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CONDIÇÃO NEGRA / Gerald Seymour
CONDIÇÃO NEGRA / Gerald Seymour

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONDIÇÃO NEGRA

 

A RAPARIGA avançou em passo rápido à frente dele, passando pelas portas de vidro de vaivém, entrando no hotel e dirigindo‑se para a recepção, onde parou para lhe dar tempo para pedir a chave do quarto. O recepcionista, um homem idoso, com um cigarro pendurado do canto da boca, fez um sorriso irónico ao homem, ao mesmo tempo que lhe entregava a chave do quarto, no terceiro andar.

         Estavam uns americanos na entrada, sentados, a estudar mapas e guias e a discutir as visitas turísticas do dia seguinte. Ele reparou que dois dos homens olhavam a rapariga com inveja e admiração.

         Ela tocou‑lhe então pela primeira vez, enfiando‑lhe a mão no braço para ele a conduzir para o elevador. Tinham‑se conhecido havia só uma hora. Era a segunda noite que ele passava em Roma e estava sentado num bar, em frente do hotel, e ela veio sentar‑se ao balcão ao lado dele. Tomaram três bebidas, ela disse‑lhe quanto cobrava por uma hora, até à meia‑noite ou até de manhã, e como se chamava, mas ele já esquecera o nome. Enquanto o elevador subia ruidosamente até ao terceiro andar, a rapariga passou‑lhe a mão à volta do pescoço e encostou‑se a ele.

         À porta do quarto, ele procurou a chave na algibeira e tentou duas vezes abrir a porta, mas sem êxito, até que a rapariga lhe tirou a chave da mão. A mão dela não tremia. Se o homem tivesse olhado para a cara dela quando a porta se abriu, teria visto a frieza dos seus olhos azul‑acinzentados.

A pasta dele estava em cima do toucador do quarto de hotel, em frente da cama de casal, que estava aberta. O homem sentiu‑se vagamente ansioso. Era um funcionário de confiança dos seus patrões, que lhe exigiam prudência em troca da liberdade que lhe concediam para se deslocar em negócios. Considerava que o facto de se ter deixado tentar por uma prostituta de café era de certo modo trair essa confiança. Pôs a gabardina em cima da pasta e pagou à rapariga.

         Ela despiu‑o lenta e provocantemente, despindo‑se também. Depois, pegou‑lhe na mão e levou‑o para a cama.

         Mais tarde, o homem não deu por nada quando ela se levantou e se vestiu no escuro. E continuava a dormir quando ela meteu no bolso do casaco a chave do quarto de hotel e saiu, fechando a porta.

         O homem, um paquistanês chamado Zulfiqar Khan, não acordou quando abriram a porta do quarto, nem se mexeu quando um raio de luz vindo do corredor o iluminou subitamente, sendo logo cortado pelo movimento rápido de dois homens e depois extinto quando eles fecharam a porta atrás de si.

         Os homens atacaram imediatamente. Taparam‑lhe a boca com uma mão, e a lâmina de uma faca descreveu um arco curto num golpe forte. A lâmina trespassou‑lhe o coração, e o homem morreu com um estertor.

         Zulfiqar Khan, que se formara com distinção na Universidade de Berna e conquistara fama como professor no Departamento de Engenharia Nuclear da Universidade do Cairo, estava morto.

         Uma mão enluvada tirou a pasta do homem de debaixo da gabardina. Quando saíram, os dois homens penduraram no puxador da porta a informação pedindo que o ocupante do quarto não fosse incomodado.

         Às 9 e 30 da manhã, depois de ter esperado durante setenta e cinco minutos na entrada do hotel e de ter perdido a paciência, o director‑geral de uma firma de engenharia especializada, a Italllnt, exigiu que a gerência fosse verificar porque é que ninguém atendia as suas chamadas para o quarto.

         Às 9 e 40 dessa mesma manhã, ao mesmo tempo que a porta do quarto de hotel era aberta com uma chave‑mestra, a pasta estava escondida na mala diplomática que um correio transportava em cima dos joelhos. O correio viajava em primeira classe num avião que levantara voo havia dezanove minutos, com a mala discretamente algemada ao pulso.

         Em Roma, pouca gente se importou que Zulfiqar Khan, de trinta e nove anos de idade, residente em Bagdade, República do Iraque, visto pela última vez na companhia de uma mulher, presumivelmente prostituta, tivesse sido assassinado. E ainda menos gente poderia compreender que um governo soberano sancionara ao mais alto nível ministerial esse assassínio a sangue‑frio...

 

 

No FIM da rua, juntara‑se uma pequena multidão de quarenta ou cinquenta pessoas para assistir às idas e vindas da Polícia e da brigada de agentes de antiterrorismo. A multidão aguardava em silêncio sob a chuva miudinha.

         A rua cortada ficava num bairro residencial. Moradias imponentes ocultavam‑se atrás de altos muros caiados. Ouviam‑se ladrar os cães de guarda. Era uma daquelas ruas de Atenas onde moravam os cirurgiões e os advogados mais conhecidos da cidade. Erlich pagou o táxi. Um polícia gordo barrou‑lhe o caminho, e Erlich disse em voz baixa:

         ‑ FBI. Com licença.

         Continuou a andar. Duvidava de que o polícia tivesse entendido o que ele dissera. Talvez tivesse olhado para a cara de Erlich e calculado que, se não se afastasse, seria atirado ao chão. Deu um passo para o lado e fez continência. Erlich sorriu e passou ao lado dele, dirigindo‑se para o meio da rua.

         Bill Erlich conhecia Harry Lawrence desde o Outono de 88. Havia poucos indivíduos na CIA que fossem realmente seus amigos. Pensara em Harry durante o tempo que durara o voo da Alitalia de Roma a Atenas e também no táxi que o levara até ao bairro periférico de Kifisia. Se o polícia o tivesse impedido de chegar junto do lugar onde Harry fora assassinado, Erlich era mesmo capaz de lhe ter dado um murro. Parou, absorvendo todos os pormenores da rua, algo que devia ser sempre feito no início de uma investigação.

         Erlich sabia poucos pormenores; ele estava sem comunicações desde que a primeira notícia chegara à embaixada em Roma. Mandavam um agente federal sempre que um cidadão americano era assassinado, e Atenas era controlada pela delegação de Roma do FBI.

         O grupo de homens à sua frente estava muito apertado para se proteger da chuva miudinha. Erlich reconheceu o chefe de Harry pela careca. Se era ali que Harry tinha morrido, deviam ter isolado uma área grande com um cordão, em vez de deixarem que a erva fosse pisada por um tropel de pés. Erlich avançou até junto do grupo.

         O crime tivera lugar de manhã cedo. O chefe da delegação da CIA em Atenas destacou‑se do grupo e pegou na mão de Erlich como se fosse um padre oferecendo as suas condolências. Devia saber que a amizade entre Harry Lawrence e Bill Erlich ultrapassava as divergências entre a CIA e o FBI.

         O chefe da CIA apontou para as pernas dos polícias e dos agentes das forças de segurança gregas. Havia sangue no chão um rasto comprido e estreito. O dedo apontou mais para diante, para o passeio. Neste, viam‑se duas manchas de sangue.

         Harry estava acompanhado por um contacto... mataram‑nos a ambos ‑ disse ele. ‑ Ainda bem que chegou, Bill.

         Já passaram revista ao local? perguntou Erlich.

         ‑ Encontraram os cartuchos.

         - E que mais?

         ‑ Não sei.

         ‑ E fica satisfeito com isso?

         O chefe da CIA falava baixo.

         ‑ Somos estrangeiros. Há uma coisa que sei por experiência própria, infelizmente: quanto mais os pressionamos, mais eles resistem. Quanto mais os pressionamos, menos conseguimos deles.

         ‑ Compreendo.

         Ouviram o estrondo de um portão de ferro atrás deles. Erlich voltou‑se. Saiu uma mulher de uma das vivendas: trazia uma braçada de rosas vermelhas. Atravessou a rua, contornando o grupo de polícias, e dirigiu‑se para o ponto do passeio onde as manchas de sangue estavam a ser lavadas pela chuva. Ajoelhou‑se. Tinha os olhos fechados e movia os lábios. Benzeu‑se e depois pousou as rosas no passeio. Em seguida, levantou‑se e foi‑se outra vez embora.

         ‑ Obrigado, minha senhora ‑ disse Erlich baixinho. Não percebeu se ela o tinha ouvido, pois não deu sinais disso. Depois, continuou:

‑ Gostava de ver o Harry.

 

         Os FUNCIONÁRIOS da morgue afastaram‑se, deixando Erlich e o chefe da CIA avançarem sozinhos até ao centro do compartimento, onde as duas macas, tapadas com panos verdes, estavam assentes nas suas bases com rodas. A luz forte de néon do centro do compartimento sublinhava os contornos dos panos e reflectia‑se nas paredes de azulejo branco, deslumbrando a vista de Erlich. Ele levantou o lençol da maca mais próxima, descobrindo a cara pálida de um homem moreno com um bigodinho preto bem aparado.

         ‑ Quem era?

‑ Um dissidente iraquiano - informou o chefe da CIA. ‑ Um escritor. Tinha a cabeça a prémio, morava em Damasco. Harry já se tinha encontrado com ele de outras vezes. Ele voltou a Atenas e telefonou a Harrv. Harry gostava de falar com ele para tentar obter informações.

         Erlich tapou outra vez a cara com o lençol. Contornou as duas macas e depois levantou o lençol da outra. Engoliu o vómito que lhe subiu à garganta.

         O tiro devia ter sido dado na nuca, e os olhos e o nariz tinham sido desfeitos na saída da bala. Só a boca era ainda como ele se lembrava. A boca que costumava rir com ele. Só a boca lhe indicava que estava a olhar para a cara do amigo.

         ‑ O outro apanhou seis tiros... Harry só levou um ‑ disse o chefe da CIA.

         ‑ O que significa...? ‑ Mas Erlich já sabia a resposta.

         ‑ Significa quase de certeza que ele estava no lugar errado no momento errado. Harry não era o alvo, meteu‑se no caminho.

         ‑ Os Iraquianos eliminam a gente deles?

         ‑ Claro que sim, quando eles saem da linha. Porque não?

         Erlich puxou novamente o lençol para cima da cara do amigo. Mais tarde informar‑se‑ia sobre os pormenores da autópsia. Não queria ficar mais tempo naquele compartimento gelado. O homem que morrera era uma boa pessoa e um bom amigo.

 

         ‑ ENQUANTO me deixarem, vou acompanhar isto, Elsa. É uma promessa solene. Tanto faz que leve um mês, como um ano, como dez...

         A mulher de Harry Lawrence estava sentada no sofá. Os dois miúdos estavam encostados a ela, um de cada lado, e ela passara os braços, pequenos e magros, por cima dos ombros das crianças, puxando‑as de encontro a si. O apartamento estava cheio de pessoal da CIA, que emalava os haveres da família.

         Bill Erlich não a via há cinco meses, desde a última vez que fora a Atenas. Ela não era bonita, mas para Erlich era a melhor esposa do Mundo. Claro que ele não era casado, mas Elsa Lawrence era a pérola das mulheres de todos os homens que ele conhecia.

         ‑ Todo o tempo que for preciso, Elsa.

         Elsa levantou os braços de cima dos ombros dos miúdos e estendeu‑lhos.

         Erlich aproximou‑se dela, ajoelhando‑se no tapete que Harry trouxera de uma viagem‑relâmpago a Beirute. Ela abraçou‑o e ele beijou‑a na face e sentiu a cara molhada pelas suas próprias lágrimas. Afastou‑se de Elsa.

         Na entrada do pequeno apartamento, o chefe da delegação da CIA disse:

         ‑ Muito bem dito, como um homem.

         ‑ Não podia dizer mais nada.

         ‑ Não se esqueça de que lhe pagam para fazer o seu trabalho, e não para dar apoio psicológico às vítimas.

         ‑Eu sei.

         ‑ E que o trabalho é igual, quer conhecesse ou não o morto.

         ‑ Claro.

   ‑ QUANTOS tiros?

         ‑ Doze cartuchos, sete tiros acertaram no alvo.

         ‑ Quantas armas?

         ‑ Só uma. Uma pistola 22 com silenciador.

         - Tem a certeza de que o alvo não era Harry Lawrence?

         ‑ Tudo indica que não.

         Erlich assentou tudo numa agenda. O polícia beberricava um café. Erlich sabia que não era bem‑vindo na Brigada de Antiterrorismo de Atenas. Não lhe tinham oferecido café.

         - Tem alguma testemunha ocular?

         ‑ Sim, Mr. Erlich, tenho uma testemunha ocular.

         ‑ Posso falar com ela?

         ‑Provavelmente... quando der jeito.

         ‑ Amanhã dá jeito?

         ‑ Não sei. ‑ Fez‑se silêncio.

         ‑ Posso saber em que é que está o caso?

         ‑ Em que é que está o caso? Bom, Mr. Erlich, o que nós sabemos é que um agente secreto de um país estrangeiro estava a desenvolver a sua actividade sem informar as autoridades gregas do seu trabalho. Acha que, se eu fosse à sua embaixada e pedisse informações detalhadas sobre o trabalho que Mr. Harrv Lawrence, da CIA, estava a fazer no meu país, me diziam alguma coisa; ou acha que me punham na rua?

         ‑ Descobriram o automóvel usado no atentado?

         ‑ Descobrimo‑lo, mas tinha ardido completamente, não havia nenhuns indícios, todas as impressões digitais foram destruidas.

         A frustração de Erlich era cada vez maior.

         ‑ Que mais é que sabem?

‑ Lawrence e o seu contacto iam a pé numa rua sossegada. Um Opel Rekord, roubado três dias antes no Pireu, parou atrás deles. Saiu de lá um homem branco de cabelo louro cortado curto. O contacto foi abatido. Lawrence atravessou‑se à frente e foi também atingido.

         ‑ E é tudo?

         - O condutor do automóvel gritou qualquer coisa.

         ‑ O quê?

         ‑ A palavra Colt.

         ‑ O quê?

         ‑ Gritou só essa palavra. A palavra que ele gritou foi Colt. Só Colt.

 

         CHAMAVA‑SE Colin Olivier Louis Tuck. No dia seguinte, fazia vinte e seis anos, mas não ia receber cartões de parabéns nem presentes.

         Estava sentado a olhar pela janela para o céu da cidade num fim de tarde frio. A primeira coisa que fizera quando entrara no apartamento fora desligar o aquecimento e abrir a   a janela do quarto e a da sala de estar, quase sem móveis. Detestava sentir‑se encurralado. Não percebia o que é que não tinha corrido bem. Fora recebido pela gente do Ministério do Interior, que o levara directamente da escada do avião até à cidade, mas ninguém dissera nada no caminho. Não tinha havido apertos de mão, beijos na cara ou palmadas nas costas, o que significava que alguma coisa havia corrido mal. E agora estava um homem à porta, como que a guardá‑lo. Colt estava de costas para o guarda, mas ouvia‑o tremer de frio na corrente de ar. Haviam de dizer o que tinham a dizer na devida altura. Nunca tinham pressa ‑ isso já ele percebera desde que viera para Bagdade.

         Passou os dedos pelo cabelo louro‑claro, cortado curto, e fechou os olhos. Quando viessem, acordava.

         O seu dia começara às 4 e 30 da manhã. Não tomara o pequeno‑almoço, porque era coisa que nunca fazia. Não tomara café nem comera nada. Vestira‑se, desmontara a arma, montara‑a novamente e depois enchera e esvaziara o carregador. Verificava sempre o mecanismo antes de disparar, porque a sua Ruger/MACMark 1 já era uma arma antiga e podia encravar. às 5 e 30, saíra do quarto, que ficava no bairro universitário de Atenas. O carro já estava à espera dele.

         Descontraindo‑se na cadeira, lembrava‑se de que não se sentia tenso quando atirou o saco para o banco de trás do automóvel, entrando depois para a frente. Levava a Ruger, com o silenciador integrado, num grande saco de plástico de supermercado. O condutor era bom, muito calmo. Era um dos homens do coronel, que viera para Atenas já há um mês, por isso conhecia bem a cidade ‑ as ruas e ruelas por onde talvez tivessem de meter para fugir.

         Colt fora conduzido até ao hotel onde o alvo estava hospedado. Ele é que tinha de decidir quando devia atirar. Quando o alvo saíra do hotel, a mão de Colt apertara a coronha da Ruger dentro do saco de plástico e ele inclinara‑se para a porta do automóvel. Mas a praça de táxis em frente do hotel tinha muitos táxis e não havia ninguém, por isso o alvo entrara imediatamente num veículo. Tinham‑no seguido. Colt ficou irritado quando o condutor perdeu o táxi num sinal luminoso. Mas o condutor não se enervou, batendo os quarteirões até apanhar novamente o táxi dois minutos depois. O condutor devia saber que era a primeira vez que Colt fazia um trabalho e não se ofendeu com a berraria dele. O táxi acabou por parar num cruzamento num arrabalde da cidade, e o alvo pagou a corrida e aproximou‑se de um homem que esperava por ele no passeio. O alvo e o homem começaram a subir uma rua orlada de árvores. A rua estava deserta. Era impossível encontrar um lugar melhor.

         Colt lembrava‑se de que o carro tinha parado junto ao passeio, vinte metros atrás do alvo. Lembrava‑se também de ter gritado, porque queria que o alvo se afastasse do homem que o escondia. Lembrava‑se do crepitar surdo do tiro da arma no semiautomático. O segundo homem mergulhara para cima do alvo, lembrava‑se perfeitamente disso, e também se lembrava de ter continuado sempre a carregar no gatilho. De qualquer maneira, tinha de abater também o segundo homem, mas se os tivesse conseguido separar, o trabalho ficava mais bem feito. Haviam caído os dois e lembrava‑se de que o condutor tinha gritado o nome dele, chamando‑o para voltar para o carro. Não havia mais nada para recordar, porque fora tudo bastante simples. Correra para o carro, que se dirigira imediatamente para o aeroporto, onde ele apanhara o avião para Ancara e depois a ligação para Bagdade. A verdade é que fora um trabalho bem feito.

         Sentia‑se embalado pelos seus pensamentos. Fizera a sua escolha. Naquele momento, a escolha era um apartamento de duas divisões no complexo residencial da Rua de Haifa, em Bagdade. Era uma janela aberta de onde se viam as águas do Tigre, agitadas pelo vento, e o quarteirão de arranha‑céus dos hotéis para estrangeiros. Fizera a cama e agora tinha de se deitar nela.

         Ouviu a pancada na porta do apartamento e depois os passos do guarda, que se apressava a abri‑la.

         Levantou‑se e ficou de pé, de costas para ajanela aberta.

O coronel era um homem forte. Não era alto, mas todo ele era músculo. Vestia um uniforme de caqui simples. As botas de pára‑quedista, até meio da canela, não tinham sido engraxadas, estavam sujas do pó cinzento da rua.

         Colt gostava do coronel, o seu patrono e amigo. Mas nessa noite o coronel mostrou‑se muito frio, nem sequer lhe fez um sorriso.

         ‑ Não houve testemunhas oculares do tiroteio?

         ‑ Não.

         ‑ Há alguma possibilidade de o identificarem?

         ‑ Ninguém me viu. A rua estava deserta.

         ‑ Ninguém o viu?

         ‑ Só o alvo e a pessoa que estava com ele.

         ‑ Quem

         ‑ Morreram os dois.

         - Sabe quem é que estava com o alvo?

         ‑ Não, não lhe perguntei o nome antes de o abater.

         Colt ficou imóvel. Sabia que o alvo era um escritor dissidente, um exilado que escrevia sobre o regime e o presidente do Conselho do Comando Revolucionário. Colt fora informado confidencialmente de que dois atentados contra o alvo já tinham falhado. Colt era o trunfo do coronel.

         Ouvia lá em baixo o apito das sirenes, um ruído habitual durante a noite. As brigadas do Departamento de Segurança Pública faziam sempre o seu trabalho de noite, detendo as pessoas que diziam ser uma ameaça para o regime. E as sirenes escoltavam os presos desde o departamento até à prisão de Abu Ghraib e depois desde a prisão de Abu Ghraib até à morgue, quando não resistiam aos interrogatórios.

                   - Você abateu um americano, Colt. Um americano da CIA. - O jovem deu uma gargalhada na cara do coronel.

         ‑ E depois?

         - Era um agente secreto.

         - Era a rua ideal, compreende? Não havia ninguém. Não havia amas, criadas, entregas, nada. E o alvo já estava desconfiado. Não podia segui‑lo o dia todo; era impossível com um alvo tão cuidadoso. E a rua estava mesmo a calhar. Se não tivesse abatido o americano, ele tinha visto a minha cara e o automóvel. Tinha de o abater. Era uma rua óptima, coronel. Tive uma boa oportunidade e aproveitei‑a.

         ‑ Não podem identificá‑lo?

         ‑ Não me importo de voltar a Atenas nem à Europa, porque tenho a certeza de que não me podem identificar.

Finalmente, o coronel sorriu. Assentou as suas grandes mãos nos ombros do jovem. Olhou‑o nos olhos, calmos e transparentes.

                   ‑ Bom trabalho, Colt.

 

                   A NOTÍCIA da morte de Zulfiqar Khan espalhou‑se depressa entre as poucas pessoas que o conheciam, a ele e ao seu trabalho. A noticia e o medo.

                   Em Paris, um engenheiro especializado na construção de túneis a grande profundidade que estava a passar férias em casa resolveu desistir dos restantes dois anos e meio do seu contrato. O túnel a cuja construção o francês superintendia, sendo muito bem pago para o fazer, situava‑se perto da aldeia de Salahuddin, a norte de Bagdade. A zona que já havia sido escavada tinha as dimensões de um campo de futebol, com altura suficiente para três andares de laboratórios e oficinas subterrâneas, que seriam revestidos de betão. Ainda faltava um andar. A caverna estava ao abrigo dos ataques aéreos e era protegida pela massa da montanha Karochooq das fotografias de satélite, que poderiam denunciar o objectivo dessa construção. A notícia da morte do Dr. Khan circulou entre os especialistas estrangeiros que trabalhavam no projecto. Ao meio‑dia, todo o pessoal fora já informado. Nessa mesma noite, dois engenheiros estavam no Aeroporto Internacional de Bagdade à espera do primeiro voo com lugares livres para saírem do Iraque. Tanto fazia que fosse para Jidda, Carachi ou Budapeste, para eles era igual.

                   Outra pessoa que estava também no aeroporto era um italiano especializado na montagem dos filtros de árgon do sistema de ar condicionado. O italiano estava sentado ao lado de um amigo que tinha um escritório no mesmo edifício de Tuwaithah. O amigo, um engenheiro que trabalhava na produção de explosivos químicos de precisão, recebera nessa mesma manhã uma encomenda armadilhada que, por acaso, não chegara a explodir. Estavam há onze horas no aeroporto à espera de um voo que os levasse para qualquer parte, desde que saíssem do Iraque.

 

                   ERLICH estava a infringir as regras. Um agente do FBI destacado para o estrangeiro com a categoria de adjunto do adido jurídico tinha sempre de actuar por intermédio das autoridades policiais locais. Mas Erlich gostava de agir sozinho. Fora assim desde os tempos de instrução em Quantico, e nunca ninguém lhe pedira contas. Agira sozinho em Atlanta, onde a sua franqueza e independência lhe tinham conquistado o seu novo lugar. Agira também por sua conta na equipa de operacionais de Washington, a CI‑3, fazendo horas extraordinárias sem nunca se queixar, e fora isso que lhe conquistara o lugar no gabinete do adido em Roma. Não tencionava ser agente especial o resto da vida. Definira objectivos: dentro de dez anos, dirigiria uma delegação; dentro de vinte, ocuparia uma secretária de director‑adjunto na sede. Esta missão em Atenas era uma excelente oportunidade, mas infelizmente uma oportunidade proporcionada pelo assassínio de Harry. A tristeza e o desafio começavam, porém, a separar‑se já na sua cabeça.

         A ponta do feixe luminoso da lanterna iluminava as flores molhadas, achatadas pela chuva, que caía agora regularmente. Não estava interessado em examinar o local exacto onde Harry e o seu contacto tinham caído. Descreveu um arco num raio de doze passos, procurando o ponto onde se encontrava o assassino. Era sempre muito metódico.

         Ao fim de quarenta minutos de busca, de gatas no chão, encontrou a beata de uma cigarrilha. Também encontrara papéis de rebuçados e de pastilhas elásticas e filtros de cigarros já velhos. Mas a beata de cigarrilha era recente. Deitou para a sarjeta todos os outros objectos recolhidos. Depois, tirou da algibeira um saquinho de plástico e deitou lá para dentro a beata. Era um começo.

 

         Os CAFÉS da Rua Ben Yehuda, duas ruas atrás da avenida marginal de Telavive, estavam quase vazios. Havia cinco clientes numa mesa, mas eram os únicos que ainda estavam na esplanada. Os homens bebiam cerveja pelas garrafas, e um deles ofereceu os cigarros que tinha comprado no avião; a rapariga loura contribuíra com meia garrafa de brandy Stock. Já não estavam a falar da missão. O debriefing tivera lugar durante a tarde nos compartimentos insonorizados da sede. Tinham completado a missão e provavelmente não voltariam a trabalhar juntos em equipa. A confraternização numa esplanada da Rua Ben Yehuda era a despedida. Um deles era o responsável da Mossad que autorizara a missão, depois de ter investigado a biografia do Prof. Zulfiqar Khan. Outro era o seu adjunto, que recolhera as informações sobre o itinerário do paquistanês. A rapariga era a agente que fizera de prostituta. Um dos outros dois era o homem que matara Khan, e o último era o seu companheiro, que trouxera a pasta do quarto de hotel.

         O responsável da Mossad disse:

         ‑ Era necessário. Se não fizermos nada, se ficarmos quietos a ver, o Estado de Israel acaba. Se permitirmos que o tal Tariq lhes construa uma bomba... ‑ O responsável passou o dedo pela garganta.

         Só se foram embora quando o dono do café começou a reclamar. Beijaram‑se no meio da Rua Ben Yehuda. Foi a única manifestação de emoção de todos esses dias e noites de tensão. Beijaram-se e foi cada qual para seu lado.

 

         Colt só ia ao Khan Murjan, na cidade velha, quando era convidado. Desta vez, estava sozinho, mas quem pagava era o coronel.

         Pediu gambas e abacate, borrego, queijo, fruta e vinho francês. Em Bagdade, aquele era o seu restaurante preferido. Passeou pela cidade velha, seguido pelo guarda, a alguns passos de distância. A cidade era a sua casa, a cidade, a Ruger e o Restaurante Khan Murjan eram a única casa que podia ter agora. O coronel confiara nele para livrar o presidente do escritor da pena envenenada. Dois outros tinham falhado, mas ele fora bem‑sucedido. Um deles não conseguira ludibriar a segurança do Aeroporto de Budapeste, fora detido e repatriado. O segundo fora preso nas ruas de Zagreb pelos Jugoslavos, que o fecharam numa cela e atiraram a chave fora. Mas Colt fora bem‑sucedido. Sabia porque é que o tinham escolhido: porque era branco, era europeu e tinha facilidade de acesso. Justificara a confiança do coronel.

         Matara um americano. E depois?

         Quando acabasse de comer, recolhia o guarda, que ficara sentado numa cadeira dura à entrada, voltava a pé para o complexo residencial da Rua de Haifa e depois escrevia uma carta à mãe.

 

As PRIMEIRAS geadas de Novembro cobriam o relvado em frente da casa, e o Sierra levou imenso tempo a pegar. Como o carro de Sara ficava na garagem e o dele na rua durante a noite, Frederick Bissett estava condenado a passar cinco minutos todas as manhãs a raspar o gelo do pára‑brisas e do vidro de trás e depois a acelerar o motor, expelindo fumos cinzentos no ar do Jardim de Lilases. Sara raramente se despedia dele à porta, pois estava quase sempre atarefada a arranjar Erank e Adam para a escola.

         O vizinho da casa da direita apareceu à porta da rua:

- Bom dia, Fred.

         Frederick Bissett, investigador científico, detestava que lhe chamassem Fred. Abanou o raspador sem entusiasmo.

         Não tinha nada a dizer aos vizinhos. Vivia num casulo que ele próprio tecera. Era assim o seu trabalho, e era também assim que vivia no condomínio chamado Jardim de Lilases, em Tadley, Berkshire, Inglaterra.

Bissett colocou a velha pasta no banco de trás do carro. A pasta continha apenas uma caixa de sanduíches e um termo com café. Conduziu lentamente até Mount Pleasant. Quando chegou a altura de voltar para Mulfords HilI, atrasou‑se porque não o deixavam entrar na fila. Depois, foi em Kingsclere no cruzamento de Burghfield Common. Era a mesma coisa todas as manhãs, umas vezes pior do que outras. Teve de parar novamente em Falcon Gate. Estavam a inspeccionar os carros com os espelhos montados na ponta de um varão. Nunca mais acabavam. Operação Ambar Negro ‑ alerta de máxima segurança em Falcon Gate. Bissett deixava sempre o jornal em casa para Sara. Nunca ouvia o noticiário da manhã na rádio, e à noite virava a cadeira de costas para a televisão para ler. Tinha ideia de ter ouvido que alguém colocara um carro armadilhado num quartel qualquer. Não sabia onde nem lhe interessava, só que isso significava que o departamento estava em alerta Âmbar Negro e tinham de espreitar com o espelho mágico por debaixo de todos os carros.

         Mandaram‑no seguir. Arrancou e entrou no recinto vedado do seu local de trabalho, o Estabelecimento de Armamento Atómico.

         Existiam no mundo cinco estabelecimentos como aquele: o Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México, EUA, e os centros de investigação nuclear da região de Chelyabinsk, nos Urales, Rússia, de Ripault, França, e de Lanzhou, na província de Gansu, na República Popular da China. E na Grã‑Bretanha havia o Estabelecimento de Armamento Atómico, construído num aeródromo militar do tempo da II Guerra, no meio do campo, no Berkshire, a cerca de oitenta quilómetros de Londres e sobranceiro ao vale do Tamisa.

         Bissett conduzia devagar ao longo da Terceira Avenida, a grande avenida central, orlada dos dois lados por edifícios cinzentos de betão. As vedações que rodeavam a área A - onde se trabalhava com plutónio ‑ e a área B onde se produziam os explosivos químicos ‑ estavam rematadas com arame farpado, assim como as das áreas contaminadas e das áreas de armazenagem dos resíduos ‑ todas isoladas pelas suas próprias barricadas de arame cinzento.

         Bissett dirigiu‑se à área H. O seu local de trabalho era o H3.

         Era um edifício térreo de paredes de tijolo vermelho e telhado plano. Fora erigido à pressa na década de 50 para os cientistas poderem deixar as instalações primitivas, que não passavam de barracões pré‑fabricados. Supostamente, o H3 teria uma duração de vinte anos, mas haviam surgido outras prioridades, e, a partir de 1973, o paciente sofrera remodelações a intervalos de quatro anos ‑ uma nova camada de tinta, uma nova instalação eléctrica para alimentar os computadores que comandavam a vida de todos. Havia também uma vedação nova em volta da área H, construída no âmbito das novas medidas de segurança. Bissett mostrou mais uma vez o seu cartão de identificação ao polícia do ministério.

 

         Carol estava junto da máquina de café, preparando‑se para o dia de trabalho; ainda não tirara a cobertura da máquina de escrever.

     - Bom dia, Dr. Bissett.

         Reuben BoIl desembrulhava o primeiro dos rebuçados que comprava todas as manhãs em Tadley. A porta do gabinete dele estava sempre aberta. Era o superintendente, de grau 6, responsável por todo o H3, e, apesar de ter nascido em Ipswich, falava inglês com o sotaque gutural da Europa Central, de onde os seus pais tinham emigrado. Trabalhava há vinte e seis anos na área H.

         ‑ Bom dia, Frederick.

         Basil Curtis despiu o duifie coat. Trabalhava ali há tempos infindos, e Bissett considerava‑o o homem mais inteligente que conhecia.

     - Bom dia, Bissett.

         Bissett meteu pelo corredor que saía da área central. A porta do seu gabinete era a terceira à direita. Abriu a porta com a chave enfiada na argola presa por uma corrente ao cinto das calças. A sua rotina era invariável. Todas as manhãs começava por ligar o seu terminal. Depois, tirava da pasta a caixa de sanduíches e o termo de café e colocava‑os na prateleira por detrás da cadeira, junto das fotografias de Sara e dos dois filhos. Em seguida, ia até ao cofre encastrado na parede, abria‑o com a segunda chave da corrente e tirava os seus papéis.

         O dispositivo pessoal de análise da atmosfera, do tamanho de uma caixa de fósforos, que trazia pendurado ao pescoço por um cordão, bateu no tampo da secretária. Batia sempre na secretária antes de ele se lembrar de o entalar por detrás da gravata.

         Carol bateu à porta e entrou antes de ele ter tempo de responder.

         ‑ Vieram entregar isto para si, Dr. Bissett.

         Era um envelope com a inscrição PARTICULAR E CONFIDENCIAL.

 

         O ESTABELECIMENTO de Armamento Atómico de Aldermaston é um local de trabalho onde reina o segredo. Por detrás do arame cinzento, para lá dos guardas com as suas espingardas e pistolas‑metralhadoras e os seus cães, trabalham cinco mil pessoas na investigação, concepção, experimentação e finalmente no fabrico de armas nucleares. Grande parte do trabalho efectuado nas consolas, nos estiradores, nos laboratórios e nas oficinas é considerado por aqueles que preservam tão ciosamente os seus conhecimentos como informações tão delicadas que só podem ser transmitidas aos escalões superiores do Governo. Demasiado delicadas para serem partilhadas, mesmo que de forma muito vaga, com o público em geral.

         Nove décimos do trabalho efectuado nesse local não são novidade para os cientistas e engenheiros de Los Alamos, Chelyabinsk, Ripault e Lanzhou. Mas esses homens formam um clube muito fechado. Recusam‑se a ajudar os recém-chegados e fecham‑lhes as portas, defendendo‑se daquilo a que chamam a "proliferação" com o arame farpado, as armas de fogo, os cães e principalmente com um manto sufocante de secretismo.

 

         ERA MEIO‑DIA. O Dr. Tariq chegara três horas antes ao posto avançado da brigada de Fao.

         O seu carro, salpicado de lama, estava estacionado no meio dos jipes e dos blindados, a cem metros da pista de aterragem dos helicópteros. Nunca gostara da planície monótona da península de Fao. Ao fim de sete anos de guerra, era uma paisagem do outro mundo, um inferno. O posto avançado fora escavado no solo e estava rodeado de posições de artilharia, linhas de trincheiras e lama.

         O Dr. Tariq era um cientista e como tal desprezava aquele local de confusão e destruição. Estava de costas para a água. Não tinha vontade de olhar para o Shatt‑al‑Arab, a estreita faixa brilhante que separava o seu país da República Islâmica do Irão. Não estava interessado em ver as chamas da torre da refinaria de Abadan para lá dos cascos encalhados dos navios mercantes bombardeados. Esperava, andando para cá e para lá, junto ao automóvel.

         Assim que soubera da morte do Prof. Khan, em Roma, solicitara um encontro com o presidente do Conselho do Comando Revolucionário logo que ele lho pudesse conceder. Na sua qualidade de director da Comissão de Energia Atómica, o Dr. Tariq conhecia bem os meandros da política iraquiana. Sabia da tentativa de golpe de Estado ocorrida há sete semanas e ouvira dizer que nove oficiais da Força Aérea haviam sido executados. Portanto, não ficou surpreendido por o encontro se realizar fora de Bagdade. Sabia que a rotina e o itinerário do presidente eram um segredo bem guardado.

         O Dr. Tariq ensaiara o que ia dizer ao presidente. Todos os membros daquela elite a que ele pertencia sabiam que o presidente detestava más notícias. Mas a morte do Prof. Khan, sem dúvida às mãos de agentes sionistas, e o envio de uma encomenda armadilhada a um dos seus cientistas de Tuwaithah eram crises que tinham de ser enfrentadas. E a fuga dos cientistas estrangeiros que trabalhavam no seu programa era também uma crise. Tal como todos os homens que contactavam directamente com o presidente, o Dr. Tariq tinha verdadeiro pavor do seu amo. Sabia dos desaparecimentos, das torturas e dos enforcamentos.

         Um oficial aproximou‑se dele.

         O Dr. Tariq, um homenzinho de pouco mais de um metro e meio de altura, magro como um junco, empertigou‑se. Levantou os braços para o oficial poder revistá‑lo. Depois, sem protestar, o Dr. Tariq abriu a pasta para ser também inspeccionada.

         Seguiu o oficial, avançando por cima da lama revolvida em direcção aos degraus de betão do posto da brigada para ser conduzido à presença do presidente do Conselho do Comando Revolucionário.

 

         AINDA nem acabara o intervalo do almoço, e Bill Erlich já tivera a sua primeira discussão do dia. Engolira o seu orgulho quando o tinham conduzido até ao gabinete que lhe fora atribuído. Era pouco maior do que um caixote. O mobiliário reduzia‑se a uma mesa, uma cadeira e um telefone, que não devia ser seguro, e o gabinete ficava a uma distância de dois andares e um corredor do Centro de Coordenação de Operações da Brigada de Antiterrorismo, no Comando da Polícia. Mas resignara‑se. Porém, não se resignava ao facto de lhe recusarem o acesso directo à testemunha ocular. Tinham‑lhe dito que não era conveniente que ele falasse com a testemunha. Não sabia até que ponto o intérprete traduzira a sua fúria. Saiu, deixando a secretária tão vazia como a encontrara, e apanhou um táxi para a embaixada.

         Teve de esperar um quarto de hora até que o deixassem entrar no anexo da CIA. Erlich contou o que sabia ao chefe da delegação da CIA. Queria trocar informações, mas sofreu uma desilusão.

         ‑ Não vou entregar‑lhe o nosso dossier, Bill. Não é uma questão pessoal, mas as coisas são mesmo assim. Se eu lhe entregar um dossier, é arquivado no vosso sistema. Quando vocês apanharem alguém, daqui a algumas semanas ou alguns meses, o meu dossier constitui uma prova e tem de ser entregue à acusação. O meu dossier passa a ser do domínio público. ‑ Erlich levantou‑se. Tinha na algibeira a ponta da cigarrilha dentro do saco de plástico. Mas não falou nisso ao chefe da CIA. Este continuou: ‑ Tem de ver as coisas do nosso ponto de vista, Bill. Harry Lawrence era seu amigo, eu sei, mas Harry não era o alvo. O alvo era um iraquiano. Eo que eu penso e o que você pensa. Temos uma missão importante no Iraque. Durante a guerra com o Irão, fizemos todo o possível para evitar que os Iraquianos fossem derrotados pelos ayatollahs no campo de batalha. Demos‑lhes material AWACS; colocámos satélites em órbita só para eles. O inimigo do Irão é nosso amigo, não é verdade? Mas fazemos jogo sujo; mantemos contactos com os inimigos do regime. Não damos publicidade ao facto

         ‑ Investigar um homicídio é fazer publicidade?

         ‑ Você tem de fazer o seu trabalho, está certo, mas não pode fazer ondas.

         ‑ Quero saber a identidade de um homem. Quero apanhá‑lo e acusá‑lo de homicídio voluntário. Com ou sem ajuda.

         ‑ Se continuar assim, ninguém o ajuda.

         ‑ Com o devido respeito, o que eu quero são resultados.

         Erlich saiu sem se dar ao trabalho de fechar a porta. Atravessou o gabinete que dava para o corredor e o portão de segurança. Dirigiu‑se para o edifício principal e para a zona da cave onde se despachava material secreto para os Estados Unidos.

         A rapariga dos Despachos, uma negra alta, a primeira cara simpática que encontrava, disse‑lhe que era do Mississipi e que detestava os Gregos, Atenas, moussaka e retsina. Enfiou o saco de plástico com a ponta de cigarrilha numa pequena caixa de lata à frente dele, selou a caixa e meteu‑a num envelope acolchoado. O pacote foi endereçado à Divisão Laboratorial da sede do FBI. Erlich, tal como todos os outros agentes do FBI, tinha muitas queixas acerca do funcionamento dos serviços, mas o laboratório era do melhor.

 

         O ENVELOPE assinalado com a inscrição PARTICULAR E CONFIDENCIAL ficou toda a manhã por abrir sobre a pasta de Frederick Bissett.

         Bissett passara duas horas no seu gabinete diante do monitor. às 10 e 30, saíra para o corredor e passara mais duas horas e meia no laboratório do H3, onde fora alvo dos sarcasmos de Reuben Boll. Boil perguntou, de modo que todos os técnicos e todos os jovens investigadores do laboratório o ouvissem, quanto tempo faltava para que Bissett acabasse o seu projecto actual ‑ ou seja quanto mais tempo para além do que já se atrasara.

         À hora do almoço, Bissett voltou para o seu gabinete.

         Bebeu o café todo. Depois, apanhou cuidadosamente as migalhas da sanduíche e deitou‑as para o cesto de papéis. Estava decidido a não se apressar. Dera deliberadamente a morada do emprego, em vez da de casa.

Arrumou novamente a caixa das sanduíches dentro da pasta e pegou no envelope. Certificou‑se de que a porta estava fechada. Abriu o envelope. Tinha as mãos a tremer.

         A folha tinha um cabeçalho: ICI, IMPERIAL CHEMICAL INDUSTRIES. Não começou pelo fim da carta: esforçou-se por se controlar. Leu a primeira linha.

 

         Caro Dr. Bissett

                   Agradecemos-lhe a sua carta de 19 de Outubro candidatando-se a um lugar na nossa firma. Pelo que li na sua carta, o seu trabalho no EAA tem sido desenvolvido nas áreas da dinâmica dos fluidos e da física do plasma. Infelizmente, a nossa experiência passada diz‑nos que o trabalho muito especializado desenvolvido no EAA confina os cientistas no domínio de uma investigação pura que tem pouca ou nenhuma relevância para a ciência tal como é praticada na vida civil...

 

         A ciência relevante para Frederick Bissett era um segundo tão fugaz que só os mais potentes computadores o conseguiam registar, em que o explosivo químico era enviado por uma detonação esférica uniforme de encontro ao material fissurável urânio ou plutónio muito enriquecidos ‑, criando várias toneladas de pressão por centímetro quadrado. Baixou a cabeça. As linhas da página esbateram‑se-lhe diante dos olhos.

 

                   Lamentamos informá‑lo de que não estamos em posição de lhe oferecer um lugar em nenhuma das divisões de investigação da nossa empresa.

 

         Sentiu‑se mal. Pegou na carta e no envelope e saiu do gabinete, avançando até ao fundo do corredor. Meteu os papéis na máquina de triturar papel que estava junto da secretária de Carol e depois voltou para o seu gabinete.

         Mais tarde, ouviria o riso de Carol e a voz áspera de Reuben BolI. Estudaria matemática de implosão até ao fim da tarde, depois arrumaria a secretária, pegaria na pasta com a caixa de sanduíches e o termo de café vazios, entraria no carro e voltaria para casa.

 

         O DR. TARIQ era capaz de reagir furiosamente quando era atacado.

         Fora muito prejudicado quando os Sionistas haviam enviado um comando com explosivos a La Seyne‑sur‑Mer, nas proximidades do porto francês de Toulon, para destruir dois reactores que deviam ser expedidos para Tuwaithah quarenta e oito horas mais tarde.

         Isso passara‑se havia doze anos. Dois anos depois, fora novamente prejudicado quando a força aérea sionista, os F‑16 e os F‑15, tinha chegado a Tuwaithah ao pôr do Sol para largar dezasseis toneladas de explosivos sobre o reactor do irak. Lembrava‑se de que se tinha deitado no chão do seu gabinete, na alcatifa, que brilhava com as lascas de vidro das janelas estilhaçadas, e que berrara de raiva. Vinha havia longos anos a tentar reconstituir o programa nuclear.

         E agora os Sionistas atacavam novamente. O Prof. Khan era crucial para a produção da ogiva nuclear iraquiana. Era estrangeiro, mas fora comprado, tal como os franceses e os italianos.

         No posto de Fao, o Dr. Tariq ganhou o dia. O presidente deu ordem para que um helicóptero militar transportasse o cientista de regresso a Bagdade.

         Quando desceu do helicóptero, tinha à sua espera um oficial do Exército, um homem forte e atarracado.

         ‑ Estou às suas ordens, Dr. Tariq ‑ disse o coronel. ‑ Tenho instruções para lhe arranjar tudo o que o senhor quiser.

 

         Ao FIM da tarde, Erlich estava de novo no Aeroporto de Atenas. Por razões protocolares e por boa educação, fora buscar ao aeroporto os agentes do FBI destacados em missão temporária. Iam ficar instalados no mesmo corredor que ele, no anexo residencial da embaixada, e mais tarde discutiriam os pormenores do caso.

         Os três agentes eram todos mais antigos do que Erlich, todos eles tinham já mais de dez anos de serviço no FBI. Estavam os três exaustos:

iam recolher aos seus quartos e tentar descansar para recuperar do desfasamento horário. O que significava que Erlich tinha mais uma noite para trabalhar como independente; depois disso, seria integrado na equipa e teria de fazer o que lhe mandassem. Não tencionava desperdiçar essa noite.

         Pediu ao motorista da embaixada para o levar ao local onde Harry tinha sido morto ‑ a Rua Pirgos.

         Começou pelo lado esquerdo da rua. Foi batendo a todas as portas, conversando com as empregadas, as mulheres, os maridos e os filhos adolescentes ‑ com uma certa dificuldade, pois falava mal o grego, e por vezes entendia‑se melhor em italiano. Sempre que lhe abriam a porta, fazia o mesmo discurso: "Um colega meu, um funcionário da Embaixada Americana, foi morto aqui ontem de manhã. A senhora ou alguém desta casa viu alguma coisa do incidente?" Mas ninguém vira nada nem sabia nada.

         Já estava escuro quando Erlich acabou o lado esquerdo da rua. Atravessou para o outro lado.

         Lembrava‑se daquele portão. Era o portão que ficava em frente do sitio onde Harry morrera. As flores ainda lá estavam. Entrou pelo portão e bateu à campainha.

         - Boa noite, minha senhora. Fala inglês? - Era a mulher que colocara as flores no passeio. ‑ Chamo‑me BilI Erlich e sou agente do FBI. Ontem de manhã, um velho amigo meu, um funcionário da Embaixada Americana, foi abatido a tiro aqui na rua.

         ‑ Pois.

         ‑ As suas flores foram muito apreciadas.

         ‑ Não tem importância.

         A mulher tinha boas jóias e estava muito bem penteada. Era a vigésima oitava casa onde Erlich batia.

         ‑ Estou à procura de uma testemunha ocular, minha senhora. Alguém que tenha assistido à morte do meu amigo.

         A sua interlocutora hesitou.

         ‑ É muito importante para si ter uma testemunha ocular?

         ‑ É.

         ‑ Não quer entrar, Mr.

         ‑ Erlich, minha senhora. BilI Erlich.

         Ela abriu mais a porta. Erlich entrou, limpando muito bem os pés no capacho. Via‑se que havia ali muito dinheiro. Via‑se pelos quadros, pelas cortinas, pelos tapetes. A mulher entrou na sala à frente dele. Estava a dar o Indiana Jones na televisão. Uma cabeça de rapaz espreitou por detrás da orelha de um maple. A mulher desligou a televisão e fez sinal ao rapaz para vir sentar‑se ao colo dela. Era uma criança que devia ter por volta dos onze anos ou talvez menos. A mulher falou em voz baixa com o rapaz em grego e depois voltou‑se para Erlich.

         ‑ Andreas é muito esperto, Mr. Erlich. Tivemos uma rapariga inglesa cá em casa durante três anos a tomar conta dele. Andreas aprendeu a falar inglês com ela.

         Erlich tirou a agenda do bolso interior do casaco.

         O rapaz começou a falar. Fora antes de ele sair para a escola. Estava no jardim da frente com o cão. Vira pelo portão dois homens que vinham a pé pela rua. Depois, apareceu um carro atrás deles que vinha muito depressa, um carro cinzento‑prateado que travou bruscamente.

         Saiu um homem do carro, um homem de pele branca e cabelo louro. O homem tinha na mão uma pistola com um cano comprido e grosso. Segurava a pistola com as duas mãos em frente do peito e afastada do corpo.

         O homem gritou. Os dois homens que estavam à sua frente separaram‑se, reagindo ao grito e à arma.

         Ouviu‑se um tiro, um baque surdo. O homem mais baixo foi o primeiro a ser atingido e depois o homem mais alto foi também atingido.

         O homem da pistola ficou parado a olhar. Depois, o condutor gritou. O homem da pistola correu para o carro, que deu a volta e foi‑se embora.

         Fora assim a morte do seu amigo.

         ‑ O que é que eles gritaram, Andreas?

         ‑ O condutor do automóvel gritou "Colt".

         ‑ Tens a certeza?

         ‑ Colt.

         Erlich acreditou instintivamente no rapaz.

         ‑ Que idade é que ele tinha?

         O rapaz voltou‑se para a mãe.

         ‑ Era aí da idade do Nico.

         ‑ Mais novo do que o senhor, Mr. Erlich ‑ disse a mulher com um sorriso. ‑ Talvez uns vinte e cinco anos.

         ‑ Era alto? Magro ou forte?

         ‑ Não era gordo, era de altura normal.

         ‑ E o cabelo?

         ‑ Era louro, como o do Robert Redford, mas mais curto.

         Erlich calou‑se uns instantes. Assimilava as palavras do garoto e escrevia rapidamente.

         ‑ E o outro grito, o do homem da pistola?

         ‑ Gritou "Ouçam lá".

         ‑ Como é que ele disse isso?

         ‑ Falava como Miss Parsons. Era inglês, não era americano.

         Erlich esforçou‑se por fazer um sorriso.

         ‑ Tens a certeza? É muito importante.

         ‑ Era inglês, Mr. Erlich.

         ‑ Posso perder muito tempo

         ‑ Era inglês.

         Erlich sublinhou as palavras "Ouçam lá" e escreveu em maiúsculas na parte de cima da página INGLÊS.

         Pediu desculpa pelo incómodo. Não tinha dúvidas sobre as afirmações do rapaz, pois antes de entrar para o FBI fora professor e possuía experiência de crianças. Recusou delicadamente o chá ou o whisky que a senhora lhe oferecia e saiu, descendo o caminho até ao portão. Atravessou a rua e, quando chegou junto das flores, baixou‑se e endireitou-as. Depois, continuou rua fora à procura de um táxi.

 

     ‑ É TUDO o que tens, BilI? O testemunho de uma criança?

         Don era um agente federal típico, desde os sapatos bem engraxados até à gravata alargada em volta do colarinho. Da velha guarda, da velha escola. Don afastou o prato do

pequeno-almoço e acendeu o cachimbo.

         - Noventa e nove vezes em cem, uma criança diz‑nos o que nós queremos ouvir ‑ observou Vito.

         Vito andava bem‑vestido demais para parecer um agente da Polícia Federal ‑ pulseira de ouro, camisa desportiva. Recentemente, estivera envolvido no desmascarar de um golpe bolsista em Pittsburgh. Era fantástico terem conseguido infiltrar dois agentes no mundo restrito da Bolsa.

         ‑ Se te fiares no miúdo, és capaz de te enfiares numa rua de sentido unico... no sentido errado ‑ disse Nick.

         Nick, o grego, um americano da primeira geração, dominava perfeitamente a língua e, principalmente, tinha trabalhado em programas de antiterrorismo, sendo um especialista do Médio Oriente.

         ‑ Se for uma rua de sentido único, estamos a perder tempo e trabalho ‑ observou.

         ‑ O rapaz estava a dizer a verdade ‑ afirmou Erlich.

         ‑ Pões as mãos no fogo pela história do rapaz? ‑ disse Don.

         - Sim, senhor, ponho.

         De certeza que lhes tinham dito a todos, antes de virem de Washington, que ele era amigo de Harry Lawrence.

         ‑ Vamos partir do princípio de que a história do rapaz é de confiança. O que é que fazemos a seguir?

         ‑ Temos uma descrição física, temos um nome ou uma alcunha e estou convencido de que o homem é inglês. Temos de começar a fazer perguntas em Londres.

         ‑ Então, vai para Londres ‑ disse Don.

         ‑ Obrigado ‑ respondeu Erlich, com um aperto de mão.

         ‑ Leva‑o de carro ao aeroporto, Nick. E arranja‑lhe o que ele precisar.

         Eles saíram, e Vito levantou as sobrancelhas interrogativamente:

     ‑ Se ele tem razão, é o melhor que pode fazer ‑ comentou Don. - E se está enganado, um bilhete de avião não é nada. Harry Lawrence era amigo dele. Não quero que os sentimentos pessoais das pessoas me atrapalhem a vida. Sentimentos só pela Rita Hayworth, era o que me costumavam dizer.

 

         NAQUELA manhã, Sara Bissett estava com pressa. Nunca havia acontecimentos emocionantes na vida dela, mas naquele dia estava nervosa, até mesmo excitada. Tinha de estender a roupa toda e rezar para que fizesse sol e um ventinho para a secar.

         Nessa manhã, ao contrário do que era costume, Sara tinha um horário a cumprir. Inscrevera‑se numa aula de pintura. Não tinha dito nada a Frederick ‑ o momento não lhe parecera oportuno.

         A culpa era dela. Se não tivesse sido uma adolescente teimosa e difícil, tudo seria diferente. Se não estivesse sempre amuada com o pai e à briga com a mãe, não estaria agora a pendurar as camisas coçadas de Frederick no estendal do minúsculo jardim da sua casa do Jardim de Lilases, em Tadley. Teria casado bem, moraria numa boa casa e os dois filhos frequentariam um bom colégio. Mas a escolha fora dela. Voltara costas à sua classe social.

         Prendeu com as molas a última camisa e foi para dentro. Atravessou a cozinha e a entrada da casa. Precisavam de uma passadeira nova na entrada e nas escadas.

         Há anos que Sara não assistia a uma aula de pintura. Não sabia como é que havia de vestir‑se, mas enfiou umas calças de ganga velhas. Todas as calças de ganga dela eram velhas. Vestiu uma blusa encarnada e um casaco de malha azul largueirão e prendeu o cabelo comprido e preto num rabo‑de‑cavalo com um lenço cor de laranja. Achou que estava bonita, sentia‑se satisfeita e não ia deixar que nada nem ninguém lhe estragasse o dia.

 

         ‑ DR. BISSETT, o problema é que ignorar os factos não resolve nada.

         Eram 9 e 15, altura em que Bissett normalmente já estaria há uma hora sentado à secretária a trabalhar.

         ‑ Se não se importa, vamos estudar outra vez estes números.

         Ele detestava chegar atrasado ao trabalho. Tinha sido educado assim.

         ‑ O seu vencimento de investigador são 17500 libras anuais, não é assim? A sua mulher não está empregada. Não interprete mal as minhas palavras, não quero dizer que ela devesse estar empregada Só que não tem outra fonte de rendimento além do seu ordenado, não é verdade?

         Ele ouvira Carol dizer recentemente que o homem que fazia a entrega de carvão em casa dela ganhava 345 libras por semana. Para carregar e descarregar sacas de carvão e andar numa carrinha pelas aldeias, ganhava mais 440 libras por ano do que um investigador importante, que trabalhava como um mouro na defesa do seu país. A sociedade onde viviam era assim. Não dava valor às qualidades intelectuais.

         ‑ A sua hipoteca neste momento é de 62500 libras, o que é um pouco elevado para o seu vencimento, mas sei que compraram na alta e que as taxas de juro eram mais baixas do que as actuais.

         Tinham‑se mudado para o Jardim de Lilases no Verão de 1988. A casa custara‑lhes 98000 libras. Sabiam que iam ter dificuldade em pagar, e na altura as taxas de juro eram Só oito por cento. Sara declarara que não aguentava mais morar numa das casinhas no fim da aldeia.

         ‑ Muito bem. O seu salário bruto mensal são aproximadamente 1460 libras. Daí tem de deduzir ainda os impostos, o seguro, os descontos para a Previdência e o fundo de pensões e os juros da hipoteca. Calculo que, depois de deduzidas as despesas essenciais, deve ficar com cerca de 600 libras por mês. Mas claro que isso não inclui oempréstimo que pediu no princípio do ano. A amortização São mais 180 libras por mês, sem contar com OS juros. O pagamento dos juros está atrasado e tem também dois meses de atraso na amortização.

         Pedira o primeiro empréstimo para comprar o Sierra em segunda mão e fora obrigado a pedir um novo empréstimo para o reparar. Quando o Mimi de Sara se avariou definitivamente, teve de pedir novo empréstimo, porque Sara precisava absolutamente de um carro. E a dívida aumentou mais ainda quando foi necessário reparar o terraço por cima da cozinha ‑ devia ter processado o homem que fizera o trabalho.

         ‑ Dr. Bissett, custa‑me ter de dizer isto a um funcionário público, mas as empresas privadas estão ansiosas por angariar pessoas qualificadas.

         ‑ O meu trabalho não interessa ao sector privado. E sou investigador, não estou interessado em ser yuppie.

         ‑ Muito bem. Tem esperanças de Ser promovido, de Ser aumentado?

         ‑ Há muitos anos que tenho essa esperança, mas não sou eu que mando nas promoções, e os meus colegas mais antigos são das maiores inteligências do país.

O gerente do banco recostou‑se na cadeira.

         ‑ Tem de fazer qualquer coisa, Dr. Bissett. Isto não pode continuar assIm.

         Sara dizia que tinham de substituir o linóleo do chão da cozinha e que a passadeira da entrada estava indecente. Sara dizia que, se não pudessem ir de férias para um lugar melhor do que no ano anterior, um parque de campismo do País de Gales, onde chovera o tempo todo, não valia a pena sair de casa.

         Bissett levantou‑se. Quando se zangava, falava à moda do seu Yorkshire natal, com o sotaque áspero dos bairros pobres de Leeds. Suara muito para sair desses bairros. Tanto trabalho para agora ter de ouvir os Sermões daquele homenzinho pretensioso.

         ‑ Diga o senhor ao Governo que é preciso fazer qualquer coisa.

         ‑ Ninguém o obrigou a comprar a casa.

         Bissett ficou a olhar para ele.

         ‑ Nunca mais me diga uma estupidez como essa! ‑ Depois de adulto, nunca batera em ninguém; claro que nunca batera em Sara, mas também nunca batera nos filhos. Cresceu para o gerente do banco. Tinha a testa vermelha por debaixo do cabelo castanho encaracolado e fechou os punhos. Ofegava.

         ‑ Calma, Dr. Bissett. ‑ O gerente do banco esperou que Bissett chegasse à porta, e quando se sentiu em segurança, repetiu: ‑ Lamento, Dr. Bissett, mas isto não pode continuar assim.

         Bissett bateu com a porta, e os papéis da secretária estremeceram. O gerente reconheceu de si para consigo que não via como é que o pobre homem podia fazer mais economias e viver decentemente. Mas também não tinha nada que gritar com ele.

 

         O CORONEL ouvira uma vez um inglês a dizer que o que ele sabia de física nuclear se podia escrever numa cabeça de alfinete. Era uma expressão que ainda hoje lhe agradava e que teria usado para descrever os seus conhecimentos limitados sobre o assunto, se não achasse que o homenzinho sentado atrás da Secretária não ia achar graça nenhuma. O coronel já percebera que teria podido empregar a mesma expressão para descrever o sentido de humor do Dr. Tariq ‑ cabia todo numa cabeça de alfinete e ainda sobrava espaço.

         O coronel era um lutador. Na sua juventude, fora pára‑quedista e combatera no Norte contra os rebeldes curdos. Fora aí que ganhara fama. E a defesa heróica das posições ocupadas pelo seu batalhão na estrada de Bassorá para Bagdade, quando as ratazanas iranianas saíam aos milhares dos pântanos, adquirira o seu estatuto actual. Dirigia uma secção da Unidade de Informação Militar, ligada à segurança.

O Dr. Tariq falou‑lhe do assassinato do Prof. Zulfiqar Khan, em Roma, da deserção dos dois engenheiros franceses e dos engenheiros italianos do laboratório, da encomenda armadilhada recebida e endereçada correctamente para aquele mesmo complexo, para o edifício situado ao lado daquele em que se encontravam. O coronel foi ainda informado sobre os esforços feitos pelo Dr. Tariq para tranquilizar os alemães, os austríacos, os outros dois italianos e um sueco. A ferida tinha de ser cauterizada, as deserções tinham de acabar.

         ‑ Vou ser franco consigo, coronel. Não posso perder mais tempo.

         ‑ Claro, Dr. Tariq, compreendo.

         ‑ Se este complexo não tivesse sido bombardeado pelos Sionistas em 1981, já teríamos capacidade de produção de ogivas nucleares. Durante a guerra com os fanáticos de Khomeini, eu não dispunha dos recursos necessários para reactivar o programa após o revés sofrido em 1981. Mas agora tenho esses recursos. O presidente está muito interessado no programa. Mas a minha equipa está incompleta e é por isso que preciso da sua cooperação. Recrutei pessoas no estrangeiro para preencher essas vagas. O Prof. Khan era uma delas. Está a compreender?

         ‑ Claro.

         O coronel não precisava que lhe ensinassem o que era a política do terror. Grande parte do seu trabalho actual consistia em silenciar pelo medo a comunidade de dissidentes exilados no estrangeiro. Silenciá‑los ou matá‑los.

         ‑ Os Sionistas mataram o Prof. Khan e mandaram a encomenda armadilhada para criar um clima de terror entre os estrangeiros que trabalham para mim.

         - O Prof. Khan ia em viagem...

         ‑ Secreta, claro. Mas, como se viu, eles estavam a par do itinerário. Da mesma maneira que sabiam o nome de um membro importante da minha equipa daqui e lhe enviaram a bomba.

         O coronel acendeu um cigarro e soprou o fumo para o tecto.

         ‑ Então, isso quer dizer que tem mais outro problema, Dr. Tariq.

         ‑ Exactamente, coronel ‑ disse o Dr. Tariq. ‑ Há aqui um informador. Tenho de identificar o traidor de Tuwaithah.

 

         O CORONEL deixou para trás o local onde os Israelitas tinham destruído o reactor de Osirak, o monte de ruínas de betão, ainda chocantemente evidente. Ia calado no carro, em vez de trocar algumas graças com o condutor, como era seu costume, pois estava a digerir as consequências de um possível fracasso no serviço a prestar ao Dr. Tariq. O espião de Tuwaithah era um desafio interessante. Mas a contratação de cientistas estrangeiros ultrapassava as suas competências, se bem que um indivíduo que estava disposto a sair de um organismo nuclear do Ocidente para ajudar o Dr. Tariq a produzir a sua bomba atómica tinha de ser um idiota ou um traidor, e, ao fim e ao cabo, os traidores eram a sua especialidade. Para resolver os problemas do Dr. Tariq, tinha de descobrir dois traidores. Um aqui ‑ e oxalá não fosse outro cientista que tivesse de ser substituído ‑ e outro no Ocidente.

 

ERLICH não conseguia imaginar um americano que trabalhasse no estrangeiro e que não sentisse uma ponta de emoção ao subir as escadas da sua embaixada numa capital estrangeira até junto do fuzileiro em uniforme de gala. Esperara apenas quatro minutos, sentado na grande sala de entrada da Embaixada dos Estados Unidos em Londres, na Grosvenor Square, e já ali vinha a funcionária para o atender. Sabia que havia em todas as embaixadas com um gabinete jurídico uma mulher de aspecto maternal que dactilografava os relatórios confidenciais e que vinha cá abaixo receber as pessoas. Aí estava ela, com o cabelo preso num carrapito, de saia e blusa e sapatos rasos, apertando‑lhe a mão e desejando‑lhe as boas‑vindas. Subiram três andares no elevador e percorreram um corredor comprido até chegarem ao portão de segurança que vedava o acesso ao território do FBI.

         Dan Ruane, o adido jurídico em Londres, estava muito bem instalado no seu gabinete, que mais parecia uma divisão da sua casa particular da zona norte de Londres. O gabinete estava mobilado com estantes, uma secretária de estilo georgiano e um cadeirão estofado de cabedal que se inclinava para trás. Os dois agentes cumprimentaram‑se e sentaram‑se.

         ‑ O que é que temos, Bill?

         ‑ Um homem de pronúncia inglesa. Chamado Colt ou conhecido por esse nome. Que trabalha para os Iraquianos. E quase certo que foi contratado para assassinar o dissidente de Atenas. Harry Lawrence foi apanhado por acaso.

         ‑ O que é que sabe do assassino?

         ‑ Mais nada. Pelo menos por enquanto.

     - O que é que diz a gente da CIA de Atenas?

         ‑ Diz que foram os Iraquianos e que ninguém vai mexer um dedo para fazer nada enquanto não se souber ao certo quem é que fez o trabalho.

         ‑ E o que é que você veio aqui fazer?

         ‑ Tenho de descobrir o nome do bandido; e depois quero fazer parte da equipa que for à caça dele.

         - Parece‑me bem. ‑ Ruane tirou da algibeira uma chave presa ao cinto por uma corrente fina. Abriu uma gaveta e tirou de lá uma pequena agenda de cabedal preto. ‑ Sabe quais são as formalidades aqui, Bill?

         ‑ Nunca cá trabalhei.

         ‑ Muito bem, então dê atenção. Aqui em Londres trabalho por intermédio de três organismos... e repare que digo por intermédio. Não sei como é que vocês fazem em Roma, mas aqui é mesmo por intermédio deles. Pelo menos na maior parte dos casos. ‑ Fez um sorriso irónico. ‑ Os três organismos são: em primeiro lugar, os Serviços Secretos de Informação, que trabalham exclusivamente na recolha de informação no estrangeiro, como a CIA. Em segundo lugar, os Serviços de Segurança, que são internos, responsáveis pela contra‑espionagem, e estão muito envolvidos no antiterrorismo. Em terceiro lugar, a Brigada Especial da Polícia Metropolitana, que desempenha as mesmas tarefas dos Serviços de Segurança, mas de uma forma mais visível. E todos esses Serviços ficam furiosos quando começamos a andar por ai como se estivéssemos em nossa casa.

         ‑ Isso quer dizer

         ‑ Quer dizer que sou um agente de ligação, que tenho de trabalhar por intermédio desses tipos. Quer dizer que não posso andar por aí a dar cabeçadas, a não ser que seja absolutamente indispensável.

         Ruane levantou‑se de detrás da secretária e dirigiu‑se para a porta do gabinete com a agenda na mão. Erlich ouviu‑o dar instruções à mulher que o tinha acompanhado até ao terceiro andar, indicando‑lhe três nomes, três números e pedindo‑lhe para marcar entrevistas para esse mesmo dia. Não aceitava desculpas nem queria saber de outros encontros já marcados, queria ter os três encontros nesse mesmo dia.

         Ruane voltou para dentro.

         ‑ Também já tive a sua idade e era ambicioso. Nessa altura, teria dado tudo pela oportunidade que você conseguiu. Se se portar bem, vai longe. Mas se nos zangarmos, quem sofre é você. Não tenho nada contra si, Bill, mas não se esqueça de que eu trabalho nesta cidade e que só posso continuar a trabalhar aqui se me abrirem certas portas. Se me atrapalhar a vida, meto‑o no primeiro avião para Atenas. Entendido?

     - Entendido, Dan.

 

         O APITO da chaleira e a campainha da porta soaram ao mesmo tempo. O major Roland Tuck praguejou baixinho. A enfermeira Jones tinha muito que fazer, e ele apreciava a companhia dela nos poucos minutos que passavam juntos a tomar uma chávena de chá quando ela descia do quarto da doente. Deixou‑a na cozinha e atravessou o hall, com o cão à perna. O cão ia atrás dele até à porta sempre que tocavam à campainha, como se estivesse à espera do regresso do dono.

         Estava um homem lá fora no alpendre, olhando em volta. Não havia nada para ver, porque o relvado e o caminho que levava à porta de Manor House estavam uma desgraça. As folhas não tinham sido varridas e o saibro estava cheio de ervas. Viu atrás do rapaz uma carrinha de uma empresa de limpeza.

         ‑ Major Tuck?

         ‑ Sim.

         O homem olhou novamente à sua volta, como se alguém estivesse a espiá‑lo.

         ‑ Tenho uma carta para si.

         ‑ Desculpe, amigo. Faça favor de entrar.

         O correio era sempre diferente, com um disfarce diferente. O homem entrou atrás dele. Naquele ano tinha recebido duas cartas. Estava sempre ansioso por notícias, mas, por outro lado, as cartas tinham o efeito de perturbar a rotina tranquila de Manor House. Mas no final de contas o rapaz era filho deles. Não podiam negá‑lo. O correio tirou um envelope de uma algibeira interior e entregou‑o a Tuck.

         Tuck segurou no envelope, fechando a mão com força e amarrotando o papel.

         ‑ Posso mandar uma resposta por si? ‑ perguntou.

         ‑ Pode Ser.

         O major deixou o homem admirar a cabeça de cabrito‑montês pendurada por cima do relógio da entrada. Foi para o escritório e fechou a porta. Abriu o envelope e leu as quatro folhas da carta, escrita na letra do filho. Sentou‑se à secretária, um móvel de estilo francês, e pegou numa folha de papel. O rapaz não prestava, mas tinha o direito de saber que a mãe estava doente. Talvez Louise já nem chegasse ao Natal. Dobrou a folha de papel e escreveu uma única palavra no envelope: Colt.

Voltou para a entrada.

         ‑ Se não se importa, pede às pessoas que o mandaram para fazerem o possível para que o meu filho receba esta carta.

         Acompanhou o homem até à porta. Ficou parado durante uns instantes, com a mão no ombro do correio, como se ele fosse uma ligação, ténue embora, com o filho. Fechou a porta e ouviu o motor a arrancar lá fora. Não lhe parecia que estivessem a vigiar a casa nesse dia. Quando o pêlo do cão se eriçava e o animal começava a ganir e a arranhar a porta das traseiras, era porque estava alguém a vigiar a casa. Voltou para a cozinha. A enfermeira Jones era Simpática e tinha feito o chá.

         ‑ Como é que ela está?

         ‑ Está a perder a vontade de lutar... mas o senhor sabe isso melhor do que eu, major.

         ‑ Pois é.

         Ficou sentado à mesa da cozinha, apertando as mãos em volta da xícara. A enfermeira disse‑lhe quando é que voltava e que não valia a pena acompanhá‑la até à porta.

         Depois de ter acabado o chá, subiu lentamente as escadas. O rapaz tinha‑se desencaminhado e talvez a culpa fosse dele. Os criadores de galgos ou de cães de caça diziam que não havia cães maus, havia era donos maus e treinadores maus. Nestes últimos meses, depois de Louise adoecer, ele sentia muitas vezes remorsos. Conhecia muita gente na aldeia, mas quase não tinha amigos. Era o mal de viver na grande casa de pedra, Manor House, já fora da aldeia, escondida da estrada pelas árvores. Quando a mulher, Louise, começou a piorar, não tinha amigos que pudessem partilhar com ele o desgosto que o filho lhe causava. Na sua juventude também fora aventureiro, mas graças a isso fora condecorado pelo seu soberano com a Cruz Militar. Nos seus momentos de desespero, Tuck pensava que o filho saía ao pai.

         Parou à porta do quarto da mulher. Era o quarto que partilhavam há trinta anos, desde que ele tinha herdado. Agora dormia no quarto ao lado, o quarto de vestir. Parou para ter tempo de disfarçar a tristeza que o invadira. Quando entrou no quarto, sorria.

         ‑ Uma boa notícia, ma petite fleur. Uma carta daquele teu maroto, do Colt. ‑ O quarto estava escuro, com as cortinas corridas até meio, mas mesmo assim ele viu os olhos dela a brilharem. Foi até junto da cama e sentou‑se, pegando na mão magra da mulher. ‑ Vou ler‑te o que diz o rapaz

 

         ERLICH não conhecia os Ingleses, nunca trabalhara com eles, e achou que este devia ter fugido do Teatro Nacional, que ficava mais adiante, na mesma rua.

         Estavam num pub das margens do Tamisa, a dois passos da Century House, a sede dos SSI, Serviços Secretos de Informação britânicos.

Dari Ruane, o adido jurídico, advertira‑o antecipadamente de que os SSI não iam deixá‑lo entrar no edifício da sede.

         Percy Martins, o tal inglês que mais parecia um actor, usava camisa de seda cor‑de‑rosa e um laço às pintas de um verde ácido. Era velho e pretensioso. Estavam sentados na sala do bar, apinhada de gente, que Erlich achou um lugar muito pouco apropriado para se encontrarem. Tinham tido de se sentar tão perto uns dos outros que ele via perfeitamente cada ruga de aborrecimento da cara do outro. O homem parecia achar que tudo o que lhe diziam era terrivelmente desinteressante e não merecia a sua atenção.

         Erlich pedira uma água Perrier, e Ruane, um sumo de tomate. O inglês bebeu dois grandes gins com água tónica. Erlich indicou‑lhe o nome de Colt e o outro disse que ia verificar.

         Lá fora, enquanto olhavam para o homem que se afastava pelo passeio, Ruane comentou:

         ‑ Lá porque falam a mesma língua do que nós, não pense que fazem as coisas da mesma maneira. A CIA, por exemplo, tem uma morada e uma tabuleta na saída da auto‑estrada. Mas aqui as pessoas não são assim. São todas muito secretas.

         ‑ E são todas assim tão exóticas?

         ‑ Bom, o aspecto é exótico, mas por debaixo dessa plumagem conspícua esconde‑se um pássaro muito ambicioso e muito prático, como você vai ter ocasião de constatar. Percy Martins organizou e dirigiu uma missão ao vale de Bekáa e conseguiu apanhar um tipo muito perigoso.

         ‑ Peço desculpa se falei demais ‑ retorquiu Erlich friamente.

 

         A CARTA do major Tuck ao filho foi transmitida por fax, em código, para o Ministério da Defesa de Bagdade. Todos os assuntos que diziam respeito a CoIm Olivier Louis Tuck eram aí tratados. Quando o major acabou de aquecer o caldo para levar para cima e de fazer o ovo mexido que seria o seu jantar, a carta já tinha sido entregue no departamento do coronel.

 

         REUBEN BOLL estava à porta do gabinete de Bissett. A sua voz forte ressoava no pequeno compartimento e ouvia‑se na outra ponta do corredor, no gabinete onde Carol reinava sobre as funcionárias admnistrativas.

         ‑ Quer fazer o grande favor de me dizer quando é que o seu material vai estar pronto?

         Bissett não respondeu. A pressão aumentava de mês para mês. O Programa Trident era a causa de toda aquela pressão, porque esse sistema de mísseis nucleares lançados de submarinos era Prioritário. Era tudo sacrificado ao Trident. O projecto de Bissett fora relegado para segundo plano. Tinham‑lhe tirado, a ele e aos seus colegas, tempo de utilização do laboratório e dos computadores, espaço para experiências, instalações. A falta de pessoal era outro factor desfavorável. O EAA tinha dificuldade em recrutar diplomados jovens, que ganhavam uma vez e meia ou duas vezes mais no sector privado.

         ‑ Frederick, perguntei-lhe quando é que o material vai estar pronto.

         Bissett estava completamente desanimado.

         ‑ Não tarda, Reuben. Estou a fazer todo o possível.

         ‑ Tenho uma reunião esta manhã. O que é que lhes digo?

         ‑ Diga‑lhes o que raio quiser.

         Boli saiu, batendo com a porta. Era disparate fazer aquilo, porque quem ia redigir, na semana seguinte, as avaliações anuais sobre o pessoal era BolI.

 

- MUITO prazer em vê‑lo, Dan.

         ‑ O mesmo digo eu, James.

         Erlich recostou‑se na cadeira, que era incómoda, mas pelo menos tinham‑nos deixado entrar no edifício dos Serviços de Segurança. Ele e Ruane haviam atravessado o Tamisa e estavam numa rua próximo da embaixada. Já vira o edifício sem saber o que era. Estava a aprender. A lição era que nem os Serviços Secretos de Informação nem os Serviços de Segurança gostavam de publicidade. Não havia nenhuma tabuleta na porta, só número.

         ‑ Este é Bili Erlich, do FBI ‑ apresentou Ruane.

         ‑ James Rutherford. Muito prazer.

         Erlich olhou para Rutherford, que estava atrás de uma mesa sem nada em cima. Viu um homem forte, de ombros largos, pescoço grosso e uma farta cabeleira preta ‑ devia ser da idade dele, a meio da casa dos trinta. Estava vestido com umas calças de bombazina verde‑escuras, uma camisa de quadrados sem gravata e uma camisola cor de ferrugem.

‑ Muito bem, vamos ao que interessa ‑ disse Ruane. ‑ Harry Lawrence, um agente da CIA, morto a tiro em Atenas. Estou a ir depressa demais para si?

         ‑ Li a notícia.

         ‑ Mas o pior é que a pista nos trouxe até aqui. Conte‑lhe, Bili.

         Erlich disse a Rutherford tudo o que sabia sobre o assassino que falava com pronúncia inglesa e a quem tinham chamado Colt.

         ‑ É tudo?

         ‑ Por enquanto, é.

         Rutherford não tinha tirado apontamentos. Limitara‑se a abanar a cabeça. Lá fora, no passeio, Erlich disse:

         ‑ Obrigado, Dan, mas o tipo não me pareceu muito entusiasmado.

         Ruane reagiu irritadamente:

         ‑ Para a idade que tem, é do melhor que existe. Pode ser um bom amigo. E não lhe conte as suas histórias da guerra, porque ele ia achar que eram uma brincadeira de crianças.

 

         ‑ MAS TEM de vir connosco! ‑ insistiu Debbie Pink.

         Sara abanou a cabeça e fez uma careta.

         ‑ Não posso.

         ‑ Sara, somos um grupo de donas de casa de meia‑idade que se entretêm a fazer uns desenhos e umas pinturas quando os maridos estão a trabalhar. Nenhuma de nós neste grupinho tem sequer um quarto do seu talento. Não pode ser!

         ‑ É impossível.

         ‑ Vamos depois de termos levado os miúdos à escola e estamos de volta antes de eles sairem ‑ continuou Debbie.

         Sara voltou‑se e olhou pela janela. Estavam na casa de jantar da casa de Debbie. Viu o relvado bem tratado por detrás da grande janela de sacada e a fila de faias ao fundo do jardim. Era uma casa grande e o jardim devia ter quase um hectare.

         ‑ Há algum problema? É por sermos amadoras?

         As aulas eram em casa de Debbie. Quando Sara telefonara, em resposta ao anúncio pregado na placa dos anúncios do correio de Tadley, não se interrogara sobre o lugar onde se realizariam as aulas. Queria só recomeçar a desenhar e a pintar. Mas sentia‑se de fora. Morava num bairro económico de Tadley, e o marido trabalhava no Estabelecimento, atrás de Falcon Gate. Não se tinha lembrado de que podia estar a aproximar‑se novamente do estrato social de que se tinha afastado quando saíra de casa. Mulheres ricas, com maridos ricos, que apenas pretendiam entreter‑se duas vezes por semana. E ainda por cima gostava delas ‑ isso é que era o pior.

         Depois da aula, almoçavam; no primeiro dia, salmão cozido frio e no segundo rosbife de primeira, também frio e acompanhado com vinho. Cada aula custava 5 libras. E ainda tivera de comprar os materiais ‑ aguarelas, adquiridas em Reading com o cartão Visa. Podia ter comprado uns ténis para cada um dos miúdos com o dinheiro que tinha gasto nas aguarelas. O grupo ia a Londres numa carrinha de passageiros fazer uma visita à Tate Gallery. Só o transporte eram 15 libras por cabeça.

         Fora tudo um erro lamentável. Ficou para trás depois do almoço. Tinha de falar com Debbie depois de as outras terem saído. Durante o almoço, haviam conversado o tempo todo da visita à Tate.

         ‑ Não tem nada a ver com o meu talento...

         Era uma questão de dinheiro. Voltou‑se novamente para Debbie. Sentia‑se trapalhona com os jeans e a bata de pintor suja. As outras mulheres vestiam‑se em boutiques. O marido de Debbie era dono de uma empresa de software dos arredores de Newbury.

         ‑ É o raio do dinheiro, não é? ‑ perguntou Debbie compreensivamente. Sara assentiu. ‑ Bom, então tenho uma solução ‑ continuou Debbie. ‑ Você vai de graça à Tate porque é o nosso guia. E aqui também não paga nada, porque precisamos de um modelo, e você vai ser o nosso modelo. É a mais bonita de todas. Vai ser óptima.

         Sara tinha tanta vontade de se integrar no grupo que não foi capaz de resistir.

         ‑ Não sei

         ‑ Não tem vergonha, pois não?

 

         O INSPECTOR‑CHEFE da Brigada Especial não era propriamente um dandy. Parecia que andava com o mesmo fato havia três dias e três noites sem o despir nunca. Mas Erlich não se deixou impressionar.

         Ruane e Erlich estavam num pequeno gabinete do quarto andar da New Scotland Yard.

         ‑ O que é que posso fazer pelos senhores?

         Erlich começava a estar habituado àquela rotina. Já era capaz de passar ao essencial em meia dúzia de palavras: o homem tinha pronúncia inglesa e era de raça branca. Tinha vinte e tal anos e cerca de um metro e setenta e cinco de altura, olhos azuis e cabelo louro e respondia pelo nome de Colt.

         ‑ Um inglês mata a tiro em Atenas um agente da CIA e um escritor iraquíano.. um cenário muito estranho, Mr. Erlich ‑ comentou o inspector‑chefe ‑ Qual foi o motivo?

         ‑ Terrorismo a soldo do Iraque. Na nossa opinião, o vosso compatriota era um assassino contratado.

         ‑ Diz que foi com um único tiro, que acertou na cabeça a doze passos? Um rapaz muito interessante.

         ‑ Quero uma identificação ‑ interjectou Erlich.

         ‑ Claro que quer. Um inglês que trabalha para os Serviços de Informação Iraquianos? Se conseguirmos descobri‑lo, penso que também vamos querer ter uma conversa com ele. Se o conseguirmos descobrir.

         ‑ Só peço que façam o possível - disse Erlich.

         ‑ Vou fazer o que puder. Não prometo nada.

 

         COLT foi escoltado até ao gabinete do coronel.

         O coronel convidou‑o a entrar e ofereceu‑lhe um cigarro. Colt sentou‑se em frente dele. Recusou o cigarro, mas acendeu uma cigarrilha. O coronel fez‑lhe um grande sorriso.

         Colt absteve‑se de perguntar porque é que fora chamado à Secção de Informação do ministério. Já tinha aprendido que eles não gostavam de perguntas, só queriam respostas para as suas próprias perguntas. Estremeceu. Lá mais adiante, no mesmo corredor para onde dava o gabinete do coronel, um homem gritara, um grito horrível de pura agonia, e depois fez‑se novamente silêncio. Colt já tinha expulsado o som da sua cabeça, e o coronel nem sequer deu sinais de o ter ouvido. Colt conhecia o som; estava a par dos métodos do regime que o acolhera.

         ‑ Colt, quer falar‑me do seu pai?

         Colt começou a falar em voz inexpressiva, recalcando todas as emoções que poderia sentir.

         ‑ Pertence àquilo a que chamamos em Inglaterra uma boa família. Tem setenta anos. Ser de boa família hoje em dia não quer dizer nada, e o dinheiro necessário aqui há alguns anos para ir aguentando as coisas agora não chega para nada. O meu pai e a minha mãe moram numa pequena aldeia do Wiltshire, num daqueles casarões de campo cheios de correntes de ar. A casa está a cair aos bocados. A minha mãe é francesa, eles conheceram‑se durante a guerra. A verdade é que todas as coisas boas da vida do meu pai aconteceram durante a guerra. Era oficial do Exército e foi para França com a Força Expedicionária. Já deve ter ouvido contar que foram eles que retiraram o exército das praias de Dunquerque. Conseguiram evacuar a maior parte dos homens, mas a retaguarda e os feridos ficaram para trás. O meu pai estava na última linha de protecção da praia. Quando percebeu que iam render‑se no dia seguinte, fugiu da sua unidade. Acho que pode dizer‑se que desertou. Onze meses depois, estava de volta a Inglaterra. Tinha atravessado a França e a Espanha para ser repatriado. Nessa altura, criaram em Londres uma coisa chamada Executivo de Operações Especiais e recrutaram o meu pai. Nos três anos seguintes, ele foi lançado duas vezes de pára‑quedas na França ocupada. Nalgumas regiões de França, houve uma altura em que ele era uma personagem lendária. Era um homem dos explosivos. Dinamitava agulhas da via férrea, cabos de alta tensão, pontes. Quando mandaram para lá mais homens para trabalharem com ele, não deu resultado. Era muito independente, nunca trabalhou bem em equipa. Desde que aparecessem os aviões que lhe lançavam os explosivos, estava‑se nas tintas para o resto da guerra. Quando a guerra acabou, foi condecorado pelos Ingleses com a Cruz Militar, e os Franceses deram‑lhe a Cruz de Guerra. Foram os melhores tempos da vida dele e tudo o resto veio em segundo lugar.

         ‑ Tem orgulho nele?

     ‑ Estávamos sempre a discutir... dia e noite.

E o seu pai, tem orgulho no filho?

         Colt lembrava‑se perfeitamente do dia em que estivera pela última vez em Manor House ‑ o dia em que saíra de casa. A mãe chorava enquanto revolvia tudo à procura de dinheiro para lhe dar. O pai seguira‑o de divisão em divisão, meia dúzia de passos atrás dele, durante toda a tarde. Quando fora avisado por um telefonema de que Micky e Sissie haviam sido presos, não tivera outro remédio senão fugir. Certamente haveria qualquer coisa no apartamento que levaria a Polícia até ele. O pai não lhe dissera uma única palavra durante toda a tarde, limitara‑se a andar atrás dele pela casa. A mãe acenara‑lhe na despedida, mas o pai não.

         ‑ Duvido que ele considere ter alguma coisa de que se orgulhar.

         O coronel empurrou a transcrição decifrada da carta por cima da secretária. Colt leu a carta escrita à pressa pelo pai nessa mesma manhã.

         ‑ Tenho de ir a casa, meu coronel.

 

         ERLICH estava sentado no seu gabinete de trabalho, que ficava perto da embaixada. Ainda faltava meia hora para ir jantar com Dan Ruane.

         Na véspera, passara uma hora numa pequena livraria da Curzon Street e saíra de lá com uma edição de bolso do Rosenberg, de Pasons. Partira de Roma tão à pressa que se esquecera de meter na mala um dos livros de poesia que o acompanhavam sempre nas suas viagens. Agora, enquanto esperava que anunciassem da recepção a chegada de Ruane, lembrou‑se de repente do pai, que nunca devia ter ouvido falar de Isaac Rosenberg, um poeta inglês que morrera nos últimos dias da "guerra que ia acabar com todas as guerras". O pai morrera num lugar chamado Duc Co, algures nas montanhas do Centro do Vietname.

         Pensou no pai, que morrera a milhares de quilómetros de casa, na morte cruel de lsaac Rosenberg e em Harry Lawrence, o amigo cuja morte ele podia vingar. E em Elsa Lawrence e nos filhos. Tinha feito uma promessa e não podia voltar atrás.

         O telefone tocou: Ruane esperava‑o lá em baixo.

 

AQUELE era o dia de sorte de Justin Pink ‑ era o que ele havia de dizer mais tarde.

         A sua oficina, como lhe chamava, estava instalada no sótão da garagem. às vezes, ficava lá a trabalhar, em vez de ir para a fábrica, em Newbury. Nessa manhã, não tinha precisado de ir à fábrica, pois tratava da papelada e dos contratos na oficina.

         Justin Pink era um homem que vencera na vida. Dava‑se conta disso sempre que vestia um fato de um alfaiate de Savile Row e punha uma camisa nova, com o seu monograma bordado no peito. A gravata era de seda e tinha o cabelo bem tratado. Sentia‑se vibrantemente vivo. Atravessou o espaço que mediava entre a garagem e a sua enorme casa de tijolo.

         Naquela noite, ele e Debbie iam jantar a casa de Wally e Fiona Simpson. Wally telefonara a dízer que o Jantar era de smoking, e ele esquecera‑se de avisar Debbie. Dirigiu‑se para a porta da casa de jantar. Nunca tinha assistido a uma aula de pintura de Debbie.

         Ficou assombrado.

         Espreitou por cima dos ombros de Alice, Susie e JilI. Tinham encostado a mesa à parede e o fogo crepitava na lareira. As mulheres estavam sentadas em semicírculo, todas voltadas para o lume. Alice, Susie e JilI estavam de costas para ele. Bea estava à esquerda, e Ronnie e Debbie, à direita. Quando ele abriu a porta, reagiram todas como se tivesse atirado uma granada para dentro da sala e depois ficaram paralisadas.

         Ele olhou para uma mulher que estava sentada numa cadeira dura, sem nada em cima do corpo, completamente nua. Era uma mulher muito bonita, com um ar descontraído. Ele fitou‑a nos olhos, mas ela não desviou o olhar. Estava convencido de que Debbie e as amigas pintavam flores, taças de fruta ou paisagens. Os olhos da mulher continuavam fitos nos dele.

         Ouviu a voz de Debbie, tranquila e divertida.

         ‑ Vai‑te embora, Justie, seu velho bode.

         Resmungou qualquer coisa para ela, pedindo‑lhe para vir falar com ele, e recuou, saindo da sala. Lá dentro, Bea chefiava o coro de gargalhadas e risinhos.

         Debbie veio ter com ele, pegando‑lhe na mão e levando‑o até à porta da rua.

         ‑ Quem é aquela? ‑ perguntou Justin.

         Debbie fez um grande sorriso.

         ‑ Pateta. Nunca ouves nada do que eu digo. Já te falei da Sara.

         ‑ Mas não me disseste que ela fazia strip‑tease.

         ‑ Já te disse que ela é casada com um desgraçado de um cientista de Aldermaston e que não tem um tostão. Serve‑nos de modelo para não pagar as aulas.

         Debbie deu‑lhe um beijo e afastou‑se.

         Justin Pink já estava no cruzamento da auto‑estrada quando percebeu que se esquecera de lhe dizer que ojantar era de smoking.

 

         COLT foi escoltado pela Polícia Militar até ao gabinete do coronel. Estava cheio de sorte, porque nessa manhã o coronel recebera um relatório elaborado pelo Ministério dos Transportes e da Aviação, em colaboração com o Ministério das Finanças.

         Foi indicado a Colt um alvo e uma morada. E foi‑lhe mostrada a fotografia de um ladrão, um inimigo do Estado.

         Foi assim que Colt conseguiu um bilhete de avião para Londres.

 

         ERLICH considerava que a semana anterior, esperando na secção do adido jurídico da embaixada em Londres, fora a mais monótona dos seus oito anos no FBI. Viera a Londres para tentar apressar uma investigação, e a investigação estava parada. Efectivamente, tinham‑lhe dito para ficar sentado à espera. E ele fizera isso mesmo durante uma semana.

         Pusera os Serviços Secretos de Informação, os Serviços de Segurança e a Brigada Especial a vasculharem nos computadores à procura de um inglês chamado Colt que matava pessoas a soldo da República do Iraque. Mas ao fim de uma semana em Londres, ali estava ele sem ter avançado um centímetro na solução do caso do assassínio de llarry.

         ‑ Não se importa de vir até aqui, BilI?

     ‑ Voujá.

         Dan Ruane só falava no seu próprio gabinete.

         ‑ Desta vez, parece que está com sorte, Bili. A Brigada Especial contactou‑nos. O melhor é ir até lá.

         ‑ Óptimo. Obrigado.

         ‑ Não é grande coisa, mas é melhor do que nada. Eles dizem‑lhe o que descobriram.

 

         BISSETT andava satisfeito porque trabalhara muito e bem durante toda a semana anterior, enquanto Reuben BoIl gozava os seus últimos dias de férias. Até conseguira meia hora do tempo de Basil Curtis. Fora o momento de glória da semana estar sentado no gabinete de Basil e mostrar‑lhe os problemas com que se debatia. Basil era formidável.

         Mas isso fora na semana anterior; naquela manhã, o azar voltara. O Sierra não queria pegar. Nem um único ruído, nem sombras de uma faísca. Inevitavelmente, ele afogou o motor, e depois teve de ficar à espera antes de tentar novamente ‑ e o carro continuava a não dar sinais de vida. Teve de esperar até às 9 horas para telefonar para a garagem e disseram‑lhe que nessa manhã não tinham tempo e que iam ver se passavam da parte da tarde. Foi obrigado a ir a pé até Falcon Gate. O polícia do ministério que verificou a sua identidade era mais um daqueles idiotas com ares superiores. A gabardina de Bissett estava encharcada e ele molhado como um pinto quando saiu da carrinha, junto da área H. E Carol insistiu para que ele levasse a gabardina para o seu próprio gabinete para não ficar a pingar no cabide da entrada.

         Bissett estava duas horas e meia atrasado. Avançou em bicos dos pés pelo corredor até à porta do seu gabinete.

         ‑ Frederick?

         ‑ Sim, Reuben.

         ‑ Esperava encontrar o seu relatório na minha secretária.

         ‑ Está quase, Reuben ‑ disse Bissett.

         ‑ Espero que tenha feito alguns progressos na minha ausência.

         Reuben BolI devia ter estado nos Açores ou em Tenerife. Parecia uma rã cozida, debruçado sobre a secretária e sorrindo com um ar satisfeito.

         ‑ Falaram para si do Departamento de Explosivos. Tanto quanto percebi, você anda atrás deles há duas semanas. Eu disse‑lhes que você chegava dentro de meia hora, mas isso já foi há uma hora.

         Bissett avançou pelo corredor e abriu a porta do seu gabinete. Atirou a pasta para um canto e bateu com a porta com toda a força.

 

O CONTRATO era de 1,31 milhões de libras, muito dinheiro para a empresa de que Justin Pink era proprietário e gestor. Já ia no seu segundo gin, e aqui os gins eram muito fortes.

         Justin estava com o adido comercial do Iraque e o adjunto deste, e o encarregado de negócios viera ter com eles. Justin sabia perfeitamente que o software se destinava ao Ministério da Defesa, mas a papelada apresentada ao Departamento do Comércio e Indústria dizia que o cliente era o Ministério da Agricultura; as regras do Departamento do Comércio e Indústria estatuiam que só podiam ser exportados para o Iraque produtos que não se destinassem a fins militares. Na opinião de Pink, era uma hipocrisia típica da parte do Governo queixar‑se da ineficiência dos exportadores e ao mesmo tempo semear toda a espécie de entraves no seu caminho. Se o contrato fosse cem por cento legal, só lhe pagariam metade dos 1,31 milhões de libras que ia receber. Mas o facto de a transacção não ser legal era ainda mais emocionante para Pink. Sabia que era um delito que podia ser punido com uma pena de até sete anos de prisão. Mas Justin Pink gostava de emoções fortes.

         Andavam outros funcionários menores à volta deles e Pink era o centro das atenções. O adido comercial e o encarregado de negócios pareciam estar suspensos das suas palavras. Tinham os olhos fitos nele, com uma expressão ansiosa. Sim, era o seu dia de sorte ‑ hoje, ele é que falava e os outros ouviam‑no.

         ‑ Sabem que mais? Esta manhã entrei na sala às nove e meia da manhã para me despedir da minha mulher... E encontrei uma rapariga sentada em frente da lareira completamente nua. Não há dúvida de que o meu dia começou bem.

         ‑ Posso ir visitá‑lo a sua casa, Mr. Pink? ‑ perguntou o adido.

         ‑        Uma rapariga sensacional. Nem pestanejou. A minha mulher organizou um curso de pintura para as amigas e ela era o modelo. Pink achou que estava a deslumbrar o seu público e que queriam que ele continuasse. ‑ É casada com um tipo - Desculpem, devia ter explicado que moro muito perto do Estabelecimento de Armamento Atómico. Parece que a rapariga não tem onde cair morta e por isso vai posar uma vez por mês, ou coisa assim, para a minha mulher e as amigas dela, e em troca assiste às aulas sem pagar nada. Nunca mais me apanham aqui a esta hora, pelo menos nos dias das aulas de pintura...

         ‑ Não tem onde cair morta...?

         ‑ Quer dizer que não tem dinheiro. É espantoso, mas a verdade é que alguns dos melhores cérebros científicos de Inglaterra estão metidos no Estabelecimento a ganhar salários de trabalhador rural.

     ‑ Extraordinário ‑ comentou o adido comercial. ‑ No nosso país, os cientistas são tratados com o maior respeito.

         Se calhar, é um cientista de primeira categoria e a família vive mal. Mas se a mulher dele tem de ir posar nua para a minha sala, não me posso queixar, não é verdade?

Pink não reparou no homem que estava atrás dele. Quando saiu da embaixada, um major que trabalhava exclusivamente em questões de informação estava a redigir um relatório para mandar para Bagdade. E o relatório iria parar directamente à secretária do coronel.

 

         ‑ SENTE-SE, por favor.

     Erlich sentou‑se.

     ‑ O que é que descobriram?

         Fora tão depressa para a Scotland Yard que chegara ao encontro vinte e cinco minutos adiantado. Deixaram‑no à espera, e à hora exacta da reunião levaram‑no para um gabinete parcamente mobilado do quarto andar.

         O inspector‑chefe tirou o cachimbo da algibeira, encheu‑o lenta e metodicamente e acendeu‑o; quando Erlich já achava que o gabinete estava perigosamente cheio de fumo, o outro pegou num dossier fino que estava em cima da secretária.

         ‑ Temos aqui um movimento chamado Frente de Libertação dos Animais ‑ disse. ‑ Estamos num país livre e as pessoas podem protestar contra o comércio de peles, a vivissecção e as experiências com animais vivos. Esta gente fazia tudo isso e também costumava atirar cocktails Molotov e perseguir as pessoas que trabalhavam em laboratórios onde faziam experiências com animais. Há dois ou três anos, a FLA começou a ir longe demais. Atearam incêndios em dois grandes armazéns, puseram uma bomba debaixo de um automóvel, que não explodiu, e espancaram um cientista que estava a tentar descobrir uma cura para o cancro. Criámos uma unidade especial, o Índice Nacional dos Direitos dos Animais, mas aqueles idiotas tinham uma boa segurança e um sistema eficaz de células estanques. Era muito difícil infiltrarmo‑nos e levámos muito tempo a descobrir fosse o que fosse. Finalmente, tivemos sorte com uma casa abandonada da costa sul que revistámos há dois anos. Encontrámos um conjunto de iniciais e acabámos por conseguir identificar todos os nomes. Quatro homens e duas mulheres. Prendemos três dos homens e uma mulher. O quarto homem era um rapaz chamado Tuck.

         ‑ Colt?

     ‑ Coim Olivier Louis Tuck.

         ‑ Muito obrigado ‑ disse Erlich.

         Um detective jovem interceptou‑o à saída do gabinete.

         ‑ Mr. Erlich?

         ‑ Sou eu.

         ‑ Um tal Mr. Rutherford quer falar consigo. Disse para o senhor ir ter com ele ao edifício dos Serviços de Segurança, na Curzon Street. E para entrar pela porta lateral.

 

         No BOLSO interior do anorak, ele levava o passaporte que o coronel lhe dera. Decorara o número de telefone e a morada do contacto.

         Colt voltava a casa, e a sua casa era apenas o quarto onde a mãe estava a morrer. O coronel não precisava de pressioná‑lo para voltar para Bagdade depois de ter cumprido a sua missão e visitado a mãe. Ele era um fugitivo à justiça do seu país. Sabia das penas a que tinham sido condenados os seus camaradas: doze anos para os homens e sete para a rapariga.

         O seu país só tinha para lhe oferecer a mãe moribunda e doze anos de prisão; claro que voltava para Bagdade. Quase se sentia grato ao coronel. Gravitara acidentalmente para a órbita do coronel. Viera num petroleiro que atracara ao terminal petrolífero do porto do Kuwait, agradecera ao comandante, que o deixara pagar com trabalho a passagem desde Perth, na Austrália, e desembarcara. Abandonara o petroleiro porque a grande coberta de proa lhe começara a parecer também uma prisão.

         O Kuwait estava cheio de compatriotas seus, o que era mau para Colt, por isso ele apanhara boleia até à fronteira, entrando no Iraque. Sorrira aos guardas da fronteira e continuara a andar, com a mochila a tiracolo, até que alguém o tinha agarrado pela gola e atirado a pontapé para uma cela. Magoado e ensanguentado, depois de vários dias de interrogatório no chão de uma cela da base de segurança pública de Bassorá, Colt fora encontrado pelo coronel, que o libertara.

         Colt raramente mentia. Contara a sua história ao coronel por entre os lábios inchados e os dentes partidos, e o coronel achara graça. Levara‑o para o seu bungalow e mandara‑o ensinar inglês a dois adolescentes gorduchos e mimados. E ali estava Colt feito professor, quando fora sempre o pior aluno da aula. Fora retirado de uma cela de prisão e recebera o cargo de professor de inglês dos filhos do coronel, porque o coronel gostara daquele homem que era capaz de sorrir na cara de um interrogador que manejava um bastão de borracha.

Em frente do portão da zona de segurança, Colt apertou cerimoniosamente a mão do coronel, e este beijou‑o nas duas faces.

         Claro que voltaria para Bagdade. Os Iraquianos precisavam de Colt, e Colt também precisava dos Iraquianos.

 

         JAMES RUTHERFORD pressentiu a impaciência de Erlich.

         ‑ Muito bem, Bill. Quanto a Colin Tuck, a quem chamaremos Colt, sou o seu agente de ligação enquanto estiver em Inglaterra. Sempre que quiser alguma coisa, tem de me pedir. Todas as iniciativas que lhe pareçam necessárias têm de ser aprovadas por mim, e todas as entrevistas que queira fazer devem ser combinadas por meu intermédio. Rutherford esperava ter falado com autoridade suficiente para que a mensagem fosse captada. ‑ Mr. Ruane já lhe deve ter dito que tem de respeitar à letra as regras ditadas por nós. Dessa maneira, poderá ter toda a ajuda de que necessitar; caso contrário, terá de se ir embora. Entendido?

         ‑ Entendido. Fale‑me do Colt.

         Não havia muito a dizer. Rutherford resumiu a história a Erlich: era um rapaz solitário, um vagabundo, um marginal, que começara por ir aos comícios agitando um cartaz para protestar contra as experiências feitas com animais e que passara depois para o fogo posto, as agressões; finalmente, participara numa tentativa de armadilhar um carro. Depois, fugira de repente e parecia ter desaparecido da face da Terra.

         ‑ Na véspera de desaparecer, Colt esteve no pub da aldeia do Wiltshire onde moram os pais. No dia seguinte, a casa dos pais foi revistada, mas o rapaz tinha desaparecido. Os pais sempre se recusaram a cooperar ou sequer a falar dele.

         ‑ Então, não é por aí que temos de começar?

         ‑ A casa é vigiada regularmente, o correio é aberto e as chamadas telefónicas são interceptadas. Não temos conhecimento de quaisquer contactos entre ele e os pais desde que desapareceu, há dois anos.

         ‑ Mesmo assim, é por aí que vamos começar.

         ‑ Não quer ver primeiro o dossier? ‑ sugeriu Rutherford, que reparou na expressão de firmeza e teimosia do americano. Empurrou o dossier na direcção do seu interlocutor. Viu o americano abri‑lo bruscamente, fazendo cair uma fotografia que estava lá dentro. Rutherford viu como Erlich pregava os olhos na fotografia. ‑ Vou deixá‑lo aqui a ver isso e volto já.

         Era pouco protocolar deixar Erlich sozinho no seu gabinete, mas o cofre e as gavetas da secretária estavam fechados à chave e ele ainda queria ir à contabilidade antes de fechar para levantar dinheiro antes de partir para o Wiltshire.

         O GABINETE do Sueco ficava no segundo andar do edifício. A janela dava para um jardinzinho bem regado naquelas tardes quentes. A distância do gabinete do Sueco às salas do Dr. Tariq, situadas no rés‑do‑chão, era de dezoito metros. O Sueco já a tinha medido.

         Estava em Tuwaithah porque a sua querida irmã se tinha casado com um piloto da Força Aérea Israelita. Da última vez que fora em visita à sua terra natal, a cidade universitária de Upsala, tinha‑se encontrado com compatriotas do cunhado, agentes da Mossad, que o haviam recrutado há muito para o seu serviço. De regresso a Bagdade, passara pela Alfândega e pelos Serviços de Imigração, a coxear, apoiado numa bengala, dirigindo‑se para o automóvel enviado pela Comissão de Energia Atómica. Levava na bagagem um amplificador Sony.

         Quando melhorou da distensão do tendão, a bengala ficou no seu gabinete, no canto onde costumava pendurar o casaco, atrás da porta. A bengala escondia um microfone direccional que, quando era apontado para um alvo, captava as vozes e as conversas a grande distância.

         O Sueco só podia servir‑se do microfone depois de os seus dois assistentes iraquianos se terem ido embora. Corria grandes riscos sempre que desatarraxava a base da bengala, tirava o microfone, o ligava a um pequeno receptor, escondido durante o dia na parte de trás do seu amplificador, e colocava os auscultadores que costumava usar para ouvir música clássica. O medo e o terror de ser detectado deixavam‑no sempre fisicamente esgotado. Mas o trabalho de que fora encarregado pelos agentes da Mossad, que se tinham aproveitado sem escrúpulos do amor que sentia pela irmã, era um narcótico para ele. Estava viciado no terror.

         Vira em duas ocasiões o coronel atravessar o jardim em direcção ao gabinete do Dr. Tariq, mas de ambas as vezes os seus assistentes ainda não tinham saído. Já haviam passado dezassete dias desde a última vez em que o Sueco fechara à chave a porta do gabinete, apagara a luz, desatarraxara a base da bengala e ouvira o Dr. Tariq e o Prof. Khan falarem de uma série de encontros na Europa. Naquele momento, estava agachado junto da janela. A persiana estava corrida, com a janela aberta, e o microfone pousado no parapeito. Ouvia os pássaros a chilrearem, um som agudo e intenso, e no meio dos chilreios soavam vozes, mas era difícil perceber as palavras.

         ‑ Só da área H, coronel. A área A não interessa, são só engenheiros. Aquilo que eles fazem na área B é o que nós estamos também a fazer. Tem de ser da área H. Quero um cientista, coronel, e tem de ser da área H...

                   O Sueco nunca tentava compreender o que ouvia. Transmitia sempre tudo palavra por palavra.

                   Todas as cadências agudas do canto das aves, todas as palavras pronunciadas em voz baixa pelo Dr. Tariq, suscitavam nele o sentimento excitante do medo.

 

                   COLT apanhou o último voo desse dia de Frankfurt para Londres. Já tinha mudado de avião em Praga. Apresentou na Imigração o passaporte irlandês que o coronel lhe entregara e mandaram‑no seguir sem problemas.

 

SAAD RASHID era um homem arguto, com jeito para a matemática, mas não era preciso ser muito esperto para saber que, por aquela altura, já devia ter sido condenado à morte pelos seus antigos colegas de Bag dade.

                   Vinte e nove dias antes, deslocara‑se pessoalmente ao National Westminster Bank da Lower Regent Street, em Londres, e mandara transferir quinhentos mil dólares americanos da conta da Iraqi Airlines para uma conta numerada do Litchtenstein. Havia vinte e sete dias transferira telefonicamente essa soma do Litchtenstein para os computadores discretos do Credit Bank, de Zurique. Nesse mesmo dia, Saad Rashid arrumara a sua secretária, no gabinete das traseiras da Iraqi Airlines, fechara a porta à chave e dissera ao subdirector que estava a sentir os primeiros sintomas da gripe que grassava em Londres por essa altura. Fora à Embaixada da Síria e pedira um visto para si, para a mulher, inglesa de nascimento, e para as duas filhas. Nesse mesmo dia, entregara a chave da casa alugada onde morava, em Kingston upon Thames, e informara pela primeira vez a mulher da mudança que ia haver nas suas vidas.

                   Nessa mesma noite, mudaram‑se da casa de Kingston upon Thames para um apartamento mobilado perto da estação de comboios de Clapham Junction. Vinte e sete dias fechados num apartamento de duas divisões. Estava quase a sufocar. Mas só saiu uma vez do apartamento para ir de táxi à Embaixada da Síria verificar o que se passava com o seu pedido de asilo. Não sabia que a Embaixada da Síria era permanentemente vigiada pelo Iraque e que fora seguido até ao apartamento de Clapham.

         Saad Rashid resolvera‑se a roubar meio milhão de dólares e a partir para o exílio num país detestado na sua pátria depois de ter recebido um telefonema da mulher de um primo, que lhe participara, numa chamada péssima feita de Bagdade, que o primo fora preso, acusado de traição, e que estava detido na prisão de Abu Ghraib. Ora, os homens do Departamento de Segurança Pública costumavam prender uma pessoa e interrogar depois todos os membros da sua família para detectar o menor sintoma do cancro da dissidência.

         Desceu as escadas compridas do apartamento, de mão dada com as filhas. Primeiro, verificara pela janela se o táxi que chamara pelo telefone estava lá em baixo à sua espera. Os passaportes, com os vistos, estavam prontos na embaixada. Nessa noite, ia apanhar o avião para Damasco, com a mulher e as filhas, que amava muito. Sabia de cor o número da conta do Credit Bank, de Zurique. Fechou a porta do prédio. Desceu rapidamente as escadas exteriores, dirigindo‑se para o táxi com as duas filhas.

 

         COLT ficou a olhar para o táxi, que se afastava. Tinha entrado na rua no seu Ford Capri vinte e oito horas antes e tivera a sorte de arranjar um lugar para estacionar mesmo em frente da porta do prédio de onde o homem saíra com as duas filhas. Reconheceu o seu alvo assim que o viu pela fotografia que lhe tinham dado.

         Encontrara a Ruger debaixo do colchão no seu quarto de hotel, em Bayswater, juntamente com as chaves do Capri, a caixa de ferramentas e o fato‑macaco, e ainda um papel com o nome da rua e o número do prédio. A conta fora paga antecipadamente, por isso podia sair do hotel mesmo que não houvesse ninguém na recepção, e o carro pegara imediatamente.

         Durante todo esse dia e na noite anterior, estivera a mexer no motor do automóvel, com o capô levantado. Comera uma quantidade de sanduíches, acompanhadas por quatro latas de Pepsi. Quando anoiteceu, dormitou no banco de trás do Capri.

         Eles queriam o serviço feito depressa, e ele também queria despachar‑se. Combinara com o coronel que, assim que acabasse o trabalho, podia ir para oeste ao encontro das suas raízes e da mãe.

         Estava deitado de costas, com a cabeça debaixo do guarda‑lama da frente. A pistola estava debaixo do chassis, num saco de plástico, com o carregador encaixado e o fecho de segurança destrancado. Estendeu a mão para a Ruger assim que o táxi parou. Já a tinha empunhado quando a porta da frente se abriu, mas largou‑a quando viu que o alvo não trazia malas, só as filhas pela mão. Ia voltar e o momento mais adequado seria nessa altura.

         As crianças eram bonitas, pensou Colt. Não ia ser fácil se o alvo saísse do táxi com elas.

 

         TEVE a sensação de que estava a trabalhar ao domingo apesar de não trabalhar ao domingo já há vários anos.

         Era uma greve em grande, uma coisa a sério: pessoal administrativo, pessoal de saúde e técnicos. Estavam todos em frente de Falcon Gate com bandeiras e cartazes, e os delegados sindicais do Sindicato dos Trabalhadores de Escritório e dos Transportes arengavam através dos altifalantes.

         Dentro da H3 estava tudo tão silencioso como numa igreja a meio da semana; Carol e a sua tribo de dactilógrafas estavam todas lá fora, à chuva, com bandeirolas onde exortavam o Governo a aumentar‑lhes o ordenado em inscrições esborratadas.

         Bissett tinha a H3 quase por conta dele. Boll estava na área F, porque o director convocara todos os superintendentes para uma reunião de planeamento. Basil, no seu gabinete, nem sequer se devia ter dado conta de que estava a passar‑se qualquer coisa diferente.

         No fim da manhã, Bissett fechou o cofre à chave, verificou se todas as gavetas da secretária estavam também fechadas e desligou o terminal. Como havia uma greve e os laboratórios não funcionavam, os poderosos da área A tinham arranjado tempo para receber o humilde Frederick Bissett, da H3.

         Atravessou de automóvel a Segunda Avenida e depois a Primeira Avenida até chegar à Cidadela, como lhe chamavam os que lá trabalhavam.

         A Cidadela era a área A, o local onde eram produzidas as ogivas nucleares. Era formada por vários edifícios baixos, construídos em épocas diferentes, sempre à pressa e em segredo, desde o princípio da década de 50. Todos os que não trabalhavam lá diziam que os edifícios estavam velhos e eram mais ou menos improvisados e portanto perigosos. Havia o A1, onde o plutónio era aquecido nos fornos até poder ser moldado em esferas em forma de melão para ser inserido nas ogivas. Havia o A5, a unidade de montagem, onde a esfera de plutónio era envolvida numa segunda esfera concêntrica de urânio muito enriquecido antes de esses materiais mortíferos serem revestidos de uma camada exterior hermética de folha de ouro de vinte e dois quilates. Havia o A12, o Grupo de Gestão de Resíduos, onde se extraia o plutónio, o urânio muito enriquecido, o berílio e o trítio das armas que tinham chegado ao fim da sua vida útil para serem novamente processados e aproveitados para armas novas mais potentes. E havia os recipientes colocados ao ar livre,junto do A12, onde o plutónio era neutralizado pelo ácido antes do reprocessamento dos resíduos.

         Bissett detestava a Cidadela, e esse ódio vinha à tona sempre que via o arame farpado da vedação e o fumo que saía das chaminés. Mandaram‑no deixar o carro fora da vedação exterior. No caminho que conduzia à segunda vedação, um lobo‑da‑alsácia, um animal horrendo e feroz, puxava pela trela. Ele assustou‑se com o cão, que saltava de encontro à vedação, rosnando irritado. O polícia do ministério, com o casaco de camuflado desabotoado no peito e a pistola‑metralhadora a tiracolo, examinou o cartão de identificação de Bissett à entrada do túnel de rede metálica, consultou a lista dos visitantes esperados nesse dia e fez‑lhe sinal para entrar. A metralhadora enervava Bissett; sempre o enervara e nunca se habituaria a ela.

         Na segunda verificação de identidade, ao fim do túnel, teve de entregar o seu cartão da área H para receber um passe temporário, e só depois o deixaram entrar.

         Bissett encontrou‑se com três homens na A45. Durante meia hora, tomou chá e comeu bolachas com eles, discutindo os problemas da redução de peso através do uso adicional de gálio ligado com o plutónio. O peso era a chave da ogiva. Havia falta de plutónio porque o Programa Trident exigia grandes quantidades desse material, e por isso tinham‑lhe pedido para reduzir o peso da ogiva do Sistema Cruise. Podia perfeitamente ter falado só com um deles para obter as mesmas informações sobre o peso e a operacionalidade, mas tinham aparecido os três na reunião, o que lhe pareceu típico dos engenheiros.

         Quando saiu, passou novamente pelo sistema de segurança do túnel. Restituiram‑lhe o seu cartão de identificação; o cão continuava no mesmo sítio, tentando libertar‑se para o atacar.

         Voltou de automóvel para a área H.

         Pelo menos os serviços de correio não estavam em greve. Era quase tudo jornais e revistas para Basil, mas viu o seu nome num envelope branco simples. Leu a carta, dactilografada com esmero.

 

         Caro Frederick

Espero que esta te encontre bem. Como vês, agora sou professor de Física aqui. Estou a tentar organizar programas interessantes para os membros mais jovens da nossa equipa e para os alunos dos cursos de pós‑graduação, por isso tenho convidado antigos alunos para virem cá falar de aspectos do seu trabalho actual.

                   Claro que grande parte do teu trabalho é secreto, mas podias vir falar de aspectos que não sejam secretos e que aches interessantes. És muito famoso por aqui e podes contar com uma recepção calorosa, um bom jantar e uma cama na minha humilde casa, além das despesas de deslocação.

                   Manda‑me dizer quando é que podes vir. A quinta‑feira é o melhor dia.

                   Um abraço, Walter Smith

 

         TORK, o agente dos Serviços Secretos Britânicos em Telavive, respondia sempre imediatamente quando era convocado por aquela secção da Mossad, e nunca era tempo perdido. Tinham muita confiança nele desde aquele caso do vale de Bekáa. Uma missão célebre, organizada pelos chefes de Tork da Century House, em Londres ‑ um atirador israelita com um guia inglês perseguira e abatera o comandante de um campo de treino da OLP responsável pela morte de um diplomata britânico.

         Mostraram a Tork a transcrição de uma breve conversa. As palavras sublinhadas a tinta vermelha haviam sido proferidas pelo Dr. Tariq, o director da Comissão de Energia Atómica do Iraque.

         Tork estava colocado em Telavive há onze anos. Sabia que o grande pesadelo de Israel era que um dia um inimigo árabe tivesse capacidade para atacar o coração da pátria judaica com armas atómicas.

         ‑ Vou mandar já isto para a Century.

         ‑ Acha que eles vão fazer alguma coisa?

         ‑ Isto é pouco.

         ‑ Mas manda‑o com a informação "muito urgente"?

         ‑ Pela minha parte, tudo bem.

 

         HANNAH Worthington morara toda a vida na rua paralela à via férrea. Ia todos os dias a pé até à mercearia, que ficava no fim da rua, e comprava só aquilo de que ia precisar nas próximas vinte e quatro horas. Fazer todos os dias o caminho de ida e volta até à mercearia da esquina, acompanhada pelo seu cãozinho Chihuahua, era um dos rituais da vida daquela velha solteirona solitária.

Miss Worthington, calçando sapatos abotinados cómodos, avançava em passo rápido no seu passeio diário até à mercearia. Viu um táxi que se aproximava lentamente.

         O Chihuahua farejou o tornozelo de um homem novo que estava a mexer no motor do seu automóvel. Ela puxou pelo cão e o táxi passou por ela.

         Ouviu o táxi parar e a porta a abrir‑se.

         Ouviu os passos de alguém a correr atrás de si.

         Ouviu o grito:

         ‑ Ouça lá!

         Depois, soou um ruído ligeiro, como um rufar de tambor leve e abafado.

         Miss Worthington voltou‑se. Pensou que o homem estava bêbado. Era dia claro e o homem baloiçava e andava aos tropeções. Ela desceu do passeio, resolvida a atravessar para o outro lado.

         O homem caiu e ela viu‑o deitado no passeio, ao lado do táxi, a torcer‑se como um peixe fora de água. Viu o sangue que alastrava na camisa cinzento‑clara do homem.

         Viu duas meninas bem‑vestidas que subiam a correr as escadas de um prédio do outro lado da rua e que começaram a bater à porta desesperadamente.

         Viu o homem com a pistola de cano largo apontada. Viu‑o disparar novamente sobre o homem deitado no passeio. Ela estava a uma dúzia de passos do homem da pistola e não ouvia nada. Viu os pulsos dele recuarem com o coice da arma. Viu o homem do passeio estremecer e ficar imóvel.

         Viu que o homem da pistola tinha um barrete de malha na cabeça, mas o barrete estava de lado e via‑se uma mecha de cabelo louro curto. O homem da pistola voltou‑se e cruzou olhares com ela. Os olhos de um assassino e os de uma solteirona de oitenta e dois anos, por detrás de uns óculos grossos. Houve um momento, que ela nunca mais havia de esquecer, em que o homem da pistola pareceu sorrir‑lhe.

         Viu que ele começava a correr. Viu‑o meter a pistola no peitilho do fato‑macaco, sem parar, e viu‑o também puxar o barrete de lã para baixo com a mão livre.

         O Chihuahua puxava pela trela, tentando afastar‑se dos tiros, dos gritos e do choro das meninas. Ela pegou no cão, enfiou‑o debaixo do braço e afastou‑se em passo rápido, voltando para casa.

         A salvo dentro de casa, Miss Worthington trancou a porta da rua. Não tinha coragem de voltar a sair, de ir à mercearia. Deixou‑se ficar na sala, instalada na sua poltrona, em segurança, e foi daí que viu os primeiros carros da Polícia que entravam na rua.

         Não era verdade. Fora tudo um sonho mau, e ela não queria pensar mais no assunto. Voltou a poltrona de costas para a janela.

 

         O CORPO tinha desaparecido, mas havia sangue no passeio. Alguém levara as crianças para cima. A multidão estava a cerca de cem metros de distância, por detrás da fita branca. As copelas vazias das balas estavam na valeta, junto à roda de trás do táxi.

         ‑ Não ouvi tiros. Vi um homem a correr, mas não vi nada ‑ dizia o condutor do táxi.

         Claro que tinham começado a revistar as casas uma por uma, mas era uma rua de apartamentos de duas divisões, que geralmente estavam vazios durante o dia. Quando o polícia bateu à porta de uma casa da ponta da rua, ouviu ladrar um cão, mas ninguém abriu a porta. Achou que o cão devia ter ficado sozinho em casa. Na outra ponta da rua, Mr. Patel confirmou que na véspera e nessa manhã havia estado um homem a trabalhar no Ford Capri, que ainda lá continuava, de capô levantado. Mr. Patel tinha muita pena, mas não vira a cara do homem que estava a mexer no carro. O homem tinha a cabeça e os ombros debaixo do automóvel.

         Mais tarde, o detective da Brigada Antiterrorismo diria ao inspector:

         ‑ Em pleno dia, numa rua com muito movimento, e ninguém viu nada. É muito estranho.

 

         JAMES RUTHERFORD e Bul Erlich iam a caminho do Wiltshire.

         Quando viram a tabuleta com o nome da terra, começou a chover. A primeira impressão de Erlich foi de que os desconhecidos não eram bem‑vindos ali. Atravessaram a aldeia.

         As casas eram pequenas, de pedra gasta pelo tempo, coberta de musgo. Passaram por uma lojeca que tinha à porta pilhas de ancinhos e de forquilhas, apesar da chuva, e por um velho portão desengonçado que dava acesso a um caminho cheio de erva e coberto de folhas. Lá ao longe, por detrás das faias, havia uma casa. Passaram por outras casas de pedra e pelo pub e chegaram ao fim da aldeia.

         A aldeia de Colt.

         Pararam na aldeia seguinte, a três quilómetros de distância, em frente da vivenda moderna que era simultaneamente a esquadra e a casa do polícia da aldeia, que se chamava Desmond, era jovem e inteligente e que ficou lisonjeado por um homem dos Serviços de Segurança ter vindo procurá‑lo e agradavelmente surpreendido por um agente do FBI ter vindo parar a sua casa. A mulher de Desmond ofereceu‑lhes chá e pão‑de‑ló.

         Nunca vi o rapaz ‑ disse Desmond. ‑ Fui colocado aqui menos de uma semana depois de ele ter desaparecido. Mas, como devem compreender, é a pessoa mais conhecida daqui e portanto ouvi falar muito nele. Cá na terra, geralmente o que aparece são casos de vandalismo, caçadores furtivos, pessoas que guiam sem seguro, pequenos roubos. Mas Tuck filho é acusado de tentativa de homicídio e de fogo posto. Começando pelo nome... Colt, "poldro". Não é só por causa das iniciais, mas também porque é jovem, selvagem, indomável, como um poldro. É uma personagem excitante para as pessoas daqui. Andou metido com a Frente de Libertação dos Animais, cometeu alguns crimes graves. Mas o que eu ouço dizer é que a Frente para ele era só um instrumento; não era uma questão de princípios, fazia aquilo porque gostava de arriscar, de desafiar a Polícia.

         A Policia vigia esporadicamente a casa, mas até à data não houve sinais dele. Ultimamente, eles têm aparecido mais. Ele gostava muito da mãe, que está muito doente. É uma pessoa muito respeitada na aldeia. O pai também é respeitado, mas é diferente. Ela era respeitada e gostavam dela. Se Colt soubesse, voltava aqui, mas parece que nunca mais disse nada desde o dia em que desapareceu, por isso não vai saber. Também tinha aqui uma namorada, mas duvido que isso fosse importante para um rapaz tão aventureiro.

         Esvaziaram o bule do chá, comeram o bolo todo e Erlich agradeceu. Agora compreendia muito melhor o homem que olhara Harry Lawrence cara a cara e o abatera.

         Alojaram‑se numa pensão na outra ponta de Warminster e, antes de as lojas fecharem, ainda tiveram tempo de comprar umas botas de borracha, um impermeável e um chapéu para Erlich.

 

         ‑ ESTÁ completamente fora de questão, Frederick. Não podemos fazer conferências no exterior.

         ‑ Mas já lhe expliquei que para mim isto é muito importante!

         ‑ Acha que é a única pessoa que é convidada para fazer conferências? A mim também me convidam pelo menos dez vezes por ano. E Basil recebe aí uns cinquenta convites. Mas nem pensar. Não é possível.

         ‑ Mas isso é absurdo. Eu não ia falar do meu trabalho.

‑ Frederick, está a ser muito obtuso. Tudo o que você possa dizer tem interesse para os de fora porque trabalha aqui. E como é que pode falar de outras coisas sem ser do seu trabalho? De que é que sabe falar além do seu trabalho?

         ‑ Isso é ofensivo, Reuben, e toda a sua atitude...

         ‑ Compreendo que este convite lisonjeou a sua vaidade e percebo que tenha pena de não poder aceitar, mas...

         ‑ É a sua última palavra?

         ‑ É a minha última palavra. Até amanhã, Frederick.

         Ele alimentara algumas esperanças. Ansiava por passar um dia ao sol, por gozar da admiração dos seus colegas, os cientistas mais jovens. Voltou para o gabinete e, com os olhos cheios de lágrimas de frustração, garatujou uma carta ao seu antigo professor declinando o convite. Era prisioneiro do Estabelecimento de Armamento Atómico. Sacrificara os melhores anos da sua vida a este lugar maldito, e era assim que lhe agradeciam.

 

COLT estava sentado na borda da cama. A mãe dormia. Ficou chocado quando viu que ela tinha a cara tão magra, porque nunca pensara que podia estar diferente. Chegar ali fora o seu único objectivo, e encontrá‑la viva era o seu único consolo.

         Tinham‑lhe preparado bem as coisas. Desta vez, estava tudo mais bem organizado do que em Atenas. Uma rua vazia, só com aquela velhota. Mas isso não fora uma questão de organização, fora só sorte. A velhota só estava preocupada com o cão. O condutor do táxi também não estava a olhar para ele, porque tinha o nariz enfiado no saco dos trocos. Ele dera uma corrida até ao fim da rua e cortara por um atalho até chegar à garagem onde estava a carrinha e o saco com uma muda de roupa. Não encontrara ninguém no atalho, e ninguém o vira entrar na garagem. Depois, metera‑se na carrinha e contornara a cidade, seguindo as instruções, que eram muito exactas. Encontrara a segunda garagem atrás de uma arcada de lojas e entrara com a carrinha nessa garagem. Mudara de roupa e deixara a pistola na algibeira do fato‑macaco, no saco. O Escort estava do outro lado do pátio da segunda garagem. Ele afastou‑se no carro. Sentia‑se um homem novo. Tinha a certeza de que assim que estivesse a salvo mandavam alguém buscar a carrinha, recuperar a Ruger e devolvê‑la ao arsenal da embaixada.

         Saíra de Londres pela M4 e depois metera pelo desvio de Hunger ford e voltara novamente na direcção de Marlborough. Saíra da estrada entre Marlborough e Devizes, metendo por um caminho de terra pelo meio da floresta, e depois tinha dormido para estar em boa forma quando chegasse perto de casa. Dormira o resto da tarde e uma parte da noite.

         Uma claridade cinzenta filtrava‑se por entre as cortinas espessas que tapavam ajanela. Quando era pequeno, aquele quarto era o seu refúgio. Vinha sempre abrigar‑se no quarto quando o pai o castigava. Quando fora expulso da escola, quando retalhara a cabeça de cabrito‑montês da entrada, quando tinham lutado os dois, à dentada e ao pontapé no chão do vestíbulo, quando recebera o telefonema avisando‑o da rusga que desmantelara a célula, em todas essas ocasiões ele viera sempre sentar‑se naquele velho cadeirão, junto à cama da mãe. O pai tinha‑lhe chamado sucessivamente idiota e estúpido, depois sabotador, vândalo e terrorista. O que é que ele esperava? Colt era o digno filho de seu pai.

         O cão espreguiçou‑se e depois estendeu‑se novamente no chão, deitado por cima dos pés de Colt.

         A luz começou a alastrar pelo quarto. Ele ouviu uma porta a abrir‑se e a primeira tosse matinal do pai. O cão ouviu os passos do pai no corredor e aconchegou‑se mais aos pés de Colt.

 

         ELES FORAM os primeiros a descer para o pequeno‑almoço e os primeiros a sair da pensão de manhã.

         Erlich trazia as botas de borracha e o impermeável novos. Rutherford vestira uma camisola grossa e botas de marcha.

         Quando saíram da estrada principal e entraram nas estradas secundárias, Rutherford começou a guiar mais depressa. Era uma boa hora para aparecer em casa de Colt.

 

         ELE DESCEU as escadas e chamou pelo cão baixinho, mas não obteve resposta. Depois de ter enchido a chaleira de esmalte e a ter colocado em cima da placa quente do fogão, viu as pegadas enlameadas no chão da cozinha; em cima da mesa, estava um prato com uma ponta de cigarrilha.

         Fez o chá e tirou mais uma xícara do aparador. Enquanto esperava pela torrada, limpou o chão com a esfregona. Levou o tabuleiro para cima e entrou no quarto.

         O rapaz estava onde ele pensava. O seu filho. O seu filho ao lado da mãe dele, que continuava a dormir.

Pousou o tabuleiro no tampo escuro do toucador de mogno. Abraçou o filho, apertando Colt de encontro ao peito. Graças a Deus. Não falou alto, não havia nada a dizer. Sentiu os músculos tensos das costas do rapaz. Era o seu filho e ele amava‑o muito. Desviou os olhos da face calma do rapaz para a da mulher. Quem dera que ela acordasse. Não queria acordá‑la, mas desejou ardentemente que ela acordasse por si e que visse o filho e o marido abraçados ternamente.

         Quando se separaram, foi para ele ir deitar o chá nas xícaras.

         Ele levou a xícara ao filho. Via‑se que o rapaz não dormia capazmente havia dois ou três dias, mas mesmo assim estava com bom aspecto. Nesse momento, Colt deixou de sorrir de repente e o pêlo do dorso do cão eriçou‑se. Ouviram‑se as rodas de um carro a chiar no saibro, debaixo da janela.

 

         A PORTA abriu‑se em frente de Rutherford.

         Erlich via por cima do ombro de Rutherford a entrada escura da casa. A pessoa que abrira a porta estava escondida por detrás da cabeça do seu companheiro.

         - Major Tuck?

     ‑ Sou eu ‑ respondeu uma voz grave.

         - Chamo‑me Rutherford e gostava de entrar com o meu colega. - Erlich já o via. Era um homem corpulento vestido com um grande roupão velho. ‑ Sei que é muito cedo. Peço desculpa ‑ continuou calmamente Rutherford.

         Estavam na colina das traseiras da casa desde o romper do dia, vigiando as janelas com o binóculo. Erlich sorriu ao homem, como se fosse a coisa mais natural do Mundo virem visitá‑lo a casa às 8 da manhã.

     ‑ O que é que querem?

     ‑ Só queremos entrar para ter uma conversa ‑ disse Rutherford.

     ‑ Sou dos Serviços de Segurança, major Tuck. O meu colega é do FBI. Queríamos entrar.

     ‑ Não recebo visitas a esta hora.

         Rutherford perguntou num tom de voz mais ríspido:

     ‑ Sabe onde está o seu filho?

O velho pareceu ficar irritado com a pergunta.

     ‑ Não, não sei.

     ‑ Tem alguma ideia de onde é que ele esteja?

     ‑ Não ‑ respondeu o dono da casa, já recomposto.

     ‑ Quando é que viu pela última vez o seu filho, major Tuck?

     ‑ Há dois anos.

     ‑ Depois disso, nunca mais teve contactos com ele?

         ‑ Não.

         ‑ Não sente curiosidade, major Tuck?

         ‑ Curiosidade porquê?

         ‑ Curiosidade por um agente dos Serviços de Segurança e um representante do......

         ‑ Não sou responsável pelos actos do meu filho.

         ‑ Estamos a investigar um incidente de terrorismo estatal, um assassínio... ‑ disse Rutherford.

         ‑ Posso ir à casa de banho, major Tuck? ‑ interrompeu Erlich.

         ‑ Não quero gente a entrar em minha casa a estas horas para ir à casa de banho. Não, não pode entrar. Há uma casa de banho pública na aldeia, atrás do pub. Bom dia aos dois. Não estou para ser perseguido por causa do meu filho.

         - Perseguido, major Tuck? Não estará a exagerar?

         ‑ Andam a vigiar a minha casa, abrem‑me o correio, o telefone está sob escuta... O meu filho é responsável pelas suas próprias acções. Bom dia.

 

         HOJE EM DIA, Percy Martins podia dizer o que lhe apetecesse, e fazia isso mesmo. Mas as coisas haviam mudado muito nos Serviços Secretos de Informação e na Century House desde que ele organizara a tal missão ao vale de Bekáa, no Leste do Líbano, em que um atirador especial eliminara o assassino de um diplomata britânico. Era um herói dos velhos tempos. Martins, Ordem do Império Britânico, herói de Bekáa, criara fama antes de o Governo ter acabado com as missões aventureiras e arriscadas. Agora, estava à frente da secção de vigilância da Jordânia, da Síria e do Iraque, e estava seguro enquanto não quisesse reformar‑se.

         ‑ O problema do Tock é que está há tempo demais em Telavive - comentou ele. ‑ Adaptou‑se completamente e tornou‑se num lacaio dos Israelitas.

         O director‑adjunto dos SSI contemplava o avanço lento dos batelões, das dragas e dos barcos de recreio no rio. O chefe da secção de Israel bateu com a ponta romba do lápis na sua secretária bem polida.

         ‑ Isso não éjusto ‑ observou.

         ‑ Eu concordo, Percy ‑ acrescentou o director‑adjunto. ‑ Não é justo.

         - Quais são os dados? ‑ inquiriu Martins. Temos uma área H, uma área A e uma área B. Tork está a vender‑nos a ideia dos Israelitas de que se trata de Aldermaston. Talvez tenham razão, não digo que não, mas também há áreas H, A e B noutros sítios. Não devíamos verificar também Sellafield e Harwell? Procurar no Centro Francês de Investigação Nuclear ou na América, na África do Sul ou no Paquistão?

         ‑ Isso é verdade - assentiu o director‑adjunto.

         ‑ É uma táctica típica dos Israelitas - insistiu Martins - meter toda a gente ao barulho quando têm problemas. Adoram pôr toda a gente a trabalhar para eles.

O chefe da secção de Israel replicou azedamente:

         ‑ É uma advertência grave que aponta para uma tentativa de roubo de segredos nucleares da parte do Iraque, ou talvez de comprometer ou aliciar um dos nossos cientistas nucleares, e não havemos de a levar a sério?

         - Acha que é uma advertência grave? A mim parece‑me tudo muito vago.

O director‑adjunto aproveitou a deixa:

         - Acho que devemos pedir informações mais detalhadas aos nossos amigos de Telavive por intermédio de Tork, não lhe parece?

         ‑ Então, não vai fazer nada? O chefe da secção de Israel começou ajuntar os seus papéis.

         ‑ Vamos dizer umas palavras ao ouvido de certas pessoas sem criar pânico. ‑ O director‑adjunto sorriu. - Acha bem, Percy?

         Martins puxou pelo seu bigodinho.

         ‑ Se os Israelitas quiserem pôr‑nos a mexer em todas as direcções, têm de nos dar qualquer coisa de mais concreto.

 

         - NÃO VOU incomodar‑me por causa desses idiotas da Century House com a mania de que são superiores - disse Hobbes.

         ‑ É uma simples advertência, mas que exige uma intervenção - observou Barker.

         Dickie Barker era o chefe da Brigada D, a que pertencia a Secção de Segurança Militar, de que Hobbes era o chefe.

         ‑ Aqueles tipos da Centurv estalam os dedos e acham que nós vamos a correr ‑ comentou Hobbes.

         ‑ Faça‑me esse favor, nomeie alguém para fazer isto ‑ replicou Barker.

         Compreendia perfeitamente o ódio do jovem Hobbes ao pessoal dos SSI da Century House e partilhava‑o até certo ponto.

         ‑ Acho que Rutherford podia fazer isso.

         ‑ O que é que ele anda a fazer?

     ‑ Anda a servir de ama‑seca a um aprendiz do FBI.

     ‑ Aquele caso do americano?

         Dickie Barker tinha sessenta e quatro anos e reformava‑se no ano seguinte, no dia em que completaria quarenta anos de trabalho nos Serviços de Segurança. Dizia‑se que Dickie Barker desprezava quase tanto os organismos dos serviços secretos americanos como os Serviços Secretos de Informação Ingleses.

     ‑ Posso dizer a Rutherford para deixar o americano à espera.

     - Sim, Rutherford serve. Mande‑o cá vir ainda hoje.

 

         ERLICH encarou Dan Ruane de frente e disse com um tremor na voz:

     ‑ Estão a brincar comigo, Dan.

         Ruane acabara de chegar do almoço. Entraram juntos para o seu gabinete.

     ‑ O que é que quer dizer com isso, Bill?

         ‑ Nomearam um agente de ligação, um tipo chamado Rutherford, mas houve um atentado em Londres; um antigo funcionário do Governo Iraquiano foi abatido a tiro. Não me disseram nada, li a notícia no jornal. Telefono ao meu agente e digo‑lhe o que quero

         ‑ O que quer?

         ‑ Sim, O que quero, Dan. Estou aqui para investigar um homicídio. Sim, digo‑lhe o que quero. Digo‑lhe que quero saber todos os pormenores da investigação deste atentado de Londres. Dados de identificação, tudo. E o meu agente de ligação diz‑me que não está livre. Que foi encarregado de outro trabalho e que quando acabar vem ter de novo comigo. O que é que eu faço agora, Dan?

         ‑ Quando sei o que quero e ninguém me quer ajudar, trato eu do assunto.

     ‑ Obrigado.

         ‑ Mas se puser a pata na poça, não tenho nada a ver consigo. Entendido?

 

         COLT continuava sentado ao lado da mãe quando o pai voltou para o quarto.

         Quando a mãe acordara, ele inclinara‑se para a beijar na face. Ela sorrira, mas depois fechara novamente os olhos. Colt pegara‑lhe na mão quando ela acordara e continuava de mão dada com ela. A paz da mãe acalmava Colt.

     ‑ Eram dos Serviços Secretos e do FBI ‑ disse o pai.

     ‑ Eu ouvi.

     ‑ Mandei‑os embora. Disse ao americano para ir ao pub, porque não podia deixá‑lo entrar; a porta da casa de banho fica ao lado da da cozinha e cá em casa ninguém fuma, mas tu deixaste em cima da mesa da cozinha um prato com uma horrível beata de cigarrilha.

         ‑ Obrigado.

         ‑ Sempre foste muito descuidado.

         ‑ O que é que eles queriam?

         ‑ Queriam saber se te tinha visto, se sabia onde é que tu estavas.

         ‑ O que é que lhes disse?

         O pai olhou Colt de frente.

         ‑ Disse‑lhes que não era responsável pelos teus actos. E eles disseram que era um caso de terrorismo estatal. Respondi‑lhes que não tinha nada a ver contigo.

     ‑ E eles acreditaram?

         ‑ Não lhes perguntei. ‑ Falava em voz baixa, com frieza.       - Agora andas metido em assassínios políticos?

         Colt respondeu, como se quisesse justificar‑se:

         ‑ O homem meteu‑se pelo meio. Não era o alvo, era da CIA.

         ‑ Depois de uma coisa dessas, nunca mais te largam.

         ‑ Esteja descansado que não me vão apanhar.

         ‑ Isso é o que dizem todos os idiotas.

         ‑ Podia ter‑me denunciado ‑ observou Colt.

         ‑ Podia e devia.

         ‑ Mas não denunciou.

         ‑ Durante a guerra, houve homens que morreram sob tortura e que não revelaram o meu nome. Nunca denunciaria ninguém, nem mesmo um desconhecido.

         ‑ Obrigado por ter mandado chamar‑me.

 

         ‑ Isso É formidável, Miss Worthington ‑ disse Erlich.

         ‑ Foi só o que eu vi. Era louro. Se o barrete de lã não tivesse escorregado por uns instantes, porque ele endireitou‑o logo, não lhe tinha visto o cabelo. Tinha o cabelo muito louro.

         ‑ E era capaz de reconhecer a cara dele?

         ‑ Claro que sim, Mr. Erlich. Ele olhou para mim e até me sorriu. Quando vemos um homem matar outro e depois esse homem olha para nós e nos sorri, lembramo‑nos da cara dele.

         ‑ E ele disse...

         ‑ Disse "Ouça lá". Foi nessa altura que eu olhei para ele. O outro homem, o estrangeiro... bom, primeiro pensei que ele estava bêbedo. Vou ter vergonha disto até morrer, mas pensei que ele estava bêbedo e comecei a atravessar a rua para ele não se meter comigo. Mas depois ele caiu e eu vi o sangue. Até essa altura, o homem do fato‑macaco estava longe dele, mas depois aproximou‑se. Já não ouço bem, não ouvi nada.

         A casa de Miss Worthington era a quinta casa a que Erlich tinha batido na rua. Miss Worthington estava mesmo atrás da porta, e ele vira a sombra dela pelo vidro fosco. Batera à porta e à campainha, mas ela nunca mais abria. A sua intuição dissera‑lhe que ela não queria sair de casa; estava um cesto com uma lista de compras no tapete em frente da porta da rua.

         Ele pegara no cesto, fora à mercearia da outra ponta da rua e comprara um pacote de flocos de aveia, uma costeleta, um pacote de batatas fritas, uma maçã, um pão de trigo integral pequeno e uma lata de comida para cão. Depois de ter verificado todos os artigos da lista, pedira duas tabletes de chocolate de leite e um raminho de crisântemos. Voltara à casa e deixara‑a pagar tudo menos o chocolate e as flores.

         ‑ Miss Worthington, o jornal dizia que a Polícia não tinha nenhuma descrição do assassino. Não falaram consigo?

         ‑ Eu não quis falar com eles.

         ‑ Porquê, se me permite a pergunta?

         ‑ Não lhes abri a porta. Mas consigo é diferente, Mr. Erlich, porque o senhor é americano.

         ‑ Tem amigos americanos?

         ‑ Gosto muito das séries de televisão americanas.

         Ele tirou a fotografia da algibeira interior do casaco.

         ‑ Vou mostrar‑lhe uma fotografia, Miss Worthington. Tem de ser franca comigo. Se não o reconhecer, tem de me dizer. Mas se o reconhecer... ‑ Pôs a fotografia em cima da mesa, ao lado dela.

         Miss Worthington olhou para a fotografia e disse:

         ‑ Claro que é ele.

         Erlich levantou‑se e beijou‑a nas duas faces. Depois, recuou e viu que ela estava muito corada.

         ‑ Ele fez uma coisa terrível na nossa rua e podia ter ferido aquelas meninas, coitadinhas ‑ disse ela com um olhar muito sério.

         ‑ E antes disso matou um homem que era meu amigo.

         ‑ Vai apanhá‑lo?

         ‑ Foi o que prometi à viúva do meu amigo.

         ‑ Vou rezar por si, Mr. Erlich. Uma pessoa capaz de tirar a vida a um filho de Deus e depois Sorrir a uma senhora de idade deve ser muito perigosa.

 

     ‑ O que é que vamos fazer, Frederick?

         ‑ Não sei.

         ‑ Isso é uma resposta muito estúpida.

         ‑ Não grites, Sara, senão acordas os miúdos.

         - As coisas estão assim tão mal?

         ‑ Mal? ‑ Riu alto. Falou também aos gritos, como ela. ‑ Não podiam estar pior! A ICI não está interessada em mim. Aquele maldito homem do banco está a pressionar‑me. BolI anda a fazer as avaliações anuais, e eu estou atrasado no projecto e ele anda em cima de mim.

         ‑ Tens de me dizer o que é que tencionas fazer acerca disso tudo, Frederick.

         Podiam levar‑lhes os automóveis, o dele e o dela. Podiam levar‑lhes a mobília ou mesmo a roupa. Era uma vergonha. A casa estava às escuras, as únicas luzes acesas eram o candeeiro da mesa‑de‑cabeceira do quarto dos miúdos e a luz da cozinha. O aquecimento estava desligado. E não lhes podiam levar o televisor, porque era alugado.

         ‑ Vou dar as boas‑noites aos miúdos.

         ‑ Temos de conversar sobre isto, Frederick.

         ‑ Vais ver que se resolve.

         Bissett encontrava‑se ao fundo das escadas. Pensou que ela estava muito bonita, assim com os olhos a brilhar de fúria, mas ao mesmo tempo com um ar assustado e cansado. Não era capaz de falar com ela. Eram casados há doze anos e ele não a conhecia. Se ela o abandonasse, morria. Amava‑a, mas não era capaz de falar com ela. Sim, tinha de resolver aquilo de qualquer maneira.

         ‑ Não tens mais nada a dizer?

         ‑ Vais ver que as coisas se resolvem.

         Bissett subiu as escadas às apalpadelas, guiando‑se pela tira de luz que passava por baixo da porta do quarto dos filhos. Tinha sempre sustentado a família e não estava à espera que a mulher se empregasse. Fora educado daquela maneira. Talvez isso fosse antiquado, influenciado pela sua origem. Nascera numa familia operária; formara‑se em Física Nuclear, era investigador numa instituição científica, mas não podia renegar as suas origens. Era ele o único responsável pelo sustento da sua família.

         Quando parou à porta do quarto dos rapazes, ouviu‑os a brincar e a rir.

         Lá mais adiante, na estrada, estavam as luzes e as vedações do IAA. Era a pátria de BolI, de Basil e de Carol, um mundo fraudulento de desperdício e esperanças desfeitas, de trabalho árduo, de perigo constante, de recompensas triviais, de polícias com metralhadoras. Era cada vez menos o mundo de Frederick Bissett.

         ‑ Ouçam lá, seus marotos, são horas de dormir.

 

BILL ERLICH saiu de automóvel de Londres com o mapa das estradas aberto em cima dos joelhos. Alguns dos instrutores de Quantico diziam que se devia seguir os palpites, e outros ‑ quase todos ‑ achavam que não. Ruane não estava quando Bill voltara à embaixada, e o seu palpite era de que devia voltar ao Wiltshire.

         Avançava lentamente entre os automóveis das pessoas que voltavam para casa à hora de ponta. No banco de trás do seu Ford, além do impermeável e das botas de borracha, estavam um terno, um saco‑cama e uma tenda camuflada.

         Depois de Reading, o trânsito tornou‑se menos intenso. Ele guiava devagar, e quando saiu da auto‑estrada para meter pela estrada de Warminster, já era noite.

         Cerca de três quilómetros antes da povoação, os faróis do carro iluminaram um portão. à entrada do caminho que atravessava o campo havia uma zona empedrada; pareceu‑lhe ser um bom lugar para deixar o carro.

         Estacionou o Ford no campo, bem encostado à sebe espessa de azevinho, que esconderia o automóvel de quem passasse na estrada.

         às escuras, calçou as botas e enfiou o impermeável. Enrolou o saco‑cama no pano da tenda. Enfiou a mão na algibeira para verificar se trazia o seu binóculo de campanha. Lá adiante, no meio das árvores, via o brilho dourado das luzes da aldeia.

 

         As FLORES estavam no monte de estrume, e os papéis de celofane e as fitas, no caixote de lixo, junto à porta das traseiras. O major Tuck não quis pôr as flores numa jarra. A mulher estava lá em cima a morrer, e diabos o levassem se ia deixar que se metessem na vida dele e na morte dela.

         ‑ Não lhes deves nada, Colt. Estão a brincar com a doença da tua mãe. Flores! Só para te mandarem um recado. Como é que podes ter mais consideração por eles do que por mim e pela tua mãe? Como é que foste capaz de nos meter nessa trapalhada infernal que arranjaste?

         ‑ Amanhã de manhã já me fui embora ‑ disse Colt.

         Mas o major Tuck já estava metido naquela trapalhada, metido até aos cabelos. Antes de acender a luz de uma divisão, ia até à janela e corria as cortinas. Estava metido naquela trapalhada porque queria salvaguardar a liberdade do filho.

         A verdade é que ia ter saudades do rapaz. A verdade é que queria que o rapaz se fosse embora porque assim tinha a certeza de que ele estava livre e em segurança. A verdade é que o sorriso da mulher quando o rapaz estava sentado a seu lado fora a melhor coisa que lhe acontecera nos últimos meses.

     - Se puder voltar Eu volto.

 

         COLT entrou pelas traseiras do bar. Cheirava a cerveja e o fumo fazia‑lhe arder os olhos. A música da máquina de tocar discos atroava‑lhe os ouvidos. Parou à porta.

         Viu as caras e a sua expressão de espanto. Parecia que nunca se tinha ido embora. Há dois anos, também estavam todos no bar: Billy e Zap, os irmãos que trabalhavam na oficina de bicicletas de Frome Charlie, que estava no desemprego e se gabava disso. Kev, da quinta da estrada de Shepton. Zack, que estivera preso por roubar ovelhas. E o velho Brennie. O velho Brennie, sentado ao pé do lume, tal e qual como há dois anos, rodeado pelos rapazes da aldeia. Fran, a filha do velho Brennie, era a única que não o tinha visto. Estava ao lado do pai, de costas voltadas para a porta.

         Ficaram todos embasbacados a olhar para ele, como se fosse um fantasma. Ninguém disse nada.

         Fran voltou‑se para ver porque é que estava tudo calado ao pé da lareira. A sua cara iluminou-se. Apertou com força o ombro do velho Brennie durante uns momentos, porque aquilo não podia ser verdade.

         Colt continuava parado à porta.

         Depois, houve uma explosão de movimento. A rapariga atravessou a sala a correr e, quando estava a um metro de distância de Colt, atirou‑se‑lhe ao pescoço. Pendurou‑se ao colo do rapaz, com as coxas apoiadas nas ancas dele. Ninguém disse nada. Nenhum deles falou. Colt beijou Fran, e Fran beijou Colt.

         O velho Brennie foi até ao bar, atirou com uma moeda de libra para cima do balcão e disse ao velho Vic para tirar uma cerveja.

         Colt sentia o calor do corpo jovem de Fran, que pulsava de encontro ao seu. E mesmo depois de a pôr no chão, continuou a agarrar‑lhe na cara. Beijou‑a nos lábios, no queixo, no nariz, nas sobrancelhas e nas orelhas. Beijou‑a até que o velho Brennie lhe puxou pelo braço para lhe dar a cerveja. Ele apertou‑a de encontro ao peito e bebeu a cerveja de um trago, atirando o copo vazio para o meio do grupo. Zack apanhou‑o no ar.

Tinham‑se levantado todos e agrupavam‑se à sua volta.

         ‑ Ouve lá, rapaz, não devias estar aqui ‑ disse Zack.

         ‑ Olha que esses porcos andam à tua procura, estão sempre a aparecer por cá ‑ acrescentou Kev.

         ‑ Veio um ianque à aldeia à tua procura disse Billy.

         ‑ Vieste ver a tua mãe, rapaz?

         ‑ Sim, Brennie. Vim cá para vê‑la.

         O velho Vic saíra de detrás do balcão e juntara‑se aos outros. Trazia mais um copo de cerveja para Colt. Depois, foi até à porta principal do bar, fechou‑a e trancou‑a. Colt percebeu pela cara do velho Vic que tinha de beber a cerveja depressa e ir‑se embora. O velho Vic não queria sarilhos.

         ‑ Por onde é que tens andado, Colt? ‑ perguntou Kev.

Colt bebeu a cerveja.

         ‑ Por aí ‑ respondeu.

         O pai não sabia o nome de nenhum deles; para o pai de Colt, aqueles homens eram a escumalha da aldeia.

         ‑ Vais ficar aqui a beber ou vamos dar um passeio? ‑ disse Fran. Não tinha mudado nada naqueles dois anos. A filha do caçador furtivo era alta e forte, de ancas largas. Tinha o cabelo, de um ruivo ardente, atado com um elástico num rabo‑de‑cavalo. Pegou na mão de Colt e levou‑o até à porta. Nenhum deles o denunciaria.

         Saíram pelo pátio das traseiras do pub. Atravessaram dois campos, agachados e rente às sebes.

         No alto da colina que ficava a ocidente da aldeia, havia um antigo ninho de metralhadora. Era para lá que iam sempre; era onde tinham estado há dois anos, antes de ele se ir embora.

         ‑ O que é que te quer o americano?

         ‑ Quer matar‑me, se puder; e se não conseguir, quer prender‑me.

     ‑ Fugimos dele ‑ disse a rapariga.

 

         A CHUVA tinha parado e Erlich pôs o pano da tenda no chão para se sentar. Estava no meio das árvores, a uns metros da orla do bosque, mas via perfeitamente o declive dos campos que desciam até à casa, a cerca de seiscentos metros dali. Do seu posto de vigia elevado via também as janelas estreitas das escadas e a janela da cozinha, que estavam iluminadas. O resto da casa estava às escuras.

Estava oprimido por uma sensação de isolamento. Devia estar doido quando resolvera postar‑se naquele bosque tão solitário só para vigiar a casa do major Tuck na escuridão. Pensou em Don, Nick e Vito, lá em Atenas, e nos seus boletins, em que não diziam nada de novo. Viu o pai de Colt a descer as escadas. Depois, viu‑o enquadrado na porta da cozinha. A luz da cozinha apagou‑se. Em seguida, apagou‑se a luz da escada. Quando as luzes se apagaram todas, Erlich teve medo. Estava completamente sozinho.

 

         UMA BOA noite de amor, como há dois anos.

         Colt e Fran estavam no ninho de metralhadora. Tinham feito amor com ternura, delicadeza e alegria. E agora conversavam ternamente, mas não falavam de coisas sérias, e sim de coisas divertidas.

     - Lembras‑te?...

         Quando eles tinham ido às capoeiras dos faisões da coutada e os haviam deixado fugir, estragando a caçada aos finaços.

         Fran não tinha querido entrar para a Frente. Colt levara‑a a uma reunião, mas ela disse que os da FLA eram uma cambada de maricas e de pretensiosos. O que ela queria dizer era que os militantes levavam tudo demasiado a sério para o seu gosto.

         Fran não gostava de coisas sérias. Mas Colt contou‑lhe onde é que tinha estado e o que tinha feito. Não podia deixar de lhe contar. Falou‑lhe da sua fuga de Manor House e do voo que apanhara em Heathrow antes de a Polícia se ter organizado. Falou‑lhe da Austrália e do Kuwait e de como chegara ao Iraque. Falou‑lhe do seu emprego de professor de inglês dos filhos de um coronel iraquiano e de como tinha sido recrutado; contou‑lhe que tinha matado dois homens em Atenas e outro no Sul de Londres. Falou‑lhe da sua vida desde a última vez que tinham estado juntos, nus e abraçados, no ninho de metralhadora de onde se via a aldeia que era a sua casa.

         Fran, por sua vez, contou‑lhe o que sabia, que era que estava um carro estacionado atrás da sebe de azevinho de um campo na estrada de Frome.

 

         DESMOND barbeava‑se, e a mulher ainda estava deitada quando ouviu bater à porta da rua. Era o americano, que estava quase irreconhecível, enlameado da cabeça aos pés e com o casaco rasgado. O homem ofegava e estava furioso. Mas não era uma boa altura para conversar, porque o americano já se dirigia para o carro da Polícia, parado no parque. Desmond agarrou no casaco e nas chaves.

O portão do campo ficava a meio caminho entre a casa do polícia e a aldeia. A fechadura da mala do Ford fora forçada. O macaco estava no meio da lama, ao lado do carro, e as quatro rodas jaziam ali perto, do outro lado da sebe de azevinho, no campo. O Ford estava encalhado, inutilizado. Desmond teve vontade de rir, mas não se atreveu.

 

         RUTHERFORD encontrava‑se no gabinete do responsável pela segurança, no último andar do bloco principal da área F.

         ‑ Já lhe disse, Mr. Rutherford, que a nossa comunidade está acim de toda a suspeita. Como sabe, já houve traidores na Defesa, tal como nos seus serviços e nos Serviços de Informação, mas o Estabelecimento de Armamento Atómico tem uma reputação sem mácula. A lealdade dos nossos cientistas e engenheiros não é um problema que me preocupe.

         ‑ É só uma advertência geral.

         Rutherford achava que o homem era pretensioso, mas não era nada da conta dele. Não passava de um mensageiro enviado com a missão de transmitir um aviso geral.

Disse que se tratava da Comissão de Energia Atómica Iraquiana? Sim, pensamos que o perigo pode vir daí.

         ‑ Devem precisar de conhecimentos muito especializados. Tinham de saber quem é que procuravam, onde é que esse indivíduo trabalhava e depois tinham de o comprometer. E um dos grandes problemas que teriam seria identificar um dos nossos cientistas, Mr. Rutherford, e isso é praticamente impossível.

         ‑ Era uma advertência geral e limitei‑me a transmiti‑la.

         ‑ E eu tomei nota. Pode ter a certeza, Mr. Rutherford. Qualquer pessoa daqui ficaria horrorizada com a ideia de um regime tão brutal como o do Iraque ter acesso a armas nucleares. Não vão ter a ajuda de ninguém daqui do EAA.

         ‑ Quantas pessoas aqui estariam em posição de ajudar o regime do Iraque? - perguntou Rutherford baixinho.

         ‑ Umas vinte, quando muito.

         ‑ Pedia‑lhe o favor de se manter alerta com essas vinte pessoas.

         ‑ Mr. Rutherford, pode levar este recado para Londres: esses vinte homens e mulheres são dos melhores cérebros que trabalham em instituições científicas do Estado. Se pensa que vou dar ordens para abrirem o correio ou porem escutas nos telefones dos nossos cientistas mais ilustres só porque Londres ouviu uns boatos

         Rutherford levantou‑se.

     - Vou dizer em Londres que os Iraquianos terão de procurar noutro lado.

 

         COLT encontrou‑se com os dois homens no parque de automóveis de Wimbledon Common. O mais alto chamava‑se Faud, e o mais baixo, Namir. Faud disse que o seu nome constava da lista de funcionários do Centro Cultural Iraquiano de Tottenham Court Road, e Namir declarou que estava dado como sendo o motorista do adido comercial. Faud apontou para o caixote do lixo do parque de automóveis, que era esvaziado às segundas e às sextas‑feiras. Namir disse que Colt podia lá depositar uma mensagem no domingo ou na quinta‑feira e que ele revistaria o caixote nessas noites. Faud mostrou a Colt o telex de Bagdade decifrado e, depois de Colt o ter lido, Namir queimou‑o à chama do isqueiro.

         Colt tinha a morada, o seu ponto de partida.

         Disseram‑lhe que se tinha saído muito bem e que em Bagdade estavam muito satisfeitos por ele ter mandado Saad Rashid, o ladrão, para o inferno.

 

         O JAGUAR foi o primeiro a sair.

         Colt estava estacionado na berma da estrada, com o motor a trabalhar. Logo depois do Jaguar, saiu o Saab Turbo. Depois, viu sair o BMW, o Jaguar E e o Audi. Ainda teve tempo para fumar uma cigarrilha antes de o Fiat sair do portão. Um Fiat com uma matrícula antiga devia ser o carro que lhe interessava. Colt arrancou. Não sabia o nome da mulher, só que tinha de a seguir, porque o marido era um cientista que trabalhava no Estabelecimento de Armamento Atómico. Seguiu‑a quando ela saiu da estrada principal e atravessou um complexo residencial. Quando a viu parada à porta de casa, procurando as chaves na carteira, com um bloco de desenho debaixo do braço, Colt achou‑a bonita.

 

         HAVIA em todas as casas um autocolante com a inscrição GUARDA‑NOCTURNO. Colt fora a Newburv e comprara uma calculadora, um livro de contabilidade e um livro de recibos. Agora, estava sentado dentro do automóvel, nos Jardins de Lilases, a setenta e cinco metros da casa. Estacionara mesmo debaixo de um candeeiro de iluminação pública. Inventou uns recibos e assentou‑os no livro de contabilidade. Vestira uma camisa lavada e tinha posto uma gravata. Era um

caixeiro-viajante que parara num lugar tranquilo para pôr a papelada em ordem antes da última visita do dia. Vira novamente a mulher, que saíra de automóvel e voltara com dois rapazes pequenos.

Era importante saber quantas pessoas havia na casa. Mais tarde, as luzes indicar‑lhe‑iam onde ficavam dos membros da família.

Viu os homens dos Jardins de Lilases a voltarem para casa depois de um dia de trabalho. Os faróis do Sierra bateram‑lhe na cara e depois o carro virou, entrou no caminho cimentado e parou atrás do Fiat. Ele viu o homem que saiu do carro.

         Chuviscava. Colt ligou os limpa‑pára‑brisas e parou‑os depois de terem passado uma vez pelo vidro.

         Viu o casaco desportivo, o cabelo escuro, o homem que corria para a porta levando uma pasta. Colt gravou na mente a cara do seu alvo.

 

         O COMPARTIMENTO estava mobilado com arquivos ‑ com cada gaveta trancada por um cadeado forte ‑, uma secretária e cadeiras encostadas à parede. Não havia nenhum objecto decorativo "Típico", pensou Tork. O compartimento simbolizava tudo o que Tork mais admirava nos homens da Mossad. A maior simplicidade, nada de teatros.

         ‑ Será que eles são tão estúpidos que não conseguem interpretar a ameaça?

         ‑ Não estou a defendê‑los ‑ disse Tork. ‑ Mas não sei dizer como é que eles a interpretaram ou deixaram de interpretar.

         ‑ Se os Iraquianos usaram armas químicas contra o seu próprio povo, os Curdos, acha que hesitariam em usar um dispositivo nuclear contra nós? Têm mísseis Condor, capazes de atingir qualquer das nossas cidades. Um míssil com o alcance do Condor não foi concebido para transportar explosivos convencionais.

         ‑ Temos de partir do princípio de que na Century sabem tudo sobre os mísseis Condor e o seu estádio actual de desenvolvimento. ‑ Tork sacudiu com a mão o fumo do cigarro do israelita. Se apanhasse alguma vez um cancro do pulmão, era por causa do fumo que inalava nos gabinetes da Mossad.

         - E também sabem que o Dr. Tariq comprou recentemente quinze quilos de plutónio?

- Sim? ‑ Tork apontou qualquer coisa no seu bloco de bolso.

         ‑ Será que ainda precisam de mais explicações?

         ‑ Acho que a Century considera altamente improvável que os directores de programas de Tuwaithah estejam a tentar aliciar um cientista britânico. Tanto assim, e sem dúvida que há outros alvos mais prováveis, que querem saber mais pormenores antes de revolverem Aldermaston ou Sellafield à procura de iraquianos escondidos debaixo da cama.

         Quer dizer que não vão fazer nada enquanto não houver uma ogiva nuclear no Condor e o Médio Oriente não estiver à mercê de Bagdade?

         ‑ Numa comunicação separada, o meu chefe de secção recomendava‑me especialmente para lhes dizer que esperava que vocês lhe pudessem dar mais algumas informações.

         Despediram‑se com um aperto de mão, e Tork foi escoltado até ao exterior do edifício.

         Os agentes da Mossad eram implacáveis, e ele pensou quem seria o pobre‑diabo, condenado a uma vida de terror na clandestinidade, que receberia ordens para produzir a informação suplementar destinada a vencer a hesitação da Century.

 

         RUANE tinha os pés em cima da mesa.

         - Foi Colt? - perguntou.

         - Não necessariamente, de acordo com o polícia da terra - replicou Erlich. ‑ Parece que aquela gente não gosta de desconhecidos.

         ‑ Acha que ele está lá?

         ‑ Não sei, mas acho que anda por perto. Foi ele quem matou o iraquiano em Clapham Junction, tão certo como dois e dois serem quatro, Dan.

         Erlich já se tinha acalmado. A sua ira desvanecera‑se gradualmente, primeiro na banheira da casa do polícia, depois de lhe terem vandalizado o carro, mais tarde no comboio para Londres e finalmente no seu quarto da Audley Street, onde mudara de roupa. Pensou que Ruane era muito decente ‑ não fez nenhuma observação por causa do Ford nem disse uma única palavra por ele se ter ido embora sem avisar. Limitou‑se a perguntar:

         ‑ E agora o que é que se segue?

         ‑ Agora vou outra vez à procura de Rutherford para ele não se esquecer de mim ‑ disse Erlich.

 

COLT estava escondido na sombra de um dos lados da casa, olhando calma e atentamente à sua volta. O beco estava silencioso. Não havia luz nas casas que flanqueavam a do seu alvo. A luz do patamar das escadas da casa do alvo estava acesa, mas não havia luz nos quartos da frente, e as do andar de baixo também estavam apagadas.

         Colt deu volta à casa. Via‑se para dentro da cozinha. A luz do patamar de cima das escadas iluminava a entrada, passando através da porta da cozinha. Viam‑se pratos sujos que tinham ficado no lava‑louça para odiaseguinte.

         Foi muito fácil forçar a fechadura com um arame de dez centímetros. A porta abriu‑se.

         Colt sentou‑se no degrau da porta, tirou um par de meias de lã grossas da algibeira do anorak e enfiou‑as por cima dos mocassins. Abriu a porta só suficiente para entrar e depois fechou‑a no trinco. Atravessou a cozinha até à entrada e dirigiu‑se ao fundo das escadas.

         Ouviu um dos miúdos tossir e alguém a mexer‑se na cama, mas decidiu que o miúdo tinha tossido a dormir. A sala e a zona das refeições estendiam‑se a todo o comprimento da casa. Os cortinados das duas extremidades da sala comprida estavam corridos. Ele acendeu a lanterna. Havia papéis em cima da mesa, cartas, folhas de papel branco cobertas de colunas de números a lápis e um extracto de conta bancária. Enfiou umas luvas finas de borracha compradas num drugstore de Reading.

         Por baixo do extracto bancário estava uma carta endereçada ao Dr. Bissett e a Mrs. Bissett. Agora já sabia o nome deles ‑ Bissett. Leu a carta. Tirou do bolso um bloco e um lápis e copiou a carta, assentando depois o saldo negativo da conta. Aquela informação era um bónus, mas não fora a isso que ele viera.

         Revistou o rés‑do‑chão da casa. Encontrou na cozinha uma pasta com as iniciais F. B., mas estava vazia.

         Foi até às escadas. A luz do patamar estava acesa. A criança tossiu outra vez. A tosse vinha do segundo quarto. Seria o fim se o miúdo saisse do quarto agora para ir beber um copo de água à casa de banho. Colt subiu as escadas. Sentia o suor a escorrer‑lhe pela cara por baixo do passe‑montagne. Seria o fim se o miúdo saisse do quarto...

         Ao cimo das escadas havia quatro portas: três quartos e uma casa de banho. A porta da casa de banho estava escancarada e ele ouviu uma torneira a pingar. As portas de dois quartos também estavam abertas, a do quarto pequeno, que dava para a frente da casa, e a de outro, nas traseiras. A porta do quarto principal estava fechada. Colt estava no cimo das escadas e tinha de tomar uma decisão difícil. Se apagasse a luz do patamar, os miúdos podiam acordar com a escuridão repentina. Se a deixasse acesa, quando abrisse a porta do quarto principal, onde tinha de entrar, a luz entrava também no quarto. Apagou a luz do patamar e abriu a porta com precaução. Felizmente, o quarto estava às escuras.

         Colt tinha a lanterna na mão. Precisava de a acender. A mulher tinha uma respiração leve e regular, mas a respiração do homem era sacudida, como se ele tivesse um sono tão ligeiro como uma camada fina de geada. Colt parou aos pés da cama e voltou‑se de costas para eles para interceptar com o corpo o feixe luminoso da lanterna. A luz espiolhou o quarto, iluminando momentaneamente a cara do homem com o seu brilho fraco.

         A mulher mexeu‑se. Colt imobilizou‑se, encostando o vidro da lanterna ao peito. A mulher, que estava do outro lado da cama, mexeu‑se novamente. Colt continuava imóvel como uma pedra. A mulher ficou quieta ‑ talvez estivesse a sonhar. Mas Colt continuou à espera.

         A luz da lanterna incidiu numa cadeira que estava do lado da cama onde dormia o homem. As calças dele estavam dobradas no assento e o casaco pendurado nas costas da cadeira. Colt meditava e estudava todos os passos antes de deslocar o peso do corpo sobre cada pé. Havia uma carteira no bolso interior do casaco. Colt tirou a carteira e abriu‑a. Mas aquilo que procurava não estava lá dentro.

         O miúdo tossiu outra vez. A mulher mexeu‑se novamente, e Colt imobilizou‑se.

         A algibeira lateral do casaco ‑ não, só lá estavam as chaves do carro. A segunda algibeira. Apalpou o cordão e a superfície plástica fria. Tirou do bolso um cartão de identificação do Estabelecimento de Armamento Atómico. Escreveu na agenda o nome que constava do cartão, Frederick Bissett, o número do cartão, o formulário de autorização de acesso à área H e o prazo de validade do cartão. Enfiou novamente o cartão na algibeira ‑ encontrara o que procurava.

         Colt saiu do quarto e fechou a porta. Acendeu novamente a luz do patamar, desceu as escadas e entrou na cozinha. Serviu‑se outra vez do arame para trancar a porta da cozinha depois de sair.

 

         Quando Colt colocou a sua mensagem por baixo do caixote do lixo, os primeiros praticantes de jogging já andavam a correr em Wimbledon Common. O texto da mensagem consistia numa cópia de tudo o que assentara no bloco.

         Ele era apenas mais um condutor que parava no parque para respirar ar puro, mais um condutor que levava no carro um saco de plástico cheio de lixo e que o ia depositar no caixote antes de ir para o emprego.

         Não dava nas vistas e passou completamente despercebido.

 

     RUTHERFORD geralmente chegava cedo ao emprego, mas a funcionária administrativa da secção era ainda mais madrugadora. Entregou‑lhe duas folhas de papel com mensagens. Eram ambas de Erlich. Encontrou Hobbes, o chefe da Secção de Segurança Militar, à briga com a máquina das sanduíches.

     ‑ Como é que isso correu? ‑ perguntou Hobbes.

         ‑ Transmiti a sua advertência e ouvi um sermão sobre a eficácia excepcional da segurança no Estabelecimento de Armamento Atómico.

         ‑ óptimo. ‑ Hobbes conseguiu extrair uma sanduíche da máquina. ‑ Isto é o que eu chamo um triunfo do intelecto em circunstâncias muito adversas.

         ‑ Erlich está em pulgas. Já me telefonou duas vezes esta manhã.

         ‑ Veja se o acalma e principalmente não o deixe meter‑se em sarilhos.

         Assim que Rutherford se instalou confortavelmente na sua cadeira, o telefone tocou.

         ‑ Olá, Bul. Ia agora mesmo telefonar‑lhe. Vou consigo até àquela aldeola infecta para os vigiarmos sem você cair com a cara na lama, e para a Embaixada dos Estados Unidos não ficar com deficiência de transportes.

 

         HAVIA alturas em que o Sueco, no seu pequeno bungalow do recinto onde estavam alojados os estrangeiros, sonhava em voltar costas ao perigo e ao medo. Mas quando ia passar férias à Europa, duas vezes por ano, e se encontrava com a gente da Mossad, nunca tinha coragem para lhes dizer cara a cara que queria desistir. Achava que era preciso mais coragem para desistir do que para continuar. Percebera isso logo no primeiro dia em que chegara a Tuwaithah e no primeiro dia em que mandara informações para fora do país através do seu contacto.

         Não conhecia esse contacto. As informações eram transmitidas através de uma caixa postal do novo edifício dos Correios da Rua Al‑Kadhim, no bairro antigo de Bagdade. Ele tinha a chave da caixa e o contacto também. O espião e o contacto que lhe servia de correio nunca se encontravam.

         Leu a mensagem. Ia uma vez por semana a Bagdade. Foi às compras, almoçou no Ishtar Sheraton e atravessou a Ponte Al‑Jumhuriyah, dirigindo‑se para a cidade velha amuralhada e para o correio.

         Depois, voltou de automóvel para Tuwaithah.

         Era a primeira vez que pediam ao engenheiro químico sueco informações mais detalhadas.

COLT alugou um quarto numa casa da zona sUl de Newbury. Os proprietários eram um casal jovem com um bebé.

         A casa era praticamente nova e ficava numa rua sossegada. Podia entrar e sair à vontade, e dali aos Jardins de Lilases, em Tadley, eram menos de 15 quilómetros.

         Colt deitou‑se em cima da cama. Ia descansar até à noite.

 

         DON, NICK E VITO formavam uma boa equipa. Entre os três, estavam aptos a enfrentar todos os meandros de uma investigação.

         As peças começaram a encaixar quando Don recebeu de Ruane a fotografia de Coim Tuck, enviada de Londres por telecópia. Don achou que Erlich, o novato, tinha feito bom trabalho enviando o nome e a fotografia de Colt. Don mandou Vito e Nick investigarem com a fotografia. Descobriram o quarto alugado onde Colt passara a noite na véspera do atentado e conseguiram uma identificação ‑ feita por um jugoslavo que morava na mesma casa ‑, mas o quarto estava vazio e não havia impressões digitais. Vito foi para o aeroporto e verificou a lista de passageiros de todos os voos que tinham saído de Atenas na manhã e na tarde em causa. Como essa investigação não produzisse resultados, ele e Nick estudaram as listas dos membros da tripulação de todos os voos da Olympic Airways. Uma hospedeira de bordo a quem mostraram a fotografia lembrava‑se do homem retratado, que tinha sido um dos passageiros de um voo para Ancara. Não quisera comer nem tomar café. Ela indicou o número do lugar a Vito e o computador da companhia de aviação revelou‑lhes um nome, o qual, num passaporte irlandês, tinha sido visto pelos funcionários da Imigração que estavam de serviço na manhã em causa. Claro que o passaporte era falso, mas não interessava.

         Falando por uma linha de alta segurança da Embaixada Americana em Ancara, Vito anunciou que descobrira a funcionária que fizera o check‑in do voo para o Iraque na tarde da chegada de Colt; ela reconhecera a fotografia. O voo para o Iraque saíra atrasado. Devia ter havido uma troca de passaportes em trânsito em Ancara ‑ por um passaporte britânico. Ela lembrava‑se do passaporte britânico e do visto de entrada no Iraque. No Aeroporto de Ancara, não tinham a lista dos passageiros do voo e não estavam dispostos a perguntar aos funcionários iraquianos se dispunham dessa lista. Mas não tinha importância. Já sabiam que o filho da mãe havia saído de Atenas e que passara por Ancara em trânsito, sabiam da troca de passaportes e que ele tinha seguido para o Iraque num voo que se atrasara.

         Levara tempo, mas os resultados estavam à vista.

Agora, estavam os três sentados no gabinete que lhes fora atribuído na embaixada em Atenas.

         ‑ É tudo limpo demais, tão bem organizado que Colt certamente não está ao serviço de algum grupo de tarados ‑ comentou Nick.

     ‑ Está ao serviço de um governo ‑ concordou Vito.

         Não havia mais nada a fazer em Atenas. Don telefonou ao chefe da secção de Atenas para lhe dizer que se iam embora no dia seguinte.

 

         QUANDO escureceu, Colt saiu da casa de Newbury e percorreu a pé três quarteirões até ao sítio onde deixara o carro.

         Colt era a borboleta, e a mãe era a chama. Foi direito a casa e ao quarto dela.

 

     ‑ CLARO que quero que a visites. Só não quero que te apanhem.

         O rapaz era o seu tormento.

         Ainda se lembrava tão bem da madrugada em que a Polícia fizera a primeira rusga, pensou o major. Ele e Louise, de roupão na entrada, enquanto os policias de uniforme e os detectives armados invadiam a casa. E depois da rusga tinham continuado sempre a ser vigiados.

     ‑ Foi uma loucura ires ao pub!

     ‑ Não me vão denunciar. São meus amigos.

     - Amigos? Não tens amigos! São uma escumalha. Só me tens a mim e à tua mãe. E a mais ninguém, Colt.

         Quando a Polícia chegara, nessa madrugada, o cabelo de Louise ainda era louro‑claro, dourado e macio. Agora estava grisalho. Os especialistas que eles haviam consultado sucessivamente, na esperança de ouvirem melhores notícias, tinham dito que o stress apressara a disseminação do cancro.

         Depois da rusga, ele e Louise tinham arrumado a casa. Nenhum deles pronunciara o nome do rapaz durante esse trabalho. Se ele tivesse dito o nome do rapaz, a mulher não aguentava. Mas o rapaz não era um cão raivoso que eles pudessem abater porque tinha mordido o carteiro; era filho deles. Era impossível escapar ao amor, por muito grandes que fossem o sofrimento e a confusão.

         - Queres alguma coisa?

     ‑ Não vim aqui buscar nada. Só quero ver a mãe.

         - Precisas de dinheiro? Posso ir ao banco.

     ‑ Não preciso de nada. Tenho dinheiro de sobra.

     ‑ És um... ‑ Mas engoliu os insultos e recuou, porque por um instante teve medo de que o filho lhe batesse. Mas o rapaz continuava muito calmo. Ele gostava tanto do filho!

         Colt disse em voz baixa:

         ‑ Sentia‑se feliz quando estava em França?

         ‑ Lutava por uma causa, acreditava nela!

         ‑ Mas na altura nem pensava nisso.

         ‑ Estava a fazer o meu dever. Sabia que estava a agir como devia.

         ‑ Mas também nunca pensava nisso.

         ‑ Porque é que achas que lá estava?

         ‑ Porque queria ter liberdade.

         A liberdade dele fora ser perseguido, mas estar sempre convencido de que não ia ser apanhado, torturado e morto. A liberdade fora fazer o que queria, longe dos militares de gabinete que tinham ficado em casa, que nunca tinham dormido em grutas nem fugido a sete pés de uma estação armadilhada com explosivos.

         ‑ Somos iguais, pai. Tem de admitir isso.

         Ele olhou para a cara do filho.

         ‑ Antes de te ires embora, se puderes voltar, faz esse favor.

         O rapaz deu‑lhe um beijo e ele abraçou‑o. Ficou no patamar a ver o rapaz descer as escadas em passo leve.

         As sombras acumulavam‑se à sua volta, da sua idade e da sua solidão. Quando voltou para o quarto para preparar os remédios da noite, ouviu a porta da cozinha a fechar‑se atrás do seu filho.

         ERA UMA NOITE selvagem e medonha, uma noite para os texugos andarem à vontade, sem receio de serem perturbados, para o raposo soltar latidos roucos, respondidos por uma fêmea, e para um mocho se agarrar à hera entrelaçada num velho carvalho. Uma noite para um homem que adorava a liberdade e que nunca seria apanhado. Colt estava em uníssono com a escuridão e os elementos. Era tão livre como o texugo, a raposa e o mocho no carvalho, por cima da sua cabeça.

         De pé, à porta do ninho de metralhadora, não se detinha a pensar qual teria sido o erro que cometera para trazer à aldeia os homens dos Serviços de Segurança e do FBI. Fran estava muito chegada a ele. Com um gesto lento e deliberado, ela apontou para a direita, para a orla do bosque atrás de Manor Ilouse. Viu qualquer coisa a mexer.

 

É UMA visão triste

Assistir à morte do ano,

Quando os ventos de Inverno

Fazem suspirar os bosques amarelos:

Suspirar, ai, suspirar!

 

         - Por amor de Deus, Bill, cale a boca.

         - Edward FitzGerald, um excelente poeta. Não tão famoso como Tennyson, mas...

         - Vai acordar toda a aldeia. É o que quer?

         ‑ Só queria entretê‑lo.

         Erlich e Rutherford estavam há duas horas no bosque.

         ‑ Vou colocar‑me umas centenas de metros mais para diante para ver melhor o lado da casa. Fico lá até ao nascer do dia.

         ‑ Está bem.

         Erlich ficou aborrecido, mas esperou que o outro não tivesse percebido. Sentiu a tenda a abanar quando Rutherford saiu de gatas. Espreitou a casa com o binóculo, mas não viu nada.

 

         RUTHERFORD avançou sem se apressar ao longo da orla do bosque, apoiado nos joelhos e nos cotovelos, parando a intervalos de dois ou três minutos para examinar a casa. Descobriu uma camada de folhas quase secas por baixo de uma faia, perto da linha exterior das árvores, e abrigou‑se nesse local.

         Então, ouviu um grito, um grito de desespero.

         Levantou‑se de um pulo. Era Erlich, de certeza. Fora um grito de dor e de terror.

         Desatou a correr, tropeçando por entre as árvores, abrindo caminho a braço e a pontapé pelo meio dos ramos mais baixos das árvores e do mato.

         Levou uma eternidade a chegar ao sítio onde deixara Erlich.

         Viu as silhuetas deles à luz fraca da noite ‑ eram dois. Viu o frenesi de murros e pontapés.

         Aproximou‑se deles. De certeza que o tinham ouvido a chegar, mas não paravam de espancar e pontapear a sombra que se torcia debaixo da tenda. Ele não estava armado, mas nem sequer se lembrou disso. Atirou‑se para a frente para os obrigar a largarem o americano. mergulhando para cima deles. Sentiu tecido e agarrou‑o. As duas figuras separaram‑se, e Rutherford vacilou, atingido por um pontapé na canela. Deram‑lhe um murro na cara. Caiu, rebolando para fora do alcance deles.

Fez bluff:

     ‑ Parem ou atiro.

         Eles fugiram. O bluff resultara. Estava deitado de costas no chão e não os via. Eles haviam desaparecido silenciosamente. Rutherford ficou à escuta, mas só ouvia o barulho do vento nas árvores, a chuva a cair e os gemidos do americano.

         Tirou da algibeira uma lanterna pequena e avançou a rastejar. Puxou o pano da tenda para trás e virou a luz da lanterna para a sua própria cara, para Erlich ver a luz e saber quem é que ali estava; depois, voltou a lanterna para baixo. Há muito tempo que não via a cara de um homem tão metodicamente espancado e pontapeado.

         Erlich estava enrolado sobre si mesmo, com os joelhos de encontro ao peito. Tinha uma respiração sacudida e sibilante.

         - Pronto, Bill. Já se foram embora.

         Levantou Erlich com jeito. Escorria‑lhe sangue do nariz e de um golpe que tinha por baixo do olho.

         Já não valia a pena esconderem‑se. Um cão começou a ladrar em Manor House quando atravessaram o campo. Não podiam evitar ser vistos da aldeia. Rutherford coxeava por causa do pontapé na canela e porque tinha de aguentar com o peso de Erlich, que se apoiava no seu ombro. Erlich passara o braço em volta do pescoço de Rutherford, que era muito compacto. Depois da sua reacção inicial de medo e surpresa, Rutherford começou a ficar irritado por Erlich se ter deixado apanhar desprevenido. Se calhar, estava a recitar versos de Wordsworth. Mas o espanto ainda era maior do que a irritação. O homem estava moído de pancada. Porquê? Para quê? Não tinha explicação.

         E não teve coragem de dizer a Erlich que um deles era uma mulher, pelo menos para já. Estragava‑lhe a noite.

         Tiveram de andar mais de três quilómetros para chegar à outra aldeia, a casa do polícia, onde tinham deixado o carro.

 

         O DR. TARIQ beberricava o seu sumo acabado de fazer.

         O coronel dos Serviços Secretos viera em missão oficial. Disse o nome do homem e depois repetiu:

         ‑ Frederick Bissett, do Estabelecimento de Armamento Atómico de Aldermaston.

         ‑ E qual é o lugar dele?

         ‑ Investigador principal.

         ‑ A que secção pertence?

         ‑ Tem um cartão de identificação que lhe dá acesso à zona do edifício H3.

     ‑ O H3 é onde uma equipa de cientistas muito conhecidos estuda a implosão, coronel. Como é que podemos aliciá‑lo?

         ‑ Oferecendo‑lhe dinheiro, julgo eu. ‑ O coronel abriu a pasta e entregou ao Dr. Tariq a transcrição da mensagem de Londres.

         O Dr. Tariq leu e fez um leve sorriso.

         ‑ Um investigador principal dessa secção. Estou muito interessado, coronel, desde que me possa garantir que não estamos a importar um espião estrangeiro para a minha equipa. Conseguir um cientista da melhor equipa britânica seria tão excepcional que só isso poderia parecer suspeito, mas reconheço que as circunstâncias em que descobriu que ele talvez esteja interessado em trabalhar para nós são também tão excepcionais que talvez estejamos com sorte.

         O Dr. Tariq resumiu as condições que seriam oferecidas a Bissett e declarou que ia preparar ainda nesse dia uma lista de perguntas a fazer antes de chegar a acordo com ele.

 

         ‑ AMANHÃ de manhã, preciso mesmo do seu relatório na minha secretária ‑ disse Reuben Boll da porta do gabinete de Bissett.

         ‑ Bom, não sei se

         ‑ Na minha secretária, amanhã de manhã, o mais tardar. Se for preciso, fique cá de noite a fazê‑lo. Sabe que mais, Frederick? Antigamente, quando alguém tinha um trabalho urgente, não se ia embora sem o ter acabado.

         Bissett não tinha coragem de dizer a verdade a BoIl. Sara ia nessa noite a uma reunião de pais da escola dos filhos. Tinham combinado de manhã que ele ficava a tomar conta dos miúdos. Ele não podia ficar até mais tarde porque prometera a Sara que iria cedo para casa.

         ‑ Não se preocupe, Reuben. Amanhã de manhã tem o relatório na sua secretária.

 

         PENNY ainda estava de roupão e tinha aquele ar, de que Rutherford tanto gostava, de alguém que acaba de sair do quentinho da cama.

         ‑ Meu Deus, parece que andaram na boca de um cão!

         ‑ Este é Bill Erlich, querida. Bill, a minha mulher, Penny.

         ‑ O que é que vocês andaram a fazer?

         ‑ Se quisesses ser um anjo, tratavas dele ‑ pediu Rutherford.

         Penny era enfermeira e já tinha visto pior. Levou Erlich para o andar de cima.

         Rutherford foi para a sala e arranjou um whisky. Ouviu um banho a correr lá em cima.

 

     Tinham chegado a casa do polícia quando os primeiros alvores do dia raiavam por detrás das nuvens de chuva. Tiveram cinco minutos de conversa rápida com o polícia: Desmond saberia quem seriam os dois jovens, um rapaz e uma rapariga, capazes de espancar um homem a sangue‑frio?

         Havia por ali muita gente capaz disso. Pelo menos uma dúzia de homens e meia dúzia de mulheres.

         O mínimo que Rutherford podia fazer era levar Erlich para sua casa. Durante o caminho, tinham conversado, apesar de o homem do FBI ter a boca tão inchada que mal conseguia falar. Não podiam ter a certeza de que tivesse sido Colt. Eles eram dois, e deviam ter sido capazes de agarrar pelo menos um dos atacantes.

         Penny desceu as escadas com a roupa de Erlich na mão.

         - É simpático.

         - Teve sorte de não o terem matado.

 

         COLT dormia o sono dos justos no seu quartinho de Newbury. O homem que espancara estava a rondar as traseiras da sua casa. O facto de o homem ser americano e agente do FBI não era suficiente para lhe perturbar o sono. Por causa do homem, das implicações da sua presença no bosque das traseiras da casa do pai, ele não podia lá voltar. E a lembrança da despedida, na madrugada húmida, também não lhe tirava o sono. Pegara na mão da mãe, apertara a do pai, passara a mão pelo pescoço do cão e partira. Era um homem solitário, acordado ou a dormir, e havia muitos anos que vivia assim.

 

         BISSETT não telefonou a Sara a dizer que tinha de ficar até mais tarde no emprego. Não lhe pediu para desistir da reunião da escola, mas só saiu da secretária à hora em que Sara o esperava em casa.

         Chegou junto do portão e dos holofotes. O polícia inclinou‑se para a janela do automóvel.

         ‑ Identificação, por favor. ‑ Bissett sacou do cartão e mostrou‑o.

     ‑ Isto é uma inspecção de segurança, Dr. Bissett. Posso ver a sua pasta, se faz favor?

         ‑ A minha mulher está à minha espera. Estou com muita pressa...

         ‑ Então, quanto mais depressa me mostrar a pasta, Dr. Bissett, mais depressa se vai embora.

         O carro foi inundado pela luz dos faróis dos automóveis que vinham atrás. Há um ano que não o mandavam parar. Sentiu um vazio no estômago.

     ‑ Tenho de ler muitas coisas até amanhã de manhã.

         - Por favor, Dr. Bissett disse o polícia com alguma impaciência.

         Ele pegou na pasta e abriu‑a em cima do colo: lá dentro estavam a caixa das sanduíches e o termo, vazios, e dois dossiers. Os dois dossiers tinham bem à vista o autocolante com as letras encarnadas sobre fundo branco, as letras da palavra "secreto".

         A barreira foi imediatamente fechada à sua frente. O polícia do ministério endireitou‑se e Bissett ouviu‑o falar para o rádio portátil. Sentiu‑se mal.

         O polícia deu uma ordem brusca numa voz de onde se desvanecera toda a delicadeza:

         - Arrume o carro na berma, e depressa.

 

     O COMPARTIMENTO não tinha outra decoração além do retrato da praxe da rainha.

         Bissett estava sentado a uma mesa numa cadeira de costas direitas, com a cabeça apoiada nas mãos. Nem queria olhar para o polícia, que estava de pé à porta de braços cruzados e com uma expressão impassível.

         Nunca na vida passara uma vergonha tão grande. Tinham‑no mandado sair da fila de carros e encostar à berma junto à vedação alta de rede metálica de Falcon Gate. Quando abriu a porta do carro, estavam dois polícias à sua espera; um deles pôs‑lhe a mão na manga para o ajudar a sair do carro, e o outro estendeu o braço para pegar na pasta. Outro ainda fazia sinal aos restantes carros para avançarem. Foi arrancado de dentro do automóvel, empurrado para as traseiras de uma carrinha da Polícia e levado até ao edifício da segurança.

         Tinham‑no mandado entrar para aquele compartimento e chamado um inspector para vir falar com ele. Bissett explicara tudo novamente. Era simples: estava com muito trabalho, precisava de acabar um relatório, a mulher ia a uma reunião de pais e ele tinha de ficar a tomar conta dos filhos. A explicação era perfeitamente lógica e devia ficar tudo esclarecido. Mas não ficou. O inspector não discutiu com ele, não disse nada; limitou‑se a ir‑se embora, deixando Bissett na companhia do polícia.

         Ele tinha perguntado se podia telefonar à mulher, que estava à sua espera, mas o polícia abanou a cabeça. Ela ia ficar furiosa, mas por uma vez esse era o menor dos males. Ficou ali sentado, envergonhado e muito infeliz.

         O chefe da segurança entrou na divisão com o inspector atrás. Mandaram embora o polícia, e o inspector ficou de pé no lugar dele. O chefe da segurança avançou e sentou‑se à mesa.

         ‑ Dr. Bissett? Dr. Frederick Bissett?

         ‑ Sim, sou eu.

     ‑ Há quantos anos trabalha cá, Dr. Bissett?

         ‑ Desde 1979, foi quando entrei...

         ‑ Por isso, não é novo aqui. Conhece as regras?

         ‑ Conheço.

         Fez‑se um silêncio pesado no compartimento onde decorria o interrogatório.

         ‑ Comprometeu‑se a respeitar o Regulamento dos Segredos Oficiais, Dr. Bissett?

         ....... sim, comprometi ‑ gaguejou ele.

         ‑ E conhece as medidas de segurança aplicadas no Estabelecimento?

         ‑ Sim, claro que conheço.

         A voz do responsável da segurança tornou‑se mais ríspida:

         ‑ E qual era a sua intenção ao tentar levar para fora do Estabelecimento dossiers secretos que nunca deviam ter saído das instalações?

         Ele sentia‑se muito fraco. Explicou tudo outra vez.

         ‑ Dr. Bissett, é a primeira vez que o senhor tenta levar às escondidas material secreto para fora do Estabelecimento?

         ‑ Não permito que me fale assim. Não estava a levar nada às escondidas.

         ‑ Quer dizer que o seu comportamento não foi criminoso, mas só de uma estupidez crassa?

         Ele apoiou novamente a cabeça nas mãos.

         ‑ Fui muito estúpido...

         ‑ Só estúpido, Dr. Bissett? Trabalhar em casa com esses papéis seria só uma estupidez. Mas ter outras intenções seria um crime.

         Ele pôs‑se de pé, agarrado à mesa. Levantou a voz.

         ‑ Isto é um disparate que eu não estou disposto a aturar mais.

         ‑ O que é que é um disparate, Dr. Bissett?

         ‑ Sugerirem que eu sou um criminoso.

     ‑ Julgo que não o acusei de tal coisa, Dr. Bissett. - Naturalmente, agora gostaria de ir para casa?

         Antes de sair do edifício da Polícia, o chefe da segurança felicitou o inspector pela vigilância dos seus homens e levou consigo os dossiers com a inscrição SECRETO. E antes de se ir embora para casa, telefonou para o funcionário do turno da noite da Brigada D dos Serviços de Segurança para solicitar que o telefone de casa de Frederick Bissett, no número 4 dos Jardins de Lilases, Tadley, Berkshire, fosse colocado imediatamente sob escuta. Provavelmente, o tal Bissett andava em stress, não era mais do que isso.

                                                                                                          

         Os MIÚDOS estavam na sala a ver a Dinastia. Já passava da hora de eles se irem deitar. Nem sequer olharam para ele. Eram crianças inteligentes que tinham boas notas na escola. Ele gostava muito deles, mas muitas vezes não sabia como é que havia de lhes demonstrar esse amor.

         Sara não se encontrava na casa de jantar nem na cozinha. O jantar dele estava no forno. As salsichas estavam pretas, o feijão, congelado, e o puré de batata, cor de chumbo.

         Subiu as escadas e foi até ao quarto. Sara estava deitada de costas voltadas para a porta e com a luz apagada.

         Ele sentou‑se na cama ao lado dela e tentou pegar‑lhe na mão, mas ela retirou‑a. Ele contou‑lhe o que sucedera e o que o chefe da segurança lhe tinha dito.

         Sara voltou‑se finalmente para ele.

         Acertou em cheio. Uma estupidez crassa, é isso mesmo.

         ‑ Ele disse que eu fora estúpido, mas que não era um criminoso.

         ‑ Não terias coragem para ser criminoso, mas não me parece que criminoso fosse bem no que ele estava a pensar. Se mandaram chamar o chefe da segurança, é porque pensaram que tu eras um espião ou um traidor. Mas eu também os podia ter sossegado acerca disso.

         Ele deixou‑a novamente às escuras e foi até à cozinha ver se descobria uma alternativa para o jantar que ela lhe guardara.

 

         O CORREIO da Embaixada Iraquiana era trazido de Heathrow num automóvel com matricula diplomática. A área de comunicações secretas da embaixada ficava na cave, ao lado da sala de descodificação, e não era mais que uma caixa metálica de quatro por quatro metros, com dois metros de altura. Era o único local da embaixada onde o adido militar se sentia em segurança para discutir os aspectos confidenciais do seu trabalho com Faud e Namir. Leram cada um por sua vez as instruções do coronel e prepararam uma mensagem que seria deixada nessa noite em Wimbledon Common.

         Quando saíram da atmosfera sufocante da caixa, Faud apanhou um táxi para Sussex Gardens, onde morava o adido comercial. Quando lá chegou, pediu ao adido comercial para telefonar imediatamente para casa de Mr. Justin Pink para marcar um encontro para o dia seguinte de manhã para discutirem um assunto importante relacionado com um contrato.

 

         ‑ SE ESTOU a exigir‑lhe demasiado, Frederick, tem de me dizer. Bissett estava de pé diante da secretária de BoIl com dois dossiers na mão. Fora logo de manhã ao gabinete do chefe da segurança e tinha‑lhos entregado sem mais comentários. ‑ Formamos uma equipa, e uma equipa não vale mais do que o elo mais fraco da cadeia.

         Ele dormira mal. Sara não lhe dirigira a palavra enquanto arranjava as crianças para irem para a escola, e ele preparara sozinho o seu pequeno‑almoço.

         ‑ Nós aqui estamos bem, mas nas outras secções queixam‑se de falta de pessoal. Só podemos justificar a nossa posição privilegiada se formarmos uma equipa excepcional. Entende isto, não é verdade, Frederick? ‑ A moderação fingida de BolI era de dar vómitos. Via‑se que o chefe da segurança tinha falado com ele. Bissett tinha a certeza de que toda a gente sabia do sucedido. ‑ Está a ouvir‑me, Frederick?

         Bissett perdera completamente o fio à meada, mas murmurou umas palavras de assentimento.

         ‑ Há muita gente que está ansiosa por menosprezar o nosso trabalho, qualificando‑o de medíocre. Mas temos grandes responsabilidades e exijo que as pessoas que trabalham comigo dêem o seu melhor, não me contento com menos.

         ‑ Espero acabar o relatório até à hora do almoço, Reuben.

         ‑ O episódio infeliz da noite passada já está esquecido, Frederick.

         ‑ Obrigado, Reuben.

 

         ESQUECIDO? Não completamente. O chefe da segurança, fiando‑se nas informações de Reuben Boll, talvez estivesse resolvido a esquecer o facto de o Dr. Bissett ter tentado levar documentos secretos para fora do Estabelecimento. Mas o incidente não ia ser esquecido, porque os Serviços de Segurança da Curzon Street tinham telefonado a avisar que aquele presumido do Rutherford ia voltar ao Estabelecimento nesse mesmo dia. Por uma questão de precaução, claro.

 

     ‑ VOCÊS vêm, não vêm?

         ‑ Não sei. Não é...

         ‑ Têm de vir. São só uns amigos, pessoas simpáticas.

         ‑ Não é fácil arranjar uma baby‑sitter.

         Justin Pink disse:

         ‑ Tente. Dê‑se a esse trabalho.

         ‑ Não sei se Frederick... ‑ começou Sara a dizer.

         ‑ Obrigue‑o a vir. Não aceito desculpas. As nossas festas são sempre muito divertidas, Sara. Talvez a gente não preste para mais nada, mas pelo menos sabemos dar festas.

         Sara sorriu:

         ‑ Está bem. Lá estaremos.

         ‑ Assim é que é!

         A mão de Justin Pink roçou durante um instante pela anca de Sara. Debbie estava na cozinha a fazer café, e as outras estavam na sala a armar os cavaletes.

         Pink olhou‑a com admiração. Ela já nem se lembrava há quanto tempo um homem a olhava daquela maneira. Quando é que Frederick tinha olhado assim para ela, com adoração, pela última vez? Já nem se lembrava.

         ‑ Então, até logo à noite e muito obrigada.

 

         ELA FOI MUITO firme ‑ não admitindo desculpas. Dez minutos depois de Bissett ter chegado a casa, contou‑lhe a combinação que fizera para essa noite.

         ‑ Quero ir, Frederick, e tu vens comigo.

         E os miúdos? Não podiam ficar sozinhos.

         Estava tudo combinado. Tinha arranjado uma pessoa para ficar com eles, uma vizinha.

         Ele não conhecia aquela gente. Ela sabia muito bem que ele detestava ir a festas onde não conhecia ninguém!

         ‑ São pessoas muito simpáticas e vai fazer‑te bem distraires‑te.

         Bissett não conseguiu arranjar mais nenhuma desculpa. Já tinha entregado o relatório dactilografado, que devia estar guardado no cofre de Boll.

         ‑ E o que é que eu levo vestido?

         ‑ Sei lá! Lá naquele maldito lugar são todos como tu? Ninguém é capaz de tomar uma decisão? Como é que vocês conseguem fazer alguma coisa?

         ‑ Está bem, mas na condição de voltarmos cedo para casa.

 

   FAUD e Namir já lá estavam quando Colt entrou com o automóvel no parque de estacionamento de Wimbledon Common. Passou para o carro deles e explicaram‑lhe o que devia fazer.

         ‑ Querem que eu faça isso?

         Eram as instruções, e eles não permitiram que as discutisse ou que se recusasse a obedecer‑lhes. Colt considerou que um dos dois, Faud ou Namir, levava certamente uma pistola. Se recusasse, não dava mais do que alguns passos antes de ser abatido. O parque de estacionamento estava vazio. E para onde é que havia de fugir? Bagdade era o seu único refúgio, mas só se se portasse bem e se eles o deixassem voltar para casa. Para casa ‑ seria essa a sua casa?

         E se falhasse, era mais do que certo que o abandonariam à sua sorte.

         Eles repetiram as instruções.

         ‑ Têm de me dar outra vez a Ruger ‑ disse‑lhes Colt.

 

         RUTHERFORD via pela janela o rio de automóveis e autocarros que saíam de Falcon Gate. Estava no gabinete contíguo ao do chefe da segurança desde o princípio da tarde. Tinham‑lhe entregado o dossier pessoal de Bissett para ele ler; por sinal, era tão fino como uma bolacha de baunilha, e, a propósito de bolachas, não lhe tinham oferecido nada, nem sequer uma chávena de chá. Estava‑se a ver que não era bemvindo. O seu cargo não impressionava o chefe da segurança.

         Ouviu umas passadas estrondosas.

         ‑ Tudo bem, Rutherford?

         ‑ Tudo bem, tanto quanto posso ver.

         ‑ Acho que não precisa de ver mais nada.

         Se lhe tivessem oferecido uma chávena de chá, já para não falar de uma bolacha ou uma sanduíche, Rutherford não teria sido tão teimoso. Rodou a cadeira.

         ‑ Temos de ver melhor, não lhe parece?

     ‑ Estou convencido de que Bissett só foi burro.

         ‑ Depois de ter falado com ele, talvez partilhe da sua opinião.

         ‑ Não me parece que isso seja necessário, Rutherford.

         ‑ Sabe melhor do que eu, porque já tem muita experiência, que a Curzon Street não desiste assim às boas. Não sou pago para as pessoas se verem livres de mim com facilidade e isto ‑ pegou no dossier de Bissett e deixou‑o cair novamente na mesa ‑ não prova nada a ninguém na Curzon Street.

         ‑ Foi uma vez sem exemplo. Falei com o chefe dele. O homem tinha‑se atrasado com o trabalho. Foi só uma estupidez.

     ‑ E depois de ter falado com ele, tenho a certeza de que vou concordar consigo.

         ‑ Vai ter de esperar até amanhã de manhã.

         ‑ Não faz mal. Não tenho pressa. ‑ Rutherford sorriu.

         O chefe da segurança sabia que os Serviços de Informação tinham acesso a tudo o que queriam quando queriam. Por isso, estava ali, e ali ia ficar até acabar o seu trabalho.

 

         DAN RUANE fez deslizar um fax em cima da secretária para Erlich o ler, e Erlich fez um grande sorriso. Era o relatório do laboratório de Washington: a análise da saliva da ponta da cigarrilha e do código do ADN. óptimo. Estavam cada vez melhores. A análise de uma folha de tabaco: produzido no Iraque e fabricado no Iraque. A ligação de que precisava. Era excelente.

         ‑ Basta encontrar Colt, analisar a saliva dele e tem as provas de que precisa.

 

         Não devia ter vindo. Devia ter deixado Sara vir sozinha. Estava fora do seu elemento, fora do seu meio. Claro que o recebiam bem, porque era casado com Sara. "Pobre Sara, casada com aquele zé‑ninguém." Do sítio onde estava, via Sara. Já lhe tinham enchido duas vezes o copo e ela estava a conversar com o homem que lhes abrira a porta e a rir. O homem tinha umas calças de bombazina azul‑forte e uma camisa de seda verde. Tinha a mão no braço de Sara, que ria às gargalhadas com o que ele dizia.

         Bissett afastou‑se do grupo, mas ninguém reparou nele. Fez um esforço para penetrar num segundo grupo. Lá na outra ponta da sala ele avistou a cabeça do homem, muito perto da cara de Sara, falando‑lhe ao ouvido.

         Faziam muito barulho, a falarem todos ao mesmo tempo. A dona da casa, uma mulher chamada Debbie, aproximou‑se dele, oferecendo‑lhe outra bebida. Era o mundo dos novos‑ricos e ele sentia‑se completamente deslocado ali. Bateram à porta.

         Pensou que devia ser o convidado que Debbie Pink esperava. Um homem novo, alto, de calças e camisa de ganga.

         ‑ Freddie, quero apresentar‑lhe uma pessoa.

         ‑ Olá, chamo‑me Frederick Bissett.

         ‑ Apresento‑lhe Colin Tuck.

     O rapaz sorriu.

         ‑ Toda a gente me chama Colt ‑ disse. Debbie afastou‑se para encher mais copos. ‑ Este género de pessoas dá‑me vontade de vomitar ‑ continuou ele.

         Era a observação ideal para se insinuar nas boas graças de Frederick Bissett. Começaram a conversar, e daí a pouco estavam a falar do trabalho de Bissett.

         ‑ Trabalha nesse sítio, é? Deve ser fascinante ‑ comentou Colt

         ‑ Às vezes.

         ‑ Bom, é onde trabalham os maiores cérebros do país.

         ‑ Alguns.

         A comida estava na casa de jantar e as pessoas começaram a dirigir‑se para lá. Colt levara Bissett para um canto da sala, longe da casa de jantar.

         ‑ Ouvi dizer que as pessoas que lá trabalham ganham uma miséria.

         ‑ Bom, não quero

         ‑ Se for verdade, é escandaloso. Olhe para esta malta. Nenhum deles faz nada que preste para alguma coisa, mas lá fora aquilo parece o salão automóvel deste ano. Os valores deste país estão completamente de pernas ao ar.

         ‑ Não digo que não.

         Colt foi buscar uma garrafa. Deitou um dedo de vodka no seu copo e encheu o de Bissett. O homem não tinha aspecto de aguentar muito álcool.

         ‑ Quem ganha dinheiro são as pessoas que fogem ao fisco, os mercenários da livre iniciativa. Os melhores cérebros do país são espezinhados.

         Bissett viu Sara e o homem com quem ela estava a falar saírem da sala.

         ‑ Ganhamos pouco, é verdade.

         ‑ Para não dizer outra coisa. Você é muito leal, Frederick. Mas a verdade é que ganha uma miséria, e duvido de que as coisas possam melhorar.

         ‑ Realmente, acho que somos marginalizados. O Mundo tem a escala de valores de pernas para o ar, e as pessoas como eu estão na mó de baixo.

         ‑ Deve ser terrível. E o pior é que é difícil sair dessa situação.

 

         ERA O QUARTO de Debbie. Ele mostrou‑lhe o desenho, um desenho dela sentada em frente da lareira, lá em baixo na casa de jantar. Pousou o desenho. Nessa altura, Sara podia ter‑se ido embora: bastava empurrá‑lo e pronto. Mas ele começou a desabotoar‑lhe lentamente a blusa. Ela podia ter saído dali para fora, batendo com a porta. Mas em vez disso, beijou‑o.

         Justin Pink levou‑a para a cama, a cama de Debbie. Havia uma fotografia de Debbie em cima de uma mesinha de cabeceira. Ela desviou os olhos da fotografia.

 

         À VOLTA deles, ouvia‑se o frémito dos risos, o tilintar dos pratos e o ritmo surdo da música. Bissett e Colt continuavam no mesmo canto. Para Colt, Bissett era só um alvo. Não sentia nada pelo homem, não tinha pena dele nem o desprezava. Chegara a altura. Disse:

         ‑ Há outras maneiras.

         ‑ Não sei. Estou farto de procurar, mas dizem‑me que sou bom demais, que sou muito especializado... O problema é esse.

         ‑ Vá para o estrangeiro.

         ‑ É proibido ‑ objectou Bissett.

         ‑ Vá para o estrangeiro e não lhes diga nada.

         ‑ Isso

         ‑ Isso é olhar pelos seus interesses, Frederick. Vá para o estrangeiro, para onde o seu trabalho seja apreciado como merece.

         ‑ O que é que quer dizer com isso?

         ‑ Quero dizer que deve ir para um sítio onde vá chefiar um departamento e onde lhe paguem cem mil por ano, livres de impostos.

         ‑ Não sei

         ‑ Dr. Bissett ‑ interrompeu Colt ‑, pode sair daqui esta noite e ir dar parte desta conversa à segurança. Eu fico metido numa alhada e o senhor passa a ser um herói, mas o problema é que continua pobre. Mas também pode ir falar com umas pessoas e discutir uma proposta de trabalho... um encontro sem compromissos, Dr. Bissett. O que é que me diz?

         Colt reconheceu a mulher, que atravessou a sala, aproximando‑se deles, mas que ficou calada. Era uma mulher bonita. Parecia que tinha bebido demais.

Colt escreveu um número de telefone numa folha de bloco que tirou da algibeira. Olhou para a cara de Bissett e viu que este o fitava com um olhar transbordante de confiança. Entregou‑lhe o papel.

         ‑ São horas de irmos para casa, não achas, Sara? ‑ disse Bissett.

 

     ELE OUVIA os pratos e as chávenas a tilintarem e Sara a gritar nas escadas para os miúdos se despacharem. Naquela manhã, estava absolutamente fora de questão tomar o pequeno‑almoço.

         Enquanto se barbeava, e depois enquanto se vestia, lembrou‑se dos momentos de verdade da noite anterior. Perguntava a si próprio o que é que o teria levado a aceitar o número de telefone do rapaz que dissera chamar‑se Colt. Com certeza bebera demais. Mas não. Não era só porque tinha bebido demais. No entanto, não se comprometera a nada, fora só uma conversa numa festa.

         Desceu as escadas. Os filhos estavam a engolir à pressa o pequeno‑almoço e a contar à mãe, entusiasmados, que a baby‑sitter os tinha deixado ficar a ver televisão até tarde. Ele adorava os miúdos. Sara resmungou com ele, dizendo‑lhe que tinha de comer qualquer coisa. Os miúdos desataram a rir. Magoado, saiu de casa quase a correr.

         O rapaz era muito simpático e dissera coisas muito certas. Ele não ficava obrigado a nada, não se comprometia ‑ era só uma conversa.

         Podia telefonar a Colt. Podia ouvir o que ele tinha a dizer. E se o que ouvisse não lhe agradasse, podia ir‑se embora. Frederick Bissett não tinha que dar contas a ninguém. E era perfeitamente capaz de manter a situação sob controle.

 

         O TELEFONE tocou lá em baixo. A mulher mandou o bebé calar‑se, e Colt ouviu‑a atender o telefone. Depois, ela gritou nas escadas que estava um homem ao telefone para ele. Desceu rapidamente as escadas:

devia ser Bissett, o pobre Bissett.

         ‑ Bom dia, Dr. Bissett. Muito obrigado por me ter telefonado. Quer? Óptimo. Claro que não, é só uma conversa. Esplêndido.

 

         ERA FREDERICK ao telefone. Era tão raro ele telefonar do Estabelecimento que a primeira reacção de Sara foi pensar que houvera uma catástrofe. Ele disse‑lhe que ia chegar a casa mais tarde, que tinha uma reunião. Sara não lhe perguntou nada e ficou satisfeita por não ter de fazer o esforço de manter uma conversa com o marido naquela noite.

Também não telefonara a Debbie. Tinha de ganhar coragem para telefonar a Debbie para lhe agradecer a festa.

         A festa continuava a ser um sonho mau, e o pior era que fazer amor com Justin fora muito bom. Voltou para a cozinha para pegar novamente no trabalho; estava a voltar os colarinhos das outras camisas do uniforme dos miúdos. Que estranho, parecia que Frederick tinha gostado da festa; não se queixara no caminho para casa.

         E fora muito bom, melhor do que nunca, fazer amor com Justin Pink.

 

         RUTHERFORD pediu a Boll para dizer a Carol que não lhe passasse chamadas. Explicou a Boll que era dos Serviços de Segurança. Convidou Boll a confirmar as suas credenciais junto do chefe da segurança, o que BolI não deixou de fazer.

         ‑ Frederick Bissett... ‑ O antagonismo era de cortar à faca. Mas, para ele, isso não era novidade e ralava‑o pouco. Ninguém gostava do homem dos Serviços de Segurança.

         ‑ O que é que há com Bissett?

         ‑ Estamos só a fazer uma investigação de rotina.

         ‑ Tanto quanto me disseram, aquele problema do portão já foi resolvido de forma considerada satisfatória pelo chefe da segurança.

         ‑ Bom, sabe como é. Estas coisas às vezes parece que ganham vida própria.

         ‑ Vamos ao que interessa. Quer saber alguma coisa?

         ‑ Só quero falar do Dr. Bissett e do trabalho dele.

         ‑ O trabalho dele é absolutamente satisfatório.

         ‑ Mas teve de levar trabalho para casa.

         ‑ Não somos escravos, Mr. Rutherford. Mas quando temos de fazer alguma coisa, fazemos mesmo.

         ‑ O Dr. Bissett é um bom funcionário?

         ‑ Não tenho razões para pensar o contrário.

         ‑ É um bom colaborador da equipa que trabalha neste edifício?

         ‑ Sim, é muito satisfatório.

         ‑ Tem facilidade em fazer amigos?

         ‑ É difícil fazer amigos aqui, Mr. Rutherford. Não somos uma equipa de futebol. Somos um grupo de físicos nucleares muito especializados. Temos o nosso trabalho para fazer e é assim que vivemos. Somos quase todos pessoas bastante reservadas, até pela natureza e pelo género do nosso trabalho.

         ‑ Estou só a tentar descobrir os motivos que levaram o Dr. Bissett a levar dossiers secretos para fora do seu gabinete, desrespeitando os regulamentos vigentes ‑ observou Rutherford.

         ‑ Então, o melhor que tem a fazer é perguntar‑lhe a ele.

         ‑ É o que eu vou fazer. Que o senhor saiba, ele não tem problemas de dinheiro?

         ‑ Isso é mais outra coisa que tem de perguntar‑lhe a ele.

         Rutherford já estava à porta. Agradeceu a Boll a sua ajuda.

         Falara quase meia hora com Boll, e durante esse tempo o outro não dissera uma única boa palavra sobre Bissett. Não lhe fizera elogios, não demonstrara simpatia nem apoio. Rutherford achou aquilo interessante.

 

         COLT estava na ponta de um cais da Estação de Paddington à espera de Bissett. Tinham chegado três comboios de Reading dentro do horário indicado por Bissett. Ele vira passar quinhentas ou mesmo mil caras e nenhuma era a de Bissett. à medida que a sua impaciência aumentava, Colt era atormentado pela lembrança da mãe, que estava a dormir quando ele partira. Dissera ao pai que não ia voltar. A mãe continuava a dormir, por isso ele libertara docemente a mão dos dedos dela. Era a única pessoa no Mundo de quem gostava.

         Viu Bissett ‑ o cabelo escuro encaracolado acima da testa alta, os óculos de aros grossos de tartaruga, a camisa de xadrez, a gravata de tweed. Viu o casaco desportivo e a gabardina que ele trazia no braço. Expulsou a mãe do pensamento e avançou pelo cais ao encontro de Bissett.

 

         JAMES RUTHERFORD e Basil Curtis avançavam por um caminho de areia que atravessava um bosque de amieiros junto à orla da área C, dirigindo‑se para a central eléctrica do Estabelecimento. Soprava um vento agreste. Rutherford, de gabardina, tremia de frio, açoitado pelo vento. Curtis estava vestido com umas calças finas e uma camisa aberta no pescoço, com uma camisola por cima, e calçava umas velhas sandálias de cabedal. Tinha o cachimbo entalado na boca e a sua farta cabeleira castanha ondulava ao vento. Não era muito alto, mas tinha muita presença e uma personalidade forte. Rutherford simpatizou instintivamente com ele.

         ‑ Então, o senhor é um caçador de espiões.

         ‑ Dos escalões mais baixos.

         ‑ E está a investigar o infeliz Dr. Bissett?

         ‑ Mais ou menos.

     ‑ Nunca houve aqui nenhum espião ou traidor. ‑ Deu uma risada espontânea. ‑ Ou pelo menos, se houve, nunca soubemos. O nosso guardião de serviço, o nosso segurança, fez‑nos uma prelecção para termos cuidado com os Iraquianos. Mas estava muito enganado: disse que nós, os cientistas mais categorizados, é que seríamos o alvo, mas não é verdade.

         ‑ Então, quem é que é o alvo?

         ‑ Se são mesmo os Iraquianos que estão à procura de pessoal qualificado, é preciso saber de que género de especialidade estão necessitados. Tanto pode ser um cientista como um químico ou um engenheiro, tudo depende do buraco que precisam de preencher no quadro. Mas, de qualquer maneira, seria sempre um homem novo interessado em fazer carreira.

         Rutherford parou.

         ‑ Um homem novo, ganancioso e ressentido, interessado em fazer carreira... Assim como o Dr. Bissett, por exemplo?

         Curtis sorriu calmamente.

         ‑ Quem tem de descobrir isso é o senhor.

         ‑ Ficaria surpreendido?

         ‑ Preferia responder a uma pergunta que o senhor não fez, Mr. Rutherford, se me dá licença. Muitos cientistas jovens chegam aqui convencidos de que nada mudou nestes últimos vinte anos, desde os tempos em que se passavam aqui coisas excitantes. Nessa altura, estava reunido neste lugar o que havia de melhor na nossa comunidade científica. Éramos os inovadores. Mas agora somos uma fábrica, Mr. Rutherford. Já não estamos no topo. Quando o jovem Bissett para aqui veio com a mulher, uma rapariga muito simpática, convenceu‑se de que tinha vencido na vida. O entusiasmo dele era quase embaraçoso. Mas isto aqui não é uma comunidade científica vigorosa, é só um bando de pessoas bisbilhoteiras e fechadas em si mesmas. Uma vez, ele deu umjantar. Mandou pelo menos duas dúzias de convites, mas a única pessoa que apareceu fui eu. Acha que isto o ajuda, Mr. Rutherford?

         ‑ Bissett, um homem solitário e sem amigos... Isso será importante?

         ‑ Tenho vergonha de mim mesmo ‑ respondeu Curtis. ‑ Vejo‑o todos os dias. Devia defender o meu colega, mas não posso dizer nada. A verdade é que não sei.

         Voltaram para trás. Uma segunda conversa, e pela segunda vez ele não ouvira uma única palavra de louvor, afeição ou apoio a Frederick Bissett. Regressaram em silêncio à área C.

 

     LEVANTARAM-SE todos ao mesmo tempo quando Bissett entrou no quarto do hotel. Avançaram os três para o cumprimentar, de mãos estendidas, num gesto de boas‑vindas. Ele viu que pareciam muito confiantes. Naquela altura, podia ter virado as costas e fugido.

         Fecharam a porta. Colt dirigiu‑se para o televisor, passando ao lado dele. Ele ouviu os aplausos de um concurso.

         Apresentaram‑se. Bissett ouviu os nomes, mas esqueceu‑os imediatamente. Sentia a cara a arder e o suor a escorrer‑lhe pelas costas e as pernas fracas. Perguntaram-lhe se queria beber alguma coisa, mas ele não foi capaz de falar, limitando‑se a abanar a cabeça. Com certeza que tomava alguma coisa, um dedo de whisky. Colt serviu‑o ‑ a bebida era tão forte que deitava abaixo um touro. Todos eles tinham um copo na mão, menos Colt.

         ‑ É uma grande honra conhecê‑lo, Dr. Bissett.

         Ergueram os copos num brinde em sua honra. Bissett levou o copo de whisky à boca, bebeu um gole e depois emborcou a bebida de um trago.

         Um deles tomou a iniciativa, um homem que se intitulava major.

         ‑ Dr. Bissett, representamos o Governo do Iraque. Viemos encontrar‑nos aqui consigo com instruções directas do nosso chefe de Estado, o presidente do Conselho do Comando Revolucionário do Iraque. Se certos aspectos forem satisfatórios, temos autorização para lhe oferecer emprego ao serviço do nosso Governo. ‑ Bissett lembrou‑se do director do pessoal da Imperial Chemical Industries e da sua carta ofensiva, recusando‑lhe emprego. ‑ Ou seja a oportunidade de dirigir uma divisão de investigação, com uma compensação financeira generosa, na nossa Comissão de Energia Atómica, onde poderá dar largas ao seu talento.

         Ele lembrou‑se da expressão fria e indiferente dos membros da junta que ia tomar uma decisão sobre a sua promoção, depois de terem recebido o relatório anual de BolI sobre o seu trabalho.

         ‑ Se se dignar a juntar‑se a nós, podemos oferecer‑lhe um vencimento anual da ordem dos cento e setenta e cinco mil dólares.

         Era uma alucinação, um sonho. Nem era capaz de imaginar tanto dinheiro. Respondeu em voz rouca:

         ‑ E o que é que eu teria de fazer?

         ‑ Integrar‑se numa magnífica equipa de cientistas, Dr. Bissett. A Comissão de Energia Atómica do meu país está decidida a manter‑se na vanguarda da ciência mundial. Não estamos a trabalhar só com objectivos militares, mas queremos alargar as fronteiras da ciência. A nossa finalidade é a excelência, e é para a atingir que lhe pedimos para se juntar a nós, Dr. Bissett.

         ‑ Precisava... bom, de pensar no assunto, de pesar as coisas - respondeu com voz trémula.

         O major replicou numa voz de veludo:

         ‑ A sua especialidade é a física da implosão, Dr. Bissett?

         ‑É.

         Era o primeiro passo para transpor o abismo.

         ‑ É o homem de que necessitamos, Dr. Bissett. Se vier trabalhar connosco, será um homem importante e um homem rico.

         Ele podia voltar para o comboio, ir à área F falar com o funcionário de serviço na ala da segurança. Podia delatar a proposta que lhe fora feita. Podia voltar‑lhes as costas. Ou então podia estender‑lhes a mão.

         ‑ Depois entro em contacto com os senhores.

         ‑ Para as suas despesas, Dr.Bissett... ‑ Sorriram‑lhe com suavidade e entregaram‑lhe um envelope.

         ‑ Só disse que depois entrava em contacto com os senhores

         ‑ Contacte com Colt. Estamos‑lhe muito gratos por esta oportunidade de o conhecermos, Dr. Bissett.

         ‑ Vou pensar no assunto. ‑ Enfiou o envelope no bolso interior do casaco.

         Colt segurou na porta para ele passar.

 

     DAN RUANE disse que Erlich precisava de um certo conforto doméstico, ou seja tomar o pequeno‑almoço na embaixada. Panquecas com molho, muito sumo e bom café.

         Logo depois do pequeno‑almoço, dirigiram‑se para o parque de estacionamento das traseiras da embaixada. Ruane instalou Erlich no lugar do passageiro do seu Volvo e passou‑lhe para a mão um exemplar da antevéspera do Times de Los Angeles. Não disse onde é que iam.

         Iam ao contrário do tráfego da hora de ponta, por isso avançavam depressa. Quando saíram da cidade, entraram numa boa estrada.

         A cidade a que chegaram chamava‑se Coichester. Erlich dobrou o jornal e pousou‑o no banco de trás, por cima do monte de casacos, e viu o estojo da carabina, parcialmente escondido debaixo dos casacos. Entraram num quartel. Uma bandeira flutuava orgulhosamente sobre o portão, guardado por sentinelas armadas e de uniforme camuflado. Dirigiram‑se para a entrada da carreira de tiro.

     ‑ Está na altura de espairecermos, BilI ‑ disse Ruane ‑, para você perder essa expressão sombria e apanhar um pouco de ar.

         Estava uma bela manhã, muito fria, e um vento agreste agitava as grandes bandeiras vermelhas de aviso. Os amigos de Ruane já os esperavam, e Erlich foi‑lhes apresentado. Eram um major da Força Aérea dos EUA da Base de Mildenhaíl, um americano que vivia há doze anos em Inglaterra e que trabalhava na segurança da companhia petrolífera Exxon e o oficial instrutor da carreira de tiro. Foram simpáticos para Erlich e ninguém lhe fez perguntas sobre as nódoas negras que tinha na cara. Entraram todos para o Volvo, que começou a avançar aos solavancos pela pista irregular de terra batida que levava à carreira de tiro, lá ao longe.

         Os alvos eram iguais aos que ele já conhecia da carreira de Quantico: a silhueta de um soldado de infantaria à carga, com um capacete da Wehrmacht. Erlich não ia a uma carreira de tiro há dois anos, desde que saíra de Washington. Achou que ia fazer muito má figura.

         Deram‑lhe um revólver Smith & Wesson, de calibre.38, com um cano de quatro polegadas. Conhecia o revólver; era o que ele devia ter levado para o bosque sobranceiro a Manor House, e se o tivesse feito, não teria sido espancado e pontapeado. Também lhe deram uma caixa de cartão com balas e um coldre para enfiar no cinto das calças. Percebeu qual era a ideia de Ruane. O Smith & Wesson adaptava‑se bem à sua mão.

         O instrutor recitou as regras, tal como o teriam feito os instrutores de Quantico. Erlich enfiou as balas no tambor do Smith & Wesson e verificou o trinco de segurança.

         Foi até a uma posição de tiro situada a cinquenta passos de distância e preparou‑se para começar a atirar. Os instrutores costumavam dizer que todas as sessões de tiro deviam ser feitas como se fossem a sério. Ele respirou fundo, enchendo os pulmões de oxigénio, como se não estivesse numa carreira de tiro de uma cidade de província do Leste de Inglaterra, mas sim num beco, correndo ao longo das portas das lojas para entrar numa casa. Em Condição Amarela, alerta não especificado. Com a adrenalina a fluir. Até à Condição Vermelha, recontro armado. Com as mãos a tremer e as pernas pesadas como chumbo. Até à Condição Negra, ataque letal em curso. O reflexo de dar luta ou fugir. Concentrar o olhar no alvo. Deixar de ouvir.

         O alvo não era uma silhueta de cartão. O alvo era Colt. Colt, na sua frente. Adrenalina, epinefrina, correndo‑lhe nos músculos. Rodar a anca. Levar a mão direita à coronha do Smith & Wesson. Sacar do revólver. Pôr a mão esquerda sobre a mão direita. Posição isósceles ‑ os dois braços estendidos, formando um triângulo cujo vértice era oSmith & Wesson. Soltar o trinco de segurança. Braços rígidos. Joelhos flectidos. Olhos fitos nas duas miras. O indicador apertou o gatilho, e o estrondo do tiro ressoou‑lhe aos ouvidos. Disparou três vezes numa sucessão rápida. Travou novamente a arma. Colt corria na sua direcção. Colt estava a sete passos de distância e continuava a correr. Erlich acertara no alvo a sete metros com um tiro em cada três. Rodou novamente o corpo. Empunhou o Smith & Wesson. Soltou a segurança. Condição Negra, ataque letal em curso. Disparou três tiros e acertou no alvo três vezes, três balas na silhueta de papel e cartão que era Colt.

         Recarregou oito vezes a arma rapidamente. Desfez Colt. Acertou sempre três vezes em cada três tiros.

         Voltou para o Volvo, onde os outros já estavam à sua espera.

         Ruane tinha um sorrisinho ao canto da boca. Vira o que quena Erlich a atirar a matar. Tirou do Volvo um cesto de piquenique e latas de cerveja.

         ‑ Agora, veja lá se não perde a arma ‑ disse ele.

         ‑ Senão levam‑me a conselho de guerra ‑ acrescentou o oficial da Força Aérea.

 

         ELE SENTIU O contacto frio da arma na nuca.

         Enfiou a mão debaixo da almofada e tirou a pistola que lá escondera antes de adormecer. Não sabia se era a mesma arma que lhe tinham dado para o atentado de Londres, porque todas as armas deles tinham o número de série limado, mas era igualmente uma Ruger/MAC Mark 1 de calibre.22.

         Era a sua recompensa. Tinha‑se portado bem, não tinha? Entregara‑lhes Bissett. Agora só lhe restava esperar que Frederick Bissett o contactasse novamente.

         O telefonema tanto podia vir nesse dia, como no dia seguinte ou no outro.

 

         RUTHERFORD bateu à porta. Estava no corredor em frente do gabinete H31. A porta abriu‑se. Bissett estava que metia dó. Despenteado, com grándes olheiras e pálido como um defunto. Rutherford pensou que ele devia ter passado a noite em claro.

         ‑ Bom dia, Dr. Bissett. Posso entrar?

         ‑ Quem é o senhor? Desculpe, mas não o conheço

         ‑ Chamo‑me Rutherford, James Rutherford. Mr. BolI disse que o senhor podia conceder‑me uns minutos do seu tempo. ‑ Rutherford entrou, fechou a porta e sentou‑se.

         ‑ Uns minutos? Para quê? Tenho muito que fazer ‑ objectou Bissett.

         ‑ Sou dos Serviços de Segurança, Dr. Bissett. ‑ O homem ficou paralisado durante uns segundos. Parecia que tinha levado uma pancada na cabeça. ‑ Estou aqui para falar da sua tentativa de levar documentos secretos para fora do Estabelecimento.

         ‑ Mas eu... Acho que isso já está... Disseram‑me... O meu chefe de departamento, Boli, disse‑me que isso estava tudo resolvido, explicado.

         A voz dele era tão fraca como um junco açoitado pelo vento.

         ‑ Como é que classificaria o material dos dossiers que tentou levar?

         ‑ Já tivemos essa conversa! O meu trabalho não é muito secreto.

         ‑ Em que é que trabalha ao certo?

         De repente, o homem pareceu recuperar alguma confiança.

         ‑ Sabe o que é a interacção de uma explosão de fissão?

     ‑ Não

         ‑ Então, não vale a pena explicar‑lhe que material estava nos dossiers.

         ‑ Já foi contactado por alguém, Dr. Bissett?

         ‑ Contactado? Desculpe, mas não percebo.

         ‑ Não é preciso ser‑se físico nuclear para saber o que é que isto quer dizer. Já foi contactado por alguém de fora do Estabelecimento que lhe tenha pedido informações sobre o seu trabalho?

         ‑ Isso não tem pés nem cabeça.

         ‑ Responda à minha pergunta, Dr. Bissett. Sim ou não? ‑ Rutherford achou que o homem estava quase a ter um ataque de coração. A pergunta era directa, e a resposta também devia ser directa.

     ‑ Não.

         ‑ Se fosse contactado, qual seria a sua reacção?

         ‑ Bom, acho que ia falar com o chefe da segurança.

         ‑ Mas não foi contactado?

     ‑ Não.

         ‑ Qual é a sua situação financeira, Dr. Bissett?

         - O quê?

         ‑ A sua situação financeira. ‑ Credo, o homem era parvo.

         ‑ Trabalho aqui.

         ‑ Isso já eu sei. Responda à pergunta.

     ‑ Se o senhor trabalhasse aqui, percebia logo. Vivemos na zona mais rica do país.

         ‑ A sua conta bancária tem um saldo negativo, Dr. Bissett?

         ‑ Se a minha conta bancária tem um saldo negativo?

         ‑ Sim ou não?

         ‑ Sim, tem saldo negativo. Isso são perguntas...

         Estava a desenhar‑se um padrão. Era indiferente para Rutherford que Bissett dissesse que o saldo da conta era negativo ou positivo. O padrão era mais interessante. Ele respondia a todas as perguntas com outra pergunta. Interessante. Rutherford olhou para os seus apontamentos. Tinha à sua frente a transcrição de uma chamada telefónica.

         ‑ Estava em casa ontem à noite, Dr. Bissett?

     ‑ Não.

         ‑ Onde é que estava?

         ‑ Fiquei a trabalhar até mais tarde.

         ‑ O segurança do portão pode dizer‑me a que horas o senhor saiu.

         ‑ Então, saí. Apetecia‑me ir tomar uma bebida.

         ‑ A que pub foi, Dr. Bissett?

         ‑ Não cheguei a ir ao pub. Pensei em ir tomar uma bebida, mas depois...

         ‑ O que é que fez, Dr. Bissett?

         ‑ Dei uma volta de automóvel por aí. Não saí do carro.

         ‑ Porquê, Dr. Bissett?

         Rutherford viu que ele estava a ficar furioso. Tinha a transcrição da chamada de Bissett para a mulher a dizer que se demorava no emprego, que ia para casa mais tarde. Já tinha o registo de Falcon Gate com a informação de que Bissett saira pela barreira ao fim da tarde. E tinha à sua frente um homem solitário e assustado, um homem que não tinha um único amigo entre os colegas.

         ‑ Queria estar sozinho.

         ‑ Tem problemas com a sua mulher, Dr. Bissett?

         Bissett cerrou os punhos.

         ‑ Não é nada da sua conta, pois não? ‑ explodiu. ‑ Desapareça do meu gabinete! E desapareça da minha vida!

         ‑ Obrigado, Dr. Bissett. Acho que por agora é tudo.

 

         ESTAVA sentado à secretária, com a cabeça enterrada nas mãos. Não conseguia livrar‑se da dor latejante. O medo era uma farpa enterrada no seu corpo. A porta do gabinete estava fechada, mas não o protegia do medo. Levantou‑se da secretária e foi até junto do radiador, ao pé da janela, levando na mão o envelope que lhe tinham dado no Great Westem Hotel, perto da Estação de Paddington. Era como se o envelope fosse uma prova tangível do seu crime. Não o tinha aberto, porque abrir o envelope era consumar esse crime. Não era capaz de avaliar o que é que o homem dos Serviços de Segurança sabia. O seu mundo, o mundo de Frederick Bissett, estava a desmoronar‑se. Sem compromissos, não prometera nada. Mas não podia dar essa desculpa aos Serviços de Segurança. Era fácil de dizer com um whisky na mão e os ouvidos cheios de lisonjas. Enfiou o envelope por detrás do radiador, debaixo da janela, empurrando‑o o mais para trás possível.

 

         ERA o GÉNERO de reunião que Dickie Barker, dos Serviços de Segurança, mais detestava: a máquina governamental em pleno funcionamento. O vice‑presidente da Comissão de Informação era o árbitro.

         Barker ia acompanhado por Hobbes para equilibrar as forças.

         Encontrara‑se já várias vezes com Percy Martins, dos SSI. O homem era uma celebridade em Downing Street. E a reunião não devia ter sido convocada para a Century House, a sede dos SSI. Devia ter tido lugar no gabinete da comissão, ao lado da sala do Conselho de Ministros. A estenógrafa levou as chávenas de café sujas. O vice‑presidente instalou‑se à cabeceira da mesa comprida. Martins sentou‑se em frente de Barker. Barker falava primeiro. óptimo. Ia falar primeiro. Depois, falava Martins. Atiravam a bola um para o outro. Em seguida, ele apresentava as suas conclusões, e Martins tinha a última palavra.

         Fora Hobbes quem escrevera o relatório que Barker parafraseou. Houvera um atentado em Atenas. Um dissidente iraquiano, um escritor, fora morto a tiro, e um agente da CIA que estava com ele morrera também. O condutor do carro do assassino tinha gritado o nome Colt. Houvera um outro atentado em Clapham: um iraquiano que metera a mão na caixa da companhia de aviação estatal iraquiana fora também morto a tiro. A cara do mesmo assassino talvez tivesse sido identificada nas duas ocasiões. A arma dos dois atentados fora uma pistola.22 com silenciador. Esse tal Colt era inglês, um fugitivo à justiça que já era procurado por tentativa de homicídio. Colt estivera recentemente na Grã‑Bretanha, talvez ainda se encontrasse em território britânico. O Iraque estava claramente implicado nos dois atentados. Um outro assunto, que não tinha nada a ver com esses dois homicídios, era uma advertência de que os Iraquianos queriam aliciar pessoal do Estabelecimento de Armamento Atómico. Que fazer? Quando e como se podiam meter os Iraquianos na ordem?

     ‑ E é claro que os Americanos querem resultados.

         Martins fez um sorriso seco.

         ‑ E é claro que nós não temos nada a ver com isso.

         ‑ Na minha opinião, temos o suficiente para justificar a expulsão de pelo menos cinco ou seis funcionários da Embaixada do Iraque - replicou abruptamente Barker.

         ‑ Oponho‑me fortemente a essa medida, Sr. Vice‑Presidente - declarou Martins, dando uma palmada no tampo brilhante da mesa.

         ‑ Não podemos tolerar o terrorismo iraquiano, terrorismo estatal, nas ruas de Londres ‑ replicou Barker.

         ‑ Faz alguma ideia das consequências da medida que propõe?

         ‑ Só estou interessado na segurança deste país.

         Martins voltou‑se para o vice‑presidente, ignorando o seu adversário.

         ‑ Estamos quase em pé de guerra com o Irão. Devido a erros colossais, não dispomos de uma rede de informação no Irão. Devemos o pouco que sabemos da evolução política desse país à cooperação com os Serviços Secretos Iraquianos. Neste momento, o Iraque está a reconstruir todas as suas infra‑estruturas. Os Iraquianos têm biliões de petrodólares para gastar e estão à procura de empresas de construção com as capacidades de que necessitam, pelo que há esperanças de que as nossas empresas consigam algumas obras. Mas, apesar disso, vocês querem, com base em provas muito vagas, que expulsemos meia dúzia de diplomatas iraquianos acreditados no nosso país. Perco a minha principal fonte de informação sobre o Irão, o meu país perde negócios no valor de muitos milhares de milhões de dólares (que vão para os Franceses e os Alemães) e tudo isso porque os Americanos querem resultados!

         ‑ Isso é uma atitude muito cínica ‑ opinou Dickie Barker.

         ‑ Mas, fazendo o que você quer, vou dizer‑lhe o que conseguimos: nada, a não ser perder contactos, perder boa vontade, perder boas informações. Não vou ficar calado e deixar que destruam um trabalho difícil para fazer um gesto nobre. A Centurv é que é o mundo real, Curzon Street parece que anda na Lua.

         Barker olhou para Hobbes, pedindo‑lhe apoio, mas Hobbes desviou o olhar.

         ‑ Meus senhores, meus senhores ‑ acalmou o vice‑presidente. - Não abordou a questão do Estabelecimento de Armamento Atómico, Mr. Martins.

         ‑ Se é que isso é realmente um problema, Sr. Vice‑Presidente. Pedimos aos Israelitas para nos darem mais informações, e eles até à data ainda não conseguiram dizer‑nos nada.

         ‑ Então, qual é a sua sugestão, Mr. Martins? ‑ rosnou Barker.

         Martins fez um sorriso de orelha a orelha.

         ‑ Procurar esse tal Colt e abatê‑lo.

         ‑ Não está a falar a sério, pois não?

         ‑ Encontrá‑lo, abatê‑lo e enterrá‑lo bem enterrado.

         Barker viu que os olhos do vice‑presidente brilhavam e percebeu que Percy Martins tinha ganho o dia com o seu descaramento. Claro que isso não ficou assente no bloco da estenógrafa, mas a decisão da reunião foi que Colt devia ser encontrado, abatido e esquecido.

 

         COLT foi lá abaixo atender o telefone.

         Era uma voz ofegante. Queria ter um encontro com ele. Não, não queria voltar a Londres. Não, queria falar só com Colt. Colt achou que ele estava a passar um mau bocado.

         Bissett marcou um encontro num pub de Stratfield Mortimer, indicando‑lhe a hora. Colt respondeu que lá estaria.

 

         RUTHERFORD encontrava‑se num pequeno gabinete contíguo ao do chefe da segurança do Estabelecimento de Armamento Atómico, deliberando sobre se devia telefonar a Hobbes recomendando que o deixassem mais um dia em Aldermaston. Não tinha a certeza ‑ esse é que era o problema. Não tinha prática neste género de investigações. Não tinha a certeza de ser capaz de reconhecer a traição, mesmo que fosse muito evidente. Tinha de se guiar pelo manual. E o manual dizia que os perigos eram De Dinheiro, Ideologia, Comprometimento, Ego.

         O dinheiro podia ser o saldo negativo da conta bancária. Com este governo, toda a gente tinha uma conta bancária com saldo negativo, mas mesmo assim valia a pena investigar o dinheiro. A ideologia, nos tempos do pós‑"guerra fria", era de pôr de parte. O comprometimento podia estar ligado ao dinheiro ou ao sexo. Como eles diziam no curso, toda a gente era vulnerável ao dinheiro ou a uma mulher. Toda a gente, até os embaixadores. Mas o ego era a chave deste caso. Porque o ego de Bissett tinha sido muito maltratado.

         Rutherford foi chamado para atender um telefonema na linha de alta segurança do gabinete do chefe da segurança.

         ‑ É você, Rutherford?

         Sim, era James Rutherford.

         ‑ Volte já para aqui.

Ainda não tinha acabado, ficavam algumas coisas por resolver. Nada de muito positivo. Mas para fazer o serviço bem feito

         ‑ Não me pergunte porquê, meu felizardo, mas o director‑geral quer tomar chá consigo e parece que não quer esperar até amanhã.

         O chefe da segurança não pareceu ficar aborrecido quando Rutherford o informou de que tinha sido chamado de volta à Curzon Street.

 

         ‑ A DECISÃO é sua, Dr. Bissett.

         ‑ Dantes gostava muito de trabalhar lá.

         ‑ Dantes?

         ‑ Agora, tratam‑me abaixo de cão.

         ‑ Então, já tomou uma decisão.

         ‑ Tenho a certeza de que não me vão promover ainda este ano.

         ‑ É incrível, Dr. Bissett, um homem com as suas potencialidades!

         ‑ Você naturalmente não compreende. É horrível trabalhar com pessoas que não nos tratam com respeito.

         Estava escuro no parque de estacionamento do pub de Stratfield Mortimer. As caras de ambos eram iluminadas passageiramente pelos faróis dos carros dos primeiros clientes. Sempre que eram surpreendidos pela luz, Colt baixava a cabeça e Bissett parecia um coelho hipnotizado por um holofote.

 

         ‑ Então, largue aquilo.

         ‑ Aquilo do ano passado... li qualquer coisa sobre o Iraque num dos relatórios daqueles tipos dos direitos do homem.

         ‑ Isso é obra dos Israelitas, é propaganda deles. Se fosse verdade, eu não vivia lá.

         ‑ Como é que vai ser a minha vida?

         ‑ Como eles lhe disseram, Dr. Bissett. Vai dirigir um departamento. Vai viver bem.

         ‑ E a Sara, a minha mulher? E os miúdos?

         Colt começava a ficar irritado, mas dominou‑se.

         ‑ Vão ter uma vida muito agradável. Vão gostar muito. O Iraque é um país moderno, Dr. Bissett. Vivem lá muitos ingleses, há escolas internacionais, enfim, tudo. ‑ Colt não fazia ideia de como é que era a vida em Tuwaithah; nem sequer sabia ao certo onde é que ficava Tuwaithah.

         ‑ Não sei o que faça.

         ‑ A vida é sua. Pode aproveitar esta oportunidade, mas também lhe pode virar as costas ‑ respondeu Colt calmamente.

         ‑ E vou ser um traidor?

Colt deixou descair a cabeça para trás, encostando‑a ao assento. O que é que aquele homenzinho assustado ia ser senão um traidor?

         ‑ Traidor não passa de uma palavra, Dr. Bissett. As palavras não têm grande significado. Se for, passa a mandar na sua vida. Se ficar continua a ser escravo deles até morrer ou até lhe oferecerem um relógio de ouro.

         ‑ Há uma coisa que tenho de lhe dizer. Fui interrogado esta manhã por um homem dos Serviços de Segurança.

         Colt endireitou‑se no assento. Passou os olhos pelos carros estacionados perto do Sierra. Estava a pensar à pressão, ao mesmo tempo que tentava descobrir se eram vigiados, se avistava no escuro a sombra de um espião. Mas depois disse o mais calmamente que conseguiu:

         ‑ Porquê, Dr. Bissett?

         ‑ Tinha de ficar a trabalhar até mais tarde ‑ respondeu o outro precipitadamente ‑, mas não podia ser no meu gabinete, porque tinha dito à Sara que tomava conta dos miúdos. Tive de levar os meus papéis para casa. Mandaram‑me parar no portão. Fui interrogado pelo chefe da segurança, mas depois mandaram outro, dos Serviços de Segurança de Londres. Foi muito agressivo.

         ‑ Se quer mesmo ir, então tem de ser depressa ‑ replicou Colt em voz dura.

         ‑ Estou tão assustado!

         Colt pôs a mão no braço de Bissett num gesto de amizade.

         ‑ Eu vou consigo. Acompanho‑o durante todo o caminho.

         Colt saiu do automóvel. Dirigiu‑se às traseiras do parque de estacionamento para não ser iluminado pelos faróis quando Bissett se fosse embora. Sentia‑se como um passarinho apanhado numa rede fina. Se fugisse já, ainda podia escapar. Se ficasse, estava perdido. Bissett tinha atraído a atenção dos Serviços de Segurança. De repente, Colt sentiu‑se mal e vomitou no saibro, atrás do seu carro.

 

         ELA OUVIU o motor do Sierra e interrompeu a conversa. Na mesinha da entrada, ao lado do telefone, estava o correio, que chegara depois de Frederick ter saido para o emprego. Já conhecia a letra das cartas do banco. Ouviu bater a porta do carro.

         Ainda lhe ressoava aos ouvidos a voz de Debbie, o pesar e a argumentação de Debbie. Abriu a porta da rua. Frederick estava inclinado sobre o banco de trás do carro, tirando a pasta e a gabardina. Tinha sido uma tristeza dizer a Debbie que não voltava às aulas. Reparou na maneira como Frederick olhava em volta depois de ter fechado o carro. Ele olhou para a direita e depois para a esquerda. Em seguida, percorreu rapidamente, em poucas passadas, a pequena distância entre o carro e a porta de casa.

         A televisão estava acesa na sala de estar, onde se encontravam os miúdos. Em qualquer outro dia, Frederick teria passado por ela com um aceno de cabeça e um sorriso forçado. Teria subido as escadas para despir o casaco e trocá‑lo pelo velho casaco de malha que usava ao serão quando estava frio. Em qualquer outro dia, mas não naquele. Naquele dia, abraçou‑se a ela. Há muito tempo que não a abraçava assim com tanto ardor, como se lhe quisesse dizer qualquer coisa. Sara sentiu o corpo dele a tremer. Não lhe via os olhos, por isso não percebeu se ele estava a chorar. Afastou‑se murmurando uma desculpa de que tinha o jantar ao lume e disse‑lhe para ir falar aos miúdos. Voltou para a cozinha, deixando o marido e os filhos, que tinham vindo ter com o pai à entrada, que precisava de uma alcatifa nova. Felizmente que telefonara a Debbie. Felizmente que isso estava resolvido. Quando voltou para a sala, Sara viu a cara de Frederick. Envelhecera dez anos desde que saíra de casa nessa manhã. Disse‑lhe que ojantar estava quase pronto.

         Frederick declarou que a seguir ao jantar iam todos jogar scrabble. Depois, viu a carta do banco. Mas rasgou o envelope em bocadinhos sem o abrir.

 

         ‑ É O RUTHERFORD?

     - Sou, sim, Sr. Director.

         ‑ Diga‑me uma coisa, Rutherford, porque é que entrou para os Serviços de Segurança?

         ‑ Achei que ia fazer um trabalho útil.

         ‑ E ainda pensa o mesmo?

         ‑ Se não pensasse, demitia‑me, Sr. Director.

         ‑ Está empenhado no seu trabalho, Rutherford?

         ‑ Estou, sim, Sr. Director.

         O director‑geral serviu dois whiskies e juntou‑lhes um pouco de água. Gostava de conversar com os seus subordinados mais jovens de vez em quando. Naturalmente, era porque já começava a estar velho. Gostava da companhia deles, das certezas deles.

         ‑ O que é que lhe pareceu esse tal americano, o Erlich?

         ‑ É um antigo professor, não se parece nada com os agentes do FBI a que estamos habituados, e não tem lá muita experiência; por exemplo, não aguentava nem um dia em Belfast. Estou convencido de que é a primeira missão importante de que o encarregam e ele quer ter a certeza de desempenhar bem a tarefa. Parece ser bastante ambicioso profissionalmente. É uma mistura curiosa. É agressivo e impaciente, mas sabe mais de poesia vitoriana do que eu estou disposto a ouvir.

         ‑ Isso quer dizer que é um agente do FBI muito especial?

         ‑ Bom, sim e não, porque era muito bem capaz de disparar, de disparar primeiro e fazer as perguntas depois. Se bem que isto seja uma metáfora, claro.

         ‑ E o que é que Erlich pensa de Tuck?

         ‑ O caso para ele é muito pessoal. O agente da CIA que foi morto em Atenas era amigo dele. E aqui há uns dias BilI Erlich foi atacado de surpresa; estávamos a vigiar a casa de Tuck durante a noite e deram‑lhe uma sova. Deve ter sido obra de Colt.

         ‑ Acha que Erlich era capaz de o matar?

         ‑ Acho que sim, se tivesse essa oportunidade.

         ‑ Se este Colt ainda estivesse em Inglaterra, onde é que o procurava?

         ‑ A mãe dele está a morrer, Sr. Director. Era aí que eu o procurava.

         ‑ Então, faça o favor de o descobrir, Rutherford, e leve Erlich consigo.

         ‑ Sim, Sr. Director.

         ‑ O que é que fazem quando o encontrarem?

         ‑ O polícia da terra é muito competente, Sr. Director.

         ‑ Não, não, se fosse a si, não fazia isso. ‑ O director‑geral fitou Rutherford nos olhos. ‑ As repercussões políticas deste caso são muito complicadas. Não. A melhor maneira de sairmos deste ninho de vespas era conseguirmos que Erlich o matasse. Sem fazer ondas... matá‑lo, e pronto.

 

     ELES FINGIAM que dormiam, mas estavam ambos acordados. O relógio do andar de baixo deu a meia‑noite.

         Sara estendeu a mão para tocar no ombro do marido, mas sentiu que ele se afastava bruscamente.

         ‑ O que foi, Frederick? O que é que aconteceu?

         ‑ O que eu fiz foi por ti e pelos miúdos ‑ desabafou ele numa torrente de palavras. ‑ O que eu vou fazer é só por ti e por Adam e Frank. Digam o que disserem, não acredites. É só por ti. ‑ E não disse mais nada.

         As perguntas de Sara ricochetearam no seu ombro anguloso.

 

     RUTHERFORD deixou Erlich guiar até à aldeia do Wiltshire.

         ‑ A propósito, está tudo resolvido ‑ disse. ‑ Deram‑nos carta branca para perseguir Colt. É a minha prioridade a tempo inteiro. Não tenho de fazer mais nada. E você vem comigo, porque é a melhor maneira de apanhar Colt.

 

         ELE NÃO percebia porque é que ela fazia um ar tão espantado. Só tinha dito que ia levar os miúdos à escola e que depois ia para o Estabelecimento. Ela não precisava de fazer aquela cara, como se ele tivesse dito que ia correr nu à volta do Palácio de Buckingham.

         Frederick Bissett resolvera levar os miúdos à escola e chegar um quarto de hora atrasado ao Estabelecimento. Depois, resolvia quando é que havia de telefonar a Colt. Resolvia se ia ou não aceitar a proposta de emprego deles.

         Por uma vez, Sara não discutiu com ele. Por uma vez, não desafiou a autoridade do marido. E quando ele fosse director de um departamento, quando chefiasse uma unidade de investigação, quando fosse rico e respeitado, nunca mais discutiria com ele.

         Ele levou os miúdos até ao portão da escola. Estava a fazer tudo o que podia. Falou da equipa do Liverpool e dos novos jogadores do clube. Havia muitas famílias que iam trabalhar para o estrangeiro e que levavam os filhos. Era o futuro deles que lhe interessava, o futuro deles e o de Sara.

         Deixou os miúdos na escola. Não o beijaram ‑ ele ansiava que lhe dessem mais mostras de afeição. Saíram do carro à pressa e correram para o recreio.

         Só tinha pena de não poder ver uma coisa: as caras de Reuben Boll, de Carol e do chefe da segurança quando descobrissem que ele se tinha ido embora.

 

         BATERAM à porta do gabinete e depois esta abriu‑se. Era BolI.

         ‑ Ah, Frederick. Posso falar consigo um momento?

         Era estranho, deixara de ter medo dele. Iam pedir contas a Boll quando descobrissem que tinha deixado fugir um investigador.

         ‑ Que deseja, Reuben?

         ‑ É por causa daquele homem, só lhe queria dizer que achei que era uma vergonha ele vir aqui investigar.

         ‑ Calculo que ele deve ter dito que estava a fazer a sua obrigação.

         ‑ Ainda bem que não perdeu a calma.

         ‑ Mandei‑o desaparecer daqui.

Boll fez um ar surpreendido.

         ‑ Disse‑lhe para desaparecer?

         ‑ Sim. Foi o que eu lhe disse.

         ‑ Só lhe queria manifestar a minha solidariedade.

         ‑ Obrigado, Reuben.

         ‑ Além disso, também queria dizer‑lhe que fiz uma apreciação muito favorável ao seu trabalho. Estava muito bom.

         ‑ Mais uma vez, obrigado, Reuben.

         Ficou a olhar para a porta. Estava na altura de fazer o seu telefonema.

 

         COLT estava de pé ao lado da porta do quarto do hotel, porque a câmara estava escondida no guarda‑fato, atrás da porta entreaberta. Sabia que a porta do guarda‑fato o tapava completamente do ângulo de visão da câmara de vídeo.

         Bissett quase que o beijara quando se encontraram na Estação de Paddington. Sacudiu a mão de Colt e agarrou‑se ao braço dele; atravessaram assim o recinto central da estação, foram até à porta do Westem Hotel, passaram pelo átrio até à porta do elevador e subiram para o quarto.

         Agora, Colt limitava‑se a escutar.

         Quem tinha de falar era o adido militar, o adjunto do adido militar e Faud e Namir. A missão de Colt era trazer Bissett até ali e depois escoltá‑lo até onde ele tinha de ir. Tinham dado uma bebida a Bissett, e Colt via o nervosismo do homem, que segurava o copo com as duas mãos e mesmo assim deixava escorrer o seu conteúdo pelos cantos da boca, pingando na camisa. Mandaram sentar Bissett e começaram a fazer‑lhe perguntas, como se ele estivesse a ser entrevistado para um emprego. Tinham de ter a certeza de que era a pessoa que lhes interessava. As perguntas e as respostas ultrapassavam Colt. Local de trabalho: edifício H3. Tipo de trabalho: física de implosão. Trabalho especifico em curso: desenvolvimento de ogivas Cruise para substituir a ogiva da bomba

WE‑177.

         O adido militar saiu do quarto, levando consigo os papéis preenchidos com as perguntas e as respostas de Bissett. Pediram a Bissett para ter paciência e esperar um pouco. Namir encheu‑lhe novamente o copo. A bebida estava a surtir o seu efeito, e Bissett falava demais, fazendo muitas perguntas. Onde é que ia morar? Qual era o tipo de trabalho?

         Mentiam‑lhe à vez. O adjunto do adido militar, Faud e Namir lisonjeavam‑no e adoçavam‑lhe a boca. Tinham Frederick Bissett na mão. O adido militar voltou ao fim de uma hora. Postou‑se em frente de Bissett, em posição de sentido, e apertou a mão do desgraçado.

         - Será uma honra, Dr. Bissett.

         Levantaram os copos num brinde. Colt via a cara de Bissett ruborizada de prazer. Se Frederick Bissett queria ir enterrar‑se no Iraque sem necessidade nenhuma, Colt não tinha nada a ver com isso.

         ‑ Não demos oportunidade ao Dr. Bissett de dizer que está a ser observado pelos Serviços de Segurança ‑ interveio Colt.       ‑ Era aconselhável andar com as coisas depressa.

         Bissett deu uma explicação precipitada, suscitando uma expressão de ansiedade nos seus interlocutores.

         ‑ É melhor levá‑lo daqui antes que eles apertem mais o cerco - sugeriu Colt.

         Começaram a falar de horários de voos. Depois, o adido militar disse:

         ‑ Amanhã à noite. Podemos reter o avião.

         ‑ Vai ao emprego amanhã, tudo como de costume ‑ instruiu Colt.

     ‑ Sai do emprego, eu vou buscá‑lo e levo‑o a Heathrow.

         O adido militar assentiu com um gesto de cabeça.

         ‑ Amanhã à noite.

         ‑ Esperem lá ‑ interrompeu Bissett. ‑ Estão a esquecer‑se da minha família. Tenho coisas para tratar

         ‑ Não pode dizer nada a ninguém, Dr. Bissett ‑ replicou o adido militar. ‑ Não pode tratar de nada. Tem de ir ao emprego como nos outros dias.

         ‑ Não pode ser... tenho de falar com a minha mulher

         Colt pensou que era assim que as coisas se deviam passar sempre. Um desgraçado que bebia demais e que se lamentava num quarto de hotel. Já não havia tempo para tratar de nada, para falar com a mulher. E já fora longe demais para voltar atrás.

         ‑ Se não fizer o que lhe estamos apedir, Dr. Bissett, vai dentro por vinte anos.

 

         O SUECO, às escuras no seu gabinete, a tremer de frio, de janela aberta, ouvia partes da conversa.

         ‑ Ele quer vir, Dr. Tariq. Isso é importante, não é?

         ‑ Não é um dos homens mais importantes. Mas, apesar disso, prestou‑me um bom serviço, coronel. É sempre difícil constituir uma equipa. Este homem em si mesmo não é importante, mas é essencial para o trabalho da equipa.

Os dedos do Sueco rodavam desajeitadamente os botões do receptor no escuro. Quase que ouvia as bobinas a rodarem lentamente. Tinha o auscultador do lado esquerdo aplicado no ouvido e o do lado direito entalado atrás da orelha. Com o ouvido esquerdo, esforçava‑se por ouvir a conversa, e com o direito escutava para ver se ouvia passos no corredor. Cada minuto lento que passava era uma tortura. Limpou com o lenço o suor que lhe nascia na testa. Os Israelitas queriam saber mais pormenores, mas ele não descobrira quase nada. Captou no ouvido esquerdo, através do auscultador, o toque da campainha de um telefone e depois a informação do coronel.

         ‑ Ele vem. Já está confirmado. O Dr. Bissett chega amanhã à noite. Vamos reter o avião, se necessário. Chega amanhã à noite no avião de Londres.

         ‑ As minhas felicitações, coronel.

         ‑ Surgiu um problema de segurança inesperado com Bissett, Dr. Tariq. É por isso que ele tem de vir imediatamente.

         ‑ Não o deixa escapar, pois não, coronel?

         ‑ Está entregue em boas mãos, Dr. Tariq.

         O Sueco respirou fundo e suspirou de alívio. Já tinha o que eles queriam. Desmontou febrilmente o microfone, o receptor e a antena. Enfiou as mãos pelo meio das lâminas do estore e fechou lentamente a janela.

 

         ‑ ISTO É UMA estupidez, James.

         ‑ Nunca julguei que um herói do FBI se ralasse tanto com umas gotas de chuva e um ventinho.

         ‑ Nem sequer vejo o mostrador do relógio!

         ‑ Faltam oito minutos para as duas.

         ‑ Horas de voltar para a cama.

         O vento zunia nas copas das árvores, e a chuva caía com força. Durante muito tempo, nenhum deles disse nada nem se mexeu ‑ limitaram‑se a ficar alerta. As luzes do quarto acenderam‑se uma vez, duas vezes. Da segunda vez, Rutherford viu o velho descer as escadas. A luz da cozinha acendeu‑se, e quando ele subiu novamente as escadas, a luz ficou acesa.

         Erlich espreitava no escuro. A chuva batia‑lhe nos olhos e escorria‑lhe pelo nariz. Viu os faróis do carro a avançarem lentamente e depois quase a pararem. Os faróis viraram, iluminando as árvores altas. Erlich pôs‑se de gatas.

         ‑ Desta vez descobrimos petróleo, BilI ‑ comentou Rutherford.

‑ Pois. ‑ Erlich tirou o Smith & Wesson do coldre que tínha à cinta. Verificou a arma; conseguia fazê‑lo pelo tacto.

         ‑ Tudo bem, Bili?

         ‑ Tudo óptimo.

         Saíram do meio das árvores, apanhando em cheio com a força do vento e o açoitar da chuva. Começaram a descer o declive do campo que ia dar a Manor House. Acenderam‑se luzes no rés‑do‑chão da casa. Eles avançaram até à primeira sebe. Depois, a passo rápido até à segunda sebe, de urze e espinheiro.

         ‑ Apanhámo‑lo, Bul.

         ‑ Pois.

         Correram os dois, apressando‑se pela lama em direcção a Manor House e ao seu alvo.

 

     ‑ ENCARREGA‑SE do cão?

         ‑ Eu trato do cão ‑ confirmou Rutherford.

         Estavam junto ao muro da horta. Eriich enfiou novamente o revólver no coldre. Rutherford fez um estribo com as mãos, e Erlich assentou a bota no estribo. Rutherford fez força e Erlich içou‑se. O muro era velho e o reboco soltou‑se quando Erlich se firmou lá em cima. Erlich baixou‑se, pegou na mão de Rutherford e puxou‑o. Ficaram ambos empoleirados no muro, rente à pedra.

         ‑ Vamos a isto, Bill?

         ‑ Vamos.

         Voltou‑se e pegou na mão estendida de Rutherford, deslizando até ao chão por uma cortina de hera. Logo a seguir, Rutherford caiu, agachado, ao lado dele. Erlich tirou o revólver do coldre, e Rutherford fez‑lhe sinal para segui‑lo. Quando chegaram à porta da cozinha, Rutherford ia um passo à frente dele. Erlich encostou‑se à parede ao lado da porta, com o Smith & Wesson junto à orelha, agarrando com força na coronha do revólver. Respirava em grandes haustos controlados, e o coração batia‑lhe no peito como um martelo. Rutherford tinha a mão no puxador da porta.

         ‑ Fechada à chave?

         ‑ Vamos tentar a porta da frente.

         Rutherford foi novamente à frente e rodou o puxador. A porta abriu‑se uns milímetros. Rutherford estava a olhar para ele. Erlich sentia o peso morto do Smith & Wesson na mão. Podia entrar rapidamente, acabar com aquilo, deixar Rutherford a tratar do cão. Rutherford estava à espera dele. Ele é que tinha de decidir, porque era ele que tinha a arma. Sentia as mãos a tremerem e a respiração pesada. Sabia que estava a respirar depressa demais, com força demais. Susteve a respiração; depois, expirou com a boca quase fechada, expelindo o ar com um som sibilante, como lhe tinham ensinado no curso de treino para quando o aluno entrava em Condição Negra. Mais uma vez. Inspirou com força. Esperou. Expirou lentamente. Depois, abriu a porta com um empurrão.

         Ia a caminho. Entrou.

         Estava resolvido a disparar sobre Colt, a matar Colt.

         Chegou ao primeiro degrau da escada. Ouviu atrás de si o primeiro latido de alarme do cão. Subiu as escadas rapidamente. Agarrando‑se ao corrimão com a mão livre, deu a volta no patamar a meio das escadas. Chegou ao topo e viu uma porta aberta à sua frente. O cão fazia um alarido terrível, bloqueado ao fundo das escadas por Rutherford.

         Ele entrou a toda a pressa, agachado e voltando‑se.

         Soltar a segurança. Posição isósceles. Dedo curvado ao lado da guarda do gatilho. Braços completamente estendidos, corpo inclinado para a frente. Pernas ligeiramente flectidas, flexíveis, para poder virar à direita ou à esquerda. Olhar na mira.

         Viu o homem ao pé da janela. Viu a mulher sentada na cadeira ao lado da cama. Viu a outra mulher, uma figura débil, de olhos fechados, deitada na cama, apoiada às almofadas.

         Meu Deus, não.

         Viu que o homem, o major Tuck, estava tão chocado que perdera a fala. Viu a mulher vestida de enfermeira levantar‑se da cadeira com a cara redonda tensa de fúria.

         ‑ Quem é você? ‑ rosnou a mulher.

         ‑ Onde está Colt?

         ‑ Não sei se sabe que há uma doente nesta casa.

         ‑ Colt está aqui, vimos o carro dele.

         ‑ Que disparate. Baixe isso. O carro é meu.

         Não. A mulher deitada na cama estava consciente, olhava‑o horrorizada, de boca aberta. Ele largou o gatilho, empurrou o fecho de segurança.

         ‑Lá na sua terra não têm consideração pelos doentes? Vá‑se embora e não faça barulho.

         Não pediu desculpa. Não tinha nada a dizer. Virou costas, saiu e fechou a porta. Desceu novamente as escadas. Pensou que ia desmaiar e agarrou‑se ao corrimão. Rutherford estava ao fundo das escadas, segurando o cão pela coleira. Erlich passou por ele e saiu porta fora para a noite ululante.

 

         Ao ROMPER do dia, o Sueco avançava pela via rápida que atravessava a região fértil da bacia dos rios Tigre e Eufrates, deixando para trás a sede da Comissão de Energia Atómica, em Tuwaithah.

         A viagem até Bagdade levava uma hora.

         Quando viu os primeiros e gigantescos retratos sorridentes do presidente do Conselho do Comando Revolucionário, as ruas já estavam atravancadas com o tráfego da manhã. Virou à esquerda, para Imam Musa, no meio da corrente de camionetas e carros que se dirigiam a passo de caracol para a Rua Al‑Kadhim, onde era o novo edifício dos Correios.

 

         BISSETT abanou o cartão de identificação debaixo do nariz do polícia do ministério, que lhe fez sinal para avançar. Entrou por Falcon Gate à hora do costume. Era o que lhe tinham dito ‑ um dia de trabalho normal, o último.

         Se não tivesse tanta confiança no rapaz, Colt, nunca teria coragem para voltar, pensou. Mostrou novamente o cartão de identificação. Entrou no edifício H3 com a gabardina e a pasta, a caixa de sanduíches e o termo.

         Sorriu a Carol e retribuiu o coro de saudações das funcionárias administrativas. Carol e as suas subordinadas sempre lhe tinham manifestado um respeito de fachada, mas ele era um desconhecido para todas elas, há anos que era um desconhecido. Basil entrou atrás dele; Basil, que nunca o defendera, Basil, que, com uma única palavra, podia ter tido um peso decisivo na sua promoção.

         ‑ O seu relatório está muito bom ‑ disse Basil. ‑ Reuben mostrou‑mo e achei que estava óptimo.

         ‑ Obrigado ‑ agradeceu Bissett, corando.

         ‑ E já agora aproveito para lhe dizer que escrevi ao chefe da segurança dizendo que achava que o tinham tratado indecentemente por causa daquela questão do dossier. Pedi que a minha carta, com uma apreciação do seu trabalho, ficasse arquivada no seu dossier.

         Bissett respondeu quase num murmúrio:

         ‑ Foi muito simpático da sua parte, Basil. Obrigado.

         ‑ De nada, Frederick.

         Separaram‑se e ele foi para o seu gabinete, fechando a porta. Um desconhecido na irmandade.

Era um dia normal, tinha de ser. Ligou o terminal do computador. Um dia como os outros, o último dia do desconhecido.

 

         O SUECO subiu a escadaria com a mão direita enfiada na algibeira do casaco, agarrando a cassete. A mão esquerda estava na algibeira das calças pegando na chave da caixa postal.

         O correio abrira há pouco tempo, mas já se tinham formado grandes filas de gente barulhenta à frente dos guichés, empurrando‑se uns aos outros. O Sueco nunca se dirigia imediatamente à caixa postal. Procedia sempre da mesma maneira, de acordo com as instruções do seu controlador. Primeiro, metia‑se na fila mais comprida e ia avançando lentamente, olhando à sua volta para ver toda a gente que estava no correio. Nunca devia ter pressa quando vinha entregar ou levantar qualquer coisa à caixa postal.

         Na parede oposta à das caixas postais, havia um grande cartaz com o retrato do presidente por cima dos bancos corridos, que iam de uma ponta à outra da parede. Estavam dois homens sentados debaixo do cartaz, e o Sueco reparou que eles não despregavam os olhos das caixas postais. Ficou assustado. Continuou na fila, examinando todas as paredes e todos os recantos do gigantesco correio. Além dos dois que estavam sentados no banco, havia mais quatro homens atentos às caixas postais.

         Ele era o único ocidental que estava no correio. Era alto e louro, de pele muito branca. Era impossível que não tivessem dado por ele. Vira os homens que estavam de guarda às caixas postais, mas não sabia quantos mais estariam a vigiá‑lo.

         O mais sensato seria baixar‑se como se fosse atar os atacadores do sapato, pôr a cassete no chão, dar‑lhe um pontapé para a empurrar para longe, por entre os pés calçados com sandálias, e ir‑se embora. Mas a cassete era preciosa demais para agir assim.

         Fez um gesto de impaciência, olhou para o relógio e encolheu os ombros. Deu meia volta.

         Tentou dominar‑se para não começar a correr. Foi invadido pelo medo. Quando chegou perto das grandes portas do correio, viu um dos homens meter a mão no bolso do casaco e tirar um rádio portátil. Nessa altura, o Sueco começou a correr.

         Quando chegou ao fundo das escadas e saiu para a rua, ficou cego com a luz brilhante do Sol. O medo acelerava‑lhe as pulsações.

         Habituou‑se à luz e piscou os olhos. Viu os dois automóveis do lado oposto da Rua Al‑Khadim. Fugiu.

 

O VOO de Bagdade ia ser adiado por tempo indefinido por razões técnicas, anunciaram.

         Alguns passageiros foram descarregar a sua ira no balcão das Iraqi Airlines, mas a maioria aceitou a situação e os cupões para uma refeição grátis sem se queixar.

 

         O SUECO estava no coração da cidade velha. Corria pelas ruas estreitas e sombrias, temendo pela vida.

         Vira‑os pela última vez quando parara, ofegante, abrigado por um toldo preto. Vira‑os espalharem‑se à sua procura e vira um carro parar no cruzamento, descarregando outros homens para participarem na perseguição a cinquenta ou sessenta metros da ruela onde se encontrava.

         A ruela era tão estreita que não cabia lá um carro. Lá em cima estavam penduradas cordas de roupa que filtravam a luz solar. Nas aberturas escuras e estreitas das lojas que tinham os estores de ferro levantados, vendiam‑se melões, limas e tomates ou deitava‑se limonada fresca em copos sujos e embaciados. Ele passou em frente dessas lojas, por vezes a correr, outras vezes, quando a multidão era mais compacta, andando a passo rápido, de cabeça baixa, como se tivesse um assunto urgente para resolver. Não se levantou nenhuma voz para o denunciar aos homens do Departamento de Segurança Pública. O Sueco era um fugitivo: ninguém o ajudava, mas também ninguém o denunciava.

         O Sueco começou a perceber que, mesmo que se livrasse da cassette, não podia voltar a Tuwaithah. Tinham‑no vigiado durante muito tempo no correio. O medo paralisava‑lhe as pernas. Rezou ao seu deus estrangeiro do Norte para que preservasse a sua vida e a segurança da cassete.

         Quando atravessou a rua, em frente do pátio da Estação Central dos Caminhos de Ferro, viu o mesmo homem que estava no correio com o rádio. Virou‑lhe as costas, mas já era tarde demais. O homem avançou para ele, mas depois pareceu mudar de ideias. O Sueco ouviu‑o gritar para o rádio. Confundiu‑se com a multidão e começou a correr assim que virou a primeira esquina.

         O Sueco viu a bandeira a flutuar lá no alto, acima da folhagem frondosa das árvores, e nesse mesmo instante ouviu o apito de uma sirene. Tinha de atravessar uma rua larga para chegar ao portão, e um carro avançava rapidamente na sua direcção no meio do trânsito.

         Havia guardas da milícia local em frente do portão.

         Nunca pensou que fosse capaz de correr tão depressa durante tanto tempo.

Achou que a sirene era para avisar os guardas.

         O Sueco correu para o meio da rua. O trânsito parou para lhe dar passagem. Ele só tinha olhos para o portão à sua frente, e o apito da sirene, já muito próximo, trespassava‑lhe os ouvidos. Faltava‑lhe o ar e as pernas pesavam‑lhe como chumbo, mas ele corria como um louco pelo meio dos autocarros, das camionetas e dos automóveis. Depois, desviou‑se bruscamente para a esquerda para evitar um ciclista; porém, o ciclista chocou com ele, fazendo‑o cair. Mas como caiu, o Peugeot da sirene não lhe acertou. Deitado no meio da rua, levantou os olhos e viu durante um instante a cara do condutor passando a seu lado a toda a velocidade. O carro derrapou e bateu no ciclista.

         Ele ouviu um grito e os travões do carro a chiarem. Levantou‑se e recomeçou a correr. Saiu do meio da rua para o passeio largo. Ouviu gritos atrás de si. Viu a expressão espantada dos guardas da milícia que estavam ao portão. Um deles tentou barrar‑lhe o caminho com a espingarda, mas sem grande convicção.

         Ele entrou pelo portão a correr. A sirene e os gritos ficaram muito para trás. Correu pelo caminho que levava ao edifício e entrou pela porta larga da Embaixada Britânica.

         Deixou de ouvir os gritos e a sirene. Deu por si estendido no chão, em frente da recepção, onde uma voz dizia:

         ‑ Boa tarde. Em que é que posso ser‑lhe útil?

 

         ERLICH soergueu‑se na cama da pensão onde estavam hospedados. Rutherford aparecera à porta, trazendo na mão um telefone portátil, e Erlich teve a sensação de que o Mundo desabara em cima da sua cabeça.

         ‑ Retiraram‑nos do caso ‑ disse Rutherford.

         ‑ Nem vale a pena perguntar porquê.

         ‑ O pai dele levantou um pé‑de‑vento na Curzon Street; tem acesso a gente importante.

         Erlich replicou azedamente:

         ‑ E depois? Quem é que se rala com o que pensa o major Tuck?

         ‑ Não nos perguntaram a nossa opinião. Tenho ordens para voltar para a minha secretária e levá‑lo comigo.

     - Se ele lá estivesse, eu tinha‑o matado ‑ observou Erlich.

         ‑ Consegue estar pronto para partir dentro de dez minutos?

         ‑ Está bem.

 

         VIERAM todos à vez falar com o Sueco, que estava num pequeno compartimento sem janelas, no centro do edifício da embaixada, e que já bebera cinco copos de sumo de laranja fresco.

         O Sueco não sabia que, enquanto ele falava com o encarregado de negócios, chegara um telefonema do Ministério dos Estrangeiros Iraquiano exigindo a expulsão imediata do perigoso criminoso estrangeiro acolhido sob a protecção das instalações diplomáticas. O encarregado de negócios saiu, e o polícia militar perguntou‑lhe se queria chá ou café. O Sueco aceitou o chá com gratidão.

         O homem que apareceu a seguir era o que interessava ao Sueco.

         ‑ Venha comigo ‑ disse o responsável dos Serviços de Informação. ‑ O meu gabinete é muito sossegado e tenho um gravador.

 

         ‑ BOA NOITE, Carol.

         ‑ Boa noite, Dr. Bissett.

         Deixara o gabinete como de costume, sem levar as fotografias de Sara e de Adam e Frank.

         Bissett saiu da área H e dirigiu‑se para Falcon Gate. Mostrou o seu cartão de identificação e fizeram‑lhe sinal para passar.

         Mais um dia de trabalho normal que chegara ao fim.

 

         DESLIGARAM o gravador.

 

         O responsável dos Serviços de Informação continuou durante uns instantes a redigir o seu relatório estenografado do que acabara de ouvir.

         ‑ Obrigado. Não se importa de esperar aqui um bocadinho? Ah, é verdade, não se aproxime das janelas. ‑ Disse ao polícia militar que ninguém podia passar por aquela porta sem sua autorização, nem sequer o embaixador.

         O responsável dos Serviços de Informação foi até ao fundo do corredor, desceu as escadas e entrou na cave da embaixada, onde se situava a área de comunicações.

 

         ‑ NÃO ESTÁS a falar a sério!

         ‑ É a minha grande oportunidade.

         ‑ Com certeza que não estás à espera que eu te leve a sério!

         A conversa começara lá em baixo, na cozinha. Bissett seguira Sara até à cozinha, deixando as crianças em frente da televisão, pusera os braços à volta da cintura dela, que mexia a sopa, e contara‑lhe tudo.

         Sara continuara a falar enquanto atravessavam a entrada, onde os miúdos a podiam ouvir, e subiam a escada até ao quarto.

Podia ao menos ter ouvido o que ele lhe dizia. Podia ter ficado calada e dar‑lhe apoio.

         ‑ Mesmo para ti, foi uma grande estupidez.

         ‑ Olha que os miúdos podem ouvir‑te.

         ‑ Não metas os meus filhos nisto.

         ‑ Também são meus filhos, Sara.

         ‑ Não vão querer nada contigo. Ninguém vai querer nada contigo, meu palerma.

         Era casada com ele há doze anos. Nunca brigavam, nunca discutiam. Nunca levantavam a voz para os filhos não ouvirem. E ela nunca o insultara assim. Nunca!

         ‑ Tive esta oportunidade de melhorar a minha situação. Vou dirigir um departamento. É o mesmo que reger uma cadeira numa grande universidade.

         ‑ Ah, compreendo. ‑ Sara deu uma gargalhada, e o riso agudo dela feriu‑lhe os ouvidos. ‑ É tudo uma questão de vaidade.

         ‑ É por tua causa, não percebes? Por ti e pelos nossos filhos.

         ‑ Não contes connosco. Estás a fazer isto por ti. Vai para onde quiseres, mas sozinho.

         Tentou tocar‑lhe, mas ela afastou‑se.

         ‑ Vais ter uma boa casa, as crianças vão para uma boa escola.

         ‑ És mesmo burro de todo. E o que é que eu sou? A mulher de um traidor. O que é que são as crianças? Os filhos de um traidor. Não percebes o que fizeste?

         Ele irritou‑se.

         ‑ É mesmo uma perda de tempo esperar que tu me dês apoio.

         ‑ Apoio porquê? Por teres traído os segredos do teu país? Se ainda te resta um laivo de bom‑senso, desiste.

         ‑ Já me comprometi.

         ‑ Comprometeste‑te com quem? E não estás comprometido comigo? Com os miúdos?

         ‑ Com Colt.

         ‑ E quem é que é Colt neste mundo?

         ‑ Também o conheces, estava naquela festa onde tu me levaste. - Viu a reacção dela; de repente, pareceu esquecer o desprezo e a fúria.

     ‑ Era aquele homem com quem eu estava a falar. Onde é que tu estavas?

         - Estava... estava lá em cima na cama com o dono da casa. E estava muito satisfeita. Foi muito melhor do que jamais foi contigo.

         O marido replicou num murmúrio, como se não a tivesse ouvido:

     ‑ Vou de avião para Bagdade esta noite. Tudo o que fiz foi por ti e pelos miúdos. Vêm buscar‑me a casa dentro de meia hora. Podemos recomeçar a vida, ter uma vida feliz e próspera, com toda a família junta, pode ser um novo começo. Aqui não devemos nada a ninguém.

         ‑ Pelo menos, deves‑lhes lealdade.

         ‑ E alguém foi leal comigo? ‑ gritou ele, choroso. ‑ Ninguém foi leal comigo. E tu, Sara, foste leal comigo?

         ‑ Frederick, acaba imediatamente com esta loucura!

         ‑ Vou‑me embora.

         ‑ Sem nós?

         ‑ Não és tu que tens de os aturar todos os dias. Que tens de aguentar o desprezo de Reuben Boll e os ares de superioridade de Basil. Não sabes o que é ser‑se humilhado, ser‑se preterido na promoção.

         ‑ Vais‑te embora sem nenhum de nós? Tu é que tens de decidir, Frederick.

         ‑ Por favor, por favor... ‑ Não sabia como é que podia comovê‑la, como é que havia de convencê‑la. ‑ Eu mando‑te dinheiro, claro. - Sara foi até ao guarda‑fato. Abriu a porta e começou a atirar para o chão, para junto dos pés dele, os fatos, os casacos, as calças e as gravatas. Depois, tirou a mala que estava no alto do guarda‑fato e atirou‑a para cima da roupa. Aproximou‑se da cómoda, abriu as gavetas uma por uma e atirou as meias, as camisas, a roupa interior, os lenços e as camisolas dele para cima do monte.

         ‑ Sara, por amor de Deus! Só faço isto por ti!

         ‑ Quando saíres das nossas vidas, nem sonhes em voltar.

         Sozinho no quarto, ele fez a mala e ficou à espera que a campainha tocasse.

 

         A PASTA estava em cima da cadeira, o guarda‑chuva bem enrolado em cima da secretária e ele estava a enfiar o casaco. Percy Martins fez uma careta quando o telefone tocou.

         ‑ Secção do Médio Oriente. Reunião já. Na sala de reuniões principal.

 

         HOBBES bateu uma vez à porta e entrou rapidamente no gabinete de Dickie Barker.

         ‑ Desculpe, Mr. Barker. É da Secção do Médio Oriente da Century House. Pedem se pode lá ir. O carro está à sua espera em frente da porta principal dentro de um minuto. Acho que é por causa de Frederick Bissett.

 

Os MIÚDOS continuavam sentados na sala, e a televisão continuava acesa. Sara estava de costas voltadas para a porta. Dissera que ia impedir, nem que fosse pela força, que ele se despedisse dos filhos. Tocaram à campainha. Do ponto da cozinha onde se encontrava, ele via a sombra de Colt recortada no vidro fosco da porta.

         Pegou na mala. Pensou que os miúdos deviam estar encolhidos no sofá, tão assustados com o que tinham ouvido que nem se atreviam a sair de lá ou a chamá‑lo. Sara, muito pálida e com os músculos do pescoço tensos, voltara‑lhe a cara. Não se atreveu a empurrá‑la para passar. Pensou no que ela teria sentido e no que teria feito quando estava na cama com o marido de Debbie Pink.

         ‑ Por amor de Deus, Sara...

         ‑ Desaparece das nossas vidas.

         ‑ Eu escrevo.

         ‑ As tuas cartas vão direitas para o lixo.

         ‑ Só faço isto por ti, Sara.

         ‑ Vai‑te embora.

         Perdeu a coragem. Nesse momento, hesitou. Podia ter voltado atrás, podia subir as escadas com a mala e desfazê‑la. Depois, podia descer as escadas e abraçar Sara, podia entrar na sala e abraçar os filhos.

         Tocaram novamente à campainha. Sara passou por ele e foi abrir, sem se dignar olhá‑lo.

         ‑ Boa noite, Mrs. Bissett. Boa noite, Dr. Bissett. ‑ Colt sorriu, e Bissett pensou que era capaz de ir até ao fim do Mundo com ele. Colt continuou: ‑ Temos de ir, Dr. Bissett.

         Bissett foi até à porta. Voltou‑se para trás. O olhar de Sara trespassava‑o como se ele não existisse.

         ‑ Depois, escrevo.

         A mulher fechou‑lhe a porta na cara.

 

         HOBBES estava muito bem acompanhado.

         O director‑geral‑adjunto, o segundo homem mais importante da Centurv House, estava sentado à cabeceira da mesa. Tinha à direita os seus homens, o chefe da Secção do Médio Oriente, o chefe da Secção de Israel e o chefe da Secção da Síria/Jordão/Iraque, Percy Martins. à esquerda do director‑geral‑adjunto, estavam Díckie Barker, com Hobbes atrás, um inspector‑chefe da Brigada Especial. Falavam todos ao mesmo tempo. O director‑geral‑adjunto bateu na mesa com o estojo metálico dos óculos.

         ‑ Por favor, meus senhores, haja ordem e silêncio. Temos muito pouco tempo. Um agente israelita foi parar à nossa embaixada em Bagdade. Foi o mesmo que vasculhar num ninho de vespas. A embaixada está cercada, rodeada de blindados, com as metralhadoras apontadas para as janelas. Na opinião do pessoal local, o agente está a falar verdade e a gravação que nos entregou é genuína. As vozes da gravação são a do director da Comissão de Energia Atómica de Tuwaithah e a de um coronel dos Serviços de Informação que não foi identificado. A gravação diz‑nos sem margem para dúvidas... temos aqui a transcrição. Diz: "Ele vem. Já está confirmado. O Dr. Bissett chega amanhã à noite. Vamos reter o avião, se necessário. Chega amanhã à noite no avião de Londres." O que é que vamos fazer, meus senhores?

         ‑ Os Israelitas tentam sempre lançar a confusão ‑ disse Martins.

     ‑ Temos de tratar com o maior cuidado tudo o que vem dos Israelitas.

         - Se o que está em causa é avaliar informações provenientes de Telavive ou de Bagdade... ‑ começou o chefe da Secção de Israel.

         ‑ Não sei se sabe que, neste momento, Bagdade é muito importante para nós.

         O director‑geral‑adjunto interrompeu‑os bruscamente:

         ‑ Pare lá de implicar, Percy, por favor. Meus senhores, quero saber a vossa opinião.

         ‑ Podemos reter indefinidamente o voo das Iraqi Airlines ‑ disse o inspector‑chefe da Brigada Especial.

         Martins abanou a cabeça como se estivesse a falar com crianças.

         ‑ Não, não. As repercussões diplomáticas seriam incalculáveis.

         ‑ Acho que isso não é necessário ‑ observou o chefe da Secção de Israel. ‑ Basta apanhar Bissett antes de ele embarcar. Ninguém dá por nada.

         ‑ Pois. Isso é facílimo ‑ troçou Martins. ‑ Bissett é o sujeito que leva vestido um fato de treino com o nome dele, Fred Bissett. Ninguém vai ter a menor dificuldade em reconhecê‑lo, mas mesmo que ele se tenha esquecido do fato de treino, temos uma fotografia dele, claro, com uma descrição. Mas também lhes posso dizer mais uma coisa. Se mandarem dois agentes à paisana para o balcão das Iraqi Airlines, nem que sejam razoavelmente inteligentes, espantam o nosso homem e nunca mais lhe pomos a vista em cima. E isso é partindo do princípio de que ele não está já a bordo disfarçado de hospedeira. ‑ Martins fez uma careta. ‑ E esse avião que foi retido, alguém sabe a hora prevista para a partida? Acho que precisamos de respostas para estas perguntas, Sr. Director, e para muitas outras, antes de decidirmos o que devemos fazer.

         Hobbes sentiu o cotovelo de Barker espetado nas costelas. Não precisou de outras instruções ‑ esgueirou‑se lá para fora, para o gabinete que ficava à entrada da sala de reuniões.

         Quando regressou à sala, Martins fez sinal com a mão para os outros se calarem e deixarem Hobbes falar.

         ‑ De Heathrow disseram que o voo das Iraqi Airlines pediu autorização para descolar dentro de hora e meia.

         ‑ Muito bem. ‑ Martins recostou‑se na cadeira. ‑ Isso quer dizer que Bissett deve chegar ao aeroporto dentro de três quartos de hora, mais dez minutos, menos dez minutos, e que não temos lá ninguém que faça a menor ideia do aspecto dele. Ou sugerem que o chamemos pelos altifalantes?

         ‑ Um dos meus homens interrogou Bissett esta semana ‑ informou Hobbes.

         ‑ O quê?

         ‑ Fomos chamados pelo chefe da segurança e interrogámo‑lo.

         ‑ Mas que novidade tão interessante, não é verdade, Sr. Director? Não nos quer esclarecer melhor, Mr. Hobbes? ‑ Martins inclinara‑se para a frente, fitando Hobbes com desaprovação.

         ‑ Bissett foi interceptado no portão principal com dossiers que não podiam sair das instalações. Estamos a fazer uma investigação.

         ‑ Desculpe. Quer dizer que os Serviços de Segurança vão ao EAA, investigam uma pessoa e que só agora é que nos dizem

         ‑ A investigação não estava acabada.

         ‑ Uma situação em aberto, não é, Mr. Hobbes? ‑ O duplo queixo de Martins tremeu num riso silencioso.

         ‑ O homem que o interrogou deve vir neste momento na auto‑estrada de regresso a Londres. Posso interceptá‑lo.

         Martins bateu palmas.

         ‑ Muito bem, Hobbes. Está tudo resolvido. Um agente à paisana em Heathrow. Localizam‑no e deitam‑lhe a mão. Tudo muito discreto, sem aparato e sem incidentes... isto é, se o senhor estiver de acordo, Mr. Barker?

         Barker assentiu com um aceno de cabeça. O director‑geral‑adjunto, manifestamente aliviado, recolheu os seus papéis.

         ‑ Obrigado, meus senhores. Obrigado, Percy, uma contribuição decisiva.

     ‑ A experiência no terreno é tudo.

 

         ‑ DAQUI Rutherford.

         ‑ Fala Hobbes.

         ‑ Sim.

         ‑ A linha não é segura, pois não?

         ‑ Não. ‑ Rutherford tinha o telefone portátil encostado à orelha, mas Erlich ouvia o que estavam a dizer do outro lado.

         ‑ Onde é que está?

         ‑ Na M3, perto do segundo cruzamento com a M25.

         ‑ A quanto tempo de Heathrow?

         ‑ Há muito movimento. Talvez um quarto de hora ou mais.

     - Tem de ser um quarto de hora. É agora ou nunca.

         ‑ Qual é o problema?

         ‑ O seu amigo do Berkshire. O fulano da pasta. Passou‑se, vai embarcar esta noite.

         ‑ Qual é o voo?

         ‑ Para a terra de Nabucodonosor. Entendeu?

         ‑ Não, não percebo. Andei na escola, não andei no seminário.

         ‑ Bagdade ‑ disse Erlich baixinho.

         ‑ Está bem. Já percebi ‑ replicou Rutherford.

         ‑ Você é a única pessoa que o conhece que pode lá chegar a tempo. No terminal dois. Percebeu? Ele deve ir fazer o check‑in a todo o momento. Estão lá uma ou duas caras conhecidas. Mas não largue o homem da pasta enquanto não chegarem reforços.

         ‑ Quantas pessoas vão com o da pasta?

         ‑ Não se sabe. Mas não me parece que ele esteja à espera de o ver. E já agora mais uma coisa, Rutherford: o seu amigo americano não tem nada que cheirar no assunto. Agora veja lá o que faz.

         Começaram a ziguezaguear nas faixas de rodagem, provocando apitadelas indignadas dos outros automobilistas.

         ‑ Vou confiar em si, porque talvez precise da sua ajuda - disse Rutherford. ‑ Quando estive fora, nestes últimos dias, fui investigar um fulano do nosso laboratório de armas atómicas que foi apanhado a tentar levar documentos para casa. O caso ficou em suspenso, pelo menos até se resolver a questão de Colt, mas agora esse idiota tem lugar marcado no voo de Bagdade. Deve chegar ao aeroporto a todo o momento.

         ‑ E o que é que eu posso fazer?

         ‑ Ele deve levar uma escolta, provavelmente de homens armados. Se não conseguirem metê‑lo no avião, vão tentar fugir com ele. Eu encarrego‑me do homem e você toma conta da bagagem dele e não deixa ninguém pôr‑lhe a mão em cima. E faça o possível por agir com uma discrição britânica. Os serviços não querem complicações. Está a perceber?

         ‑ Estou.

 

         BISSETF fez a última parte da viagem até ao aeroporto em silêncio. Colt achou que ele estava a pensar no que tinha deixado para trás nos Jardins de Lilases: a mulher, que nem sequer lhe dera um beijo de despedida, e os miúdos, a quem não se referira nessa noite.

         Colt arrumou o carro no parque de estacionamento de longa duração. Depois, atravessou‑se na frente de Bissett, abriu o porta‑luvas e tirou de lá a Ruger. Viu que Bissett parecia assarapantado.

         ‑ É para nos proteger, Dr. Bissett, a si e a mim.

         Colt saiu do carro. Levava a Ruger no saco de plástico. Passava o saco a Namir ou a Faud no balcão do check‑in. Pegou na mala de Bissett e no seu saco e dirigiu‑se para a paragem dos autocarros que iam para os terminais.

 

         RUTHERFORD arrumou num lugar próximo do terminal 2 e saiu do automóvel.

         ‑ Vamos a pé, Bill. Feche o carro, está bem?

         ‑ Já vou ter consigo. E boa sorte, James.

         Rutherford estava a pensar em Frederick Bissett. Foi até à porta do terminal. Pensava no homenzinho acossado e assustado, sentado à sua frente no gabinete: Bissett, da área H. Afinal, não eram problemas com a mulher!

         Erlich juntou‑se a ele e entraram os dois.

 

         COLT viu Namir a cinquenta passos de distância, no meio da multidão de viajantes na sala de partidas do aeroporto.

         Bissett ia muito perto dele, como se tivesse medo de ficar para trás.

         ‑ Os nossos amigos já cá estão, Dr. Bissett ‑ disse Colt.       ‑ Tudo em ordem.

 

         ERLICH seguia Rutherford. Abriram caminho por entre as filas de passageiros e a respectiva bagagem. Havia uma enfiada de balcões de companhias de aviação entre o lugar onde eles estavam e o balcão das Iraqi Airlines.

Rutherford olhou para a direita e Erlich imitou‑o. Viu um homem alto, de cabelo louro cortado curto, virado de costas para eles. Um homem mais baixo, de cabelo escuro encaracolado e com uns óculos grossos, estava de frente para eles com um ar assustadíssimo. Outros dois homens, um alto e outro baixo, com aspecto de árabes, pareciam estar a tranquilizá‑lo.

         Ouviu Rutherford dizer:

     ‑ É aquele, o baixinho de cabelo escuro e óculos. Vê os guarda‑costas? Proteja‑me a retaguarda. ‑ Rutherford avançou.

         Os passageiros, os funcionários das companhias de aviação e os empregados de limpeza do aeroporto afastaram‑se para lhe dar passagem. Rutherford começou a correr e Erlich também, para o acompanhar.

         Rutherford gritou:

         ‑ Dr. Bissett! Não se mexa, Dr. Bissett!

         Foi então que Erlich viu Colt. Viu um homem igual à descrição do rapazinho de Atenas, à fotografia da Polícia e ao que Hannah Worthington dissera ter visto. Viu o assassino de Harry Lawrence.

         O homem baixo do cabelo escuro encaracolado e dos óculos grossos estava paralisado. Os dois árabes misturaram‑se com a multidão.

         Colt era mais alto do que ele pensava, tinha uns ombros mais largos e mais presença. O homem baixo voltara‑se para Colt, como se ele fosse a sua tábua de salvação, e Colt enfiara a mão num saco de plástico de supermercado. à volta deles passavam pessoas com carrinhos de bagagens, havia beijos de despedida. Erlich viu a arma de Colt a sair do saco, a subir. Ataque letal em curso. Viu uma pistola de calibre.22 com um silenciador.

         Rutherford continuava a avançar. Colt desviou‑se para a esquerda, arrastando o outro homem.

         Erlich tirou o revólver do coldre. Soltar a segurança. Posição isósceles. Colt avançava na sua direcção, arrastando atrás de si o outro homem. Erlich gritou:

         ‑ Alto! FBI. Pare!

         Foi um pandemónio. Homens, mulheres e crianças atiraram‑se para o chão brilhante da sala de partidas.

         Colt ergueu a arma. Estava a cinco passos dos balcões das companhias de aviação. Podia ter‑se abrigado por detrás do balcão se não estivesse a puxar pelo braço do homem de cabelo escuro encaracolado.

         E Rutherford corria para o homem como se ele não estivesse armado. Rutherford estava caído, com a cara no chão. Erlich não via Colt nem o homem do cabelo escuro encaracolado. Só via os balcões e as pessoas apavoradas.

         Disparara três tiros, como lhe tinham ensinado. Não ouvia nada; tinham‑lhe também ensinado que os seus ouvidos, em Condição Negra, ficariam surdos aos gritos à sua volta.

         Viu o sangue a escorrer da boca de Rutherford.

 

COLT, que não conhecia bem Heathrow, guiou‑se pelo instinto. Saiu disparado pelas portas electrónicas de vidro, empurrando Bissett à sua frente.

         Aprendera as lições da fuga. A distância entre ele e os perseguidores era crítica. O primeiro minuto era vital, os primeiros cinco minutos eram ainda mais vitais, os primeiros trinta minutos eram os mais vitais, mas a chave era a distância.

         Passara‑se o primeiro minuto. Não tinha planos. Saiu pelas portas de vidro para o ar frio da noite. Se o americano lá estava, o outro também lá devia estar. E se lá estavam os dois, também devia haver outros, e o mais provável era que estivessem armados. E quem era o homem que fora atingido, o homem que gritava por Bissett? Quando estava a atravessar a faixa dos táxis, carregando Bissett quase em peso, um autocarro de dois andares passou em frente do terminal. A Ruger, entalada em segurança no cinto das calças, já lhe estava a magoar as costas. Saltou para a plataforma aberta da parte de trás do autocarro, içando o peso morto de Bissett. O homem estava cinzento. O autocarro devia ter um revisor, que provavelmente estava lá em cima a cobrar os bilhetes. Havia pessoas a olhar para eles. Colt sorriu, como se ele e o seu amigo estivessem satisfeitos por terem apanhado o autocarro. O veículo deu a volta e afastou‑se do terminal. Estava cheio de sorte. Continuava a agarrar Bissett pela axila, pois pensou que, se o largasse, o homem era capaz de se estender ao comprido no corredor do autocarro.

         Já haviam passado os primeiros cinco minutos. Entraram nas luzes cor de laranja de um túnel e, quando saíram, Colt viu os primeiros carros da Polícia, com as luzes azuis a girarem, dirigindo‑se para o túnel e o terminal. O autocarro voltou à esquerda e começou a subir uma encosta. A distância era o que interessava. Iam no meio do trânsito, andando talvez a dez à hora. Colt estava na plataforma das traseiras. Agarrou novamente no braço de Bissett e saltou, arrastando‑o atrás de si. Colt ficou de pé, mas Bissett caiu, com metade do corpo no passeio e a outra metade no meio da rua. Os travões do automóvel que ia atrás do autocarro guincharam quando o condutor travou para não os atropelar. Correram cerca de cento e cinquenta metros e chegaram ao parque de estacionamento de longa duração.

         Atingiram a primeira meia hora. Colt chegou ao carro que tinha deixado no parque para os iraquianos o irem buscar. O carro arrancou. Ele empurrara Bissett para o banco da frente a seu lado. Disse‑lhe para tirar a gabardina e a enfiar debaixo do banco e para o ajudar a despir o casaco e o meter também debaixo do banco. O carro derrapou, dirigindo‑se a toda a velocidade para a saída. Colt tirou uma das mãos do volante e arrancou os óculos a Bissett. Pagou ao funcionário do parque. Havia mais luzes azuis e mais sirenes na circular, e uma carrinha da Polícia passou por eles em sentido proibido e depois virou, na saída do aeroporto, para barrar a estrada. Mais um minuto e não teriam escapado.

         Colt ia calado. Tirou a Ruger da cintura e pô‑la ao colo. Dirigiu‑se para a auto‑estrada.

 

         SE Erlis tivesse andado mais depressa e sempre a direito, teria conseguido escapar antes de a Polícia bloquear o lado leste da circular perto da zona de carga. Mas não fora suficientemente rápido. Rutherford morrera, morrera antes de ele ter sequer conseguido chegar junto dele.

         Quando saiu do terminal para o ar nocturno, só se lembrava do som que lhe chegava aos ouvidos. Era a última chamada dos passageiros com destino ao Barém e a Dubai. Ele matara um colega, e estavam a chamar os passageiros com destino ao Barém e a Dubai.

         Podiam tê‑lo retido durante mais tempo, mas ele mostrou a sua identificação do FBI aos polícias. Estava com náuseas e atordoado. O seu nome era William David Erlich, nascido a 7 de Maio de 1958, agente especial do FBI, e não era capaz de pensar com clareza porque tinha matado James Rutherford e não o socorrera.

         Matara o marido da bela Penny Rutherford. Sabia onde tinha de ir agora.

 

A PRIMEIRA coisa que Hobbes viu foi a fita branca mal esticada.

         Abriu caminho à cotovelada por entre a multidão de mirones silenciosos. Exibiu o cartão e passou por baixo da fita. Ainda nem sequer haviam tido tempo de tapar o corpo. Ele teve o cuidado de não mexer nos três cartuchos caídos no chão do aeroporto.

         Perguntou o que é que tinha acontecido e contaram‑lhe. Os dois agentes da Brigada Especial tinham visto tudo e falavam com a voz embargada pela comoção.

         O agente mais alto disse:

         ‑ Era difícil fazer alguma coisa. Foi tudo muito rápido. Não sabíamos quem procurávamos antes de o seu agente ter gritado o nome dele. Era um homem louro de vinte e tal anos que estava acompanhado por um outro homem mais baixo de óculos e gabardina.

         ‑ Estavam perto do balcão do check‑in do voo iraquiano retido - informou o outro agente.

         ‑ Ora bolas‑ disse o agente mais alto. ‑ Era ele. Tínhamos uma fotografia que nos deram há quinze dias. Um inglês que trabalhava para o Iraque. Chamava‑se Tuck.

         O agente mais baixo deixou‑se abater.

         ‑ O aeroporto e os portos estão todos em estado de alerta.

         ‑ Podem deitar‑se outra vez a dormir. Era Colin Olivier Louis Tuck ‑ disse Hobbes com uma expressão venenosa.

         Hobbes afastou‑se. Finalmente, a equação desenhava‑se com clareza no seu espírito. Colt estava com os Iraquianos, Bissett estava com os Iraquianos, Colt estava com Bissett. Tudo se tornava simples à luz da razão.

         Hobbes falou rapidamente pelo seu rádio portátil. Pronunciou o nome de Colt e declarou que estrangulava todos os responsáveis se todos os aeroportos e portos da Grã‑Bretanha não tivessem a fotografia de Colt nas secretárias dos Serviços de Imigração.

         Voltou para junto dos agentes da brigada e deu‑lhes o número de telefone do gabinete de Dan Ruane.

         ‑ Quero‑o aqui quanto antes. Que confusão!

         Hobbes foi informado sobre as medidas já tomadas, sobre as barreiras instaladas nas estradas. Disseram‑lhe que tinham passado vinte e cinco minutos desde o tiroteio. Mostraram‑lhe por onde fugira o homem louro, Colt, arrastando Bissett através das portas do aeroporto. Disseram‑lhe que o americano fora atrás deles.

 

         COLT saiu da auto‑estrada.

‑ Estavam à nossa espera, Dr. Bissett. Sabiam que nos íamos embora. Fomos traidos.

         - E para onde vamos agora, Colt?

         Colt soltou uma risada seca e rouca. O carro passou num buraco e Bissett lembrou‑se do homem que viera falar com ele. Rutherford, o homem que trouxera o cheiro do medo ao seu gabinete H

         - Não posso voltar atrás, Colt.

‑ Se voltar atrás, vai preso para toda a vida, Dr. Bissett.

         Está com medo, Colt? Bissett deu‑se conta do tom de lamúria da sua voz.

         ‑ Quando estiver encostado à parede, quando não tiver para onde fugir, é que tenho medo. Antes disso, não.

         Bissett estremeceu. Vira a posição do atirador, meio agachado. Vira a arma apontada para ele. Era pior do que um pesadelo, porque não podia voltar atrás, não podia acordar. Só podia fugir com Colt.

 

         ‑ UM HOMEM como esse é para ser abatido ‑ disse Percy Martins.

‑ Mas tem de se entregar a arma a um profissional. Não se pode confiar um trabalho desses a um amador incompetente. ‑ Martins rodou o copo de brandy, e o director‑geral‑adjunto assentiu com a cabeça.

         ‑ Claro que uma arma e um atirador são a sua política favorita, Percy ‑ respondeu Dickie Barker. ‑ Mas temos é de ver o que se pode fazer para resolver esta situação terrível. Julgo que é para isso que estamos aqui.

         Barker chegara há menos de dez minutos à Curzon Street quando soube do acontecido em Heathrow e recebeu o relatório de Hobbes. Regressara a toda a pressa à Centurv House.

         ‑ Quando o relatório chegar às mãos do primeiro‑ministro ‑ disse Martins ‑, vou ficar muito satisfeito por não ter de ser eu a explicar porque é que a única arma apontada a um conhecido terrorista estava nas mãos de um agente americano inexperiente que se encontrava no local por acaso.

         ‑ Um terrorista a soldo dos seus amigos iraquianos.

         ‑ Por favor, meus senhores, por favor.

         ‑ O meu conselho é este, Sr. Director: mantermos o mais rigoroso silêncio sobre este assunto. Pode estar na moda em alguns círculos tratar os Iraquianos como a escumalha do Médio Oriente, mas eles têm um regime estável numa região turbulenta.

         ‑ Mandam um assassino para as nossas ruas ‑ rosnou Barker. Subornam um dos nossos físicos nucleares; cercam a nossa embaixada em Bagdade e você ainda lhes quer mandar um ramo de flores. Essa gente é perigosa, muito perigosa. Se não traçarmos um limite e não os obrigarmos a respeitar esse limite, podem provocar uma catástrofe.

         ‑ Um belo discurso, mas são palavras vãs ‑ ironizou Martins. - Ou seja, fazem o mesmo que muitos outros. Claro que quero tratar da saúde ao pistoleiro deles e recuperar o nosso cientista e quero que levantem o cerco à nossa embaixada, mas também quero abafar todo este assunto infeliz.

         ‑ Pelo menos nisso estamos todos de acordo. E agora, se me dão licença, tenho de ir visitar uma jovem viúva ‑ disse Barker, empurrando a cadeira para trás.

         ‑ E também temos de encontrar o americano antes de ele fazer mais estragos. ‑ Martins emborcou a sua bebida de um trago.

 

         ‑ TINHA de vir cá dizer‑lhe. ‑ Erlich estava de pé na entrada da casa. ‑ Era a minha arma e fui eu que o matei. ‑ A porta da rua estava aberta. ‑ Tinha o alvo na mira, mas não vi James.

         Penny Rutherford estava em frente dele. Quando ele tocara à porta, Penny estava a substituir as flores da sala de estar. Ainda tinha as flores na mão, crisântemos, mas estavam murchas. Voltou‑lhe as costas e atravessou a entrada em direcção à cozinha. Erlich ficou a olhar enquanto ela deitava as flores para o lixo. Ficou a olhar para ela da outra ponta da pequena casa onde ela morava.

         ‑ Nunca perdoarei a mim mesmo o que fiz, Penny.

         Ela voltou‑se, e a sua voz tinha a violência de um furacão.

         ‑ Seu idiota incompetente. Vá‑se embora. Deixe‑me em paz. Não quero nem vê‑lo. Não estou interessada nas suas desculpas. Vá‑se embora.

         Erlich saiu e fechou a porta. Afastou‑se no automóvel a toda a velocidade. Só havia um lugar aonde ele podia ir.

 

         DAN RUANE estava no meio da área de embarque do aeroporto. O corpo de Rutherford ainda lá estava, tapado com um cobertor.

         ‑ Perdemos um homem jovem e corajoso só porque o seu cowboy não sabia o que estava a fazer.

         ‑ Não diga asneiras.

         ‑ E como não foi capaz de enfrentar as consequências dos seus actos, fugiu.

         ‑ Talvez não lhe agrade, Hobbes, mas vai ouvir algumas verdades, quer queira, quer não. Você é que falhou. Não tentou resolver este assunto. Todos os indícios, todas as pistas, foi Bill Erlich quem os descobriu. Você limitou-se a ficar sentado na sua torre de marfim. Em comparação com Erlich, você não mostrou o menor empenho.

         ‑ Deixe‑se de criancices, Ruane ‑ empertigou‑se Hobbes - Diga‑me mas é para onde é que acha que foi Erlich.

     ‑ Foi para onde ele acha que pode encontrar Colt.

 

         ‑ TEMOS muito pouco tempo, Dr. Bissett. Mas há uma coisa que joga a nosso favor, é que eles precisam de algum tempo para se organizarem.

         ‑ Sim.

 

     ‑ A nossa melhor hipótese são os ferries. Em Weymouth ou Bridport, no Sul, os ferries que vão para França. Um barco que faça a viagem de noite.

         ‑ Se é isso que acha, Colt.

 

         Já tinham ultrapassado Salisbúria. Colt metera pelas estradas secundárias, atravessando as aldeias. Estava em segurança nas aldeias e nas estradas de campo, orladas de sebes altas. Era território conhecido.

     - Temos de resolver para onde é que vamos agora ‑ disse.

         ‑ Decida você.

         Colt fez uma careta.

         ‑ É difícil. Eles depois pagam‑lhe, claro, mas não tenho dinheiro que chegue para os bilhetes doferiy. Pode emprestar‑me o dinheiro que for preciso?

         ‑ Só tenho uns trocos.

         ‑ Não tem...

         ‑ Deixei o livro de cheques em casa para a Sara. E deitei fora o dinheiro que a sua gente me deu. Não devo ter mais de cinco libras.

         ‑ Raios.

         Colt não despregava os olhos da estrada. Continuava a guiar naquela paisagem solitária, bela e selvagem. Em Broad Chalke, passaram por uma cabina telefónica. Colt tirou umas moedas da algibeira e estacionou o carro debaixo das árvores, longe das luzes das redondezas da cabina telefónica.

         Fran reconheceu imediatamente a voz dele.

     ‑ Julguei que já te tinhas ido embora, Colt.

         Ele disse‑lhe que estava metido num grande sarilho. Que um homem tinha sido atingido a tiro e que talvez estivesse morto.

     ‑ E o que é que queres de mim?

Disse que os rapazes deviam ter dinheiro, Billy e Zap, Charlie, Kev e Zach. Disse que precisava de quinhentas libras.

         ‑ Não consigo arranjar tanto dinheiro, Colt. Assim de repente.

         Ele disse que estava na aldeia dentro de uma hora. E depois restituia‑lhes o dinheiro, responsabilizava‑se por isso.

         ‑ Estiveram aqui à tua procura, Colt. Não devias voltar. Entraram no quarto da tua mãe armados.

         Ele perguntou se eles ainda estavam na aldeia.

         ‑ Estive toda a tarde em casa. Não sei se eles voltaram.

         ‑ Dentro de uma hora ‑ disse ele.

         ‑ Colt, ainda não deves saber... A tua mãe morreu esta tarde.

         Fran ouviu‑o suster a respiração e depois o zumbido da linha quando ele desligou.

 

         ‑ FOMOS traidos.

         O Dr. Tariq acabara de se levantar da mesa depois do jantar. Fez sinal ao coronel para se sentar, mas o coronel preferiu ficar de pé, percebendo que o director não compreendera o que ele tinha dito.

         ‑ Fomos traidos em Londres.

         ‑ O quê? E Bissett?

         ‑ Eles sabiam. Houve tiroteio no aeroporto, perto do balcão da nossa companhia de aviação. Os homens da segurança estavam lá à espera de Bissett.

         Traídos. A palavra ressoou dentro da cabeça do Dr. Tariq como um dobre de finados anunciando a catástrofe. Ele é que era responsável por Tuwaithah. Fizera promessas ao presidente. O Dr. Tariq teve um arrepio, sentindo o frio da noite à sua volta.

         ‑ Uma traição interna ‑ disse o coronel.

         Falou do cientista alto e desengonçado, com a pele pálida do Norte da Europa, que se refugiara na Embaixada Britânica. O Sueco já jantara uma vez com o Dr. Tariq.

         Um quarto de hora depois, foi o próprio Dr. Tariq quem encontrou o microfone escondido dentro da bengala de tubo metálico. Olhou para o coronel e viu espelhado na cara dele o seu próprio terror. Não passavam de dois servidores de um regime cujos métodos eram a forca, o acidente e as balas.

 

         FORAM enviadas descrições e fotografias de Colt e de Frederick Bissett para todos os aeroportos comerciais e portos marítimos do país. As descrições e as fotografias eram acompanhadas por uma ordem no sentido de que, se algum responsável desse informações à imprensa, o castigo seria severo. Ninguém estava interessado em que se soubesse do desaparecimento de um investigador do Estabelecimento de Arruamento Atómico. Agentes seleccionados e bem treinados foram levantar armas de fogo aos arsenais da Polícia. E a última coisa que Dickie Barker fez antes de ir dar os pêsames à viúva de James Rutherford foi mandar para o Wiltshire uma equipa de atiradores e detectives da Brigada Especial treinados em métodos de vigilância secreta, sob as ordens de Hobbes.

 

         ERLICH tomara posição no escuro por baixo do velho muro da horta, perto de onde o tinha saltado havia poucas horas na companhia de Rutherford. Uma coruja piava no carvalho do outro lado do muro, e antes de ter pousado no seu poleiro, ele vira‑a passar esvoaçando perto de si, com as asas brancas a baterem silenciosamente. Assustara‑se com a ave, mas agora ele, escondido atrás do muro da horta, e a coruja prateada, empoleirada por cima da sua cabeça, espreitavam ambos Manor house. Quando a coruja levantasse voo, assustada, Erlich saberia que Colt voltara a Manor House. Estava uma luz acesa nas escadas, mas não se viam mais luzes nem movimento na casa. Para se animar e porque estava tão abatido, começou a recitar poesia para si próprio.

         Mas os versos não o consolavam, porque James Rutherford morrera.

         "Deixa‑te disso, Bill, deixa‑te de lamúrias e faz o que tens a fazer."

 

         Bissett achou que era uma loucura.

         Toda aquela gente que estava no pub era horrível, todos uns labregos, menos a rapariga. Era um disparate ter ido ao pub.

         Colt estava de costas para a lareira. Estavam todos de pé e reinava grande animação no bar; eles falavam com o seu sotaque provinciano e riam. Era a corte do Rei Colt, que estava em frente da lareira com um copo de cerveja na mão e a coronha da pistola Ruger a sair do cinto. Era uma perfeita loucura.

         A rapariga era bonita, reparou nisso. Mas tinha um ar extravagante e selvagem. Beijara Colt quando eles entraram. Agora, a rapariga andava pelo meio deles e todos iam acrescentando mais dinheiro ao maço de notas dobradas que ela já tinha na mão.

         O dinheiro era vital para eles, para comprarem os bilhetes do ferris. Mas Colt dissera no carro que tinham pouco tempo. Tinham de pegar no dinheiro e fugir a caminho da costa. A rapariga já passara junto de todos os homens. Como é que aquela gente, aqueles labregos, tinha tanto dinheiro na algibeira?

         Bissett viu‑a entregar o dinheiro a Colt. Estavam todos a aplaudir, ele era o seu herói. Ninguém olhava para Bissett, junto da porta. Ele recusara a bebida que lhe ofereciam. Tossiu, pensando que assim podia apressar Colt.

         Colt olhou para ele e fez‑lhe o seu sorriso atrevido e descarado. Meteu o dinheiro na algibeira, aproximou‑se de Bissett e disse:

         ‑ Agora é só mais um bocadinho, Dr. Bissett.

         ‑ Não temos tempo a perder.

         ‑ São só uns minutos.

         ‑ Para quê?

         As feições de Colt ficaram tensas, numa expressão de grande tristeza.

         ‑ Para ir a casa.

         A pesada porta de carvalho do bar rangeu e abriu‑se.

 

     O POLICIA da aldeia entrou no bar das traseiras do pub.

         Dado que morava na outra aldeia, Desmond não aparecia naquela comunidade tantas vezes como desejaria. Mas pelo menos uma vez de quinze em quinze dias fazia questão de passar o serão numa ronda pela aldeia. Eram quase 9 e 30 quando entrou no bar. Saíra do carro havia uma hora, deixando‑o trancado e estacionado perto do campo de futebol e do parque infantil. Não recebera portanto as mensagens urgentes transmitidas de Warminster para o rádio do seu carro.

         Entrara em casa de Mrs. Williams para ver se o novo gradeamento de rede estava pronto para ser aplicado nas janelas da loja na semana seguinte e depois batera à porta do solicitador para lhe lembrar que a licença da sua espingarda tinha de ser renovada. Passara pelo parque de estacionamento do pub de regresso ao automóvel e reparara que estavam lá dois carros parados com as luzes acesas.

         Calaram‑se todos quando ele entrou. Ele não percebeu porque é que toda a gente reagia como se ele fosse o fiscal dos impostos. E o velho Vic parecia que ia cair para o lado atrás do bar.

         ‑ Boa noite, Vic. Estão ali fora um Cortina e um Nova com as luzes acesas. Sabe de quem são?

         Voltou‑se e sorriu afavelmente. Estavam espalhados pelo bar e ficaram todos a olhar para ele. Conhecia‑os a todos. Normalmente, sempre que vinha ao pub numa das suas visitas rituais, diziam‑lhe umas graças. Mas desta vez não se ouvia nenhum som além do barulho infernal da máquina de discos.

         Viu o rapaz. E por detrás do rapaz viu a figura curvada de óculos de aros grossos e cabelo escuro encaracolado, já a rarear nas têmporas. O rapaz retribuiu‑lhe o olhar. Todos os outros, à excepção do rapaz, pareciam ter medo dele. Mas o rapaz não.

         Desmond viu o cabelo louro cortado curto e os olhos brilhantes de fúria dirigida contra ele. Mas não havia medo naquela cara. Viu a coronha metálica da pistola a sair do cinto do rapaz. Percebeu que era Colt.

         Desmond frequentara a Escola de Treino da Polícia de Ashford. Em Ashford, ensinavam um jovem polícia a intervir numa briga doméstica, a agarrar um ladrão em fuga. Ele era eficiente no combate corpo a corpo, mas não sabia mexer em armas de fogo; não ensinavam isso na escola. Não fazia ideia de como enfrentar um homem armado. Mas também não podia voltar costas, como se não se tivesse passado nada, e ir‑se embora. Na Escola de Treino da Polícia haviam‑lhe dito que, quando o caso metia armas de fogo, não valia a pena fazer de herói. O melhor era pedir ajuda pelo rádio e desaparecer até chegarem os profissionais. Mas ele não tinha rádio e não podia voltar para a porta. Viu a mão de Colt fechar‑se em volta da coronha da pistola.

         Já se tinha atirado para diante quando percebeu que o perigo era a mão de Colt, e não a pistola nem a bala.

 

         O PULSO e todo o braço de Colt estremeceram com o choque quando o cutelo da sua mão bateu em cheio no centro do pescoço do polícia. E o polícia não vacilou nem tropeçou, caiu imediatamente no chão como um saco de batatas.

         Todos sustiveram a respiração em volta de Colt. Ficaram a olhar para ele, mas depois reagiram.

         ‑ Não era preciso tanto.

         Para que é que fizeste isso?

         ‑ Nós moramos aqui, Colt.

         Mas ele não se impressionou. Era o homem que nunca entrava em pânico. Empertigou‑se orgulhosamente, com o polícia a seus pés. Via os ombros do agente estremecerem enquanto ele tentava aspirar ar para os pulmões através da traqueia esmagada. Colt estava a duzentos metros de casa. Se fosse a correr, chegava à porta de Manor House num minuto. Ouviu a porta do bar a abrir atrás das suas costas. Zap saíra.

         Viera à aldeia buscar dinheiro? Ou viera a casa ver o pai pela última vez, ver a mãe que tinha morrido? Ouviu um arrastar de pés à sua direita. Era Kev, que se escapulia também em direcção à porta.

         Bissett gemia lá na outra ponta do bar como um cão espancado.

 

         O COMBOIO de carros da Polícia entrou na aldeia. Tinham ordens para barrar as duas extremidades da única estrada que atravessava a aldeia e para vigiar discretamente Manor House. Não deviam fazer nada se vissem Colt, porque em Heathrow ele estava armado e porque a brigada armada de Londres já vinha a caminho de helicóptero.

         Quando viram o carro do polícia estacionado junto da baliza do campo de futebol, o carro da frente parou. O sargento ainda estava a examinar o carro quando ouviu as pancadas surdas das botas de dois rapazes a correr.

         ‑ Vocês aí, parem! Viram Desmond?

         ‑ No pub. Está lá dentro... ‑gaguejou Kev. ‑Está mal. Mas se lá entrarem, ele mata‑os, como lhe fez a ele.

         ‑ Está bem, rapaz. Quem é que mataram?

         ‑ O polícia ‑ disse Kev.

         ‑ E quem foi?

         ‑ Foi Colt ‑ respondeu Zap.

         O sargento, um homem de meia‑idade, correu para o carro e para o rádio.

 

         ELE CONTINUAVA de pé junto do polícia.

         Queria ver o pai. Queria sentar‑se ao lado da cama onde vira a mãe pela última vez.

         ‑ Vamos, Colt, depressa. ‑ Bissett atravessava o bar na sua direcção. - Temos de ir apanhar o ferry.

         ‑ Cale a boca.

         O velho Brennie levantara‑se e acenava a cabeça com ar sério para o velho Vic, que estava atrás do bar, como fazia sempre que acabava a sua cerveja e eram horas de ir para casa.

         Bissett baliu aos ouvidos de Colt.

         ‑ Porque é que não nos vamos embora?

         Desta vez, quando se fosse embora, era para sempre. Desta vez, ia‑se embora para não mais voltar. Os longos dias de treino em Bagdade e as longas noites no Complexo Residencial da Rua de Haifa só haviam sido suportáveis porque ele sabia que um mês, uma semana, um dia, uma noite, voltava à aldeia e ao amor do pai e da mãe. Mas, desta vez, quando se fosse embora, era para sempre, nunca mais voltava.

‑ Está bem, está bem ‑ disse Colt.

         Ia acabar a sua bebida. Iam lembrar‑se dele para sempre no bar das traseiras do pub, porque tinha acabado a sua bebida e saído para a noite para não mais voltar. Levantou o copo. Mais três goladas e acabava a bebida. Colt fez um grande sorriso:

         ‑ À sua saúde, Dr. Bissett.

         Ouviram‑se rodas de automóvel a ranger no saibro do parque de estacionamento, o chiar de travões, e a luz de uns faróis atravessou as cortinas finas do bar. A luz branca estava misturada com raios penetrantes de azul.

         Colt emborcou a última golada de cerveja.

         A luz batia na cara de Bissett, que estava branca e azul, manchada como um céu onde os raios de sol alternassem com as nuvens. O copo de Colt bateu no tampo da mesa e ele tirou a Ruger do cinto ‑ não ia deixar‑se apanhar.

         ‑ Não precisavas de fazer‑lhe mal ‑ disse Fran.

         A mão dela, de pele grossa, calejada e gasta, a mão que ele amava, estava debaixo da cabeça do polícia, amparando‑a.

         Mais uma cerveja para o caminho: mas quando Colt olhou para o balcão do bar, viu que o velho Vic desaparecera. Tinha a arma na mão; avançou para Bissett, e Bissett encolheu‑se.

 

         ERLICH viu a coruja levantar voo. Viu as asas começarem a bater num voo fantasma. A coruja desapareceu silenciosamente. A Lua descobriu‑se por instantes, iluminando as asas abertas. Um voo silencioso, um pio de aviso, e a ave desapareceu.

         Erlich viu o movimento dos automóveis na outra extremidade da estrada que atravessava a aldeia e viu também as luzes azuis e brancas relampejando por entre as árvores.

         Saiu do seu esconderijo. Atravessou o relvado de Manor House até ao caminho que ia dar à estrada. Via lá adiante a fachada do pub. Avançou: a guerra era sua, Colt era seu.

         Viu os polícias agachados atrás das portas abertas dos automóveis e lá ao longe, na noite, ouviu o ruído de um helicóptero. Aproximou‑se do sargento.

         ‑ Sou Erlich, do FBI.

         ‑ Ah, já sei. Desmond falou‑me de si.

         ‑ Ele está lá dentro? Colt?

         ‑ Neste momento, está. Se não fugir.

         ‑ Estão armados?

     ‑ As armas vêm a caminho.

         ‑ Onde é que ele está?

     ‑ Estava no bar das traseiras, junto da porta lateral.

         Erlich tirou o Smith & Wesson do coldre preso ao cinto. O sargento não pareceu disposto a discutir. Não ia fazer um arraial porque um agente federal armado invadira o seu território. Uma rapariga e um rapaz apareceram na zona iluminada, dobrando a esquina do edifício; carregavam o corpo inerte do polícia.

         Erlich avançou, e os faróis dos carros projectaram a sua sombra gigantesca na fachada de pedra do pub. O ruído dos motores do helicóptero, cada vez mais próximo, misturava‑se com o uivo do vento.

         Colt era seu.

 

         COM MOVIMENTOS rápidos e controlados, Colt sacou da pistola, tirou o carregador e verificou todas as balas antes de as enfiar no carregador. Bissett olhava. Iam fugir. Não precisava que lho dissessem.

         Colt acabara de carregar a pistola e agora estava agachado; desatou os atacadores dos sapatos e atou‑os novamente.

         Era impossível que Colt não ouvisse o som trovejante que se aproximava, penetrando nas paredes de pedra do pub.

     ‑ Está tudo bem, Colt? Vamos os dois?

         - Claro.

     ‑ Acha que conseguimos?

         ‑ Não vai haver problemas. ‑ Depois, acrescentou, como se fosse uma coisa sem importância: ‑ Vou lá acima. Quero ver melhor o terreno. Não se preocupe, Dr. Bissett. É um helicóptero. Não vale a pena preocupar‑se.

         ‑ Lamento muito, por causa da sua mãe. Lamento muito.

         ‑ Não demoro nada; está na altura de fugirmos.

         Bissett ouviu um ruído leve de passos, e Colt desapareceu nas escadas estreitas de caracol que saíam das traseiras do bar.

 

         O HELICÓPTERO aterrou.

         Erlich pensou que devia ser um grande aparelho de transporte pela potência do motor. Deviam estar finalmente a organizar uma intervenção a sério: homens armados e os graúdos de Londres. Não devia haver lugar no plano deles para Bill Erlich, o número três de Roma, procurado para ser interrogado pela morte de James Rutherford. Estava no alpendre das traseiras do bar de Smith & Wesson em punho. O helicóptero desligara os motores.

Respirava fundo, como lhe tinham ensinado. Atrás da porta grossa e manchada do bar esperava‑o uma Condição Negra.

         COM MOVIMENTOS furtivos, figuras encobertas correram a tomar posição em volta do edifício e dos anexos e garagens nas traseiras. Moviam‑se pesadamente, porque estavam sobrecarregadas com os coletes à prova de bala, as bolsas de munições, os rádios e os intensificadores de imagem no cano das espingardas‑metralhadoras.

         Hobbes tentou apagar dos ouvidos o som do helicóptero. Não trazia sobretudo, e os sapatos de cidade tinham ficado estragados só de atravessar o campo de futebol ao descer do helicóptero. Disseram‑lhe que um americano, um agente do FBI, fora autorizado a avançar porque era o único homem armado que se encontrava no local. Num instante terrível, Hobbes adivinhou como é que aquele pesadelo ia acabar.

         ‑ Comandante ‑ gritou no escuro.

         ‑ Estou aqui, mesmo ao seu lado, Mr. Hobbes ‑ disse uma voz calma. ‑ Vimos o americano e sabemos onde é que ele está. Quer‑o fora daqui?

         ‑ O que é que ele está a fazer?

         ‑ Parece que está a contar até cem antes de entrar pela porta das traseiras.

         ‑ Não há dúvida de que mereceu a honra de ser o primeiro a entrar.

 

         BISSETT achou que já era tempo de Colt estar de volta. Há pelo menos três ou quatro minutos que não ouvia os passos dele por cima do tecto do bar.

         Fez o mesmo que Colt. Desatou os atacadores dos sapatos e atou‑os novamente, bem apertados. Tinham de correr pelos campos e não podia perder os sapatos na lama.

         Olhava para as escadas que saíam de detrás do balcão do bar. Ficou à espera do sorriso atrevido e vivo de Colt. Estava pronto, pronto a fugir ao lado de Colt.

 

         ERLICH tinha a mão pousada no fecho da porta. Agarrava com força o Smith & Wesson, com o cano encostado à orelha. Não era altura para mais precauções.

         Levantou o fecho e bateu com a anca na porta aberta. A luz bateu‑lhe na cara, e ele entrou em acção.

         Irrompeu pelo bar, chocou com uma mesa, atirando com os copos, que se estilhaçaram no chão, tropeçou numa cadeira, vacilou, mas não parou. Estava em Condição Negra. Abrigou‑se atrás da máquina de discos e agachou‑se. Encontrava‑se em posição isósceles e rodou o tronco com o revólver apontado.

         Viu o homem do aeroporto, de joelhos, o cabelo escuro encaracolado, os óculos de aros grossos, mas ignorou‑o. Examinou todo o bar das traseiras, mas não viu sinais de Colt. A adrenalina estava a secar. Toda a força, o ímpeto, a agressividade da sua entrada no bar, estavam a esgotar‑se e ele não via Colt.

         ‑ Onde está Colt? ‑ berrou.

         O homem voltou a cabeça para o balcão e para a porta aberta lá atrás, que dava para as escadas e para a escuridão. Depois, virou outra vez a cabeça, dando‑se conta de que se traíra.

         Erlich ofegava. Uma coisa era abrir a porta e irromper no bar e outra era subir as escadas na escuridão. Tinha de tomar uma decisão. Os ensinamentos de Quantico diziam‑lhe que um agente nunca deve perseguir sozinho um homem que fugiu por umas escadas e nunca, mas nunca, deve subir umas escadas às escuras.

         Estava na frente de batalha, sozinho, e nunca tivera tanto medo na vida.

 

         ‑ ACHO que devemos deixar que as coisas sigam o seu curso fora do conhecimento público. Não quero que isto se saiba, Mr. Barker. Só quero enviar uma mensagem a esse regime sanguinário. Aconselho‑o a ir para casa dormir.

         ‑ Muito bem, Sr. Primeiro‑Ministro.

         ‑ Boa noite, Mr. Barker.

         Dickie Barker ia dar mais uma palavra a Hobbes, que estava no veículo de comando, para lhe dizer que ele e o primeiro‑ministro queriam abafar completamente o desenlace daquele caso. Diria a Hobbes para mandar recuar mais duzentos metros os circunstantes e para confiscar todas as câmaras, etc., etc. Quanto ao desenlace, agora já não podia fazer grande coisa para o influenciar. Ia para a cama e de manhã reparava os estragos. E com o rapaz do Tuck e o maluco do Erlich à solta, com certeza que ia haver estragos.

 

         PODIA sair porta fora, meter o revólver no coldre e dizer aos homens do Grupo de Operações Especiais que Bill Erlich não estava disposto a fazer justiça ao amigo subindo umas escadas às escuras. Ele é que tinha de decidir.

         Tinha os olhos pregados nas escadas; esperava ver aparecer a todo o momento o cano de uma arma e Colt agachado atrás dela. Começou, primeiro a avançar para o degrau das escadas.

         Ouviu o estrondo de vidros a partirem-se e rodou o corpo.

         O homem levantara‑se e tinha na mão um cOPo com a borda partida e barrava o caminho a Erlich; o copo partido era a sua arma.

         ‑ Largue isso.

         ‑ Não vai subir.

         ‑ Saia da minha frente.

         ‑ Não vai subir.

         O homem não arredava pé. Erlich nem via a borda partida do copo porque tinha os olhos pregados na escada. A escada era Colt, e Colt era operigo. O perigo não era este homem com o copo partido.

         Erlich deu um passo em frente. Viu pelo canto do olho que o copo estava apontado para a sua cara e que o homem tinha o braço esticado ‑ o vidro partido encontrava‑se a trinta centímetros da sua cara. Tentou manter a calma.

         ‑ Para trás.

         ‑ Ele é meu amigo.

         ‑ Nem sequer sei quem você é.

         ‑ Sou amigo de Colt.

         Ele viu que o pulso que agarrava o copo tremia. Era o homem que vira no aeroporto. Naquela altura, era o companheiro forçado de Colt. Era um homem que nunca fora violento, mas que agora, naquele momento, estava acossado e não podia voltar atrás.

         ‑ O seu amigo é um psicopata, um assassino.

         O copo estava mesmo à frente da cara de Erlich.

         ‑ Deu‑me uma oportunidade e foi o único. ‑ Erlich deu mais um passo; o copo foi levantado à altura dos seus olhos. ‑ Foi o único - gritou o homem.

         Erlich sentiu uma dor aguda na face e no queixo.

         Disparou.

         Viu o homem mergulhar para trás. O copo caiu e desfez‑se. Ele viu o sangue que salpicava a parede e uma caixa de vidro com dois faisões empalhados lá dentro.

 

         A CHUVA caía com força, escorrendo-lhe pela cara. A chuva e o vento que a empurrava e a escuridão das nuvens eram a sua liberdade.

         Fora um prazer sentir o açoitar da chuva quando abrira a clarabóia. Essa sensação de felicidade acompanhou‑o enquanto descia pelo algeroz e depois de ter saltado para o chão junto do velho depósito de água.

Sentia‑se feliz rastejando pelo meio dos loureiros da sebe alta que separava os anexos do pub dos campos que se estendiam do outro lado.

Quando chegou à orla do bosque, ouviu o crepitar de armas de fogo. Mas Colt não parou. A sua liberdade era a noite à sua volta.

 

Só DEPOIS de os outros passageiros terem saído e quando o Sueco estava sozinho a bordo com os membros da tripulação é que os três homens subiram para o avião. Apertaram‑lhe a mão.

         Era véspera de Natal. Os altifalantes das chegadas tocavam um cântico de Natal, e ele viu o granizo que caía arrastado pelo vento de oeste, soprando na direcção de Londres.

         Não tinha bagagem. Vestia a mesma roupa que levava quando se refugiara na embaixada. Levaram‑no para a sala dos VIPs e serviram-lhe uma bebida.

         O homem chamado Percy Martins dizia:

         - Era completamente amoral. Acho que nem sequer sabia distinguir o bem e o mal, mas não há dúvida de que tinha um grande encanto pessoal, e foi isso que perdeu Bissett. O problema era o pai, um herói da guerra, um soldado aventureiro, que agia por detrás das linhas inimigas. Colt tentava imitá‑lo, mas nunca conseguiu.

         - Não estou muito preocupado por o termos deixado escapar, pelo menos ao meu nível. - Assim que amanheceu, procuraram‑no com os cães, mas não tinham nenhuma pista, a chuva levou‑lhe o cheiro. - Quando reaparecer, acho que vai criar problemas, mas para já perdemos‑lhe a pista.

         - Foi por isso que levámos tanto tempo a negociar a sua libertação. Não percebemos imediatamente, porque levámos uma semana a decifrar o código deles. Bagdade não acreditava que não tínhamos apanhado Colt. Queriam que o entregássemos em troca da sua libertação. Parece que o homem que estava por detrás de Colt era o coronel cuja voz você gravou em Tuwaithah, o mesmo coronel que armou toda aquela confusão à porta da embaixada. É a mesma voz. Não o queria deixar sair do país antes de lhe entregarmos Colt. Mas prevaleceram outros pontos de vista mais sensatos... tenho alguns amigos bem colocados. Além disso, o coronel caiu em desgraça.

         - Seja como for, você está aqui em segurança e vamos mandar uma missão comercial ao Iraque na semana que vem, por isso acabou tudo em bem. à sua saúde.

O Sueco viu que o mais novo dos três homens olhava para o relógio e abanava a cabeça e esvaziou o copo. Martins deu‑lhe um aperto de mão e ficou na sala, e os outros dois saíram com o Sueco.

         O Sueco estava satisfeito por poder andar a pé. Nas últimas cinco semanas, o único passeio que o haviam autorizado a dar fora uma volta diária ao recinto da embaixada, e sempre à noite.

         Atravessaram a sala de embarque.

         Hobbes disse:

         ‑ No nosso ofício, está tudo dependente da sorte ou do azar. Bissett teve azar porque se atravessou no caminho de um agente do FBI chamado Erlich. A missão da vida de Erlich era abater Colt e nada poderia detê‑lo. Depois de ter dado cabo de Bissett, virou o pub de pernas para o ar à procura de Colt. Fui despedir‑me de Erlich quando ele, voltou para Roma. Tive pena dele. Era uma pena se se demitisse. É um polícia muito consciencioso. Encontrou uma ponta de cigarrilha de Colt em Atenas no local do crime e revolveu a casa de Colt, no Wiltshire, como um terrier até encontrar uma ponta de cigarrilha igual no caixote do lixo. Um teste ao ADN da saliva provou que tinham sido fumadas pela mesma pessoa, o que constitui uma prova suficiente para o condenar, tanto aqui como num tribunal americano. E estou convencido de que é como isto vai acabar. Pode ser conveniente para algumas pessoas que Colt desapareça, mas sem o coronel de Bagdade ele não tem para onde fugir. Mais tarde ou mais cedo, aparece, e Erlich vai estar à espera dele. Eu também vou estar à espera dele, assim como todos os polícias da Grã‑Bretanha, mas a condenação ficará a dever‑se a Erlich.

         Só um dos dois homens saiu com o Sueco pela porta lateral, que permitia evitar o controle da Imigração. Passaram pelos polícias armados e os cães e pelas equipas de segurança.         Deram‑lhes os lugares que ficavam imediatamente atrás da primeira fila, já ocupada pelo segurança.

         Tork disse:

     ‑ Há‑de estar interessado na história de Bissett, não? Só sei o que me disse hoje o Percy Martins depois de o meu avião ter aterrado e enquanto esperávamos pelo seu. A conclusão parece ser que Bissett era um desgraçado a quem ofereceram a Lua, e era tão tonto que a quis agarrar. Estava disposto a ir trabalhar para os Iraquianos porque o gerente do banco o andava a chagar e porque o chefe dele implicava muito com ele. Uma história patética. A última coisa que fez na vida foi talvez a única que merece admiração. Coitado do Bissett, defender um homem que considerava como um amigo e morrer por causa disso. Poupou‑nos muitas maçadas. Não nos agradava nada ter de o levar a tribunal.

         A versão que pusemos a correr foi que ele se meteu com um grupo de lunáticos chamado Frente de Libertação dos Animais e que preferiu matar‑se a expor‑se à vergonha de uma denúncia pública.

         Portámo‑nos muito bem com a familia dele. Inventámos uma história sobre uma promoção que estava iminente, e por isso a mulher recebe uma pensão melhor e, principalmente, ficou de boca calada. Já se mudou para fora desta zona e a casa está à venda.

         E a velha história: não aconteceu nada. Nunca houve um Colt, um Bill Erlich ou um Frederick Bissett.

         A cabina do avião estava a encher‑se de passageiros.

         ‑ O senhor vai trabalhar em Dimona, naturalmente ‑ informou Tork. ‑ Telavive fica muito perto da praia. Vá dando notícias. Está aqui o meu cartão. E o mais triste no meio disto tudo é que o que nós fizemos apenas atrasa o trabalho em Tuwaithah e no monte Karochooq. É um mundo perigoso que, graças a nós, se tornou menos perigoso, mas apenas por alguns meses. Sabe Deus o que os seus chefes e os meus vão fazer durante esses meses. Aposto que os meus só acordam quando já for tarde demais. São mesmo assim.

         Os motores estavam a acelerar, e o Sueco adormeceu.

 

                                                                                Gerald Seymour  

 

                      

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