãe adorável e uma mulher afetuosa, que fazia todos os possíveis por manter a família
unida.
Enquanto Battisti colocava uma angustiante interrogação sobre o amor profano, Silvano, com intenções inequívocas, virava num caminho poeirento, logo a seguir à ponte, na estrada
que levava a Cesenatico.
- Não é comovente? - perguntou ela.
- E de que maneira - replicou, avançando a mão sob as cuecas de Rosilde que, comovida com a canção, se preparava para se oferecer ao seu generoso amigo. O carro parou e Silvano
multiplicou as manobras para concretizar a sua tentativa de sedução.
- Vamos chegar tarde - queixou-se ela, cada vez com menos resistência, ao mesmo tempo que ia facilitando as tentativas de Silvano.
- Vai ser uma coisa rapidíssima, vais ver - garantiu ele docemente.
- Tens uma maneira tão delicada de pedir, que eu nunca tenho coragem para te dizer que não - suspirou ela.
Silvano manteve a palavra. Ao fim de pouco tempo, rodou a chave na ignição e o motor ligou mas, precisamente quando Silvano se preparava para entrar na estrada, para Cesenatico,
o motor começou a tossir como um velho com catarro. O carro deu uns solavancos e parou.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Rosilde, alarmada.
- Parece que acabou a gasolina - replicou ele, a abanar a cabeça.
- Mas se nós acabámos de encher o depósito há meia hora - protestou ela.
- Isso sei eu muito bem - rebateu ele. - Mas é o que indica o ponteiro - explicou, sem tirar os olhos do tablier. Tentou pôr o carro novamente em marcha, mas sem nenhum resultado.
- A minha mãe está à minha espera em casa dela com o meu filho. Queres-me dizer como é que lá chego? - perguntou Rosilde, cada vez mais preocupada.
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Ele nem sequer lhe respondeu. Saiu do carro, bateu furiosamente com a porta, abriu o capo e começou a mexer no motor. Pouco depois voltou a fechar o capo, ruidosamente, e
foi até à berma da estrada para pedir ajuda.
Rosilde foi atrás dele. O seu belo rosto cor de pêssego impregnado de sol tinha empalidecido.
- Então - perguntou-lhe -, o que é que vamos fazer? - A sua voz quente e pastosa tinha um tom estridente.
Silvano nem sequer a ouviu. Como podia o seu potente automóvel abandoná-lo assim, sem mais nem menos?
- Queres responder-me? Eu tenho de voltar para casa. Tenho o meu marido à espera. Já te esqueceste? - disse, agressiva.
O rosto do homem iluminou-se perante uma súbita revelação.
- Deve ser avaria na bomba de combustível - exclamou.
- E agora que já sabemos, o que é que isso muda? - replicou Rosilde, furiosa. - A culpa é tua. Quiseste armar-te em esperto porque íamos chegar a tempo de qualquer maneira
- acrescentou, dominada por uma grande agitação. - Agora é tarde e o que é que eu faço?
Rosilde chorava convulsivamente, como uma criança. Finalmente, Silvano viu aproximar-se um carro e esbracejou para chamar a atenção. O carro parou.
- Precisa de ajuda? - perguntou o condutor.
- Preciso de um mecânico - respondeu Silvano. - Há algum por aqui perto?
O homem, um sujeito robusto à volta dos 70 anos, respondeu:
- Sim, há um mecânico. À entrada de Cesenatico. Mas duvido que perceba grande coisa de um carrão como este - concluiu, a abanar a cabeça.
- Pode-se sempre tentar - interveio prontamente Rosilde.
- Se quiserem, posso rebocá-los até lá - ofereceu-se o homem, que conhecia bem o mecânico e os seus limites, mas estava divertido com a ideia de que ele o visse chegar com
aquele espanto de mulher ao lado dele.
Quando chegaram à oficina, o mecânico estava a fechar a porta.
- Estas pessoas precisam de ajuda - disse, apresentando-se à entrada.
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- E eu não estou em condições de a dar - replicou o mecânico, que estava a limpar as mãos num trapo de cor indefinível.
Naquela noite começava o torneio de petanca no Bar Sport da via Roma e ele era um dos participantes de maior destaque. Não tinha obviamente intenções de faltar àquele encontro
por causa de um desconhecido com um carro de matrícula de Modena. A filha tinha casado com um rapaz de Modena e o casamento tinha-se revelado um desastre, de tal maneira que
tinha voltado a viver com os pais em Cesenatico. Desde então, ele, Primo Briganti, tinha um ódio cego à gente de Modena.
- Não pode tentar? - interveio Rosilde, com o melhor dos sorrisos.
Primo Briganti observou-a da cabeça aos pés e concluiu que por ela teria feito qualquer sacrifício, enquanto para o seu acompanhante apenas estaria disponível no horário de
trabalho.
- Deixe aqui o carro e na segunda-feira vamos ver o que posso fazer - concluiu o mecânico.
- Trata-se da bomba de combustível - afirmou Silvano. - Se me arranjar uma peça de substituição, eu trato do resto - concluiu, revelando uma competência inesperada.
- O senhor quer que eu acredite que é capaz de desmontar a bomba velha e substituí-la por uma nova? - replicou o mecânico, incrédulo.
- Exatamente - garantiu Silvano.
- Eu não tenho peças de substituição - disse Briganti, arrumando o assunto - e, ainda que tivesse, duvido que fosse capaz de a substituir - disse num tom convicto. - De qualquer
maneira, a venda de peças está fechada até segunda-feira.
Estava contente por tudo conspirar contra aquele cliente inoportuno que, para além de ser um modenense presunçoso, afirmava que era capaz de intervir num motor tão complexo.
Mas quem é que ele pensava que era?
- Por favor, faça alguma coisa - suplicou Rosilde, que estava à beira de um ataque de histeria.
- Estou desolado, minha senhora - respondeu o mecânico. - Aquilo que eu posso fazer já lhes disse. Se viessem de Fiat 600,
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talvez... - concluiu. Montou numa velha bicicleta e gritou para o interior da oficina: - Mistral, tu fechas a oficina. Eu vou-me embora. Naquele momento, apareceu à porta
um rapaz alto e magro. Vestia um fato-macaco azul e tinha o rosto e as mãos sujas de óleo. Olhou primeiro para o Lancia, depois para o casal desesperado.
- Tem a certeza de que é a bomba? - perguntou. Silvano assentiu e acrescentou, com um tom desagradável:
- Não quero perder mais tempo.
Considerava que aquele aspirante a mecânico seria de pouca utilidade até num posto de lavagem automática.
Mistral ficou imperturbável perante a arrogância do cliente.
- Quer abrir o capo? - disse, com uma voz calma, sem atribuir sequer a mínima importância às palavras e ao comportamento de Silvano, que obedeceu ao convite.
Mistral debruçou-se sobre o motor, mexeu naquele emaranhado de fios e de tubos e murmurou:
- O eixo funciona. O defeito está na membrana, que perdeu elasticidade e depois rompeu - diagnosticou, voltando-se para Silvano. - Tudo o resto está em ordem - concluiu.
- Isso também eu já tinha percebido - afirmou secamente o homem, e acrescentou: - Tenho de arranjar um carro.
- Não quer regressar a casa com o seu? - perguntou Mistral. Silvano olhou para o rapaz com um ar interrogativo, sem responder.
- Eu acho que se pode inventar uma membrana - continuou Mistral. - Ouvi que o senhor era capaz de montar o bloco inteiro. Não é uma coisa simples, se uma pessoa não tem familiaridade
com os motores - acrescentou.
- Digamos que os conheço melhor do que você imagina - rebateu Silvano.
- Então dê-me uma mão - propôs Mistral. - Venha comigo -acrescentou, convidando-o a entrar na oficina. Acendeu as luzes e começou a remexer numa caixa que continha de tudo,
até que encontrou uma velha câmara de ar. Pegou nela e pousou-a na mesa de trabalho.
- Vamos cortar daqui a membrana, o que acha? - propôs Mistral.
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Silvano estava indeciso entre fazer-lhe a vontade ou deixá-lo com aquela conversa fiada.
- A sério que é capaz de nos ajudar a irmos embora? - exultou Rosilde.
- Na minha opinião, é possível.
- Então vamos tentar - decidiu Silvano.
Mistral pegou na tesoura e cortou uma rodela da câmara de ar.
- Será que vai funcionar? - perguntou Rosilde, cheia de esperança.
- É a primeira vez que experimento. Mas acho que vou conseguir.
- Mas como é que se lembrou de uma coisa destas? - perguntou Silvano.
- Eu passo o tempo todo às voltas com os motores e com as revistas que falam de motores. Por um automóvel como este, até era capaz de me deixar esganar. Sei tudo sobre os
automóveis desportivos e de corrida - disse o rapaz, orgulhoso.
- Então também deves ter ouvido falar de Silvano Vaccari - disse o homem.
- É um excelente preparador de automóveis de rali - respondeu Mistral.
- É ele o Silvano Vaccari - disse Rosilde, cheia de orgulho, indicando o companheiro.
O belo rosto de Mistral iluminou-se num largo sorriso.
- Então eu vou fazer um milagre. Fique sossegado, Sr. Vaccari, porque daqui a pouco vai-se embora no seu carro.
- Vais ser premiado - disse Silvano. - Como te chamas?
- O meu nome é Mistral Vernati.
- Mistral? - exclamou Rosilde, espantada, já fascinada com aquele sujeito extraordinário.
- Como o vento que sopra na Provença - esclareceu Mistral.
- Deixa-o trabalhar - disse Silvano, enquanto o jovem limpava e afiava os bordos, com lixa, do pequeno disco de borracha que tinha cortado cuidadosamente. Depois, com a ajuda
de Silvano, que participava já entusiasmado naquela fantástica aventura, inseriu a peça de substituição inventada no lugar da danificada.
- Já está - disse Mistral. - Agora tente ligar o motor.
Rosilde, que durante todo o tempo da operação tinha ficado de
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lado a dirigir em silêncio fervorosas orações à Virgem, jurando que nunca mais ia trair o marido se a Virgem a tirasse daquele aperto, aproximou-se do carro no momento em
que se consumou o milagre. A gasolina voltou a afluir à bomba e o motor, finalmente, pôs-se em marcha.
Silvano olhou para o jovem com admiração e sorriu-lhe.
- Não vai aguentar eternamente, mas uma centena de quilómetros, ou até mais alguns, deve fazer - disse Mistral.
Rosilde abraçou-o com um entusiasmo autêntico antes de entrar no carro. Silvano tirou do bolso interior do casaco um cartão de visita.
- Mistral Vernati - disse -, esta oficina fedorenta não é digna de ti. Se quiseres vir para Modena, tens um trabalho à tua espera.
O rapaz pegou no cartão e olhou para ele como se tivesse nas mãos uma pepita de ouro.
- Quando? - perguntou.
- Segunda-feira está bem para ti? - propôs Silvano.
- Segunda-feira é depois de amanhã - esclareceu Mistral.
- Queres ir mais cedo? - insistiu Silvano, enquanto tirava duas notas da carteira. - Para as despesas da viagem - disse, ao mesmo tempo que lhas entregava. - Fico à tua espera
- despediu-se, com um sorriso amigável.
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A mulher idosa e a rapariga estavam sentadas à sombra densa de uma grande passiflora, nas traseiras de uma antiga casa rural. O andar térreo, onde em tempos ficavam os estábulos
e o depósito das ferramentas para trabalhar os campos, albergava agora um restaurante bem frequentado. No andar superior ficava a habitação da família. Para lá da passiflora
abria-se um pátio, de pedra, protegido por uma pérgula de vinha canadiana, sob a qual estavam colocadas, numa ordem perfeita, as mesas cobertas com uma tela branca e verde,
e as cadeiras de palhinha. À volta, estendiam-se os campos de milho, alto e ondulante na brisa da manhã, a alourar ao sol daquele início de setembro. O verão ainda estava
no ar, mas já se intuía a aproximação dos temporais que iam abrir caminho ao outono.
A cadeira de plástico continha com dificuldade o corpo robusto da mulher idosa. A rapariga estava sentada numa mesa de fórmica verde e baloiçava, com um ar indolente, as pernas
compridas e magras.
- Ainda vai demorar muito esta tortura? - perguntou a mulher idosa, que mal aguentava o invólucro de plástico que lhe prendia a cabeça e o sopro escaldante do secador sobre
a cabeleira cor de prata, coberta de rolos.
- Tem paciência, avó. Depois, finalmente, os teus cabelos vão ficar mais alinhados e vais ficar com um aspeto mais moderno - declarou a rapariga.
- Tanta treta - exclamou a avó -, e tantas palavras inúteis - concluiu, desapontada. Tinha pena que a sua neta predileta não se exprimisse na bela linguagem da Romagna, tão
rica de cambiantes.
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Da cozinha, juntamente com uma alegre música popular transmitida pela rádio, chegavam os aromas da comida e a tagarelice cerrada da família Guidi, que se atarefava à volta
dos fogões para preparar o menu dominical, adaptado a uma clientela de palato simples e estômago robusto.
- Maria, já te disse, estou a perder a paciência. Tira-me estes rolos e deixa-me ir para a cozinha. É quase meio-dia e ainda não preparei a zuppa inglese - disse a avó, com
um ar ameaçador.
- Por favor, avó! Faço-te uma mise grátis e ainda te queixas. Sabes quanto ias ter de pagar se fosses arranjar o cabelo à Wanda? - desafiou Maria.
- Sabes quanto te ia custar viver se nós não trabalhássemos também para ti, que és uma preguiçosa? - insistiu a avó com um tom que fingia ser sério mas que era apenas de brincadeira.
A avó Gianna era uma mulher tranquila e satisfeita com a vida.
Tinha sido ela, muitos anos antes, a tomar a decisão de abrir o restaurante. Era uma ótima cozinheira e, pouco a pouco, conseguiu criar uma clientela e ganhar muito dinheiro.
Tinha orgulho no seu restaurante, onde se podia comer estufado de novilho, ragu com salsicha, cordeiro, tortellini, pão de ló com creme de licor de alquermes, tagliatelle,
arroz de lulas, sopa de peixe e piadina. Era ela a rezdora3. O filho, Adelmo, e a nora, Rossana, obedeciam às suas ordens. Os dois netos rapazes, Antares e Enea, sem muito
entusiasmo, trabalhavam na cozinha e serviam às mesas unicamente porque aquela pequena empresa familiar se tornava cada dia mais lucrativa. Maria, porém, não gostava do restaurante
e nem mesmo a avó tinha conseguido fazê-la mudar de ideias.
- Olha que, se não estás sossegada, a mise não sai bem - avisou Maria -, e então vais perder os teus admiradores - acrescentou, com um ar malicioso.
A avó fascinava a clientela com as suas irresistíveis conversas e sabia ser tão despachada nos comentários como no serviço. Tinha crescido em Cesenatico, sendo a última de
onze filhos. O pai era pescador. Gostava daquele litoral no inverno e, no verão, suportava
3 Vocábulo do dialeto da Romagna que significa "a pessoa que rege a casa". (AT. da T.)
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o ruidoso luna park que permitia à sua, e a muitas famílias, ganhar para viver. Lembrava-se ainda da princesa Odescalchi, quando habitava a Villa Adriática, que foi depois
transformada num hotel, e as personalidades da época em férias naquelas praias estivas, desde Er-mete Novelli à cantora lírica Elena Bianchi Cappellini. Tinha vivido a sua
infância numa Romagna que já não existia. Depois tinha-se casado com Ettore Guidi, um camponês de Cannucceto. Mudou-se para o interior, para aquela velha casa de lavoura que,
com o seu espírito de iniciativa e com o seu trabalho, tinha transformado num restaurante de sucesso.
- Arma-te em engraçadinha. Um dia vais perceber como és burra - contestou Gianna. A avó não conseguia de todo aceitar aquela escolha da neta que, como aprendiza no estabelecimento
da cabeleireira Wanda, desempenhava as tarefas mais humildes, desde lavar a cabeça às clientes até varrer o chão.
- O problema é que me sinto abafada neste sítio, avó - confessou Maria. - Eu sei que trabalhar com a Wanda não é o máximo, mas prefiro o perfume do champô e das loções ao
do refogado de cebola.
Aquela pequena aldeia era habitada sobretudo por famílias camponesas. Havia, em Cannucceto, uma igreja, uma escola primária e duas tabernas que tinham sido pomposamente batizadas
como Bar Astoria e Gran Caffè. A casa de lavoura dos Guidi ficava no limite da aldeia, onde começavam as extensas planícies.
- Mais vale ser servo em casa própria do que mandar em casa alheia - sentenciou a avó, com a sabedoria dos velhos, na qual Maria não se reconhecia. - E, tanto quanto sei,
na Wanda nem sequer mandas - acrescentou.
- Mas estou a aprender uma profissão - rebateu a neta. - Vejo muitas senhoras ricas que vêm de férias para as nossas praias, de Bolonha, de Pescara, até de Turim e de Milão
- justificou-se.
- As pessoas são iguais em todo o lado - esclareceu a avó que, decidida a não suportar mais a tortura do secador, se libertou daquela infernal touca de plástico. - As palavras
são palavras, aqui como em Roma. Blá blá. Conversa fiada. Em todo o lado há bom e mau. Há o ladrão e o homem honesto. Uma coisa é certa: quanto maior é o sítio, maiores são
os pecados.
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Maria empertigou-se.
- Parece-te pecado que uma rapariga procure realizar-se? - rebateu, enquanto retirava com gestos precisos e seguros os rolos dos cabelos da avó. A sua voz revelava um tom
forçado, semelhante ao de uma atriz diletante que não consegue entrar no seu papel.
- Rea... quê? - indagou a avó.
- Realizar-se, avó. Sabes o que significa? Tu realizaste-te ao lado do fogão. Eu sou jovem, e quero realizar-me do modo que entender -afirmou, decidida.
- Que necessidade tens tu de fazer uma coisa tão ridícula e até difícil de pronunciar, se tens aqui tudo aquilo de que precisas? - A avó passou uma mão pela testa. - Quando
eu era criança, a miséria era tal que até o ar se lamentava. A carne comia-se na Páscoa e no Natal. Eu era burra que nem uma porta. A professora punha-me ao lado dela, na
carteira mais próxima da secretária, e em vez de me ensinar a ler e a fazer contas dava-me meias e combinações para eu remendar. Dizia-me: "Tu, Giannina, tens umas mãos de
ouro. Para que te serve aprender a escrever? O importante, para uma mulher, é saber coser e cozinhar. Desta forma vais manter a tua família unida". Comigo foi assim. Com o
trabalho da terra primeiro, e a cozinha depois, matei a fome à minha família. Criei o meu filho e os filhos do meu filho. E a ti também.
Maria exprimiu o seu desagrado a abanar a cabeça. Da cozinha chegaram umas vozes agastadas e ela ficou atenta.
- A mãe está a discutir com o Antares - comentou.
Antares era o irmão mais velho de Maria. Tinha 26 anos, mas Rossana exigia dele obediência absoluta, como se fosse uma criança. O problema do rapaz era o seu espírito inovador,
que o levava a propor, para além dos pratos tradicionais, certas iguarias exóticas consideradas pela família como um insulto à boa mesa.
- O que conta é a substância, ignorante - dizia Rossana, com a sua voz de contralto.
- O que conta é a qualidade e o estilo - retorquia o filho, que sonhava com um pequeno restaurante elegante no Porto Canale de Cesenatico. Esta ambição enlouquecia a mãe,
que profetizava um desastre económico se saíssem do círculo mágico daquela casa e da aldeia.
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Estas discussões diárias divertiam a avó, mas irritavam Maria, que reforçava cada vez mais a sua convicção de procurar em outro lugar a sua vida autónoma.
- São insuportáveis - comentou Maria, enquanto escovava com movimentos vigorosos a cabeleira prateada da avó.
- Uma discussão saudável nunca fez mal a ninguém - comentou Gianna.
O ouvido agudo de Maria captou um motor de automóvel, ao longe. Aquele rumor que se aproximava deixou-a perturbada.
- Vou num instante ali à estrada - disse, corando visivelmente, enquanto deixava cair a escova e o pente no colo da avó.
- E o que será que tem a estrada? - retorquiu a avó, irónica.
- Não me denuncies, avó. Eu já volto - implorou Maria. A avó entrou no jogo. Também ela tinha sido jovem.
- Não fiques horas por aí - avisou-a, e os seus olhos enternece-ram-se com uma longínqua recordação.
Maria deu a volta à casa, atravessou o terreiro de terra batida, que em breve ia ficar repleto dos automóveis dos clientes dominicais, e calou com um gesto Lila e Moschino,
dois enormes cães de raça indefinível que queriam saltar e brincar.
A estrada, ladeada por choupos muito altos, estava deserta, mas muito em breve desembocaria da curva o carro de Mistral. Passou os dedos pelos cabelos flamejantes, longos
e fartos, para os arranjar, humedeceu os lábios e beliscou as faces para lhes intensificar a cor. Depois alisou o vestido curto de algodão azul-celeste salpicado de mimosas.
O ruído do motor estava a aproximar-se, e quando surgiu na curva o carro que Mistral reconstruíra, mais vermelho do que os seus cabelos, sentiu o coração saltar-lhe no peito.
O "bólide escarlate", como ela definia o automóvel de Mistral, fazia vibrar as suas cordas mais íntimas. Ouviu reduzir as mudanças e o pretensioso carro parou em frente dela.
O rosto de um bonito rapaz apareceu fora da janela.
- Olá, Maria - cumprimentou-a com uma voz vibrante. - O que estás a fazer?
- Se calhar estou à tua espera. O que é que tu dizes? - respondeu ela, permanecendo imóvel junto ao carro.
- Eu digo que gosto muito de ti - respondeu ele, observando-a
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com um ar malicioso. Mistral tinha 18 anos, tal como Maria, e era um rapaz lindíssimo. Ela estava apaixonada por ele, por aquele corpo flexível e forte e pelo rosto de traços
decididos. Olhou para Mistral enquanto ele saía do carro. Trazia uns jeans bastante desbotados e uma t-shirt preta: a sua indumentária habitual. Um sorriso luminoso suavizava-lhe
a expressão austera do rosto. Os olhos claros e brilhantes criavam um singular contraste com a pele morena e os cabelos negros e ondulados.
- Porque olhas para mim assim? - perguntou, pensando que alguma coisa na sua roupa atraía particularmente a atenção de Maria. - Estou sujo? - insistiu.
- Completamente limpo nunca estás - disse Maria, e foi ao encontro dele. - Vives dentro dos motores e debaixo dos automóveis -brincou.
- Isso incomoda-te? - perguntou Mistral, sombrio. Tinha-se encostado à porta do carro com as mãos enterradas nos bolsos. Maria sabia que ele gostava daquele pequeno veículo
ruidoso mais do que da sua própria vida.
- Admiro-te - declarou ela com simplicidade.
- E eu gosto muito de ti - murmurou Mistral, ao mesmo tempo que lhe pousava as mãos nos ombros. Maria experimentou uma emoção subtil e penetrante. Ele tentou segurá-la com
as suas mãos fortes. Ela, instintivamente sedutora, deu um passo atrás.
- Porque é que vieste? - perguntou num tom sedutor.
- Porque tu estavas à minha espera.
Riram os dois, daquela maneira sincera de que os jovens são capazes.
- Gosto da música do teu motor - confessou Maria, convencida de que o ia impressionar.
- É um motor que canta - disse Mistral, entusiasmado. - Passei a noite a afiná-lo.
Tinham-se conhecido na primavera, quando um prego tinha furado o pneu da bicicleta de Maria. Desde então ela ia trabalhar com mais entusiasmo, porque o caminho que fazia para
Cesenatico passava em frente à oficina onde o Mistral trabalhava. Trocavam uma saudação, um abraço furtivo, e depois ela seguia, em direção ao Salon
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de Beauté de Wanda, que se gabava de uma prestigiosa aprendizagem em Paris, no salão Carita, no Faubourg St. Honoré. Quando a mãe de Maria se enfurecia pela teimosia com que
a filha insistia em querer trabalhar com Wanda, o marido, Adelmo, procurava desdramatizar.
- Quando lhe passar o entusiasmo, vamos fazer dela uma boa cozinheira, vais ver - repetia. Mas Maria detestava a cozinha, e quando a obrigavam a ir para o fogão era atacada
por violentos ataques de náusea.
- Tens de aprender a mexer lentamente o creme e sempre na mesma direção, porque se não for assim formam-se agrumos - advertia serenamente a avó.
- Grumos, avó. Chamam-se grumos - corrigia Antares, que era um maníaco da cozinha e da gramática.
- Grumos ou agrumos... o importante é que o creme fique bom -rematava a avó.
A cozinha da avó era conhecida em toda a região, apesar de ela nunca ter provado nem a comida, nem os vinhos. Conseguia perceber se um prato estava salgado ou temperado no
ponto certo, ou se um vinho era bom, cheirando-os apenas. No nariz tinha um laboratório químico que garantia um diagnóstico perfeito. Aos perfumes da comida, Maria preferia
de longe os do Salon de Beauté e as suas frivolidades.
- Queres vir dar uma volta comigo? - convidou Mistral.
- Não posso. A minha família não ia achar bem - lamentou-se.
- Eles acham que eu não presto para nada, não é? - disse ele, com um ar triste.
- Não vêem com bons olhos que eu ande contigo. Só isso - respondeu.
Não referiu as reprimendas com que os pais a massacravam de cada vez que Mistral aparecia por ali. Se Maria tivesse como pretendente o filho dos donos de um hotel, não teriam
nada a objetar. Mas o filho da Especialista, uma pobre mulher que às vezes tinha dificuldade em servir o almoço e o jantar, não era decididamente próprio para Maria. Não tinha
qualquer importância, para eles, que Mistral fosse um herói dos domingos nas corridas de motocross ou de karts, que tivesse já vencido competições e troféus, que de vez em
quando
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os jornais locais tivessem escrito sobre ele como sendo uma promessa no mundo desportivo. A verdade era que Mistral apresentava, como único título, o de ser empregado de um
mecânico. Maria, a única rapariga da família, apesar de ser um pouco extravagante, merecia algo mais. Isso era o que pensavam os Guidi a propósito de Mistral. Ele sabia disso
e lamentava.
- Apetece-me beijar-te - disse-lhe, tentando abraçá-la.
- Vá lá, para com isso - replicou ela, ao mesmo tempo que o afastava e se punha fora do seu alcance. Também Maria desejava ser beijada, mas propôs: - Encontramo-nos na terça-feira.
- Na terça-feira não vou cá estar - respondeu ele, e acrescentou: - Vou-me embora, Maria. Arranjei trabalho em Modena. - Os olhos brilhavam-lhe de entusiasmo.
- Que trabalho? - perguntou Maria, num tom agressivo.
- O meu. Só que em grande. Vou trabalhar com o Silvano Vaccari. É um preparador de automóveis de rali. Oferece-me um bom ordenado. Mas, sobretudo, vou ter a possibilidade
de fazer a única coisa de que gosto: tratar de motores.
De repente, Maria sentiu que Mistral estava longe dela, como se já tivesse partido.
- Que história é essa? - balbuciou, com dificuldade em conter lágrimas de dor e de raiva.
- Aconteceu tudo ontem à noite. Vim dizer-te.
- Quando voltas? - perguntou, tentando controlar-se.
- Não sei. Vou ter muito que fazer e que aprender, imagino. Mas, de vez em quando, venho cá visitar a minha mãe e ver-te a ti também - explicou.
Maria tinha uma ideia muito vaga do que era um carro de rali. Mas tinha uma ideia bem precisa do fascínio e da elegância das mulheres da cidade. Uma voz, dentro dela, disse-lhe
que tinha perdido para sempre aquele bonito rapaz de quem ela gostava tanto.
- Não me dizes nada? - perguntou Mistral, que se aproximou dela e lhe segurou o rosto entre as mãos.
Maria, de repente, ficou fria, distante, indiferente. Acontecia-lhe a mesma coisa quando era pequena e alguma amiga vinha ter com ela para brincar. No momento em que ela chegava
ficava feliz, mas
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quando a amiga decidia ir-se embora ignorava-a, quase como se quisesse apagá-la do seu mundo afetivo. Afastou as mãos de Mistral do seu rosto com um gesto brusco e firme.
Olhou para os choupos com as folhas iridescentes na luz do meio-dia, fitou a estrada poeirenta e o campo como se estivesse prestes a descobrir qualquer coisa de insólito.
- Vai para o diabo - disse friamente.
Mistral sentiu-se magoado com aquela reação inesperada. Queria dizer-lhe que não a ia esquecer, que não tencionava dizer-lhe adeus. Maria, sem lhe dar tempo de replicar, dirigiu-se
a casa com um passo decidido. Ouviu-o gritar:
- Voltaremos a ver-nos, Maria.
Ela atravessou o terreiro, contornou a casa e foi ter com a avó. Lila e Moschino abanavam a cauda em volta dela.
- Foi-se embora, não foi? - perguntou a avó, ao observar o rosto triste de Maria. - Se o destino quiser, ele volta - acrescentou.
Maria não disse uma única palavra e dirigiu-se ao quarto. Fechou a porta e desatou a chorar.
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O domingo à noite, para Adèle Plouvin, tinha o perfume da felicidade. Estava ao fogão a cozinhar um novilho en croúte, que era o prato dominical da sua Provença. O filho estava
sentado à mesa, junto à janela, folheando livros e revistas que tratavam de motores. A televisão, em cima do aparador, transmitia os sons de um espetáculo que nenhum dos dois
seguia.
- Está pronto - disse Adèle, alegremente. - Podes pôr a mesa. Mistral pôs de lado as revistas e cobriu a mesa com uma toalha
branca onde se destacavam, estampados, os desenhos típicos da Romagna: o galo, o cacho de uvas, a caneca e a caveja4. Dispôs com uma ordem meticulosa pratos, talheres e copos.
Adèle completou aquela mesa com uma terrina fumegante de carne, tostas com queijo e uma apetecível salada mista.
- Aonde vais esta noite? - perguntou ao filho.
Ao domingo, habitualmente, Mistral saía com os amigos e permitia-se uma ida ao cinema ou a uma discoteca. As outras noites passava-as no barracão, atrás da casa, a mexer no
motor do seu carro.
- Fico aqui - disse, enquanto se servia de uma fatia de carne saborosa e tenra.
- Não te sentes bem? - perguntou a mãe, assustada.
- Gostava de falar contigo - disse ele, sem levantar os olhos do prato.
4 Símbolo da Romagna. (N. da T.)
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- De que é que queres falar? - perguntou Adèle, desconfiada. Era a primeira vez que o filho lhe fazia uma proposta daquele tipo.
- Do mas onde nasceste, por exemplo - respondeu ele. O mas era a propriedade, na Provença, onde os Plouvin trabalhavam a métayage: terra e vinhas pertenciam ao proprietário,
a quem era entregue um terço do que produziam. Eles tinham a seu cargo a poda e os cuidados da vinha.
- É uma história que já te contei tantas vezes, desde que eras muito pequenino.
- Mas acrescentas sempre alguma coisa de novo - rebateu ele -, e fica cada vez mais bonita.
- Talvez a nostalgia da minha terra, que tive de esconder no fundo do coração durante tantos anos e que só agora começa a atenuar-se, me faça recordar pormenores novos. Como
a cor das paredes do nosso mas, um ocre pálido com algumas pinceladas de azul: como o céu, o sol e o vento da Provença. Eram paredes tão grossas como os braços estendidos
de um homem, construídas para resistir ao mistral que irrompe aos uivos ao longo do vale do Ródano e derruba tudo o que encontra pela frente. Fazem-me sorrir os furacões da
Florida, aos quais os americanos atribuem nomes de mulher. Não conhecem a potência do nosso sacré vent, que sopra em rajadas de 200 quilómetros por hora, com o termómetro
a descer abaixo de zero e que até gela a alma. Eu acho que é por isso que nós, provençais, somos tão obstinados e zelosos dos nossos sentimentos. Tornámo-nos duros como pedras
para contrariar a força do vento. Tu achas que os Plouvin não têm saudades desta pobre Adèle, que não vêem há quase vinte anos? Eu acho que pensam em mim, mas não querem dar
a perceber. Não podem. Uma simples cedência e seriam derrubados pela emoção. Eu compreendo isso porque também sou assim. - Adèle tinha parado de comer e observava um ponto
indefinido na parede que tinha à sua frente, como se naquela parede corresse o seu passado.
- Maman - disse Mistral, ao mesmo tempo que lhe pousava a mão no braço -, um dia vamos voltar juntos a casa dos Plouvin. Eu nunca os conheci, mas tenho o mesmo sangue deles.
- De onde te nasce agora esse desejo repentino? Para ti já é muito assinares os cartões de boas festas que trocamos pelo Natal - objetou
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Adèle, que começava a ficar seriamente preocupada com aquele tom melancólico do filho.
- Do facto de eu estar prestes a ir-me embora e precisar de saber que, para onde quer que eu vá, há um fio que me mantém ligado às minhas origens - respondeu.
- O que é que significa estares prestes a ir-te embora? - perguntou a mãe, que não queria entender.
- Conheci um preparador de carros de rali. É de Modena. Chama-se Silvano Viccari. Ofereceu-me emprego na oficina dele. É uma oportunidade muito importante para mim - respondeu
Mistral, ao mesmo tempo que olhava para a mãe com uma infinita ternura. Não queria que ela encarasse a sua decisão como uma afronta ou como um abandono.
- Em ti, os motores são uma doença - respondeu Adèle, alterada -, mexer nas máquinas e correr como um possesso: são estas as únicas coisas que te interessam. Já eras assim
em pequeno. Passei dias e noites à espera que chegasses a casa quando ias dar uma volta naquelas motorizadas danadas. Se demoravas, já te imaginava ferido na berma de uma
estrada. Morri inúmeras vezes, enquanto tu andavas como o vento naquelas tuas malditas geringonças. Depois conheceste aquela ruiva de Cannucceto. A filha dos Guidi. Esperei
que o amor te ajudasse a ganhar juízo. Mas, afinal, agora dás-me esta rica notícia.
Era um novo, duríssimo golpe para Adèle. Depois da morte do marido, tinha enfrentado corajosamente a solidão e as dificuldades por amor a Mistral, mais do que por ela própria.
Ele fora a razão da sua vida. Quando Talemico morreu, ela tinha apenas 23 anos e as amigas diziam-lhe: "Adèle, porque não voltas a casar?"
Ela tinha resistido na sua difícil condição de viúva, mesmo quando o sangue jovem a fazia desejar ardentemente a presença de um homem na sua cama. Adèle enterrava esses impulsos.
Tinha Mistral, uma criança voluntariosa e adorável, que lhe preenchia a existência. Alguma vez toleraria, aquele menino, um pai que não fosse o seu? E se o novo marido se
revelasse uma pessoa violenta? Ela nunca permitiria que alguém levantasse a mão para o filho. E depois, durante alguns anos após a morte de Talemico, tinha vivido na companhia
de uma esperança tola: que um dia ele regressasse. O barco tinha naufragado,
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mas o corpo nunca chegou a aparecer. E ela, durante muitas noites, tinha tido sempre o mesmo sonho: Talemico regressava, enfiava-se na sua cama e abraçava-a. Gostaria que
aquelas noites nunca acabassem, mas havia sempre um desesperado despertar em solidão.
Porém, tinha o pequeno Mistral a dormir ao seu lado. Bastava-lhe olhar para ele para ter a força de começar um novo e difícil dia. O menino crescia. Adèle contava-lhe coisas
do pai e às vezes chorava. Um dia, para consolar a mãe, Mistral pôs-lhe os seus pequenos braços em volta do pescoço e disse-lhe: "Quando eu for grande, maman, vou trabalhar
muito. Vou ganhar muito dinheiro para fazer de ti uma grande senhora como o pai teria gostado que tu fosses". Ela beijava, enternecida, as mãozinhas do filho, já cheias de
cortes e arranhões e sujas de óleo, porque ele não largava as bicicletas e as motorizadas. Desmontava-as para as arranjar e voltava a montá-las para lhes melhorar o funcionamento.
Mistral sentia-se muito mais atraído por uma motorizada do que por um assunto da escola.
- É uma pena, Adèle - dizia-lhe a professora Sandra Madori. - O Mistral é inteligente, mas não estuda.
Ela voltava para casa e repreendia-o. Palavras de fogo brotavam na sua pitoresca linguagem, uma mistura de francês com dialeto da Romagna. Mas quando as pequenas mãos sujas
de Mistral se estendiam para ela a pedir um abraço, a raiva esmorecia. Adèle esquecia as más notas e apertava-o contra si. E não havia mais nada no mundo que valesse a milésima
parte daquelas mãozinhas negras que a procuravam.
Depois da escolaridade obrigatória, não houve mais maneira de o convencer a prosseguir os estudos. Por isso, Primo Briganti aceitou-o para trabalhar na sua oficina. Mistral
apresentava-se cedo ao trabalho, com o entusiasmo de um rapaz que entra numa sala de jogos. Ao fim da tarde, o patrão tinha de o obrigar a ir para casa, porque ele arranjava
sempre qualquer coisa de muito urgente a fazer para lá ficar. Com o dinheiro que ganhava, comprava motorizadas na sucata, trabalhava nelas até as pôr a funcionar e depois
vendia-as. As suas únicas leituras eram as revistas que falavam de motores e de corridas. As imagens de Nuvolari, Varzi, Fangio, Merzario, Ascari e Steward cobriam as paredes
do seu quarto.
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Nunca seria um deles, porque para correr em automóveis de Fórmula é preciso ser-se rico, mas certamente havia de se tornar mecânico-chefe de uma equipa importante.
Na primavera, assim que completou os 18 anos, tirou a carta de condução e comprou imediatamente um carro praticamente a desfazer-se. Fez dele um pequeno bólide vermelho que
os amigos invejavam. Adèle pensava em todas estas coisas, enquanto, sentada à mesa com o filho, ainda esperava ouvi-lo dizer que estava a brincar, que nunca se iria embora.
- Tens a Maria - insistiu. - Tens um trabalho de que gostas. Não te chega?
- A Maria é muito boa rapariga - disse ele.
- Então, o que é que lhe falta? - insistiu Adèle, incomodada.
- A Maria é especial. Nunca mais vai haver outra como ela. Quanto ao trabalho, pelo contrário, posso melhorar. Eu acho que se o meu pai ainda fosse vivo, não ia desaprovar
- objetou Mistral, olhando para a mãe com um ar severo.
Ela baixou a cabeça, atingida em cheio. Era a primeira vez que Mistral trazia à baila o nome do pai para a levar a refletir.
- Mistral - disse, enquanto abanava a cabeça, resignada. - Sacré vent. Fui eu que te dei este nome. És o vento que, na sua fúria, até arranca as orelhas aos burros, que vira
tudo ao contrário e volta a virar: homens, coisas, sentimentos, e nada nem ninguém o pode parar.
Mistral partiu no dia seguinte, de madrugada. A mãe dormia ainda e ele deixou um bilhete na mesa da cozinha. Dizia: Maman, esta noite ouvi-te chorar. A pedra tornou-se branda,
e eu, também por isso, gosto muito de ti.
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O letreiro era bastante pretensioso, mas tinha um certo estilo. Os nomes de Wanda e Marco, em grandes letras, destacavam-se sobre uns caracteres mais pequenos, em cursivo,
de cor amarela: Salon de Beauté. Não era apenas o habitual toque estrangeiro, tão em moda no clima turístico do litoral da Romagna. O de Wanda e Marco era, efetivamente, o
salão de cabeleireiro para senhoras mais conceituado de toda a Romagna, sem ofensa para Rimini e Forli, obrigadas a aguentar a primazia do pequeno, pitoresco centro balnear.
A rainha do corte e da mise era ela: Wanda. Marco era um ornamento dispendioso e inútil, uma espécie de bibelô que fazia o seu papel e tinha seguramente um peso também no
plano prático. As clientes, de facto, divertiam-se com aquela espécie de gigolô local, incansável cortejador de mulheres de todas as idades e tipos. Marco era considerado
a atração do estabelecimento, e interpretava com uma composta indolência o papel de playboy. Era a sua contribuição para o bom funcionamento do salão. Tinha menos vinte anos
do que a mulher e era um homem bonito. Mas tudo isto não o impedia de ser o companheiro devoto de uma mulher decididamente feia.
Wanda era a sua galinha dos ovos de ouro, que lhe permitia aumentar, dia após dia, a soma confiada à sábia gestão da Cassa Rurale ed Artigiana di Sala di Cesenatico. Era ali
que Marco conservava as reservas áureas que, quando atingissem uma certa consistência, lhe permitiriam o grande salto para a metrópole. Bolonha ou, melhor ainda, Milão. Qualquer
coisa, desde que não fosse Cesenatico! Que continuava, no entanto, a ser uma solução interessante quando
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comparada com Alfero, o mísero burgo nos Apeninos de onde provinha e onde, de vez em quando, regressava para exibir aos parentes e aos amigos, que nunca lhe tinham dado importância,
a distância astronómica que agora o separava deles. No Salon de Beauté, Marco passava grande parte do seu tempo na montra, típico exemplar de macho sem grandes talentos, com
a exceção do de grande galanteador.
Wanda tinha 55 anos, mas aparentava mais. Não tinha impulsos emotivos nem curiosidades eróticas consideráveis. Por isso deixava, com uma espécie de satisfação maternal, que
o marido se divertisse, segura de que nenhuma mulher, por muito jovem e bela que fosse, conseguiria alguma vez roubar-lho. Marco dependia dela em tudo, e para tudo. Por isso
demonstrava todo o seu fascínio viril, sobretudo com as clientes mais velhas e abastadas, que adulava com exagerados cumprimentos. Exibia-se em perfeitos beija-mãos, dirigia-lhes
olhares assassinos e apresentava, ao fim, com uma elegante desenvoltura, contas elevadíssimas que as senhoras pagavam sem pestanejar, não esquecendo nunca uma gorjeta generosa
para o pessoal.
De manhã, Wanda abria o salão enquanto o marido se concedia duas horas de sono suplementares. Ela controlava a pontualidade das empregadas, dispunha jarras de flores frescas
um pouco por todo o lado e assegurava-se de que todas as coisas estavam nos seus lugares, tendo cuidado para que todo o salão, até o canto mais escondido, cintilasse de tão
limpo e brilhante que estava. Quem se ocupava das limpezas era sobretudo Maria, que era a primeira a chegar, apesar de ter de percorrer de bicicleta a distância desde Cannucceto
até ali. Era a mais jovem das empregadas e trabalhava como aprendiza. Assim que entrava no estabelecimento, mudava-se rapidamente e vestia a bata cor-de-rosa que, na zona
dos seios, tinha bordados os nomes de Wanda e Marco. Depois, munia-se de panos e álcool e limpava os espelhos e os balcões carregados de frasquinhos coloridos. Esfregava as
rampas de lavagem, tirava o pó às poltronas de pele sintética cor de marfim e, finalmente, entrava nas traseiras do estabelecimento, onde lavava cuidadosamente pentes, escovas
e rolos.
Naquela quente terça-feira de setembro, Wanda notou algo de estranho na expressão de Maria. Não revelava o ar amuado das crianças
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desiludidas, mas a raiva e a tristeza de uma pessoa traída. Sempre a tinha visto contente, até àquele dia. Wanda sabia que o próprio facto de se afastar de Cannucceto, onde
se sentia prisioneira, tornava Maria feliz, apesar de as suas funções naquele momento não serem exaltantes. Wanda sentia por ela uma simpatia particular, não só porque Maria
era a mais bonita das suas empregadas, mas porque sabia transformar em brincadeira as atenções de Marco que, com os olhos, lhe tirava a roupa.
- Um destes dias vou levar-te a casa ao fim da tarde - propunha sistematicamente o belo Marco, com um sorriso de cumplicidade.
- Olhe que se não para de se armar em parvo, mais cedo ou mais tarde a Wanda pede o divórcio - ameaçava-o regularmente, com o seu sorriso de menina suscetível.
- O matrimónio é sagrado e não há divórcio que aguente - replicava ele, tremendo perante a ideia de ficar sem a sua Wanda que, sempre atenta a tudo, apreciava a resposta da
jovem.
Naquela manhã, porém, Maria não estava com vontade para brincadeiras, nem se preocupava em esconder o seu mau humor. Olhou para Wanda, que estava a pintar os olhos, e experimentou
uma sensação de náusea perante os trejeitos de palhaço que ela fazia para facilitar aquela obra de restauro com lápis, batons e pincéis.
Wanda sentiu sobre ela a raiva da jovem e fez uma tentativa para perceber o que se passava.
- Por acaso andaste à bulha com o gato? - perguntou, ao mesmo tempo que continuava a pintar-se ao espelho.
- Talvez - respondeu Maria, com um tom brusco, enquanto se aplicava a esfregar um apoio de cabeça que já estava a brilhar.
- Males de amor? - insinuou Wanda, sondando o terreno.
- Hoje de manhã acordei com os pés de fora. Só isso. - Mais depressa se deixaria esfolar do que abrir-se com aquela mulher, que transformava tudo em mexericos de salão. A
sua delicada história com Mistral ainda mal desabrochara e tinha já acabado num rápido adeus. Chorara as suas primeiras lágrimas de amor, e um vazio doloroso pesava-lhe no
coração.
Naquela manhã tinha passado, como sempre, em frente à oficina de Primo Briganti e, por um instante, deixara-se embalar na ilusão
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de que Mistral não tinha partido. Desceu da bicicleta, aproximou-se da entrada e viu o patrão às voltas com um carro. Também ele a viu e, esticando a cabeça de debaixo do
carro, olhou para ela.
- Foi-se embora, aquele malandro - disse, adivinhando o motivo da visita de Maria.
- Eu esperava que ele tivesse mudado de ideias. Não queria acreditar - replicou ela, corando.
- Pois eu, pelo contrário, acreditei logo - disse Primo, ao mesmo tempo que se levantava e lhe dedicava um sorriso paternal. - Aquele patife vale o peso que tem em ouro. Era
natural que, mais cedo ou mais tarde, arranjasse alguma coisa melhor. Tenho pena por ti.
- Oh, não é assim tão importante - rebateu Maria, que sentia um nó na garganta.
- Ora bem. É isso mesmo que deves dizer. Rei morto, rei posto. Que caramba! - encorajou-a, apesar de ver tristeza nos olhos dela.
Naquele momento, entrou um representante de produtos cosméticos, todo ele sorrisos, piadas e cumprimentos, a interromper a série de perguntas que Wanda se preparava para fazer
a Maria. Depois chegaram as outras raparigas e começou uma tranquila manhã de trabalho. A atividade frenética do período estival tinha-se reduzido à rotina de sempre, deixando
espaço para as conversas e para o aprofundamento dos mexericos com a clientela habitual.
Chegou primeiro a senhora Serra, uma cliente de muito respeito. Era de Bolonha e tinha casado com o Dr. Cláudio Serra que, em Cesenatico, era uma espécie de instituição. Tinha-se
transferido para ali logo depois de se ter licenciado em Pisa e, como era um bonito homem e as pacientes gostavam dele, foi erradamente considerado um playboy. Para as doentes
com imaginação fértil, o Dr. Serra tinha placebos infalíveis. A sua presença tranquilizadora e benéfica ajudava a cura porque, para além de prescrever os medicamentos, sabia
escutar e falar com elas. Quando, chegado ao limiar dos 40 anos, o médico decidiu casar, muitas das suas doentes acolheram a notícia como uma afronta. A jovem senhora Serra,
licenciada em farmácia, tinha dois problemas: o de ser bonita e o de ser de Bolonha. O Dr. Serra receou perder todas as suas pacientes. Mas não se verificou nenhum abandono,
porque a farmacêutica de Bolonha, com toda a sua inata
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bonomia, conquistou as simpatias de toda a gente. Em poucos anos tornou-se uma referência, admirada e estimada, para as pacientes do marido.
Wanda recebeu-a como a uma rainha. Conduziu-a ao vestiário, onde tomou conta do tailleur e da camisa, e estendeu-lhe uma bata cor-de-rosa.
Acompanhou-a até à zona de lavagem e ajudou-a a sentar-se. Entretanto, tinham chegado outras clientes, e uma conversa cerrada elevou-se no ar perfumado de champôs, cremes
e loções.
Maria, à margem daquela borbulhante alegria, pensava no seu amor perdido e recordava, dolorosamente, a praia deserta, os guarda-sóis fechados e melancólicos, as ondas baixas
que se afastavam da praia e a mão de Mistral a apertar a sua. Sentiu um nó a apertar-lhe a garganta. Entrou num quarto de arrumos, nas traseiras do estabelecimento, e aninhou-se
ali, como num colo materno, sentindo-se protegida das frivolidades do mundo. Marco descobriu-a naquele canto isolado e aproximou-se dela.
- O que é que estás a fazer? - perguntou-lhe. Ela olhou para ele com raiva.
- Não me estou a sentir bem - respondeu, enquanto tentava fugir. Marco barrou-lhe a passagem. No salão, as mulheres falavam em
voz alta.
- Fica sossegada um momento - disse ele baixinho. - Parece que tens o diabo no corpo.
- E tenho. Quero sair. - Olhou para ele com um ar ameaçador.
- E se eu não te deixasse ir? - desafiou-a, com um sorriso malicioso.
Maria não se preocupou sequer em replicar e lançou-se decidida em direção à porta. Ele impediu-a e apertou-a entre os braços, com raiva, cobrindo-a de beijos rápidos, ao mesmo
tempo que com uma mão lhe agarrava as cuecas e as arrancava.
Atordoada com aquelas carícias odiosas e com as palavras ordinárias que o homem lhe sussurrava aos ouvidos, Maria sentia a cabeça girar-lhe vertiginosamente. Estava ofendida
e humilhada com aquela agressão ignóbil e tinha a consciência da sua vulnerabilidade. Aquele homem queria aproveitar-se dela porque não a respeitava,
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ela não tinha nenhuma importância. De súbito, tomou consciência da sua situação e sentiu-se só e indefesa. Não podia contar com ninguém para obrigar Marco a desistir dos seus
propósitos. Era por isso que Mistral a tinha abandonado: porque ela não contava para nada, não existia.
Já pronto para atacá-la, Maria resignou-se a sofrer o insulto. Ele tentava possuí-la naquele espaço acanhado e ela continuava inerte perante o seu ataque violento e ofensivo.
Ninguém a ia socorrer, era inútil gritar ou pedir ajuda. Uma dolorosa vertigem impedia-a de reagir. Aquilo que fez, então, foi um gesto não pensado, unicamente instintivo.
Agarrou nos testículos do homem e apertou-os com força. Um berro desumano apagou o rumor dos mexericos e o irresistível playboy dobrou-se sobre si mesmo como um odre furado.
Wanda acorreu imediatamente e, atrás dela, apareceu Elena Serra. Depararam-se com um espetáculo repugnante.
Maria refugiou-se nos braços de Elena Serra.
- É um animal - balbuciou, a soluçar, aterrorizada.
- É um animal - concordou a mulher do Dr. Serra, observando o rosto arroxeado de Marco. Sobre o prestigiado Salon de Beauté tinha descido um silêncio irreal. Empregadas e
clientes perceberam imediatamente o que tinha acontecido. Wanda atirou um casaco ao marido, que se tinha levantado, e indicou-lhe a saída das traseiras, para onde ele se dirigiu
com um ar desesperado.
- Que vergonha! - proclamou Elena Serra, num tom pesado como uma condenação.
As outras clientes e as empregadas continuavam caladas. Teriam, em seguida, todo o tempo para comentar o sucedido. Wanda, pelo contrário, como não sabia distinguir entre moralidade
e moralismo, e achava que o homem é caçador e a mulher, se não for uma puta, não se deixa apanhar, pôs-se diante de Maria com o ar de um juiz inflexível:
- Tira a minha bata. Volta a vestir os teus trapos e vai-te embora. Estás despedida.
Maria, paralisada com mais um ultraje, não teve forças para reagir. Soltou-se do abraço da senhora Serra e obedeceu. Wanda regressou ao salão e olhou para toda a gente com
os olhos flamejantes de cólera.
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- Acabou o espetáculo - disse. - Aquela galdéria deve ter pintado a manta para o provocar. E ele, aquele glorioso imbecil, deixou-se cair como um patinho. - Estava furiosa
com o marido, mas sentia o dever de o salvar e de salvar a sua face.
A única pessoa que, naquele momento, falou para exprimir a sua própria indignação foi Elena Serra que, depois de um apressado e sumário penteado, repetiu:
- Que vergonha! - agora dirigindo-se a Wanda, antes de fechar atrás de si a porta do estabelecimento. O Salon de Beauté de Wanda e Marco tinha perdido uma das suas clientes
mais afeiçoadas e prestigiadas. A partir daquele momento, os mexericos iriam dominar os temas de conversa e, em breve, o escândalo, com os habituais desenvolvimentos acrescidos,
ia tornar-se do domínio público.
Maria, a pedalar e a chorar, chegou a Cannucceto e foi recebida pelos latidos brincalhões de Lila e Moschino, que lhe exprimiam, como sempre, o seu afeto. Só sossegaram quando
a viram arrumar a bicicleta, dar a volta à casa e desaparecer no campo de milho.
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No denso campo de milho abria-se uma clareira onde a erva alta, já amarelecida, formava uma espécie de tapete perfumado sobre o qual Maria se deixou cair, desesperada, sentindo-se
o alvo de todas as maldades humanas. Imaginava a sua família alinhada com Wanda e com Marco, de um lado, e do outro, ela, sozinha e indefesa, que tinha estragado tudo. O despedimento
imediato era a prova tangível do seu erro. E a violência sofrida? Também isso era culpa sua. Porque só ela, de entre todas as empregadas de Wanda, tinha feito perder a cabeça
a Marco. Na generalidade, os agressores das mulheres têm sempre uma atenuante. Ela sabia que não tinha feito nada para merecer aquele ultraje e, no entanto, os seus parentes,
quando soubessem, iam sentenciar que ela se tinha posto a jeito para merecer aquela injúria.
Por isso, sentia-se culpada, e uma sombra escura pesava-lhe na alma. Tinha-se envolvido numa teia de aranha densa e tenebrosa e trazia, impresso na sua alma, o sentimento
do pecado. Na tentativa de sair daquela aldeia, onde se sentia apertada, tinha-se coberto de lama. Seria então assim tão difícil viver? Quase tanto como chegar ao seu quarto
através de um único percurso que passava pela sala de jantar, a abarrotar de clientes. Não lhe apetecia enfrentar os seus olhares, nem os dos pais, dos irmãos, da avó. Parecia-lhe
que toda a gente conseguia ver a culpa estampada no seu rosto.
Pensou em Mistral, que perseguia os seus sonhos, e apercebeu-se da inutilidade da sua própria vida. Os seus 18 anos esmoreciam naquele ambiente hostil onde estava atolada,
enquanto a sua vontade
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era voar para longe, tal como ele tinha feito. "Porque te foste embora, Mistral?", sussurrou, fitando uma espiga, enquanto as lágrimas lhe sulcavam as faces.
Arrancou uma madeixa que despontava da espiga e colocou-a entre o nariz e os lábios, como se fossem uns longos bigodes arruivados. Era uma brincadeira que fazia quando era
pequena, uma coisa que suscitava a hilaridade das amigas. Mesmo agora, conseguiu sorrir entre as lágrimas. Foi então que sentiu um rumor proveniente do campo de milho. Ficou
imóvel, à espera, e pouco depois viu emergir um homem e uma mulher.
- Moretta! - exclamou Maria, ao reconhecer a rapariga de crespa cabeleira negra, pele lisa da cor do couro e formas harmoniosas. Tinha uns olhos pequenos e redondos, um olhar
vivo e uns lábios cheios e entreabertos num sorriso tão astuto que parecia ingénuo.
Moretta vestia uma saia curta, plissada, e uma camisa justa com um decote profundo. Calçava uns botins de carneira amarela e ostentava uns vistosos brincos de ouro. Era a
filha de Benito, o professor primário de Cannucceto, que tinha casado com uma eritreia. Moretta, a quem na aldeia toda a gente chamava Carinha Negra, em memória de uma velha
canção em voga durante a campanha da Etiópia, apesar da diferença de idades, tinha sido a sua amiga do coração.
Quando Maria andava no quinto ano, Moretta já tinha terminado o liceu e frequentava, em Rimini, um curso profissional para esteticistas. Às vezes encontravam-se na aldeia
e Moretta, com ar de quem sabe muito, dizia:
- Sabias que em Rimini está sempre a chover?
Para Maria, Rimini era um lugar mágico, o país das maravilhas, e tudo aquilo que tinha a ver com aquela cidade revestia-se de exotismo e encanto.
- Mas que conversa. Também em Cesenatico chove - tentava rebater.
- Só que em Rimini chove sempre - insistia Moretta, divertida. Os rapazes da aldeia andavam sempre à volta de Moretta, que
nem se dignava olhar para eles. A filha do professor Benito contava a Maria que um dia ia viver para Bolonha ou até, quem sabe, talvez para Roma ou Milão. Porque só numa daquelas
cidades encontraria
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a grande oportunidade da sua vida. Maria escutava sem objetar e sonhava também com horizontes mais amplos. Um dia Moretta partiu realmente. Dizia-se que trabalhava num instituto
de beleza em Bolonha, onde tinha conhecido pessoas muito importantes, e que tinha enriquecido tanto que mandava ao pai dinheiro para restaurar a pequena casa onde morava.
Maria esperava poder tornar a vê-la, um dia. Mas nunca imaginou que a ia encontrar precisamente naquele dia, no campo de milho.
Moretta estava ainda mais bonita, e aquele seu ar exótico dava-lhe uma aparência de modelo. Olharam uma para a outra, sorriram e abraçaram-se imediatamente. Depois Maria olhou
para o homem que estava com ela. Tinha à volta de 40 anos, umas vistosas suíças salpicadas de prata, cabelos compridos e os traços marcados de um sul-americano. Vestia um
fato cor de ameixa, com uma camisa aberta sobre o peito peludo e bronzeado, onde brilhava uma maciça corrente de ouro com um vistoso medalhão. Tinha um ar ambíguo e nada tranquilizador.
Pousou uma mão no ombro de Moretta e olhou para Maria com ostensivo interesse.
- É mesmo bonita, a tua amiga - disse, sem afastar o olhar de Maria.
- Este é o Rocco - esclareceu Moretta -, o meu namorado - esclareceu, escorregando nas palavras com o tom vagamente confuso de quem diz uma meia verdade. Maria sentiu-se desconfortável
sob o olhar insistente daquele homem. - Ela é a filha mais nova dos Guidi - disse ainda a amiga, completando as apresentações, e acrescentou: -Eu e o Rocco estávamos à espera
que vagasse uma mesa. O teu restaurante está cheio.
- E estavam à espera aqui, no campo de milho? - objetou Maria, pensando que a pérgula de passiflora teria sido muito mais acolhedora.
- Sabes como é - disse Rocco, num tom de gracejo -, não soubemos resistir ao apelo da floresta. - E tu, com essa carinha cheia de lágrimas - indagou, revelando um acentuado
sotaque siciliano -, perdeste o teu namorado no bosque?
Maria não respondeu.
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- Não te metas - interveio Moretta -, vai mas é ver se a nossa mesa já está livre. - Não queria perder aquela oportunidade para ter uma troca de confidências com a amiga.
Rocco obedeceu e afastou-se em direção ao restaurante. Moretta deu afetuosamente o braço à amiga. Tinha 22 anos, mais quatro do que Maria.
- Chegámos há pouco - explicou -, diretamente de Bolonha.
- A sério?
- Imagina que ainda nem fomos ver o meu pai. Se o meu pai soubesse que estou aqui e que ainda não dei sinais de vida, ia ficar zangadíssimo. - O professor Benito era um homem
indulgente, ingénuo, e tinha uma verdadeira adoração por aquela única filha.
- O facto é que se eu chegar a casa ao meio-dia ele vai ficar numa agitação para preparar o almoço. Prefiro lá ir depois de ter almoçado. O que é que tu achas?
Maria anuiu, sem demasiada vontade de falar nem de fazer perguntas. Tinha percebido perfeitamente aquilo que a amiga e o namorado estavam a fazer no campo de milho. Mas a
verdade é que não lhe dizia respeito. Ela nunca se tinha escondido com Mistral, para aquele género de comportamento, nem com outros rapazes antes dele. Naquele momento, lamentou
esse facto, pensando que, se tivesse tornado mais íntima a sua relação com Mistral, talvez ele não se tivesse ido embora.
- Estive com o teu irmão Antares. Disse-me que trabalhas na Wanda, em Cesenatico. E afinal encontro-te aqui, no campo, com uma cara de enterro. Já nem te reconheço, Maria
- insistiu a amiga.
- Os anos mudam as pessoas - disse tristemente.
- Desde quando é que falas assim? - observou Moretta, que continuava a sorrir.
Maria olhou para a amiga e recordou o pátio da velha escola, rodeado de choupos, onde se encontravam à hora do recreio. Moretta distinguia-se imediatamente, de entre as raparigas
mais velhas, pela cor escura da sua pele.
As crianças dedicavam-se a fazer juízos sobre a "negra", tendo o cuidado de falar em voz baixa para não serem ouvidas pelos professores, sobretudo pelo pai dela, que lhes
dava aulas. Proferiam
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comentários maliciosos sobre a disponibilidade de Moretta para entrar em certas brincadeiras, como a dos médicos. Ela própria, apesar de ser mais nova, tinha sido envolvida
um dia, mas tinha fugido com o coração num tumulto, perseguida pelas gargalhadas dos companheiros. Recordava a apreciação de um repetente mais velho, que continuava a ser
o mais burro da classe mas que era o mais esperto em matéria de indecências. Naquela altura, Maria não percebeu bem o significado das suas palavras: disse que Moretta era
uma rapariga que entrava no jogo "porque as negras têm o sangue quente". Maria só o entendeu muitos anos depois. Sorriu àquela recordação distante.
- Já passou a melancolia? - perguntou a amiga.
- Mudo de humor como muda o vento - desculpou-se ela. O ar quente do meio-dia transportava o perfume do verão que estava prestes a acabar. - Fizeste amor com ele, há momentos?
- perguntou Maria, enchendo-se de coragem.
- Amor... - disse a amiga. - Mais do que outra coisa, foi uma rapidinha em contacto com a natureza. - Riu-se, divertida.
- E como é? - indagou, corando violentamente.
- Como é o quê?
- Fazer amor - perguntou Maria, num sussurro.
- Vá lá, minha esperta! Tens 18 anos e vens fazer-me estas perguntas? - disse Moretta, num tom de brincadeira.
Maria não respondeu.
- Queres dizer que tu... ainda não... - balbuciou a amiga, titubeante.
- Sou virgem - confessou Maria, num sopro.
- A sério? - Moretta estava incrédula.
- Nunca fiz - confirmou Maria.
- Fazer amor - começou a explicar Moretta - é aplacar um desejo, encher um vazio. Pode ser maravilhoso ou aborrecido, depende. Mas, certamente, nunca é como tinhas imaginado.
Tens de fazer e de inventar de cada vez. É uma maneira de conheceres melhor a pessoa com quem estás. Ou de perceberes se estás completamente enganada. Depende, percebes?
- Eu quero saber do amor verdadeiro. Esse como é? - insistiu Maria.
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- Sinceridade por sinceridade, eu digo-te que o amor com A maiúsculo não existe. Uma vez encontras um e dizes: este é o grande amor da minha vida. Depois apercebes-te de que
não é verdade, que o amor se esvazia como um balão furado - constatou com ar grave.
- Não acredito. Não pode ser assim - teimou Maria.
- Diz-me uma coisa, por acaso não estarás apaixonada? Maria, repentinamente, mudou de assunto.
- Hoje de manhã a Wanda despediu-me.
- O que foi que tu fizeste?
- O marido dela atacou-me e eu defendi-me - confessou.
- Estás a falar do Marco? É um porco, eu sei - disse Moretta. Depois desatou a rir. - Fantástico! Quem me dera ter lá estado para ver.
- Não foi nada divertido.
- Mas o que é que tu andas a fazer por estes sítios? Cannucceto, Cesenatico... estás a desperdiçar a tua vida. É para a cidade que deves ir. És muito bonita, e eu tenho a
certeza de que te espera alguma coisa melhor longe daqui.
Tinham passado alguns anos, Moretta tinha mudado e a ela já não lhe parecia tão simpática como quando era criança. Não lhe agradava aquela maneira de falar sem preconceitos,
e menos ainda aquele namorado de expressão vulgar. Não concordava sequer com aquilo que ela lhe tinha dito a propósito do amor: um balão que se esvazia. Moretta era agora
uma desconhecida, para ela? Em que se tinha tornado?
- Aqui diz-se que trabalhas num instituto de beleza, em Bolonha. É verdade? - disparou, direta.
Moretta fez uma expressão engraçada.
- Na aldeia dizem-se tantas coisas. No início sim, trabalhei num instituto de beleza. Depois criei uma atividade por minha conta. Agora tenho uma bela casa na via d'Azeglio.
E em minha casa há sempre lugar para uma amiga. Se precisares, liga-me. O meu nome vem na lista.
Tinham saído do campo e viram Rocco a esbracejar fazendo sinais vistosos na direção de Moretta. As amigas trocaram um adeus apressado e Maria voltou a esconder-se entre o
milho. Ficou ali até saírem todos os clientes do restaurante.
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Passou algumas horas a relembrar os anos da sua juventude, um monte de reminiscências que Moretta lhe tinha trazido à memória. Recordou as vozes no terreiro nas noites de
verão, a tepidez do primeiro sol primaveril, os seus sonhos de olhos abertos, a emoção e a ternura dos seus encontros com Mistral. Gostaria de poder adormecer ao lado dele
no encanto daquela tarde ainda quente. Mas agora sabia que não o voltaria a ver e que também ela ia abandonar aquela terra para ir muito longe.
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Maria entrou na cozinha. Os irmãos estavam a despir os grandes aventais brancos. Esperava-os um intervalo de algumas horas durante a tarde, que permitiria a Antares ir até
ao café jogar uma partida de bilhar, enquanto Enea ia ter com a namorada. O pai organizava a cozinha. A mãe, encostada a um balcão, verificava as entradas na caixa, que a
seguir anotaria escrupulosamente num registo. A avó fazia um rápido inventário das provisões que faltavam na despensa. Também lá estava Elia, o ajudante de cozinha, a esfregar
tachos e caçarolas. A chegada de Maria, às três horas da tarde, foi uma surpresa.
- Porque é que não estás na Wanda? - perguntou a mãe.
A rapariga sentia sobre ela os olhares de todos eles e não sabia por que parte começar a contar o sucedido. Escolheu a via mais breve: a da verdade.
- Eu não volto à Wanda - respondeu, sufocando a náusea provocada pelo odor da comida que impregnava aquele espaço.
- Graças a Deus - exclamou Rossana, ao mesmo tempo que pousava a caneta e olhava para a filha, exultante.
A avó foi sentar-se num banco sólido, que podia aguentar com o seu peso, juntou as mãos no regaço e inclinou a cabeça, com um ar pensativo.
- Porque é que não voltas lá? - perguntou Adelmo. Ela olhou para o pai com um ar desesperado.
- Fui despedida - disse -, assim, de repente. Nem sequer me deu os oito dias - concluiu, à espera da pergunta seguinte.
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Adelmo foi até junto dela, pousou-lhe as mãos nos ombros e olhou-a nos olhos. Era um homem grande e forte, de índole terna e bondosa, mas podia transformar-se numa fera se
alguém lhe fazia algum mal.
- O que foi que aconteceu? - perguntou, com um ar sereno. Maria corou, o coração batia-lhe com força.
- O Marco, o marido da Wanda, atacou-me como um animal -explicou, tentando conter as lágrimas.
O rosto largo e cordial de Adelmo tornou-se rígido.
- E depois? - perguntou com calma, enquanto todos os outros escutavam, calados.
- Depois, nada - continuou Maria -, ele gritou porque eu me defendi - rematou, omitindo os pormenores. - Nessa altura a Wanda interveio. A mulher do Dr. Serra meteu-se no
meio e disse ao Marco que tivesse vergonha. Mas a Wanda defendeu-o e afirmou que, se eu não me tivesse posto a jeito, ele não teria chegado a tanto.
- É verdade? - perguntou Adelmo, gélido. Maria olhou o pai nos olhos.
- Não - respondeu simplesmente.
- Eu sabia - disse o homem, a sorrir, enquanto lhe afagava os cabelos. E acrescentou: - Cabeça Vermelha, louca mas sincera.
Adelmo Guidi não se zangou e, no entanto, ela sabia que aquilo não ia acabar assim, porque o pai nunca tinha deixado nenhuma conta por acertar.
Rossana foi até junto da filha e estendeu-lhe os braços. Abraçou-a com força e sussurrou-lhe:
- Humilharam-te. Não deves sentir-te culpada.
- Não penses mais nisso - disse Adelmo, para a animar. - Faz de conta que tiveste um pesadelo. - Depois voltou-se para os dois filhos: - Não é assim, rapazes?
Os irmãos anuíram, alinhados atrás do pai.
A avó, no seu banco, seguira a conversa sem levantar a cabeça, que agora abanava ligeiramente: tinha havido uma ofensa e tinha de ser vingada.
- Bem, nós vamos sair - anunciou Adelmo, enquanto tirava o avental de trabalho.
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Pela janela, as mulheres e Elia, o jovem ajudante, viram os Guidi entrar no Alfa Romeo Giulia, que se afastou dali a grande velocidade.
Naquela noite o Dr. Serra preparava-se para sair com a mulher para jantar. Tinha marcado uma mesa para dois num pequeno e elegante restaurante de Cesena. O toque insistente
da campainha e o ladrar furioso do cão interromperam os preparativos. Não estava à espera de visitas, e perguntou a si mesmo que motivo podia haver que pudesse justificar
a incomodativa petulância daquela campainha. Ouviu, no andar inferior, uma conversa tensa. Pouco depois a mulher abriu a porta do quarto e disse:
- Precisam de ti no consultório.
O médico desceu e encontrou na sua frente a cara inchada e irreconhecível de Marco Brina. Tinha o nariz tumefacto, os olhos pesadamente marcados por equimoses azuladas e uma
sobrancelha rasgada, a sangrar abundantemente. Wanda, a mulher, amparava-o.
- O que foi que aconteceu? - perguntou o Dr. Serra, enquanto enfiava a bata branca.
- Caiu, senhor doutor. Escorregou nas escadas - esclareceu Wanda.
- Porque é que não o levou às Urgências? - perguntou o Dr. Serra, ao mesmo tempo que, com um gesto de mão, convidava o homem a estender-se na marquesa.
- Sabe como é, senhor doutor, iam fazer demasiadas perguntas -justificou-se Wanda, embaraçada.
- E sobretudo não iam acreditar nessa história das escadas - disse o médico. - Mas podiam fazer-lhe uma radiografia, pelo menos.
A senhora Serra apareceu à porta do consultório.
- Cancelei a mesa. É preciso ajuda? - perguntou, com um tom delicadamente malicioso.
- Agradeço-te. Eu trato disto sozinho. Mas vai demorar algum tempo a arranjar esta cara.
A partir daquele dia, Marco Brina mudou de atitude. Enquanto duraram as nódoas negras e o inchaço, não apareceu no Salon de Beauté, mas mesmo depois disso limitou-se a umas
fugazes aparições. A severa lição que lhe fora dada pelos Guidi tinha surtido o efeito
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desejado. O belo Marco, o galanteador louco, o conquistador alucinante de quem Wanda tinha tanto orgulho, adaptou-se ao papel muito mais tranquilo de marido fiel.
O longo verão da Romagna tinha terminado. Os mexericos esmoreceram, os hotéis ficaram desertos e regressou-se à habitual vida da aldeia. Maria, com o coração dominado pela
dor pela ausência de Mistral, resignou-se a ficar pela cozinha do restaurante, onde aprendeu com a avó os segredos para preparar ótimas iguarias e doces requintados. Não voltou
a Cesenatico. A ideia de passar diante da oficina de Primo Briganti perturbava-a. Nem, orgulhosa como era, se dirigiria nunca à simpática Adèle para pedir notícias.
Mistral, atarefado com o novo trabalho, escreveu-lhe apenas três postais, que Maria não chegou a ver porque a mãe os intercetou e os rasgou antes que a filha os pudesse encontrar.
Em todos se lia a mesma frase: "Continuo a pensar em ti". Em novembro, quando chegaram os frios intensos e os densos nevoeiros, Enea casou e Maria chorou ao pensar que, no
lugar da jovem cunhada e do irmão, em frente ao altar, gostaria de estar ela com Mistral. Não conseguia mesmo tirar da cabeça e do coração aquele rapaz danado, mais os seus
malditos motores.
Chegou o Natal. No restaurante colocaram-se os enfeites e começaram os preparativos para a refeição tradicional. Naquela noite, na grande cozinha da antiga casa de lavoura,
ocorreu um facto que os jornais continuariam a referir com frequência, tragicamente. Uma botija de gás líquido, provavelmente defeituosa, explodiu e a casa foi pelos ares,
provocando uma tremenda catástrofe. Apenas Maria se salvou, porque dormia num quarto no último andar e na parte mais afastada do centro da casa.
Permaneceu vários dias no hospital, e quando teve alta foi ao túmulo dos seus familiares fazer uma oração e pousar uma flor, sem ter sequer forças para chorar.
Disseram-lhe que no dia do funeral, quando ela se encontrava ainda no hospital, em estado de choque, Mistral tinha lá ido. Regressara a Modena nesse mesmo dia, por causa de
um compromisso de trabalho.
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Ela não se lembrava de nada do que tinha acontecido. Sabia apenas que estava sozinha no mundo e que agora apenas podia contar com as suas forças para continuar a viver.
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HOJE
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O ano de 1972, em Cannucceto, não seria recordado pelas históricas viagens do presidente americano Richard Nixon a Pequim e a Moscovo, nem pelos treze milhões de votos obtidos
pela Democracia Cristã nas eleições, mas pela explosão de gás que tinha exterminado a família Guido na noite de Natal. Nunca, na história daquela terra, nem mesmo durante
a guerra, se tinha verificado uma tragédia semelhante. Só Maria saíra milagrosamente incólume daquele inferno, mas aquele acidente havia de marcar para sempre a sua vida.
Tinham passado mais de vinte anos e Maria recordava aquele acontecimento trágico, enquanto velava Mistral, no hospital. Teve um sobressalto quando sentiu uma mão tocar-lhe
nas costas. Levantou a cabeça e reconheceu o Dr. Spada.
- Ah, és tu - exclamou, com um suspiro de alívio.
- Agora tens mesmo de te ir embora - disse o médico, com uma sorridente firmeza, decidido a fazê-la sair. Falava em voz baixa, como se Mistral estivesse a dormir e ele tivesse
receio de o acordar.
- Como é que a minha presença o pode incomodar? - disse, com um débil protesto.
- Fazes mal a ti própria. E depois são as regras do hospital - mentiu Spada, convidando-a novamente a sair do quarto.
Maria obedeceu, resignada, e o médico ajudou-a a levantar-se da cadeira.
Assim que chegaram ao corredor, Maria pousou uma mão no braço do amigo e perguntou-lhe:
- Quando é que ele vai acordar?
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- Escuta, Maria, o Mistral está em coma. Felizmente, todos os elementos de que dispomos permitem-nos acreditar que se trata de um coma reversível, ou seja, bom, para falar
em termos simples. Mas é demasiado cedo para fazer prognósticos.
- Nem sequer uma vaga hipótese? - tentou ela.
- Quero que tu saibas exatamente como estão as coisas - continuou o médico -, e quando ele acordar tu vais aperceber-te imediatamente. Porque ele vai abrir os olhos e começar
a queixar-se.
- Mas se tu não me deixas ficar no quarto com ele - tentou protestar -, nunca vou saber.
- É demasiado cedo, acredita em mim. Pode acordar daqui a dois dias ou daqui a uma semana. Não agora. A não ser que tu acredites em milagres. Percebes isto?
Maria anuiu. Mas não percebia. Comportava-se como quando era criança e os pais pretendiam que ela estivesse de acordo com o ponto de vista deles. Dizia que sim para encerrar
a discussão, mas não mudava de ideias. Descobriu no rosto do médico sinais de um grande cansaço. Quando soube que Matteo, desde o momento do acidente de Monza, não tinha ainda
tido um instante sequer de repouso, sorriu-lhe e acariciou-lhe uma face.
- Vamos para o hotel - disse.
Evitaram a saída principal, a abarrotar de jornalistas e operadores de câmara, e percorreram o caminho de saibro que ladeava o velho muro e conduzia ao pequeno portão que
dava para uma rua cheia de trânsito. Não arranjaram um táxi, e por isso dirigiram-se ao hotel a pé, num passo acelerado.
Maria sentia-se a viver um pesadelo do qual não conseguia acordar.
- Que horas são? - perguntou a Matteo. Já tinha perdido a noção do tempo.
- É a hora de tomar o meu comprimido para a tensão - respondeu ele, ao mesmo tempo que a conduzia em direção a um pequeno bar no corso Porta Romana. Matteo ultrapassara já
os 50 anos e tinha problemas de tensão. Há vinte anos tinha terminado o seu casamento com a bela Rosilde, demasiado jovem, demasiado ativa, demasiado desenfreada para um sujeito
tranquilo como ele. Tinha sido um duro golpe, do qual recuperara com alguma dificuldade.
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No bar misturavam-se os cheiros de pão torrado, de pizza aquecida, de sanduíches. Uma dolorosa sensação de náusea apertou o estômago de Maria.
- A... casa de banho - murmurou, ao mesmo tempo que levava uma mão à boca.
Matteo amparou-a até à casa de banho e esperou em frente à porta fechada, para o caso de ela precisar de ajuda. Ouviu-a vomitar. Também na véspera, no hospital, Maria tinha
tido o mesmo problema, que ele atribuíra ao stress. Agora, foi levado a pensar que podia haver outras causas, eventualmente mais graves. Pensou que devia sujeitá-la, nos dias
seguintes, a uma série de exames. Quando Maria saiu da casa de banho, estava branca como a cal.
- O que foi? - perguntou Matteo, ao mesmo tempo que a ajudava a sentar-se
- Não sei. De qualquer modo, já passou. Estou melhor - garantiu-lhe.
- Mandei fazer uma limonada quente.
- Não gosto nada - afirmou, com uma sensação de repulsa que sentia desde criança, quando a mãe a obrigava a beber a limonada Rogé. - Mas tomo, se achares que pode ajudar.
As imagens coloridas de um televisor, colocado num canto do bar, corriam incansáveis e, a certa altura, o locutor anunciou uma reportagem especial sobre o acidente de Mistral.
Automaticamente, Maria levantou o rosto para o aparelho e Matteo fez o mesmo.
Passavam breves fragmentos sobre a vida do piloto que remontavam a muitos anos atrás. Mistral, na companhia de Chantal, descia de um avião, na Polinésia. Eram ambos recebidos
por jovens bonitas que lhes ofereciam colares de flores. Mistral era jovem, estava bronzeado, sorridente. Chantal estava lindíssima. Havia também imagens mais recentes, rodadas
no parque da villa de Modena. Maria ouviu o locutor dizer: "Aqui vemos o campeão com a atual companheira, Maria Guidi, de quem teve um filho". Depois prosseguiu: "Por decisão
da mulher, que é francesa, Mistral Vernati será visto pelo neurocirurgião Jean Louis Coustadier. Chantal Honfleur declarou que, depois de uma reunião com os médicos deste
hospital, o professor Coustadier poderá decidir transportar o paciente para Paris".
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Maria sentiu-se gelar. Levantou-se de um salto e, voltando-se para Matteo, disse:
- Vamos já para o hospital. Não vou permitir que a Chantal ponha em prática este plano, mesmo estando bem assessorada pelos advogados. Se for preciso, construo uma parede
em frente ao quarto do Mistral, mas não vou permitir que ela o leve.
116
2
Quando regressaram ao hospital, não conseguiram evitar o assalto
dos jornalistas, que os submeteram a uma rajada de perguntas.
- É verdade que Mistral vai ser transportado para Paris?
- Em Itália, não estamos suficientemente preparados?
- Será um pretexto da ex-mulher para sequestrar o homem que não quer perder?
- É verdade que a mãe de Mistral está na cidade?
- Vão opor-se à decisão da mulher?
Maria e Matteo chegaram rapidamente ao elevador e subiram ao segundo andar.
- Ainda bem que aqui estão - disse Florette Roussel, que avançou ao encontro deles. Estava ansiosa e preocupada.
- Viemos a correr assim que ouvimos na televisão aquilo que a Chantal tenciona fazer - explicou Maria, muito pálida.
- O que é que está a acontecer? - perguntou Matteo.
- O chefe da equipa médica quer falar contigo, imediatamente -respondeu Florette.
- Onde é que ele está?
- No gabinete.
- Ficas com a Maria? - perguntou Matteo, preocupado.
- Não. Vou a Paris.
Matteo afastou-se rapidamente, sem pedir mais explicações.
Florette deu o braço a Maria e afastou-se com ela para o vão de uma
janela, no corredor.
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- Ouve bem, Maria - começou, em voz baixa. - Vou a Paris ter
com o professor Coustadier.
- Conhece-lo? - perguntou Maria, espantada.
- Bastante bem - respondeu Florette.
- Mas que sentido faz tudo isto? - reagiu Maria. - Esse professor tem todo o ar de quem tem boas relações com a mulher do Mistral. Talvez já esteja a vir para cá para o levar,
e essa deslocação pode matá-lo.
Florette olhou-a nos olhos:
- Fica tranquila, o Coustadier está em Paris. Ninguém vai levar daqui o Mistral.
- Aquela mulher é diabólica - soluçou Maria. - É capaz das ações mais sórdidas. O objetivo dela é o património do Mistral. Se ele morrer, ela, como mulher legítima, fica com
tudo.
- Por outro lado, o Coustadier, com a sua autoridade, poderia convencer os médicos italianos. Não te esqueças que a Chantal só pode pôr em prática aquele projeto se estiver
apoiada por um especialista que aconselhe a transferência do paciente - comentou Florette, e acrescentou: - Eu tenho de me ir embora, se queremos que esta história acabe bem.
- Queres que vá contigo? - perguntou Maria, num impulso.
- Não - opôs-se Florette. - O teu lugar é aqui. Espera por mim. Regresso esta noite. O mais tardar, amanhã.
Estreitou-a num abraço apressado e afastou-se com um passo ágil e decidido.
Florette Roussel chegou a Linate e entrou na área reservada aos aviões particulares. O comandante do Falcon 50 de Mistral esperava-a. Ela vestia um fato de calças e casaco
de seda grossa de um azul intenso e levava debaixo do braço uma pasta de pele. Um funcionário aproximou-se para a libertar daquele peso, mas Florette afastou-o com um gesto
de cabeça. Não estava com a disposição necessária para se submeter aos rituais corteses reservados aos VIP que frequentavam aquela área do aeroporto.
- Quando podemos partir? - perguntou ao comandante. O jovem oficial inclinou-se ligeiramente.
- Pode ser imediatamente - respondeu.
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Florette entregou-lhe o passaporte no momento em que chegou o comissário de bordo.
- A senhora deseja alguma coisa em particular durante o voo? -perguntou-lhe delicadamente.
- Uma sanduíche de presunto serve perfeitamente - respondeu Florette, enquanto se dirigia ao avião.
- E a Perrier do costume, obviamente - disse com um sorriso o jovem, que caminhava ao lado dela.
Florette subiu com agilidade a pequena escada, entrou no avião e foi sentar-se na cauda. Apertou o cinto de segurança, pousou a pasta em cima da mesa e abriu-a: era um pequeno
e moderno computador. Começou imediatamente a trabalhar, enquanto a tripulação se preparava para a descolagem. Escreveu os comunicados para a imprensa, diversificando-os com
base nas características das agências a que se dirigiam. Enquanto trabalhava freneticamente, pensava em Chantal, na sua perfídia, no plano que tinha arquitetado para se tornar
dona absoluta da fortuna de Mistral. Odiava profundamente aquela mulher, que tinha sido sua amiga, mas que os anos tinham transformado numa criatura ávida e sem escrúpulos.
Desta vez, porém, ia arranjar lenha para se queimar. Para Florette, Mistral e Maria eram como irmãos e havia de se bater com todas as suas forças por eles, mas também por
si própria. De facto, se Mistral morresse, ela perderia aquele seu cargo de prestígio. Defendendo-o a ele, defendia-se a si mesma. Não era certamente a necessidade de dinheiro
que a levava a lutar como um tigre, mas o trabalho com Mistral era uma parte importante da sua vida.
Para além do mais, depois dos 40 anos, um profissional não muda facilmente de patrão. No seu caso particular, ela nunca poria a sua competência ao serviço de novos interesses.
No entanto, estava bastante otimista, porque achava que tinha um ás na manga, uma carta que, jogada no momento oportuno, lhe garantiria a partida.
Terminou o que estava a fazer, fechou o computador e, deixando-se cair contra as costas da poltrona, disse:
- Agora gostava de comer alguma coisa.
O comissário de bordo, que estava sentado ao lado do piloto,
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ouviu-a e levantou-se para preparar cuidadosamente uma mesa confortável. Cobriu a mesa com uma toalha de linho imaculado, dispôs pratos, copos e talheres e tirou de um grande
saco térmico as sanduíches de presunto envolvidas em papel. Ofereceu a Florette um guardanapo imaculado e ela começou a comer, revendo mentalmente o itinerário que ia seguir
em Paris.
Antes de mais iria à Publiassociated, cujos escritórios ocupavam um piso inteiro de um edifício Oitocentista nos Champs Elysées. Tinha marcado um encontro com o chefe de redação,
a quem estava ligada por uma sólida amizade, e ia explicar-lhe, com todos os pormenores, a situação em que se encontrava Mistral, incluindo o grave e inútil risco da deslocação.
Logo a seguir ia encontrar-se com Charles, o filho, que tinha subitamente decidido casar-se. Florette não se opunha, em princípio, a esta decisão, mas queria conhecer a futura
nora e ter a certeza, nos limites do possível, de que o filho tinha feito a escolha certa.
Por fim, ia para o seu apartamento, uma adorável mansarda, de onde se viam os telhados de Paris, e telefonar ao professor Jean Louis Coustadier.
Jean Louis Coustadier tinha há pouco ultrapassado os 50 anos e conservava, intacto, o mesmo fascínio que tinha quando era jovem. Era um neurocirurgião de raro talento, mas
nunca se teria tornado mundialmente conhecido se não possuísse um dom inato para gerir a sua imagem de uma forma exímia. O segredo do seu sucesso consistia num conjunto de
elementos que doseava com a habilidade de um alquimista. As suas aulas na universidade eram uma atração irresistível para alunos e colegas. Unia, a um perfeito conhecimento
da matéria, a capacidade de a expor de uma forma clara e até divertida.
Jean Louis Coustadier era de origens muito humildes. O pai, operário, e a mãe, bordadeira, tinham-se sacrificado e trabalhado muito para manter o filho a estudar, mas tinha
valido a pena. A mãe en-sinara-lhe a não ter muitos escrúpulos na escalada do sucesso. "Se durante a escalada alguém se precipitar do penhasco e se despedaçar, não é caso
para fazer disso um drama. O importante é chegar",
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repetia-lhe madame Coustadier. "Há homens destinados a cair e outros a chegar ao topo", acrescentava.
Quando conquistou o seu lugar no Olimpo dos melhores, tratou de instalar os pais. Comprou-lhes uma pequena casa com jardim na periferia da cidade, garantindo-lhes uma existência
mais do que digna. Eles não queriam mais nada.
Chantal não tinha optado por este especialista ao acaso: tinha escolhido o melhor, certa de que Coustadier ia entrar no seu jogo.
Quando Florette ouviu tocar à porta, abriu sem hesitações. Tinha a certeza de que era ele.
- Estou atrasado? - perguntou Jean Louis, que continuava imóvel, à porta.
- Como sempre - disse ela, enquanto o convidava a entrar com um gesto da mão.
- Sinto muito.
- É uma coqueteria tonta que faz parte do teu carácter.
O neurocirurgião não reagiu. Parecia temer as reações bruscas de Florette.
- Infelizmente, nem sempre sou dono do meu tempo - desculpou-se.
- Guarda as tuas mentiras para quem ainda tem a ingenuidade de as levar a sério.
- O mau humor não interfere na tua beleza - tentou serená-la. - Estás encantadora.
- Meu amigo, comigo os teus madrigais não funcionam. - Conhecia-o demasiado bem para cair nas suas ratoeiras. Para além do mais, tinha-lhe telefonado para o convocar e ele,
apesar do atraso habitual, tinha-se apressado a ir ter com ela: era o ponto de vantagem que Florette esperava ter. - Senta-te - convidou. Entrou uma empregada que, silenciosamente,
pousou em cima da mesa duas tacinhas geladas que continham camarão em molho picante.
O homem afagou com um olhar entendedor a garrafa de champanhe dentro do balde prateado cheio de gelo. Antes de a abrir e de encher as duas taças que Florette lhe estendia,
observou o rótulo. Era Honfleur 1982.
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- Agora posso saber porque me convocaste? - perguntou, num tom irónico.
- Preciso de te falar dela - disse Florette, indicando a garrafa. - Da Chantal Honfleur.
- Lá estamos nós no clássico golpe de teatro - disse ele, a sorrir, controlando a irritação que aquele nome lhe tinha suscitado.
- A Chantal pediu uma consulta para o marido, o Mistral. O personagem que é suposto intervir neste ponto és tu.
Jean Louis agarrou-se às últimas palavras de Florette como um náufrago a um destroço que flutua sobre as ondas.
- É um problema deontológico. Não posso falar de questões profissionais - afirmou, à procura de uma saída.
Florette saltou como uma mola.
- Devo lembrar-te que não és credível quando te pões a contar a história do Capuchinho Vermelho e do Lobo Mau. Os discursos sobre a deontologia profissional podes fazê-los
aos teus alunos, não a mim.
- Estás a ser injusta - defendeu-se ele, tentando recuperar terreno.
- Quantos milhões te prometeu? - disparou às cegas. - A Chantal, quero dizer, quanto te ofereceu?
- Tenho a impressão de que, se estas são as premissas, vai haver muito poucas possibilidades de diálogo entre nós - retorquiu, mostrando abertamente a sua irritação.
- Jean Louis, há muitos anos nós amávamo-nos. Lembras-te disso, com certeza, pois de outra forma não estavas aqui. Passaram mais de vinte anos. Tu viveste a tua vida, eu a
minha. Mas houve alguma coisa, entre nós, que não se pode apagar. Estou a falar do nosso filho, que nunca quiseste ver com medo de te comprometeres. A tua única preocupação
foi sempre a de salvaguardar a relação entre ti e a filha daquele catedrático que te abriu caminho para fazeres carreira. Quando soubeste que eu estava grávida, fugiste aterrorizado.
Eu aceitei isso, não te criei problemas e arranjei-me sozinha. Nunca exigi nada de ti, nem nunca pensei fazer chantagem contigo. Espero que tenhas a consciência disso - disse
Florette.
O cirurgião baixou os olhos e fitou as bolhinhas de champanhe
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que subiam na taça que tinha na mão. Aquele filho rejeitado era um remorso que trazia desde sempre dentro de si.
- Eu tenho a consciência disso - murmurou.
- Agora vou pedir-te um favor. Nunca o fiz antes, e não voltará a acontecer no futuro. Não te estou a pedir que renuncies à consulta, mas apenas que deixes o Mistral Vernati
em Itália, aos cuidados dos seus médicos e da companheira.
Jean Louis respirou fundo.
- Conta-me tudo, desde o princípio - propôs, ao mesmo tempo que pousava o copo em cima da mesa.
Florette sorriu e bebeu um fresquíssimo gole de champanhe.
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3
Para a sua viagem a Milão, Jean Louis Coustadier tinha decidido fazer-se acompanhar por um jovem assistente, um dos seus alunos mais promissores, sobrinho do ministro dos
Negócios Estrangeiros. Profissionalmente, considerava-o um pequeno génio, mas ainda que o não fosse, mantê-lo-ia igualmente ao seu lado para o usar no momento oportuno. Jean
Louis tinha nascido com o instinto do caçador, exatamente como outra pessoa qualquer nasce com vocação de poeta. Apesar de agora estar no auge da sua carreira científica,
continuava a olhar em volta, e a sua escalada para o poder não excluía um envolvimento político, que poderia levá-lo ao Ministério da Saúde. Nessa ótica, começava a estudar
as estratégias mais eficazes. O seu jovem assistente fazia parte do jogo.
Para perturbar aquele seu imparável projeto tinha reaparecido Florette, a única mulher que alguma vez amara, a única emoção esplendorosa da sua vida. Com ela reemergira um
velho problema, afastado mas nunca apagado: o filho que, se tivesse dependido dele, nunca teria nascido, e do qual tinha deliberadamente ignorado a existência, reaparecia
agora com a potência de uma evocação.
A palidez repentina e o suor frio que lhe humedeceu a testa alteraram a sua fisionomia, assustando o seu jovem assistente.
- Passa-se alguma coisa, professor? - perguntou, com um tom profissional, sem querer alarmar o mestre.
Havia muitos lugares vazios no espaço reservado aos passageiros de primeira classe. Uma hospedeira, loira e sorridente, perguntou se desejavam uma bebida. Jean Louis recusou
delicadamente.
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- Está tudo bem - respondeu ao jovem. - O meu problema é que eu não durmo tanto como devia. - Pousou a cabeça no encosto da cadeira e fechou os olhos.
Queria ficar sozinho com o pensamento dominante que o atormentava: Florette Roussel e o filho que tinha rejeitado para perseguir a aventura profissional.
Tinham passado mais de vinte anos e, de repente, aquele filho vinha bater à porta da sua consciência para reclamar os seus direitos. Esse ser, em cujas veias corria o seu
próprio sangue, tinha-se tornado homem sem que ele lhe tivesse dedicado um único pensamento. Como seria? Parecer-se-ia com Florette ou com ele? Se o encontrasse na rua, não
o ia reconhecer. Precisava de tempo para refletir, para entender.
A voz aflautada de uma hospedeira anunciou a aterragem iminente no aeroporto de Linate. Jean Louis, com a disciplina mental exercitada em anos de treino rigoroso, arrumou
a questão num canto para se dedicar a um outro problema: a consulta a Mistral.
À chegada, a condessa Honfleur estava à espera dele. Jean Louis Coustadier nunca fora insensível ao fascínio de uma mulher bonita e, enquanto ela lhe falava de Mistral, no
automóvel que os levava para a cidade, ele não conseguia tirar os olhos das pernas dela, elegantemente cruzadas.
A condessa Henriette Chantal Honfleur estava acompanhada pelo seu advogado de confiança, Henri Girodou, sócio da parceria de advogados Roussel, Mandrajer e Girodou: os melhores
especialistas franceses em direito internacional. Só ela falava. Exprimia os seus receios em relação às terapias a que o doente estava a ser sujeito naquele hospital de Milão,
que ela considerava inadequadas ao caso. Jean Louis limitava-se a ouvir com grande atenção.
- O meu desejo é transferir o Mistral para Paris - fez questão de sublinhar -, antes que a leviandade destes italianos produza danos irremediáveis.
Jean Louis tinha recuperado a fria compostura de sempre e não fazia comentários. Tinha prometido a Florette que faria os possíveis para evitar a transferência do piloto, até
porque conhecia o valor e a
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experiência dos colegas italianos. Mistral, naquele hospital de Milão, estava em ótimas mãos.
- Sabe perfeitamente, professor, que, do ponto de vista legal, o parente mais próximo, no nosso caso a esposa legítima - sublinhou o advogado Girodou -, tem o direito de escolher
para o cônjuge a terapêutica que considerar mais adequada.
O cirurgião continuava a ouvir, impassível, pensando no prazer que ia ter ao reencontrar o colega e amigo Salemi, que não via há anos.
- Acho que é indispensável ver o paciente o mais depressa possível. O neurocirurgião interrompeu finalmente o silêncio e consultou
o relógio. Faltava meia hora para o encontro. Chegaram ao hospital com alguns minutos de atraso por causa do trânsito que, no centro da cidade, estava particularmente intenso.
O encontro com Salemi foi muito cordial e ocorreu na Sala de Reanimação, da qual Chantal e os seus advogados tinham sido excluídos. Jean Louis apercebeu-se imediatamente de
que Mistral estava a ser tratado e assistido segundo os critérios clínicos seguidos nos centros mais avançados e mais bem equipados. O coma estava a evoluir lentamente num
sentido favorável, apesar de as regras ditadas pela prudência não permitirem ainda avançar um prognóstico.
- Dez horas após a intervenção registámos atos respiratórios espontâneos, por isso retirámos o tubo da traqueia e o paciente respira agora de uma forma autónoma - explicou
Salemi. - O edema foi removido com sucesso.
- Sinais de superficialização do coma? - indagou Coustadier.
- Podes vê-los tu mesmo - respondeu Salemi. - As pupilas, finalmente iguais, respondem aos estímulos luminosos. Não há ainda reflexos tendinosos. Temos programado uma TAC
precisamente agora.
- Muito bem - disse o Coustadier.
- Podemos esperar pelo resultado no meu gabinete - propôs Salemi -, se estiveres de acordo - acrescentou, a sorrir.
Jean Louis bateu amigavelmente com uma mão no ombro do amigo:
- Nem quero outra coisa.
Poucos minutos depois, Salemi e Coustadier estavam comodamente sentados e envolvidos numa conversa amigável, como
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é hábito acontecer entre colegas que se conhecem há anos, se estimam reciprocamente e se encontram raras vezes.
- A tua mulher como está? - perguntou Jean Louis.
- Bem, apesar dos problemas relacionados com a menopausa. Está cada vez mais intratável. A ideia de envelhecer aterroriza-a. Passa os dias entre ginásios, institutos de beleza,
dentistas e cabeleireiros. Passa as noites na companhia de um instrumento elétrico de tortura que tem uns terminais que, aplicados em certos pontos estratégicos do rosto,
permitem o desaparecimento das rugas. Parece que aquela geringonça funciona mesmo. É uma espécie de ginástica passiva que a salvou do tormento do lifting. E a tua mulher?
- perguntou por sua vez.
- Não nos encontramos muito - respondeu Jean Louis. - Adotei a solução de dormir na clínica com o pretexto de que há sempre um paciente que precisa de mim. Fingimos os dois
que acreditamos neste subterfúgio, que nos evita conversas penosas e discussões furiosas. É estranha, a vida - acrescentou, a abanar a cabeça -, trabalhei para ter uma casa
valiosa no coração de Paris, para a decorar com móveis, quadros e tapetes preciosos. Tenho dois empregados que toda a gente me inveja, profissionais de primeiríssima ordem,
e estou a dormir num quartinho muito mais parecido com a cela de um convento do que com um quarto de dormir. De manhã, confio-me à gentileza da enfermeira de turno para tomar
um café decente.
Conversavam tranquilamente e, com a certeza de que ambos desejavam adiar o mais possível o momento em que teriam de abordar o problema que os fizera encontrar-se: a transferência
de Mistral para Paris.
- Se pudesses recomeçar, o que mudavas na tua vida? - perguntou Salemi.
- Nada, acho eu - respondeu -, ou talvez tudo - acrescentou, pensativo. - O tempo ensina-nos a apreciar muitas coisas das quais não nos damos conta quando somos jovens. Como
estes poucos minutos de conversa com um velho amigo que lamento ver raramente.
- Pois é - replicou Salemi. - Mas agora acabou o recreio, infelizmente, e temos que regressar ao trabalho. Então, vais levar o piloto contigo? - perguntou Salemi, de súbito.
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Jean Louis levantou-se da poltrona e disse:
- Nem pensar nisso. Está muito bem aqui. Em ótimas mãos. Salemi sorriu ao amigo.
- Era exatamente aquilo que eu esperava de ti.
- Vamos comunicar a notícia aos interessados - concluiu Cous-tadier.
- No entanto, se a mulher exigir a transferência, não nos podemos opor - comentou Salemi.
- Ninguém te vai levar o teu campeão - sentenciou o professor francês.
- Como é que tens assim tanto a certeza?
- Deves confiar em mim - garantiu Jean Louis, sem vacilar e sem entrar em pormenores.
A TAC revelou uma situação de melhoria generalizada. Três dias depois da intervenção, o hematoma tinha praticamente desaparecido. Coustadier submeteu Mistral a uma nova e
cuidadosa observação.
- És mais escrupuloso do que eu pensava - observou Salemi, satisfeito.
- Tenho de justificar a conta elevada que vou apresentar à condessa Honfleur.
- Consegues fazer uma previsão sobre o tempo do despertar?
- Podíamos fazer alguma ideia, com a ajuda de referências estatísticas, mas sabes melhor do que eu que têm um valor relativo. Fornecem indicações para os congressos. Assim
por alto, acho que vai demorar ainda uns três ou quatro dias até voltar a ficar consciente.
Aquilo que aconteceu quando os dois especialistas saíram do Serviço de Reanimação apanhou toda a gente de surpresa, exceto Jean Louis. À espera deles, à saída, estava Chantal,
com o seu advogado, e começava a manifestar sinais de impaciência.
- Então, professor, já o observou? - perguntou Chantal, sem se preocupar em esconder a sua própria agitação.
- Observei-o com extrema atenção. Foi um exame longo e muito escrupuloso - garantiu-lhe.
- Portanto, concorda comigo. O meu marido deve ser transportado para Paris.
Jean Louis não respondeu.
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- Tem dúvidas? - insistiu Chantal.
- Não. Uma vez por outra apoia-me uma certeza matemática.
- Quando partimos? - perguntou a mulher, sorrindo satisfeita.
- Nós até podemos partir imediatamente. O seu marido não sai deste hospital. Está a ser tratado da melhor das formas e transportá-lo agora, que as suas condições estão claramente
a melhorar, seria uma loucura.
Chantal olhou para ele, perplexa, esperando ter percebido mal.
- O senhor está a dizer que se recusa a mandar transportar o meu marido?
- Eu estou apenas a tentar dissuadi-la de executar um gesto arriscado, que poderia interromper o lento, mas seguro, caminho de recuperação de Mistral.
Chantal não se tinha apercebido de que, entretanto, a grande porta de vidro atrás dela tinha sido aberta de forma a permitir que um grupo de jornalistas, oportunamente instruídos
por Florette, escutasse com a máxima atenção e no mais absoluto silêncio e tomasse notas nos seus blocos sobre os resultados da consulta.
- Mistral Vernati não vai ficar aqui nem mais um minuto. Eu sou a mulher dele e vou assinar uma ordem de transferência, assumindo todas as responsabilidades - declarou Chantal,
com uma voz estridente, ao mesmo tempo que os jornalistas irrompiam para a entrevistar entre os flashes dos fotógrafos e a iluminação que permitiam o trabalho das câmaras
de televisão: todas as objetivas estavam apontadas para ela.
129
4
Chantal vacilava sob o peso daquele assalto repentino e inesperado. O advogado Girodou inclinou-se sobre ela e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ela olhou em volta,
desesperada, à procura de uma via de fuga, mas estava num beco sem saída.
A armadilha tinha disparado e ela estava prisioneira. Os médicos da equipa do professor Salemi estavam enfileirados diante dela, enquanto nas suas costas atacava o exército
dos representantes da imprensa e da televisão, de onde partiam flashes ofuscantes e perguntas impiedosas.
O desabafo histérico de Chantal desencadeara uma reação em cadeia da qual ela iria sair em pedaços.
Florette não precisava de fazer mais nada. Era evidente, e estava documentado, que Chantal pretendia o património do campeão, e que para entrar na posse dele não se deteria
nem sequer perante o risco, denunciado pelo médico, de o fazer morrer. Chegaram Maria e Adèle.
Médicos, jornalistas, fotógrafos e operadores de câmara abriram um espaço para as deixar passar. As duas mulheres seguiram em direção aos Cuidados Intensivos.
Florette aproveitou aquele instante de ansiedade para anunciar uma conferência de imprensa, às três horas da tarde, no Hotel Plaza.
- Poderão obter todas as informações que desejarem sobre as condições de saúde de Mistral e sobre as novas estratégias da Bluesky relativamente aos próximos grandes prémios
de Portugal, do Japão e da Austrália. Acho - acrescentou -, que tudo está a correr da melhor maneira.
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Chantal e o advogado, conduzidos por uma enfermeira, desapareceram por uma saída secundária, pondo fim àquela confusão que tinha criado o caos em todo o serviço.
Florette encontrou-se diante de Jean Louis. Olharam um para o outro, a sorrir, e ela sussurrou:
- Obrigada.
O neurocirurgião voltou-se para o seu assistente, que tinha ficado com os médicos da equipa de Salemi.
- Encontramo-nos no aeroporto - disse. O jovem assentiu com um gesto de cabeça.
Depois deu o braço a Florette e encaminharam-se para a saída.
- Correu tudo como querias? - perguntou-lhe.
- As coisas estão tal e qual como tu disseste, em relação ao Mistral? - Era típico dela responder a uma pergunta com outra pergunta.
- O teu campeão vai viver e ficar completamente bem - declarou -, se a minha experiência não me trair.
- Tiraste-me um grande peso do coração. Florette estava feliz.
- Essencialmente, não queria que a condessa insistisse naquele pedido de transferência para outra clínica - disse Jean Louis, enquanto saíam do pavilhão.
- Apesar do parecer contrário? - respondeu ela, espantada, com uma candura que não lhe era habitual.
- Um outro especialista e um magistrado complacentes não são impossíveis de encontrar - comentou Jean Louis.
- Não vai ousar tentar novas aventuras - replicou, recuperando toda a sua garra.
O motorista da Bluesky estava à espera deles no parque de estacionamento do hospital.
- Para o aeroporto - ordenou Florette.
- Julguei que íamos ter duas horas para estarmos juntos - lamentou-se o cirurgião, ao mesmo tempo que entrava no automóvel. Tinham passado mais de vinte anos desde que tinham
estado sentados, juntos, dentro de um carro.
- Agradeço-te por tudo o que fizeste pelo Mistral - disse ela.
- Garanto-te que, se tivesse a sombra de uma suspeita em relação
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à forma como o Mistral está a ser tratado pelos médicos italianos, não poderia ter-te ajudado, e o teu piloto estaria já a voar para Paris. Por isso, não me agradeças.
- Amigos? - murmurou ela, estendendo-lhe a mão.
Ele segurou-a entre as suas e levou-a aos lábios. Jean Louis Coustadier tinha demorado mais de vinte anos para se dar finalmente conta de que Florette estava mais desejável
do que nunca.
A única mulher que tinha realmente amado em toda a sua vida era a mãe do seu filho.
O automóvel parou em frente à porta das partidas. Jean Louis descobriu o seu assistente a caminhar pela sala com um ar aborrecido. Esperou que o jovem não o avistasse enquanto,
de braço dado com Florette, se dirigia à sala reservada aos VIP.
- Gostava tanto de poder salvar alguma coisa de nós. Achas que é tarde para tentar? - perguntou, hesitante. - Sabes que só agora me apercebo de que te amei sempre?
- Sobretudo, sempre te amaste a ti próprio - esclareceu ela, com lucidez -, e a tua carreira - acrescentou. - Provavelmente, só agora te apercebes de que todas as coisas que
se escondem, mais cedo ou mais tarde, acabam por vir à superfície. Não é bom deixarmo-nos apanhar pelo remorso em relação às ocasiões perdidas - concluiu Florette, com amargura.
- Mas posso estar animado pelas intenções mais sinceras - disse.
- Não acredito que, aos 50 anos, possas ser completamente diferente do que eras aos trinta. Apenas aprendeste a escutar a voz dos remorsos. Mas é ainda o egoísmo que prevalece
em ti. Percebeste que o filho que rejeitaste, antes ainda de nascer, hoje é um homem. Querias recuperá-lo. Não, Jean Louis, é demasiado tarde para recomeçar.
- Continuas o tigre de sempre, pronta para dar a patada mortal.
- Sou uma mãe que defende a vida do filho. Se o Charles está vivo, a mim o deve.
- Só gostava de o conhecer - suplicou-lhe, enquanto entravam na sala reservada.
Florette deixou-se cair numa poltrona confortável.
- Esquece - respondeu, enquanto Coustadier se sentava em frente a ela. Recordou o seu encontro com Charles, em Paris. Tinha decidido
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casar com uma colega de faculdade e fazia projetos para a sua vida futura sem ter a mais pálida ideia de como arranjar recursos para os realizar. "Quero da vida aquilo que
me foi sempre negado", tinha-a desafiado, "ou seja, uma família. Peço demasiado?". Florette sentira-se numa armadilha. Naquele momento, pela primeira vez desde que Charles
tinha nascido, apercebera-se de que tinha faltado ao filho uma figura paterna, um universo afetivo masculino que lhe servisse de referência. Mas, aos 20 anos, servir-lhe um
pai como um presente de Natal podia agravar o problema em vez de o resolver. Jean Louis arrancou-a aos seus pensamentos.
- Disseste que se chama Charles, não foi?
- Sim. Isso muda alguma coisa? - respondeu, agressiva. - É um nome como muitos outros. Mas a situação não muda. Nunca serás o pai que ele nunca teve. É realmente demasiado
tarde para isso -acrescentou tristemente.
- Estuda, suponho - insistiu ele.
- Está no primeiro ano da faculdade.
- Medicina, imagino - disse, esperando adivinhar.
- Isso não significa rigorosamente nada - respondeu ela, irritada.
- Talvez seja um destino escrito no nosso património genético.
- Oh, por favor, Jean Louis. Vamos mudar de assunto - disse ela. Ele abriu os braços, em sinal de rendição.
- Talvez tenhas razão. Pensando bem, é melhor que as coisas fiquem como estão.
Deixou-se cair contra as costas da cadeira e sorriu.
- O que é que há de tão divertido nisto? - perguntou Florette.
- Pergunto a mim mesmo se os misteriosos e infinitos caminhos do destino não o poderiam empurrar em direção à minha clínica.
- Uma clínica que te preparas para deixar - reagiu ela.
- És uma feiticeira - acusou-a com doçura. - Como é que sabes?
- Sei que estás a lutar para entrar na política.
- São só rumores.
- Claro. Mas para saber a verdade basta esperar pelas próximas eleições.
- Renunciaria a tudo se vos pudesse ter, a ti e ao Charles. Garanto-te.
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- E a tua preciosíssima consorte?
- Está a desembaraçar-se egregiamente, mesmo sem mim - confessou.
- E tu? - insistiu Florette.
- Sou um homem muito só.
O altifalante chamou os passageiros com destino a Paris para se apresentarem na porta de embarque. Florette consultou o relógio. Faltavam trinta minutos para a partida.
- Também eu sou uma mulher só. Sempre o fui.
- Permite-me esperar - disse Jean Louis, ao mesmo tempo que se levantava da cadeira.
- Não to posso impedir.
Ele pegou na mão que ela lhe estendia e beijou-a.
- Agradeço-te por me teres ajudado.
- Não fiz nada de especial.
- Salvaste o Mistral. Sabes que o amo como um irmão.
Ela viu-o afastar-se e sorriu. Alguma coisa nele estava, talvez, a mudar. Mas agora tinha de resolver o problema do filho e empenhar-se para voltar a pôr o seu campeão em
pista.
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Chantal sentiu-se emergir das misteriosas regiões do sono para entrar na realidade cinzenta e desagradável que a esperava. Tentou mergulhar novamente na quietude profunda
do esquecimento, mas não conseguiu. O hipnótico tinha esgotado os seus efeitos e não lhe restava senão aceitar o novo dia, com a sua bagagem de amarguras.
- Merde! - praguejou, ao mesmo tempo que se sentava na cama da elegante suite do Grand Hotel et de Milan.
A camisa de noite em crepe de seda rosado escorregou de um ombro, revelando um colo soberbo. Mas não estava ali ninguém para o admirar. Tinha-se deitado na noite anterior
num estado de furioso desespero. Recusara até a companhia de Marcantonio Arcuri, o lindíssimo jovem estilista siciliano que amava, com igual intensidade, os homens e as mulheres.
A condessa Henriette Chantal Honfleur tinha roubado aquele jovem talento, pago a peso de ouro, à Bluesky.
Gianni Strauss, proprietário da Bluesky, que vivera com o eclético estilista momentos de incomensurável prazer, tinha levado muito a mal aquele ato de pirataria e esperava
o momento oportuno para infligir a Chantal um duro castigo. Num certo sentido, Gianni e Chantal assemelhavam-se. Gostavam de conjugar sexo e trabalho e não admitiam ser postos
de lado. Pertenciam àquela categoria de pessoas que considera os outros apenas como instrumentos ao serviço do seu poder e do seu prazer. No dia anterior, Chantal tinha sofrido
uma das mais clamorosas derrotas da sua vida. Tinha sido posta de joelhos pelos médicos que tratavam Mistral Vernati, pelo especialista francês
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a quem se tinha dirigido para pedir um parecer, pelos jornalistas desportivos e pelos cronistas mundanos que a tinham literalmente massacrado com as suas perguntas. Para além
disso, facto ainda mais grave, também o público estava contra ela. Toda a gente estava do lado de Mistral e da companheira, Maria Guidi.
Como se não bastasse, até o advogado que apoiara o seu projeto de transferir Mistral para Paris se tinha demitido e retirado, imputando ao seu comportamento o mau resultado
da operação.
Marcantonio, que na noite anterior a acompanhara até ao seu quarto, no hotel, tinha sido alvo de um chorrilho de insultos enquanto tentava empenhar-se para aliviar o seu sofrimento.
Chantal tinha-o posto na rua, e ele reagira com um enigmático sorriso. Há muito tempo que tinha aprendido a aguentar os humores das pessoas poderosas com quem se dava, mas
estava consciente da sua beleza e da sua inteligência, e portanto tinha a certeza de que Chantal ia voltar, como todos os outros, a implorar-lhe o prazer que ele sabia dispensar
tão generosamente.
Quando ficou sozinha, Chantal voltou a pensar naquela que, segundo os seus cálculos, seria a estratégia vencedora: apoiar-se nos seus direitos de mulher legítima para recuperar
o marido. Não queria certamente remendar os farrapos de um amor que nunca existira entre eles. Mas estava determinada a retirar da situação todas as vantagens possíveis. A
solução ideal seria que o campeão morresse durante a transferência para outro hospital. Nesse caso, ela entraria na posse de todo o património. Na pior das hipóteses, seria
obrigada a ceder uma parte ao filho ilegítimo que ele tinha de Maria Guidi. Migalhas, em comparação com a imensa fortuna de Mistral. Todo o resto seria seu. Chantal tinha
uma extrema necessidade de dinheiro. A recessão económica, que durava já há dois anos, tinha produzido uma assustadora diminuição na sua atividade comercial. Os seus show
rooms, nas ruas centrais das várias capitais do mundo, estavam fortemente em passivo. No último ano, tinha aberto alguns pontos de venda no leste europeu. Mas ia ser preciso
tempo e trabalho antes de reaver o investimento. A herança de Mistral resolveria grande parte dos seus problemas. Se ele recuperasse, deveria retomar a batalha legal para
continuar a negar-lhe o divórcio. Mesmo nesse caso, estava
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em jogo uma fortuna que não era irrelevante, mas levava tempo e ela
não podia esperar.
Precisava de dinheiro, imediatamente.
Uma empregada levou-lhe os jornais, que dedicavam um amplo espaço ao seu comportamento do dia anterior, condenando-a sem piedade. Maria Guidi tinha vencido, enquanto ela tinha
sido esmagada sob o peso das suas próprias declarações.
Tinha perdido em todas as frentes e sentiu-se como quando deixava cifras consideráveis na mesa de jogo: um desejo irresistível de comida e de sexo. Ligou para pedir o pequeno-almoço.
- O que podemos servir-lhe? - perguntou gentilmente o empregado.
- Tudo - respondeu secamente. Depois marcou o número do quarto de Marcantonio.
- Vem ter comigo - ordenou.
Debaixo do chuveiro, deixou-se fustigar por um jato de água gelada, depois deixou que ficasse quentíssima e começou a esfregar todo o corpo com uma luva áspera que lhe tornava
rosada a pele branca. Estava apaixonada por aquela sua pele esplêndida e nunca se tinha exposto aos raios de sol para não comprometer aquela perfeição aveludada. Submetia-se
durante longos períodos a dietas rigorosíssimas que excluíam gorduras e hidratos de carbono. Regressou ao quarto, envolvida num roupão cor de rosa, e encontrou Marcantonio
na cama.
- Tenho sono - murmurou ele.
- Dorme - disse Chantal, cheia de desejo. Lançou um olhar ávido ao tabuleiro do pequeno-almoço que, entretanto, tinha sido servido numa mesa de apoio. Depois olhou para o
rapaz e não teve dúvida nenhuma sobre por onde começar.
Deixou cair o roupão aos seus pés, meteu-se na cama e escorregou até junto dele. Ergueu o lençol e aproximou os lábios do sexo de Marcantonio, cobrindo-o de pequenos beijos
ardentes. O sangue afluiu, potente, provocando uma lenta, maravilhosa ereção. O pénis túrgido parecia vibrar naquele corpo imóvel. Chantal acariciou-o e sentiu a seda que
envolvia aquele sexo sobre o qual a sua língua começou a vibrar. Aquele contacto dava-lhe vertigens. Lentamente, deixou-se
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penetrar. Marcantonio não se mexeu enquanto Chantal procurava, com sapiente meticulosidade, o ponto em que o desejo explodiria num orgasmo imparável. Procurou-o, afastando-se
de cada vez que lhe parecia tê-lo atingido, para fazer durar mais tempo aquele jogo.
O orgasmo chegou de repente, com uma explosão irrefreável de alegria, a onda de prazer aplacou-se e sentiu-se satisfeita e exausta. Então o jovem apertou-a contra si.
- Estás a magoar-me - queixou-se Chantal, quase a chorar.
Ele ignorou-a. Imobilizou-a e pôs-se em cima dela, penetrando-a brutalmente e provocando-lhe um espasmo intolerável.
- Chega, chega - soluçou Chantal.
Ele não dizia uma palavra. Encarniçava-se sobre ela com uma violência ultrajante, pensando unicamente no seu prazer. Quando, já saciado, se deixou escorregar sobre o lençol
imaculado, ela enroscou-se como um animal ferido.
Ele nem se dignou olhar para ela. Levantou-se da cama e saiu do quarto, satisfeito, envolvido num roupão.
Chantal sentia-se insultada, enxovalhada, humilhada e, no entanto, tinha sido meiga com ele e não merecia aquele castigo. Sempre fora assim. Toda a gente a violentara e ofendera
sempre, enquanto ela só oferecia amor.
Primeira entre todos, a mãe. Ela era muito pequena quando a ouviu dizer a uma amiga:
- Ela é querida, é verdade, e quando a abraço agarra-se a mim como uma gatinha abandonada. Mas nós não temos culpa, eu e o André, de desejar um rapaz. Desde que a Chantal
nasceu, deixámos de fazer amor. Nunca mais conseguimos ter relações. Por isso, não vamos ter mais filhos e vamos ter que nos contentar com esta gatinha. É uma grande dor,
para nós.
Aquelas palavras atuaram sobre ela como um veneno e feriram-na profundamente. Sem entender a razão, sentiu que era a causa da infelicidade dos pais.
Adoeceu, e a febre alta que a afligiu durante muitos dias pareceu ser a consequência daquele grave sentimento de culpa que lhe marcou a vida.
Chantal melhorou e, ao crescer, começou a assumir atitudes de
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rapaz. O conde André parecia satisfeito com aquele comportamento e acabou por lhe chamar Georges, o nome que queria ter dado a um filho rapaz. Perdoava-lhe a vulgaridade das
brincadeiras violentas e as piadas de péssimo gosto que a criadagem era obrigada a tolerar. Durante os jantares de gala, enfiava-se debaixo das mesas, cobertas com toalhas
até ao chão, e divertia-se a espreitar no meio das pernas das senhoras.
Uma vez, Daphne, uma jovem adolescente, descobriu o jogo perverso de Chantal, agarrou-lhe a mão, e a partir daquele momento nasceu uma discreta cumplicidade que as levava
a esconderem-se para viverem, longe de olhos indiscretos, uma sexualidade diferente. Os mamilos de Daphne tornavam-se túrgidos quando Chantal os acariciava e os beijos que
trocavam provocavam luminosas tempestades de prazer. As palavras já não eram necessárias e o desejo que as empurrava para os braços uma da outra renovava-se a cada encontro.
Entre as duas adolescentes nasceu um amor alucinante. Aproveitavam qualquer oportunidade para se esconderem e entretecerem novos jogos.
Uma ocasião, o conde André surpreendeu-as em íntima conversa debaixo do piano da mãe. Sale putain, disse, ao mesmo tempo que a agarrava por um braço. Cobriu-a de bofetadas
e fechou-a no quarto. Foi uma grande confusão em casa. Ficou a pão e água durante uma semana. A ração era-lhe servida na sala de jantar pelo criado. Tinha de a consumir de
joelhos no chão, enquanto o pai e a mãe comiam à mesa, de costas voltadas para ela.
Foram dias terríveis para a pequena Chantal, que não experimentava qualquer sentimento de vergonha por aquilo que o pai definia como um pecado sujo. Ao fim daquela semana
de castigo, foi afastada de casa. Mandaram-na para um colégio. Um lugar infame nos Pire-néus. Ali continuou a comportar-se como um rapaz com algumas colegas. Mas ninguém deu
conta. Ou talvez tenham preferido fingir que não davam conta. O nome de Chantal Honfleur dava prestígio àquele colégio sem categoria. Saiu dali aos catorze anos e foi readmitida
na família com a condição de se comportar como a sua estirpe exigia. Depois dos pais, a primeira pessoa que viu foi o primo Stanis, que tinha sido seu companheiro de correrias
quando era criança.
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Stanis tinha agora dezasseis anos e tinha-se transformado num bonito jovem.
- Ainda és lésbica ou posso dar-te uma queca? - foi o seu cumprimento de boas-vindas.
Chantal não se descompôs.
- Tu podes só meter-me nojo - replicou, gélida.
Sentia-se profundamente humilhada. Naquela noite foi para a cama com o ajudante de jardineiro, que era um jovem um pouco idiota mas sexualmente muito vigoroso. Foi uma experiência
desastrosa. Arrumou-o com um presente. Ele meteu o dinheiro ao bolso e violentou-a. Enquanto se assanhava em cima dela, que só chorava, chamava-lhe Virgem Imaculada e dizia-lhe
que era mais bonita do que Santa Cecília. Virgem Imaculada e Santa Cecília, isto soube-o depois, eram as alcunhas das duas prostitutas da terra.
O zumbido insistente do telefone arrancou-a às suas recordações. Era Suzanne Bonnard, a senhora do cinema francês, a rainha da elegância, a sua amiga do coração há muitos
anos. Ligava-lhe de Paris.
- Já li os jornais - disse-lhe, consternada. - Que trapalhada é que tu foste arranjar, chérie. - Referia-se à história de Mistral e à sua malsucedida tentativa de o levar
para França.
- Apenas tive a desgraça de ter uns advogados incompetentes -respondeu, recuperando a garra habitual.
- Isso parece-me evidente - comentou Suzanne. - Obrigaram-te a fazer uma péssima figura. Até a imprensa francesa te ataca fortemente.
- Vou ter de arranjar um advogado para meter um processo ao meu advogado - concluiu Chantal.
- Esquece, chérie. As pessoas, com o tempo, esquecem. Daqui por alguns meses, mais ninguém vai falar desta história - aconselhou a diva.
- Estou furiosa. Despedaçaram-me. Percebes? - insistiu ela.
- Eu vou apanhar os cacos. Há um lugar quente na minha cama, querida. Porque não voltas para casa? - sugeriu Suzanne. Gozava da fama de ser uma devoradora de homens, mas no
círculo restrito dos amigos era conhecida a relação íntima que tinha com Chantal.
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- Não percebes que, assim, vou ter de conceder o divórcio ao Mistral?
- Partindo do princípio que sobrevive - insinuou a atriz. - Há ainda uma débil esperança de que tu possas ficar viúva.
Chantal agarrou-se àquela possibilidade. Conseguiu sorrir e atirou-se ao pequeno-almoço com avidez.
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Não tinha havido nenhuma discussão entre Maria e Adèle. O entendimento nasceu espontâneo: Adèle passava o dia à cabeceira do filho, enquanto Maria a substituía durante a noite.
Queriam estar junto dele no momento em que saísse do coma, acontecimento que os médicos já consideravam iminente. A imprensa, depois do escândalo suscitado por Chantal, tinha
levantado o cerco. No átrio do hospital havia agora poucos repórteres que se limitavam a cumprimentar Maria e a formular uma pergunta já ritual:
- Como vai o campeão?
A resposta era sempre a mesma:
- Esperemos que bem. Há sinais de melhoria.
A condessa Honfleur tinha-se eclipsado com a mesma rapidez com que aparecera.
Naquela manhã, ao regressar do hospital, Maria decidiu conceder-se algumas horas de sono, enquanto os filhos iam brincar, com Rachele, nos jardins da Guastalla. Acordaria
a tempo de almoçar com eles e passarem juntos o resto do dia. Estava muito debilitada pela tensão e pela falta de um repouso autêntico. Tinha o rosto marcado por umas olheiras
profundas. Para além do mais, naquela manhã, antes de sair do hospital, o Dr. Spada tinha querido que ela se submetesse a uma consulta cuidada e a uma série de exames. Ela
concordara, mais para fazer a vontade ao amigo, que se estava a empenhar de mil e uma maneiras, do que por uma real necessidade. Agora, ao entrar no Plaza, tinha um único
desejo: enfiar-se na cama e dormir. No entanto, à entrada da suite encontrou Florette, que a recebeu com um ar preocupado.
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- Olha, Maria, ali na sala está uma pessoa que quer falar contigo.
- Quem é? - perguntou Maria, desconfiada.
- Sabes, perguntei a mim mesma se o devia deixar entrar ou mandá-lo embora e, finalmente, decidi que isso é um problema teu.
- Quem é? - insistiu Maria.
- O Raul Romero - disse Florette.
Maria hesitou durante alguns instantes, dividida entre sentimentos opostos. Durante aqueles dias tinha imposto a si mesma não pensar nele, apesar de lhe ter sido relatada,
em pormenor, a violenta reação de Romero em relação a Gianni Strauss durante o encontro na Villa d'Este, logo a seguir ao acidente de Mistral. Agora ele estava ali, e Maria
sabia que o jovem piloto precisava do seu perdão.
- Eu recebo-o - decidiu, e dirigiu-se à sala num passo cansado. Ele estava de costas voltadas para a porta e observava, através da
janela, o tráfego incessante da rua. Vestia um blusão desportivo, que realçava o seu corpo atlético.
- Olá, Raul - começou ela.
Ele virou-se de repente e dirigiu-lhe um olhar atormentado, quase de desafio. Maria recordou o momento em que o tinha conhecido, em frente às boxes de Indianápolis. Ela estava
com Mistral e ele, El diable, como tinha sido batizado pelos jornalistas, preparava-se para disputar a corrida.
- Ei, Romero - chamou-o Mistral.
Romero voltou-se para eles com o mesmo olhar agressivo.
- Queres vir jantar connosco, logo à noite?
O jovem piloto reconheceu-o imediatamente e, no entanto, continuou a observá-lo com desconfiança.
- Porquê? - perguntou, enquanto enfiava as luvas e o rugido dos motores se tornava cada vez mais ensurdecedor.
- Quero conhecer-te um pouco melhor - propôs simpaticamente o campeão.
Só então esboçou um sorriso.
- Tudo bem - respondeu, enquanto se enfiava dentro do carro. Agora Maria disse-lhe:
- Não estou zangada contigo.
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- Eu sim - replicou ele. - Estou com um ódio de morte a mim próprio.
- Desculpa, Raul - concluiu Maria -, preciso de dormir. Ou vou cair por exaustão.
Ele deu alguns passos em direção a ela e estendeu-lhe os braços. Maria sorriu e aceitou aquele abraço.
- Eu gosto do Mistral - sussurrou Raul.
- Eu sei - respondeu ela.
- E também sabes como funcionam as coisas quando uma pessoa está a correr e tem vontade de vencer - continuou Romero.
- Também sei isso - respondeu ela tristemente.
- Passei muitas horas a dar voltas como uma alma penada nas imediações do hospital, a mendigar notícias aos médicos, mantendo-me à distância dos jornalistas, à espera de te
ver, sem ter a coragem de te enfrentar - explicou, com uma voz quebrada pela comoção. - Sabes também que se o Mistral regressar às pistas eu vou lutar com ele do mesmo modo?
- acrescentou, depois de uma pausa.
Maria anuiu e disse:
- O Mistral escolheu-te, entre tantas promessas do automobilismo, precisamente por seres assim.
- Estou de partida para Portugal. Vim pedir-te uma coisa - hesitou um instante e depois prosseguiu: - Emprestas-me o capacete do Mistral? Aquele que ele trazia no domingo
em Monza?
Maria tinha-o em cima de um móvel, no quarto. Foi buscá-lo e entregou-lho.
- Vou correr também por ele - prometeu o piloto argentino. Maria sorriu e acompanhou-o à porta.
Não havia mais nada a dizer. Maria, durante aqueles dias, tinha mudado profundamente. A ideia de perder Mistral tinha-a tornado mais madura, mais consciente da sua própria
fragilidade, apesar de ter encontrado em si própria uma força que não sabia que possuía.
Quanto ao jovem Romero, também ele tinha crescido e amadurecido. Tinha visto muitos pilotos massacrados em acidentes tenebrosos. Nenhum deles era seu amigo, até porque Raul
estava convencido de que não tinha amigos, mas apenas adversários para derrotar. O acidente de Mistral fizera-o descobrir o valor e o sentido da amizade.
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Provavelmente, tinha já iniciado a sua curva descendente, no mesmo instante em que começara a dar espaço aos sentimentos.
Despediram-se com um abraço. Maria, já exausta, meteu-se na cama e mergulhou imediatamente num sono profundo, sem sonhos.
Foi acordada pelo toque gentil de uma pequena mão entre os seus cabelos. Ela tentou conservar as margens macias daquele sono, misturando-as com o prazer de uma presença quente
e terna. Sabia, sentia-o pelo perfume delicado do talco, que os filhos se tinham enfiado na sua cama para encontrarem o calor da mãe. Por isso ficou imóvel durante alguns
minutos, naquele silêncio intacto sublinhado pela respiração ligeira das crianças. Depois, aos poucos, abriu os braços e apertou-os contra si.
- Não te queríamos acordar - disse Fiamma.
- Só queríamos nanar um bocadinho contigo - acrescentou Manuel.
- Então vamos ficar aqui, os três, muito juntinhos, e vamos fechar os olhos - disse Maria, sufocando um bocejo. Naquele momento, sentiu dolorosamente a falta de Mistral ao
lado deles.
- Telefonou alguém do hospital? - perguntou imediatamente. Maria sabia que Adèle estava com ele e que, fossem quais fossem as notícias, ela a informaria imediatamente. As
crianças tranquilizaram-na. Depois Manuel disse:
- Nós já comemos com a Rachele. Porque a Florette foi-se embora outra vez. Disse que ia voltar a Paris e que te ligava em breve.
Era sempre Manuel quem lhe transmitia as mensagens, apesar de ter apenas cinco anos. Fiamma, embora fosse perfeitamente capaz de as receber, quando chegava a altura de as
transmitir emocionava-se e acabava por tropeçar nas palavras. Era fantástica a falar das suas próprias emoções, mas não a estabelecer ligações lógicas. Quando Maria perguntou:
- Porquê? Há mais algum problema? Fiamma respondeu:
- Se calhar está apaixonada.
- O que é que te faz pensar isso? Foi ela que te disse? - perguntou Maria, curiosa.
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- Senti. Dentro de mim - respondeu Fiamma, enquanto dava pequenos saltos ao lado dela.
- É por isso que estás agitada? - indagou Maria, cautelosa.
- Há uma coisa que eu não percebi, mãe - disse Fiamma, num sopro.
- Vamos falar sobre isso para ver se conseguimos perceber juntas - encorajou-a Maria.
- Eu quero saber quantos irmãos tenho - disse de um só fôlego. Era essa a questão, pensou a mãe. Fiamma tinha refletido sobre
o encontro com Gianni Strauss. O assunto tinha de ser esclarecido imediatamente.
- Tu tens dois irmãos, o Manuel, que é pequenino, e o Gianni Strauss, que é grande.
- Estás a falar daquele senhor que tem uns óculos com aros de ouro, não é verdade? - perguntou Fiamma. Maria anuiu.
- E tu também és a mãe dele? - perguntou a pequena.
- Como é que eu podia ser mãe dele, se ele é muito mais velho do que eu? A mãe dele é uma senhora com bastante idade - explicou, com uma pensada lentidão.
- E então, naquela manhã, porque é que disseste àquele senhor que eu sou irmã dele?
- Porque o pai dele é também o teu pai. Já te tinha falado nisso, não te lembras?
Fiamma esforçou-se por assimilar aquele raciocínio complexo.
- Tinhas-me dito que o meu pai se chamava Peter Strauss. Que eu me chamo Guidi, como tu, porque o meu pai morreu antes de eu nascer. E por isso não me pôde dar o apelido dele.
Mas não me tinhas dito que tenho um irmão com óculos de ouro - comentou Fiamma. Falava com dificuldade, à procura das palavras certas.
- Estou a dizer-te agora. Não é a mesma coisa? - perguntou Maria.
- Um irmão é importante, como é o Manuel para mim. Porque é que o Gianni Strauss não é? - perguntou, insistente.
- Um irmão é sempre importante, ainda que não vivas com ele.
- Mas o Mistral é o meu pai. É verdade, não é, mãe? - Fiamma queria uma certeza.
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Maria anuiu. Manuel escutava-as sem intervir. Fingia um imenso interesse pelos desenhos da seda que revestia a cabeceira da cama. Percorria-os com a ponta de um dedo e simulava,
a sibilar entre os dentes, o ruído de um automóvel a correr.
- Eu não consigo perceber assim muito bem esta história - confessou Fiamma, por fim.
- Talvez se eu ta contasse desde o princípio fosse tudo mais simples - comentou Maria.
- E então, porque não fazes isso?
Maria gostaria de poder dizer-lhe que não era o momento. Que ainda não se sentia pronta para abordar aquele assunto com ela. Mas, se Fiamma a interrogava com tanta insistência,
não podia esperar mais tempo. Tocou o telefone, na mesinha ao lado da cama, e Manuel foi imediatamente atender. Maria abençoou aquela interrupção, que lhe permitia adiar uma
explicação demasiado longa e complicada.
- O filho estendeu-lhe o telefone.
- É o Matteo. Quer falar contigo - disse-lhe.
- Oh, meu Deus! - exclamou Maria, sabendo que o seu amigo médico estava no hospital e, se a procurava, devia haver novidades sobre Mistral. Por isso disse imediatamente:
- Dá-me uma boa notícia, por favor.
- Num certo sentido, é uma boa notícia que tenho para te dar -disse ele, rodeando o assunto.
- O Mistral acordou do coma? - insistiu Maria.
- Não se trata do Mistral, mas de ti. Tenho aqui o resultado das tuas análises.
- E então? - perguntou ela, desiludida.
- Estás à espera de um filho, Maria - disse o médico.
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Tinha-se verificado mais uma melhoria. Por várias vezes, ao longo do dia, Mistral Vernati reagira aos estímulos provocados pelo martelo de borracha. Adèle, que tinha passado
com ele todo o dia, comunicou esta notícia a Maria quando lhe cedeu o lugar para a noite. Depois veio o neurologista informá-la sobre os pormenores.
- Acho que o despertar, nesta fase, está próximo.
- Poderia ocorrer também durante a noite? - perguntou ela.
- Essa hipótese não é de excluir. Eu venho estimulá-lo, de vez em quando. Mas a senhora também o pode fazer.
- Mas como?
- Chame-o pelo nome e fale com ele, se conseguir estar acordada. Maria não fazia outra coisa, há dias, e só de vez em quando se
deixava vencer pelo sono. Prometeu de novo a si mesma continuar a falar-lhe durante aquela longa noite que ia enfrentar junto dele. Agora, ao lado da cama, havia uma poltrona
confortável. Exercendo uma pressão contra o encosto, a cadeira reclinava, permitindo-lhe quase estender-se. Por isso, quando o médico se foi embora e ela ficou só, procurou
a posição mais cómoda. Depois, delicadamente, pousou uma mão sobre a de Mistral e, em voz baixa, deu-lhe a grande notícia.
- Sabes, querido, há dias que não conseguia manter a comida no estômago. A princípio o Matteo achava que a causa era o pavor que senti com o teu acidente. Mas, afinal, a razão
é outra. Segura-te bem, meu amor, porque isto é mesmo uma bomba. Em breve vais ser pai outra vez. Estou grávida, Mistral.
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Calou-se, à espera de uma reação que não veio. Então continuou:
- É uma gravidez que está só no início. Quero dizer que, neste momento, o nosso filho é do tamanho de uma ervilha. E isso é bom, assim não se assustou demasiado com aquilo
que aconteceu ao pai. Mas vai crescer depressa. Nasce em maio. Maio parece-me um bom mês para vir ao mundo. Não achas? Olha que já decidi: se for uma menina, vamos chamar-lhe
Adèle, como a tua mãe. Se for um rapaz, vai-se chamar Mistral, como tu. Mistral Júnior. Soa bem, não achas?
Respondia-lhe apenas o eco surdo da sua voz. Mas a Maria parecia que ele a escutava. O quarto e todo o piso estavam mergulhados no silêncio. De vez em quando, através da janela
que dava para o corredor, Maria via passar algumas batas brancas. Havia uma atmosfera de paz. Sabia que aquele, como todos os hospitais, era um lugar de dor. No entanto, naquela
noite ela sentia-se finalmente em paz. Talvez a nova maternidade tivesse feito disparar algum automatismo biológico e psicológico em defesa do bebé. Ou talvez fosse a íntima
convicção de que Mistral tinha já superado a fase mais difícil e se aproximava do restabelecimento. Talvez, pura e simplesmente, estivesse a gozar um momento de serenidade
que a confortava sem um motivo preciso. Em suma, naquela noite Maria sentia-se bem e estava quase feliz.
Entrou uma enfermeira. Era jovem, muito bonita e sorridente. Cumprimentou Maria afetuosamente, apesar de nunca a ter visto.
- Preciso de mudar o soro - anunciou. Maria quis levantar-se, mas ela não a deixou.
- Fique sossegada, minha senhora. Eu faço isto depressa.
Com poucos movimentos seguros e precisos, substituiu a garrafa vazia por uma nova.
- O nosso campeão está a fazer progressos. Sabe, não sabe? -disse, atenciosa.
- Falei com o médico de serviço, há pouco - respondeu Maria.
- Vamos entregar-lho de volta como novo, minha senhora -continuou, a sorrir, enquanto mexia em ampolas, cânulas e seringas.
- Também eu começo a acreditar - assentiu Maria.
- Não lhe apetece um bom café? - perguntou ainda a enfermeira. - Pode ir tomá-lo ali, à copa. A minha colega está a fazê-lo.
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- É uma oferta aliciante - disse Maria -, mas não quero deixar o Mistral sozinho.
- É questão de alguns minutos. O que é que pode acontecer?
- Pode acordar e não ter ninguém ao lado dele - explicou.
- Ora vamos lá ver - disse a enfermeira. Aproximou as mãos do rosto de Mistral e bateu-as com força, produzindo um estalo seco e sonoro. - Viu? Não teve nenhuma reação. Teria
aberto os olhos se estivesse prestes a acordar. Pode deixá-lo tranquilamente alguns minutos - concluiu.
Maria resignou-se e foi atrás da enfermeira. Não queria parecer mal-educada e, para além do mais, um bom café ia ajudá-la a ficar acordada.
Na copa encontrou um homem sentado à mesa na companhia de uma outra enfermeira. Era um compartimento espaçoso, bem iluminado, e o aroma do café sobrepunha-se ao cheiro próprio
do hospital. A cafeteira já tinha sido colocada no centro de um tabuleiro onde estavam alinhadas algumas chávenas de porcelana branca.
O homem levantou-se e sorriu-lhe.
- A senhora é a companheira do Mistral. Reconheci-a através das fotografias dos jornais. - Tinha um ar tranquilo, e Maria perguntou a si mesma quem seria. Quase em resposta
à pergunta que ela não tinha formulado, ele explicou: - Eu venho aqui todas as noites beber um café. Estou a tomar conta da minha filha.
Maria sentou-se à mesa e, enquanto uma enfermeira deitava o café nas chávenas, o homem prosseguiu:
- Ouvi dizer que Mistral está a melhorar. Fico feliz com isso, porque é um campeão de quem eu gosto. É um fora de série em todos os sentidos e espero bem que volte a correr.
Vê-lo em pista é um es-petáculo. São poucos os pilotos, como ele, que dão tanto ao público.
Maria assentiu, a sorrir.
- E a sua filha, como está? - perguntou.
- Está em coma há quarenta dias. Uma queda, na montanha. Devia ser um belíssimo passeio feliz e acabou numa tragédia. Mas eu continuo a ter esperança. Passo as noites ao pé
dela e falo-lhe continuamente. Até a ponho a ouvir música. Sabe, ela estuda piano. Está só no início, mas já começava a tocar a canção de embalar de
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Brahms. Eu ponho-a a ouvi-la várias vezes, todas as noites. Um destes dias vai acordar.
Maria sentiu-se percorrer por um longo arrepio de pena. Havia muita serenidade na voz daquele pai que se agarrava à esperança.
- Eu também acho - disse docemente Maria. - Tenho a certeza de que a sua filha vai acordar. Como o Mistral.
Quando regressou ao quarto, estava profundamente comovida. A serenidade daquele homem tinha sido uma injeção de vitalidade e de confiança.
Instalou-se na poltrona e começou a falar. Falou ininterruptamente durante quase uma hora. De vez em quando, perguntava-lhe:
- Ouves-me? Se conseguires ouvir a minha voz, por favor, faz-me um sinal.
Respondia-lhe apenas o silêncio, sublinhado pela respiração calma de ambos. Ela observava as olheiras profundas e azuladas naquele rosto imóvel e continuava a aguardar.
O médico veio várias vezes, durante a noite. Controlou a tensão e os reflexos beliscando-lhe um mamilo: Mistral navegava ainda nas profundas regiões do sono. Maria viu as
horas. Eram quatro da manhã. Às sete chegaria Adèle para a render e iniciar-se-ia um novo dia de espera. A certa altura, exausta e atordoada pelo seu próprio, incessante discurso,
adormeceu. Foi o som lancinante da sirene de uma ambulância que a despertou de repente. Maria sacudiu aquele torpor, sentindo-se culpada por aqueles poucos minutos de abandono.
E logo recomeçou a falar, com uma ternura extenuante. Depois, de repente, sentiu dentro de si uma rebelião irreprimível contra aquele muro de silêncio que ele lhe opunha,
e então levantou a voz:
- Mistral, porque não me respondes? Faz um sinal, diz-me qualquer coisa, porque se não eu paro de falar. Mistral, estás a ouvir-me? -gritou.
Ele abriu os olhos e arregalou-os. Ela olhou para ele, estupefacta, levou uma mão à boca para sufocar um grito e levantou-se de um salto.
- Então ouves-me, meu amor - murmurou, e logo carregou com força na campainha para chamar alguém.
Chegou uma enfermeira. Mistral tinha já voltado a fechar os olhos e parecia dormir outra vez.
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- Ele olhou para mim, juro-lhe - disse Maria, entusiasmada, com medo que a enfermeira não acreditasse nela.
- Foi um instante de tomada de consciência - observou a mulher. - É mais um passo em frente em direção ao despertar - acrescentou, para a tranquilizar.
- Não acha que o médico devia ser imediatamente informado? Maria estava dominada por uma agitação incontrolável. Parecia-
-lhe um acontecimento extraordinário que Mistral tivesse finalmente aberto os olhos. Era o sinal tão esperado: o piloto estava a abandonar o estado comatoso para regressar
à realidade.
- O senhor doutor vem já - garantiu a enfermeira.
O médico chegou e escutou a descrição frenética de Maria.
- Ele abriu os olhos, senhor doutor, porque eu gritei - repetiu -, abriu os olhos e olhou para mim. Durou um instante. Dois, três segundos, acho eu. Viu-me, tenho a certeza
disso.
- Eu também acredito, minha senhora. Agora sossegue e fique feliz com tudo isto.
Inclinou-se sobre o doente e estalou os dedos ao lado do ouvido descoberto pela ligadura. Mistral levantou novamente as pálpebras.
- Outra vez, senhor doutor, viu? Viu? - exclamou Maria, com uma voz quase histérica. Mistral voltou a fechar os olhos e logo caiu novamente no estado de sono que durava já
há dias.
- Acho que uma chávena de chá nos ia fazer bem aos dois - sugeriu o médico. E acrescentou: - Depois continue a falar com ele, se ainda tiver forças para isso. Estamos realmente
num bom momento.
Eram quatro e meia da manhã e Maria, com uma chávena de chá quente nas mãos, retomou o seu monólogo.
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8
Mistral ouviu chamar por si, mas estava ainda prisioneiro de um nevoeiro sufocante do qual, por muito que se esforçasse, não conseguia libertar-se. Alguém pronunciava o seu
nome, e todo o seu ser estava tenso no esforço de abrir uma brecha naquela extensão de nuvens. Por fim, conseguiu emergir daquele denso mar leitoso e viu-a.
Era Maria. Estendeu os braços para ela, mas não conseguiu agarrá-la. Depois de muitas tentativas inúteis, deixou-se cair naquele macio manto de nuvens. Estava cansado e a
dor de cabeça era insuportável. Voltou a fechar os olhos, esperando que diminuísse. Começou a flutuar novamente no nevoeiro. Encontrou-se ao volante do seu monolugar, a correr
como um raio ao longo de um túnel em dire-ção a uma luz distante. Provavelmente era apenas uma ilusão, porque aquele ponto luminoso em direção ao qual avançava era tão inatingível
como uma miragem. No entanto, tinha a impressão de viajar a uma velocidade nunca atingida, o pé a pisar com força o acelerador maleável como o ar. Aquilo que mais o espantava
era a ausência de vibrações, como se o carro voasse. Era uma maravilha pilotar naquelas condições. Mas o rugido do motor provocava-lhe umas dores agudas na cabeça. Abriu os
olhos e viu um homem de bata branca inclinado sobre ele. Quem era? O que queria? Durante um instante sentiu uma grande aflição, mas depois conseguiu descortinar o rosto de
Maria ao lado do daquele homem e ficou sossegado. Maria dizia: "Outra vez, senhor doutor, viu?". O que é que havia para ver? Caiu novamente no nevoeiro denso e envolvente,
mas ouvia uma voz que continuava a chamar por ele.
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- Mistral! Mistral!
Conseguiu abrir outra vez os olhos e o nevoeiro desapareceu. Viu as paredes brancas de um quarto na penumbra e reconheceu Maria, debruçada sobre ele. Tinha o rosto sulcado
de lágrimas.
- Onde estamos? - perguntou, num sussurro.
- Diz-me como estás - pediu-lhe, a chorar.
- Péssimo. Dói-me a cabeça. E as costas, as pernas, os braços. É como se tivesse passado um cilindro por cima de mim - queixou-se.
- Foi mais ou menos isso que aconteceu. Tiveste um acidente. Lembras-te? Agora estamos no hospital - tentou explicar-lhe Maria, no meio das lágrimas. - Está tranquilo, o pior
já passou.
- Também me dói a garganta. Não consigo engolir e faço um grande esforço para falar - disse ele, e fechou os olhos, exausto.
- Então, está calado. Eu falo por ti. Em breve, chega a tua mãe. Ainda temos duas horas para estarmos juntos, só nós. Quero contar-te uma coisa que nunca te disse...
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O MUNDO VASTO E TERRÍVEL
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1
Naquela devastadora explosão, na noite de Natal de 1972, Maria tinha perdido tudo: os pais, os irmãos, a avó, a casa e tudo aquilo que a família possuía. Alguns parentes afastados
ofereceram-se para a ajudar, mas ela acabou por aceitar a hospitalidade do professor Benito Morandi, o pai de Moretta.
- Durante algum tempo, podes ficar em minha casa. Depois, vamos ter de procurar uma solução adequada para ti - disse. - Sou viúvo, vivo sozinho, e as pessoas podiam pensar
sabe-se lá o quê. Mas para já ficas aqui. E tenta estar tranquila. Os teus pais eram umas pessoas muito estimadas. Dei aulas aos teus irmãos. Fiquei devedor à tua avó de muitas
refeições e histórias antigas que enriquecem uma vida. Aquela pouca ajuda que te puder dar, devo-ta.
O professor Benito era um bom homem. Vivia fora do tempo, no seu mundo povoado de personagens literários com os quais entretecia intermináveis conversas, como se fossem companheiros
de bar. Sabia de cor páginas inteiras do romance Promessi Sposi. Falava de Giovanni Verga e do seu Mastro don Gesualdo, perorava sobre Ca-puana e Pirandello. Amava Pascoli
e não perdoava a Carducci certas vaidades.
Mais cedo do que seria de esperar, o seguro que cobria o restaurante e a casa pagou o prémio e Maria passou a dispor de um discreto capital. Benito, que nunca tinha visto
tanto dinheiro junto, aconselhou-a a ir ter com o seu amigo Sante, diretor da Cassa Rurale ed Artigiana di Sala di Cesenatico, que lhe podia sugerir a solução mais vantajosa
para fazer render aquele dinheiro ao longo do tempo.
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O dinheiro que tinha no banco representou uma importante certeza e permitiu-lhe tomar decisões sobre o seu futuro. Chegou o dia em que Benito lhe perguntou:
- Estás inquieta. Há alguma coisa que eu possa fazer por ti?
- Não, professor. Só que chegou o momento de nos separarmos.
- Para onde queres ir? - perguntou-lhe. As suas únicas viagens tinham sido as etapas ensanguentadas da guerra. O seu horizonte acabava na praia e no Porto Canale.
- Quero ir para Bolonha. A Moretta, no verão passado, ofereceu-se para me receber - disse Maria, recordando o encontro com a filha do professor no campo de milho, numa tarde
dourada que lhe parecia distantíssima.
O professor Benito torceu entre os dedos os pelos compridos de uma sobrancelha.
- A minha filha - começou - é uma rapariga estranha, que eu não consigo decifrar. Olha, eu sei muito bem que nela, para além do meu sangue da Romagna, corre também um misterioso
sangue africano. A minha mulher, que Deus a tenha, eu amei-a, mas nunca a compreendi. Na sua mente havia zonas sombrias e impenetráveis. Ainda dizem que somos todos iguais,
todos filhos de Deus. Mas somos muito diferentes, acredita. A minha Moretta não é branca, não é negra, é qualquer coisa que eu não sei definir. Por isso não sei se seria boa
companhia para ti, que estás sozinha no mundo e não tens ninguém que te proteja. E depois gostava que tu refletisses numa perspetiva diferente. Por exemplo, já pensaste naquilo
que queres fazer da tua vida?
- Não faço outra coisa, professor. Mas não encontro uma resposta. Por isso disse a mim mesma que se for para uma grande cidade, no meio de tanta gente desconhecida, provavelmente
vou conseguir também perceber o que quero - tentou explicar.
Na realidade, Maria estava ainda muito confusa. Desde que superara o trauma provocado pelo acidente que tinha destruído a sua família e tomara lentamente consciência daquela
dor profunda, sofria terrivelmente de solidão. Faltavam-lhe os longos diálogos com a avó, as algazarras com os pais, as discussões com os irmãos que, só agora percebia, eram
os pontos de referência seguros da sua vida.
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Faltava-lhe até o cheiro da cozinha, que detestava. Perguntava a si mesma: "Será que temos de perder as pessoas e as coisas para nos apercebermos do quanto as amamos?".
- Em Bolonha, posso arranjar trabalho num restaurante. Aprendi muitas coisas com a avó, muitos pequenos segredos - disse.
O professor Benito Morandi percebeu que Maria queria mesmo ir-se embora e, no fundo, sentiu-se aliviado. Ela permanecera ali em casa pouco tempo, mas a ele parecera-lhe uma
eternidade. A presença daquela jovem ainda que muito prestável e silenciosa, tinha perturbado o fluir lento e metódico da sua existência.
No dia seguinte, ao fim da tarde, Maria foi ao cemitério. A sua família estava reunida num grande túmulo. Havia uma placa de mármore que tinha gravada, em carateres negros,
uma única linha: FAMÍLIA GUIDI - DEZEMBRO 1972. Maria ficou ali, em pé, naquele dia frio de janeiro, envolvida por um nevoeiro denso, sem pensar nem rezar. Olhava para a lápide,
sabia que ali estavam todos os seus entes queridos, para sempre desaparecidos. Não podiam ouvi-la nem falar com ela. E, no entanto, continuava ali, imóvel, como se quisesse
extrair calor e afeto daquela pedra gelada.
- Ei, aí em baixo, olhe que eu vou fechar o portão. O que é que está a fazer? Quer passar a noite aqui dentro?
Era o guarda do cemitério, no cimo do caminho de terra gelada, que a chamava. Maria despertou daquele torpor e, depois de um último olhar ao túmulo, dirigiu-se à saída.
- Pensei que quisesse passar aqui a noite - repetiu o homem que, de longe, não a tinha reconhecido por causa do nevoeiro. Quando Maria passou ao lado dele, perdeu-se num balbuciar
confuso.
- Oh, meu Senhor, és a Maria! A Maria dos Guidi - exclamou, surpreendido.
Ela sorriu-lhe e ele ficou ainda mais confuso.
- Peço desculpa por ter gritado. Mas com este nevoeiro não se reconhece ninguém - justificou-se.
- Não se aflija, Agonia - replicou ela, tratando-o pelo apelido, que se adaptava bem ao discurso aflito do homem. - Não me tinha apercebido de que era tão tarde.
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Ele foi com ela até ao exterior do cemitério, depois de ter fechado o aloquete preso a uma grossa corrente.
- Bem, quando uma boa rapariga como tu se encontra de repente completamente só, lá deve ter algum motivo para estar confusa -consolou-a.
- Não vale a pena falar sobre isso. As coisas não mudam - rematou ela.
- Mas pode ajudar - insistiu ele. E acrescentou, enquanto caminhava ao lado dela: - Tu não estavas aqui, porque estavas no hospital. Mas veio toda a gente ao funeral da tua
família. O presidente da Junta e a vila inteira. Até fecharam as tabernas. Estava um fotógrafo do Carlino, jornalistas e até a televisão. E gente que vinha de Cesenatico e
de Forli. Até estava a Especialista com o filho, o Mistral.
Ao ouvir aquele nome, Maria ficou rígida. O homem estendia-se nos pormenores daquela cerimónia com pompa e circunstância, mas ela já não o ouvia. Recordava apenas aquelas
palavras de Agonia: "... até estava a Especialista com o filho, o Mistral...". Não tinha voltado a pensar nele desde aquela trágica noite e agora, de repente, reencontrava-o
no recôndito lugar da sua dor. Porque tinha voltado? Para a ver? Porque a notícia da explosão o tinha perturbado? Ou simplesmente para visitar a mãe?
Tinham chegado à praça da povoação e Maria despachou Agonia e as suas conversas:
- Adeus e obrigada por me ter feito companhia até aqui.
Ele despediu-se com um discurso de circunstância que ela nem sequer ouviu. Chegou ao pequeno pátio da casa do professor, pegou na bicicleta e começou a pedalar no meio do
nevoeiro em direção a Cesenatico, sem se incomodar com o gelo que lhe queimava o rosto e as pernas. Quando chegou à casa de Adèle, na pequena Praça das Conservas, sentia o
coração na garganta. Encostou a bicicleta e bateu à pequena porta de madeira. Adèle recebeu-a com a aspereza habitual que, no entanto, deixava transparecer alguns laivos de
cálida familiaridade.
- Soube que esteve no funeral da minha família - começou Maria -, e queria agradecer-lhe.
- Entra - disse ela, chegando-se para o lado para que Maria pudesse
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entrar na cozinha, onde estava ligada a televisão e um aquecedor a querosene espalhava um calor agradável.
- Soube que o Mistral também lá esteve - prosseguiu Maria, que sentia pulsar as têmporas devido àquela brusca mudança de temperatura.
- Vou fazer um café. Apetece-te? - perguntou Adèle, que tinha já intuído onde Maria queria chegar.
- Se calhar! Estou transida de frio - agradeceu, aproximando-se do aquecedor.
Adèle estava de costas para ela a preparar o café no fogão. Maria encontrou coragem para proferir o que a tinha levado ali e prosseguiu:
- Gostava muito de ver o Mistral. E agradecer-lhe também a ele, é claro.
- Até eu, de vez em quando, gostava muito de poder vê-lo. Porém, desde que partiu, só voltou uma vez. Fui eu que lhe pedi para ir comigo ao funeral.
Adèle pousou diante dela uma chávena de café fumegante e um açucareiro.
- Não lhe falou de mim? - perguntou, baixando os olhos.
- Maria - disse Adèle, olhando para ela com severidade -, esse rapaz, quanto mais depressa te esqueceres dele, melhor. É tão difícil de agarrar como o ar. Não podes contar
com ele para nada. Consegues segurar o vento?
- Só queria saber se lhe falou de mim - insistiu.
- Não. Mas isso não quer dizer nada. Ele nunca me diz nada sobre as coisas dele. Sei que foi ao hospital quando tu estavas muito mal.
- Então, preocupou-se comigo - disse Maria, cheia de esperança.
- Ele pensa nos motores dele. Depois, se lhe sobrar tempo, até pode pensar numa rapariga. Toma o teu café antes que arrefeça.
Quando Maria se foi embora, levava no bolso do casaco a direção da casa onde Mistral estava hospedado. Adèle tinha-lhe explicado que vivia num quarto mobilado, sem pretensões,
que não tinha telefone, mas que lhe poderia escrever.
Na manhã seguinte, com a mordedura do gelo que mortificava a infinita extensão dos campos, as casas e as pessoas, Maria
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despediu-se de Benito e entrou no comboio que, de Cesenatico, a levaria a Bolonha. Tinha com ela uma mala com pouca roupa comprada em saldo na única loja de Cannucceto. Moretta
Morandi esperava-a ao meio-dia. Mas, assim que chegou a Bolonha, Maria ligou-lhe da estação para a avisar de que, provavelmente, se ia atrasar algumas horas. E apanhou um
comboio para Modena.
Não se interrogou sobre a oportunidade daquela decisão. Agia por instinto. Se Mistral tinha tido a necessidade de a procurar quando acontecera aquele acidente, significava
que ainda pensava nela.
A casa de Mistral ficava mesmo perto da estação.
Era um edifício com algumas pretensões de elegância, com cinco andares e um porteiro que tinha um ar de mastim napolitano.
- Procuro o Sr. Vernati - disse Maria, sem querer expor-se muito. Ele dirigiu-lhe um longo olhar desconfiado antes de responder.
- E a menina, quem é? - perguntou, com um tom severo.
- Aquilo que vê - respondeu Maria, com igual severidade. - Uma pessoa que pergunta pelo Sr. Vernati.
- Ele sai de manhã cedo e regressa a casa já de noite. Agora está a trabalhar - replicou.
Passava pouco do meio-dia e ela considerou que uma tarde inteira, ali fora, à espera dele, seria insustentável para quem quer que fosse.
- Sabe onde trabalha? - indagou.
- Eu sei, mas não posso dar informações a estranhos.
Aquela desconhecida tão bonita, tão triste, tão cheia de frio, não o fazia pressagiar nada de bom para aquele rapaz que ele mal conhecia, apesar de viver naquela casa há vários
meses. E se fosse uma jovem que Mistral tivesse deixado com problemas?
Maria, que não era estúpida, percebeu que se queria obter alguma informação devia, antes de mais, descer do pedestal.
- Ouça, venho de Cesenatico. Tenho uma coisa para ele da parte da mãe - mentiu, apontando para a mala. A mentira funcionou.
- Então são conterrâneos - disse o porteiro, mais compreensivo.
- Sim. E também estou com pressa, porque daqui a uma hora tenho de apanhar o comboio para Bolonha - acrescentou, para ser mais convincente.
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- Nesse caso - cedeu o homem -, encontra-o ali em baixo, ao fundo da rua. Há uma espécie de bar-leitaria. Costuma comer ali, no intervalo do almoço. A oficina onde trabalha
é mesmo em frente, junto à linha do caminho de ferro.
Maria despediu-se apressadamente e dirigiu-se ao local indicado. Era um espaço cheio de fumo e de vozes, para clientes pouco exigentes. Olhou em volta, passando em revista
todos aqueles rostos desconhecidos. Depois viu-o. Estava sentado a uma mesa de canto, ao lado de uma janela. Encontravam-se outros homens com ele. Mas Mistral estava agarrado
a uma rapariga morena que olhava para ele com ar de adoração. Maria achou-a bonita, apesar da maquilhagem pesada, e odiou-a, porque Mistral tinha um braço em volta dos ombros
da rapariga e tinha todo o ar de estar muito interessado nela.
Aproximou-se dela uma mulher robusta que trazia um avental sujo. Perguntou-lhe se queria comer.
- Não. Agora não - respondeu Maria, atrapalhada. - Talvez volte mais tarde.
Saiu para a rua varrida por aquele vento frio e dirigiu-se à estação. De repente, a mala pareceu-lhe pesadíssima e tinha os olhos cheios de lágrimas.
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O comboio chegou a Bolonha ao início da tarde. Maria desceu e foi imediatamente abalroada por uma multidão de passageiros apressados e cheios de frio: grupos ruidosos de rapazes
e raparigas, pessoas que transportavam malas e embrulhos de todos os tamanhos e feitios, crianças desesperadas e chorosas agarradas aos casacos das mães, funcionários que
pediam passagem a todo o momento, a zigue-zaguear por entre a multidão, com os carrinhos elétricos carregados de bagagens.
O altifalante anunciava continuamente chegadas e partidas de comboios. Reinava uma grande confusão e estava muito frio.
Maria lembrou-se dos formigueiros nos campos em volta da casa. Quando era criança, passava horas a demolir a pequena montanha em volta do ninho para pôr a nu os ovos brancos
das gerações futuras, lançando o caos entre os tenazes habitantes que, pressionados pela ponta de um pau, trepavam, com raiva e determinação, pela terra removida à procura
de um lugar onde pudessem reconstruir uma nova sede.
Maria olhou em volta, ansiosa. Não sabia se havia de se dirigir à saída ou ficar por baixo da pala. Sentia-se muito desconfortável no meio de todos aqueles rostos desconhecidos.
Procurava um ponto de referência que a fizesse sentir-se menos só e desesperada. De Modena tinha ligado a Moretta para lhe comunicar a hora da sua chegada.
- Eu vou buscar-te à estação - garantiu-lhe.
Mas, entretanto, não a via. A plataforma esvaziou-se e ela, com a sua mala de couro sintético na mão, começou a descer os degraus da passagem subterrânea para se dirigir à
saída. Parou em frente
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à pequena praça, à procura do rosto da amiga. Maria vestia um sobretudo de corte militar, tinha os lindos cabelos ruivos cobertos por um cachecol de lã, e ostentava a expressão
triste e assustada de quem não sabe para onde ir.
Tinha construído para si mesma o mito da grande cidade através das histórias da gente de Cannucceto e pintara-o com as cores de uma aventura maravilhosa. Agora que, finalmente,
o sonho se tinha realizado, a única cor que dominava sobre tudo era o cinzento dos momentos piores. A intensidade do trânsito acentuava a sua sensação de angústia. O cheiro
nauseabundo do gás libertado pelos tubos de escape picava-lhe a garganta, provocando-lhe uma tosse seca e irritante. Havia um grande hotel, do outro lado da rua, mas não tinha
o ar luxuoso descrito pelas clientes do salão de Wanda. Parecia-lhe triste e sórdido. Nunca teria a coragem de ali entrar sozinha, apesar de não lhe faltar dinheiro para isso.
Surgiu-lhe na memória, prepotente, a imagem da avó Gianna. Recordava as suas sugestões e os seus conselhos que, quando ela ainda era viva, se tinha obstinado em não seguir
e que agora, pelo contrário, tinha a certeza disso, a iriam ajudar a superar aquele momento difícil. Dois homens, de intenções inequívocas, fitavam-na insistentemente e giravam
em volta dela com uma agressividade contida. Maria continuou imóvel, a fingir indiferença, com a mala pousada aos seus pés.
Vieram-lhe à ideia as palavras da avó: "As pessoas são iguais em todo o lado. Mas uma coisa é certa: quanto maior é o sítio, maiores são os pecados". Não era a ideia do pecado
que a preocupava. Naquele momento, apercebia-se de que, se não encontrasse rapidamente uma solução, ia arranjar grandes problemas.
No preciso momento em que começava a sentir-se traída pela amiga, viu avançar ao encontro dela uma mulher jovem, bonita e muito elegante. Tinha os cabelos lisos apanhados
na nuca num chignon macio e vestia um casaco de corte masculino, aberto sobre um saia-casaco cinzento impecável. Calçava sapatos baixos, muito bonitos. Os traços eram inequivocamente
os dela: era a sua amiga que vinha ao seu encontro, uma Moretta tão diferente da rapariga que tinha encontrado no verão anterior, no campo de milho atrás da casa. Abriu-se-lhe
o coração. Sorriu, por sua vez, e correu ao encontro
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dela. Abraçaram-se, e logo se desvaneceram os medos, os pensamentos sombrios, a solidão.
- Desculpa o atraso - disse Moretta. - Fiquei presa no trânsito. Está tudo bem? - perguntou-lhe, afetuosa.
- Agora está - respondeu Maria, com um suspiro de alívio.
- E antes? - perguntou a sorrir.
- Estava desesperada - confessou, com a inocência de uma criança.
- Então vamos depressa para casa. Aqui gela-se - sugeriu Moretta, ao mesmo tempo que avançava à frente dela em direção a um Mercedes cor de nata. O automóvel, quente como
um ninho, tinha os assentos em pele branca. Mais do que entrar num automóvel, Maria teve a sensação de entrar num sonho. Sentiu o perfume do bem-estar e foi envolvida por
uma tepidez que lhe acariciou o corpo e a alma. Gostaria de dirigir a Moretta todas as perguntas que tinha em mente, mas não teve coragem de o fazer, intimidada com a amiga
que já não mostrava a aparatosa exuberância de outros tempos.
- Porque foste a Modena? - perguntou Moretta.
- Queria voltar a ver um rapaz de Cesenatico.
- Era assim tão importante que justificasse uma viagem?
- Para mim, era.
- E agora?
- É muito menos - concluiu tristemente Maria.
O Mercedes avançava lentamente no trânsito da hora de ponta.
- Mas ao menos encontraste-o? - insistiu Moretta.
- Sim. Estava com outra.
- Um clássico.
- O que é que dizes? - perguntou Maria, espantada.
- Acontece sempre isso - garantiu Moretta.
- Queres dizer que os homens são todos iguais?
- Em certo sentido. Uma mulher espera sempre pelo homem que ama, com o coração cheio de amor e de devoção. Depois vai à procura dele, e encontra-o na cama com outra.
- Palavras sagradas - comentou Maria, com grande solenidade.
- Mas tu a que ponto chegaste com ele? - insistiu.
- Até ao máximo. Amava-o.
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- Então foste para a cama com ele - concluiu Moretta.
- Isso não - replicou Maria, energicamente. - Mas dediquei-lhe todos os meus sonhos e os meus pensamentos. Não te parece o máximo?
Moretta sorriu perante a ingenuidade da amiga.
- Deste muito, mas não tudo. De qualquer maneira, o sofrimento toca-nos sempre a nós, às mulheres.
- Não me apetece falar mais sobre isso. Não faz sentido, nunca mais será como antes.
A amiga anuiu. Maria observava, espantada, a forma como ela se movimentava com naturalidade naquele trânsito, e sentia-se bem ao lado daquela mulher forte e decidida a quem
podia confiar as suas desilusões. Atravessaram a ponte sobre o Reno e entraram numa estrada que seguia para a colina, na direção do santuário da Madonna di San Luca. Viraram
numa alameda de grandes plátanos e chegaram a um caminho de saibro que terminava em frente a uma villa relativamente modesta, em comparação com as outras moradias dos arredores.
Podia ser uma construção dos anos 50, com algumas pretensões a elegância. Era rodeada por um vasto jardim, iluminado no crepúsculo incipiente. Lampiões opalescentes difundiam
uma luz espetral.
- Chegámos - disse Moretta.
Maria saiu contrafeita daquele automóvel onde se sentia tão bem.
- Vou meter o carro na garagem - anunciou a amiga.
Maria esperou alguns minutos por ela e depois, juntas, subiram os degraus que davam acesso à porta da entrada. Veio abrir uma empregada de avental azul. Era de pele escura,
como Moretta, e tinha o aspeto de uma robusta dona de casa.
- Boa noite, minha senhora - disse a mulher, com uma voz melodiosa, dirigindo-se a Moretta.
- Casaste-te? - sussurrou Maria à amiga.
- Não digas disparates - respondeu Moretta, em surdina, para evitar ser ouvida pela empregada. Depois fez as apresentações: - Esta é a Celina - disse -, ajuda-me a manter
a casa em ordem - acrescentou. -E esta é a minha amiga Maria.
- Bem-vinda, menina Maria - repetiu Celina, enquanto se
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apoderava energicamente da mala da hóspede. Depois ajudou-a a libertar-se do casaco e do cachecol, enquanto Maria olhava em volta, embasbacada com os mármores e com os espelhos
distribuídos no vestíbulo com um sapiente equilíbrio. Um grande tapete cobria quase todo o pavimento. Uma escadaria levava ao andar superior.
- A menina vai já para o seu quarto? - perguntou Celina.
- Não, antes vamos tomar um chá, na salinha - disse Moretta, ao mesmo tempo que abria uma porta.
Entraram num pequeno aposento iluminado pelo fogo de uma lareira acesa. As paredes eram revestidas de madeira clara, que combinava na perfeição com o tecido de motivos florais
azuis e ramagens verdes das poltronas e de um pequeno sofá. A um sinal de Moretta, Maria deixou-se cair, exausta, numa das poltronas e observou os seus sapatos grosseiros,
com sola de borracha pesada, pousados naquele tapete macio. Sentiu-se completamente deslocada naquele ambiente tão refinado. A única coisa que conseguiu dizer foi:
- Eu, realmente, preferia, em vez do chá, uma grande chávena de café com leite, com sopas de pão. E não me importava de a tomar na cozinha.
Liam-se-lhe no rosto o desconforto e o cansaço.
- Tudo bem, vamos ao café com leite na cozinha - aceitou Moretta. - Quanto à tua pergunta de há pouco, não sou casada. A Celina trata-me por senhora da mesma maneira que chama
duquesa à minha gata. Mais perguntas? - pediu, ao mesmo tempo que, através de um corredor de serviço, a conduzia a um grande aposento branco e azul, brilhante de tão limpo.
A Maria pareceu-lhe que entrava na cozinha da sua casa, mas sem o cheiro entranhado da comida.
- Nunca cozinham aqui dentro? - perguntou.
- A Celina não gosta de cozinhar. Quanto a mim, almoço quase sempre fora - explicou a amiga, ao mesmo tempo que abria um enorme frigorífico. Pegou num pacote de leite e pediu
à empregada para preparar o café.
Pousaram em cima da mesa duas grandes chávenas de porcelana branca e as duas amigas ficaram finalmente a sós, a saborear aquele café com leite quente que conservava intacto
o sabor da infância de ambas.
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- Há anos que não jantava café com leite. Tinha-me esquecido de como era bom - exclamou Moretta.
- Eu estava com uma fome selvagem. Agora estou decididamente melhor - replicou Maria.
- Estás cansada? - perguntou Moretta, preocupada.
- Um pouco, mas não tanto que renuncie à curiosidade. Quero saber tudo de ti.
A amiga sorriu e não respondeu.
- E o que é que dizes a um banho quente? - propôs.
- Se calhar!
- E um sono como Deus manda?
- O que é que eu posso pedir de melhor?
- Então, força, vamos começar pelo banho - concluiu Moretta, ao mesmo tempo que se levantava.
Maria inclinou a cabeça e continuou sentada.
- O que foi? - perguntou a amiga, preocupada.
- Talvez me tenha comportado com excessivo à-vontade - disse.
- Porquê?
- Fiz-me praticamente convidada e tu escancaraste-me as portas deste palácio. Como é que eu vou poder pagar isso?
- Não digas disparates. Crescemos na mesma aldeia. Andámos na escola juntas. Já para não falar da desgraça que te pôs a vida de pernas para o ar.
- Pois, a desgraça - repetiu Maria, baixinho. - Nunca mais volto à Romagna - murmurou, enquanto os olhos se lhe enchiam de lágrimas.
- Estás cansada - tentou consolá-la Moretta.
- Mas nunca mais volto à Romagna.
- Deixa passar algum tempo antes de tomares decisões - sugeriu a amiga.
- Tenho meios para viver e posso procurar um emprego com calma. Tu vais ajudar-me, não vais?
Havia um silêncio absoluto em volta delas. Ouviam-se distintamente o tiquetaque de um relógio de parede e o zumbido surdo do frigorífico.
Moretta acariciou-lhe os cabelos.
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- Mandei preparar para ti o apartamento por cima da garagem. Devia ser a casa do guarda, mas não há guardas. É confortável. Vais ficar ali lindamente, durante todo o tempo
que quiseres.
- Estás a dizer-me que nesta casa enorme não há um lugarzinho para mim? - perguntou Maria, espantada.
- Há lugar para toda a gente, mas não para uma rapariga como tu - replicou a dona da casa.
- Como é que eu sou? - perguntou Maria, estupefacta e um pouco contrariada.
- És inocente, é isso que tu és. Mas eu já não sou - replicou Moretta, sem levantar a voz, sem se alterar. Maria ficou gelada.
- Estás a brincar? - sibilou Maria.
- Nunca falei tão a sério.
- Então porque é que aceitaste acolher-me aqui?
- Talvez porque vi em ti a rapariga que eu era quando parti de Cannucceto para vir para Bolonha. Se eu pudesse voltar atrás, acho que ainda estava a viver com o meu pai. Talvez
fosse professora também. Como ele. Mas só arranjei confusões.
- Não acredito, não pode ser verdade - protestou Maria. - Eu vejo uma mulher esplêndida, rica, fascinante - afirmou com convicção.
- Aparências. Só aparências. Não sou um exemplo a imitar. Nem, como tu julgas, um pilar em quem alguém se possa apoiar.
Tinha os olhos brilhantes e a voz quebrada pela comoção.
- Mas quem és tu, então? - perguntou Maria, desorientada.
- Sou uma prostituta - confessou Moretta, olhando-a nos olhos.
- Queres dizer que andas nos passeios a chamar os homens?
- Pior. Tenho raparigas que trabalham comigo e para mim. Somos prostitutas de alta-roda. Os homens com quem andamos são tipos importantes. Nem imaginas quanto. Até tenho um
escritório em Bolonha, Relações Públicas, precisamente.
Moretta desatou a chorar como uma criança e foi Maria quem a recebeu nos braços.
- Conta-me tudo, Moretta - sussurrou-lhe lentamente, mantendo-a abraçada.
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As duas amigas sentaram-se num sofá confortável e Moretta começou a contar, com calma e precisão, tudo o que tinha acontecido naqueles anos.
Logo depois de ter conseguido o diploma, começou a passar em revista, sistematicamente, os anúncios publicados no Carlino. Tinha pressa em fugir da aldeia. Era uma professora
primária, mas não queria seguir as pisadas do pai. Não tencionava sacrificar a sua juventude, dedicando-a a um bando de crianças. Entretanto, tinha-se aproximado da escola,
para fazer a vontade ao pai, e Benito apresentou-a aos colegas, cheio de orgulho.
- Esta é a minha filha, que vai continuar a tradição da família.
Os colegas olharam-na com altivez e sorriram. O contínuo, Osvaldo Marini, aconselhou a jovem a não confiar neles e declarou-se disposto a dar-lhe uma mão se as suas "avaliações"
lho permitissem. Nunca ninguém se tinha preocupado em saber o que eram, na realidade, e ela acabaria por partir de Cannucceto sem saber exatamente a que se referiam aquelas
"avaliações", que tanta importância tinham na história do contínuo e da escola.
- É um ninho de víboras, esta escola, minha querida menina. Se não fossem as avaliações, ainda seria pior - repetia-lhe Osvaldo Marini.
Quando soube que a sua máxima aspiração era ir para Milão, ou para Bolonha, ou para qualquer outra cidade, sorriu-lhe paternalmente e disse-lhe em dialeto:
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- Não vais encontrar nada de bom em Milão ou em Bolonha. Porque aqui há tudo aquilo que há nos outros sítios. As casas hollywoodianas também nós as temos, temos os maricas
e as prostitutas. Dito isto, se decidires ir embora, avisa-me. Se as avaliações mo permitirem, vou visitar-te.
Entretanto, Moretta ia lendo, no Resto di Carlino, os pequenos anúncios, à procura de um emprego. Enviava cartas atrás de cartas e esperava ansiosamente a chegada do carteiro.
O pai, Benito, que seria capaz de qualquer sacrifício para a fazer feliz, apercebia-se da inquietação da jovem e desejou, por fim, que a sua filha "branca e negra" arranjasse
uma solução digna para o seu problema.
- Procura espaços para o teu voo - dizia Benito -, mas lembra-te de que o céu está cheio de gaviões sem piedade, e o mundo está povoado de figuras sórdidas, prontas para atacarem
os mais fracos.
Quando finalmente recebeu a convocatória de uma empresa para uma entrevista, Moretta saltou de alegria e Benito soltou um profundo suspiro de alívio. A carta trazia um cabeçalho
lindíssimo: Alma - Instituto de Beleza - Via Massimo dAzeglio 17, Bolonha.
- Queres mesmo ir? - perguntou Benito.
- É a coisa que mais desejo no mundo.
- Então espero bem que te contratem - concluiu o pai, que preferia sabê-la feliz em Bolonha do que desesperada em Cannucceto.
Moretta abraçou-o com força, esperando que a poupasse ao habitual sermão paternal.
- Comporta-te sempre bem - começou Benito.
- Sim, pai.
- Comporta-te com honestidade. Se tiveres respeito, antes de tudo, por ti mesma, também os outros te respeitarão. Se alguma coisa correr mal, tens aqui a tua casa à tua espera...
Comporta-te de forma a que eu possa sentir-me sempre orgulhoso de ti.
Moretta despediu-se com todo o amor que tinha no coração por aquele pai um pouco distraído e sonhador, que carregava no nome a escolha política do avô, um fascista participante
da Marcha sobre Roma. Benito, por sua vez, não tinha predileções políticas particulares. Era um homem honesto e generoso. Moretta prometeu-lhe solenemente que nunca faria
nada de que ele tivesse de se
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envergonhar. Benito acreditou nela e repeliu o nó que lhe apertava a garganta.
- Manda-me notícias tuas - disse, no momento da separação. - Isto é para ti - acrescentou, entregando-lhe um exemplar do Pinóquio, o livro que, segundo ele, continha todo
o saber do mundo, todos os preceitos que podiam, quando bem aplicados e escutados, poupar os jovens a experiências perigosas.
Moretta pegou no exemplar e agradeceu-lhe, mas estava a viver aqueles anos da vida em que não se aceitam os Grilos Falantes. Voava no espaço despreocupado dos sonhos e da
aventura.
Em Bolonha, atirou-se de cabeça ao trabalho e aprendia rapidamente. Alma, a dona do instituto de beleza, apreciava a tenacidade e a determinação daquela rapariga, que tinha
uma inteligência decididamente brilhante.
- Estou contente contigo - confiou-lhe Alma. - Mas tenta ser menos acelerada. As energias não são inesgotáveis.
- A verdade é que eu me divirto - respondeu Moretta.
- Com efeito, nós, as da Romagna, somos mulheres especiais. Eu venho de SantArcangelo. Quem havia de dizer que um dia ia ter entre as minhas clientes as senhoras mais badaladas
de Bolonha?
Alma era uma das profissionais mais estimadas do setor. Ia a Paris duas vezes por ano, para fazer um curso de atualização no salão Carita.
- Eles penteiam a Soraya, a ex-imperatriz da Pérsia, a irmã do Xá e a Taylor também. Imagina que até lá encontrei o Richard Burton. Estava a um canto, a beber whisky, à espera
da sua imprevisível Elizabeth - contava Alma.
Quando regressava de Paris com as últimas novidades, as clientes tomavam-na de assalto para experimentar os novos penteados, os novos produtos, e para conhecer os mexericos
da ville lumière. Moretta tinha ouvido louvar também os dotes de Miranda Maestri que, com o seu instituto de beleza em Milão, na central via Montena-poleone, tinha conquistado
as clientes de maior prestígio, incluindo Raffaella Carrà e Giuliana De Sio. Diretoras de jornais, mulheres de jornalistas famosos e de grandes editores passavam pelo seu
instituto antes de enfrentar um compromisso mundano. Moretta trabalhava,
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escutava, e prometia a si mesma tornar-se numa pessoa importante. Aprendia a profissão de Alma, que tinha orgulho nela. Muito melhor do que ensinar as crianças de Cannucceto
e ganhar as "avaliações" de Osvaldo Marini, o inefável contínuo!
Naquele período, Moretta dormia num quarto mobilado, alugado em San Lazzaro di Savena, que partilhava com a empregada de uma sapataria. Economizava no alojamento, nas pequenas
despesas, em tudo, para pôr de lado a quantia suficiente para abrir um dia uma atividade própria. Calculava que, para dar o grande salto, precisaria de dez anos. Sonhar fazia-lhe
bem. Os pretendentes eram atraídos pela sua beleza exótica como as moscas pelo mel. Também isso era uma descoberta exaltante para ela porque, na aldeia, tinha vivido a diversidade
da sua pele com um sentimento de frustração. As suas histórias de amor eram repentinas, totais, e oferecia ao homem do momento todo o seu ser, sem fingimentos e sem dramas.
Quando acabava por saber que tinham namorada ou eram casados e com filhos, passava ao seguinte. Considerava os seus namoros como parêntesis agradáveis e excitantes que não
a prendiam demasiado.
Depois de um certo número de experiências, começou a pensar que a sua disponibilidade não era um bom método para construir uma sólida vida sentimental, mas concluiu que isso
não lhe importava nada. No entanto, a certa altura teve uma história de amor com um homem que, pela primeira vez, a fez desejar o casamento. Por isso, falou-lhe daquela remota
eventualidade.
- Nunca me vou casar, porque as mulheres são todas umas putas -declarou ele.
- Com a tua mãe à cabeça - provocou-o Moretta, ofendida e humilhada. Acabou à estalada. E ela ficou a perder.
Depois conheceu Rocco Liguoro, o sujeito que estava com ela quando Maria os encontrou no campo junto à casa da sua família. Era um presunçoso, armava-se em duro, mas com ela
era dócil como um gato apaixonado. Vinha da Catânia e trazia sempre os bolsos cheios de dinheiro. Era um comerciante e tinha, na via Ugo Bassi, um estabelecimento onde vendia
tapetes e alcatifas. Andava num BMW com ar condicionado e ajudara-a a arranjar um apartamento na cidade. Moretta tinha aprendido à sua custa que, pelo menos para uma
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mulher livre como ela, falar de casamento nem sempre era aconselhável. Esperava pelos acontecimentos. Já não sonhava com o amor de uma vida, mas empenhava-se para se tornar
eficiente e importante como Alma. Tinha percebido que quando uma pessoa faz um trabalho de que gosta e ganha o suficiente para viver, já resolve grande parte dos seus problemas.
Se o grande amor chegar, muito bem; se não o encontrar, ainda melhor. Um homem para lhe aplacar os assomos de desejo, Moretta encontrava-o com facilidade. Tinha acabado o
tempo da vergonha, e o ano de 68 não tinha passado em vão. Com a sua sabedoria camponesa, evitava, no entanto, comunicar a Roço estes pensamentos secretos. Porque o mundo
tinha mudado, mas os companheiros que se tinham sucedido ao seu lado pareciam não ter dado conta disso: eram ciumentos, egoístas e vingativos.
Depois aconteceu um facto extraordinário. Alma mandou-a a casa da condessa Marianna Gruther, uma senhora de Zurique, mulher de um banqueiro que dividia a sua vida entre a
Suíça e a Itália. Em Bolonha, Marianna tinha amigos e parentes e ia lá muitas vezes, porque era a sua cidade. Gruther era o apelido do marido, ela chamava-se Grosoli e descendia
de uma família de ricos proprietários de terras. Ia dar uma receção com convidados importantes e quis ser penteada em casa por Moretta, que sabia executar para ela penteados
extraordinários, sabendo fazer realçar a sua beleza que já esmorecia. Moretta teve acesso ao quarto da nobre senhora, a quem uma ligeira constipação impedia de sair, e elaborou
para ela uma autêntica obra de arte.
- Quando abrires um salão só teu, vou ser a primeira das tuas clientes - prometeu-lhe. - E tu bem sabes - acrescentou, com uma ponta de elegante coqueteria - que onde eu for,
vão todas.
- Então desejo uma longa vida à senhora condessa - brincou prontamente Moretta. - Infelizmente, essa meta ainda está muito longe.
- É verdade que desejas isso? - insistiu Marianna.
- Mais do que qualquer outra coisa neste mundo.
- De quanto precisas? - perguntou o conde Gruther, que tinha entrado no quarto para admirar a mulher.
- Para abrir um estabelecimento? - perguntou Moretta. O banqueiro anuiu.
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- É preciso uma fortuna - estremeceu Moretta.
- O que queres dizer com isso? - indagou ele, a sorrir.
- Segundo os meus cálculos, entre licenças, aluguer e despesas várias, chegamos aos vinte milhões. - Tinha feito e refeito aquelas contas centenas de vezes.
O conde Gruther, um belo homem dos seus 60 anos, abanou a cabeça e preparou-se para sair. Depois pensou melhor, parou à porta e, olhando-a bem nos olhos, disse:
- Amanhã de manhã apresenta-te no Banco Comercial. Pergunta pelo Dr. Santarini.
- E depois? - balbuciou Moretta.
- Vais ao seu gabinete, fazes-lhe uma boa vénia e dizes-lhe aquilo de que precisas.
- Vai chamar os guardas e internar-me num manicómio - concluiu Moretta, incrédula.
- Experimenta, de outro modo nunca vais saber.
- Sabe que, se for uma brincadeira, eu até posso morrer por causa disto? - implorou.
- Faz como eu te disse. - O homem, habituado a manusear biliões, considerava a quantia pedida pela rapariga um modestíssimo investimento.
- E se ele for suficientemente doido para me dar estes milhões todos, como e quando é que eu lhos vou restituir?
- Como e quando quiseres. Moretta olhou para o banqueiro com um ar perplexo.
- Onde é que está o truque? O homem deu uma gargalhada sonora.
- É um presente que eu dou à minha mulher. Tu não tens nada a ver com isso e não há truque nenhum. Ela quer uma cabeleireira de confiança, e eu quero uma mulher feliz.
No dia seguinte, Moretta contou tudo a Alma.
- Aprendi cedo a não acreditar em fábulas - disse a rapariga, depois de ter relatado com todos os pormenores a história que podia mudar a sua vida. - O que é que eu devo fazer?
- perguntou.
- Falo contra o meu interesse, minha menina, mas garanto-te que se não agarras já esta fantástica oportunidade eu encho-te a cara de
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bofetadas. A sorte só chega uma vez na vida, e, por vezes, de uma forma tão discreta que nos arriscamos a nem dar conta.
Começou uma nova vida, um período extraordinário. O Dr. Santarini recebeu-a como a uma rainha e, naquele mesmo dia, entrou na posse da quantia pedida. O sonho estava a tornar-se
realidade. Depois de muitas pesquisas, encontrou um apartamento espaçoso num antigo edifício na via dell'Orologio. Todas as empregadas de Alma manifestaram a sua disponibilidade
para a acompanhar naquela nova aventura, mas Moretta não quis criar problemas a Alma que se tinha revelado uma amiga e que lhe tinha ensinado os truques da profissão. Encontrou,
aqui e ali, ótimas profissionais. Trabalhou noite e dia e, ao fim de poucos meses, geria o mais moderno centro estético de Bolonha. A condessa Gruther manteve a promessa.
Foi a sua primeira cliente e aquele irresistível atrativo constituiu a mais eficaz campanha publicitária. Até ao fim do ano, se as contas estivessem certas, Moretta poderia
começar a restituir o capital que recebera de empréstimo.
Porém, quando tudo parecia correr da melhor maneira, ocorreu um facto que ensinou a Moretta o quanto podem ser perigosos os imprevistos da vida. O destino diverte-se a criá-los,
fazendo-os sair como raios de uma nuvem tempestuosa. O acaso pode ser como um vândalo perigoso que destrói tudo aquilo em que toca.
Uma manhã de verão, com uma grande antecipação sobre o horário de abertura, Moretta caminhava, feliz, em direção ao seu estabelecimento. Aproximou-se do quiosque da piazza
Maggiore e o seu olhar foi atraído pela primeira página do Resto di Carlino. Era um título que dava nas vistas: marianna e saverio gruther morreram num
ACIDENTE AÉREO DURANTE UMAS FÉRIAS EM ÁFRICA.
Foi como se uma pancada a tivesse atingido em plena testa. Poucos dias depois, chorava todas as suas lágrimas nos braços de Alma.
- Os herdeiros reclamam a imediata restituição do empréstimo -soluçou.
- Tentaste falar com eles?
- Não faço outra coisa desde o dia do acidente.
- E eles?
- Não querem ouvir argumentos.
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Tinha um problema do qual só podia livrar-se fechando ou cedendo a sua atividade.
- Voltas a trabalhar comigo - sugeriu Alma de imediato.
- Obrigada, mas o problema não é esse. O facto é que eu não quero perder a minha grande oportunidade.
- Haverá outra - tentou ela consolá-la.
Moretta estava um farrapo. Pensou nas cartas enviadas ao pai, nas quais se gabava dos seus sucessos profissionais. Sabia perfeitamente que com o pai não perderia a face, mas
para a gente da aldeia aquela situação tornar-se-ia pretexto para se rirem dela e do seu sonho desfeito.
Passou em revista todas as possibilidades que, de uma maneira ou de outra, lhe permitiriam salvar a sua empresa. Quando frequentava o curso para esteticistas, em Rimini, tinha
criado alguns laços de amizade com uma das professoras. Era uma mulher brilhante, ativa e inteligente. Dirigia uma fábrica de cosméticos. Depois das aulas conversavam como
velhas amigas e a professora contara-lhe que, havia já vários anos, o marido a tinha abandonado. Quando ele a deixara ela ficara sem um tostão, e arranjara um emprego como
representante de essências e perfumes. Dava a volta a toda a Itália. Triturava quilómetros em sujas e fétidas carruagens de segunda classe. O ganho dependia das vendas que
conseguia fazer. Tinha sido um bom período, que lhe permitira assinar muitas letras para mobilar a casa. Depois, seguira-se um período negativo em que se encontrou desequilibrada
e sem poder pagar algumas letras. Ficaram-lhe apenas os olhos para chorar.
Um dia, num comboio, partilhou com um passageiro bem-vestido e de ar distinto todas a suas amarguras. Ele, mantendo-a apertada num abraço paternal, sussurrou-lhe que, em troca
da sua disponibilidade, lhe poderia pagar uma das letras. Um verdadeiro senhor.
- E tu? - perguntou Moretta.
- Fui para a cama com ele. Uma letra paga com uma queca. Nem sequer sei como se chamava. Peguei no dinheiro, sem corar, e corri a salvar a mobília da penhora.
- Não te sentiste mal?
- Não, só cansada. Porque havia de me ter sentido mal? É mesmo
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verdade que nós, mulheres, vivemos sentadas em cima de uma fortuna convertível em dinheiro e não a usamos por causa destas histórias da honra e da moral. Sem contar que até
pode aparecer um tipo com quem possamos divertir-nos.
Moretta tinha amado muitos homens, mas nunca se tinha vendido. Pelo contrário, por vezes até a tinham aligeirado das suas poupanças. Claro, a moral e a honra podem ser incrivelmente
elásticas. Entretanto, continuava a atormentar-se na tentativa de encontrar uma solução para os seus problemas. Decidiu abordar o assunto com Rocco. Ultimamente aquela relação
tinha esmorecido, tanto que Moretta suspeitava que ele tivesse outra namorada. Mas não procurou confirmar a sua suspeita. Os problemas de trabalho que tinha não lhe permitiam
outro tipo de preocupações. De vez em quando, iam jantar à colina e depois passavam a noite juntos, mais por hábito do que por paixão.
- Que estúpida - censurou-a Rocco, afetuosamente, depois de ter escutado todos os pormenores da história. - Porque esperaste tanto tempo para falares comigo?
- Nem sequer sei porque o fiz - confessou Moretta, sinceramente.
- Vinte milhões não são nenhuma brincadeira, mas também não são o fim do mundo.
- Achas? - murmurou a rapariga, expondo-se a uma nova desilusão.
- Eu arranjo-te o dinheiro - disse Rocco.
- Tu? - perguntou ela, estupefacta.
- Eu. E já, se tu quiseres.
- Não brinques, Rocco, não é altura para isso.
- Se te digo que podes contar com a minha ajuda, deves acreditar em mim - garantiu.
- Como é que eu vou fazer para to restituir? - perguntou, enquanto o seu coração galopava, enlouquecido.
- Andamos juntos há tanto tempo, para nada? - admoestou-a Rocco. - Pensa no teu trabalho. Tens uma atividade de prestígio, bem orientada, com uma clientela importante.
- Não pensava que tu valorizasses o meu trabalho.
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- Mas estavas enganada. - Rocco fez uma pausa de alguns instantes. - Vamos pôr as coisas desta forma - continuou -, tu és uma amiga que precisa de um favor. E eu faço-to.
Quer isto dizer que, se um dia eu precisar de ti, tu me vais ajudar.
A conversa do favor a retribuir já Moretta a tinha ouvido, mas não podia dar muita importância a aspetos irrelevantes perante a proposta de salvar o seu negócio. Assinou rapidamente
alguns recibos porque, explicou-lhe Rocco, nunca se sabe. Resolveu a questão com os herdeiros através do banco e atirou-se mais uma vez de cabeça ao trabalho. No fundo, a
vida não era assim tão feia, e os amigos que julgamos mal podem revelar-se maravilhosos.
Uma noite, quando se preparava para fechar o estabelecimento e se despedia da última empregada, encontrou à sua frente Rocco Liguoro, com um ar transtornado.
Moretta beijou-o na face.
- Vamos tentar passar um serão alegre e repousante - sugeriu. O homem deixou-se cair numa poltrona e pousou no chão a pequena mala que transportava.
- Estou metido numa grande complicação - começou. Moretta sentiu um arrepio gelado percorrê-la.
- O que foi que aconteceu?
- Tudo.
- Conta-me. Estamos sozinhos, não está cá mais ninguém.
- É uma história demasiado longa e não íamos ter tempo. Tenho de partir imediatamente e preciso que me faças um favor.
- Fala, peço-te.
- Tens de guardar, longe dos olhos de toda a gente, esta mala, que eu venho buscar quando voltar.
- Como é óbvio, não posso saber o que contém.
- Exatamente.
- Tudo bem - disse ela.
Escondeu a mala numa arrecadação onde tinha o stock dos produtos e fechou a porta à chave.
Passaram-se alguns dias sem notícias de Rocco e ela sentiu uma grande vontade de abrir a mala misteriosa. // Resto di Carlino, que parecia ligado com um fio direto ao seu
destino, encarregou-se de
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lhe fornecer as últimas notícias sobre o homem que tinha em determinado momento salvado a sua empresa. A abertura da página local não deixava dúvidas: rocco liguoro morto
numa emboscada MAFIOSA. PARECE UM AJUSTE DE CONTAS ENTRE TRAFICANTES DE DROGA.
Chovia, e Moretta vestia um impermeável azul. Entornou por cima dela parte do cappuccino que estava a tomar num bar. O cliente que acabava de ler a notícia em voz alta tentou
ajudá-la, estendendo-lhe lenços de papel. Moretta balbuciou que não era preciso, que não tinha acontecido nada de grave, que com um pouco de água ficava tudo bem. Mas tremia
como varas verdes e estava aterrorizada. Comprou o jornal e leu o artigo todo. Foi a correr até ao estabelecimento e quis verificar se a mala ainda estava no sítio onde a
tinha deixado. "Acontece-me tudo", repetia para si, enquanto remexia com dedos nervosos no meio dos produtos.
Finalmente, encontrou-a. Muitas vezes se tinha interrogado sobre o conteúdo daquela maleta, e outras tantas vezes tinha estado quase a abri-la. Depois de ter lido o jornal,
que traçava uma breve, mas precisa, biografia de Rocco, sabia já perfeitamente o que continha e de onde provinha o dinheiro que Rocco manuseava com tanta desenvoltura.
Moretta abriu aquela mala inquietante e encontrou vários embrulhos bem confecionados em papel de jornal e fechados com fita adesiva. Pegou num, rasgou o papel e descobriu
um saquinho transparente. Parecia conter farinha, mas percebeu imediatamente de que substância se tratava.
- Droga - murmurou, ao mesmo tempo que o seu coração dava uma cambalhota. Permaneceu durante uns longuíssimos instantes com o saquinho na mão, enquanto pensamentos aterradores
se enredavam na sua mente.
Estava paralisada pela vergonha e pelo medo. Com um esforço, depois de ter voltado a fechar a maleta, saiu da arrecadação e entrou na casa de banho. Rasgou um saquinho atrás
do outro e despejou o conteúdo na sanita. Fez correr repetidamente a água, limpou a fundo qualquer possível vestígio daquela substância e fez desaparecer papéis e plásticos
no saco do lixo.
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No fim, estava exausta, mas achava que tinha feito a coisa certa. Nunca tivera nada a ver com a droga, portadora de desespero e de morte, e havia de arranjar maneira de nunca
mais se cruzar na rua com personagens como Rocco Liguoro. Chega. Acabou. Ela nunca tinha visto aquela mala. Rocco tinha morrido e a conversa estava acabada. Agora tinha de
apagar até a mais longínqua lembrança daquela história lamentável. Trabalhou ainda mais, e isso ajudou-a a reencontrar alguma paz. Quando a memória dos pacotes de droga surgia
de novo à sua frente, Moretta era assaltada pelo pânico. Então tentava controlar-se e dizia para si mesma:
- Já passou tudo. Se não me acontecer mais nada, posso considerar que até tive sorte.
Não teve sorte. Um dia apresentaram-se no seu estabelecimento dois senhores a perguntar por ela. Eram dois polícias.
Atormentaram-na com mil e uma perguntas para investigar quais tinham sido as suas relações com Rocco e o que sabia dele. Contou tudo. Só não disse uma palavra sobre a mala.
Foram-se embora ao fim de duas horas e mandaram-na ficar à disposição para uma eventual investigação mais aprofundada.
Moretta nunca tinha tido experiências anteriores com autoridades, mas quando acompanhou os agentes à porta achou que eles estavam convencidos da sua total ignorância relativamente
às atividades criminosas de Rocco.
Aquela impressão, porém, não afastou os pensamentos sombrios e o medo em relação àquela sugerida "investigação mais aprofundada". Atormentava-a um pressentimento terrível.
Todos os dias examinava escrupulosamente o jornal e lia atentamente tudo aquilo que ainda era publicado sobre o crime. Receava ser envolvida, não tanto por ela, porque em
certo sentido se considerava inocente, mas pelo pai. Pensava no professor Benito Morandi, na sua candura de estudioso de província, na sua infinita bondade, na retidão com
que tinha vivido todos os momentos da sua vida.
Caminhava pela rua e sentia-se seguida. Não sabia se quem a espiava era a polícia ou a sua má consciência. Finalmente, após alguns dias, recuperou uma certa tranquilidade,
de tal maneira que uma noite decidiu ir ao cinema. No Moderno estava um filme com Paul
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Newman, um ator de quem ela gostava, assim como apreciava também as histórias que ele interpretava. Esperava que o enredo a envolvesse a ponto de a fazer esquecer aquele medo
sempre latente. Sentou-se nas primeiras filas, as mais seguras para uma mulher sozinha. Porém, assim que as luzes se apagaram, um homem sentou-se ao seu lado. Ela encostou-se
ao braço oposto da cadeira, pronta para se afastar se ele a importunasse mas, antes que pudesse pôr em prática o seu propósito, o homem inclinou-se sobre ela e sussurrou-lhe
ao ouvido:
- Sou amigo do Rocco.
Moretta ficou petrificada de medo. As primeiras filas estavam praticamente desertas, e um diálogo sussurrado não podia ser ouvido por ninguém.
- Que Rocco? - tentou disfarçar.
- Nós conhecemo-la bem - disse o homem, com um tom de voz que não admitia réplicas -, melhor do que a menina conhecia o seu amigo. Vamos tratar de não perder tempo.
Moretta calou-se, fitando as imagens que passavam no ecrã. Na realidade, já não via nem ouvia nada. Captava apenas as palavras do homem, cortantes e gélidas. Podia gritar,
pedir ajuda, mas estava completamente dominada pelo medo.
- Agora, saia do cinema - ordenou o homem. - Siga pela via Rizzoli. Eu vou atrás de si. Aviso-a quando encontrarmos um sítio para conversar.
Moretta obedeceu automaticamente, aterrorizada pelo tom peren-tório da voz daquele homem, afiada e gélida como uma lâmina. Saiu, seguiu pela via Rizzoli, depois o homem aproximou-se
dela e deu-lhe o braço. Atravessaram a rua. Era setembro e o céu aprisionava a última luz. As ruas estavam insolitamente desertas, era hora de jantar. O homem abriu a porta
traseira de um carro estacionado e mandou-a entrar. Depois sentou-se ao lado dela.
- Vamos - ordenou ao motorista.
Moretta virou a cabeça e olhou para ele. Era bastante jovem e tinha um belo rosto mediterrânico, olhos e cabelos negros, e um sorriso brilhante e frio. Tinha imaginado um
rosto quadrado, um olhar turvo, uma boca cruel, mas o personagem que estava ao seu
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lado era ainda mais inquietante. Do condutor via apenas o pescoço de lutador, que formava um bloco com a nuca. Moretta começou a tremer convulsivamente.
- Onde me levam? - perguntou, articulando as palavras com dificuldade.
- Tem calma - ordenou o homem, que começou de repente a tratá-la por tu. - Só temos que dar dois dedos de conversa.
O automóvel avançava lentamente na direção da Fiera.
- Quero ir para casa - disse Moretta, tentando reagir.
- E nós queremos libertar-te - respondeu o homem, com um sorriso -, basta que tu nos restituas a maleta que o Rocco te entregou para guardares. E não me digas que ele não
te entregou nada, porque aí eu fico zangado. - Falava lentamente, separando bem as palavras. -Nós queremos aquela mala de volta. Quanto mais depressa nos deres a mala, mais
depressa ficas livre. Está claro?
Moretta, por um instante, pensou inventar uma desculpa. Se negasse, provavelmente iam massacrá-la à pancada. Se dissesse a verdade, também lhe iam bater, ou até pior. Não
havia escapatória e não lhe ia servir de nada inventar subterfúgios.
- Então, a malinha - insistiu o homem. - Tens a malinha?
- Sim, tenho - respondeu ela. - Mas está vazia.
- Vazia? - repetiu o homem.
- O conteúdo deitei-o na sanita - confessou Moretta, que tinha decidido dizer a verdade. A resposta foi imediata e violenta. Uma mão nodosa e pesada abateu-se sobre o seu
bonito rosto e um fio de sangue escorreu-lhe pelo lábio fendido.
- Vagabunda nojenta - sibilou o homem.
Ela sentiu uma dor lancinante no ouvido. Tocou-lhe e ficou com a mão molhada de sangue. Tinha a face em chamas e uma dor aguda espalhava-se do ouvido até ao olho esquerdo.
O homem sabia como bater para magoar.
- E eu tenho de acreditar em ti? - perguntou, ameaçador.
- Eu disse a verdade - insistiu Moretta, olhando-o nos olhos. O homem decidiu acreditar nela, até prova em contrário.
- Sabes quanto dinheiro deitaste fora?
- Não faço ideia. Não sei nada sobre drogas - confessou.
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- Mas entendes de dinheiro. Recebeste um empréstimo do Rocco -afirmou o homem. Sabia tudo.
- Vinte milhões - esclareceu Moretta.
- Cinquenta - corrigiu ele. - Está a tua assinatura no recibo do empréstimo.
- Que cretina que eu fui - desabafou, sem conseguir ter pena dela própria. Tinha sido vigarizada da maneira mais vergonhosa pelo homem que julgava um amigo. Naquele momento,
deixou de sentir medo.
- Se tu o dizes, são cinquenta - acrescentou simplesmente. - Agora podes denunciar-me, mandar-me para a cadeia, matar-me. Mas não me podes pedir o dinheiro de volta, porque
não tenho uma lira.
- Com aquele empréstimo e a mercadoria desaparecida, deves-nos duzentos milhões. Nós queremos esse dinheiro, percebes? -disse, com uma voz subitamente suave.
- O que é que eu devo fazer? - perguntou, resignada.
- A seu tempo saberás. Para já, tens que vender pela melhor oferta o teu negócio na via dell'Orologio. A melhor oferta somos nós que a temos. O teu centro estético vale vinte
milhões, que dão para pagar os juros daquilo que nos deves - explicou o homem.
- O meu estabelecimento, tal como está hoje, vale três vezes isso. E tu bem sabes. - Começou a chorar. Dava-se conta de que não tinha escolha. Agora já tinha entrado na carruagem
errada.
Deixaram-na sair do carro numa avenida da periferia. Antes de fechar a porta, o homem disse:
- Chamo-me Antonino. Lembra-te deste nome.
Caminhou durante muito tempo antes de se cruzar com um táxi que a levasse a casa. Passou o serão com um saco de gelo no rosto. Não se conformava com a ideia de sofrer aquela
chantagem. Sabia que, se fosse à polícia, ia assinar a sua condenação. Por isso, pensou fugir. Regressaria a Cannucceto, a casa do pai. Preparou uma mala e saiu de casa quando
o dia estava a raiar. O táxi estava à espera dela.
- Para a estação - disse Moretta.
Pagou ao taxista e dirigiu-se à bilheteira. Havia pouca gente na fila. Duas pessoas à frente dela e uma atrás. A de trás disse:
- Voltas para a tua terra, não é verdade? Que sentido é que isso
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faz? O teu pai goza de ótima saúde. Será que queres que ele fique doente, que morra?
Moretta nem sequer se voltou para ver o rosto do homem que lhe tinha falado. Abandonou a fila, saiu da estação e, a pé, dirigiu-se a casa. Considerou uma última escapatória:
o quinto andar do edifício onde morava. Um salto no vazio, e depois a paz. Mas, quando entrou em casa, não arranjou coragem para cumprir aquele propósito.
Em poucas semanas, tinha mudado de profissão. Havia sempre quem tratasse de lhe sugerir o que fazer a seguir, quem lhe arranjasse as licenças para abrir uma nova atividade,
quem lhe fornecesse o dinheiro necessário.
Numa moradia da via Independenza, não muito longe da piazza Maggiore, Moretta abriu a Eme Public Relations. Eme, como a inicial do seu nome. Era um pequeno escritório, aparentemente
com algum prestígio. Tinha também uma secretária que a ensinara a servir-se de um ficheiro onde estavam registados os nomes, os endereços e as particularidades de muitas raparigas.
Cada ficha continha uma fotografia. Moretta tornara-se a responsável pela sociedade. Tinham-lhe até arranjado uma nova residência: uma villa na periferia. Estava em nome de
uma sociedade suíça.
Era muito confortável e conveniente para algumas personalidades particularmente notáveis que gostavam de discrição.
Moretta mudou a forma de vestir, de se pentear. Tornou-se uma jovem senhora sofisticada. À volta dela rodopiavam cheques com muitos zeros. Ela limitava-se a fechá-los no cofre,
à espera que Antonino os fosse buscar. Tinha acabado tudo da melhor maneira, em suma. O escritório, a villa, a empregada, o automóvel de luxo. Até lhe tinha regressado o bom
humor. No entanto, quando ouviu ao telefone a voz de Maria, sentiu um nó na garganta. Recordou o seu rosto inocente e sentiu a necessidade de a ver, para se reencontrar a
si mesma, como tinha sido noutro tempo.
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4
- Agora já sabes porque é que eu não posso de maneira nenhuma ajudar-te - concluiu Moretta, mantendo entre as suas as mãos de Maria.
Tinha caído a noite. O tiquetaque do relógio de parede sublinhava o silêncio, que tornava ainda maior aquela solidão.
Maria sentia-se incapaz de exprimir um juízo, ou um qualquer comentário, sobre aquela história e sobre a sua protagonista. Surgiu -lhe nos lábios uma única pergunta:
- O que vai ser de nós?
- Por aquilo que me diz respeito, tenho presságios obscuros. Pelo que te diz respeito a ti, pequena Cabeça Vermelha, foge o mais depressa possível desta casa e da minha vida.
- Não posso. Estou demasiado cansada - replicou Maria, sufocando um bocejo.
- Anda - disse a amiga -, há sempre uma cama à tua espera. E o banho quente que eu te tinha prometido.
Saíram para o jardim. O nevoeiro tinha levantado e os ramos despidos das árvores eram iluminados pela lua. Atravessaram a correr uma pequena alameda coberta de saibro branco
e chegaram à garagem. Subiram uma escada de ferro e entraram no pequeno apartamento. Reinava uma atmosfera muito acolhedora, até porque Moretta tinha feito os possíveis para
que a amiga se pudesse sentir à vontade. A cozinha estava bem fornecida de comida. A casa de banho tinha sido apetrechada com muitas pequenas frivolidades. A sala de estar
era um aposento espaçoso, com grandes janelas e um sofá-cama.
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Havia uma televisão, um gira-discos e um rádio-despertador. O pavimento de tijoleira estava coberto por um grande tapete de lã, de cores vivas. Havia candeeiros com abat-jours
um pouco por todo o lado e cortinas de renda nas janelas. Aqui e ali tinham sido colocados encantadores arranjos de flores frescas. Maria não conseguia imaginar um alojamento
melhor. Na realidade, sabia que se encontrava mesmo no meio de um mundo turvo do qual, como lhe tinha sugerido Moretta, só tinha que fugir. No entanto, disse:
- Isto aqui é muito bonito.
- Não será a melhor das soluções, mas é a única praticável, pelo menos de momento - observou Moretta.
Maria pousou a mala no chão, abriu-a e começou a tirar de lá as poucas coisas que trazia consigo.
Moretta observava aquelas roupas simples que a amiga, com cuidado, pendurava no armário.
- Nunca foi habitado, este sítio - explicou Moretta. - Devia ser a casa do guarda. Mas eu não preciso. Já há quem trate de me guardar bem.
Maria já quase não a ouvia. Só precisava de dormir. Mas Moretta ainda não tinha acabado de falar. Levou-a à casa de banho, subiu à borda da banheira e fez deslizar um painel
do teto.
- Escuta-me bem - disse-lhe -, aqui há um esconderijo. Estás a ver?
Maria, olhando de baixo para cima, viu o painel deslocado que revelava uma cavidade de onde Moretta extraiu uma caixa de cartão. Estendeu-a à amiga.
- Aqui dentro há dezenas de gravações. Maria olhou para ela com um ar interrogativo.
- Gravo os telefonemas de certas pessoas. E também o que os meus hóspedes dizem quando vêm à villa. É material escaldante. Percebes?
A rapariga assentiu.
- Se me acontecer alguma coisa e tu vieres a saber, mesmo que estejas no fim do mundo, deves voltar aqui, pegar nesta caixa e levá-la à polícia.
- Porquê?
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- Porque eu te peço. Não é preciso que saibas mais nada.
- Não vai acontecer nada - disse Maria, preocupada.
- Alguma coisa há de acontecer. Podes ter a certeza - concluiu Moretta, com uma voz sombria.
Naquela noite, Maria dormiu profundamente. Um sono pesado, sem sonhos. Quando a luz da manhã penetrou pelas janelas e ela abriu os olhos, demorou alguns segundos para perceber
onde se encontrava e recordar os acontecimentos da véspera.
Nesse momento, começou a chorar. Como quando, muito pequenina, se tinha perdido em Forli, no corso delia Repubblica. Tinha ido lá com a família para a festa anual. Havia música,
barracas, carrosséis e muita gente. A mãe segurava-a pela mão e a avó recomendava:
- Temos de nos manter juntos, pois de outra forma vamos perder-nos de vista no meio desta multidão.
Antares e Eneia, os irmãos mais velhos, aguentavam, resignados. Havia muitas maravilhas naquela grande feira e o pai ia dando uns sopapos aos irmãos para os manter na linha.
- Queremos algodão-doce - disseram eles.
Cada um recebeu o seu pauzinho, coberto por um novelo branco e leve como uma nuvem. Também a pequena Maria recebeu o seu. A mãe largou-lhe a mão para tirar dinheiro do porta-moedas.
Foi então que Maria se achou sozinha no meio daquela multidão de desconhecidos, com o seu pauzinho de algodão-doce a que já não sabia o que fazer. Tinha perdido todos os pontos
de referência, todas as certezas. A alegria das pessoas, a música, as gargalhadas, os ruídos, tudo se tinha tornado hostil, aterrador. Sentiu-se mais só do que a personagem
do Polegarzinho, abandonado pelos pais no meio do bosque. Aquilo onde ela se encontrava, tão pequenina e indefesa, era uma selva de gigantes dos quais apenas via os pés e
as pernas. Qualquer um podia pisá-la. Ninguém a poderia ajudar a encontrar a mãe. Então começou a chorar. Um choro surdo e desesperado.
Alguém bateu à porta. Limpou as lágrimas com o lençol e não respondeu. Ouviu uma chave rodar na fechadura e depois a voz de Celina a desejar-lhe os bons-dias. Fez de conta
que tinha acordado naquele momento e sentou-se na cama.
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A empregada trazia alguma roupa nos braços e a sua voz, melodiosa, era decididamente alegre.
- A senhora manda-lhe esta roupa. Diz que a sua não é própria para uma menina assim tão bonita. Agora vou preparar-lhe o pequeno-almoço - anunciou, de um só fôlego, enquanto
pousava a roupa nas costas de uma cadeira.
Maria foi para a casa de banho e fechou-se por dentro. Subiu à borda da banheira e, em bicos de pés, conseguiu fazer deslizar o painel do teto. A caixa cheia de bobines gravadas
ainda lá estava. Quando saiu da casa de banho, encontrou a mesa posta, na cozinha, e o pequeno-almoço pronto. Celina estava a fazer a cama na sala.
- A senhora onde está? - perguntou Maria.
- Saiu. Hoje está um dia muito bonito. Está sol e há uma grande novidade - respondeu a rir, com um ar divertido.
- A sério? - perguntou a rapariga, cética.
- Não sabe? Há uma novidade muito grande.
- E qual é?
- Janeiro foi-se embora. Chegou fevereiro - disse, ao mesmo tempo que levava uma mão à boca para conter uma gargalhada.
Maria pensou que só um ser como a pobre Celina podia trabalhar naquela casa. Provavelmente, Moretta tinha-a escolhido cuidadosamente devido aos seus escassos recursos intelectuais.
- Está sempre assim tão alegre, Celina? - perguntou-lhe.
- Às vezes choro, mas faço como a menina. Não digo a ninguém. De qualquer maneira, ninguém me ajuda quando estou triste.
Maria corrigiu o juízo que tinha feito sobre ela enquanto se preparava para tomar o pequeno-almoço.
- O que é que se pode fazer, hoje de manhã? - perguntou à empregada. Não estava à espera de uma resposta.
- Em cima da mesa, na sala, está o jornal de hoje. A senhora disse que na página dos anúncios há coisas interessantes. Marcou-as a caneta. A menina vai ter de ir à cidade.
Há uma paragem de autocarro logo à saída da villa. Chega ao centro em menos de meia hora.
Maria escolheu, de entre as peças que Moretta lhe tinha mandado, uma saia e uma camisola de malha particularmente simples, mas de ótima qualidade. Depois vestiu o casaco e
saiu.
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Naquele dia, através dos anúncios do jornal, arranjou um trabalho num stand de uma fábrica que produzia cosméticos, na Feira de Bolonha. Deveria começar no fim de semana e
teria uma duração de quinze dias. Encontrou também alojamento. Era um estúdio, no bairro universitário, que estaria disponível apenas no final de fevereiro. Tinha caminhado
muito, naquele dia. Fez uma pausa, numa pizaria, à hora do almoço, e passou a tarde a passear pelo centro. Gostava daquela cidade de cores quentes, dos pórticos, das pequenas
ruas medievais, dos estabelecimentos luminosos.
Tinha caminhado e pensado muito. Por fim, concluíra que nunca lhe aconteceria aquilo que tinha acontecido a Moretta. Bastaria manter-se longe dos homens. Ela, depois daquela
desilusão com Mistral, não se deixaria envolver noutra história. Quando regressou à villa, o sol estava já a pôr-se. Moretta estava à espera dela.
- Esta noite - anunciou-lhe -, vou ter hóspedes. Nenhum deles deve saber que tu estás aqui. Por isso fecha-te por dentro e, sobretudo, não acendas luzes. Seja o que for que
vejas ou ouças, faz de conta que não tens nem olhos, nem ouvidos.
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5
O rés do chão da villa estava iluminado com discrição. Luzes rosadas criavam uma atmosfera íntima e agradável. A aparelhagem estereofónica estava sintonizada num programa
de música sinfónica que mal se ouvia. O perfume do jasmim, que pairava na ampla sala de estar, provinha de grandes taças cheias de flores. Predominava um gosto oriental: sofás,
tapetes, pequenas mesas e grandes almofadas. Havia um carrinho de chá sobre o qual tinham sido dispostos licores, bombons e violetas confeitadas. Também no piso superior Moretta
tinha tratado de todos os detalhes. Nos quartos, as camas tinham sido feitas com lençóis de seda. Nas mesas de cabeceira, em elegantes pratinhos de prata, tinha sido depositada
uma discreta quantidade de pó branco: um eficaz tiramisú5 que o político, um ministro em funções, e também as raparigas iriam apreciar.
Tinha-se penteado e pintado com um cuidado meticuloso. Trazia um vestido de seda crua, branco, muito justo, até aos pés. Olhou-se ao espelho. Tinha um corpo fantástico, tão
próximo da perfeição que podia figurar na capa da mais sofisticada revista de moda. A imagem que o espelho lhe restituía era realmente uma pequena obra de arte.
Afastou as cortinas do seu quarto e olhou para o apartamento por cima da garagem. Estava escuro e parecia desabitado. Mas Maria estava lá, e certamente olhava na sua direção.
Sentiu uma pontada no coração por sabê-la só, no escuro, a ruminar sabe-se lá que pensamentos. Era uma situação desagradável também para ela, apesar de
5 Literalmente "puxa-me para cima". (N. da T.)
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estar habituada a viver de compromissos, de mentiras, de expedientes. Maria não merecia um tratamento daqueles. Por outro lado, a organização daquele serão tinha-lhe caído
em cima de repente, quando estava no escritório a tratar de questões de administração normal: uma rapariga para o jantar de um comerciante de Munique e uma companhia discreta
para dois cirurgiões de fama internacional e que estavam em Itália para um congresso, hospedados no Baglioni. Nesse momento, tinha recebido o telefonema de Gianfranco Fantini,
secretário de um importante personagem político.
- Chegamos a tua casa ao princípio da noite, está bem? - perguntou o homem.
- Quantos são?
- Eu, o meu chefe e um convidado. - Importante?
- Um ministro em funções. Trata disso.
- Farei o melhor possível. Como sempre.
- Mas vais ter que fazer mais alguma coisa, desta vez - esclareceu o secretário. Moretta ficou desconfiada.
- Gianfranco, não me aflijas, diz-me logo tudo e pronto.;. - O ministro tem gostos não propriamente heterossexuais.
- E onde é que eu vou arranjar para esta noite alguém disponível?
- Minha querida, se tu não sabes... Receio mesmo não te poder ajudar.
- Nunca me calha um trabalho tranquilo - protestou. - Vemo-nos logo à noite - concluiu, resignada.
- Uma última coisa: tens de arranjar violetas confitadas e marrons glacés, para o ministro - recomendou, antes de desligar.
Moretta tinha feito uma série frenética de telefonemas até encontrar as personagens certas e imediatamente disponíveis.
Olhou-se uma última vez ao espelho. Estava tudo pronto. Só faltavam os hóspedes e os entertainers. Para ela, a única nota alegre do serão era a perspetiva do encontro com
Gianfranco: um rapaz agradável, simpático e bem-educado. Desceu ao rés do chão e foi à cozinha, onde Celina estava a trabalhar.
- A senhora está muito bonita, esta noite - comentou a empregada.
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- Queres dizer que nas outras noites estou feia?
- Quero dizer que esta noite está particularmente bonita - gabou-a, dedicando-lhe um olhar cheio de admiração.
- Tens de ir para casa - lembrou-lhe.
- Queria preparar qualquer coisa para a sua amiga. Sozinha, às escuras, sem sequer o conforto de um prato quente - choramingou Celina, que atribuía à comida bem confecionada
uma importância fundamental.
- Pelo cheiro que sinto parece que já está bem apurado.
- Fico contente por a senhora gostar deste molho.
- Vai para casa, Celina, eu acabo.
- Então eu vou - concluiu, a sorrir.
Depois de ter servido o jantar a Maria, Moretta voltou aos aposentos dos hóspedes e assegurou-se de que os gravadores estavam bem colocados. Adotava aquelas medidas de segurança
com a consciência de praticar uma ação incorreta. Mas haveria alguma coisa de correto na sua vida? Tinha aprendido a desconfiar de toda a gente e a acautelar-se o mais possível.
A única pessoa em quem confiava era Celina, que tinha por ela uma verdadeira adoração. A empregada tinha uma inteligência limitada e não colocava questões sobre a vida de
Moretta. Afastou mais uma vez as cortinas e olhou novamente em direção ao apartamento de Maria. Estava escuro e silencioso.
Maria não estava tão triste como Moretta julgava. Estava até excitada com todas aquelas novidades. Tinha-lhe sabido bem o jantar preparado por Celina, que Moretta lhe tinha
levado num tabuleiro. Comeu com apetite a massa com molho de tomate e a carne no vapor. Depois instalou-se numa poltrona ao lado da janela da sala para gozar o espetáculo
do jardim iluminado, como se estivesse no cinema. Estava contente por poder observar permanecendo na sombra. O espetáculo começou com a chegada de um carro utilitário azul,
que deu a volta à villa e parou em frente à garagem, mesmo por baixo das suas janelas.
Saíram três pessoas: duas mulheres e um homem. Eram jovens, elegantes, e riam todos. O rapaz, alto e loiro, rodeou com os braços a cintura das duas raparigas e assim, bem
juntos, dirigiram-se
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à entrada da villa. Moretta esperava-os à porta. Cumprimentaram-se com alegria e desapareceram para dentro de casa.
- Fim da primeira parte - disse Maria para si mesma.
Por enquanto, não se estava a passar nada de particularmente excitante, mas tudo podia acontecer ainda. Os elementos para que, de repente, explodisse um drama sangrento estavam
lá todos: a noite, o jardim deserto, os ramos espetrais das árvores, a villa misteriosa, os hóspedes desconhecidos. Maria não conseguia ver aquilo que estava a acontecer por
detrás das janelas iluminadas, protegidas por cortinados de tecido grosso. Mas esperava que, de um momento para o outro, um grito pungente dilacerasse o silêncio da noite.
Estava excitada e inquieta com a ideia daquele grito suspenso no ar. Poucos minutos depois, chegou outro automóvel, muito maior e mais elegante do que o primeiro. Percorreu
a pequena alameda e parou ao lado do utilitário, em frente à garagem. Saíram três homens, que olharam em volta antes de se dirigirem à entrada da villa. Um era relativamente
jovem, bem penteado; o segundo era um sujeito enorme, decididamente calvo, mas que se movia com agilidade. O último usava chapéu e, apesar de ser bastante magro, tinha um
andar mais pesado. Passaram por baixo de um lampião e o terceiro homem, naquele momento, levantou a cabeça. Maria viu-lhe bem a cara e teve a certeza de que já o tinha visto.
Era uma fisionomia conhecida, que aparecia muitas vezes na televisão e em fotografias nos jornais. Uma figura política importante.
- Caramba - murmurou, de boca aberta. Moretta velejava a sério no grande mundo.
Maria abandonou o seu lugar ao pé da janela e meteu-se na cama. Já tinha visto o suficiente. Aliás, demasiado, e não queria ver nem saber mais nada. Esperou adormecer, mas
o sono tardava a chegar, porque ruminava pensamentos sombrios. Dava voltas, inquieta, por baixo dos cobertores, sentindo-se prisioneira de uma vergonha que não era sua e que,
no entanto, lhe pesava na consciência.
Acabou por se levantar e foi olhar outra vez, por detrás das cortinas, para o grande jardim mergulhado no silêncio. Viu dois homens, pouco mais do que sombras, que se moviam
cautelosamente ao abrigo dos arbustos de louro. Duas figuras robustas, com blusões escuros.
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Um deles surgiu à luz. Levava na mão uma lanterna e tinha chegado junto dos dois carros estacionados em frente à garagem. Fez um sinal ao companheiro, que foi ter com ele.
Juntos, estiveram a mexer nos comandos dos carros. Maria não pensou nem por um instante que fossem ladrões. Era evidente que estavam ambos a espiar os hóspedes de Moretta.
Teve medo. Se tentassem entrar no seu apartamento, como devia comportar-se? E se se apercebessem que estavam a ser, por sua vez, espiados? Respirou de alívio quando os viu
afastarem-se. Pensou que devia avisar a amiga, mas estava prisioneira no seu refúgio. Então decidiu que havia um limite para tudo: não ia esperar um mês inteiro antes de se
mudar, ia-se embora na manhã seguinte e faria todos os possíveis por esquecer Moretta e os seus negócios duvidosos.
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6
No amplo salão da villa, os hóspedes mexiam-se com desenvoltura a beber champanhe e a provar, de vez em quando, um bolo. O político e o ministro conversavam sobre coisas frívolas
e banais, mantendo, no entanto, um tom inutilmente sério.
Moretta tentava conversar com o jovem americano, que tinha chegado a Itália poucos meses atrás e era modelo. Chamava-se Sunny e não tinha uma lira. Estava convencido de que
o seu talento criativo lhe permitiria, mais cedo ou mais tarde, dar uma volta decisiva à sua vida. Enquanto esperava por essa grande ocasião, aceitava encontros fugazes e
bem remunerados com pessoas ricas, sem se importar com o sexo nem com o aspeto dos clientes.
O ministro fingia escutar as palavras do político para evitar a aproximação crua ao companheiro de uma noite, e entretanto lançava ao jovem uns olhares tímidos mas dardejantes.
Gianfranco, fiel secretário para todo o serviço, era o único que estava com um ar enfastiado. Tinha-se instalado numa poltrona, num canto isolado, bebia whisky e bocejava
vistosamente.
Moretta aproximou-se dele.
- Tenta participar, em vez de te isolares - aconselhou-o. - Se fizeres alguma coisa, o tempo passa mais depressa - acrescentou, num tom alegre.
- Esperemos que a festa não se prolongue demasiado - respondeu, ao mesmo tempo que consultava o relógio de pulso.
- Porque não escolhes uma rapariga e vais lá para cima? - sugeriu ela.
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- Estou cansado. E depois sou como o Super-Homem com a kryptonite. Há situações que me tornam inofensivo e que me fazem perder as forças - tentou brincar, sem convicção.
- Ouve o que eu te digo. Põe de lado os sagrados valores da alma e pega numa daquelas raparigas - insistiu Moretta.
- Se eu tivesse de escolher, pegava em ti - disse, com um tom sincero.
Ela beijou-o na face.
- Sinto-me lisonjeada, e era capaz de te seguir até ao céu.
- Gosto de ti, Moretta. Sei muitas coisas de ti e estimo-te muito. O jovem tinha ficado sério e olhava para ela com ternura.
- Não entres no domínio do patético, ou vais-me fazer chorar -replicou ela, preferindo manter-se num tom de brincadeira, enquanto perguntava a si mesma quem lhe teria falado
dela.
Gianfranco frequentava aquele mundo cínico no qual era preciso mexer-se com extrema cautela. Antes de escolher, entre muitas, a agência de Moretta, tinha seguramente recolhido
informações. Quem a conheceria tão bem naquele ambiente a ponto de lhe ter contado a história da sua vida?
- Já não temos idade para nos armarmos em apaixonados. No máximo, podemos conceder-nos uma distração, quando calha.
- É sempre melhor do que nada.
- Ainda que depois ficasses com um amargo de boca?
- Isso tenho eu sempre - declarou Gianfranco tristemente.
- Talvez estejas a exagerar - observou ela.
- Alguém que faz de intelectual durante o dia e de rufião à noite não pode, certamente, estar satisfeito consigo próprio.
Moretta estava vagamente irritada com aquele diálogo inesperado.
- Mais vale não pensar nisso - rematou Moretta. - Procura arranjar uma justificação decente para o teu modo de vida, pois de outro modo vais sentir-te cada vez pior.
- Achas que me consola saber que aqueles dois estão pior do que eu? - perguntou, aludindo ao político e ao ministro.
- Nesse ponto estou de acordo contigo. Entre eles e nós não há uma diferença assim tão grande.
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- Eram capazes até de vender a mãe para não perderem as suas poltronas. Roubam, mentem, chantageiam - sibilou, baixando a voz.
- Não podes resolver o problema pondo-te acima da mixórdia -replicou ela.
- O que é que queres dizer?
- Que todos temos um preço - concluiu Moretta. Gianfranco olhou para ela com raiva.
- Não sabes o que estás a dizer - respondeu, acalorado, e levantou ligeiramente a voz.
- Talvez. Mas também é possível que tu tenhas bebido demasiado whisky, esta noite. O que eu quero dizer é que, quando se aceita remar no mesmo barco, conhecendo a direção
que ele leva, se torna pueril e supérfluo estabelecer diferenças. Ninguém nos obriga a ser aquilo que somos.
Deteve-se de repente. Olhou para o que se passava à frente dela. O político preparava-se para subir ao andar superior na companhia das duas raparigas.
- O insaciável do costume - comentou Gianfranco, ácido.
- É uma pessoa que sabe aquilo que quer e não perde tempo a recriminar-se e a inventar sentimentos de culpa inúteis.
O jovem americano aproximou-se do ministro e começou entre eles uma conversa cerrada em inglês. Quando o ministro tentou acariciar-lhe molemente uma mão, o rapaz retraiu-se
com um salto.
- Passa-se alguma coisa de errado, meu anjo? - perguntou o homem.
- Está tudo bem - respondeu Sunny, que tinha tido um movimento de repulsa por aquele gesto lascivo.
- Que tipo de pessoa sou eu, quanto a ti? - perguntou o ministro, e prosseguiu, sem lhe deixar tempo de responder: - Pareço-te uma pessoa agradável? Conhecendo-me melhor,
achas que podia agradar-te? Tu agradas-me. És uma pessoa que não passa despercebida.
Sunny deu-se conta de que a sua tarefa ia ser particularmente desagradável com aquele homem.
- Não estou em condições de escolher - confessou o rapaz.
- Como julgas um homossexual? - perguntou o ministro.
- Aprendi há muito tempo a não exprimir juízos sobre ninguém.
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- És fantástico. Quero perder-me nos teus braços - sussurrou o homem, com emoção.
Sunny corou violentamente e baixou os olhos. Gostaria de poder afastar de si aquele personagem incomodativo e fugir para longe, no ar fresco da noite.
- É a primeira vez? - perguntou o ministro, fitando-o com os seus aquosos olhos azuis. - Era lindo se te iniciasses comigo - sussurrou -, eu era capaz de fazer qualquer coisa
se pudesse ao menos pensar que sentes alguma coisa por este pobre velho.
Sunny, que não estava na sua primeira relação homossexual, experimentava, no entanto, uma sensação de particular repulsa por aquele moralista viscoso. Mas sabia que havia
um milhão redondo para ele, se bebesse até à última gota aquele cálice amargo. Por isso sorriu-lhe.
- Vamos para cima - disse.
O homem estremeceu como se tivesse sido atingido por um tiro.
- És brutal, meu rapaz - protestou debilmente.
- Tu és inutilmente hipócrita. Não vale a pena perder tempo, visto que estamos ambos aqui por uma razão precisa - replicou o rapaz, impaciente. Tinha pressa de concluir aquele
encontro e de receber o dinheiro.
- Não é hipocrisia, mas o prazer da espera que, infelizmente, a juventude não conhece. Quando eu era jovem, tinha um amigo, um grande escritor e poeta, uma alma sensível.
Ele sabia apreciar o valor da palavra, que torna mais exaltante a relação física. Se me desses a oportunidade de te conhecer um pouco melhor, podia ajudar-te a fazer emergir
todas as maravilhas que estão em ti e que tu próprio não sabes que possuis.
Sunny estava com alguma dificuldade em conter-se. Naquele momento gostaria mesmo de poder fugir. Mas o homem insistia.
- Eu sou muito influente, sabes? Podia dar-te uma grande ajuda a realizares as tuas aspirações. Tenho amigos em todo o lado, sobretudo nos lugares onde se decide a carreira
de jovens promissores e com muita vontade de se afirmarem - prosseguiu o ministro, na tentativa de tornar mais interessante, para Sunny, aquele encontro esquálido.
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- Vamos lá acabar com esta comédia. Se queres perder tempo, eu vou-me embora. Se queres concluir, vamos para cima - insistiu.
O homem sorriu, indulgente.
- Não te esforças sequer por parecer simpático.
- Estou à tua disposição - replicou o jovem. - Segue-me, se é isso que desejas.
- Sabes ser maravilhoso - sussurrou, enquanto subia as escadas com ele.
Sunny detestava as lamentações e irritou-se antes de mais consigo mesmo enquanto subia as escadas. Porque se armava tanto em difícil? Aquilo não era um encontro romântico,
mas um simples ato de prostituição. Que sentido fazia recriminar-se a si e aos outros? O sexo, para Sunny, nunca tinha sido um problema. Quando surgia a ocasião, ia também
com mulheres. A mãe natureza tinha-o dotado de forma soberba, permitindo-lhe obter grandes sucessos com os seus parceiros. Quando abandonou o rancho dos pais, no Oregon, para
se transferir para a grande Nova Iorque, apercebeu-se de que o seu aspeto físico e os seus atributos sexuais inflamavam os homens ainda mais do que as mulheres. Por isso conseguiu
inserir-se facilmente no mundo da moda, onde o comércio do sexo atingia vértices clamorosos, ainda que a concorrência fosse impiedosa. Todos os dias surgiam rapazes esplêndidos
e disponíveis para satisfazer as vontades de personagens mais ou menos afirmados.
Depois chegou uma oferta tentadora de uma agência de Roma. Deixou então Nova Iorque e chegou àquela cidade, para integrar o selecionado clã de um grande costureiro, um personagem
extraordinário, tão exigente no trabalho como na cama. Sunny abandonou-se àquela nova experiência com uma extrema generosidade, enquanto o estilista se revelou excessivamente
parcimonioso: presentes vistosos, mas nem sempre valiosos, e pouco dinheiro. Era a sua política para manter ligados a si os jovens mais belos e mais desejáveis.
O método não era desprovido de uma certa eficácia, mas com Sunny não funcionou. Ele não sabia o que fazer com as camisas de seda, os botões de punho de ouro e os tacos de
golfe.
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Era e continuava a ser um fazendeiro e, se não fosse por causa dos confrontos cada vez mais frequentes com o pai, demasiado autoritário, teria ficado no Oregon. A sua alma
camponesa levava-o a avaliar aquela nova atividade com uma extrema frieza. Ele precisava de dinheiro para comprar outro rancho, ou para regressar à do seu pai em igualdade
de circunstâncias. O pai era um prepotente, não um estúpido. A mãe, que o adorava, não queria outra coisa, e abria-se-lhe o coração quando recebia daquele único filho alguma
carta que a fizesse esperar num regresso próximo.
Aquele rapaz forte, que transportara as suas potencialidades para um mundo carregado de promessas, mas pobre em resultados concretos, não era fácil de orientar. Por isso,
depois de um violento litígio, abandonou o genial costureiro romano e foi para Bolonha, onde a sua agência lhe assegurou um carnet repleto de compromissos: já não para a alta-costura,
mas para o pronto-a-vestir.
Entrou no circuito dos modelos de série B. As remunerações eram boas, o trabalho era menos stressante e podia-se ganhar bem também com encontros particulares. Eram quase sempre
as modelos que lhe arranjavam programas noturnos. Também naquela noite tinha sido uma das raparigas de Moretta a propor-lhe que participasse naquela festa na colina. A remuneração
era realmente excecional. Ele aceitou.
Agora estava às voltas com o ministro e fazia os possíveis para o satisfazer. Mas o cliente era mais exigente do que o previsto. Queria ser insultado e esbofeteado.
Insultos e palavrões tinham sido as primeiras expressões da nova língua que aprendera, pelo que Sunny podia transformar-se numa fonte inesgotável e fantasiosa deste tipo de
vocábulos proibidos.
O sadismo, porém, não fazia parte dos seus hábitos, e aos desesperados convites do cliente respondia com negações firmes.
- Sou um verme, sou um ser indigno - choramingava o homem. - Tu deves bater-me e cuspir-me na cara todo o teu desprezo.
Levantou-se da cama, ajoelhou-se aos pés do rapaz e começou a soluçar como uma criança:
- Tens que me castigar pelo mal que faço. Bate-me! Eu preciso -implorava.
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Agarrou-se às pernas de Sunny, mas ele libertou-se, decidido a pôr fim àquela cena sórdida, e começou a vestir-se.
- Porque me deixas? Vou morrer por isso.
- Vê lá que perda! - exclamou Sunny, já furioso.
- Estou disposto a pagar qualquer quantia.
- Vai-te foder - reagiu o rapaz. O pó branco a que tinha recorrido assim que entrara no quarto não o tinha ajudado muito. Estava com os nervos à flor da pele.
O ministro tirou do casaco um grosso maço de notas. Sunny nunca tinha visto tanto dinheiro. O homem atirou-as para cima do lençol de seda.
O rapaz continuou a vestir-se, sem a mínima intenção de voltar atrás na sua decisão. Não queria aquele dinheiro.
Quando o velho tentou novamente agarrar-se a ele, Sunny segurou-o pelos ombros e repeliu-o com toda a sua força.
- Eu mato-te se não me deixas em paz - gritou, enquanto se baixava para apertar os sapatos.
O ministro caiu pesadamente ao chão e bateu com a cabeça no pavimento de mármore.
- Eu mato-te - repetiu mais uma vez o rapaz -, percebes isso? - concluiu, ao mesmo tempo que se levantava. Então viu que o velho continuava estendido no chão, imóvel.
Tinha-o matado mesmo.
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7
Eram duas horas da manhã. O telefone tocava com petulante insistência no pequeno apartamento na Via dellArco deTolomei, em Roma. O homem dormia profundamente sob o efeito
de uma forte dose de calmantes, a máxima que lhe era permitida pelo médico que o tratava desde sempre e que o conhecia bem. Os delicados mecanismos do sono tinham-se estragado
pelo efeito do stress sofrido ao longo de uma vida desregrada.
Ainda envolvido no torpor provocado pelos psicofármacos, esticou uma mão em direção à mesa de cabeceira e, depois de ter derrubado alguns objetos, conseguiu finalmente agarrar
no auscultador.
- Sim - disse, com uma voz cansada.
- Temos um problema sério - anunciou o interlocutor do outro lado do fio. Era uma voz conhecida que o homem identificou imediatamente.
- Lorenzo? - perguntou, pronunciando o nome convencional que indicava o ministro morto involuntariamente por Sunny.
- Exatamente - respondeu. - Foi ao tapete. Definitivamente.
- Naquela casa? - indagou.
- Sim.
- Reveses políticos? - quis saber.
- Não, questões de cama.
- Regresse ao seu hotel - ordenou.
- E o Lorenzo?
- Eu trato disso - respondeu, e desligou a chamada. Acendeu a luz na mesa de cabeceira e sentou-se na cama. Sentia a cabeça confusa
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e aquela dor profunda no estômago, que o acompanhava há anos, intensificou-se de repente. Apanhou do chão um frasco de Maalox, desatarraxou a tampa e levou-a aos lábios. Engoliu
um trago daquela ignóbil papa leitosa e farinhenta que havia, dentro de poucos minutos, de acalmar os efeitos de uma duodenite que se agudizava em situações de ansiedade.
Chegou ao escritório a cambalear, procurou numa pequena agenda um número de telefone e marcou-o.
Ao primeiro toque, atendeu uma voz feminina.
- Passe-me o seu marido - ordenou.
A mulher, que estava habituada àquele tom e àquelas ordens que já lhe tinham interrompido mais do que uma noite, apressou-se a obedecer.
- Quem é? - resmungou Antonino, quando pegou no auscultador.
- Pergunta mas é quem serás tu se não resolves imediatamente aquela cena montada pela tua amiga - ameaçou. - Dentro de meia hora, quero o Lorenzo na sua cama, no hotel. Bem
instalado, como se estivesse a dormir. Entretanto, inteira-te do que aconteceu exata-mente e trata da situação.
- E a rapariga?
- É o segundo problema que tens de resolver.
Desligou a chamada e arrastou-se novamente até ao quarto. Fazia um esforço terrível para continuar acordado. E, no entanto, sabia que tinha de informar imediatamente o chefe,
não só porque era o seu superior direto, mas também porque era o único que poderia resolver aquele imbróglio. Estava excluído o uso do telefone, porque o chefe não queria
correr riscos. Por isso teve de se vestir e atravessar Roma que, felizmente, estava quase deserta àquela hora. O táxi deixou-o na piazza dei Popolo. Dirigiu-se a pé à via
dei Corso, caminhou durante um bom pedaço e virou à esquerda na via Tomacelli. Tocou à campainha de um edifício barroco e teve de esperar muito tempo antes que lhe abrissem
a porta. Sabia que o seu rosto estava enquadrado no vídeo e que ninguém faria saltar o trinco, enquanto não fosse reconhecido.
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Moretta estava exausta. Respondia com a imobilidade de um autómato às perguntas que Antonino lhe dirigia.
- Fizeste tudo aquilo que devias. Não tens razão por que te censurar - afirmou, concluindo o interrogatório.
O americano soluçava, encavalitado numa cadeira. Estava desfeito e sentia-se perdido como uma criança. O corpo do ministro já tinha sido levado de carro por dois desconhecidos.
Nas proximidades do hotel, simularam uma queda numa placa de gelo, depois um dos dois correu a chamar o porteiro da noite e transportaram o desgraçado, já cadáver há algumas
horas, para a sua cama. Na villa da colina tinham ficado Moretta, as duas raparigas, o americano e Antonino.
Este último, que em outras ocasiões se tinha mostrado violento e agressivo, estava insolitamente simpático.
Moretta olhou para ele, assustada.
- Eu sei, Moretta, que aquilo que se passou não aconteceu por tua culpa. Mas quando se têm hóspedes tão ilustres, é preciso, em qualquer caso, saber quem é que lhes faz companhia.
- Só fui avisada com duas horas de antecedência e confiei numa rapariga que me disse que o conhecia muito bem. Nunca se excedeu. Vê-se que o cliente o fez perder a cabeça.
Foi um acidente. Podia acontecer a qualquer um - defendeu-se Moretta.
- Mas é claro. Foi um acidente. Tenho a certeza de que todos se vão esquecer de que estiveram aqui.
- As raparigas querem ir para casa - solicitou debilmente Moretta.
- Parece-me justo. Não vamos esperar pela próxima amnistia para as deixar sair - brincou. - E que levem embora também o americano, que fazia melhor em regressar ao Grande
País. Aqui o ar está mau.
Pouco depois, o jovem e as duas raparigas foram-se embora no veículo utilitário. Moretta tentou de todas as formas tranquilizá-los. Mas o americano não sossegava. Estava aterrorizado
e não ouvia ninguém.
- Vou apanhar o primeiro voo para Nova Iorque. Quero esquecer Itália e esta história terrível - repetia continuamente.
As raparigas juraram que nunca mais se prestariam àquele tipo de festas. Estava ainda escuro quando viraram na via Emilia em direção
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ao centro de Bolonha. Nenhum dos três falava. Ouvia-se apenas o zumbido do motor.
A rapariga ao volante carregou no pedal do travão para virar à direita, mas os travões não responderam. Inteligentemente, começou a reduzir as mudanças e conseguiu parar o
carro junto ao rio Reno. Depois puxou o travão de mão.
- O que é que foi? - perguntou Sunny, alarmado.
- Os travões - respondeu a rapariga.
- O que é que têm? - insistiu o americano.
- Não estão a travar.
- Só nos faltava mais esta - comentou ele, a tremer como varas verdes.
Um carro parou atrás deles e saiu de lá um bonito rapaz que se aproximou.
- Algum problema? - perguntou.
- Agora que aqui está, acho que tudo se pode resolver - respondeu a rapariga ao volante, dirigindo-lhe um sorriso.
- Então vamos lá ao trabalho - replicou ele alegremente, e acrescentou: - O que foi que aconteceu?
- Os travões - respondeu a rapariga - deixaram de obedecer.
- Vamos ver se posso fazer alguma coisa para vos ajudar - disse o homem, ao mesmo tempo que enfiava a mão direita no bolso do sobretudo. Tirou uma pistola com silenciador
e apontou-a à testa da rapariga. Um ruído pouco mais forte do que um sopro empurrou a bala para a cabeça da rapariga, matando-a imediatamente. Sunny e a outra mulher não tiveram
sequer tempo para esboçar qualquer reação. Em poucos segundos, tiveram a mesma sorte que a companheira.
O rapaz voltou a meter a pistola no bolso, entrou no carro, sintonizou o rádio e retomou o caminho para Bolonha.
Antonino deu uma pancadinha afetuosa na face de Moretta e disse:
- Fica tranquila, minha menina. Vai correr tudo bem. Vê se dormes algumas horas e depois vai para o escritório como se nada tivesse acontecido. Não mudou nada na tua vida.
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Moretta anuiu. Acompanhou-o à porta e despediu-se dele. Enquanto a abraçava, ele enfiou-lhe uma mão nas cuecas.
- Que pena não termos tempo - disse, enquanto sentia uma poderosa ereção.
- Que pena - mentiu Moretta, que estava a milhas de distância da ideia de fazer sexo.
- Espera uma visita de cortesia - avisou, enquanto saía. Moretta subiu ao andar superior. Os outros quartos já tinham sido
arrumados e Antonino ajudara-a a lavar o chão do quarto onde tinha acontecido a desgraça. Os lençóis tinham sido queimados na lareira. Quando teve a certeza de que estava
tudo em ordem, foi até à garagem e entrou no apartamento de Maria. A rapariga dormia profundamente.
- Acorda, Maria - chamou-a.
- O que foi? - perguntou, a esfregar os olhos.
- Salta da cama e veste-te - ordenou. - Temos de ir à cidade. Maria olhou para fora da janela. O novo dia anunciava-se com
uma luminosidade quase impercetível no horizonte.
- A esta hora? - perguntou debilmente a rapariga, enquanto se espreguiçava como um gato.
- O mais depressa possível - incitou-a Moretta.
- E onde vamos?
- Há um lar para estudantes, na cidade. Vou levar-te para lá. Não podes continuar aqui - concluiu.
Maria afastou o lençol e os cobertores e saltou da cama.
- Esta noite vi dois homens a mexer no carro dos teus hóspedes.
- Ladrões?
Maria fez uma longa pausa para refletir antes de responder:
- Não. Pareceram-me mais uns curiosos.
- O que é que viste mais?
- Nada. Adormeci muito depressa, como um anjo.
- Não interessa. - Moretta abraçou a amiga num impulso e disse: - Provavelmente, esta é a última vez que nos vemos.
- És sempre assim tão alegre de madrugada? - tentou brincar Maria.
- Nunca mais me procures. Promete-me. Mas lembra-te sempre
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do favor que te pedi. Se me acontecer alguma coisa, leva as bobines que te mostrei à polícia.
- Não vai acontecer nada - replicou Maria. - Tenho a certeza de que mais dia, menos dia, nos vamos voltar a ver.
Quando se fizeram à estrada, o trânsito era já intenso. Moretta olhava com frequência pelo retrovisor. Estava convencida de que alguém a seguia, e por isso abrandava a marcha
para deixar passar todos os carros suspeitos.
- Precisas de dinheiro? - perguntou a Maria, após um longo silêncio.
- Estou cheia dele - disse -, e também tenho um trabalho.
- Ainda bem.
- Aqueles anúncios de jornal foram preciosos. Obrigada por mos teres assinalado.
Moretta parou o carro diante de um edifício oitocentista, atrás da igreja de San Petronio.
- E se as freiras me disserem que não me podem receber? - perguntou Maria.
- Há sempre lugar para uma pessoa como tu, Cabeça Vermelha -replicou a amiga, com doçura.
- Boa sorte, Moretta - disse Maria, abraçando-a.
- Bem preciso - replicou ela.
Arrancou rapidamente. Tinha pressa de se afastar o mais depressa possível daquela amiga inocente.
Na via Ugo Bassi parou para comprar um jornal, ministro em
VISITA A BOLONHA ESCORREGA NO GELO E MORRE, anunciava O título
de um artigo cheio de pormenores.
Moretta deu um suspiro de alívio. Antonino e os seus homens tinham arrumado aquela história tremenda.
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8
Era a primeira vez que chegava ao escritório às oito horas da manhã. Normalmente, chegava tarde. Nunca antes das onze. Enfiou a chave na fechadura e apercebeu-se de que a
porta não estava fechada com as quatro voltas do costume, mas apenas com o trinco. Entrou sem fazer ruído.
Lembrava-se de ter sido ela a fechar a porta, na noite anterior. Era já um automatismo que repetia todos os dias. Olhou em volta com cautela. O vestíbulo estava deserto: estava
tudo em ordem. Carregou num interruptor e os dois candeeiros de pé acenderam-se, iluminando as plantas ornamentais nos grandes vasos de porcelana pintada, as paredes estriadas
a imitar mármore de Verona e a mesa central, redonda, revestida também com uma imitação de mármores em vários tons que reproduziam motivos florais. Ficou mais tranquila e
fez correr a porta de um armário de parede. Tirou o casaco e pendurou-o num cabide. Estava preocupada, e todos os seus sentidos estavam alerta. Movendo-se com cautela, abriu
lentamente a porta do seu gabinete. Acendeu mais luzes. Estava tudo tranquilo, tudo perfeitamente em ordem e, não tinha dúvidas, exatamente como o tinha deixado na véspera:
a secretária, o telefone, as flores na jarra veneziana, os dois sofás, os quadros nas paredes. No entanto, Moretta sentia no ar a presença inquietante de uma ameaça.
Passou pelo gabinete de Giovanna. A secretária ainda não tinha chegado e também ali reinava a ordem mais absoluta. E o silêncio. A sua mente trabalhava a pleno ritmo, macerava
hipóteses que
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a realidade desmentia e, no entanto, o seu instinto assinalava-lhe que estava em perigo.
Regressou ao seu gabinete e sentou-se à secretária. Estendeu uma mão em direção ao telefone. Marcou um número. Ao segundo toque, respondeu-lhe a voz do pai.
- Olá - saudou-o afetuosamente. - Como estás?
- Bem. Talvez um pouco espantado por te ouvir a esta hora -replicou o professor Benito. - Passa-se alguma coisa? - perguntou, preocupado.
- Tudo em ordem, pai. Só queria ouvir a tua voz e dizer-te que gosto muito de ti. - Moretta estava comovida.
- É uma boa maneira de começar um novo dia. Eu também gosto muito de ti, mas devíamos dizer isso um ao outro com mais frequência, minha Moretta - brincou ele.
- Um destes dias vou visitar-te - prometeu Moretta.
- Espero bem. Esta casa é tua, lembra-te disso. A propósito -disse, mudando de assunto -, como está aquela rapariga? - referia-se a Maria.
- Arranjou um emprego e está instalada num lar de freiras. Havia uma ponta de orgulho na voz de Moretta por ter ajudado
a amiga a arranjar uma boa solução de alojamento.
- Fico contente. É muito boa pessoa.
- Eu sei. Vemo-nos em breve, pai - despediu-se, antes de desligar a chamada.
Viu as horas no pequeno Rolex que tinha no pulso. Eram oito e vinte. Dali a dez minutos exatos, o pai, com o sobretudo habitual, já um pouco gasto, e os sapatos perenemente
empoeirados, ia atravessar a praça para entrar na escola. Debaixo do braço levaria a velha pasta que continha os trabalhos corrigidos dos seus alunos. Ia começar um novo dia
de trabalho, a única coisa que sabia fazer e que amava mais do que a própria vida.
Na pequena escola ainda não tinha sido instalado um sistema de aquecimento, e cada sala de aula era aquecida por um pequeno aquecedor a querosene.
Moretta revia a cor das paredes deterioradas, as carteiras desengonçadas, os quadros rachados, os mapas pendurados nas paredes
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e as cortinas de juta que ficavam levantadas no inverno e sempre descidas na estação estival.
Recordava todos aqueles pormenores, e um nó apertava-lhe a garganta. Gostaria de poder apagar da sua vida atormentada o medo e a angústia. Só agora percebia que naquela pequena
aldeia da Romagna, naquela escola, no meio da sua pobre gente, estava guardado o segredo mais belo da sua vida. Repeliu as lágrimas e pegou outra vez no telefone.
Ligou a Celina, para a villa. Precisava de segurança, queria ouvir dizer que em casa estava tudo em ordem. Mas respondia-lhe insistentemente o sinal de ocupado. Era realmente
muito estranho que Celina estivesse ao telefone logo de manhã e durante tanto tempo.
Pousou o auscultador e esperou. Bateram as nove horas no grande relógio. Giovanna ainda não tinha chegado. Tocou o telefone. Moretta atendeu. A chamada vinha de Pádua e anunciava
a chegada de três homens de negócios.
- Mesa para quantos? - perguntou, como de costume.
- Quatro - responderam-lhe, e foi-lhe comunicado também o nome do hotel. Era uma operação de rotina normal.
Precisava ainda de alguns esclarecimentos.
- Para que horas? - perguntou, com o habitual tom eficiente.
- Para as dez.
Moretta recordou ao interlocutor que o pagamento era antecipado e que, com o novo ano, a tarifa tinha aumentado dez por cento.
Abriu a grande gaveta que continha o ficheiro: estava vazia. O ficheiro tinha desaparecido. Então começou a tremer. Escancarou a porta do gabinete de Giovanna, esperando que
a secretária já tivesse chegado.
Não tinha.
Telefonou às raparigas que tinham estado na villa na noite anterior e nenhuma tinha regressado a casa.
Marcou outro número.
- Precisava de falar com o Antonino - disse à voz feminina que lhe respondeu do outro lado do fio.
- Está para fora - respondeu.
- Sabe quando regressa?
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- Talvez amanhã. Talvez daqui por uma semana. Não sei. Moretta sentiu-se no centro de uma armadilha que ia saltar de um
momento para o outro, fazendo-a prisioneira.
Saiu do escritório. Entrou no Mercedes, ligou o motor e partiu a toda a velocidade.
Perscrutava, ansiosa, o espelho retrovisor. A sensação de que estava a ser seguida não a tinha abandonado. Quando entrou na estrada para a colina, teve um instante de hesitação.
Sentia nos ossos um perigo ao qual não ia conseguir esquivar-se.
Então não lhe restava senão uma saída. Apanhar a estrada para Cannucceto e regressar à velha casa do professor Benito. Ali estaria finalmente a salvo, com o pai e no meio
da sua gente.
Parecia-lhe a única coisa certa a fazer, e aquela decisão consolou-a. A sua vida ia mudar, tinha a certeza. Ia recomeçar tudo de novo. Sorriu, mais tranquila, e só viu o camião
que se preparava para a esmagar contra o parapeito de uma ponte, projetando-a no vazio, quando este já estava mesmo em cima dela.
A sua vida e os seus sonhos apagaram-se, naquela trágica manhã de inverno, no leito de um rio.
Celina serviu o café na mesa da cozinha.
- Quanto de açúcar?
- Uma - respondeu Antonino.
Beberam em silêncio. Depois a mulher falou:
- Aqui, fechamos tudo?
- Não antes de termos encontrado as bobines. Descobrimos os gravadores nos quartos, por isso também devem estar as fitas gravadas em qualquer parte - comentou o homem.
- Procurei em todo o lado - disse Celina. - Se calhar, levou-as com ela hoje de manhã. Ou então entregou-as àquela rapariga.
- Primeiro vamos dar uma volta à casa. É preciso ir por exclusão de partes. Se não as encontrarmos, procuramos a rapariga. Sabes para onde foi?
Celina abanou a cabeça.
- Não sei nada dela. Não vai ser fácil encontrá-la.
- Ninguém desaparece sem deixar rasto - disse o Antonino.
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- Talvez tenhamos uma pista. Ela arranjou um emprego através dos anúncios de um jornal que eu ainda não deitei fora. A Moretta tinha marcado a caneta as ofertas a tomar em
consideração.
- Então, ao trabalho. Vamos passar a villa a pente fino, assim como o apartamento por cima da garagem - decidiu Antonino.
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Maria sentia-se a viver num mundo encantado. O pavilhão da perfumaria na Feira de Bolonha era uma exposição de cremes, essências, bálsamos, pós que prometiam beleza e fascínio
e faziam parecer uma brincadeira aquele trabalho pelo qual, ainda por cima, lhe pagavam. Dezenas de marcas de prestígio expunham naquela grandiosa montra o melhor da sua produção.
Os stands eram geridos por raparigas muito bonitas e elegantes. Algumas eram veteranas dos eventos da Feira, outras estavam a começar. Todas tinham uma preparação sumária
sobre o assunto. Maria, pelo contrário, podia usufruir da experiência adquirida durante o período de aprendizagem no estabelecimento de Wanda, em Cesenatico. Tinha uma competência
particular relativamente aos produtos para o cabelo e respetivas técnicas de aplicação. Tinham bastado poucos dias de trabalho para lhe garantirem a função de delegada comercial
e fora contratada provisoriamente.
Oferecia com elegância e discrição aos visitantes, quase todos profissionais do ramo, amostras coloridas e bons conselhos sobre champôs, lacas, ampolas regeneradoras, tintas,
máscaras de ervas e líquidos para fazer permanentes. O "tratamento da cútis e do cabelo" exigia atenções infinitas e uma variedade de velhos e novos remédios: da medula de
boi à gelatina de placenta, do sumo de ortiga ao óleo de coco.
Na realidade, Maria tinha sido inicialmente escolhida não tanto pela sua competência como pela beleza da massa compacta e sedosa dos seus cabelos, que pareciam a prova mais
convincente da eficácia dos produtos que publicitava.
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Também as duas raparigas que trabalhavam com ela tinham cabelos esplêndidos: os de Sandra negros como a noite, e os de Lorella loiros como o trigo.
Maria era a mais jovem e a menos culta das três. As outras duas eram estudantes universitárias. No entanto, as noções aprendidas com Wanda permitiam-lhe apresentar aos potenciais
compradores aquelas miscelâneas que, ainda que não produzissem os efeitos prometidos, desenvolviam de qualquer modo, em quem os usava, uma grande ilusão. As clientes escutavam,
sorriam, colhiam dos seus lábios macios as frases sonantes que ela distribuía continuamente.
- São... naturais ou pintados, os seus cabelos? - perguntavam, a morrer de inveja perante aquela maravilha.
- Naturais - respondia orgulhosamente Maria.
- Posso? - perguntavam as mais audaciosas, aproximando timidamente a mão dos seus caracóis e acreditando no milagre daqueles produtos específicos.
Pensava muitas vezes em Moretta. Muitas vezes tinha desejado telefonar-lhe, mas não ousara faltar à palavra dada. Quando Moretta considerasse oportuno, entraria em contacto
com ela e então poderiam sair juntas.
O lar era uma boa solução de alojamento. As freiras conheciam a sua história e acompanhavam-na com atenções e orações particulares. Protegida por aquelas paredes, junto das
freiras que a amavam sinceramente, Maria sentia-se tranquila.
Uma manhã, ao folhear por acaso um velho jornal, leu um título de uma notícia local: jovem automobilista morta por um camião.
"A habitual tragédia da estrada", pensou Maria, sem saber que se tratava de Moretta.
Sandra aproximou-se de Maria e disse:
- Ainda não deste conta de que tens um admirador? - Ela ia voltar-se mas a amiga deteve-a com um seco: - Está quieta.
- Estás a assustar-me - estremeceu Maria.
- Pronto, agora já te podes virar - comunicou-lhe Sandra. Maria viu-o ao lado do stand da L'Oréal.
Era um belo homem, apesar do ar misterioso e inquietante, com um sobretudo de pelo de camelo e uma écharpe de seda azul-escura.
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- Deve ter imenso dinheiro - comentou Lorella.
- Já lhe estão a fazer a ficha - replicou Maria, divertida.
- Estou a fazer um cálculo aproximado: entre sapatos, sobretudo, chapéu e fato, aquele janota tem em cima mais de meio milhão.
- Estás a falar a sério? - perguntou Maria, espantada.
- Garanto-te.
Maria estava feliz. Gostava do trabalho, ganhava bem e as duas amigas transpiravam simpatia e cordialidade. Como se não bastasse, tinha chegado também um admirador, um rapaz
lindíssimo com quem Maria poderia sair de boa vontade, quanto mais não fosse para descobrir de que mundo provinha e quais seriam as suas intenções.
O homem dos Serviços Secretos, que tinha conversado durante muito tempo com o chefe na noite em que o ministro tinha morrido, saiu do comboio na estação de Bolonha, foi até
ao quiosque e comprou um exemplar do Messagero. Abriu-o e voltou a dobrá-lo, deixando bem à vista o cabeçalho. Depois meteu-o no bolso do sobretudo, de forma que ficasse bem
visível.
- Bom dia - disse Antonino, que entretanto se tinha aproximado. O homem dos Serviços Secretos olhou para ele sem expressão.
- O meu nome é Antonino Catania - apresentou-se, com a altivez de um 007.
- Então vamos - disse o agente. Saíram da estação e atravessaram a praça. Falaram enquanto caminhavam.
- Não estamos nada satisfeitos - começou o homem que tinha chegado de Roma. - Não foi fácil anular as investigações sobre a morte do ministro. E nem sequer despistar as do
assassínio daqueles jovens. Agora temos problemas com a morte da Moretta Morandi. Eu tinha dito para a neutralizarem, não para a eliminarem.
- Sabia de mais. Encontrámos gravadores em casa dela. Armou-se em esperta. Se a deixássemos em circulação, podia tornar-se perigosa - explicou Antonino.
Era um dado novo e inquietante para o homem dos Serviços Secretos.
- E as gravações?
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- Desapareceram. Passámos a casa a pente fino, e o escritório também.
- Então procurem noutros sítios. Não se pode deixar esse material por aí. Este novo facto deixa-nos ainda mais descontentes. Mataram-na sem a fazerem falar. Parece-me o cúmulo
da estupidez -comentou.
- Era preciso apressar as coisas. Ela era uma pessoa imprevisível -desculpou-se Antonino.
- Continua a dar tiros nos pés. Essa Morandi foi escolhida por si. Não se escolhem pessoas imprevisíveis - insistiu o homem, com um tom gélido.
- Se estamos a falar de responsabilidades, alguém o vai culpar a si por me ter escolhido a mim - disse Antonino.
- E é exatamente isso que está a acontecer, seu idiota - sibilou o agente. E acrescentou: - Portanto, faça o que tem a fazer.
- Há uma carta fora do baralho. Uma rapariga, uma tal Maria Guidi, amiga da Moretta e sua conterrânea. Estava alojada no anexo da villa quando aquilo aconteceu. Pode saber
tudo, ou nada. Pode até ser ela que tem as gravações que não se encontraram. Foi-se embora na manhã seguinte. Já a descobrimos. Trabalha na Feira e vive num lar de freiras.
- É uma bala perdida. É preciso fazê-la falar - disse o agente.
- E depois? Vai-me dizer que é preciso parar de matar pessoas? -replicou Antonino, irónico.
- Exatamente. Quatro cadáveres por um ministro degenerado é muito. Demasiado. Encontre as gravações e faça falar a rapariga. Se não souber nada, bastará assustá-la para que
ela mantenha para sempre a boca calada. Se souber alguma coisa, avise-me para eu intervir pessoalmente. Espero ter sido claro - disse o homem dos Serviços Secretos.
A caminhar e a conversar, tinham regressado à estação. O agente dirigiu-se a um comboio que ia partir para Roma. Antonino afastou-se no seu automóvel.
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Maria despediu-se das colegas e saiu do autocarro na piazza Maggiore. Eram oito horas da noite quando se dirigiu ao lar, caminhando a passos largos sob os pórticos onde os
raros transeuntes se apressavam em direção a um jantar quente, ao abrigo do vento gélido que fazia rodopiar poeira e papéis.
Próximo da pastelaria Zanarini, que tinha já as grades descidas, Maria sentiu-se agarrar com força por um braço. Aquele gesto imprevisto, em vez de desencadear uma reação
de defesa, paralisou-a. Uma mão coberta com uma luva tapou-lhe a boca. Sentiu-se empurrar para dentro de um carro.
O automóvel arrancou e ela apercebeu-se de que estava sentada entre dois homens. Pensou que era um pesadelo e fechou os olhos com mais força, à espera de um despertar que
a libertasse. Mas a mão com a luva que lhe tapava a boca era verdadeira. Abriu os olhos e o grito que lhe rasgou o peito foi apenas uma espécie de soluço.
O outro homem vendou-lhe os olhos com um tecido elástico.
Uma voz rude, de sotaque indefinível, admoestou-a:
- Se estiveres sossegada, não te vai acontecer nada. Se quiseres gritar, estás à vontade, porque ninguém te vai ouvir.
Estavam no campo, e o carro parou em frente a uma casa de lavoura, aparentemente abandonada.
Ajudaram Maria a sair e levaram-na para dentro do edifício. Ela não via nada, sentia apenas o fedor irrespirável de um lugar frio e sujo. Foi empurrada para um catre no qual
a estenderam.
Amarraram-lhe os pulsos e os tornozelos. Depois, mais nada.
Maria não saberia dizer durante quanto tempo a deixaram ao frio, com os olhos vendados, a interrogar-se sobre o motivo daquela agressão. A certa altura a porta abriu-se e
entraram outros homens.
- Agora já podemos dar dois dedos de conversa - disse um homem de voz rouca.
- Deixem-me ir embora - implorou. - Não tenho parentes, nem amigos, nem dinheiro. Não sou a pessoa que procuram.
- Como te chamas? - perguntou uma voz.
- Maria Guidi - respondeu.
- Estás a ver? Bate tudo certo. Tu és a pessoa que procuramos. Nós vamos fazer-te umas perguntas, e tu vais dar-nos as respostas. Depois
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deixamos-te ir embora. Mas entretanto não digas mentiras. Porque não é verdade que não tens amigos nem dinheiro. Herdaste uma boa maquia, depois daquela tragédia da tua família.
- Como vês, estamos bem informados. Quanto aos amigos, não te diz nada o nome Moretta? - indagou outro homem.
- Tenho frio. Soltem-me, por favor. Deixem-me ir embora. Maria estava aterrorizada.
Uma mão pesada como uma pá abateu-se sobre a sua face.
- Fiz-te uma pergunta. Não te diz nada o nome Moretta? - repetiu, com uma voz ameaçadora.
- A Moretta é uma amiga minha - sussurrou Maria, com uma voz trémula.
- O que é que estavas a fazer em casa dela?
- Perguntem-lhe a ela - respondeu a rapariga.
Uma outra bofetada violenta atirou-lhe a cabeça para trás. Sentiu uma dor aguda no ouvido e o sangue quente descer-lhe pelo nariz. Maria recomeçou a chorar baixinho.
- Estás a fazer-nos perder a paciência - ameaçou o homem que a tinha esbofeteado. Repetiu mais uma vez: - O que é que estavas a fazer em casa da Moretta?
- Não conhecia ninguém em Bolonha. Ela ofereceu-se para me hospedar duas noites enquanto eu procurava alojamento.
- O que aconteceu na villa, nessas duas noites?
- Não faço ideia. Eu dormia por cima da garagem - respondeu, num tom de voz que mal se ouvia.
- Isso já nós sabemos. Porque é que ela te instalou no anexo?
Maria teve a presença de espírito para inventar uma história plausível, para calar aquilo que sabia e que tinha visto. Só assim podia esperar salvar-se.
- A Moretta disse-me que tinha um amante. Um homem muito rico, que às vezes passava a noite com ela. Por isso não me queria no meio do caminho - conseguiu explicar, tentando
controlar-se.
Houve alguns instantes de silêncio. Maria tremia como varas verdes.
- Quantos anos tens? - perguntou-lhe outra voz.
- Dezoito.
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- Ainda acreditas em histórias da carochinha? Ou pensas que estás a lidar com imbecis? - ameaçou o homem da voz rouca. E acrescentou: - Diz-me quem viste em casa da tua amiga.
- Uma empregada - respondeu. Sentiu o homem escarnecer.
- Não digas mentiras. Houve um grande movimento de pessoas naquela casa. Se me disseres que não sabes disso, vais desiludir-me imenso - avisou o homem. Mas agora Maria tinha
de continuar a negar. Não tinha escolha.
- Não sei. Não sei nada, a sério - declarou. E preparou-se para lhe baterem novamente. Mas o mesmo homem fez-lhe outra pergunta:
- A Moretta entregou-te umas gravações, quando te levou à cidade?
Apesar de estar muito magoada e assustada, Maria percebeu imediatamente aquilo a que se referiam.
- A Moretta levou-me ao lar e pediu-me para nunca mais a procurar. Não me entregou nada e pode confirmar-vos isso.
Ouviu uma gargalhada sonora. Depois um dos seus torturadores disse:
- A tua amiga está na morgue. Por isso, já não vai poder responder às nossas perguntas.
- Não é verdade! - tentou reagir Maria, a chorar.
- Queres ir fazer-lhe companhia? - perguntou o homem da voz rouca.
Durante uns eternos instantes, Maria ficou imóvel como uma pedra. Depois um grito desesperado, aterrador, irrompeu-lhe da garganta, como se ao gritar pudesse libertar-se de
toda a raiva e de todo o medo que a oprimiam. Gritou até não poder mais, debatendo-se, tentando libertar-se dos nós que a mantinham amarrada.
No meio do desespero, lembrou-se da promessa que fizera a Moretta e das suas palavras: "Se me acontecer alguma coisa, deves entregar à polícia as gravações que estão no esconderijo".
Recordou os convidados que tinham chegado à villa e os dois homens misteriosos que tinha visto em volta dos carros estacionados. Tinha entrado num jogo que não podia controlar,
e a sua vida não valia sequer a bala que a ia liquidar. Aqueles homens estavam ali para a matar e ela não podia fazer nada para o impedir.
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Continuou a gritar e a debater-se numa extrema, desesperada tentativa de se rebelar contra tanta crueldade. O vestido subia-lhe ao longo das coxas.
- Esperneia à vontade, assim podemos admirar-te. Tens umas pernas que merecem respeito - troçou o homem da voz rouca.
- Belas pernas e temperamento de fogo - riu outro.
- Manda-a calar ou eu enlouqueço - ordenou o homem da voz desagradável.
- Sim, senhor - prometeu um deles. Aproximou-se de Maria, rasgou-lhe o vestido e arrancou-lhe meias e cuecas.
- Vamos lá ver se esta coisa te consegue amansar - disse, ao mesmo tempo que saltava sobre ela com brutalidade e a penetrava com violência, enquanto os outros se excitavam
a apreciar a cena.
- Era virgem! - exclamou o agressor, a rir, quando se afastou da sua vítima.
- Não gostaste? - gracejou o outro.
- É a primeira vez que me calha uma puta virgem - comentou, divertido.
Violaram-na, brutalmente, um atrás do outro.
- Vamos ter de nos livrar dela? - perguntou um deles, quando acabaram.
- Precisava de uma lição, e já a teve - respondeu Antonino, que tinha recebido ordens para não levar o castigo até às últimas consequências. - Trouxeste aquilo? - perguntou.
- Claro - respondeu o outro, ao mesmo tempo que tirava do bolso uma agulha e uma seringa.
- Vê se preparas uma dose bem forte - ordenou Antonino. O cúmplice passou-lhe uma seringa.
- Vai dar para algumas horas - garantiu o homem. Antonino aproximou os lábios do ouvido de Maria e falou-lhe
num sussurro:
- Tu não nos conheces, mas nós sabemos tudo sobre ti. Se resolveres armar-te em esperta e ir a correr contar à polícia, nós voltamos a apanhar-te e damos-te o mesmo tratamento.
Mas depois não te levamos a casa. Mandamos-te diretamente para o inferno. Percebeste?
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Maria já não o ouviu. Mas sentiu a agulha que lhe espetaram no braço. Depois, uma imprevista onda de bem-estar envolveu-a da cabeça aos pés e apagou todo o sofrimento.
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Peter Strauss tinha uma grande aspiração: construir a clínica mais aprazível e eficiente do mundo. Aquele projeto não tinha nascido de um puro impulso de generosidade, mas
do objetivo, bem mais egoísta, de construir uma clínica onde se pudesse refugiar em caso de necessidade. A ideia inicial, em qualquer caso, foi largamente superada, e as clínicas
que a sua empresa financeira tinha construído e dotado dos mais avançados equipamentos tecnológicos eram já uma dezena. Tudo começou quando o seu médico lhe diagnosticou alterações
na tensão arterial. Nessa altura, tinha 40 anos. Agora estava próximo dos 50. A alimentação desregrada e o stress eram seguramente os responsáveis pelo seu problema de saúde,
e bastaria pôr alguma ordem na sua vida para enfrentar e resolver a questão. Peter Strauss, porém, queria garantir, se não a imortalidade, pelo menos uma vida longa e ativa.
O projeto inicial, que tinha como objetivo salvaguardar a sua saúde, acabou por se revelar um negócio clamorosamente rentável.
Peter Strauss tinha medo de doenças. A ideia da morte, por vezes, tirava-lhe o sono. Havia uma outra coisa que o aterrorizava: o rapto. A chantagem através dos sequestros
funcionava com rapidez e eficácia. Strauss tinha conseguido conservar um anonimato quase absoluto. A sua imagem nunca tinha aparecido nos jornais. O seu nome era apenas sussurrado
no ambiente da alta finança internacional e era desconhecido do grande público. As organizações criminosas, que provavelmente conheciam a consistência do seu património, ainda
não o tinham em mira, porque conhecer
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e contactar um personagem semelhante implicava tantas informações e detalhes da sua vida que, da maneira como as coisas estavam organizadas, era impossível obter.
Para além do mais, Strauss estava sempre protegido pelo aguerrido exército dos seus guarda-costas.
Nunca dormia duas noites no mesmo lugar. Só em Cernobbio, no lago de Como, onde tinha a sua residência fixa, se permitia estadias mais prolongadas, protegido por um comando
de guardas bem treinados. Naquela noite dirigia-se a Bolonha para um encontro de trabalho. Viajava com o motorista num Alfa Romeo blindado, seguido por um automóvel idêntico
que transportava os seguranças.
Foi o motorista quem reparou, em primeiro lugar, no corpo imóvel de uma mulher estendido na berma da estrada. E foram os homens da segurança que saíram do carro e se aproximaram
de Maria.
- Está embriagada. Ou então drogada - observou um deles.
- O que fazemos? - perguntou o outro.
Peter saiu do carro e pediu uma lanterna para observar melhor a rapariga.
- Não podemos deixá-la aqui. É demasiado perigoso. Metam-na no carro. Vamos levá-la para a clínica - decidiu.
Os dois automóveis dirigiram-se a grande velocidade à clínica Salus e Maria foi entregue ao cuidado do pessoal, a quem ele mesmo contou como a tinham encontrado.
- Vamos observá-la agora, para ver de que se trata - disse o médico de serviço, ao mesmo tempo que uma enfermeira empurrava a maca, onde Maria estava estendida, para o Serviço
de Urgências.
- Eu espero aqui - decidiu Peter. Aquele rosto tumefacto, que tinha visto à luz da lanterna elétrica, suscitara-lhe uma profunda piedade. Não tinha coragem de abandonar aquela
jovem desconhecida sem fazer alguma coisa para a ajudar.
Olhou em volta, na vasta sala de espera do Serviço de Urgências, onde pessoas sofredoras se entregavam aos médicos à espera de uma sentença. Dois dos homens da segurança estavam
em pé, atrás dele. Ele mandou-os embora com um gesto.
- Encontramo-nos à saída, quando eu souber mais alguma coisa da rapariga - ordenou-lhes.
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Depois procurou um sítio para se sentar. Peter Strauss não era uma pessoa que passasse despercebida. Os cento e vinte quilos que pesava eram distribuídos ao longo de um metro
e noventa de altura. Mas teve alguma dificuldade em entrar na cadeira de braços de plástico que estava alinhada, com as outras, ao longo de uma parede. Era insólito, para
ele, misturar-se com as pessoas comuns. Estava habituado a viver num mundo onde apenas havia lugar para os negócios, para os encontros de trabalho, para a competição. Naquela
grande sala, sentia-se só. Via homens e mulheres à espera, preocupados com a sorte de uma pessoa querida, alguns muito próximos uns dos outros, e sentia a distância que o
separava daquela gente. De repente recordou as palavras do Pai Nosso e, nesse momento, sentiu-se mais perto deles. Vivia há demasiados anos empoleirado no topo do seu império
económico, rodeado de sorrisos de circunstância e da lívida admiração dos invejosos.
No entanto, ele vinha do nada. Tinha construído uma imensa fortuna a pulso, lutando obstinadamente para obter o sucesso.
- Nasci pobre - gostava de repetir com orgulho a quem estava à sua volta -, e aquilo que tenho devo-o unicamente a mim mesmo.
A porta do quarto para onde a rapariga tinha sido transportada abriu-se e um médico fez-lhe sinal para entrar. Strauss era dois palmos mais alto do que ele.
- Então? - perguntou.
- Está fora de perigo.
- Isso é uma boa notícia.
O médico assentiu com um gesto de cabeça e acrescentou:
- Mas está muito maltratada.
- A que ponto?
- Foi violada, drogada e agredida com tal força que lhe perfuraram o tímpano.
- Vamos fazer todos os possíveis para a curar - ordenou Peter Strauss.
O médico olhou para ele e acrescentou:
- Há um pormenor que poderia parecer insignificante, mas não o é. A rapariga era virgem.
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Peter Strauss aproximou-se de Maria, que estava deitada numa maca, e olhou para ela com ternura.
- Parece um anjo - disse num sussurro.
Maria abriu os olhos por um instante, mas o seu olhar era ausente e vazio.
- Quem lhe teria feito tanto mal? - perguntou, fitando o rosto tumefacto de Maria.
- Talvez nunca cheguemos a saber - respondeu o jovem médico.
- Ou talvez o saibamos mais cedo do que se possa imaginar -replicou com raiva.
- Devíamos denunciar o caso à polícia.
- Façam o vosso dever.
- Os jornais vão falar disso e vão publicar o nome dela.
- Quantos anos terá? - perguntou Strauss, pensativo.
- Não mais de vinte.
- É de Bolonha?
- Não se sabe. Está sem documentos. E não fala.
- Em quanto tempo poderá recuperar?
- Em relação às lesões referidas, prevejo que possa ter alta em poucos dias. Mas para superar o trauma psíquico vai precisar de muito mais tempo.
- Percebo - disse Peter, ao mesmo tempo que se despedia do médico e lançava um último olhar a Maria.
Contrariamente ao que era habitual, dormiu mal e pouquíssimo. Tinha sempre diante dos olhos aquele rosto de anjo. Sentia-se inexplicavelmente envolvido numa história que,
na verdade, não lhe dizia respeito. À pena que sentia em relação àquele caso deplorável, unia-se um desejo de vingança. Não sabia ainda como nem quando, mas era claro que
havia de encontrar os perseguidores daquela jovem e que havia de os fazer arrependerem-se por aquilo que lhe tinham feito.
Peter tinha passado a noite com os seus homens no Hotel Ba-glioni. Às dez horas, o secretário anunciou-lhe a chegada de monsieur Augustin Panglotte, a quem chamavam "o Nariz"
pela sua capacidade de inventar perfumes. Naquela arte difícil e insólita, Panglotte era um mestre, e os industriais do setor disputavam-no ao som de milhões.
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Tinha sido o primeiro a intuir a importância das feromonas, uma substância volátil que confere ao perfume uma forte carga erótica. Os colaboradores de Strauss tinham conduzido
durante meses as negociações com aquele difícil personagem, porque Peter pretendia lançar no mercado o perfume Bluesky, a acrescentar à linha de pronto-a-vestir que apresentava
a mesma marca. Os acordos estavam já a um bom nível. Peter estava em Bolonha para os concluir.
- Está ali, na sala. Está à sua espera - disse o secretário.
- Não me apetece falar com ele - disse Peter, enquanto passava em revista os jornais da manhã.
O secretário ficou siderado. Peter Strauss nunca lhe tinha dado uma resposta semelhante.
- O que é que lhe digo? Este encontro está marcado há muito tempo e monsieur Panglotte veio expressamente de Nice - protestou.
- Deixe que sejam os nossos advogados a concluir. Eu, hoje de manhã, tenho que tratar de outras coisas.
Quando ficou só, Peter Strauss ligou para a clínica para receber notícias da jovem dos cabelos ruivos. Atendeu o médico do serviço onde Maria tinha sido internada.
- Como é que ela está? - perguntou Peter.
- Ainda está em estado de choque. Não se lembra de rigorosamente nada do que lhe aconteceu - explicou o médico.
- A polícia já foi informada? - perguntou.
- Estão a abrir um inquérito. Até porque agora já sabemos quem ela é - respondeu o jovem.
- E então? - quis saber Peter.
- Uma excelente jovem, com um passado doloroso. Está hospedada no lar das freiras de SanfOrsola. Foram elas que denunciaram o desaparecimento. Trabalhava na Feira, num stand.
Ontem ao fim da tarde regressou à cidade com duas colegas que a deixaram na piazza Maggiore. Ia direta para o lar, onde nunca chegou. Quando se lembrar de alguma coisa, poderá
contar ela mesma o que lhe aconteceu - disse o médico.
- Como se chama? - perguntou Peter.
- Maria Guidi.
- Maria - repetiu baixinho o empresário. Também a sua mãe se
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chamava assim. Peter achava que era um nome lindíssimo, para uma mulher. Acrescentou: - Arranje maneira de ela ter tudo aquilo de que precisa. Não falo apenas de cuidados
médicos, mas também de uma ajuda psicológica. Outra coisa, Doutor. Encarregue alguém de lhe entregar flores, da minha parte. Muitas e bonitas. Vou vê-la mais tarde - concluiu,
e desligou. Agora sentia-se melhor e já podia enfrentar o inefável monsieur Augustin Panglotte. De repente, a ideia do perfume Bluesky interessava-lhe imenso. No rosto angelical
de Maria, Peter tinha visto o rosto da campanha daquele perfume. Por isso irrompeu na sala com a garra dos melhores momentos.
- Em que ponto estamos? - perguntou aos seus colaboradores, reunidos em volta da mesa.
- Numa situação de impasse - respondeu o advogado.
- E então, de que é que estamos à espera para concluir? - disse Peter, com um sorriso. Estava feliz.
Viaja o rosto de Maria em grandes cartazes publicitários que iam invadir o mundo inteiro a anunciar Bluesky: o sonho de um anjo.
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HOJE
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1
Maria tinha falado durante quase duas horas à cabeceira de Mistral que, depois de um brevíssimo despertar, parecia ter recaído num estado de completa inconsciência. Sentia-se
cansada, mas estava capaz de recomeçar aquele monólogo infinito amparada pela esperança de o trazer de volta à realidade. Onde estaria o seu companheiro? Onde andariam os
seus pensamentos? Respirava, o coração batia, o cérebro era percorrido por uma corrente vital, mas ele continuava longe.
Tinha-lhe contado tudo, até aqueles pormenores da sua vida que, até àquele momento, sempre calara.
A certa altura, sentiu um desejo irresistível de o abanar. Levan-tou-se da poltrona e, em pé ao lado da cama, começou a chamá-lo pelo nome, insistentemente. Ameaçou-o aos
gritos, dizendo que se ele não voltasse a si, ela o abandonava.
Chegou uma enfermeira para tentar acalmá-la.
- Venha comigo, por favor - interveio, a tentar convencê-la a sair do quarto.
Maria estava desesperada e cansada de combater contra aquele muro de silêncio.
Mistral virou ligeiramente a cabeça na direção dela e, muito devagar, abriu os olhos.
- Maria - sussurrou, mas com uma voz clara.
- Estou aqui, meu amor - murmurou, inclinando-se sobre ele. Apertou-lhe delicadamente a mão e ele respondeu com uma débil pressão.
- Como te sentes? - perguntou, comovida.
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Mistral fechou novamente os olhos, e no seu rosto surgiu um trejeito de sofrimento.
- Tenho dores - respondeu, com dificuldade. Ela olhou para a enfermeira, à procura de ajuda.
- Vamos mandar essas dores para muito longe - prometeu Maria, a sorrir.
O médico de serviço entrou e fez uma observação cuidadosa e pormenorizada, que apresentou resultados mais do que satisfatórios. Deu-lhe os parabéns pelos progressos que tinha
feito.
- Está a portar-se muito bem - disse, enquanto lhe verificava o pulso pela última vez.
Mistral franziu o sobrolho.
- Sente muitas dores? - perguntou o médico.
- A cabeça, sobretudo - respondeu -, e o abdómen.
- Também não exageremos - disse o médico, num tom de gracejo. Naquele momento entrou Adèle. Assim que chegou à Unidade
de Cuidados Intensivos, informaram-na de que Mistral tinha finalmente saído do coma e estava bem. Entre lágrimas pediu, por várias vezes, que lhe confirmassem que o filho
tinha realmente acordado, que tinha voltado a viver. Depois ficou algum tempo no corredor, a chorar, para libertar a comoção e a alegria provocadas por aquela notícia tão
ansiada e esperada. Depois de ter secado as lágrimas e de se ter acalmado, dirigiu-se ao quarto de Mistral.
Agora tinha Maria apertada nos seus braços e sussurrava-lhe:
- Vai para casa descansar. Eu fico aqui.
Maria aproximou-se da cama e, enquanto beijava a testa do companheiro, disse-lhe:
- Eu volto muito depressa.
Ele sorriu-lhe e seguiu-a com o olhar enquanto ela pegava na carteira e saía do quarto.
Adèle aproximou-se do filho e acariciou-o. Depois, voltando-se para o médico, perguntou:
- Posso ficar um bocadinho com ele?
- Não o canse demasiado - recomendou o médico, e saiu, seguido pela enfermeira.
- Sempre pronto para me fazeres sofrer - censurou-o, assim que
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ficaram a sós. - Quando penso que se tivesses seguido os meus conselhos...
Entrou o professor Salemi, o neurocirurgião que o tinha operado. Estava visivelmente satisfeito.
- Disseram-me que se queixa de dores - disse.
- Não devia? - perguntou Mistral.
- Queixar-se é o direito fundamental do doente - replicou. - Nós fazemos todos os possíveis por aliviar a dor - acrescentou. - Garanto-lhe que vai ter cada vez menos dores.
Mas agora precisa de sossego.
Olhou para Adèle, que entendeu aquele olhar como uma ordem.
- Está a pôr-me na rua? - protestou, a sorrir.
- Nunca me atreveria. É apenas uma recomendação.
- Eu deixo-o descansar - prometeu Adèle, enquanto acompanhava o médico à porta. Sentou-se na poltrona aos pés da cama e olhou para o rosto daquele filho tão amado.
No fundo do coração, tinha a certeza de que as suas orações, assim como as do prior do Convento dos Capuchinhos e de todos os amigos de Cesenatico, tinham tido um peso decisivo
naquela espécie de milagre.
Para além do mais, tinha a nítida sensação de que, a partir daquele momento, tudo se passaria da melhor maneira.
Adèle pensou que Maria era realmente uma mulher extraordinária.
Durante aqueles dias, tinha percebido o sofrimento autêntico da sua alma, o amor que sentia por Mistral, a simplicidade do seu coração. Talvez aquela relação com Mistral não
fosse assim tão disparatada como ela tinha pensado durante anos. Aliás, naquele momento não se espantaria se os dois tivessem mesmo sido feitos um para o outro.
Aquele filho que, com a sua danada paixão pela velocidade, lhe tinha causado tantas aflições, era menos problemático do que ela tinha pensado. Mas para entender certas coisas,
para remover preconceitos e convicções enraizadas, para perceber que cada pessoa deve percorrer o caminho marcado pela mão misteriosa do destino, é necessário viver sofrimento
e dor.
Só naquele momento Adèle se apercebia de que tinha errado ao julgar Mistral. Aquele filho rebelde que não tinha querido estudar,
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aquele rapaz desobediente e teimoso que tinha desafiado as suas convicções, era um homem generoso e positivo, um ídolo das multidões que vivia com discrição, quase como a
desculpar-se da riqueza e sucesso que tinha obtido. Pensou na alegria que havia de sentir o seu Talemico, se ainda fosse vivo, por aquele filho tão desejado e precocemente
órfão. Estas reflexões fizeram-na sentir-se em paz consigo mesma e com o mundo, como há muito tempo não lhe acontecia.
Quando regressou ao hotel, Adèle entrou na suite e fechou a porta do quarto de Maria, que vencida pelo cansaço, dormia profundamente na penumbra. Tinha o rosto distendido
e sereno. Naquele momento, Adèle amou-a como uma filha.
Foi procurar os netos, que estavam na sala a brincar com Rachele.
- Vistam-se, meninos. Hoje a avó vai levar-vos a passear - ordenou. Sentia a necessidade de ser parte ativa na vida de Maria e dos filhos.
- A passear aonde? - perguntou Manuel.
- O meu faro infalível diz-me que por aqui perto há um sítio onde se vendem todos os brinquedos do mundo. Vamos encontrá-lo e tomá-lo de assalto.
Fiamma arregalou os seus grandes olhos vagamente orientais perante a proposta da avó. Olhou ternamente para Adèle, com medo de lhe desagradar, e murmurou:
- Eu preferia ficar aqui.
Adèle abraçou-a e perguntou-lhe:
- Não te sentes bem?
- Estou ótima - garantiu a menina.
- Queres fazer alguma coisa diferente? Fiamma beijou a avó numa face e disse:
- Tratas-me sempre como se eu estivesse doente.
- A sério que te dei essa impressão? - Tinha de ter cuidado a medir as palavras com aquela criança, que conseguia deixá-la atrapalhada.
- Sim, é mesmo assim - afirmou Fiamma com segurança. Adèle deu uma gargalhada franca.
- És uma pequena peste.
- Não sou assim tão pequena.
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- Tens razão - respondeu Adèle -, ao fim e ao cabo, como sempre, vamos fazer como tu queres. Ficas em casa à nossa espera.
- Está bem - disse Fiamma.
- Protege o sono da tua mãe - recomendou a avó.
Fiamma certificou-se de que a avó e o irmão tinham saído do hotel antes de realizar o projeto que tinha em mente.
Tirou do bolso do vestido um cartão de visita, foi até à sala, agarrou no telefone e marcou um número.
- É Fiamma Guidi - disse ao interlocutor que atendeu do outro lado da linha. - Desejo falar com o Sr. Gianni Strauss.
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2
Marcantonio Arcuri, que chegara a Milão atrás de Chantal Hon-fleur, soube que Gianni Strauss também estava na cidade. Por isso procurou-o, durante alguns dias, nos sítios
que frequentava habitualmente, sem conseguir encontrá-lo. Mas acabou por vê-lo, por acaso, à saída do Cova. Gianni estava com um advogado americano que conhecera em Manhattan,
quando ali trabalhara, para a Bluesky.
O estilista desejava e temia ao mesmo tempo aquele encontro. Dois anos antes tinham-se separado com uma violenta discussão por motivos de ciúme.
Marcantonio era então o estilista da Bluesky e amigo íntimo de Gianni, o qual, com muita discrição, tinha começado a andar com um piloto argentino de Fórmula Um. Ele soube
e ficou muito irritado. Depois surgiu no seu horizonte uma estrela de primeira grandeza: Chantal Honfleur. Tinham-se conhecido casualmente numa festa e ela começou imediatamente
a fazer um cerco ao estilista. A condessa era rica, famosa, fascinante, e assinava uma sofisticada linha de vestuário feminino. Demonstrava por ele uma atração irresistível.
Ela queria conquistar aquele estilista, que poderia imprimir uma viragem na sua produção - uma linha mais moderna e desenvolta. O contrato passou pelo quarto de dormir, onde
Marcantonio arranjou maneira de Gianni os descobrir. Esperava há meses por uma oportunidade para se vingar. Aquilo, desencadeou uma cena impetuosa. Marcantonio escolheu a
condessa e foi com ela para Paris.
Mas o excelente contributo profissional do estilista não tinha sido suficiente para superar a crise que tinha atingido o setor e engolido os mais fracos.
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Também a Bluesky fechara vários pontos de venda em todo o mundo, mas a solidez adquirida ao longo dos anos permitia ainda à marca uma longa margem de manobra.
O império de Chantal, pelo contrário, vacilava perigosamente. Ainda por cima, Marcantonio tinha-se cansado dela e dos seus caprichos e pretendia voltar a trabalhar, se não
mesmo a viver, com Gianni Strauss.
Uma limusina, estacionada em frente ao bar, estava à espera do empresário e do seu advogado. Quando Gianni cruzou o olhar com o de Marcantonio, dirigiu-lhe um largo sorriso.
- Encontramo-nos no hotel logo à tarde. Agora tenho que fazer. Despediu-se do advogado, que entrou no automóvel, e esperou
que se afastasse. Depois, ao apertar a mão que o estilista lhe estendia, acrescentou:
- Estás com ótimo aspeto.
- Já te passou a fúria? - perguntou, com um tom irónico.
- Era suposto estar furioso? - disse num tom dissimulado, enquanto caminhava ao longo da via SanfAndrea.
- Não estavas zangado comigo? - repetiu o jovem, que o seguia.
- A infidelidade é a tua força. Sempre te vi como tu és - disse Gianni.
- O importante é não transformar isso num drama - respondeu Marcantonio, com um sorriso, recordando os insultos que tinham trocado dois anos antes, em Nova Iorque.
- É o que eu acho também - concordou Gianni. Marcantonio deu-lhe uma palmada no ombro e riu-se com gosto.
- Como vai o irresistível Romero? - disparou à queima-roupa. A história de uma relação entre o herdeiro do grande Peter Strauss e o piloto argentino era um dos temas de conversa
mais badalados no meio da Fórmula Um.
- E a condessa? - respondeu Gianni em contra-ataque.
- É uma mulher insuportável.
- Dizes isso para me agradar.
- Detesto-a - insistiu o estilista.
- O mundo é grande. Há lugar para todos. Basta viajar por estradas diferentes.
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- Já soube do Mistral. Se salvar a pele, pode agradecer ao Omnipotente.
- Acho que já está fora de perigo.
- Foi o Raul que lhe bateu, não foi?
- Talvez. É uma profissão terrível, esta que eles escolheram. Caminhavam lado a lado, a conversar como velhos amigos.
- Sentiste a minha falta? - perguntou Marcantonio.
- Terrivelmente - admitiu Gianni.
- Voltaria de boa vontade a trabalhar para ti - confessou o estilista.
- A Chantal ia ficar zangadíssima se te ouvisse falar assim - comentou Gianni.
- Decidi deixá-la - declarou Marcantonio.
- E ela, já sabe?
- Ainda não. Está à minha espera no hotel para regressar a Paris. Por cá, as coisas correram todas mal - disse Marcantonio.
- Vai sentir a tua falta - replicou Gianni, irónico.
- Nem por isso. Ela gosta sobretudo de mulheres. Rapazes como eu, encontra-os ao dobrar de cada esquina - constatou, com indiferença.
- Mas não estilistas com a tua genialidade.
- Tu achas? Às vezes sinto-me como um balão cheio de ar. Não penso que valha muito. Acredita.
- Estás numa fase de baixa autoestima. Eu entendo-te. Às vezes também me acontece. Eu regresso a Nova Iorque hoje mesmo. O avião parte esta tarde - disse Gianni, com uma estudada
indiferença.
- Não me respondeste - observou Marcantonio, que estava ansioso.
- Espera por mim no aeroporto - concluiu Gianni, com um sorriso. - À uma - precisou, ao mesmo tempo que mandava parar um táxi. Estava já no carro quando o seu telemóvel tocou.
Atendeu imediatamente e ouviu a voz trémula e um pouco ofegante de uma menina que dizia:
- É Fiamma Guidi. Preciso de falar com o Sr. Gianni Strauss.
- Sou eu - respondeu. - Estás mesmo à minha procura?
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- Sim, senhor - confirmou Fiamma. - Gostava muito de falar consigo.
Havia duas coisas que o faziam sentir-se culpado: a sua própria diversidade e aquela menina, filha do seu pai, que ele sempre ignorara.
- Quando? - perguntou simplesmente.
- Pode ser agora. Se vier ter comigo ao hotel, eu espero por si na sala da televisão.
- Então vou tentar não te fazer esperar muito tempo - prometeu. Depois voltou-se para o motorista: - Vamos mudar de percurso -ordenou, e indicou o endereço do Hotel Plaza.
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3
Fiamma estava sentada no meio de um sofá azul-escuro, os braços abandonados no colo, os olhos arregalados para Gianni Strauss que avançava pela sala imersa na penumbra, completamente
deserta àquela hora. Trazia uns jeans desbotados e uma T-shirt azul-escura que dizia I LOVE N.Y. O facto de uma criança com síndrome de Down ser tão brilhante tinha qualquer
coisa de incrível. Mas o trabalho que alguns bons especialistas tinham feito com aquela menina operara um verdadeiro milagre. Tinham recuperado nela uma espécie de normalidade
que fazia de Fiamma uma personagem extraordinária.
- Olá - disse Gianni, quando chegou junto dela.
- Olá - respondeu ela, permanecendo imóvel.
- Querias falar comigo? Aqui estou eu.
- A minha mãe mandou-me embora no outro dia, quando veio cá ter connosco. Mas eu preciso de saber como é este irmão que eu não sabia que tinha. Eu baralho um bocadinho as
palavras, e se calhar não era bem isto que eu queria dizer, senhor - começou.
Gianni sentou-se numa poltrona ao lado dela. Estendeu-lhe a mão e ela esticou a dela para lha apertar.
- Muito prazer em conhecer-te, maninha - disse a sorrir-lhe por trás dos óculos com aros de ouro. - Eu também me sinto um pouco confuso, sabes, tenho 40 anos e um péssimo
feitio.
- Isso, o feitio, quero dizer, não é culpa de ninguém. Nasce-se com ele. Não é assim? - replicou Fiamma.
- Sabia que existias e nunca te procurei - admitiu.
- A mãe ainda não me falou do nosso pai. Do Peter Strauss, quero
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dizer. Mas tem andado muito cansada estes dias. Como era o nosso pai, senhor? - perguntou, com uma candura que o comoveu.
- Era um grande homem. Amava muito a Maria e eu tinha ciúmes. A minha mãe também tinha.
Ficou espantado consigo mesmo por ter entrado imediatamente em sintonia com aquela menina.
- Quando alguém morre, diz-se sempre que era um grande homem - observou ela.
- O Mistral está vivo. E também ele é um grande homem.
- É verdade. Eu acho que a minha mãe só pode amar pessoas especiais. Mas ainda não me disse como era o Peter - replicou, voltando ao assunto que lhe interessava.
- Era um gigante. Acho que pesava mais de cem quilos. Era alto como uma montanha, loiro e de olhos azuis. Tinha modos bruscos. Metia-me respeito, devo confessar-te. Ele construiu
uma grande fortuna só com o seu talento. Nasceu numa pequena casa junto ao rio Limmat, em Zurique. O pai trabalhava numa pedreira e a mãe era lavadeira. Nunca quis estudar.
Dizia que a sua escola era a vida. Aos 12 anos embarcou num navio mercante, em Génova, e foi para a América do Sul. Aos 30 anos era já um homem rico e casou com a minha mãe,
que é austríaca. Agora ela vive em Innsbruck. Na sua juventude era uma pianista discreta. Aquele casamento nunca foi feliz. Quando o meu pai morreu, deixou-me herdeiro de
um império imenso que eu tenho alguma dificuldade em conservar. Ele era um empreendedor, eu não sou. Contraio dívidas com os bancos para tapar as falhas que se abrem, uma
atrás da outra. Acho que vou vender tudo, muito em breve. O que mais queres saber, Fiamma?
- Como é a cidade onde nasceu o nosso pai? - perguntou.
- Nunca estiveste em Zurique?
- Já estive em muitos lugares, mas nem sempre consigo lembrar-me bem. Digamos que a memória não é o meu forte.
- Cada um tem os seus pontos fracos - disse Gianni docemente.
- Eu tenho muitos. As pessoas olham para mim com curiosidade porque eu sou diferente. A minha sina é perceber as diferenças entre mim e os outros e fazer os possíveis por
parecer igual a eles. Eu esforço-me continuamente, e isso cansa-me muito. Quando estou com
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estranhos, sinto que estou sempre fora do lugar. Já sou uma adolescente. Tenho 12 anos. A minha mãe diz-me que este é um período fantástico da vida. Mas não é verdade. Pelo
menos para mim. Eu esforço-me por parecer feliz. Todas as manhãs, quando abro os olhos, enfrento com fadiga um novo dia. Tenho de fazer ginástica para não ficar preguiçosa
e inalações porque estou muitas vezes constipada. Nunca posso comer aquilo que quero porque tenho de estar sempre a fazer dieta. O resultado é consolador: respiro bem, mexo-me
com desenvoltura e não tenho uma ponta de gordura. Mas nunca vou ser bonita como a minha mãe. Nasci com um cromossoma a mais e aper-cebo-me de que tenho tantas coisas a menos.
Fiamma nunca tinha feito um discurso tão longo e articulado. Falara com alguma dificuldade, por vezes, para encontrar as palavras certas. Respirou fundo e olhou para o homem
com óculos de ouro. Ele não dizia nada e mantinha os olhos baixos.
- Devo ter dito alguma coisa de errado - murmurou. - Desculpe-me, senhor.
Levantou-se do sofá e preparou-se para se ir embora. Ele agarrou-lhe com força a mão para a deter.
- Não te vás embora, Fiamma. Agora não. Eu não te conhecia e tenho a certeza de que o nosso pai se ia sentir muito orgulhoso de ti. És uma menina fantástica.
- A minha mãe também diz isso, porque gosta de mim. Agora tenho mesmo de ir.
- Que pena termos de nos separar agora. Mas voltaremos a ver-nos em breve, se quiseres - disse Gianni. E acrescentou: - Com a condição de tu deixares de me tratar por senhor.
- Vou tentar, senhor - prometeu.
Chegou até eles, vindo do hall do hotel, um som de vozes excitadas.
- Garanto-lhe, minha senhora, que nenhum de nós a viu - dizia alguém.
- Adèle, como é que foste capaz de sair e de a deixar sozinha? -Era Maria, a ralhar com a avó.
- Aquela menina tem mais cabeça do que tu pensas. Se saiu, lá terá tido as suas razões. E vai voltar.
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A voz de Adèle impunha-se, com força, sobre as outras.
- E se a tiverem raptado? Se alguém lhe fizer mal? É preciso avisar a polícia. - Era novamente Maria que falava, com uma voz angustiada.
Naquele momento, Fiamma saiu da sala. Gianni vinha atrás dela.
- Estou aqui, mãe - disse simplesmente. Maria abriu os braços e Fiamma correu para ela.
- Queria conhecer o meu irmão - sussurrou-lhe.
- Sobre isso falamos mais tarde - concluiu Maria, mantendo-a apertada contra si.
Mistral estava a recuperar rapidamente. O seu físico tinha recursos extraordinários e reagia muito bem aos tratamentos. A cabeça era a parte do corpo que mais lhe doía, embora,
com o passar do tempo, a dor regredisse cada vez mais.
Um dia, Maria entrou no quarto e encontrou-o mergulhado em pensamentos sombrios.
- O que é que se passa, meu amor? - perguntou-lhe com ternura.
- Não me lembro de nada sobre o acidente. Acho que acontece com frequência - respondeu Mistral.
- O que é que tu recordas do Grande Prémio?
- Que estava a ganhar e que o Raul ia atrás de mim. Entretanto vi o céu, e depois mais nada.
- Tiveste muita sorte - observou Maria.
- Depende do ponto de vista. Preparava-me para ganhar o meu quinto campeonato do mundo.
- Vai haver outra oportunidade - consolou-o.
- E tu como estás, miúda? - tentou sorrir-lhe.
- Sou uma mulher feliz porque o meu amor regressou à vida -declarou.
- Como estão as crianças?
- Estão no hotel e estão bem.
- Sinto muito, Maria, por aquilo que aconteceu. Se eu tivesse morrido, tinha-te deixado de mim uma recordação miserável.
- Mas que conversa é essa?
- Vivi sempre para mim mesmo e para os meus motores. Tu, os
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miúdos e a minha mãe eram apenas um apêndice da minha existência, um parêntesis feliz entre duas corridas.
- Agora estás a exagerar. E subvalorizas-me. Eu nunca seria a mulher de um homem tão egoísta.
- Juro-te que nunca mais te deixo sozinha. Antes de tu chegares, interrogava-me se realmente te amei ou se te usei apenas.
- Isso é um problema que habitualmente aflige as mulheres, não os homens - gracejou Maria.
- Notícias do Raul?
- Venceu o Grande Prémio de Portugal. Tinha-me pedido o teu capacete.
- Mau sinal. Está a ficar sentimental.
- Foi o que eu pensei também. De qualquer maneira, dei-lho.
- Eu não tinha o coração assim tão mole, na idade dele - disse Mistral. E acrescentou: - Felizmente, o Raul também é inteligente.
- Gostas dele, não gostas?
- Meter sentimentos pelo meio, quando se corre para vencer, é a maior desgraça que pode acontecer.
- Estás a ficar muito tagarela, sabias?
- É um lado novo da minha personalidade.
- Gosto de te ouvir - disse Maria.
- Mas agora estou um pouco cansado.
- Eu espero que te voltem as forças - respondeu ela, a sorrir.
- Um dia vou contar-te tudo sobre o meu percurso desde que saí de Cesenatico para ir trabalhar com o Silvano Vaccari, naquela oficina por baixo das arcadas do caminho de ferro,
em Modena. Escura, suja, gelada tanto no verão como no inverno. E, no entanto, era o lugar mais bonito que eu alguma vez vira.
- Foi na altura em que te surpreendi naquele bar com uma rapariga numa atitude dengosa pendurada no teu braço - reagiu ela.
- A memória de elefante do costume. Mas desta vez não me consegues provocar. Estou realmente demasiado cansado.
Maria afagou-lhe o rosto. Mistral fechou os olhos e esperou dormir. Ela pensou que ele tinha adormecido mesmo. Mas ele recordava o passado.
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O MUNDO VASTO E EXALTANTE
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1
Quando Mistral chegou a Modena, o sol já ia alto. Saiu da estação e olhou em volta. Parecia um lugar tranquilo. Pediu a um taxista para lhe indicar o caminho.
- Quem é que procura, exatamente? - perguntou o homem.
- A oficina de Silvano Vaccari - disse Mistral.
- Porque não disse logo? É nesta rua. O Silvano é ali ao fundo -respondeu, indicando-lhe um ponto que ficava apenas a uma centena de metros da estação.
Tinha imaginado um lugar imenso, luminoso, ordenado, e encontrou-se à entrada de uma caverna escura, suja, silenciosa. Havia uma pequena luz ao fundo e aquele antro cavernoso
fez-lhe lembrar o mestre Gepeto no ventre do tubarão. Ele sentiu-se como o Pinóquio que, seguindo a luz, encontra o pai. Porque, só agora se apercebia disso, aquele Silvano
Vaccari que ele acabava de conhecer tinha-lhe evocado a figura do pai que ele nunca tivera. Só que lá ao fundo, naquele pequeno cone de luz, estava uma mulher. Era pequena
e frágil. Estava sentada a uma mesa submersa numa confusão de papéis e pequenas peças de substituição. Em frente dela encontrava-se um homem em pé. Não era Silvano. Conversavam
os dois. Ela tinha uma voz um pouco estridente. Por um instante, levantaram os olhos para ele. Depois, ignoraram-no e prosseguiram naquela animada discussão.
- Para me apresentar uma fatura tão elevada, posso saber, pelo menos, que raio de trabalho é que o Silvano fez? - insistia o cliente.
- Fez aquilo que está indicado aqui - replicou ela, ao mesmo tempo que lhe estendia um papel. E acrescentou: - Se calhar, também fez outras coisas. Mas já o conheces: ele
diz e não diz.
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- É uma rica peça, o teu marido - resmungou o homem.
- Eu sei. Quando toca a divertir-se, está sempre disposto a gastar. Se é para cobrar, desaparece e eu que me arranje. De qualquer maneira, experimentaste o teu Giulietta.
Está em ordem? - perguntou.
- Claro que está em ordem - replicou o interlocutor.
- Ainda foge de traseira? - perguntou a mulher.
- Agora está ótimo - garantiu o homem.
- Então paga. Tens dinheiro a sair pelas orelhas e estás aqui a discutir dez mil liras com esta pobre mulher - queixou-se.
- Vá lá, Rosa. Tu sabes muito. Bendito Silvano, que tem uma mulher assim - disse o homem, enquanto preenchia um cheque.
Mistral escutava e entretanto observava o Giulietta 1300 estacionado mesmo em frente à entrada da oficina. Era um automóvel que o punha doido. Por isso, quando o cliente,
ao sair, passou ao lado dele, observou-o como se olha para quem possui uma jóia. O homem entrou no carro, rodou a chave na ignição e ligou o motor. Mistral pensou que ninguém
podia dizer por palavras aquilo que um bom mecânico sente com o rugido de um motor: poesia e perfeição. Entrou na oficina com um passo hesitante, enquanto Silvano Vaccari
saía de um carro coberto com uma tela.
- Olá - disse Mistral -, pensei que não estava.
Vaccari tinha um aspeto completamente diferente do homem que tinha encontrado em Cesenatico na companhia de uma bonita rapariga. Vestia um fato-macaco besuntado e tinha o
rosto e as mãos sujos de óleo. Olhou para ele quase com desconfiança. Depois sorriu-lhe.
- Vieste mesmo - exclamou, dando-lhe uma pancadinha no ombro. - Esta é a Rosa, a minha mulher - continuou, fazendo as apresentações. A mulher, vista de perto, tinha um rosto
afilado e uns olhos brilhantes e vivos. - Este é o rapaz de quem te falei. Como disseste que te chamas?
- Mistral Vernati - respondeu, estendendo a mão a Rosa. Estava um pouco confuso com aquele acolhimento insólito. Silvano apercebeu-se disso.
- Com alguns clientes, tenho de me esconder se quiser que me paguem. Confio-os à minha mulher, que é suficientemente dura, apesar da aparente fragilidade.
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Mistral sorriu, divertido.
- É a primeira vez que vens a Modena? - perguntou Rosa.
- Digamos que sim - respondeu, distraído. A tela que cobria o automóvel em que se tinha escondido Silvano estava a escorregar e revelou um Ferrari luzidio.
- Já sabes onde vais ficar? - perguntou Silvano. Ele abanou a cabeça.
- Há um quarto livre, a dois passos daqui. O aluguer é razoável. Se te quiseres instalar já, a Rosa vai lá contigo - propôs o mecânico.
- Queria começar a trabalhar. Vou lá logo, ao fim da tarde - concluiu.
Não lhe importava saber onde ia dormir. Mas interessava-lhe muito aprender e conhecer a oficina. Abriu o saco de viagem, tirou de lá um fato-macaco, vestiu-o e, com um trejeito
cómico, pôs-se em sentido perante o casal Vaccari, que o observava com um ar divertido.
- Cuidado, Nano - disse a mulher, voltando-se para o marido -, quer-me parecer que arranjaste alguém que te vai roubar a profissão.
Rosa Vaccari tinha visto bem. Mistral aprendia com uma rapidez surpreendente, mas não tinha feito bem as contas em relação a Silvano, que não estava de todo disposto a ensinar-lhe
tanto como isso. Havia certos automóveis nos quais não o deixava pôr as mãos. Às vezes, para que Mistral não soubesse quais as modificações que fazia num carro de rali, trabalhava
de noite e ia dormir de manhã, quando Mistral chegava à oficina.
- Aprende a ficar fora da área protegida em que opera o mago -repetia-lhe Silvano. - Quando chegar o momento de te ensinar alguma coisa, eu ensino.
- Quero aprender - teimava Mistral.
- A profissão rouba-se. Não se ensina. E depois inventa, como fizeste com a membrana para a bomba do meu carro. Continua assim -concluía.
Às vezes Mistral levantava-se a meio da noite e ia à oficina. A grade estava descida, mas ele sabia que Silvano estava lá dentro a trabalhar. Uma vez reconheceu o rugido do
motor de um Fulvia 1600, cuja potência ele devia ter levado a 160 cavalos. "O limite da rutura", pensou Mistral. Depois voltava para casa, para recomeçar no dia seguinte
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a varrer o chão e a chegar-lhe os ferros indicados no momento certo, enquanto Silvano mexia no motor com a precisão de um cirurgião. À noite, o motor pousado na mesa de trabalho
era coberto.
- Porquê? - perguntava Mistral.
- Porque, se vier o dono do carro, quer saber o que é que eu estou a fazer, e eu não lhe quero dizer.
- Mas vai ver, de qualquer maneira, se levantar o capo, que o motor não está lá - objetava Mistral.
- Eu digo que o mandei a outro sítio para retificar.
- E ele acredita?
- Não, como é evidente. Mas não importa. Sabe que, quando eu lhe entregar o carro para o rali, vai estar tudo em ordem. E isso deve bastar.
Mistral perguntava a si mesmo se todos os mecânicos seriam como Silvano. Porém, aprendia muitas mais coisas do que podia ter imaginado.
Os clientes eram pessoas abastadas, que Silvano tratava pessimamente quando maltratavam os motores.
Rosa era uma fonte inesgotável de histórias engraçadas sobre o marido.
- Uma vez apresentou-se aqui um fulano com um Ferrari, e disse: "Sou Bernardo d'Holanda". O Silvano nem sequer olhou para ele e replicou: "E eu sou o Imperador do Japão".
Mas era mesmo o marido da rainha.
Mistral divertia-se com as histórias animadas de Rosa. Silvano, pelo contrário, ficava impaciente. Ele perseguia um sonho: conseguir o motor mais veloz com o peso mais leve.
- Por causa desta mania, gasta tudo o que ganha - queixava-se a mulher.
Mistral sabia que Silvano também gastava dinheiro com algumas raparigas que o faziam sentir-se jovem. Mas Rosa fazia de conta que não sabia de nada.
Tornar os carros mais leves, conciliando o limite da potência com a resistência à fadiga do motor, era uma especialidade de Silvano.
- Estás a ver - explicava-lhe o mecânico, enquanto trabalhavam -, numa competição o regulamento só admite algumas alterações. Mas
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aos meus clientes eu quero dar carros cada vez mais leves. Uma vez, diminuí duzentos quilos ao peso de um Fulvia 2500. - Exagerava. E sabia disso.
- É permitido?
- Que disparate! É completamente proibido. Mas faz-se. Tinha chegado o inverno e gelava-se na oficina. Mas Mistral e Silvano aqueciam-se no fogo daquela paixão. Perante a
dedicação do aprendiz, Silvano acabava por revelar segredos e oferecer-lhe uma parte da sua experiência. Mistral seguia-o com a docilidade com que um bailarino se abandona
ao som da música.
Foram dias, semanas, meses de entre os mais belos da vida de Mistral. Até ao dia em que, a falar ao telefone com a mãe, soube o que tinha acontecido à família Guidi.
- Foram todos pelo ar como foguetes - disse-lhe Adèle.
- Todos? Não se salvou ninguém? - perguntou, ao mesmo tempo que recordava Maria, com o vestidinho às flores, na berma da estrada de Cannucceto: uma figurinha delicada com
os campos ao fundo. Ela tinha-o mandado para o diabo, com a voz quebrada pela raiva e pelo choro. Não voltara a vê-la. Tinha-lhe mandado alguns postais, e isso era o máximo
para ele, dada a sua escassa prática a escrever. Dela não recebera qualquer sinal. Mas ainda a amava.
- Só se salvou a Maria - disse a mãe. - Está no hospital.
- Vou fazer-te uma visita.
E apanhou imediatamente um comboio para regressar a casa.
No hospital de Cesenatico estava muita gente que queria ver Maria. Os médicos, porém, não o permitiam, porque continuava em estado de choque. Mas um enfermeiro seu amigo mandou-o
entrar no quarto.
Ele falou-lhe, mas parecia que ela não o ouvia. Ou que não queria ouvi-lo.
Era evidente que Maria já não queria saber dele. Mistral decidiu que não devia pensar mais nela. Considerou, aliás, que com aquela rapariga tinha arriscado muito, mas que
lhe tinha corrido bem. Porque não era mulher de uma noite, e ele não queria ligações importantes, nem envolvimentos sentimentais.
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Preferia a companhia de mulheres que não lhe complicavam a existência.
Uma noite, ao regressar ao quarto, o porteiro deteve-o.
- Chegou a receber aquela encomenda que veio de sua casa? -perguntou.
Mistral olhou para ele com um ar interrogativo.
- Apresentou-se aqui uma rapariga, hoje de manhã. Disse que vinha da sua terra e que tinha uma encomenda para lhe entregar. Mandei-a àquele restaurante onde costuma ir comer.
Era hora de almoço - explicou o homem.
- Eu não vi ninguém - rematou Mistral. Aparecia muitas vezes alguma jovem à procura dele, com os pretextos mais estranhos.
Começou a subir as escadas, depois pensou melhor e voltou atrás.
- Como era ela? - perguntou ao porteiro.
- Muito bonita, Sr. Vernati. Mesmo muito bonita. Alta, pálida, cabelos ruivos, maravilhosos olhos verdes.
- Maria! - exclamou ele.
Depois lembrou-se de que naquele dia, no restaurante, ele estava com Michela, uma funcionária da Gazzetta que almoçava com ele muitas vezes. Conhecendo Maria, era provável
que tivesse ficado irritada. Naquela noite perguntou a si mesmo, durante muito tempo, por que razão teria ela ido a Modena à procura dele.
Se ainda o amava, porque o ignorara quando ele tinha ido vê-la ao hospital? Decidiu que no dia seguinte ia telefonar à mãe. Talvez Adèle pudesse dar-lhe alguma informação.
Na manhã seguinte, foi acordado por Rosa Vaccari, que tinha uma expressão mais cansada do que o costume e os olhos vermelhos de chorar.
- Vais ter de ir abrir a oficina - disse. - O Silvano teve um enfarte e levaram-no para o hospital.
- Espera aí, Rosa - disse-lhe. - Visto-me num instante e vou contigo.
- Trata da oficina - disse-lhe. - Eu trato do resto. Aquele desgraçado não se sentiu mal na minha cama! Estava na pensão Astoria, ontem à noite. Com a Rosilde, a mulher do
Dr. Spada. Sabes quem
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é? - Falava aos soluços, sacudida por uma tremura que não conseguia dominar.
- Acalma-te, Rosa. Não conheço nenhuma Rosilde - mentiu, sabendo que Silvano tinha há muito tempo uma história de cama com a bonita mulher do Dr. Spada que era, ainda por
cima, um cliente assíduo da oficina.
- Eu dou conta do trabalho. Podes ter a certeza - garantiu.
- Mas espera só que ele fique bom - disse Rosa, num tom ameaçador, quando chegaram à rua -, depois corto a cabeça ao menino Silvano e dou-lha para ela poder olhar para ele.
No meio daquela confusão, Mistral esqueceu-se de Maria.
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2
A notícia do enfarte que Silvano Vaccari sofreu quando se encontrava na companhia da bela Rosilde, na pensão Astoria de Modena, foi partilhada pelos clientes da oficina e
espalhou-se, assumindo contornos mais amplos que foram enriquecer a agradável arte do mexerico. O único que parecia não se incomodar com isso era o Dr. Matteo Spada, marido
de Rosilde e assíduo cliente de Silvano. Vinha expressamente de Forli para afinar o motor do seu Fulvia 1600. No dia seguinte a ter descoberto a infidelidade da mulher, apresentou-se
na oficina.
- Não olhes para mim como se eu fosse um marciano - começou, dirigindo-se a Mistral. - Escuta mas é o motor. Faz um ruído. Estás a ouvir?
Mistral ouvia, mas não percebia por que razão o médico tinha regressado com tanta desenvoltura ao terreno do seu rival. O Dr. Spada gozava da fama de ser um excelente cardiologista.
Trabalhava no hospital de Forli e tinha um consultório privado em Modena, onde se dizia que até tratava Enzo Ferrari. Gostava de automóveis e costumava repetir: "O motor é
o coração do automóvel. Um bom mecânico é como um bom cardiologista".
- Parece que faz um ruído. O senhor andou a puxar muito por este carro - observou Mistral.
- Tinha umas contas a ajustar com a minha mulher e precisava de extravasar de qualquer maneira - admitiu, com uma calma desar-mante. - Agora está tudo resolvido. Ela no caminho
dela e eu no meu. Quanto ao teu patrão, já foi castigado que chegue. Vai ter com que
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se entreter uns bons tempos, se tudo correr bem. Mas eu não posso deixar esta oficina. Vi como trabalhas e confio em ti.
Foi assim que se tornaram amigos. Mistral ainda não tinha 20 anos, Matteo tinha 40. Com o decorrer do tempo, nasceu entre eles uma relação de pai e filho.
Passou o inverno, regressou a primavera e Silvano voltou para a oficina.
Tinha emagrecido e estava com um ar cansado. Vestia o fato-macaco branco e, quando chegavam os clientes, fazia de conta que estava a trabalhar. Mas quem tratava de tudo era
Mistral, que fazia muitas noitadas para aligeirar um chassis, dosear os aditivos, aumentar as octanas do carburante, fazer furos nos painéis dos carros para diminuir o peso
ou estudar o equilíbrio das suspensões.
Silvano observava-o, dava-lhe algumas sugestões e depois enterrava-se na sua cadeira, atrás da secretária, cada vez mais melancólico.
- Sou um homem acabado - queixava-se a Mistral. - A minha Rosa, agora que eu já não ando com outras mulheres, desabrochou. Enquanto eu estou atirado para aqui.
- A tua conta bancária também refloresce - dizia Rosa quando, raramente, passava pela oficina.
- Mas o meu salário é sempre o mesmo - observou um dia Mistral, que tinha posto os olhos no Alfa de um cliente ao saber que tinha sido posto à venda. Gostaria de ficar com
ele, mas não tinha dinheiro para o comprar.
- Agora queres fazer chantagem comigo? - replicou Silvano, assustado com a ideia de Mistral querer ir embora.
Mistral intuiu o seu estado de espírito e arrependeu-se de ter falado daquela maneira.
- Esquece o que eu disse - declarou, e voltou ao trabalho.
- Mas ele tem razão - objetou Rosa. - Já não é nenhum aprendiz. Foi assim que Mistral viu o seu salário duplicado e tentou falar
com o proprietário do Alfa. Era o filho de um industrial de Carpi e chamava-se Guido Corelli. Participava em ralies e chegava regularmente em último, levando depois para a
oficina os carros com os motores tão maltratados que eram quase para deitar fora.
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Atribuía a culpa dos seus insucessos, alternadamente, ao mau tempo ou a Silvano.
- Arranquei com pneus de chuva e não apanhei sequer uma gota de água - queixava-se. Ou então acusava-o: - Puseste-me dois faróis suplementares e por isso dei cabo da bateria.
Na realidade, sabia que era incompetente, mas era mais divertido correr do que trabalhar no estabelecimento de malhas do pai.
- Então querias o meu Alfa - disse Guido Corelli.
- Se me fizeres um bom preço e aceitares que te pague um tanto por mês - propôs Mistral.
- Eu ofereço-to - exclamou Guido -, com uma condição: preparares-me um carro capaz de vencer o Rali de Sanremo.
- Vou entregar-te uma pena que corre como um leopardo -prometeu Mistral. Desejava aquele Alfa com toda a sua alma. Durante um mês trabalhou para aumentar a potência do automóvel
de Guido e torná-lo mais leve. Passou muitas noites na oficina, a ouvir as sugestões de Silvano e a inventar novas soluções.
- Puseste-o como papel de seda - observou o patrão, satisfeito.
- Ainda o posso pôr mais leve - disse Mistral.
- Não podes. Já está pele e osso.
- Reduzo as pás. De oito, faço quatro. Uma ventoinha com quatro pás é mais leve e refresca na mesma.
- Oh, Cristo! - exclamou Silvano. - Eu nunca pensei numa coisa dessas.
Ao encontrar Mistral na oficina de Cesenatico, tinha achado que aquele buraco não era próprio para ele. Agora começava a achar que era um desperdício até na sua oficina. Mistral
tinha os automóveis no coração e na cabeça.
Ao fim de um mês, o carro estava pronto.
- Está aqui a pena que te prometi - disse Mistral a Guido. - Basta que tu lhe digas para andar e ela leva-te nas asas do vento.
- O que lhe fizeste? - perguntou, curioso.
- Isso são assuntos nossos - interveio Silvano.
- Tu só tens que te sentar dentro dele e acariciá-lo como se fosse a mulher da tua vida - sugeriu Mistral.
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- Querem ver que agora o mecânico me quer ensinar a conduzir! - replicou Guido, agastado.
- Porque não, se o que está em jogo é o teu Alfa - disse Mistral, muito sério. E reforçou: - Tratas os carros como se fossem putas. No entanto, eles têm uma alma, o que é
que tu julgas? Uma vez, em Maranello, o Rossellini disse: "Em toda a minha vida, a maior felicidade não a tive com uma mulher, mas com um Ferrari", e fez chorar a Ingrid Bergman.
- Não nos afastemos do importante - interrompeu Guido. - Falam todos muito bem. Já entraste em alguma competição?
- Muitas. Com motos. Nunca me pude dar ao luxo de ter um carro. Mas neste apliquei tudo aquilo que aprendi com o Silvano. Gostava de o experimentar contigo - propôs.
Quando entravam no carro, Silvano disse:
- Olha que o Mistral, com as motos, ficava em primeiro.
- É verdade? - perguntou Guido, ao mesmo tempo que ligava o motor.
- Só às vezes - respondeu Mistral, sem querer dar muita importância ao assunto. - De qualquer maneira, tratava-se de competições de aldeia.
Saíram da cidade e entraram em estradas pouco movimentadas. O carro corria como um míssil. O piloto sentia-o vibrar e tremia com ele.
- Estás a aproximar-te daquela curva com muita velocidade -avisou Mistral, e prosseguiu: - Estás a ver? Arranjas problemas, tens de travar de repente e os pneus chiam. O Stirling
Moss dizia que um piloto tem de aprender a endireitar as curvas e transformá-las numa reta vertiginosa. E é assim. Para cada curva há uma trajetória ideal que a endireita.
Esta técnica, ou a conheces por instinto, ou a aprendes. Tu tens de aprender.
Mistral espicaçava Guido como se quisesse entrar na sua cabeça, ver com os seus olhos, carregar nos pedais com os seus pés. De repente, Guido travou o carro perto de uma curva.
- Sai! - gritou.
Mistral olhou para ele, aflito. Leu-lhe no rosto um furioso impulso de raiva.
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- Sai - repetiu Guido, ao mesmo tempo que desapertava o cinto de segurança de Mistral. Ele tinha passado das marcas. Só agora se dava conta disso. Saiu, e enquanto o carro
arrancava a chiar gritou por sua vez:
- Quero o Alfa que me prometeste. Vence aquele rali, por amor de Deus!
Depois ficou sozinho, sem transporte, no meio dos campos, a muitos quilómetros da cidade.
Guido, pela primeira vez na sua vida de corredor, ficou em segundo no Rali de Sanremo. O carro ainda estava em boas condições quando o levou à oficina.
- Deixo-to aqui para afinar - disse a Mistral. - Da próxima vez, vou ganhar.
- Tenho a certeza - respondeu Mistral.
- A propósito - disse Guido -, o meu Alfa é teu.
Foi assim que teve o seu primeiro carro de velocidade.
- Gostava de lhe dar um jeito, à minha maneira - disse Mistral a Silvano.
- Não no horário de trabalho - sentenciou Silvano.
- Talvez ao domingo - sugeriu Mistral.
- Tu preocupas-me, Mistral - disse Silvano.
- Porquê?
- Não queria que metesses na cabeça a ideia de que vais correr. Preciso de ti aqui, na oficina.
- Podia fazer as duas coisas.
- Até podes. Mas eu vou tornar-te a vida muito difícil - prometeu Silvano.
- Parece-me justo. Quando uma pessoa quer mesmo uma coisa, luta por isso com todas as suas forças. Por isso vou ver se quero mesmo ser piloto.
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O Dr. Matteo Spada, dois anos depois de se ter separado da mulher, tinha-se habituado bastante bem à solidão. Faltava-lhe o temperamento ardente e o entusiasmo de Rosilde,
que era uma amante fogosa, não só com os amantes mas também com ele.
Matteo e Rosilde tinham um filho em comum que vivia com a mãe e passava com o pai grande parte dos domingos.
Na época das corridas automobilísticas, quando havia competições, Matteo levava o filho ao autódromo de Varano, contagiando-o com a sua grande paixão pelos carros de corrida.
Naquele domingo de primavera, chegou quando a corrida de Fórmula Itália já tinha começado. Não era fácil encontrar um estacionamento adequado para o seu Ferrari, que era agora
o único e dispendioso amor da sua vida, o flamejante objeto de desejo que lhe proporcionava um prazer quase sexual.
Com efeito, as companheiras ocasionais faziam o melhor que podiam para o satisfazer, mas certamente não estavam à altura da ardente Rosilde, e ele resignava-se pensando que
não se pode ter tudo na vida.
Com o intuito de arranjar um sítio adequado para deixar o Ferrari, não percorreu o caminho habitual e descobriu finalmente um lugar bastante elevado em relação ao circuito.
Não era a solução ideal, mas pelo menos poderia acompanhar a corrida sem perder o carro de vista.
Ajudou o filho a descer e apercebeu-se de que, um pouco mais adiante, estava um carro funerário, semiescondido pelos choupos,
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estacionado atrás da rede metálica que delimitava a zona do autódromo.
- Essa agora! - exclamou, enquanto se aproximava do carro, com o filho. Tinha a monumentalidade, os dourados e os frisos dos velhos modelos já passados de moda.
Em cima do tejadilho daquele singular carro estavam instalados três rapazes que, daquela posição privilegiada, assistiam à corrida a beber Coca-Cola.
O Dr. Spada reconheceu Mistral.
- O que é que estás a fazer aí em cima? - gritou.
- Olá, doutor - cumprimentou Mistral. - Grande corrida. Venha aqui para cima ver.
- Em cima de um carro de mortos? - disse o médico, escandalizado.
- O morto já o levámos ao cemitério - garantiu um dos rapazes. - Venha, que daqui vê-se melhor do que na televisão.
- Este é o Miserere - apresentou Mistral. - O nome verdadeiro dele é Sérgio. Mas como o pai tem uma agência funerária... e este é o Fábio, mais conhecido por Caffeina.
A criança olhou para o pai e implorou com um olhar inocente. Aqueles três galhofeiros em cima do tejadilho do carro eram, para ele, os protagonistas de uma grande aventura.
- Ajuda-me a subir, papá - suplicou.
- Sobe. E vocês segurem nele - disse.
Puxaram-no para cima e continuaram a criticar ferozmente os corredores.
- Se eu estivesse no lugar daquele bronco - gritou Mistral -, mostrava-lhe como é que se faz para agarrar as curvas com algemas.
- Olha para o número seis. Não faz as curvas. Telegrafa-lhes -disse Miserere.
O Dr. Spada já não acompanhava a corrida. Observava o perfil de Mistral, contraído até ao espasmo. Intuía que o jovem mecânico não estava ali, com eles, mas que se sentava
alternadamente em cada um dos carros em competição. Assim, enquanto na pista a corrida continuava entre ultrapassagens, viaturas fora da pista e gritos da multidão, Matteo
gritou-lhe:
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- Gostavas de correr?
- Quem é que não gostava? - replicou Mistral.
- Acho que temos de dar dois dedos de conversa. Um destes dias vou ter contigo à oficina - propôs o médico.
A corrida tinha acabado. O Dr. Spada despediu-se de Mistral e dos dois amigos e foi-se embora com o filho. Os três rapazes puseram em marcha o carro funerário para regressar
a casa.
- Porque será que o teu amigo quer dar dois dedos de conversa contigo? - perguntou Miserere, que ia ao volante daquele singular meio de transporte.
- Eu sei lá! É um tipo estranho. Eu nem lhe ligo - disse Mistral, que na realidade estava muito curioso em saber qual era a ideia do médico, mas não o queria dar a entender.
- Perguntou-te se gostavas de correr - insistiu Caffeina. - O meu pai conhece o Dr. Spada e diz que ele não é pessoa para falar à toa.
Avançavam à velocidade máxima permitida pelo veículo e davam asas aos seus sonhos com as palavras.
- O Dr. Spada conhece o Enzo Ferrari. Queres apostar que consegue que te contratem para Maranello? - comentou Miserere, que já via o amigo instalado no prestigiado clã da
Ferrari.
- Olha que ele perguntou se ele gostava de correr. Isso significa que estava a ver o Mistral como piloto, não como mecânico - sublinhou Caffeina. - Não é assim, Mistral?
- Acho que estamos a dar demasiadas asas à imaginação - objetou ele.
- E qual é o mal? Não é proibido sonhar - disse o amigo.
- Para vocês não, porque têm as costas quentes e quem trate de vos resolver os problemas. Para mim é diferente. Eu só posso contar comigo, porque o meu pai não é um fabricante
de máquinas de café, nem tem uma agência funerária. Morreu quando eu tinha 2 anos e eu tenho que me governar sozinho - observou, sem o tom de quem está à espera que alguém
sinta pena dele.
- Nós somos obrigados a trabalhar para a empresa familiar. Olha que felicidade! Tu, ao menos, pudeste escolher o trabalho de que gostas. Percebes isso? - exclamou Caffeina.
Mistral abanou a cabeça. Havia sensações e pensamentos que eles,
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filhos de burgueses abastados, não podiam sequer imaginar. Em qualquer caso, formavam um trio muito unido. Ligava-os a paixão pelos motores. À noite, depois de um dia de trabalho,
Caffeina e Miserere iam ter à oficina junto ao caminho de ferro. Quando Silvano não estava, Mistral deixava-os entrar e, sem parar de trabalhar, tecia com eles projetos para
o futuro. Um dia abririam um concessionário de carros desportivos. Um salão faraónico. Mistral seria o diretor e eles tratariam das relações públicas. Mas era verdadeiramente
sonhar acordado, mesmo para Miserere e Caffeina, que recebiam ordenados modestos dos respetivos pais que os consideravam uns incapazes.
Mistral estava a atravessar um momento difícil. Lutava há algum tempo para poder participar num rali, mas não encontrava um patrocinador. Tinha apenas umas pequenas poupanças,
que não eram suficientes para cobrir as despesas. A única pessoa que estava ao corrente daquele desejo era Silvano, que não tinha nenhuma intenção de o ajudar.
Desde que tivera o enfarte, vivia no terror de que o ajudante o deixasse. Mistral apercebia-se disso, e tinha também a consciência de que, no caso de ele se ir embora, Silvano
fecharia a oficina. Mas o momento certo acabaria por chegar. Não sabia como nem quando, mas tinha esse presságio.
Quando chegaram perto do cemitério, onde ficava a sede da agência funerária Centamore, Miserere parou o carro com uma travagem brusca. Tinha visto o pai correr em direção
a eles, a mostrar os punhos. Os três rapazes saíram e Miserere esquivou-se, como um profissional, aos murros do pai, que gritava impropérios contra eles.
- És a desgraça da família. És uma besta, tu e estes imbecis que estão contigo. Está um morto à tua espera, os parentes a escoicear e o carro funerário onde está? A passear
pelo campo, com estes três idiotas lá dentro. Mas eu dou cabo de vocês, tão certo como Deus existir!
- Na verdade, a culpa é só minha, Sr. Centamore - disse Mistral, na tentativa de salvar o amigo.
- Tu estás calado! - retorquiu o homem.
Mistral e Fábio perceberam que não valia mesmo a pena interferir e afastaram-se, sabendo que o amigo Miserere estava, momentaneamente, perdido.
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- O que é que se faz agora? - perguntou Fábio.
- Eu vou para a oficina montar o motor do meu Alfa - disse Mistral.
- Porque não vens a minha casa? Os meus pais não estão e a minha irmã dá uma festa com um monte de raparigas. Anda lá, ainda nos vamos divertir - sugeriu.
Mistral não tinha uma namorada fixa. Acontecia-lhe passar meses seguidos na mais absoluta castidade. Não tinha tempo para o amor. Silvano Vaccari censurava-o às vezes.
- Olha que se perde tudo o que não se aproveita - dizia-lhe. - Se eu pudesse ter ainda a tua idade! Era o conquistador lá do bairro, nos bons tempos. Agora sou um homem acabado.
Silvano tinha mudado. Mistral via-o cada vez mais fraco e cansado. Às vezes o Dr. Spada ia à oficina e, esquecendo-se de que ele tinha sido amante da mulher, tirava o estetoscópio
da pasta e dizia-lhe:
- Senta-te aqui, para eu te ouvir o coração. - Depois pedia uma série de análises e concluía: - Mantém o moral em cima. É importante para se estar bem. - Pensavam ambos na
bela Rosilde com uma nostalgia infinita e sem rancor.
Agora Fábio convidava Mistral para concluir o dia em alegre companhia.
- Está bem. Eu vou a tua casa - decidiu, esboçando um sorriso, porque pensou em Margherita, a irmã de Fábio, uma bela morena de formas exuberantes e apetites vigorosos.
Em casa de Fábio estava a decorrer uma festa como deve ser: gira-discos no máximo, comida e bebida que nunca mais acabavam e uma vintena de rapazes e raparigas com ar de se
estarem a divertir bastante.
Quando entrou Mistral, por alguns instantes fez-se silêncio. Alguém desligou o gira-discos e os pares pararam de dançar. Mistral era uma espécie de ídolo no círculo dos jovens:
as raparigas achavam-no fascinante, os rapazes admiravam-no porque experimentava os carros mais bonitos e rápidos que passavam pela oficina. "Anda depressa", diziam dele,
e naquelas duas palavras estavam contidos respeito, admiração e inveja. Toda a gente gostava dele porque não se armava, sabia do seu trabalho, falava pouco e ouvia muito.
Margherita
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lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o na boca, um pouco para fazer ciúmes ao namorado e um pouco porque gostava mesmo de Mistral.
Ele, com a discrição de sempre, aceitou aquelas boas-vindas com um ar desenvolto e com um grande sorriso. Depois voltou-se para Guido Corelli.
- Já não te vejo há uns tempos - disse Mistral.
- Deixei-me de corridas - respondeu Guido.
Mistral não fez comentários. Margherita convidou-o para dançar.
Fábio contava com pormenor a história da corrida de Varano, o regresso à cidade no carro funerário e o pobre Miserere agredido pelo pai.
- Vamos sair, esta noite? - propôs a irmã de Fábio.
- Não quero confusões com o teu namorado - respondeu Mistral.
- Diz-me antes que já tens outro compromisso - reagiu Margherita.
- Não é isso. E tu bem sabes.
- Então não sou o teu género - disse Margherita. - Porque não dizes a verdade? - desafiou-o.
- Eu estou a dizer a verdade. Tenho a cabeça noutro lugar. Sinto muito - replicou, sentindo-se um estúpido porque Margherita estava disponível e ele gostava dela, mas pertencia
a uma família muito burguesa e rígida. E ele sabia quais eram as raparigas que não lhe criariam problemas.
- Esquece, então. E, por favor, sai da minha casa - replicou a rapariga, com raiva.
Mistral saiu à francesa. Quando chegou à rua, ouviu chamar pelo seu nome. Era Guido Corelli que vinha atrás dele.
- Vamos dar uma volta? - propôs.
- Se fazes questão - respondeu Mistral.
De repente, sentia-se de péssimo humor, e só o trabalho na oficina poderia levantar-lhe o moral.
- Há um ano comprei um carro ao Repetto, o construtor de automóveis de Alessandria - começou Guido.
- Não sabia - disse Mistral.
- Escondi-o numa garagem. Não queria dizer ao meu pai. Meteu-se-me na cabeça inscrever-me no campeonato. Depois, quanto
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mais o tempo ia passando mais eu me apercebia de que o meu futuro não estava nas pistas. Queria vendê-lo. É uma jóia, acredita. Dá 175 à hora. É leve, aerodinâmico. Uma maravilha.
Interessa-te? -propôs.
Caminhavam sob os pórticos à espera da hora de jantar.
- Que pergunta! Eu não tenho um tostão. E tu bem sabes - respondeu Mistral, irritado.
- Não te pedi dinheiro. Só quero saber se te interessa.
- Qual é a tua ideia?
- Quero apresentar-te ao meu pai. Tenho um projeto.
- Explica-te melhor, Guido - pediu Mistral, curioso.
- Corrias na Fórmula Monza. No Repetto colocávamos a marca das malhas do meu pai. Ele odeia carros, mas sabe aproveitar uma boa publicidade. O que te parece?
- Fiquei outra vez bem-disposto. Quando é que posso encontrar-me com esse pai maravilhoso?
No dia seguinte, apareceu o Dr. Spada. Abordou o assunto com rodeios, lamentou-se por já não ter vinte anos e por ter escolhido uma profissão em detrimento de outra que, essa
sim, o apaixonava muitíssimo: o automobilismo.
- Não soube arriscar, percebes? - confessou. - Mas ficou-me cá dentro esta inquietação. Por isso, disse a mim mesmo que aquilo que eu não fiz poderia fazê-lo um rapaz como
tu. Tu tens vontade e talento para correr, mas não tens os meios. Eu arranjei-te um patrocinador. É um doente meu de Parma. Chama-se Malinverni e tem uma salsicharia. Também
ele é louco por automóveis.
Mistral lançou-lhe um sorriso de orelha a orelha.
- E eu tenho um carro para correr na Fórmula Monza - declarou.
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- Não te deixo ir sozinho - disse Silvano.
- Há dois anos juraste que nunca apostarias uma lira no meu futuro de piloto - replicou Mistral.
- Só os imbecis nunca mudam de ideias.
- Tens sempre a resposta pronta.
- Os anos e a dor ajudam-nos a entender o mundo. Deixa-me ir contigo a Monza.
- Vou sozinho - disse Mistral num tom decidido, e Silvano percebeu que era inútil insistir.
- Achas que este não aguenta? - disse, e levou uma mão à altura do coração.
- Esse está melhor do que o meu - mentiu Mistral. - Não é essa a questão. Quero estar sozinho. Nem sequer disse nada aos meus amigos.
Silvano deu alguns passos em direção à porta e depois voltou-se.
- Estás com medo - concluiu.
- O que é que te faz pensar isso?
- Uma coisa parece fácil, mas depois quando se aproxima a concretização percebe-se que é terrivelmente complicada. O que acontece é que se sente medo, quando chega o grande
momento.
- Adivinhaste, Silvano. Estou com medo. As corridas de moto eram uma brincadeira. Agora há gente a investir dinheiro em mim. Depois, é Monza. Queres comparar o circuito de
Monza com as estradas da minha terra?
Mistral estava prisioneiro de um emaranhado de emoções e de pensamentos.
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- Não te preocupes - aconselhou Silvano, ao mesmo tempo que
lhe entregava um envelope.
- O que é isto? - perguntou.
- Dinheiro. E faz-me o sagrado favor de o aceitar, se não queres que te ponha as mãos. - Tinha decidido ajudá-lo a todo o custo e Mistral aceitou, porque era importante para
os dois.
- Obrigado - disse Mistral, num murmúrio.
- Agora sei que tens maturidade para correr - sentenciou Silvano, com orgulho.
Mistral esperou que ele não estivesse enganado. Gostaria de lhe perguntar de onde vinha aquela convicção, mas percebeu que era melhor deixar as coisas como estavam.
- Quanto às pessoas que te financiam - continuou Silvano -, como é que lhes chamam, agora? - Hesitou um instante. - Sponsor, é assim que lhes chamam. Bem, deves estar-te nas
tintas para esses tipos fantásticos. Não são filantropos. São uns piratas. Vão exigir-te que fatures o dobro do dinheiro que gastaram contigo. Depois vão deduzi-lo na declaração
de rendimentos. Fica sossegado, que eles ganham sempre contigo.
O jogo dos patrocinadores não era segredo para ninguém, nem mesmo para Mistral, que acabava de chegar, mas isso não tirava nada ao facto de terem apostado nele. Não os podia
desiludir.
Instalou o automóvel no atrelado que tinha alugado para o efeito, despediu-se de Silvano, que o quis abraçar, e partiu para aquela nova aventura.
Tinha caído a noite. O circuito de Monza, agora que o via de verdade, iluminado por potentes holofotes, parecia mais um cenário de ficção científica. Mistral respirou a plenos
pulmões o cheiro do carburante, o seu perfume preferido, e imaginou ver formações de astronaves a aterrar à volta dele sobre aquele asfalto que ia ter diretamente ao lugar
onde nasciam e se concentravam os seus sonhos.
O seu pequeno Repetto, naquela pista imensa, parecia um brinquedo esquecido por um menino mimado.
Havia uma centena de participantes, divididos em quatro grupos. Os primeiros seis de cada grupo chegariam à final.
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Mistral observava com extrema atenção os pilotos que se moviam à volta dos seus carros. Eram raposas velhas que conheciam a pista como as suas mãos. Cada concorrente tinha
duas pessoas atrás e uma carteira cheia de dinheiro.
- Mas tu és o Mistral - exclamou um piloto que foi ao encontro dele com um grande sorriso.
Mistral reconheceu-o. Era Pino Bianchini, o filho do dono de um hotel de Cesenatico. Passava a vida a correr.
- O que é que estás aqui a fazer? - perguntou-lhe.
- Vou entrar na corrida - respondeu, a sorrir.
- Para quem trabalhas?
- Vim pelos meus próprios meios.
- Estás com vontade de brincar?
- Estou com vontade de vencer.
Bianchini olhou para ele como se olha para um louco.
- Sabia que és um bom mecânico, mas não um doido varrido.
- Já ficas a saber.
- Fazes alguma ideia do que te espera?
- Sou muito sensível e prefiro não pensar nisso.
- Conheces a pista?
Mistral abanou energicamente a cabeça em sinal de negação.
- É a primeira vez que a vejo - admitiu candidamente. Bianchini olhou para o céu, que tinha escurecido subitamente.
Caíram as primeiras gotas de chuva.
- Daqui a dez minutos vamos ter um dilúvio. Convém-te mudar de pneus - aconselhou.
- Podes emprestar-me o macaco? - perguntou Mistral.
- Não trouxeste um mecânico contigo?
- Acho que já te disse que estou sozinho.
- Não querem ver este louco! - exclamou o piloto. - Eu empresto-te o macaco, mas tu aceita um bom conselho. Volta para casa.
Começou a chover e Mistral colocou o carro em cima do empedrado. Trocou os Pirelli por quatro Goodrich, mais adequados ao piso molhado. Trabalhou debaixo de uma chuva diluviana
a engolir lágrimas e raiva. Era o último da fila e iam mandá-lo para fora na primeira curva. Não sabia como iria terminar a sua grande aventura, mas de
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uma coisa tinha uma certeza matemática: não ia voltar para casa. Restituiu o macaco ao amigo.
- É a primeira vez que corro em piso molhado - confessou Mistral. - E não conheço a pista. Preciso de um favor. Posso correr contigo as primeiras voltas? - perguntou-lhe.
- Estás mesmo decidido?
- Se me deixares correr contigo as primeiras voltas, vou recordar-te sempre nas minhas orações - brincou.
- Eu já te disse o que deves fazer. Mas já que não ouves nada, vou fazer-te esse favor. Três voltas, Mistral. Puxo-te três voltas e depois abandono-te ao teu destino.
Estava completamente encharcado, mas agora tinha pelo menos um ponto de apoio. Partiram para as voltas de aquecimento. Mistral agarrou-se à esteira de Bianchini, com muita
atenção para não o perder. Pino puxava nas retas e depois afrouxava nas curvas. Mistral seguiu-o durante as cinco voltas inteiras.
Quando regressaram às boxes, Mistral agradeceu-lhe.
- Foste muito fixe. Abrandavas por minha causa, nas curvas?
- Puxei ao máximo - confessou o amigo. - Nunca te consegui despistar. És mesmo bom.
- Ainda posso fazer melhor - garantiu.
- És um tipo estranho.
Mistral ficou em primeiro no grupo e em primeiro na final. O motor do seu carro, que ele tinha tratado como um filho, no fim da corrida ainda cantava. Também o seu coração
exultava quando entrou de novo nas boxes. Estava exausto, a morrer de sede, mas tinha vencido. Sorria aos adeptos que perguntavam uns aos outros quem seria e de onde teria
saído aquele rapaz solitário que tinha triunfado.
Pino Bianchini estava à espera dele. Estavam sozinhos na box.
- Agradeço-te muito - disse Mistral com um sorriso. - Sem ti, nunca teria conseguido.
Bianchini olhou para ele, retribuiu o sorriso e depois atingiu-o com um murro que o fez dobrar os joelhos. A seguir debruçou-se sobre ele e disse-lhe:
- Desta vez foi assim, mas nunca mais tentes fazer pouco de mim.
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Depois deixou-o ali ficar.
Mistral estava cansado, cheio de sede, dorido, mas feliz. Levantou-se com alguma dificuldade, massajou o queixo e começou a rir como um doido. Dispararam os flashes dos fotógrafos.
- Porque é que ele te bateu? - perguntou um dos presentes.
- Questões de mulheres - respondeu Mistral, e continuou a rir.
- Vitorioso na primeira corrida - observou um jornalista. - Qual é a sensação?
- Parece um sonho.
- Podes dizer-me o teu nome?
- Mistral Vernati - pronunciou devagar, orgulhosamente.
- Onde está o teu mecânico? - perguntou o jornalista.
- O meu mecânico sou eu! - exclamou, feliz.
- Apetece-te contar-me a tua história? - perguntou o repórter.
- Fica para outra vez. Quando tiver a certeza de que não estou a sonhar.
A chuva tinha parado e um vento húmido afagava-lhe o rosto. O autódromo começava a esvaziar-se. Não ia lembrar-se de nada do cerimonial da entrega dos prémios. Parecia-lhe
estar no centro de um conto de fadas. Estava a pôr o carro no atrelado quando ouviu uma voz atrás de si:
- Que grande corrida, realmente.
- Silvano!
Os dois homens abraçaram-se.
- Julgavas mesmo que eu te ia deixar sozinho num momento destes?
- Tive sorte.
- Claro, mas a sorte não basta para vencer.
- Vamos para casa - propôs Mistral.
- Falei com os jornalistas - preveniu-o Silvano. - Contei a história da tua vida. Amanhã os jornais vão falar de ti.
- Tens a certeza?
- Claro. A propósito, e a mulher? Onde foi parar a mulher da discórdia, aquela que te levou ao tapete?
- Essa história eu conto-ta noutra altura. Então, vamos para casa?
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- Está toda a gente à tua espera no melhor hotel de Monza. Estão lá os teus amigos Caffeina e Miserere, a minha Rosa, o Dr. Spada, o Guido Corelli e o salsicheiro Malinverni.
Espera-te uma noite de festa. Aliás: a noite do triunfo.
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Foi a primeira grande festa para Mistral, e a última para Silvano Vaccari. O lendário preparador de carros de rali partiu poucas semanas depois. Morreu durante o sono e, segundo
explicou a sua Rosa, nem se apercebeu. Seguramente não se apercebeu ela própria, que estava a dormir ao lado dele, e que só na manhã seguinte deu conta de que aquele "desgraçado"
do marido tinha fechado os olhos para sempre.
Rosa e Mistral, as pessoas que tinham estado mais perto dele, abraçaram-se longamente e choraram. No enterro constataram que Silvano deixava atrás de si uma infinita herança
de afetos. Raramente se tinha visto em Modena um funeral com uma multidão tão imponente. Estavam mesmo todos: amigos, clientes, ex-amantes e curiosos.
Também estava a bela Rosilde que, para a ocasião, ia de braço dado com o marido. Rosa chorou no ombro dela e Rosilde abraçou-a com ternura. O ressentimento e o ciúme já não
faziam sentido perante o mistério impenetrável da morte. Silvano tinha sido grande, como homem e como mecânico, e assim haviam de o recordar.
Matteo Spada dirigiu a Rosa palavras muito afetuosas.
- Já sabes que podes contar sempre comigo.
- Vou ter muito que fazer, felizmente - respondeu a mulher, ao mesmo tempo que enxugava os olhos. - Tenho de continuar a tratar da gestão da oficina, que é o mais importante,
e da casa. - E acrescentou: - A partir de agora, a oficina é do Mistral. Foi essa a vontade do Silvano, coitado.
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O anúncio não espantou ninguém, uma vez que toda a gente conhecia a vontade de Silvano. Por outro lado, Mistral, agora mais do que nunca, precisava de ganhar dinheiro para
fazer frente às despesas das corridas. Estava na fase em que um piloto principiante precisa de correr regularmente e de vencer pelo menos algumas corridas para se fazer notar.
Deixou logo o quarto mobilado onde vivia e mudou-se para o grande apartamento de Rosa, no Corso Adriano. Quando estava a recolher as suas coisas para dentro de um grande caixote
de cartão, veio parar-lhe às mãos um livro que Maria lhe tinha oferecido no verão em que se tinham conhecido: Love Story, com uma dedicatória de uma ingenuidade comovente:
"Para o Mistral que, como vento selvagem, arrebatou o meu coração. Maria".
- Não gostei deste livro - tinha-lhe dito ele.
- Porquê? - perguntou ela, um pouco desconcertada.
- Há ali uma nota fora do tom. É verdade, a história faz chorar. Mas, se pensares bem, é como um motor nas mãos de um mau piloto. Não canta como devia porque o piloto quer
fazer mais do que pode. Não é sincero, é isso.
- Tu não percebes nada do amor - respondeu ela, furiosa. Recordou os grandes olhos escuros de Maria a olhar para ele
e ouviu o som da sua voz vibrante e macia. Fechou o livro e voltou a colocá-lo junto dos objetos que lhe eram mais queridos: as fotografias dos campeões do volante, as suas
de criança com a mãe, a de Adèle e Talemico no dia do casamento, os troféus ganhos nas corridas de motociclismo.
Naquele caixote estava o seu passado, estavam os seus sonhos e estava também Maria e o seu perfume de muguet. Depois daquele encontro falhado, em Modena, não voltara a ter
notícias dela. Tinha sido precisa aquela mudança de casa para a trazer de volta, de um modo poderoso, à sua memória.
Nos dias seguintes deu alguma ordem à oficina de Silvano, tentando adaptá-la à sua própria personalidade. Mistral tinha um conceito quase maníaco da ordem e da limpeza. No
meio de papéis velhos encontrou também uma revista. Ao folheá-la, distraidamente, foi atraído por uma página de publicidade. Uma bonita fotografia de dois jovens, um rapaz
e uma rapariga, sorridentes, que seguravam
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na palma da mão um elegante frasco de perfume. E uma legenda: bluesky pour lui et pour elle. O rapaz era do tipo mediterrânico: pele bronzeada, olhos escuros, densos cabelos
negros. Ela era uma beleza extraordinária, quase angelical, emoldurada por uns inesquecíveis cabelos ruivos.
- Maria! - exclamou.
Parecia mesmo ela, mais sofisticada e transformada por uma maquilhagem sapiente. Só o olhar, que recordava inacessível e inquieto, surgia, na imagem, tranquilo e sereno.
A revista tinha dois anos. No fundo da página havia uma legenda em carateres quase impercetíveis: "Idealinea publicidade, Milão. Estúdio fotográfico Gavazzi".
Mistral procurou na lista telefónica os números da agência publicitária e do fotógrafo. Ao fim de múltiplas tentativas, abandonou a pesquisa relativa à agência e tomou em
consideração apenas o do estúdio fotográfico. A secretária pensou tratar-se de um maníaco, tal era a excitação que colocava nas perguntas que lhe fazia.
Foi precisa toda a sua tenacidade para conseguir finalmente falar com ítalo Gavazzi, que se recordava perfeitamente da campanha dos perfumes Bluesky e dos dois modelos.
- Dois indivíduos apanhados na rua - disse o fotógrafo. - Ele é um americano errante. Ela, uma rapariga da Romagna que fala pouquíssimo. Devia estar de alguma forma ligada
a um dirigente da Bluesky. Parecia que ele tinha apostado tudo naquele rosto de anjo - concluiu.
- Lembra-se do nome?
- Do dirigente?
- Não. Da rapariga.
- Mara, acho eu. Ou talvez Maria. Não me lembro bem.
- Faz alguma ideia de onde eu a posso encontrar?
- Devia dizer-lhe que não, porque nós não damos os números de telefone dos nossos colaboradores. Mas, uma vez que simpatizei consigo, vou dizer-lhe que eu próprio, quando
a procurei para lhe encomendar um novo trabalho, falei com o Giordano Sacerdote, o diretor da Idealinea. Talvez ele lhe possa dizer qualquer coisa sobre a rapariga.
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- Já tentei. Não me deram nenhuma informação. E até me trataram mal.
ítalo Gavazzi riu-se.
- O Giordano Sacerdote, quando eu falei com ele, disse-me que aquela rapariga já não trabalhava como modelo. Que tinha posado para esta campanha publicitária para fazer um
favor ao número um da Bluesky, o patrão em pessoa, e que se tinha retirado imediatamente de uma profissão que, de resto, lhe poderia oferecer ganhos notáveis.
- Um mistério atrás do outro - constatou Mistral, e despediu-se do fotógrafo.
Naquela noite, Mistral regressou a casa dominado por pensamentos tenebrosos.
- Hoje estás com uma cara desesperada, parece que viste a morte.
- Tu achas?
- Algum problema com o trabalho?
- Isso vai de vento em popa.
- Posso ajudar-te?
- É um assunto estritamente pessoal.
Rosa ficou amuada o resto da noite, porque não aceitava ser posta fora da vida daquele rapaz que amava como um filho.
- Amanhã vou a Milão - anunciou.
- Não posso abrir a oficina sem ti.
- Deixamos a loja fechada - retorquiu Mistral.
- Já alguma vez te disseram que tens um feitio impossível? - quei-xou-se Rosa.
Mistral não conhecia a cidade e teve bastante dificuldade em encontrar os escritórios da agência publicitária. A seguir, enfrentou dificuldades ainda maiores para ser recebido
pelo Dr. Giordano Sacerdote.
Ficou durante duas horas numa sala de espera triste. De vez em quando, passava por ali uma funcionária que olhava para ele como se
fosse um resíduo bélico.
Finalmente, entrou um jovem moreno, de estatura baixa e corpu-
lento: parecia um gnomo. O nariz imponente e o olhar vivo confirmavam a primeira impressão.
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- É o senhor que procura a rapariga do perfume Bluesky? - perguntou, com um ar irónico que dava vontade de lhe assentar um par de estalos.
Mistral reparou na sua elegância desenvolta, que chegava a tornar agradável aquela figura estranha de habitante dos bosques. Trazia uma camisa com monograma, as mangas arregaçadas
e uma gravata moderníssima com arabescos. Reparou também no Rolex no pulso esquerdo.
- Sim, sou eu. Procuro a Maria Guidi - disse Mistral.
- Mas o senhor em que mundo vive? - perguntou o publicitário. - Descobre uma fotografia num jornal de há dois anos, acha que reconheceu uma pessoa, e vem ter comigo como se
eu fosse a secção dos perdidos e achados.
- Éramos amigos. Gostava de a voltar a ver - explicou Mistral, que tinha considerado, entre as várias soluções possíveis, a de apertar o pescoço àquele odioso anão.
- O senhor o que faz? - insistiu Giordano.
- Se lhe disser que sou mecânico isso muda alguma coisa nas nossas vidas?
- Temos finalmente um tema razoável de conversa. Porque o senhor e eu podemos falar de tudo menos da Maria Guidi.
- Alguém lho impede? - perguntou Mistral, preocupado. - Será que lhe aconteceu alguma coisa?
- Porque não se descontrai um pouco? Só a vi uma vez, a sua Maria - explicou. - Trabalhámos juntos no lançamento de um perfume. Depois, o silêncio. O nada. Conforme-se...
senhor... senhor...
- Vernati. Mistral Vernati.
- Ora então, Sr. Vernati, convença-se de que fez uma viagem em vão. Nem sequer é o pior que lhe podia acontecer.
- Está a esconder-me alguma coisa - replicou Mistral, nervoso.
- Ouça, meu rapaz - disse-lhe -, você é um tipo interessante. Até podia, com as devidas correções, posar para uma fotografia qualquer. Mas, antes de iniciar qualquer atividade
nova, liberte-se dessa obsessão que se chama Maria Guidi. Esqueça - sugeriu-lhe o publicitário, com um tom amigável.
- Era a minha namorada - afirmou Mistral.
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- A Maria é um sonho - respondeu o homem, a sorrir.
Quando percebeu que daquele homenzinho não podia extorquir mais do que um qualquer comentário infeliz, saiu do gabinete e bateu com a porta.
Regressou a Modena, onde trabalhou pouco e mal. Estava de péssimo humor. Quando se viu ao espelho, naquela noite, lembrou-se da observação de Rosa: "estás com uma cara desesperada,
parece que viste a morte". Procurou os amigos, mas não os encontrou; tentou embebedar-se, mas só conseguiu vomitar como um adolescente que bebe para parecer mais velho.
Depois, os automóveis, que eram a sua grande paixão, absorveram-no outra vez, completamente. Colou aquela página de revista numa parede do seu quarto, e quando olhava para
ela, à noite, antes de adormecer, esperava que Maria lhe aparecesse em sonhos.
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Era o tipo de rapariga que se vê nos filmes americanos: alta, magra, cabelos compridos e lisos, rosto impecavelmente maquilhado, jeans desbotados e blusa de seda. Tinha ao
pescoço duas antiquadas Leica M5 e estava a olhar para ele.
- É a Jenny Kinkeid - disse Cármen, a namorada de Roberto Guerrero, um piloto colombiano de Fórmula Um amigo de Mistral.
- Quer conhecer-te - acrescentou.
- Causei-lhe boa impressão? - brincou Mistral.
- Se calhar. Trabalha para a revista inglesa Driving - esclareceu.
- Tem cuidado, é uma pessoa que molha a caneta em veneno.
Mistral levantou-se para lhe apertar a mão e convidá-la para a sua mesa. Estavam no Café Le Bourbon, na praça de Pau, na fronteira com os Pirenéus. O piloto estava a tomar
o pequeno-almoço.
- Eu vou dar um salto ao hotel - disse Cármen, ao mesmo tempo que Jenny se sentava em frente a Mistral.
- Até logo - disse o piloto.
Jenny observava-o com atenção. Desde que corria, Mistral tinha-se habituado aos olhares insistentes das raparigas que frequentavam o mundo das corridas. Algumas ficavam fascinadas
com a sua perícia, outras eram atraídas pela sua fama de homem inacessível. Todas, em qualquer caso, eram conquistadas pela sua beleza. A curiosidade com que Jenny o observava,
porém, não era facilmente decifrável.
- Gostava de te tirar umas fotografias e de fazer uma entrevista para o meu jornal - disse, indo direta ao assunto.
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- A minha vida não é assim muito interessante - tentou dissuadida -, e a minha carreira, se correr tudo bem, começa amanhã. Agora vê lá se ainda vale a pena perderes tempo
comigo.
Era um domingo de junho, soalheiro e límpido. Havia uma grande movimentação na cidade, por causa do Grande Prémio que se disputaria na segunda-feira à tarde no circuito urbano.
Na antiga capital do reino de Navarra circulavam pilotos, mecânicos, jornalistas, aficionados e simples curiosos.
- Depende dos pontos de vista - observou Jenny.
- Acho que seria bem mais proveitoso para ti dares uma vista de olhos ao castelo - aconselhou-a.
- Prefiro um piloto que trabalha dez horas por dia numa oficina de Modena, que paga do seu bolso a gasolina, os pneus, os treinos e a assistência mecânica e que tem como diretor
da equipa o dono de uma pequena salsicharia.
- Sabes tudo sobre mim - observou Mistral, curioso.
- Quase. Sei que venceste um campeonato na Fórmula Monza e um segundo lugar na Fórmula Itália. Malinverni paga-te o mecânico, o camião e a roulotte. O que recebes dos patrocinadores
e os lucros da tua oficina de automóveis gasta-los para correr. Eu acho que isto é uma bela história para os meus leitores.
- Não vou ser eu a impedir-te de a escreveres - rematou ele.
- Faltam as mulheres e as histórias de amor - acrescentou a jornalista.
Mistral olhou-a de cima a baixo.
- Pode ser até que nem existam.
- Ou que sejam particularmente picantes - insinuou Jenny, com malícia.
- A verdade é que sou um homossexual arrependido - brincou.
- Não tens ar disso. És demasiado seguro de ti, demasiado explícito - objetou, como se tivesse levado a sério a sua afirmação.
Mistral tinha acabado o pequeno-almoço.
- Fias-te demasiado nas aparências - disse.
Jenny cruzou as pernas e pousou sobre o joelho uma mão de dedos longos e esguios.
- A Cármen diz que com as mulheres és mais do género despachado.
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- A Cármen sabe muitas coisas. Estás a perder tempo comigo. Se falares com ela, vais ter informações em primeiríssima mão.
A jornalista puxou a cadeira para trás e começou a tirar primeiros planos.
- Suspeito que no teu passado tenha havido uma história muito importante que te deixou sequelas.
- Queres ler a minha mão, cigana? - disse, num tom de brincadeira.
- Não é preciso. Basta olhar nos teus olhos. Estás tão empenhado em abrir caminho neste mundo tão competitivo que nem sequer reparas nas mulheres que passam ao teu lado.
- E, no entanto, eu vejo-te perfeitamente - replicou, com um ar malicioso.
- Eu estou fora do concurso - declarou.
- Demasiado desenvolta? - provocou Mistral, respondendo-lhe àletra.
- Quem faz as perguntas sou eu - respondeu prontamente.
- De acordo - aceitou.
Mistral levantou-se, tirou uma nota do bolso das calças e pousou-a na mesa.
- Tenho treinos de tarde. Logo à noite vou deitar-me cedo, porque amanhã de madrugada vou estar na pista. Se vencer, levo-te três dias a Biarritz - propôs. - Achas bem?
Ela olhou para ele sem responder.
- Claro que achas bem - insistiu ele. - Tens trinta anos, um divórcio às costas, um filho a crescer em casa dos teus pais, em Kent, e uma história mal-amanhada com o chefe
de redação do teu jornal, que é casado. Por isso, aproveitas algumas saídas livres quando é possível.
- Tudo isso sem me leres a mão? - disse Jenny, irónica.
- Basta olhar nos teus olhos para saber que vens comigo a Biarritz. Se eu vencer, como é óbvio.
- Talvez - rebateu ela, com um ar divertido, enquanto voltava a fotografá-lo com a sua velha Leica.
- Talvez eu vença ou talvez tu aceites ir comigo?
- Decide tu. A propósito, os meus pais não têm casa no Kent, mas
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no Yorkshire. Quanto ao resto da minha biografia, não estava mal, se te puseste a adivinhar - observou.
- Vai ser divertido estar contigo - concluiu Mistral, beijando-lhe a mão.
Foi uma corrida extraordinária. Começou muito mal. A meio da primeira volta, numa curva difícil, o carro de Roberto Guerrero, numa tentativa de o ultrapassar, apertou-o pela
esquerda e o carro de Mistral tocou na berma, fez um pião assustador e voltou milagrosamente à pista. Mistral teve a frieza e a habilidade de se colocar de modo a permitir
a passagem dos outros carros e evitar que chocassem contra ele. Saiu do pelotão em último, com quarenta e seis segundos de atraso em relação ao primeiro.
A volta completa do circuito era de um minuto e quinze segundos. Elaborou rapidamente o cálculo dos tempos e arrancou a praguejar de raiva. Quarenta e seis segundos era uma
distância praticamente impossível de anular num circuito tão atribulado, e as ultrapassagens iam ser duras, especialmente durante as primeiras vinte voltas, quando os pilotos
rendem mais. No entanto, o otimismo prevaleceu sobre o pessimismo dos seus prognósticos.
Mistral sabia que nas curvas era o melhor, e era nos troços mais tortuosos que devia apontar ao máximo. Na quarta volta tinha ultrapassado os últimos cinco concorrentes. Na
décima segunda volta iniciou o duelo com Johnny Cecotto, que tinha sido campeão mundial de motociclismo.
Mistral era decididamente mais rápido e, no entanto, não arranjou tempo nem espaço para o ultrapassar. Perseguiu-o durante toda aquela volta e falhou uma mudança numa subida
onde perdeu quase um segundo. Chegou novamente junto dele na volta seguinte e Johnny, que já não conseguia aguentá-lo mais, com grande lealdade, abriu-lhe caminho. Mistral
havia de recordar aquele gesto para o resto da vida.
Na vigésima volta, no momento em que ia a ultrapassar outro piloto, viu a bandeira azul: alguém mais adiante estava a passar à frente do seu antagonista direto. O sinal era
para Boutsen, que ia
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em segundo a seguir a Guerrero, com o qual, depois de ultrapassar Boutsen, deveria medir forças.
Guerrero levava uns cinquenta metros de vantagem e não ia oferecê-los a ninguém, nem sequer ao seu melhor amigo.
Na quinquagésima volta, Mistral estava na sua esteira e puxava como um desesperado. Os pneus começavam a ficar com problemas e, no entanto, não tirava o pé do acelerador porque
sabia que também Guerrero levava uns pneus iguais aos seus e, provavelmente, tinha o mesmo problema.
Lançou o ataque decisivo na curva estreita, no mesmo ponto em que o colombiano o tinha atirado para fora na primeira volta. O amigo viu-o no retrovisor e já não havia espaço
nem tempo para lhe impedir a passagem sem arriscar o desastre. Por isso, manteve corretamente a trajetória, puxando o carro ao máximo na esperança de manter a posição.
Mistral ultrapassou-o à saída da curva e cortou a meta com uma vantagem mínima.
Tinha sido uma vitória fantástica e sentiu um prazer imenso ao dar a volta de honra, sozinho, com o eco dos aplausos que desta vez eram, inequivocamente, apenas para ele.
O seu nome, gritado pela multidão, parecia encher todo o autódromo.
Chegou exausto às boxes, que pareciam guaritas, construídas no parque em frente à estação de caminho de ferro de Pau. Esperava-o um grupo de admiradores e alguns jornalistas
mas, no momento em que ia poder saborear o abraço do público, diante do pódio onde ia ser premiado, faltaram-lhe as forças. Foi prontamente socorrido e levado para a enfermaria.
Estava desidratado e tinha os braços entorpecidos.
Estava de tal forma exausto que, durante quase uma hora, ficou na maca com a agulha do soro enfiada no braço. Recuperou lentamente e ficou satisfeito quando descobriu, ao
sair da enfermaria, o sorriso de Jenny Kinkeid.
- Três dias em Biarritz - recordou-lhe.
- Mas conduzes tu - disse Mistral.
Estava linda, Jenny, naquele fim de dia colorido de vitória e dominado pela doce tristeza da noite iminente.
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- Vou fazer-te sentir o arrepio da velocidade - prometeu. Chegou um comissário da corrida a correr.
- Telefone - disse, dirigindo-se a Mistral.
- Quem me quer falar?
- Enzo Ferrari. Teria percebido bem?
- Enzo Ferrari? - repetiu, incrédulo.
- O próprio - respondeu o comissário, prestes a exalar o último suspiro.
- Não posso acreditar - exclamou, cobrindo o rosto com as mãos.
- Então, queres-te decidir? - pediu Jenny.
- Diz-lhe que já me fui embora - respondeu Mistral, com um sorriso, enquanto deslizava para o interior do Austin X Morris amassado de Jenny Kinkeid.
Se Enzo Ferrari o queria mesmo, voltaria a procurá-lo.
- Vamos, Jenny. Biarritz está à nossa espera. Jenny olhou para ele como se fosse um marciano.
- Acho que tu és mesmo um tipo especial, Mistral Vernati -disse ela, enquanto punha o motor em marcha.
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Mistral estava feliz. Vencera mais uma corrida, tinha ao seu lado uma mulher bonita e desejável e estava a apanhar sol no jardim do Hotel du Palais, o mais elegante de Biarritz.
Na época seguinte ia correr em Fórmula Um, com a O'Donnell, uma equipa inglesa de muito respeito. As negociações tinham-se concluído com um aperto de mão entre ele e o diretor
da equipa, Johnny Gray, que o esperava em Inglaterra para a assinatura do contrato.
O O'Donnell era um bom carro, mas para ser competitivo precisava de um piloto como ele e de um chassi diferente. Mistral sabia que a carroçaria de alumínio tinha sido um falhanço,
mas Gray prometera-lhe um carro revolucionário. O engenheiro projetista da equipa vinha dos Estados Unidos, onde tinha trabalhado com os técnicos da Hercules: tinha adquirido
conhecimentos que estava a aplicar num novo tipo de carroçaria.
- Experimentar para crer - garantira-lhe.
Tinham também falado de dinheiro. Uma quantia relativamente modesta, se comparada com o que recebiam os pilotos afirmados, mas para Mistral era uma soma extraordinária. Pensava
em tudo isto quando Jenny, estendida numa espreguiçadeira ao lado dele, viu surgir nos seus lábios um sorriso.
- Um penny pelos teus pensamentos - propôs ela alegremente.
- Seria dinheiro desperdiçado. Não tenho nada de interessante para te contar - respondeu ele.
Da piscina no meio do relvado chegavam até eles os gritos de alegria de algumas crianças que brincavam na água.
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Aproximou-se um empregado a perguntar se queriam almoçar no jardim.
- Não, obrigada - disse Jenny. - Partimos dentro de uma hora. Mistral esperou que o empregado se afastasse e depois perguntou:
- Como é isso?
Não o tinha posto ao corrente daquela decisão.
- Três dias em Biarritz. Lembras-te? As férias acabaram - retorquiu.
- Passaram tão depressa - lamentou Mistral.
- O tempo corre a grande velocidade, quando se está bem - observou Jenny.
- Foste uma ótima professora de inglês - sussurrou-lhe, enquanto lhe afagava as costas.
- É um cumprimento um pouco banal, não achas? - fingiu zangar-se.
- A adulação não é o meu forte - confessou Mistral.
- Lá por isso, a ironia também não - brincou Jenny.
- Desiludi-te. Desculpa. Foste extraordinária, em todos os sentidos - admitiu.
- Assim está melhor. Um cumprimento dirigido a uma mulher nunca se perde - respondeu a sorrir, com um ar malicioso.
- É um ditado inglês?
- É internacional e velhíssimo! - exclamou, divertida. Mistral pensou que, dali a pouco, tinha de ir pagar o hotel e que ia
ser a conta mais elevada que tinha pago em toda a sua vida. Mas tinha valido a pena. Ia utilizar o cartão de crédito e esvaziar as suas poupanças. Jenny nunca o saberia, mas
isso era o melhor cumprimento que tencionava fazer-lhe.
- Sabes o que te digo, Jenny Kinkeid? Invejo o homem que te ama. Quanto a mim, espero voltar a ver-te em breve.
Pensava na próxima viagem a Inglaterra para assinar o contrato com a O'Donnell.
- Queres dizer que vai haver uma próxima vez?
- Muito em breve - garantiu.
Despediram-se em Pau no momento em que o sol se apagava no horizonte.
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Ele partiu para Modena, ela para Londres.
- Vou escrever um bom artigo sobre ti - disse ela, à despedida.
- Guarda-mo. Quando tiver aprendido bem a tua língua, vou ser capaz de o apreciar - replicou.
Abraçaram-se, mas ele já a tinha esquecido.
Enzo Ferrari procurou-o novamente, em julho, e desta vez Mistral foi a correr a Maranello. A temperatura era insuportável. Ondas de calor dançavam sobre os pavilhões das oficinas.
Assim que passou o portão do templo do automobilismo mundial, veio ao encontro dele um jovem alto e magro, com uns pequenos olhos curiosos e inteligentes.
- Sou Renzo Caroni, o diretor da equipa Ferrari. Estávamos à sua espera - começou, com um tom de voz seguro e cordial. Trocaram um vigoroso aperto de mãos.
- Nem me parece verdade que estou aqui, a convite do grande homem - confessou Mistral.
- Isto significa que tem potencialidades. O senhor comendador não perde tempo com pessoas que não aprecia - disse Caroni, ao mesmo tempo que, com um amplo gesto, o convidava
a abrigar-se daquele calor tórrido e a entrar nos escritórios.
Mistral sorriu ao seu acompanhante sem se decidir a entrar no edifício. Apetecia-lhe olhar em volta e admirar, ao fundo, as oficinas onde nasciam as jóias do automobilismo
mundial. Foi então que viu sair de um armazém dois homens e uma mulher. Um deles, reconheceu-o imediatamente: tinha o passo decidido de um jovem, apesar da idade avançada.
Era Enzo Ferrari. O outro era um gigante loiro que Mistral comparou imediatamente com um antigo guerreiro nórdico. No meio deles estava uma mulher elegante que caminhava sobre
o solo escaldante como se estivesse a desfilar numa passagem de modelos de alta-costura.
Alta, magra, o corpo cingido por um vestido de seda amarelo de pintas pretas. Calçava sandálias amarelas e pretas, de salto altíssimo. Trazia umas luvas amarelas que lhe cobriam
o antebraço e, na cabeça, um chapéu de ráfia negra, de aba larga. Uns grandes óculos escuros cobriam-lhe parte do rosto.
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Mistral ficou fascinado com a beleza daquela mulher. É certamente uma princesa, pensou.
Parecia uma criatura irreal e, no entanto, quando passou com os dois homens a poucos metros dele, pareceu-lhe captar nela qualquer coisa de estranhamente familiar.
- É um esplendor - disse baixinho Mistral, sem perder de vista o trio que se dirigia ao portão.
- Veem-se muitas mulheres bonitas, aqui em Maranello - respondeu Caroni.
- Conhece-a? - perguntou.
- Conheço-o a ele. É um empresário de Zurique. Chama-se Peter Strauss - explicou o homem, e acrescentou: - É melhor entrarmos, que se derrete de calor aqui. O Sr. Comendador
vem já.
Mistral entrou, um pouco contrariado, apesar de o ar condicionado que o envolveu lhe ter dado uma imediata sensação de bem-estar.
Entraram numa pequena sala mobilada com sofás e poltronas em pele e muitas fotografias de ases do volante penduradas nas paredes.
- Aceita qualquer coisa fresca? - perguntou Caroni.
- Nada. Obrigado - respondeu Mistral, enquanto observava as imagens emolduradas.
- O Sr. Comendador está com muita vontade de o conhecer, Sr. Vernati. Aliás, guarde isto para si, mas é mesmo uma das poucas pessoas com quem ele deseja encontrar-se.
O grande Enzo Ferrari foi ter com eles pouco depois e conquistou imediatamente Mistral com a sua transbordante cordialidade.
- Fico realmente contente por o conhecer, finalmente - disse, ao mesmo tempo que lhe apertava a mão. - Os meus homens deitaram-lhe os olhos há muito tempo e dizem-me muito
bem de si. É verdade que também percebe de motores?
- Trabalho neles há muitos anos. Sou um mecânico discreto, sobretudo quando se trata de juntar peças com arames - brincou.
Ferrari sentou-se numa poltrona e, com um gesto, convidou Mistral a sentar-se no sofá à frente dele. Mistral sentia-se esquadrinhado pelo olhar agudo e penetrante de Enzo
Ferrari, mas aquele escrutínio não o intimidava.
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- Aprecio a modéstia num jovem. Nunca gostei de fanfarrões -continuou a falar. - Mas não é certamente este o motivo pelo qual o convidei para vir a Maranello. Não mesmo -
acrescentou, a abanar a cabeça. - Eu, como todos os construtores de automóveis de corrida, gosto de descobrir o piloto que se identifica comigo e com o meu automóvel. Eu sou
como o Chaplin. Está a ver? Construí-me a mim mesmo e o mundo que me rodeia à minha imagem. Quando produzo um carro de competição, procuro um piloto que o saiba interpretar.
Por isso lhe digo que no momento em que um piloto chega à Ferrari, celebra comigo uma espécie de casamento, cria-se uma sociedade a cinquenta por cento entre mim e o piloto.
Se eu não tivesse tido excelentes corredores, não podia ter construído nada. Por outro lado, um bom piloto apenas dá o melhor de si comigo. Está a ver, Sr. Ver-nati, eu defendo
que um carro é uma soma de muitas inteligências, mas se for um imbecil a conduzi-lo, elas não servirão para nada.
- Foi muito claro, Sr. Comendador - disse Mistral, a sorrir, recordando as histórias que surgiam em volta daquele grande personagem.
- Para ir direto ao assunto, Sr. Vernati, a minha proposta é simples: entre na minha equipa e não se vai arrepender - concluiu.
Mistral pensou no aperto de mão com Johnny Gray, que tinha fechado um contrato, embora, de facto, não tivesse ainda ido a Inglaterra assiná-lo. Correr com a Ferrari era o
máximo das aspirações de qualquer piloto.
Este homem estava a servir-lhe uma oportunidade única numa bandeja de prata. Apetecia-lhe bater com a cabeça na parede, de tal maneira estava dividido entre a vontade de aceitar
e a promessa feita aos ingleses. Não se decidia a falar, e Ferrari pôs um ar sombrio enquanto o observava com suspeição.
- O que é que se passa consigo, Vernati? Não lhe fiz nenhuma proposta obscena - disse, e fez um sorriso forçado.
- Talvez seja demasiado aliciante - observou ele.
- Vá direito ao assunto, rapaz. - Ferrari começava a ficar irritado. - Prefiro uma verdade feia a uma bela mentira.
- Dei a minha palavra à O'Donnell - disparou de uma vez. O velho avaliou-o com um longo olhar indagador.
- Só a palavra, ou também assinou? - perguntou.
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- Para mim, um aperto de mão equivale a uma assinatura - concluiu Mistral.
Caiu um silêncio pesado na pequena sala. Renzo Caroni olhava alternadamente para o patrão e para o piloto, pensando que eram duas pessoas feitas para andarem de braço dado.
- Está a apetecer-me pô-lo na rua com palavras desagradáveis -resmungou Ferrari. E apressou-se a acrescentar: - Mas tanta correção faz-me entender que não me tinha enganado
em relação a si. Você é realmente uma pessoa como deve ser. Tenho muita pena de não o ter comigo, mas sobretudo lamento muito por si. A O'Donnell não lhe vai dar as alegrias
que a Ferrari podia oferecer-lhe - sentenciou, ao mesmo tempo que se levantava, imediatamente imitado pelo piloto e pelo diretor da equipa.
- Espero bem que se engane, Sr. Comendador. Para já, apenas lhe posso garantir que foi um prazer conhecê-lo - disse Mistral, com convicção.
- Eu nunca me engano. De qualquer modo, não pense que o deixo ir embora assim. Era o que faltava! Agora vou mostrar-lhe a oficina. Assim, vai sofrer mais um pouco por causa
desta oportunidade perdida - concluiu Ferrari, a sorrir.
Quando iam a sair da sala, Mistral, com um ar indiferente, observou:
- Verdadeiramente extraordinária, aquela senhora que estava com o seu cliente.
- É um espanto. E não diz uma palavra mais do que o necessário. Estivemos juntos durante duas horas e nem ouvi a voz dela, a não ser para dizer bom dia - comentou Ferrari.
- Sabe quem é? - perguntou Mistral, enchendo-se de coragem.
- Claro. É a mulher mistério. Há quatro anos que está com o Peter Strauss, mas ninguém sabe nada sobre ela.
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Maria reconhecera-o à primeira vista e o seu coração tinha acelerado. Em quatro anos Mistral não tinha mudado nada, enquanto ela se tornara, pelo menos na aparência, numa
outra pessoa: a rapariga do campo transformara-se numa sofisticada mulher de classe. Ele continuava a ser o rapaz da melena rebelde, talvez mais homem, mais bonito, mas com
o mesmo ar de maroto simpático. E estava a tornar-se num personagem importante no mundo dos automóveis de competição.
Tinha acompanhado todas as etapas da sua carreira de piloto. Precisamente por aqueles dias tinha visto, publicada numa revista, uma fotografia de Mistral ao lado de uma atraente
jornalista inglesa. A imagem fora "roubada" em Biarritz, com uma teleobjetiva potente que surpreendera o casal numa atitude inequivocamente afetuosa na beira da piscina do
Hotel du Palais.
Maria olhava para o seu passado e as lembranças que emergiam nem sempre eram claramente legíveis. Mas Mistral era uma recordação límpida.
Quando passou quase ao lado dele, à saída da oficina de Maranello, sentiu o seu olhar apontado sobre ela, o que a deixou pouco à vontade. Quase como se quisesse defender-se,
deu o braço a Peter Strauss e continuou.
Peter, atento a qualquer pequena alteração no comportamento de Maria, sentiu nela algo de insólito.
- O que foi que aconteceu? - perguntou-lhe, quando entraram no carro.
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- Nada, está tudo ótimo - respondeu ela, tentando relaxar.
Ele, com uma delicadeza insuspeita, tirou-lhe os óculos escuros e fitou-a durante alguns instantes.
- Minha menina, o que se passa? - perguntou ainda, com um tom paternal.
- Fantasmas do passado - confessou uma meia-verdade.
Peter rodeou-lhe os ombros com um braço, atribuindo aquela súbita alteração de humor à nuvem sombria que cobria ainda o episódio de atroz violência que sofrera. Quando aquela
escuridão se dissipasse, o seu equilíbrio ficaria completamente restabelecido.
Maria apreciava sinceramente a assídua paciência e o esforço de Peter Strauss para a fazer sair do isolamento em que se tinha fechado. Foram precisos meses para a levar a
enfrentar novamente o mundo. Confiara-se àquele homem bondoso não por opção, mas por falta de alternativas, tal como um náufrago se agarra a qualquer coisa que flutue para
não se afogar.
Quando teve alta da clínica de Bolonha, Peter acolheu-a, no lago de Como, numa villa esplêndida e enorme como ela nunca tinha visto na sua vida. Gostava da paz do lago, e
ali reencontrou alguns momentos de serenidade. Falava pouco de si, até porque não recordava nada sobre os seus últimos, dramáticos episódios. Sentia-se quase sempre oprimida
por aquela sombra insidiosa que lhe pesava na alma.
Também tudo aquilo que dizia respeito a Moretta e à breve estadia na villa, em Bolonha, estava envolto numa neblina impenetrável.
De vez em quando parecia que se abria uma brecha na sua memória, mas eram clarões incompreensíveis que a aterrorizavam.
- Ela tem medo de recordar - explicou-lhe o psicólogo a quem Peter a tinha confiado por sugestão do seu médico pessoal. Era um bom psicoterapeuta da Escola Suíça. Chamava-se
Roberto Bergonzi. Tinha ajudado com sucesso outros pacientes com problemas igualmente graves. - Apagar acontecimentos desagradáveis é uma forma de defesa, mas cria grandes
problemas - explicou-lhe.
Ao fim de um ano de sessões regulares, Maria não tinha feito progressos nenhuns: continuava a não se lembrar, e o medo que dominava profundamente a sua psique provocava-lhe
um mal-estar quase insustentável.
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- Não sei se vou conseguir curar-me - disse-lhe um dia.
- Mas quer reencontrar-se a si mesma? - perguntou ele.
- Aquilo que eu quero não conta - respondeu, deixando aparecer um sorriso amargo, e acrescentou: - Infelizmente, nem mesmo aquilo que o senhor doutor quer tem importância.
O psicólogo sorriu-lhe afetuosamente:
- O desejo da cura é um bom ponto de partida para resolver os problemas, mas temos de continuar a trabalhar juntos, e eu tenho a certeza de que um dia vai recordar e erradicar
o medo que a faz sentir-se tão mal.
Peter tinha-a envolvido na campanha publicitária do perfume Bluesky. Maria posou para um fotógrafo de renome. Fê-lo por gratidão, mas o seu estado psíquico acabou por piorar.
Peter esteve sempre junto dela, como um pai. Levou-a com ele nas suas viagens. Pôs à sua disposição instrutores para aprender a jogar ténis, a esquiar, a andar a cavalo, professores
de línguas para lhe ensinarem inglês e francês.
Eram poucas as coisas que fazia com entusiasmo. Uma delas tinha sido aquela visita a Maranello. Os carros de corrida, em particular os Ferraris, fascinavam-na. Precisamente
para satisfazer aquela sua paixão, Peter comprou para ela o último modelo da Ferrari.
- Os carros fazem-me lembrar um rapaz por quem estive apaixonada - tinha-lhe confessado algum tempo atrás.
- Ele também tinha um carro de corrida? - perguntou Peter. Indagava com a máxima cautela, sempre na esperança de a ajudar a dissipar as sombras do passado.
- Só um 500, todo modificado - respondeu com relutância, e apressou-se a mudar de assunto.
A limusina e o automóvel com os seguranças entraram na auto-estrada do Sol.
Maria ia sentada ao lado de Peter, que a observava com ternura. Acontecia-lhe muitas vezes desejá-la. Aquele anjo que ele recolhera, ferido, na berma da estrada, fazia parte
do seu ser.
- Gostava de ir ao cemitério de Cannucceto - disse Maria, de repente.
- Tome a direção de Bolonha - ordenou Peter ao motorista.
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Duas horas depois, tinham chegado à aldeia.
- Tens a certeza de que queres ir sozinha? - perguntou ele.
Ela assentiu com um sorriso e saiu do carro. Caminhou ao longo da estrada da sua infância, ladeada de choupos. Respirou o ar perfumado da sua terra. Cannucceto parecia um
lugar fora do tempo. As poucas pessoas de bicicleta que se cruzavam com aquela senhora elegante e sofisticada viravam-se para olhar para ela, curiosas.
Maria entrou no cemitério e recordou um gélido crepúsculo de janeiro em que tinha ido àquele lugar triste para se despedir da sua família.
Os caminhos estavam desertos e as cigarras zumbiam, enlouquecidas. Chegou ao túmulo dos Guidi e ali ficou a rezar uma oração. Depois tirou o chapéu de ráfia negra e pousou-o
aos pés da lápide, libertando a cabeleira macia.
- Olá, mãe - murmurou -, olá, pai, olá, avó, Antares, Enea, Luisa.
Após um longo silêncio, dirigiu-se para a saída. Caminhava lentamente, observando as campas alinhadas dos dois lados do caminho. Assim, quase por acaso, descobriu os nomes
de Moretta e de Benito Morandi inscritos numa lápide. De repente, a névoa que ocultava o seu passado dissipou-se e Maria recordou. Cobriu o rosto com as mãos e, a tremer de
horror, recordou as vozes dos seus carrascos, que lhe batiam e a violavam. Ficou petrificada de terror. Depois começou a correr, saiu do cemitério e foi ter com Peter, lançando-se
na paz afetuosa dos seus braços.
- Já me lembro de tudo - disse, a chorar. - Agora já te posso contar o que aconteceu.
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Peter Strauss possuía finalmente todas as peças para reconstruir o quadro dos acontecimentos e dispunha de alguns detalhes importantes para tentar identificar os responsáveis
pela violência que Maria tinha sofrido. Ela tinha-lhe contado tudo: desde a sua chegada a Bolonha até à violação no casebre abandonado. Falou-lhe das bobines gravadas, descrevendo
minuciosamente o seu esconderijo, da morte de Rocco Liguoro, do papel de Antonino naquela história trágica.
Ele ouviu-a com atenção, sem a interromper, para lhe permitir finalmente libertar-se daquelas horríveis recordações.
- A Moretta sentia que lhe ia acontecer alguma coisa de terrível. Fez-me prometer-lhe que, se lhe acontecesse algum acidente, eu entregaria as fitas à polícia. Mas já passou
muito tempo. Aqueles homens podem tê-las encontrado e destruído.
Maria concluiu assim a sua longa narração.
- Não nos resta outra solução senão ir lá ver - propôs Peter. - Vamos dar uma volta pela colina. Achas que consegues reconhecer a villa?. - perguntou.
- Acho que sim. Mas ao fim de todo este tempo sabe-se lá que mudanças não terá sofrido - observou.
- Vale a pena tentar - respondeu. - Mas agora preciso de saber se te apetece voltar àquele lugar maldito - acrescentou, com ternura.
- Se tu estiveres comigo, nada me mete medo. Durante estes anos aprendi a confiar cegamente em ti. És o meu único ponto de referência, a minha única certeza, Peter - confessou,
chegando-se mais a ele.
Ele afagou-lhe os cabelos e sentiu que a desejava.
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- O que é isso? - perguntou, afastando-a debilmente. - Estás a ficar sentimental? Tu és uma mulher forte. Sempre o foste. Agora já não tens razão para ter medo.
Peter deixou que fosse Maria a conduzir o carro quando entraram na estrada para a colina, na tentativa de encontrar a villa de Moretta.
- É aqui - disse com segurança, ao mesmo tempo que parava o carro. - Entra-se por aquele portão - acrescentou, indicando uma maciça estrutura de ferro batido. - A villa é
ali ao fundo. - O edifício vislumbrava-se no meio das árvores.
- Parece desabitada - comentou Peter.
As ervas daninhas tinham invadido a alameda de acesso. Alguns candeeiros estavam partidos. As persianas estavam fechadas.
- A Moretta era a proprietária da villa?. - perguntou ele.
- Disse-me que estava em nome de uma sociedade suíça. Vamos entrar para dar uma vista de olhos? - propôs.
- Para já, há apenas uma coisa a fazer: regressar a casa. O resto virá depois.
Maria ligou o carro e tomou a direção de Bolonha para entrar na autoestrada.
Chegaram ao lago ao entardecer. O carro onde viajavam era seguido, como sempre, pelo da segurança. A villa de Peter Strauss surgia sobre uma colina arredondada, protegida
por um muro imponente, interrompido por um portão de aço que se abria eletricamente só depois de uma câmara ter revelado a identidade do visitante e que era vigiado ininterruptamente
por dois guardas.
Parte da alameda de acesso à villa corria ao longo do lago, do qual a separava uma balaustrada de pedra encimada por vasos em baixo relevo com grinaldas de flores alternados
com grandes cabeças de carneiro, também em pedra, que continham viçosos tufos de avenca.
Depois a alameda subia em curvas largas, ladeadas por esplêndidas magnólias seculares, salgueiros enormes e limoeiros perfumados. A certa altura, um segundo portão, junto
a um edifício com uma estrutura elegante e leve, cujo muro estava coberto por uma buganvília, barrava novamente a passagem. Um guarda acionou o dispositivo para deixar passar
os dois carros. Havia por fim outro muro, com um
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portão vigiado, próximo de uma pequena ponte que dava acesso a um imenso jardim italiano, para além do qual surgia a villa.
Quando Maria atravessou pela primeira vez aquele monstruoso dispositivo de segurança, julgou-o excessivo. Agora, que conhecia, ainda que apenas sumariamente, a dimensão do
património de Peter, considerava-o necessário. De facto, os jeans Bluesky eram apenas uma brincadeira para ele. Na realidade, os seus interesses eram enormemente mais vastos:
desde as minas de cobre e de prata na América do Sul até ao mercado da lã na Austrália e passando pela comparticipação em alguns bancos suíços. Strauss possuía uma frota aérea
e os seus navios sulcavam os oceanos. Tudo na mais absoluta discrição. Raramente os jornais citavam o seu nome.
Quanto à sua vida privada, tinha uma mulher da qual se separara três anos depois do nascimento de Gianni, o único filho de ambos, sem fazer escândalo nem suscitar mexericos
de tipo mundano.
O seu hobby era colecionar obras de arte. Em todo o mundo comprava quadros, estátuas e objetos raros que conservava na grande villa do lago de Como.
- A arte nunca me desilude. Os homens, quase sempre - repetia muitas vezes. - Sabes, Maria - disse-lhe uma vez -, eu divirto-me a pôr a salvo estes pedaços de história com
os quais vou entretecendo um diálogo que me faz companhia.
Era rico e poderoso e, no entanto, estava sempre dividido entre a ânsia de viver e o medo de morrer. O seu passado atormentava-o, apresentando-lhe contas em suspenso e multiplicando,
na sua alma, profundas interrogações.
- Esta villa parece ter sido construída para albergar uma ausência - disse-lhe uma vez Maria.
- Talvez essa ausência fosses tu - respondeu ele, ternamente. Ela não respondeu.
O interior da villa dava a sensação de que a máquina do tempo tinha parado: móveis, tapeçarias e objetos de decoração eram em puro estilo setecentista.
- Tudo aquilo que aqui vês - disse-lhe Peter um dia -, vem do Loire, mais precisamente do castelo dos condes Marais de La Roche-foucauld, que foi incendiado durante a revolução.
Os proprietários
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tinham-no providencialmente esvaziado antes que fosse destruído. Em seguida, tapeçarias, móveis, quadros, pratas e louças foram em parte vendidos e em parte oferecidos. Eu,
com a minha teimosia, encontrei uma planta do castelo e uma série de desenhos minuciosos da decoração interior. Por isso, em anos de procura, a comprar em leilões, aos antiquários
e a particulares de todo o mundo, consegui reconstruir exatamente o ambiente dessa época.
- Fascinante e estranho - comentou Maria.
- Exatamente. Vista de fora, parece uma grande villa anónima. No interior, pelo contrário, é um requintado castelo setecentista. Um dos mais belos - afirmou com orgulho.
Enquanto atravessavam a pé o jardim italiano, Maria e Peter admiraram o espetáculo dos últimos raios de sol que desapareciam nas águas do lago. Quando entraram no salão da
entrada, as primeiras sombras da noite tinham já descido e a lua brilhava nítida no céu.
Maria subiu ao andar superior. Tinha sido um dia emocionante e cansativo mas, finalmente, aquela opressão sombria que tanto a tinha feito sofrer nos últimos quatro anos parecia
ter desaparecido por milagre. Decidiu tomar um duche e vestir, como dizia a brincar, um vestido de noite.
Depois de ter enfiado um roupão de seda branco, estendeu-se no sofá. Recordou os acontecimentos daquele dia tão importante e perguntou a si mesma, como muitas vezes acontecia,
que papel tinha exatamente na vida de Peter Strauss. Não era filha, nem amiga, nem amante. Não era a primeira vez que se sentia vacilar sob o peso da incerteza. Depois chegava
ele, sólido como uma montanha, e as suas dúvidas desvaneciam-se. Mas ela não queria ser apenas um apêndice daquele mundo dourado em que Peter a tinha colocado.
Naquele dia, o seu equilíbrio nervoso tinha sido submetido a uma dura prova. Entre outras coisas, constatara que o tempo não tinha modificado a intensidade dos seus sentimentos
em relação a ele.
Abriu ao acaso um livro de poemas de John Donne, que tinha encontrado em cima do sofá, e leu: "Então, se sonhar que te tenho, eu tenho-te, pois todas as nossas alegrias são
apenas fantasias".
É um conceito elevado e muito terno, pensou, mas ela não podia
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aceitá-lo. Talvez estivesse a sonhar com Mistral porque não o tinha. Mas se o tivesse tido, teria sido feliz?
Estava mergulhada nesta e em outras interrogações sem resposta quando ouviu bater à porta. Era Peter que, como todas as noites em que estavam na villa do lago, vinha ter com
ela.
- Incomodo? - perguntou.
- Senta-te - respondeu ela, feliz por aquela visita a ter distraído dos seus pensamentos confusos.
- Posso saber o que estás a ler? Peter sentou-se no canto do sofá.
Ela entregou-lhe o livro fechado e ele abriu-o à sorte numa página que tinha escrito a lápis, à margem, o seu nome ao lado de alguns versos que diziam: "a grande obra-prima
da natureza, um elefante: a única criatura gigantesca e inócua".
Peter deu uma sonora gargalhada.
- É bom ser comparado com um elefante - disse. - É isso que pensas de mim? - perguntou, divertido.
- É aquilo que John Donne pensa de um elefante - esquivou-se ela.
- Revelando um escasso conhecimento deste animal que, se for incomodado, pode tornar-se terrível - observou, restituindo-lhe o livro.
- Estou muito cansada - disse Maria, mudando de assunto.
- Foi um dia extenuante. Reviveste momentos dramáticos. Vais poder falar sobre isso amanhã com o psicólogo.
- Já não volto lá.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou, preocupado.
- Não, está tudo bem. Acho apenas que chegou o momento de me bastar a mim própria e ver até onde chego com as minhas forças.
- Decide tu - encorajou-a. - Amanhã vou para fora. Vou estar ausente alguns dias. Adiamos tudo para quando eu regressar. Queres?
- Fico à tua espera.
- Não queres vir comigo?
- Prefiro ficar em casa, se não te importas. Sinto-me realmente esgotada.
Peter pegou novamente no livro de poemas e leu em voz alta: "Sou duas vezes tolo; porque estou apaixonado e porque o digo com lamentosos versos".
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- Devo acreditar em ti?
- Não. Na minha idade, uma besta do meu calibre não pode falar de amor sem se sentir ridículo. Boa noite, meu anjo - concluiu, ao mesmo tempo que lhe pousava um beijo leve
nos cabelos.
- Não és ridículo. Nunca encontrei uma pessoa mais séria e convincente do que tu. E há momentos, como estes, em que até te acho muito desejável.
Mas Peter Strauss não ouviu estas palavras, porque já tinha saído do quarto e percorria melancolicamente o longo corredor que dava acesso aos seus aposentos.
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Desde que Maria entrara na sua vida, Peter Strauss tinha rejuvenescido de corpo e alma. Em criança, gostava de estar na margem do rio a fazer saltar pedrinhas, enquanto a
mãe lavava a roupa dos ricos com tanta força que consumia as mãos. Às vezes, mesmo que estivesse calor, tremia de cansaço.
- O que tens, mãe? - perguntava-lhe, preocupado.
- Passou por aqui um anjo e tocou em mim - respondia ela, para o tranquilizar.
- E agora, onde está? - perguntava-lhe, a olhar em volta à procura daquela presença milagrosa.
- Sabe-se lá, meu pequenino. Os anjos têm asas grandes. Tocam em ti e voam logo para longe.
Maria era o seu anjo. Já estava junto dele há muito tempo, mas mais dia, menos dia, também ela voaria para longe. Entretanto, esperava-o com o seu sorriso frágil, o coração
palpitante e a alma pura, apesar de alguém ter tentado conspurcá-la.
Há muitos anos que já não pensava nos anjos da sua infância, mas Maria tinha vindo recordar-lhos e suscitar-lhe pensamentos de amor.
Recordou as palavras de Mahatma Gandhi, que sofria todos os ultrajes sem reagir, mas que não perdoava aos violadores: "Se violarem a tua mulher, a tua mãe ou a tua irmã, então
deves usar a agressão". Com estes pensamentos de amor e de vingança, entrou nos seus escritórios de Zurique e aproximou-se de um computador que continha os dados das suas
sociedades e os da concorrência.
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Selecionou todas as combinações possíveis sem obter qualquer resultado. Em Bolonha, naquela rua, naquele número, não aparecia nenhum imóvel pertencente a uma sociedade suíça.
Enquanto se preparava para continuar a pesquisa, Peter marcou um número telefónico de Innsbruck.
- Casa Fuks - respondeu uma voz de mulher.
Peter abanou a cabeça com um ar resignado. Era a villa onde moravam a mulher e o único filho, Gianni. A concertista, como ele lhe chamava, preferia o seu apelido de solteira
ao do marido.
Quando se tinham conhecido, vinte anos antes, ela aceitara com entusiasmo um casamento que a ia libertar, a ela e à sua família, das correntes de uma aristocrática indigência.
Mas quando a riqueza se tornou um hábito, aquele marido sem tradição revelou-se demasiado incomodativo. Recomeçou a censurar-lhe os seus modos grosseiros e as suas aventuras
"de rua", como gostava de dizer. Criou uma distância entre ela e Peter, dando-lhe a entender que seria um péssimo pai para aquela criança, e por isso acabaram por se separar.
Agora Gianni era praticamente um homem. Tinha passado de escola em escola sem resultados apreciáveis. Não possuía o talento artístico da mãe, nem o espírito de iniciativa
do pai. Era um jovem incongruente.
Quando se encontravam, o pai e o filho, para além das ocasiões de circunstância, não tinham nada para dizer um ao outro. E, no entanto, Peter gostava dele e esperava pacientemente
que Gianni ultrapassasse aquele mal dissimulado desprezo que tinha em relação a ele e pudessem finalmente ter uma relação. Peter recordava a sólida casa onde nascera, o pátio
cheio de sol no verão, o grito do vento nas brancas noites de inverno, as folhas mortas que coloriam o outono. Recordava o cansaço da mãe, o luminoso sorriso dos pais e os
seus olhos cheios de amor. Mas ele, o pequeno Gianni, o que recordaria da sua infância e da sua meninice?
- Fala Strauss. Passe-me o meu filho - ordenou à empregada.
- O menino está a descansar - ouviu como resposta.
- Então acorde-o - insistiu. Esperou em linha alguns minutos e depois ouviu a voz de Gianni, empastelada de sono.
303
- Bom dia, pai.
- Olá, rapaz - cumprimentou-o afetuosamente. - Como estás? -E naquele instante recordou-o menino, com 4 ou 5 anos, quando o levara a Viena, à roda do Prater.
- Bem. Há algum problema? - O filho já se tinha posto na defensiva. Havia muitos problemas, inclusive o facto de já não pôr os pés num exame há seis meses. Isso, Marianne
não tinha podido esconder-lhe. Mas era um assunto que Peter não queria discutir pelo telefone.
- Na próxima semana vou aos Estados Unidos. Em trabalho, como é óbvio. Estava a pensar se não quererias ir comigo - propôs-lhe.
- Já planeei uma viagem à Grécia. Mas se é uma ordem, vou contigo - respondeu, fingindo um tom galhofeiro.
- Era só um convite - replicou Peter.
- Então prefiro ir com os meus amigos - declarou, sem hesitar. O homem suspirou, resignado.
- A tua mãe, como está?
- De partida para Los Angeles. Há um concerto dirigido pelo Zubin Mehta. Ele convidou-a pessoalmente. - Gostava de sublinhar perante o pai as amizades importantes da mãe.
- Percebo. Deseja-lhe por mim que se divirta. Quando é que te posso ver? - perguntou.
- Dá-te jeito que eu vá ao lago em agosto? - propôs Gianni, como sinal de conciliação.
- Fico à tua espera - disse Peter, antes de desligar a chamada.
Depois fez mais uma série de telefonemas, esforçando-se por esquecer aquela conversa forçada com o filho. Voltou então a interrogar o computador. Desta vez mudou os dados
da pesquisa e esperou com impaciência uma resposta. Mais uma vez, a máquina comunicou-lhe que não tinha qualquer dado a fornecer. A villa de Moretta não surgia como sendo
propriedade de uma sociedade suíça. Naquele momento, só podia deduzir que a informação que recebera de Maria era incorreta.
Mas era preciso chegar aos proprietários daquela casa para iniciar uma busca que lhe permitisse identificar as conivências de certos bandos criminosos com os poderes institucionais.
Se Maria não se tinha enganado, e a amiga lhe tinha dado uma
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informação correta, o computador devia absolutamente fornecer-lhe uma resposta.
Ouviu bater à porta. Era Lisa Capoccia, a sua secretária. Uma suíça de Zurique, de segunda geração. A família era originária de Agrigento.
- Bom dia, senhor Strauss - começou, de bloco de apontamentos na mão.
Strauss rabiscou num papel o endereço da villa de Bolonha.
- Veja se consegue chegar aos proprietários deste imóvel. Eu estou a tentar há uma hora, sem resultados. Devia pertencer a uma sociedade suíça.
Dedicou-se durante duas horas ao seu trabalho até que Lisa Capoccia regressou ao seu gabinete.
- Já tenho a informação que pretendia, senhor Strauss.
- E então?
- O imóvel é nosso. Ou seja, é seu, senhor Strauss.
Peter empalideceu. Durante alguns segundos, teve uma certa dificuldade em digerir aquela notícia, que lhe explodiu na cabeça e no coração como uma bomba.
- Dê-me todos os pormenores - disse por fim.
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11
A villa de Bolonha tinha sido adquirida em 1965 pela Bluebuil-ding, uma empresa imobiliária com sede em Lugano. A organização que tratava de lhe alugar os imóveis tinha os
escritórios em Roma, na central via Condotti. Atualmente, a villa encontrava-se alugada à Oriental Carpets; uma sociedade da qual era administrador único Antonino Catania.
- Antonino Catania - repetiu Peter.
- Não percebo, senhor Strauss - disse a secretária, que se sentia sempre pouco à vontade quando se encontrava diante daquele homem tão poderoso.
- Diga ao comandante para preparar o avião. Parto imediatamente para Roma - ordenou.
Pensou em Maria e em como reagiria ao saber que o edifício onde funcionava o bordel gerido por Moretta era propriedade sua.
Quando, já em Roma, chegou aos escritórios da via Condotti, encontrou apenas uma secretária.
- Procuro Giuliano Morandi - disse Peter, ao mesmo tempo que massajava o lábio inferior, atacado por um formigueiro incomodativo.
- Marcou alguma reunião? - perguntou a secretária, com um tom altivo, sem levantar os olhos dos papéis que estava a arrumar nas gavetas da secretária.
Peter estava quase a perder o controlo. Estava cansado, preocupado, e queria resolver o mais depressa possível aquela história odiosa.
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- Não marquei reunião nenhuma, mas se dentro de dez minutos a senhora não me põe aqui o Dr. Giuliano Morandi, aconselho-a a meter as suas coisas num saco de plástico e a sair
para sempre por aquela porta.
- Mas você é doido - disse a rapariga, que corou violentamente e olhou para ele, atónita.
- Essas são as primeiras palavras que fazem sentido. Sim. Eu sou doido.
- Posso ao menos saber o seu nome? - perguntou, recuperando, em parte, a sua petulância.
- Peter Strauss.
- Peter Strauss, o...? - balbuciou baixinho.
- Peter Strauss, o seu patrão - esclareceu.
Após uma aflitiva série de telefonemas, Giuliano Morandi chegou aos escritórios, ofegante, a avançar desculpas e a tartamudear justificações. Num tempo brevíssimo pôs diante
de Peter, em cima de uma grande mesa, todos os documentos relativos à villa de Moretta.
- Quem assinava os cheques trimestrais do aluguer?
- Virgilio Finolli - respondeu o responsável pelo escritório.
- No entanto era a Carpets de Antonino Catania que era a titular do contrato de aluguer. Porquê? - indagou Peter.
- Não faço a mínima ideia - replicou Morandi, com um ar aflito.
- Doutor Morandi, o imóvel de Bolonha está desabitado e deteriorado. Parece-lhe normal que este senhor Catania, através de Finolli, pague as despesas de um imóvel que não
utiliza há anos?
- Temo não poder responder-lhe. É um facto desagradável. Vamos tratar de inspecionar a casa e, eventualmente, pediremos o pagamento dos estragos.
- O senhor não vai tratar de nada. A partir deste momento, o problema é meu.
- Com certeza, senhor Strauss.
Peter virou-lhe as costas e saiu. Cruzou-se com a secretária, que regressava da casa de banho com os olhos vermelhos e inchados de chorar.
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O homem dos Serviços Secretos tinha acabado de entrar na sua mansarda na via dellArco deTolomei. Estava cansado. Precisava de pensar em alternativas àquele maravilhoso apartamento.
Na sua idade, o elevador tornava-se indispensável para quem mora no quinto andar. O telefone tocava com insistência e ele teve mesmo de atender.
- Procuro o Sr. Finolli - disse uma voz do outro lado do fio.
- O senhor quem é? - retorquiu, brusco.
- Não creio que me tenha enganado no número - disse o homem, com um tom irónico. E prosseguiu: - Não é necessário que lhe diga quem sou porque quando, daqui a dez minutos,
eu me apresentar em sua casa, talvez se recorde de me ter visto em algum lado. - E desligou.
Não lhe adiantava nada repetir que "era um velho", que não tinha nada a temer, que se encontrava num quente e confortável barril de ferro. Bastava um telefonema como aquele
para lhe fazer subir a tensão.
O homem pousou o auscultador e passou um lenço pela testa empapada de suor.
Aproximou-se da porta e olhou através do óculo. Não havia ninguém. Abriu e sentiu abater-se sobre ele uma montanha que o agarrou pela gola do casaco. Dois homens armados entraram
no pequeno apartamento, enquanto Peter o empurrava para dentro e o atirava para um sofá, debruçado sobre ele com toda a sua estatura.
- Agora vamos conversar - disse.
- Quem são? O que querem de mim? - balbuciou o homem dos Serviços Secretos, a transpirar copiosamente.
Os dois gorilas andavam pelo apartamento a esquadrinhar tudo, enquanto arrancavam fios e desativavam gravadores. Enfiaram num saco maços de papéis, fitas gravadas, duas pistolas.
Depois fizeram sinal a Strauss de que estava tudo em ordem.
Nesse momento, Peter falou.
- Sou um curioso, Sr. Finolli - disse, com uma voz simpática. - Quero levá-lo a fazer uma viagem no tempo, a alguns anos atrás. Fale-me de uma rapariga de Bolonha. Chamava-se
Moretta Morandi. Lembra-se dela?
O homem estremeceu. Percebeu que mentir lhe acarretaria mais
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problemas. No entanto, não conseguia ainda identificar aquele trio. Seriam polícias ou ladrões? Em qualquer caso, tinha a certeza de uma coisa: não estavam com vontade de
brincar.
- Nunca a conheci pessoalmente. Nunca falei com ela. Para mim, era apenas um nome. Uma rapariga complacente para alegrar as noites de certas pessoas - respondeu, hesitante.
- Que género de pessoas? - insistiu Peter.
- Porque é que me pergunta, se já sabe? - replicou Finolli, sem forças.
- Gosto de o ouvir dizer-me - insistiu Peter, sem perder a calma. Depois voltou-se para os seus homens e disse: - Este senhor e eu temos de conversar. Esperem por mim lá fora.
Quando ficaram a sós, o homem dos Serviços Secretos, que o tinha reconhecido, olhou Peter nos olhos em ar de desafio.
- Seja o que for que eu lhe diga, não vai acreditar em mim. Os seus homens já têm nas mãos todos os documentos que recolhi em oito anos deste trabalho sujo. Leia-os, se quiser.
Mas não lhe vai fazer nada bem à saúde saber certas coisas. E agora, por favor, deixe-me em paz.
- Você é um indivíduo revoltante - comentou Peter.
- Não me parece que o senhor seja melhor do que eu - tentou defender-se. - O grande Peter Strauss. Alguém que do nada se transformou num colosso da finança internacional.
Ninguém se torna tão importante sem se sujar.
- Não me dê lições de moral, Sr. Finolli. De si não as aceito.
- Agora já me posso permitir o que quer que seja. A partir deste momento, a minha vida não tem nenhum valor. E a sua também não vale muito mais.
- Quem é Antonino Catania? - insistiu Peter.
- Um verme - respondeu Finolli.
- Não me interessam os seus juízos.
- Um executor. Um traficante de droga. Um delator. Um proxeneta. Um assassino. Um mafioso.
- Foi ele quem matou Moretta Morandi?
- Ele e os amigos dele - disse o homem.
- Diga-me os nomes.
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- Não os conheço. Nesta profissão, quanto menos se souber, melhor. Vai perceber isso pessoalmente, senhor Strauss - declarou.
- Os seus avisos não me preocupam, Sr. Finolli. Porque razão continuou a pagar o aluguer de uma villa que está praticamente arruinada?
- Ordens. Eu também sou um executor - respondeu.
- As chaves - disse, ao mesmo tempo que estendia uma mão para ele. - Dê-me as chaves da villa.
Finolli entregou-lhas. Estava pálido e a tremer.
Peter foi ter com os seguranças, que estavam à espera dele no patamar.
Quando ficou sozinho, o homem dos Serviços Secretos apercebeu-se de que tinha as calças molhadas. Então começou a chorar. E chorava ainda quando marcou um número de telefone
que sabia de cor.
Quando a pessoa que procurava atendeu, Finolli disse:
- Peter Strauss. Veio até aqui. Apoderou-se do meu arquivo. Agora sabe muitas coisas.
No avião que o levava para Bolonha, Peter deu uma vista de olhos ao material confiscado a Virgílio Finolli. Julgava que sabia tudo sobre o mundo político e as suas intrigas.
Descobria agora que não sabia nada. Nem mesmo a fantasia mais perversa teria imaginado um panorama tão miserável. O agente secreto tinha documentado com pormenores factos
e delitos. Maria, sem querer, tinha-se cruzado com aquela gente que a ferira tão profundamente. Mas felizmente ainda estava viva e, agora, estava ali ele para a proteger.
Sentia-se agoniado e não sabia que o pior ainda estava para vir. O interior da villa conservava aqui e ali a marca de uma antiga elegância, apesar dos danos produzidos por
quem a tinha esquadrinhado para procurar as gravações de que Maria lhe tinha falado. Os homens de Peter não sabiam por que razão o patrão estava tão preocupado com aquela
ruína. Não duvidavam, no entanto, de que devia ter um bom motivo para o fazer. Tinham-se habituado a não se questionarem sobre nada e a executarem as suas ordens. Estavam
ao seu serviço há anos e nunca Peter lhes tinha criado complicações.
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Vaguearam pela casa como fantasmas. Quando iam a sair para o jardim, Peter disse:
- Vou pô-la à venda. O produto será entregue a uma instituição de beneficência. Espero assim conseguir lavar toda esta imundície.
Conduziu-os até ao pequeno edifício onde ficava a garagem. Subiram a escada de ferro que dava acesso ao andar superior. Lá dentro, Peter reconheceu todas as coisas através
da descrição de Maria. A ideia de que ela tivesse estado naquele lugar tão duvidoso causou-lhe uma sensação de náusea. Também o apartamento não tinha sido poupado. Antonino
tinha-o virado de pernas para o ar à procura das gravações. Mas não encontrou o que procurava, pensou Peter, ao reparar no teto intacto da casa de banho.
- Parece-me ser um teto em painéis - observou, dirigindo-se a um dos homens. E acrescentou: - Vê se consegues deslocar algum.
O homem subiu à borda da banheira e começou a bater com os nós dos dedos.
- Há uma cavidade - confirmou. Afastou o painel e introduziu uma mão. - Está qualquer coisa aqui dentro.
Extraiu uma caixa de cartão e entregou-a a Peter. Ele abriu-a e encontrou as bobines de que Maria lhe tinha falado.
Passou a noite, no hotel, a ouvir as fitas gravadas por Moretta. Agora sabia muitas mais coisas do que Maria podia imaginar. E ficou a saber também os nomes dos cúmplices
de Antonino. Mas eram apenas nomes. Não sabia onde os encontrar.
Estava na posse de uma documentação que o assustava e da qual tinha de se libertar. Quando adormeceu, quase de madrugada, o seu último pensamento foi para Maria. Tinha-lhe
prometido aquelas fitas para que ela mesma pudesse entregá-las à polícia e manter a palavra dada à amiga. Mas ele não queria que ela fosse envolvida mais uma vez naquela história.
Por isso decidiu que, pela primeira vez, lhe ia mentir.
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12
A villa, em estilo neoclássico, surgia num doce declive sobre Bon-nieux. Um portal de pedra emoldurava a entrada do edifício de três andares que dominava uma extensão ininterrupta
de vinhas onde amadureciam ao sol as uvas para os melhores vinhos da região, produzidos pela família Honfleur.
Mistral nunca tinha entrado numa casa como aquela, mobilada com valiosas peças antigas e quadros de grande valor.
Chantal tinha-o convidado para passar o fim de semana.
- Assim os meus pais vão poder, finalmente, conhecer-te e perceber que não és um extraterrestre, como costumam definir todos aqueles que não fazem parte do mundo deles.
Os olhares encantados de Mistral fixavam-se em bibelots, tapetes, vasos, pratas e candeeiros de extraordinária beleza.
- Esta casa é uma maravilha - exclamou.
- É a nossa casa de campo. Ainda tu não viste a de Paris - disse ela. Mistral entregou o saco de viagem a um empregado e foi atrás
de Chantal até ao pátio, de onde se admirava o jardim em socalcos iluminado pelos últimos raios de sol.
- Foi aqui que cresceste, não foi? - perguntou, tentando imaginar como poderia ter sido a infância de Chantal numa casa tão bonita.
- Cresci em vários lugares - respondeu ela -, e aqui também, claro. Mas nunca no inverno, porque sopra o mistral. E é tremendo.
- Eu sei. A força desse vento tenho-a eu no nome e no coração -confessou ele, e apressou-se a colocar de novo Chantal no centro do diálogo. - Onde passavas o inverno?
312
- Em Paris, como é óbvio. Em agosto, íamos para a praia. Em dezembro, para a montanha. Estive também durante muitos anos num colégio, nos Pirenéus. Era um sítio horrível.
Mas não há dúvida de que esta é a nossa verdadeira casa. A que o meu pai herdou do pai dele, que a tinha herdado do avô, que a tinha herdado...
- Já percebi - sorriu ele, enquanto deixava vaguear o olhar pelo vale que era uma vinha só, interrompida, aqui e ali, pelas casas dos trabalhadores. Em algum lugar, no meio
daquela extensão verdejante, devia estar a casa dos Plouvin, os parentes da mãe. Recordava ainda as palavras de Adèle, quando ele era pequeno: "Um dia vou levar-te à Provença,
para conheceres os teus tios e os teus primos". Nunca o fizera. Talvez já não tivesse vontade de ver aquela família que a tinha ignorado quando decidiu casar-se com o pescador
de Cesenatico. Uma raça áspera, a dos camponeses da Provença. Quem sabe se também os aristocratas, como Chantal, seriam do mesmo género?
- Fascina-te assim tanto este panorama? - perguntou Chantal, espantada, ao vê-lo tão pensativo.
- É também a minha terra - surpreendeu-a Mistral. - A minha mãe nasceu aqui.
- Estás a brincar?
- Nunca falei tão a sério.
- Por isso é que te chamas Mistral?
- Precisamente. A minha mãe chama-se Adèle Plouvin.
- Há muitos Plouvin por estes lados. Eu conheço alguns. Trabalham nas nossas terras há cem anos e talvez até mais.
- São meus parentes - confirmou Mistral, com um sorriso divertido.
- Achas isso assim tão engraçado? - perguntou Chantal.
- Sim, se imaginar a cara que fariam os irmãos da minha mãe ao saber que está aqui um sobrinho, na casa do patrão, tu cá tu lá com a jovem condessa Honfleur.
- E nunca aqui tinhas estado antes?
- Não achava que fosse um lugar particularmente interessante. Pelo menos até tu teres aparecido no meu horizonte - confessou, ao mesmo tempo que lhe passava um braço à volta
dos ombros.
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- E a tua mãe, o que diria se te visse aqui? - perguntou, com um ar malicioso.
- Ela possui o raro dom de nunca se espantar com nada - rematou Mistral. Não gostava de falar de Adèle, era um património afetivo que não queria partilhar com ninguém.
- Então cresceste a falar duas línguas - comentou Chantal. - Agora é que eu percebo o teu sotaque camponês, quando falas francês - observou, divertida.
- E eu a julgar que falava um francês perfeito - fingiu ofender-se.
- Digamos que é quase perfeito - brincou ela.
- Infelizmente, não frequentei os colégios exclusivos onde tu passaste a tua adolescência.
- Isso conta-se entre as minhas piores recordações - confessou, mudando subitamente de humor.
- Acho que não contámos um ao outro grande coisa sobre as nossas vidas - observou Mistral.
- O passado importa muito pouco, é o presente que me excita -disse ela. - Anda, vou levar-te ao teu quarto - decidiu, enquanto lhe enfiava o braço para o conduzir ao primeiro
andar da villa, onde ficavam os quartos de hóspedes. O de Mistral tinha duas grandes portas envidraçadas que davam para a piscina onde as andorinhas, a gritar, tocavam por
um instante a água e voltavam a subir ao céu para continuar o seu voo frenético antes de cair a noite.
Mistral fechou as portadas sobre a última luz do dia que, há muito tempo, lhe provocava uma sensação de inquietude. Como certos fins de tarde de outono, quando a beleza e
a morte parecem caminhar juntas. Em Cesenatico, quando era criança, ia para a beira-mar ao entardecer espiar o voo das gaivotas. Aninhava-se na areia, escondia o rosto entre
as mãos e chorava.
Tudo começou no dia em que, para se defender do ataque de dois rapazes maiores do que ele, depois de se ter batido com raiva, correu para a praia e olhou para aquele mar que
tinha engolido Talemico antes de ele nascer. "Aproveitam-se porque eu não tenho um pai para me defender", pensou, a soluçar. Respondeu-lhe o lento rumor das ondas que, iluminadas
pelos últimos raios de sol, iam morrer sobre a areia.
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Chantal foi junto dele e começou a afagá-lo com doçura.
- Estás a jogar às estátuas? - perguntou, ao ver o seu ar absorto.
- Recordava dias distantes - respondeu Mistral, e abraçou-a.
- Vamos experimentar esta cama, a ver se é suficientemente acolhedora? - provocou-o.
- Não vamos atrasar-nos para o jantar? - Não estava com vontade de fazer amor.
- Ainda temos alguns minutos. Neste pequeníssimo lapso de tempo, pode acontecer muita coisa - disse ela, a sorrir, ao mesmo tempo que lhe desabotoava a camisa.
À mesa, Mistral encontrou também a velha condessa Honfleur, grand-maman, como toda a gente a tratava. Não era assim tão idosa, mas era quase completamente surda e acusava
toda a gente de falar em voz baixa para não lhe. permitir ouvir aquilo que diziam.
Mistral sentiu-se tolerado como um corpo estranho, momentaneamente inócuo. Um ser sem tradições, com o qual Chantal parecia entreter-se. Através de uma conversa banal, os
Honfleur procuravam uma razão qualquer que justificasse a presença em sua casa daquele belo rapaz sem passado.
- Então o senhor é corredor de automóveis - disse a grand-maman, que comia pouquíssimo mas estendia muitas vezes a mão para o copo que um empregado nunca deixava vazio. -
Eu conheci um italiano, nos meus anos de juventude, que corria a Mille Miglia. Um jovem maravilhoso, um grande senhor. Era o conde Giovannino Lurani. Fazia equipa com Gigi
Villoresi. Se bem recordo, corriam num Maserati. Ou talvez fosse um Alfa Romeo desenhado por Mário Revelli de Beaumont. Já passaram muitos anos e a memória, às vezes, atraiçoa-me.
- Gesticulava e fazia tilintar as pulseiras carregadas de berloques. - Como disse que se chamava?
- Vernati, madame. Mistral Vernati - respondeu, erguendo a voz.
- Não me recordo de ter conhecido nenhum Vernati, entre os meus amigos italianos - observou, desapontada, a velha senhora.
- A mãe é francesa - interveio a condessa que, informada por Chantal, tremia na certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a mãe se ia sair com alguma pergunta embaraçosa.
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- Oh, acho isso muito simpático, Sr. Vernati. Em que região nasceu o seu ramo materno? - indagou.
Chantal decidiu que tinha chegado o momento de desaparecer.
- Explica-lhe tu, mãe - disse, ao mesmo tempo que se levantava da mesa. - Peço-te que nos desculpes, avó. Atrasámo-nos e temos uns amigos à nossa espera em Bonnieux.
- Percebo perfeitamente. Vocês são jovens e têm as vossas exigências. Mas diz-me só uma coisa, querida. Estou enganada, ou há aqui qualquer coisa entre ti e este jovem?
O conde aclarou a garganta com um ar embaraçado. A condessa ficou rígida, à espera da resposta.
- Há algo mais do que isso, grand-maman. Este jovem arrebatou-me o coração - disse Chantal, com um ar provocatório.
- Eu tinha percebido, eu tinha percebido - repetiu a velha senhora, satisfeita.
Enquanto se afastavam, Mistral ouviu a avó perguntar:
- Qual é o nome materno deste rapaz?
- Vão responder-lhe que não tenho nome materno, não é verdade? - ironizou Mistral.
- Pelo contrário. Depois de ter entendido as minhas intenções em relação a ti, a minha mãe vai dizer-lhe que o teu nome materno é Plouvin e a grand-maman vai abanar a cabeça,
lamentando-se da fraca memória que agora a impede de recordar os nomes.
- Sinto-me tão idiota - observou ele. - Não estava à espera de ter que passar um exame.
- E de que outra coisa estavas à espera? Em qualquer caso, passaste. Posso garantir-te.
Os dois jovens tinham acabado de sair e já, na sala de estar da villa, se entreteciam comentários sobre eles.
- O que dizes, André? - perguntou a condessa ao marido.
- Que apenas podemos fazer boa cara a toda esta história, esperando que se conclua da melhor maneira - respondeu o conde, lacónico.
- Achas que a Chantal ia ousar casar com ele? - perguntou, incrédula.
- Francamente, espero que ele ouse casar com ela - replicou
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o conde. - De resto, tem ar de bom rapaz. É bonito. Tem um futuro. E, tanto quanto me dizem, os pilotos, com o tempo, tornam-se socialmente interessantes - concluiu.
- Parem de falar em voz baixa - interveio a velha senhora. - Quem é socialmente interessante?
- Estamos a falar do Mistral Vernati, graná-maman - explicou a condessa, erguendo o tom de voz.
- Interessante ele é, certamente. Sobretudo do ponto de vista estético - declarou a senhora, com um sorriso divertido.
- A minha mãe nunca se contradiz - comentou o conde.
- Então, o que é que se passa? Quero dizer, casa com ela ou não casa? - insistiu a grand-maman.
O conde pareceu refletir durante alguns instantes. Depois disse, com ar grave:
- Casa com ela. A Chantal é bonita, rica e nobre. É uma atração irresistível.
- Desde que não descubra antes de que massa ela é feita - suspirou a condessa. A família Honfleur não via a hora de passar aquela batata quente que há anos lhes queimava as
mãos.
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13
Peter telefonou-lhe quando ela estava a jogar ténis a pares com os seguranças. Era quase fim da tarde e do lago subia uma neblina carregada de humidade. Maria gostava de ténis
e tinha aprendido a jogar bastante bem. Ela e o seu parceiro estavam a ganhar. Um jardineiro veio chamá-la:
- O telefone, menina.
Peter estava com uma voz alegre.
- Lamento ter-te interrompido a partida.
- Salvaste dois dos teus rapazes de fazerem má figura - respondeu ela alegremente.
Peter riu-se.
- Estão a perder?
- Não têm o mínimo sentido de cavalheirismo e estão a fazer tudo para não me deixarem ganhar - replicou, enquanto passava pelo rosto e pelo pescoço uma toalha. - E depois
deste-me a oportunidade de fazer uma pequena pausa.
- Como estás? - perguntou Peter, sempre atento.
- Estou numa forma extraordinária.
- Fico feliz.
- Encontraste aquilo que procurávamos?
- É uma história bastante complexa. Conto-te tudo quando voltar.
Peter usava o telefone com cautela. Maria sabia-o e tinha aprendido a partilhar aquela desconfiança relativamente a um meio de comunicação que podia ser intercetado.
- Então fico à tua espera - respondeu.
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- Não volto tão cedo.
- Quando?
- Ainda vais ter de esperar alguns dias.
- Quando quiseres. Um abraço - despediu-se.
Sentiu-se subitamente angustiada e confusa. Conhecia bem aquele mal-estar, que esperava ter já debelado. Assustou-se ao pensar numa recaída. Precisava de falar com o seu psicólogo.
Ligou-lhe para o consultório, em Milão, com a certeza de que ia ouvir dizer que ele não estava. A crise começava sempre assim, com o domínio do pessimismo mesmo em questões
menos importantes. Mas o Dr. Bergonzi estava lá e nem sequer pareceu surpreendido por a ouvir.
- Estou a ver sombras outra vez - concluiu Maria, depois de lhe ter contado os últimos acontecimentos.
- Então vamos lá conversar sobre isso - replicou o psicólogo, que a tinha ouvido atentamente.
- Pode ser daqui a uma hora? - propôs ela.
- Sinto muito. Daqui a uma hora tenho uma consulta.
- Eu espero que acabe. Por favor, é importante que eu fale consigo - insistiu Maria, que estava já dominada por uma crise de angústia. Esteve até às oito da noite na sala
de espera do psicólogo. Finalmente, ele recebeu-a.
- Sente-se, por favor - disse-lhe, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão e lhe indicava uma poltrona em frente à secretária. - Infelizmente, só lhe posso dedicar cinco minutos.
Tenho convidados para jantar.
Maria, que até àquele momento tinha estado dominada por um ataque de pânico incontrolável, sentiu-se subitamente melhor. E surpreendendo-se até a si própria, começou:
- Estou apaixonada pelo Peter Strauss.
- É uma afirmação ou uma pergunta?
- É apenas uma descoberta da qual saltam muitas dúvidas - replicou, à espera de um comentário que não veio.
Ele estava a acender o cachimbo, com cuidado para que a chama do isqueiro não lhe queimasse o polegar.
- A pergunta é esta - continuou Maria: - Acho-o fascinante e desejável porque ele é o Peter Strauss, com toda a sua riqueza e o
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seu poder, ou porque é o meu único ponto de referência no meio de tanta confusão? Não sei se consigo explicar-me...
O psicólogo experimentou a tiragem do cachimbo e na sala espalhou-se o perfume do tabaco. Estava a funcionar perfeitamente. Deu duas ou três puxadas breves, depois deixou-se
cair contra o encosto da cadeira e olhou para ela sem responder.
Maria interrogava-se ainda com uma terceira questão, que não tardou a chegar:
- Será que eu não poderia amá-lo pela sua alma, por aquilo que realmente é e não demonstra?
Bergonzi afagou com voluptuosidade a fornalha do cachimbo e olhou para Maria com ternura.
- Porquê tanta obstinação em complicar a sua vida? - perguntou, com um ar tranquilo.
- É uma questão de honestidade para comigo mesma e para com ele.
- Esqueça a honestidade, para já. Lembra-se? Amo-te porque preciso de ti.
- Preciso de ti porque te amo - retorquiu Maria, invertendo o conceito.
- A resposta já a deu sozinha. A Maria ama o Peter Strauss. Ponto final. Pare de se atormentar. Tire da vida tudo aquilo que ela lhe puder dar de bom. Já teve a sua parte
de infelicidade. Não acha que chega? -Olhou para o relógio: - Já passaram quinze minutos. Tinha-lhe prometido cinco.
- Ainda não acabei - continuou Maria, agarrando-se aos braços da poltrona.
- Continuamos a falar enquanto saímos.
Pegou na pasta e convidou-a a segui-lo até ao exterior.
- Eu acho que o Peter me considera como uma filha. Em todos estes anos, o comportamento dele foi sempre o de um pai - disse, enquanto desciam as escadas.
- Há uma diferença subtil. A Maria não é filha do Peter Strauss e ele é um homem só. Pense nisso e tire as suas ilações - concluiu, ao mesmo tempo que, já chegados à rua,
lhe estendia a mão para se despedir.
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14
Peter Strauss caminhava pelas antigas vielas da Vucciria, em Palermo, na companhia do seu amigo deputado.
- Só um cataclismo poderia trazer-te a estes lados - brincou o siciliano, que sabia o quanto Strauss considerava perigosa aquela cidade. - E ainda por cima sem os teus seguranças.
- É mais ou menos isso - confirmou o empresário. - O assunto é de tal maneira delicado e terrível que só posso falar sobre ele contigo. Tu conheces as conivências mais secretas
entre a política e a máfia, a prostituição e a droga, o poder dos gabinetes e o dos Serviços Secretos.
- Eu não sei nada - respondeu o deputado, na defensiva. - Ouço rumores. Mas são apenas rumores, nunca comprovados na realidade. Eu disse nunca. Entendes-me? - Tinha corado
e olhava em volta, preocupado, apesar de no meio da confusão daquele antigo mercado de Palermo ninguém poder ouvir a conversa.
- As provas reais tenho-as eu - disse Peter.
- Estás a brincar! - disse o amigo, alarmado.
- Nunca falei tão sério. Nem nunca estive tão preocupado.
- Onde é que estão essas provas? - indagou o deputado.
- Vais tê-las em breve. Vou mandá-las entregar em tua casa. Usa-as como quiseres. Por aquilo que me diz respeito, até as podes destruir. Mas, atendendo a como estão os tempos,
eu punha-as a salvo. Nunca se sabe - avisou-o.
- Há nomes, nessas provas? - perguntou, baixando a voz.
- Nomes, factos, excertos de conversas, telefonemas, fotografias, filmagens.
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O deputado continuava a olhar em volta com um ar preocupado. Passou um lenço pelo pescoço para limpar o suor, que não era devido apenas à assustadora capa de calor húmido
que pesava sobre a cidade.
- Também aparece o meu nome? - perguntou, com uma voz trémula.
- Não. Nem eu estaria aqui, se assim fosse - garantiu Peter. O siciliano deu um suspiro de alívio.
- Olha, eu não quero esse material - disse, estendendo as mãos.
- Mas alguém devia saber certas coisas. Até porque, mais cedo ou mais tarde, vai ser preciso fazer alguma limpeza. Lembras-te da história de O rei vai nu?. Contava-ma a minha
mãe. Então, este rei era estúpido e vaidoso, e os seus cortesãos, corruptos e oportunistas, convenceram-no a usar uma veste tecida com os raios da lua e as pérolas do mar.
A trama era tão diáfana e evanescente que só um espírito nobre conseguiria ver. E como ele devia ter um espírito nobre, disse que a via, ainda que não fosse verdade, e desfilou
no meio dos seus súbditos apenas com umas cuecas vestidas. Mas toda a gente, para não passar por estúpida, tecia elogios àquela veste. Até que uma criança inocente exclamou:
"O rei vai nu!". Nesse momento, o povo teve a coragem de declarar aquilo que via. E os cortesãos corruptos foram expulsos à vassourada - contou Peter.
- E isso quer dizer o quê? Que devia ser eu esse menino? Não sou assim tão inocente, Peter. E os cortesãos corruptos não são os dessa história. Nunca se deixariam expulsar
à vassourada.
- Portanto, também tu preferes não ver - disse Peter num tom provocador.
- Exatamente. Não quero ver nem saber. E digo-te outra coisa: hoje, eu e tu nem sequer nos encontrámos - afirmou o siciliano.
- E pensar eu que contava com a tua ajuda para uma coisa em que estou tão empenhado - lamentou-se Peter.
- Tem alguma coisa a ver com a tua documentação? - perguntou.
- Uma mulher que me é muito querida foi violada. Quero os seus violadores mortos - confessou.
- E, obviamente, não te diriges aos organismos institucionais porque são coniventes e corruptos. É isso? - comentou o deputado, com ironia.
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- Não. Acho apenas que, se ainda estão em liberdade, vão acabar por matá-la. Se estão na cadeia, mais tarde ou mais cedo vão sair e matam-na de qualquer maneira. Só se morrerem
ela pode continuar a viver.
- Dá-me os nomes - disse o siciliano, resignado.
- Estão escritos aqui - disse Peter, entregando-lhe um papelinho amachucado.
- Vou ver o que posso fazer - prometeu o deputado, e acrescentou: - Logo à noite espero-te para jantar em minha casa. Hoje não nos encontrámos. Fui claro?
Peter anuiu. Entendia os seus receios e não podia censurá-lo. Por isso, quando se apresentou para jantar no palácio barroco onde o deputado residia, não referiu de nenhum
modo aquele encontro. Só quando estava para se despedir o amigo lhe meteu na mão um papel. Sem um sinal nem uma palavra de entendimento. Era uma comunicação sucinta. Dois
dos agressores de Maria estavam na prisão: o primeiro no Ucciardone, o segundo em Castelfranco Emilia. A acusação era de tráfico de estupefacientes e instigação à prostituição.
Sairiam ambos dali a um ano. O terceiro, Antonino Catania, estava impune. No entanto, o deputado forneceu-lhe um endereço: o de uma casa de lavoura, nos campos dos arredores
de Bolonha. Peter poderia resolver o caso com Antonino. Mas não tinha hipóteses de chegar aos dois homens na cadeia. Para chegar a eles, eram necessárias conivências que ele
não tinha. Devia esperar até ao fim da pena.
Naquela noite dormiu pouco e mal. A certa altura, foi acordado pelo toque do telefone. Era o amigo deputado.
- Não consegui dormir - começou. - E, se calhar, tu também não.
- Sinto muito. Não queria criar-te problemas - desculpou-se Peter.
- Mas fizeste-o. Em qualquer caso, ouve-me sem fazeres perguntas. Considera os dois presos como um assunto resolvido. Quanto ao terceiro, tens de tratar tu do assunto - concluiu.
- Agradeço-te - disse Peter.
- Não tens de quê. Um dia, se for preciso, retribuis. Despediu-se e desligou a chamada.
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O homem preso na Ucciardone foi encontrado morto no seu catre, sufocado com uma almofada. O de Castelfranco Emilia foi degolado durante uma briga, na hora do recreio. Peter
Strauss tomou conhecimento destes factos através dos jornais, alguns dias depois.
A conta em suspenso com Antonino acertou-a no dia seguinte, sozinho.
Alugou um carro utilitário para se deslocar à propriedade na periferia de Bolonha e escondeu-o no meio de uma moita. De longe, tinha estudado a zona, observado o vaivém de
dois homens e a chegada de um terceiro, num carro de grande cilindrada. Aproximou-se cautelosamente da casa e espiou o interior através do vidro poeirento de uma janela. Tratava-se,
sem sombra de dúvida, de um laboratório de droga. E Antonino, tinha a certeza, era o homem magro e enérgico que estava a encher um caixote com saquinhos de pó branco. Não
podia entrar porque ia estar sozinho contra três, e suspeitava que estivessem armados. Mas a sorte ajudou-o. Os outros dois, que deviam fazer a distribuição, saíram com o
caixote cheio de droga. Meteram-no no carro e afastaram-se. O terceiro, Antonino, ficou sozinho a contar o dinheiro recebido. Nesse momento, Peter deu a volta ao edifício
e escancarou a porta, apanhando-o de surpresa. Na mão do homem apareceu uma navalha de ponta e mola. Peter estava armado apenas com a sua raiva.
- És o Antonino Catania - disse, trespassando-o com um olhar acusador. O efeito surpresa tinha tido o seu peso, porque o homem continuava a olhar para ele, desorientado.
- Mas que raio é que tu queres?
- Matar-te - respondeu Peter.
Antonino replicou com um riso trocista que, no entanto, denunciava o seu nervosismo, porque aquele adversário, mesmo estando desarmado, tinha o aspeto de uma montanha.
- A sério? - respondeu, com um tom irónico. - E porque é que havias de querer matar-me? Eu nem sequer te conheço, imbecil!
Peter tinha a certeza de que Maria tinha sido violada ali mesmo. Saiu-lhe da garganta um urro selvagem, ao mesmo tempo que se lançava sobre o homem que, apanhado de surpresa,
cedeu sob o seu peso, apesar de ter ainda conseguido feri-lo no braço com a navalha.
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Mas Peter já tinha fechado as suas mãos sobre a garganta do homem. Viu-o esbracejar para absorver algum ar. Ele continuava a apertar-lhe a garganta. O braço sangrava, mas
ele não sentia qualquer dor. A vida de Antonino Catania era um sopro ligeiro que estava prestes a desvanecer-se.
Naquele momento, Peter largou-o. O homem tinha desmaiado e ele recuperara o uso da razão. Não era um assassino. Nunca tinha matado ninguém na sua vida e não ia começar agora.
Tirou a gravata e, com ela, amarrou as mãos de Antonino atrás das costas. Havia um telefone em cima do balcão. Chamou a polícia. Deu o endereço e disse:
- Isto é um laboratório de estupefacientes onde vão encontrar também um traficante de droga. O homem chama-se Antonino Catania.
Desligou a chamada e saiu.
Foi fazer um curativo à clínica Salus. Dormiu em Bolonha, naquela noite. Depois partiu para os Estados Unidos. Não lhe apetecia voltar imediatamente para a villa do lago e
responder às perguntas de Maria.
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15
Peter chegou ao lago quando o sol tinha já iniciado a sua curva descendente. Maria foi a correr ao encontro dele, feliz.
- Diz-me que tiveste saudades minhas - ordenou com ternura, apertando-a entre os seus braços.
- Tive saudades tuas - repetiu ela. - Nunca mais me deixes - suplicou-lhe, refugiando-se contra o seu ombro. Maria ergueu o rosto e ele inclinou-se e beijou-a nos lábios.
Foi o primeiro beijo, suavizado pelo pudor que acompanha os sentimentos mais delicados.
- Preciso de ti, porque te amo - confessou ela.
O rosto de Peter iluminou-se de alegria e, abraçando-a com mais força, sussurrou-lhe:
- Se eu não receasse ficar com ar de pateta, também te dizia que te amo.
- Então, porque não me beijas? - disse Maria, baixinho. Peter corou como um menino.
- Não acreditava que na minha idade ainda pudessem acontecer estas coisas.
Ficaram abraçados, em silêncio, durante alguns minutos. Depois avançaram lentamente em direção à villa.
A governanta estava à espera deles à entrada.
Aquela foi a primeira noite de amor de Maria, e foi uma experiência muito doce porque nascia de uma longa amizade, do respeito recíproco, de uma espécie de veneração de Peter
por ela e da gratidão
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de Maria por ele. Amaram-se com um enlevo que apagou todos os receios, e ao fim sorriram como dois adolescentes perante uma descoberta maravilhosa.
Maria não lhe perguntou nada sobre o êxito da sua recente viagem, e ele evitou abordar o assunto.
Desceram muito tarde para jantar. A governanta tinha preparado a mesa num terraço coberto por uma passiflora, em frente ao lago dos nenúfares, onde nadavam uns peixinhos.
Eram carpas japonesas que cintilavam como diamantes no reflexo da lua. O vento ligeiro da noite rumorejava por entre os carvalhos e trazia até eles o delicado perfume dos
limões.
- O que vai ser de nós? - perguntou Maria, que tinha os olhos cintilantes de felicidade.
- E viveram felizes e contentes. Como nas fábulas - garantiu Peter.
- Para sempre?.- perguntou Maria.
- Para o resto dos nossos dias - concluiu ele, com doçura. Aproximou-se um empregado, que lhe anunciou em voz baixa:
- O seu filho está a chegar.
- Vou para o meu quarto - decidiu Maria.
- Põe mais um lugar na mesa - disse ao empregado, ao mesmo tempo que apertava delicadamente a mão da rapariga.
- Não quero que ele se sinta pouco à vontade - insistiu Maria.
- Escondi-lhe a tua presença durante demasiado tempo. Naquele momento chegou Gianni, que se inclinou para dar um
beijo ligeiro na face do pai.
Maria recebeu-o com um sorriso aberto.
- É uma honra e um prazer conhecer finalmente a mulher mistério - disse Gianni, com um tom desagradável.
Maria apertou-lhe a mão. Era um belo rapaz e parecia-se pouquíssimo com Peter. Só a cor dos cabelos era igual. Parecia mais velho do que os seus 25 anos.
- Espero não te desiludir - respondeu Maria.
- Acho improvável. O Peter Strauss tem a capacidade de escolher sempre o melhor. Como a minha mãe, por exemplo. Não conhece a minha mãe, pois não?
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Maria lançou um olhar desesperado a Peter, de quem esperava alguma ajuda. Mas ele estava impassível e continuava a comer como se eles ali não estivessem.
- É difícil que possa conhecer a minha mãe - prosseguiu Gianni, agressivo. - Pertencem a duas galáxias diferentes.
Maria, enchendo-se de força, não respondeu à provocação.
- Comes alguma coisa connosco? - interveio finalmente Peter.
- Receio ter interrompido um diálogo agradável. Não queria incomodar - respondeu, irónico.
- Senta-te e toma alguma coisa - insistiu Peter, sem dar importância às palavras do filho.
- Preferia dar uma volta - respondeu Gianni.
- Faz como quiseres - disse Peter -, estás em tua casa.
- Vi um Ferrari fantástico, lá em baixo, no parque de estacionamento. Acho que vou dar uma volta nele - decidiu Gianni.
- Vais ter de pedir autorização à Maria - interveio Peter. - Porque dá-se o caso de aquele Ferrari fantástico ser dela.
O rosto de Gianni contraiu-se num assomo de raiva. O pai nunca lhe tinha oferecido nada semelhante.
- O que terá feito esta bela senhora para merecer um presente tão importante? - sibilou.
Peter conseguiu controlar-se.
- Agora, Gianni, estás realmente a exagerar - repreendeu-o com gentileza.
Mas o rapaz, sempre dirigindo-se a Maria, prosseguiu:
- Não me diga que foi para a cama com ele, porque eu não ia acreditar.
Ela levantou-se de repente e atirou o conteúdo do copo à cara de Gianni. Depois dirigiu-se à escadaria que dava acesso ao jardim.
Peter levantou o intercomunicador que estava ligado à portaria, onde estavam os homens da segurança.
- A senhora vai sair. Alguém vá com ela - ordenou. Quando regressou ao terraço, o filho estava a chorar.
- Sinto muito, pai - balbuciou -, estraguei-te o serão. Estás a ver como tinha sido melhor se eu não tivesse vindo ter contigo?
O pai deixou-se cair, com um ar cansado, numa pequena poltrona.
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- Porque é que tu és tão estúpido? A Maria não te fez nada. Tu nem a conheces. Como não me conheces a mim. Pensas que sabes tudo, e não sabes nada - concluiu amargamente.
- Já te disse que sinto muito, o que mais hei de fazer? Devo pe-dir-lhe desculpa? Eu peço, se é isso que tu queres.
- A Maria um dia vai ser minha mulher. Por isso, aprende desde já a respeitá-la - respondeu Peter.
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Mistral apercebeu-se de que Chantal estava realmente mal quando lhe pediu para abandonar a festa de fim de ano, em St. Moritz, antes da meia-noite. Estava pálida e tinha o
rosto marcado pelo sofrimento.
- Leva-me embora - pediu-lhe -, estou a sentir-me mal.
Pela primeira vez, ao fim de vários meses, dirigia-se a ele quase com simpatia porque precisava de ajuda. Mistral foi com ela até ao apartamento. Chantal estendeu-se na cama.
- Vou chamar um médico - disse Mistral, ao olhar para ela.
- Não. Só preciso de descansar.
- Como é que tens assim tanto a certeza? Chantal fez um gesto de impaciência.
- Eu sinto-me mal e a única coisa que tu sabes fazer é bombar-dear-me com as tuas perguntas estúpidas - protestou.
Tinha recuperado rapidamente o habitual tom duro e hostil. Estavam casados há dois anos e a relação estava a deteriorar-se sem esperança de recuperação. Mistral encarava quase
com uma sensação de alívio o facto de a mulher o acompanhar apenas raramente aos circuitos de todo o mundo.
Às vezes pensava que, se tivessem tido um filho, talvez Chantal passasse a dar menos importância aos encontros com os amigos do costume em St. Moritz, em Acapulco, na Áustria,
nos passeios de barco ou na ilha de Cavallo. Talvez o seu carácter tivesse amaciado.
Chantal mudou mais uma vez de expressão e manifestou novamente a sua necessidade de ajuda.
- Acho que tens razão - disse. - É preciso um médico. Aliás,
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um ginecologista. Estou com umas perdas de sangue que estão a aumentar. Receio...
- O quê? - perguntou ele, alarmado.
- Uma hemorragia - confessou Chantal.
- É a primeira vez que te acontece? - quis saber Mistral.
- O ginecologista tinha considerado isto como uma eventualidade possível.
- Porquê? Quando é que ele te falou nisso? - indagou, preocupado.
- Há uns dias. Quando eu decidi interromper a primeira e, espero, última gravidez - respondeu ela, como se se tratasse de uma banalidade.
- Estavas grávida? - Mistral ficou desnorteado.
- Estava. Agora, felizmente, já não estou.
- Tu estavas à espera de um filho meu e não me disseste nada? -Tentava controlar-se. - Eliminaste-o. Mataste-o. Foi isso que fizeste? Era meu filho e tu livraste-te dele sem
me dizeres uma palavra. -Mistral tinha o olhar enevoado de dor e de fúria.
- O teu filho - replicou ela, agressiva -, era sobretudo meu. E eu não o queria. Tu não tens nada a ver com isto.
Ele levantou a mão para a agredir, mas conseguiu conter-se. Pegou no telefone que estava em cima da mesa de cabeceira e entregou-lho.
- Chama um médico - ordenou. - Quanto a mim, espero nunca mais te ver.
A mulher observou-o enquanto ele saía do quarto e batia estrondosamente com a porta: sabia que não ia voltar a vê-lo.
Chantal passou alguns dias numa clínica, acompanhada por Su-zanne Bonnard, a loira, evanescente diva do cinema francês que Mistral encontrava regularmente em casa quando passava
alguns dias com a mulher em Paris. Parecia ser ela a dona de tudo. O tipo de relação que se tinha instaurado entre as duas mulheres não lhe agradava. Quando protestava com
Chantal por causa da presença fastidiosa da amiga, ela dizia-lhe que ele era um pequeno-burguês que não sabia adaptar-se ao mundo dourado que ela lhe tinha dado a conhecer.
Mistral partiu de madrugada. Sentia-se finalmente livre e feliz. Apesar de se ter dado conta há muito tempo de que com Chantal
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não poderia nunca construir nem sequer o simulacro de uma família, deu por si a pensar naquela criança que não chegara a nascer, ao futuro que teria se a mulher não o tivesse
apagado do mundo.
Foi para a África do Sul, onde começou os treinos para a primeira corrida do campeonato, agendada para o mês de março. Im-pôs-se um ritmo de trabalho rigorosíssimo: oficina,
pista, ginásio.
Johnny Gray foi ter com ele a Capetown em meados de fevereiro.
- Vejo-te em grande forma - cumprimentou-o o diretor da equipa.
- Quero vencer o campeonato - disse Mistral.
Tinha corrido com a O'Donnell durante dois anos consecutivos, obtendo um terceiro e um segundo lugar nas classificações mundiais. O pódio confirmara-lhe o afetuoso entusiasmo
dos aficionados. A casa e os sponsors estavam plenamente satisfeitos. Aqueles resultados excelentes, no entanto, tinham-lhe deixado um amargo de boca. Chegar em terceiro ou
em segundo não tinha qualquer significado para ele. Precisava de ser o primeiro. Tinha penado, tinha-se sacrificado, arriscado a vida e, agora, queria absolutamente passar
a número um. Recordava as palavras de Enzo Ferrari, em Maranello: "A O'Donnell não lhe vai dar as alegrias que a Ferrari podia oferecer-lhe".
Mistral olhou para o diretor da equipa, com uma atitude de desafio e disse-lhe:
- Tens de me dar um carro que ande muito depressa.
- Faço aquilo que posso. Sei que tenho um piloto de categoria superior. Infelizmente, o carro ainda não possui as características que lhe permitam dominar a cena.
- Então não vou renovar o contrato - anunciou ele abertamente. Estava à espera de um protesto. Mas John sorriu-lhe e deu-lhe
uma palmada no ombro.
- Tens razão, não podes ser o eterno segundo. Por isso, vou falar contigo como amigo. Mas já ficas a saber que aquilo que te vou dizer hei de negá-lo diante de toda a gente.
A O'Donnell não te pode dar um carro competitivo. Estamos com a corda na garganta. Uma péssima administração levou a casa à beira da falência. Vamos fazer esta época com as
contribuições dos sponsors, mas não pudemos investir um cêntimo na investigação.
Já no ano anterior, no Grande Prémio de Montecarlo, alguns
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carros tinham montado turbocompressores que davam uma potência excecional aos motores.
- Porque não o fazemos também? - tinha perguntado Mistral aos engenheiros.
A única modificação efetuada pela marca tinha sido a de montar um falso reservatório de vinte e cinco litros de água, para igualizar o peso regulamentar, disfarçando-o num
sistema de arrefecimento. A água, depois das verificações, era despejada, tornando o carro mais leve e, portanto, mais competitivo.
- Já que estamos a falar como amigos, na tua opinião, John, o que é que ia acontecer se eu decidisse não continuar a correr convosco?
- Tinhas de pagar uma indemnização. Mistral acusou o golpe.
- Iam levar-me a pele - constatou.
- Mais ou menos - confirmou o inglês.
- Já que és meu amigo, podias ter-me avisado no outono. Podia não ter renovado o contrato.
- Não sabia quão grave era a situação.
- Percebo. No fundo, trata-se apenas de dinheiro. E esse não é o objetivo da minha vida. Hei de arranjá-lo para pagar a rescisão do contrato e depois vou ficar sem um tostão.
Mas eu tenho de vencer. O resto não me interessa.
Naquele dia Mistral ligou para Florette Roussel, em Paris.
- Temos que nos encontrar. Este ano não vou correr, mas preciso de uma publicidade extraordinária, porque decidi pôr-me à venda.
Para Florette, aquelas palavras foram como uma proposta de casamento.
- Faz de conta que já estou a trabalhar nisso. Mas tens que me contar tudo. Onde nos encontramos? - perguntou, despachada como sempre.
- Na minha casa, em Paris. Chego daqui a dois dias - anunciou. O ano tinha começado mal e estava a prosseguir da pior maneira.
O apartamento da avenue Niel tinha sido completamente esvaziado das preciosas peças com as quais Mistral tinha gasto milhões de
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francos. Chantal tinha-se preocupado, no entanto, em deixar-lhe um colchão em cima do parquet do quarto. E todos os seus troféus. Vendeu o apartamento de Paris, uma casa na
costa basca e um barco ancorado em Cannes. Florette ajudou-o a obter o máximo com essas vendas e, entretanto, continuava o seu trabalho propagandístico. Em poucos meses, Mistral
tornara-se o piloto desempregado mais apetecível do mercado. Tinha agarrado alguns dos sponsors mais importantes dispostos a investir alguns biliões. Os dirigentes de casas
famosas como a Brabham, a Williams, a McLaren, a Arrows, bom-bardeavam-no com telefonemas, pedidos de encontros, promessas aliciantes. No entanto, Mistral não se decidia a
assinar um contrato.
- De que é que estás à espera? - perguntou-lhe um dia Florette.
- O Enzo Ferrari ainda não deu sinais de vida - replicou.
- Então é isso que tu queres! Se é Maranello que te atrai, eu marco-te uma reunião - garantiu-lhe.
- Não. Ele é que deve procurar-me - teimou.
- Já o fez, uma vez, e tu rejeitaste-o.
- Nessa altura estava moralmente empenhado, e expliquei-lhe isso. Agora estou livre. E ele sabe.
- Queres a minha opinião? - perguntou Florette. - Em Maranello não ias durar um mês. Tu és uma prima-dona e o velho Ferrari é um galo indómito - sentenciou.
- Isso quer dizer que, na tua opinião, eu não devo continuar a pensar na Ferrari?
- O piloto és tu, não eu - defendeu-se.
Mistral sabia que Florette tinha razão e, no entanto, continuava a hesitar.
Um dia, a amiga anunciou-lhe:
- Há um publicitário italiano que quer falar contigo.
- Quem é? - perguntou.
- Sei pouco sobre ele. Chama-se Giordano Sacerdote. Trata da publicidade da Bluesky. Parece-me um tipo decente. Combinei um jantar no Tour dArgent, esta noite. Vai com a mulher,
que se chama Sarah - explicou ela.
- Esta confusão toda por causa de uma pessoa de quem sabes tão pouco? - comentou, espantado.
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- Sei o suficiente para te dizer que tem em mente reerguer a O'Donnell e, por trás dele, tem um nome que é uma garantia: Peter Strauss - disparou Florette.
Mistral já tinha ouvido aquele nome. Recordava onde e quando: em Maranello, uma manhã de verão, quando Enzo Ferrari o tinha convocado. Recordava um homem enorme, acompanhado
por uma jovem mulher muito bonita e elegante. Formavam um par que não passa despercebido.
- É assim tão rico, esse Strauss? - perguntou.
- É tão poderoso e tem tanto dinheiro que pode comprar tudo o que lhe apetecer - garantiu Florette.
- Então vamos lá conhecer o lacaio - decidiu Mistral. Quando se encontraram no Tour d'Argent, o piloto apercebeu-se
imediatamente de que Giordano Sacerdote não era o lacaio de ninguém. Tinha todo o ar de ser uma pessoa competente, que sabe aquilo que quer. E lembrou-se de o ter conhecido
quando ele era ainda um mecânico e se tinha dirigido ao seu escritório, em Milão, para saber notícias de Maria. Aquele ano, que tinha começado tão mal, estava a terminar da
melhor forma possível.
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Maria, depois de tantas esperanças e de tantos sonhos, recomeçava do zero. O seu balãozinho colorido tinha voado para longe. Bastara uma rajada de vento para voltar a pôr
tudo em causa. Ao volante do Ferrari, devorou quilómetros de autoestrada sem uma meta precisa. A única coisa realmente importante era pôr a maior distância possível entre
ela e Peter, que não levantara um dedo para a proteger da perfídia do filho. Não tinha nada contra aquele rapaz mimado, arrogante e, muito provavelmente, infeliz. Estava furiosa
com o grande Peter Strauss, que tinha permitido a Gianni tratá-la daquela maneira.
Tinham passado vários anos desde que deixara a sua terra, mas continuava a não ter raízes, nem pontos de referência. Bastara aquela invasão de Gianni para a fazer entender
que estava desesperadamente só.
Através de uma placa da autoestrada percebeu que estava a dirigir-se a Rimini. O instinto orientava-a para o caminho de casa. A saída para Cesenatico não ficava longe. Abrandou
e parou numa área de serviço. Desligou o motor, pousou a cabeça no volante e começou a chorar. Parou quando a porta se abriu e viu uma sombra enorme inclinar-se sobre ela.
- Anda. Vou levar-te para casa - disse uma voz conhecida.
- Vai-te embora, Peter. Eu não tenho casa - respondeu, a soluçar.
- Sou eu a tua casa - retorquiu ele, enquanto a erguia em peso do assento e a levava para o seu carro.
- Deixa-me - protestou entre lágrimas. Peter apertou-a contra si e beijou-a.
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- És a pessoa mais importante da minha vida - sussurrou-lhe junto aos lábios. - Não te posso perder.
Agora Maria já não chorava. O homem que amava tinha ido a correr buscá-la e ela não queria nada melhor do que refugiar-se na paz do seu abraço.
O verão chegava ao fim. Sobre o lago, de madrugada e ao entardecer, flutuavam as primeiras névoas e o ar refrescava. Eram esperados dois convidados na villa e a governanta
tinha preparado a mesa, na sala de jantar setecentista, de acordo com o tema outonal das dálias que, naquele período, floriam nos canteiros em volta da villa.
- Uma refeição, antes de mais, deve ser uma alegria para os olhos - dizia Peter. Por isso, tudo era preparado com o máximo cuidado. Naquele domingo de setembro, a toalha de
organza branca estava ornamentada com grandes dálias bordadas em fio de seda brilhante. Os pratos de porcelana, pintados à mão, apresentavam um desenho idêntico. Pequenos
bouquets de dálias, em jarras de cristal, marcavam o lugar de cada comensal. Maria e Peter estavam fora, no terraço, a gozar o sol do meio-dia, estendidos em cadeirões de
verga. O rádio portátil transmitia músicas da Romagna, interpretadas por uma orquestra tradicional.
Peter tinha feito de tudo para educar o gosto musical de Maria, mas os concertos a que assistira para lhe fazer a vontade tinham-na feito sentir saudades, sempre, da orquestra
Casadei, que para ela era muito mais empolgante do que as orquestras dirigidas por Riccardo Muti, Zubin Mehta, Cario Maria Giulini e Adriano Maria Barbieri. Grandes maestros
que, porém, não sabiam falar à sensibilidade camponesa de Maria. Então ela explicava a Peter que nas valsas e nas mazurcas e em toda aquela "musiquinha" que a emocionava estavam
os campos cheios de sol, as alegres gargalhadas das mulheres, as imprecações pitorescas, o tilintar das campainhas das bicicletas, as noites de verão com os pirilampos, as
vozes da sua família, as saias esvoaçantes das raparigas de bicicleta.
6 Orquestra italiana de baile muito popular que se tornou célebre por ter difundido a música da Romagna a nível nacional e internacional. (N. da T.)
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Peter sorria, abraçava-a e dizia-lhe:
- Nunca mudes, Maria. És a mulher mais sincera que alguma vez conheci.
Naquele domingo de fim de verão, enquanto esperavam pelos convidados, Maria fechou o livro que estava a ler e concentrou-se na música que ouvia. Voltou-lhe à memória um domingo
de há muitos anos quando, por baixo da sombra densa da passiflora, nas traseiras da antiga casa de lavoura, enfiava rolos nos cabelos da avó Gianna. O rádio ligado na cozinha,
onde a sua família preparava a comida para os clientes, difundia aquela música no terreiro. Ainda ouvia as vozes da mãe e de Antares, o irmão mais velho. Voltou a ouvir, muito
ao longe, um motor de automóvel. Reviu o pequeno e presunçoso bólide escarlate de Mistral a parar junto da casa.
Recordou o rosto moreno do rapaz e a sua voz quente que lhe dizia: "Gosto muito de ti".
Nunca tinha falado a Peter sobre a sua história de amor. Algumas vezes estivera prestes a fazê-lo, mas acabara sempre por se calar. Seria ainda aquela recordação assim tão
importante para ela, a ponto de a querer conservar intacta no seu coração? Tinha de se libertar daquilo, mais cedo ou mais tarde.
Olhou para Peter, que tomava umas notas rápidas. E se lhe falasse naquele momento? Ouviu o zumbido de um motor à distância. Uma carro vinha a subir em direção à villa.
- Peter - chamou-o.
- Sim? - respondeu ele, mergulhado no seu trabalho.
- Está a chegar alguém.
- São os meus amigos - respondeu Peter, com um sorriso, ao mesmo tempo que pousava os papéis numa mesinha. Foi até junto dela, inclinou-se e beijou-a.
- Eu conheço-os? - perguntou Maria.
- Conhece-lo a ele. É o Giordano Sacerdote. Vem também a Sarah, a mulher dele - respondeu.
Maria conhecia-o porque o tinha encontrado, por duas vezes, na altura em que posara para a campanha publicitária do perfume Bluesky.
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Depois de terem recebido os convidados e de terem tomado um aperitivo na varanda, foram para a sala de jantar e sentaram-se à mesa.
Sarah e Maria simpatizaram imediatamente uma com a outra, enquanto os homens falavam de negócios.
- É a altura certa para um grande relançamento publicitário da Bluesky em todos os países do mundo - começou Giordano.
- Fiz algumas contas e resultou numa cifra louca - respondeu Peter.
- Eu sou capaz de ter uma ideia - disse o publicitário, a sorrir. - Surgiu-me quando me apercebi de que já não aguento estar sentado atrás de uma secretária.
- Continua, Giordano - encorajou-o o empresário.
- Pensei num desporto que desse a volta ao mundo, e vi o nome da Bluesky em todos os jornais e na televisão, não no espaço pago, mas como consequência de um facto clamoroso.
- Onde queres chegar? - Peter estava decididamente curioso.
- A uma equipa de Fórmula Um - disparou Giordano. - Realizei uma sondagem de mercado. A forma de promoção que tem maior retorno com o menor custo é a Fórmula Um.
Maria, naquele momento, passou a estar interessadíssima no assunto. Notou o longo silêncio de Peter, que estava a refletir sobre a proposta de Giordano.
- Já patrocinámos alguns pilotos, nos últimos anos. E não tivemos grandes resultados - observou Peter.
- Porque a nossa marca era uma risquinha no capacete. Se o nome não estiver no carro, ninguém o refere na televisão nem nos jornais. Mas se o carro que corre se chamar Bluesky,
a conversa é outra.
Parecia muito empolgado, ainda que as suas palavras exprimissem apenas uma parte do entusiasmo que lhe brilhava nos olhos.
- Em que ponto estás? - perguntou Peter, que começava a diver-tir-se.
- Avancei bastante. A equipa O'Donnell, no fim da época, vai abrir falência. Já li a legislação. Para dar o nome Bluesky à equipa, bastará recuperá-la em oitenta por cento.
São precisos oito mil milhões. Dois mil milhões dá-nos já a Zeta Utensili, se contratarmos um piloto do agrado deles. As oficinas estão em Inglaterra, a meia hora
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de Londres. É uma empresa com cento e vinte trabalhadores, e com uma faturação anual de cerca de trinta mil milhões, se for bem gerida. Nas primeiras corridas, por lei, só
podemos entrar com um carro. Depois podemos introduzir um segundo automóvel. O engenheiro-chefe é um italiano, chama-se Andrea Soria. É um tipo muito bom. O atual diretor
chama-se John Gray. Gostaria de assumir o lugar dele. Já te disse que estou farto de ficar sentado atrás de uma secretária -declarou Giordano.
Peter soltou uma das suas raras e alegres gargalhadas.
- Então vens-me pedir para desembolsar oito mil milhões para poderes brincar com uns carrinhos?
- Mais ou menos. O que te parece?
- É uma ideia extraordinária. Ainda não me disseste quem é esse piloto pelo qual a Zeta Utensili está disposta a desembolsar dois mil milhões - quis saber Peter.
- Lá por isso, há ainda mais dois sponsors muito fortes e dois menores. Antes de começar, já contamos com um financiamento de quatro mil milhões - insistiu Giordano.
- Perguntei-te quem é o piloto - insistiu Peter.
- É o melhor, um verdadeiro fora de série. Chama-se Mistral Vernati.
Naquele momento, Maria estava a levar aos lábios um copo de cristal. Escorregou-lhe dos dedos e estilhaçou-se no chão.
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No auge da maturidade, Peter Strauss sentia-se finalmente satisfeito e feliz. Tinha ultrapassado as fobias, o medo, o terror das doenças: Maria tinha realizado esse milagre.
Olhava para o futuro com um ânimo sereno e com o entusiasmo de um jovem de 20 anos.
- Então, parece que sempre vamos ter uma equipa de Fórmula Um - disse, enquanto se deitava ao lado de Maria.
- Está decidido? - perguntou ela.
- Eu diria que sim - confirmou. - É um novo desafio. Desde que estás comigo, parece-me que a vida tinha reservado para nós surpresas muito agradáveis.
Peter tinha reduzido o mais possível os seus compromissos de trabalho e passava grande parte do tempo com Maria. Quando viajava, queria-a sempre com ele.
- No próximo mês vamos a Inglaterra ver as oficinas O'Donnell. E vamos conhecer finalmente o Mistral Vernati, esse mítico piloto de quem o Giordano diz maravilhas.
Maria não respondeu imediatamente.
- Eu já o conheço - disse por fim.
- Nunca me tinhas falado nele - retorquiu ele, admirado.
- Nunca te falei de um rapaz que tinha a paixão dos carros de corrida?
Peter olhou para o relógio.
- Se não me contas tudo, dentro de dez segundos posso ficar ciumento - brincou.
- É meu conterrâneo. Andávamos juntos em miúdos. Depois ele foi-se embora e perdemo-nos de vista.
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- Então vais gostar de voltar a vê-lo.
- Nem pensar.
- Devo fazer mais juízos? - insinuou Peter.
- Não. Talvez eu estivesse apaixonada por ele, como se pode estar aos dezoito anos!
- E ele?
- Ele estava apaixonado pelos automóveis. Fim da história -concluiu.
- Sempre soube que tinha havido alguém na tua vida, antes de mim. Não imaginava que fosse o Mistral Vernati, apesar de ter a certeza de que se tratava de um piloto - afirmou.
- Porque é que tinhas percebido isso?
- Pelo entusiasmo com que sempre acompanhaste as reportagens sobre automobilismo, pela tua paixão por carros de corrida -explicou.
- Porque é que nunca me perguntaste nada?
- A confidência é uma conquista, não uma imposição - observou, afagando-lhe o rosto.
- Não me perguntas se ainda o amo?
- Ainda o amas? - repetiu, para lhe fazer a vontade.
- Acho que não. Mas não é assim muito fácil explicar. O Mistral é uma página intensa do meu passado. Embora saiba, com toda a certeza, que és tu o homem que eu amo.
- Acho que devias voltar a vê-lo - disse Peter.
- Porquê?
- Para descobrires quanto dele ficou ainda no teu coração.
- Não conhecia esse lado sádico do teu carácter, Peter. E a coisa não me agrada de todo - replicou, fingindo-se contrariada.
- Mas agrada-te tudo o resto. Verdade?
- És um homem muito atraente, aliás, acho-te irresistível. Mas peço-te que não me obrigues a estar com o Mistral - retorquiu, com um tom meio sério, meio a brincar.
- Isso significa que eu vou ter de ir sozinho a Inglaterra - lamentou-se.
- Fico aqui à espera do teu regresso. E ai de ti se lhe falas da Maria Guidi. Não quero que saiba que penso nele às vezes. Promete.
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- Juro - declarou solenemente, levando uma mão ao peito. - Mas não vais poder continuar a desempenhar o papel da mulher mistério. Porque em breve vais ser a minha mulher.
Antonino Catania apresentou-se no parlatório da prisão para uma conversa com o seu advogado. Tinha o tórax apertado num colete rígido que lhe sustinha a coluna vertebral lesionada.
Peter Strauss tinha-o deixado em mau estado, mas não arranhara nem ao de leve a sua extraordinária vontade de viver. Tinha sido condenado a seis anos, mas esperava conseguir
uma redução da pena por bom comportamento. Tinha até procurado alguém, na roda das suas cumplicidades, que pudesse fazer antecipar ainda mais a sua saída. Por isso se lembrou
de Virgílio Finolli.
- Ele pode ajudar-me - tinha dito ao advogado. - Vira o mundo do avesso, mas tens de o encontrar. Depois eu trato de te sugerir uma tática que pode funcionar com ele.
Agora o advogado regressava com a resposta.
- Encontraste-o?
- Sim e não.
- Não vamos brincar às adivinhas, pois não? - respondeu, zangado.
- Tenho que te dar uma má notícia.
- O Finolli diz que não tem nada a ver com o assunto. É isso? -rebateu, agressivo, com a sua voz rouca.
- É muito mais simples e mais complicado. O Finolli não te vai ajudar, nem agora, nem nunca.
- Queres dizer-me o que aconteceu? - perguntou, furibundo.
- O Virgílio Finolli está morto. Atirou-se pela janela no verão passado.
- Suicídio - disse baixinho Antonino, que não acreditava obviamente na versão oficial dos factos.
- Estava com uma depressão muito forte. Encontraram-lhe em casa uma farmácia de calmantes, ansiolíticos e antidepressivos - contou o advogado. E acrescentou: - Quem era exatamente
este Finolli?
- Um homem poderoso, ou pelo menos assim parecia - concluiu Antonino, com um tom azedo. Tinha-se deixado embalar pela
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esperança de sair da prisão dentro de poucos meses. O seu projeto tinha desmoronado em cima dele de uma forma catastrófica.
- Não me podes dizer quem era? - insistiu o advogado.
- Um homem importante - repetiu Antonino, após um longo silêncio.
- Mas não suficientemente protegido para impedir alguém de o fazer voar pela janela - comentou o advogado. - Soube que era um professor reformado. Levava uma vida solitária
e tranquila. No apartamento dele reinava uma ordem meticulosa, quase obsessiva -explicou, e prosseguiu: - Não tinha amigos, nem parentes. Só uma mulher, da qual estava separado.
Tens mesmo a certeza de que te podia ajudar?
Desde que fora agredido pelo gigante que o tinha denunciado à polícia por tráfico de estupefacientes, já não tinha a certeza de nada.
- Até ontem, teria jurado que sim - disse, dirigindo um pálido sorriso ao seu advogado. - Havemos de encontrar outra solução -acrescentou, tentando reagir à onda sombria que
começava a envolvê-lo.
O ministro encontrou o deputado de Palermo à saída do Palácio de Montecitorio e perguntou-lhe:
- Vais ficar em Roma?
- Não. Só fico nesta cidade o mínimo indispensável. Não a suporto.
- Há muito que não damos dois dedos de conversa - observou o ministro.
- A política rouba espaço à amizade.
- O mal é esse.
- Antigamente, ainda arranjávamos algum tempo para nós. Agora só conseguimos cumprimentar-nos - concluiu o siciliano, perguntando a si mesmo quais seriam exatamente as intenções
do homem que tinha à sua frente.
- Profissão tremenda, a nossa - queixou-se o ministro.
- Basta não a exercer - concluiu o deputado.
- Estás cada vez mais áspero - comentou, irónico.
- Que conversa é essa? - reagiu. - Desde que te entrincheiraste
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naquele buraco de ministério, sem pasta, ainda por cima, isolaste-te do resto do mundo.
- Continuas o mesmo melindroso de sempre. Gostava de te convidar para jantar num sítio sossegado, onde fosse possível dar dois dedos de conversa.
- Se calhar combinamos para a próxima vez, quando eu voltar a Roma - propôs, tentando esquivar-se.
- Deixa-me ao menos ir contigo até ao aeroporto - insistiu. Meteram-se no mesmo carro e o deputado foi obrigado a dizer:
- Estou a ouvir.
- Vou dar-te um nome: Peter Strauss - disse o ministro.
- Se me perguntas, já sabes que o conheço. O que é que queres saber?
Desde o seu encontro com Peter, o deputado vivia num estado de subtil agitação. Dera-lhe a entender coisas que lhe tinham tirado o sono.
- O que é que aquele suíço queria de ti? - prosseguiu o ministro.
- Estás muito bem informado - respondeu o siciliano, com ironia.
- Sei que se encontraram em Palermo, e que não foi por acaso.
- Ando a ser vigiado? - comentou, com um tom ácido.
- Tu não. Ele. Está debaixo de olho.
- E obviamente tu sabes as razões disso.
- Obviamente. Dizem-me que é um tipo imprevisível, que escorrega por aqui e por ali como uma enguia. Está protegido por um comando de especialistas. Parece até impossível
pôr-lhe o telefone sob controlo.
- Interessa-te realmente muito, esse personagem.
- Estás enganado. Não me interessa de todo. Se te peço algum detalhe sobre a vida dele é por causa de uma pessoa que tu e eu temos em elevada consideração.
O siciliano identificou imediatamente o personagem importante a quem o outro se referia.
- Não sei nada - retorquiu; mas, depois de ter pensado no personagem em questão, mostrou-se logo mais disponível. - Se houver novidades, terei o cuidado de tas comunicar imediatamente.
- Terás a minha gratidão e a dele.
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O ministro acompanhou-o ao aeroporto e depois dirigiu-se
a um edifício no centro de Roma. O chefe recebeu-o imediatamente.
- Estive com o meu amigo e conversámos - começou o ministro. - Posso garantir-lhe que não sabe mais nada do que aquilo que me disse. Encontrou-se efetivamente com Peter Strauss,
mas abordaram assuntos diferentes daqueles que procura. Conhecem-se há anos.
O chefe sorriu atrás das espessas lentes de míope.
- Agora estou mais tranquilo - disse, com um tom excessivamente cortês. - A questão que me interessa tem apenas a ver com Peter Strauss.
- Tentei fazer-lhe um favor porque lho devo. E estou pronto para retomar os contactos. Mas não quero saber de que assunto se trata.
- Percebo - disse o velho, a sorrir, e acompanhou-o à saída através de um longo corredor.
O chefe estava a estudar a forma de abrir uma brecha nas defesas do poderoso empresário suíço.
Virgilio Finolli, o homem dos Serviços Secretos, antes de ser eliminado, tinha falado a Peter Strauss de Antonino Catania e da prostituta morta em Bolonha, alguns anos antes.
Agora Catania estava na prisão, e o chefe ia arranjar maneira de ele lá ficar para o resto dos seus dias. Mas o material comprometedor que estava na posse de Virgilio Finolli
tinha passado para as mãos do suíço. Que uso daria ele àquilo? Strauss estava bem protegido, mas ele sabia que não existem fortalezas inexpugnáveis. Sorriu a pensar no dia
em que o gigante loiro iria rolar aos seus pés.
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O Mercedes parou em frente ao portão de aço e o motorista deu-se a conhecer através do sistema de monitorização eletrónica.
- E vão dois - disse Mistral, enquanto a limusina superava a segunda barreira. - Não sei se estamos a entrar no Pentágono, como suspeito, ou em casa do Strauss, como tu dizes.
Giordano Sacerdote respondeu-lhe com um sorriso.
- E os controlos ainda não acabaram. Antes de chegarmos ao portão de casa, o serviço de segurança vai saber se algum de nós padece de cálculos biliares ou tem problemas com
a cervical - brincou.
Andrea Soria e Matteo Spada estavam igualmente perplexos. Este último tinha deixado um ano antes o hospital de Forli e o consultório de Modena para se dedicar, a tempo inteiro,
à nova equipa da Bluesky. Aos 50 anos, tinha finalmente conseguido conjugar as suas duas grandes paixões: a medicina e o automobilismo.
Peter estava à espera deles ao fundo da escadaria de acesso. Mistral foi o primeiro a apertar-lhe a mão.
- Não é todos os dias que se recebe em casa um campeão do mundo da Fórmula Um - disse Strauss.
- Sem a Bluesky, eu não estaria aqui - respondeu o piloto.
- É o homem que conta, antes do mais - admitiu cavalheirescamente o empresário.
Foi um serão realmente insólito para o campeão. A atmosfera mágica da villa fascinava-o. Era o segundo encontro oficial que tinha com Peter Strauss: o primeiro tinha ocorrido
em novembro, em Ramsgate, na altura da apresentação à imprensa do novo automóvel
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Bluesky, uma jóia projetada e realizada em tempo recorde, empregando as tecnologias mais avançadas e sem limitações de despesas. Estavam presentes jornalistas de todo o mundo
para admirar aquele carro azul.
Estava também Jenny Kinkeid.
- O tempo acrescenta esplendor à tua beleza - disse Mistral, ao cumprimentá-la.
Jenny olhou para ele, surpreendida e divertida.
- Os anos e as relações importantes ensinaram-te a arte da lisonja - respondeu ela, com ironia.
Mistral estava radiante. Assinara um contrato fabuloso com Peter Strauss e tinha, finalmente, um carro excecional.
- O que fazes esta noite? - perguntou-lhe, recordando os dias que tinham passado juntos em Biarritz.
- Vou escrever um artigo sobre o novo Bluesky e o seu piloto.
- E depois?
- Estava a pensar numa noite tranquila e num bom sono reparador. Mistral estava a viver um dia excecional e não ia render-se sem
combater.
- Diz-me a que horas e onde posso ir ter contigo.
- Quando acabar o trabalho, vou para a cama com o meu marido. Casei-me, Mistral, e estou muito feliz.
Ele encaixou o golpe sem dramatizar.
- Também me casei.
- Eu sei. E separaste-te. Já tens outra mulher?
- Estou livre como um passarinho e vou ficar assim muito tempo, suponho.
Ele abraçou-a e ela corou. Despediram-se como bons amigos.
Agora, ao voltar a ver Peter Strauss, Mistral relembrou o dia em que se tinha cruzado com ele diante das oficinas de Maranello. Recordou a mulher elegante de amarelo, misteriosa
e lindíssima, que caminhava ao seu lado. O empresário parecia sereno e tranquilo. A um ano de distância, depois do encontro em Inglaterra, o grande Peter parecia ter rejuvenescido.
Seria por mérito daquela mulher?
Tentou indagar, mais tarde, durante um passeio com Giordano pelo jardim.
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- O Strauss vive sozinho nesta espécie de castelo encantado? -perguntou ao amigo.
Giordano parou e fitou-o em silêncio durante alguns segundos.
- Há uma única coisa que tu deves saber sobre o Strauss - adver-tiu-o -, é que ele é terrivelmente cioso da sua vida privada. Tenho a certeza de que não ia aprovar se eu te
dissesse o pouco que sei.
Mistral não tinha intenções de se render.
- Lembras-te de quando nos encontrámos em Paris com a Florette Roussel, no Tour d'Argent? - perguntou.
- Onde queres chegar? - perguntou, desconfiado.
- Nós tínhamo-nos conhecido muitos anos antes, no teu escritório em Milão - disse Mistral.
- Eu sei - assentiu Giordano.
- Eu tinha ido ter contigo para saber notícias de uma rapariga, a Maria Guidi.
- Também me lembro disso, mas só porque tu tens uma cara que não se esquece. Nessa altura eras mecânico - esclareceu, para lhe confirmar que tinha bem presente aquele episódio
distante.
- Tu disseste-me que a Maria era um sonho e que eu faria bem em esquecê-la. Fui-me embora desiludido e com a impressão de que tu sabias alguma coisa que não me querias dizer.
- Porque é que só me falas disso agora?
- Havia realmente alguma coisa que não me querias dizer?
- Não. Disse-te tudo o que sabia, ou seja, nada. Essa rapariga era assim tão importante para ti?
- Já nem sei. Acho que foi mesmo um sonho. Talvez seja a única rapariga por quem estive apaixonado. Um amor limpo, inocente. O amor dos meus 18 anos.
- Percebo o que queres dizer. Surpreende-me agradavelmente descobrir a vertente romântica do impiedoso campeão do mundo de Fórmula Um. Mas não contes nada por aí. Iam tecer
à volta disso uma história capaz de te arruinar a reputação - disse, em ar de brincadeira.
Alguém se aproximava e Giordano mudou imediatamente de assunto, começando a falar de motores e de carros.
Estava uma noite esplêndida e Mistral deteve-se no jardim para lhe admirar a beleza à luz da lua. Ergueu os olhos para a fachada da
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villa. Aqui e além havia janelas iluminadas. No recorte de uma graciosa varanda coberta, com pequenos arcos sobre colunas esguias, descortinou uma figura de mulher a olhar
na direção dele. Estava parcialmente na sombra e ele apenas pôde imaginar que se tratasse da senhora de amarelo com quem se tinha cruzado em Maranello.
Subitamente, como se se tivesse apercebido de que tinha sido descoberta, a figura desapareceu.
Mistral foi ter com os amigos, sabendo que não podia fazer perguntas. O mistério da mulher de amarelo começava a obcecá-lo.
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Maria e Peter viajaram muito durante todo o inverno e grande parte da primavera. Maria via lugares novos, aprendia coisas novas e, sobretudo, gozava o prazer de viver ao lado
daquele homem singular e imprevisível que se tornara o companheiro da sua vida. De vez em quando, Gianni dava sinais de vida e Peter ficava nervoso. Maria e Gianni tinham
celebrado um pacto de não agressão. Ela intuíra a homossexualidade de Gianni enquanto o pai não era sequer tocado pela dúvida. O processo de divórcio de Marianna Fuks avançava
sem complicações. A mulher assumiu uma atitude conciliadora e obteve a casa de Innsbruck, assim como uma pensão sumptuosa que lhe permitiria manter o mesmo nível de vida a
que se habituara depois de ter casado com Peter.
A sentença de divórcio, portanto, estava próxima. Logo a seguir, Peter tencionava casar com Maria. Quando regressou da sua última viagem à Áustria, para assinar os documentos
do processo, encontrou apenas a governanta à espera dele.
- A menina não está - disse-lhe. - Foi ao hospital de Como fazer umas análises. - E acrescentou, para o tranquilizar: - Nada de grave. São só análises de rotina.
Peter não ficou tranquilo. A tensão arterial subiu-lhe de repente e sentiu os habituais sintomas inequívocos: dor de cabeça e zumbido nos ouvidos.
- O que foi que aconteceu? - perguntou, preocupado.
- Há dois dias que tinha violentos ataques de náuseas. Veio cá o médico e decidiu ir com ela ao hospital para fazer uma série de exames - explicou a governanta.
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Naquele momento, tocou o telefone. Era Maria.
- Como estás? - perguntou, tentando controlar a ansiedade.
- Nunca estive tão bem. Só estou um bocadinho grávida - respondeu ela, com uma voz alegre.
- Obrigado, meu Deus - murmurou ele -, é uma notícia maravilhosa.
- Estás contente?
- É fantástico!
- Só estou de dois meses. Agora vou para casa e conto-te tudo.
- Não te mexas, por motivo nenhum - decidiu ele. - Vou eu buscar-te. Pede ao ginecologista que espere por mim. Quero falar com ele.
Estava transtornado e feliz. Apetecia-lhe até abraçar a velha governanta.
Ia a sair da villa quando o chefe da segurança veio ao encontro dele.
- Preciso de falar consigo, senhor Strauss - disse, com uma voz insolitamente firme.
- Com certeza - respondeu, enquanto descia as escadas. - Quando eu voltar, vamos ter uma longa conversa - garantiu, sem se deter.
O homem não se deu por vencido.
- É uma coisa urgente, senhor - insistiu.
Peter parou e fitou-o com um olhar que não admitia réplicas.
- Neste momento há apenas uma coisa realmente urgente. Tudo o resto pode esperar.
Dirigiu-se com um passo rápido ao local onde estavam estacionados os carros.
- Se o senhor vai sair, eu vou já avisar os homens - disse, preocupado, o chefe da segurança, que não tencionava desistir assim tão facilmente.
- Não é preciso. Vou sair sozinho - disse Peter, enquanto ligava o motor do Mercedes. Achou que os rapazes estavam a exagerar com aquela filosofia da suspeição em excesso.
O homem chegou com agilidade à porta do lado direito, abriu-a e sentou-se ao lado de Peter de uma forma quase prepotente.
- Sinto muito, senhor Strauss. Não o vou deixar viajar sozinho -decidiu. - Não depois daquilo que está a acontecer - acrescentou.
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Peter estava incomodado com aquela intrusão, mas teve de se resignar.
- O que é que está a acontecer? - perguntou secamente.
- Os homens do portão principal viram dois motociclistas suspeitos às voltas na alameda dos castanheiros-da-lndia - explicou o homem.
- E depois? - insistiu o empresário.
- Avisei a polícia - disse o segurança, enquanto o carro avançava lentamente em direção ao portão principal.
- E que mais? - perguntou Peter, menos brusco.
- Não acha que chega? - replicou o homem que, durante aqueles anos, tinha visto o patrão assustar-se com muito menos.
- Se calhar interpretamos de uma forma excessiva sinais que não merecem tanta atenção - observou. - Em qualquer caso, fez bem em avisar-me. Agora pode sair - concluiu, a sorrir.
A cancela abriu-se à frente do carro.
- O meu dever é estar ao seu lado - insistiu o guarda-costas, sem se mover do assento.
- Fora! - ordenou Peter, com um tom autoritário. Vivia há muito tempo prisioneiro dos seus receios e dos seus seguranças. Agora, aos 55 anos, sentia-se finalmente livre de
medos obsessivos. E, acima de tudo, a sua mulher estava à espera de um filho. Ia ser pai, e a alegria desse acontecimento futuro não queria partilhá-la com mais ninguém. Queria
trazer Maria para casa e falar de um futuro cheio de promessas, os dois sozinhos. - Fora! - repetiu ao chefe da segurança que, imóvel, olhava para ele com um ar consternado.
Finalmente, o homem obedeceu, a praguejar mentalmente contra a teimosia daquele grande homem que tinha, por qualquer razão que não ousava sequer supor, literalmente perdido
a cabeça.
Peter arrancou com uma chiadeira de pneus, passou o portão, entrou na alameda dos castanheiros-da-lndia, percorreu-a a uma velocidade constante e abrandou apenas próximo do
cruzamento com a estrada nacional. Deixou passar alguns carros que tinham prioridade, sem reparar no pesado camião estacionado na berma da estrada. O Mercedes avançou e o
camião atirou-se sobre ele, disparado, em marcha-atrás. Peter nem viu o pesado veículo que se projetou
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sobre ele como uma bomba. Naquele momento, pensava em Maria e no filho que iam criar os dois juntos. Estava no auge da felicidade quando, de repente, a vida o abandonou.
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HOJE
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1
Novembro tinha chegado e há três dias que caía uma chuva fina e fria. Maria desceu à cave com Fiamma e Manuel. As crianças ins-talaram-se no assento traseiro do Fiat Tipo
azul e ela sentou-se ao volante. Subiram a rampa curta que dava acesso ao jardim e saíram para a rua, onde os carros passavam a grande velocidade e levantavam salpicos de
água suja.
- Quero um brioche - choramingou Manuel -, e quero o da padaria, com creme.
- Não há tempo - contrariou Maria. - Se eu parar, chegamos atrasados à escola.
- A Rachele compra-me um todas as manhãs e chegamos sempre a horas - teimou o pequeno.
- Eu meti uma maçã na tua mochila, é muito melhor do que o brioche - decidiu Maria.
- Eu detesto maçãs - protestou Manuel.
- Mas faz-te bem. A tua irmã também come uma maçã no intervalo. Por uma vez, tu também podes fazer a mesma coisa.
- A Fiamma tem de estar sempre a fazer dieta. Eu não. E quero o meu brioche. Tenho o direito. Percebeste?
Maria estava a perder a paciência perante a teimosia do filho. Estava dividida entre a vontade de lhe dar uma sapatada e a necessidade de perceber por que razão lhe tinha
declarado guerra desde que acordara, naquela manhã. Mas não havia tempo, nem para a briga, nem para uma análise da situação.
- Fiamma, és capaz de calar o teu irmão?
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A menina inclinou-se sobre Manuel e falou-lhe ao ouvido.
- Se não paras com isso, digo tudo à mãe - avisou-o.
Manuel ficou sossegado. Maria parou o carro à entrada da escola primária. Manuel saiu, cobriu a cabeça com o carapuço do blusão e entrou pelo portão a correr, sem sequer se
despedir da mãe.
- Queres dizer-me o que é que se está a passar com ele? - perguntou Maria à filha, enquanto o carro se enfiava novamente no trânsito para se dirigir à escola privada onde
Fiamma estudava.
A filha agitou-se no assento, pigarreou e começou a mexer no fecho-éclair do impermeável. Mas não respondeu.
- Estou a perguntar-te se sabes o que tem o teu irmão - repetiu Maria.
Fiamma, sentindo-se encostada à parede, respondeu num sussurro:
- Está com ciúmes.
- Ciúmes? De quem? De quê?
- Do irmãozinho que vai nascer - explicou a menina.
Maria tinha regressado a Modena há alguns dias, com as crianças e com Mistral que ia aguentando, com paciente tenacidade, a longa convalescença e a reabilitação. Ela estava
no quarto mês de gravidez e, obviamente, tinha falado sobre isso com os filhos. Fiamma tinha-a abraçado e perguntado:
- Também posso fazer de mãe dele? Manuel ficara calado.
- Então é isso que o atormenta - disse Maria. - Mas porque é que ele a ti conta tudo e a mim não diz nada?
- Na verdade, fui eu que disse isso ao Manuel. Ele confirmou-mo. Eu tinha intuído.
- Com base em quê? - perguntou a mãe, curiosa.
- Diz que não quer estranhos em casa.
- És extraordinária, minha menina, como sempre - exclamou Maria, a sorrir. - Vou tentar estar mais próxima do Manuel. Deixei-o sozinho durante demasiado tempo. Mas o que mais
é que eu podia fazer, com o vosso pai naquelas condições?
- Nem sequer comigo falaste muito, durante este período. Mas eu não tenho ciúmes, mãe. Sei que tu gostas de mim.
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Tinham chegado à escola de Fiamma. Maria parou, desligou o motor e a filha apressou-se a sair.
- Espera - disse Maria -, é verdade que, ultimamente, não te tenho dado muita atenção. Achas que era assim muito grave se hoje de manhã resolvêssemos tirar umas horas só para
nós? - perguntou à filha.
- Se calhar, não é muito grave - respondeu, pensativa -, mas já sabes que sou a mais lenta das minhas colegas a aprender.
Maria já tinha ligado o carro.
- Quero estar um bocadinho contigo, sem o telefone a tocar, o fax a transmitir mensagens, os amigos que chegam aos magotes e tudo o resto - explicou.
- Onde vamos? - quis saber Fiamma, que começava a saborear a alegria da transgressão.
- A uma confeitaria, como é evidente! - decidiu Maria. Entraram na Molinari, onde Maria foi imediatamente reconhecida.
- Duas chávenas de chocolate e um prato de bolos com creme -pediu, enquanto se dirigia a uma mesa no canto mais afastado do estabelecimento.
Maria e Fiamma tiraram os casacos. A menina estava radiante.
- Mãe, sabes que pediste as coisas de que eu mais gosto e que não devia comer?
- Nem eu. - Maria riu-se, divertida. - Uma mulher grávida deve ter muito cuidado com a dieta. Mas eu acho que uma exceção à regra só nos vai fazer bem - afirmou, com um ar
alegre.
- Somos duas pecadoras - disse Fiamma. Maria anuiu.
- É tão bom, de vez em quando, cometer um pecado! O chocolate estava quente, denso e saboroso.
- Mãe, tu queres mesmo outro filho? - perguntou Fiamma, antes de levar avidamente à boca um cannolo cheio de natas.
- Mas que raio de pergunta! Claro que quero. Desejei intensamente todos os meus filhos.
- A mim também? - insistiu a pequena.
- Desejei-te com toda a minha alma. Eras parte de mim e do teu pai que eu amei sinceramente - respondeu Maria, com doçura.
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- E depois de eu ter nascido e de teres sabido que era Down, amaste-me da mesma forma? - sussurrou.
Maria recordou a sua desesperada recusa em relação à filha com aquele problema, quando lho comunicaram, uma semana depois do parto.
- Tive medo, Fiamma. Tu eras tão frágil e preguiçosa que não conseguias sequer sugar o leite do meu seio. E não te parecias com o Peter nem comigo, a não ser por uma pequena
madeixa de cabelos ruivos como os meus. Foi por causa dessa madeixa que te chamei Fiamma. Durante os primeiros dias, ninguém me explicou que eras diferente. Eu via esses teus
olhos oblíquos, reparava na lentidão de movimentos, ficava ansiosa porque nunca choravas. Parecia que querias morrer. Então eu pensava que, se tu estavas assim tão triste,
a culpa era só minha, porque tinha chorado muito quando o Peter morreu. E à dor veio juntar-se a humilhação de ter sido expulsa da casa do teu pai, no lago de Como. Disseram-me
que iam fechar a villa e ofereceram-me dinheiro. Fui-me embora, recusando qualquer ajuda, e regressei a Cannucceto, a aldeia onde nasci - explicou Maria.
- Foi nessa altura que reconstruíste a casa dos avós? - perguntou Fiamma, que já tinha pedido várias vezes à mãe que lhe contasse a história dos Guidi.
- Tinha no banco uma quantia bastante avultada, que o seguro me tinha pago depois da explosão - continuou Maria. - Nunca tinha tocado naquele dinheiro, e por isso decidi usá-lo
para reconstruir a casa e reabrir o restaurante.
- E foi isso que fizeste, não foi?
- Reabri o restaurante dois anos depois do teu nascimento, quando nós as duas já gostávamos imenso uma da outra. Primeiro, quando o médico me explicou que tu eras diferente,
eu não conseguia entender. Estava sozinha, não tinha ninguém em quem me apoiar, estava sempre a chorar e sentia-me muito mal. Por isso te deixei no hospital, porque precisavas
de muitos cuidados que, naquele momento, eu não te podia dar. Assim que recuperei algumas forças, fui procurar a Rachele. Ela era viúva e eu pedi-lhe para vir viver comigo
e para me ajudar a criar-te. Ela aceitou, e então eu fui buscar-te ao hospital. A Rachele era fantástica contigo. Pegava em ti ao colo, dava-te
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banho e dava-te de comer. Eu nem sabia como havia de pegar em ti e tinha sempre medo de fazer as coisas mal. Nem sequer ousava tocar-te e sentia-me cada vez mais triste e
desesperada. Até que uma noite a Rachele me disse "Vou-me embora. A menina está no berço". Foi-se embora e deixou-nos sozinhas. Entrei no teu quarto e debrucei-me sobre o
teu berço. Tu olhavas para mim, imóvel, sem um sorriso e sem um choro. Não sei quanto tempo ficámos ali, a olhar uma para a outra, em silêncio. Eu pensava que, a certa altura,
tu ias sentir os estímulos da fome e talvez começasses a chorar. Nada. Por fim cedi e, enchendo-me de força, peguei em ti ao colo. Eras muito pequenina e custava-te um bocadinho
respirar. Tinhas realmente uma grande necessidade de ajuda.
- Éramos duas pobres mulheres sozinhas. Não é assim, mãe? -observou Fiamma que, entretanto, tinha esvaziado a sua chávena de chocolate.
- Tínhamos de nos ajudar uma à outra. Finalmente, acho que foste tu que me ajudaste a mim. Porque ao cuidar de ti recomecei a viver e a sorrir. Levava-te a passear numa bolsa
que segurava ao peito, porque tu precisavas do meu contacto, como eu precisava do teu. A Rachele voltou a viver connosco. Eu li tudo o que encontrei sobre a síndrome de Down.
Aquilo que esses textos diziam, já eu o tinha percebido por instinto. Para cresceres bem só precisavas de amor. E tornaste-te numa menina maravilhosa - observou, com orgulho.
- Sim, mas que cansaço! - bufou Fiamma. - Achas que mereço mais uma chávena de chocolate? - perguntou, com um ar malicioso.
- Hoje decidimos pecar. O que é que adianta estar com meias medidas? - Maria chamou o empregado e pediu mais dois chocolates. - Mais vale um grande pecado de vez em quando
do que um pequeno pecado diário.
- O meu pai também era guloso? - perguntou Fiamma.
- Era um gigante. Grande e forte como uma montanha. E gostava de doces com natas, como tu.
- E ele ia gostar de mim? - perguntou, hesitante.
- Muitíssimo. Minha pequenina, toda a gente gosta de ti. O Mistral adora-te.
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- Eu sei. Diz sempre que eu sou a rapariga preferida dele - gabou-se. Bebeu com avidez a segunda chávena de chocolate e depois disse: - Ontem, quando tu e o pai estavam fora,
telefonou-me o meu irmão. O senhor dos óculos.
- E só agora é que me dizes isso? O que é que ele queria? - perguntou Maria.
- Vem a Modena, na próxima semana. Quer ver-me. Importas-te?
Maria questionou-se durante muito tempo sobre aquele novo, súbito interesse de Gianni Strauss por aquela menina que sempre ignorara. Mas tinha a certeza de uma coisa: que
Fiamma estava extremamente interessada nele, e ela via na curiosidade da filha um sinal positivo do seu amadurecimento mental.
Gianni apresentou-se pontualmente àquele encontro, dizendo que queria ver Mistral, que era ainda, para todos os efeitos, o primeiro piloto da Bluesky.
- Acho-te bastante mais magro - disse a Mistral, que estava a sair da piscina na cave da villa de Modena.
- Que graça que tu tens! - replicou o campeão, enquanto enfiava o roupão. Mistral era realmente uma sombra de si próprio. E iam ser precisos muitos meses até recuperar a forma
extraordinária de outros tempos.
- Achas que consegues regressar às pistas na próxima primavera? - perguntou Gianni.
Dirigiram-se juntos ao rés do chão, entraram na sala de estar, que tinha a lareira acesa, e sentaram-se a olhar para o fogo, como velhos amigos.
- Acabei com as corridas, Gianni - começou Mistral. - O vento selvagem acalmou.
- E largas-me assim? - perguntou Gianni.
- Não te agrada isso? Alguém me disse que querias acabar com a equipa, depois do acidente.
- Pensei melhor. A Bluesky foi uma iniciativa do meu pai. Acabar com ela seria como que apagar a sua memória. Em qualquer caso, nunca a venderia, se tu continuasses a correr
- explicou.
- Eu parei, volto a dizer-te.
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- Não acredito. Tu não és do tipo de renunciar ao seu quinto campeonato mundial. Este ano correu-te mal, mas no próximo ano podias conseguir.
- Tenho 38 anos. Como piloto, estou velho - observou, com um ar pensativo.
- Não me convences. Uma pessoa como tu não larga o volante só porque teve um acidente - insistiu Gianni.
- Tu conheces pouco do nosso mundo. Talvez por isso, não consigas entender-me. Quando um piloto tem um acidente e não consegue explicar a si mesmo que erro cometeu, isso significa
que chegou ao fim da linha. E agora desculpa, mas vou ter que te deixar: tenho o massagista à minha espera - concluiu, e saiu da sala.
- Só um instante, Mistral! - disse Gianni. - Se resolveste desistir, por que te empenhas tanto para reencontrar a tua melhor forma? -provocou-o.
Mistral não respondeu. Gianni foi atrás dele e acrescentou:
- De qualquer modo, não te queria ver só a ti. Venho ver a Fiamma.
- Eu sei. Está à tua espera no quarto dela. Há dias que anda ansiosa por causa disto - disse Mistral, antes de se afastar para se dirigir ao ginásio.
Gianni Strauss olhou em volta. Nunca tinha estado naquela casa e não sabia como encontrar o quarto de Fiamma. Ela apareceu à frente dele, silenciosa, e estendeu-lhe a mão.
- Bom dia, senhor - sussurrou.
Gianni sorriu-lhe. Parecia-lhe que tinha crescido. Vestia um kilt escocês e um casaco de malha azul. Tinha os cabelos longos e sedosos e uma pequena franja na testa.
- Estás linda, hoje - disse, ao mesmo tempo que lhe apertava a mão.
- Quer dizer que da outra vez não estava?
- Hoje estás mais - garantiu Gianni.
- O senhor também me parece em boa forma.
- Não consegues mesmo tratar-me pelo nome?
- Ia dar-me um certo trabalho, mas posso tentar. Se quiser seguir-me, acompanho-o até ao meu quarto - anunciou, com um ar de perfeita dona de casa.
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Gianni não tinha familiaridade nenhuma com crianças, mas tinha a certeza de nunca ter visto um quarto como aquele. Era um aposento grande, com uma parede de espelho que refletia
as outras, pintadas de azul, como o céu, com pequenas nuvens brancas e rosadas e passarinhos a voar. A cama era branca, com almofadas cheias de fitas e rendas. Havia poltronas
forradas de tecidos em tons suaves, e livros e brinquedos arrumados com uma ordem meticulosa.
- Sente-se, por favor - prosseguiu -, daqui a pouco vêm servir-nos o chá.
- Porquê esta parede de espelho? - perguntou ele.
- Para me ver. Eu olho-me muito ao espelho. É assim que aprendo a conhecer-me e a controlar os meus movimentos. Pode dizer-se que cresci a ver-me ao espelho. É muito importante
para nós, com síndrome de Down, ter um grande espelho para onde olhar - explicou, com o ar de uma professora que dá uma aula.
- Eu sinto-me sempre um pouco atrapalhado quando estou contigo - confessou ele. Apercebia-se de que a simplicidade de Fiamma vencia todas as suas defesas.
Fiamma interpretou as palavras de Gianni como um cumprimento e sorriu.
- Então queria ver-me. Porquê? - disse, indo direta ao assunto.
- Da última vez, falámos do nosso pai - começou ele. - O Peter Strauss tinha uma grande, lindíssima villa sobre o lago de Como.
- Eu sei. A mãe contou-me. Ela viveu ali vários anos, quando o nosso pai era vivo.
- Isso mesmo. Essa casa esteve fechada desde que ele morreu. É uma villa muito importante. Não só pelas obras que contém, mas também porque é o espelho da sua personalidade,
do seu gosto, do seu carácter. Eu conheci-o pouco, tu não o conheceste de todo. Querias que eu te falasse dele. Pois bem, aquela casa fala dele melhor do que qualquer pessoa
poderia fazer. Queria que soubesses que é tua. Pertence-te por direito. Aqui está - disse, ao mesmo tempo que tirava do bolso um envelope bem cheio. - Está aqui o contrato
de doação da propriedade - concluiu, entregando-lhe o envelope.
Fiamma pegou nele e abriu-o. Continha quatro folhas datilogra-fadas.
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- Obrigada - disse, com um ar muito compenetrado. - É certamente um grande presente que me está a oferecer.
- É apenas um pequeno gesto reparador. Um pouco tardio. Acho que depois disto vais ter mais coisas. Mas, entretanto, é importante que vás àquela villa.
Entrou Rachele para servir o chá. Maria vinha atrás dela.
- Mãe, podemos ir uns dias ao lago? - perguntou Fiamma, e acrescentou: - O meu irmão acabou de me dizer que a villa de Como é minha.
- Tu e eu, sozinhas? - Maria sorriu e piscou-lhe o olho em sinal de cumplicidade mas, sobretudo, para esconder a emoção que aquela notícia lhe tinha suscitado.
- Vamos ter de levar também o Manuel, porque se não vai fazer mais cenas de ciúmes - concluiu Fiamma.
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Naquele dia, Florette Roussel ligou a Mistral, de Paris.
- Ouvi dizer que desististe. Que não voltas a correr. É verdade? -começou.
- E que tom acusatório é esse? - brincou Mistral.
- Por favor! Nunca foste um pateta. Se decidiste assim, é porque tens certamente bons motivos para isso. De qualquer forma, mesmo que ainda quisesses correr, não ias poder
continuar a contar comigo. Isto é um telefonema de demissão - concluiu.
- Não estás bem? - perguntou, perplexo. Não conseguia entender por que razão Florette, ao fim de tantos anos, queria deixá-lo.
- Se calhar alguma coisa me deu a volta à cabeça, mas o facto é que já não estou sozinha. Agora estou a viver com o Jean Louis Coustadier - explicou.
- Eu devia conhecê-lo? - perguntou Mistral, curioso.
- Efetivamente, devias. É o neurocirurgião que impediu que a pérfida Chantal te levasse para Paris, quando estavas em coma. E é também o pai do Charles, o meu filho.
À noite, no quarto, quando Mistral se deitou ao lado de Maria, contou-lhe aquele telefonema e concluiu:
- Em tantos anos, nunca a Florette se referiu àquele homem.
- Francamente, é uma surpresa para mim também. Agora percebo por que razão, quando a Chantal te queria levar embora, ela voou para Paris, garantindo-me, com certeza absoluta,
que a Chantal nunca levaria a melhor nas suas intenções. Tinha na manga o especialista que
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deveria decidir a tua sorte. A Florette sempre foi muito boa a manter os seus segredos - comentou Maria.
- As mulheres sabem ser muito discretas, sobretudo no que diz respeito à sua vítima. Só confiam os seus segredos quando os outros estão no leito de morte - resmungou Mistral.
- É uma mensagem em código? - perguntou Maria, ao mesmo tempo que passava a sua mão pelos cabelos negros e hirsutos que lhe estavam a nascer.
- É uma mensagem explícita. Se eu não estivesse entre a vida e a morte, tu nunca me tinhas aberto o teu coração - sussurrou, abraçando-a.
- Então ouviste mesmo toda a minha história? - perguntou ela, espantada, recordando as noites passadas no hospital, no Serviço de Reanimação, a falar-lhe sem parar de si e
do seu passado.
- Passámos tantos anos à procura um do outro, enquanto íamos vivendo separadamente as nossas aventuras. Quando o acaso permitiu que nos encontrássemos, ignorámo-nos. E, no
entanto, eu nunca mudaria nada do que me aconteceu. Também os erros serviram para me fazer crescer. Mas mudaria muitas coisas na tua vida. Sobretudo aquelas que te fizeram
sofrer.
- Fui muito amada. Não me queixo dos maus momentos, se o resultado foi ter-te aqui, comigo. Lá fora chove, está frio, e eu estou nesta cama grande junto de ti, muito abraçados
os dois - disse Maria. - Tive realmente muita sorte - continuou, com um suspiro. - Ainda recordo, como uma espécie de milagre, a noite em que nos encontrámos na praia, em
Cesenatico.
- Foi realmente um milagre. Eu sabia pela minha mãe que tinhas voltado a viver em Cannucceto e que tinhas reaberto o restaurante. Mas pensava que já não me querias.
- Mas fui ao teu encontro, agressiva e furiosa, a perguntar-te o que estavas ali a fazer àquela hora, naquela praia que era só minha.
- Vinhas ofegante, extraordinariamente bonita e comovente. E eu, estúpido, queria ter-te beijado e fiquei ali a olhar para ti, intimidado, sem arranjar palavras para te responder
- recordou Mistral.
- O que é que estavas a fazer naquela praia, ao anoitecer? Nunca me disseste.
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- Pensava em Talemico Vernati, o pai que nunca conheci - respondeu, e acrescentou: - E tu, o que é que estavas a fazer ali sozinha, naquela praia, ao anoitecer?
- Pensava na minha vida. E recordava-te a ti e ao Peter - confessou.
- Nunca o esqueceste, pois não?
- Como é que podia? É uma recordação que vou conservar para sempre.
- Eu sei, Maria - sussurrou, antes de se inclinar para a beijar.
- Um dia destes, gostava de voltar à villa sobre o lago, contigo e com as crianças. Agora pertence à Fiamma. Já sabias? - perguntou.
- Foi a correr dizer-me. Foi um gesto magnífico da parte do Gianni.
Mistral não quis ir com eles ao lago, com o pretexto de que tinha de trabalhar na oficina. Na realidade, queria que Maria se sentisse livre para mergulhar nas suas recordações.
Quanto a ele, tinha voltado a frequentar o antigo espaço de Vulcano, junto ao caminho de ferro. À medida que recuperava forças e vigor, Mistral sentia a necessidade irresistível
de regressar à sua primeira paixão: trabalhar nos motores. A oficina que tinha sido de Silvano Vaccari, e que passara a ser sua, continuava a ser um ponto de referência importante
para os entusiastas dos carros de corrida. Durante todos aqueles anos em que não tinha podido ocupar-se dela pessoalmente, Mistral confiara-a a um mecânico de Turim, que vinha
da escola de Tronchero, um excelente preparador, como o fora Silvano. Rosa Vaccari continuou sempre a acompanhar a parte administrativa. Era agora uma velhota frágil e resmungona,
mas não tinha perdido a garra de outros tempos. Obrigava os clientes, com lisonjas e insultos, a pagar pontualmente contas altas, e mandava periodicamente informações pormenorizadas
a Mistral, que mantinha elevado o prestígio da oficina com visitas frequentes.
Agora Mistral acalentava um projeto para o seu futuro. Enquanto os outros pilotos famosos que tinham deixado as pistas se dedicavam a tempo inteiro à gestão do seu património,
ele decidira delegar a administração dos seus bens. Depois de ter aparecido na imprensa
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as primeiras notícias sobre a sua decisão de abandonar as competições, foi inundado por ofertas de atividades de todos os tipos. Mistral deixava-as cair umas atrás das outras.
Já sabia aquilo que ia fazer: ia regressar à oficina e aos amigos dos seus vinte anos. A Guido Corelli, o filho do dono da fábrica de malhas de Carpi, que lhe tinha oferecido
o seu primeiro Alfa Romeo; a Miserere e a Caffeina, com quem tinha ido assistir a uma corrida em cima de um carro funerário. Estavam agora à frente das empresas familiares,
mas conservavam intacto o amor pelos automóveis e pelos motores. E a todos os outros que gostavam dele e que sempre acreditaram nele. Ele satisfizera as expectativas de todos
eles e tinha já entrado na história. Queria ser recordado assim: quatro vezes campeão do mundo de Fórmula Um e, para terminar, um voo espetacular em direção ao céu e a sua
glória intacta.
Maria, já no quinto mês de gravidez, partiu para a villa de Peter com Fiamma, Manuel e Rachele.
Durante a viagem, Manuel encheu-a de perguntas. Queria saber por que razão Fiamma se tornara proprietária de uma villa e ele não. Se realmente Fiamma gostava dele, devia dividir
a propriedade com ele. Maria umas vezes sorria e outras vezes ficava furiosa.
- Às vezes tenho a impressão de que tu não és meu filho - protestou. - Acho que te devem ter trocado no hospital. Porque nem eu nem o teu pai somos assim tão ambiciosos.
- Mesmo que isso tivesse acontecido, agora são obrigados a ficar comigo. Devias ter estado mais atenta ao meu berço. Eu sinto-me muito bem convosco e não tenciono mudar de
pais - protestou.
Fiamma não falou durante todo o tempo. Às perguntas da mãe e de Rachele respondia por monossílabos. Estava emocionada e não conseguia explicar sequer a si mesma o turbilhão
dos seus sentimentos.
Nevava quando Maria entrou na alameda dos castanheiros-da-India e sentiu um arrepio ao reconhecer o sítio onde Peter tinha sido abalroado pelo camião.
Não havia nenhum homem de guarda ao portão. Ela saiu do carro e tocou. Alguém acionou o comando à distância. Os portões sucessivos, que Peter tinha instalado para a sua segurança,
estavam
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abertos. Quando saíram do carro, a governanta estava à espera dela. Era quase noite.
- Seja bem-vinda, minha senhora - disse-lhe, com um sorriso afetuoso, como se Maria tivesse estado ausente apenas alguns dias. Mas tinham passado doze anos.
- Estes são os meus filhos - disse Maria, indicando as crianças. A mulher dirigiu a Fiamma um olhar particularmente terno.
- O Sr. Strauss falou-me. Eu estava à espera que chegassem. Preparei um lanche para todos - anunciou, enquanto abria caminho em direção ao interior da casa.
Não tinha mudado nada desde que Maria ali tinha vivido. Fiamma segurou-lhe uma mão para ela parar, enquanto os outros entravam nos salões.
- O que foi, minha pequenina? - perguntou-lhe.
- Foi o meu pai que mobilou estas salas, não foi, mãe? - sussurrou.
- O teu pai está em tudo o que vês à tua volta - respondeu Maria.
- Não me apetece lanchar. Gostava de ver o quarto dele e o teu, aquele em que vivias quando estavas aqui - propôs.
Subiram a escadaria que dava acesso ao primeiro andar. A villa estava tratada com tanto cuidado que parecia que sempre estivera habitada. Havia ainda grandes plantas que cresciam
viçosas ao lado das janelas e arranjos de flores frescas em cima das mesas.
Fiamma olhava em volta, tocava nos móveis e nos objetos com a ponta dos dedos, acariciava o veludo das poltronas e a seda das almofadas. Em cima de uma mesa, na sala de estar,
estavam ainda os livros que Maria andava a ler no período em que acontecera o acidente: uma biografia do Rei Sol escrita por Saint-Simon e os poemas de John Donne.
Maria levou-a ao seu quarto.
- Posso deitar-me na tua cama? - perguntou a pequena.
- Agora é teu. Podes fazer aquilo que quiseres - respondeu-lhe. Fiamma estendeu-se de barriga para baixo, de braços abertos,
como que para entrar inteiramente na posse de tudo daquilo. Maria estava quase a chorar e aproximou-se das portadas que davam para a pequena varanda coberta. Olhou para o
jardim branco de neve
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e recordou uma noite de novembro, quando vira Mistral a passear pelos caminhos de saibro. Apesar de amar Peter, tinha-se emocionado ao vê-lo.
- Nunca mais vais viver aqui? - perguntou a filha.
- Acho que não. Aqui há demasiadas recordações de uma outra vida - respondeu.
- Posso vir aqui de vez em quando, mesmo sem ti?
- Acho que sim.
- Mãe, posso abrir as tuas gavetas?
- Não estejas constantemente a pedir autorização - respondeu. - Deixo-te sozinha, se quiseres ficar aqui. Vemo-nos mais tarde, lá em baixo.
Saiu e preparou-se para descer as escadas. Mas foi atraída pela ala oposta do corredor, onde ficavam os aposentos de Peter. Por isso, seguiu naquela direção.
Entreabriu a porta do quarto, que tinha ficado tal como o recordava. Tocou com os dedos nos móveis, nos objetos, nos quadros. Acendeu os candeeiros. Sentou-se na cama. Ali
tinham feito amor pela primeira vez, ali se sentira serena e protegida entre os braços fortes de Peter. Na mesa de cabeceira havia algumas fotografias dela e Peter juntos.
Por um instante, pensou que podia ressuscitar o tempo passado e viver aqueles dias distantes.
Levantou-se e abriu uma gaveta da grande cómoda do século XVIII. Nunca tinha mexido nas coisas dele e não tencionava fazê-lo sequer naquele momento. Só queria, durante aquelas
poucas horas, reapropriar-se de um tempo passado.
Havia algumas cartas amarradas com uma fita, as poucas que lhe escrevera quando ele viajava sozinho. Ele tinha-as conservado. Havia também pequenas agendas cheias de apontamentos
escritos com a sua letra miúda. Encontrou ainda um antigo relógio de bolso e um pente de tartaruga. Eram, com todas as probabilidades, objetos que tinham pertencido aos pais
de Peter. Voltou a fechar a gaveta e abriu outra por baixo.
Encontrou um embrulho amarrado com um fio. Pegou nele e examinou-o à luz do candeeiro. Nas palavras "para destruir" reconheceu a caligrafia de Peter. Desatou o nó, o papel
abriu-se e no
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tapete caíram papéis, fotografias e fitas magnéticas. Foram sobretudo as fotografias que chamaram a sua atenção, porque eram claramente fotografias tiradas sem consentimento,
e retratavam homens da política na companhia de mulheres. Uma delas era Moretta. Olhou para as fitas magnéticas, leu algumas mensagens e apercebeu-se de que parte daquele
material provinha da casa de Moretta Morandi.
Percebeu então que Peter, que sempre fora muito evasivo em relação àquele assunto, tinha encontrado a caixa escondida na villa de Bolonha.
Não fazia ideia de como tinha conseguido entrar na posse daquilo. Obviamente, decidira destruir toda aquela documentação. Então a suspeita de que a morte de Peter não tinha
sido acidental tornou-se uma certeza. Peter tinha sido morto porque, de alguma forma, tinha entrado em contacto com aquela gente. O coração começou a bater-lhe com força e
sentiu a criança no seu ventre dar um salto. Ficou ali durante alguns minutos, aninhada no tapete, a segurar aqueles papéis, aquelas fotografias, aquelas fitas que tinham
causado tanta infelicidade.
Sentiu o toque ligeiro de uma pequena mão no seu ombro.
- Mãe, o que estás a fazer? - Era Fiamma, junto dela. - Porque estás a chorar? - perguntou ainda.
Ela não respondeu. Juntou outra vez aquela tralha toda, amarrou-a tal como a tinha encontrado e levantou-se.
- Vamos para baixo - disse por fim, dando a mão à filha.
- O que é que há nesse embrulho? - perguntou-lhe Fiamma.
- Coisas velhas para queimar. Agora vamos descer até à cozinha e atirar isto para a lareira.
Maria e Mistral casaram-se numa manhã de janeiro, na igreja do Convento dos Capuchinhos, em Cesenatico. Maria exibia com orgulho a grande barriga da sua terceira gravidez.
Foi uma cerimónia muito simples. Estava o Dr. Matteo Spada como testemunha de Mistral e Giordano Sacerdote como testemunha de Maria. Estavam também Fiamma, Manuel, Adèle e
Rachele. No último momento, quando iam já a sair da igreja, chegou também Florette. Tinha vindo
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expressamente de Paris. Foram todos para casa de Adèle, na pequena Praça das Conservas. O espaço era limitado, o ambiente modesto, mas o almoço preparado pela Especialista
foi soberbo. Adèle distribuía sorrisos e palavras afetuosas.
Enquanto espetava o garfo numa massa suculenta, começou:
- Querido Mistral, estou contente por estares arrumado finalmente. Casaste com uma excelente rapariga, tens dois meninos fantásticos e em breve vai chegar o terceiro. Tens
realmente uma linda família.
Era um princípio que prenunciava uma sequência. Com efeito, Adèle prosseguiu:
- Mas há uma coisa que não me convence. Dizem-me que voltaste a trabalhar como mecânico. Então eu pergunto: se é realmente isso que queres fazer, porque não procuras um bom
emprego num banco? Já sei o que me vais responder, por isso vou dizer-te outra coisa: tu és o Mistral, tens dentro de ti o vento selvagem da minha Provença. Agora queres que
toda a gente acredite que ele partiu e se transformou numa doce brisa que sopra sobre ti e sobre os teus afetos. Não é coisa tua, meu filho, deixares-te enrolar desta maneira.
Se não venceres o teu quinto campeonato do mundo, vais ser um homem infeliz para o resto dos teus dias. Tu sabes isso, a tua mulher sabe isso, todos nós sabemos isso. Mistral,
de que é que estás à espera para voltares às corridas?
Caiu o silêncio depois daquelas palavras. Foi Maria, bastante desconcertada, quem interveio:
- Logo tu, Adèle, a dizeres essas coisas!
- Tenho a certeza de que estás de acordo comigo. Nós as duas conhecemos bem o nosso rapaz - respondeu-lhe.
Mistral estendeu uma mão em direção à mãe e afagou-lhe o rosto.
- Sempre desejaste que eu deixasse de correr. Por que razão mudaste de ideias agora? - perguntou-lhe, a olhar para ela com ternura.
- Quero que tu sejas feliz. E nunca o vais ser, se deixares contas em suspenso com a tua carreira.
- Tu, maman, como sempre, consegues ler-me o coração - disse Mistral, a sorrir.
- É verdade aquilo que a tua mãe está a dizer? - perguntou Maria, alarmada.
Mistral não respondeu, e ela soube que ia voltar a tremer por ele.
Sveva Casati Modignani
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