Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
CONFISSÕES DE UM LIBERTINO
Segunda-feira. Mais uma e já acabada. Dezoito horas. Era mais do que tempo de regressar a casa, tomar um duche, comer qualquer coisa fresca, recostar-se na cama e continuar a ler o livro iniciado de véspera. Ou ver televisão.
No caminho, dezenas de carros conduzidos por gente apressada iam buzinando aqui e ali, quando o da frente, distraídamente, parecia daltónico na descodificação do semáforo verde.
Podia ser uma segunda-feira como outra qualquer. Tinha contudo, um significado diferente. O dia estava quente e era definitivamente uma segunda-feira especial, por ser dia de aniversário. Não do seu propriamente dito, mas de um acontecimento da sua vida, quando, qual Maria Papoila, abalou da sua aldeia até ao Porto para tirar o curso.
Finalmente, a rua onde morava. Meteu o carro na garagem. De seguida, saindo do prédio, dirigiu-se à pastelaria do bairro. Pediu um café. Era um lugar simpático. Não um daqueles cafés de clientela patológica que há anos e anos vai ao mesmo sítio nos mesmos dias e às mesmas horas, não para tomar seja o que for, mas para engodar a velhice já em adiantado estado de decomposição, com todo o respeito que os velhos lhe mereciam.
Às vezes queria ignorar toda a gente, nem sempre o conseguindo. Deveria ser portadora de alguma deformação profissional. Talvez a tivesse adquirido nos bancos da universidade prolongando-a nos intermináveis papéis, através dos quais seleccionava as pessoas candidatas ao mercado de trabalho.
Hoje queria deixar tudo isso encerrado no gabinete e pensar apenas no seu livro, meio lido meio por ler. Ao invés, ali estava aquela lembrançazinha recheada de uma vida de mais de vinte anos em que, em boa verdade, nem tudo foram rosas. O curso na Faculdade, o estágio no gabinete e o tarado sexual do seu chefe. Por causa dele comeu ratos vivos durante um bom meio ano. Passado este tempo todo, o anormal, babando a camisa, incontinente de corpo e alma se é que algum dia a teve, dizia ainda com gestos de faca ao pescoço:
Aquela gaja ficou-me atravessada na garganta.
Agora, da sua cátedra de profissional altamente qualificada, escolhia os melhores perfis para o desempenho das mais variadas profissões atestadas pela desenfreada formação profissional que, nos últimos anos, atacara o país por pacíficas exigências da União Europeia, e onde muita da boa gente deste jardim à beira-mar plantado encheu, obviamente, os bolsos.
Todavia, quando se tratava da sua vida amorosa, nem sempre conseguira aplicar os profícuos princípios da arte de rasgar mentes atacando adequadamente o perfil correcto para os seus alardes românticos, um bocado bacocos, segundo ela dizia. Era assim como quem diz: Em casa de ferreiro, espeto de pau. Ou talvez pior. A páginas tantas, revelava-se uma talentosa alquimista. Se algum amigo lhe apresentava um homem, tinha logo a generosidade de o considerar, em primeiro de tudo, também amigo. Depois, sacava dos seus pózinhos milagrosos desatando a transformá-lo. E nos sítios em que toda a gente via palha já ela vislumbrava ouro. Quando ele lhe mostrava finalmente o perfil, era já tempo de o reverter para merda antes daquilo dar para o torto. Apesar disso, não culpava os amigos e continuava a usufruir deles, privilegiando-os nas devidas ocasiões como manda o ditado que se faça.
Já com o ex-marido fôra a mesma coisa. Casada num Dezembro frio de Nossa Senhora da Conceição, um dia foi dar com ele aquecendo os pés de um raparigo metido numas cuecas e num soutien que ainda por cima eram dela. Felizmente não tivera filhos. Desde essa altura, já lá ia uma boa dúzia de anos, tinha um pouco mais de cuidado. De vez em quando, contudo, o Cupido ainda a atacava arremessando-lhe com gente de rosto angelical. E ela caía como uma pata. Mas, mal a linha, mais ou menos palmo e meio abaixo da cintura era atingida, o santo revelava os seus pobres pés de barro e três meses depois pulava fora, fazendo-lhe um enorme favor.
Na verdade, estar sozinha sem peúgas para lavar e jantar para fazer era o melhor que lhe podia acontecer – pensava, enquanto bebia o fundo da chávena.
Pagou o café e saiu da pastelaria. Dirigiu-se ao prédio. Na entrada, foi direita à caixa do correio. Publicidade e contas para pagar. Telefone, água, luz... Algumas cartas não as iria abrir já. Para quê chatear-se agora quando, presumivelmente, ainda tinha uma semana ou mais para o fazer.
Meteu-se no elevador. Morava no último andar de um bairro novo e arejado, num apartamento de quatro assoalhadas. Era um duplex. Sempre morara em duplex. Isto é, desde que conseguira dinheiro para arrendar a primeira casa. Agora, aquela era sua. Ou melhor, do banco, como a maioria das casas neste país. Comprara-a em construção. Dera-lhe um toque muito especial. O projecto tinha espelhos no quarto. Mandou-os tirar. Nunca fôra narcisista. Colocou um atrás da porta da casa de banho. Outro pô-lo no hall de entrada, na parte superior da mesa, sobre a qual pusera uma jarra de flores secas, ao lado do telefone e de mais alguns objectos decorativos. O espaço parecia, assim, maior.
Olhou-se de relance à entrada.
Era uma mulher de estatura média. Talvez de um metro e sessenta e cinco. Rondaria os quarenta anos.
O espelho devolveu-lhe a imagem do fim do dia metida numas calças à boca de sino e numa camisola cavada nas mangas. Ambas as peças eram pretas.
Uma vez lera numa revista que toda a mulher, antes dos quarenta, deveria encontrar o seu próprio estilo. Ela pensava ter encontrado o seu. Muito desportivo tornava-a mais jovem no seu corpo moreno claro, com pouco mais de cinquenta quilos de peso. Passava por uma senhora bem vestida, como aconteceu quando começou a fazer uma colecção de livros em fascículos. Encomendou o seguinte e os outros. Durante umas semanas não foi ao quiosque. Devolveram a encomenda, pois não sabiam quem seria a dona. Apenas que era a tal senhora bem vestida.
Riu-se intimamente com a lembrança, disposta a meter-se na banheira e tomar o seu duche vespertino. Antes, foi ver o frigorífico. Ia grelhar um peixinho. Tirou-o do congelador. Ultimamente preferia o peixe à carne, empenhada como estava numa dieta que não lhe fizesse engrossar a silhueta esguia.
De seguida subiu à suite. Já na casa de banho, desmaquilhou os olhos castanhos claros, incrustados num rosto redondo emoldurado por um cabelo também acastanhado, caído sobre os ombros. Pôs a água a correr. Quentinha como ela gostava. Não demorou muito. Afinal, ainda tinha o jantar para fazer e o livro para ler. Sempre queria ver se o rapazinho conseguira livrar-se do trauma de ter sido obrigado a pegar e a esfregar um pénis, quando, mal disposto, saíra a meio do filme Musica no Coração. Pelo menos, vomitado ele tinha. Não sabia se em resultado da má disposição ou se com nojo pela substância viscosa largada pelo homem laranjada, como ele passou a chamar-lhe.
O telefone tocou.
Estou.
Logo que ouviu a voz do outro lado, identificou-a imediatamente.
Olá, Carolina! Tudo bem?
Comigo sim! Mas vai ficar petrificada com o que lhe vou dizer!
Bolas! É assim tão grave?
Não sei se para algumas pessoas é grave morrer!...
Quem é que morreu?
Não adivinha?...
Não me diga que foi o ...
Ele mesmo! - disse Carolina.
Quando?
Ontem à noite! Amanhã, vem no jornal!
Foi acidente? – perguntou.
Parece que não... Recentemente ele esteve internado no hospital. Quando o vi da última vez, há cerca de dois meses, estava com uma cor muito macilenta.
Terá sido cancro?
Não sei! Ou isso ou outra coisa pior!...
Não me diga!...
Nunca se sabe!...
Não é de excluir tal hipótese. Ele era ainda tão novo mas tão...
Tinha 47 anos.
É verdade. A Carolina vai ao funeral?
Não. Segundo julgo saber, vai ser sepultado na aldeia. E você, vai?
Não sei. Vou pensar. De qualquer modo tenho muita pena dele.
Também tenho, apesar de tudo...
Despediram-se.
Até amanhã. Depois telefono-lhe. Obrigado por me ter ligado.
Não pôde deixar de pensar no assunto e relembrar aquele homem com uma certa tristeza e, enquanto secava o cabelo, as ideias acudiam-lhe à mente desconcertada.
Vestiu um pijama fresco. Desceu à cozinha.
Depois de pronto, comeu o robalo grelhado, sem grande apetite. Na cabeça ecoavam-lhe as palavras de Carolina. Não tinha lá muito a certeza de que tivesse mesmo pena dele. Magoara-a bastante. Mas talvez tivesse! Afinal, a morte é como se fosse um purificador. Debaixo da terra todas as pessoas se transformam em boas quando se fala nelas, apesar de, se for o caso, se meterem algumas ressalvas pelo meio.
A louça ia ficar para outras calendas - pensava.
Subiu novamente ao quarto. Deitou-se sobre a cama feita, pegando no livro. Não conseguiu concentrar-se. Ligou a televisão. Aconteceu-lhe a mesma coisa. Apetecia-lhe que lhe apetecesse chorar. Mas na verdade não lhe apetecia. Levantou-se da cama e abriu o guarda-roupa. A um canto, pendurado numa cruzeta e separado dos seus, estava um fato de homem de um tom acastanhado. Abriu a gaveta um pouco abaixo. Mentalmente reviu uma camisa rosa, uns boxers e umas peúgas. Tudo estava ainda embrulhado. O mesmo acontecia com uma máquina de barbear e um after-shave guardados no mesmo sítio. Lembrou-se então das perguntas feitas nas lojas para comprar tudo aquilo, bem como da cara admirada dos empregados. Deviam ter pensado que ela não conhecia o destinatário dos presentes. E na realidade nunca conheceu.
Voltou para a cama. Não sabia se iria ao funeral. Não conhecia muita gente a quem apresentar pêsames. Mesmo essa, não devia estar muito pesarosa. Apenas aliviada. Por outro lado - e agora sorria - ele também não iria ao seu enterro.
Sentia porém uma curiosidade mórbida a apoderar-se avassaladoramente de si. Agora já tinha a certeza. Ia mesmo – pensou, num ímpeto
Levantou-se de novo. Foi à dispensa buscar um saco grande. Tinha de falar com o colega do gabinete para acertar alguns pormenores sobre o trabalho agendado para o dia seguinte. Pegou no telemóvel. Já eram onze e trinta da noite. Hesitou. Digitou, finalmente, o número.
Do lado de lá foi atendida num tom jovial.
Olá. Sou eu – temeu não ser reconhecida pela tonalidade da voz sumida que lhe saía da garganta.
A esta hora? Não me digas que estás com problemas quanto à escolha do director comercial daquela nova empresa nossa cliente?!
Não. Não é isso. Amanhã não vou trabalhar.
Estás doente?
Não. Vou a um funeral...
É alguém de família?
Não. É...
Já sei. Não digas mais nada. Não te preocupes. Eu trato das coisas por aqui.
Obrigado. Amanhã telefono-te.
Não conseguia adormecer, depois de desligar.
Deu cem voltas na cama, envolta em mil e um pensamentos. Parecia-lhe ouvir ruídos na casa. De repente, já eram gemidos. Desceu as escadas e foi à cozinha. Acendeu a luz. Era um miar de gato. Então, abriu a porta da varanda e foi dar com a gata da vizinha do andar contíguo ao seu, que aí se infiltrara sem ela dar por isso. Olhou melhor, com um pouco de receio. Qual não foi o seu espanto quando viu seis ou sete gatos todos lambidos em volta dela.
Bonita noite! – pensava - Agora, além de um funeral para amanhã tenho uma gata parida na varanda! E ainda por cima fora de tempo! Nem sequer estamos em Fevereiro!...
Agarrou numa taça de barro e colocou-a em frente à bichana, com um pouco de leite. Depois, arranjou um trapo e pô-lo ao lado da gata. Talvez ela quisesse aconchegar melhor os filhotes. No dia seguinte entregaria a Elisa à dona, bem como os netos, nascidos ao relento na sua varanda.
De novo no quarto, olhou para o relógio colocado sobre a mesa de cabeceira. Já era uma e meia da manhã. Voltou à cozinha e bebeu um copo de água. Quando tudo estava pacificado subiu outra vez, deitando-se. Adormeceu enroscada num sono atrapalhado.
De manhã acordou cerca das oito horas. Viu-se ao espelho do lavatório. Os olhos estavam inchadíssimos.
Enfiou as calças de ganga e uma t-shirt, mesmo sem tomar banho. Pôs os óculos de sol e foi à tabacaria ao fim da rua comprar o jornal. Lembrou-se do poema de Fernando Pessoa, com o mesmo nome. No ar, pairava a poesia da morte. Pensou então na Elisa e nos filhos ao canto da sua varanda vivinhos da silva para contrabalançar as coisas. Mal podia esperar. Logo ali, procurou a página da necrologia.
Lá estava o nome dele, sem fotografia. O funeral era às dezassete horas e trinta minutos a que não faltava a missa de corpo presente, na igreja da aldeia onde já se encontrava.
De qualquer modo não podia atrasar-se. Ainda tinha quatrocentos e tal quilómetros pela frente e umas flores para comprar. Umas rosas. Amarelas, talvez. Era a cor preferida dela.
Voltou para casa e tomou de seguida um pequeno almoço apressado. De seguida, tocou à porta da vizinha. Contou-lhe do parto da gata. A senhora, ainda em roupão, entrou com ela. Num cesto de verga levou a Elisa e a ninhada toda, deixando-lhe a casa sem os novos inquilinos. Perguntou-lhe, por fim:
Não quer um gatinho?
Não, obrigado! – respondeu, lembrando-se do pânico sentido quando um dia lhe quiseram dar um gato.
Desculpe o incómodo – disse a vizinha, depois de tagarelarem umas palavras banais.
Não tem importância! – referiu, circunstancial.
Mal a mulher saiu, dirigiu-se ao guarda vestidos.
Que roupa iria levar? – perguntou aos seus botões. Talvez qualquer coisa preta. Mas não iria parecer uma viúva? Quantas viúvas estariam lá? Não faz mal - pensava – afinal, sempre gostara do preto.
Decidiu-se por umas calças da sua cor preferida e uma blusa branca. Por cima levaria o casaco igualmente preto, debruado a branco, numa morte discreta à escuridão.
Tomou banho. Já vestida, fez uma maquilhagem ligeira. Pronta, pegou no saco que na véspera fôra buscar à despensa. Saiu. Esquecera-se dos óculos de sol. Voltou atrás. O tempo apresentava uma cara feiota. Mas, se o sol abrisse, os óculos haviam de lhe fazer bastante falta, habituada como estava ao seu uso.
A seguir meteu-se no carro e foi à florista. Entre aquela panóplia de flores escolheu um ramo de rosas. Tinham de ser amarelas talvez com uns posinhos de veneno – imaginava, com a ironia de quem se julga louca, ao ponto de se sujeitar a toda aquela morbidez...
Que cartão quer pôr? – perguntou-lhe a empregada.
Não tinha pensado ainda nisso. Por que haveria de colocar um cartão no ramo? Não iria murchar como as flores e todo o resto, mesmo até os atributos mais hirtos dos defunto... O cartão seria a única coisa a perdurar para lá do seu amor de outrora. Além disso só conhecia a ex-mulher e os filhos. Uma mensagem, embora aparentemente inócua, desde que fosse de uma mulher, talvez fosse motivo para especulações.
Nenhum! – respondeu, então.
Eram onze e meia, estava ela a caminho do destino onde o corpo do homem haveria de levar desterro perpétuo
Durante a viagem relembrou mil e uma coisas. No seu íntimo, desejava prolongá-la indefinidamente, sentindo-se incapaz de regressar ao local das recordações que o homem lhe deixara.
Ao volante do Golf preto, percorreu os quatrocentos e tal quilómetros em cerca de quatro horas e meia, a maior parte deles em auto-estradas e vias rápidas. Chegou, depois de três ou quatro voltas ao mundo dadas pelos seus pensamentos em redemoínho.
Já na aldeia perguntou onde era a igreja. Dirigiu-se para lá imediatamente e parou o carro.
Mal saiu, bateu a porta levemente como se não quisesse acordar o morto. Tirou o saco da mala. Não sabia se naquela terra os funerais tinham acompanhamento de carro ou a pé. Por fim, entrou.
No meio da igreja estava um caixão fechado. Pelo chão e encostados ao mesmo encontravam-se alguns ramos de flores e coroas. Colocou o seu próprio ramo envenenado junto dos outros, retirando-se um pouco para trás, pensativa.
Refeita do primeiro impacto começou a olhar as pessoas, discretamente. Conhecia pouca gente. Mas talvez conseguisse saber quem eram algumas delas. A maioria era da aldeia: familiares e vizinhos que conversavam baixinho, perguntando timidamente entre si qual a causa da morte. A resposta vinha ambígua:
Começou a emagrecer muito e os médicos não sabiam porquê. Depois, mandaram-lhe fazer análises. Quando souberam o resultado internaram-no no hospital. Mas, nada adiantou! O meu filho morreu - e a senhora, de cerca de setenta anos, dizia isto, enquanto as lágrimas, já um pouco sufocadas, lhe nasciam nos olhos.
Conhecera a mãe – pensava – e as duas outras mulheres ao lado, mais novas, seriam provavelmente as irmãs do defunto, acompanhadas dos respectivos maridos. Uma parecia-se com ele. A outra nem tanto.
Ao lado encontrava-se a Patrícia, a ex-mulher, olhos guardados nuns óculos escuros. Os filhos, uma rapariga e um rapaz, amparavam-se nela pelo braço, chorosos, especialmente a garota. Eram extraordinariamente parecidos com o pai. Tivera a oportunidade de os conhecer. Nenhum deles estranharia a sua presença ali.
Mais afastada estava outra mulher. Seria a mãe dos gémeos que morreram completamente abandonados antes dele ter casado com a Patrícia? Aquela cara não lhe era estranha...
Ah! Era a Míriam, a vizinha dele! – concluiu. Encontrara-a algumas vezes no café. Moravam perto um do outro.
Espalhadas pela nave central da igreja, viu mais oito ou nove mulheres. Nenhuma delas era já muito jovem. Tentou adivinhar quem seriam. A morena gordinha devia ser a Ivete, a noiva eterna à sua espera, indiferente às patranhas que ele inventava quando estava com outras. Havia ainda uma loura oxigenada, um pouco mais nova. Estava igualmente vestida com roupa preta, aparentando ser a mais viúva de todas. Era com toda a certeza a noiva recente. Depois, havia as outras: talvez fossem a Nise, a Fernanda, a Sherley, a Rosa Maria, a Inês, a Maria João, a Zira...E ela, claro! – pensava, perguntando-se intimamente, se não estaria ali apenas para se certificar se o homem morrera ou não.
Lá estava também o Pedro Roseira, o amigo juiz que ia passar com ele férias, Natal e Páscoa. Muitos fins-de-semana também. Não parecia muito à vontade.
A missa, finalmente, ia começar. O padre, um homem dos seus setenta anos, foi ter com a mãe, perguntando-lhe:
Quer abrir o caixão?
Não! - respondeu combalida mas sem qualquer hesitação.
A cerimónia fúnebre iniciou-se. Durou cerca de quarenta minutos. O padre, durante a reza, pediu ao Senhor para acolher no seu seio aquele irmão levando-o até às glórias do seu reino já que achara por bem tomá-lo para si.
Depois, era chegada a hora de remover o corpo para o cemitério, não muito distante e ela, com o saco que levara de casa na mão, saiu da igreja antes dos outros.
Lá fora, o dia apresentava umas nuvens carregadas, e um calor abrasador fazia escorrer o suor dos rostos daquelas pessoas a maioria enfiada em roupas escuras.
O caixão, juntamente com as flores, foi metido no carro funerário. A última viagem acabara de ser iniciada.
O silêncio era profundo e apenas quebrado pelo ruído surdo do motor da viatura. Toda aquela gente caminhava com passos calados. Perto, nos campos, ouviam-se os grilos cantando e os pássaros no ar começavam a chilrear com mais intensidade, iminente que estava a queda de chuva forte desencadeada por uma enorme trovoada incrustada por todo o céu. Os relâmpagos cortavam o ar.
Rapidamente, o cortejo chegou à porta do cemitério.
- Não entro já – disse de si para si. - O padre ainda vai fazer os últimos responsos.
À porta, perto da entrada, ficaram duas mulheres. Começaram a conversar baixinho.
Ela estava com medo de não conseguir conter as lágrimas. Afinal, nunca ninguém chora senão por si próprio - já alguém dissera. Era a mais enorme das verdades ouvida algum dia e agora não era tempo de duvidar de semelhante afirmação.
Tirou um cigarro da carteira. Tentou acendê-lo por diversas vezes sem resultado. O vento soprava forte. Teve de levantar o casaco e premir o isqueiro. Conseguiu por fim alumiar o tabaco. E no seu íntimo, queria nunca mais acabar de fumar aquele cigarro. Porém, ele seria provavelmente o cigarro mais curto e simultaneamente o mais longo de toda a sua vida.
Estava tremendamente cansada. As andanças da noite com a gata e o telefonema da Carolina tinham-na deixado arrasada. Sentia-se desfalecer. Na verdade, não comera nada desde as nove horas da manhã. O calor era abrasador. A garrafa da água ficara no carro, perto da igreja. Não queria sair da beira do cemitério. Também não adiantaria de nada ir buscá-la. Devia estar um autêntico caldo incapaz, de lhe dessedentar tanto o corpo como a alma.
As orações do padre ouviam-se fora. As pessoas iam respondendo às suas preces com vozes imperceptíveis, entrecortadas de vez em quando pelo tilintar daquela campainha a derramar água benta, ao mesmo tempo que os trovões ribombavam no ar.
À mente ocorriam-lhe estranhas associações de ideias. O livro interrompido na véspera e o rapazinho com o pénis do homem laranjada na mão. A mãe divorciada, agora a viver um romance clandestino. A irmã biovular, completamente alheia às estranhas aventuras do irmão. Não queria por nada deste mundo estar ali, mas dali só haveria de sair depois do grande acto final da humanidade enterrada.
- Será que a homília fúnebre, por certo retirada da bíblia, é aquela que fala dos dois criminosos que pelo seu arrependimento iriam estar logo no céu junto de Jesus Cristo crucificado? - perguntava-se, intimamente.
O cigarro consumia-se. Nem sequer lhe apetecia sacudir a cinza. O vento encarregar-se-ia de o fazer. Era talvez altura de entrar no cemitério e assistir à colocação do caixão naquela enorme cova, de um metro e noventa de comprido.
- Só mais um pouquinho - dizia de si para si.
O cigarro parecia nunca mais acabar. E, decididamente, era de todos o mais longo cigarro da sua vida, fumado enquanto as mulheres continuavam a sussurrar.
Pareceu-lhe que falavam do defunto.
A sua curiosidade começou a aguçar-se, entrincheirada numa parede de cuidados para não dar muito nas vistas. As mãos transpiravam abundantemente, sobe o peso da mala e do saco que transportava consigo e, depois de tirar o casaco, espreitou para dentro dele, agora pousado no chão.
Ele teve uma vida muito atribulada... - dizia uma das mulheres - Começou com o casamento dos pais...
É verdade. Ninguém sabe bem ao certo o que se passou com os dois. Depois, o rapaz andou por esse mundo fora, só Deus sabe a fazer o quê. Esteve em Lisboa, no Porto, andou de casa de Barrabaz para casa de Caifaz – dizia a outra.
Uns dizem que ele tirou o curso, outros dizem que não...
E o casamento? A rapariguinha gostava muito dele. Mas a história acabou por repetir-se.
No fundo, foi um infeliz!
Tem razão!
Não havia dúvidas. Estavam mesmo a falar do homem que, dentro do cemitério, estava prestes a ser sepultado como qualquer comum mortal.
Estava uma manhã chuvosa e triste, aquela de Dezembro de 1950. O Natal aproximava-se rapidamente. O frio já se instalara há bastante tempo, num tempo que lhe pertencia, no hemisfério norte dos dois da terra.
Nesse dia, o vento zurzia as casas e as árvores que apanhava pela frente, enredemoinhando-se numa pressa ciclónica, rajando à velocidade de mais de cem quilómetros por hora disposto a largar com fúria inusitada e absolutamente ao acaso as águas transportadas no ventre das nuvens negras como corvos azarentos esvoaçando nos céus. Já na véspera o vendaval tinha feito alguns estragos. Telhados haviam ido pelo ar, portas e janelas tinham sido arrancadas, sobretudo as dos lugares mais altos e pouco resistentes. As pessoas ficavam em casa, o gado guardado nos currais, tratado com o feno já um pouco escasso nas lojas, aguardando dias de bonança a chegar em qualquer altura.
A rua principal da aldeia, completamente deserta, apresentava-se enlameada pelas chuvas que há cerca de um mês caíam indiferentes e quase ininterruptamente.
Ladeada por casas de pequeno porte em pedra rústica existia uma outra maior, em granito. Olhando melhor, deveria pertencer a gente de posses, dessa que sempre abandona as aldeias para se dedicar à vida política na capital. Talvez fosse a herança provinciana de algum ministro de Salazar, então no poder. Nessa altura, era frequente os rapazes relativamente pobres mas com cursos acabados nas universidades, casarem-se com moças de fortuna das aldeias. Os sogros, proprietários rurais abastados, com alguma linhagem adquirida à custa da terra, iam injectando dinheiro nos ordenados dos genros doutores até eles atingirem definitivamente um bom estatuto profissional, ou até mesmo político. Trás-os- Montes, nessa época, fôra um bom alfobre de ministros e de gente instalada em lugares chave do Governo, cada vez mais enraízado numa política de ostracismo do mundo rural.
Rodeada por montanhas, a pequena aldeia de Sete Cabecinhas não era um desses lugarejos encaixados num fundão sem vias que a conduzissem ao progresso como havia tantas. Chaves ficava a trinta quilómetros; Vila Real a sessenta e cinco; Mirandela a trinta e cinco; Bragança distava oitenta. O Porto era um bocado mais longe, através da Serra do Marão, curvilínea e traiçoeira mas, sobretudo, muito morosa. Lisboa parecia um bocadito mais para lá do mundo, um local de gente importante, importada de mundos tão pouco importantes como a pequena aldeia.
Era uma terra tipicamente transmontana pejada de gente velha e nova, cuja labuta diária consistia em cedo ganhar a jorna no campo, logo após a saída da escola, por volta dos doze anos. Eram poucos os afortunados que tinham acesso aos centros de educação nas cidades contíguas dos distritos de Vila Real e Bragança. O número diminuía então consideravelmente, se se pensasse no Porto ou em Lisboa, apesar de por aí haver alguns emigrantes internos.
A escola primária situava-se numa rua um pouco mais escondida e recatada, no fundo do povo. O modelo era o tradicional das escolas do Estado Novo. Dividida a meio, um lado destinava-se aos alunos do sexo masculino. O outro, obviamente, aos do sexo feminino, quase sempre em número maior.
Nem todas eram assim. Algumas, as mais pequenas, tendo bastantes crianças, elas não eram contudo suficientes para operar a grande sectarização do ensino e a preservação dos ideais moralistas do salazarismo vigente e adoptado em nome de Deus por quem, de Deus esperava muito e pouca coisa fazia para melhorar a vida do povo.
Também a igreja não era uma igreja qualquer. Sempre fora vista como um pequeno santuário situado na parte final da rua principal, prolongando as vistas e o ecoar dos seus sinos num enorme vale que se estendia submisso aos seus pés. Ficava relativamente próxima do cemitério, parecendo que aquela proximidade queria dizer qualquer coisa como: quem foge a um lado nunca escapa ao outro.
Todos os anos, nos finais de Agosto, aí tinha lugar a romaria de Nossa Senhora das Sete Cabecinhas. Este nome ganhara-o a aldeia em virtude de uma lenda que reza assim:
Em tempos longínquos, houve sete povoados que se instalaram na região para aí ganharem a sua vida. Os homens de cada aglomerado costumavam juntar-se para trocarem entre si os produtos da terra e o artesanato feito pelas mulheres e por eles. Ora, como as viagens se prolongassem pela noite dentro, eram muitas vezes assaltados por ladrões e aventureiros. Então, os chefes de cada uma das aldeias pediram protecção a Nossa Senhora, prometendo-lhe que, se ela acabasse com a praga dos ladrões, lhe levantariam um santuário num lugar a seu gosto.
Nossa Senhora, não querendo desfeitear ninguém, começou por aparecer simultaneamente, de cabeça cortada e com ares de muita preocupação, em cada um dos sete sítios. A mensagem da Senhora não foi entendida durante muito tempo e os ladrões continuavam a atacar. Até que um dia, todos as pessoas se reuniram em oração fazendo a promessa a Nossa Senhora de lhe construírem a igreja onde ela aparecesse de corpo inteiro.
Nossa Senhora assim fez. E então lá construíram o santuário reunindo-se todos num único povoado, passando a aldeia a designar-se por Sete Cabecinhas.
As famílias desta região eram quase todas bastante numerosas. Seis ou sete filhos, às vezes mais, foram os que, fora ou dentro do útero da mãe, acabam por não vingar.
Era o caso dos Silvas, do fundo do povo, a quem nasceram uma novena deles, quase tantos como as contas de mistério de um rosário semelhante a tantos outros
A senhora Laurinda, uma mulher dos seus sessenta anos, tivera, assim, nove. A última, uma rapariga, nasceu quando ela já levava quarenta e três.
Todos os rebentos eram do seu Joaquim, homem um pouco mais velho do que ela, com quem se casara virgem aos dezassete anos. E durante trinta e tal de casamento, contava ela, muitas privações passaram ambos para criarem aquela filharada toda. Eram vindos por Deus - dizia – e por isso, abençoados.
Quando nasceram os primeiros cachopos ficara em casa. Mas depois, uns iam cuidando dos outros e ela ia trabalhar com o homem para a casa grande, de manhã cedo, merenda para os dois à cabeça, uma vez que para eles não havia vida diferente a percorrer.
Era um casal sem conto nem dito. O seu grande atrito era serem ambos verdadeiramente simples e gostarem muito um do outro, sem nunca o terem dito reciprocamente. Depois, o resultado via-se nas cabeças para alimentar e em mais algumas privações por causa das crianças.
A gente de lá, quando nasceu a oitava, começou a brincar com eles, dizendo que o nome da terra deveria ter mais uma cabecinha. E quando a Ilda, a última, veio ao mundo, perguntavam ao Joaquim:
Então, homem, vais ficar só com essas cabecinhas ou ainda vem por aí mais alguma?
Joaquim ria-se com a brincadeira e a vida ia decorrendo sem problemas.
Laurinda era uma boa mãe. Pouco expressiva na demonstração do afecto aos filhos, gostava deles à sua maneira e raramente levantava a voz para lhes ralhar. Alguns já estavam casados. Os cinco mais velhos. Todos rapazes. E deles, até já tinha netos. Nunca lhe deram quaisquer cuidados. Quanto às raparigas não podia dizer o mesmo. A Ilda, com dezassete anos, não era boa de assoar. Alta e morena, era muito espevitada. Nada a atemorizava. Nem as críticas malévolas de que às vezes era vítima por parte daquela gente da aldeia, tão boa na desgraça quanto perversa na maledicência. E, em abono da verdade, às vezes, sem razão. Mas o ditado de que o cesteiro que faz um cesto faz um cento aplicava-se à rapariga fosse em que circunstâncias fosse. Apesar disso, ela haveria de provar, mais tarde, que os rumores inscritos na sua história não eram assim tão destituídos de fundamento.
Ilda levantara-se cedo nesse dia, apesar do tempo não estar lá grande espingarda. Como de costume, foi buscar o pão à casa da Luísa padeira, uns metros ao lado da igreja, com o único guarda-chuva que havia em casa, por sinal o do pai, abrigando-se encostada aos beirais das casas, enquanto o vento vergava as arestas da frágil protecção, quase a partirem-se.
Mal acabou de sair do forno com o pão de milho amarelo na mão, ouviu um grande estrondo atrás de si. Virando-se rapidamente, ainda viu o campanário da igreja arrastando com ele os sinos, a tocar desordenadamente.
Logo a Luísa padeira assomou à porta, perguntando:
Credo, rapariga! O que foi isto?
E imediatamente se deu conta do campanário da igreja todo no chão, desfeito em pedaços onde o som começava a ficar moribundo.
Foi o vento que deitou tudo abaixo! - respondeu ela.
Não me admiro! Ao temporal que tem feito! Se fosse só esta desgraça! Já ontem caiu o telhado do tio Sebastião e as janelas da Ana Preta foram pelo ar!
Enquanto comentavam o sucedido ia-se juntando mais gente, homens e mulheres com capuzes feitos de sacos de serapilheira enfiados nas cabeças para se protegerem da chuva, a cair copiosamente.
Aqui a Ilda é que viu tudo - disse a padeira.
E ainda tive de fugir. De contrário aquela pedra ali caia-me em cima! Foi por pouco! - respondeu a jovem, apontando um enorme pedregulho inerte no solo.
É preciso avisar o senhor padre - lembrou alguém, no meio da confusão.
É verdade. Quando o padre Serafim souber vai ficar estarrecido. Ele até achava que a igreja andava muito abandonada depois da morte da D. Amélia Frasão - referiu a padeira. - A criada, a Josefa, lá vai pondo umas florzitas e lavando as toalhas. Mas não é a mesma coisa. Agora com isto, o pobre do homem vai ter um ataque do coração! - continuava.
Um rapaz dos seus vinte e poucos anos, abeirou-se então da Ilda, sugerindo-lhe:
Tu é que podias ir avisar o senhor padre.
Era o Manuel. Já andara a arrastar a asa à rapariga há tempos mas sem qualquer resultado.
Eu vou contigo – persuadiu-a.
Está bem. Primeiro vou deixar o pão em casa. A minha mãe já deve estar admirada com a demora. Depois, na volta, vou lá.
Foram os dois, com o acordo de toda a gente. De olhos atrevidos, o rapazola via agora a queda do campanário como providencial para o seu namoro com a rapariga, o qual só não tivera ainda início por uma pressão exagerada dos pais sobre a rapariga, em virtude das suas tendências excessivamente namoradeiras.
Ilda apressou-se a contar a toda a família o ocorrido.
Agora tenho de ir avisar o padre Serafim - prosseguiu, iniciando o caminho pelo fundo da aldeia.
Tinham de atravessar um pedaço onde não havia casas. Contudo, o rapaz limitou-se a tecer alguns comentários sobre a invernia que teimosamente persistia em castigá-los daquela maneira tão devastadora.
Mal chegaram, bateram ao portão. Abriu-o a irmã do abade, ainda mais velha do que ele. Este, andaria na casa dos sessenta anos. Ela, talvez já estivesse muito perto dos setenta. Continuava, apesar disso, menina. Nunca casara, vivendo com o irmão desde a ida dele para a aldeia por ordem da diocese de Bragança, já lá iam uns bons vinte anos em que o tempo consumira a ambos parte da carne.
Bom dia, menina Isilda!
Bom dia, Ilda!
Tinham nomes parecidos. A mãe da rapariga costumava dizer que pusera o nome de Ilda à filha só para não a baptizar com o da menina. Tivera medo da reacção deles. Podiam ficar aborrecidos consigo e com o seu Joaquim, julgando que o facto poderia ser considerado uma afronta, numa terra onde a hierarquia social tinha demasiado peso.
O senhor padre está em casa?- perguntou a rapariga.
Eram nove e meia da manhã daquela quarta-feira tenebrosa. O padre, ouvindo vozes pouco habituais, assomou ao átrio de entrada da casa amarelo-ocre perto da escola, resguardada pelo portão acabado de transpor por ambos.
Ah! És tu, rapariga? Que andas a fazer? E o Manuel, por que veio contigo?
Olhe, senhor padre. Viemos dizer-lhe que o campanário da igreja de Nossa Senhora das Sete Cabecinhas caiu.
Quando?! - e o ar do padre era de surpresa.
Há bocado. Eu quase ia morrendo esmagada! – disse Ilda, exagerando.
Ai, valha-nos Deus! A nossa igreja já andava tão mal. A Josefa já sabe?
Parece-me que não - respondeu Ilda.- Pelo menos enquanto eu lá estava, só nos lembrámos de avisar o senhor abade.
Então já agora faz o serviço completo. Vai à casa da falecida D. Amélia e conta ao senhor Frasão o que se passou. A Josefa que vá lá ter comigo. Eu vou agora mesmo para a igreja – acrescentou, enquanto vestia a sotaina preta.
Os dois mensageiros foram à frente.
Passado pouco tempo, o padre Serafim preparava-se para sair. A irmã, preocupada, perguntou-lhe:
Vais sair com este temporal?
Vou – respondeu peremptório. - Se Deus quiser não me há-de acontecer mal nenhum.
E saiu, circunspecto.
Já no adro, viu a Josefa junto do senhor Frasão. Ainda pensou começar o peditório para a reconstrução do campanário naquela altura. Mas, talvez na missa de domingo fosse mais apropriado, se é que poderia haver missa, tais eram os estragos visíveis à entrada do templo.
Bom dia!
Bom dia, senhor abade! - responderam as pessoas em uníssono, ao mesmo tempo que o padre se dirigia para o local onde estavam a Ilda, o Manuel, a Josefa e o senhor Frasão.
Isto está muito danificado!
O senhor abade trouxe a chave? - perguntou alguém.
Nem me lembrei disso. A Josefa deve tê-la trazido.
Trouxe, sim senhor! - respondeu a mulher.
Era a criada da D. Amélia e do senhor Vitorino Frasão. Depois da morte da patroa a quem sempre ajudara no arranjo da igreja, era ela a zeladora. As flores trazia-as do quintal da casa de granito, com a permissão do patrão muito religioso e benemérito das causas de Deus, o mesmo que lhe haveria de dar guarida por tanta beneficência.
Por entre os pedregulhos, o abade dirigiu-se à porta. Um estava mesmo encostado a ela. Foi preciso a força de quatro homens para o removerem. Por fim, entraram. Primeiro o padre seguido por toda a gente onde se incluíam a Ilda e o Manuel.
Os altares não haviam sido destruídos. Todas as imagens tinham sido poupadas, como se de um milagre feito pelos santos se tratasse. O ciclone atingira somente o campanário. Por baixo, o coro estava todo inundado e a água escorria pela igreja fora, em caudal.
Entretanto, o temporal começou a amainar, benigno, depois de se ter comprazido com aquela devastação. Era talvez hora de iniciarem a limpeza.
Quando as coisas acalmaram de vez, o padre Serafim, num tom solene, dirigiu-se aos fiéis:
Meus irmãos, abateu-se sobre nós uma grande catástrofe. Agora temos de pensar na reconstrução do nosso santuário! Todos juntos seremos poucos para esta obra, bastante dispendiosa segundo parece! Mas, com a graça de Deus, iremos vencer todas as dificuldades. É preciso ter fé.
O padre proferia estas palavras e Ilda ajudava a Josefa na limpeza. Pelo arrastar de Josefa, com os caldeiros e vassouras na mão, ela pensava na velhice da mulher. Já mal se conseguia aguentar no trato das suas coisas, quanto mais cuidar da casa. E, nesta circunstância mais ou menos dramática, teve uma ideia. Iria falar com o senhor Frasão. Iria trabalhar no casarão. Nunca gostara muito do campo e com os pais também não podia ficar eternamente. Tinha quase dezoito anos e o Manuel não lhe era de todo em todo indiferente. Era altura de fugir um pouco da aba das saias da mãe e da autoridade do pai, às vezes um bocadito ríspido para consigo.
No dia seguinte lá estava ela a bater à porta do senhor Frasão. Atendeu-a a Josefa.
O seu patrão está em casa?
Está! Mas o que é que tu lhe queres?
Preciso de falar com ele.
De quê? – perguntou a velhota.
Depois ele que lhe diga.
Está bem. Vou chamá-lo.
Josefa dirigiu-se para o interior enquanto Ilda mirava os móveis da entrada. Estivera lá de véspera pela primeira vez com o Manuel. À ideia vinham-lhe agora os pais. Na verdade não lhes falara sobre a sua decisão. Eles certamente não iriam contra. Afinal sempre trabalharam para aqueles patrões. E não deveria ser assim tanto trabalho. Só eram três pessoas contando com ela. O engenheiro, a mulher e os filhos vinham de Lisboa apenas no Natal e na Páscoa. Nas férias grandes também. Isso não seria problema – pensava.
Josefa regressou ao átrio e mandou entrar a rapariga para o escritório, contíguo à sala de estar, onde já estava o senhor Frasão.
Após o cumprimento matinal, este perguntou-lhe:
Então, o que é que tu queres?
Olhe, senhor Frasão! Ontem, quando estava na igreja, ao ver a senhora Josefa a limpar, pensei que talvez eu pudesse vir para aqui trabalhar. Já tenho quase dezoito anos e preciso de começar a ganhar algum dinheiro. – informou, sem vestígios de papas na língua.
De facto tens razão, rapariga! Já pensei em arranjar alguém para a ajudar. Mesmo antes da D. Amélia ter morrido... E até a minha filha me aconselhou isso. Contudo, não sabia a quem recorrer. Nunca pensei nas filhas da Laurinda e do Joaquim. Muito menos em ti, que és a mais nova.
Pois sou! Mas não tenho medo do trabalho!
O teu pai e a tua mãe já sabem?
Não! Ainda não lhes disse - respondeu Ilda.
Então, vai chamá-los. Depois, iremos ter uma conversa os três.
Ilda despediu-se, saindo.
Não passou mais de meia hora lá estava ela de novo, agora acompanhada pelos pais. Josefa, de pano do pó na mão, à janela, mal os viu foi abrir a porta, descendo vagarosamente as escadas. Antes, tinha sondado o patrão sobre as intenções da rapariga. A hipótese não lhe desagradava. Sentia-se bastante velha e cansada. Sem família, considerava sua aquela casa onde trabalhava desde os vinte anos, já lá iam cinquenta e tal. Esperava morrer nela. Contava com isso ainda a D. Amélinha era viva. E o facto de a Ilda poder ir trabalhar para lá mereceu a inteira aprovação da velhota.
O senhor Frasão está à nossa espera - informou Ilda.
Eu sei! – respondeu a Josefa, encaminhando-os imediatamente para o escritório.
Só havia duas cadeiras. A rapariga ficou de pé, à entrada.
Bom dia, senhor Frasão! – cumprimentaram ambos.
Bom dia! Então a Ilda?! Disse-lhes alguma coisa?
Disse-nos agora no caminho para cá.
E vocês, estão de acordo?
Se for a vontade dela!... – respondeu o Joaquim.
Mas olhe que ela não é boa de assoar! – insinuou a mãe.
Porquê?
É muito refilona e teimosa! Quando alguma coisa se lhe mete na cabeça não descansa enquanto não a levar por diante. Além disso, é um bocado namoradeira...
Está na idade! Não há-de ser assim tão difícil lidar com ela! E esta casa é realmente muito grande. A Josefa, coitada! Faz o que pode... E, ainda tem de arranjar a igreja todas as semanas. Já é tempo de descansar um pouco.
Eu posso fazer isso. Gosto de enfeitar jarras. No quintal há tantas flores. Então no verão nem se fala... – retorquiu Ilda, entusiasmada.
Bem, se os teus pais concordam, está combinado. Quanto ao ordenado, vais ganhar de acordo com o trabalho. Hoje arranjas as tuas coisas e podes começar já amanhã. Se quiseres, podes trazê-las agora mesmo.
Despediram-se todos do velho Frasão, depois do assunto tratado. Uma nova vida estava prestes a iniciar-se para a rapariga.
No dia seguinte às oito horas, lá estava ela de trouxa na mão, batendo à porta. Pouco tempo aí haveria de morar, nas voltas e reviravoltas do mundo.
O domingo chegara rapidamente.
Felizmente não chovia desde quinta-feira. O sol era agora uma benção da natureza. A missa decorria e pela primeira vez foi Ilda a pôr na igreja as escassas flores existentes no jardim, apesar da pequena estufa do quintal do patrão. Os altares estavam bonitos com as toalhas imaculadamente brancas e passadas a ferro com o brio de quem começa.
A homilia do padre Serafim consistiu praticamente no apelo à generosidade dos paroquianos para reconstruírem o campanário cujas pedras jaziam mortas à entrada, ansiosas pelo regresso ao repicar dos sinos. E explicava: já tinha enviado uma carta à diocese de Bragança solicitando auxílio monetário. Por outro lado, o bondoso do senhor Vitorino Frasão escrevera ao genro engenheiro por causa das obras. Na terra não havia quem quer que fosse capaz de devolver a torre ao santuário. Seria preciso alguém especializado em cantarias e muita gente estava a tentar resolver o assunto.
A dada altura, o cestinho das esmolas começou a circular.
No fim do peditório, algumas moedas entre um e dois tostões jaziam no fundo da bandeja, acompanhadas por outras de um escudo. A maior era de dez. Toda a gente conhecia a sua proveniência, lamentando-se por uma pobreza de quem dá o que pode.
Na semana seguinte era o Natal. Não houve presépio nem missa do galo. Não havia sinos para tocar e missa do galo sem sinos não era coisa que fizesse sentido. Apesar de tudo, esteve lá o senhor engenheiro, genro do velho Frasão, a inteirar-se dos estragos que iriam continuar assim por mais algum tempo.
Decorreram cerca de dois anos.
Ilda, mal foi para a casa grande, começou a namorar com o Manuel, o qual, depois de algum tempo, deixara cair o romance numa monotonia sem graça. As coisas nunca correram muito bem entre ambos. A jovem aguardava sempre com ansiedade a presença do rapaz, todas as noites, mas, muitas vezes ele, cansado da lida diária, ficava em casa a dormir, relegando o alimento do afecto para segundo plano. Por outro lado ela queria casar. Tinha quase vinte anos mas o moço não era lá muito pelos ajustes. Na aldeia corria mesmo o boato de que Ilda já estava das mãos dele, esperando-se, a qualquer momento, um inchaço na barriga da jovem capaz de razão ás bocas do mundo.
Josefa morrera em Fevereiro desse ano, ficando apenas o velho Frasão, visitado de vez em quando pela filha e pelo genro. Ilda era como se fosse a dona da casa a que se aplicava com esmero.
Nesse meio tempo o caso das obras foi finalmente resolvido. A diocese tinha enviado algum dinheiro. Salazar também. O dos fiéis era bem menos. Mas valia a intenção.
O início dos trabalhos estava agendado para Março por forma a decorrerem entre a primavera e o verão. Os pedreiros vinham de Penafiel e iam ficar instalados numa casa em frente à de granito: um andar térreo com uma cozinha, uma sala e dois quartos, por sinal a mesma em que tinham morado os pais da Ilda após o casamento, enquanto tinham apenas um ou dois filhos.
Abril chegou e com ele os autores da reconstrução. Mal aportaram á aldeia dirigiram-se imediatamente a casa do padre Serafim. Este ainda lá vivia com a menina Isilda, onde ambos gozavam da saúde própria da idade.
O mestre de obras era o senhor João Rodrigues, um homem dos seus quarenta e cinco anos, a passar. Deixara mulher e filhos na aldeia de Beires. Era de estatura média, rosto redondo com uns olhos piscos que lhe davam um ar de curiosa minúcia. O outro era um pedaço mais novo. Talvez não tivesse ainda trinta. Um rapaz bonito, de olhos verdes num rosto esguio de lábios finos, à primeira vista parecia ser muito tímido. Chamava-se Augusto Pinto e tinha pinta de quem iria deixar algum rasto da sua passagem por aqueles sítios.
O padre levou-os de seguida a casa do senhor Frasão. Ilda estava lá, desenrolando o seu papel de jovem governanta, pelas onze da manhã, quase horas do jantar, refeição do meio dia que, naquelas terras, tinha essa designação. A primeira era o almoço, a última a ceia.
Após breves palavras circunstanciais o velho benemérito perguntou-lhes:
Então, onde vão vocês comer hoje?
Do contrato previamente gizado entre a paróquia e os reconstrutores fazia parte o jantar. Os homens só não sabiam quem lho iria dar. O padre tinha tratado desses pormenores com o benemérito. Este oferecera-se para tal valia. As obras ficavam assim mais baratas.
Trouxemos aí umas coisitas. Umas sardinhas e broa. Vinho, não. Tivemos medo que o garrafão se partisse na camioneta onde vieram os utensílios da obra – respondeu o mais velho dos dois.
Bom. Hoje vão comer a minha casa. Hoje e todos os dias ao jantar. Ou, pelo menos, estão por minha conta. O almoço e a ceia, tal como o combinado com o senhor padre Serafim, são da vossa responsabilidade. Mas, esta noite vão cá cear também para terem tempo de arrumar as vossas coisas. E virando-se para Ilda, ordenou-lhe:
Vai lá preparar o jantar, rapariga!
Ilda estava completamente embasbacada, olhando curiosa para o rapaz. Os olhos abriram-se-lhe até às órbitas. O namorado bem podia marcar a data do casamento e o pedreirinho acabado de chegar corria agora o enorme risco de se ver enleado nas teias de um romance com um desfecho matrimonial tecido pela jovem e pelo qual há muito esperava, muito embora, até aí o protagonista da peça fosse outro.
Depois, a rapariga dirigiu-se para a cozinha. Na véspera tinha posto bacalhau de molho. Ia cozê-lo com batatas e o resto de uns espigos de couve galega do quintal e propunha-se começar, desde logo, a conquista do recém-chegado pelo estômago.
Quando tudo estava pronto, pôs a mesa na cozinha com uma toalha aos quadrados vermelhos e dois pratos de esmalte. Os garfos tinham o cabo de pau. Eram os da serventia da cozinha, onde passava grande parte do seu tempo. A seguir colocou sobre a mesa, o azeite e o vinagre para os dois homens regarem as batatas e o bacalhau. O vinho também. Por fim, foi chamá-los. Com eles veio o patrão.
Sentem-se e comam à vontade. Se precisarem de alguma coisa peçam à Ilda- disse o velho - Dito isto, retirou-se para a sala de jantar. A sua bandeja com a comida já estava lá. O recato das suas refeições era um hábito que não se propunha interromper.
A moça continuava atarantada. O Manuel estava muito longe dos seus pensamentos. Aquele Augusto ali sentado, começara a instalar-se neles duma forma teimosa, sem que a moçoila fizesse nada para o desalojar.
Os dois homens comiam em silêncio, esfomeados pelos muitos quilómetros de camioneta feitos nesse dia. Foi Ilda quem o quebrou, decidida a tornar-se importante.
Então, fizeram boa viagem? Deram bem com as estradas?
Foi um bocado difícil! Não foi fácil dar com este sítio! - respondeu Augusto.
Estamos cansados. Só por isso é que não começamos as obras hoje. Gostamos de as principiar à segunda-feira. Ao Sábado, nunca! Dá azar! Não é, Augusto!?– perguntou o mais velho.
O senhor João tem lá essa ideia. Mas, pelo sim pelo não, se quiser, ainda podemos ir para lá hoje, não vão elas correr mal e o senhor dizer que foi por não começarmos no dia devido...- retorquiu o rapaz, de olhos no prato.
Ilda interveio.
Se quiserem, vou mostrar-lhes o santuário. Tenho a chave comigo. Sou eu quem arranja os altares, assim já ficam a conhecer o local onde vão trabalhar.
Por mim está bem! Se o mestre não se importar...
Não me importo nada!
Então, daqui por um bocadinho, depois de lavar a louça e arrumar a cozinha vou lá bater à porta. Vamos de seguida - continuou a rapariga.
A refeição acabara e os dois homens saíram.
A jovem comeu apressadamente o resto das batatas e do bacalhau juntamente com os espigos, deixando-se levar pelas ondas da mente. Augusto navegava nelas, por agora, inocente.
Já tudo estava limpo e arrumado, quando Ilda foi buscar a chave da igreja, saíndo a seguir.
Augusto estava à porta e mal a viu surgir na rua, mirou-a de alto a baixo com uma ponta de cobiça nos olhos.
Já estão prontos? – perguntou, empertigada pela admiração do outro.
Já! – respondeu ele, chamando o senhor João, ainda dentro de casa a arrumar as suas coisas depois do rescaldo da chegada.
Logo que o homem saiu dirigiram-se para o santuário de Nossa Senhora das Sete Cabecinhas.
O percurso foi breve. Ilda abriu então a porta, encaminhando-se os três ao altar-mor feito em talha dourada, onde estava um Cristo de um tamanho bastante grande. De uma auréola à volta da cabeça, pendendo sobre o peito, saiam bicos dourados simulando raios de Sol. Os braços estavam crucificados num tronco de madeira. Os pés, um em cima do outro, tinham sobre eles um prego em tom ocre. A imagem de Nossa Senhora das Sete Cabecinhas estava num altarzinho ao lado direito do altar-mor. Tinha uma cor muito suave, um rosto sereno, concebido por um artesão da região de que já não havia memória, tão antiga era a imagem. O cabelo era verdadeiro, coberto por um manto azul debruado a ouro. O vestido, branco, era igualmente bordado a ouro, no pescoço e na frente. Na cabeça, tinha uma coroa em ouro e prata, cravejada de pedras preciosas. Ressaltava da imagem a sua mão direita, com que a Senhora segurava uma espécie de árvore onde estavam incrustadas sete cabecinhas pequeninas. Na mão esquerda tinha uma pomba dada à paz, mas que na vida dos os dois jovens haveria de simbolizar guerra lá para os lados do amor.
Neste ponto da visita, Ilda contou a lenda que os dois homens acharam muito bonita.
Continuaram depois a ver os outros altares da ala central do santuário. Eram todos em talha dourada. Neles estavam colocadas as imagens do mártir S. Sebastião, de Santa Bárbara, S. José e Santo António, entre outros. S. Francisco encontrava-se num pequeno nicho sobre a parte que dividia o altar mor do resto da igreja, quase junto ao tecto.
Há quanto tempo foi o ciclone?- perguntou o senhor João.
Há dois anos e tal. Foi em Dezembro, antes do Natal.
E têm sempre rezado aqui missa?
Só quando não chove! Quando chove, andamos às voltas com os caldeiros e as vassouras. Ultimamente não tem chovido. É o que nos vale.
E casamentos? – perguntou Augusto.
Quando os há, fazem-se... Que remédio!... Assim como os baptizados e funerais. Os mortos não podem esperar para serem enterrados! – respondeu Ilda, peremptoriamente.
O mestre de obras retirou-se um pouco. Foi avaliar e gizar o trabalho a fazer. Nessa altura tinha subido as escadas do coro, por baixo do campanário e não ouviu parte da conversa.
É uma igreja bonita! Quando me casar gostaria que o meu casamento fosse aqui... – disse Augusto com uma pontinha de cinismo.
Ainda não é casado?
Não!
Ficou mais tranquila. Acabara de o conhecer e isso já lhe devia ter passado pela cabeça. Não lhe vira qualquer aliança na mão. Os homens, mesmo casados, escusavam-se um bocado a usá-la, com o pretexto de a perderem ou de a amolgarem, embora soubesse que a omissão não era propriamente devida a isso.
Enquanto estes pensamentos lhe acudiam à ideia, perguntou:
Não me diga que está a pensar em ficar por cá?
E por que não? Basta só arranjar uma rapariga jeitosa como você!... Além disso já vou fazer trinta e um anos!
E não tem namorada lá na terra?
Não! Já tive mas ela casou-se com outro. Foi há três anos. A partir dessa altura estou livre... E você, tem namorado?
Tenho e não tenho!...
Isso não é resposta!
Neste momento as coisas não andam lá muito bem...
O senhor João acabava de descer as escadas e a conversa ficou por ali, escondida.
Temos aqui muito trabalhinho! – disse depois, virando-se para o rapaz. - Vamos embora! Amanhã, às oito da matina, cá estamos nós!
Ilda, a meio da igreja virou-se para trás e fez o sinal da cruz. De seguida, saíram os três e a jovem fechou a porta à chave.
No regresso toda a gente cumprimentava os forasteiros. A notícia da chegada espalhara-se rapidamente. Eles eram os santos que iriam devolver a santidade aos outros, agora a viveram numa casa onde chovia a céu aberto.
Caminhavam pelo meio da rua. Ilda seguia ao centro inchada por uma importância de cicerone conhecedor de todos os assuntos do santuário. E, assim que chegaram, entraram nas respectivas casas, uma em frente da outra, seriam umas quatro horas da tarde.
A rapariga não parava de pensar nos olhos verde claro de Augusto que a deixaram completamente hipnotizada e a fervilhar por dentro, como espuma de rio que não se consegue conter na sua precipitação para o mar.
Depois foi ao quintal regar os feijões, as cebolas e os legumes plantados. Deu atenção especial às roseiras, agora todas em botão. De seguida tirou a roupa do estendal, dobrou-a e meteu-a no cesto. Iria passá-la no dia seguinte. Porém, mudou de intenções e decidida, começou a tratar logo disso. As camisas do patrão e as calças eram corridas pelo ferro a carvão onde meteu o resto das brasas com que fizera o almoço. Passou também o seu vestido em tons de rosa no qual sobressaíam uns passarinhos pintalgados de verde. Era o seu preferido, das duas ou três vestimentas que tinha, de verão e de inverno. De meia manga, decote chegado ao pescoço, sem gola, era cortado na cinta e haveria de servir-lhe para eventual provocação dos humores de Augusto.
Estava quase na hora de fazer a ceia. Dirigiu-se à cozinha ainda cedo e em plena luz do dia. O candeeiro, a petróleo, poupava-se o mais possível e servia, sobretudo para as longas noites de Inverno em que o sol se deitava pelas cinco horas da tarde. Havia um em quase todas as divisões da casa, repartida por dois pisos. No rés do chão situava-se a cozinha, nas traseiras, bem como o quarto da criada. Contíguo, ficava um alpendre. Aí se estendia a roupa a secar. A sala de jantar dava para a rua, assim como uma sala de estar. Ambos os compartimentos eram bastante grandes. Ao escritório chegava-se através da sala de lazer e, entre uma e outra, existia o átrio de entrada. Os quartos ficavam todos no andar de cima, assim como uma casa de banho com a água do quintal, canalizada. Quase todo o mobiliário era estilo arte nova, à excepção da cozinha que era rústica.
De resto, por um enorme portão lateral, entrava-se para o quintal, em parte ocupado pelas lojas. Aí se guardavam todas as alfaias do campo. Os lagares de azeite e do vinho situavam-se também naquela zona. Depois, num pedaço de terra, ao fundo, cultivavam-se as hortas onde Ilda fora colher os espigos para a primeira refeição dos homens.
Ilda deu a ceia ao patrão, cerca das oito horas. O encarregado e o Augusto tinham comido antes, saindo logo. Depois, ceou ela própria, arrumando a cozinha. Passados uns instantes foi à janela da sala de estar, espreitando através das cortinas. Augusto estava sentado no degrau da casa em frente. Então, dirigiu-se ao escritório onde o senhor Frasão lia e pediu-lhe para a deixar ir a casa dos pais.
O bom do velho anuiu sem reticências. Estava ainda lusco-fusco. E – pensava Ilda- o Manuel já há uns dias que não ia lá a casa. Se fosse hoje, santa paciência...
Saiu e na rua, deu de caras com o vizinho mais novo que parecia estar à sua espera.
Vai sair? – perguntou ele.
Vou a casa dos meus pais.
A esta hora? É quase noite. Não tem medo de andar sozinha?
Medo de quê?! Eu não tenho medo de nada!
Mas olhe que eu tenho!
De quê?
De ficar grávido!...- disse, em tom de anedota.
Ilda riu-se.
Deixa-me ir consigo?
Deixo! O caminho é livre! – respondeu, fingindo indiferença. - Os meus pais é que não iam gostar nada de o ver comigo.
Porquê?
Ora! Você só chegou hoje! É um desconhecido!...
Mas vou passar a ser conhecido. E, se os seus pais me conhecerem já, tanto melhor! Além disso, não vai ser a Ilda a levar-nos todos os dias o jantar ao meio dia?- perseverou ele.
Tem razão! Venha daí.
Será que o seu namorado não vai ficar com ciúmes?
Quero lá saber! Já tenho vinte anos e sei cuidar bem de mim...
Só tem vinte anos? - perguntou.
Só! Queria que tivesse mais?- interrogou-o.
Não! Está bem assim!
Mal chegaram, Ilda meteu a mão num buraco da porta e abriu o trinco por dentro. Os pais e as três irmãs estavam quase a deitar-se.
Estás cá? – perguntou-lhe a mãe.
Já há três dias que não vinha, vim hoje. O pai?
Está deitado.
E a Laura, a Teresa e a Joaquina?
As tuas irmãs estão lá dentro.
Vou vê-las.
Espera aí, rapariga! Estás com pressa? – interpelou-a a mãe.
Não!...
Então? Não tens novidades?
Não! A mãe já deve saber! Chegaram hoje os homens que vão compor o campanário.
Sei! Já me disseram. São dois. O encarregado e o ajudante.
É verdade. O senhor João e o Augusto.
Augusto?! – perguntou Laurinda com ar de admiração.
Sim, o Augusto! – respondeu Ilda.
Já vais nessas intimidades?
Que mal é que isso tem? Ele chama-se Augusto, não chama?- atalhou lampeira - Até está lá fora. Veio comigo.
Ai veio?
Veio! Quer que o mande entrar?!
Não! Além disso, o teu pai já está na cama.
Demorou mais um pouco, enredada em palavras triviais. Depois, foi ao quarto ver as irmãs que lhe perguntaram-lhe pelo Manuel.
Sei lá! Há três dias que não o vejo...
Por que é que ele não se quer casar? – indagou Laura.
Não sei! Não estou na cabeça dele...
É verdade o que dizem por aí?- questionou-a Joaquina, a mais velha de todas.
Não sei o que dizem nem me interessa!- gritou, irritada.
Dizem que o Manuel já te tirou os três... – e o tom de voz baixou.
Sabem mais do que eu!- retorquiu. – Se não têm mais nada para perguntar vou-me embora! – e saiu batendo com a porta, deixando-as a falar sozinhas.
A seguir foi à cozinha despedir-se da mãe. Depois, foi de novo ao encontro de Augusto que, à porta de casa e com o ar de quem espera ver algum cometa, observava o céu, pejado, entretanto, de estrelas.
Então? Já viu os seus pais?
O meu pai já estava no quarto. Só falei com a minha mãe e as minhas irmãs. E mais valia não ter cá vindo!...
Porquê?
Elas deram-me cabo do juízo!
Porquê? – insistiu Augusto.
Não interessa! São coisas minhas! Vamos embora.
Quer ir já para casa?
Quero, pois!
Podia mostrar-me o povo! – pediu.
A esta hora? Já é de noite e você tem muito tempo de o conhecer. Além disso o senhor João deve estar à sua espera.
Ele deita-se cedo...
Vamos embora! - impôs autoritária.
Regressaram pelo mesmo caminho.
O meu patrão já deve estar deitado- notou a moça.
Como é que sabe?
Como viu que me demorava, fechou as janelas.
De chaves na mão, entrou de seguida no átrio. O rapaz, cá fora, tentava seduzi-la.
Estou cheio de sede! Não me dá um copo de água?
Você não tem água em casa?
Tenho! Mas ainda não sei bem onde estão as coisas. E com a candeia não dá muito jeito procurá-las.
Está bem. Entre e espere aqui.
Ilda foi à cozinha regressando, passados uns instantes, com um púcaro de esmalte cheio de água na mão direita e o candeeiro a petróleo, na esquerda.
Tome lá.
O rapaz bebeu com muitas pausas, como quem tem pouca sede. De seguida devolveu o púcaro à rapariga tocando-lhe levemente a mão desocupada. Ela estremeceu ao sentir aqueles dedos um pouco ásperos, mas não evitou o prolongamento do toque. Quando Augusto retirou a mão, ordenou-lhe:
Agora que já bebeu pode ir embora. Amanhã tem de se levantar cedo.
Tem razão. Até amanhã e obrigado.
A rapariga não podia estar mais perturbada. Foi direita ao seu quarto com alguma pressa e era já tarde quando adormeceu.
No dia seguinte, pela primeira vez e pontualmente ao meio dia, lá estava ela à porta da igreja. Os dois homens já tinham montado os taipais de madeira e posto os guindastes no sítio devido. Para a reconstrução da igreja já tinha sido colocada a primeira pedra.
Boa tarde! Cá está o jantar!
Boa tarde! - responderam os dois.
A comida era carne de porco, um pouco gorda, assada à lareira, com batatas cozidas e pão. Havia também uma pequena panela de caldo de feijão com cebola onde Ilda pusera um pouco de unto. O vinho ia em duas cabaças. A tapar a cesta de verga, ela colocara um pano de linho branco com franja nas pontas, segurando os pratos de esmalte. No fundo e embrulhados num pano de louça estavam os talheres com cabo de madeira.
Ilda subiu, então, ao coro. Os dois homens acabavam de descer da torre e estavam à sua espera, esfomeados.
A moça acabou de colocar o pano de linho sobre uma pequena mesa e dispôs a louça, servindo a refeição. Entregou uma cabaça com vinho a cada um dos dois que haveria de lhes dar para o resto do dia.
Estava cheio de fome! - comentou o senhor João - E a comida está boa!
A Ilda parece ser uma boa cozinheira! – elogiou Augusto.
Vou dando um jeito...
Com quem é que aprendeu a cozinhar?- perguntou o mais velho.
Com a minha mãe, primeiro! Depois, com a Josefa, que me ensinou uns pratos mais finos!
Quem era a Josefa?- quis saber Augusto.
Era a criada velha do senhor Frasão e da D. Amélia. Morreu há pouco tempo. Tinha setenta e cinco anos.
Ilda ficara a vê-los comer. De vez em quando olhava para o rapaz e um calor começava a subir-lhe às faces morenas, levemente douradas pelo sol tímido de uma primavera ainda incipiente.
Quando acabaram, a rapariga levantou a mesa, guardando tudo de novo na cesta. Os homens ainda tinham mais cerca de meia hora de descanso. Aguardou até ambos retomarem o trabalho e mal isso aconteceu voltou para casa.
Às sete e meia da tarde chegaram os vizinhos da frente. Ilda foi ao quintal, arrancou umas cebolas, colheu umas couves galegas. Foi-lhes bater à porta. Abriu-a o senhor João.
Trouxe-lhes isto para a ceia!
Obrigado – agradeceu. – De facto, não estamos muito prevenidos.
Aqui, com as coisas da horta não têm de se preocupar muito. Quase toda a gente tem sempre qualquer coisa para dar.
Ainda bem! – retorquiu o homem.
A jovem tentou ver o Augusto, mas ele não estava visível. Regressou a casa. Fez a ceia. Mais tarde, foi até à janela. Lá estava o jeitoso sentado na escaleira da porta, como se esperasse algum sinal vindo da casa da frente.
Então, trabalharam muito?- perguntou, depois de dizer boa noite ao rapaz.
Um bocado! Hoje foi mais para pôr os andaimes e as cordas. Amanhã já iremos pôr cimento e levar algumas pedras lá para cima.
De repente, Ilda avistou o Manuel ao cimo da rua. Augusto também o viu, perguntando-lhe de seguida:
É o seu namorado?
Era!
E já não é?
Entretanto Manuel aproximou-se .
Não pude vir antes – disse com ar humilde.
Ao menos podias ter dito boa noite!
Não me lembrei. Estou bastante cansado.
Pois podes ir pelo mesmo caminho descansar! E para sempre!...
O rapaz ficou um pouco envergonhado, na frente do outro homem. Contudo, ainda conseguiu articular umas palavras aparentemente intimistas.
Preciso de falar contigo...
Mas eu não tenho mais nada para te dizer!
Está bem, depois falamos.
Mal ele foi embora, sentenciou:
Este já está despachado!
Não lhe parece que foi um bocado bruta para ele? – perguntou Augusto.
Não! Bruto tem sido ele comigo! Parece um santo, mas não passa de um sonso!
A Ilda lá sabe.
É verdade. Vamos falar de outras coisas. Quanto tempo vão vocês demorar com as obras?
Talvez três ou quatro meses. Depende. Se não chover, se calhar menos.
Por aqui não costuma chover muito nesta altura do ano- sossegou-o a moça.
Valha-nos ao menos isso. Hoje não vai aos seus pais?
Não.
Então podemos conversar mais um pouco.
Já estamos a conversar.
Pois já. O seu patrão está em casa?
Até já deve estar a dormir. E o senhor João?
Esse também se deita cedo.
Já você não é assim - observou Ilda.
Depende da companhia... Lá na aldeia, ia até à taberna beber um copito e conversar com os amigos, mas cá não conheço ninguém.
Aqui também temos uma. A do João da Burra.
Mas prefiro falar consigo. Ainda que você esteja à janela e eu na rua como agora. Essa casa deve ser muito grande- disse ele, à queima- roupa.
É bastante Você ontem já esteve na cozinha. Duas vezes.
Pois já. Mas não vi o resto. Podia mostrar-mo agora...- pediu, imbuído de dúbias intenções.
A rua estava deserta. A rapariga pensou logo no falatório que seria na povoação se o deixasse entrar e alguém soubesse. Porém, não havia vivalma por perto que pudesse dar origem a eventuais recriminações. Por isso, o homem não precisou de se esmerar muito na arte de sedução para ela anuir quase de imediato.
Está bem. Vou-lhe mostrar a parte de baixo.
Mostre-me tudo...- insistiu malicioso.
Ilda fingiu não ter percebido. Depois, foi mostrando os compartimentos. Foram ao alpendre contíguo ao quarto dela, que tinha também acesso pelo portão ao lado do quintal e uma pequena tramóia insinuou-se na mente do conquistador.
É aqui o seu quarto?
É...
É muito jeitosinho! No Inverno é que deve morrer de frio!
Cobertores da serra é o que não falta aqui. – proferiu em tom sussurrado para não acordar o patrão, abrindo um armário enquanto ficava de costas para o rapaz.
Augusto abeirou-se da rapariga e encostou-lhe a cara ao pescoço, onde a rapariga sentiu um bafo quente. Ela voltou-se de repente e o rapaz espetou-lhe um beijo atrevido na boca.
É melhor ir-se embora. Amanhã tem de trabalhar cedo- desculpou-se, indo levá-lo à porta sem fazerem barulho, com uma pequena candeia na mão.
Rarefeitos os ímpetos lúbricos do candidato ao aposento e de regresso ao quarto, a jovem pôs a mão no pescoço, sentindo ainda na boca o beijo do homem. Lentamente, tirou as sandálias, desmanchou o puxo e despiu o vestido, arremessando-o para cima da cama. Arrancou o colete e ficando de seios à mostra, tocou-os levemente com as mãos. Olhou-se ao espelho. Tirou as cuecas, levando a mão direita ao púbis. Afagou suavemente aquela penugem escura. Pensava em Augusto e imaginou-o ali naquela cama deitado consigo.
Nessa noite dormiu nua.
Duas semanas decorreram. As obras iam indo devagar. Augusto e Ilda conversavam todas as noites. Ele na rua e ela à janela. O senhor Frasão já tinha dado conta da afinidade entre ambos, mas nunca perguntou nada, certo de que o tempo haveria de demonstrar as evidência do caso amoroso a passear-se, irreversível, dentro da sua casa.
Augusto não fôra à terra uma única vez. Só tinha o domingo para descansar e Beires era muito longe. Ia à missa com a rapariga. Nesses dias passavam as tardes juntos num namoro cada vez mais público..
Era já quarta-feira da terceira semana. Ilda, como habitualmente, foi levar a comida aos dois homens. Ao meio dia em ponto subiu as escadas do coro e lá pôs ela a mesa.
Boa tarde! Cá estou eu com o jantar.
Vens sempre a horas! – observou Augusto, enquanto chegava até perto da mesa, secundado pelo outro homem.
Pois venho. Vocês a esta hora, devem estar cheios de fome.
Lá isso é verdade – anuiu o mestre João, estranhando o tratamento, apesar de nunca ter visto fosse o que fosse de anormal.
Comeram umas favas guisadas com chouriço, da muitas que abundavam no quintal e no fim da refeição o mestre levantou-se. Ia descer, provavelmente para fazer alguma necessidade fisiológica. Augusto estava a acabar. De repente, a rapariga, reprimindo o riso e olhando para ele, apontou-lhe as calças do homem rasgadas no rabo. As cuecas estavam à mostra.
Ó senhor João! Olhe que tem as calças rotas atrás!- informou-o Augusto.
Rotas? Onde? – perguntou ele.
Não são rotas! São descosidas! – emendou Ilda.
Que porra! Era só o que me faltava. Agora, tenho de ir a casa buscar outras.
Quer que eu lá vá? – ofereceu-se o rapaz.
Não. Tu não sabes onde estão.
Então, ponha a camisa à cintura para tapar o rasgão.
O homem assim fez. Desceu as escadas e saiu.
Augusto terminara de comer, entretanto. A jovem guardava tudo na cesta, distraída e então, sem ela esperar, o rapaz pôs-lhe a mão no peito por cima da blusa encostando-se a ela. Puxou-a para si e beijou-a até quase a morder. Depois, levantou-lhe a saia. De seguida esfregou os dedos sobre as cuecas de malha branda da rapariga que correspondeu inteiramente, deixando-se cair sobre os sacos de cimento aí colocados, e tudo o que era protuberância começou a crescer.
A saia dela estava agora pela cintura. Augusto desceu a roupa até ao meio das pernas. O que aí lhe crescia meteu-o ele no lugar mais recôndito da mulher desejada, depois de lhe ter tirado com violência as cuecas, num jeito a que o corpo dela cedeu, voluptuoso.
No meio de gemidos de prazer e naquele vai e vem ritmado as palavras saiam da boca de ambos como lhe vinham à cabeça, boçais e rudes.
Ai filha! És boa como o milho! Tens uma passarinha tão boa!..
Mete tudo! Não pares! Ai!...Ai!...
Decorreram poucos minutos.
Anda! Toma lá, enquanto estamos sozinhos! Goza!... Ai!... Goza!... Ai!...
E daquele sítio escondido começou a escorrer uma substância viscosa. Os dois caem para o lado alagados em suor, tão fogoso foi o acto, há tempos desejado e agora consumado sem o mais leve pudor. Os santos jamais deviam ter assistido a uma cena daquelas. O mais que já tinham visto haviam sido uns beijos inocentes dados pelos noivos no dia do casamento. Mas, que fazer? Santos eram eles... não o Augusto e a Ilda.
A rapariga limpou-se à rodilha de pano agora desfeita, onde assentava a cesta, na cabeça. Nisto, sentiram o senhor João, tossindo e como se uma suspeita malévola lhe assentasse na cabeça, á semelhança da rodilha onde Ilda colocava a cesta do jantar. Acabara de entrar na igreja e começava a subir para o coro.
Augusto puxou as cuecas e as calças rapidamente, mas só teve tempo de apertar dois botões. A moçoila, já com a saia em baixo, não conseguiu vestir as suas próprias cuecas e, em desespero de causa, meteu-as então na cesta da louça coberta com o pano de linho, de franjas nas pontas.
Mestre João achou os dois um pouco comprometidos. Na dúvida, porém, jogava sempre copas, como era costume dizer-se por lá. Augusto disfarçadamente perguntou:
Então as calças? Espero que não rasgue também estas!
Espero bem que não! Só tenho dois pares para o trabalho!
Posso lavar-lhas e cosê-las. Lá em casa até há uma máquina de costura. Foi uma das coisas que a senhora Zefa me ensinou a fazer - disse Ilda.
Está bem. Obrigado. Logo à noite entrego-tas. – E pela primeira vez tratara a rapariga também por tu.
As obras na igreja iam com grande avanço. Na verdade já tinham passado dois meses desde que os homens haviam chegado e haviam-se dedicado ao trabalho com afinco. Tudo corria pelo melhor.
Numa manhã radiosa de sol, Ilda levantou-se cedo. Mal pôs os pés no chão sentiu a cabeça a andar à roda, deitando-se de novo na cama. De repente, uns vómitos acudiram-lhe à boca e socorreu-se do bacio guardado na mesa de cabeceira para aí arremessar o que lhe saía da boca, incontrolável. Já tinha desconfiado. As coisas não andavam muito bem com ela. A chica ainda não aparecera, sentia os seios mais duros e a barriga inchada. Por outro lado estava a comer como uma desalmada. Não tinha dúvidas. Estava grávida. À noite, quando Augusto fosse ter com ela, ia dizer-lhe – rodopiavam-lhe, assim, os pensamentos na cabeça, com as náuseas à mistura.
O dia passou. Não trocou muitas palavras com o rapaz, à hora da refeição. O senhor João já há muito andava desconfiado dos dois. O ajudante saía todas as noites. Dizia que ia à taberna. Um dia parecera-lhe vê-lo sair do portão da frente, no escuro da noite. Como quem não quer a coisa tinha-lhe até perguntado. Porém, o moço negara qualquer relação mais íntima entre ambos e o homem quedou-se por aí, aguardando o desenrolar dos acontecimentos.
Depois da ceia Augusto estava à porta, esperando o sinal da rapariga para ir ter com ela. Mal o vislumbrou apressou-se a entrar. Já no quarto, deu-lhe uma sapatada no rabo. Ela não gostava lá muito daquele gesto. Fazia-a sentir-se como uma cavalgadura a quem os donos tratavam da mesma maneira, dizendo: anda lá mula! Aparentemente parecia tímido. Contudo, era demasiado fogoso e algo simplório. Às vezes, era até bruto. Quando se atirou à rapariga, esta disse-lhe, com ar sério:
Preciso de falar contigo!...
Sobre quê?
Sobre mim... Sobre nós...
Então, diz lá!
Estou de barriga!
Estás de barriga?! De quem?
Olhou-o furiosa. Não esperava ouvir da boca de Augusto tais palavras. E pela primeira vez tiveram uma discussão.
De ti, seu ordinário! Ou achas que é do Santo António?
Podia ser do Manuel. Também fodeste com ele....
Se fosse dele achas que to dizia a ti?
Não sei. Como tu queres casar de qualquer maneira...
És um desgraçado! Parecias um sonso mas és pior do que o Manuel. Ele, ao menos, tenho a certeza, nunca me diria isto...
De quanto tempo é que estás?- perguntou ele depois de alguns momentos de silêncio.
Faz as contas!
Eu é que sei!?...
Foi no dia em que o senhor João rasgou as calças, lá no coro da igreja. E agora vai-te embora! Hoje não te quero ver mais à minha frente!
O rapaz saiu, reticente.
Na manhã seguinte, acordou cabisbaixo e pensativo. Não sabia o que fazer à vida. Já no campanário, o mestre viu-o assim e perguntou-lhe:
O que é que tu tens, homem?
Nada!
Hum!...
Augusto decidiu-se. Tinha de falar com alguém acerca dos seus encontros carnais prestes a lançá-lo numa nova condição de pai.
A Ilda está prenha e diz que o pai sou eu!
Olha a grande novidade! Há tempos que desconfiava de vós os dois...
Não sei o que hei-de fazer...
Olha, Augusto, mete lá a mão na consciência. Tu já não és nenhuma criança e és useiro e vezeiro nestas coisas. É lá na terra, é agora aqui...
Nunca emprenhei ninguém!
Por sorte!.. Desta vez tiveste azar. Agora deves casar com a moça. Vê se ao menos aqui limpas o teu nome. Em Beires não passas dum mulherengo a quem nenhuma rapariga dá trela. Vê se ganhas juízo, rapaz!...
Vou pensar no assunto. Talvez case, apesar de não ter sido o primeiro...
De quanto tempo anda ela?
Augusto sorriu. Depois, respondeu:
Tem o mesmo tempo das suas calças rasgadas... Foi naquele dia lá em baixo no coro, quando você foi a casa.
Eu logo vi! Então vamos ter um menino de coro...
Ilda e Augusto casaram em Setembro na igreja de Nossa Senhora das Sete Cabecinhas. Foi o padre Serafim quem celebrou a cerimónia e ambos ficaram a morar na casa do senhor Frasão. As obras da igreja foram concluídas em Outubro de 1952 e o menino do coro, baptizado assim pelo senhor João, haveria de nascer lá para Janeiro do ano seguinte e haveria de ser abençoado por todos os santos, testemunhas até do acto da sua concepção.
Janeiro chegou rapidamente. Estava quase no fim. Ilda empurrava uma barriga de nove meses.
Finalmente, o dia. Toda a gente, incluindo a Amália parteira, lhe dizia que iria ser um rapaz por ela ter o ventre um bocado comprido. Que venha perfeito – dizia ela, assumindo plenamente a maternidade.
A ver vamos! – duvidava agora, já com as dores perfiladas nos rins.
A mãe, a senhora Laurinda, lá em casa, aquecia água ao lume ajudando a parteira nas lides do parto.
O mestre João tinha ido embora após as obras. Augusto não tinha tido ainda tempo de fazer grandes amigos. Nesse dia andava lá pelo quintal, onde trocava umas palavras com o senhor Frasão. Na horinha, ouviram um grito mais forte e os dois disseram em voz alta:
Já nasceu!
Augusto esperava ansioso que a sogra o chamasse para ir ver a criança. Ela assomou passados alguns instantes ao alpendre, gritando com alegria:
É um rapaz!
É um rapaz! - repetiu Augusto para o velhote. - Sempre é o nosso menino do coro como dizia mestre João - e sorriu.
Espera mais um pouco até prepararmos o menino e a Ilda! - pediu a sogra.
Passaram cerca de dez minutos. Depois a mulher foi de novo ao alpendre, dizendo para o genro:
Já podes vir vê-lo!
Augusto entrou no quarto ansioso. Embrulhada num xaile branco, estava uma criança linda. A mais linda que os seus olhos já tinham visto. E nem precisava de ser pai coruja.
Queres pegar-lhe? – perguntou Ilda, ainda mal refeita das dores
Não! Primeiro tenho de aprender...
A criança já estava com dois meses. Augusto trabalhava agora para o senhor Vitorino. Era assim uma espécie de encarregado dos outros trabalhadores. Ilda, porém, não estava muito conformada. Agora era uma mulher casada, já tinha um filho e precisava de pensar no futuro do menino.
Na vila, quando ia às compras na carroça da casa, ouvia falar de pessoas que partiam para África. Nessa altura Salazar, preocupado com os movimentos nacionalistas das colónias portuguesas, facultava a ida de naturais do continente, sobretudo para Angola e Moçambique. A guerra acabara em 1945. Tinham decorrido oito anos. Porém, as condições de vida em Portugal, sobretudo nas regiões do interior como era o caso de Trás-os- Montes, continuavam a ser muito difíceis. Nem sequer a luz eléctrica lá chegara ainda. Arreigado ao regime ditatorial e muito em resultado da política que fizera durante a guerra, o político do Estado Novo foi impedido de participar no Plano Marshall de ajuda à reconstrução da Europa, totalmente destruída. E a triologia, Deus, Pátria e Família vingava por esse país fora numa religiosidade bacoca, deixando o povo à míngua e os cofres do Estado a abarrotar de dinheiro que não servia nem a Deus nem ao mundo.
Uma noite, mal acabaram de se deitar, Ilda virou-se para Augusto decidida:
Devíamos ir para África!
Para África? Tu não estás boa da cabeça, mulher!
Nunca estive tão bem na minha vida! Há muita gente que vai para lá. O Zé Maria vai com a família. Escreveu a um primo. Ele já lhe mandou a carta de chamada. Dentro de dois ou três dias embarcam todos.
Nem sequer lá temos conhecidos.
Até lá tenho família!...
Nunca me disseste isso.
Nunca calhou.
Mas com que dinheiro iríamos nós? –perguntou Augusto.
Podíamos pedi-lo emprestado ao senhor Frasão. Depois, pagávamos-lhe aos poucos.
E iríamos para lá fazer o quê?
Tu tens a tua arte. E parece que agora estão por lá a fazer muitas coisas. Escolas, hospitais...Estão a precisar de gente...
E o menino?
Olha que pergunta! O menino ia connosco. Ou pensas que o deixava aqui?!
Ele é tão pequeno ainda e a viagem deve ser tão grande. Além disso, ainda mama...
Mais uma razão. E lá a vida deve ser bem melhor do que aqui. Pelo menos nem precisamos de grande roupa. Está sempre calor.
Pois não... Os pretos e as pretas até andam nus... - riu-se Augusto.
Não estás a pensar andar lá nu, ou estás?
Se calhar... – respondeu maldoso enquanto se chegava à mulher levantando-lhe a combinação de popelina.
Estás sempre mortinho por isto...
E tu, não? – retorquiu ele passando-lhe as mãos pelos seios volumosos do leite da criança.
Deixa lá isso! Agora as mamas não são tuas!
Mas o resto é! E é bem bom! Já não te lembras?!
Após o nascimento, foi a primeira vez que Ilda se meteu naquelas brincadeiras de cama. Já era tempo de acabar o jejum. Tinha saudades de Augusto e do dia das calças do mestre João rasgadas lá no coro da igreja da Nossa Senhora das Sete Cabecinhas. Então, ambos se entregaram aos prazeres da carne e à viagem dos sentidos, numa pressa mal contida. Só as mamas tinham sinal vermelho.
No fim, ela levantou-se e foi ver o filho. O menino dormia profundamente, completamente alheio aos devaneios sexuais dos seus progenitores.
Já de novo na cama, Ilda insistiu:
Olha que eu estou com vontade de ir embora daqui. Vê se tratas das coisas!...
Está bem. Amanhã vemos isso. Agora deixa-me dormir - Dizendo isto, virou-se para o outro lado e adormeceu.
Na manhã seguinte, foi a primeira coisa a ouvir da boca da mulher.
E tu não tens pena de deixar o senhor Frasão, já tão velho coitado?
Tenho! Mas a minha irmã Teresa podia vir para aqui tratar dele.
Bom – disse Augusto. – vou falar com ele à hora do almoço. Não há-de ir contra. E eu também estou a ficar interessado.
A conversa com o patrão não podia ter sido melhor. Tinha pena de os ver ir embora. Contudo, desde que fosse para bem deles, nada a opôr. Emprestava-lhes todo o dinheiro necessário. Só tinha de escrever ao genro e à filha para Lisboa. Iria ainda fazer isso naquele dia.
Estava-se em inícios de Abril. As coisas finalmente, ficaram prontas. Carta de chamada, viagens e tudo o que de mais foi necessário. Iriam embora na primeira semana de Maio. O menino ainda não tinha sido baptizado. Augusto escreveu ao padrinho, o mestre João. A cerimónia era daí a semana e meia, na igreja de Nossa Senhora das Sete Cabecinhas. O celebrante, como não podia deixar de ser, seria o bondoso padre Serafim agora um pouquinho mais velho, assim como a menina Isilda, escolhida para madrinha.
O menino do coro recebeu, por fim, o sagrado sacramento do baptismo. Os santos todos da igreja gostavam tanto dele que até já se tinham esquecido da pouca vergonha da mãe e do pai lá na igreja, no dia em que o senhor João rasgara as calças.
O dia da partida para África chegou. Ilda foi despedir-se dos pais e dos vizinhos. Disse adeus ao senhor Frasão a quem agradeceu com o filho ao colo.
Que tenham todos muito boa sorte! – desejou-lhes o velho dando um forte abraço a Augusto.
A mulher deixou a casa. Só aí voltaria quarenta anos mais tarde.
Tiveram de apanhar o comboio que seguia para o Porto e daí para Lisboa, numa viagem que durou dois dias. Pernoitaram no Porto e em Lisboa. Aqui, ficaram os três em casa do senhor engenheiro e da dona Delfina. A filha e o genro do senhor Frasão transportaram-nos no carro preto, um Chrysler, até ao Cais de Alcântara. Era de lá que partiam todos os navios. Antes, deram uma volta pela marginal do rio Tejo, sem se afastarem muito. A jovem mãe nunca saíra das Sete Cabecinhas. Para ela tudo era novidade. O rosto abria-se-lhe em sorrisos quando respondia às perguntas e recomendações do engenheiro e da mulher.
Luanda é uma cidade em franco desenvolvimento. Dizem que é muito bonita. Aquela província ultramarina é a mais rica que Portugal tem. Desde petróleo, aos diamantes na zona de Cabinda, passando pelo ferro. Além disso tem rios enormes e há lá muito para fazer: estradas, caminhos de ferro, escolas, hospitais - informava-os o engenheiro. - Pode explorar bem a sua arte – disse, voltando-se para Augusto.
O menino, ao colo de Ilda, acordara nesse meio tempo. D. Delfina fez-lhe uma festa na cabeça. Os olhos da criança eram verdes, semelhantes aos de Augusto. A boca, pequenina, abriu-se num sorriso inocente sob um nariz bem delineado onde assomou uma pequena ranheta que Ilda limpou cuidadosamente. O pequeno começou entretanto a choramingar.
Deve ter fome!- disse a mãe.
É melhor voltarmos para o carro para lhe dar de mamar- sugeriu a senhora- Já não falta muito tempo para o embarque.
Todos concordaram e logo que acabou a sua função maternal pegaram nos parcos haveres, aproximando-se mais do local da partida.
Então boa sorte para todos! Logo que cheguem, escrevam ao meu pai. Ele depois informa-nos- repetia a D. Delfina.
Boa viagem! - desejou finalmente o engenheiro.
Muito obrigado por tudo! - terminou Augusto.
Ilda agradeceu, igualmente. No rosto, levava estampada a esperança de uma vida melhor. Sete Cabecinhas ficava enterrada no passado. O futuro haveria de ser bem mais risonho para todos.
Eram onze horas da manhã quando a família embarcou no Uige, o barco que os haveria de levar, em terceira classe, até terras de Angola.
Sentado no sofá da sala comum, via distraídamente um programa de televisão. Com o comando fazia zaping amiudadamente.
- Nada de interesse – pensava.
Em frente, numa pequena mesa de vidro, estava um livro, junto com outras revistas. Era a biografia de Maria Callas. Pegou nele. Gostava de ler, especialmente biografias. Não se via como um homem coscuvilheiro. Pelo menos com as pessoas das suas relações. Mas a vida de gente famosa interessava-lhe sobremaneira. No mínimo servia-lhe para fazer comparações com a sua própria vida. Sobretudo nos pormenores menos ortodoxos. Então, quando os biografados tinham origens sociais humildes e atingiam o estatuto de estrelato, era algo que o fascinava.
Não se sentia especialmente dotado. Contudo, já tinha experimentado alguns picos de fama e isso dava-lhe um grande regozijo. Julgava-se bastante introvertido. Esse facto já lhe roubara algumas oportunidades. Mas, em contrapartida, ganhara outras – dizia com os seus botões enquanto fazia zaping na televisão.
Hoje não era um dia em que se sentisse particularmente bem. Fazia anos e muitas coisas lhe vinham à memória ali sentado no seu sofá azul. Tinha ido jantar com uma amiga. Mas seria mesmo uma amiga ou uma conhecida? Às vezes há a tendência para chamar amigo a qualquer um e no fundo não passa de mero conhecido. Amigos são outra coisa. Desta qualidade de gente duvidava que tivesse alguma. O telefone tocara a meio do jantar. Desta vez atendeu.
Obrigado! – Disse para alguém que lhe deu os parabéns
Sim! Estão comigo!- referindo-se aos filhos. E, ao desejo de continuação de um bom aniversário, respondeu de novo:
Obrigado e até amanhã!
Agora, lembrava-se sobretudo dos dois filhos que utilizara como pretexto para se esquivar. Um rapaz e uma rapariga. Dos últimos presentes recebidos também. Uns chocolates apenas. Aquelas coisas que os miúdos dão e compram com o seu próprio dinheiro só porque o pai faz anos e é hábito dar-se algo no dia de aniversário. Não era pelos presentes. Era principalmente pela intenção ou, melhor, pela falta dela.
Pensava na ex-mulher. Nunca fôra capaz de dar aos garotos algum dinheiro extra por forma a eles poderem comprar-lhe um presente melhor. Uma camisa, uma gravata ou coisa do género. Talvez ela até os instigasse contra si. Deu tanta importância às mulheres que lhe escreviam cartas lá para casa...
De vez em quando sentia uma certa pena não os ver crescer devidamente. Não se lembrava de ter verificado o crescimento do puto por umas calças mais curtas ou uma t-shirt mais apertada que ele tivesse vestida. Com a filha era a mesma coisa. Quando os via, praticamente por acaso, esses pormenores já tinham sido devidamente tratados pela progenitora. Mas, ao menos eles tinham vida boa. A mãe era rica. Ele também contribuía mensalmente com a prestação acordada aquando do divórcio. Às vezes dizia que lhes pagava os colégios, remédios... Era só para impressionar os outros. E conseguia.
Tinha uma capacidade enorme de convencer.
De véspera telefonara-lhe uma amiga. Não lho chegou a dizer. Porém, do teor do telefonema deduziu que gostaria de ir jantar com ele.
Amanhã, sexta- feira? Vou jantar com os miúdos...
Estava bem. Afinal era divorciado e os filhos são sempre mais família do que outra pessoa qualquer. Foi a resposta intuída do lado de lá e vinda de alguém que não tinha grandes razões para duvidar.
Era uma coisa sem significado. E a amiga, no dia seguinte estaria disponível. A do jantar também. E esta era mais antiga. A antiguidade não é um posto? – pensava. – Isto é lá alguma mentira? - E estava mesmo ali à mão de semear... A outra morava um bocado mais longe.
Depois, graças a Deus, tinha herdado uma cara de santo. Por que não haveria de tirar partido disso?- interiorizava.
Se calhar, não queria magoar nem uma nem outra. Ambas lhe interessavam da mesma maneira. Isto é, interessavam-lhe pouco, ou nada. Detestava ser rejeitado. Se soubessem uma da outra iam as duas à vida. Nunca lhe passou pela cabeça ultrapassar este tipo de situações senão pelo recurso à farsa.
A verdade é que não gostava de riscar ninguém da memória do seu telemóvel. Quando uma estivesse indisponível no leque tão alargado do pequeno visor, haveria de encontrar alguém completamente de pernas abertas. Toda a gente era doida por si.
Gostava era de variar. Afinal cada uma tinha a sua especialidade...Normalmente até nem tinha grande trabalho. O telefone tocava todos os dias. Se não fosse o telemóvel era o fixo. E, depois, cada macaco no seu galho. Se hoje ia a determinado sítio com a Serafina, amanhã não iria lá com a Joaquina. Questão de estratégia. Não se tratava de esquemas – pensava – tratava-se simplesmente de coerência. E, principalmente, porque é importante preservar a imagem.
Afinal, os filhos ainda não lhe tinham telefonado a dar os parabéns. - Será que se esqueceram?- interrogava-se de si para si.
A mãe também não lhe ligara ainda. No gravador, já tinha ouvido as mensagens. Eram as do costume mais a da rapariga que conhecera recentemente.
Faltava lá uma.
- Aquela gaja não telefonou! Também, depois da última conversa... Só faltou bater-me! Afinal o que é que eu lhe fiz?- continuava, intimamente.
Lá estava também o amigo.
Começava a ficar farto de tudo. Das mulheres, dos homens perseguindo-o igualmente. E perguntava-se:
- Terei eu cara de homossexual? Afinal não dei mais do que provas? Gosto realmente de mulheres. Já tive tantas!...
De facto já passara algumas vezes por bicha quando recusava uma oferta descarada. A partir daí ia a todas. E, mesmo que tivesse tido relações com homens, qual era o problema? Conhecia um que em África, durante a guerra, enrabara um fulano. E ao que sabia, não era menos homem por essa razão. Enquanto ninguém soubesse... Hoje em dia até havia lobbies de homossexuais...- E se inconscientemente eu fosse mesmo homossexual?- continuava a perguntar-se.
Freud não tinha nada de estar agora a invadir-lhe os pensamentos. Que dormisse lá no inferno. Se calhar, ainda gostava mais de sexo do que ele próprio.
À ideia vinham-lhe as primeiras experiências com os rapazes da sua idade. Mas isso tinham sido garotadas. Com uma excepção de que, decisivamente, não queria lembrar-se. Tudo era para esquecer. Não gostava nada de se recordar de tais acontecimentos. Nem tão pouco da Graça, a criada dos Sequeiras. Quando ele tinha doze anos, ela, já matulona de dezanove, chamava-o para o quarto com o pretexto de a ajudar a pôr em novelo o algodão das rendas. Depois, dava-lhe uns beijos, desabotoava-lhe a camisa. Ele começava a sentir aquela coisa esquisita mas boa, enquanto a pilinha lhe começava a crescer. Nessa fase, ela pedia-lhe para brincarem aos casados, acabando ambos por ficarem semi-nus. A seguir, orientado pela rapariga, andava por ali às voltas naquela cabeleira negra, entre as pernas dela, fazendo-a gemer. Na altura pensava até que a estava a magoar. Ela pedia-lhe para continuar e por seu lado, ele também gostava daquilo. Fôra a primeira mulher a quem tinha visto as partes púdicas. Aqueles pelos pretos causaram-lhe uma estranha sensação. Desde essa altura nunca mais gostara de pelos, ou talvez até antes...
Não a via há uns tempos. Da última vez, ela cumprimentou-o como se nunca tivesse acontecido nada. Ainda por cima com o marido ao lado. Já com cabelos brancos e com a maior das latas. As mulheres são cá umas desavergonhadas! – pensava.
Nunca falara daquilo fosse a quem fosse. Nem com a ex-mulher. Se calhar também não teria sido uma boa ideia. O casamento deles fôra problemático desde o início. Preferia guardar tudo para si próprio. Não confiava em ninguém. O melhor era continuar como sempre foi. Calado, gerindo os seus pequenos conflitos interiores, levando a vida o melhor possível. Não era insegurança, como já lhe haviam dito. Tratava-se apenas de uma questão de feitio. E, se tinha a vida que tinha, é porque não a sabia fazer melhor. Ponto final e parágrafo.
Finalmente, o telefone. Era a filha.
- Os miúdos não se esqueceram dos meus anos! Felizmente! – pensava. De contrário, seria mais uma pequena angústia existencial para digerir, normalmente sob a capa da indiferença como sempre fazia.
Só faltava a mãe. Eram quase onze horas da noite. Nunca se esquecia de lhe ligar. Raramente passavam juntos o aniversário dele. De vez em quando também tinham as suas divergências. Quando pequeno, não se sentiu assim muito apoiado. Lembrava-se até com tristeza de algumas palavras amargas ouvidas por causa dela. E à ideia ocorria-lhe um soneto de alguém cujo nome não sabia. Talvez fosse de Florbela Espanca.
Chamava-se Pedras e dizia:
De Madalena foi chamada tua mãe, a mesma que Cristo livrou das pedras, pobre de todo o homem que sempre a tem, ai das criaturas por serem tão lerdas. A sorte de Cristo não a teve ninguém, de virgem nasceu entre palhas e cerdas, mas no mundo, disse, que serve p’ra mãe, qualquer Madalena, até a das pedras. E neste universo cruel e imundo, Madalena eu sou, uma sem amor. Maria?! – não serei porque eles dormem... E se nunca me olharem bem no fundo com os mesmos olhos de Deus Senhor, p’ra quê entregar-me se não existe um homem?
Hoje já não ouvia as mesmas palavras. Sentia-lhes apenas o eco. Afinal, como escreveu Oscar Wilde ninguém é suficientemente rico que consiga comprar o passado. A única coisa a não poder mudar-se é a família, mulher excluída.
Lembrava-se outra vez do soneto.
- Se calhar, é mesmo assim. Os homens devem estar em vias de extinção – pensava, tentando desviar-se do assunto. - Até nascem mais mulheres do que homens. Idiotas! São eles que geneticamente determinam o sexo das crianças e fazem mais raparigas. Será isto o início do nosso aniquilamento?- perguntava-se intimamente - Se bem que para mim isso tem sido bom! À quantidade de mulheres sós...- suspirava.
Estava a estranhar-se. Habitualmente não costumava filosofar tanto. Guiava-se mais pelo instinto de conservação da espécie, de preferência sem qualquer espécime a mais. Já estivera na origem de muitos abortos. Problema delas – mentalizava-se. No referendo votara contra, apesar disso. Tinha ele alguma culpa de despertar tanto interesse às mulheres? Madalena ou Serafina, era-lhe absolutamente indiferente. Portuguesa, inglesa ou Italiana. Baixa, gorda, velha ou nova. Eram todas iguais, com aquele buraco entre as pernas.
Às vezes esquecia-se até com quem estava. Havia semanas em que era uma por dia, quando não eram duas ou mais. O importante era controlar a língua não fosse ela desatar-se-lhe num nome não correspondente à do momento. Felizmente, nunca tal acontecera.
De novo pensava na ex-mulher:
- Será que alguma vez gostei dela? Não! Casei-me porque ela tinha uns pais ricos e eu sempre gostei muito de dinheiro. Eles bem não queriam o meu casamento com a filha. Mas ela estava tão embeiçada por mim...Na altura eu andava na merda... Depois, ela era virgem. E o pai dela, quando me via por lá sem cheta no bolso, ainda me dava algum.
Na verdade prefiro as putas! Nunca reclamam nada. Não são como as outras que se apaixonam e tiram toda a liberdade a um gajo - pensava. - Dizem elas que me conhecem...- continuava lucubrando- Se me conhecessem realmente, viam logo que, salvo o estupor da sobrevivência, a merda da vida é-me totalmente indiferente. A única coisa de que eu gosto realmente é foder e ter muitas mulheres.
Os gajos também os como de vez em quando. Se calhar, até gosto mais. Mas, com elas sempre disfarço. As parvas nunca se aperceberam de que são as minhas testas de ferro. E ainda lucro. Além disso dá-me um enorme gozo íntimo enganá-las, com esta cara de santo que Deus ou o Diabo me deu.
O outro lá continua apaixonadíssimo por mim. Faço- lhe o jeito. Eu também gosto. No mínimo, é diferente...
Já conheci mais de duzentos pares de mamas e outras tantas conas... mas, consigo-me lembrar de todas...
Sempre ouvi dizer que quem sai aos seus não degenera.
A minha mãe fartou-se de dar quecas. Quando eu era pequeno e ainda mal falava, até as dava à minha frente. Com gajos que nem eram o meu pai nem nada.
Se calhar sou até um homem perverso sem ter consciência disso...
- Um dia disseram-me que sou amoral. Fui logo ver ao dicionário, com os poucos miolos que tenho sob o cabelo. Percebi bem. Chamaram-me idiota, igualzinho a um animal que não se rege por valores morais. Uma gaja disse-me até que a minha idade mental era igual à de um miúdo de doze anos à procura da mãe....
Não sei bem, nem me interessa. Mas sendo amoral ou perverso o resultado é o mesmo: mamas e conas é tudo o que me interessa. E nisso sou especializado desde bem pequeno. Já agora, outras coisas mais...E gosto de guardar todos os presentes delas, por mais ínfimos que sejam. Já são tantos!.. Até arranjei uma forma de os catalogar. Ponho neles as iniciais das gajas. A dificuldade é quando há alguma repetida. Mas, por exclusão de partes, chego lá...
O telefone tocou.
Era a mãe a desejar-lhe um feliz aniversário.
Clara acabara de chegar.
Mal entrou viu a Sónia, na pequena secretária perto da entrada, que atendia um telefonema.
Sónia era a empregada polivalente. Telefonista, administrativa, fazia de tudo um pouco. Até lhe evitava algumas chamadas indesejadas quando ela não queria ou não podia atender. Já estava consigo e com o Diogo desde que ambos resolveram criar o gabinete de psicologia na área do emprego, há cerca de três anos. Antes, trabalhavam todos num outro gabinete na Avenida de Roma onde Clara ingressou após o estágio. Estivera lá nove anos. Nesse tempo não era ainda muito habitual as empresas recorrerem a profissionais especializados para recrutarem pessoal. Elas próprias o faziam através da publicação de anúncios nos jornais. Agora, os pedidos eram igualmente publicados na imprensa. Só que um pouco mais sofisticados e já com a intervenção dos seleccionadores. Dependendo do lugar, da categoria e responsabilidade, assim era a impressão gráfica, muito mais elaborada e limitativa à partida.
Depois, como o mercado destes serviços crescera nos últimos anos, ela e o colega resolveram abrir a sua própria firma na Avenida de Fontes Pereira de Melo, próximo ao Marquês de Pombal. Transformaram uma casa relativamente antiga, constituída por rés- do-chão e primeiro andar, num local de trabalho aprazível. Em cima, dois dos quatro quartos foram adaptados a salas de testes. Os outros eram os gabinetes de trabalho de Clara e de Diogo. Duas casas de banho e uma enorme varanda completavam o piso e tudo decorria dentro da mais estrita normalidade.
A secretária da Sónia ficava no hall de entrada no rés do chão. Sobre ela, via-se o computador com a respectiva impressora e o telefone através do qual a jovem encaminhava as chamadas. Por aqui, acedia-se a uma enorme sala que servia agora como local de espera dos candidatos. O pequeno escritório era o arquivo dos processos tratados. A cozinha, nas traseiras da casa, estava relativamente adaptada às novas funções. Havia um pequeno disco eléctrico e uma máquina de tirar cafés expresso. Os armários onde se guardava a louça indispensável a uma refeição ligeira, eram os de origem e lá guardavam todos as coisas necessárias para confeccionarem refeições ligeiras. Normalmente ao fim da tarde, funcionava como o refúgio preferido de Clara e Diogo, quando ambos se sentavam nos dois sofás velhos que ela levara de sua casa depois da última remodelação, para tomarem a melhor bica do dia, segundo diziam.
Depois de se divorciar há doze anos, Clara nunca mais tivera qualquer relacionamento sério. Dizia que para si o amor fora definitivamente de férias para um mundo desconhecido a que não se chegava nem de barco, nem de avião, nem sequer de aeronave. Diogo, um pouco mais velho, tinha um casamento sólido donde nasceram um rapaz e uma rapariga e que ela soubesse, não era muito dado a aventuras extra-matrimoniais.
Além de sócios e colegas, Diogo e Clara eram dois bons amigos desde a altura em que começaram a trabalhar juntos. Fôra uma amizade bem sedimentada, partilhada por sentimentos de alegria e de frustração também, mas, ali estava uma sociedade de pedra e cal, capaz de resistir às vicissitudes do tempo. Diogo era um pouco reservado quanto à sua vida privada. Todavia tinha sempre um sorriso nos lábios e gostava de contar uma boa anedota a quem a soubesse ouvir devidamente. Ela, interessante e relativamente pouco vulgar, naqueles minutos ao fim da tarde na cozinha, aproveitava para conversar de tudo um pouco com o amigo e colega. De trabalho, dos assuntos da ordem do dia, dos escândalos políticos e claro, de si própria e de muitas coisas que à família mais próxima jamais ousaria contar.
A actividade de seleccionar pessoas era bastante absorvente, envolvendo muita emoção. Depois das baterias de testes aplicadas aos candidatos e já na entrevista, Clara apercebia-se de que muitas vezes eles, não possuindo na íntegra as características exigidas, arrastavam atrás de si um pequeno drama económico. O conflito instalava-se na sua cabeça e a escolha tornava-se difícil. No relatório a apresentar à empresa e na proposta de contratação aí compunha um pouco as coisas. Sobretudo se não se tratasse de um cargo que implicasse decisões. Acreditava na perseverança das pessoas, arriscava de vez em quando, e nunca tivera, por causa da sua benevolência, nenhum problema de maior. Por isso, continuava a agir, certa de que a necessidade aguça o engenho e às vezes incute responsabilidade nas pessoas.
Logo que Sónia acabou de desligar o telefone, Clara cumprimentou-a:
Bom dia, Sónia!
Bom dia, dra. Clara!
Há recados para mim?
A esta hora ainda não. E na sexta-feira a dra. Clara e o dr. Diogo saíram depois de mim.
É verdade – lembrou-se Clara.
Mas há correio para ambos além das cartas dirigidas ao gabinete.
Há alguma coisa importante?
Não! Parece-me. Algumas cartas são apenas publicidade.
Dê cá!
Com a correspondência na mão subiu as escadas e dirigiu-se imediatamente à sua sala onde tirou o casaco cinza do fato de calças e colocando-o sobre o sofá. De seguida sentou-se, disposta a abrir tudo aquilo que lhe fosse endereçado.
Clara Correia Guedes, Diogo Miranda:
Publicidade personalizada. Como é que esta gente pode ter tantos dados a respeito das pessoas? – dizia de si para si, enquanto deitava as suas próprias cartas no recipiente do lixo.
A seguir pegou nos testes corrigidos no domingo na mesa da sua sala de jantar. Nos currículos também. Tinha de seleccionar um contabilista para a empresa Loureiro & Alvim, S.A., ligada ao ramo automóvel. Escolhera três candidatos. Um homem e duas mulheres, dos trinta que responderam ao anúncio. Iria entrevistá-los a todos. Aquela era sempre a parte mais difícil, a do confronto cara a cara e às vezes das revelações inusitadas, onde tinha de medir bem as suas decisões ao ponto de impedir que elas redundassem em prejuízo dos clientes.
Pegou no telefone e ligou à Sónia.
Por favor, venha cá acima buscar um dossier.
Está bem, dra. Clara. Vou já.
A jovem não demorou muito a bater à porta.
Entre – disse.
A doutora precisa de alguma coisa?
Preciso sim, Sónia. Queria que me marcasse estas três entrevistas. Tem aí os endereços e os telefones dos candidatos.
Para quando quer marcá-las?
Deixe lá ver... Hoje é segunda... Marque para a próxima sexta-feira.
Vou convocá-los por carta, não é melhor?
É essa a ideia. Pelo telefone seria difícil encontrá-los. São de redes fixas e nem todas de Lisboa. Assim, marcam-se logo as datas de acordo com a minha agenda. Mande por correio azul, por favor. Este processo tem de estar concluído, no máximo, até vinte e cinco deste mês... e hoje já são dez.
Está bem, doutora. Para que horas quer marcá-las?
Às raparigas, entrevisto uma às dez e meia e outra às onze. Pode ser primeiro a Carla Silvestre e depois a Sílvia Mota. Por último, o Eduardo Pinto. Meia hora para cada um, como é habitual.
Precisa de mais alguma coisa?
Não, Sónia. Obrigado. O dr. Diogo já chegou?
Ainda não.
Logo vi! De outro modo já teria batido à porta do meu gabinete. Daqui a pouco vou lá baixo tomar uma bica. Já não é muito cedo. Ainda não estou bem acordada. Mas vou esperar por ele.
Sónia saiu. Dez minutos depois chegou o colega e foi imediatamente bater à porta de Clara.
Olá, Clarinha!
Era assim que a tratava quando estavam sozinhos.
Olá, Diogo! – respondeu. – tiveste bom fim-de-semana?
Tive. O tempo esteve bastante bom e ontem deu para ir almoçar com a Ivone. Fomos até à Ericeira.
Ivone era a mulher de Diogo e o casamento de ambos já levava vinte anos em cima e prometia acrescentar outros tantos à vida de ambos.
E tu, Clarinha?
Também! Apesar de ontem ter corrigido uns testes do processo Loureiro & Alvim. Depois fui almoçar a casa de uns amigos, a Catarina e o Xavier, lá em Odivelas. A minha amiga tem cá a mãe. É do Porto e eu adoro aquela mulher. Tem uma das vidas mais fantásticas que eu conheço. À tarde fomos a Cascais lanchar ao Imperador.
Então, qual é essa história da mãe da tua amiga que te impressiona tanto?
Olha! Desde logo, porque aos cinquenta e oito anos resolveu divorciar-se após um casamento mal sucedido de trinta. Depois, porque foi sozinha para França trabalhar na casa do cônsul espanhol em Marselha. E, finalmente, porque aos sessenta anos viveu uma história de amor lindíssima com um senhor francês com quem veio a casar-se.
Mulher de fibra! Como é que ela se chama? – perguntou Diogo.
É a Juju. É um amor de pessoa.
E se fôssemos tomar uma bica?
Estava mesmo à tua espera!
Desceram ambos e dirigiram-se à cozinha. Clara preparou dois cafés dando um a Diogo, um homem perto dos cinquenta anos, alto e moreno, de um sorriso tímido e conversa recatada.
E para além disso?- retomou ele a conversa.
Para além disso, o quê?
Tu!?
Eu, o quê? – retorquiu Clara.
Tu também és um amor de pessoa, Clarinha!
Se soubesses da quantidade de gente a pensar o contrário, não dizias semelhante!
É porque não te conhecem. Mas o que eu quero saber é como vais de amores...
De jejum, como sempre!
Deixa lá! - disse Diogo, entre dois goles de café. - Esse jejum não é dos que mata. E mais vale jejuares a encontrares um gajo completamente indigesto.
Desses já me chegam! Obrigado!
E mudando de conversa: O que é que te promete esta segunda-feira de trabalho?
Tenho de redigir dois anúncios para a Sónia levar logo ao fim da tarde ao jornal. Depois, vou ao banco. O meu cartão de crédito está deteriorado. Vou pedir uma segunda via. E tu?
Eu? – interrogou-se Diogo enquanto via as horas. – Vou já para o gabinete. Ainda não pus lá os pés e dentro de dez minutos começo as entrevistas da manhã.
Qual é o processo?
É o do director comercial da Socilar.
Que tal os currículos?
Bons! Cursos de gestão de empresas, economia. Há uma mulher entre os quatro.
Escolheste quatro candidatos em vez dos três habituais, porquê?
Os psicólogos também são gente. E tive medo de pôr a cruzinha no meio.
Queres tu dizer, na mulher!...
É verdade! O administrador prefere nitidamente um homem. Mas esta tem um currículo muito bom. Pos-graduação em Cambridge sobre economia de mercado. Trinta anos. A empresa está a apostar em quadros jovens e eu não queria frustar-lhe as expectativas. Vamos subir?- perguntou.
Vamos!
Enquanto se dirigiam ao primeiro andar Clara disse a Diogo em tom de brincadeira:
Boa sorte para a senhora! Quanto aos cavalheiros podes mandarmos!.. De preferência, em horário pós-laboral!...
Está bem! Porém, vendo melhor, são um bocado jovens de mais para ti! A menos que queiras desmamar meninos!.. – acrescentou ele, rindo.
Achas-me assim tão velha? Que diabo! Ainda só tenho trinta e oito anos!
Estava a brincar, Clarinha!
Ah! Logo vi! – continuou ela, rindo também.
Mas está descansada! Quando estiver cara a cara com a tua alma gémea, sou eu quem ta vai meter na cama!
Queres pôr-me logo a comer a sobremesa?! É melhor começarmos pelo jantar!...
Depois logo se vê!... – disse Diogo, entrando no seu gabinete de sorriso nos lábios.
Tenho ali umas cartas para te entregar. É só publicidade.
Podes deitá-las no lixo.
O telefone começou a tocar.
O primeiro candidato deve ter chegado. Até já Clara.
Até já.
Era a faceta mais brejeira dela.
A semana chegava ao fim. Clara, após as entrevistas marcadas na segunda-feira, propusera à empresa a contratação do homem. Embora todos tivessem o curso exigido, ele, nos testes, revelara mais vocação para os números. Já entregara o relatório à Sónia e seguiria ainda naquele dia pelo correio. Diogo decidira-se por um dos três homens. O lugar exigia muita disponibilidade para viagens ao estrangeiro e a senhora, recém-casada, estava agora mais predisposta a consolidar o casamento.
Eram cinco horas da tarde desse dia. No gabinete, à sua frente, estavam sentados uma senhora e um menino a quem fazia testes de orientação vocacional.
O telefone tocou. Era a Sónia.
Preciso de falar com a doutora.
Está bem. Dê-me só cinco minutos. Estou a acabar de efectuar uns testes e mal acabe, ligo-lhe. O dr. Diogo já saiu? - perguntou, lembrando-se de que era sexta-feira e ele pretendia sair um pouco mais cedo.
Já. Saiu há cerca de cinco minutos.
Está bem. Obrigado e até já.
A senhora e o miúdo saíram. O puto revelara tendências de coca-bichinhos. Talvez viesse a dar em futuro cientista, fugindo de Portugal à procura de uma oportunidade no estrangeiro como já era hábito.
Ligou à rapariga logo que se despachou, após ter dado algum tempo para a saída de mãe e filho.
Pode subir, Sónia. Acabei. Finalmente o fim-de-semana.
A jovem bateu à porta quase de seguida.
Entre.
Preciso de falar com a doutora - disse com ar comprometido.
Clara franziu o sobrolho. Pelo semblante da outra não estava a adivinhar nada de bom.
Diga lá, Sónia! O que é que se passa?
Vou-me embora...
Vai o quê? – pergunta sem perceber muito bem.
Afinal era sexta-feira... Será que a rapariga precisava de sair mais cedo?- interrogava-se muda. Contudo, a cara dela estava pejada de gravidade e circunspecção, prometendo algo de mais complicado.
Vou-me embora do escritório!...
Vai-se embora?! Se for para melhor tem todo o meu apoio e o do dr. Diogo também, tenho a certeza! Mas, vai para onde?
Concorri a um emprego no Estado. Vou ganhar mais. Estou a pensar em casar e...
Está bem. Há sempre tantos concorrentes. Como é que pode saber se vai ficar?
Já concorri há bastante tempo. Só me chamaram agora. Segunda- feira já não venho trabalhar.
Clara deu um salto ficando de pé frente à rapariga.
Ora repita lá isso! Parece-me não ter ouvido muito bem!...
Acabara de experimentar uma sensação de furiosa frustração. A língua desatara-se-lhe afiada como uma navalha de ponta e mola apontada à jovem, pronta a esfaqueá-la, com o devido respeito pela sua personalidade pouco dada a uma brutalidade que não fosse verbal
Não me diga que teve a lata de me ocultar tudo não sei durante quanto tempo e agora vem dizer-me com a maior das ligeirezas que se vai embora segunda-feira?!...
Não tive coragem para lhe contar...
Claro! A Sónia conhece-me há três anos e sabe que eu sou um monstro! Completamente incapaz de perceber as pessoas!
Não é isso!..
Mas olhe que parece! E ao dr. Diogo disse alguma coisa?
Não...
Pior um pouco! Sabe os nomes dessas coisas todas?
E Clara, antes da rapariga dizer fosse o que fosse, dava as respostas:
Isso antes de mais chama-se cobardia! Depois, é desonestidade, deslealdade, injustiça, falta de sensibilidade! Puro egoísmo! Sinceramente, esperava outra coisa de si! Ainda por cima guardou tudo para uma altura em que o dr. Diogo não está! No mínimo podia ter tido essa gentileza para com ambos - dizia furiosa. - E logo à sexta- feira! Realmente, não podia ter escolhido melhor altura. Um fim-de-semana!– repetia, irónica.
Mas, dra. Clara... Eu não tive qualquer intenção... – respondia a jovem.
Claro! Ainda por cima deve querer os seus direitos, não é verdade?
Estava seriamente irritada com a rapariga. Sentiu ganas de lhe dar duas bofetadas na cara, como quem pretende educar uma criança que às vezes, não aprende de outra maneira. O recurso à ironia era uma boa forma de autocontrole.
Só quero o que for justo!
Justo é: segunda-feira eu e o meu querido colega não termos funcionária! Justo é: num processo tão longo como o da contratação pública ter escolhido o último dia para me dizer! Olhe, Sónia!- retorquiu, depois de uma pausa breve - leve os seus tarecos todos! Não me apareça mais à frente! E não me venha com essa treta dos direitos porque os seus direitos estão mais do que tortos! Faça o favor de descer! Obviamente, as suas coisas já estão arrumadas!... – insinuava, enquanto descia as escadas atrás da rapariga que, timidamente, ia dizendo:
Desculpe, doutora. Eu não pensei...
Pois não! - argumentava, generalizando - Vocês nunca pensam! Não passam de baratas tontas! E agora dê-me as chaves se faz favor!
A moça já se encontrava à porta. Era uma jovem alta e magra de cabelo castanho escorregadio e uns olhos rasgados num rosto de lábios finos. Um traço de cinismo e cobardia - pensava Clara. E sem Sónia contar com isso, cínica e ironicamente fez-lhe uma vénia, dizendo:
Por gentileza, saia! E obrigado pela consideração!...
De seguida a porta fechou-se com um enorme estrondo.
Clara subiu de novo. Sentou-se, depois, no cadeirão perto da janela. Tirou um cigarro do maço de tabaco e procurou um isqueiro. Não o encontrava na amálgama que é carteira de quase todas as mulheres. Uma vez já vira sair de uma um saco plástico com sardinhas, mas agora, com o nervosismo que se alojara nas suas mãos, nem sequer conseguia tactear um simples isqueiro.
Raios! Por causa disto ainda hei-de deixar de fumar! Não consigo reter uma porcaria destas mais do que uma semana! Que inferno! Se a deixo esquecida em qualquer lado, vem logo outro fumador e apropria-se dela! Eu faço a mesma coisa! Bolas! Acontece o mesmo com as esferográficas! Oh objectozinhos vulgares e despersonalizados! São piores do que prostitutas! Passam de mão em mão indiferentes a quem os manuseia!- continuava Clara, no cume da irritação.
Após uns instantes de desbragada luta com a bolsa, lá encontrou o último acendedor que comprara há dois dias. Era azul eléctrico, embora eléctrica fosse o estado em que se encontrava, à custa de uma tonta qualquer que não tivera por si qualquer ponta de consideração.
Acendeu o cigarro lançando uma enorme baforada de fumo. Pensava na cena acabada de viver com a Sónia.
Fôra uma ingrata...
Clara era uma mulher bastante selectiva e pouco comum. Detestava maledicências. A ela nunca lhe contavam fofocas. Mas, era sobretudo uma pessoa honesta e sincera. Tinha horror a gente mesquinha, e mentirosa, principalmente. A sua personalidade forte impunha até um certo distanciamento tanto às mulheres como aos homens. De tanto rigor e exigências com ela própria, sobretudo os estes tinham-lhe um certo medo. Ela tinha de ser tocada por sensibilidades semelhantes à sua própria sensibilidade. Não era uma questão de elitismo ou de estatuto social. Nascera de gente humilde e orgulhava-se disso. Contudo, dificilmente digeria comportamentos insensatos como o que acabara de viver. Recordava-se da D. Maria uma senhora que fizera limpeza lá no escritório. Era analfabeta mas uma pessoa extraordinária. A Juju também. Infelizmente eram poucos os capazes de chegar a esse nível. A maioria ficava-se pelas aparências sem se preocupar com o âmago da questão. Sónia tinha ficado por isso mesmo.
- Coitada! Não tem culpa. Cada um dá o que tem. E uma pedra nunca dará leite nem mesmo parecido com o da figueira brava... - reflectia intimamente.
Clara revolvia-se mais uma vez com a sua maneira de ser. Possivelmente estaria a pagar pelo seu natural ar de importante, no fundo com os mesmos problemas de todos os mortais, agora acrescidos do facto de necessitar urgentemente de uma nova empregada e logo numa Sexta-feira à tarde. Estava em dúvida se iria ou não telefonar a Diogo. Seria aborrecido ele confrontar-se com a situação na semana seguinte. Por outro lado, se o soubesse de imediato, iria estragar-lhe o fim-de-semana. Por isso, resolveu fazer como o senhor inglês a quem, num sábado à tarde, informaram do incêndio ocorrido na sua fábrica naquele mesmo dia. Perante o facto consumado, o homem respondeu:
Muito vou ter de me aborrecer segunda-feira!...
E à boa maneira fleumática inglesa viveu o seu dia de descanso semanal, como se nada tivesse acontecido.
- Não vou dizer nada ao Diogo. Ele que viva descansadamente o sábado e o domingo – falava em voz alta.
Levantou-se de seguida, num ímpeto e redigiu um anúncio a pedir empregado. Com sorte, o jornal ainda o publicaria no dia seguinte e na terça ou quarta-feira já deviam ter respostas. Diogo iria, certamente, aprovar a decisão.
Saiu e passou pelo jornal, pagando a taxa de urgência.
No dia seguinte e lá na tabacaria do bairro bem cedo, estava Clara a comprar o periódico. Já em casa, sublinhou-o para, na segunda-feira, falar com o colega, embora receasse alguma reprovação da sua atitude, por parte dele.
Eram onze da manhã desse Sábado, a seguir ao despedimento de Sónia, quando o telefone tocou. Atendeu, ainda relativamente mal humorada..
Estou! – era o Xavier.
Estás boa? – perguntou ele.
Nem por isso. E tu e a Catarina?
Estamos óptimos. Ela está aqui e disse-me para te telefonar. Mas conta lá o que é que te aconteceu.
Clara relatou o despedimento da Sónia.
Agora estamos sem empregada. O Diogo ainda não sabe e segunda-feira lá estou eu às nove da manhã no gabinete....
Já tens alguma solução? – perguntou Xavier.
Ontem pus um anúncio no jornal. Espero ter respostas rápidas.
Hás-de ter, e muitas. Não te rales com isso!
Chateou-me sobretudo a forma sub-reptícia de fazer as coisas! Esperava mais da rapariga!
Deixa lá! Nunca tenhas tu coisas piores na vida!
Tens razão.
Vou passar à Catarina. E já agora: tens programa para hoje à noite?
Não – respondeu Clara.
Então, um beijo.
Outro para ti!
Clara!- exclamou Catarina do outro lado.
Sim!
Já deu para perceber o que se passou. Não te vou aborrecer com mais perguntas.
Está bem. Obrigado por me poupares.
Queres vir jantar cá a casa?
Quero. A Juju ainda está aí?
Não. Foi quarta-feira para o Porto. Ligou-me hoje. Mandou um beijinho para a Clarinha!
Retribui quando lhe telefonares. Um dia destes ligo-lhe.
Catarina continuou:
Ontem estive com o Luís e a Manuela Medeiros.
Já há uns tempos que não os vejo. Como estão eles? E os miúdos?
Estão todos bem. Perguntaram por ti.
Tenho de ir mais vezes a Lisboa, à noite.
Tens a oportunidade de os ver hoje depois do jantar.
Porquê? Eles vão aí?
Não. Mas ofereceram-nos três convites para um concerto de música clássica. Queres ir?
Claro que sim! Música clássica só mesmo ao vivo. Onde é o concerto?
É na Fundação Francisco Osório - respondeu Catarina.
Nunca lá fui! Onde fica?
Na Alameda das Linhas de Torres.
Ah! Já sei. É uma instituição com fins culturais. Foi criada pelo falecido banqueiro Francisco Pinto Osório depois de ter assegurado os negócios dos herdeiros.
Essa mesma – confirmou Catarina. - Foi amigo pessoal do Gulbenkian e inspirou-se no arménio, embora não tivesse tanto dinheiro como ele. Amante das artes, dizem que a fundação era o filho de quem ele mais gostava.
Do Gulbenkian li muitos livros quando era miúda lá na aldeia com as bibliotecas itinerantes .
Está bem! Agora vais assistir a um concerto na Fundação do Francisco Pinto Osório.
Qual é a orquestra?
Não sei bem. Mas parece-me que é espanhola. Penso que é de Barcelona! Não tenho a certeza.
Sabes ao menos quais os compositores que a orquestra vai interpretar?
Beethoven, talvez. Não sei...
Vale a pena! Beethoven é sempre Beethoven!
Então vê se estás cá às oito horas. O concerto é às nove e meia.
Está bem. Até logo. Um beijo.
Catarina despediu-se também.
Clara passou o dia a arrumar as suas coisas pessoais. Pensava no jantar da noite e sobretudo no concerto. Não sabia que roupa iria levar. Por fim, resolveu-se por um vestido preto de licra, bastante justo e com riscas brancas no peito. Aquele sábado do início de Maio estava moliceiro. Teria de levar um casaco. Umas meias também. Pretas igualmente. Era a sua cor preferida.
Às vinte horas lá estava ela a tocar à campainha dos amigos, esperando esquecer, ao menos durante o fim de semana, o problema laboral vivido de véspera. Foi Xavier a atender.
Sobe.
Meteu-se no elevador e foi até ao quarto andar, onde os amigos moravam há uns anos como uma família feliz a que não faltavam duas filhas.
Estás muito bonita – disse Xavier ao abrir-lhe a porta, depois de lhe dar um beijo.
Olha lá se a Catarina ouve!... Pode ficar com ciúmes!...
Não fico não! Até confirmo! Além disso tu és a minha melhor amiga e em ti confio eu! No Xavier nem tanto!...- brincou Catarina.
Estás a ouvir, Xavier?- ironizou Clara. - Que é que tu andas a fazer?
Nada! As mulheres às vezes têm a mania de generalizar.
Vamo-nos deixar de brincadeiras. O que é o jantar? Estou cheia de fome!
Lombo de porco assado no forno. Gostas? – perguntou Catarina.
Gosto. Querem que eu ponha a mesa?
Não. O Xavier já fez isso. Vamos jantar. Tu ainda estás de ressaca da história do gabinete...
Os amigos moravam num apartamento de cinco assoalhadas de uma boa construção, com uma decoração moderna. A sala comum tinha uma enorme lareira. Ficava perto do Convento de Odivelas onde estivera a Santa Joana Princesa, antes de se radicar em Aveiro, cidade da qual é padroeira.
Jantaram sozinhos. A Sílvia e a Joana, filhas do Xavier e da Catarina, tinham ido a um aniversário, uma vez que a idade já lhes permitia enfrentar sem sobressaltos de maior, o escuro da noite de Lisboa. A seguir saíram, cerca das nove horas. Foram no BMW de Xavier e Catarina, empresários de sucesso no ramo do equipamento médico. Passado um bocado, estava Xavier a estacionar o carro em frente à fundação.
Na alameda, do lado descendente, via-se um edifício relativamente moderno, pintado de branco. À frente tinha um grande espaço murado. Por uma boa dezena de escadas largas acedia-se ao átrio, visível de fora através de uma enorme porta envidraçada. As partes laterais eram também em vidro. O edifício prolongava-se para os lados e para cima, assemelhando-se a uma pequena colina.
Já dentro, viram imediatamente a Manuela e o Luís Medeiros. Luís era um pintor expansivo e tivera a sorte de encontrar a Manuela, igualmente uma mulher comunicativa. Todos eles pertenciam à geração dos quarentinhas. Clara era a mais nova do grupo, que conhecera numa galeria de arte e durante uma exposição de pintura dos quadros de Luís. A partir daí, ficaram amigos. Clara, contudo, talvez por causa do seu celibato forçado, era a mais ausente das tertúlias em que, na maioria do tempo, andavam envolvidos.
Sejas bem aparecida! Há quanto tempo... – disse a Manuela, enquanto a cumprimentava com dois beijos.
Luís secundou o cumprimento.
É verdade. Já não nos víamos desde a missa do sétimo dia do pai do Luís- respondeu Clara.
Nessa altura, Catarina interveio.
Ri-me como uma perdida. Vi a Clara quase a dar o nó...
Conta lá isso! - pediu a Manuela com enorme interesse.
Estava lá um fulano que não tirava os olhos dela. Depois, à saída, veio ter connosco. Perguntou-lhe se não era casada e qual a sua idade. Disse-lhe que a achava muito bonita.
Realmente - acrescentou Clara, rindo - acontece-me cada coisa...
E tu, Clara?
Vocês sabem como eu sou. Não sei mentir. E num lugar daqueles... Apanhou-me completamente desprevenida. Respondi-lhe que não e educadamente agradeci o elogio.
E depois? – perguntou Manuela.
Depois – continuou Catarina- o homem puxa do bolso um pequeno álbum de fotografias e desata a contar-nos o acidente da mulher e da filha. Tinham ambas morrido na linha de Cascais. Eram imensas fotos dum jipe todo retorcido.
Eu vi logo que o homem não estava bom da cabeça. Cheia de pena dele, dei-lhe um bocado de atenção. Coitado!... – justificava-se Clara.
Mas o mais engraçado foi ele falar-lhe dos rendimentos. Devias ter aproveitado, Clara!... Então, mil contos por mês do prédio da esquina não sei das quantas, da rua não sei de quê, não são de deitar fora...Foste uma lorpa! - brincava Catarina, rindo.
A Manuela, o Luís e o Xavier riam também. O Xavier já conhecia a história.
Quem era o tipo? Se estava na missa do sétimo dia do meu pai devo conhecê-lo.
Era um fulano de barbas - respondeu Clara.
Ah! Já sei! Era o Olegário! Ele anda completamente passado da cabeça com a morte da mulher e da filha- lembrou-se Luís.
Mas olha! Parecia que queria aproveitar a igreja para se casar com a nossa amiga... – zombava Catarina.
Pior foi depois! Vocês sabem que o homenzinho conseguiu descobrir o meu telefone lá de casa e passou a telefonar-me sistematicamente? Eu com pena dele ouvi-o duas ou três vezes sem qualquer reprimenda...
Como é que te conseguiste livrar dele? – quis saber Manuela
Na última vez disse-lhe que estava com o meu namorado. A partir daí, desistiu.
Estão a dar sinal. O concerto vai começar. Vamos descer.
Depois de transporem dois lanços de escadas chegaram a uma sala onde existia uma exposição permanente sobre moeda fiduciária. A seguir, era a sala dos concertos. Entraram então, sentando-se numa das filas centrai e enquanto as luzes não eram reduzidas Clara folheava o programa. Afinal, os compositores eram Haydn, Carl Stamitz e Antonin Dvorák. Também, não fazia diferença: música é sempre música.
O concerto começou quase de seguida. Clara gostava de dançar. A música e a dança aliadas eram duas coisas divinas e assim, levou todo o tempo a mexer os músculos do corpo. A música, quando era ouvida para ser ouvida, provocava-lhe sempre aquela sensação. Os amigos riam-se quando ela dizia que dançar era quase tão bom como fazer amor e das duas coisas, andava ela, há algum tempo bastante arredada..
Depois de cerca de hora e meia em que os acordes ecoaram por toda a sala, o concerto acabou e, após a entrega das flores ao solista e ao maestro, Luís virou-se para os amigos:
Conheço o maestro. Vamos cumprimentá-lo.
Foram os quatro à sala dos músicos. O homem suava por todos os poros.
Apresento-vos o Maestro Albert Lawrence. E abraçando-o, dava-lhe os parabéns pela orquestração.
Cumprimentaram-se todos. Clara não fixou muito bem o nome. Depois, enquanto Luís e Manuela falavam com o homem, Clara, Xavier e Catarina conversavam entre si.
Na sala estava ainda mais uma pessoa além de alguns músicos. Uma senhora de vestido vermelho e desta vez, foi Manuela a fazer as apresentações. De repente entrou um homem bastante bonito. Era alto, louro, de olhos verdes, e a senhora, secretária da fundação, apressou-se a apresentá-lo.
O director da fundação, dr. César Augusto - também ela não fixara os nomes dos apresentados.
Muito prazer - responderam todos, apresentando-se eles próprios.
Clara estendeu-lhe a mão pensando:
Que homem bonito! Deve ser casadíssimo.
Não ligou mais ao assunto, imaginando a mulher possivelmente à sua espera com uma dúzia de filhos igualmente bonitos e prometendo netos na mesma proporção.
Luís chegou-se ao grupo e perguntou:
Vamos beber um copo às Docas!? Queres vir também, César?
Não, obrigado. Estou um bocado cansado...
E vocês, querem?
Claro! Amanhã é domingo e podemos dormir até mais tarde.
Luís insistiu:
Anda connosco, César!
A resposta foi de novo negativa.
Após as despedidas os cinco amigos saíram. Foram buscar os carros e dirigiram-se às Docas onde a noite continuou com as águas do Tejo a borbulharem por perto.
Às três da manhã regressaram às respectivas casas, depois de conversarem um pouco num bar e passearem junto rio, mal os pingos de chuva miúda proporcionaram algumas tréguas. Luís e Manuela moravam em Lisboa. Xavier, Catarina e Clara foram para Odivelas.
Clara acordou cerca da uma da tarde. Grelhou um bife e fez uma salada. A seguir ao almoço resolveu dar uma olhadela na roupa de verão. Alguma já não a iria vestir mais por isso iria colocá-la ao lado do contentor do lixo. Alguém iria aproveitá-la, com toda a certeza. Não gostava de dar directamente as suas sobras com medo de que as pessoas se sentissem humilhadas. Não lhe agradava também dar gorjetas pela mesma razão, mas os ordenados em Portugal sempre foram tão baixos... E ela, disfarçadamente, deixava, todas as vezes, qualquer coisa em cima da mesa, sobretudo no cabeleireiro e na esteticista onde aqueles trocados já faziam parte dos ordenados miseráveis praticados em Portugal.
À noite viu o telejornal. Os dramas do costume. As politiquices fastidiosas de ultimamente e a sensação de uma solução na continuidade demonstradas pelos mais recentes governos, em nítido declínio e à medida que a noite avançava recomeçou a pensar no problema do gabinete. No dia seguinte tinha de estar lá às nove horas. Finalmente, o Diogo iria saber da desfaçatez da Sónia e, quiçá, irritar-se consigo por não lhe ter dado conhecimento do assunto.
Antes de ver o filme Danças com Lobos, pôs o despertador para as sete da manhã e programou a televisão com duas horas. Acabou por adormecer antes. Já tinha visto o filme uma ou duas vezes e o sono falou mais alto.
Acordou, depois, antes da RFM a despertar, antes da hora estabelecida, como se não tivesse dormido e a rogar pragas à rapariga demissionária. Tomou, a seguir, um duche rápido e já vestida e maquilhada desceu à cozinha, preparando então o sumo de laranja. Após ter ingerido o último golo de café com leite que se lhe seguiu, na casa de banho, lavou os dentes, pintou os lábios e saiu, apressada, como sempre, estado comum à maioria das pessoas a morarem em Lisboa e arredores.
Demorou três quartos de hora a chegar e agora era o inferno do estacionamento. Passados uns instantes viu um lugar mal amanhado a dois quarteirões do gabinete e estacionou, a troco do pagamento de cem escudos ao rapaz drogado que lhe fez sinal. - Outra praga social - pensava Clara.
Já à porta e com o jornal de sábado na mão, fez de novo a cena macabra da procura das chaves. Esvaziou quase a bolsa. Por fim lá as encontrou. Os seus neurónios levaram mais um esticão com aquela pequena irritação matinal e eram nove horas e vinte minutos quando abriu a porta, viciada pelas mãos da Sónia durante os últimos três anos em que lá trabalhara. Logo que entrou, sentou-se na secretária, à entrada. Daí a pouco chegou o carteiro que lhe entregou meia dúzia de cartas. Clara abriu-as rapidamente. Quando Diogo chegasse iria tratar das urgências e faltavam quinze minutos para as dez o colega assomou à porta, constatando que nunca tivera tantas saudades dele como naquela manhã.
Olá, Clarinha! Bom dia! Mudaste de gabinete?
Voluntariamente coagida! – respondeu, cumprimentando-o com dois beijos.
Isso é linguagem de polícia!
É mais de juiz! E desta vez és tu que vais julgar. Mesmo sem toga nem nada...
Pelos vistos não estás lá muito bem disposta...
Já estou um bocado recuperada com o fim-de-semana. Agora, é a tua vez...
Mas o que é que aconteceu? – perguntou Diogo – A Sónia?
Como dizem os brasileiros, escafedeu-se! Na tradução livre, deu-nos com os pés e não esteve com meias medidas!
Como é que foi isso? Quando saí na sexta-feira ela ainda cá estava...
Pois é! Esperou mesmo a tua saída para me dizer que segunda-feira, isto é, hoje, não vinha trabalhar. Fiquei furiosa como deves calcular. Aquele meu géniozinho veio ao de cima. Também, com tamanha desfaçatez...
Para onde é que ela foi?
Para um emprego do Estado.
Mas, para onde?
Não sei. Não lhe perguntei. Apeteceu-me bater-lhe. E o pior que fiz foi fechar-lhe a porta na cara.
Imagino...
Bom, mas não te preocupes. Tomei logo as providências necessárias. Pus um anúncio. Saiu no sábado. Está aqui – e entregou-lhe o jornal.- Desculpa lá não te ter telefonado. Tu nada poderias fazer e eu resolvi deixar-te passar o fim-de-semana tranquilo. A propósito, ele foi bom?
Mais ou menos. E o teu?
No sábado à noite fui a um concerto de música clássica à Fundação Pinto Osório, com os Frias e os Medeiros, meus amigos. Depois, fomos às Docas beber um copo.
Conheceste ao menos gente interessante?
Conheci um tipo muito bonito. Mas, se queres que te diga não me lembro da cara dele.
E o estado civil? – perguntou Diogo com curiosidade.
Estava sozinho. Contudo imaginei-o casado com uma mulher lindíssima e com filhos igualzinhos a eles. Também, não perguntei – e depois de uns segundos calados, Clara continuou:
Bom. Que dizes tu do meu expediente?
É claro que fizeste bem, Clarinha! Obrigado por me teres poupado. Estes primeiros dias vamos resolver juntos estes problemazinhos. Havemos de ter respostas dentro de pouco tempo.
Vais tu seleccionar os candidatos - disse em tom aparentemente peremptório. - Vê se não arranjas uma pessoa com lábios finos e sobrancelhas muito arqueadas! Vi um dia destes um programa na televisão onde disseram que gente com essas características é descendente de Drácula!...
És muito maluca!...- retorquiu Diogo, rindo.
Se calhar é mesmo verdade. Devem andar aqui para nos sugar o sangue... Oh, Diogo! Estou tão chateada... – e Clara estava com uma lagrimazita ao canto do olho, sorrindo ao mesmo tempo. - Por que é que as pessoas complicam tanto a vida que podia ser tão simples?
Por medo. Oh, Clarinha... Já falámos tantas vezes nisso... Há-de ser assim sempre!...
Por que é que a Sónia não foi franca connosco?
Clarinha, vamos esquecer o caso... Ora, repete lá comigo:
Uma pedra nunca dará leite nem mesmo parecido com o da figueira brava - disseram os dois, simultâneamente, enquanto soltavam o costumeiro riso em situações do género.
O dia decorreu mais agitado do que o costume. Os seguintes igualmente. Tiveram de fazer algumas adaptações e imprimir um ritmo diferente ao trabalho de ambos, mas nada de anormal aconteceu no reino laboral onde os dois se amanharam o melhor que puderam,
Quinta-feira receberam as primeiras respostas. Dez. Diogo fez a selecção apenas através da entrevista e mais uma vez as mulheres responderam em maior número. Tinham melhores aptidões profissionais.
A rapariga escolhida chamava-se Isabel Costa, tinha vinte e três anos. Morena e relativamente baixa era casada e tinha um filho de um ano. Morava em Almada e foi Diogo o responsável pela contratação. Eximido do resto da situação, foi sua forma de contribuir para a resolução do problema. Clara gostou dela. Contudo, no seu jeito peremptório de tratar as coisa importantes, sempre lhe foi dizendo:
Olhe, Isabel! O dr. Diogo é uma pessoa do melhor que conheço. Eu sou um bocado mais exigente. Às vezes posso ser muito dura. Mas sobretudo tenho um elevado sentido de justiça. E, como diz a canção do Rui Veloso, todos nós temos um lado lunar, o lado mauzão. Veja lá se, comigo, sabe lidar com o outro, o bom. Aconteça o que acontecer faça o favor de ser sempre leal sejam quais forem as circunstâncias. Só assim poderá contar connosco.
Para Isabel, totalmente alheia ao assunto da Sónia, tudo aquilo lhe soou a aviso. Porém, também ela gostara de Clara. Pareceu-lhe ver nos olhos dela alguma emoção enquanto sermonava. Isso deu-lhe garantias de que era uma boa pessoa e principalmente muito versátil em termos emocionais. Depois, respondeu com algum acanhamento:
Está bem, dra. Clara. Pode contar comigo! Este é o meu segundo emprego e nunca ninguém me falou assim. Parece-me que a senhora está muito zangada com alguém...
É verdade. Mas a Isabel não tem culpa. E agora vamos ao trabalho.
Foi explicando o funcionamento do gabinete. A rapariga não iria, certamente, apreender tudo num único dia. Diogo e ela própria estariam ali para corrigir as falhas e melhorar o sistema.
A primeira semana com Isabel decorreu razoavelmete.
Em casa, na sexta-feira logo pela manhã, Clara não se sentia muito bem. O seu sistema nervoso aguentava as crises até ao pico. Quando os problemas ficavam finalmente resolvidos entrava em declínio e precisava de um ou dois dias para se recompor.
Logo às nove horas pegou no telemóvel e ligou a Diogo.
Olá, Diogo. Bom dia!
Olá, Clarinha! Estás bem?
Nem por isso. Estou em fase de quebra depois dos últimos dias. Hoje de manhã não vou trabalhar.
Está bem, Clarinha! Tens alguma coisa importante para tratar?
Não. À tarde já vou. Diz por favor à Isabel que me ligue se houver algo urgente para mim.
Melhora depressa. Um beijo e até logo – disse Diogo ao despedir-se.
Obrigado. Até logo.
Dormiu um pouco. Levantou-se cerca das onze. Ao meio dia tocou o telefone.
Estou! - era a Isabel.
Desculpe, dra. Clara. Mas ligaram duas pessoas para si. E como disseram que era urgente...
Quem eram?
A dra. Clara tem aí papel e uma caneta?
Tenho sim, Isabel. Diga lá!
Ligou o seu amigo Luís Medeiros. Deu-me um número de telefone e disse para a dra. Clara ligar ao dr. César Augusto.
César Augusto?! – interrogava-se Clara enquanto apontava os algarismos. - Não sei quem é. Acrescentou mais alguma coisa?
Não - respondeu Isabel.
Será algum assunto profissional?
Ele disse que era pessoal.
Aquele meu amigo é mesmo chanfrado! – confidenciou - E o outro telefonema?
Era por causa da compra de uma carpete para o gabinete.
Ah! Esse assunto eu resolvo depois. Mais nada?
Não, doutora.
Então, até logo e obrigado.
Clara deu voltas à cabeça. Conhecia bem o Luís. Era muito seu amigo. Devia ser uma daquelas coisas a passar-lhe pelos miolos. Andava há anos a tentar casá-la com os amigos disponíveis, nem sempre de boa qualidade, ao menos para esse efeito. Se calhar era mais uma luísada, como ela chamava às intentonas matrimonias que o amigo, volta e meia, tinha para com ela.
No início da tarde prestes a ir para o gabinete, tinha de se despachar rapidamente. O trânsito piorava consideravelmente à sexta-feira se não quisesse chegar a horas indecentes para começar a trabalhar.
Já no escritório, falou com o Diogo sobre o telefonema.
E tu não sabes quem é?
Não faço a menor ideia! – respondeu Clara.
Não será outra vez o homem da missa do sétimo dia do pai dele?
Não! Esse chama-se Olegário.
Liga ao Luís e pergunta-lhe.
Não vale a pena. Um dia destes encontro-o e ele diz-me - respondeu, saindo do gabinete de Diogo.
A seguir, Clara preparou algumas coisas para a semana seguinte. Na segunda-feira tinha de assinar a documentação da Isabel. Segurança social e seguro. À tarde teria de estar por ali. A rapariga pedira-lhe para sair às quatro horas pois tinha uma consulta para o filho, no pediatra, ao fim da tarde.
Com as remodelações no gabinete, depois do expediente, durante os dias da crise, Clara e Diogo há muito não tomavam a bica do fim da tarde na cozinha. Hoje, estava com saudades de saborear um bom café com o colega, depois do expediente.
Às dez para as seis, Diogo bateu à porta.
Estás disponível para a nossa bica?
Claro que sim.
Desceram ambos. Como habitualmente, foi Clara a preparar os cafés, sentando-se, entretanto, cansados, nos dois sofás.
Então, já descobriste quem é o César Augusto?
Agora que perguntas, ocorreu-me de repente... É capaz de ser o director da fundação!... Hoje à noite vou ligar à Catarina e ao Xavier. Talvez eles se lembrem do nome do homem.
Ficaste toda entusiasmada com ele – disse Diogo.
Nem por isso! Apenas o achei bonito, mais nada. Não me despertou um interesse por aí além. Mas, depois digo-te...
No mínimo, deve estar disponível!...
Se fosse casado o Luís certamente não o encaminhava para mim. Essa garantia, ao menos, eu tenho!.. – e riram ambos.
Bom. E se fôssemos andando?
Vamos lá.
Fecharam juntos a porta e despediram-se. Clara, mal entrou no carro, pegou no telemóvel e ligou à Catarina. A amiga atendeu logo.
Olá, Catarina! Onde estás?
A chegar a casa. E tu?
A sair do gabinete! Imagina a causa do meu telefonema!
Não imagino, não!
Sabes quem me ligou hoje?
Também não!
Foi o Luís Medeiros.
O que é que queria?
Não falei com ele. Foi para o escritório. A Isabel atendeu-o. Hoje não fui trabalhar de manhã e ela ligou-me para casa a dar o recado.
Mas que recado era esse? - perguntou Catarina curiosa.
Antes disso: tu sabes como se chama o director da fundação onde fomos ao concerto?
Não me lembro!
O Luís deu à Isabel um número de telefone e disse para eu ligar para o dr. César Augusto...
Olha! É mesmo esse nome. É um bonitão! Vale a pena, não é como o Olegário. Atira-te, mulher!
Tu sabes que os homens feios nunca se interessaram por mim... Só os bonitos. E deste eu tenho bastante medo. Parece-te que se ele valesse a pena estaria aqui agora à minha espera? Devia estar era casadinho da silva!...
Ó Clara, não penses assim! Tu és muito interessante! E por muito bom que ele seja, tu hás-se ser sempre muito melhor! Não sejas pessimista. Não há como tentar...
Está bem. Quando estiver com o Luís, pergunto-lhe.
É melhor. Queres vir cá jantar a casa?
Não, obrigado. Venham vocês à minha. Tragam as miúdas.
Vou falar ao Xavier. Quanto à Sílvia e à Joana, acho que preferem os amigos delas.
Está bem. Depois liga-me. Entretanto vou ao hipermercado. Até logo.
Clara já tinha mais umas luzes sobre o tal César. Mesmo assim, resolveu ligar ao Luís. Aproveitou a embalagem.
Luís?
Sim, Clara. Recebeste o meu recado?
Recebi e fiquei bastante surpreendida. Quem é o César Augusto?
É o director da fundação onde fomos ao concerto. Ele simpatizou muito contigo.
Não me digas!.. Conhece-lo bem?
Conheço. É muito bom tipo. É divorciado e vive com a mãe. Além disso parece um artista de cinema. Por esse lado ficas muito bem servida... Também não fuma. Não se lhe conhece qualquer vício...
Ah! Então é menino da mamã! Não será um mulherengozito? Ou então um menino de coro...
Não lhe conheço essas facetas...
Sabes que não tenho muita sorte com o bicho homem. Basta lembrares-te do meu casamento. O desgraçado bem tentou. Mas, ele gostava era mesmo de gajos.
Também não há-de ser sempre assim. Quando é que apareces? O César vai passar a enviar convites para os concertos.
Sendo assim, está bem. Vamos passar a ver-nos mais vezes. A Manela e os miúdos?
Estão óptimos.
Bom. Obrigado, seu casamenteiro de meia-tigela! És mesmo parecido com o teu pai - brincou ela.
Quem sai aos seus não degenera - acrescentou Luís, rindo.
Dá um beijo à Manela e aos miúdos. Um dia destes vou lá a casa.
Telefona. Um beijo.
Outro para ti.
Clara estava finalmente documentada, contudo fez ainda outro telefonema.
Olá, Diogo!
Clarinha! Mas que surpresa! A Isabel não foi embora pois não?
Não! Está descansado.
Então, já sabes quem é o César Augusto?
Já! Sempre é o homem da Fundação!
E tu?
Estou com um bocado de medo. Que é que tu achas, Diogo?
Olha, Clarinha. Não podes fechar-te toda a vida numa redoma... A vida é um risco...
Tu sabes que eu sou uma eterna romântica e tenho um enorme cagaço de sofrer...
Também, se não fores à luta nunca saberás quem ele é...
E se me sai uma peste pior do que os outros? A única coisa boa é que não fuma, disse-me o Luís.- prosseguiu, rindo.
Clara! Clarinha! Só saberás se ele é bom ou mau através do contacto pessoal. Não lhe podes fazer um raio x à alma!...
Tens razão. Quem dera que inventassem um aparelho para isso...
Mas, conhecendo-te como te conheço, sei que vais tentar...
Só se me prometeres que me deixas chorar no teu ombro caso venha a precisar. Não será melhor deixar de fumar também?- acrescentou, com ironia.
Se calhar, é. Pelo sim pelo não...Não disse um abstémio de tabaco que beijar uma mulher que fume é como lamber um cinzeiro?!...
Tu fumas muito mais do que eu. Vamos tentar ambos?
Não posso perder todos os vícios - retorquiu Diogo, rindo. - Tenta tu. Aliás, já estiveste anos sem fumar.
E posso muito bem abster-me do cigarro de novo. Não prometo é que seja definitivamente. Definitiva só mesmo a morte. E mesmo quanto a ela, há quem diga o contrário...
Se acreditarmos nas teorias sobre a ressurreição...
A Ivone está aí?
Está - respondeu.
Dá-lhe cumprimentos meus. Felizmente ela não é ciumenta. Bom. Obrigado e até segunda-feira. Faz o favor de ter um bom fim-de-semana.
Tu, também!
Após o telefonema Clara pensava: Andava a fumar tanto. Seria bom pôr de lado o tabaco. Mas, por agora, iria acabar de fumar o maço praticamente inteiro. Depois se veria. Não era nada do outro mundo. Pelo menos dava para fazer uma pequena limpeza aos alvéolos pulmonares e depois um vício pode ser substituído por outro, nem que seja o de mastigar ciclets.
Catarina ligou a seguir. Afinal não podiam ir jantar a sua casa. O Xavier tinha um compromisso para aquela noite. Ia encontrar-se com uns colegas da Faculdade de Engenharia. Todos os anos se reuniam para confraternizar, tal como fazia com os rapazes da companhia da tropa, desde que vieram de Angola. Já lhe tinha dito. Só que ela não se lembrou de imediato.
A semana decorreu sem problemas de maior e na terça-feira seguinte Clara tinha de ir à missa de sétimo dia do Manel. O querido amigo Manel a quem a morte surpreendera estupidamente na semana anterior se que ela o tivesse sabido. Lembrava-se dele com enorme carinho. Das suas confidências também e de como ele gostava de ir namorar com a Júlia, para as Berlengas. Agora, tudo pertencia ao passado e a Júlia estava irremediavelmente privada das loucuras do Manel. Pensou em César e desejou que ele se parecesse com o amigo acabado de ingressar noutro reino. A igreja ficava perto das alamedas. Mas, não seria socialmente incorrecto procurá-lo?
Hesitou por momentos. Decidiu-se por fim. Cerca das três horas estacionava o Golf preto à porta da fundação.
Subiu as escadas e no átrio perguntou ao funcionário se o dr. César Augusto estava.
Quem devo anunciar?- perguntou o homem, ao pegar no telefone.
Clara Correia Guedes.
Pode subir, por favor – respondeu, depois de um curto contacto telefónico. - Sabe onde é o gabinete do dr. César Augusto?
Não.
Então, suba estas escadas - dizia o funcionário, apontando-lhas. - Lá em cima vire à esquerda. A última sala é a dele.
Afinal, o visitado sempre se lembrava de si. Felizmente!- pensava. De contrário estaria a fazer um ridículo papel.
Em frente um do outro cumprimentaram com um aperto de mão, cerimonioso.
Clara teve uma sensação estranha. Não se lembrava de ter visto aquele rosto alguma vez. Diáfono e quase efeminado, parecia ter sido retirado de uma brochura de santos, daquelas usadas pelos pintores de quadros no chão das ruas e cujo destino da obra é ser borratadamente apagado pela chuva e pelas pegadas dos transeuntes. Não sabia que idade atribuir-lhe. Era um rosto indefinido, sem tempo nem espaço. Parecia um ser de outro mundo, se calhar melhor do que este- pensava, com expressão mal disfarçada do mais puro e genuíno espanto.
Sente-se - disse o anfitrião ao mesmo tempo que lhe apontava uma das duas cadeiras à frente da secretária.
Na qualidade de visitante tentou iniciar uma conversa de circunstância, iguais a tantas outras de pretextos idênticos.
Nunca tinha estado neste edifício antes do concerto. É muito bonito.
Um destes dias mostro-lho.
Já vejo que trabalha com muitos papéis. Gerir uma fundação deste tipo implica também o conhecimento de legislação muito específica...
É verdade.
E tem muitos problemas por aqui?
Bastantes. Às vezes é preciso ter nervos de aço. Sobretudo com o pessoal...
É economista?
Não. Sou licenciado em Direito.
Desculpe perguntar-lhe. O Luís disse-me isso...
Não. É Direito..
Em que Universidade andou?- indagou lembrando-se de alguns colegas com aquela licenciatura tirada na velha Coimbra.
Em Lisboa. Depois fiz uma pos-graduação na Sorbonne. Já a Clara, é psicóloga...
Sou.
E gosta do seu trabalho?
Gosto. Às vezes tenho alguns problemas. Mas, é como em tudo na vida...
Estava na hora de tirar da manga o assunto que a levara até ali. Ele era certamente inteligente para o entender como tal, principalmente devido à sua actividade ligada ao mercado laboral. Mas, agora, já não podia voltar atrás.
Deve estar intrigado com a minha vinda aqui...
Não. Recebo muitas visitas... - respondeu César.
Hoje tive de vir aqui perto à missa de sétimo dia de um amigo meu, jornalista, e resolvi vir procurá-lo.
Vi no jornal. Tinha 46 anos...
Era uma pessoa como há poucas... - disse emocionada.
E depois de recomposta, continuou.
Além disso tenho algo a pedir-lhe...
Diga lá... Se eu puder...
A namorada de um primo meu, recém-licenciada em relações públicas, anda à procura de um local para estagiar. Lembrei-me de si...
Fez bem. Tem o currículo dela consigo?
Não. Sinceramente, hoje, o meu objectivo era apenas a missa do meu amigo.
Então, mande-mo, ou venha cá trazê-lo.
Não queria incomodá-lo muito...
Não incomoda, de todo. Tenho muito prazer em recebê-la Depois, podemos ir tomar um café ou ir ao cinema. Não hesite.
Então, talvez na terça-feira passe por cá outra vez...
A conversa tinha apesar de tudo, adquirido um tom bastante intimista.
No final, mal as reservas de palavras se esgotaram ele foi levá-la à porta, despedindo-se, de seguida, com dois beijos.
Obrigado e desculpe a ousadia.
Não tem de quê. Venha de novo – insistiu.
Saiu seriamente agradada. Há muito tempo que nenhum homem a convidava para ir ao cinema. Ele parecia realmente uma pessoa extraordinária. Daquelas por quem não viria mal ao mundo. Além disso fôra o Luís a apresentá-lo. E Clara agitava, assim no ar, a garantia que o amigo parecia representar.
Já na missa do Manel lembrava-se, de vez em quando, de César e uma estranha sensação percorria-a de alto a baixo. Contudo, não se eximia a ela, certa de que as coisas, por mais incompreensíveis que sejam, têm de percorrer o seu próprio caminho.
No dia seguinte, pelo correio, apressou-se a enviar o currículo da rapariga. Deu também os seus contactos telefónicos.
Em casa, depois do trabalho, pensava nele.
- Meu Deus!.. Que rosto!... – dizia alto. Não se lembrava minimamente dele. E mesmo agora tinha medo de não o conhecer se o visse na rua. Iria fazer uma péssima figura se isso acontecesse, mas, sempre haveria uma forma qualquer de disfarce, capaz de impedir tamanho desconforto.
Quinta-feira à noite, já dois dias tinham passado sobre o encontro, quando o telemóvel tocou. Não conhecia o número. Contudo, rapidamente reconheceu a voz de César.
É você? Já vejo que recebeu a minha carta...
Recebi sim. Está tudo bem consigo?- perguntou ele.
Está, obrigado. Não sei se lhe disse. Vou mudar de casa
Não. Não me disse. Vai para onde?
Vou para Lisboa, na zona de Benfica. Sempre fico mais perto do escritório.
Muito me conta!
Ando atarefadíssima a embalar as traquitanas.
Se quiser ajuda...
Não, obrigado. O que vai fazer este fim-de-semana? –perguntou.
Vou à aldeia e ao Porto, para ver os miúdos! Vou lá quase semanalmente. Em Lisboa, isto fica muito aborrecido. Aliás tenho uma casa em Esposende. É lá que fico com os garotos.
Faz tempo que não vou à minha. É muito longe...
Bom. Quando regressar, telefono-lhe.- desculpou-se ele, após a conversa que se prolongou por uma boa meia hora.
Obrigado. Já vai desligar?
Tenho umas coisas a preparar. Depois, conversamos com mais tempo. Ligo-lhe segunda-feira à noite.
Está bem. Até Segunda. E obrigado, mais uma vez...
Não lhe tinha dado qualquer contacto a não ser o da fundação. A partir de agora sentia-se com legitimidade para lhe ligar para casa. Afinal, o número ficara guardado e indiscreto, no telemóvel
Clara mudou-se durante a semana seguinte, ajudada pelo Diogo e por uns amigos dele e Lisboa prometia ser para ela uma aproximação de César, que, no íntimo, começava a desejar.
O mês de Junho, no gabinete, era já um bocado morto em termos de trabalho. A actividade consistia praticamente na realização de testes de orientação vocacional feitos aos alunos, na hora de escolherem as áreas académicas onde deveriam ingressar.
Na terça-feira, algo timidamente, Clara voltou à fundação. Chegou cerca das cinco da tarde, com a esperança de que César a convidasse para irem ao cinema. Depois de o homem da portaria o ter contactado, César mandou-a subir logo e, depois de uma curta conversa, com aqueles lábios finos numa boca pequena onde lhe dançava um sorriso sedutor, perguntou:
Vamos tomar uma bica?
Está bem - respondeu.
Dirigiram-se às Docas e já numa esplanada aprazível, César tomou uma bica e Clara uma água das pedras fresca, cujo tempo de beber prolongou, com prazer. Inicialmente a conversa adquiriu um rumo social. Falaram de astrologia, de tudo um pouco. Clara nem sequer ousou tocar num cigarro depois de César lhe ter dito que o fumo o incomodava bastante devido à sua bronquite asmática, além de que ele, com a sua cara de santo, parecia um homem que nunca padecera de um vício, nem sequer em tentação. Eram já seis e meia, sem ela se ter dado muito conta do decorrer das horas. Foi César, atento, que a despertou do seu esquecimento do mundo.
E se fôssemos embora? - perguntou ele, enquanto num gesto amplo tocava a perna direita de Clara, sentada ao seu lado esquerdo.
A mente da mulher registou o facto, sem saber como interpretá-lo. Não sabia muito bem porquê. Conhecia-o há pouco mais de três semanas, ou talvez nem tanto. Mas ele tinha um olhar tão cândido...Deveria ser somente isso. Um gesto amplo sem qualquer significado... A seguir entraram no carro de César depois de ele lhe ter aberto a porta já que o de Clara tinha ficado na fundação. O caminho de regresso ao ponto de partida não lhe parecia bem aquele. Não quis, contudo, intervir. O tempo estava agradável, a companhia era simpática e o percurso de volta não fazia grande diferença.
Há quanto tempo está na fundação? – perguntou.
Há seis anos.
Clara tentava adivinhar a personalidade daquele homem. Parecia-lhe muito introvertido e tímido. Ela, na sua qualidade de convidada, sentia-se na obrigação de criar conversa e o trabalho é sempre um motivo com pano para mangas..
Sabe que quando o vi na fundação imaginei-o casadíssimo.
Não sou. Já fui...
Mas, as mulheres não o devem largar...
Às vezes acontece-me cada peripécia que nem imagina... Tenho de tomar providências drásticas por causa disso...
Como, por exemplo!?
Olhe. Há tempos, veio aqui uma francesa para me ver. Nem avisou nem nada. Sabe o que é que eu lhe fiz?
Não faço ideia...
Fui levá-la ao avião e disse-lhe para nunca mais repetir. Ficou furiosa.
Claro – defendeu, rindo. - Então faz uma mulher tantos quilómetros e no fim é tratada dessa maneira... Isso faz-se...
Às vezes temos de ser duros para nos protegermos... - respondeu César, aparentando alguma segurança.
Pensou: parece saber o que quer. Não deve ser nenhuma Maria que vai com as outras e esse facto deu-lhe uma certa tranquilidade.
E a sua família?
Vive na região de Paris...
Ela já sabia através do Luís, da morte do pai. Olhou para o homem de óculos escuros sentado ao volante. Tinha um ar de aristocrata. Imaginou logo os familiares a viverem numa enorme mansão parisiense e sentiu-se pequenina, com a sua origem transmontana humilde. Mas, que diabo! Era uma pessoa relativamente culta, com traquejo social- pensou. - Então aguentou-se nas canetas para o que desse e viesse.
E a sua? - perguntou César.
Os meus pais já morreram. Tenho irmãos que vivem no Porto. E você, tem irmãos? – continuou ela.
Tenho! Duas irmãs mais velhas.
Você vive com a sua mãe. O Luís disse-me isso...
Às vezes. Quando ela vem de Paris. A maior parte do tempo vivo sozinho.
Como escreveu Vera Lagoa, há pessoas que já nascem sozinhas. Você é uma dessas pessoas?
Não. Se bem que, nas grandes decisões estamos sempre sozinhos, como disse a embaixadora de Israel na altura da guerra do Golfo...
Pareceu-lhe ver alguma pontinha de tristeza nas palavras dele. Possivelmente estaria a referir-se ao seu divórcio cujas causas não conhecia. Depois, Clara continuou, filosofando:
Mas, a maior obrigação do ser humano é ser feliz...
Ao menos tentar...- retorquiu César.
Você é divorciado. Já sei que tem filhos.
Tenho dois. Uma rapariga e um rapaz.
Como é que se chamam?
Denise e Rodolfo.
São nomes bonitos. Moram no Porto, já me disse. Que idade têm eles?
A Denise tem catorze e o Rodolfo onze. E você?
Fui casada, mas correu mal. Não tive filhos, felizmente.
Felizmente, porquê?
Porque as crianças para serem felizes precisam de um bom pai e de uma boa mãe ao lado.
Não sei se tenho sido um bom pai...- retorquiu César.
Teve ao menos uma boa relação com os seus?
Tive. Eles esperaram que eu fizesse a quarta classe para irmos para Angola.
Então deve ter boas recordações daquela terra. Tenho amigos nascidos lá e eles têm muitas saudades daquilo.
Tenho algumas...
César parou finalmente o carro na zona de Telheiras.
Moro aqui.
Vai buscar qualquer coisa. Talvez um casaco- pensou, ao vê-lo desde início em mangas de camisa.
Quer subir?- perguntou ele, seguidamente.
Está bem...
Clara olhou para o prédio. Tinha muito bom aspecto. No terceiro andar, à varanda, estava uma senhora idosa. Mirou-os a ambos com curiosidade. Depois, foi buscar qualquer coisa dentro. Pareceu-lhe ser um caderno e uma esferográfica.
César tinha um sotaque qualquer. Ainda não o conseguira identificar, embora também se esforçasse por falar sem qualquer acento lisboeta.
Onde é que nasceu?
Numa aldeia perto de S. João da Madeira. E você?.
Sou transmontana. Nasci numa aldeia chamada Vilarinho de Cima. Como é que se chama a sua?
Rio Limpo.
E a terra condiz com o nome?- brincou.
Mais ou menos.
Subiram juntos no elevador do prédio de sete andares até ao segundo, onde César vivia a sua condição de homem solitário. A casa tinha um átrio à entrada onde se via uma mesa, do lado esquerdo, sobre a qual ele colocara o telefone e alguns objectos decorativos. Uma porta dava para a cozinha e outra, envidraçada, para a sala.
Vou mostrar-lhe o resto da casa.- E, seguindo por um corredor, apontou um primeiro quarto. Do outro lado havia duas casas de banho. Ao fundo, uma outra divisão mais pequena, funcionava como escritório. Clara reparou numa colecção de livros de Jorge Luís Borges. Olhou para outros e comentou:
Jorge Luís Borges. Muito bom. O eterno candidato ao Prémio Nobel da Literatura sempre esquecido pela Academia Sueca, como ele dizia.
Está escrito em espanhol. Aliás, leio bastante em espanhol.
Clara estava impressionadíssima, pensando entretanto:
- Deve ser um homem muito culto.
Finalmente mostrou-lhe o quarto dele e ficou espantada com a decoração. Sobre uma cómoda e pendurados na parede, havia imagens de cinco cristos pregados na cruz, da mesma forma como o verdadeiro Cristo, há cerca de dois mil anos, fora crucificado em Jerusalém. César, ao ver a cara dela apressou-se a elucidá-la:
Este é o meu lado místico...
Porquê? Teve algum acontecimento especial na sua vida que o inspirasse para este tipo de coisas?
Não! Apenas os compro.
Clara ficou-se por ali. Era mais uma coisa a atestar num tipo de sensibilidade diferente do habitual e que ela ainda não tinha dados suficientes para interpretar correctamente. Depois, foram para a sala, decorada, entre outras coisas, com um sofá azul grande. De ambos os lados do sofá existiam duas pequenas mesas. Na do lado direito havia duas fotografias de um rapaz e de uma rapariga. Na outra via-se uma foto de César segurando um ramo de flores. À frente do maple grande havia uma mesa de vidro com algumas revistas e, encostados à parede frontal, repousavam livros numa enorme estante, colocada ao lado de um porta-cd, perto da televisão. A sala tinha duas enormes janelas e uma pequena porta dava acesso a uma varandinha. Por fim, perto das janelas, existia outro sofá individual. Foi nele que Clara ficou enquanto César se sentava no grande, depois de ter aberto as persianas que deixaram entrar os raios de sol do fim daquela tarde dourada.
Quer tomar alguma coisa?
Só se for um sumo.
César foi à cozinha e trouxe uma garrafa e dois copos. Enchendo-os, deu um a Clara.
Está calor – disse, desabotoando os primeiros botões da camisa. - Não quer pendurar o seu casaco?
Sim – respondeu, tirando-o e entregando-lho. - Depois, ele foi colocá-lo no bengaleiro do hall de entrada.
Sentou-se de novo, continuando a beber o sumo. Clara levantou-se. Foi ver as fotografias de dois miúdos que os observavam silenciosamente.
São os seus filhos?
São.
São muito bonitos.
César sorriu, com o elogio sem proferir qualquer palavra, enquanto Clara se dedicava a uma observação mais atenta. Por cima do sofá estava colocado um quadro de pintura abstracta, em tons de verde e em alto relevo, feito com materiais pós modernistas. Reparou também na assinatura, bastante legível – Clara – aposta no canto inferior direito e disse:
Tem aqui um quadro com o meu nome! Não fui eu que o pintei, asseguro-lhe! - brincou.
Comprei-o na Bienal de Cerveira ainda antes de vir morar para esta casa.
É bonito. Há tempos conheci uma professora de desenho. Também pintava e por sinal era daquela zona.
Se calhar é a mesma - respondeu César.
Talvez. Só a vi uma vez.
A mulher olhava para aquele homem de rosto angelical que lhe começava a inspirar uma ternura quase maternal. As mulheres deviam apaixonar-se muito por ele. Pedia uma espécie de protecção, a mesma que ela já começava a votar-lhe, tratando-o quase como se César fosse uma flor de estufa que não devesse apanhar as agruras do inverno. Quase logo ele ligou a televisão onde uma apresentadora jovem e bonita tentava fazer humor num programa popular.
Não gosto nada desta rapariga- disse. - É uma idiota.
Clara também não gostava muito dela. Contudo nunca pensara na rapariga como César acabava de a designar. Para si, era apenas parva. E a palavra idiota na boca de dele ganhou um novo significado.- Idiota é muito forte - dizia interiormente. - Redunda quase em ser-se atrasado mental. Não deve gostar de mulheres muito jovens- pensou então, com uma certa tranquilidade. Afinal, já tinha trinta e oito anos.
Passados uns instantes, César mudou de canal. Agora era um programa sobre cobras. Acabou por aí o zaping.
Não gosto desses bichos - disse Clara.
Porquê?
Primeiro porque são rastejantes e eu detesto tudo que rasteja. Segundo porque grande parte delas são venenosas apesar de bonitas. Você gosta de cobras?
Gosto. Para mim representam muita sensualidade. Mas não me pergunte porquê. Não saberia responder-lhe...
Será pelas cores?
Talvez. Não sei...
Já agora, qual é a sua cor preferida?
Vermelho.
Vermelho é o símbolo do fogo e do sexo...
E a sua? – perguntou-lhe ele, de seguida.
É o amarelo, o símbolo da espiritualidade. Depois é o branco que é paz, bondade... Finalmente o preto, o mistério...
Já reparei. Veste-se muito de preto...
É verdade. Já me disseram que tenho uma aura bastante branca. O preto contrabalança as coisas. Com o preto sinto-me brilhante, ou como diria o Herman José, éclatante.
César riu-se, enquanto Clara se lembrava da senhora de vestido vermelho. Estava no concerto no dia em que o conhecera. De repente teve uma intuição verbalizada interiormente: Este homem deve ter andado com todas as mulheres perto de si. Normalmente, devem ser elas a aproximarem-se... Não sei porquê, aquela senhora deve ter sido uma delas...Repentinamente ele levantou-se e foi até ao sofá dela. Pegou-lhe nas mãos. Naquele primeiro dia Clara não estava nada à espera daquilo e afastando-o, foi sentar-se no outro sofá.
Já lhe devem ter dito muitas vezes que você é um homem bonito...
Deu uma gargalhada enquanto respondia.
Já.
E um homem como você não tem uma namorada?
Vivo só. Mas, às vezes... Não sou santo...- disse, enquanto se aproximava de novo de Clara, tentando beijá-la.
Clara pensou nos homens tímidos e nas coisas brutas que às vezes faziam coisas com medo de perderem mais uma oportunidade. Talvez fosse o caso. E não deixou passar a oportunidade de lho perguntar:
É muito tímido ou muito mulherengo?
Nem uma coisa nem outra. Mas, porquê?- interrogou também. - Nunca me colocaram tal questão. Uma coisa é certa: nunca dou o primeiro passo.
É que às vezes as pessoas fazem as mesmas coisas por razões diferentes. Pode passar-se algo semelhante consigo. Não será melhor conhecermo-nos um pouco melhor? Além do mais não quero sofrer outra desilusão...
Já teve assim tantas?
Algumas...
Esqueça isso, agora - e insistia.
Clara estava fragilizada. Havia mais de três anos que não sabia como era o beijo de um homem. Deixou-se ir na onda. Se calhar estava mesmo ali a sua alma gémea. Valia a pena tentar. Foi ela quem mais o beijou. Na boca, nos olhos, por todo o rosto, experimentando a melhor sensação da sua vida. César começava a tocar-lhe no peito. Ela impedia-o afastando-lhe a mão. Sentia-se virgem outra vez e queria conservar esse estado. Se não houvesse mais nada entre ambos isso já lhe chegava.
Não vamos fazer nada que você não queira...E não estou propriamente a fazer uma violação... – disse César a dada altura, soltando uma gargalhada característica de quem nada tem para dizer.
Tem razão. Mas eu não quero...
Eram cerca de oito da noite. Clara ficara com fome, no meio daquela fartura de beijos inesperados.
Porquê? Não me diga que está nos seus dias críticos...
Para quem era tímido como ela julgava esta era uma boa pergunta.
Não. Talvez noutra altura. Hoje, não...- disse, peremptória. Vamos jantar fora se quiser! De outro modo, vou-me embora!
Como queira - respondeu ele, com um ar quase indiferente.
Saíram no carro de César, já que o dela havia ficado na fundação, traído e abandonado por uma promessa de romance decente, bem diferente dos que lhe haviam batido à porta.
Gosta de comida chinesa?
Gosto - respondeu Clara.
Durante o caminho, falou-lhe da situação que acabara de viver no gabinete, com o despedimento de Sónia.
Detesto pessoas desonestas e com falta de sensibilidade. Sabe? Tenho uma personalidade muito versátil. Às vezes comovo-me com situações que não lembram ao diabo. Mas, quando me magoam sou eu o próprio diabo. Só têm de me dizer as coisas! Boas ou más. Agora quando mas impingem sem me darem hipótese de escolha, fico nas horas...
Também sou assim. E se quer que lhe diga penso que não vale a pena ajudar ninguém. Há algumas pessoas muito mentirosas - dizia César. - E as que inventam ? Sabe? Morei no Porto quando me casei. Há uma expressão deliciosa sobre esse tipo de gente...
E qual é? – perguntou Clara.
Essa vai no Batalha...
Ah! Eu sei. Também morei no Porto enquanto tirei o curso. Essa frase já está elidida. A completa é: essa vai no Cinema Batalha, cinema que agora já não existe.
Pois não - retorquiu César.
Porque complicará esta gente tanto a vida?- perguntava Clara, mais como quem medita do que esperando propriamente resposta. - Se se lembrasse de que um dia vai morrer e apodrecer debaixo da terra... E mais... Se pensasse nos bichinhos contidos no seu corpo como os próprios comedores e não qualquer minhoca estrangeira que só está ali pela contingência de ser minhoca, talvez as coisas fossem diferentes...
Nada há a fazer- anuía César.
Tem razão. Pode-se lá pedir a uma árvore que não deixe rebentar as folhas na primavera e que não as deixe cair no outono?!...
A propósito - pergunta César.- Sabe a história do lacrau e da rã?
Sei!
Pois é! É a minha natureza...
Do lacrau, quer você dizer...
Claro...
Relembrou a fábula:
Um lacrau, querendo atravessar um ribeiro, pediu boleia a uma rã. Esta, conhecendo os instintos maléficos do bicho, foi-lhe pedindo:
Ó lacrau, não me ferres, pelo amor de Deus...
Não! Ia agora ferrar-te quando me ias fazer um favor! Além disso se me deixasses nesta margem morreria afogado!
Tens razão. Desculpa- respondeu a rã, totalmente confiante.
Vá! Sobe lá para as minhas costas!- ordenou a rã, em tom amistoso.
Após a travessia e já no outro lado, o lacrau deu a picada fatal na bondosa criaturinha enquanto assinava também a sua própria sentença de morte. Ela, moribunda e com uma vozinha débil de quem vai deixar o mundo predador, criticou-o:
Ó lacrau! Prometeste que não me ias fazer mal...
Ó rãzinha. Então... é a minha natureza...
Clara associou a história à Sónia, pensando intimamente:
- Ninguém pode dar mais do que aquilo com que nasceu.
Chegaram, finalmente, ao restaurante numa rua perto da Duque de Loulé. Não atinava lá muito com aqueles nomes chineses, apesar de gostar da comida. Foi César quem escolheu. Entretanto iam falando do que cada um gostava ou não.
Não vou lá muito com enchidos. Para salsichas e coisas do género não me convidem.
Gosto de quase tudo - dizia ela.- A única coisa de que não gosto é de leite.
Mas, do meu vai gostar...– insinuou, maldoso.
Não achou qualquer piada à observação e desviou a conversa, lucubrando:
- Não estarei eu a ser demasiado puritana? Afinal todos nós temos direito a uns instantes de mau gosto. Não escolheu muito bem a hora, mas
Por fim, vieram os pratos e os dois iniciaram a refeição. César fazia imenso barulho ao mastigar e, além disso batia exageradamente no prato com os talheres enquanto Clara reflectia intimamente que afinal os familiares parisienses não passavam de emigrantes. Os princípios dele tinham sido tantos como os seus. Só que ela deixara que lhe ensinassem e quisera aprender. Talvez ele não tivesse tido a mesma sorte. Se a deixasse, ensinava-o já que César devia comer muitas vezes com gente importante, por força da profissão. E lembrava-se de uma fotografia lá em casa. César estava com o Presidente da República. Não gostava de ver pessoas a fazer má figura, sobretudo fora de casa- continuava a reflexão.
A conta tinha ficado por conta de César e já no BMW preto, e logo que acabaram a refeição, ele foi levá-la ao Golf, estacionado à porta da fundação. A seguir, despediram-se com um beijo público, na noite mal iluminada, insistido pelo homem. Depois, lado a lado, nos dois carros, iam em sentidos contrários. Ele virava à direita, ela seguia em frente, lembrando- se da cena em Telheiras.
Quando em casa e já estava deitada, tentava recordar-se da cara de César. - Que coisa estranha! – verbalizava interiormente – Não consigo nem saber qual é a cor dos seus olhos. Gostou de o ter beijado apesar de intuir nos beijos algo de errado, contudo não iria magicar mais nisso. Encolheu, por isso, os ombros e adormeceu sem imaginar até onde a levaria tal história.
No dia seguinte, chegou ao gabinete cerca das dez. Cumprimentou Isabel, com um bom dia cantante.
O dr. Diogo já chegou?- perguntou, de seguida
Já. Está no gabinete.
Clara bateu à porta.
Entra, Clarinha.
Olá, Diogo! Estás bom?
Estou óptimo! E tu, já estás completamente instalada na tua nova casa?
Faltam-me ainda umas coisinhas. Mas, isso há-de ir devagarinho.
E de resto?... Estás com uma cara diferente, mais radiosa...
Fui jantar com o César.
E então?
Dioguinho! Não sei. Dá-me mais um tempo. No mínimo, três meses. É o prazo de que as relações precisam para se definirem. Ou sim, ou sopas. E por aqui? O que temos hoje?
Temos as férias a aproximar-se e a quebra própria desta época.
Eu tenho mais uns testes de orientação vocacional para fazer. Nesta altura ninguém contrata quem quer que seja.
Este fim-de-semana vais estar com o homem?
Não. Ele vai ao Porto ver os miúdos. Apetece-me ir ter com uns amigos a Leiria. Têm lá uma casa muito bonita e uma quinta com cavalos, embora, como sabes, eu não perceba nada de equitação. Mas gosto dos bichinhos. São mais inteligentes do que alguns homens...
Então, diverte-te!
Saíram cerca das seis horas depois de um dia de trabalho pouco movimentado e à noite, Clara ligou à Luísa.
Estou!
Sim, Maria Clara!
Era a Raquel, filha da Luísa. Conhecera-a tinha ela quatro anos e agora com vinte e poucos usavam destas intimidades. Tanto a mãe como a filha eram suas confidentes e vice-versa. Raquel era uma garota com uma sensibilidade espantosa, com quem era capaz de enveredar pelas mais diversas confidências.
A tua mãe está?
Está sim, Maria Clara! O que queres?
Quero ir passar o fim-de-semana convosco. Pergunta-lhe se posso. A propósito, o que é que ela anda a fazer?
A regar o jardim! Ó mãe! – chamou alto. - A Clara vem cá este fim-de-semana!
A resposta da amiga foi de assentimento.
Quando é que vens? – pergunta Raquel.
Sexta-feira, depois do expediente.
Então, despacha-te e vem fazer o jantar - riu Raquel.
Clara não se importava. Gostava imenso de cozinhar. E para ela própria fazia-o tão pouco... não que não fosse até um bom garfo, mas os desacompanhados, muitas vezes descuravam essas tarefas. Além disso, havia a silhueta que importava não engrossar demasiado.
Até Sexta... Beijinhos...
Logo que saíra de casa, de manhã, levou o saco de viagem consigo. As suas calças tipo cavaleiro também. Iria ela montar desta vez o Pagem? O Ricardo já tinha tentado ensinar-lhe. Mas, uma vez em criança tivera tanto medo quando experimentou que jurou nunca mais na vida se meter naquelas andanças de amazona sem vocação.
Deixou o gabinete eram mais ou menos quatro horas da tarde. O trânsito era o mesmo de sempre. Infernal. Pôs uns pózinhos de paciência na cabeça e lá o venceu. Eram vinte para as cinco quando conseguiu sair de Lisboa e demorou hora e meia a chegar. Felizmente nos arredores de Leiria ainda havia lugares de sobra para estacionar. Já m frente à porta do jardim premiu os números do código de abertura e entrou, enquanto Raquel a recebia, sozinha, uma vez que Luísa tinha ido às compras.
Então, Bequinhas! - cumprimentou Clara dando-lhe um abraço apertado ao mesmo tempo que lhe dava beijos semelhantes aos da infância da miúda.
Ó mãezinha para remediar! Hoje estás muito expansiva!...O que é que te aconteceu?- perguntou a garota, correspondendo inteiramente aos afagos.
Tenho imensas novidades para ti...
Conta lá isso tudo!- insistiu Becas, entusiasmada.
Conheci uma pessoa!...
Boa! E o que é que ele faz?
É o director de uma fundação. Está também ligado à música e às artes de uma maneira geral...
Como é ele?
É bonito! - respondeu Clara. - Além disso parece-me ser uma pessoa especial, embora com algumas reticências e contradições. Depois conversamos mais sobre isto. Que vai ser o jantar?- muda de assunto.
Bifes e batatas fritas.
Coisa difícil! Para isso tinha mesmo de ser eu a fazê-lo...Pensei que iria ser vitela aux champignons ou outra coisa no género.
Tu sabes como por aqui se gosta da cozinha, não é verdade? Mas a senhora Rosa deixou quase tudo tratado. Não te preocupes...
Clara não ia lá a casa havia uns tempos. Os amigos haviam-na construído há cerca de quatro anos, ainda o pai de Luísa era vivo. Situada nos arredores da cidade, tinha três pisos e um mais recuado, em cima. Aí funcionava a biblioteca e a sala de televisão, música e jogos. Sobretudo das cartas do tarô jogadas na mesa de pano verde, onde as duas costumavam rir à gargalhada com as invenções adivinhatórias que, com as cábulas à frente, faziam aos amigos pensando na infinidade de pessoas a ganharem dinheiro com patranhas idênticas às que ambas inventavam. O tarô fôra uma herança do avô de Raquel, um coleccionador de uma quantidade de coisas. Divertiam-se imenso com aquilo e os amigos, de vez em quando, ficavam até sugestionados com as generalidades ditas, tão semelhantes às dos horóscopos de diversos jornais e revistas. Acertam sempre em alguma coisa... Elas também acertavam...No piso imediatamente inferior da moradia eram as suites. Clara gostava sobretudo das salas, todas em madeira. A de estar era bastante ampla, decorada com maples brancos e uma enorme mesa de vidro. Junto à lareira, havia três cadeirões e um armário antigo. As cortinas eram bastante clássicas, às riscas castanhas e bege. Daqui, acedia-se ao escritório, a uma casa de banho, à cozinha e finalmente à sala de jantar, separada daquela por uma enorme porta de vidro aos quadradinhos. Depois, havia o jardim com a oliveira plantada à entrada do lado esquerdo. Foram os amigos do António a transplantarem-na. Dizia-se por lá que uma oliveira é um símbolo de sorte para os edifícios e para quem neles mora. O piso inferior era a zona das lavandarias e garagens.
Clara e Raquel dirigiram-se à cozinha.
Então, Clarinha? Estás apaixonada?
Não sei...
Que tal é ele?
No mínimo parece-me boa pessoa. Mas, quem vê caras não vê corações. De qualquer modo, tenho tido sensações muito diversificadas por causa dele. Algumas bem bonitas...
Tais como?...
Olha... Não sei se já leste S. Mateus quando o Anjo Gabriel apareceu a Maria a dar-lhe a boa nova do nascimento de Jesus! Ela sentiu-se escolhida! Senti-me assim também! Mas, esta não foi única! A primeira intuição foi bem diferente: Hum! Aquele homem interessar-se por mim!... Vem aí coisa grossa! Agora, optimista como eu sou, estou caminhando, caminhando... Não sei se sobre as águas se sobre o fogo!...
Becas deu uma enorme gargalhada.
Trá-lo cá a casa!...
Estás a treler, miúda! Nós ainda nos tratamos por você!...
Becas era o diminutivo de Raquel, que mais ou menos melhorado, depois, pela família, lhe fora acrescentado ao nome, por uma dislexia infantil do irmão mais velho.
Então! Esse é o jeito queque de Lisboa! Se calhar vai ser sempre assim...
É capaz...
E a tua casa nova?
Ainda faltam algumas coisas. Quando estiver mais compostinha têm de lá ir passar um fim-de-semana.
Só se formos eu, a minha avó e a minha mãe. O Gil e a Susana agora só vêem a bebé. O meu pai, o Ricardo e o Pedro, é só cavalos...
A propósito, onde é que eles estão?
O patriarca da família ainda não chegou da fábrica. A Luisinha foi às compras e perdeu-se. O Ricardo e o Pedro andam por aí na quinta!
Bom! Vamos lá tratar do jantar!
Luísa chegou pouco tempo depois, estavam as duas na cozinha.
Olha a minha irmãzinha para remediar!
E as amigas deram um abraço forte. Luísa era incrivelmente alegre e expansiva. Conheceram-se em casa da mãe dela, onde Clara esteve hospedada quando tirou o curso de Psicologia na Faculdade do Porto. Tinham imensas afinidades. Desde logo por terem nascido no mesmo dia embora em anos diferentes. E como Clara gostava muito de crianças, os quatro filhos de Luísa afeiçoaram-se incrivelmente a ela. Um dia, o Pedro, pequenito, vendo uns bonecos em cima da cama no quarto de Clara, perguntou-lhe:
- Ó Clara! Estes são os teus filhos para remediar?
Toda a gente achou enorme piada ao garoto. A partir daí, era a irmãzinha para remediar, os filhos para remediar, a mãe para remediar, tudo para remediar...
Vim à aldeia – disse. - Estou cansada de mudar tarecos.
Ah! É verdade. A tua casa.?
Não é tão bonita como a tua. Mas, hás-de lá ir vê-la daqui por uns tempos.
E o resto? – perguntou Luísa.
Tenho algumas novidades. Ficam para depois do jantar que aliás, já está pronto.
Daí a algum tempo chegou o António.
Então, Pereira! Estás bom?- cumprimentou a visitante.
É como vês! Cansado! Aquela fábrica tira-me couro e cabelo... E tu? Dás-te bem na casa nova?
Lindamente! Agora já não tenho de enfrentar todos os dias a Calçada de Carriche.
E os teus amigos de Odivelas?
Ficaram um bocado tristes. Mas, Odivelas não é assim tão longe, caramba! Além disso sempre há os telemóveis e os outros telefones, ás vezes para nos darem cabo da cabeça.
Cada vez mais – respondeu ele.
E se fôssemos jantar? – sugeriu Clara com a intimidade de quem se sente em casa. – Os miúdos já chegaram?
Estão a tomar banho. Vinham a cheirar a cavalo –informou Becas.
Então, vamos ter de esperar muito – acrescentou Luísa. - O Pedro é capaz de ficar despachado só amanhã de manhã. Com um bocado de sorte pode ser que ainda acabe hoje- continuou ela, rindo.
Finalmente o garoto desceu juntamente com o Ricardo. Clara fez a ambos uma festa no cabelo molhado, dando-lhes de seguida um beijo.
Jantaram depois e, enquanto decorria o repasto a conversa foi trivial, adiada como estava para sítio mais recatado.
Mais tarde, as três formaram o seu pequeno complôt.
A Clarinha está apaixonada !– disse Becas.
Por quem?
Por um músico, mãe!
Não é músico. É da Fundação Francisco Pinto Osório, de Lisboa. O facto de lá haver concertos de vez em quando não faz dele músico...
Como é que o conheceste?- quis saber Luísa.
Foi num concerto de música clássica. Foi mais ou menos o Luís Medeiros quem mo apresentou.
Como é que se chama? – indagou Becas.
César! César Augusto!
E é de onde?
De perto de S. João da Madeira...
Há quanto tempo o conheces?
Bolas! Isto é um interrogatório ou quê? – insurgiu-se Clara, rindo.
Claro! – respondeu Luísa rindo também. - Pensas que vamos permitir que ele te dê música?... Tem de se portar nos eixos! Senão metemo-lo em cima do Falcão a galope e ele não sabe onde vai parar!...
Riram as três.
É solteiro, viúvo ou divorciado?
Ó Becas! Francamente! Deve andar à roda dos quarenta, não sei bem. Se fosse solteiro se calhar seria bicha. Viúvo não é. Só pode ser divorciado!
E tem filhos?
Tem dois. Um rapaz e uma rapariga.
Onde é que eles vivem?
No Porto, com a mãe!
E ele não está contigo porquê?
Deve estar com os miúdos em Esposende.
Bom! Está perdoado – desculpou-o Becas, brincando.
Já passava da meia noite quando se deitaram, Clara acompanhada pelas suas recordações mais recentes.
O dia seguinte correu normalmente. À tarde foram ver os cavalos enquanto as três tagarelavam mais um pouco sobre as novidades de toda a gente.
Clara, vens preparada para montar o Pagem? – perguntou Ricardo.
Nem penses! Isso é para ti.
Anda lá. Não sejas medricas!- insistiu o rapaz, sem grande esperança.
Não, Ricardinho! Vai tu! - e Clara fez uma festa na cara do miúdo. Isto é: Ricardo tinha vinte anos. Mas quando se anda com eles ao colo são sempre miúdos.
Ricardo montou o Falcão e Pedro o Fagote. O Pagem, destinado a Clara, ficou no estaleiro. Luísa e Becas não eram muito amantes da equitação e por isso, faziam-se companhia mútua.
Por fim o domingo e a hora de regresso pelas seis da tarde, chegaram, tranquilamente.
Volta mais vezes, Maria Clara! - pedia Becas, enquanto lhe dava um beijo de despedida Luísa fez a mesma insistência. O resto do pessoal também.
Está prometido! Hei-de voltar mais! Sobretudo agora no Verão.
Clara estava de volta a Lisboa e durante toda a viagem pensou em César.Ter-se-ia ele lembrado de si durante o fim-de-semana? Já estaria na cidade?
- Vou telefonar-lhe hoje, às nove da noite. Talvez ele chegue cedo...
Mal entrou em casa, arrumou o saco de fim de semana quando já eram sete e meia. Deitou-se um pouco depois de tomar banho e pegou no livro que andava a ler: Conversas com Deus. Era um livro de reflexão espiritual que alimentava o lado profundamente místico de Clara. Ela raramente deixava transparecer isso. Só com a Luísa e a Becas. Com a Clorinda também já para não falar da D. Eugénia e, antes de procurar a página onde tinha ficado, abriu-o ao acaso e leu uma frase supostamente dita por Deus a quem o interrogava:
As relações amorosas acabam porque normalmente são começadas pelos motivos errados.
Não podia estar mais de acordo com o que acabava de ler. Realmente, algumas pessoas entram nas relações para acabarem com a solidão, preencherem um vazio. Outras fazem-no para lisonjear o seu ego, acabarem com depressões, melhorarem a sua vida sexual, recuperarem de uma relação anterior ou até para se livrarem do tédio. Nada mais real. É por isso que as relações entre um homem e uma mulher, hoje em dia, são tão pouco duradouras – pensava.
Continuou a leitura. Depois, comeu qualquer coisa e aguardou pelas nove e meia. Pegou no telemóvel e ligou a César, igualmente para o telemóvel, coma ansiedade de quem toma a iniciativa.
Estou sim!
Era a forma de ele atender.
Então. Teve bom fim-de-semana?
Tive. E o seu?
Estive em Leiria em casa de uns amigos. Já está em casa?
Ainda não. Mas quase. Daqui por meia hora estou lá. Quer ir tomar um café comigo?
Está bem – respondeu.
Então, até já.
Clara fez a maquilhagem habitual. Vestiu um fato mostarda, de calças e casaco, saindo em direcção a Telheiras. Não sabia o número do apartamento, por isso iria colocar-se num sítio estratégico por forma a ele poder vê-la, quando chegasse, se é que ele não chegava nesse meio tempo. Assim fez e, enquanto esperava, relembrava as palavras de Diogo: - Só o podes conhecer através do contacto com ele. Não lhe podes fazer um raio x à alma...
César chegou, entretanto, e viu-a imediatamente. Fez-lhe sinal e ela saiu do seu carro entrando no BMW onde recebeu um beijo na boca, mal entrou, ainda a viatura de César estava na rua. De seguida, ele conduziu até à garagem do prédio. Clara pensava: - quererá este beijo, mais ou menos público, significar intenção de compromisso sério? Antes tinha visto, de novo, a senhora do terceiro andar e desde logo concluíu que a mulher devia ser muito coscuvilheira... Já na garagem, depois de César ter estacionado, meteram-se no elevador. Ajudou-o a levar as coisas que ele trouxera da aldeia, umas alfaces e sobretudo fruta. Houve, contudo, algo que a sensibilizou bastante. Dentro de um saco plástico, César trazia uma enorme braçada de rosas.
Meu Deus - dizia Clara de si para si.- Quem é este homem? cristos, rosas...Pegou na saca das flores como coisa preciosa e subiram ambos, carregados.
Na cozinha havia uma jarra com rosas envelhecidas. César pegou nelas e deitou-as ao lixo sem cerimónia. Algumas ainda estavam bonitas. Depois, Clara, lembrando-se do tempo em que ela própria enfeitava as jarras na escola primária, começou a arranjá-la continuando a interrogar-se mentalmente:
- Será que faz o mesmo às mulheres?
O arranjo não estava ainda acabado. César, por trás, encostava-se a ela tentando desapertar-lhe a blusa e picando-se ao mesmo tempo num espinho.
Bem feito!- zombou ela- Lá diz o ditado: por mais formosa toda a rosa tem espinhos - e ria.
É verdade - retorquiu ele, rindo também e prosseguindo igualmente, a tarefa iniciada.
Clara sabia. Não iria resistir. Foram, a seguir para a sala, sentando-se, ambos, no sofá grande. César baixou um pouco a luz do candeeiro da mesa do lado esquerdo. Depois, começou a beijá-la na boca, com a camisa completamente desabotoada. Clara interrompeu-o, dizendo:
Vai ser uma inquietação...
Porquê?- perguntou César.
Começo a gostar de si e conheço-me...
César não respondeu e Clara, com os olhos fixos no rosto do homem, com ambas as mãos, tocava-o suavemente na testa, nos olhos, na boca, no peito, nos ombros. De repente, ele ficou meio assustado.
Que está a fazer?
Estou a senti-lo... – disse baixinho.- Nunca ouviu dizer que é pelas mãos que se conquista o Céu? – e continuou.
De olhos fechados César deixou-se tocar por mais alguns instantes, dizendo:
Ah!.. Que carícias boas!... Nunca ninguém me tocou assim... tens uma boca tão sensual....
A seguir, com a suavidade inicial, tocou-o de novo, invadida por uma enorme onda de ternura para com o homem de quem não conseguia fixar sequer os contornos do rosto e acariciava-o com os olhos e com as mãos como se quisesse abarcar nos seus gestos e sentidos a alma daquele homem que lhe parecia Deus. Nunca sentira nada semelhante. Bastava-lhe aquilo. Acabava de saber. Não havia mais volta. Desejava ardentemente que César fizesse amor consigo, mas estava com um enorme receio: talvez tudo não passasse de sexo puro, na maior das contradições com o que ela própria sentia. Completamente excitado e depois de um pedaço de volúpia, ele penetrou-a sem a cerimónia que a primeira vez impunha, enquanto os telefones, ora um ora outro, tocavam insistentemente. Clara não se lembrava de ter ouvido alguma vez as palavras vernáculas proferidas por César nesses momentos. O seu corpo feminino estava agora reduzido a uma parte que adquirira de repente um nome vulgar. Aquele acto não se chamava fazer amor. Foder! – dizia ele no auge do prazer. Ela era boa como o milho, enquanto silenciosamente e no mais completo estertor se esvaía no seu corpo. Sentia-se um pouco chocada com a linguagem. Em tempos já tinha falado com algumas amigas casadas sobre o assunto. Pelos vistos não era assim tão anormal o recurso à vernaculidade do vocabulário durante o acto sexual. Só que na boca de César, um homem aparentemente tão sensível com cristos no quarto e com ares de santo das brochuras dos pintores de rua, parecia-lhe uma enorme incoerência.
Você é mais bem educada – disse-lhe no fim.- Eu gosto das palavras fortes. Gozo mais. Além disso penso que se pode dizer tudo. Basta ter-se sentido de humor...
Talvez ele nunca tivesse feito amor na vida - pensava Clara. Pareceu-lhe muito experiente, tipo máquina. Isso deduziu-o durante o tempo do contacto físico. Estranhamente, ela não precisava daquilo. Bastava beijá-lo simplesmente, para que todo o corpo se abrisse em ternura e prazer. Não era César quem lho provocava. Era tudo o que havia dentro de si que o desencadeava e, de tão grande, chegava para ambos. Já ele se alimentava, não do que tinha, mas do que recebia. Era a primeira vez. Quem sabe se não conseguiria um dia ensinar-lhe a amar se por qualquer milagre César permitisse alguma aproximação.
Separam-se, finalmente. Clara queria mais um pouquinho. Um gesto de ternura, uma palavra. Porém, um certo vazio instalou-se no seu âmago. Sentia-se mais ou menos amputada com aquele homem nu de rosto angelical a seu lado que numa pressa desusada, daí a pouco lhe entregaria o relógio e os óculos. Olhava para ele sentindo um certo desconforto. O seu rosto comovia-a. Era bonito mas faltava-lhe qualquer coisa parecido com alma. Era isso que lhe queria transmitir através dos olhos e das mãos.
Talvez um dia...- convencia-se intimamente.
Quando foram tomar banho ele entregou-lhe, no fim, uma toalha com riscas vermelhas. Clara achou o cortinado da banheira muito engraçado. O desenho era um monte de biquinis de mulher, de todas as cores, formas e feitios, que assistiam, indiferentes à higiene do depois.
Pouco tempo havia decorrido quando o anfitrião do prazer a foi levar à porta e aí se despediram-se com um beijo na boca, e ele, como quem não dá beijo nenhum, mexendo apenas os lábios apressados de um sentimento que não é sentimento nenhum.
Já no carro, Clara olhou para a janela. César fôra até lá despedir-se de si, atenuando um pouco a sensação de desconforto que dela se havia apoderado.
Durante a viagem pensava: - Se calhar não telefona mais. Tem muitas coisas das quais não gosto. Mas já me disseram que sou tão exigente... Não terá chegado a hora de o ser menos e aceitar as pessoas como realmente elas são? Ninguém é perfeito, sempre ouvi dizer. Eu também não sou. Por isso continuo orgulhosamente só...
Eh... Não volta a telefonar...- E acabou por ali a lucubração.
Deitou-se, mal chegou a casa. Um sentimento de saudade adormeceu-a. Contra ventos e marés, aquele homem tinha qualquer coisa que a deixava muito comovida. Só não sabia o quê.
No dia seguinte não conseguia concentrar-se no gabinete. Iria aproveitá-lo para, juntamente com Isabel, fazer umas arrumações no arquivo.
Diogo? – chamou Clara, enquanto batia na porta do gabinete.
Entra, Clarinha.
Já se tinham visto. O colega nada lhe perguntara.
Olha, Diogo. Agora de manhã vou fazer uns arrumos no arquivo com a Isabel. À tarde vou comprar roupa nova. Estou a precisar...
Está bem. Pôe-te bonita.
À meia hora foi despedir-se.
Tinham passado uns dias. César não lhe telefonara. Clara por sua vez também não o fizera. Na sexta-feira seguinte o telemóvel tocou às onze e meia da noite. Era ele.
Onde é que você está? –perguntou enquanto disfarçava uma pontinha de emoção.
Em Madrid!
Não me disse.
Não me ocorreu. Estou aqui a tratar de uns assuntos da fundação!
Quando volta para Lisboa?
Domingo à tardinha. E a sua casa?
Já está operacional embora tenha ainda algumas coisinhas na outra. Quer vir cá jantar um dia destes?
Está bem! Diga quando.
Diga você! Para mim tanto faz.
Pode ser terça-feira?
Pode - respondeu Clara. - Do que é que gosta mais?
De tudo!
De salsichas não gosta. Isso eu sei. Gosta de bacalhau também já me disse...
Faça-me antes uma surpresa.
E se depois não gosta? Não! Vou ficar pelo bacalhau. Sabe que gosto muito de cozinhar. Como vivo sozinha faço-o pouco. A maior parte das vezes saio-me bem. Mas, há dias e dias... E no melhor pano cai a nódoa...
Bom! Esperemos então por terça para ver as suas habilidades culinárias. Até lá... E um beijinho...
Outro para si...
Clara passou o fim-de-semana a arrumar coisas. Afinal, mudar de casa era perfeitamente desgastante. Livros, roupa , louças e as velharias para deitar fora e agora, mercê da visita de César, teria de se empenhar bastante, por forma a tudo estar devidamente apresentável. No domingo de manhã foi ao hipermercado. O deus ia jantar a sua casa e tinha de se prevenir com as sobremesas, frutas e o que mais precisasse para ocasião tão especial. Na segunda à noite premiu o número do telemóvel. Ia lembrar-lhe. Sobretudo era um pretexto para falar com ele. Seriam umas dez horas quando telefonou. Não atendeu. Foi para a mensagem. Em vão. Afinal as mensagens estavam bloqueadas. Também não insistiu. Logo nos primeiros dias tinha-lhe dito que nem sempre atendia o telefone. Não lhe perguntou porquê. Não era desinteresse. Era essencialmente respeito pela privacidade dele. Passado um bocado, César ligou.
Estou!- atendeu Clara.
Há pouco telefonou-me... Vi a sua chamada. Tinha deixado o telemóvel no carro. Por isso não atendi.
Era para lhe lembrar o jantar de amanhã.
Não me esqueci.
A que horas vem?
Lá para as seis e meia. Está bem para si?
Está óptimo. Sabe a direcção?
É verdade. Ainda não ma disse...
Então tome nota. Conhece a zona de Benfica?
Conheço, claro.
Rua dos Soeiros, 1059, 7º direito.
Quer que leve o vinho?
Não, obrigado! Traga-se a si! Inteirinho de corpo e alma...
Está bem – disse, depois da sua gargalhada característica.
Então, até amanhã e um beijo!...
Dormiu bem nessa noite e de manhã pegou nas calças de ganga e numa t-shirt indo, assim, para o gabinete. Habitualmente andava mais bem vestida mas nesse dia apeteceu-lhe aligeirar. Afinal, à noite teria de pôr-se bonita. O trânsito não lhe pareceu tão infernal como antigamente. Agora também não precisava de se levantar tão cedo e aquele amor, estranho, é verdade, andava no ar como os pássaros, mas com pressa de pousar. Estava com uma cara fresca quando cumprimentou Isabel:
Bom dia!
Bom dia, doutora- respondeu a rapariga olhando para a roupa de Clara.
Há novidades? O seu filho está bom?
Está, obrigado. Outro dia ele nada tinha de especial. Era apenas a consulta de rotina!
E o dr. Diogo já chegou?
Já, mas saiu. Disse que ia comprar o jornal.
Está bem.
Subiu para o gabinete. Diogo devia querer saber mais pormenores sobre a notícia da televisão acerca da Expo 98. Mais um escândalo. Mais alguém a locupletar-se com dinheiro. Mais alguém a querer enriquecer à custa dos impostos dos portugueses. Porém, estava demasiado bem disposta. Não haveria de ralar-se fosse com o que fosse ainda que os antípodas se mudassem e os esquimós fizessem casinhas de tijolos. Isabel já tinha colocado a correspondência em cima da secretária. Abriu-a. Chegara também a publicação mensal sobre psicologia no trabalho que Clara e Diogo assinavam. Deu uma leitura em diagonal na informação das novas exigências da publicidade laboral. A incidência continuava a ser e cada vez mais na não discriminação das mulheres no emprego. A protecção da maternidade e o referendo sobre o aborto enchiam as páginas dos jornais. Clara, deste assunto, tinha a sua própria opinião. Era a favor da liberalização embora nem de perto nem de longe fosse de esquerda. Nem de direita. Era sobretudo pela justiça. Muitas mulheres andavam nas campanhas. Umas contra, outras a favor. A maioria era composta por homens e contra. Clara muito gostaria de saber quantos daqueles que arrazoavam nesse sentido teriam já estado na origem de algum aborto, ou até de vários...Pura hipocrisia! – pensava. Naquele dia, contudo, apenas desejava o mansinho da tardinha chegando com doçura. Queria ver se, finalmente, conseguia fixar na memória o rosto de César.
Às quatro e meia saiu. Foi directa a casa e tomou um duche. Vestiu o vestido preto comprido, comprado na semana anterior. À frente, o decote era quadrado e atrás duas alças faziam uma cruz. Tinha também uma abertura do lado esquerdo, que subia um pouco até cima do joelho. Não comprara sapatos. Adquirira uns recentemente, de tacão alto. Foi no dia da escritura da nova casa, nas Amoreiras. Uns bons sapatos. Sempre ouvira dizer serem os sapatos símbolo de sorte e de prosperidade.
O jantar estava meio adiantado de véspera. Desceu então à cozinha quando ainda não estava totalmente maquilhada. Preparava-se para pôr a mesa na sala, com a toalha bordada pelas mãos celestiais das bordadeiras da Lixa. Era uma obra de arte. Clara, mais uma vez, repetiu intimamente:
- É realmente com as mãos que se conquista o céu...
Verificou que não tinha saca-rolhas para abrir a garrafa de vinho verde escolhido como acompanhamento do bacalhau. Era ainda bastante cedo para ligar o forno. Talvez pedisse a César para irem os dois a Odivelas buscar algumas coisas que ainda aí permaneciam. Às seis horas ele ligou-lhe do telemóvel.
Onde é que você está? – perguntou.
Em frente à sua porta.
Então suba – disse, abrindo-a de seguida.
Mal ele entrou em casa, beijou-a. Clara retribuiu inteiramente. Sentia-se doce como mel.
Não o esperava já.
Despachei-me mais cedo e como nada mais tinha para fazer, vim logo...
Nesse caso podia ir comigo a Odivelas. Esqueci-me de trazer saca-rolhas. Precisava de um. Assim, aproveitava e conhecia também a outra casa onde morei.
Está bem! – respondeu César.
Desceram no elevador, sozinhos. Os carros de ambos estavam estacionados, um atrás do outro.
Vamos no meu? – perguntou ele.
Não. Vamos no meu. A menos que tenha medo de ser conduzido por uma mulher...
Não tenho medo algum. E aproveito para ver melhor a paisagem. Assim, até fico com as mãos livres...
Clara estava um pouco nervosa. A manobra de inversão de marcha não correu lá muito bem.
Durante a viagem, César ia pondo a mão esquerda nas pernas dela procurando a abertura do vestido. Não fez grande caso. Afinal, já tinham estado ambos na cama e mais o toque de César no seu corpo, não era de desaproveitar...
Conhece esta zona?
Mal. Não venho muito aqui.
Vamos passar junto ao Convento onde está sepultada a amante de D. Dinis e onde viveu durante algum tempo a Santa Joana Princesa padroeira de Aveiro. Sabia disso?
Sabia. Desde miúdo que tenho atracção por igrejas e mosteiros...
Ah! Então vem daí o seu gosto de coleccionador de cristos...
Talvez. Não sei. Mas o meu hobby é outro.
Qual? – perguntou Clara.
A fotografia.
Então tem de me tirar uma! Sabe que consigo ver pelas fotografias que me tiram se as pessoas gostam ou não de mim?...
Consegue, como?
Se você tirar uma fotografia a alguém que ame transmite esse sentimento através dela. E se a pessoa retratada não gostar de se ver é porque não impregnou a fotografia de qualquer sentimento bom.
Então e os fotógrafos profissionais?
Nem sempre tiram boas fotografias. De qualquer modo, no mínimo, têm de amar a sua arte.
Então qualquer dia tiro-lhe uma!...
Está bem...
Chegaram ao destino e subiram ao quarto andar onde Clara tinha já umas sacas com coisas de pequena monta. Era um duplex pequeno, tipo casa de bonecas. Entrava-se para uma sala. Do lado esquerdo havia uma kitchenet minúscula. Em frente existia uma enorme janela que iluminava o quarto lá em baixo aonde se acedia por umas escadas com um patamar a meio. Depois, era uma casa de banho pequena e um quartinho de arrumos contíguo.
É muito engraçado! Tenho a sensação de já ter estado aqui noutra encarnação...- disse César, a rir.
Acredita nessas coisas?
Nem por isso...
Comprei esta casa logo após o meu divórcio. Agora começava a ficar pequenina até para mim. Os livros estavam a invadir tudo. Em contrapartida, o de Benfica é bem maior. Tenho família grande e se alguém vinha a Lisboa não podia ficar aqui. Mas, agora me lembro... Nem sequer lhe mostrei devidamente a outra... Quando lá chegarmos faço isso...
Saíram, depois de Clara se certificar de que numa das sacas estava o saca-rolhas.
No regresso, pousaram tudo na cozinha. A banca estava ocupada com as coisas do jantar. César, logo ali, começou a beijá-la. Não se fez rogada. Gostaria mais de ter jantado primeiro na mesa posta com esmero e com a toalha bordada pelas bordadeiras da Lixa. Gostaria mais de partilhar o resto da noite com ele num ambiente de intimidade. Mas, César mostrava-se guloso e àquela carinha de santo Clara não ousaria contrariar. Parecia-lhe, sempre lhe pareceu, um homem muito carente de afecto. Daí a ternura quase maternal e um pouco parecida com encesto.
Subiram para o quarto. Já não se viam há uma semana. Talvez ele estivesse com saudades suas. César despiu-se. Rapidamente, estavam ambos nus. Depois, foi a dança dos corpos.
Nós encaixamos bem - dizia César.
Clara não respondeu. Limitava-se a sentir aquele homem entregando-se completamente às carícias no meio de algumas gargalhadas inocentes que ela, com o seu sentido de humor por vezes exacerbado, não se coibia de dar. César era muito criativo. As posições variavam. Clara pensava até se César não seria formado no Kama Sutra.
Gosto de ti- disse ela a certa altura com a maior simplicidade.
Também gosto de si. Já tinha saudade das suas gargalhadas!...
Voltara o tratamento cerimonioso depois do êxtase e da volúpia.
Se é só por isto, é muito pouco..- insinuou Clara.
Não! Não é só por isto!...
Por fim, o duche. Primeiro ela e quando acabou, entregou a César uma toalha castanha a condizer com os azulejos da casa de banho.
Vou descer. Você não me deixou preparar tudo antes... Tenho de fazer isso agora. Não precisa de se apressar. Se necessitar de alguma coisa, chame. Ou então procure. Pentes e secador estão na gaveta do lado direito do armário- disse, abrindo-a simultaneamente.
César ficou na suite. Clara foi para a cozinha. Logo a seguir meteu o bacalhau e as batatas no forno, na assadeira pequena. Era a primeira utilização do utensílio. Já passava das nove horas. O jantar estava condenado a ser tardio e sem garantias de sair bem. No mínimo, talvez ficasse comestível. Daí a pouco César apareceu. Tinha desligado a luz de presença, sempre acesa no patamar da escada.
Desligou a luz porquê?- perguntou-lhe.
É um hábito. Em casa dos meus amigos estou sempre a fazer isso. Eles devem pensar que sou maluco.
Já tinha reparado. Na sua faz o mesmo...
Será ele vampiro para não gostar da luz? – pensava. - Mas para vampiro tem os dentes um bocado pequenos. A menos que seja uma mutação mais sofisticada dos tempos modernos. Ou não os terá mudado?... Daqui a pouco o meu pescoço vai começar a escorrer sangue – ria-se interiormente.
É já bastante tarde. O assado vai demorar um pouco.
Não faz mal - respondeu ele, irónico.
Não sei se vai ficar bom...
Também não importa. O prato principal foi óptimo...- ria - Foi pena termos de ir a Odivelas. Apetecia-me tê-la comido na cozinha. Mas a banca estava tão cheia...
Clara não gostou da observação. Olhou para César. Parecia-lhe um menino ingénuo nas primeiras investidas sexuais à espera de encontrar as palavras adequadas às circunstâncias. Mais uma vez, relevou.
Perto das onze horas foram para a mesa.
Teve azar. O bacalhau não está lá muito bom.
Não faz mal. Come-se... – disse ele com relativa indiferença.
Clara verificou de novo, a falta do mínimo de etiqueta à mesa. De qualquer modo não era ainda tempo de o alertar para o facto. Só na cama é que a tratava por tu. De resto, continuava o tratamento cerimonioso entre ambos. Não era por Clara. Já em casa de César tinha tentado aligeirá-lo mas ele não tinha dado grande abertura. Não conseguia – afirmava. - Também não era assim uma questão tão importante.
O jantar decorria. Clara Lembrava-se do amigo falecido recentemente e falou dele a César.
Era um homem extraordinário. Um amigo fantástico. Quando o conheci combinámos escrever juntos um artigo sobre casas assombradas, mas nunca o fizemos. No fundo não passava de uma brincadeira, apesar de termos prometido um ao outro que o primeiro a morrer iria avisar o outro.
E ele? Cumpriu a promessa?
Julgo que sim... Nesse dia aconteceu-me algo inexplicável. Foi uma sensação muito forte. Tive de a escrever muito embora me lembre de todos os pormenores. Se prometer que não vai rir de mim...
Claro que não!
Então vou mostrar-lhe.- E Clara foi buscar um pequeno caderno onde registou tudo.
Depois de César ter lido, não percebendo muito bem, perguntou:
Afinal o que é que aconteceu no dia 5 de Maio?
O Manel morreu- respondeu Clara com a voz embargada - Só o soube verdadeiramente no dia seguinte quando me telefonaram, muito embora de véspera, no gabinete, me tivesse inexplicavelmente surgido, emergindo do lado esquerdo da secretária, uma pequena luz brilhante dissipando-se no ar depois de se elevar ao nível da minha cabeça. Seguia-a com os olhos. Pensei que essa coisa estranha tivesse caído. Procurei-a no chão mas nem rastos dela...
E pensa que foi alguma manifestação do seu amigo? Não acredito muito nessas coisas...
Vou ficar sempre com essa dúvida. Na altura testei todas as hipóteses segundo as leis da física. Pensei numa pequena abelha dourada. Um pequeno insecto poderia ter feito aquela trajectória. Mas, não encontrei no chão rastos da suposta abelhinha. Pensei igualmente no sol reflectido por um espelho. Talvez um vidro de relógio. Contudo, não fazia sol nessa manhã. E, por outro lado, seria impossível desenhar-se aquela curvatura. Depois, quando não encontrei qualquer explicação, decidi-me por uma ilusão de óptica.
Estranho!...
Bom! Mas, mudando de assunto! Você deve ter alguma coisa interessante para partilhar...- insinuou Clara num tom de quem acabara de estar na cama, na maior intimidade. - Um homem como você deve ter muitas histórias para contar!...
Você, também!...
Claro! A começar pelo meu casamento com um homossexual!...
E já está refeita disso?
Felizmente! Estou curadíssima! Também, isso já tem doze anos em cima... Agora estou curiosa por conhecer algumas das suas!...
Oh! Tenho muitas...
Conte! No mínimo uma!...
Uma das mais engraçadas que me aconteceram foi em Paris...
Você viveu em Paris?
Vivi. Durante nove meses!
E o que é que fazia lá?
Trabalhava numa livraria.
Ficou com dúvidas. Se César trabalhara durante nove meses em França, o curso dele devia ter sido bastante irregular.
Um dia, teria os meus dezoito anos, acabava de me sentar numa mesa de um café. Estava lá um jornal grego e comecei naturalmente a folheá-lo. Ao lado, estavam duas portuguesas. Não falavam muito bem nem o português nem o francês. Elas pensaram que eu era grego...
E depois?
Acabei por ir para a cama com uma delas. Nunca lhe cheguei a dizer que era português. Mas, os comentários de ambas eram do melhor que já ouvi- dizia César, rindo. - E tudo em português!
Por exemplo?
Que pito!... Dava uma foda valente com ele...- Dizia uma para a outra - Vinha-me trinta vezes contigo, filho! Se a tua pila for como a tua cara, comia-a toda!...
Deve ter sido bem divertido para si... Saiu-me cá uma prenda!... E ainda por cima cínico!...
Entabulei conversa com elas. Fiz um esforço valente para não rir. Uma delas era casada! Depois deram-me o número de telefone. Acabei por ir lá a casa... Aí é que foi!...
Pelos vistos, foi lá que se consumou o acto!...
Foi! Ri-me como nunca me tinha rido na vida! Tive de fingir que estava mal disposto. Fui para a casa de banho para me rir à vontade, tais eram os comentários...Depois de ter estado com a solteira, ela perguntou à outra se não queria ir foder comigo...
E ela?
Disse que não! Mas no início ainda estiveram hesitantes... A casada cedeu-me à outra, dizendo-lhe que de manhã tinha dado uma boa foda com o António, marido dela. Se bem que a solteira insistiu muito com a amiga: – De certeza que não queres foder com ele? Olha que o gajo fode bem – dizia ela! – E César ria, enquanto recordava a cena.
Já agora, como é que isso acabou? As minhas histórias não são assim tão picantes. A falar verdade, são mais histórias de vida e de sentimentos...
Elas bem queriam que eu fosse lá no dia seguinte; mas nunca mais lá pus os pés! Oh! tenho muitas semelhantes!...
Pela amostra, dá para avaliar!
E você?- perguntou César.
Comparadas com as suas as minhas peripécias são quase de gata borralheira. Uma vez, estava eu na praia, sózinha. Andavam também por lá dois rapazinhos dos seus dezoito anos. Um deles começou por me pedir lume. De seguida perguntou-me se eu me chamava um nome qualquer. Respondi que não - É mesmo parecida com a minha professora de inglês.- Pensei logo: estou a ser caçada. Então de caça passei a caçadora. Moderei a conversa. Ele perguntou-me as tretas do costume oferecendo-se para me fazer companhia.
Não me diga que a convidou para a cama?
Não se atreveria a tanto. Também não lhe dei azo a isso! Depois, palavra puxa palavra...
Andaram à pancada?!...
Acha-me com cara de Padeira de Aljubarrota?
Não! Mas das mulheres pode-se esperar tudo!...
Dos homens muito mais!... Bom! Por fim descobri algo muito engraçado. O rapazola era filho de um namorado antigo, por sinal muito mulherengo!...
O mundo é pequeno- retorquiu César.
Quando fui embora da praia com um sorriso nos lábios pensava: Tal pai tal filho.
É! A vida tem peripécias muito engraçadas. Só as minhas davam um livro. Olhe ainda uma outra – prosseguia. - Numa altura conheci também uma fulana da televisão francesa. Teria os seus quarenta anos. Fiz de tudo e mais alguma coisa com ela apesar de nunca termos tido relações sexuais.
Porquê?
Ela era virgem! Nunca mo disse mas eu percebi claramente. Tinha muitos traumas. Sabe que participei num filme quando estava lá?!...
Bem me queria parecer! Você deve ser um artista de cinema candidato a realizador e anda por essa vida à cata de argumentos!...
César riu, acrescentando:
Não! Fui só figurante! Tenho lá em casa o filme. Já o vi de uma ponta à outra e nem sinais de mim...
Como é que se chama a fita?
Se quer que lhe diga, nem sei!...
Estranho não se lembrar do nome do filme...- pensava Clara....
Pelos vistos, o livro da sua vida seria bem condimentado!...
Eram quase duas horas da manhã, depois de a conversa Ter deambulado por assuntos tão lúbricos.
Bom! Amanhã é dia de trabalho... Vamos arrumar as coisas?
Não se preocupe. Eu trato de tudo. Só foi pena o bacalhau não estar grande coisa. Você quase não comeu...
Como pouco.
Levantaram-se da mesa, dirigindo-se a seguir ao hall de entrada. César ia despedir-se. Clara disse-lhe:
Vou levá-lo lá abaixo e indicar-lhe o caminho mais perto.
Vai deixar a porta aberta?
Não há problema. Os gatunos de prédios atacam mais durante o dia segundo dados da Polícia.
Em todo o caso vamos escancará-la. Não vá o vento intervir. Já me aconteceu uma vez ficar na rua e foi um problema...
Meteram-se no elevador e já no átrio de entrada, deram um beijo na boca.
Até amanhã e obrigado. Depois, telefono.
Clara saiu para a rua e de repente a porta fechou-se atrás de si.
Bolas, César! Você é mesmo azarento! Agora o que é que eu faço? Às duas da manhã!... Nem sequer conheço os vizinhos. Moro aqui há dois dias...
Vamos pensar – dizia César, friamente. - Em último recurso vai dormir a minha casa.
Não há solução que não incomode terceiros. Tenho um duplicado das chaves no gabinete. Mas para isso teria de ir a Sintra a casa do Diogo. Olhe! Seja o que Deus quiser... Vou tocar para os vizinhos do lado.
Premiu a campainha. Passados alguns momentos, através do intercomunicador, ouviu a voz rouca de um homem.
Quem é?
Desculpe estar a incomodá-lo a esta hora. Vim à rua e a porta fechou-se. Sou a vizinha do lado. A minha porta está escancarada. Era capaz de abrir esta aqui em baixo, por favor?
Ouviu-se o barulho do dispositivo a abrir a famigerada porta. Clara e César entraram de novo, suspirando de alívio.
Não será melhor ir lá acima? – perguntou César.- Não vá a outra porta ter-se fechado também...
É mesmo agoirento! Está bem! Fique aqui! Quando chegar, falo-lhe pelo intercomunicador.
Despediram-se depois dos azares da noite terem sido sanados. Já na sala, Clara lembrou-se, falando alto como quem há muito tempo a viver sozinha se habituara a falar com todas as coisas que havia lá em casa: - Afinal não lhe mostrei o apartamento...
Arrumou a mesa, despachadamente. Meteu a louça na máquina e fez uma pré-lavagem. Passava das três horas quando foi para a cama levando nos pensamentos a companhia de há pouco. Gostava que César tivesse ficado em sua casa. Todavia, depois de... ele ficava sempre com tanta pressa.... Andava a par das actividades artísticas da fundação. Não lhe fôra enviado qualquer convite e pessoalmente também não a convidava. - Vamos ver onde isto vai parar...- dizia de si para si.
Por fim adormeceu.
Acordou cerca das nove horas na manhã seguinte, depois de desligar o despertador, ensonada. Faltava um quarto para as oito. Olhou-se ao espelho da casa de banho. Tinha umas enormes olheiras, mas não era nada que não se pudesse aguentar, sobretudo pelo motivo que lhe dera causa. Tomou banho e maquilhou-se, após o que foi tomar o pequeno almoço.
Chegou ao gabinete pelas dez horas, simultaneamente, com Diogo.
Bom dia! – cumprimentaram-se.
Saudaram Isabel e subiram em seguida, indo directos ao gabinete de Clara.
Então, Clarinha? Como vai o assunto César?
Não sei muito bem... Também, o prazo dos três meses ainda não acabou... Vais almoçar com alguém?
Não.
Podíamos almoçar juntos. Conversávamos mais um pouco.
Está combinado.
Agora vou arrumar alguns papéis. Agosto chega depressa e quando vou para férias gosto de deixar tudo em ordem. Sabias que é nas férias que se descobrem as grandes vigarices, Diogo?
Vigaristas há cada vez mais. Agora isso não sabia...
Tenho um amigo na Polícia que me informa destas coisas, especialmente das fraudes nos bancos e de uma maneira geral em todo o lado onde ocorrem. Sobretudo quanto às contas dos emigrantes.
É um país de burlões!- acrescentou Diogo. - Vou trabalhar um pouco. A partir de Maio, nesta terra nada se faz...
Tens razão, Diogo - concordava Clara, rindo, enquanto se lembrava da célebre frase de um antigo primeiro-ministro: – Deixem-nos trabalhar. - Vamos lá nós ao trabalho. Esta semana ainda tenho mais uns testes de orientação vocacional para fazer.
Lembrava-se dos últimos, nomeadamente os de uma menina com treze anos boa ginasta que queria ser contorcionista. Associou logo o assunto às acrobacias de César na cama. Felizmente, ela tinha boa elasticidade. O raio do homem invadia-lhe permanentemente as ideias. Falava tanto de sexo e das mamas das amigas. Gostava delas grandes. Tinha-lho dito da última vez, na cama, logo a seguir a... Era um bocado falta de gosto. Parecia uma pessoa cheia de ilhas na cabeça. Muito controlado, nunca falou da sua estadia em Angola. Afinal tinha ido para lá aos doze anos. Estudara em Luanda- imaginava Clara, apesar de ele nunca lho ter dito. - Mas, pela lógica ... Era tão introvertido numas coisas e tão ousado noutras... Nunca fazia qualquer menção à família e interessava-se tão pouco pela própria família dela... Porém, tinha uns olhos tão doces... Às vezes, parecia-lhe um menino desprotegido pedindo colo...
À uma hora Diogo foi ao gabinete de Clara.
Já estás pronta?
Já.
Então, vamos andando. Onde queres ir?
Não sei, Diogo. Escolhe tu. Podemos sair um pouco do habitual. Hoje está um dia tão bonito...
Está bem! Queres ir ao Podium?
Onde é que fica esse restaurante?
Na Vinte e Quatro de Julho.
Então vamos lá. Talvez fique em primeiro lugar...
Diogo olhou-a. Aquela expressão deveria ter algo a ver com o romance dela e de César...
Foram na carrinha de Diogo, uma Ford verde.
Tens aí uma moeda? – perguntou o colega mal viu o arrumador a fazer-lhe sinal a uns bons cem metros do restaurante.
Clara procurou o porta-moedas na bolsa. Desta vez não demorou assim muito tempo. Com as chaves era um bocado mais complicado. Entregou-lhe os cem escudos. Desapareceram logo de seguida na mão estendida do homem de mau aspecto, de idade já um pouco avançada e mal vestido que, possivelmente, estaria a fazer a sua colecta para a dose diária de droga.
Já no restaurante, procuraram uma mesa sossegada, a um canto. Um rapaz jovem trouxe as listas ,daí a pouco. A ementa era variada: vitela assada com creme de cogumelos, linguado grelhado, salada russa com filetes de pescada e mais meia dúzia de pratos.
Prefiro peixe – disse Clara depois de ler o cardápio- Talvez com salada russa.
Pode ser igual para mim.
E para beber? – perguntou o empregado.
Vamos num verde fresquinho?
Vamos nessa! - concordaram.
Diogo perguntou de repente:
Então, Clarinha. Como vai esse raio x?
Se queres que te diga, o diagnóstico apresenta algumas patologias. E eu, como sabes, nesta área, só falo quando tenho a certeza das coisas. Receio sempre fazer avaliações erradas e, principalmente, não gosto de ser injusta.
Tem cuidado! Apesar de teres o meu ombro não quero ver-te infeliz... – brincou.
Às vezes parece-me cínico. Outras parece-me tímido, inseguro... Infantil, também. Se calhar e infelizmente, no fundo, parece-me que gosto dele. Apetece-me protegê-lo. É quase um sentimento maternal. Nunca me senti assim. Só a cara dele inspira amor. Mas, sabes uma coisa? Já o conheço há uns tempos e tu acreditas que não sei descrevê-lo fisicamente?!
Como assim?
Não sei. Penso que me encandeia. Se queres que te diga não sei qual é a cor dos olhos dele. Tenho até medo de o ver na rua fora de qualquer contexto e não o conhecer...
Pelos vistos, o raio x está a ser feito por ele... Não se estarão a inverter as posições?
Se calhar... Já dei comigo a decompor-lhe o rosto na tentativa de o fixar. Escapa-me sempre. É uma sensação estranhíssima. Talvez até me intimide... Ou eu a ele... Já nem sei. E depois tem uma conversa tão banal...
Mas ele é licenciado em Direito. Deve ter uma boa bagagem...
Não se nota muito. Parece-me que não tem sentimentos... É tão frio, tão distante. Calculista, até... Não é capaz de demonstrar afecto, ao que sinto... Talvez seja tímido a esse nível...
Dá-lhe mais um pouco de tempo. Também, se saísses agora, o processo ficava mal resolvido na tua cabeça...
Solidariedade masculina a funcionar, não é, Dioguinho?!... - argumentou Clara, sorrindo.
Não se trata disso. Sabes muito bem que há comportamentos complicados...
Pois é, Diogo. Eu quero ser mulher, não mãe. E psicóloga sou no emprego...
Está bem Clarinha... Não te zangues!
Oh, Diogo... Não estou zangada. Apenas confundida... O César tem algo de errado. Até já pensei se não será complexo de Édipo...
Situação difícil. As mães, por vezes, podem atrapalhar desastrosamente, com a melhor das boas intenções, a vida dos filhos. Mas, ele vive com a mãe?
Pelos vistos, nem sempre, mas muito. Ela passa metade do ano em Portugal. A outra, passa-a em França.
Acabaram de almoçar cerca das três horas depois de trocarem mais algumas impressões. Uma boa meia dúzia de clientes ficou ainda no restaurante, quando o deixaram.
Já no gabinete, o resto da tarde decorreu tranquilo. Isabel estava a revelar-se uma funcionária competente, metódica e, sobretudo, criativa. O marido ia buscá-la de vez em quando. Pareciam dois jovens felizes, com o filhote, o João Pedro. Nesse dia ao fim da tarde, o rapaz estava à porta, sentado no carro com o miúdo, esperando por Isabel. Clara e Diogo, no seu regresso da cozinha depois da bica, viram-no e mandaram-no entrar. Isabel apressou-se a apresentá-los. Ao bebé também.
Muito prazer. Pedro Costa.
Clara fez uma festa à criança.
Então, Pedrinho, vieste buscar a mamã?
O menino enterrou a cabeça nos ombros do pai. Depois, à medida da insistência das festas de Clara, ia abrindo a carinha num sorriso inocente. Para ele, o mundo deveria ser o melhor lugar para se viver.
Por fim, saíram todos, despedindo-se e Diogo fechou a porta.
Já em casa, Clara subiu ao quarto e tomou um duche. O dia estivera quente. Estava cansada. Dormira pouco na noite anterior. Pensava em César e na cor dos olhos dele.
- Será que vai telefonar hoje?- interrogava-se.
Muitas dúvidas se começavam a instalar na sua cabeça. Apesar disso, estava sempre desejosa de o ouvir. Cerca das sete e meia o telemóvel tocou.
Estou! - respondeu ao reconhecer o número no telemóvel.
Eu também! - retorquiu César do lado de lá.
Dormiu bem?
Dormi. E você?
Pouco. Hoje vou dormir cedo...
Isso também eu...
Clara esperava de César uma palavra sobre a noite. Queria ouvi-lo dizer que gostara de estar consigo como ela própria gostara de estar com ele, embora as dúvidas começassem a ganhar forma na sua cabeça. E após uns breves instantes de silêncio resolveu dar voz ao que sentia.
Foi bom estar consigo...
Também gostei de estar consigo...
Já jantou?- mudou de assunto.
Ainda não. Mais daqui por um bocado. Vou ver o telejornal. Janto de seguida.
Então, está bem. Não o demoro mais tempo.
Pronto, menina... Trés bien!..
Até amanhã. Um beijinho...
Outro para si...
Desligaram no meio das palavras que começavam a ser bastante parcas. Clara ficou agarrada ao telemóvel por alguns momentos. A voz de César fazia eco nos seus ouvidos, mais o sotaque dele. Não conhecia bem S. João da Madeira nem pessoas de lá. E aquela onda de ternura invadia-a. Pensava no contraste do realismo dele na cama tão diferente da doçura dos seus olhos de cor perfeitamente indefinida, na sua mente. Mais uma vez lhe acudiam à ideia coisas que certas pessoas fazem ou dizem por timidez e insegurança. Talvez fosse o caso. No fundo - dizia de si para si- é muito introvertido.
Jantou. A seguir meteu-se na cama vestida com uma camisa fresca comprida, de alças finas. Ligou a televisão. Adormeceu na maior das justiças. A sua própria insegurança relativamente a César acabava de tirar umas pequenas férias nocturnas.
A semana chegava ao fim. Sexta-feira à tarde Clara ligou a César, com a intenção escondida de o convidar para passar o fim de semana consigo.
Estou sim!– respondeu ele.
Você está bem? – perguntou.
Estou. Preparo-me para ir embora de fim-de-semana...
Clara não ousou sequer aflorar o assunto.
Está bem...
Vou ver os miúdos e a minha mãe que chegou ontem de Paris.
Então vai ter muito colinho...
Se calhar...
Teve muito quando era criança?
Não sei. Não me lembro.... – riu ele.
Vai tantas vezes à aldeia... Deve lá ter sido muito feliz...
Mais ou menos. Se bem que há uma máxima que diz: nunca voltes aos lugares onde foste feliz.
Então, para si, isso é uma contradição. Eu posso muito bem ir à minha, se seguir à risca essa máxima...
Porquê?
A começar pelo casamento dos meus pais, nada bem sucedido, por sinal...
Ah!... Sendo assim...- observou ele sem grande assunto- Domingo à noite ou segunda-feira telefono-lhe. Um beijo...
Outro para si. Desejo-lhe boa viagem...
Uma pequena desilusão. O mês de Junho entrava na recta final e nunca César passara um fim-de-semana consigo. Neste, justificava-se plenamente. Afinal, a mãe viera de Paris. Vou ligar à Catarina – decidiu-se, mesmo antes de pousar o telemóvel, onde voltou a discar um número, desta vez o da amiga.
Olá, Catarina!
Olá, menina!... Tens andado muito fugida... Desde que foste morar para Lisboa...
Tens razão. Sou uma ingrata...
E a casa? –perguntou Catarina já menos irónica.
Está ainda um pouco despida. Só vos queria convidar daqui por uns tempos quando a vestisse mais um bocadinho. Além disso aconteceram uma data de coisas...
Amores?
Mais ou menos...
Não me digas que é o César?
Acertaste em cheio!...
Vais estar com ele este fim-de-semana?
Não. O moço vai à aldeia. A mãe veio de Paris...
Então podes vir cá passá-lo. As miúdas foram ao Porto ver a Juju. Estamos sozinhos, eu e o Xavier.
Óptimo. É mesmo o que me está a apetecer. Obrigado.
Quando vens?- pergunta a amiga, entusiasmada.
Amanhã de manhã.
Pronto. Então até amanhã e desculpa a ironia de há pouco... O que quero é que tu sejas feliz- continuou Catarina, brincando.
Até amanhã. Depois telefono a combinar a hora.
Passou bem a noite. Levantou-se cedo no dia seguinte. Mudou a roupa de cama, juntou mais alguma e lavou-a na máquina, pondo-a de seguida no estendal, a sua condição de doméstica não podia ser adiada por nenhum motivo, pelo menos enquanto não conseguisse arranjar empregada. Quando já estava pronta, cerca das dez e meia, ligou à Catarina pelo telefone fixo. Atendeu o Xavier.
Bom dia! A senhora está bem? Ouvi dizer que está a viver um romance escaldante!...
Enquanto ouvia, à mente de Clara acorriam ideias em catadupa. Se calhar é mesmo escaldante – e lembrava-se de César. - Se ele não me sentir da mesma maneira pode até ser unilateralmente pornográfico... Semelhante aos dos filmes passados no canal 18. Em boa verdade o que distingue a pornografia do erotismo é, antes de mais, a intenção dos protagonistas e só depois, o voyeurismo concomitante...
Não fazes a coisa por menos? – perguntou, depois de lhe retribuir o cumprimento.
Estava a brincar contigo! - continuou Xavier.
A Catarina está aí?
Está. Queres que lhe passe o telefone?
Não vale a pena. Diz-lhe que vou agora sair de casa. Dentro de um quarto de hora, vinte minutos, chego.
Muito bem. Cá te esperamos.
Após mais umas voltas no seu estatuto de doméstica, não demorou a assumir o papel de viajante, vestindo umas calças de ganga e metendo mais umas pecinhas no saco para o consumo do final de semana.
Demorou a chegar mais ou menos o tempo previsto e subiu mal Xavier abriu a porta da rua. Foi ele a recebê-la, pegando-lhe no pequeno saco de viagem curta.
Então, estás boa?
Estou. Obrigado.
Pelo menos o aspecto é excelente!
Obrigado. Tu também não estás nada mal. Já não nos vemos desde a noite do concerto. Mas, estás com muito bom ar... A Catarina?
Está na cozinha a preparar o almoço.
Vou lá ter com ela e ajudá-la. Catarina! – chamou.
Estou na cozinha. Vem cá, Clara...
Quando esta assomou à porta, Catarina deu-lhe dois beijos, fazendo-lhe uma festa no cabelo.
Desculpa a observação de ontem, Clara...
Não faz mal. Tenho mesmo de pedir-vos desculpa. Estamos quase no final de Junho. Depois de conhecer o César nunca mais dei sinais de vida.
A propósito, que tal é ele?!...
Não me queria pronunciar muito sobre isso... É bastante introvertido... Tenho medo de fazer juízos errados. Também só o conheço ainda não há dois meses e não estou assim tantas vezes com ele...
Então, andas ainda na fase de pesquisa... – acrescentou Catarina.
É verdade. Estou um bocado apanhada apesar de um pouco confundida....- desculpou-se, brincando e dando menos importância ao assunto do que aquela que na realidade tinha.
Deixa lá. Vai indo e vai vendo. Só não permitas que o gajo te magoe!...
É isso – retorquiu. - Vamos mudar de tema. Qual é o programa para hoje?
Depois de almoço estávamos a pensar em ir ao Alentejo, à casinha...
Era óptimo! Aquilo é tão bonito...
A casinha era uma casa pequenina pré-fabricada. Estava instalada num parque de campismo perto da Lagoa de Santo André. Tinha dois quartos de boneca, uma casa de banho pequenina e uma sala em conjunto com a cozinha. À frente, um pequeno alpendre onde Catarina pusera uma mesa com quatro cadeiras completava a estrutura. Cá fora, no pinhal, colocavam eles as redes em que se refastelavam e dormiam as sestas de verão. Clara não podia ficar mais entusiasmada. Mal acabaram de comer, abalaram. Era ainda cedo e não havia trânsito.
Logo que chegaram, pousaram as coisas que levavam e dirigiram-se ao mar. O lugar era paradisíaco. Lá estava no fundo o velho oceano guardado por umas enormes falésias, em precipício. Para se chegar até ele, os responsáveis do parque tinham feito um caminho por onde um pequeno comboio ia levar e trazer os donos das casas e das tendas. A vista do alto das escarpas era deslumbrante, prolongando-se para norte e para sul numa vastidão imensa. Ali, a sensação experimentada era a da pequenez da criatura humana e simultaneamente a da grandeza do universo.
Está-se bem neste lugar... - disse Clara para Catarina, com uma ponta de nostalgia - Apetecia-me morrer aqui nos braços do amor. Isso deve ser o céu...
De repente, acordou do enlevo, e sorrindo, continuou.
Devo estar a ficar piegas...
No mínimo, apaixonada! - observou Xavier em tom de brincadeira. - E não nos contas nada, Clara! És muito egoísta! Onde é que está o patarata do infeliz?
Olha, não sei! Disse-me que ia ver a mãe. Ela veio recentemente de Paris e até eu lhe dou prioridade... Ou então está com uma Maria João, uma Ivete, uma Alzira, uma Paula ou outra qualquer!...
Assim não vais lá. Tens de ter o mínimo de confiança no rapaz. Que idade tem ele?
Se queres que te diga não sei. Nunca me atrevi a perguntar-lhe. É tão distante... Também não me imagino a roubar-lhe o bilhete de identidade - continuou Clara, rindo. – Mas, variando a conversa, como está a Juju?
Bem! – respondeu Catarina. - Presumo que com saudades do namorado francês... A Joana e a Sílvia estão no Porto.
Disseste-me ontem. Há quanto tempo morreu ele?
Há seis meses.
Coitada...
Foi melhor assim. Já tinha 96 anos e dava-lhe muito trabalho.
Por que é que ela não vai morar convosco?
Sabes como são os idosos. Enquanto derem uns passos não há quem os arranque de casa senão por pequenos períodos.
Tens razão. Ela não é a única a não querer deixar o seu cantinho.
Vamos para cima? – perguntou Catarina, após mais uns minutos no alto da falésia, contemplando o mar.
Nada a opor!- respondeu Xavier.
Apetece-vos lanchar?
A mim, não. E a ti Xavier?- indaga Clara.
Também não.
Então vamo-nos esticar um pouco nas redes antes do jantar- sugeriu a anfitriã.
Percorreram os cerca de duzentos metros de caminho. Catarina e Clara iam apanhando algumas pinhas. Combinaram fazer um churrasco para o jantar que iria ser servido no alpendre, a três. Mas, antes preguiçaram um pouco, como estava prometido.
Mal o assado ficou pronto comeram com o maior dos apetites. Não se via muito bem a televisão. Por isso foram cedo para a cama.
De manhã, Clara acordou ao som dos grilos e de alguém passando rumo ao pequeno bar do parque. Foi em seguida tomar um duche e vestiu-se. Catarina levantou-se, entretanto e bateu à porta do quarto de Clara
Olá! Bom dia! Dormiste bem?
Dormi. Acompanhada...
Acompanhada?!... Que eu saiba não veio ninguém cá a casa...
Está descansada. Foi só em pensamentos cesarinos!...
Ah!... Gostava de experimentar de novo essa sensação! Eu e o Xavier já estamos casados há tanto tempo!...
Não sei como funciona um casamento de vinte anos igual ao vosso. Só estive casada dois meses. As minhas mágoas foram as de um namoro puritano de ano e meio – acrescentou, depois de alguns instantes em que imperou o silêncio. - Sabes o que mais me custou na altura?... Foi a falta de coragem do Paulo. Odeio pessoas cobardes. O uso, também... Casou-se comigo apenas por causa do empréstimo para a compra da casa!...
Dares de caras com ele na cama engalfinhado no outro tipo também não deve ter sido lá muito agradável, convenhamos...
Pois não... Hoje já consigo falar do assunto sem ressentimentos. Havias de ver a cara de ambos: Ó Clara, não é o que parece- dizia o Paulo, pondo as mãos nas partes púdicas.- O outro, vestido com as minhas cuecas e o meu soutien, enfiava-se debaixo da roupa. Parecia um cachorro encolhido de medo... – lembrava, rindo.
Mas a forma como o puseste de lá para fora!...- argumentava Catarina, rindo também.
Ah! Agora até me dá gozo lembrar isso... O balde esteve para levar água quente! Iria queimá-los, pensei... Depois, quentes já estavam eles... Fria, era melhor! Corri o raparigo à vassourada enquanto o desgraçado dava aqueles gritinhos de bezerro desmamado...
E o Paulo?
Esse foi reunindo as pecinhas do outro levando-lhas à porta. E ele não foi logo porque avaliei a situação racionalmente. Se saísse naquela hora, nuzinho em pêlo como estava, nunca mais voltaria a entrar. Mesmo com um foi um escândalo... Imagina os dois a saírem porta fora!... O anormal tinha de tirar os tarecos lá de casa. Além disso havia o empréstimo do banco para resolver...
Eu tinha mandado os dois...- atiçou Catarina.
O meu lado racional impôs-se naquele momento.
Essa peripécia deve ter sido uma cena digna de um filme de Woody Allen...
Olha... Se tivesse jeito para escrever, mandava-lhe o argumento – e as gargalhadas de ambas subiram de tom.
Quando terminaram de rir, Clara retomou a conversa, perguntando:
O Xavier já acordou?
Já. Deve estar curioso por saber o motivo da nossa boa disposição matinal...
Está farto de ouvir falar do assunto.
Já tomaste banho. Ouvi-te. Rezei para não faltar o gás. Deve estar mesmo a acabar. Agora vou eu. Assim, o Xavier sempre pode ir mudar a garrafa se tal acontecer.
Bom. Então, vai lá. Como estou vestida, queres que vá ao pão?
Não. Espera um pouquinho por mim. Vamos as duas.
Tu mandas - respondeu Clara.
O dia decorreu normalmente. Queriam regressar a Lisboa após o almoço. As filas eram quase sempre intermináveis. O tempo estava esplendorosamente quente. Era um quarto para as seis da tarde quando chegaram a Odivelas.
Durante a viagem Clara ligou de novo as antenas. O som captado, era, obviamente de César.
Queres subir?- perguntou Xavier, mal estacionou o carro na garagem.
Vou ajudar-vos a levar as coisas. De seguida vou embora.
Está
Obrigado pelo fim-de-semana. Foi excelente.
Queres voltar já no próximo?- perguntou Catarina.
Talvez vá à aldeia. Há já muito tempo que não vou lá.
Se quiseres, diz alguma coisa.
Obrigado. Realmente o melhor de tudo ainda são os amigos...
Clara meteu-se no carro depois dos últimos instantes passados com Catarina e Xavier, com o saco do fim-de-semana na mão. Estava de regresso ao castelo onde a única fada era ela. Já se tinha esquecido de como era subira a Calçada de Carriche mesmo num Domingo à tarde, quando o trânsito abalava para um intervalo semanal.
Em casa, despiu-se e foi tomar banho, eram sete horas da tarde. A seguir, comeu uma fatia de melão fresco. Não lhe apetecia jantar. O almoço fôra vitela assada na brasa, pelo Xavier. Ensinara-lhe o ponto para começar a assadura. Não aceitara lá muito bem. Os homens têm sempre a mania de que sabem tudo. Com António Pereira, marido da Luísa, era a mesma coisa- pensava, sinteticamente .
Não iria ligar a César. Esperava, contudo ansiosamente, um telefonema dele. Ligou a televisão, com um trago de ansiedade A bodega da programação de domingo à noite, desenrolava-se, quase perniciosa para o seu espírito inquieto. Pegou no livro Conversas com Deus. Já o tinha acabado. Contudo, gostava de reler algumas passagens. Agora o seu Deus era outro. Lembrava-se todavia dos ensinamentos do verdadeiro:
- Deus limita-se a criar. Depois, alheia-se dos resultados. Não cria expectativas como fazem os homens. A expectativa é uma enorme fonte de sofrimento.
Eram já onze da noite. César não telefonara. Em Santo André não tinha rede. Mas também não viu no visor qualquer sinal de o telemóvel ter sido apelado. Pensava no colinho da mãe dele, durante o fim-de-semana. Apetecia-lhe ser pegada da mesma maneira. Infelizmente a mãe morrera ainda muito jovem e quando ela era pequena. Mas agora, o colo pelo qual tanto ansiava, era outro e só tinha um nome: César. Adormeceu sensivelmente à meia noite. Os sonhos eram sempre algo cuja lembrança Clara saboreava com prazer quando acordada. Nunca tinha frio, nem calor, nem fome, nem dor, mesmo que tivesse caído num precipício ou andasse nua pelas ruas como lhe acontecia de vez em quando. E se voasse, melhor ainda. Era uma sensação incrível voar em sonhos porque a realidade, às vezes, fazia as criaturas estatelarem-se no chão.
De manhã acordou antes do despertador. A segunda-feira continuava quente. Tratou da higiene matinal. De seguida vestiu um fato de saia e casaco bege. Pôs um eye- liner castanho e rimel da mesma cor que lhe alongava incrivelmente as pestanas tornando-lhe os olhos maiores. O baton era cor de rosa um bocadinho para o vivo. Não tinha laranjas no frigorífico. Então preparou um sumo artificial. Fazia sempre isso quando a fruta lhe faltava em casa. Um hábito adquirido há três anos depois de ter passado os limites dos seus 52 quilos de peso. Tomou o pequeno almoço antes de sair. Nada de novo. Entre tantas invenções modernas aquela ainda era a melhor forma de alimento.
Saiu de casa depois de retocar os lábios. Eram nove horas, estava a abrir a porta do gabinete. Isabel não chegara ainda. Ao entrar, a rapariga espantou-se com a sua presença.
Bom dia, dra. Clara! Hoje veio muito cedo...
Bom dia, Isabel! Não sei se conhece o ditado de não ter palhas na cama... A mim aconteceu-me isso esta noite. Acordei com as galinhas.
E pelos vistos está muito bem disposta. – continuou a jovem.
É verdade. Como está a Isabel a dar-se por aqui? - mudou o rumo à conversa como fazia sempre que o assunto estava a ficar banal e sem interesse.
Bem! Já me sinto perfeitamente adaptada ao serviço e gosto disto. Gosto de lidar com gente. No outro emprego repunha stocks num hipermercado. Era muito cansativo.
Ainda bem... – e Clara pensava na quantidade de jovens com boa formação a executarem tarefas um pouco abaixo do seu nível – Enfim, sinais dos tempos. - O Pedrinho está bom? – perguntou.
Está, obrigado. É um bocadinho preguiçoso para comer. Corre tudo lá em casa! Passa a vida na cozinha a tirar os tachos e panelas dos armários.
É sinal de saúde e bem estar. Ele está em algum infantário?
Está. Hoje em dia não há outra alternativa...
Vou subir. Logo que chegue o correio, leve-mo por favor.
Está bem, dra. Clara.
Mal viu Diogo. Ele chegou cerca das onze horas mas à tarde teve um compromisso e Clara saiu às cinco. Foi, a seguir, ao hipermercado para restabelecer a despensa, principalmente de produtos de higiene e limpeza. Não se esqueceu especialmente das laranjas e dos iogurtes, embora muitas vezes lhes deixasse passar o prazo de validade, como acontece com todas as pessoas para quem a comida fica sempre para depois de qualquer coisa importante.
Às sete horas e já em casa, o telemóvel tocou. Era César finalmente.- Que bom!...– exclamava interiormente
Estou!
Olá! Está bom! Que tal o fim-de-semana?
Foi óptimo.
Mamou muito?
Alguma coisa...
Onde está agora?
A chegar a casa. Estou de regresso da aldeia.
Só hoje?
Ando lá a reconstruir uma casa e tive de tratar de uns assuntos esta manhã.
E os meninos? Esteve com eles?
Estive. Estão bons. Quer ir tomar um café lá a casa?
Quando?
Daqui a pouco.
Quanto tempo vai demorar?
Uns quarenta minutos.
Então, está bem. Até já. Um beijo.
Clara começava a prever qual o tipo de café e a misturar-lhe a ansiedade própria de quem está obesamente apaixonado. Para além do mais, no fundo existe sempre a fêmea dentro da mulher. É a lei da vida. Não iria, ao menos por ora, questionar-se mais sobre César. Depois, tudo haveria de ter um sentido qualquer...
Quando chegou perto da casa dele, estacionou o carro no lugar estratégico da última vez. A combinação para o encontro passava, assim, a ser tácita.
Que raio! Lá está a velhota na varanda!- notou.
César chegou entretanto e ela entrou no BMW. Teve direito a um beijo cinzentão, na boca. E em público. Clara não sabia como interpretar aquilo. Por um lado ele esquivava-se, sentia. Por outro, expunha-se sem qualquer pudor, logo alí no meio da rua, em frente á sua casa e quase sempre, tendo como testemunha indiscreta a velha do terceiro andar.
Então, o seu fim-de-semana?- perguntou César, já na garagem.
Estive no Alentejo com uns amigos. Foi óptimo. É um lugar lindo. Eles têm lá uma casinha em madeira giríssima... E a sua mãe, está boa?
Está- respondeu simplesmente, César.
Depois, pediu-lhe que o ajudasse a tirar tudo do carro. No dia seguinte a viatura ia para a revisão.
Tome lá esta saca. Cuidado, não se pique. São rosas...
São rosas senhor! Pareceu-me agora a Rainha Santa Isabel quando fez o milagre das ditas... - exclamou em tom teatral.
César deu a sua famosa gargalhada. Clara já começava a achar piada àquela forma de rir. A seguir pegou na saca e em mais algumas coisas. Ambos foram até à porta de acesso ao elevador. Ele ensinou-lhe como se deveria abrir e manter aberta, segura pelo rabo. A viagem no ascensor era circuito obrigatório e, finalmente, estavam à porta. César abriu-a e dirigiram-se logo para a cozinha onde Clara se apressou a tirar as rosas do saco.
- São todos iguais. Nenhum homem gosta de mostrar-se com flores. Têm sempre de as ocultar como se gostar de flores fosse uma característica exclusivamente feminina – pensava. De seguida iniciou o arranjo da floreira deitando as rosas velhas no lixo. César arrumava as outras coisas. Quando acabou, começou a despir-lhe o fato bege.
Será que só pensa nisto?- pergunta.
Não! - respondeu ele.
Sabe que por minha vontade ainda andávamos a conversar...
Então, nós também conversamos...
Muito pouco...
César continuava a despi-la enquanto se despia também. De costas ao léu ele sentou-se numa cadeira em metal. A seguir deu um pequeno grito pela frialdade das costas da cadeira. Clara pegou num pano da cozinha e colocou-o aí, para quebrar o frio. Então começaram a beijar-se sofregamente. E os sons dos beijos eram como uma ladainha que acaba sempre no assim seja...
Depois, sentou-a no colo, seminua.
Isto aqui não dá grande jeito... Vamos para o meu quarto...
Clara seguiu à frente enquanto César ficava a pôr um pouco de ordem na roupa dos dois, espalhada pelo chão, como se a casa se acabasse de transformar numa farraparia e, já no aposento iluminado apenas pelas luzes do corredor, estendeu-se sobre a cama, do lado esquerdo. O lado dele era o outro, sabia. Reservou-lho como direito mais do que adquirido. O dono ali era ele e ela uma visitante esporádica e sem qualquer outro estatuto definido.
De repente ela viu um bilhete...Nem queria acreditar. César escrevera-lhe uma mensagem e colocara-a em cima da cama para ela a ver...Estava até com receio de lhe tocar. Emocionou-se, sem conseguir pegar no bilhete, enquanto perguntava, mal ele chegara ao quarto:
É para mim? –
O quê?
O bilhete.
Bilhete... Que bilhete?
Não me diga que não é seu... Está aqui!- disse Clara apontando-lho enquanto dela se apoderava uma sensação de frustração. Afinal, ele tinha alguém e não fôra capaz de lho dizer...
Quando saí, sexta-feira, não estava aí nada. Só se for da mulher a dias! - disse rindo, depois de acender a luz para o ler. Depois disso, repetiu a última frase da missiva, em tom enfático: - Boa noite!
Então, já sabe de quem é?
Não. Não sei...
Não me diga que leu um bilhete assinado e não sabe de quem é?!...
Não –continuou César.
Deve ser mesmo da mulher a dias! Grande intimidade tem você com ela!... Para ela lhe deixar assim bilhetes precisamente no lado em que você dorme...
Apeteceu-lhe fugir dali ao mesmo tempo que César insistia, continuando a beijá-la, com um riso de pau na cara. Clara gelara completamente. O bilhete era de alguém que tinha as chaves de casa e lá o deixara com a maior descontracção, certo de um lugar adquirido sabe-se lá a que título...
Que eu saiba, a mulher a dias quando lhe deixa bilhetes, deixa-os na cozinha. Aliás, já me mostrou um em que lhe pedia amaciador para a roupa e as contas...
Esqueça – dizia ele, continuando a sorrir.
Clara pensava no assunto de uma forma ingénua e ao mesmo tempo egoísta. Talvez ele tivesse uma relação que quisesse acabar e introvertido como era, não o tinha ainda conseguido- tentava convencer-se, a custo. Lembrava-se de Diogo: - Clara; dá-lhe mais um tempo...Depois, olhou para César. Lá estava aquela carinha de menino a interferir nos seus sentimentos. Aquele homem mentia que nem cesto roto. Enquanto isso, lembrava-se da célebre frase em francês. “En amour trompe qui peut”, ou dito à portuguesa, alguém estava a enganar alguém. Talvez estivesse a enganar-se a ela própria, no final das contas. Esta iria passar assim. O tempo haveria de dizer claramente o que estava a acontecer.
Cedeu por fim, açucarando, de novo. Lembrava-se de uma vez ter dito a César que devemos adoçar os olhos quando olhamos para alguém. Nessa altura, ele, com um sorriso de menino engraçado, dissera-lhe que lá em casa até tinha mel. Ela estava agora a fazer isso: a amelar os olhos, a boca, o corpo e... Os telefones tocavam ora um ora outro, quase ininterruptamente. Clara já sabia porquê...
O duche veio a seguir. César foi buscar a toalha às riscas vermelhas e entregou-lha na casa de banho. Na banheira, lá continuava o cortinado dos biquinis de mulher, de todas as cores, formas e feitios, olhando a paisagem nua que tinham pela frente. Depois, já Clara estava vestida, César disse-lhe:
Tenho sopa fresca que a empregada fez hoje. Há também queijo e marmelada no frigorífico. Se quiser...
Não reflectiu por aí além. Entendeu a oferta como um gesto simples de pessoa simples que dá o que tem na maior das simplicidades. E aquele homem continuava a exercer um fascínio quase hipnótico sobre si.
Quero – respondeu sem grande hesitação.
Ele pôs a sopa a aquecer colocando a seguir dois pratos sobre a mesa de metal frio, em cima de duas pequenas toalhas individuais. Na mesa viam-se então as colheres, o queijo, a marmelada, facas e o pão. A fruta estava na banca, depois de retirado o cesto do sítio onde os dois tomavam agora lugar, ocupando dois dos três assentos aí existentes. A mulher olhava-o. Não sabia se tinha à sua frente um anjo ou um demónio, ou as duas coisas. De qualquer modo sentia vontade de lhe fazer uma festa na cara. Mas, as mãos permaneciam quietas. César só sabia foder. Agora, estava ali sentado à sua frente, de olhar vago e calado, sem fazer a mais pequena alusão ao que os cristos pendurados na parede do quarto haviam presenciado. E mais uma vez sentiu aquela sensação de amputação:
Será que a sopa não passa do preço de uma queca como ele diz?... Será mesmo assim?... – perguntava-se, intimamente.
Gosta mais de côdea ou de miolo?
De côdea.
Então é como a minha mãe- disse, com ar subtil. - Ainda bem, porque eu gosto mais de miolo.
Clara interrogava-se: precisaria César mais de miolo, como estava a querer parecer-lhe, ou contentar-se-ia ela apenas com as côdeas?!... Depois acabarem, arrumaram as coisas. A louça ficou suja na banca.
Amanhã, a empregada lava-a – disse o anfitrião.
Foram depois para a sala acabar o resto do tempo, na televisão e quando passava da meia noite, Clara preparava-se para ir embora. César iria levá-la à porta da rua, em pijama, quando os vizinhos já não andassem por ali a passarinhar.
Quer ficar cá?- perguntou ele, de repente.
Quero. Você ressona?
Não sei. Durmo sozinho. E você?
Não! - respondeu peremptória, com as dúvidas adiadas para o que viesse a seguir.
Clara tinha horror aos ressonadores. Costumava até dizer ironicamente que o ressonar devia ser um fundamento do divórcio escandalizando com isso os amigos. Deitaram-se, depois deste pequeno esclarecimento. Ela do lado esquerdo, ele do lado direito. A cama ou similar, era sempre o aperitivo, até mais o prato principal... Dormir lá alguém era um pequeno favor estratégico para a política sexual de César – começava, agora, a raciocinar – e hoje tocava-lhe a ela. O dono da casa e da cama ligou a televisão. No segundo canal transmitia-se a ópera Elixir do Amor. César levantou-se mal se deitou e foi buscar o CD da obra em causa. Explicou-lhe, depois, os andamentos, enquanto viam a representação.
A seguir a esta parte há uma ária muito bonita- ensinava, conhecedor, com um sorriso infantil.
Clara sentia-se uma nulidade em termos musicais. Conhecia poucas obras e poucos compositores, para além dos clássicos. Beethoven, Mozart, Bach, Verdi Chopin, Rossini, Bizet. Talvez conhecesse mais alguns e as composições mais significativas. Mas, a sua cultura musical não era por aí além. César parecia feliz enquanto, no decurso da ópera ía adiantando os passos seguintes da mesma, sorrindo, de vez em quando, com as personagens. Cerca da uma hora da madrugada ele preparava-se para apagar a luz.
Não estou habituado a dormir com ninguém- referiu, levantando a roupa sobre o corpo de Clara. Não consigo dormir nu.
Eu também não – respondeu, ao mesmo tempo que ele lhe via as cuecas, de novo vestidas.
Como é que quer ficar?
Na posição de colher...
Na posição de colher? Não sei como é...
Vire-se de costas para mim. Depois eu encaixo no seu corpo...Se bem que deveria ser ao contrário. É sempre o mais pequeno que encaixa no maior.
Às vezes é ao contrário... – insinuou, maldoso
César era bastante mais alto e Clara, no seu metro e sessenta e cinco parecia minúscula ao lado dele. Sentia-se pequenina mas com muita arrumação como costumava dizer aos amigos, que achavam imensa piada à expressão. Agora e ali, sentia-se quase nada e, praticamente, tornara-se uma desconhecida de si própria. Não demorou grande tempo até ele adormecer. Clara, no escuro do quarto, escutava os sons da noite. O barulho dos carros a passar na rua. Ao lado, sentia aquele homem grande tipo montanha russa semelhante a vertigem. Tinha um sono de bebé, respiração pela barriga e um rosto de anjo. Aproveitou para o tocar de levezinho sem qualquer constrangimento, no peito, nas costas, beijando e tacteando toda a pele que lhe passava à frente da boca e dos dedos, numa geografia imensa a que procurava dar sentido. E, dúvida para cá, credulidade para lá, não seria agora a melhor altura para se deixar vencer por qualquer sensação perversa. Tinha de desfrutar o prazer de dormir com César. Talvez aquela noite fosse o início de algo bonito entre ambos. Até aí tudo fôra demasiado ambíguo e confuso e na escuridão do aposento continuava a percorrer o mapa do corpo do homem que tanto a encandeava. Era mesmo uma vertigem aquela montanha russa ali ao lado dormindo silenciosamente. Seria um promíscuo?- perguntava-se durante a vigília. Tentava mentalizar-se: uma vertigem nunca foi boa. Deveria haver dezenas de mulheres na vida dele. Ao mesmo tempo lembrava-se do bilhete. Não queria pensar nisso. Porém, o estupor da ideia não a abandonava, maquiavélica.
Viu o dia clarear por entre as persianas da janela, com os pássaros chilreando nas copas das árvores contíguas ao prédio. O relógio despertou, já a manhã estava mais clara do que o seu nome. César, num gesto ensonado e abrindo a boca, desligou-o.
Bom dia! Dormiu bem?
Nem por isso.
Porquê?
Não estou muito habituada a dormir fora de casa...
Não lhe apetecia contudo sair da cama. Desejava que o sono a vencesse ali, onde não sabia se voltaria a passar mais alguma noite e, caso tal acontecesse, gostaria que fosse bem diferente daquela. Foi ele a insistir que se levantassem.
Vamos embora, menina! Temos de ir trabalhar!
Está bem. Já que os doentes não vão...
O que está para aí a dizer?!...
Não dizem que o trabalho dá saúde?!- brincou ela
Ah! – e César desprendeu aquela gargalhada sonora.
De seguida, Clara dirigiu-se à casa de banho com aquele pedacinho de civilização chamado cuecas a tapar-lhe as virtudes. Ou seriam vícios?!... – lucubrava, rindo intimamente. A toalha de véspera permanecia sobre o varão do cortinado com biquinis de mulher das mais variadas cores, formas e feitios, mais descansados pelo sono da noite que a ela fora tão branca. Tomou duche e, já vestida, foi ao saco buscar a bolsinha dos primeiros socorros, como chamava aos produtos de maquilhagem. Pediu a César um pouco de perfume. Só usava perfumes de homem, de preferência de essências escandinavas. Ele entregou-lhe um frasco de Aramis, abrindo um armário onde havia vários, todos da mesma marca – Ao menos ao perfume é fiel- pensou.
Tome. Depois não me venha dizer que teve uma data de mulheres atrás de si...- ironizou.
Acha que é o perfume que atrai? Pois olhe que eu só uso perfumes masculinos. Foi isso que o atraiu em mim? Imagino então a quantidade de homens por quem sentirá atracção!...- continuou ela na mesma linha mas sem esperar resposta. – E quanto a mulheres, tive uma, apaixonada por mim!...
Quando? Agora?
Não, há uns anos atrás.
Teve vontade de lhe perguntar se os homens o perseguiam e se havia algum apaixonado por si. Aceitara com tanta naturalidade o facto de uma mulher ter atracção por ela.. Se calhar, o mesmo se poderia passar consigo próprio. Mas, não quis levantar essa questão, apesar de, na sua cabeça, a ter já colocado como plausível. E continuou, depois de César ter tomado duche, limpando-se, enquanto os cabelos, habitualmente penteados para trás, lhe caiam sobre a testa, dando-lhe um ar de menino rebelde.
Afinal o que foi que o atraiu em mim?
A boca e os olhos! Numa mulher, é para onde olho primeiro!
Ah! Se me dizia terem sido o que guardo no soutien e as pernas, eu iria achar que você estava a mentir!...
Clara preparava-se para sair após a lengalenga habitual das despedidas. Pensou de novo na mulher do terceiro andar.- Será que a esta hora o raio da velha já está plantada na varanda?- interrogava-se.
César deu-lhe um beijo na boca.
Até amanhã.
Obrigado, Montanha Russa... Eu ligo-lhe!...
Montanha Russa, eu?!...
Sim. É pior do que uma vertigem... Até amanhã.
Até amanhã - disse por sua vez, enquanto com as chaves mais parecidas com as de um portão de cadeia abria a porta.
Já no elevador, Clara olhou-se ao espelho. Estava com umas enormes olheiras e mal saiu para a rua apressou- se a baixar os óculos de sol, colocados na cabeça. Sentiu uma coisa esquisita. Com César, talvez estivesse a ter a maior miopia cerebral de toda a sua vida...Olhou para a varanda do terceiro andar.
- Raio da velha! Lá está ela! Não deve ter que fazer! – comentou, surdamente.
Não demorou muito a chegar ao gabinete, cerca das dez horas. Como de costume, cumprimentou Isabel que lhe estendeu toda a correspondência recebida.
Subiu e sentada num dos maples, os olhos fecharam-se-lhe. Diogo chegou pouco depois, batendo à porta.
Entra.
Bom dia - cumprimentou ele, sentando-se no outro sofá.
Bom dia – retribuíu.
Mais um dia de trabalho...
É verdade. Nós só trabalhamos porque não conseguimos ser felizes. De contrário, era só isso que fazíamos...
Filosofando logo de manhã, Clarinha?
Para mim é ainda noite! E a de ontem...
Porquê?
Talvez eu a tenha perdido...
Diogo nada perguntou, limitando-se a mudar de assunto.
Estamos quase em Julho. Lá vou de férias no dia quinze.
Sempre vais às Canárias?
Vou. Dia vinte. A Ivone só fica despachada da escola nessa altura.
Os miúdos também vão?
Não. Sabes como é. Nesta idade... O Frederico tem a namoradita e não há quem o arranque de Sintra e Lisboa. A Bibiana, a mesma coisa. Os filhos nunca são nossos Nem mesmo em pequeninos... E tu?
Este ano está um bocado preto a esse nível. Mudei de casa, tive mais uns gastos. Não ando lá muito endinheirada. Estou na hora de apertar o cinto...
Vais depois de eu regressar, claro.
É, Dioguinho. Quinze de Agosto. No próximo ano talvez vá a Paris. Tenho uma amiga e colega da faculdade que me anda a desafiar para ir com ela e o marido. Este ano vão ao Quénia. Convidaram-me. Por razões obvias, não aceitei. Além disso, sabes como gosto de andar de avião...
Bom! Vou até ao meu gabinete. Até já- disse, passados alguns instantes.
Até já – retribuiu Clara, continuando sentada sem se mexer.
Andou por ali durante todo o dia sem fazer grande coisa. Às quatro e meia saiu. Foi para casa direita ao quarto. Arremessou-se em cima da cama. Estava cansada. Não lhe apetecia senão dormir. Recordava a noite de véspera. César provavelmente não lhe telefonaria. Adormeceu profundamente.
Acordou no dia seguinte vestida e com a maquilhagem toda borratada.
Durante a semana César ligara-lhe uma vez. Por seu lado, ela telefonara-lhe também em dias intercalados e já era o final de Junho, a última sexta-feira do mês. Nesse dia no foi trabalhar. Tinha falado com Diogo. Iria a Trás-os-Montes nesse fim-de-semana. Já metera o saco da roupa no carro bem como umas cestas que tinha trazido da última vez, com castanhas e Eram oito horas quando saiu de Lisboa. Parou no Porto. Estava perto da casa da Juju, na Boavista. Almoçou no Shopping Cidade do Porto. Lembrou-se de ligar aos irmãos. Mas, estavam a trabalhar e não poderia estar com eles. E, talvez no dia seguinte fossem à aldeia. Pegou no telefone e ligou à Juju.
Olá, Juju! Está boa?
Quem fala? – perguntou ela do outro lado.
É a Clara!
Ó Clarinha! Onde é que está?
Estou no Porto perto de sua casa. Vou a caminho da aldeia. Quer vir tomar um cafézinho comigo?
Ia agora mesmo fazer isso...
Então se não se importar vamos as duas. Vou buscá-la. Dentro de cinco minutos estou aí.
Está bem, Clarinha. Até já.
Até já.
Não demorou muito parava à porta da Juju, que desceu logo.
Então Clarinha? Por aqui?
É verdade - respondeu, ajudando-a a sentar-se no carro, depois de se cumprimentarem.
Tem passado bem?
Tenho sim. E a Juju?
Cá vou andando com os males da idade.
Na semana passada estive com a Catarina e com o Xavier.
Eu sei. Ela telefonou-me e disse-me. Nessa altura as meninas estavam comigo.
Boas netinhas, melhor avózinha...
Graças a Deus.
Onde quer ir, Juju? Já não conheço muito bem o Porto. São muitos anos fora...
Como ainda vai viajar, talvez aqui pertinho.
Quer ir ao Península? Venho agora do Cidade do Porto. Lá, sempre há parque de estacionamento.
Está bem. Vamos então...
Já na esplanada, trocaram mais dois dedos de conversa.
Então, Juju? Como vai esse coraçãozinho?
Com muitas saudades do meu francês- dizia ela, com uma lágrimazita ao canto do olho.
Isso é que foi um amor!...
É verdade...
Agora já não há amores assim, Juju. Os homens estão em vias de extinção...
Eh! E a Clarinha?
Conheci uma pessoa. Mas não me quero pronunciar...
Não deixe que ele a magoe, Clarinha. A Clarinha é um amor. Já a conheço há mais de vinte anos quando ia lá por casa com a Catarina e merece ser feliz...
Olhe, Juju: isso talvez não seja para toda a gente. Vamos lá ver se consigo tirar algum som dessa harpa – respondeu, olhando preocupada para o relógio.
A Catarina já me disse qualquer coisa... Mas, não se alongou muito...
Também não teria muito por onde se estender. Temos falado tão pouco sobre o assunto...São três horas. Vamos embora? Ainda tenho cerca de duzentos quilómetros pela frente- informou, preocupada.
Está bem, Clarinha. E já fez uma viagem muito longa... Veio hoje?
Vim. Regresso a Lisboa no domingo e quero ir cedo.
Desceram até ao parque..
Quer ficar em algum lugar?
Não. Se lhe der jeito, deixe-me em casa.
É uma ordem!
Obrigado, Clarinha. Se estiver com a Catarina dê-lhe beijinhos meus.
Ok! Obrigado e um bom fim-de-semana.
Clara arrancou rumo à A4, após a porta do prédio se fechar atrás da amiga que continuava a acenar-lhe com a mão.
Chegou a Vilarinho de Cima às 7 horas e foi directa à casa onde passou a infância. As coisas estavam iguais. No caminho, tinha comprado um pão grande. Apetecia-lhe descodeá-lo e ficar só com o miolo. Lembrava-se de César e dos seus olhos de cor indefinida. Tinha saudades dele. Mas não lhe podia telefonar. Não tinha rede. Raio de contradição e que piegas sentimental parecia...Depois, comeu qualquer coisa. Viu um pouco de televisão e deitou-se cedo.
Sábado acordou cerca das nove e meia. Tomou duche. De seguida deu uma volta. Agora já não teria de se preocupar com as perguntas dos vizinhos como fazia antes de se casar com o Paulo. Toda a gente sabia que o casamento dela havia sido um fiasco. Um pouco mais tarde foi a casa dos tios, a única família a morar na aldeia. Pelo caminho eram os cumprimentos da praxe. Estavam todos mais velhos. Ela também- concluía- o tempo não deixa mesmo a gente em paz...
Com as cestas na mão entrou pela porta escancarada como noutros tempos. – Aqui é sempre tudo igual - pensou, mal avistou a tia.
Então, tia Cândida, tudo bem por aqui?- perguntou, ao cumprimentá-la, olhando-a nos seus mais de setenta anos, todos vividos naquela terra.
Estás cá, Clara?
Vim ontem. Trago-lhe cestas que levei com as castanhas. E o tio Agostinho?
Anda por aí. Cada dia mais rabugento e sempre adoentado, como sabes.
A Rosa Maria e a Alice?
Estão bem. A Rosa Maria deve vir cá em Agosto com o Fernando e a Diana. A Alice, só lá para o Natal. Ainda ontem me telefonaram...
E a tia? Quando é que lhes faz a vontade e vai até lá?
Bem, bem! Iamos nós agora daqui para a América!... Eu e o teu tio já não somos nenhumas crianças... Eles que venham cá enquanto nós formos vivos e formos andando...
Se calhar é melhor assim. Se a tia gostasse tanto de andar de avião como eu, nunca lá punha os pés.
Então, e tu?
Lá ando por Lisboa. Mudei agora para uma casa maior. É mesmo em Lisboa, na zona de Benfica.
E a de Odivelas?
Vou vendê-la na primeira oportunidade...
Os teus irmãos devem estar a vir por aí. Vão entrar de férias.
Também ainda não foram à casa nova. Tive a esperança de os encontrar por aqui...
Queres almoçar connosco?
Está bem. Obrigado. Depois, à tarde, vamos dar uma volta.
Quando vais embora?
Amanhã. Só entro de férias no dia catorze de Agosto. A seguir sou capaz de vir até cá...
Após o almoço foram a Mirandela e sentados os três na esplanada Espelho de Água conversando de tudo um pouco, já o dia envelhecia quando o telemóvel de Clara tocou.
Era César.
Olá! Está bom?- perguntou, ao reconhecer o número e a voz.
Estou! – respondeu ele
Onde está?
Em Lisboa.
Fazia-o na aldeia, como de costume.
Houve ontem um concerto na fundação. Tive de ficar.
Não me disse...
Não me lembrei... Onde é que você está?
A quinhentos e tal quilómetros de Lisboa. Estou na aldeia. Mais concretamente em Mirandela com os meus tios. Viemos tomar café...
Também não me disse...
O César está sempre com tanta pressa...
Não!- retorquiu, fingindo-se despercebido- Quando é que vem para Lisboa?
Amanhã - respondeu Clara, continuando: - Que pena!... Logo hoje, num dos poucos fins de semana que tem disponíveis é que me havia de lembrar de vir à aldeia. Vai ficar por aí?- insistiu.
Vou.
Então amanhã, mal chegue telefono-lhe.
Está bem.
Até amanhã. Um beijo.
Ele retribuiu do outro lado e ela constatou que, mais uma vez, não a convidara para o concerto. Clara não queria. Mas, o seu subconsciente registava matematicamente todas as impressões desencadeadas pelo comportamento de César.
O sol estava quente, a esplanada agradável. O tio permanecia relativamente calado.
Então, tio Agostinho! Não fala?
Tu sabes como o teu tio é. Calado...- interrompeu a tia.
Ao contrário tu, és uma metralhadora! – acrescentou ele.
Falo o necessário – retorquiu.
Então... É a tia que me dá as novidades cá de cima... Quem morre, quem casa...
As mulheres têm mais jeito para essas coisas - disse o homem, ironicamente.
Têm tanto jeito como vós. É sempre assim, Clara. O teu tio passa a vida a rabujar comigo.
Deixem lá isso! – apaziguou a sobrinha.- Querem ir a mais algum lado? – prosseguiu, pacifista.
Não – responderam ambos.
Ficamos mais um pouco. Depois, vamos embora.
A tarde demorava a passar. O telefonema deixara Clara inquieta. Quisera que fosse já domingo de manhã para rumar até Lisboa e para que a sua ansiedade tivesse umas pequenas tréguas. Regressaram a Vilarinho seriam umas seis horas. O tio Agostinho gostava de comer e deitar-se cedo. Foi isso que todos fizeram.
À noite, na cama, Clara, depois de ler a história de Ali-Babá e os quarenta ladrões do Livro das Mil e Uma Noites que andava lá por casa, lembrava-se de César. Curiosamente, nunca sonhara com ele, apesar de ele lhe peneirar as ideias constantemente ao ponto de as sentir na cabeça, até mais ralas. Intercalava os pensamentos cesarinos com os sons da noite. As relas a cantarem, a brisa a passar, as sombras das árvores a mexerem. Quando era criança tinha medo disso tudo. Agora, os receios eram outros. O perigo tinha um nome: Montanha Russa. Nunca fôra de se agarrar à travesseira para dormir. Mas ali, naquele silêncio, sentia necessidade de um abraço, mesmo fingido. Até que adormeceu.
De manhã, acordou cedo. Tomou banho e arranjou-se, afinal o que toda a gente faz todos os dias. Ingeriu o pequeno almoço. Uma chávena de cevada fresca e pão com manteiga. Iria almoçar ao Porto. Depois, foi a casa da tia, mal acabou a pequena refeição.
Já vais?- perguntou ela quando a viu entrar.
Já - São quinhentos e muitos quilómetros. E ao domingo à tarde, com as filas de trânsito, é um problema para entrar em Lisboa.
Não será também por causa do telefonema de ontem?- sugeriu a tia, com um pouquinho de malícia.
Também... – respondeu, sorrindo.
Queres levar alguma coisa?
Quero. Se me der. Não há melhor do que os legumes da horta.
Então vou colher umas vagens e umas alfaces. Os espinafres já não estão muito bons. Mas, se quiseres aproveitar alguns... Leva também salsa.
Clara colheu um ramo e colheita acabada, recolheu os sacos plásticos e foi metê-los no carro. Eram onze horas estava a despedir-se dos tios.
Obrigado. Se ligarem à Alice e à Rosa Maria, dêem-lhe cumprimentos meus.
Está bem. Se vieres em Agosto ainda vês a Rosa Maria e o Fernando.
Está bem. Então, adeus. Beijinhos.
Já estava a caminho. Teve ainda tempo de comprar o pão saloio que levava sempre. Pediu dois. Um para ela, outro para César. À uma e pouco estava no Porto. Desta vez tinha de ligar aos irmãos. Estavam todos bem. Convidaram-na para almoçar. Demoraria mais um pedaço se aceitasse. Por isso recusou. Raios partissem aquela Montanha Russa a interferir tanto na sua vida- pensava. - Certamente iriam encontrar-se nas férias. Veria os sobrinhos, depois do último Natal. Almoçou nas Antas. Às duas e meia apanhava a ponte do Freixo, rumo a Lisboa. Três horas depois, chegou.
Em casa, arrumou as coisas no frigorífico. Partiu um dos pães às fatias e congelou-o. Tomou banho a seguir e vestiu uma roupa fresca. Deliberadamente não telefonou logo a César. Resolveu dar uma volta pela Lisboa destrânsitada. Ligar-lhe-ía de seguida. Eram quase oito horas. Procurou o número do telemóvel. Premiu-o. César não atendeu. Decidiu esperar mais um pouco. Insistiu de novo. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. De vez em quando, ia para a mensagem. Não podia deixar nenhuma. Estavam bloqueadas.
Foi até às Docas, sentou-se numa esplanada e pediu um sumo. Às nove horas resolveu ir até Telheiras, perto da casa de César. Não muito. Não estava ali para o espiar. Se ele tivesse algo a dizer tinha de ser por mote próprio e não pressionado. Por outro lado, lembrava-se da vizinha cusca. Não queria fazer papel idêntico. Continuou a ligar. O mesmo de sempre. César não atendia. Eram já onze horas. Clara tinha ficado de lhe telefonar e ele estava a ser indecente – pensava, furiosa.
Às onze e meia foi para casa. Nunca mais na vida lhe veria a cara- dizia com os seus botões. Comeu depois um iogurte e pão com manteiga, deitando-se. Ocorreu-lhe então que se esquecera do pão destinado a César. Tinha-o deixado no carro. Vestiu o roupão e foi buscá-lo à garagem. Guardou-o de seguida no frigorifico, partido aos pedaços. Apetecia-lhe fazer o mesmo ao destinatário.
Mal foi para a cama ligou a televisão. Não conseguia, contudo, concentrar-se. Esperava no mínimo um telefonema, mas o telemóvel continuava mudo. À meia-noite desistiu. Processo acabado. Não tinham sido necessários os três meses como tinha aprazado com Diogo.
De manhã acordou mal disposta. Tinha de controlar-se. Diogo e Isabel não tinham culpa alguma dos seus problemas. Apegou-se com afinco ao trabalho, apesar de, naquela época, não haver muito. O colega foi cumprimentá-la como de costume.
Olá, Clarinha!
Olá, Diogo. Tiveste bom fim-de-semana?
Tive. E tu?
Fui à aldeia, como sabes. Mas à noite chateei-me de morte.
Por causa do César, claro...
É. Combinámos que lhe ligaria quando chegasse a Lisboa e ele fez o favor de não atender. Nunca mais lhe telefono na vida...
Não estarás a ser radical de mais?
Vamos ver as explicações da excelência!...
É isso. Dá-lhe mais uma oportunidade.
Não sei se a merece. Vou esperar até logo à noite...
Queres ir amanhã jantar lá a casa? A Ivone vai fazer uma sardinhada. E como sei que tu adoras sardinhas...
É boa ideia. Aceito encantada. Ao menos esqueço um pouco aquele idiota...
Foi cedo para casa. Jantou igualmente cedo. Nada de César. No mínimo devia estar envergonhado e pedir-lhe-ia desculpa- reconfortava-se, intimamente. O tempo ía passando e o telefone continuava cinicamente silencioso.
- É melhor assim. Não deve passar de um crápula e de um mulherengo...- ruminava ela, com as paredes do quarto.
Mais uma noite borbulhando. De manhã teve uma ideia. Havia de fazer-lhe sentir como estava furiosa com ele. Não sabia como, mas iria conseguir. Ao final do dia estava Clara plantada junto à fundação, nas Alamedas. Fingiu não ver César quando ele saíu. Foi quando o próprio se aproximou, então. Intimamente chamava-lhe idiota pelo sorriso aparentemente inocente que lhe bailava nos lábios finos e cínicos.
Não ia falar-me?- perguntou ele.
Não! Depois do que você fez no domingo!...
Eu bem vi aquelas chamadas todas. Tinha deixado o telemóvel no carro. Estive com os miúdos. Vieram cá a Lisboa com a mãe- desculpou-se, com o ar mais desprotegido do mundo.
Já passou um dia e ontem e não deu qualquer justificação...– observou irónica.
Não pude. Ia ligar-lhe hoje. Não quer ir tomar uma bica? Assim podiamos conversar...
Está bem – respondeu Clara, com indiferença.
Há aqui um barzinho perto...
Dirigiram-se ambos para lá. Sentaram-se na esplanada. Clara pediu uma água. César, uma bica.
Então, ainda continua zangada comigo?
Começava a amolecer ao mesmo tempo que um sorriso se lhe desenhou nos lábios. Daí a pouco as mãos dele pousavam-lhe nas pernas vestidas de saia curta e perfeitamente vulneráveis. César fez-lhe uma carícia delicada.
Não me volte a fazer semelhante! – dizia. - A mim só têm de me dizer as coisas frontalmente! Não mas podem impingir!...
Não quer ir lá a casa? Tinha um compromisso. Mas adio para amanhã. Tenho a sopinha do costume. Se quiser...
Hoje não posso. Vou comer umas sardinhas a casa do meu colega! Amanhã tudo bem...
Então, está assente. Espero por si cerca das sete e meia.
Estava na hora do costumado beijo. E... ei-lo de novo, público e desconcertante. Talvez mesmo latoso. Deixava-a perfeitamente confundida. César era por de mais incoerente. Ficava sem conserto. Mas provocava-lhe aquela sensação de pele incrível...Sentia-o como um veneno... ou um feitiço. Mais veneno do que feitiço. Era bonito. Contudo, começava a parecer-lhe pouco interessante. Não era capaz de uma conversa senão banal. E se às vezes dizia algo de jeito isso era proveniente de um conhecimento puramente enciclopédico, destituído de qualquer sentimento. Então a filosofia da vida, pelo menos como ela a entendia, passava-lhe a quilómetros de distância. Parecia-lhe um ser perfeitamente primitivo. Para ele, devia importar somente a satisfação das necessidades mais básicas: comer, proteger-se do frio, foder, especialmente. Mas tinha um sorriso tão doce e aparentava ser tão tímido...Em que havia ela de ficar?!...
Não passava pela cabeça de Clara vir a magoá-lo algum dia. Às vezes, ele parecia-lhe um menino à procura da mãe que possivelmente lhe faltara na infância. Despediram-se mais uma vez, enquanto na cabeça lhe bailavam emoções contraditórias. Passavam o tempo a despedir-se e principalmente, ao telefone.
Então, até amanhã.
Até amanhã.
Clara dirigiu-se para Sintra. Falara com Diogo. Iria mais tarde. Tinha uma pendência a resolver. Só não lhe dissera qual. O amigo era bem capaz de a deduzir. Chegou a casa dele sensivelmente às oito horas. Diogo vivia numa moradia herdada dos pais. À frente, a moradia tinha um pequeno jardim e atrás possuía um pátio grande onde, de vez em quando, fazia umas patuscadas com os amigos. Foi ele quem abriu a porta.
Estás com melhor aspecto, Clarinha!- disse sorrindo. - A tua pendência parece ter ficado resolvida...
Por agora, ficou...
Vamos entrar. As sardinhas estão ainda a assar. Estão cá uns amigos nossos de Peniche. Aliás, foram eles que as trouxeram... São óptimas... As sardinhas. Os amigos também. Garanto-te que não fazem jus ao ditado...
Ainda bem! Gente reles já chega...
Clara, mal entrou, cumprimentou Ivone, o Fred e a Bibi. Já não os via desde o carnaval.
Olá! Há tempos que não vinhas cá a casa... – disse Ivone.
Se bem me lembro, desde Fevereiro. Está tudo bem por aqui?- rematou, mais ou menos encabulada. César era o culpado de tanta ausência- dizia-se interiormente.
Tudo – continuou a mulher de Diogo.
Sei que vão até às Canárias!...
É verdade. Logo que acabe as aulas, mais concretamente, no dia vinte de Julho - informou Ivone, ladeada por Norberto e Celeste. Apressou-se a fazer as apresentações. - Esta é Clara, colega do Diogo lá no gabinete. A Celeste e o Norberto...
Muito prazer – retorquiram todos, quase simultaneamente.
As sardinhas ficaram assadas decorrida uma boa hora. As mulheres trataram da mesa, dos pimentos, dos tomates, da broa e do caldo verde com a tora de chouriço. Para os homens ficou reservado o vinho, bem como as sardinhas e as fêveras assadas na brasa que se destinavam ao Fred e à Bibi. Nenhum dos dois era lá muito amante daquele peixe miúdo escamoso e cheio de tripas como costumavam dizer, quase enojados. Durante o repasto conversaram de política e dos últimos casos dos media. A Expo 98 e as irregularidades financeiras estavam na berra, os hotéis flutuantes enchiam-lhe a boca de criticas muito mais do que eles próprios se haviam de encher com gente.
Às onze horas tocou o telemóvel de Clara. Era César a desejar-lhe um bom jantar.
Obrigado por ter telefonado- disse, enquanto pensava: Pelo menos não está com nenhuma mulher...Até amanhã. Um beijo.
Outro para si.
Acabaram de comer cerca da meia-noite.
Era bom ser profissional liberal. Não tinha horários a cumprir e Isabel lá estaria no dia seguinte para abrir o gabinete.
Quarta-feira à tarde chegou e Clara saiu do gabinete cerca das seis horas. Tinha surgido um imprevisto à última hora. Ficou juntamente com Diogo a resolvê-lo. Mal a questão ficou solucionada dirigiu-se logo a casa de César, que já lá estava, bem como a velhota, debruçada à varanda, na sua função de espia gratuita.
- Incrível! – pensava Clara. - Hoje vou falar-lhe do facto.
Tocou à campainha. A porta abriu-se de seguida. A de casa estava escancarada. Não o viu. Entrou sem cerimónia. De repente César saltou do lado esquerdo como se lhe quisesse pregar um susto. Parecia uma criança.
Não a esperava tão cedo – disse, enquanto lhe dava um beijo na boca.- Queria fazer-lhe uma surpresa...
Que surpresa?
Ia tomar um banho e depois aparecia-lhe todo nu...
Saiu-me cá um pornográfico...
César pegou-lhe no casaco e pendurou-o no bengaleiro à entrada. De seguida, sentaram-se no sofá da sala.
Você já reparou numa velhota que está sempre à varanda do terceiro andar?- pergunta Clara.
Não. Não me lembro de a ter visto. Não sei quem é. Passo pouco cartão aos vizinhos...
Parece que está sempre a coscuvilhar, o raio da mulher!...
Não sei – respondeu César.
Bom! Deve ser só impressão minha e uma enorme coincidência. Como tem estado calor ela deve ir para a varanda apanhar fresco. Se calhar é reformada! - Acabava de dizer isto e já César lhe desapertava a blusa metendo-lhe as mãos pelo soutien, tentando pôr-lhe os seios à mostra.
Tens umas mamas tão boas, rapariga- repetia, enquanto lhas beijava.
Não era bem aquilo que Clara esperava ouvir. Mas, mais uma vez, deixou um doce enlevo, talvez cego, surdo e mudo, tomar conta de si. Desviou-o docemente. Começou a beijá-lo na boca, nos olhos, na testa, como se lhe quisesse ensinar algo sobre o amor, do qual ele parecia saber tão pouco. Isso desencadeava-lhe de imediato aquela sensação irresistivelmente voluptuosa.
Ah! César!... Adoro beijar-te!... – dizia, gemendo baixinho com os lábios colados aos dele. - Tens um ar tão doce!... Não sabes como é bom sentir assim alguém!... - E encostava o corpo nu ao de César, vibrando a cada contacto de pele.
Tens uns lábios tão sensuais, querida! Fico logo cheio de tesão! – e, enquanto dizia isto, abria o fecho das calças, conduzindo a mão de Clara para o seu sexo. - Excitas-me tanto! Adoro essas tuas maminhas boas quando te encostas em mim!..
Nunca senti nada assim!...- dizia ela numa linguagem doce, bem diferente da que lhe trespassava os ouvidos - Nunca pensei que fosse capaz de ter tanto prazer com alguém... Gosto tanto de ti!...- dizia ela. E, com os olhos mais ternos do mundo, olhava para César. – Há algo em ti que me comove. Não sei o quê. Mas um dia hei-de descobrir o porquê desta estranha sensação....
Deixa-me ver como estás... - e levou a mão lá abaixo onde as cuecas dela, ainda permaneciam...
Clara ajeitou o corpo por forma a permitir o contacto. E ele lhe acariciava-lhe o púbis, enquanto removia a penugem.
Ah!... mocinho!...- e César acabava de tirava-lhe a única peça existente no seu corpo.
Que coninha boa!... Estás encharcada!... Senta-te em cima de mim!... Vou metê-lo todo dentro de ti!... - E os dois corpos estavam agora unidos pelo lado mais recôndito da natureza do homem e da mulher, naquela altura em que as palavras se tornam indiferentes. Clara continuava a beijá-lo, roçando os lábios nos dele. Ao seu rosto ia buscar tudo para que o corpo se abrisse em ondas de prazer intenso. Para ela era algo de divino, quase sobrenatural. César parecia-lhe Deus e a Deus nada ousaria negar apesar de não O conseguir imaginar a proferir frases tão vernáculas como as que continuava a ouvir da boca do homem ao seu lado. Sentada sobre ele, os movimentos saíam-lhe instintivos, totalmente comandados pela natureza das coisas.
Ah!... César!... É tão bom estar contigo...
Também é bom estar contigo! E ainda por cima tu fodes tão bem!... Deixa-me agora encostar ao teu cuzinho... Dá-me tanto gozo!...- dizia, rudemente.
Clara lembrava-se dos macacos. Era a forma de eles se relacionarem sexualmente. Pensou vagamente na teoria da evolução da espécie. Afinal, os homens não tinham evoluído nada... Agora, lá estavam de novo os telefones a tocar, ora um ora outro. Na cabeça de Clara estava cada vez mais nítida a razão por que não os atendia.
Penetrou-a, por fim, ao mesmo tempo que lhe acariciava os seios, com ambas as mãos. Os movimentos eram rápidos, acompanhados pelos gemidos de ambos.
Oh rapariga! És boa como o milho... Vira-te! Vou comer-te! Encosta-te bem! Assim!... Oh! Esfrega-te toda em mim! Come-o todo! Vem-te ! Oh!... - Palavras para quê?!... ambos não passavam de um homem e de uma mulher no acto mais natural da vida,
César...- gemia, enquanto ela atingia o mais completo orgasmo feminino.
Agora é a minha vez!- continuava - És tão boa, rapariga! Toma tudo! Enche essa cona toda!.. Oh...Oh!...Oh...- E esvaia-se dentro dela, de olhos fechados, como se experimentasse uma sensação de morte.
Permaneceram, depois, em silêncio por alguns momentos. Clara beijava-o repetidamente nos lábios, nos olhos, na testa. Ele, quieto, deixava que a mulher o tocasse, como se não pudesse corresponder às carícias dela. Talvez fosse mesmo a única forma de permitir que alguém lhe desse carinho. Em circunstâncias normais, era a pessoa mais distante que Clara algum dia encontrara. César, por sua vez, conhecera hoje, mais do que nunca, a fragilidade de Clara, sobre quem tinha um enorme ascendente. Ela estava profundamente apaixonada por si, um homem cuja cor dos olhos, Clara não conseguira ainda reter na memória, por mais estranho que pudesse parecer.
Feche as pernas- disse por, fim estendendo-lhe um maço de lenços de papel colocados na parte inferior da mesa de vidro, à frente do sofá.
César, sente-se aqui um pouco! Abrace-me!
Abraçou-a como pediu. Mas a distância de sempre já se instalara de novo entre ambos. Só os braços dela davam alguma coisa. Os de César limitavam-se a receber com enorme indiferença e mais uma vez Clara sentiu o vazio - Talvez para a próxima...- mentalizava-se.
Vamos tomar banho?- perguntou ele.
Vamos- respondeu..
Dirigiram-se para o sítio onde as cortinas com biquinis de mulher de todas as cores e feitios impediam que a água da banheira chapinhasse para fora. A toalha era a mesma. Branca, de riscas vermelhas como a cor do sexo, afinal, a cor preferida de César.
Por fim foram para a cozinha tratar da sopa. Comeram como da última vez.
Você é muito racional, César.
Por que diz isso?
É uma questão de intuição...
Você também é- retorquiu .
Tenho um lado racional. É através dele que me reequilibro quando as coisas não correm bem. Mas, sou muito versátil. E esse lado só o uso em caso de grande necessidade. Gosto mais do lado humorístico e do emocional. Este então tem tantas facetas... Sabe? Às vezes, sou um bocado louca... No bom sentido, é claro...
Nunca vi nada...
Provoque-me e vai ver...
Promessas...
Eu tenho um sentido de justiça muito elevado. Desde criança. Um dia uma mulher aproveitou-se de uma coisa minha. Nunca mais consegui olhar para ela. Só tinha doze anos e ela vinte e seis. Jamais pude esquecer o facto. Magoou-me profundamente.
César ouvia-a, enquanto comiam sem ele dizer grande coisa. De seguida, foram para a sala ver televisão. O zaping começou, estacionando num filme erótico.
Vamos vê-lo. Não vá já embora...
Agora reparo. Deve inspirar-se nestas coisas. É tão versado nas posições coitais. Até mais nas do canal 18. Deve vê-lo muito...
Nem por isso. Não passo há tanto tempo um fim-de-semana em Lisboa. A excepção foi o último. Você também o vê...
De vez em quando. Mais até depois de o conhecer. É para comparar... Em algumas, revejo-o a si. São iguaizinhas- disse ela, brincando.
Apesar de que gostaria de fazer amor com duas mulheres- disse César à queima-roupa.
Comigo não conte!- apressou-se a dizer.
Nos homens é uma fantasia bastante comum...- acrescentou ele.
A conversa decorria à medida do filme. Os comentários eram os de sempre: sexo, sexo, sexo...Será que não experimentou já o menage à trois? - pensava Clara. - Realmente, não conheço nada da vida deste homem... Nunca fez menção ao curso. Nunca falou do liceu em Angola, nunca se referiu ao pai, nem às irmãs... Apenas me disse ter conhecido algumas figuras públicas... Para ela tudo era desconhecido. Mesmo os nomes dos filhos tivera de lhos perguntar.
Já era meia-noite quando se preparava para ir embora. Já nem estava preocupada com o relógio e o fio do pescoço que tirara durante o acto carnal. César, sem sombra de esquecimento, iria entregar-lhos dentro em breve. Era como se quisesse apagar qualquer vestígio da sua presença lá em casa, para que o futuro a encontrasse imaculadamente virgem.
À uma da manhã César foi levá-la à entrada do prédio, depois de abrir a porta de casa, fechada com aquelas enormes chaves semelhantes às de uma cadeia de onde acabava de ser posta, em liberdade, ao menos, física.
Até amanhã! – e ele deu-lhe o beijo carregado daquela pressa que a deixava tão amputada .
Julho ia decorrendo. Clara estivera até meio do mês em Faro a participar em seminários e colóquios sobre política de emprego e questões laborais. Falava telefonicamente com César, à noite, mais ou menos dois dias por semana. Regressou no dia doze. Diogo entrava de férias a seguir. Mal chegou, ligou a César, cerca das dezanove horas.
Olá! Está bom!
Estou. E você?
Muito cansada. Acabei agora de chegar de Faro. Onde é que está?
A caminho da aldeia, como sempre.
A sua mãe ainda cá está?
Vai cá passar o Verão todo..
Que pena ir embora hoje. Estou cheia de saudades suas.
Também tenho saudades suas.
Quando é que a gente se vê?
Segunda-feira ligo-lhe.
Está bem, Montanha Russa! Boa viagem...
Ele deu a sua enorme gargalhada.
Você é louca!...
E ainda não viu nada! Provoque-me e vai ver! Um beijinho!...
Outro para si!
Ficou colada ao telefone. Apetecia-lhe beijá-lo depois de lhe ter proporcionado ouvir a voz de César. Decorridos uns instantes, acordou. Desfez a mala, tomando banho de seguida. Comeu depois um iogurte e fruta, de cabeça ainda molhada, vestida com o roupão amarelo. A seguir, foi refastelar-se na cama. Ligou a Diogo, entretanto.
Olá, Dioguinho! Já estás em casa?
Ainda não, Clarinha. Já chegaste?
Já.
Que tal?
Não se aprende nada de novo nestas coisas, como tu sabes. Mas, às vezes, a nossa presença impõe-se. Além disso, sabes como é... Pode-se ser o melhor profissional do mundo... Porém, se o currículo não tiver uma boa vintena de seminários e outras tretas, não presta...
É verdade, Clarinha. Já falámos muitas vezes sobre isso e concordo inteiramente contigo.
Há alguma coisa de especial para tratar lá no gabinete?
Não. Está tudo dentro da normalidade.
Sempre avoas no dia vinte?
Sim. Está tudo preparado.
Então, faz-me o favor de teres muito boas férias. Dá um beijo à Ivone e aos miúdos.
Está bem. Este fim-de-semana vais estar com o César?- perguntou Diogo.
Não. Não ganhei ainda estatuto suficiente para isso. Nem sei se o virei a ganhar algum dia...
Se quiseres ir lá a casa...
Não, obrigado. Vou aproveitar para preguiçar estes dois dias. Talvez leia um bom livro dos que ainda não tive tempo para ler.
Então, adeus.
Boas férias, Diogo. Diverte-te!
Após cerca de dez dias no Algarve, Clara estava com saudades de toda a gente e ligou à Catarina.
Olá! Cheguei.
De onde?
De Faro. Estive lá nuns seminários etc. e tal...
Não disseste nada. Até já tinha comentado com o Xavier sobre o teu silêncio.
A Juju?
Continua no Porto.
Estive com ela.
Já sei. Nós falamo-nos quase todos os dias.
Está tudo bem por aí? O Xavier, a Sílvia e a Joana?
Está tudo óptimo, obrigado. Queres vir cá?
Não, gracias. Apetece-me preguiçar um pouco.
Está bem. Um beijo.
Outro, extensível aos Frias todos.
De seguida ligou à Luísa. Foi a Becas a atender.
Olá, Maria Clara- respondeu ela mal viu o número de Clara no visor- já casaste?
Ainda não. Mas, está descansada... Na altura, lá para as calendas gregas, mando-te um convite.
Já te imaginava tipo Cleópatra ao lado do imperador César Augusto...
És mais maluca do que eu- prosseguia Clara enquanto as duas davam uma enorme gargalhada.
Tive uma boa professora!...
Pois é. Eu aldrabava-te com as histórias que inventava quando tu eras pequena. Agora tu vingas-te...
Terrível vingança...
Devastadora! Podes crer...
Então, o teu artista de cinema?
Está a caminho da aldeia. Quanto a filmes, nunca vi um onde ele entrasse. Só se for comigo ou com mais alguém. E esses são um bocado hard core... – prosseguia ao mesmo tempo que continuavam rindo.
Quando é que voltas cá?
Lá para o mês que vem. Nessa altura estou de férias. A tua mãe?
Foi com o Ricardo comprar umas coisas para os cavalos.
Bom. Dá beijinhos a todos.
Para ti, também. E vê lá se arranjas uma serpente bem venenosa, não vá o outro portar-se mal! Não é ele que as acha sensuais? Mas para o envenenares a ele. Não a ti. Ouviste, ó mãezinha para remediar?
Tens de vir morar comigo para Lisboa, Becas. Ingressas imediatamente no Teatro D. Maria II! Representas logo a Farsa de Inês Pereira, do Auto de Gil Vicente! Apelido já tu tens! De Inês, vestes-te na altura!...
Riram-se ambas com a perspectiva teatral sugerida a Becas por Clara.
Cada uma mais maluca do que outra!...
Nem te disse o que queria. Tu seringas-me com perguntas... e logo indiscretas!...
Então diz lá, Maria Clara!...
Estive no Algarve num seminário sobre política laboral.
E então? Divertiste-te?
Sequei! Estas coisas são uma grande seca...
E agora, estás em Lisboa?
Estou. Vou passar um fim-de-semana tranquilo...
Não queres vir cá?
Não, obrigado. Estou um bocado cansada e só faria uma excepção. Mas, fui chutada para canto..
Então, está bem. Um beijinho.
O triplo para ti e para o pessoal todo. Luisinha, em especial...
O fim-de-semana passou tão tranquilo quanto a ansiedade de Clara lho permitiu. Decidira-se por ler um livro da Biblioteca Hitchcock com o título, A Morte pode ser Bela. Tratava-se de pequenos contos de final imprevisto. Afinal nesta vida tudo tem algo de imprevisível. Aonde iria parar o seu romance com César? – interrogava-se. - Se é que alguma vez começara....
Era o primeiro dia sem o Diogo. O colega passara-lhe três entrevistas. Estavam marcadas para as duas da tarde. Não demorou muito a almoçar e à hora prevista estava Isabel a anunciar-lhe o primeiro candidato.
Está aqui o senhor Vítor Pessoa.
Mande subir, por favor.
O lugar era para uma fábrica de têxteis. Engenheiro de produção. Os rapazes, todos na casa dos 30, foram pontualíssimos. Decidiu-se pelo último. Às quatro e meia já Clara fazia o relatório e a proposta de contratação. Isabel levá-la-ia de imediato para o correio. Antes, faria o habitual contacto telefónico com o director de recursos humanos da empresa.
Às seis, despediu-se da moça.
Até amanhã, Isabel.
Até amanhã, dra. Clara.
Já estava em casa quando César lhe ligou.
Estou – respondeu ela.- Onde é que você está?
A chegar.
Nunca trabalha à segunda-feira?
É um dia um bocado morto. E você, está onde?
Em Benfica.
Quer ir lá a casa?
Está bem. A que horas?
Cerca das sete.
Então, até já. Um beijo.
Faltavam cinco minutos para a hora combinada já Clara estava a estacionar o Golf à porta de César. Para variar, o estupor da velha fazia vigia à varanda. Tocou à campainha. A porta abriu-se imediatamente. Depois do costumado beijo sentaram-se no sofá. César bufava. Parecia estar muito nervoso. Bolas, parece um cavalo – pensava, ao mesmo tempo que perguntava:
E o seu fim-de-semana? Esteve com os seus filhos?
Estive.
Como é que eles estão?
Estão bons.
E a sua mãe?
Também.
Está muito inquieto – observou.
Estou cansado. Hoje tive um casamento em Esposende.
Casamento à segunda-feira?
Sim. Foi só pelo civil. Os noivos já eram divorciados...
César estava decisivamente esquisito. Esfregava insistentemente o dedo indicador direito para um lado e para o outro, na cara, sob o nariz. Eram uns movimentos tão frenéticos que ela sentia até o som da sua barba a ser raspada. Nunca tinha reparado, mas, naquele dia descobrira-lhe efectivamente dois tiques.
- Por que estaria ele tão nervoso? Teria estado com uma Maria João qualquer que lhe chateou o juízo?- interrogava-se. É melhor não fazer qualquer processo de intenções- dizia de si para si, tentando apaziguar todas as dúvidas.
Então se está assim tão cansado é melhor ir-me embora...
Não. Para isto, dá-se sempre um jeito...
Isto, o quê?
Isto! – E puxando-a para si sentada ao lado no sofá, começou a beijá-la.
Não traziam os beijos grande sentimento. Mas o de Clara, só por si, era suficiente para ambos, ao menos por agora. Voltara aquela sensação boa enquanto a roupa voava dos corpos. Clara começava a ter, contudo, uma triste intuição: dava muito e recebia pouco. Parecia-lhe uma enorme injustiça.
César pegou-a ao colo.
Vamos já ficar neste quarto!- disse, enquanto a pousava em cima da cama.
Será que esteve no outro com alguém? É bem capaz – pensava Clara. - Serei eu uma espécie de intercalar para lhe dissipar a lembrança da última queca dada ali sob o olhar vigilante dos cristos?
Depois, as palavras de sempre e mais uma inovação digna do Kamasutra.
Não me deixe ao menos cair!...
Estes pêlos não dão jeito nenhum! Qualquer dia vou buscar uma tesoura e corto-os!- disse, mal a pousou no leito.
Logo vi que andava a ver muito o canal 18- referiu.
Fode-se melhor!...
Não lhe perguntou se já experimentara. Mas, da afirmação, inferia-se a resposta. E mais um pacote de lenços de papel, guardados na gaveta do novo cenário.
- Ainda não foi desta que as coisas ganharam um bocadinho mais de sentimento. Acontecerá isso algum dia? – perguntava-se intimamente.
O banho higiénico veio a seguir. A tolha de riscas vermelhas, a cortina com biquinis de mulher de todas as cores formas e feitios, lá continuavam, obedientes.
Era a hora do telejornal. Foram para a sala, vê-lo.
Hoje tenho de sair. Marquei um compromisso com uns amigos- informou-a.
Ah!...- sibilou Clara mais ou menos avisada pela pressa mal disfarçada demonstrada por César durante a chamada queca. Quando vai de férias? – inquiriu, a seguir.
Em Agosto.
Vai para onde?
Para a aldeia. De cidades estou eu farto...
Começa quando?
Dia um. Mas vou ficar os primeiros dias em Lisboa.
Quer ir lá jantar a casa uma noite destas?
Está bem. Logo no início. De qualquer modo ainda nos vemos antes disso. Não quer comer cá?
Não. Uma vez que tem um compromisso...
Despediram-se pela centésima milionésima vez. A porta da rua não estava ainda trancada e César não teve, assim, necessidade de a ir levar à entrada. Desta vez a velhota não estava à varanda. Ao menos, jantava...
Em casa, de novo, Clara tomou uma refeição frugal semelhante à recusada no reduto do imperador César Augusto. De seguida, passou alguma roupa a ferro. Dois pares de calças e umas blusas. Depois, foi dormir a horas decentes.
A derradeira semana de Julho ia decorrendo. Clara ligou duas vezes a César. Ele fê-lo outras tantas. Era sábado, o último dia do mês. O telemóvel tocou. Montanha Russa a chamar. Atendeu, estava em casa, eram onze e vinte.
Estou.
E eu também...
Fazia-o na aldeia...
Tive de ficar. Tivemos o último concerto da temporada lá na fundação.
Ah...
Mais uma vez César não a convidara.
Apetecia-me estar consigo...
Onde?- perguntou Clara.
Onde quiser.
Na sua casa ou na minha?
Tanto faz...
Pode ser na sua. Hoje ainda não saí e assim apanho um bocado de ar.
Então, venha. Depois, dorme cá.
Está bem. Até já.
Vestiu um vestido vermelho comprido, fez a maquilhagem do costume. Dirigiu-se a Telheiras, passado pouco tempo. Estava, como sempre, contente e apreensiva ao mesmo tempo. A perspectiva de dormir no quarto dos cristos com um homem que tinha uma cara semelhante às brochuras dos santos dos pintores de rua era demasiado inquietante.
Após vinte minutos do telefonema já Clara parava à porta do Montanha Russa. Desta vez a velhota não se via na varanda mas na janela da sala que deveria ser semelhante à de César.
Subiu e no hall de entrada, o beijo foi o mesmo de sempre.
Vem muito bonita hoje...
É verdade. Trago a sua cor preferida...
E vem muito descapotável!... – disse, ao reparar na ausência do soutien, passando-lhe as mãos sobre o vestido e encostando-se com vigor ao corpo dela.
Viram um pouco de televisão após uma pausa ocorrida depois da investida inicial por razões decorrentes da programação do pequeno ecrã. Passados uns instantes foram para o quarto, o dos cristos pendurados na parede. Clara tirou o vestido. César despiu-se também. Nus, ela pegou nas mãos o rosto de César. Olhou-o nos olhos profundamente:
Gosto muito de si...mas se calhar não vale muito a pena...
Também gosto de si e não digo a mesma coisa...
É só pela cama? Disse-me uma vez que nós encaixávamos bem...
E é verdade que encaixamos! – retorquiu, tirando os boxers e pondo-se em cima dela. Mas não é só por isso....
Tinha o mesmo ar de menino de sempre naquele corpo esbelto e esguio. A cara era de anjo. Mas ao que julgava os anjos não tinham pénis e o dele estava profusamente erecto. Pela primeira vez Clara teve a sensação de que o sexo não era para ele senão uma brincadeira. As mulheres eram as bonecas, iguaizinhas às outras, abandonadas pelas meninas, mal o Pai Natal lhes pusesse outra no sapatinho. Não valia a pena iniciar qualquer tipo de conversa mais séria. Iria resvalar para o humor um bocado bacoco e a maior parte das vezes despropositado. Clara estava ali naquela cama, mil sentimentos na cabeça cheia das melhores intenções. Gostava de poder comportar-se apenas como fêmea ou então ir-se embora e nunca mais voltar. Mas, nas circunvoluções do seu cérebro, andava aquele afecto docinho a interferir, especialmente quando tinha, como agora, o rosto angelical de César à sua frente. Olhou para os cristos pendurados na parede. Veio-lhe à ideia a oração do Pai Nosso na parte em que diz: O pão nosso de cada dia nos dai hoje...
O pão do dia era aquele. Amanhã veria se tinha direito a um peixinho de preferência através de um milagre semelhante ao que O cinco vezes representado nas paredes do quarto fizera outrora. Depois, abandonou-se completamente àquela coisa, quando chegou a hora dos beijos, dos ais, das palavras, do suor e da sensação de sentir-se mais uma vez amputada de algo que nem ela própria sabia muito bem o quê. No caudal de palavras que lhe ocorriam à mente lembrava-se dos suínos e das ostras, construindo frases nem bem nem mal entendidas, como se estivesse mais ou menos a dar pérolas a porcos. O banho, a toalha com riscas vermelhas e o cortinado com biquinis de mulheres de todas as cores e feitios, vieram a seguir. Depois, o sono fez-se vigília, enquanto César dormia como um tonto.
Se Clara tivesse conseguido dormir teriam ambos acordado às dez horas de domingo, ao som do despertador.
Dormiu bem? – perguntou César
Nem por isso. Nunca durmo bem quando estou fora de casa.
Eu dormi- acrescentou, ao mesmo tempo que puxava a roupa para trás vendo as cuecas brancas de Clara e sentando-se em cima delas, ainda de boxers. De repente, estes deixaram de lhe servir, mesmo antes de lhe tirar as dela.
Oh! Estás sempre toda encharcada, Clara!...- arfou depois da penetração. E, em circunstâncias semelhantes, era a primeira vez que pronunciava o seu nome.
Sabes porquê?
Não.
Porque gosto de ti.
Ele não disse nada.
Pensavas que escapavas hoje? Não! Oh!..Oh!... És tão boa rapariga... Dás-me tanto tesão, filha...
O pão é igual ao de ontem – pensava Clara não se eximindo contudo ao prazer- O peixinho talvez para outro dia...
Ah! César, querido... Nunca morras sem me dizer adeus... Se quiseres ir embora algum dia, diz-me por favor...Não vás de qualquer maneira! Peço-te...
Os olhos de ambos fecharam-se. Clara sentiu de novo o calor daquela montanha russa, semelhante a vertigem, dentro de si. Ele morrera mais uma vez no seu corpo. Permaneceram assim alguns instantes até que os lenços de papel guardados na gaveta da mesa de cabeceira, se tornaram no pronto socorro dos fluídos líquidos disseminados pelo homem.
Vamos levantar?- e foi ele a perguntar mais uma vez.
Vamos.
A toalha de riscas vermelhas e o cortinado com biquinis de mulher de todas as cores formas e feitios participaram activa e novamente no duche de Clara. César fazia chichi à sua frente. Sensação estranha... Nunca nenhum homem o fizera, nem mesmo Paulo, seu ex-marido. E uma sensação de promiscuidade apoderou-se de si.
Finalmente, estavam prontos.
Agora vou para a aldeia.
Mas, disse-me que no início das férias ia ficar em Lisboa...
Volto cá. Vou convidar a minha professora da instrução primária para ir à festa no final de Agosto. Quer ir comigo?
Aonde? À festa?
Não. A casa da minha professora.
Está bem – respondeu mais ou menos desiludida.
Depois, telefono-lhe.
Despediram-se à porta com o beijo presenciado pela velhota do terceiro andar. César não a convidara para o pequeno almoço, seguindo numa direcção não habitual. Parou o BMW. Ela ainda teve tempo de o ver sair. Pareceu-lhe que tocara numa porta. Continuou sempre. Não quis fazer o papel da velha cusca. Pensou na senhora do vestido vermelho, secretária da fundação. Sabia a morada dela, perto da casa de César, mas noutro sentido. Tinha perguntado ao Luís o nome, um dia, quando fôra ao banco tratar de uns assuntos do gabinete e o encontrara por acaso. Depois, procurara a direcção na lista telefónica. Se havia outra mulher como parecia indicar o bilhete, decisivamente, não era aquela.
Passou o domingo sozinha, dormindo. Em casa de César não conseguia pregar olho. Precisava depois de um bom restauro. Dormir era uma boa terapia...Segunda e terça planaram vagarosamente como pássaros sem pressa.
Agosto era sempre um mês bastante morto em termos de trabalho e Clara ocupava bastante o espírito com o Montanha Russa, nome que carinhosamente deu a César. Numa noite e logo no início do mês, ele ligou-lhe:
Boa noite!
Olá. Boa noite. Onde está?
Em Lisboa. Como lhe disse, tive de vir tratar de uns assuntos urgentes.
Já jantou?
Já. Daqui a pouco vou dormir. Estou um bocado cansado.
Quer vir jantar cá a casa amanhã?
Está bem. A que horas?
Às seis já cá estou.
Então, apareço logo que me despache.
E lá por Rio Limpo está tudo bem? A sua mãe?
Está boa.
Os seus meninos?
Também. E consigo?
Está tudo bem! O meu colega está de férias. Estou só com a empregada. O trabalho neste mês é pouco...
É verdade. O país pára nesta altura.
É um país de malandros - brincou ela.
Trés bien, menina.
Bom! Então, até amanhã. Um beijo!
Outro para si!
Mal desligou, Clara foi ao frigorífico. Deu uma olhada no congelador. Viu uma perna de peru e tirou-a. Fez-lhe um tempero com água, bastante sal, vinho, cebola às rodelas, alho, uma folha de louro e malagueta. Pôs-lhe também um ramo da salsa que trouxera da aldeia. Descascou umas batatinhas pequeninas. Ia fazer um bom assado. Agora já sabia o comportamento do forno e o cozinhado não iria descambar para o torto como acontecera com o bacalhau. Para acompanhamento, escolheu esparregado de espinafres, que previamente cozera e congelara. César não gostava muito de arroz. De qualquer modo, faria um pequeno tachinho só para ela. Deitou-se depois de fazer a marinada. Não tinha sobremesa. No dia seguinte, antes de ir para o gabinete, faria um pudim francês com a receita desdobrada como fazia com os bolos quando era criança com medo de os estragar. Assim, só se perderia metade se saísse mal. Adormeceu cerca da meia noite. Porém, antes, fôra ao armário dar uma espreitadela no guarda-roupa e nas gavetas respectivas.
Às sete horas já Clara batia os ovos e todos os ingredientes da meia receita do pudim. Não lhe custou depois transpor a distância até ao trabalho. A manhã estava radiosa. Os termómetros prometiam chegar aos trinta e poucos graus. Lisboa e a Avenida de Fontes Pereira de Melo pareciam-lhe mais bonitas, apesar de ter dormido um pouco menos. Os moedeiros não chateavam tanto agora que meia cidade estava de férias, encafuada nas praias quentes do Algarve. Os lugares de estacionamento eram suficientes. César o homem com cara de santo iria à sua casa.
Parou calmamente à porta do 1017.
Olá Isabel, bom dia!
Bom dia, dra. Clara!
Então?
Está muito calor, doutora. Sabiam bem umas férias!
É verdade. Sorte tem o dr. Diogo. Já regressou das Canárias e continua com um tempo incrível. A Isabel este ano não vai ter grande descanso...
Pois não. Entrei há tão pouco tempo...
E o seu marido?
O Pedro começa agora no dia dez. Vai ficar com o João. O infantário está fechado e não tenho a quem deixar o bebé.
Olhe, Isabel. Vamos fazer uma coisa. A Isabel vai uma semanita para casa até vir o dr. Diogo. Não há muito trabalho por aqui e eu aguento isto sózinha. Lá para Dezembro acertamos as contas. Com o meu querido colega entendo-me eu. Mas, por favor!... No dia dezasseis esteja aqui! Os homens não se arranjam muito bem sem alguém a tratar-lhes dos papéis...
Obrigado, dra. Clara. Fico-lhe muito agradecida.
Bom! Amanhã ou depois acertamos isso...
Clara subiu. Arrumou uns papéis. Tratou das plantas, arrancando umas folhas velhas do vaso de antúrios brancos colocado no parapeito da janela juntamente com umas violetas roxas. Foi buscar um regador pequeno a uma das casas de banho. Regou os vasos todos. Depois deu uma nova arrumação à secretária e aos móveis, acabando por sentar-se. Era praticamente meio dia. Foi almoçar com Isabel num pequeno restaurante na Rua de Martens Ferrão, transversal da avenida. Saiu às cinco horas. Se bem lhe palpitava, César não levaria muito tempo a aparecer. Desta vez iria ligar o forno cedo. Senão, com os ímpetos dele, arriscar-se-iam mais uma vez a jantar às quinhentas.
Às seis já estava em casa. Tomou um banho rápido. Vestiu depois o vestido curto de licra preto, o mesmo do concerto na fundação. Não era assim tão mini como aparentava. As meias escorregadias fizeram-no subir dando a mostrar as pernas dela mais do que o habitual. Já estava na cozinha a meter o peru no forno quando César tocou à campainha. Primeiro ligara-lhe para o telemóvel.
Estou à sua porta.
Então, suba.
Agora no seu terreno foi Clara a tomar a iniciativa. Tinha saudades daquela carinha de menino com um ar que a comovia nem ela sabia porquê e agora começava a pensar que, isso ocorria com o meio mundo que já se deitara, provavelmente, na cama dele.
Abrace-me....
Não se fez rogado, curvando-se um pouco sobre Clara.
Isso! Assim bem forte por forma a entrar todo no meu corpo como se fosse ectoplasma! Ah!... Queria tanto sentir o que você pensa e sente!... Queria tanto sentir quem é!...
Afrouxaram o abraço. Clara pegou na mão de César. A seguir subiram ambos para o quarto. Ela já se tinha habituado aos palavrões e César estava um pouco mais doce.
Na cozinha o forno trabalhava sozinho. De vez em quando ela descia para virar o assado. No quarto viravam-se os dois à medida das necessidades e até à extinção completa do fogo em que ambos ardiam.
Oh rapariga!... És tão boa!...
É por ti! Tu é que me tornas assim! É por isso que eu sou boa...
Então, somos ambos bons!...
Depois do êxtase final, disse ele de repente, como quem pede:
Vamos tomar banho?
Vamos. Vou eu primeiro. Tenho de ir ver o assado e acabar as coisas lá em baixo.
Está bem. Vá lá. Estou a ficar cheio de fome.
Clara levantou-se enquanto ele estendido sobre a cama passava pelas brasas. Quando saiu do duche deu-lhe um beijo suave nos lábios, acordando-o. De seguida, César entrou na casa de banho.
Limpe-se à outra toalha ao lado- e apontou-lha. - Vou ultimar as coisas. Está tudo no mesmo sítio como da última vez.
Sentaram-se à mesa. O jantar ficara bom e decorreu uma boa meia hora de refeição até comerem o pudim feito por Clara às sete da manhã desse dia. Doce, na casa dela, era o que não faltava.
Vamos sair um pouco? Está uma noite tão agradável...
Vamos. Deixe-me só colocar a louça na cozinha.
Ajudou-a a levantar a mesa. Depois desceram e foram no carro dele até às Docas onde tomaram café. Clara já nem se importava com o jeito de ele o sorver, fazendo barulho com a boca. Foi César a pagar os quinhentos escudos das duas bicas.
- Vamos andar um pouco a pé?- perguntou, ao mesmo tempo que punha o braço por cima dos ombros de Clara, que se ajeitou à volta da cintura daquela montanha russa semelhante a uma vertigem. Pela primeira vez passeavam na rua à vista de toda a gente. Ela estava feliz.
Já à porta de casa, no regresso, Clara perguntou-lhe:
Quer subir?
Um pouquinho!- respondeu.
E no sofá da sala enroscou-se no corpo dele sopitando mais uma vez numa onda de ternura e embriaguez.
Quer ficar cá?
Teria de telefonar à minha mãe. Veio comigo e não está muito habituada à casa...
Está bem.- respondeu, com uma pontinha de desilusão.
Quer ir então comigo a Azenhas do Mar?
A Azenhas do Mar?
Sim. É lá onde mora a minha professora da instrução primária, a D. Henriqueta. Está reformada. É da zona de Lisboa. Almoçávamos juntos e iamos a seguir.
Ah! Já nem me lembrava disso. E a sua mãe? Vai deixá-la sózinha?
Não. Ela vai almoçar a casa de uma prima aqui em Lisboa. Já não se vêem há muito tempo e têm muita conversa para pôr em dia...
Então, vem buscar-me a que horas?
Meio dia e meia. Está bem para si? Deixo a minha mãe em Santa Marta e a seguir venho ter consigo.
Para mim está óptimo - respondeu Clara, procurando simultaneamente as chaves na bolsa. - Mas não venha aqui. Passe antes pelo gabinete. De manhã vou trabalhar. Sabe onde é?
Não.
É na Avenida de Fontes Pereira de Melo, 1017.
Lá encontrou as chaves.
Hoje não fico na rua como da outra vez.
Também, era melhor...
Despediram-se à porta de Clara.
Até amanhã. Seja feliz.
Durma bem – recomendou, iniciando a inversão de marcha.
Já ela estava dentro do prédio olhando através da porta de vidro quando o BMW arrancou.
O dia seguinte amanheceu dourado e quente. Clara vestiu umas calças brancas largas e uma camisola igualmente branca. Para não transparecer através da roupa mudou a cor da lingerie. As cuecas eram da cor da pele, tal como o soutien do qual se podia ver uma pontinha atrevida, acima da t-shirt. Às dez horas estava no gabinete, já na sua sala. O trabalho não a matou por aí. Limitou-se praticamente a atender uns telefonemas de clientes sobre as ultimas contratações propostas pelo escritório. Ao meio dia e meia tocou o telemóvel.
Olá, bom dia! Dormiu bem?
Dormi. E você?
Também.
Onde está?
Na Avenida de Fontes Pereira de Melo, 1017.
Quer subir?
Não. É melhor você descer.
Está bem. Dê-me só dois minutos.
Daí a pouco desceu e entrou no carro de César que a beijou na boca com o beijo breve de sempre. Mal reparou na indiscrição do soutien apressou-se a tocá-lo com as mãos e olhos de cobiça. Lá dentro estavam os objectos do seu desejo.
Vamos, então?
Ok. Sabe a direcção da sua professora?
Não. Já lá fui uma vez, mas não consegui dar com a casa- respondeu, ao mesmo tempo que dirigia a mão direita para o fecho das calças brancas de Clara.
Então, está em boas mãos... Sabe que eu consigo descobrir tudo!...
Consegue?... – perguntou ele com um ar semelhante a apreensão.
Até já me disseram que tinha jeito para polícia. Mas, detesto armas. Nunca usaria uma. Tenho-lhes um medo horrível.
Ah! Também não gosto. Fiz a tropa em Mafra e não gostei de lidar com elas.
Você fez tropa?
Fiz. Qual é o espanto?
Nenhum – respondeu Clara.
Afinal César não era um Deus. Fizera tropa e, reparando melhor, viu que cortara o cabelo e até já fizera chichi à sua frente.
A viagem decorria enquanto conversavam sobre trivialidades. A Expo continuava a ser o assunto do ano. As irregularidades por lá praticadas também davam muito que falar.
Já sabe das últimas?
Já. É sobre a negociata dos hotéis flutuantes... Foram uns milhões que alguém meteu ao bolso.
É uma vergonha!- prosseguia César- E se um gajo não alinha nesses esquemas é olhado como ave rara...
No tempo de Salazar pelos vistos havia uma meia dúzia a meter dinheiro ao bolso. Agora a vigarice democratizou-se! São uns milhares! Tudo a enriquecer à custa do Zé Povinho!
Exactamente...
Exactamente!
Ora ali estava uma palavra muitas vezes usada por César quando queria mudar de assunto. Já tinha reparado. Via-a como mais uma bengala da sua linguagem, depois do não sei quê, não sei que mais...
Tenho um amigo da Judiciária. Quando o encontro vou-lhe perguntando pelos casos mais emblemáticos da corrupção em Portugal. Às vezes fico admirada. Pessoas acima de qualquer suspeita vivem nesse mundo enterradas até ao pescoço.
O director é meu amigo. Foi meu colega...
Onde?
Na faculdade.
Pensei que tinha sido em Angola, no liceu.
Não.
Chegaram, entretanto. Antes de começarem as diligências sobre a D. Henriqueta procuraram um restaurante. Lá no fundo perto da praia onde as ondas se desfaziam formando enormes bancos de espuma semelhante a neve, encontraram o lugar ideal.
Isto é lindíssimo!- exclamou Clara.
Não conhecia?
Por incrível que pareça, não. Faz-me lembrar um pouco a Nazaré embora sem os barcos. É muito escarpado apesar de não ter a grandeza do Sítio.
Já sentados no restaurante pediram bacalhau para os dois. O pão e a manteiga foram colocados na mesa quase logo. Um pão saloio semelhante ao que César costumava comprar. Ele separava as côdeas, dando-as a Clara. O miolo engolia-o sofregamente besuntado em manteiga escorregadia. César quis uma sopa de repolho.
Está muito boa. Quer um bocadinho?
Quero.
Deixou-lhe um fundinho no prato. Clara emocionou-se. Estavam a partilhar qualquer coisa tão simples como uma sopa. Decididamente, aquele homem tinha algo que a comovia. Pensou se não seria o facto de ele ser um homem bonito. Afinal, é fácil gostar-se de gente linda. Como os bebés. É tão fácil gostar deles... Já os feios e os velhos, coitados, não têm a mesma sorte- pensava ela.
Então, a sopa?
Está boa. O repolho deve ter sido colhido esta manhã numa horta das redondezas. Sabe mesmo às sopas lá da minha aldeia quando eu era pequena. Em Lisboa não consigo encontrar hortaliça com este sabor. Quando chega aos supermercados já tem dias e dias de conservação nos frigoríficos.
É verdade. Você parece ter muitas saudades da sua terra.
De algumas coisas. De outras não. Naquele tempo as pessoas eram quase todas muito pobres. Hoje vivem bem melhor apesar de muitas nunca terem superado o facto.
Porquê? Como é que vê isso? É a psicologia a funcionar?
Um pouco. Sou muito atenta aos pormenores da vida. Sabe onde se notam essas coisas?
Não.
É nos frigoríficos...
Nos frigoríficos!?
Sim. Se você abrir um frigorífico de uma dessas pessoas vai encontrá-lo atulhado com uma infinidade de coisas de que na realidade não precisa. Grande parte delas está ali até se estragar. Transformaram-se nos maiores consumistas dos hipermercados.
Nunca tinha pensado nisso. O meu não é desses...
Mas, você nunca foi pobre... – acrescentou Clara, brincando. - O que aprende comigo!...- continuou.
Acabaram a refeição. César pagou.
- Podiamos dividir a conta. Mas, César é um cavalheiro e não iria aceitar – pensava Clara. - E também nada fica a perder. Em minha casa trato-o como um príncipe, com guardanapos de pano e tudo.
Vamos então procurar a D. Henriqueta?- pergunta César.
Vamos lá. Sabe o nome dela todo?
Henriqueta Morais!
Se é daqui deve ser muito conhecida embora tenha andado por esse Portugal fora a ensinar meninos como você.
Certamente.
O melhor é irmos ao centro de saúde. Lá devem saber dizer-nos onde mora.
Efectivamente foi fácil. A senhora morava perto da capela de S. Francisco para onde se dirigiram, começando por admirar a igrejinha. Era um edifício do século XVI, bonito apesar da mutilação do alpendre, segundo informações de um morador a quem perguntaram pela professora. Agradeceram a informação e estavam praticamente à porta dela. César bateu, logo que chegaram. A entrada encontrava-se tapada por umas franjas de plástico destinadas a impedir as moscas de penetrarem no interior da casa. Dentro, via-se mal. E a professora não reconheceu o antigo aluno, mesmo depois de este a cumprimentar com um beijo.
Olá, Vítor! Há quanto tempo não te vejo.
Não sou o Vítor! Sou o César Augusto!
Ah! Desculpa. Não estou contigo há tantos anos...
Era uma mulher sobre o pequeno. Rondaria os sessenta e seis anos. Contudo, era de uma vivacidade espantosa.
Apresento-lhe uma amiga.
Muito prazer! Clara Correia Guedes.
Sentem-se.
Ficaram no aposento da entrada onde havia livros e uma aparelhagem sonora.
Então, César? Que é feito de ti? Continuas bonito, como sempre!
Sorriu.
Cá estamos! Tenho 45 anos. Trabalho na Fundação Francisco Pinto Osório, em Lisboa. Licenciei-me em Direito. Entretanto casei-me, divorciei-me, tenho dois filhos e pronto...
Mas, tens outra pessoa! – observou a professora, olhando para Clara.
Não! É só uma amiga. Veio ajudar-me a procurar a sua casa. Eu já cá tinha estado mas não a encontrei...
Muito bem. E a aldeia?
Lá está. Um bocado desfigurada pelas construções dos emigrantes...
E a tua mãe?
Está reformada. Agora até está em Lisboa. Foi almoçar a casa de uma prima. Quando sair daqui vou buscá-la.
Podias tê-la trazido. Gostava de a ver.
E vai vê-la, se quiser. Venho convidá-la para a festa lá da aldeia, no final de Agosto.
Ah! Muito bem. Aceito, com prazer.
Venho buscá-la.
Não é preciso. Eu tenho carro.
Mas a viagem é um bocado grande. É melhor ficar com o número de telefone da senhora professora.
Está bem. Então toma nota.
Enquanto trocavam os números Clara olhava para César. Ficara a saber a idade dele sem precisar de lhe roubar o bilhete de identidade. Finalmente sabia também a cor dos seus olhos. Eram verdes. Talvez agora conseguisse fixar-lhe o rosto – pensou, como quem acaba de fazer a maior descoberta da vida.
Então, licenciaste-te em Direito?
Licenciei.
Onde?
Em Lisboa. Conheço muitas figuras públicas. Alguns dos políticos de agora foram meus colegas. Outros foram meus professores.
Então tens muitos amigos...
Tenho.
Fico contente em saber isso – acrescentou ela. - Não querem tomar nada?
Não, obrigado! - respondeu César. - Almoçámos há pouco.
Uma bebida, um vinho do Porto?
César olhou para Clara.
Por mim não quero nada - disse esta.
Tenho cá em casa um melão muito fresquinho. Ao menos isso vão comer.
Já que insiste...
A tarde decorreu. A professora e o antigo aluno conversaram sobre coisas do passado.
Clara lembrava-se de César lhe ter falado da sua ida para Angola logo que completara a quarta classe. Falavam certamente desses tempos...
Despediram-se da professora seriam umas sete horas da tarde.
Depois, telefono-lhe- insistia César, já na rua.
A velha senhora foi levá-los ao fundo das escadas onde se encontrava o carro em que entraram imediatamente.
A sua professora é toda despachada!...
É verdade. Ainda me faz lembrar a Clara. Foi a minha primeira paixão. Até me deu explicações...
Explicações na quarta classe? – perguntava interiormente. – Não devia ser lá muito inteligente! Eu fui a melhor aluna e nunca precisei de nada disso.
Já no regresso, Clara reparou nuns seixos rolados que estavam no carro. Pareciam pedrinhas da praia semelhantes às que ela e as amigas utilizavam em criança para brincarem.
Andou a jogar às jogas ?
Não. A minha mãe faz arranjos.
Não estranhou. Hoje em dia faziam-se arranjos com tudo e mais alguma coisa. De miolo de pão, de grãos de arroz e de uma panóplia infindável de objectos. Ela própria, quando mudara de casa, de flores secas fizera dois. E com algumas sobras fez também um para César. Pôs-lhe um laço de veludo azul a rematar os verdes, os laranjas, os amarelos e os azuis. Quando lho ofereceu, deixou-o em cima da cama, no quarto dos cristos. Depois disso, viu-o colocado numa jarra no outro quarto. Fôra a mãe quem o lá pusera, ou a empregada - dissera-lhe César e ela acreditara.
Chegaram a Lisboa sensivelmente às vinte horas. Estavam em frente ao escritório. De repente parou um carro mesmo ao lado do de César saindo de lá um homem mais ou menos da idade dele. César saiu do BMW, seguido por Clara. O outro indivíduo já estava na rua. Tinha um ar um pouco estranho parecendo até relativamente efeminado.
Olá! – cumprimentou-o César, apresentando-os de seguida. - Esta é a Clara! O Pedro Roseira, o meu amigo juiz!
Muito prazer! - respondeu, olhando para Clara com um olhar ligeiro.
Obrigado! Igualmente!- retorquiu ela.
Que andas por aqui a fazer? – perguntou César desviando os olhos, num gesto aparentemente tímido.
Tive de ir à Boa Hora. Depois, encontrei umas obras pelo caminho e fiz este desvio. Estou aqui por acaso!...
É. Lisboa continua ainda muito esburacada.
Bom. Vou embora. Telefona, César – pediu Pedro, demorando um pouco a mão sobre a do amigo.
Está bem. Depois, ligo-te.
Adeus, Clara. Prazer em conhecê-la.
Obrigado. Igualmente – repetiu mais uma vez ao dar-lhe o beijo de despedida retribuído pelo outro, inexpressivamente.
Pedro foi embora.
Foi meu colega na faculdade. É muito meu amigo!
Ainda bem que você tem muitos amigos...
Afinal não deu para estar consigo. Agora tenho de ir buscar a minha mãe. Além disso estou mal disposto. Não como tanto habitualmente...
Clara entendeu perfeitamente. Queria ele dizer que não deu para uma queca. Mas, deixou o assunto arrumado nos pensamentos onde já estavam tantos e até bastante emaranhados..
Bom. Então quando é que o vejo?
Não sei. Como já lhe disse vou para a aldeia. Depois, telefono-lhe.
Está bem. E obrigado pelo dia. Foi bom estar consigo.
Também gostei de estar consigo.
Era assim. César parecia estar sempre à espera das palavras dos outros para proferir algo idêntico. Já alguma vezes plagiara frases suas. Começava agora a dar importância a esses pequenos pormenores não sabia muito bem porquê, mas haveria um tempo em que tudo haveria de ter o seu verdadeiro significado.
Então, adeus.
E o beijo foi o habitual do até logo, até amanhã ou adeus, simplesmente. Clara foi embora depois de permanecer alguns momentos no gabinete para onde entrara nesse meio tempo. Nada de novo. Isabel tratara de tudo preparando já as coisas para a prometida semana de férias com o marido. Sentou-se depois num dos sofás da sua sala, meia melada. Acontecia-lhe quase sempre isso quando estava com aquela montanha russa semelhante a uma vertigem. Uns cinquenta por cento de discernimento iam à vida sem que ela conseguisse encurtar-lhes a corda, já tão esticada.
O dia quinze de Agosto chegou. Clara ia de férias nessa altura. Diogo tinha-lhe telefonado uns dias antes, estava ela sozinha a tomar conta do escritório. Informou-o da sua decisão sobre Isabel.
Está bem, Clarinha. Hás-de ir para o céu, voando com umas asinhas brancas, como se fosses um anjinho- disse ele a brincar.
Fiz mal, Diogo? Desculpa ter tomado esta decisão sózinha e sem te avisar. Não quis incomodar-te...
De qualquer modo ela daqui a pouco tem direito a férias- Fizeste bem, Clara.
Mas quanto tu vieres trabalhar a Isabel já está ao serviço. Não te deixaria sozinho por nada deste mundo... e conversa ficou por ali.
As férias de Clara estavam programadas para decorrerem absolutamente ao acaso. Catarina e Xavier iam para o Algarve, por aqueles dias. A Luísa e a Becas também, mais a família toda. Decidiu ir para Vilarinho de Cima. Aproveitaria para dar um salto a Mirandela e a Bragança. A Miranda, também. Não conhecia a cidade e andava com vontade de ir até lá. César telefonava-lhe de vez em quando. Ela retribuía. Às vezes ele não atendia. Devia estar com os filhos e com a mãe- pensava.
O mês de Agosto estava quase no fim e Clara continuava a estranhar, cada vez mais, o comportamento de César. Desde que estivera em casa da D. Henriqueta os telefonemas dele começaram a escassear. Um dia ele ligou-lhe.
Olá! Já ando há uns dias para lhe telefonar, mas esteve aqui o Pedro Roseira a passar uns dias comigo e mexeu-me no telemóvel. Desgravou-me os números todos. Tive de recuperá-los de uma pequena agenda onde tenho tudo apontado.
Previdente- e Clara pensou no outro. No início das férias telefonara a César que lhe falara da estadia do amigo em Esposende, onde estiveram juntos. Afinal, também estivera em Rio Limpo. Ocorreu-lhe uma ideia. Seria o homem mesmo homossexual tal como pensou quando o conheceu? Imaginou o visor do telemóvel do Montanha Russa cheio de números de telefones de mulheres. Teria o outro ficado com ciúmes?
Já tinha estranhado. Tenho ligado algumas vezes... Mas como não atende...- prosseguiu Clara.
Nem sempre tenho rede...
E a festa?
É este fim-de-semana. Você está onde?
Em Vilarinho de Cima, com a família. A semana passada fui a Miranda do Douro, a Bragança e a Mirandela.
Conheço. São cidades bonitas.
Você conhece tudo. É graças à fundação?
Mais ou menos.
Quando vai para Lisboa?
No dia trinta e um. No primeiro dia de Setembro já trabalho.
Nessa altura também já estarei lá. Aliás, tenho uma consulta médica logo no início.
Está doente?
Não. É rotina. Coisas de mulheres e sobretudo prevenção...
Bom. Então depois telefono-lhe.
Está bem! Um beijo!
Outro para si!
Dourara um pouco a pílula. Afinal, desde que conhecera César fizera frequentes visitas à ginecologista. Isso era mais uma das razões pelas quais tantas ideias sobre o eventual relacionamento sexual dele com outras mulheres lhe tinham já aflorado à mente. O não atendimento dos telefonemas quando ela lá estava também.
No dia um Clara regressou a Lisboa. Não ligou logo a César. Era o primeiro dia de trabalho pós-férias e não queria estar a incomodá-lo. Telefonou-lhe passados dois dias. Não atendeu. Desistiu.
Finalmente, a data da consulta. Às seis, estava ela no consultório da dra. Inês. Depois de a examinar, a médica receitou-lhe uns medicamentos. Trocaram algumas impressões sobre doenças sexualmente transmissíveis, para além do HIV e da Hepatite B.
César não lhe ligara nos últimos dias. Teria ela dito alguma coisa em casa da D. Henriqueta de que não tivesse gostado?- interrogava-se. Teria ele sido pobre? Se assim fosse não deveria ter apreciado lá muito a conversa dos frigoríficos. E no meio de tantas interrogações resolveu ir passar uns dias a Leiria. Luísa já tinha regressado do Algarve. Ligou-lhe, então e foi Becas a atender.
Olá, Bequinhas! Estás boa?
Estou! E tu, Maria Clara?
Também!
As tuas férias? Foram boas?
Mais ou menos. Estive na aldeia. E as vossas?
A casa no Algarve não era lá grande coisa. O melhor ainda era a piscina. Estiveste com o César?
Não. Ele esteve na aldeia com a mãe e os filhos.
Hum!...
Hum, porquê?
Passas pouco tempo com ele...
Também me parece...
Agora, estás onde?
Em Lisboa. Tive hoje uma consulta médica de rotina na ginecologista.
Ainda estás de férias?
Estou. Até ao dia catorze.
E não queres vir cá?
É isso que estou a tentar dizer-te. A tua mãe?
Queres falar com ela?
Quero. Ela está?
Vou chamá-la. Ó mãe! Atende o telefone. É a Clara.
Então, adeus. Um beijinho.
Clara!- respondeu Luísa do outro lado.
Sim, irmãzinha, para remediar!... Que estavas a fazer?
Acabei de dormir há pouco uma soneca.- respondeu Luísa.
E as férias?
Assim, assim. E as tuas?
A mesma coisa.
Estás na aldeia?
Não. Estou em Lisboa. Mas continuo de férias.
Então, vem a Leiria, mulher!
Era mesmo isso. Vou amanhã se não te importas.
Vem ainda hoje, se quiseres...
Vou amanhã, então. Os miúdos e o António?
Estão todos bons...
Então, até amanhã! Diz à Becas que vou ainda a tempo de fazer o almoço.
Trés bien, ma cherie...
Agora fizeste-me lembrar o César!...
Porquê?
É uma das frases dele quando quer acabar com a conversa.
Tens estado com a criatura?
Nem por isso...- respondeu Clara.
Cheira-me a esturro!...
Se queres que te diga também a mim. Depois a gente conversa sobre o assunto. Um beijinho.
Adeus. Outro para ti.
Clara foi no dia seguinte. Mal chegou, premiu o código do portão. Entrou de seguida, eram onze da manhã.
Maria Clara! Como estás desde ontem?- perguntou Becas, dando-lhe dois beijos.
Como nessa altura. Um pouco para o chateado, filha para remediar... – e mal dizia isto, um sorriso amarelo aflorava-lhe aos lábios.
César Augusto é a causa! Está-se mesmo a ver!...
É! Mas não falamos agora nisso. O resto da família?
Anda por aí, na quinta.
Que vai ser o almoço?
Sardinhas assadas.
Gosto muito. Um pouco menos de as assar...
Não te preocupes. O Ricardo adora fazer isso.
Está bem. Então vamos a elas. A tua avó está cá?
Logo que chegámos do Algarve foi para o Porto.
E ela e a tua mãe?
Como sempre, cão e gato! - respondeu Becas rindo.
Para variar...- riu Clara também.
Bom. Esperemos o resto do pessoal.
Luísa chegou cerca do meio dia. O Ricardo e o Pedro também.
Então, Clarinha?- perguntou Luísa, menos ruidosa do que antigamente, dando-lhe um beijo, mal a viu.
Clara estranhou.
Depois de cumprimentar os putos, quando a apanhou sózinha perguntou-lhe:
Luisinha! O que se passa contigo?
Estou em plena crise matrimonial – respondeu com uma lágrima ao canto do olho. E desta vez sem volta, depois das mil e uma que sempre escondi de toda a gente- acrescentou.
Nunca pensei que as coisas fossem assim, Luísa. Pensava que o teu casamento corria dentro da normalidade.
Qual normalidade, qual carapuça... O meu feitio expansivo foi dando para camuflar. Agora tudo chegou ao ponto de ruptura. Definitivamente!
E o António?
Anda por aí.
Há outra mulher?
Desconfio bem que sim!- respondeu Luísa
Os homens não prestam mesmo.
E o César?
Não sei. Mal me liga, nem atende os meus telefonemas. Não sei quem é aquele homem. Não sei se é um introvertido, um tímido, um mulherengo, um perverso ou um anjo. Uma coisa é certa: sofro um pouco com estas dúvidas todas.
Passaste algum tempo com ele nas férias?
Não. Não tive direito a isso nem sei se algum dia o terei. E se fossemos tratar do almoço?- desviou a conversa.
Vamos lá. A Becas já está na cozinha. O Ricardo deve estar a fazer as brasas. Vais embora quando? –perguntou Luísa.
Queria ir dia oito de manhã. Tenho uns assuntos a tratar.
Está bem.
A semana decorreu dentro do quadro traçado. Luísa desabafou com Clara. Esta retribuiu-lhe com desabafos idênticos. Becas aguentava as duas mães: a verdadeira e a que o era só para remediar.
Mal viu António durante todo aquele tempo até que o dia da partida chegou.
Liga-me sempre que quiseres, Luísa. Se precisares de mim é só chamar! Serei o teu 112! – disse, sorrindo. Luísa sorria também.
Está bem, irmãzinha! Tu, igualmente!
Estás a ouvir, Becas? Vamos promover-te a pronto socorro! Faz o favor de estares à altura do cargo... – e as três deram uma sonora gargalhada.
Clara demorou cerca de hora e meia a chegar a casa. Era terça-feira e andou todo o dia por ali a arrumar as coisas das férias. Fez uma pequena limpeza. Às seis horas ligou a César.
Estou sim?- atendeu ele.
Olá! Então o que é feito de si?
Cá ando.
Não me tem ligado...
Tenho andado bastante ocupado com trabalho. E você? Ainda está de férias?
Ainda. Mas estou em Lisboa.
Quer ir lá a casa hoje tomar um café?
Está bem. A que horas?
Daqui a pouco. Vou já para lá.
Então, até já.
Eram sete horas estava Clara a tocar à campainha. Como sempre, a velha do terceiro andar apanhava ar, na varanda. Já não se viam há cerca de um mês. Sentia saudades daquela montanha russa semelhante a uma vertigem e no hall de entrada beijou-o longamente.
Então, a festa? Correu bem? A sua professora foi lá?
Foi. Mas, tive um problema. Tenho uma hérnia discal e ao pegar numa garrafa de gás dei um mau jeito. Passei parte do dia na cama cheio de dores.
Isso é que foi pior...
Tudo foi dito entre beijos.
Clara estava agora encavalitada em César que a segurava pelas pernas à volta da cintura. Ela abraçava-o pelo pescoço.
É melhor eu descer, não vá piorar da sua hérnia...
Oh, não! Já estou a ficar cheio de tesão com os teus beijos tão sensuais! És tão boa querida!... Vamos para o meu quarto...
De seguida pô-la em cima da cama. Lá estavam os cristos pendurados na parede que, mudos, assistiam aos ais e gemidos dos dois.
Oh, rapariga! És mesmo boa! Já tinha saudades da tua cona sempre toda molhada e das tuas gargalhadas!...
De novo o duche, na banheira com cortinados já vistos e revistos, salpicados de biquinis de mulher, de todas as cores, formas e feitios... César revelava nos seus gestos uma pressa inusitada em se vestir, como quem ainda vai para a rua. A toalha de riscas vermelhas já Clara a tomava como sua.
Na televisão, o telejornal começara. A meio, César foi aquecer a sopa do costume que ela, como era habitual, aceitou juntamente com as côdeas de pão onde barrou um pouco de marmelada industrial. César foi buscar o telemóvel.
Tenho um compromisso. A minha irmã vem hoje de Paris e vem dormir cá a casa. Já me devia ter telefonado. Vou a um concerto e tenho de ter o telemóvel ligado, o que é uma chatice...
Estranhou a revelação em cima da hora. Percebia agora a pressa dele em consumar a rapidinha. O concerto era às nove e meia e já não era muito cedo. Desceram quase a seguir. César meteu-se no carro, depois de lhe dar o beijo na rua, desaparecendo rapidamente sem que Clara conseguisse ver a direcção tomada. Ela teve uma sensação esquisita. Quando chegou a casa continuou a rememoriá-la.
Passou um dia. Ou dois. Tentou por diversas vezes contactá-lo pelo telemóvel. Na segunda-feira seguinte, conseguiu-o .
Olá! O que é feito de si? Onde é que está?
Estou num restaurante com a minha irmã e o meu cunhado. Ontem tive um acidente em frente ao Hospital de Santa Maria.
E magoou-se? – perguntou Clara, preocupada.
Não, felizmente. Uma médica ia a sair e desfez-me o carro. Não tive culpa. Agora estou apeado...
Bom. Ainda bem que não se magoou. Ligue-me depois... Se precisar de alguma coisa, disponha.
Obrigado. Até amanhã.
Clara sentiu uma espécie de dor. Como poderia ele comportar-se daquela maneira consigo? Porque não lhe telefonara? Como se ter um acidente de automóvel fosse uma coisa que a deixasse indiferente...Passou uma semana. Ele estava a querer ir-se embora e não tinha coragem de lho dizer pessoalmente, como Clara sempre lhe dera a entender e, às vezes, dizia abertamente. A ela que, aos poucos e por causa da bronquite asmática de César, deixara até de fumar...Uma pequena onda de raiva inundou-a por dentro. Hoje ía deixar os pruridos de lado. Lembrou-se da velha do terceiro andar. Ia fazer algo semelhante. Pegou no telemóvel e ligou-lhe para o telefone fixo, para que o seu número não fosse identificado. Desligou de seguida sem dizer uma única palavra. Passados uns momentos digitou o número do celular. Uma, duas, três, uma infinidade de vezes. César nunca atendeu. Quando comeu o resto da sopa dele nas Azenhas do Mar César proferira a frase: o que é que esta gente estará a pensar de nós? Nessa altura, Clara apercebeu-se de como era importante para ele aquilo que os outros pensavam de si. Mas, agora, também ela fazia parte dos outros e o idiota estava-se nas tintas. Assim, tinha de acabar com aquela angústia e de forma irreversível. Assim, pediu às informações telefónicas a direcção daquele número. Depois, pegou num papel e numa esferográfica começando a maquievelar. No cimo desenhou uma cruz de mortos e escreveu de seguida:
Dr. César Augusto Pinto:
Pelos vistos não estava muito feliz comigo!
Podia ao menos ter-mo dito frontalmente!
Que cobardia!-
Como poderá voltar de novo a olhar para os cristos do seu quarto? Eu não! Vou continuar a olhar de frente para toda a gente, como sempre fiz! Qual montanha russa, qual carapuça!
E agora não me apetece escrever mais! Não vale a pena gastar cera com tão ruim defunto!...
César leria o papel, no mínimo para saber o que os outros sabiam acerca daquela cara de anjo- pensava.
No dia seguinte de manhã foi à florista. Comprou umas flores amarelas. De seguida dirigiu-se a casa de César. Pediu à velhota do terceiro andar para lhe abrir a porta ao que ela acedeu, naturalmente. Antes, tinha arranjado fita cola, escarrapachando depois o papel na caixa do correio onde encafuou as três rosas. A seguir foi-se embora espumando de raiva. Vagueou depois, por Lisboa a tarde inteira. Foi até Cascais, ruminando.
Era o seu último dia de férias. Dormiu mal. No mínimo, esperava um insulto. Mas o telemóvel continuava enervantemente silencioso. Foi para o gabinete, reiniciando o trabalho.
Mal cumprimentou Isabel, dirigiu-se à sua sala. Diogo chegou nesse meio tempo. Bateu à sua porta e foi entrando.
Olá, Clarinha! Estás boa?
Não respondeu. Não por malcriadez mas por umas lágrimas andarem a marejar-lhe os olhos. Diogo percebeu que alguma coisa se estava a passar com a colega e amiga.
Desculpa. Estou incrivelmente perturbada- disse, deixando-se cair num dos maples. - Preferia não falar agora no assunto...
Está bem. Se precisares de mim, dispõe...
Sempre discreto, sempre amigo- pensava Clara. - Se todos fossem como ele não estaria agora naquele estado.
O dia estava a chegar ao fim. César não tugira nem mugira. Clara meditara permanentemente no seu arrebatamento. Agora, uma onda de remorso começava a invadi-la. Fôra longe de mais. Devia tê-lo magoado profundamente. Foi então ao gabinete de Diogo e bateu à porta.
Entra.
Estás disponível?
Claro que sim.
Então, vamos tomar a nossa bica? Preciso de falar contigo!...
Desceram ambos e já na cozinha, Clara contou a Diogo a maquiavelice. As lágrimas, finalmente, começaram a acudir-lhe aos olhos.
Excedeste-te, Clara! Expuseste-o ao ridículo! Mas deixa lá. Esquece o assunto. Se calhar já lhe devem ter feito coisas bem piores. Pelo pouco que me tens contado dá para perceber que ele não tinha qualquer interesse em ti. E tu mereces tudo de bom.
No fundo, não passa de um homem tímido e muito carente. As mulheres devem-no ter magoado muito- desculpava-o Clara.- Por isso se protege tanto delas...
Não entres nessa via. Não voltes atrás. Era um trunfo para ele. Deixa estar as coisas como estão. De contrário, vais magoar-te ainda mais.
No mínimo, tenho de lhe pedir desculpa. Não fico bem com a minha consciência...
Pedir desculpa não fica mal a ninguém. Se o ofendido aceitar o pedido, dignificou-se; se não aceitar é o ofensor que sai dignificado. Também se pode dar o caso de ele o aceitar simuladamente e vingar-se na primeira oportunidade. Agora a escolha é tua.
Olha, Diogo! Isto é um raio x! Já agora, vou fazer as chapas todas! - terminou Clara, sorrindo, finalmente.
Está bem. Continuas a ter sempre o meu ombro para chorar...
Despediram-se, pousando as chávenas da bica na banca da cozinha e regressando depois às respectivas moradas.
Às oito horas, em casa, depois de comer qualquer coisa, Clara pegou de novo em papel e esferográfica, escrevendo:
- Montanha Russa:
- Acho que te vou escrever uma carta de amor.
- Lê-a por favor e pensa como o mundo seria diferente se todas as pessoas fossem capazes de escrever cartas de amor ridículas, como dizia Fernando Pessoa.
És uma enorme contradição! Bonito, terias hipóteses de entrar em todos os corações, pela via do amor que desencadeias. Mas não foste feito para isso. Não sabes nada desse sentimento e nunca lá conseguirás entrar. Dei-te todas as chances, todas as chaves e nem sequer passaste do hall de entrada. Talvez nem devesses sequer ter tocado à campainha...Presumo que já tenhas tido muitas oportunidades semelhantes. Deves tê-las perdido todas...
Nada sei de ti, é verdade. Mas toquei-te com as minhas mãos e senti-te um homem profundamente infeliz, quer tu sejas um anjo ou um demónio. Talvez sejas mesmo as duas coisas numa ambiguidade que haverá de deixar-te um enorme vazio. Foi uma sensação bonita, mas ao mesmo tempo dolorosa. Senti-a como dupla injustiça. Eu capaz de uma entrega total; tu incapaz de perceber essa entrega, enquanto sistematicamente te deparas com mulheres iguais a mim.
Quando estiveres com Deus nem o facto de seres bonito tens de agradecer-Lhe. Para ti, foi mesmo um enorme castigo. Tens até de perdoar-Lhe por isso. É também o que eu te peço. Que me perdoes a carta aberta ao condomínio. No fundo, no fundo, talvez seja mesmo eu quem mais tem de perdoar-te e perdoar-Lhe, por Ele não te ter feito de outra maneira. Também, se assim fosse, eu não estaria aqui agora a escrever esta carta de amor ridícula. Nunca saberia que tens cristos no quarto e uma velhota no terceiro andar a espiar-te.
Não! Esta não é uma carta de amor! É apenas um pedido de desculpas, pois, sejas tu anjo ou demónio, tens o direito de ser feliz desde que não magoes ninguém.
Não deverias tu ter já escrito centenas de cartas iguais a esta?...Deixo-te a ideia...E não guardes para amanhã o que podes fazer hoje.
Clara
Sentia-se um pouco louca. Às vezes, parecia uma criança, sem qualquer reserva. Depois, quando chegava a hora de tomar decisões, sofria como a mulher que era. Talvez por isso as crianças gostassem tanto dela.
César revelara-se cinicamente mentiroso, mas fôra um pouco seu quando o tocara com os dedos. Nessa altura, tivera um pedacinho de céu. E essa recordação estaria algures guardada na imensa memória do universo, cheio das melhores intenções. Sentira-se uma predadora de almas. A de César era profundamente infeliz. Ele devia mesmo ter sentido medo de si, pois nenhum homem deve gostar de sentir a alma devassada, ainda que seja um monstro. Gostava de o ter feito melhor mas não conseguira. Paciência. Havia de esquecer o afecto que ainda nutria por César e a mágoa que, de qualquer modo, sentia por tê-lo feito sofrer.
Nada perdia, pois nada tivera. De si, ele não tinha quaisquer dúvidas. Sabia bem quem se sentara à sua mesa, quem comera as côdeas do seu pão e quem com ele dormira na cama. Contudo, uma enorme sensação de tristeza começava a acompanhá-la. Tinha uma imensa pena de César. A sua intuição dizia-lhe que, por muitas voltas que o mundo desse, ele haveria de permanecer eternamente às escuras. Julgara-o, uma vez, luz. A ela via-se como a força. Afinal, tinha muito mais luz e força interior do que César alguma vez haveria de experimentar na vida. Quisera caminhar lado a lado com César. Mas, bem vistas as coisas, eram como linhas paralelas: por mais que se prolongassem, nunca se encontrariam.
O tempo passava. Clara tornara-se uma pessoa diferente. Triste. Emagrecera. Julgava-se uma mulher má e mesquinha. Pedira desculpas a César. Mas era ela própria quem não se perdoava. César não respondera à sua carta. Um dia, encontrou-o por acaso à porta de uma livraria. Cruzaram-se na entrada, ia ele a sair. Tocou-lhe no braço, como se nada tivesse acontecido. Cumprimentou-a com um olá sorridente. Clara retribuiu enquanto pensava:
- Imperturbável! Parece Deus! O mesmo que cria as coisas, alheando-se dos resultados da sua criação!
Talvez lhe tivesse desculpado a aleivosia- tentava animar-se. Sentiu-se um pouco melhor com a ideia.
No gabinete as coisas decorriam normalmente. O trabalho voltara a crescer e Clara dedicava-se-lhe afincadamente, numa tentativa de sublimação do amor que César, contra todas as evidências, ainda lhe inspirava. Deveria ser uma boa pessoa. No mínimo, melhor do que ela. Era apenas um homem tímido para quem o casamento não tinha dado certo, por uma razão qualquer. Provavelmente, ainda gostava da ex-mulher e não se queria ligar a qualquer outra. De vez em quando telefonava-lhe. Sabia que não o encontraria em casa àquelas horas. Mas, para ela, era assim uma espécie de terapia e de expiação da sua própria culpa; do telefonema anónimo, da carta aberta ao condomínio e das flores. Passara também a conversar mais ao fim da tarde com Diogo, no calor da amizade de ambos, acompanhados da melhor bica do dia. Em casa, as coisas eram mais difíceis. Desinteressou-se completamente de quase tudo. O seu olhar vagueava repetidamente distante. Voltou a fumar e deixou morrer as plantas.
O Natal aproximava-se. Clara desejava apenas que César fosse feliz. Não a amava. Com ela as coisas eram diferentes, apesar de nunca lho ter dito. Pois haveria de ficar a sabê-lo!- afirmava intimamente. Não iria enviar-lhe o tradicional cartão de boas festas. Pegou em papel e escreveu:
Lisboa, 12 de Dezembro de 1998
Montanha Russa:
Um dia ofereci-te um livro. Na dedicatória, lembro-me de ter escrito assim: depois de mim amem-no como eu o amei, certa de que, atrás de uma montanha, há sempre uma montanha maior. Nem eu sabia quem era a montanha quando a montanhas maiores me referia. Afinal, a montanha sou eu! Tão frágil que até sinto saudades! Tão forte que até as consigo suportar! Tão frágil que não o devia dizer! Tão forte que até o consigo fazer, transcendendo-me e surpreendendo-me!
Antes de continuar esta carta, detenho-me a pensar nos teus sentimentos ao vê-la no correio.
Talvez tenhas pensado:
Por que será ainda assim com ela?
Nunca me conheceste bem. Mas eu sou como a água. Silenciosa, tudo invade, não poupando nada nem ninguém, quando se trata do turbilhão da corrente que é o sentir, para depois se aquietar na imensidão do Oceano. Terás tu adoçado os olhos no recolhimento do teu lar enquanto a abrias, ou, por insegurança, ter-te-ás limitado a fingir indiferença? Se nada acontece por acaso, pergunto-me continuamente por que e para que nos cruzámos. Que teremos aprendido um com o outro?
Por agora, ainda não sei qual a lição a aprender ou o meu impulso de vida. Para mim, os encontros e desencontros funcionam normalmente para cima. É assim uma espécie de perder ganhando. É o lugar comum dizer-se que há males que vêm por bem, muito embora, neste momento, eu não saiba distinguir o que é mal e o que é bem. Em todo o caso, chego a sentir-me escolhida para alguma coisa vindoura. Nesse dia, o puzle fará todo o sentido.
Por falar em escolhida... No começo, quando me parecias Deus, acudiram-me ao espirito palavras semelhantes às do Apóstolo S. Lucas, versículo 43, Visitação de Maria a Isabel.
Depois de adaptadas, ficaram escritas assim:
De onde vem a felicidade de aquele homem ter olhado para mim?
Afinal, parece-me que o teu lado místico fica muito aquém do meu! Nunca percebeste como me tocaste? Nunca sentiste como me encandeaste? Admiras-te pois de eu ter fugido de uma luz que, de tão intensa, me cegava? Já o nosso tempo diminuía como a lua a caminho de quarto minguante quando eu soube da cor dos teus olhos verdes, em dia de convite para as festas do teu santo. Foram os últimos a fixar. Tive de decompor o teu rosto para o guardar, tão fugidio ele foi sempre à minha retina. Comecei pelas sobrancelhas, a cor cinzenta da tua pele barbeada, a pequena cicatriz no queixo, a boca, o nariz, a testa e, por fim, os olhos. Mesmo assim, eram visões parcelares. O conjunto escapava-me e, de cada vez que te via, era sempre como se fosse a primeira. Só tinha uma sensação:
Nunca vi este homem – e um estranho medo se apoderava de mim, imaginando não te conhecer, se um dia te visse no meio de uma multidão. Depois, a tua timidez mascarava-se de conversa ligeira e eu sentia-me um pouco amputada, enquanto as palavras, na ausência de partilha, morriam frustradas por não terem sido senão ideias.
No fundo, sempre me intimidaste.
Hoje, continuo com a mesma luta entre o querer e o desejar algo ou alguém e o ter de ser o contrário daquilo que se deseja e ama, em nome do preconceito ou do politicamente correcto.
Por que nos limita tanto o corpo?
- Ah! Como seria bom viver só em pensamentos e sem limite!
Sem corpo, sem tempo nem espaço, eu seria tudo o que quisesse.
Seria sol e luz de quem pudesse sentir o que, por ter corpo, não faço.
- Seria em cada noite a tua chama, o bálsamo da tua ansiedade. Do teu querer eu seria vontade, de vontade seres de quem te ama.
De quem desejas eu seria a forma, meu ser sem corpo não teria norma e, sem limite como eu sempre quis, no tempo e no espaço tu serias meu, em cada mulher eu seria o céu e tu, em todo o tempo, eras feliz.
Esta carta deveria ser um telefonema a desejar-te bom Natal. Mas, voltaria a inibição, o tratamento cerimonioso.
E agora, desejo-te um bom Natal e tudo de bom.
Clara
Clara passou o Natal no Porto, com a família. Achavam-na triste. O Ano Novo haveria de mudar tudo- dizia, sorrindo.
A alteração ficou então com data antecipadamente marcada. Era como se, na sua agenda, estivesse a marcar uma entrevista com alguém, a quem um emprego ganho pudesse mudar completamente a vida. Estava disposta a deixar tudo enterrado no ano velho, como coisas velhas, sem qualquer interesse para ninguém. César escrevera-lhe para o gabinete. Viu o facto como resposta à carta dela. Eram dez horas de determinado dia quando Isabel lhe entregou o cartão de boas festas. Emocionou-se. Não o abriu logo. Iria fazê-lo à noite no aconchego do seu quarto, capaz de ver e guardar silenciosamente todas as emoções que ele pudesse desencadear.
Assim fez. Era sintético. Desejava-lhe muito sinceramente um Bom Natal e um Bom Ano Novo.
- Há-de ser! – pensava Clara.- Tudo acabado!
Passou a noite de fim de ano com a Catarina, o Xavier, a Joana, a Silvia e a Juju. À meia-noite, depois do champanhe, ligou aos amigos mais próximos especialmente ao Diogo, a desejar-lhes um bom ano.
Segunda-feira seguinte, era mais um dia de trabalho. Quando acordou, pela manhã, estava disposta a fazer a mudança dos seus fígados, do seu coração e das circunvoluções do seu cérebro, onde César continuava teimosamente instalado. E, já no gabinete, cumprimentou a funcionária.
Olá, Isabel!
Olá, dra. Clara! Bom dia!
Teve boas entradas, Isabel?
Tive. Passei o ano com ao meus pais, as minhas irmãs e os meus sogros. E a doutora?
Estive com uns amigos. A única coisa aborrecida é que me amolgaram o carro quando estava estacionado. E fugiram.
É o costume. Há gente sem escrúpulos.
E o Pedrinho?
Tem andado um pouco constipado. De resto, está bom.
O dr. Diogo já chegou?
Já, sim. Está no gabinete a redigir uns anúncios para logo ao fim da tarde eu levar ao jornal.
Bom. Então, vou ter com ele.
Bateu à porta.
Entra, Clara. – respondeu.
Cumprimentaram-se com dois beijos, como habitualmente.
Então, Dioguinho, que tal a tua passagem de ano?
Foi boa. Passámo-la com uns amigos. Cada vez gosto menos de ir a sítios públicos aturar as bebedeiras e os exageros dos outros. E o teu?
Estive com a Catarina e o Xavier. A Juju também cá estava como te disse quando te telefonei. Agora já está mais recomposta depois da morte do namorado francês.
E tu, Clarinha?
Passe o lugar comum, ano novo, vida nova! Nesta altura, como há sempre muito que fazer, vou dedicar-me de alma e coração ao trabalho.
Ora assim é que é falar! Atrás de uma montanha há sempre outra montanha maior...
O pior é se eu já conheci o Everest... –disse Clara, sorrindo.
Nesse caso, resta-te o céu – acrescentou Diogo, rindo também.
É verdade. Desde que não seja o dos pardais!... Sabes qual é?
É a barriga dos gatos!- e continuaram a rir.
Bom. Será que este país já começou a trabalhar? –perguntou ele.
Os homens da iluminação das ruas só começam a desmanchá-las depois dos Reis... e hoje só ainda são quatro!
O teu sentido de humor está a regressar! Ainda bem! Já não podia ver-te com aqueles olhinhos de carneiro mal morto...
Não há-de ser um César qualquer que me vai abalar. Já vivi uma cena bem pior e curei-me...
É verdade. Nunca mais soubeste do Paulo?
Deve andar aí pelas ruas de Lisboa a esfregar-se em tudo quanto é homem ou semelhança – ria Clara. - É uma concorrência desleal!...
É. Parece que voltamos à Grécia antiga. O sexo masculino está a transformar-se numa massa andrógina.
Realmente! As mulheres ainda hão-de procriar sozinhas! – retorquiu Clara.
Para início de ano a conversa não está nada mal- atalhou Diogo, com um riso contagiante.
Bom. Mudando de assunto. Como vais começar o ano laboral?
Hoje tenho bastante que fazer. Temos de começar a fazer o balanço da actividade. Logo à tarde vem cá o contabilista. Tens alguns papéis? O papão do fisco só perdoa aos desonestos! A nós cai-nos em cima como gato sobre bofes!
Tinha alguns. Já os entreguei à Isabel.
Está bem. Então, até já.
Até já, Diogo!
Clara sentou-se à secretária no gabinete ao lado. Olhou por uns instantes para a disposição do mobiliário. A janela era central a todo o espaço. Na mesa colocada do lado esquerdo junto à parede da porta de entrada, a luz incidia vinda do lado direito. - Vou mudar a disposição da sala- pensou. Levantou-se de repente. Começou de seguida a tirar todos os livros e dossiers do armário à sua frente espalhando tudo no chão, a um canto. Depois, foi ao cimo das escadas e chamou Isabel que se apressou, a responder ao seu pedido.
Vou mudar a disposição dos móveis. Ajude-me, por favor a colocar este armário junto à parede onde está agora a secretária.- E as duas, arrastando o mobiliário apoiado em duas toalhas, deram ao espaço uma nova arrumação.
Os maples permaneciam perto da janela, mas agora do outro lado. E de pano do pó na mão Clara limpou e arrumou tudo o que desarrumara antes. Diogo, ouvindo algum barulho durante a azáfama ainda espreitou para dentro oferecendo ajuda. Clara declinou-a, com um sorriso. Afinal, os homens não gostavam de alterar as coisas, permanecendo anos e anos com os espaços iguais. Pelo menos nos locais de trabalho...Era meio dia. Estava de novo tudo apaziguado. A luz provinha agora do lado esquerdo, o do coração, como sempre ouvira que devia ser. Fizera a primeira mudança do ano.
- A quem muda, Deus ajuda - Cumprira o ditado à risca. Agora, esperava a contrapartida.
Foi almoçar cerca da uma hora. Aproveitou para comprar uns colantes e uns produtos de beleza. Depois dos últimos três meses desleixara um pouco. Que diabo... Tinha de conservar a sua imagem de mulher interessante, às vezes mais pelo ar aparentado do que propriamente pelos farrapos vestidos. À noite, em casa, olhou para as plantas. Estavam com algumas folhas velhas por causa da sede passada aquando da morte da dona. Teria de mudar-lhes a terra e transplantá-las, se não quisesse que elas morressem de verdade. Deixara de fumar outra vez em Novembro após um novo aumento do tabaco. A essa tortura já deixara de as submeter. Levou os vasos todos para a cozinha e logo que concluiu a tarefa, a banca ficou atulhada de folhas e pequenos caules. As ervilhas como lhes chamava um amigo de Odivelas, o Rui, apresentavam-se agora de cara caída. Não era muito boa altura para mudanças deste tipo. Mas, seria bem pior se tivessem de esperar pela primavera, prometida para daí a dois meses e tal. Por fim arrumou tudo deixando dois sacos de lixo completamente a abarrotar. Preparava-se para ir à rua colocar os resíduos no contentor quando o telemóvel tocou. Prosseguiu com a tarefa. Quando chegasse seria ela a responder à chamada. Não lhe interessava nada pousar a carga sujeita a sujar o átrio junto do elevador. Já de volta foi imediatamente ver o número. Talvez fosse a Luísa. De vez em quando telefonava-lhe e conversavam sobre a crise matrimonial dela que continuava sem solução aceitável à vista. Mas, eram nove horas e ela não costumava ligar-lhe tão cedo.
Procurou o número. Era o do telemóvel de César.
- Não pode ser! - disse para com os seus botões. - Nunca entendi muito bem o funcionamento deste aparelho. Aliás, detesto tudo o que seja modernice: telemóveis, computadores. Não atino com máquinas desespiritualizadas. Tentou mais uma, duas, três vezes. Não restavam dúvidas. Era mesmo o telemóvel de César - repetiu-se intimamente, emocionada. Conhecia-o bem, apesar de nada saber da vida dele. Se não fosse ela a ligar-lhe agora, jamais repetiria o telefonema. Como não atendera, deveria estar a pensar que o rejeitara. E César - intuía Clara- por uma razão qualquer muito forte, lidava mal com sentimentos de rejeição. Por outro lado, já o magoara bastante e prometera a si própria nunca mais voltar a fazê-lo. Já tinha retirado o número da lista, porém, por estranha coincidência voltara a grava-lo. Também não valia a pena removê-lo. Afinal, o registo permanecia indelével na sua memória.
Estou sim! – atendeu ele
Como está? – perguntou Clara
Bem.
Estou tão emocionada...
Porquê?
Por estar a ouvi-lo de novo. Nunca pensei que isso pudesse voltar a acontecer...
Porquê?
Por razões óbvias... Os seus filhos estão bons?- perguntou-lhe, depois de algum silêncio.
Estão. Neste momento andam com a mãe lá pela Suíça.
Passou o Natal com eles?
Com eles e com a minha mãe.
Onde está agora?
Em casa.
Ah! Também estou na minha. Andei a arranjar umas plantas. Ia a sair com o lixo quando o telemóvel tocou. Por isso não atendi...
Então, tudo bem consigo?
Cá vamos andando...
Parece não estar lá muito bem...
Eh...
Ligue-me um dia destes... Vamos tomar um café...
Está bem. Talvez ainda esta semana. Lá para quinta-feira. Quarta, dia de Reis, tenho uma festa de aniversário.
Também tenho um primo que faz anos nesse dia. Ficou em Angola.
Eu ligo-lhe.
Um beijinho.
Outro para si. E obrigado por ter telefonado- despediu-se Clara, com uma pontinha da emoção inicial.
Ficara contente. Afinal, não a esquecera. Lembrava-se do primeiro encontro quando César a convidara pela primeira vez. Talvez fossem tomar o café tão desejado e desta vez celebrando o reencontro, depois de uma ausência tão prolongada. De outra forma, o telefonema não fazia qualquer sentido. De cogitação em cogitação e já deitada, Clara adormeceu, abraço fingido na travesseira.
Passaram dois dias. Timidamente telefonou a César a seguir ao jantar.
Olá! Está bom?
Estou, E você?
Também.
Onde está? – perguntou ele.
Em casa.
Não quer vir fazer-me companhia?
Está bem.
Então, venha. Até já.
Clara escondeu uma lagrimazita. Não podia deixar que isso lhe acontecesse quando estivesse com César. Não demorou muito, estava lá. Seriam talvez vinte para as dez. Com curiosidade, olhou para o terceiro andar.
Ah! Finalmente a velhota não fazia qualquer vigia. Também, era Janeiro e fazia um frio de rachar- pensou com os seus botões.
Tocou à campainha. Mal se lembrava do andar. César abriu, imediatamente. Já no hall de entrada deu-lhe um abraço como a querer pedir-lhe mais uma vez desculpa.
Obrigado - disse timidamente.
Porquê?
Por ser tão boa pessoa – e as lágrimas afloravam-lhe aos olhos.
Vamos para a sala. Pendure aqui a sua gabardina – sugeriu, tirando-lha da mão.
Pensei nunca mais entrar neste apartamento...
Porquê?
Oh, César! Ainda pergunta porquê?! – e Clara estava verdadeiramente comovida.
Então, está tudo bem consigo?
Está, Apesar de no final do ano me terem batido no carro.
E soube quem foi?
Não. Estava estacionado e esqueceram-se de pôr o número de telefone no pára-brisas.
Há gente assim...
E consigo? Os seus filhos estão bons?
Estão.
E a sua mãe?
Também.
A conversa variara pouco e não demorou muito já César lhe punha o braço à volta do pescoço, começando de seguida a beijá-la. Tudo continuava igual, até os telefonemas não atendidos. Depois o banho. A toalha com riscas vermelhas ainda era a mesma. O cortinado com biquinis de mulher de todas as cores e feitios, também. E tudo era permanecia inalterado e inalterável.
Já a noite ía avançada quando Clara se foi embora.
De manhã acordou relativamente bem disposta, dirigindo-se ao escritório. Diogo chegou cedo nesse dia.
Olá! – cumprimentou Clara - Tenho novidades para ti. O César ligou-me um dia destes. Estive ontem com ele...
Ó Clarinha! O que quero é que tu sejas feliz...
Não sei o que vai acontecer. As coisas estão como sempre. Talvez não valha a pena. Mas, se eu soubesse o que vale ou não a pena, Diogo...
Olha, não te aborreças com isso. O que tiver de ser teu à mão te há-de ir parar!
Talvez tenhas razão. E agora vamos trabalhar...
É isso mesmo.
Os dias decorriam normalmente. Clara sentia de novo tudo a ficar morno. Afinal, os três meses tinham sido mais do que suficientes. Os telefonemas de ambos intercalaram-se. Os dele cada vez mais raros, com excepção dos primeiros dias. Foram para a cama mais uma vez.
Janeiro estava quase no fim. A angústia e as dúvidas de Clara reavivaram-se na sua memória. Era inverno e César continuava a ir todos os fins de semana para a aldeia. Fizera anos. Telefonara-lhe de véspera. Não podia ir jantar com ela. Os filhos estavam em Lisboa. Estava bem. Afinal, os filhos são mais família do que outra pessoa qualquer- pensava.
Mais um dia passado. Clara estava em casa. O papel há muito vinha sendo o seu grande confidente. E nas viagens ao seu mundo interior, escreveu outra vez:
Lisboa, 31 de Janeiro de 1999
- Montanha Russa:
- Li um dia algures que viajar não é não mudar de lugar mas sim perder preconceitos. Não sei se hoje irá cair algum.
Escrever, arrumar gavetas expurgando resíduos, sempre me manteve saudável. É assim como o princípio do retorno; fazer voltar a outrem o que outrem em mim induziu. É a verdade eterna sabida pela mais pequena onda há biliões de anos, regressando sempre ao mar depois de se ter despedaçado ou deleitado na areia da praia. Talvez tenham sido as pequenas ondas a inspirar a formulação do ditado bíblico de a César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Eu tento cumpri-lo à risca. Não quero pecar por omissão, para que um dia, como faz a maioria das pessoas à beira do fim, não tenha o ensejo de dizer que, se o meu avô não tivesse morrido ainda hoje era vivo. E só não assume isto as vestes de verdade como a de Monsieur de la Palice pelo respeito devido aos moribundos.
- Confio na tua essência onde, acredito, haja alguma centelha divina e, como tal, algo de bom. Mas há um enorme desfasamento entre o teu ser e o teu fazer. E isso baralha-me completamente.
- Sim! Falo dos teus pequenos defeitos, transformados por via das circunstâncias em maiores. Eles hão-de fazer-te perder sempre as pessoas que gostam verdadeiramente de ti. Sim. Porque tu mentes. Mentes até quando não atendes os telefonemas. Mentes a duas pessoas: a quem os faz e a quem está contigo. E elas, se quiserem, vêem-se nas costas uma da outra. Vêem também que não ligas importância a nenhuma, privilegiando apenas a mais imediata. Mas mentes tão mal!... E o que a verdade poderia aguentar a mentira deixa cair.
Não faças isso comigo!...
Talvez não gostes. Mas eu quero ser a tua consciência e só na verdade ela terá alguma paz.
Despeço-me imbuída do melhor sentimento do mundo.
Clara.
Já estava habituada. César nem sequer comentaria a carta. Os telefonemas continuavam a escassear. O pão era o mesmo de sempre, sem peixinho a acompanhar.
Fevereiro chegara. Um dia, ligou-lhe pelo telemóvel. Vira-o em casa. Estava ela em Telheiras à porta de César. Sentia saudades.
Olá, boa noite!
Você é bruxa!?
Porquê?
Ia agora mesmo ligar-lhe!
Então, antecipei-me – retorquiu Clara.
É...
Onde é que está? – perguntou ela simuladamente. - Gostava de estar consigo.
Acabei de sair, vou às Amoreiras buscar um relógio.
Ah! Está bem- respondeu, fingindo acreditar.
Eu amanhã ligo-lhe.
Está bem.
Desligaram.
Estava mais do que visto.
Clara foi a uma tabacaria comprou uma carta, selo e envelope e escreveu:
- Montanha Russa:
- Vamos ficar por aqui. Esta situação é mais do que injusta para mim. Eu mereço que me aconteçam coisas boas; sei lá: o totoloto, a minha alma gémea ou algo do género...
- Já te magoei uma vez e não quero voltar a fazê-lo.
Ha! A propósito: a rapariguinha do meu pretexto para te contactar já arranjou emprego.
Que sejamos todos muito felizes!...
Adeus
Clara
César ligou-lhe mal recebeu a carta. Não tinha ouvido o telefone. Depois, viu: chamada não atendida. E pela primeira vez não telefonou prometendo a si própria nunca mais na vida lhe atender um telefonema.
Passado um dia ou dois era o dia do seu aniversário. E já no gabinete, Isabel apressou-se a dar-lhe os parabéns.
Obrigado, Isabel.
Desejo-lhe um dia muito feliz!
Mais uma vez, obrigado. O dr. Diogo já chegou?
Já. Está no gabinete da doutora à sua espera.
Quando entrou, Clara deparou com um enorme ramo de flores.
Parabéns, Clarinha!- exclamou, dando-lhe dois beijos. Tudo de bom para ti!- continuava.
Obrigado, Diogo. Hoje vamos almoçar juntos, como sempre...
Nem era preciso dizeres. É ponto assente. E logo à noite, vais sair com o César?
Não. Vou jantar com a Catarina e o Xavier, a Manuela e o Luís. Já está combinado há uns dias.
Então?...
Assunto encerrado. Não vale a pena....
Tu é que sabes, Clara.
Diogo saiu passados alguns instantes. Ao meio dia Isabel foi entregar-lhe uns papéis. O telefone tocou entretanto. A rapariga atendeu no gabinete de Clara.
É para si.
Quem é?
César Augusto.
Nunca lhe telefonara para o gabinete. Ficou atrapalhada. Não queria mesmo atender e sem jeito pediu à moça para sair. Pegou no telefone meia atordoada.
Estou! – respondeu.
Parabéns! Pensava que escapava?- brincou ele do lado de lá.
Obrigado – agradeceu, friamente.
Liguei-lhe...
Eu vi.
Então? Vai haver festa?
Vou jantar com uns amigos.
Não quer aparecer depois?
Não sei. É capaz de ficar um bocado tarde...
Eu telefono-lhe - disse César.
Está bem.
Então, até logo e mais uma vez, parabéns!
Obrigado.
A presença de Isabel tornara-se inoportuna. Se não estivesse no seu gabinete não teria atendido. Só o fizera por não querer mostrar as suas fragilidades à rapariga. Talvez tivesse feito mal. Mas, agora já nada havia a fazer...
Durante o dia, ligaram-lhe a família e uns colegas do Porto. A Madalena, a Rosário e o Eduardo. A Becas e a Luísa, também. Com esta, os parabéns foram recíprocos. Ambas faziam anos no mesmo dia. A Graça era uma das sagradas. Se não lhe telefonava como acontecera no último ano por causa do acidente do marido, Clara sentia imenso a falta dela. Com a amiga passava-se a mesma coisa
A noite chegou depressa. Clara tinha combinado com os amigos encontrarem-se à entrada do restaurante Podium, na 24 de Julho, cerca das oito. Pedira à Catarina e ao Xavier para não fazerem comentários sobre César. Afinal, sempre sentira enormes ambiguidades acerca dele, nunca dando a conhecer a relação ou pseudo-relação, nem ao Luís nem à Manela. Ele ligou-lhe, era sensivelmente um quarto para as oito.
Então? O dia correu bem?
Mais ou menos. Vou a caminho do restaurante.
Sempre vai aparecer? Tenho uma prenda para si...
Clara pensou nos anos dele. Não lhe oferecera qualquer prenda. Todavia tinha passado num antiquário e visto uns cristos bonitos, após a esperança renascida depois do final do ano.
Não sei a que horas me vou despachar. Mas eu telefono-lhe.
Então, até logo... E um bom jantar!
Obrigado.
Quando chegou ao restaurante os amigos já lá estavam. Catarina tinha um enorme ramo de rosas amarelas na mão.
Olá, Clara! E parabéns- disse ela entregando-lhe simultaneamente as flores e dando-lhe dois beijos.
Obrigado.
Estás cada vez melhor! - piropou Xavier. Parabéns!
Obrigado – agradeceu sorrindo.- Julgo que estás a precisar de óculos! De qualquer modo obrigado. Pelo elogio especialmente!...
Dá cá um abraço!- disse o Luís. - Concordo com o Xavier! Estás muito bonita! Parabéns!
Seguiu-se a Manela a quem já não via há algum tempo.
Parabéns, Clara!
Obrigado, obrigado, obrigado!- riu ao mesmo tempo que distribuía com a mão aqueles beijos no ar estaladiços como batatas fritas, embrulhada na sua gabardina preta de pêlo na gola. - E se fôssemos entrando? Estou a ficar com fome!- prosseguiu.
É para já! - acrescentou Xavier.
Clara tinha mandado reservar uma mesa sossegada. Ao lado, estava uma mesinha onde colocaram o bolo de aniversário e o champanhe, encomendado por ela. O jantar ia decorrendo e clara não estava lá muito animada.
Não estás nos teus dias, Clara. Já te vi mais divertida. Não me digas que decidiste não fazer mais anos depois dos trinta e cinco?- perguntou Luís, brincando.
Espero nunca chegar a essa fase de velha gaiteira!...
E depois, aos advogados, aos médicos, mas sobretudo aos amigos nunca se deve mentir...- acrescentou a Manela.
É verdade.
E de amores, como vais?- perguntou Luís.
Comigo é um bocado problemático- respondeu Clara. Desde homossexuais a mulherengos bonitos, atraio-os como se fosse mel! Só me falta um idiota! Mas, por este andar, chego lá!...
Não digas!... Tens algum a arrastar-te a asa?
Sei lá...
Os pratos entretanto escolhidos pelos quatro começavam a chegar, já o apetite de todos lhes revolvia o estômago impaciente. Jantaram a seguir, tranquilamente e já a refeição estava quase no fim. Eram praticamente dez horas. Faltava cantar os parabéns. O empregado colocou então o bolo, as taças e o champanhe na mesa e Luís, com voz de barítono começou a cantar. Os outros seguiram-no. Após a cantoria, demoraram pouco tempo a sair.
Vamos beber um copo? - perguntou Luís.
É melhor não...- respondeu Clara- Tenho ainda de ir receber um presente.
Que não seja ao menos envenenado! – brincou Xavier, mais ou menos a par do assunto,
É verdade. O nosso ficou no carro – disse a Manela. – Vamos lá buscá-lo.
Abriu- o, mal os amigos lho entregaram. Era uma jarra para a nova casa.
Obrigado.
Despediram-se passados uns instantes, dirigindo-se para as respectivas casas. A noite estava bastante fria pedindo cama mas havia o compromisso. E... Clara já tinha ligado as antenas. César estava de novo nos seus pensamentos. Telefonou-lhe quase logo.
Então! Sempre vem cá a casa?
Não acha um bocado tarde? – perguntou, como quem quer e ao mesmo tempo deixa de querer.
Não. Nunca me deito cedo. Além disso tenho a sua prenda. E prendas fora do dia de aniversário não têm muita piada...
Está bem. Então, daqui a dez minutos estou aí.
Foi imediatamente. Mais uma vez renascia a esperança. Talvez César abordasse a sua carta e talvez pudessem finalmente conversar um pouco sobre os dois. Mal entrou, ele deu-lhe um beijo. Na boca. Como se nada tivesse acontecido.
- Não sei o que vai na cabeça deste homem- pensava, enquanto se sentava no sofá junto à janela. - É tão tímido... Nunca vai conseguir dizer nada sobre si. E... muito menos sobre a carta. Nem lhe vou perguntar se a recebeu...Olhou para César, olhos doces e emocionada. Ele estendia-lhe os braços e Clara não resistiu. Aquele homem exercia um fascínio inexplicável sobre si. Deixou-se beijar.
Ah! Tenho aqui a sua prenda- disse bruscamente indo buscar uma esferográfica e entregando-lhe um envelope castanho, aberto. Era um livro. O Diário de Bridgit Jones onde escreveu, apressado, uma dedicatória.
- Para a Clara com um beijo do César.
Obrigado.
Depois, ele baixou o volume da luz e o sexo falou mais forte. O resto do cenário lá estava, não faltando obviamente, o cortinado dos biquinis. O telefonema chegou, como sempre, e ele atendeu, respondendo ao interlocutor, lá no corredor: He! He! Trés bien! Até amanhã.
Era uma hora da manhã quando a foi levar à porta da rua, vestido com um pijama em tons para o avermelhado, a cor do sexo que acabara de ter lugar.
O tempo passava. César cada vez telefonava menos. Clara fazia-o amiudadamente apesar de começar a sentir-me mal. Usada. Era o termo. Lá no fundo sentia-o, por um lado, como um idiota que lhe inspirava pena e por outro, parecia-lhe um homem perverso. Estragara-lhe o dia de aniversário. Ao mesmo tempo, aquele ar de menino desprotegido continuava a comovê-la. Um dia falara com Catarina sobre o assunto. Tinha a mesma opinião. As mulheres eram o problema dele. Talvez já muitas o tivessem abandonado. A própria mãe, inclusive- tentavam as duas adivinhar.
- Não lhe faças tu o mesmo que outras provavelmente já lhe fizeram - dissera-lhe então a amiga.
E eu? Pensas que aguento? E a minha dignidade?- lembrava-se de ter dito nessa altura.
Não sei, Clara! Se quiseres, desiste! Mas, julgo que esse homem deve ser profundamente infeliz...
Então, estás-me a propor que eu seja uma espécie de Madre Teresa de Calcutá?- sorriu Clara...
Recordava-se agora desta conversa e como sempre ligava a César nessas alturas perguntando-lhe se estava bom. Idem, quanto aos filhos e à progenitora.
A Páscoa passara, Maio ia a meio.
O trabalho no gabinete era idêntico ao de sempre. As entrevistas, a selecção, os testes de orientação profissional. Naquele dia apetecia-lhe estar com César e rever a sua carinha de santo. Então, quarta-feira, ao final da tarde, Clara foi a uma casa de utilidades domésticas. Lembrava-se da sopa dele no frigorífico metida numa panela, deixando-o inestético. Comprou duas caixinhas para a guardar. Iria oferecer-lhas como quem dá a última oportunidade. Dirigiu-se depois a Telheiras. Parou o carro à porta. O dele também lá estava. A velhota continuava como sempre, à varanda do terceiro andar. Clara viu César à janela da cozinha. Pegou no telemóvel e ligou-lhe. Não atendeu. Foi parar à mensagem. Ligou pelo fixo. Aconteceu a mesma coisa. Depois, deixou-se ficar por ali perdida no tempo a pensar no rumo da história. Por diversas vezes viu César espreitando. Vira-a. Tinha a certeza absoluta. Eram nove e meia quando ele saiu, passando por si de carro, com a mais perfeita indiferença. Parou uns metros à frente. Uma mulher entrou. Não estivera ali por causa disso. Mas agora tinha a certeza. Havia mais alguém. Ficou furiosa. Ligou diversas vezes. Deixou três ou quatro mensagens. Nada de hard core. Foi ficando. À meia noite e meia ele regressou. Deixou a mulher à porta de casa. A seguir, meteu o carro na garagem e subiu sozinho. Clara ligou-lhe de novo e o som da sua voz era de uma raiva descomunal.
Preciso de falar consigo!
Está bem. Depois telefono-lhe.
Não! Tem de ser agora!
Agora não! Estou cansado!
Agora, ou nunca mais!
Como queira- respondeu com indiferença.
Lembrava-se da conversa com a Catarina.
- Ele deve precisar muito mais de ti do que tu dele. Se o abandonas, um dia vai aparecer uma mulher que há-de fazer dele gato sapato. No fundo, ele é extremamente frágil. Vai ser um infeliz.
Não deixou cair a conversa prolongando-a por vários minutos. No fim, foi o telefone a cair. O dinheiro esgotara-se. Decidiu ir a uma caixa multibanco. Mas, pensando melhor, era tarde e poderia até ser assaltada.
Foi para casa e dormiu incrivelmente mal.
De manhã, antes de ir para o gabinete, recarregou o telemóvel. Ao meio dia César ligou-lhe.
O que é que aconteceu ontem?- perguntou.
Fiquei sem dinheiro!...
Vi logo que tinha acontecido alguma coisa. Tentei ligar-lhe...
Tive medo de o recarregar àquela hora.
Fez bem.
Obrigado pela preocupação.
Bom. Então se você está bem... Até um dia destes.
Está bem.
E desligaram.
Clara matutava: o que significará a expressão até um dia destes? Não demorou muito a perguntar, ligando-lhe.
O que significa a expressão até um dia destes para si?
Isso mesmo! Até um dia destes!
Está bem. Mas é mesmo até um dia destes ou é pura e simplesmente adeus?
É até um dia destes!...
Então, está bem.
Um beijo.
Outro para si.
Clara adoçou. O fim-de-semana passara. Era segunda-feira. Ia para casa, depois do expediente. O telemóvel tocou. Atendeu-o. César estava a ligar-lhe.
Não me quer fazer uma visita? Estou de regresso da aldeia.
Está bem.
Sentia-se uma idiota. Contudo, tinha de reconhecer: gostava mais daquele homem do que devia. Às nove e meia já estava à porta de César e viu logo a mulher do terceiro andar. O BMW apareceu daí a pouco. Clara entrou. O beijo, esse, foi o mesmo de sempre. E a secreta esperança de que talvez fossem finalmente ter uma conversa de homem para mulher, renasceu.
Já em casa, César agarrou-a, beijando-a.
És tão boa! Mas tens tão mau feitio!...
Clara não respondeu.
Os cristos lá continuavam no quarto testemunhas do acto a que ela daí a pouco se entregou sem qualquer reserva. Os gemidos de ambos eram os de sempre, semelhantes possivelmente aos de qualquer mortal a quem a natureza naturalmente concedeu a capacidade de sentir prazer.
Ai filha, tens uma cona tão boa!...
Depois, veio a toalha das riscas vermelhas e o cortinado de biquinis de mulher das mais variadas cores, tamanhos e feitios...
Passaram vários dias. O telefone continuava mudo.
Clara ligou de novo a César. Não conseguia entender aquele cara de anjo como lhe passou a chamar, interiormente.
Olá, está bom?
Cá se vai andando...
Não parece lá muito feliz...
Nem feliz, nem infeliz...
Diga-me uma coisa. Fiz-lhe esta pergunta praticamente no dia em que o conheci. O que é que quer de mim?
Sei lá...
Já agora, diga-me o que mais detesta e o que mais gosta em mim...
Isso são coisas que não se dizem!
Ah! Você é dos tais que pensa que se podem fazer todas as coisas desde que se tenha sentido de humor! Mas falar sobre sentimentos, nada! Por que é que nunca se referiu às minhas cartas?
Não tinha nada para dizer...
Gostou delas?
De algumas gostei. De outras não. Outras foram-me indiferentes. Outras até nem as li- disse com voz sobranceira.
Ah! Está a falar do alto! Você sente-se Deus?
Não! Sinto-me um homem normal.
Está bem! Sabe o que vou fazer hoje mesmo?
Não.
Vou fazer análises à hepatite B e à Sida.
Não percebo porque vai fazer isso!...- retorquiu profundamente irritado, enquanto arranhava a garganta naquele tique nervoso detectado por Clara.
Não sabe?
Não.
Você não passa de um promíscuo! Já deve ter andado com mais de cem mulheres!
Faça lá o que quiser!- continuou ele após a revelação.
Depois de desligar Clara pensou ter ido mais uma vez longe de mais. Ficou de novo cheia de remorsos. Ferira-o. Pediu-lhe desculpa a seguir. Mas tinha razões suficientes para agir assim. Já o conhecia há um ano e o comportamento de César sempre fôra um bocado esquisito. Apesar disso tudo, nesse dia ligou à dra. Inês. Marcou uma consulta. Uma vez com a médica pediu-lhe as análises respectivas. E logo que ficaram prontas, passada uma semana, apressou-se a abri-las. Felizmente os resultados quanto aos itens maléficos eram ambos negativos.
Agosto chegara. As férias de ambos decorreram sem qualquer contacto. Setembro ia já a meio. Clara deixou de telefonar a César. Um dia teve um baque semelhante a sexto sentido. Ligou para a fundação, eram vinte para a uma.
Por favor! O dr. César Augusto ainda trabalha aí?
Trabalha. Mas já não é director...
Ele está?
Não. Foi almoçar.
Obrigado. Eu volto a ligar.
Sentira uma enorme pena dele. Sempre lhe parecera que César não possuía arcaboiço para um cargo daqueles. Às vezes tinha coisas tão idiotas!... Parecia até atrasado, sempre a falar das mamas das amigas. A conversa era tão banal. A maior parte dela sobre sexo. Mesmo assim sentia por ele aquela ternura quase de mãe que nunca abandona os filhos, mesmo que eles babem a camisa e borrem as fraldas no mais profundo atraso cerebral. Lembrava-se da Madalena. Tinha trabalhado nas Cércis com miúdos assim e falava-lhe da sua apetência incontrolável por sexo. Chegavam a masturbar-se nos tapetes. Muitas vezes eram apanhados nas casas de banho em cenas de fazer corar o mais desinibido dos mortais. Pensava igualmente na mãe dele. Intuía-a como uma mulher fria e calculista. Não devia ter-lhe dado grande afecto. César não sabia sequer dar um beijo afectuoso. Limitava-se a deixar-se amar, sem a mais pequena correspondência aos sentimentos dos outros. Devia ter ido para França imediatamente após o regresso da família de Angola, depois do 25 de Abril, levando apenas as irmãs e semi-abandonando-o. Logo a ele que como rapaz e segundo a psicanálise, era muito carecido dos afagos de mãe. Como todos os outros rapazes...César- pensava Clara- era um dos grandes portadores do complexo de Édipo, numa análise tipicamente freudiana.
- Engraçado!- remoía intimamente. Nunca se lembrava do pai. Parecia-lhe mesmo que César nunca o tivera. Por tudo isso jamais sentira ciúmes, nem da vizinha do lado, nem da senhora da fundação. Tão pouco da ex-mulher. Às vezes, quando olhava para o arzinho de bondade dele, julgava até ter a ex. sido uma enorme burra abandonando-o a mulheres predadoras semelhantes às descritas por Catarina. Tinham-se provavelmente conhecido em Angola. Deveria ter sido um amor de infância e ela teria, com toda a certeza, a mesma idade. Talvez até o tivesse pressionado a casar. Por volta dos 29 anos as mulheres começam a ter uma certa pressa. César não tinha ares de quem nasceu para isso. Era um dos nascidos apenas para ser filho. E mesmo assim, muito estouvado. Nunca marido e muito menos, pai. Tudo isto deduzia-o Clara da idade da Denise. A miúda tinha quinze anos e feitas as contas... Fora sem dúvida a ex. Provavelmente engravidara de propósito. Nem sequer sabia o nome dela. O da mãe tivera de lho perguntar numa noite depois de... Nessa altura achara-lhe até piada. César confidenciou-lhe que tinha cerca de cento e cinquenta primos, filhos dos oito irmãos da mãe e dos catorze do pai. Lembrava-se de ter pensado:
- Bolas! Esta gente toda gostava mesmo de foder, como ele diz. E quem sai aos seus não degenera...
Das irmãs mais velhas não se atrevera a perguntar-lhe como se chamavam. Contudo, sentia uma enorme raiva e frustração por ele ser em tudo um bocado abacocado. Então vinha aquela sensação estranha de amputação. César não lhe dava nada, tirando-lhe apenas muito. De vez em quando lá iam taramelando uma parca conversa sobre política. Sobre música também e disso ele sabia enciclopedicamente mais. Porém, a grande surpresa foi quando, uma vez depois do jantar em casa de Clara, César estacionou o televisor num programa de música pimba criticando as mulheres seminuas no écran, enquanto as admirava com olhos de cobiça. A mente rodopiava. Não estaria apenas a dar largas à sua imaginação feminina? - interrogava-se ela, enquanto no seu cérebro se instalava a máxima jurídica de in dubio pro reo.
À noite ligou-lhe para casa em tom de quem já sabia as novidades. As reservas, pela trigésima centésima vez, pusera-as Clara de lado.
Olá, César! Está bom?
Cá se vai andando...
Já sei o que lhe aconteceu...
Mas não é nada do outro mundo- disse ele aparentando indiferença.
O pior deve ter sido o elemento surpresa...
Não! Já contava com isto desde Maio.
Sendo assim...
A minha vida, já percebi, decorre por períodos de sete anos. Estive casado esse tempo, estive na fundação outros sete. Agora dou comigo a pensar numa porção de coisas em que nunca me tinha detido...
Por exemplo?
Vou ter de reduzir alguns gastos. Talvez não vá ganhar o mesmo dinheiro que ganhava ali nem ter um estatuto tão bom. Há-de dar para viver. Se eu tivesse mais idade reformava-me. Apetecia-me ir para a aldeia e esperar pelo tempo de plantar as tulipas. O diabo é eu precisar daquele dinheiro. Tenho despesas certas ao fim do mês e...
Se calhar ainda vai acabar junto com a sua ex-mulher!- sugeriu Clara, convencida de que talvez ela fosse o grande amor da vida de César.
Eu, não! Pelo menos nunca pensei nisso. Não sei se a ela alguma vez lhe ocorreu. E muito menos agora...
Porquê?
Foi operada recentemente a um tumor na cabeça e as consequências da operação são ainda imprevisíveis.
Oh, César! A vida é muito injusta! Coitada dela!- disse Clara, emocionada.
Não sei se será assim tão injusta...- retorquiu César.
Bolas! É a mãe dos seus filhos. Conseguiu viver isso com indiferença?
Obviamente que não.
Quando disse que a doença dela talvez não fosse injusta pareceu-me ver uma pontinha de vingança. Não me diga ter preferido que ela morresse!...
Oh! Não! Mas foi um período difícil para mim. Aguentei as duas coisas ao mesmo tempo.
Bom. Tudo há-de melhorar.
É verdade. Quando se fecha uma porta abre-se sempre uma janela...
Espero que essa janela não demore muito tempo a abrir-se.
Também espero...
Vou desligar, César. Estou a ficar sem dinheiro no telemóvel.
Está bem. E obrigado por ter telefonado. Não hesite. Ligue sempre. Gostei de a ouvir.
Um beijo.
Outro para si. Obrigado, mais uma vez.
Estivera perto da casa de César. Não lho disse sequer. Tinha-o animado. No fundo, ele estava em baixo. Ficava a boa acção para desconto dos seus pecados.
Decorreram cerca de duas semanas. Setembro estava no fim e Clara deixara de abordar o tema César, com Diogo. Em determinado dia, o amigo disse-lhe, enquanto perguntava por ele:
Estás muito silenciosa sobre aquele teu problema...
Já te contei. A criatura não é mais director da Fundação Francisco Pinto Osório...
Ao chamares-lhe criatura fizeste-me lembrar a minha mãe... - acrescentou Diogo, rindo.
Porquê?
Ela dizia que criaturas eram as galinhas...
Talvez o cérebro dele seja assim. Mais pequeno do que o das bichanas...
As coisas não estão resolvidas na tua cabecinha. Parece-me...
Aquele homem provavelmente não vale a pena para ninguém. Mas hei-de saber a fundo quem é! O raio x há-de ficar o mais completo possível. Bem vistas as coisas não passará de um crápula! E agora para mim isto está a tornar-se um jogo. Se calhar, um bocado perverso! Hei-de ganhar alguma coisa! Vais ver! Palavra de Clara Correia Guedes! - riu ela.
Diogo riu também. E o dia foi decorrendo.
Setembro estava no fim. Clara preparava-se para ir à aldeia fazer as vindimas. Saiu de Lisboa às duas horas da última sexta-feira do mês. Às seis estava no IP4, no Marão. De repente vê um BMW. Era o de César. Estranhou vê-lo ali. Ele fez-lhe sinal de virar à direita. Depois, foram ambos à pousada. Clara pediu umas águas. César um café. Já se tinha esquecido do jeito de ele o beber, fazendo imenso barulho com a boca. Podia entretanto ter aprendido. Mas agora não valia a pena fazer qualquer tipo de observação.
O que faz você no IP4? – perguntou.
Vim ajudar às vindimas do meu amigo juiz.
Ah! O Pedro Roseira...
Sim. Esse mesmo. Ele é daqui de cima.
Nunca me disse.
Não me ocorreu.
Clara perguntou-lhe pela ex-mulher.
Lá vai andando. As consequências ainda não estão definidas. É ainda muito cedo...
Mas, que tipo de consequências?
Para já, não pode ter mais filhos. E outras coisas mais...
Estranhou. Pareceu sentir-lhe nas palavras um gozo surdo semelhante ao experimentado por ele com a cena das duas portuguesas em Paris. - Este homem deve ter algo de perverso. Filhos só mesmo os dele- pensava. - Morde pela calada. Deve ser mesmo cão que não conhece o dono.
Não se demoraram muito tempo. César perguntou, por fim:
Vamos embora?
Vamos- respondeu ela.
Passaram pela zona dos quartos.
Ficamos já num!- ironizou, enquanto dava uma pequena sapatada no rabo de Clara que não achou muita piada – Já dormi aqui- informou-a.
Com quem terá sido? – interrogava-se ela intimamente.
Despediram-se. César deu-lhe um beijo na boca.
- Este homem é um idiota. Não deve saber o que são valores- dizia-se interiormente, abananada.
Outubro ia a meio.
Lisboa começou a anoitecer mais cedo. As primeiras chuvas de outono fizeram a sua apresentação. Definitivamente, Clara precisava de ter uma conversa com César. Mal saiu do gabinete, numa quinta-feira à noite, ligou-lhe para o telefone fixo. O outro era da fundação. Tinham-lho tirado. Além da sua vontade em o ouvir, lembrava-se das palavras dele: não hesite
Olá! Boa noite! Está bom?
Cá se vai andando...
Estou perto de sua casa... Gostava de conversar consigo...
Está bem.
Mas, só conversar...
Está bem.
Às nove e meia estou aí.
Então, está bem. Até logo.
Estava tudo bem para ele. Grande idiota- pensava. Clara chegou por volta das dez. Sentou-se no sofá. As falas foram as triviais. Passados alguns instantes o dono da casa pediu-lhe licença. Tinha de ir fazer um telefonema. Saiu então da sala hesitando quanto ao deixar ou não a porta aberta. Por fim, deixou-a escancarada.
Quer que eu ouça- pensou Clara.
Olá, estás boa?- ouviu.
Estou!...
Também está. Falei com ela. Está a recuperar bem.
Falava da ex-mulher.
Bom. Então, amanhã, lá vamos...
Vais primeiro e depois seguimos.
Trés bien, menina!
Já conheço esta conversa.
Outro!
Era o beijo do lado de lá. Também já conhecia.
Nada mudara.
César regressou finalmente à sala. Arranhou a garganta no terceiro tique detectado por Clara.
- Já a pregou - pensava ela.
Desculpe, tinha de fazer este telefonema.
Fingiu não ter percebido. Depois, pegou no fio de uma conversa e falaram de muitas coisas. Da sua infância e da aldeia. Das pessoas de lá, também.
As da minha são um bocado maldosas- acrescentou ele.
Mas, olhe. Lá diz o ditado que voz do povo é voz de Deus, ou então, que não há fumo sem fogo.
Não respondeu. Na televisão passava um filme francês legendado na mesma língua.
Não acho piada nenhuma a isto- disse César.
A mim, parece-me bem. Para quem queira relembrar o francês, é óptimo!
Só por isso. Ah! A propósito, sabe francês?
Sei. O do liceu. Era boa aluna.
Tenho ali uma revista francesa de banda desenhada. Vou buscá-la. É muito engraçada.
Já com a revista na mão, começou a folheá-la. Era pornográfica. Uma prostituta ensinava a um estudante a arte de foder... Mais uma vez, sexo, sexo...Clara ia rindo amareladamente. Esperava um novo rumo da história. Mas era sempre a mesma coisa.
Tenho cenas muito engraçadas- continuava. Uma vez estava na praia e vi uma senhora a olhar muito para mim. Lá me enchi de coragem e entabulei conversa. A mulher olhava-me e ria sem dizer palavra. Só passado um bocado é que descobri. Era inglesa! – concluiu César, rindo.
- Deves ter andado com ela - remoía Clara.
Outra vez- continuava- foi também na praia. Tinha eu uma toalha vermelha. Levantei-me e fui tomar banho. Quando cheguei estava uma rapariga deitada nela. Bom. O que é que eu faço? – perguntei-me. De repente vi uma outra toalha parecida com a minha Era a dela. Então, pensei: sem a minha toalha não fico...
Como é que resolveu o problema? – perguntou.
Sentei-me numa pontinha da minha onde a fulana estava deitada. Depois foi um gozo! Ela não tinha a parte de cima do biquini apertada. Levantou-se de repente com as mamas à mostra quando deu por mim sentado à beira dela! – e César ria ao sabor da lembrança.
- Mais uma- repetia Clara intimamente.- Nada mais há a esperar- esmoreceu ela, arregaçando as mangas.
Está muito acalorada! – observou, numa clara sugestão a que ela tomasse a iniciativa da cama.
Não. As mangas muito chegadas às mãos incomodam.
Parecia...- retorquiu.
Bem, vou embora...
Pode ficar. Só me deito por volta da uma hora.
Deixou-se levar pelo tempo. Não sabia se seria ou não o último contacto visual com César. Foi ficando, enredada na conversa e no tique da esfrega do dedo de César sobre o nariz naquele som arrepiante de lixa grossa, capaz de deixar todos os pêlos em pé. Por fim e como de costume ele foi levá-la à porta da rua, munindo-se previamente das chaves parecidas com as de uma cadeia.
Tem medo que a porta se feche como lá em minha casa?
Outro dia fechou-se e foi um problema!
Já no elevador, desceu à garagem, continuando:
Eram quatro da manhã. Vinha eu da aldeia com uma data de coisas. Tenho dois molhos de chaves: um com as de casa e da garagem, outro com as da aldeia e de Esposende. Por azar, enganei-me e trouxe as da aldeia e - explicava: como vê, a porta da garagem de acesso ao elevador só abre por dentro. Essa chave tinha ficado no carro. Àquela hora não tive coragem de tocar à porta de ninguém.
Como é que resolveu a situação?- perguntou de novo Clara, enquanto pensava: - Às quatro da manhã a vir da aldeia? Quem como eu o conhece sabe que nunca vem tão tarde. Podia ter ficado a dormir em casa da fulana. Mas gosta pouco de dormir fora do seu território. No fundo, quer-me dizer qualquer coisa. É o seu lado exibicionista. Tinha de conduzir os meus pensamentos para a situação vivida nem que fosse através da porcaria do esquecimento das chaves. Só pensa mesmo em sexo. É da última que se está a lembrar. Que mente mais complicada! Um homem normal e sensível teria omitido. Ainda não percebeu que eu não sou burra... Mas que se há-de fazer?...
Encostei-me à porta, sentado no chão. Estive lá cerca de uma hora. Como estava um pouco de frio, espirrei. Foi quando senti alguém do andar da frente, possivelmente a vir da casa de banho. Nessa altura toquei à campainha e pedi as chaves da garagem.
Já no átrio da rua, César deu-lhe o beijo de sempre na mais completa idiotice.
A conversa fôra perfeitamente infrutífera e Clara dormiu mal de novo. Era um quarto para as nove do dia seguinte já ela estava no gabinete. Ligou à criatura. Não atendeu. Forçou. Até que chegou o estou sim.
Preciso de falar consigo urgentemente!...
Ó Clara, são nove da manhã! Estou nu! Saí agora do banho! Para a semana, ligo-lhe...
Diga-me só uma coisa. Você anda com alguém?
Não. Não ando com ninguém.
Mas ontem ligou para uma senhora!...
Pois liguei. É uma amiga da minha aldeia. Agora deixe-me ir vestir. Depois, ligo-lhe.
Por que é que se despediu de mim com um beijo na boca?
Dei? Nem reparei! Depois, ligo-lhe.
Sem falta nenhuma!...
Então, até segunda.
Clara, sentiu que precisava de tomar uma das grandes decisões da sua vida e teria de ser de molde a que ela fosse irreversível, por forma a acabar coma angústia que há mais de um anos lhe andava a perfurar a pele e todos os outros sentidos. Então, lembrou- se da velha cusca. Para quê tantos pruridos?! – César não valia nada- reflectia. Muito em breve iria saber quem era aquela criatura por quem de vez em quando ainda sentia uma ternura que a comovia. Os métodos seriam os conhecidos de toda a gente. Não iria inventar nenhum. Utilizaria todos quantos fossem necessários, até que ele se tornasse num pequeno sopro de memória que não a perturbasse mais.
Era já sábado à noite. Ela sabia o nome da senhora da fundação. Ligou às informações.
Boa noite. Fala Cristina Domingues. Em que posso ser útil?- ouviu do outro lado.
Dava-me por favor o número de telefone de Carolina Matos de Abreu, em Lisboa.
A sua atenção, por favor.
Logo que obteve o número, ligou imediatamente.
Estou! Quem fala?
Vai-me desculpar a ousadia... Eu conheço-a.... Mas talvez a Carolina não se lembre de mim...
Diga-me ao menos o nome...
Clara Correia Guedes... Estive consigo num concerto na fundação...
Não me lembro...
Já foi há algum tempo. Precisava de falar consigo...
Sobre?...
Clara viu a interlocutora como uma mulher despachada. Sentiu alguma, se não receptividade, pelo menos curiosidade. Poderia avançar.
É uma questão pessoal. Não gostaria de a tratar pelo telefone. Podemos encontrar-nos amanhã?
A que horas?
À tarde. Podiamos ir tomar qualquer coisa e conversávamos.
Dava-me mais jeito à noite.
Por mim não há problema. Diga onde.
Pode ser às oito, na fundação?
Está combinado. Espero por si a essa hora.
Então, até amanhã.
Até amanhã, e desculpe a ousadia!- terminou Clara.
O seu sono não foi lá muito sossegado nessa noite. No domingo divagou todo o dia por Lisboa. Foi ainda a Cascais. Nem por um momento duvidou que Carolina não aparecesse. Ela adivinhara o assunto - intuía.
Ligou à Catarina.
Onde estás? – perguntou a amiga.
Passeando por Lisboa. Finalmente vou saber, penso eu, quem é o César Augusto!
Estás numa de polícia?
Estou. Ando há muito a ser enganada e sabes como detesto isso!...
Tem cuidado...
Não te preocupes.
Então, adeus. Um beijo.
Idem.
Ainda não eram oito horas já Clara estava plantada à porta da fundação. Conhecia o carro de Carolina. Viu-o a passar. Previamente ela fez uma pequena inspecção ao local. É natural... – pensava - Afinal, eu podia sair-lhe uma esgrouviada como aquelas mulherzinhas traídas pelos maridos e que vão pedir satisfações à outra, na maior das peixeiradas. Em frente uma da outra, não foi difícil a Carolina lembrar-se de si.
Olá, boa noite. Já se recorda de mim?
Já. Então qual é o assunto? – perguntou decidida.
É sobre o César Augusto.
Bem me queria parecer- retorquiu a interlocutora, sugerindo que ambas continuassem a conversa no café perto da fundação onde Clara estivera uma vez com César.
Era uma mulher interessante. Rondaria a idade de Clara. Alta, vestia uma gabardina cinzento claro. Tinha uns olhos castanhos para o amendoado e o rosto todo ele era composto por traços finos.
Quem é aquele homem? – prosseguiu Clara.
O maior escroque da cidade de Lisboa! – respondeu peremptória – Não me diga que se envolveu com ele?
Infelizmente! A Carolina também, presumo...
É verdade! Já lá vão uns anos. Mas, estou há muito livre de semelhante monstro...
Monstro, porquê?
Durante sete anos, conheci-lhe mais de trinta mulheres a quem ele usa sem escrúpulos.! Desde pessoas decentes até gente do mais duvidoso que há. Velhas, novas, baixas, gordas, bonitas, feias, portuguesas, estrangeiras. Só no meu tempo deve ter andado com umas dez. E conserva-as a todas. De vez em quando faz a ronda. Nos concertos aparecia sempre com uma diferente. Agora já não, felizmente. Foi com as trouxas!
A mim nunca me viu lá. À excepção do dia em que o conheci. Aliás, foi a Carolina quem mo apresentou...
Desculpe - disse sorrindo, enquanto Clara sorria também. - Foi a sua sorte. Ao menos não queimou a imagem.
Praticamente nunca apareci em público com ele.
Imagino. Obviamente o vosso namoro deve ter-se circunscrito à cama!...
Mais ou menos. E eu a julgar que ele era um tímido! –e Clara ria-se dela própria.
Um tímido?! Só pensa em sexo!- retorquiu Carolina.
Confere. Por que é que ele saiu da fundação?
Foi posto fora por indecente e má figura! Graças a Deus! Vi-me livre daquele estropício...
Mas foi posto fora porquê?
Meteu mão a uns bons milhares...
E esse homem não está na cadeia porquê?
Também eu gostava de saber! Bem lhe disse um dia que o havia de meter lá! Não consegui, infelizmente...
Se assim é, espere mais um pouco. Há-de lá chegar. Chegam todos. É uma questão de tempo...
Quero ver no balcão principal.
Também eu! E de binóculos! – teatrealizava Clara - Sabe alguma coisa da família dele?- continuou.
Era divorciado. Tive a hipótese de verificar isso no bilhete de identidade. Os filhos também os conheci pessoalmente. A desonestidade, essa, confirmei-a ao vivo!
Dessa parte familiar o anormal pôs-me ao corrente. Mas quanto às origens tenho algumas dúvidas. Disse-me que, além da mãe, tinha duas irmãs mais velhas, em França. É verdade?
Mais velhas? Ele é o mais velho...
Então deve ter querido esconder alguma coisa de mim! Inclusive, disse-me também terem os pais esperado que concluísse a quarta classe a fim de irem para Angola...
É mentira! Aliás, é o maior mentiroso que eu conheço! Os pais foram para Angola tinha ele acabado de nascer!
Sacana de merda! Com aquele arzinho de menino bem comportado vai lixando o pessoal! Sobretudo as mulheres! E a gente faz cada figurinha mais triste!...
É verdade. Fazemos todas. Tem a maior cara de pau. Um dia apanhei-o em casa de uma tal Nise. Teve a lata de me dizer: Não é nada do que está a pensar...
Também a tratava por você?
Tratava. Só na hora de...me tratava por tu...
Comigo passava-se a mesma coisa. E nunca dizia o meu nome...
Devia ter medo de se enganar. Elas eram tantas...- sorria Carolina.
Também o apanhei em algumas. Aquele homem vai sugerindo as coisas para as pessoas pensarem... Um dia disse-me, a propósito já não dei de quê, isto: Como vê nem sequer posso mentir. E eu na maior das inocências! A partir daí comecei a pensar: este homem deve mentir como um cesto roto. Então passei a dar mais atenção às incoerências. Até me falou de uma expressão usada no Porto: essa vai no batalha!
Aprendeu-a comigo! - informou Carolina.
Filho da mãe! Arrependi-me tanto da cena que lhe fiz! Humilhei-me ao máximo pedindo-lhe desculpa!... Afinal foi muito bem feito! Devia ter deixado as coisas por aí como me sugeriu um amigo...
Cena! Qual cena?
Um dia mandei-lhe umas flores e coloquei um escrito na caixa do correio.
Carolina desatou a rir à gargalhada.
Foi a Clara?
Fui!
Grande imaginação!- e ria a bandeiras despregadas.- Não faz ideia do gozo que foi lá na fundação! Fui eu quem o avisou. Como sabe, moro perto dele e conheço algumas pessoas do prédio. Foi um papelinho! Desde logo com as empregadas de limpeza. Depois, com todos os moradores!
Pois, fui eu a autora...
Boa! Nós pensávamos que tinha sido a Barbie!
Qual Barbie?
Uma médica do Hospital de Santa Maria que andou com ele nessa altura. E ainda há a Ivete, a eterna noiva esperando por ele. Eu já perdi a conta às mulheres que lhe conheci...
Mas o anormal tinha ao menos estaleca para estar à frente da fundação?
Qual quê! Era de uma incompetência a toda a prova! A primeira calinada foi a história do fax que eu escrevi à mão, em papel amarelo! Perguntou-me se a cor ia passar!...
Vocês utilizam papel timbrado amarelo?
Utilizamos. Porquê?
Era a cor de um bilhete que eu encontrei um dia na cama dele. Além de si deve ter andado com outra pessoa da fundação. Muito possivelmente, tinha as chaves lá de casa...
Até já sei quem foi...- referiu Carolina- Aposto!...
Já agora...
Descubra por si! Não lho vou dizer! Não imagina a quantidade de pessoas da aldeia dele que o desgraçado meteu lá.
De Rio Limpo?
Rio Limpo? Qual Rio Limpo?
Sim. A terra onde a criatura nasceu, próxima de S. João da Madeira.
Carolina desatou de novo a rir.
De limpeza precisava a cabeça dele. Está mais suja do que uma lixeira nuclear. O ordinário nasceu perto de Chaves, na aldeia das Sete Cabecinhas.
Nome ridículo! Mas que diabo! Também há a Venda das Raparigas! Este é bem pior! – riam ambas.- Sacana! – prosseguia Clara com a mais pura das indignações. - Por isso o encontrei há bem pouco tempo no Marão! Disse-me que ia ajudar à vindima de um amigo juiz. Sou daquela zona...
Até do nome da aldeia tinha vergonha. Devia tê-la de outras coisas...
Por acaso nunca suspeitou de homossexualidade nele?...
Não!- retorquiu Carolina.
Mas olhe que mim até já isso passou pela cabeça!...
Porquê?
Conheci o tal juiz. Tinha um ar esquisito...
Já nada me admira. Daquele monstro pode-se esperar tudo. Então por dinheiro, é capaz de ir ao inferno!...
Voltando à família: conheceu-a?
A mãe é um espantalho! Não fala nem o português nem o francês! Uma casca grossa! As irmãs não conheço. Mas, não são todos filhos do mesmo pai. A mais nova, desconfio que a rapariga não sabe quem é o progenitor!...
Não me diga!...
É! Ela abandonou o marido quando vieram de Angola. Tinha o estropício talvez seis anos. Depois foi para França quando o filho fez doze anos.
Ah! A história da escola bate certo num ponto. Por isso me levou a casa da professora, a D. Henriqueta! Até me disse que foi a primeira paixão dele...
Começou cedo! Aliás, pelos vistos tinha a quem sair!...
Então, é mesmo da raça!
Quem sai aos seus não degenera...
E o pai? O Luís disse-me que já morreu...
Já. Há uns anos. Morreu num lar de terceira idade e o estropício do filho nunca o foi ver! Na altura eu era a oficial. Mas, ele levou uma tal Ivete ao funeral. Segundo sei, nem uma flor levou ao desgraçado!
É mesmo um homem de sentimentos nobres! - ria Clara estupefacta.
Ah! É! Ele a ganhar, ainda que mal ganho, tanto dinheiro e o pai a morrer na maior das misérias! Nem sequer teve direito a ir para a igreja. Vim depois a saber que o caixão estava num tugúrio horrível. A culpa também foi da igreja. Lá por o homem ser pobre tinha ao menos direito a ser enterrado com dignidade. Toda a gente tem...
Pois é, Carolina! O anormal é pior do que eu pensava. Das mulheres suspeitava. Agora do resto nem por sombras. Se bem que o Luís aflorou uma história esquisita com um maestro judeu a quem ele terá passado para trás, em conluio com outras pessoas!...
É capaz de ter sido verdade... Apercebia-me de muitas coisas! Outras devem ter ficado no segredo dos deuses!...
Mas ele não devia mancomunar sozinho! Tinha com certeza alguém a ajudá-lo nas trapaças! Talvez alguém da contabilidade...
Muito provavelmente uma tal Ermelinda. Essa também saiu-me uma boa bisca! Agora tem um cancro na mama. Deus me perdoe mas é muito bem feito! Foi para lá através de mim. Depressa se esqueceu disso...
Pudera. A encher os bolsos juntamente com o estropício...
Meteu na fundação uma quantidade de pessoas lá da terrinha.
Ah sim...
Dois primos, mais outra fulana... Parecia uma agência de empregos...
Pois. A criatura precisava de ter alguém na mão para o aguentar. De outra forma já teria caído há muito mais tempo. Se é assim como diz...
Não tenha a mínima dúvida. E o mais que ainda há-de vir a saber-se...
Como foi um tipo assim parar à fundação? – perguntou Clara.
Boa pergunta! Tráfico de influências com toda a certeza! Quando foi para lá chamavam-lhe o espião...
Que veio do frio – acrescentou Clara parafraseando o título de um filme. - Ele disse-me que tinha uma pós-graduação na Sorbonne, penso que qualquer coisa ligada às artes. É verdade?
Nunca ninguém viu documento comprovativo disso. Nem o curso de Direito deve ter! A atestar pela incompetência...
Sabe? O criaturo contou-me umas histórias muito rocambolescas e por sinal bem apimentadas!...
É só no que pensa!...Um dia, no calor de uma discussão, até lhe disse que só servia para reprodutor!
Como aqueles bois de cobrição?- perguntou Clara, rindo.
Mais ou menos- riu também, Carolina.- Os sentimentos dele situam-se todos no sítio onde as pernas das calças se unem pela braguilha! – ria ela de novo, secundada por Clara.
Aquela cabeça deve ser mais engelhada que uma rodilha- continuou Clara. - Terá ele sido violado em criança!?
Nunca pensei nisso. Mas, sei lá... O que é que a Clara faz?
Sou psicóloga.
Ah! Por isso. Está no trilho certo. Pode fazer uma boa tese de doutoramento baseada na criatura! Deve ser mesmo um caso patológico!...
É um comportamento muito esquisito. Às vezes parece-me mesmo um perfeito idiota. Chego a ter pena dele...
Eu não tenho pena. Se morresse não fazia falta alguma.
Talvez aos filhos fizesse - continuava Clara.
Nem a eles!- prosseguia Carolina. - Sabe que a princípio nem sequer falava no miúdo? Penso até que nem sequer dele gosta. Se calhar, nem da miúda. Troca-os por qualquer fulana. Embora comigo nunca tenha acontecido. Sempre promovi as visitas aos garotos.
Realmente, é um ordinário! Saiu de casa tinha o Rodolfo quase dois anos... Disse-mo na última conversa lá em casa. Não deve ter grande afecto por ele. À filha, ainda telefonava de vez em quando. Uma vez, tínhamos acabado de... Sabe que telefonou à garota completamente nu?! Fiquei tão chocada!...
Questões de sensibilidade - retorquiu Carolina.- É um escroque. Passei as passas do Algarve por causa daquele monstro!...
Pela sua raiva, dá para avaliar...
Já nem é raiva. É desprezo. É nojo! Veja só esta: um dia, uma funcionária lá da fundação tinha o filhito ao colo. Ele tentou fazer uma festa na cabeça da criança. Sabe que a mãe não deixou? Tamanho era o nojo...
Meu Deus! Que dor! Com quem eu me envolvi! Com quem nós nos envolvemos!
Saia depressa, Clara! Esse homem é uma doença! Veio ao mundo para fazer mal!
Hei-de sair! Mas ainda lhe vou fazer algumas picardias. No mínimo para tentar perceber a sensação da mentira e do engano com que ele parece gozar tanto...
Cada vez que me lembro do que passei por causa daquele mentecapto. Então quando penso na Alzira... Essa era de um baixo nível a toda a prova. Fazia-me telefonemas lá para casa, insultando-me do pior possível. Foi aí que acordei realmente e decidi acabar com a história. Mesmo com as ameaças de ser despedida.
O gajo é demasiado cobarde para uma coisa dessas...
E já saiu. Eu continuo...
Quem era essa Alzira?
A Zira? Cantava num coral. Foi das piores cenas dele. Do mais degradante possível. Roubou-lhe as chaves de casa. Um dia à noite, já estava eu deitada, a ordinária foi lá para lhe bater. O idiota ligou-me a pedir que chamasse a Polícia.
Teve essa lata?
Teve! Não tem vergonha na cara! Quando precisa de alguma coisa, rasteja que nem uma cobra!
Bolas! Pedir-lhe ajuda a si para o defender de outra mulher... É de morte! É mesmo um cobarde! E a Carolina?
Chamei a Polícia. Nem sequer me identifiquei e muito menos pus lá os pés. A partir daí, acabou.
Aquele desgraçado precisava de uma tareia valente. Será que nunca ninguém lha deu?
Dei-lhe eu uma bofetada, um dia, já não sei porquê. Irritou-me tanto. A seguir pedi-lhe desculpa. Fiz como a Clara com as flores...
Aí está uma coisa que não o imagino a fazer: bater numa mulher- adiantou Clara.
Também não. Quando se sente apertado foge com o rabo entre as pernas, como um perfeito cobarde. Mas voltando à cena das flores: a Clara foi muito imaginativa...
Fui bastante estimulada. Sempre senti qualquer coisa de errado naquele idiota...
Eram já dez da noite. A conversa prolongara-se por duas horas.
Obrigado, Carolina. É realmente triste para nós termos de viver com uma lembrança destas; mas na vida nem tudo é bom...
Sabe? Tenho pena de quase todas as mulheres que se cruzaram com aquele estropício. Então da Patrícia... Coitada!... Quanto deve ter sofrido!...
Quem é a Patrícia? É a ex-mulher?
É. Teve há pouco tempo um problema de saúde. Ele comentou o facto, na fundação.
Disso soube pelo próprio. E também começo a ter pena dela. Oxalá já o tenha tirado da cabeça. Mas a avaliar pelo que sinto, talvez não. Além disso tem os filhos. Sempre são um forte elo de ligação...
É indiscutível.
A Carolina disse há pouco que ele é uma doença. Concordo inteiramente consigo. É mais do que isso. É um veneno! É preciso um forte antídoto para o remover. Ainda hei-de descobrir porquê...
Tenha cuidado! Não se magoe!
Mais uma vez, obrigado. Se me der licença, telefono-lhe.
Telefone. Apareça nos concertos.
Está bem. Obrigado.
A conversa já enjoava quando as duas foram embora. Clara dirigiu-se ao carro. Naquele momento apetecia-lhe ser tipo avestruz, enterrar a cabeça na areia para não ver nem ouvir fosse o que fosse. O cenário era bem pior do que alguma vez pensara. O cérebro daquele homem devia ser constituído à base de minhocas viscosas e escorregadias, como era toda a sua vida – pensava. - E o mais que ainda haveria para desvendar...
- Cabrão de merda! – dizia para com os seus botões. - Filho da puta! O gajo gozou comigo que nem um preto. Vamos lá dar asas à imaginação. Há-de sair algo...
Estava na hora de dar voz à sua versatilidade. Finalmente, iria experimentar o teatro na versão da comédia, mais concretamente da tragicomédia.
Já em casa, pegou no telefone. Ele não estaria no seu território. Ia deixar-lhe uma mensagem bem sugestiva. A voz saia-lhe da garganta, aparentemente chorosa.
César!- fungava.- Aconteceu uma coisa horrível! Fui fazer análises à sida. Nem quero acreditar. O resultado foi positivo! Tinha de lhe dizer isto. Penso que deveria fazer exames também... Não sei como isto aconteceu. Não acredito. Só podem ter trocado as análises. Vou repeti-las. Telefone-me por favor. Estou desesperada. Um beijo...Nem precisava de se identificar. Ele reconhecê-la-ia imediatamente, apesar de não saber cantar, tinha bom ouvido para a música, sobretudo a das vozes que, mercê da vida de acrobata sexual que levava, tinha por força de identificar se não quisesse meter água.
Depois de desligar, riu-se intimamente. De seguida telefonou à Carolina. Riram-se as duas com a maldade.
Não sei ainda muito bem o que vou fazer- dizia Clara. - A minha faceta da imprevisibilidade ficou perfeitamente exacerbada!
Tenha cuidado! Não se magoe!- aconselhou Carolina.- Livre-se daquele estropício!
Tenho de tirar alguns dividendos da situação. Não é em vão que amo as pessoas. E eu gostei mesmo daquele gajo. Se ele fosse honesto comigo teria estofo para o ajudar mesmo sendo um crápula. Assim...
A Clara é quem sabe...
Bom. Obrigado. Desculpe. Vou-lhe ligando, se não se importar!
Segunda-feira desenhava-se no horizonte do dia seguinte e a noite, com tantas e edificantes revelações, prometia-lhe uma alucinante vigia. Mal Diogo chegou ao gabinete, Clara foi ter com ele.
Sabes, Diogo?! Já sei finalmente quem é o César Augusto!
Sabes, como?!
Fiz as minhas investigações... A minha intuição estava certa. Falei com a woman in red...
Quem é ela?
Uma ex-namorada da criatura. E das oficiais. Eu nem esse estatuto tive. Sempre fui um biscate. Ela informou-me direitinho sobre a vida daquele desgraçado.
Não estará a exagerar como ex?
A Carolina!? Não! Julgo até que nem me disse tudo. Por um mínimo de respeito pelo ser humano. As peças dela e as minhas encaixam perfeitamente. De muito do que me disse já eu suspeitava...
Então, qual é base da questão?
O gajo mentiu-me desde o primeiro dia. Inicialmente ao dizer-me que não tinha namorada... Isso até seria relativamente compreensível. O mais grave e revelador foi a questão das irmãs...
Mas porquê?
Quando lhe perguntei pela família, disse-me que era o mais novo de três irmãos: ele e duas raparigas. Afinal são ambas mais novas. Uma delas provavelmente filha de pai incógnito. Não achas isto sintomático?
Com efeito...
Que quererá isto dizer? Como psicólogo, tens de certeza uma resposta provável alinhada.
Não há dúvidas de que te quis esconder o passado. Em primeiro lugar o dos pais. Não deve ter sido muito edificante. Depois, o dele próprio. Tem de certeza algum acontecimento escondido na infância de que se envergonha, ou então, que lhe deram alguma volta à cabeça.
Deve ser mais grave. Quanto a mim, a situação é patológica. Ele é um mentiroso compulsivo. E isso só pode ter derivado de um facto muito traumatizante.
Estás a insinuar algum abuso sexual?
Nem mais, nem menos. Não é difícil chegar lá...
E tu? Como é que estás? – perguntou Diogo.
Neste momento, a raiva alimenta-me. A frustração também. Conheci um monstro e isso desagrada-me completamente. Não me importo muito com os motivos. Foi a minha afectividade a estar em jogo durante este tempo todo.
Esquece, Clara!
Fiz-lhe uma maldade. Foi o mínimo de vingança. Não podia deixar a oportunidade em branco...
Clarinha, o que é que tu fizeste desta vez?
Telefonei-lhe toda chorosa. Deixei-lhe uma mensagem no voice mail. Disse-lhe que tinha feito análises à sida e que o resultado fôra positivo - riu-se ela.
És mesmo maluca! Não tens medo que ele pense ser verdade?
Não! Interessa-me lá a opinião de um escroque daquele calibre. Comigo tudo está perfeitamente em ordem. Ao menos a sida não me transmitiu apesar do anormal se arriscar a contrair o estupor do vírus e de eu ter corrido risco igual...
E agora?
Vou mandá-lo à merda! Para já, ainda não. Vou fazer, antes, o papel de advogada do diabo até me fartar...
Como? Vais continuar numa de Sherlock Holmes ou de psicóloga?
Vamos ver. Nem eu sei. Provavelmente as duas coisas. O verme fartou-se de gamar lá na fundação e irrita-me o facto de um vigarista como ele, com a maior cara de pau, continuar a ludibriar pessoas, quando devia estar na cadeia. Ao mesmo tempo tenho pena dele. Não passa de um desgraçado. Vai acabar mal...
Não tenho a mínima dúvida. Talvez acabe como o Rodolfo Valentino. Com tantas mulheres, morreu sozinho na cama de um hospital...
Bom. E agora vou trabalhar. Até já, Diogo. Já me cansa falar na merda daquele filho da puta...
Até já, Clara. Esquece. Pelo amor de Deus.
Era a melhor altura para Clara arrumar e fazer uma limpeza do seu gabinete. Rasgar papéis ajudava-a a descontrair-se. Era como se estivesse a arrumar a própria mente e a pôr as ideias no sítio.
A noite chegou. Em casa, o sono foi o mesmo dos últimos tempos. Agitado. Apetecia-lhe que César desaparecesse do mundo dos vivos sem ela ter necessidade de o matar.
Ao meio dia de terça-feira seguinte, depois da teatrice telefónica, o telemóvel tocou. O número da fundação estava no visor. Quando atendeu, reconheceu logo a voz de César.
Clara continuou a farsa.
Então, o que é que lhe aconteceu?
O que ouviu na mensagem. Mas eu não acredito. Devem ter trocado as análises. Vou repeti-las. No fim ainda vou processar o laboratório - e a voz de Clara soava firme. - Está na fundação... – mudou o rumo da conversa - vi o número...
Estou. Tinha umas pendências a resolver. Quando é que vai repetir os exames? – perguntou César, com voz de preocupação.
Quinta-feira desta semana. Devia também fazê-los. Sabe como são estas coisas...
Vamos ver...
Bom. Quando souber os resultados, ligo-lhe. Um beijinho. Obrigado!
Outro para si.
Quando desligou, Clara riu-se de novo. Tinha pregado um grande susto ao estropício. Decidiu deixar as coisas por aí. A dúvida havia de ser o castigo da criatura. E pela lógica, o seu silêncio seria uma espécie de confissão. Não descartou, contudo, a hipótese de ele se aperceber da aleivosia. Clara nunca menosprezara a inteligência de César. Pelo contrário... E lembrava-se do tempo em que o considerava um Deus humano com pénis, a cortar o cabelo no barbeiro e a fazer chichi à sua frente.
Passaram cerca de três semanas. Clara conversava regularmente com Carolina. Finalmente começou a ir aos concertos e já deixara de ser telefono-dependente.
Um dia viu uma chamada não atendida com origem na fundação. Perguntou a Carolina se fora ela. A resposta foi negativa. Por exclusão de partes, chegou ao autor. Não se apressou a ligar-lhe como fazia sempre. Nem sequer respondeu.
Mais uma vez o Natal estava à porta. Clara resolveu aumentar a confusão na cabeça de César. Mandou-lhe então um postal de boas festas extensíveis a todos os natais da vida dele. César retribuiu-lhe com a primeira mensagem em cerca de ano e meio de contactos. Desejava-lhe igualmente um bom Natal.
O Ano Novo chegou. Era o segundo ano que Clara fazia projectos para o seu futuro longe do estropício, como lhe chamava a woman in red. Carolina achava piada à designação granjeada à custa do Cara de Anjo, uma das primeiras alcunhas com que Clara presenteara César. Ele até gostara. Esperaria bem pior... Também, quem conheceu a Zira baixo nível não podia aspirar a uma sofisticação como aquela.
Janeiro ia a meio. Um dia, Clara encontrou César por acaso, na Rua de Gomes Freire, perto da Polícia. Não se esquivou ao contacto. Cumprimentaram-se, mas já não com o beijo público da face e muito menos com o da boca com sabor a coisa nenhuma. A cena da sida ainda devia andar a turvar-lhe as ideias.
Como é que você está?
Cá se vai andando... - respondeu ele.
De repente surgiu o Vítor Flamingo. Era o amigo de Clara, da Judiciária.
Olá, Clara! – disse, cumprimentando-a de longe.
Olá, Victor! Estás bom?
Estou. Mas tenho muita pressa. Ligo-te um destes dias...
Fico à espera. Até um dia destes.
Despediu-se também de César. Aliás, desde que o conhecera, não tinha feito outra coisa, mas agora os despedimentos estavam a dar as últimas.
À noite tocou o telemóvel. Era o Victor.
Clara!
Sim. Estás mesmo bom, homem?- disse reconhecendo-o imediatamente.
Estou. E tu?
Assim, assim. Não posso dizer que estou na maior...
Hoje, quando te encontrei, fiquei preocupado contigo...
Porquê?
Por causa do fulano com quem estavas. Tens algum relacionamento com ele?
Tive...
E já não tens?
Não.
Ainda bem...
Porquê? Conhece-lo?
De ginjeira! É um burlão! Chama-se César Augusto Pinto. Teve um processo na Polícia. Além disso andou com metade das mulheres de Lisboa e arredores. Inclusive, com uma amiga minha. A desgraçada passou um mau bocado. Com aquela cara de santo não imaginas o filho da puta que existe escondido naquela pele.
Do mulherio já sei. Também me constou que o gajo se terá governado bem à custa da Fundação Francisco Pinto Osório. E só não houve queixa-crime porque, infelizmente, há gente graúda lá no meio... Mas conta lá isso do processo...
Vendeu umas máquinas que não eram dele. A investigação foi-me parar às mãos. Fui eu quem lhe abriu a ficha. A designação policial é mesmo de burlão. E depois dessa altura já deve ter feito mais alguma... Pelos nomes envolvidos tive a sensação de que havia tráfico de droga lá pelo meio...
Mas o fulano foi julgado por isso?
Em princípio, terá sido. Pela burla. O tráfico não conseguiu ser provado. E nós na Polícia depois, na fase de julgamento, alheamo-nos um bocado do desfecho. A menos que o juiz nos queira ouvir como testemunhas. No mínimo, no tal processo, deve ter apanhado pena, nem que tenha sido suspensa. Só se houve lá pelo meio uma amnistia. Já não me admirava nada. Neste país fazem-se coisas do arco-da-velha. Não te lembras de uma das últimas feita expressamente para determinados crimes e para certas pessoas?...
Deves estar a falar de um caso político emblemático. Tens razão. O Pais está mais do que à beira de um ataque de nervos. Está num descalabro total. E os lobbies têm cá uma força... Andam por aí uns mafiosos...
E este César Augusto é um deles! Não tenhas a menor dúvida. Por isso, livra-te dele quanto antes...
Não gostará ele também de homens?
Lá perseguido por eles é. Não sei é se lhes consegue resistir...
Também tu?...
Também eu o quê?
O que é que achas do ar dele?
É demasiado efeminado para o meu gosto...
Comigo não tens com que te preocupar. O meu processo está mais ou menos controlado... De qualquer modo, obrigado pela informação.
Olha, Clara. É um conselho de amigo... Manda-o à merda! O gajo é um fulano altamente perverso! - continuou Vítor.
Está bem. Vou matá-lo! Depois convido-te para o enterro! De seguida, vamos festejar ao Blues Cafée. Pago o champanhe...
Ainda bem que o teu sentido de humor não ficou grandemente abalado.
Não te esqueças de que fui casada com o Paulo...
É verdade...
E tu? Ainda vives com a Teresa?
Vivo.
Óptimo. Dá-lhe cumprimentos meus. E os teus filhos?
Estão bons, obrigado.
Ainda bem. Felizmente tu acertaste desta vez. O mundo dos afectos anda pela hora da morte. Eu que o diga...
Um dia destes também hás-de acertar, Clara.
Pode ser. Talvez quando as galinhas tiverem dentes. Isso já nem me passa pela cabeça. Nunca ouviste dizer que os homens são como as casas de banho? Os bons estão sempre ocupados...
Gosto mais do ditado dos melões. É preciso apalpar o cu a dez para sair um bom! – retorquiu Vítor, rindo.
Clara juntou as suas às gargalhadas do amigo e foi num ambiente de boa disposição que desligaram.
Mais uma achega sobre César. Desta vez do mundo do crime. O raio x estava a ficar completo. Os retratos estavam a sair a matar. Já devia estar a fazer a dissecação do bicho – pensava Clara. - Gostava de ver a matéria das circunvoluções do cérebro dele - continuava.
De repente, imaginou uma autópsia surrealista. Da cabeça de César viu surgir uma vagina, um soutien, uma nota de dez contos, uns diamantes e um pénis, tudo embrulhado numa espécie de redenho avermelhado. Resumindo: mulheres, homens e dinheiro eram os indícios encontrados no córtex cerebral, afinal o que causava dissabores a tanta gente. Lembrou-se da cortina da casa de banho e dos biquinis pendurados com as molas da roupa. Dos cristos, também. E com as mãos voltadas para o céu, exclamou em voz alta:
Oh, Cristo, cinco vezes representado na parede do quarto de César!... Durante quanto tempo mais é que Tu vais fazer vista grossa?!...
Era meia-noite quando se deitou. Precisava de ligar à Catarina e à Luísa. Iria fazer isso no dia seguinte. Depois, foi uma paz um bocado para o podre a adormecê-la.
De manhã, acordou relativamente bem disposta. Decididamente, parecia-lhe que, no dossier César, poderia finalmente pôr: The end.
Já no 1017 da Fontes Pereira de Melo, Clara ouvia através da vidraça, a chuva, caindo copiosamente. César ainda andava por ali a navegar nos seus pensamentos. O tempo desenhava-lhe nas expressões um arco de nostalgia cinzenta, enquanto intimamente se interrogava.
Por que não dei eu atenção à minha primeira intuição sobre aquele homem? Se ele fosse realmente bom, estava casado, com toda a certeza. Enfim... Tenho de me habituar a viver com esta desilusão. Afinal, fui vítima da minha criação, da minha pintura – E à memória chegava-lhe a imagem de César. Fizera dele um quadro mágico, qual pintor de azuis céus e águas profundas. Pintara-lhe a vida despida do trágico, mas sentira todas as cores ficarem imundas. Misturara o que era afásico silêncio e a cor dos seus olhos onde ficara encandeada. Agora via apenas um vulto sombrio, um ser básico e ainda o negro onde ele mergulhava permanentemente. Quis fazer de César um quadro de amor, cheio de sons, de pássaros e flores. Porém, na tela, só ressaltava a podridão. Clara sentia então não ter o quadro nem César qualquer valor. Da sua paleta de cores saíra apenas um triste borrão. Nada mais do que isso. César era apenas um borrão.
O telemóvel despertou-a para a realidade. Atendeu.
Olá, Clara!
Olá, Carolina! Tudo bem!
Tudo! Tenho novidades. Sabe quem me telefonou?
Não imagino...
Foi a Patrícia, ex-mulher do estropício. Realmente é sina minha aturar todas as mulheres da criatura...
O que é que ela queria?
Saber da situação financeira do César. Há dois meses que não cumpre com a prestação estabelecida no acordo de poder paternal. Fingiu-se de coitadinho, disse-lhe que só ganhava noventa contos e que não tinha dinheiro.
Mas a criatura trabalha ou não?
Aqui vem duas vezes por semana resolver as pendências das contas. Além disso, há outra coisa. O gajo está mesmo perdido...
Porquê?
Pelos vistos lá na aldeia anda com uma fulana que foi dona de um bordel, em Espanha.
Ah sim?
Os filhos apanharam-no em cenas pouco edificantes. Ele a meter as mãos pelas pernas da rapariga acima e a dar-lhe palmadas no rabo. Os miúdos ficaram chocadíssimos. Tem sido um escândalo! Veja do que se livrou....
É verdade. Que anormal! – dizia Clara, enquanto pensava: - O filho da mãe fez-me o mesmo em Azenhas do Mar quando fomos a casa da D. Henriqueta. Eu estava de calças. A palmada, disso não me posso esquecer. – Mas, esse é o estilo dele... – prosseguiu.
Não melhorou com a idade. Continua com o nível baixo.
Não conhece o ditado que pau que nasce torto tarde ou nunca se endireita?!
Pois é. E a Clara?
Cá vou andando, mas fico irritada comigo própria por não ter sido mais perspicaz e diligente. Devia ter falado consigo há mais tempo...
Deixe lá. Veja por quem a trocou...
Não! Não me trocou por quem quer que seja porque, para ele eu nunca fui outra coisa a não ser um biscate. Cada vez tenho mais consciência disso. A Patrícia disse-lhe algo mais?- insistiu curiosa.
Ah! Disse uma coisa muito importante! O estropício nem licenciado em Direito é...
Não me diga!...
Foi até muito engraçado. Quando ela me ligou, perguntou pelo dr. César Augusto. Depois acrescentou: doutor!... Perguntei pelo doutor por ele ser aí conhecido como tal! Mas, nem licenciado é. - Ai não? - perguntei ? - Não!- respondeu. - Quando nos casámos, disse-me que sim. Depois, disse que só lhe faltavam algumas cadeiras. Finalmente descobrimos que lhe faltava a mobília toda...
Realmente daquele homem pode-se esperar de tudo. Não passa de um vigarista...
Mas, não se ficou por aí... – continuou Carolina.- Pelos vistos, em tempos, o estropício até droga traficou. Logo depois de se terem separado! O aquartelamento dele era em Esposende. A propósito, a Clara nunca foi à casa de Esposende?
Não. Não se esqueça que fui apenas um biscate.
Ainda bem que não foi.
Porquê?
Não deve saber como era chamada aquela casa...
Pois não...
Era o Putifério!
Pelos vistos era mais do que isso... Bolas, o gajo é um verdadeiro criminoso. Move-se a nível nacional e internacional, de norte a sul do país...
A Patrícia ainda me disse mais. O estupor há cerca de um ano que não está verdadeiramente com os filhos...
Anormal! Quando lhe perguntava se tinha estado com eles respondia-me sempre que sim.
Isso era pretexto para se livrar de si e dedicar-se a outros afaires...
E com a mãe fazia a mesma coisa – continuou Clara. - um dia até me disse que ela tinha partido um braço para justificar uma ausência. Na versão dele, ela caíra. Julgo que era mentira. Bem analisada, a mente daquele cabrão...
É menino para isso e para muito mais... - continuou Carolina.
Já agora podiamos prosseguir com a investigação. Quem sabe, não daria uma boa história para a Polícia?... - riu Clara.
Por mim ajudo. O mentecapto já deve uns anos à cadeia...
Bom. Obrigado pelas novidades. A partir daqui podemos considerar-nos as inspectoras Patilhas e Ventoinha, versão feminina dos Parodiantes de Lisboa! - E ambas deram uma sonora gargalhada enquanto se despediam.
Estou! Carolina?
Sim.
Já agora, responda-me a uma coisa: Quem é que lhe pagava tantas viagens para o Porto, Trás- os- Montes, Esposende, portagens e gasolina incluída?
Ah! Ah! Como julga que o estropício pagou a casa de Lisboa, a das Sete Cabecinhas e respectiva reconstrução, mobílias boas... A fundação! É claro! Viagens fictícias!... A outra, não sei, mas a de Lisboa está paga e custou vinte mil contos! Aliás, fui eu a decorá-la...
Também lhe pôs os cristos no quarto? – perguntou Clara, ironicamente.
Pus. Ele comprou-os e eu coloquei-os.
De nada lhe adiantou.
Pois não. De santo nada tem apesar de os pés não serem lá muito grandes- continuava Carolina, brincando.
Bom. Até um dia destes e obrigado.
Até um dia destes.
Tenha cuidado! – recomendou de novo Carolina.
Revelações atrás de revelações. Que mais ainda iria descobrir? O resto do dia decorreu agitado. Clara tentava a todo o custo desdramatizar a situação, ironizando sobre o assunto com toda a gente. Ao fim da tarde foi bater à porta de Diogo. Só o vira de manhã, à entrada.
Vamos tomar a nossa bica?- perguntou ela.
Vamos lá, Clarinha.
Tenho mais novidades sobre o raio x. O gajo não é licenciado em Direito... – informou-o já na cozinha, ao mesmo tempo que preparava as chávenas.
Então qual é a licenciatura?
Vigarice e mulheres! Tem ficha na Polícia e agora namora com uma ex-dona de bordel, tanto quanto eu soube...
O homem é pior do que o capitão Roby! Como é que ele pode enganar tanta gente?
Se não é pior, é igual! - concordou, entregando uma chávena de café a Diogo. – E tu não conheces a cara de anjo daquele estupor...
Esquece, Clara. Não tens outro remédio...
Permaneceram mais uns instantes sentados nos dois sofás. Isabel bateu à porta e perguntou-lhes se podia ir embora. Depois da rapariga sair, continuaram a conversa.
Estou admirado contigo, Clara - comentou Diogo. - Há tempos que não vejo aquela lágrimazita a pairar-te ao canto do olho. Não estás a sofrer, ou ficaste de repente durona?
Ainda sofro um bocadito. Mas a raiva impede os meus fluidos lacrimais de saírem. Não sei se isto é bom ou se é mau. E agora vamos embora. Obrigado pelo ombro - disse sorrindo.
Saíram ambos. Com a chave na mão, Diogo fechou a porta.
Até amanhã, Diogo. Cumprimentos à Ivone e beijos ao Fred e à Bibi.
Eram sete da noite. Clara estava já em casa, fervilhando por dentro depois de vencer indiferente o trânsito de Lisboa. César não deveria ainda ter chegado a Telheiras. Não podia controlar-se. Ia deixar-lhe uma mensagem rogando uma enorme praga à epidemia dos telemóveis, por permitirem a violação da privacidade das pessoas, mesmo que fossem como aquele ordinário- pensava. Foi com alguma desilusão e espanto que o ouviu atender o telefonema.
Estou sim!
Clara, finalmente, reparou. O sotaque era verdadeiramente transmontano. Como é que ela nunca havia notado isso!?- reflectia.
Não tem vergonha de ser assim?
Assim, como?
Como é! Um indivíduo completamente amoral e sem escrúpulos! Muito deve ter gozado à minha custa. Seu mentiroso! Seu traficante! Até na droga se meteu! Não respeitou nem um bocadinho os meus sentimentos! – e Clara esperava que César desligasse o telefone. Curiosamente, ele continuava a ouvir.- Quantas vezes lhe pedi para nunca me usar?
Mas eu não a usei. Até gostei de si...
Que cínico!...
Não sou nada cínico. As coisas são boas enquanto duram. O que é que queria? Que lhe mandasse um requerimento? Logo que me apercebi do seu mau feitio comecei a desligar aos poucos.
Mau feitio? Tenho mau feitio só porque digo verdades que não quer ouvir? É isso? E você gosta lá de alguém! Gosta é de bajulação! Queria estar num trono e ser adorado por todos! Mas no fim acaba sendo profundamente odiado e desprezado!
Você tem a mania que sabe tudo e que me conhece. Não me conhece. Garanto-lhe. Umas vezes acerta e outras não. Além disso chamou-me muitas vezes mentiroso e eu nunca lhe menti. Detesto que me digam isso.
Essa é boa? Não é mentira a história de ter duas irmãs mais velhas quando na realidade são mais novas? Não é mentira dizer-me terem os seus pais esperado que fizesse a quarta classe para irem para Angola? Isto para não falar de outras...
Você não ouviu bem. Os meus pais foram para Angola quando nasci. E as minhas irmãs são mais novas. Sempre lhe disse isso.
Tem cá uma lata! Ainda é capaz de me dizer uma coisa dessas?! E eu cheia de pena quando lhe mandei as flores...
Uma delas até a guardei. Nunca a viu cá em casa no hall de entrada? O que eu lhe aturei! Só um santo! Esqueça. Em nome do seu amor próprio, do bom senso e da sua dignidade.
Olha! Olha! A falar-me de dignidade! Essas palavras são plagiadas! Quantas vezes lhe falei nelas! Eu é que lhe aturei muitas! No fundo não passa de um desgraçado com medo de ser abandonado pelas mulheres! Isso sempre foi tão nítido para mim! E acaba por lhe acontecer aquilo de que mais medo tem! Há-de ficar sozinho como um cão!
Havemos de ver quem vai ficar só...
Garanto-lhe que uma trampa como você nunca hei-de aturar! Um dissimulado! E quando passava por mim fingindo não me ver? Uma coisa ainda não percebi...
O quê? – perguntou ele.
Por que guarda todas as coisas que as mulheres lhe dão:- A minha flor, as pedrinhas da praia... É para provar a nossa existência? Faz isso tudo para contabilizar todas as mulheres com quem andou? Sim, porque por qualquer réstia de afecto não é. Afecto é algo completamente desconhecido para si...
Cada um sabe de si e Deus sabe de todos...
Olha o desgraçadinho, cegueta! Fingindo não me ver...
É claro que a via! Mas detesto ser espiado! Aliás, já estou habituado a que as mulheres me façam isso. A começar pela minha ex-mulher...
Então, tanto melhor! Não devia estranhar! Preferia continuar a enganar toda a gente? As mulheres não são burras! Vai ver que acabam por revelar-se muito mais espertas do que você!...
É! Aliás a si, foi a sua inteligência que a traiu!
Traiu-me?! Protegeu-me de um escroque! Felizmente, quase não apareci em público consigo! Sempre teve medo de mim! Medo de que eu descobrisse todas as suas aleivosias!...
Ninguém me mete medo!
Olha o mata-sete! Moscas! É claro! Até pediu à Carolina para o proteger da Zira quando ela lhe queria bater!..
Não sei do que está a falar! Não conheço Zira alguma...
Não conhece?!...Conhece de cor e salteado o alfabeto todo! E em várias línguas: Corine, Sherley, Bárbara, e por aí fora!...
Eu sei que tenho fama! Mas daí ao proveito vai uma grande distância!...
E o capital humano que granjeou lá na fundação! Só essa me fazia rir! Se soubesse como o desprezam e consideram ridículo! Até lhe meteram revistas pornográficas numa viagem a Espanha quando estava a dormitar só para se rirem à sua custa! Toda a gente sabe que só tem sexo na cabeça e que como profissional é uma perfeita nódoa! Para não falar do que roubou!... Claro!
Nunca roubei fosse o que fosse. Dizem isso por inveja.
Ainda que fosse mentira, que não é, no mínimo roubou a tranquilidade a muita gente que gostou verdadeiramente de si.
Problema delas!
Seu também! E há-de pagar bem caro, acredite! - afirmou Clara.
Pode ser. Mas nada tem a ver com isso.
Tenho, quando me toca na pele!
Então, esqueça! Deixe de me chatear! Dê tempo ao tempo! Em nome do bom senso! Até lhe fica mal! Só não percebo por que anda a fazer estas coisas!...
Porquê? Preferia que fosse a sua namorada do bordel, a quem mete as mãos pelas pernas acima escandalizando toda a gente, inclusive a sua própria filha, a chateá-lo? Ela há-de fazer-lhe bem pior do que todas as outras! E é muito bem feito!
Não ando só com uma. Ando com muita gente ao mesmo tempo...
Finalmente, a confissão! Não tem vergonha?!
Há muitos homens como eu!
Até o seu pai abandonou! Nem sequer o foi ver uma única vez ao lar onde ele morreu como um cão! E ainda por cima anda a usufruir da reforma que ele deixou à sua mãe!
Não sei se fui eu que o abandonei se foi ele que me abandonou! E isso da reforma é mentira!
Pois! Por intuir coisas semelhantes é que eu ainda ando aqui com pena de si! E a cena da reforma também não é mentira! É a mais pura das verdades! Sempre quero ver se você é dos tais que quando a mãe morrer vai ocultar o cadáver só para não prescindir dos sessenta e tal contos da Caixa Nacional de Pensões!...
Diz cada coisa!... Essa então, não tem pés nem cabeça!- retorquia César do outro lado, sem ousar desligar o telemóvel.
Você não foi violado na infância ou coisa parecida? Com uma cabeça tão perturbada, só pode ter sido! – continuava em catadupa.
Claro que não fui violado! Você é que tem uma grande imaginação! Não vá ao psiquiatra!...
Ao psiquiatra precisava de ir você! Essa cabeça está mais engelhada do que uma rodilha!
É, Clara! Tem um grande poder inventivo! Pode dedicar-se a escrever romances! Adivinho-lhe um grande futuro! – retorquiu César, ironicamente.
Se calhar! Quem me dera ter engenho e arte para tanto! Talvez a sua vida desse uma grande história! Na verdade, é tão vaidoso que até gostaria de a ver retratada em livro ou em filme! E eu ganhava muito dinheiro! Com algum talento até de uma boa merda como você se conseguia fazer um bom livro!...
É. As personagens aceitam tudo. Não reclamam como as pessoas.
Em si, de pessoa encontrei muito pouco! Tem mais de animalzinho! De cãozinho! Até pior do que um rafeiro! Quando o encontrar caído numa valeta quem quer que avise? Os seus filhos têm vergonha do pai! Até com a sua mãe já se zangou! Sim responda-me! Quem vou eu avisar?
Com a minha mãe zango-me muitas vezes e os meus filhos ainda ontem estive com eles...
Mentira! Não os vai buscar há quase um ano! E dizia-me que estava com eles de quinze em quinze dias! Que raio de pai é você?
Eles também não sentem muito a minha falta...
Pudera!- retorquiu Clara
Deixe-se disto! Deixe de ser ridícula! Podia eu ficar com o odioso! Assim, nem imagina a péssima imagem com que fico de si!
Interessa-me lá bem a sua opinião sobre mim! Também não interessa às pessoas que o conhecem como o maior escroque da cidade de Lisboa! Os meus bons créditos já estão sobejamente firmados! Já os seus são a negativa em forma de gente!
Olhe, Clara. Se tivesse algum carinho ou alguma amizade por mim não andava a dizer tão mal...
Carinho e amizade? Se calhar até gostava que o conservasse em álcool!... Só me faltava ouvir isso! Ainda tem a lata de me pedir semelhante coisa! Era o que você queria! Que o pusesse num altar! Isso fiz eu durante algum tempo alinhando no seu jogo sem o saber! De anjinho você não tem nada!
Pois não! E quando me pisam, ponho o pé em cima! Disso não tenha a menor dúvida!
Mais uma revelação! Vingativo! Com os estupores desses olhos de carneiro mal morto, não passa de um cínico e de um monstro! Hei-de ir ao seu funeral! Mas se calhar, você é tão ruim que nem a terra o há-de comer! E um dia quando quiserem enterrar alguém por cima, com o esqueleto inteiro, ainda hão-de intitulá-lo de santo! Já estou mesmo a ver o povo a pedir-lhe milagres pondo-lhe velas de um metro e oitenta e tal, o tamanho da sua perversidade!...
César deu a sua famosa gargalhada.
Não se ria! Você não passa de um ordinário! Não há quem quer que seja capaz de aproveitar seja o que for nem em altura nem em largura! Quanto ao carácter, isso nem se fala! Talvez a mãe que o pariu e Deus! Mesmo assim Ele terá grandes dificuldades em reciclar alguma coisa de si! E que os médicos não se lembrem de lhe tirar qualquer órgão para transplante! O desgraçado do recebedor haveria de tornar-se um veneno como você!...
Essa teve piada!- continuou César, rindo.
Só tenho pena de não lhe poder dizer tudo isto cara a cara! Você é tão cobarde! Nunca foi capaz de me enfrentar !Bom ! E agora vá para o inferno de onde nunca deveria ter saído! Se alguma coisa fez de bom, foram os seus filhos! Os conhecidos! Fora aqueles que hão-de andar por aí sem saberem quem é a peste do pai!... Isto para não falar dos abortos! Deve ter estado na origem de muitos!... – continuou Clara.
Lá está você outra vez a inventar...
Já agora, só mais uma coisa! Para sua informação - prosseguiu sem lhe dar tempo de qualquer resposta – não tenho sida nem coisa que o valha! Quis só experimentar a sensação da mentira e da farsa e pregar-lhe um susto!
Pensa que não percebi? Aliás, fiquei cheio de medo...- disse com ironia.
Mas telefonou-me a perguntar!...
Estava a fazer o seu jogo! Borrei-me todo! Esperava o quê? Que me deitasse da ponte 25 de Abril abaixo?
Razões para ter medo não lhe faltam! À quantidade de mulheres com quem anda!...- o silêncio imperou - Bom! Já perdi demasiado tempo consigo! Um dia ainda havemos de acertar contas! Adeus! – e Clara desligou.
Após a agitada conversa ficou demasiado nervosa. Mal acalmou um pouco, comeu qualquer coisa enquanto digeria a discussão com César. Algo não lhe saía da cabeça. A possível violação dele em criança. Ainda um dia havia de tirar isso a limpo – pensava. As dúvidas eram muitas. Não sabia se o havia de considerar uma vítima ou um vilão. Ou as duas coisas. De qualquer modo, sentia uma certa pena dele. Um homem andando pela vida sem dar um único passo certo, rumando decisivamente para o abismo. O pai abandonara-o. Era uma certeza. César devia ter crescido ao deus-dará, sem leis nem princípios que lhe fortalecessem o carácter, nos embates do mundo. Revia a cara dele, semelhante às das brochuras dos santos dos pintores de rua, e uma dor enorme dilacerava-a por dentro. Conhecera, porém, um escroque. Era uma marca indelével. Teria de aprender a viver com isso. Uma criatura sem dignidade alguma. Um cobarde com medo de enfrentar fosse o que fosse, escudado num ar de menino bem educado como ele sempre fazia questão em afirmar.
Adormeceu, depois de muitos saltos de lucubração em lucubração.
No dia seguinte, no gabinete, não comentou o assunto com Diogo. As coisas tinham mesmo de morrer por ali.
Janeiro estava quase no fim. César fazia anos numa quinta-feira. No mesmo dia de Mozart – disse-lhe ele em certa altura com ar de júbilo como se a coincidência fosse um pequeno dom. Um dia falara-lhe também de uma reunião do condomínio, lá do prédio. Calhara nos anos dele. Para escapar à seca daquelas discussões, utilizou o pretexto do aniversário. Contudo, nessa altura ficara em casa sozinho. Talvez também o estivesse agora, amargurado e sem emprego, depois de ter sido despedido da fundação. Isso custava-lhe. Mas, após a última conversa, não teria coragem de lhe telefonar. Pela primeira vez pensou em falar ao Luís. Afinal, tinha sido ele a metê-la naquelas andanças. Ligou-lhe.
Olá, Luís!
Então, Clara! Bons ouvidos te ouçam!
É verdade. Tenho andado com uns problemazitos...
Que problemas?
Precisava de falar contigo pessoalmente! Tens um dia disponível?
Dia, não. Mas à noitinha, talvez. Se quiseres pode ser hoje.
Era óptimo. E a Manela. Está boa?
Está tudo bem!
Então, a que horas nos encontramos?
Às seis e meia. Pode ser?
Pode.
Onde?
No Indochina. Fica nas Docas.
Ok! Lá estarei.
Mal se encontraram, Luís dispara:
Então, Clara! O que se passa?
Lembras-te do César?
Já não está na fundação!
Eu sei. Tive um relacionamento com ele...
E pelos vistos ainda estás apanhada....
Graças a ti, seu casamenteiro!...
Luís riu.
Mas o que tens tu de tão importante para me dizer?
O gajo é um escroque! Nem licenciado em Direito é! Além disso, é o maior mulherengo da cidade de Lisboa! Um vigarista que até tem ficha na Polícia. Porém, tenho algumas razões capazes de me fazerem sentir pena dele. Nomeadamente a infância. Tu sabias que o César foi abandonado pelo pai e que a mãe foi para França quando ele tinha doze anos?
Não. E daí?
Julgo que apresenta uma enorme patologia! É - parece-me - um mentiroso compulsivo e agora está sem emprego. Vê se lhe arranjas alguma coisa! Na última conversa em casa dele, o desgraçado confidenciou-me que precisa de trabalhar, embora estivesse mais interessado na jardinagem...
Ó Clara, mas pelo que tu me dizes estamos perante um burlão, um vigarista! Não vou arriscar por uma pessoa assim...
Tens razão, Luís. Desculpa. Na verdade ele arrasta consigo as pessoas e apesar de teres contribuído muito para este romance mal urdido, não te quero prejudicar, obviamente...
Mas quando nos falou da nossa amiga, que eras tu, parecia gostar ou pelo menos simpatizar muito contigo...
Ele gosta de todas as mulheres e de nenhuma! Aliás, é bem capaz de gostar também de homens!...
Olha, Clara! Não foi coisa que não me tivesse já passado pela cabeça... – acrescentou, em tom de confidência. – Mas em que te baseias para dizeres isso?
Intuição feminina pura!...
Se for verdade, o gajo deve ter uma vida muito atribulada, Além das mulheres também é paneleiro!... Deve ser um infeliz - disse Luís entre a ironia e a incredulidade.
Concordo inteiramente. Por isso, ando ainda perdida no tempo dele, a divagar, perdendo o meu próprio tempo. E entre a minha raiva, encontro ainda uma réstia de pena. Agora ele deve andar com alguém ligado à jardinagem. Pelo interesse demonstrado na plantação de túlipas... Ó Luís!- pede Clara, de repente.- Ao menos faz-me um favor!...
Depende...
Não há problema. O César faz anos no dia vinte e sete. Tens aqui o número de telefone. Faz-lhe um telefonema e dá-lhe os parabéns. Apesar das muitas mulheres de certeza não tem um único amigo... Tive uma discussão acesa com ele e não faria sentido ligar-lhe, muito embora saiba que talvez espere um telefonema meu...
Está bem, Clara. Vai tê-lo, mas por outra via- brincaram ambos. - Só que o César não é burro. Nunca lhe telefonei... Vai desconfiar...
Descarta-te como puderes. Usa a imaginação...
O que te leva a pensares as coisas que me disseste?
Ele deve sofrer de um complexo desde pequeno. Detesta ser rejeitado pelas mulheres, afinal uma coisa que desencadeia sempre. E no fundo tem uma enorme admiração por mim misturada com um sentimento de medo. Sempre me temeu bastante. Calculista como é, passou-lhe de certeza pela cabeça a possibilidade de as trapaças dele virem a lume via Clara Correia Guedes, a psicóloga.
Está bem, Segismunda-Madre Teresa- Sherlock Holmes. Eu telefono-lhe – rematou Luís, a rir, contagiando Clara..
Obrigado.
Depois, ligo-te. Tu ainda gostas muito dele, nota-se. Mas esquece. E ainda me hás-de explicar essa da jardinagem...
Não sei muito bem. A frase, decisivamente, queria dizer alguma coisa relacionada com mulheres. Neste momento só não sei o quê...
Eu telefono-te.
Adeus. Um beijo à Manela e aos miúdos.
Luís telefonou no dia a seguir ao evento. Pelo tipo de perguntas, César ficara desconfiado. Porém, a situação fôra controlada.
Passaram cerca de três semanas. Clara foi passar o último fim-de-semana a Leiria. Ela e Luísa faziam anos. Fizeram uma pequena festa. Na primeira oportunidade, as perguntas cruzavam-se.
Então, Luísa! Como vai o teu problema? - perguntou Clara.
Na mesma! - respondeu a amiga. - E o teu?
César é um vigarista, mas continuo as investigações. Depois faço-vos o retrato falado. Aquele homem tem um enorme complexo de inferioridade. É através da vigarice e sobretudo das mulheres que tenta reverter as situações a seu favor. Muito provavelmente foi violado em criança e nunca recuperou...
É assim tão grave? – quis saber Becas.
Clara relatou as últimas informações recolhidas junto de Carolina, mais as outras.
Realmente é mesmo um comportamento esquisito – continuou Becas. - Se calhar age assim com todas as mulheres para se vingar da mãe. Além disso, aqui és tu a psicóloga...
Coitado. É um triste- acrescentou Luísa.
Tenho pena dele. É uma vítima e um vilão ao mesmo tempo. Às vezes parece-me até idiota. Nessas alturas não lhe tenho raiva alguma. Parece uma criança sem qualquer discernimento. Tive uma discussão forte com ele. Disse-lhe tantas... Provavelmente coisas que nunca ninguém se atreveu sequer a pensar...
E a criatura?
Nem o telefone desligou. Espanta-me. Ou talvez não...
Deve ser masoquista –acrescentou Luísa, rindo.
Talvez. Nunca me deu para vasculhar se lá em casa tinha alguns objectos de tortura sexual. Até nem isso me admirava...
A conversa mudara de rumo. Agora era a relação de António e de Luísa a ser comentada e analisada. As confidências sucediam-se.
Raio de vida! Somos todos uns infelizes- rematou Luísa.
Finalmente o domingo à noite. Chovia desde terça-feira da semana anterior. Clara regressou a Lisboa sob aquela água miudinha como os seus pensamentos sobre César. Já em casa, comeu um pedaço do bolo de aniversário comemorado em Leiria com a amiga. O tempo estava mauzinho. Nem tiveram oportunidade de ir ver os cavalos. Os dias eram ainda muito curtos- rememorava Clara ao mesmo tempo que dava um jeito na cozinha.
Ligou à Catarina. Falou também com o Xavier e repetiu outra vez a história vilã do César. De vez em quando chamava-lhe estropício à boa maneira de Carolina. Xavier e Catarina nem sequer se davam ao trabalho de o tentar compreender. Para eles, César era um filho da puta dos grandes. E mais nada. Desejavam-lhe as piores coisas possíveis.
Está na merda? – perguntava Xavier enquanto dava a resposta. Nunca devia de lá ter saído! Talvez não chateasse tantas pessoas como chateou! Manda-o foder!
Hei-de mandar quando me apetecer. Isto para mim é quase um jogo. Já agora, com alguma perversidade pelo meio... Ainda vou maquievelar mais um pouco. Julgo eu...
Sim, de jogadora tens tu que chegue... E muitas vezes no risco... Não te magoes. Isso é muito importante...
Clara, depois, foi para a cama. Adormeceu cerca da meia noite. Chegou ao gabinete às dez horas do dia seguinte. Ao meio dia foi almoçar com Diogo. Não puderam festejar juntos o aniversário dela e o que não se faz em dia de Santa Luzia, faz-se no outro dia, como diz o ditado. Trocaram mais umas curtas impressões sobre César mas já começava a aborrecer-se com o assunto e não queria enfadar mais, sobretudo uma pessoa com quem estava todos os dias.
À noite ligou para a Becas.
Maria Clara! Tiveste boa viagem?
Tive. Vocês continuam bons?
Como nos deixaste...
Ó Bequinhas, queres fazer um favor à tua mãe para remediar?
Diz lá!
Desconfio que o estropício do César tem uma linha telefónica redis onde controla todas as chamadas. Quero continuar a minha saga de advogada do Diabo. Pelo confidencial, ligas para o número dele?...
Ligo. E depois faço o quê?
Não deve estar em casa.
E se estiver e atender?
Descartas-te como puderes!
Ok. Até já.
Passado pouco tempo, Becas ligou.
Ri-me como uma perdida. Telefonei como me pediste. Atendeu-me uma voz muito simpática.
O que é que disseste?
Mal o ouvi, digo eu: Ah! Ah! Já vi que me enganei- Mas para onde queria ligar? - perguntou o homem. – Queria falar com a minha avó - disse eu.
E Becas ria-se a bandeiras despregadas.
- Havias de ouvir a gargalhada dele enquanto dizia:
- A sua avó não sou de certeza...
Clara ria agora também, juntamente com Becas.
Devias ter-lhe perguntado ao menos se não era o lobo mau!...- E as gargalhadas aumentaram de tom.
Mal desligaram chegou a vez de Clara fazer mais uma maldade a César. A estratégia desta vez, era não o hostilizar. É a isto que se chama ter lata- pensava ela. Para seu espanto, ou talvez não, ele atendeu.
Olá! Está bom?
Cá se vai andando...
Já fez as pazes com a sua mãe?
Nunca estive zangado com ela.
Ela está cá ou em Paris?
Está em Paris.
Fez anos. Não lhe telefonei- mudou Clara de assunto.
Também fez e também não lhe telefonei...
E a fundação?
Vou lá duas vezes por semana...
Não lhe custa ir a um sítio onde foi rei e senhor sabendo que o olham de soslaio? Não se sente envergonhado?
Não.
É assim tão superior ou está a utilizar a estratégia dos nervos de aço? – perguntou Clara enquanto se lembrava do tempo em que via César como Deus, alheio aos resultados da sua criação.
Não. Sou normal. Não me julgo superior a quem quer que seja.
Mas você trabalha lá, ou não?
Dou uns pareceres. Não se esqueça que tenho um bom currículo. Fiz parte de uma comissão de restauro de museus e igrejas...
E pagam-lhe por isso?
Umas vezes pagam, outras não. É um investimento. E estou em vias de entrar para um grupo financeiro forte...
Ainda bem. Sabe que me preocupo com o seu futuro? A velhice não perdoa...
É verdade.
Você não mo pediu. Mas vou dar-lhe um conselho: nunca misture mulheres com trabalho.
Isso não precisava de me dizer. Uma vez chegou bem para eu aprender...
Não sei se aprendeu lá grande coisa. De qualquer modo, um homem tem o direito de trabalhar. Honestamente, é claro.
E é a única pessoa que se preocupa comigo.
É para saber quem é quem, apesar de provavelmente não valer a pena...
Do outro lado, o silêncio fez-se ouvir.
Bom, agora vou desligar! Ando a gastar demasiado dinheiro consigo!...
Está bem. Não quero que gaste dinheiro comigo...
Estava sempre tudo bem. Essa também já era velha e bem conhecida de Clara. Idiota!...
Porquê? Não merece?- ripostou ela.
Não. Não é isso...
Deixe lá... Um dia destes volto a telefonar-lhe. Espero bem que tenha aprendido alguma coisa. Pelo menos a não me mentir. Acabo sempre por descobrir...
Mal desligou, Clara teve uma sensação esquisita, cogitando:
Coitado. Há-de revelar-se como tal, a toda a gente. Um pobre diabo. Nada tem naquela cabeça. Não passa de um uma enorme caixa vazia embrulhada num papel bonito como se alguém quisesse pregar uma partida a um amigo, em dia de aniversário! E tocara-lhe a ela, aquele presente- ecoavam-lhe , assim, os pensamentos, na cabeça.
Não ficou nem bem nem mal disposta. César era mesmo um ser amorfo. Só tinha uma cara de anjo. Os dons de Deus, para ele, tinham sido bastante parcos. Não passava de um idiota.
- Não vale a pena- pensava alto. Contudo, tinha medo das suas mudanças de humor e da sua versatilidade. Se muito bem calhasse na próxima vez diria coisas que não lembrariam ao Diabo...
No dia seguinte acordou às cinco da manhã. Não conseguindo conciliar o sono, arranjou logo ali um bode expiatório para a sua insónia. O estropício do César, como não podia deixar de ser. Apetecia-lhe partir-lhe os cornos de maneira a ele nunca mais se endireitar...
Lembrou-se da velhota de Telheiras, a morar no terceiro andar por cima do apartamento da, agora, sua vítima. Iria fazer-lhe uma visitinha. O caderninho da mulher devia ter servido para alguma coisa. Ao fim da tarde, cerca das seis, lá estava Clara. Escondeu o carro por forma a César não o ver. Ele só costumava chegar às sete. Felizmente a senhora lá estava e já à varanda. Tocou à campainha do terceiro D.
Quem é?
Sou eu!- respondeu Clara recuando um pouco para ser vista pela mulher. Já uma vez lhe abrira a porta, no dia do funeral – pensava. – Queria falar com a senhora!- disse de pescoço virado para cima e com uma voz de oitava acima.
Espere um pouquinho – retorquiu a mulher, no mesmo tom, como se já estivesse à espera dela, enquanto se dirigia à porta, abrindo-a de seguida.
Já no átrio do terceiro andar, Clara confidenciou-lhe:
Queria falar-lhe de um assunto melindroso.
Ó menina, entre lá. Estou fartinha de saber ao que vem.
Pois é. É sobre o seu vizinho de baixo...
Já é a terceira que me vem perguntar coisas sobre aquele homem- dizia, encaminhando-a para a sala onde ambas se sentaram em dois sofás, em frente uma da outra.
Era uma mulher magra. Olhos castanhos fundeados num rosto arredondado emoldurado por cabelos brancos e curtos. A boca, de lábios pronunciados, não fazia adivinhar um espírito de coscuvilhice enterrado naquele corpo sobre o pequeno.
Reparei algumas vezes que a senhora estava à varanda quando eu chegava. Da primeira vez vi-lhe um caderno na mão e apontou qualquer coisa. Pode dizer-me o quê?
Olhe, menina. Ele mora aqui há sete anos. Vão àquela casa tantas mulheres que aquilo mais parece um bordel! São velhas, novas, bonitas e feias! Eu vou apontando os números de ordem e pasmo com tanta desfaçatez!...
Ai é! Já agora, qual é o meu?
Vai ficar escandalizada!...
Diga lá! A senhora sabe coisas que eu não sei! Mas também sei cada uma mais cabeluda!...
A menina é a número oitenta e três!...Depois de si já há mais oito!... O homem é muito requisitado!...
Bolas! Já vai num número tão alto?
Homens são menos. Uns seis ou sete. Sou capaz de ter perdido a conta a alguns. Só os comecei a assentar depois de ter percebido certas coisas...
Não me diga...
É como lhe conto. Mulheres são mais.
Já agora, diga-me: o anormal tem alguma preferida?
Não me parece. Deve ser mais ou menos por igual. A menina foi das que veio menos. Ele deve ter uma escala de serviço- dizia a velhota, sorrindo.- Faz a ronda – continuou.
E com que tipo de mulheres anda?
Algumas têm muito mau aspecto! Até já têm vindo duas e mais ao mesmo tempo! Depois, é um forrobodó! Ouve-se tudo cá em cima e em todos os lados! É na cozinha, nos quartos, na sala, nas casas de banho... Umas são mais barulhentas, outras mais silenciosas... Entretanto, é o telefone constantemente a tocar sem direito a atendimento... Deve ser quando ele está lá na função...
Quer-me dizer que a criatura faz orgias?
Provavelmente... Não consigo ver através do chão nem tenho olhos de raio x. Mas se os meus ouvidos não me enganam... Ainda não percebi qual a ideia. Deve ser por especialidades como na medicina! Cada uma lá deve ter as suas virtudes!...
Então eu devo ter sido uma funcionária pouco virtuosa...- prosseguiu Clara, sorrindo.
Aquele homem é um ordinário! É pior do que os cães! Não tem sentimentos! Usa as mulheres como quem usa lenços de papel! Com aquela cara de santo, é um escroque! Mal deixa arrefecer a cama depois de estar com uma, mete lá, a correr, outra!
E ultimamente?
Ultimamente parece ter sossegado um pouco. De vez em quando vem aí uma loura oxigenada com um carro esquisito. Só não percebo como é que ele não tem medo da sida...
Deve estar a tentar ser bonzinho. Mas daí a conseguir, vai uma grande diferença. A natureza dele há-de atraiçoá-lo mais dia menos dia...
Pode crer. Tenho a mesma opinião...
E de nós, o que é que a senhora pensa?
De algumas, tenho pena. Sobretudo das mais entradotas. Andam a ser enganadas por aquele tipo, babando infantilmente.
Se pensarem como eu ao princípio devem-no achar a melhor pessoa do mundo...
Burrice.
Tem razão - continuou Clara. – Aquele ordinário por vezes fazia-me sentir tão mal. Feia, má, mesquinha... Fui uma das jericas, acredite.
Talvez não. Ou me engano muito ou tem alguma na manga...
Sabe-se lá....
Se eu a puder ajudar, conte comigo. Aqui no prédio ninguém lhe tem qualquer respeito. Têm-lhe até nojo. Mas à menina ele deve ter medo...
Porquê?
Só o facto de estar aqui faz-me pensar que não dá as coisas de barato. E tem um ar tão decidido...
Às vezes...
Ah! Ainda não lhe contei a cena mais triste do traste...
Já agora...
Uma noite, há alguns anos, veio cá uma para lhe bater. Até meteu polícia...
Dessa eu sei. Foi a Alzira Baixo Nível. A Carolina contou-me. Ela foi uma das namoradas oficiais. A partir dessa altura mandou-o abaixo de Braga...
Nessa noite foi uma vergonha. Apesar disso, ele continuou a pavonear-se como se nada tivesse acontecido. Não tem escrúpulos nenhuns.
A vergonha só se perde uma vez. E se a teve algum dia deve tê-la perdido bem cedo – prosseguiu Clara.
Tem razão.
E foi só essa?
Não. Outra mandou-lhe umas flores e espetou-lhas na caixa do correio. Não sei quem era. Lá divertido, foi. Toda a gente leu o papel que as acompanhava. O tal papel, além de uns dizeres, tinha uma cruz de mortos. Ela devia ter muita imaginação e parecia gostar mesmo dele...
Todas gostam. Aquele anormal consegue ter um harém espalhado por aí fora – continuou Clara, tentada a dizer à velhota que fôra ela a autora das primeiras exéquias virtuais feitas a César.
Estava bom para viver em África como os negros mais primitivos. Ou então num daqueles países que admitem a poligamia – e a velhota alimentava, animadamente, o diálogo entre ambas.
Sabe mais façanhas dele para além das mulheres? E dos homens, pelos vistos... – perguntou de novo Clara.
Trabalhava numa fundação. Não será propriamente uma façanha. Só se vigarizou alguém. Talvez seja menino para isso. Parece-me que foi despedido...
Isso eu sei. E tem razão. Governou-se muito bem...
Tão bonito e tão mau carácter. É uma pena não ir embora daqui. Às vezes, nas reuniões do condomínio, entra mudo e sai calado. Sempre com ar de boa pessoa. Depois dá uma desculpa e vai-se embora.
Se calhar, vai para a função...
Toda a gente fica com essa ideia.
Bom. Não lhe roubo mais tempo. Fiquei suficientemente elucidada- continuou Clara.
Por mim pode ficar. Sou viúva e reformada e ainda não são sete horas. Mas, já agora, deixe-me fazer-lhe uma pergunta: ainda continua a gostar daquele fulano?
Não sei bem. Talvez o meu lado bom tenha pena dele e o mau o odeie... Tenho andado neste equilíbrio instável. Por isso estou aqui a conversar consigo. Preciso de diluir todas as dúvidas. Ando a tirar-lhe o retrato. Por sinal, pouco lisonjeiro. É cada cavadela sua minhoca!- acrescentou Clara, sorrindo.
É mesmo. Cada tiro, cada melro! Ó menina! Esqueça!- aconselhou, peremptória.
Tem razão.
Ele chegou. Ouvi-o a levantar as persianas.
Faça-me um favor. Veja se o desgraçado tem o carro na rua. Se tiver é porque ainda vai sair...
A velhota dirigiu-se para a varanda. Quando regressou informou:
Não. Não tem. Se calhar, vem por aí alguma...
Então, de seguida, vai vestir o pijama. É sempre muito informal a receber visitas....
Riram ambas.
Chamo-mo Cidália. E já agora diga-me o seu nome.
Clara.
Se quiser saber de mais alguma coisa, pergunte - continuou a mulher.
Obrigado, D. Cidália. Espero não a incomodar mais.
Não incomodou de todo em todo. Esqueça aquele fedorento.
Hei-de esquecer. Obrigado, mais uma vez.
Clara desceu no elevador. Felizmente não encontrou qualquer pessoa no átrio de entrada. Meteu-se de seguida no Golf preto e dirigiu-se a Benfica. O trânsito era-lhe completamente indiferente, de cabeça alheada de tudo o que não dissesse respeito a quanto descobrira, nos últimos tempos, sobre o Cara de Anjo.
No patamar, à entrada, apanhou o elevador juntamente com um vizinho. Ele premira o botão para sair no sexto piso. Era um homem dos seus quarenta anos. Boa figura. Tinha, pareceu-lhe, uns olhos verdes grandes. Lembrou-se, se é que o esquecera nos últimos minutos, dos olhos de César, também de cor verde, e intimamente detestou o companheiro de viagem. Doravante, todos os gajos de olhos verdes seriam, definitivamente, excomungados – jurava.
Já em casa, comeu qualquer coisa ligeira. Deitar-se-ia cedo. Ligaria a televisão para conciliar o sono. Tinha de esquecer, definitivamente, o estropício- mentalizava-se. Contudo, havia alguns pormenores a borbulhar-lhe na cabeça. O Pedro Roseira, dentro do leque das preferências de César era uma fonte a explorar. Talvez não fosse fácil arrancar-lhe alguma coisa. A homossexualidade na classe dos juizes não seria fácil de assumir por algum que o fosse. De qualquer modo, não iria deixar de indagar sobre essa questão. Tomou imediatamente a decisão. No dia seguinte à hora do almoço, iria à Boa Hora.
De manhã acordou mais cedo. Aprimorou um pouco a maquilhagem e o vestuário, dirigindo-se ao gabinete. Às nove horas encontrou-se com Isabel à porta de entrada.
Bom dia, Isabel! Tudo bem?
Bom dia! – retribuiu a rapariga.
Mal subiu as escadas pendurou o casaco azul do fato no bengaleiro. Sentou-se na cadeira. A saia subiu um pouco deixando-lhe parte das pernas à mostra. Pegou de seguida na agenda. Às quatro horas tinha uma entrevista com um candidato a supervisor para uma fábrica de produção de calçado. Teria tempo suficiente para tentar a conversa com Pedro Roseira.
Diogo chegou logo a seguir. Bateu à porta de Clara entrando sem cerimónias de maior.
Olá, Clarinha! Bom dia!
Olá! Tudo fixe?
Tudo. E tu?
Vai-se andando. Depois do almoço vou chegar um pouco mais tarde. Tenho um assunto a resolver...
Nem te pergunto sobre o quê! Sou até capaz de adivinhar qual é...
Talvez - disse ela, sorrindo.- E tu? Tens o dia muito ocupado?
Bastante. Tenho de fazer uns relatórios e uns anúncios para redigir.
Se precisares, adio para outra altura.
Não. Quanto mais depressa te livrares dessa história, melhor. Quero ter de volta a Clara, sem minhocas na cabeça.
Bom. Então está bem.
Até já!
A manhã decorreu sob uma certa ansiedade. Clara foi desenhando as reacções possíveis do outro. Fosse qual fosse a atitude do Pedro, não haveria de ser coisa do outro mundo. E depois, confiava na sua capacidade sugestiva. No mínimo, talvez ele ficasse com curiosidade.
Ao meio dia e meia estava ela na Boa Hora. Na secretaria geral perguntou pelo dr. Pedro Roseira. Informaram-na qual era a vara e o juízo. Plantou-se então à porta, esperando que o julgamento acabasse ou fosse interrompido. Teve sorte. À uma hora ele saíu.
Dr. Pedro Roseira!...
Sim! – respondeu, depois de mirar Clara de alto a baixo com um certo ar de desconfiança.
Lembra-se de mim?
Não - respondeu timidamente.
Chamo-me Clara. O César Augusto apresentou-nos um dia...
Ah! Já me lembro.
Precisava de conversar consigo...
Sobre quê?- perguntou.
Sobre ele. Tem alguma coisa marcada para a hora de almoço?
E o tom afável de Clara ia deixando Pedro um pouco mais descontraído embora desconfiado.
Não.
Então podíamos almoçar juntos.
Está bem. Por mim não há problema – retorquiu ele.
Tem preferência por algum restaurante?
Talvez um aqui perto. É bastante sossegado.
Como queira.
Clara caminhava agora lado a lado com o homem que teria os seus quarenta e cinco anos. Era relativamente alto e magro. Tinha olhos verdes e um rosto miúdo coberto por uma barba sobre o claro e da mesma cor dos cabelos curtos e ondulados. Vestia um fato acastanhado a condizer com a camisa bege onde uma gravata igualmente em tons de castanho estava pendurada pelo nó.
Já no restaurante sentaram-se um em frente do outro numa mesa discreta colocada a um canto, perto da janela. O empregado apressou-se a trazer a lista. Escolheram ambos peixe, pedindo um verde branco para acompanhar.
Deve estar muito intrigado com a minha presença? – apressou-se Clara a dizer, na primeira oportunidade.
Na verdade!...
E sem dar a Pedro qualquer tempo de reflexão, continuou disparando:
O Pedro é homossexual, não é?
Por sorte a comida não chegara ainda e com tal questão, Pedro suspende o gesto iniciado de levar o copo com o vinho branco, aos lábios.
Não obteve qualquer resposta. Porém, Clara não desarmou.
Não tenha qualquer problema. Vamos tratar-nos reciprocamente como pessoas inteligentes e muito provavelmente com algo em comum....
O quê?
Obviamente, o César...
Tem razão. Foi ele quem nos apresentou...
É mais do que isso. O Pedro, com toda a certeza, gosta dele...
Pelos vistos, a Clara também...
Talvez já não deva pôr as coisas nesses termos. E a sua afirmativa meio interrogada foi um sim, não tenho dúvidas...
Clara olhava firmemente o interlocutor nos olhos, enquanto este os baixava, com algum pudor. Ela pareceu-lhe uma mulher decidida. Sentiu não valer a pena mentir. Além disso nunca falara do assunto a ninguém. Sempre se limitara a disfarçar o seu problema. Talvez estivesse na altura de se abrir com alguém ainda que fosse uma espécie de adversário de saias.
Clara continuou:
Pode confiar em mim. Se o fizer, vincula-me ao silêncio. E fique certo duma coisa: esta conversa ficará decisivamente entre nós! De outro modo deixa-me livre para eu especular como muito bem entender!
Pedro respondeu com uma pergunta, já depois de ambos terem iniciado a refeição trazida nesse meio tempo pelo empregado.
É sempre assim tão objectiva e rude?
Só quando não me deixam outra alternativa apesar de poder ser uma pessoa do mais sensível que o Pedro possa ter algum dia conhecido...
Posso ainda fazer-lhe outra pergunta?
É claro que sim.
Ainda anda com o César?
Não. E você?
O César é a minha grande paixão... – respondeu emocionado, depois de alguns segundos de profunda reflexão. - Não consigo resistir-lhe... É quase endémico... E já se arrasta há largos anos... Por ele já fiz coisas de que me envergonho...
Por exemplo?
O homem hesitou.
Desculpe. Conheço-a há pouco mais de meia hora...
Pode confiar em mim, já lhe disse – prosseguiu Clara baixando o tom de voz. - Não me diga que já cometeu algum crime por causa dele?
Mais ou menos...
Não o censuro. Quem sou eu!? Além disso, conheço o César bastante bem. É soberbamente capaz de levar as pessoas a esse ponto, com aquele ar de menino bonzinho...
Tem razão... Infelizmente...
Já que começou, pode continuar. O que fez você assim de tão grave? – insistiu Clara
Descaminhei um processo- confessou, depois de alguma hesitação.
Se calhar, sobre droga...
Como é que adivinhou?!...
Olhe, Pedro. Conheço aquela criatura e hoje em dia imagino-o capaz de tudo: de vigarizar, de roubar e até de traficar droga.
Pois foi por isso mesmo... Já lá vai um bom par de anos... Até já prescreveu...
E nada lhe aconteceu por isso?
Não. Ninguém tinha interesse em trazer o assunto ao de cima. Nem os consumidores e muito menos ele próprio. Era o arguido principal. Houve um inquérito. Mas, graças a Deus, ficou tudo em águas de bacalhau. E se fosse só isso...- prosseguiu Pedro, olhando para a dezena e meia de clientes do restaurante, sentados nas respectivas mesas.
Tem a ver com quê? Mulheres?
Em especial...
Você já foi casado?- perguntou Clara, atenta a uma estranha intuição que se avolumava na sua cabeça.
Já. Tenho dois filhos da minha ex-mulher. É uma situação semelhante à de César, apesar de ele ter outros por aí espalhados a quem nunca ligou.
Também não me surpreende – replicou Clara. - E a sua ex-mulher sabe desta história?
Claro que sabe. Ambos nos apaixonámos pelo César... Depois, o divórcio foi inevitável.
Já calculava...
Foi uma situação muito embaraçosa e difícil.
Imagino! - exclamou ela. - Agora diga-me uma coisa, Pedro! Você sabe com certeza: ele vai para a cama com dezenas de mulheres. É muito bem capaz de ir com outros homens. O Pedro gosta dele, apesar disso?
Já lhe disse, Clara. O César é um veneno. Por outro lado, sabe muito sobre mim e eu dele, também! Um com o outro, fazemos uma espécie de chantagem surda. Nunca vou ser capaz de me libertar... Nem posso... Já imaginou se a minha homossexualidade fosse conhecida na classe dos juízes? Era um escândalo e a minha carreira profissional ficava decisivamente comprometida...
Tem razão - prosseguiu Clara. - É uma profissão com muita história e muita tradição. Mas, já que estamos em maré de confidências, vou fazer-lhe uma: Fui casada com um homossexual... Como vê, o seu assunto não é novidade para mim... E é claro que também deu em divórcio...
A refeição chegara ao fim. O empregado abeirou-se da mesa, perguntando se queriam sobremesa, eram quase três horas da tarde.
Para mim é só um café- respondeu Clara.
Outro para mim.
Estava na hora de irem embora.
Tenho uns despachos para dar- disse Pedro.
Também tenho um compromisso às quatro horas.
Então, vamos?
Desculpe lá, Pedro- justificou-se Clara, enquanto se levantava da cadeira. - Quero arrumar definitivamente o César. Ele, para mim tem sido quase uma obsessão. E quanto a isto, há duas espécies de pessoas: as que deitam a obsessão para trás das costas e as que se consomem nela. Eu pertenço à segunda categoria. Depois, tudo morre sem qualquer sombra de mágoa. Fico pronta para outra. Isto é: sem traumas e continuando a acreditar na humanidade. No dia em que for diferente deixo de ser a Clara Correia Guedes!
Então, vamos embora. Pelo amor de Deus não comente nada disto... - pediu o homem.
Esteja absolutamente tranquilo. Já agora, só mais uma pergunta: por que confiou em mim?
Talvez por solidariedade no amor... Imagino que tenha passado um mau bocado... Sei avaliar bem isso...
Não se vai arrepender. Pode ficar descansado. O César deveria tê-lo feito da mesma maneira. Apesar de a vida dele ser pouco edificante nunca seria capaz de trair a sua confiança se ele a tivesse depositado em mim. Assim...
Bom, até um dia destes...
Adeus, Pedro. Seja feliz. De preferência longe do César...- E Clara sentia-se como se um roto estivesse a falar com um esfarrapado aconselhando-o a vestir-se melhor, pensando ao mesmo tempo, o quão grande é grande a fragilidade humana...
O homem dirigiu-se de novo ao tribunal. Clara foi para o carro estacionado em transgressão a uns quarteirões. No pára-brisas era visível o cartão do polícia onde lhe fora aplicada a respectiva multa.
No gabinete, Clara relembrava a conversa de há pouco enquanto esperava pelo entrevistado. Isabel despertou-a através do telefone, informando-a da chegada do candidato.
Pode mandar subir - ordenou.
Não demorou mais de vinte minutos a entrevistar o homem moreno à sua frente e o relatório para a empresa seria feito ainda nessa tarde. Tinha a certeza de que escolhera o melhor candidato. A sua capacidade de atenção concentrava-se em vários sítios ao mesmo tempo e a diversos níveis, como se o candidato, chamado António Merêncio tivesse o dom da ubiquidade.
Diogo saiu pouco antes das dezoito horas. Ela um pouco mais tarde, depois de ver a agenda dos dias seguintes. Há quase um ano que não ia à sua ginecologista. Sentia-se bem. Mas, estava talvez na hora de lhe fazer uma visita.
Discou o número da clínica. Atendeu a empregada.
Queria marcar uma consulta para a dra. Inês.
Um momento, por favor. Vou passar a chamada.
Não demorou muito a reconhecer a voz da funcionária.
Boa tarde. Fala Clara Correia Guedes. Queria marcar uma consulta para a Dra. Inês – repetiu.- Será que vai demorar muito?
Deixe-me ver a agenda da doutora. Amanhã, tudo preenchido, sexta-feira não há consultas – ia dizendo a senhora, do outro lado. - Está com sorte. Houve uma desmarcação para Segunda. Pode estar cá nesse dia às dezassete e trinta?
Claro que posso.
Fica marcado- confirmou a empregada do outro lado.
Então, até segunda e muito obrigado.
Mal chegou a casa Clara procurou as análises feitas no ano anterior e a ecografia mamária. Tudo estava dentro dos valores normais. Por isso protelara a consulta.
O fim-de-semana passou tranquilamente. César, como habitualmente, deveria ter ido à aldeia. Clara não conseguia ainda alhear-se do Cara de Anjo e das mais recentes descobertas sobre ele. A segunda-feira, no gabinete, também não foi muito agitada. Às dezassete e dez lá estava Clara desesperadamente à procura de estacionamento em mais uma rua de Lisboa, há muito transformada em amálgama de chapa e betão. Por fim, um lugar. Era de parcómetro. Tinha poucas moedas. Talvez a consulta não demorasse muito e o consultório não ficava longe...- pensava.
Na clínica, a sua vez de ser atendida chegou rapidamente.
Boa tarde, dra. Inês – disse ao entrar.
Boa tarde. Há muito tempo que não vinha – observou a médica enquanto via a ficha de Clara.
É verdade.
Há alguma razão especial para vir hoje?
Não. Tirando o facto de lhe querer mostrar os exames e a ecografia. Ambos violados como fazem todos os doentes...
Não tem importância. A curiosidade deles é perfeitamente compreensível.
A médica leu os relatórios.
Está tudo dentro da normalidade. Ou pelo menos, estava. Isto já tem quase um ano.
Sabe, doutora!? – prosseguiu Clara. – Sou daquelas mulheres que só recorrem ao ginecologista quando têm homem. Como não é o caso...
Faz mal. Como sabe, além das doenças graves sexualmente transmissíveis tipo sida ou hepatite B, há as doenças das mulheres, propriamente ditas. Isto para não falar daquelas bactérias e fungos como era o seu caso da última vez... – continuou a médica lendo ao mesmo tempo a ficha à sua frente e toda a prescrição medicamentosa feita a Clara. - A propósito: fizeram ambos o tratamento?
Clara pensou rapidamente na situação: como poderia ela falar de intimidades com um homem que não era o seu marido, nem o seu amante, nem sequer seu namorado? Como poderia ignorar outras mulheres com quem sempre suspeitara que ele tinha contactos? A prova disso, fôra a sua sistemática ida ao médico durante o tempo em que estivera fisicamente com César. Meses, dias e horas reduzidas, não chegariam aos quatro mil trezentos e vinte minutos- ria-se interiormente.
Por fim, respondeu:
Eu fiz. Mas ele nem sequer me deu hipótese, mesmo eufemisticamente, de falar na caixinha do medicamento.
Não compreendo...
Se a doutora conhecesse um homem particularmente activo em afaires sexuais, adiantaria alguma coisa?
Na verdade a cadeia dificilmente se interrompia. Só se a pessoa em questão acabasse com os outros casos...
O que era completamente improvável...
Se é a Clara quem o diz...
Além disso lembrei-me da nossa última conversa sobre o assunto. A total ausência nos homens de sintomas visíveis ou sensíveis nestes casos deixou-me completamente bloqueada. E este, ou outro qualquer, na mais pura machesa, era capaz de pensar ter sido eu a contagiá-lo. Havia logo de me acusar de relações que, na cabeça dele, eu andaria a ter com outros. Então, preferi a omissão. Apesar de ter sido muito dura e contundente com ele.
O que é que lhe disse?- perguntou a médica.
Disse-lhe que, quando acabasse com ele, iria fazer exames à sida. Na verdade já os tinha feito embora não soubesse ainda os resultados. Falei-lhe ainda na vida promíscua dos dias de hoje e na dele em particular.
E ele?
Ficou furioso. A partir dessa altura, se as coisas nunca foram muito doces, avinagraram completamente.
Ao menos não apanhou a sida. Mas, se é assim, vamos repetir as análises! Como deve saber o vírus pode demorar algum tempo a incubar...
Tem razão. Peça por favor as análises. Aqui tem o meu cartão dos serviços de saúde – e Clara fez menção de se levantar.
Espere um pouco – ordenou a médica. - Uma vez aqui, vou examiná-la. Não sei se teria de esperar mais um ano para a observar...
Sorriram ambas. Depois, finalmente, a médica escreveu todos aqueles palavrões relativos às análises a que Clara teria de submeter-se.
Aqui tem.
Estavam praticamente a despedir-se.
A doutora não tem cara de confessora apesar de um consultório ter um pouco de confessionário. Mas, gostava de falar consigo...
Com esse ar tão sério?!...
Por agora não me apetece conhecer seja quem for. Não sou nenhum banco de esperma! – disse, rindo – E se voltar a encontrar um desses homens comandados pelo apêndice visível abaixo da cintura, sequestro-o durante um bom par de meses. Depois, obrigo-o a fazer os testes sem nunca afrouxar a vigia...
O pior que lhe pode acontecer é o desgraçado não passar do primeiro instante... – prosseguiu a ginecologista, em tom de brincadeira.
Não faz diferença. Corta-se logo o mal pela raiz.
Mas, pergunto-lhe eu: onde é que vai arranjar um homem fiel? Mesmo aqueles que parecem não partir um prato são o desterro da loiça!... Hoje em dia, maridos aparentemente fidelíssimos, até se infectam pela via homossexual!... O tráfico sexual não tem limites...
Será uma fuga para a frente?
É capaz. As pessoas, homens e mulheres, andam muito infelizes. E como o sexo é o maior êxtase da vida animal, concentram-se nesses breves momentos. Depois, é o vazio total.
São as confidências das suas doentes?
Algumas. E também a experiência de vida. Agora, deixe-me dizer-lhe uma coisa: Esse seu homem deve ser muito mulherengo...
E homengo...
Não me diga!...
Digo, pois. Ele é muito bonito. Um autêntico Adónis! Com caracteres ambíguos... e já agora, com muito poucos escrúpulos. As mulheres caem-lhe no prato como sopa no mel. E os homens também! Mas, sabe que é que eu penso? É-lhe completamente indiferente! Desde que meta sexo tanto lhe faz serem homens como mulheres apesar de elas funcionarem como testas de ferro. Uma coisa curiosa: a criatura nunca se deve ter enganado pronunciando o nome de uma quando estava com outra. Já imaginou se, em pleno acto, ele me chamasse Joaquina?...
Devia ser engraçado!... – riram ambas. - A cabeça dele deve funcionar à base de esquemas pré-concebidos. E a ser verdade a sua homossexualidade ou bissexualidade como me parece neste caso...
Ora aí está uma coisa que ele nunca assumiria. Às vezes mente para ocultar os defeitos dos outros quanto mais as próprias fragilidades... Depois, constrói toda a vida em areias movediças e quando as patranhas dele são descobertas, se for confrontado com o facto, nega a pés juntos... No meu caso diz que tenho uma grande imaginação!...
Um belo espécime!
Um tratado! Pode crer. A vida dele dava um livro recheado de histórias bem picantes!...
Se a sua imaginação for como ele diz, escreva-o .
Não sei se teria engenho e arte para tanto – continuou Clara.
Não há como experimentar. Talvez seja um best- seller. Quem sabe se não enriquece ainda com isso?! Uma história com muitos condimentos sexuais é sempre muito apreciada na televisão e no cinema. Quer um título? – perguntou com um sorriso.
Diga lá, doutora.
Um Homem e Cem Mulheres!
Isso faz-me lembrar do livro As Cem Maneiras de Cozinhar bacalhau. É um bom título - E Clara juntou as suas às gargalhadas da interlocutora. - Até já estou a imaginar uma corrida das mulheres às livrarias. O pior é se elas descobrem que quando se conhecem certos homens, é assim como quem está a comer o melhor manjar do mundo e a meio da refeição aparece um cabelo no prato...
Pior ainda seria descobrir que se tratava de um pêlo da zona púbica!... – E as gargalhadas de ambas recrudesceram de tom.
Bom, doutora! Parece-me que já lhe roubei demasiado tempo...
Nem pense nisso. Gostei de falar consigo. Faça então os exames e depois marque consulta.
Até á próxima. Desta vez veja se não demora tanto...
Esteja descansada. Não demorarei.! Até à próxima, doutora.
Clara saiu pensando na conversa da médica. Era um pouco mais velha do que ela. Uma mulher morena, bonita, alta e elegante. A bata branca fazia sobressair os olhos castanhos e amendoados numa testa alta Os cabelos negros estavam cortados à altura dos ombros. Possivelmente, também ela teria, pessoalmente, muito para contar sobre os homens.
Deixou a clínica. César estava de novo na sua cabeça. Enquanto isso, lembrava-se da sua capacidade de alquimista. Conhecera um homem de palha e transformara-o em ouro. Agora, precisava de o reduzir a merda.
O calor de verão estalava. Com o seu vestido verde de alças finas sobre os ombros bronzeados, ao passar por um transeunte ainda ouviu:
Comia-te toda, filha.
- Cabrão de merda- pensou. - Os homens não valem mesmo a pena.
No dia seguinte apressou-se a marcar as análises, mesmo antes de ir para o gabinete. Ficaram agendadas para quinta-feira dessa semana. Estariam prontas na terça seguinte às dezoito horas. Chegado o dia foi logo buscá-las. Não por estar preocupada com os resultados. Confiava na sorte muito mais do que César no preservativo. Nunca o usara nos contactos fálico-vaginais de ambos, durante uma boa parte dos quatro mil trezentos e vinte minutos em que estivera com ele. Um dia, César contara-lhe até uma anedota.
- Qual é a diferença entre um maestro e um preservativo – perguntou-lhe ele, dando, depois, a resposta. – É melhor sem, mas é mais seguro com. Na mesma linha, contara-lhe outra: - Qual é mais importante? Uma banda ou uma bunda? – e sem esperar adiantou a solução: - É uma bunda porque tem duas bandas e um buraquinho no meio.
Já no laboratório, Clara abriu o envelope. HIV, Hepatite B, negativo. Pelo telemóvel marcou então a consulta. Na quinta-feira às dezassete horas- informou a empregada da clínica. Depois disso, ficou absolutamente tranquila apesar de a médica aconselhar a repetição dos exames anualmente. Talvez agora pudesse arrumar definitivamente o estropício. Só lhe faltava mesmo conhecer a família e a aldeia onde César nascera. As Sete Cabecinhas. Nessa altura do campeonato era mais coisa menos coisa. Lá mais para diante - pensava. - Entretanto não iria deixar morrer o assunto. Precisava de se alimentar dele. Para isso não havia nada melhor do que fazer uns telefonemas ao lorpa do César. Ele até gostava....
De vez em quando ligava-lhe, então. Nesse dia, apeteceu-lhe maquievelar mais um pouco. Era o mês de Maio, já os dias eram grandes e com horas de verão. Agendou as suas visitas policiais para Junho. A conversa foi a do costume:
Olá! Está bom?
Estou! E você?
Também. Os seus filhos?
Estão bem, obrigado.
E a sua mãe?
Está cá. Veio passar o verão.
E a sua namorada? Temos casamento desta vez? – ironizou.
Não sei.
Ao menos assumiu. Já agora diga-me: ela é floricultora?
Porquê?
Em tempos disse-me que se não precisasse de dinheiro se reformaria e iria para a aldeia plantar tulipas. Como essa nunca foi a sua especialidade, talvez haja alguém a perceber da poda... Por que não a sua noiva?...
César não respondeu e Clara continuou:
Já alguém lhe disse que tinha capacidades hipnóticas?– perguntou, rindo ironicamente.
Não. Essas coisas é só você quem mas diz...
Pois eu penso que tem... Mas, faça algo mais completo... Quando hipnotizar alguém não se esqueça depois de fazer regredir o desgraçado ao estado anterior- disse ela, enquanto o imaginava a esfregar o indicador direito por cima do lábio superior raspando a barba, já que o pigarro na garganta era perfeitamente audível através do telefone.
Esses temas nunca me interessaram.
A mim interessa-me tudo. Quanto mais não seja para me defender de determinadas situações absurdas... Como o facto de me ligar a certas pessoas... tipo, o bem atrair o mal... Sendo certo que o bem sou eu... assim como se fosse uma espécie de lavagem de dinheiro como fazem os traficantes de droga. Não é isso que acontece?
Faz cada comparação...
É a minha fértil imaginação a funcionar. Mas, voltando à hipnose: podia experimentar com galinhas... se desse resultado testava esse seu dom. Não duvido dele...
Deixe-se disso. Não seja ridícula.
Vamos ver quem é ou se torna mais ridículo: se eu, se você. Mas, está bem. Está na hora de desligar. Contudo, vou deixá-lo com um aforismo popular. Nunca ouviu dizer que há pessoas que mesmo usando sapatos o pé lhe puxa sempre para a chinela?! Ou para o soco, digo eu...
César não respondeu e Clara desligou, depois do silêncio gargarejado de César com um seco até qualquer dia.
Enquanto isso, Clara pensava:
- Se os pensamentos do anormal se assemelhassem a ondas hertzianas, de certeza, estaria eu agora a ser engolida pelas cobras e lagartos venenosos, quais ninhos feitos nesta horinha na cabeça do estropício. A minha destruição seria até mais rápida do que se fosse atingida por seres de características vertiginosamente mutantes...
Junho chegou.
Por alturas do Santo António Clara decidiu fazer uma incursão pela aldeia das Sete Cabecinhas. Aproveitou as pontes que o bondoso governo ofereceu aos funcionários públicos. Ficava com mais um pequeno período de férias. Contudo para igualar os servidores do estado ainda lhe faltavam mais ou menos vinte, depois de ressalvado o exagero.
Custou-lhe a dar com a aldeia, no dia em que finalmente iniciou as investigações para lá do Marão. Por fim, acabou por encontrar a placa informativa e percorreu a terra de carro, tentando descobrir qual a casa de César. Mal a viu, sentiu logo que era aquela. Em granito, sobressaía relativamente às outras. Não foi difícil obter a confirmação. E o estropício do César estava lá. Quase se cruzara com ele. Depois, fez algumas perguntas sobre a personagem, a uma pessoa da terra.
É muito educado. Fala pouco... - respondeu o interlocutor.
E a mãe?
Foi para França. Chateou-se com ele.
Porquê?
Por causa de uma namorada do filho. Ela é daqui. E dizem que é,... enfim, a menina compreende...
É a do bordel?
Parece que sim, quando andou lá por Espanha! Mas, já vieram aqui tantas mulheres. Algumas, cada pedaço... Não imagino a ideia dele metido lá com aquela galdéria...
Ele é parecido com quem?
Com a mãe. Julgo eu, embora tenha algumas coisas do pai. No feitio, não. Ela é cá uma malcriada e sobranceira... Noutros tempos teve uma rodagem de se lhe tirar o chapéu!... A filha mais nova nem sequer é do marido. Eles separaram-se, era o rapazito pequenino e a irmã a seguir também. A outra nem sequer existia... Foi feita lá para França. Deve ter agora trinta anos. É a melhorzinha deles todos. E dizem que é de um fulano daqui com quem a mulher foi para o estrangeiro...
Então, se calhar, o filho sai à mãe?!
Quem sai aos seus não degenera... - retorquiu o homem.
Também, deixar assim o miúdo pequenito, não revela lá grande carácter... - continuou Clara.
A vida nesse tempo era um bocado difícil. O rapaz ficou com uma avó e as tias. Depois, andou lá pelo Porto, por Lisboa. Até no Alentejo esteve, com uns parentes. Mas, há qualquer coisa de errado naquela família. O César tem primos que não lhe passam cartão. Alguns formados como ele. Apesar de aqui se dizer que nem o curso de advogado tirou...
Se calhar...
Deixe-me perguntar-lhe uma coisa. Uma vez estiveram aqui uma rapariga e um rapaz, na casa dele. Os três passaram cá uns dias. A moça estava grávida. Seria do César?
Não sei. Mas, se fosse garanto-lhe que não era homem para assumir. A moça, provavelmente fez algum aborto... Ele é um desgraçado. Há-de acabar muito mal. Garanto-lhe.
Se assim é, é muito bem feito. Um homem tem de assumir as coisas boas e más que faz na vida...
Terá ele sido violado em criança? – perguntou Clara, à queima roupa.
Não sei. Foi uma coisa que nunca se constou por aqui. Se foi, é um segredo muito bem guardado... E nesse tempo ninguém ligava muita importância a essas coisas...
E a ex-mulher?
Casou-se muito novinha. Os pais são das Sete Cabecinhas. Não queriam aquele namoro, mas a miúda era doida pelo César. Parece-me até que na altura, ele tinha engravidado outra rapariga de uma aldeia aqui perto. Nunca mais se soube dela nem da criança. Não sei se nasceu se não, se é viva ou morta. Para os Seixas, o casamento da filha única foi um osso duro de roer. Até que a Patrícia e o César se divorciaram. Os pais são pessoas de posses. Vivem no Porto e têm uma imobiliária.
Sabe se ele tem muitos amigos?
Poucos. Só me lembro de ver por aí um juiz. Passam juntos o Natal e a Páscoa. Sobretudo quando a mãe está fora.
Depois de trocarem mais algumas impressões Clara despediu-se do homem, no café onde tomou uma bica. Agora tinha boas informações sobre o estropício: da Carolina, do Vítor, da dona Cidália, do Pedro Roseira e do homem com quem acabara de falar. Só faltava encontrar a ex-mulher e com as informações recolhidas nas Sete Cabecinhas seria fácil. Contudo, talvez fosse difícil uma aproximação com alguém de tão fortes ligações a César. Jurou então, intimamente, que seria a última investida. Começava a aborrecer-se com o facto de César não lhe desligar o telefone. No mínimo, para evitar as suas maquiavelices, já deveria ter mudado o número e torná-lo confidencial. Mas, conhecendo-o tão bem como conhecia, ele, para sobreviver e alimentar o ego, precisava dos cento e um telefonemas de outras tantas mulheres e homens. Enquanto lhe ligassem, era sinal de que se lembravam de si.
Tomou, a seguir ao inquérito, o IP4 para o Porto. Um carro, a grande velocidade, ultrapassou-a. Com a deslocação do ar, uma pedra foi embater no pára-brisas do carro de Clara, deixando uma mossa. Raios partissem o estropício do César. Não fôra ele e nada daquilo estaria agora a acontecer-lhe... – pensava.
Mal chegou ao Porto, ligou à Joana Ferreira, amiga dos tempos de faculdade. Nessa noite iria ficar em sua casa, como combinaram. Dirigiu-se depois ao café Velasquez. Pediu um café e foi buscar a lista telefónica à tabacaria. Procurou primeiro na de assinantes. Eram muitos os Seixas. Decidiu ir pelos dedos como mandava o anúncio das Páginas Amarelas. Lá estava: Imobiliária Seixas & Almeida. Devia ser aquela.
Pagou o café e saiu. Meteu-se no carro estacionado perto. Procurou no papelinho onde apontara o número e ligou.
Boa tarde- cumprimentou.
A voz masculina do outro lado cumprimentou-a, igualmente.
Queria falar com a Patrícia. Ela está?
Não. Está em casa. Quem fala? – perguntou o homem.
É uma amiga- respondeu Clara, que nem sequer julgava estar a mentir. Depois de tudo, o mínimo que exigia dela própria era o respeito pela ex. Aliás, sempre demonstrara isso a César. O máximo seria ambas ficarem amigas se a ela e à família não parecesse pouco ortodoxo. Para isso bastaria apenas todos colocarem os preconceitos de lado. Ela estava agora a fazer isso. E sempre quisera conhecer os filhos do mostrengo. Eram a sua última esperança. Talvez fossem mesmo a única coisa decente daquela vida desaustinada.
Sabe o número de telefone de casa?
Não.
Então, tome nota - disse o senhor, sem perda de tempo.
Obrigado – agradeceu Clara, antes de desligar.
Afinal estava a ser relativamente fácil. Só faltava adivinhar a reacção de todos. Entre os factores negativos existia porém um que lhe poderia ser vantajoso: a curiosidade. Não haveria com certeza muitos dias capazes de proporcionar hipóteses de travar conhecimento com mais uma ex do estropício.
Ligou de seguida. Atendeu uma voz feminina.
A D. Patrícia está?
Está sim. Quem fala?
Diga-lhe por favor que é uma amiga.
Um momento, por favor.
Aguardou alguns instantes até que ouviu outra voz feminina.
Estou!
É a D. Patrícia?
Sou. Quem fala? – perguntou a outra, desconfiada.
Provavelmente, este não seria o único telefonema do género.
Antes de lhe dizer quem sou, gostaria de lhe confessar que não quero de modo algum chocá-la. E, se quiser, pode desligar o telefone deixando assim as coisas. De qualquer modo, o tema é César Augusto...
Logo vi – retorquiu a ex-mulher.
Quer continuar a conversa ou sente-se chocada com a minha ousadia?
Não me sinto chocada coisa nenhuma. Aquele idiota já não me cria qualquer embaraço. Por causa dele, já me aconteceram coisas bem piores...
Como por exemplo?
Isso, só pessoalmente...
Está a sugerir-me para nos encontrarmos?
E por que não?
Parecia-lhe uma mulher decida. Igualzinha àquelas de que César não gostava. Tal como a woman in red e ela própria. E, se algum dia a achara burra por tê-lo soltado às predadoras, essa ideia acabava de ser dissipada. Deveria ter tido certamente razões muito fortes.
Diga quando. Moro em Lisboa mas hoje e amanhã estou no Porto.
Ah! Lisboa...
Sim. Porquê?
É o terreno do anormal... Lá, já andou com dezenas de mulheres. Mas, está bem. Pode ser amanhã da parte de tarde?
Claro que sim. Os seus meninos estão por aí?
Estão. Não há problema. O Rodolfo não se importa minimamente com o pai. Cresceu praticamente longe dele. Com a Denise é um pouco mais complicado. Ela adorava–o. Hoje em dia, está profundamente desiludida. Já tem dezasseis anos. É uma mulherzinha e fica muito triste com certas coisas...
Então, pensa que podemos ?
Sim. Pode vir cá a casa. Sabe onde é?
Não!
É na Avenida de Antunes Guimarães, 3009.
Então, está bem!
Até amanhã.
Até amanhã, Patrícia. E veja por favor a questão da Denise. Sei que o pai é o Deus de qualquer filha. É da psicanálise...
Depois do telefonema, como combinara com a amiga Joana, Clara esperou por ela à porta de casa na Rua de Damião de Góis. Já não se viam há uns tempos. Joana estava só com Tomás, o filho mais novo. O marido, médico oftalmologista, fôra a Cuba a um congresso sobre a especialidade, onde estavam avançadíssimos na cirurgia a doentes retinóticos. Hélder, o mais velho dos rebentos, estudava química em Oxford. Quanto a Helena, a do meio, tirava engenharia do ambiente na Universidade do Algarve.
A amiga chegou cerca das seis horas.
Então, mulher. Bons olhos te vejam...
Tens razão... Tu estás óptima.
E tu um pouco mais magra - disse Joana.- Não que te fique mal...
É...
Então? O que fazes no Porto?
Se te dissesse, não acreditavas...
Ai é! Conta lá isso! Quero saber tudo! De amores, de trabalho, tudo, tudo! Não me escondas pormenores!
Está bem. Vamos jantar fora?
Não. O Tomás é um bocado esquisito para comer. Vou fazer um lombo de porco assado, ficamos por casa.
Se preferes assim...
Conversamos enquanto faço o jantar.
Está bem. E o teu dia de trabalho?
Lidar com miúdas fora da lei não é fácil. Hoje, fugiu uma lá do instituto. Foi um corre-corre a contactar os familiares e a polícia. Mas, não é coisa a que não esteja habituada. O Instituto de Reinserção Social é muito versátil em casos humanos.
A conversa decorreu no elevador. Joana meteu, entretanto, a chave na porta de casa. Tomás já estava lá. Cumprimentou o filhote, um rapazinho de treze anos. Clara deu-lhe um beijo de seguida.
Olá Tomás! Cresceste um bocado! Estás mais alto do que eu! A tua mãe não te proibiu já de crescer? – perguntou Clara, em tom de brincadeira.
Não – respondeu o miúdo, sorrindo,
E os teus irmãos?
Estão bons.
Vêm em meados de Julho passar as férias. A Helena talvez ainda venha antes. O Hélder, não - interrompeu a mãe.
O garoto voltou para o escritório. No computador, retomou o jogo, interrompido com a chegada de ambas. As duas foram para a cozinha.
Então, Clara, tens visto o Paulo?
Foi pessoa que nunca mais vi. Escafedeu-se completamente. Mas, os meus problemas agora são outros... - e Clara relatou à amiga as peripécias amorosas dos seus dois últimos anos.
O tempo passa tão depressa, Clara.
É verdade.
Então, agora vais conhecer a ex-mulher do criaturo?! Tens cá uma pontaria!...
Isto tudo é para ganhar direito à minha alma gémea que deve vir por aí a caminho... - disse Clara, sorrindo.
E o que esperas do teu encontro de amanhã?
Conhecer a família que o estropício teve e por que levou com os pés. Depois, este assunto ficará tão enterrado e tão fundo como os antípodas deste jardim à beira-mar plantado. Talvez o Cara de Anjo ganhe até o estatuto de uma nova espécie de aborígene, semelhante aos da Nova Guiné, passe o respeito que tenho pela natureza.
És muito maluca - riram ambas.
Mudando de assunto, quando é que vem o Gonçalo?
Daqui a dois dias.
Não querem ir passar um fim-de-semana a Lisboa? Ainda não viram a nova casa. Agora tem cómodos para toda a gente. Não precisam de ficar no hotel.
Vamos combinar isso.
Sabes uma coisa? Com esta história do César, afastei-me um bocado dos amigos. Está na hora de me reaproximar deles outra vez.
Logo que o jantar ficou pronto, foram os três para a mesa. Acabaram de comer perto das nove e meia. A conversa entre ambas prolongou-se até à meia noite, altura em que foram para a cama. Clara dormiu no quarto de Helena, a filha ausente.
De manhã, acordou com um cheiro a torradas. Levantou-se e foi à cozinha onde a amiga tomava o pequeno almoço.
Bom dia!
Bom dia! Dormiste bem?
Assim, assim...- respondeu Clara.
Que vais fazer de manhã?
Vou dar umas voltas por aí.
Queres almoçar comigo?
Não, obrigado. E o Tomás?
Vai almoçar a casa dos avós. A minha mãe não passa sem dar o almoço ao netinho. Mas, quando vais para Lisboa?
Logo a seguir ao meu encontro.
Então, está bem.
Vais já sair?
Vou.
Saio a seguir.
Não te preocupes. Sais normalmente. Depois, o Tomás fecha a porta à chave.
Ok. Obrigado por tudo.
Telefona- pediu Joana, despedindo-se de Clara.
Está descansada. Eu ligo-te. E obrigado por tudo, mais uma vez.
Às dez horas estava Clara na rua. Tomou café na Avenida da Boavista. Almoçou no Cidade do Porto. Às catorze horas ligou à Patrícia.
Então, posso ir?
Pode. Os miúdos estão em casa e eu tirei folga da parte de tarde.
Não demorou muito estava a tocar à campainha da porta da Patrícia. Abriu-a a empregada. Clara vestia um macacão azul de alças finas. Por cima, levava igualmente uma parca azul, de verão. Sempre gostara de uniformidade na cor. Sentia-se mais alta. Atrás da empregada vinha uma mulher dos seus trinta e tal anos. Era sobre o moreno, um pouco mais alta do que Clara. Recebeu-a sem cerimónia, vestida com uns calções cor de mel e uma t-shirt de cor idêntica. Cumprimentou-a, seguida pela mãe que chegou nesse meio tempo, uma senhora dos seus cinquenta e poucos anos. Não se sentiu macaquinho. A sensibilidade das três fôra suficiente para não deixar transparecer isso.
Olá, Patrícia!
Olá! Como está desde ontem?
Bem. Apresento-lhe a minha mãe!
Muito prazer. É a D. Luciana? – perguntou Clara, ciente da resposta. - Falaram-me da senhora nas Sete Cabecinhas. Estive lá ontem.
E falaram bem ou mal?
Falaram dentro do contexto que me traz aqui: o César Augusto, ex-marido da sua filha!
A Clara foi mais uma das que tiveram o azar de se cruzar com o ilustre doutor César, como já lhe disse, mãe - informou Patrícia.
Podia ter mais sorte. É uma mulher bastante interessante.
A sua filha também. Mas, para ele tem um defeito. É inteligente. Come-lhe as papas na cabeça...
Não diga isso - interveio Patrícia. - Durante muito tempo comportei-me como uma idiota.
Ora aí está uma coisa comum a ambas. Também fiz a mesma figura...
Estavam agora as três sentadas numa sala de estar ampla e bonita. Clara virou-se para Patrícia:
Por que é que se divorciou do César?
Por causa das mulheres.... Tinha mais de cinquenta... E de outras coisas mais...
Na aldeia, disseram-me que ele, na altura do vosso casamento, tinha engravidado uma rapariga perto das Sete cabecinhas...
Ah. Isso foi antes. Andava ele a estudar aqui no Porto, no Instituto Comercial...
E a criança?
Eram duas. Dois gémeos. Deixaram-nos morrer como às meninas da China. Nasceram prematuros. Enfim... Mas os verdadeiros motivos começaram quando recebi uma carta cá em casa, de uma fulana. Ainda anda por aí. Se quiser pode lê-la... Era de uma tal Nise. Nessa altura descobrimos a razão do nome da Denise. É o dessa fulana. A carta era o cúmulo da paixão: meu adorado amor para cima, meu adorado amor para baixo...
Não deve ter sido nada agradável confrontar-se com isso, calculo...- continuou Clara.
Nem me quero lembrar – anuiu Patrícia.- Estava eu grávida do Rodolfo. Sofri como uma condenada. Até tentei o suicídio. E mais do que uma vez. Mesmo depois de ter os dois miúdos... Foram os piores anos da minha vida...
Mas, agora está curada!?
Felizmente. Apesar do problema de saúde que tive há cerca de um ano...
Como é que vai isso?
Bem.
Um dia- prosseguiu Clara – encontrei o César no Marão. Sabe o que me disse ele com ar de júbilo?
Não. Mas, não deve ter sido grande coisa. Daquela cabeça perversa pode-se esperar tudo.
Disse-me que a Patrícia não podia ter mais filhos. Deu para perceber assim uma coisa deste género: pode andar com quantos homens quiser; filhos só mesmo os meus...
As coisas, no início, até apontavam para aí. Mas, graças a Deus, nada disso aconteceu. E de filhos estou muito bem servida apesar do anormal do pai. Além disso, ele liga-lhes pouco! No penúltimo aniversário da Denise, cá em casa, nem sequer foi capaz de lhe trazer uma prenda. E quando ela fez dezasseis anos foi festejá-los com os amigos. Já não me lembro se o pai lhe telefonou ou não...
Sabe o que é que eu pensava?- continuou Clara- Pensava que a Patrícia era da idade dele. Provavelmente o amor da sua vida... Talvez o César não conseguisse gostar de mais ninguém. Julgava eu... É uma das razões por que estou agora aqui...
Qual quê? Ele é lá capaz de gostar de alguém! É um egoísta e só olha para o umbigo. Além do mais, é pouco honesto...
Tem razões para dizer isso?
Então não tenho? Quando trabalhava na empresa, se era ele a fechar o caixa, quase sempre faltava dinheiro: cinco, dez contos. Depois, confrontado com a situação, dizia que nós não sabíamos contar. Acabava por repô-lo...
Era um ladrãozito porco- continuou a D. Luciana.
Mas, ao menos deixou algo de bom! Os seus netos. A propósito, onde é que eles estão?
Estão perto. Não demora e estão a aparecer para lanchar.
Não demorou efectivamente muito. À porta da sala assomou Rodolfo, seguido por Denise.
Aqui estão eles.
São tão bonitos- disse Clara, dando dois beijos a cada um - Já os conhecia através de fotografias. Mais pequenitos.
Os miúdos eram ambos extraordinariamente parecidos com o pai. Altos e elegantes, assemelhavam-se a autênticas fotocópias do progenitor, embora temperados com alguns ares da mãe. A garota parecia uma top model. O cabelo, cortara-o recentemente, deixando à mostra uma cara mimosa. Os olhos eram verdes como os do pai. O sorriso era o mesmo. Doce, esperava ela, de mel verdadeiro, porque de mel falsificado bastara-lhe o do Cara de Anjo do pai.
Esta é a Clara! – e D. Luciana informava a neta - Conheceu o teu pai. Agora compara-a com a mostrenga da fulana que, pelos vistos, vais ter como madrasta. É para veres por quem ele a trocou...
A garota nada disse. Passados instantes saiu da sala, acompanhada do irmão. A conversa prosseguiu entre as três.
Ele ainda anda lá com a outra?
Anda. É um amor louco - continuou a mãe de Patrícia. - Na aldeia dizem que é o amor da vida dele. O Rodolfo é que o goza, imitando-o a chamar-lhe querida quando estão zangados e ele tenta fazer as pazes. - Ó querida, mas eu gosto muito de ti. Não posso viver sem ti, meu amor, - contou-nos ele outro dia, depois de ter assistido a um telefonema do pai. Rimo-nos imenso!...
Ó mãe! A mãe ainda acredita nisso? Ele é lá capaz de gostar de alguém? Aquele fulano não dá ponto sem nó. Deve ter alguma fisgada...
Será que ela tem dinheiro? – perguntou a senhora.
Deve ser uma questão de segurança - retorquiu Clara. - O César está a caminho dos cinquenta. Um dia disse-lhe tantas... Lembro-me de lhe ter perguntado o seguinte: - Se o vir numa valeta caído, quem quer que avise? Chateou-se com a sua mãe, os seus filhos têm vergonha do pai. Quem hei-de avisar?
Sim! Casando-se com a serigaita, ao menos tem quem lhe faça o enterro. E ele até dava um morto bonito- prosseguiu D. Luciana enquanto as três continuavam a conversar, rindo.
Assim não envergonhava as pessoas. Muito menos os filhos e especialmente a Denise – disse Patrícia. – Mas, não temos essa sorte...
E as mulheres? Já alguma teve coragem de fazer o que eu fiz vindo aqui?
Não. Apenas tenho falado algumas vezes com a Carolina. A Ivete, agora vai perder o estatuto de noiva, coitada! Dizia que se completavam um ao outro - ironizou de novo Patrícia. - A última é que tem muito bom gosto...
Ai sim...
Quem goza com ela é o Rodolfo. Outro dia virou-se para mim e disse: Ó mamã! Havias de a ver! Ela com um vestido cor-de-rosa com uma alça mais fina do que a outra. Trazia um penduricalho ao pescoço a cair-lhe nas mamas, de braço dado com ele! Ainda por cima queriam que eu fosse com eles a um concerto de música pimba!- Fartei-me de rir - e Patrícia ria-se, de novo, ao imaginar a cena.
Ela é loura ou morena?
É loura oxigenada.
Então é ela que ultimamente tem ido lá a casa em Lisboa. Disse-mo a vizinha de cima. Já lhe contou umas oitenta e tal mulheres, contando comigo, claro. Falou-me de coisas do arco-da-velha. Até insinuou que ele fazia orgias, pelo menos com várias mulheres. Talvez até com homens...
Não acredito - atalhou Patrícia.- Mas, já nem sei...Quem é capaz de traficar droga...
Isso é mesmo verdade. Depois de falar com uma certa pessoa, fiquei absolutamente certa.
Com quem?- perguntaram ambas.
Prometi que não revelaria. É demasiado grave. Já agora digam-me: ele tem alguns amigos?
Tinha um de S. João da Madeira. Era advogado. Depois de sair de casa ofereceu-me ao dito amigo...
Foi capaz de fazer isso?
Claro que foi. É um ordinário. Se a Denise soubesse destas coisas todas... A gente esconde-lhe o mais possível. Mas, ela já começa a perceber certos pormenores...
E um tal juiz? falaram-me dele na aldeia...
É outro dos amigos dele. Um tipo um pouco efeminado.
Nenhuma delas sonhava a conversa de Clara com Pedro. Era uma das tais coisas que nunca iria revelar. O tempo encarregar-se-ia de demonstrar as evidências, relativamente camufladas até então.
Decorridos uns instantes Patrícia levantou-se saindo do aposento. Demorou um bocado. Quando regressou, Clara, estranhando a ausência de Denise, perguntou por ela.
Está no quarto a chorar.
Pelos vistos não devia ter vindo cá a casa. O que é que ela disse?
Desculpe a franqueza, Clara. Está furiosa connosco. Diz que a Clara é mais uma e que nós estamos aqui derretidas, todas contentes, a prestar-lhe atenção...
Por muitas voltas que o mundo dê o César não deixa de ser o pai dela. É compreensível...
Clara ficou de repente silenciosa. As lágrimas que há algum tempo andavam escondidas começaram agora a escorrer-lhe cara abaixo. Afinal ainda tinha alguma sensibilidade. Não se tinha transformado numa durona como lhe dissera Diogo. E o que mais ninguém conseguira conseguira-o agora uma garota de dezasseis anos magoada com as leviandades do pai.
Deixe lá, Clara. Amanhã passa-lhe – apaziguou a mãe de Patrícia. - Nunca esperámos que ela reagisse desta maneira. Agora já são duas a chorar cá em casa. Oh!...
Está talvez na hora de me ir embora - continuou Clara disfarçando as lágrimas. – Mas, antes, gostava de pedir-lhes um favor.
Diga lá...
Conheci o César há relativamente pouco tempo. Precisava de saber como era ele quando se casou com a Patrícia. Seria possível ver as fotografias do casamento?
Se isso é tão importante para si...
É um bocado. Gostaria muito de conhecer a pessoa por quem a Patrícia se apaixonou e compará-la com aquela por quem eu nutri sentimento idêntico.
Vamos a isso- atalhou D. Luciana, indo buscar o álbum.
Com ele na mão, Clara olhava para as fotos da noiva.
Tem uma cara triste- observou.
Pudera! O pai e eu, de véspera, chateámos-lhe o juízo. Dissemos-lhe que ainda estava a tempo e que ele não passava de um chulo do Cais do Sodré. E ela nem sequer grávida estava. A Denise nasceu passados dois anos.
De repente aparece a primeira imagem de César. Estava trombudo, com o cabelo a cair-lhe sobre a testa bronzeada.
Se o conhecesse nesta altura não lhe ligava patavina... Tem ar de insosso. Ah! Já me esquecia de lhes perguntar uma coisa: ele é licenciado em Direito ou não?
Essa foi mais uma das patranhas dele. Dizia que estava matriculado. De vez em quando ia a Lisboa para fazer exames. Gastou-nos muito dinheiro em bons hotéis. Quando demos conta nem a matrícula tinha feito. Ia ter com as mulheres. Nessa altura já tinha trinta e dois. Passava semanas inteiras fora de casa e nós a pagarmos forte e feio- continuou Patrícia.
Fecharam o album.
Bom. Está talvez na hora de ir embora. Não quero que a Denise me encontre aqui.
Está bem, Clara. Desculpe lá a garota.
Não tem que pedir desculpa. É uma atitude compreensível. Afinal eu sou, fui uma das rivais da mãe. Embora, do meu ponto de vista não tivesse culpa nenhuma. Ele era divorciado e eu não estava a fazer sombra fosse a quem quer que fosse...
Tem razão.
Já agora, só mais uma pergunta: a mãe do César é assim aquela coisa que me deram a entender nas Sete Cabecinhas?
Não a conhece?
Não.
Nem à irmã a seguir ao César?
Não. Ele disse-me que as irmãs eram mais velhas...
Deve ter vergonha delas. Uma é bem parecida com ele. Em tudo. O César, se não fosse homem, era de certeza prostituta...
Partilho da mesma opinião. E o pai?
Foi-se embora da aldeia depois de uns bons pares de chifres. De seguida começou a beber. Morreu há poucos anos com uma trombose no mais puro abandono. Mesmo assim, o César ainda anda a usufruir da reforma dele. A mãe deu-lha. São sessenta e tal contos. O homem morreu num lar. O desgraçado do filho nunca o foi ver uma única vez e no funeral nem uma flor lhe levou...
Isso já me chegou aos ouvidos. Bom. Não quero ouvir falar mais nada daquele idiota. Hoje, pus decididamente um ponto final no assunto. Sabe que ele chegou a dizer-me muitas vezes que a vida dele dava um filme?
Ah! Uma altura andou com a mania de escrever um livro. Mas, as únicas páginas que escreveu foi sobre as mulheres, no sentido literal do termo – informou Patrícia, a rir.
Acabou! Definitivamente! Não quero saber mais nada daquele estropício!
Faz bem. Comigo passa-se a mesma coisa. O único elo de ligação são os miúdos.
Até qualquer dia! Cuide bem de si, Patrícia! O anormal que se dane! Quanto à Denise, tenha paciência. Ela há-de acabar por deixar de sofrer...
Despediram-se as três.
Mais uma vez, obrigado. E desculpem a ousadia.
Não se preocupe. Vá ligando. Ainda havemos de ir juntas ao funeral daquele bandalho!- rematou Patrícia, sorrindo.
Clara saiu metendo-se de seguida no carro, rumo a Lisboa.
- Acabou-se! Definitivamente! - pensava.
A noite ia caindo por entre as árvores que ladeavam a auto-estrada. Sempre gostara de auto-estradas. Naquele dia, se pudesse, iria sem destino para qualquer lugar do mundo onde pudesse ficar livre de todo o género da espécie humana.
Lembrava-se do Paulo, seu ex-marido. Fôra mais uma charada da sua vida sentimental. Jejuara durante longo tempo até lhe aparecer um sacana do calibre de César. Valeria a pena? Não havia de certeza qualquer homem digno de ver nascer mais uma ruga que fosse no seu rosto nem ver o prateado dos seus cabelos a que, como toda a gente, não podia escapar. O mundo era demasiado predador. Era o dinheiro, a sobrevivência e sobretudo o maior e silencioso opressor: o tempo.
Já o pôr-do-sol se adivinhava lá longe quando Clara chegou. Entrou em casa. Apetecia-lhe vendê-la. O estropício conspurcara-a com a sua estadia lá. Agora, queria esquecê-lo de uma vez por todas.
Se o esquecimento pudesse ser comprado empenhava-me até à raiz dos cabelos – dizia em voz alta. Assim, teria de dar tempo ao tempo como lhe dissera um dia o promíscuo do Cara de Anjo. O trabalho era sempre uma boa terapia. Iria embrenhar-se completamente nele até aquele cabrão não ser mais do que uma ténue sombra. Talvez fizesse uma viagem... Ao Tibete. Andava com vontade de conhecer outras civilizações. A filosofia budista começava a interessar-lhe. Quem sabe se não iria inscrever-se numas aulas de meditação transcendental?! Sempre tivera uma certa curiosidade pelas tradições orientais. Estava farta de tanto materialismo, de tanta aleivosia e de tanto cinismo - pensava.
Nove horas da noite e Clara, em casa, estava mais uma vez lucubrando. Tirou do frigorífico um pedaço de queijo. Partiu-o aos pedacinhos colocando-os entre duas bolachas de água e sal. Fez sete sanduíches que comeu de seguida. Depois, aqueceu a sopa e quando acabou de a ingerir subiu ao quarto. Despiu-se e tomou um banho antes de se deitar. Lembrava-se do concerto inicial na fundação quando conheceu o Cara de Anjo. Apetecia-lhe voltar lá, desta vez para ouvir o Requiem que Mozart compusera para um nobre austríaco e que lhe serviu depois para o seu próprio enterro, segundo o filme Amadeus. Imaginou a orquestra e os músicos vestidos de negro sacando dos instrumentos as notas fúnebres da morte. Ouviu a peça pensando no estropício do César, agora morto para si. Era dar-lhe demasiada importância. Mas, convenhamos - dizia intimamente - esquecermo-nos das pessoas nunca foi tão fácil como desligar um botão de uma qualquer máquina desespiritualizada. O tempo faria o resto. Carolina também o conseguira varrer dos pensamentos e numa situação bem mais dramática, vendo-o todos os dias e com as ameaças constantes de ser despedida quando ele ainda se sentia o dono do mundo.
Agora, César não passava de um merdas. Andava por aí aos caídos desprezado por todos até que a sorte lhe colocasse de novo nas mãos mais alguns lorpas para explorar, como sempre fizera. A Isaura, a noiva recente, talvez fosse mesmo o grande prémio do grande César Augusto reduzido finalmente a esterco pela lei da causa e do efeito. Era o testo para a sua panela. Se calhar, no melhor lampejo de raciocínio que alguma vez lhe fôra conhecido, ele próprio tivera a consciência de não merecer ninguém melhor do que ela. Haja Deus! - reconfortava-se.
No fundo e no mais puro deísmo – pensava Clara- Deus estaria com toda a certeza a escrever direito por linhas tortas. Finalmente, já restaurara o bom conceito que sempre tivera de si própria. Lembrava-se de uma conversa que teve em tempos com uma amiga. Ela ensinara-lhe nessa altura a pedir muito e a nunca se contentar com pouco. César fôra isso. Demasiado pouco. Via-o agora claramente. Não tinha sido por acaso ou má sorte que sempre fôra abandonado por todas as mulheres. Era um homem demasiado primitivo. Igualzinho aos do período da pedra lascada. Não fôra o facto de viver numa era virtual sofrendo algumas das suas influências sociológicas e técnicas, andaria ele por aí puxando as mulheres pelos cabelos, de moca na mão, na mais rude demonstração de poder. Afinal, sempre procedera assim. A moca era outra. Tinha-a escondida entre as pernas virada à esquerda por convenção dos alfaiates que estipularam, mal descobriram as calças, deixar nesse lado um pouco mais de pano para encobrirem essa excrescência chamada pénis e baptizada milhares de vezes pelos séculos fora com nomes pouco ortodoxos. E não fora a invenção das calças de ganga unisexo, tudo continuaria igual.
Pegou no livro Conversas com Deus e releu uma passagem ao acaso, antes de adormecer, rememorando-a enquanto o sono tardava.
Até que se aquietou.
- Dai-lhe Senhor o eterno descanso.
Entre o esplendor da luz perpétua, descanse em paz.
Amen.
O cigarro apagara-se completamente. Clara resolveu por fim entrar no cemitério. O caixão estava prestes a descer à cova. Abeirou-se da sepultura e, com alívio, lançou para lá o saco que levara na mão, virando as costas.
Com cara de espanto, o coveiro abriu-o, vendo um fato de homem, uma camisa, uns boxers e umas peúgas, tudo por estrear.
- Estranha mortalha – pensou o homem.
Clara sonhara com o dia em que César dormiria em sua casa e na surpresa que gostaria de lhe ter feito de manhã, ao acordar, com tal presente. Porém, esse dia nunca chegou.
Depois de sair do cemitério dirigiu-se para o carro. Deixou-se ficar um pouco, pensativa. Morrera o bicho, acabava-se a peçonha. De repente, alguém lhe tocou nos vidros agora translúcidos pela água da chuva que desatara a cair copiosamente. Era Denise. Vira-a e fôra ter com ela. Abriu a porta à garota, que entrou logo. Estava chorosa e abatida.
Desculpe, Clara! Tinha de falar consigo...
Ó Denise! Talvez não seja a hora. Estás muito abalada. O teu pai acabou de ser enterrado. Deixa para outra altura.
Primeiro tenho de lhe pedir desculpa...
Não fales no assunto. Não teve qualquer importância...
Tenho uma coisa para si- disse por entre as lágrimas que começaram de novo a rolar-lhe pelo rosto. – Foi o meu pai quem me pediu para lha entregar.
O que é?
Não sei. Deu-ma um dia antes de morrer, no hospital. Fui a última pessoa a estar com ele – e Denise chorava, afagada por Clara.
Tiveste oportunidade de conversar com ele?
Tive. Falei-lhe das coisas que ouvi em criança por causa dele.
Como, por exemplo?
Uma vez, uma miúda zangou-se comigo. Disse que não me ligava a mínima importância porque não tinha pai. Foi uma coisa que nunca pude esquecer...
E ele?
Disse-me que gostaria de ser capaz de pedir desculpa, mas que não nascera para isso. Disse-me também que a ele a vida nunca o desculpou...
E quanto à tua mãe, falou alguma coisa?
Não.
Então, porquê eu?
Também lhe perguntei. Perguntei-lhe ainda se gostava de si ou se alguma vez tinha gostado...
Obviamente, respondeu que não!?
Foi isso mesmo - confirmou a garota.
Então, porquê isto agora?
Não sei.
Onde é que tens a tal coisa?
Está no carro da minha mãe. São uns papéis. Vou buscá-los.
Está a chover muito. Entregas-mos noutra altura.
Não. Já que a Clara veio ao funeral, entrego-lhos agora- replicou ela entre lágrimas já um pouco mais secas.
Vou contigo. Tenho aqui um guarda-chuva pequeno – disse Clara, enquanto lhe acudia uma ideia. César era tão vaidoso que era bem capaz de querer transformar a sua vida num livro. Queria, sem sombra de dúvida, tornar-se imortal pela via da escrita. E Clara lembrava-se da conversa com a Patrícia bem como do livro que um dia ele quisera escrever.
Então, venha. Vamos ter com a minha mãe- sugeriu Denise.
Saíram, abrigando-se no chapéu de chuva de Clara. Percorreram a distância que as separava do carro de Patrícia onde esta se encontrava com o Rodolfo e a avó de ambos. Mal as viu, Patrícia apressou-se a abrir a porta e a pegar num envelope de papel castanho, entregando-o, quase logo, a Clara.
Olá, Patrícia. Acabou tudo- comentou ao entrar na viatura.
Patrícia não respondeu mas a consternação era bem visível no seu rosto.
Para o bem e para o mal- respondeu, finalmente. - Mal sabíamos nós que de facto assistiríamos juntas ao funeral dele. Nós e mais umas quantas... Não viu a Isaura?- perguntou.
Não.
Estava no cemitério. Por sinal está magra e com muito mau aspecto. A Ivete também estava lá.
Qual foi a causa da morte?
A Clara não sabe?
Não. Apesar de desconfiar. Foi a Carolina a informar-me e nessa altura, ambas, fizemos umas suposições... Se calhar, confirmaram-se...
Foi hepatite B. O desgraçado tanto brincou com o fogo que acabou por se queimar- disse com alguma indignação.- Não se preservou minimamente...
Com a morte dele sente algo em especial?
Apenas alívio. Principalmente pela Denise. Ela sofria imenso por causa do pai.
A garota, no banco de trás, limpava as lágrimas que continuavam a rolar-lhe pelo rosto. A mãe virou-se para trás, tentando reconfortá-la.
Deixa lá, filha. Tens dezasseis anos e o mundo inteiro à tua frente. Hás-de ter outras coisas boas na vida, capazes de te fazerem esquecer o que agora te faz sofrer tanto – e afagava-lhe os cabelos molhados. A avó fazia-lhe a mesma coisa. Rodolfo chorava também, mais com pena da irmã do que do pai, acabado de enterrar.
A chuva continuava a cair e Clara perguntou a Patrícia:
Conhece o conteúdo do envelope?
Não. Não tive coragem de o abrir. Além disso, é-lhe dirigido.
Quer ficar com ele?
Nem por sombras. Apesar das mágoas que me deixou, respeito a vontade dele enquanto moribundo- respondeu.
Mas, ao menos desconfia?- perguntou Clara.
Deve ser sensivelmente na linha da nossa primeira e única conversa. Isso é o livro possível que ele conseguiu escrever... De certeza....
E o que faço eu com isto depois de o ler?
É seu. Pode ser o tal livro...Se entender que vale a pena, procure um editor...
Mesmo que o conteúdo seja eventualmente chocante?
Apesar disso... Se ele quis finalmente revelar-se...
Mas, não será uma loucura?
Talvez... Talvez ele fosse mesmo um louco... Um louco que quase me enlouqueceu...
Está bem. Se descortinar alguma intenção de César nesse sentido, procuro alguém disposto a publicá-lo – anuiu, finalmente, Clara.
Depois de se despedir dos quatro abriu o chapéu de chuva vermelho, de emergência. Saiu do carro e dirigiu-se para o seu. Manuseava o envelope castanho interrogando-se sobre o que havia lá dentro. Nele estava escrito, simplesmente, Clara.
Qual seria na realidade o objectivo de César? – continuava a interrogar-se.
Por fim, após uns segundos de inquietação, decidiu-se a abri -lo. No cimo da primeira folha de papel A4 manuscrita pelo falecido estava escrito algo que a arrepiou:
Era mesmo isso.
César, na sua cabeça mais engelhada do que uma rodilha, deixava-lhe algo parecido com umas memórias escritas possivelmente no leito de morte.
Prosseguiu a leitura, enquanto a chuva, esmorecendo, caia indiferente e calma, como a morte fresca, no cemitério ao lado.
Chamo-me César. César Augusto Pinto e nasci numa aldeia chamada Sete Cabecinhas, tenho quarenta e sete anos e faço, fazia anos no mesmo dia de Mozart, vinte e sete Janeiro.
A minha mãe chama-se Ilda e disse-me que fui feito no coro da igreja lá da aldeia, sobre uns sacos de cimento. O meu pai era ajudante de trolha. Abandonou-me praticamente quando eu tinha seis anos depois de a minha mãe lhe ter posto os chifres, logo após a nossa chegada de Angola, para onde fui com cerca de três meses. Chamava-se Augusto Pinto. Foi para a aldeia a fim de restaurar a igreja de Nossa Senhora das Sete Cabecinhas, dois anos após um ciclone que a fez desmoronar.
Talvez por isso sempre tivesse tido uma enorme fascinação por cristos e igrejas. Mas nem por isso tive grande protecção dos santos. Tenho hepatite B e vou morrer. Esta maldita doença não perdoa. E por ironia do destino fui contagiado pela única mulher a quem fui fiel na vida. Tanto que estava prestes a casar-me com ela. Seria o meu segundo casamento. Ela ainda não sabe. Mas, eu tenho a certeza. Antes dela tive um caso com outra mulher. Chamava-se, ainda se deve chamar, Clara. Aliás, é a destinatária destas confissões. Não deve ter morrido ainda, espero bem. A Clara sabe muito bem o que fazer com elas. Quem escreve alguma coisa é porque gostaria de ser lido por alguém...
Um dia a Clara, furiosa comigo, disse-me que era seropositiva. Não acreditei. Era uma pessoa saudável. Na dúvida, contudo, fui fazer os testes. Estava limpo. Mais tarde revelou-me ser tudo invenção. Já lhe tinha pregado tantas patranhas... Quis vingar-se de mim e assustar-me. No mínimo conseguiu levar-me a fazer os exames. Nessa altura comecei a pensar nos riscos que corria andando com tantas mulheres de algumas das quais mal sabia o nome.
Depois, conheci a Isaura e nunca mais fui para a cama com outra. Não por gostar dela. No final das contas é tão ou mais puta do que as outras apesar de eu não ter admitido à minha mãe que dissesse tal coisa. Disse-lhe para olhar primeiro por si abaixo. Mas, era uma questão de segurança. Como a Isaura é bastante mais nova, na velhice, queria ter alguém que cuidasse de mim. Agora, já nada disso é preciso...
Passados uns meses de andar com ela comecei a sentir-me doente. Fui ao médico e o diagnóstico foi inequívoco: hepatite- B, mais contagiosa e mortal do que a sida.
Agora, mesmo ao lado, vejo a puta da morte. Finalmente, ela vai acabar com a vida estuporada que sempre tive.
A minha bisavó materna era cigana, oriunda da Hungria. No último quartel do século passado foi para Espanha. Depois veio para Portugal com o acampamento todo. Acamparam em Montalegre onde conheceu o meu bisavô António que se apaixonou por ela. Dizia-me a minha mãe que ela era uma mulher bonita e de sangue quente. Tinha olhos verdes. E da minha bisavó, passadas quatro gerações, recebi uma herança. Também é verde a cor dos meus olhos bem como o meu corpo esguio e franzino.
Tive a sorte - a Clara dizia azar- de ser bonito.
Em pequeno quando não me cortavam o cabelo parecia uma rapariga. Tinha muitos tios e tias quer por parte do meu pai quer por parte da minha mãe. Um de quem gostava especialmente. Era irmão da minha mãe, casado e com filhos mais velhos do que eu. Uma vez, tinha eu oito anos, fomos os dois para o campo regar a horta. Era verão e ainda a minha mãe não tinha ido para França. A dada altura ele começou a fazer chichi à minha frente. Nunca tinha visto o sexo de um homem. Fiquei intrigado com os pêlos. Então ele perguntou-me:
Queres ver? Mostra-me o teu!
Nada respondi. E nesse momento já ele me desabotoava as calças de cotim enquanto as baixava, baixando de seguida as dele. Depois começou a mexer-me no coisinho como ele chamava ao meu sexo. Senti uma coisa boa... De seguida pediu-me para fazer festas no coiso dele. A princípio fiquei quieto. Mas, à medida da insistência do meu tio, comecei a tocar-lhe. Ele dizia-me que gostava muito que eu lhe fizesse aquilo. Disse-me entretanto para o deixar encostar-se no meu cuzinho. Assim ia sentir como o coiso dele estava duro como aço e que o meu também iria ficar assim. Intrigado olhava para ele que, para me sossegar me dizia que o meu coisinho era muito mais bonito. Tão bonito que até era capaz de o comer. Foi quando o meteu na boca e mamou durante um bocado. Era assim que os meninos mamavam nas mães e os homens nas mamas das mulheres quando estavam sozinhos – continuava.
Foi o maior prazer que eu tive em toda a minha existência. Até hoje nunca consegui esquecer. Nunca mais experimentei tamanha sensação. E todo o resto da minha vida andei à procura de outra igual. Nunca mais a encontrei...
De seguida meteu o coiso dele no meu anus. Doeu-me um pouco. Ma, s ele voltava a esfregar com a mão esquerda o meu sexo e eu aguentei. Só anos mais tarde reparei que o meu tio era canhoto. Depois senti um líquido escorrer-me pelas pernas abaixo enquanto ele dizia: Ai filha és tão boa! És boa como o milho!
Não sei se isto é algum trauma desses que os psiquiatras e psicólogos apregoam por aí e que a Clara uma vez insinuou. Eu não sinto isso e toda a vida que faço é porque o ser humano não me merece qualquer consideração. Posso até ser perverso como ela dizia. Julgo que sou tão perverso como os outros. Apenas mais bonito. As mulheres muitas vezes fizeram sentir-me como um Deus. E era esse o meu maior gozo. Nessas alturas, achava-me o melhor do mundo.
A seguir o meu tio disse-me que me iria ensinar tudo quanto um homem faz com uma mulher. Quando viemos embora pediu-me para não contar aquilo a ninguém. Mais tarde, logo que eu fosse homem, já saberia foder todas as gajas - acrescentava. - Nunca fui muito falador. Por isso não lhe perguntei porquê. Limitei-me a calar esperando pela próxima. Viria a repetir-se durante quatro anos, com muitas inovações e avanços, à medida que eu ia ficando mais conhecedor do assunto e mais desinibido.
Aos doze tive outra experiência. Desta vez com uma rapariga de dezanove. Era a Graça, criada dos Sequeiras, os donos da casa que eu vim a comprar trinta e tal anos mais tarde. Comecei então a aperceber-me de muitas coisas. Tudo quanto fizera com o meu tio, apesar de bom, era errado para a maioria das pessoas que provavelmente o faziam igualmente às escondidas.
Passei a esquivar-me. Entretanto o meu tio foi morar para uma aldeia vizinha. Contudo debatia-me com a enorme contradição de ter gostado muito mais do que fizera com ele do que com a rapariga.
Hoje, passados estes anos, aquelas sensações continuam a ser nítidas na minha memória e sou forçado a admitir: foram os melhores prazeres da minha vida! Talvez por ser miúdo...
Mais tarde passou a ser-me indiferente estar com rapazes ou raparigas. Nunca fiz juízos de valor sobre isso. Para mim, sexo é apenas sexo. A censura está nos outros. Por todas estas razões, desde sempre, passei a mostrar-me muito mais com elas do que com eles. Por causa dos outros, mais nada. Para muita gente era um Deus. O melhor seria tentar preservar essa imagem. Assim, ia levando a água ao meu moinho...
Agora as coisas vão acabar. Estou na cama deste hospital. Poucos mais dias tenho de vida. Estou pálido e magro. As enfermeiras embrulham-se todas quando me trazem os medicamentos. Há uma que não gosta particularmente de mim. Um dia, estava encostado a um canto no corredor e ouvi duas delas a falarem do doente da cama 421. Sou eu. Uma dizia que eu tinha olhos de Rasputine que a deixavam doente. Quando olhava para mim lembrava-se do Diabo embora nunca o tivesse visto. Isto fez-me lembrar algo que a Clara me disse. Para ela, eu hipnotizava as pessoas.
Mas, retomando o assunto:
Quando foi da Graça, também ela me pediu para não contar fosse a quem fosse. Comecei então a pensar que os adultos, homens e mulheres, eram todos uns mentirosos. O melhor era tornar-me igual a eles para viver bem com uns e com outros. A minha mãe, na aldeia, era intitulada de puta para cima, puta para baixo. Muitas vezes, os meus colegas da escola primária me chamaram filho dela. Sempre fui um bocado tímido e introvertido. Nunca reagi a tais comentários apesar de eles me terem martelado na cabeça durante toda a vida. Só me sentia bem à beira da minha professora primária, a D. Henriqueta, que gostava muito de mim.
Depois, o caso da velhota agravou-se quando nasceu a minha irmã mais nova. Sempre me disse que era do fulano com quem foi para França. O homem, contudo, nunca a perfilhou, alegando ter-se a D. Ilda fartado de dar quecas lá em Paris, com todo o bicho careta. Até a terá apanhado com outro gajo num dia em que tinha ido para a cama com ela. Enfim...Talvez eu tenha a quem sair...O meu pai, na boca dela, era outro que tal...
Quando acabei a quarta classe, fui estudar para Chaves. Nesses tempos éramos uma família muito pobre. Mal tínhamos dinheiro para comer. Mas lá me mandaram para a Escola Comercial, já que o Liceu era para os ricos. Nessa altura a minha irmã Suzete, em França, já trabalhava... E ainda hoje me atira isso à cara.
Passei algumas dificuldades. A minha mãe nem sempre mandava dinheiro. O meu pai também não. Aliás, desde essa data, raramente o via. Só nas férias, em Penafiel. A única coisa boa de lá de que tenho saudades é de uma bola de sardinhas feita pelas minhas tias paternas.
A seguir, vim para o Porto tirar o curso comercial, a mesma cidade onde estou agora, por desígnios do Outro. E já que falo Nele, os cristos do meu quarto estão lá para chatear a minha mãe. Ela é de uma religião pirata hoje muito em voga, pregada porta a porta. Era uma provocação surda que me sabia bem. Um dia apanhei a minha tia Fátima ajoelhada no chão a rezar-Lhes. Eles estavam fartos de me ver foder com umas dezenas de mulheres e não só... Um dos cristos, sendo oco por dentro, serviu-me também para transportar uns pózinhos de droga no regresso de uma viagem que fiz à Tailândia quando andava teso. Nessa altura retomei os contactos com os meus amigos mafiosos de Lisboa, a quem depois ajudei a lavar o dinheiro através da fundação. Eles aproveitavam-se da minha cara de santo, pois de mim ninguém desconfiaria. Contudo, nunca consumi um grama que fosse. Sempre fui racional suficientemente para não me deixar envolver nas teias da droga. Gostava demasiado de mim para isso...
No Porto, morei na Rua da Alegria, juntamente com quatro colegas, todos eles de poucas possibilidades económicas. Isto no tempo do Instituto Comercial. Lembro-me bem. Um dia, era o café a 2$00, só tínhamos essa quantia. Cinco tostões cada um. Pedimos um e bebemos os quatro da mesma chávena.
Foi no Porto aliás, onde comecei realmente a viver com consciência e a tirar partido da minha beleza. Tinha talvez 18 anos. A dona da pensão onde morava era uma mulher dos seus quarenta e cinco anos, loura, casada com um padeiro que trabalhava de noite. Tinham dois filhos casados. Começou a alugar quartos depois de os rapazes saírem de casa. Sempre me tratou com especial deferência. Segundo ela, fazia-lhe lembrar o filho Zé, por ser meiguinho como ele. Conversava bastante comigo. Uma noite, quando os outros colegas estavam a dormir, foi ter comigo e disse que se sentia velha. O marido até já nem a procurava. Contou-me que o homem lhe chamara a atenção para os pêlos brancos da rata. Já não lhe apetecia ter sexo com ela.
Eu lá lhe fui dizendo que a velhice não era defeito. Depois, na brincadeira, perguntou-me se eu era capaz de ir para a cama com ela.
Claro que sim!- respondi.
Não acredito! Um rapaz tão bonito...
Quer apostar?
A três mensalidades!
De repente estava nua à minha frente. Era sobre o gorducho com umas grandes mamas. A coisa dela era preta já com alguns pêlos brancos, como o marido dissera. Sugeri-lhe que os rapasse. Assim, sempre disfarçava e até se devia foder melhor. Comi-a. O raio da mulher era bastante fogosa. Veio-se umas dez vezes. Nessa altura, como não se usava muito a pílula, tive de ejacular nas mamas dela. Isto tudo já no quarto do casal. A partir daí, durante o tempo em que estive lá praticamente nunca mais paguei a pensão. Os meus colegas bem desconfiavam, mas eu dizia-lhes que a minha mãe tinha mudado de emprego e que estava a mandar-me mais dinheiro. Passados dois dias, a mulher apareceu-me com os pêlos rapados e a função durou até eu sair de lá. Isto apesar de ela saber que eu tinha uma namorada na Corujeira e que a comia lá em casa, quase nas suas barbas.
Mais ou menos nessa época havia uma professora de perto da aldeia, que me dava explicações de matemática, nas férias. Gostava muito de mim. Era mais velha do que eu quatro anos. Chamava-se Miriam. Passámos a ter relações sexuais, passado pouco tempo de começarmos as aulas. Não demorou muito, engravidou. Quando soube, nunca mais lá apareci. Mais tarde acabei por ter conhecimento que tinham nascido dois gémeos prematuros. Quase que deliberadamente, os pais dela deixaram-nos morrer. Hoje, com cinquenta e tal anos e já divorciada do marido com quem veio entretanto a casar-se, ainda se baba por mim. É minha vizinha. Após a separação, comprou lá na rua um apartamento e eu ia muitas vezes com ela ao cinema... E não só...
Nas férias costumava ir para França. Lá é que foi!...De muitas já nem me lembro. Em todo o caso, posso afirmar o seguinte: poucos homens terão tido uma vida tão cheia de peripécias como a minha. Dava mesmo um grande livro ou um filme erótico. Aliás, quando a Clara começou a enviar-me cartas e vi que ela escrevia razoavelmente bem, um dia sugeri-lhe que escrevesse um livro erótico. Nessa altura, pensava na minha própria vida....
Quando me lembro de algumas das situações vividas, continuo a sentir um gozo enorme. Não consigo evitar...Uma noite estava perto do Lido, na Avenida dos Campos Elísios. Entabulei conversa com duas raparigas italianas, uns pitos. Convidaram-me para ir com elas ao hotel beber um copo. Aceitei. Compraram duas garrafas de champanhe e fomos para o quarto. Era o 309. Quando dei por mim, estavam ambas nuas a beijarem-se e a lamberem-se uma à outra. Perguntaram-me se nunca tinha visto duas mulheres a fazer amor e se ficara chocado. Respondi que, de facto, era a primeira vez que via ao vivo. Nem me pediram para eu participar... Começaram logo a despir-me e enquanto uma se masturbava à minha frente, a outra fazia-me sexo oral. Depois, revezavam-se e ao mesmo tempo eu comia uma, de rabo alçado, ela lambia o sexo da amiga. Nessa noite foi um forrobodó. No final, deram-me mil francos. Tinham acabado de ganhar cinco mil de um espanhol com quem tinham estado, antes de mim. Finalmente, fiquei a saber que ambas estudavam arte dramática na Sorbonne. Por me lembrar disso, um dia, inventei que eu próprio tinha um curso de pós-graduação na dita universidade.
Entretanto, deu-se o vinte e cinco de Abril. Das colónias regressaram todos os retornados e de Angola veio o meu primo Joaquim, cheio de diamantes. Montou uma bruta casa em Lisboa. Veio buscar-me ao Porto e matriculou-me na Faculdade de Direito. Nesses tempos levei uma vida de fausto. Bons carros, bons hotéis... Não deu para perceber logo que o meu primo era um vigarista. Relacionava-se com a pior escumalha de Lisboa incluindo o Malaquias. Este já estivera preso por diversas vezes.
Nunca passei do primeiro ano da universidade. Era muito mais agradável comer as minhas colegas que não me deixavam em paz. E eu nunca gostei de estudar nem de fazer fosse o que fosse.
Tinha bastantes amigos. Mas era só por causa das raparigas. As minhas sobras chegavam sempre para eles. Depois, nos hotéis que frequentava com o meu primo, apareciam as dondocas, mulheres de homens de negócios e dos do Governo. A primeira foi a Janita Boa Hora. Teria ela os seus quarenta anos, toda louraça e boazona. Uma vez telefonou-me. Combinou encontrar-se comigo num hotel. O marido andava em viagem de negócios pela Austrália. Já estava eu no hall de entrada, aparece-me ela acompanhada de um amigo homossexual. Era assim uma espécie de motorista. Vieram num bruto Mercedes. Eu próprio conduzia um BMW do meu primo. A seguir à bebida subimos os três. No quarto havia mais duas garrafas de champanhe e umas flores. Eu já teria os meus 24 anos. Mal pousámos os casacos, a Janita perguntou-me se eu não me importava que o amigo ficasse. Respondi que não. O meio era muito para a frentex e não quis parecer bota de elástico. Não demorou muito a estarmos os três envolvidos, o maricas obviamente muito mais interessado em mim do que na amiga. Isto depois de bebermos as duas garrafas de champanhe e estarmos todos bem aquecidos. No fim, eram mais ou menos três da manhã, tive direito a ficar no hotel, sozinho. Na mesa de cabeceira estavam 20 contos.
Liguei à Nise, após ter dado um jeito no quarto. Disse-lhe que estava chateado com a família e que tinha saudades dela. Dei-lhe a direcção do hotel. Não demorou muito a aparecer. Era médica e estava embeiçada por mim, bem como a Rosália, a Hortense, a Corina, e tantas outras...Sempre tive um leque alargado de raparigas que me telefonavam e a quem eu ligava toda a vez que me apetecia foder. Às vezes, era ao acaso. O que viesse à rede era peixe. Contando bem, ao longo da minha vida, comi mais de duzentas mulheres ...
A Nise tinha trinta anos. Era divorciada. Era também bastante melada e com ela eu não teria grande trabalho. Mesmo que fosse só para dormir, não se fazia rogada. Chegou passado um bocado. A queca da outra tinha-me cansado um bocado e o enrabar do maricas também. Mas, mesmo assim, lá consegui mais uma, com ela.
As coisas vieram a piorar para o meu primo. Veio a descobrir-se que ele e a sua tropilha tinham gamado móveis valiosos em casas ricas de Lisboa e Cascais, na altura dos assaltos levados a cabo pelo proletariado. Acabou por ser preso e eu, sem curso algum, sem nunca ter feito fosse o que fosse na puta da vida, resolvi ir até a aldeia. Intitulei-me de senhor doutor e lá fui para as berças. Nessa altura também me queria pirar de duas ou três fulanas já entradotas que resolveram engravidar de mim. Esses rebentos devem andar lá por Lisboa... Também pouco me importo. Não ter pai não é coisa do outro mundo. Vivi sem o meu e não me fez falta nenhuma...
Na aldeia, conheci a Patrícia. Os pais tinham vindo de Luanda em 1975, tinha ela treze anos. Era demasiado miúda. Mas, aos dezassete anos estava completamente apaixonada por mim. De família rica, filha única, nada de melhor me podia acontecer. Os pais tinham um negócio de imobiliária. Eu já tinha vindo embora de Lisboa sem um tostão furado mas com o estatuto de senhor doutor que eu próprio havia engendrado. Os progenitores dela nunca gostaram de mim. O Alfredo Seixas, meu ex-sogro, chegou a dizer-lhe – contou-me a Patrícia - que eu era pior do que um chulo do Cais do Sodré. Contudo, ela tanto insistiu, tantas ameaças de fugir fez para se casar comigo, que eles, contrariados, lá aceitaram.
Casámos no final de Agosto de 1982. Em Outubro seguinte, foi lá a Polícia interrogar-me. Eram resquícios da vida com o meu primo. O processo contra mim era por burla e a minha alcunha policial passava a ser de burlão.
Passados dois anos nasceu a Denise. Eu continuava a matricular-me na universidade. Mas, isso era só pretexto para ir ver as minhas amigas a Lisboa. O meu sogro fartou-se de desembolsar dinheiro para eu lá ir fazer os exames na qualidade de trabalhador-estudante e ao abrigo da lei militar. Porém, como sempre menti muito bem, inventava mais uma ou as que fossem necessárias: ou era o professor que me tinha tomado de ponta ou a cadeira que era muito difícil... Naquela época já aceitava casos como advogado, cobrando até dinheiro. Era a Patrícia quem os resolvia, criticando a minha atitude. Afinal, não era ainda advogado e nunca o vim a ser, senão ficticiamente para os parolos a quem enganei durante muitos anos. Então agora, nem advogado do Diabo....Eles, finalmente, vieram a descobrir, em determinada época lectiva, que nem matriculado estava. Teria a Denise três anos. Foi por causa de uma carta que a Nise me enviou para o Porto e que foi interceptada pela Patrícia. Tinha dito à Denise, isto é, à Nise, que continuava solteiro. Não queria ser rejeitado pelo facto de me ter casado, como provavelmente, ela faria. A partir daí as coisas começaram a piorar, especialmente quando a Patrícia descobriu o motivo pelo qual dei o nome de Denise à minha filha. Lembro-me de lhe ter dito muitas vezes que a havia de por doida. Nessa altura, andava às voltas com três ou quatro mulheres do Porto: a Marisa, a Francelina, a Elisabete e outras... Acabou por descobrir tudo e tentou o suicídio.
Podem perguntar-me se tenho remorsos. E eu respondo que não. Não tenho qualquer tipo de remorsos. Cada um rege-se pela sua cabeça e essa coisa do amor é uma grande treta. Verdadeiramente nunca ninguém gostou de mim. Nem a minha mãe que teve a coragem de me deixar sozinho e levar a minha irmã para França. O meu pai abandonou-me aos seis anos. O meu tio, bem vistas as coisas, violou-me durante quatro anos. As mulheres são todas umas putas. Desde que tenham uma rata, são todas putas. Então as médicas, enfermeiras e as que trabalham em hospitais, nem se fala. Esse mundo fora está cheio de assassinos, de burlões. Eu, por muito mau que seja, sou um anjinho. As gajas lixam-me sempre. Então, antes de elas me lixarem a mim, lixo-as eu a elas. Não me interessam minimamente. Só as como, mais nada. É para isso que cá andamos todos. Será isto ser amoral como a Clara me disse uma vez?
Agora também já não vale a pena tentar saber a resposta....
Saí de casa em 1988. Foi a Patrícia quem me mandou embora apesar de eu sempre ter dito o contrário. Fui para casa da minha mãe, em Esposende. Queria fazer qualquer coisa de bom na vida, isto é, mudar.
Entretanto, conheci a Ivete. Não era lá muito bonita. Pouco me interessava. Passei um fim-de-semana alucinante e ainda hoje, passados doze anos, conservo o número de telefone dela. Até há relativamente pouco tempo, ainda íamos para a cama. A desgraçada nunca se casou. Esperava fazê-lo comigo. Agora já o pode fazer com quem a quiser. Foi das mais feiotas e mal asadas que conheci. A minha morte vai libertá-la. A ela e a muitas... Nunca gostei de ser rejeitado. Dava uma queca com todas de vez em quando e isso ia-lhes dando alguma esperança. Era o que eu queria. Ter sempre alguém de pernas abertas...
Depois de a conhecer a Ivete, um dia, estava eu numa esplanada. Tinha um papel à frente e resolvi fazer um calendário das horas. Às quinze escrevia as impressões do fim-de-semana passado com a Ivete. Tinha-se revelado boa na cama. Às quinze e trinta já a escrita era outra. Falava das pernas da empregadita do bar. Toda ela era boazona. Pode ser que pinte- pensava enquanto olhava para a senhora entradota, bonita e loura. Interessante! - dava-lhe umas quecas valentes – pensava, sem contudo o escrever.
Acabei por comê-las a todas. A entradota era inglesa. Sustentou-me durante algum tempo. Eu saíra de casa com uma mão à frente e outra atrás. Ela sacava o dinheiro ao marido para mo dar. Ainda hoje me telefona. A Denise e o Rodolfo, os meus filhos, eram pequenos. Todavia nem deles me lembrava. Aliás nunca gostei muito de crianças. Quando vejo alguma imagino logo uma cabeça com um enorme potencial de perversidade a desenrolar-se pela vida fora e sexo, sexo...Os miúdos, mal acabei de sair de casa, tiveram uma febre que lhes provocou aftas. Só apareci passado um mês. A Patrícia nunca me perdoou...
Não era isto a qualquer coisa boa da vida... Porém sempre tive uma forte atracção pelos prazeres carnais, sem todavia o deixar transparecer de imediato. O meu ar angelical pelo qual ganhei a alcunha de Cara de Anjo, levava-as a todas e a todos... Então, desde que apareceu a televisão por cabo, se já era especialista, refinei com o canal 18! E quando me acontecia algum revés na vida, chegava a pensar em ir até Espanha e dedicar-me à pornografia. Assim, juntava o útil ao agradável...
Nessa altura, quando saí de casa, não tinha qualquer fonte de subsistência. Então comecei a traficar droga. Vendia-a na casa em Esposende aonde acorria uma quantidade de rapazes e de raparigas toxicodependentes. Vinham até de Lisboa. Era lá que tinha os meus contactos a outro nível. Andei nisto durante uns tempos. Um dia, um rapaz foi apanhado na capital. Denunciou-me. Fui apanhado num processo. Tive uma sorte dos diabos. A primeira vez que falei com o juiz vi logo que era homossexual. Era casado e ficou imediatamente embeiçado por mim. Uma noite, no segredo dos deuses, levou-me a sua casa, onde conheci a mulher e dois filhos pequenos. Queria ajudar-me. Contei-lhe parte da minha vida, nomeadamente a história da violação. Ficou cheio de pena e acabou por descaminhar o processo. Mas, o mais engraçado é que eu, ele e a mulher nos tornámos amantes. Apaixonaram-se ambos por mim e durante algum tempo dormíamos os três na mesma cama. Eu no meio, para dar para os dois... Nunca foi meu colega na faculdade como eu fiz crer a muita gente. Os interesses deles começaram a mudar. Ele, obviamente, estava muito mais interessado em mim do que na mulher e ela vice-versa. Então os problemas surgiram. Se me viesse nela ele ficava amuado. Se fosse ao contrário era ela a chatear-se. Acabaram por se divorciar. Desliguei-me então da mulher, optando por ficar com ele até hoje, embora desde que conheço a Isaura tenha imperado o jejum. Tenho conseguido esquivar-me, com umas mentiras pelo meio. Acabei depois por arranjar um emprego na Bolsa de Lisboa e fui morar para a casa da Nise que continuava a gostar mais de mim do que de chocolate.
Na Bolsa as coisas não correram lá muito bem. Desviei umas acções. Coisa pouca. Entretanto, conheci a Cristina. Trabalhava lá. Gozado, gozado, foi ter verificado, anos mais tarde, que ela tinha morado em Odivelas no mesmo apartamento da Clara... Puseram-me fora, também aí. Mais uma vez, estava sem emprego.
Uma bela noite, andava a passear na baixa de Lisboa. Encontrei por acaso um daqueles amigos que levavam com as minhas sobras das raparigas. Tinha sido meu colega e estava instalado no poder, movimentando-se bem ao nível do tráfico de influências. Omiti-lhe, obviamente, o facto de não ter acabado o curso. Inventei uma pós-graduação na Sorbonne e disse-lhe que estava desempregado. Arranjou-me o lugar na fundação. Passei a ser o director financeiro. Saíu-me a sorte grande. Ganhava 700 contos por mês. Mas, só de alcavalas eu levava mil para casa, em dinheiro e em espécie. Eram os almoços pagos pela fundação, livros e CDs, contas telefónicas, viagens fictícias ...
Obviamente não fazia as falcatruas sozinho. Tive a sorte de ter na contabilidade uma tal Ermelinda. Senti da parte dela, desde o início, uma forte atracção por mim. Era casada e as mulheres casadas com a vida estabilizada são as melhores aliadas. No começo, estava eu sem empregada em casa. Pedi-lhe o favor de me arranjar uma. Solícita, ofereceu-se para me fazer a limpeza enquanto não tivesse uma pessoa. Entreguei-lhe as chaves. Nesse dia saiu um pouco mais cedo a fim de lá ir. Apareci depois e, passado pouco tempo, estávamos os dois no sofá da sala, em pêlo. Era uma fulana com trinta e tal anos, morena. Passei a comê-la mais ou menos duas vezes por semana. Com isso, comprei-lhe o silêncio e a ajuda. Também recebia boas maquias... Muito vaidosa, o dinheiro dava-lhe um jeitão. Uma vez levava um vestido comprido. Ficou-lhe entalado na porta. Como foi a última a sair nessa tarde, teve de o rasgar para se ir embora. Foi um gozo para toda a gente!...As chaves continuaram com ela mesmo depois de me ter arranjado uma mulher a dias. Fiz um triplicado delas. Aliás, um dia, criou-me um embaraço com a Clara. Fez-me a cama e sobre ela, do lado em que eu durmo, deixou-me um bilhete. A Clara viu-o. A minha sorte foi também a Clara estar doidinha por mim. Se bem que, bem vistas as coisas, me tenha saído melhor do que a encomenda... Não sei se não lhe devo a minha saída da fundação...Talvez não... Fiz tantas vigarices... Numa das maiores de que me lembro, embolsei cerca de dez mil contos, descontadas as percentagens dos meus capangas. Tratava-se de uma acção de beneficência para um desses países em guerra na Europa. A Ermelindinha fez uma saída de caixa de dez mil contos. Uma grande parte foi para a minha conta no banco. Foi assim que paguei a casa de Telheiras. Custou vinte mil contos. Não demorei sequer dois anos a pagá-la, incluíndo mobiliário. A das Sete Cabecinhas custou dezassete. Reconstruí-a toda gastando lá quase outro tanto. As mobílias fazem inveja aos ricos. Às vezes na aldeia perguntavam-me por que estava eu a enterrar lá tanto dinheiro. Tudo não passava de uma questão de estratégia. Não podia ostentar enriquecimento em Lisboa. Daria muito nas vistas. O meu carro já tem 6 anos. Nunca o troquei para disfarçar. Além disso, também queria fazer ver aos papalvos que em pequeno me chamaram filho da puta...
Mas, voltando à historia da casa de Telheiras:
Lá na fundação e quase logo no início, arranjei uma namorada oficial, divorciada e sem filhos. Era a Carolina. Impingi-lhe a ideia de que estava a morar em Setúbal e que fazia a viagem todos os dias. Ela viu a casa que acabei por comprar, perto de onde ela própria morava. Decorou-ma, colocando os cristos no quarto. A Ermelindinha não se importava. As quecas dela estavam garantidas. A Carolina é que, como as parvas de todas as mulheres, se apaixonou por mim. A essa sim... Talvez lhe deva a saída da fundação. Pelo menos, deve ter ajudado bastante... Um dia, quando descobriu algumas das minhas vigarices, chateada comigo por causa da Alzira outra fulana que eu comia, ameaçou-me com a cadeia. Tentei despedi-la mas entendi que era melhor não o fazer. E depois sempre tive uns nervos de aço e uma grande cara de pau. Se precisasse de alguém era capaz de lhe rastejar aos pés só para levar a minha avante.
Agora estou-me nas tintas para todas as merdas. Pouco importa. Afinal, nada fiz de novo. Dezenas de vigaristas neste país andam a encher os bolsos à custa do Zé Pagode. A puta da hepatite vai acabar comigo e quem ficar que se lixe, incluindo a Isaura. A mula, é mais forte! Deve resistir mais tempo do que eu!...
Voltando à Clara:
No fundo, tenho-lhe um ódio de morte!... Mas é inteligente. Escarafunchou de mais na minha vida. Disse-me coisas que mais ninguém se atreveu a pensar. Nunca outra pessoa me alvitrou uma violação. Só ela. Não acredito que o sacana do meu tio tenha contado a ninguém. Só na cabeça dela... Nunca ninguém duvidou da minha masculinidade. Só ela. Guardou pormenores das nossas conversas, que não lembram ao diabo. E outras coisas mais...Às vezes tinha piada. Nomeadamente quando me disse que eu era tão ruim que nem a terra me havia de comer e que, quando descobrissem o meu esqueleto inteiro, o povo haveria de dizer que eu era santo e que ainda havia de me pedir milagres...De um milagre precisava eu agora, mas...
Estou quase a terminar. E já que abri o livro, vou contar mais uma ou duas coisas:
O estafermo da Clara, numa das últimas vezes em que falámos, relembrou-me da história do Rodolfo Valentino, talvez o maior D. Juan do século XX, que acabou por morrer sozinho num hospital. Lembro-me de lhe ter dito: - Qual é o problema!?
Agora, sei que de facto não é problema nenhum. A Isaura está proibida de me visitar. A minha mãe continua lá para França, apesar de saber da minha doença. Abandonou-me pela segunda vez, se bem que eu tenha tentado ser bom filho...No final das contas, fiz o mesmo ao meu pai. Nunca o fui ver ao lar onde ele morreu como um cão.
Por ironia do destino, é a Patrícia quem está a levar com os meus restos. Talvez até pague o funeral... Nem sequer tenho dinheiro para isso. Nos últimos tempos tenho vivido da chulice e de alguns, poucos, rendimentos. É o preço de ter dois filhos meus. Os únicos reconhecidos. Neste ponto, lembro-me dos onze abortos em que estive na origem e de todos aqueles de que nem sequer terei tido conhecimento...
Realmente, nesta vida fiz de tudo, ou quase... O único instinto que sempre reprimi foi o da pedofilia...O sexo sempre foi tão forte... Incontrolável, até... Eis mais um dos meus segredos.
Há tempos, dei comigo a reler os Maias de Eça de Queiroz. Isto depois de saber de um casal em que ambos eram irmãos e conhecedores do facto...
As ligações perversas sempre me fascinaram...
A Clara tinha razão. A realidade é bem mais rica, até na perversidade, do que a fantasia. A vida, a minha vida, é demasiado vil... Devo sem dúvida ter merecido o nojo da morte, ali ao lado à minha espera. Sou mesmo um cigano, um homem sem escrúpulos alguns. Sobranceiro, nunca fui capaz de pedir desculpas a ninguém. Sempre entendi que deveriam ser os outros a pedir-mas a mim.
Gostava de ser incinerado. Mas, não vou ter tempo de manifestar essa minha última vontade. Gostava que as minhas cinzas fossem deitadas ao Rio Douro. Talvez fosse um bom teste... Se eu sou tão mau como dizem, provavelmente até os peixes morreriam envenenados...
Falta-me falar de tantas coisas...Estou cada dia mais fraco...
Não sinto ainda - se e é que a sentirei alguma vez - a centelha divina da hora da morte, como dizia a Clara. Não pertenço mesmo a esse reino. Sempre pertenci ao outro, ao da perversidade e do embuste. É nele que vou morrer...Talvez no último instante eu sinta o peso de um fim hediondo e ao mesmo tempo, um enorme alívio.
Alívio é tudo o que devem sentir todas as pessoas que se cruzaram comigo. Especialmente a Patrícia, a Denise, o Rodolfo e todos aqueles a quem manipulei. E se há Deus, é nas Suas mãos que me coloco. Talvez eu sinta, finalmente, algum afago...
Rafaela Plácido
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