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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONQUISTA / Candace Camp
CONQUISTA / Candace Camp

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Juliana crescera em um lar sem amor nem compaixão. Apenas uma pessoa a tratava com carinho: Nicholas Barre, um menino órfão, porém herdeiro de uma vasta herança. Ele também sofria nas mãos de suas guardiãs, mas logo partiu em busca de novos caminhos.

Forçada a trabalhar como dama de companhia, Juliana teme jamais desfrutar de sua juventude e encontrar o amor de sua vida... até se deparar com Nicholas em um baile, agora um homem rico e com um título de nobreza. E mais lindo do que nunca...

Muito requisitado pela sociedade londrina, Nick desafia todos os costumes ao reatar sua amizade com Juliana, de uma maneira mais forte e envolvente do que antes. Mas ela não é perdoada por ser a preferida dele, e logo se vê em apuros ao ser expulsa da casa em que trabalha. Por isso, Nick decide recompensá-la da única maneira possível: tornando-a sua esposa.

Entretanto, o casal ignora que interesses ocultos buscam destruí-los. Pois alguém deseja se apoderar da fortuna de Nicholas. E está disposto a tudo para consegui-la...

 

 

 

 

 

 

Juliana não esperava vê-lo outra vez.

Soubera que Nicholas tinha herdado um título e voltado à Inglaterra, o que a surpreendeu. Durante toda sua vida, achou que seria o tio de Nicholas a herdar o título, não ele. Com certeza, ninguém jamais o tratara como um futuro conde. Portanto, julgou que seus caminhos nunca voltariam a se cruzar. Afinal, agora ele era um rico conde e ela a dama de companhia de uma mulher que freqüentava apenas o entorno do seleto círculo social ao qual ele pertencia.

Houve um momento, quando ouviu os rumores da volta de Nicholas da América e de sua súbita elevação ao santuário fechado da sociedade inglesa, em que pensou com um doloroso excitamento que o veria mais uma vez. No entanto, o tempo e o bom senso a fizeram concluir que aquilo seria improvável.

Mesmo tendo sido íntimos um dia, muitos anos já haviam se passado. Se porventura ele lhe devotasse algum pensamento, seria apenas uma tênue lembrança do passado, uma pessoa de um tempo e lugar de quem ele sem dúvida se recordaria com pouca afeição. O tempo que ela passara em Lychwood Hall não lhe trouxera felicidade, mas para ele fora ainda pior. Juliana suspeitava de que ele fizera tudo ao seu alcance para deixar o passado para trás. Jamais a procuraria. Apenas uma tola romântica teria tal esperança.

Além disso, as chances de seus caminhos se cruzarem acidentalmente eram mínimas. A dama para quem trabalhava, Sra. Thrall, apesar de se julgar parte da sociedade londrina, na realidade não passava de um peixe pequeno nadando nas beiradas do lago. A família era aceita apenas como provincianos bem-nascidos e somente a inegável beleza de Clementine, filha da Sra. Thrall, atraía algum tipo de atenção.

Naquela noite, contudo, os Thrall receberam um convite para o baile na casa de Lady Sherbourne, ponto alto dos eventos da temporada, tão alto que atraía muitos membros obscuros da sociedade. Juliana achava que somente o grande número de convidados possibilitara a presença deles ali. A Sra. Thrall, é claro, não pensava assim. Havia rastejado a semana inteira aos pés de Lady Sherbourne, até conseguir ficar debaixo de sua asa.

Devido à magnitude da festa, Juliana vislumbrara um fio de esperança de que Lorde Barre aparecesse. Mas, bem no fundo, não acreditava nisso. Afinal, a julgar pelos rumores, isto é, pelo que andara ouvindo Clementine e suas amigas conversar, Nicholas raramente comparecia a festas. Sua reclusão apenas aumentava o mistério que o envolvia.

Mas lá estava ele. Juliana observava Clementine serpentear pelo salão nos braços de um de seus muitos admiradores e, ao erguer os olhos, deparou com Nicholas Barre no topo da imensa escadaria que levava ao salão de baile.

Seu coração pulou dentro do peito e por um instante sentiu que o ar lhe faltava. Ele estava lindo, mais do que se conseguia lembrar. Havia se tornado um homem de ombros largos e pernas musculosas. Encontrava-se parado, observando friamente a massa de pessoas abaixo. Seu olhar denotava confiança e até mesmo certa arrogância. Os espessos cabelos negros caindo descuidada-mente no rosto, os olhos tão negros quanto os cabelos, emoldurados por sobrancelhas igualmente negras e espessas.

Ele não se parecia nada com os outros homens. Nem mesmo o sobretudo preto e a camisa muito branca conseguiam camuflar a aura indomável que o cercava.

Onde quer que Nicholas chegasse, pensou Juliana, seria sempre o centro das atenções. Imaginou se ele tinha consciência desse fato.

Talvez já estivesse acostumado com isso. Sempre fora discriminado. Perigoso, era como o chamavam. E perverso. Juliana suspeitava de que os mesmos adjetivos ainda lhe fossem adequados.

De súbito, Juliana percebeu que o estava encarando e desviou rapidamente o olhar. O que faria? Engoliu em seco, torcendo as mãos sem parar.

Lembrava-se da última vez em que o vira — as feições do rosto másculo captando a luz do luar. Os olhos como dois profundos lagos negros. Ele tinha apenas 16 anos naquela época, mas já possuía músculos que denunciavam o homem poderoso que viria a se tornar. Os cabelos, mais longos, desgrenhados pela ação do vento e de seus dedos impacientes. As feições já eram fortes e denotavam certa prudência, reflexo de seu passado.

Juliana agarrara-lhe o braço com ambas as mãos como se o pudesse reter a seu lado. O coração daquela menina de 12 anos estava partido.

— Não vá — suplicara ela. — Por favor...

— Não posso, Jules — respondera ele, franzindo o cenho — Tenho que ir. Não posso mais ficar aqui.

— Mas o que farei? — perguntara Juliana. — Será tão horrível isso aqui sem você. Mais ninguém, a não ser eles... — A última palavra foi pronunciada com desgosto.

— Você ficará bem. Conseguirá sobreviver. Eles não a machucarão.

— Eu sei — sussurrou ela, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelas faces. Juliana sabia que ninguém jamais a ofenderia como fizeram com ele. Não haveria algemas, nem dias de prisão no quarto, como acontecera com Nick. No entanto, o pensamento de viver sem tê-lo a seu lado era melancólico e incômodo, quase insuportável.

Desde que ela e a mãe chegaram a Lychwood Hall, quando contava apenas 8 anos de idade, Nicholas se tornara seu amigo, seu companheiro mais íntimo. Eles se aproximaram naturalmente, os dois estranhos na propriedade dos Barre, desdenhados pela tia, o tio e os primos de Nicholas, que não se cansavam de lembrar a ambos o quanto dependiam da caridade alheia. Então, formaram uma aliança sólida, não muito comum a um garoto de 12 e uma menina de 8 anos. E mesmo tendo ele perseguido interesses muito diferentes dos dela enquanto se tornava adulto, sempre mantiveram uma ligação especial.

— Não posso ir também? — perguntara Juliana sem muita esperança, sabendo que a resposta seria negativa.

Ele meneou a cabeça.

— Eles com certeza viriam atrás de mim se a levasse comigo. Sozinho, talvez eu tenha uma chance de escapar.

— Você vai voltar? Por favor!

Ele sorrira então. Um daqueles sorrisos que poucos conheciam além dela.

— Claro. Ganharei montanhas de dinheiro e voltarei para levá-la comigo. Você será rica e todos a chamarão de dama. E Seraphina terá que lhe fazer reverências. O que acha disso?

— Perfeito. — O coração de Juliana ardia de amor por ele, mesmo que sua mente realista soubesse que aquele amor não tinha chance de ser correspondido. Com certeza, ele sairia de sua vida, como o pai dela havia feito.

— Não se esqueça de mim — disse ela, engolindo as lágrimas, recusando-se a agir como um bebê. Tirou a corrente que trazia em volta do pescoço e entregou-a a ele. Um pingente de ouro brilhava nela, simples e masculino.

Nicholas fitou-a, surpreso'.

— Não, Jules, isso era de seu pai. Não posso ficar com ele. Sei o quando significa para você.

— Quero que fique com ele — respondeu teimosa. -Isso o manterá em segurança.                          

Por fim, ele pegou o cordão da mão dela. Então com um último sorriso, desapareceu na noite, deixando-a só na escuridão do jardim.                        

Ela não mais o viu durante 15 anos.

Juliana arriscou mais um olhai ao topo da escada. Nicholas não se encontrava mais Ia. Com cuidado, relanceou os olhos pelo salão, mas não conseguiu divisá-lo em meio à multidão. Então começou a imaginar como conseguiria sair dali sem ser vista por ele.

Seu estômago estava contraído, parte por excitação, parte por medo. Não queria que ele a visse. Não queria encarar o fato de que ele poderia esnobá-la. Que talvez nem mesmo a reconhecesse.

Nicholas Barre significara muito para ela. Não agüentaria seu desdém. Ela o amara como somente uma criança pode amar. Depois que ele fugiu da propriedade, não permitiu que as lembranças dele perecessem em sua mente. Por muito tempo, seu coração acalentara a esperança de que talvez ele cumprisse a promessa que lhe fizera. Que um dia reapareceria e a levaria com ele, arrancando-a da tristeza da mãe, das crueldades de Crandall, da insignificância de tia Lilith e da suposição de Seraphina de que Juliana estava ali para fazer o que ela mandava. A medida que se transformava de menina em mulher, eram as imagens de Nicholas que preenchiam seus sonhos de adolescente: ele surgiria como um herói em um cavalo alado e a arrancaria de Lychwood Hall e da vida que ela detestava. Ele lhe daria seu nome e a encheria de jóias e roupas modernas.

É claro que não fora tão tola a ponto de manter tais sonhos por muito tempo. Ela crescera e fizera a própria vida. Havia muito tempo deixara de acreditar — e por fim deixara até de desejar — que Nicholas retornasse e procurasse sua amiga de infância.

Mesmo quando ouviu que ele estava de volta a Londres, jamais imaginou que a procuraria. Ou, quem sabe, matara o embrião de esperança antes que germinasse em seu coração.

Afinal, quando ele prometera voltar, estavam nas mesmas condições. Dois parentes indesejados vivendo da caridade dos Barre, ou assim pensara ela. Agora, porém, ele era Lorde Barre e, além de ter se tornado rico pelos próprios méritos, herdara a propriedade do avô.

Seria extremamente tola se pensasse que ele a procuraria. Promessas feitas aos 16 anos raramente eram cumpridas.

Juliana experimentou a amarga realidade de estar certa. Já se haviam passado dois meses desde que Nicholas retornara a Londres e nem se lembrara dela. Era realista demais para supor que se ele a encontrasse naquela noite a cumprimentaria com gritos de prazer. Céus, ele talvez nem a reconhecesse como a criança que um dia fora sua amiga.

Mas Juliana não desejava encarar essa realidade. Não queria vê-lo olhar para ela com uma expressão vazia de falta de reconhecimento e depois afastar-se. Ou, o que seria pior, conversar com ela formalmente como um estranho, ou ainda notar-lhe o olhar enfadado de alguém pego em uma situação social da qual gostaria de escapar.

Precisava sair daquela festa, pensou, mas isto era mais fácil pensar do que fazer. A Sra. Thrall a contratara como dama de companhia especialmente para ajudá-la a tomar conta de sua filha espevitada e teimosa. Clementine era linda e mimada, acostumada a ter tudo que queria. Era também tola o bastante para pensar que poderia ignorar os ditames da sociedade. Se não fosse monitorada, acabaria flertando mais do que seria considerado adequado ou dançaria com o mesmo rapaz solteiro mais de dias vezes. Juliana até mesmo a pegara tentando escapar por uma porta envidraçada em direção aos jardins escuros com um ardoroso pretendente.

E como a Sra. Thrall era uma mulher indolente, usava Juliana como acompanhante de Clementine. A Sra. Thrall gostava de pensar que essa tarefa enfadonha era um presente que ofertava a sua dama de companhia, sempre repetindo a Juliana o quanto tinha sorte de poder freqüentar todos aqueles bailes. Para dizer a verdade, Juliana teria preferido passar as noites enrolada em um sofá em companhia de um bom livro ou brincando com a filha mais nova dos Thrall, Fiona. Não sentia prazer algum em sentar-se, vestida como uma cambaxirra entre os pavões, junto com as mães e as solteironas, observando as outras moças dançarem e se divertirem.                    

A Sra. Thrall ficaria bastante insatisfeita se Juliana inventasse uma terrível dor de cabeça ou outra indisposição qualquer e quisesse sair da festa, e certamente não desejava ouvir sua patroa reclamar que ela estava tentando arruinar o maior baile do qual a filha já participara. Além do mais, tinha pouca esperança de que a Sra. Thrall a mandasse para casa mesmo com uma reprimenda. Seria mais provável que ela lhe dissesse para agüentar como uma boa inglesa e a mandasse pegar uma taça de ponche.                  

A melhor atitude a tomar, pensou ela, era simples mente manter os olhos fixos em Clementine. Assim, seu olhar não poderia cruzar com o de Nicholas e não veria a expressão que se formaria no rosto dele. Pelo menos não ficaria sabendo se ele a visse e desviasse o olhar sem falar com ela. De qualquer modo, era pouco provável que Lorde Barre voltasse a atenção à fileira de matronas que observavam as filhas dançarem.                                  

— Juliana? — Uma voz masculina profunda reverberou pelo ar, cheia de surpresa e, não poderia estar equivocada, de prazer.

Juliana ergueu a cabeça. Apesar dos anos que se pas—        saram, reconheceu aquela voz de imediato. Nicholas Barre caminhava a passos largos em sua direção, com um sorriso iluminando o belo rosto.

— Nicholas! — A palavra saiu de sua garganta num sussurro e sem perceber, Juliana levantou-se.

— Juliana, é você? — Ele parou a sua frente, tão alto que ela precisou inclinar a cabeça para trás a fim de fitar seus olhos negros. Um sorriso curvava-lhes os lábios firmes. — Não posso acreditar! Quando penso em todo o tempo em que procurei por você... — Ele estendeu uma das mãos, ligeiramente trêmula. Ela ofereceu-lhe a sua.

— Eu... peço desculpas. Deveria dizer Lorde Barre -disse ela.

— Imploro que não o faça. Eu pensaria que não se considera mais minha amiga.

Juliana sentiu as faces arderem, incerta do que responder. Sentia uma timidez não muito comum. Nicholas se tornara de repente tão familiar e tão diferente. Os traços do menino ainda eram evidentes no homem.

— Estou surpresa por ter me reconhecido — disse ela. — Já se passou tanto tempo.

Ele deu de ombros.

— Você cresceu. — Os olhos dele viajaram pelo corpo feminino. — Mas o rosto ainda é o mesmo. Jamais poderia esquecê-lo.

Alguém que ocupava a cadeira ao lado de Juliana clareou a garganta, despertando-a do transe.

— Oh, me desculpe. Lorde Barre, permita-me apresentar-lhe a Sra. Thrall. — Juliana voltou-se em direção à patroa. — Sra. Thrall, Lorde Barre.

A matrona sorriu de maneira afetada, estendendo a mão a Nicholas.

— Lorde Barre, que prazer! Sem dúvida, o senhor gostaria de conhecer Clementine, mas ela está no salão de dança. O cartão dela está sempre cheio, o senhor sabe.

— Sra. Thrall. — Nicholas fez uma reverência educada, voltando-lhe um rápido olhar antes de tornar a fitar Juliana. — Espero que me dê a honra de uma valsa, Juliana.

Juliana estava ciente de que a patroa, sem dúvida, não aprovaria que ela se afastasse de suas funções daquela maneira, mas desejava ardentemente aceitar o convite. Jamais dançara em qualquer um dos bailes que freqüentou. Nem conseguia contar as inúmeras vezes em que se sentara, com os pés acompanhando o ritmo da música, enquanto observava os casais rodopiarem pelo salão.

— Eu adoraria — disse ela e em seguida olhou para a patroa. — Se a senhora permitir, Sra. Thrall.

Ela esperava pelo menos uma carranca da matrona, juntamente com um sermão sobre a impropriedade de ela se dirigir ao salão em companhia de um homem solteiro, enquanto negligenciava a tarefa de tomar conta de Clementine. Por outro lado, esperava que ela não tivesse coragem de recusar abertamente o convite de um conde.

Para sua surpresa, no entanto, a mulher sorriu condescendente para ela e disse:

— Claro. Isso parece uma ótima idéia. Sem dúvida Clementine já terá voltado quando vocês acabarem de dançar.                      

Nicholas mais uma vez fez uma reverência em direção à Sra. Thrall e estendeu a mão a Juliana. Ela tomou-a imediatamente, deixando que a conduzisse à pista de dança, lutando para controlar a felicidade que vibrava dentro dela.

— Quem diabos é Clementine? — murmurou ele, inclinando a cabeça sobre a dela.

Juliana não conseguiu reter uma risada.

— É a filha da Sra. Thrall. Está debutando este ano.

— Santo Deus! Mais uma — comentou ele, enfadado.

Juliana, acostumada aos arroubos da horda de pretendentes de Clementine, não pôde deixar de sentir um rasgo de divertimento.

Nicholas virou-se de frente para ela, colocando uma das mãos suavemente em sua cintura e tomando-lhe a outra mão. Ela se sentiu sem ar, os nervos pulando de excitamento, conforme soavam os primeiros acordes da valsa, e deslizavam pela pista. Poucas vezes Juliana valsara. Nunca houve uma temporada em Londres para ela e damas de companhia não eram chamadas para dançar. Ela temia cometer algum deslize.

Nos primeiros instantes, estava muito concentrada em seguir os passos para prestar atenção a qualquer outra coisa, mas pouco a pouco conseguiu entrar no ritmo da música e se sentiu deslizando pelo salão com facilidade. Arriscou um olhar a seu parceiro. Parecia um sonho, pensou, estar nos braços de Nicholas após todos aqueles anos.

Como se lesse seus pensamentos, Nicholas disse-lhe:

— Sabe de uma coisa? Tive um trabalhão tentando encontrá-la.

— Sinto muito — respondeu Juliana. — Não sabia que estava procurando por mim.

— Claro que estava. Por que não estaria?

— Já se passou muito tempo. Eu era apenas uma criança quando você partiu.

— Você era minha única amiga. Isso é difícil de esquecer.

As palavras eram verdadeiras. Quando o conheceu, pensou que ele era a pessoa mais solitária que já encontrara. Aos 12 anos, sua reputação de rebelde e causador de problemas já estava firmemente estabelecida e mesmo naquela época já havia uma certa dureza em seu semblante que afastava as pessoas. Mas Juliana, que também se sentia um peixe fora d'água após a morte do pai, sentiu uma imediata afinidade por aquele rapaz circunspecto e reservado. Ela adivinhara em seus olhos cor de ônix uma solidão e uma vulnerabilidade que a atraíam.

— Éramos os rejeitados de Lychwood Hall — concordou ela, mantendo a voz animada.

— Prometi que voltaria, não se lembra?

— Lembro-me. — E passou anos de sua vida esperando por ele, até ficar adulta o suficiente, para adquirir sabedoria e desistir daquele sonho. — Porém nunca mais ouvi falar de você.

— Nunca fui um bom correspondente — admitiu Nicholas.

Juliana sorriu.

— Isso é uma desculpa da pior categoria.

— Não queria que soubessem onde me encontrava -disse ele, dando de ombros.

— Eu sei. — Mesmo sendo uma criança, ela entendeu aquela atitude. — Nunca esperei que me escrevesse — respondeu com honestidade.

— De alguma forma pensei que ainda estaria lá quando eu voltasse.

— Em Lychwood Hall? — perguntou Juliana, surpresa.

— Tolice minha, eu sei. É claro que deveria estar louca para se livrar deles também.    

— Minha mãe morreu quando eu estava na escola com Seraphina — contou Juliana. — Depois disso, não havia mais nada que me prendesse lá.                       ,

— Perguntei por você lá — continuou ele. — Meu tio está morto agora, mas minha tia me disse que você viajara para o exterior há muitos anos e que não sabia nada sobre seu paradeiro.

Juliana ergueu uma sobrancelha.

— A memória dela deveria estar fraca nessa ocasião. Voltei à Inglaterra já há alguns anos e enviei um cartão de Natal para tia Lilith.

— Suponho que a falta de conhecimento dela era bastante conveniente. Incumbi um dos homens que trabalha para mim a tarefa de localizá-la. Mas disse-lhe que você estava na Europa, portanto, não é de se admirar que ele tenha obtido poucos resultados. — Lançou-lhe um olhar inquisitivo. — Se estava em Londres, por que não a tenho visto em lugar nenhum?

Juliana deu um sorriso tímido.

— Damas de companhia raramente são vistas.

— Dama de companhia? — Nicholas franziu o cenho. — Você, Juliana? Não...

— O que esperava que eu fizesse? — Juliana ergueu o queixo, desafiadora. — Tinha que encontrar meu lugar no mundo de alguma maneira e não gostava da idéia de me tornar uma governanta. Não sei costurar o suficiente para tornar-me uma costureira. E pode chamar de orgulho bobo, mas não me agradava procurar emprego embaixo da escada.

Nicholas apertou os lábios. ,— — Não diga bobagens. Nenhum desses empregos faz jus a você.

— Eu não podia continuar vivendo da caridade de Trenton Barre. Certamente você, dentre todas as pessoas, pode entender isso. Você fez sua própria vida e eu também.                              

— É diferente para uma mulher — comentou ele.

— Tenho plena consciência disso. Existem bem poucas maneiras de uma mulher poder se sustentar sozinha e menos ainda as que podem ser consideradas respeitáveis — respondeu Juliana, mordaz. -Acredite-me, eu preferia ter conseguido algo mais excitante ou até mesmo mais interessante. Às mulheres, no entanto, são dadas poucas chances nesse aspecto.

Ele deu um meio sorriso.

— Eu havia esquecido o quanto é impetuosa em defender suas causas. Por favor, não se ofenda com minhas palavras. Não tive intenção de criticá-la. Estou muito orgulhoso de sua paixão e dedicação. Afinal, já fui uma de suas causas.

Juliana relaxou e deu um sorriso.

— Não. Eu é que devo pedir desculpas. Apenas expressou sua preocupação pelo meu bem-estar e fiquei tão irritadiça quanto um porco-espinho. Tenho plena consciência de que não poderei mudar o mundo, e que tampouco você é culpado de qualquer coisa que tenha acontecido comigo.

— Eu gostaria de ter sabido. Deveria ter adivinhado.

— E o que poderia ser feito? — perguntou Juliana em tom provocante.

— Poderia tê-la ajudado. Deveria... — Ele parou de repente, sem saber o que dizer.

— Vê? Minha sorte não estava em suas mãos. Se vai dizer que ia me enviar dinheiro, deve saber que isso jamais seria considerado adequado. Sabe o que dizem de mulheres solteiras que vivem às custas de um homem.

— Ninguém ousaria pensar isso de você — disse Nicholas, incisivo.

Juliana sorriu.

— Fico feliz que pense assim. De qualquer forma, não há motivo para sentir pena de mim. Minha vida tem sido na maioria das vezes agradável. Fui dama de companhia durante muitos anos de uma mulher inteligente e bondosa. A Sra. Simmons. Até que ela ficou muito frágil e se mudou para a casa de seu filho. Ela me tratava mais como uma sobrinha ou protegida do que como empregada. Eu jantava em sua companhia e dormia em um quarto adjacente ao dela, e em troca tinha apenas que passar algumas horas do dia conversando com ela ou ajudando-a a ler sua correspondência. Viajamos pelo continente e posso lhe garantir que foi muito mais agradável do que quando acompanhei Seraphina e tia Lilith em seu tour após a conclusão dos estudos.

Nicholas estremeceu.

— Acredito que sim. Isso soa mais como tortura do que como viagem.

-E o tempo todo tia Lilith me lembrava da minha sorte em ter a oportunidade de expandir meus horizontes na companhia delas.

— Nada é bom na companhia delas — concordou Nicholas.

— É tão reconfortante conversar com você! — exclamou Juliana. — Ninguém mais entenderia exatamente o que se passou. Como nos faziam sentir agradecidos por cada colher de alimento que nos era dada e por cada farrapo que cobria nosso corpo.

— E o quanto éramos mal-agradecidos pela maravilhosa oportunidade de privar da companhia deles — acrescentou Nicholas.

— Justamente — assentiu Juliana, sorrindo.

Era estranho, pensou ela, que se sentisse tão rapidamente confortável na presença dele, como se os anos não houvessem passado. Ele era Nicky outra vez, seu protetor contra as malvadezas e as táticas intimidadoras dos Crandall, seu confidente, seu amigo.                                

E, ao mesmo tempo que se sentia assim, tinha consciência do quanto ele havia mudado. Nenhum dos dois era mais criança. Nicholas era um homem feito, alto, forte e incrivelmente masculino. Deslizar pela pista de dança em seus braços era muito diferente de ficar sentada a seu lado às margens do riacho, balançando os pés na água. Havia i um excitamento básico em estar tão próxima a ele, sentindo a mão dele espalmada em sua cintura. Juliana não pôde evitar a idéia de que ele agora era um total estranho. Alguém, cujos pensamentos e ideais ela desconhecia, cujos últimos 15 anos eram um mistério para ela.

A música finalmente parou e eles, então, se separaram. Juliana o fitou. Ela estava quase sem ar e sabia que não era apenas pelo esforço da dança.

Nicholas ofereceu-lhe o braço e caminharam de volta para onde a Sra. Thrall os aguardava. Juliana notou com uma ponta de irritação que Clementine estava sentada ao lado da mãe. A moça era a personificação da beleza britânica — toda coquete em seu recatado vestido branco. Os olhos muito azuis é os cabelos louros emoldurando-lhe as belas feições.

Os homens eram atraídos por sua figura de boneca de porcelana e Clementine alcançara um certo sucesso naquela temporada. Contudo, ainda não tivera a chance de se deparar com um cavalheiro possuidor de um título, e Juliana suspeitava que ela e a mãe esperavam corrigir tal situação naquele exato momento. A Sra. Thrall obviamente ficara encantada em conhecer Lorde Barre e Juliana estava certa de que a matrona arrancara a filha da pista de dança, de forma que ela pudesse ser apresentada a Nicholas no momento em que ele a trouxesse de volta. Um rápido olhar ao jovem que se encontrava ao lado delas confirmou suas suspeitas.

— Juliana! — A Sra. Thrall exclamou como se ela fosse sua melhor amiga. — E Lorde Barre. Por favor, permita-me apresentá-lo à minha filha Clementine.

Clementine fitou Nicholas com uma expressão de timidez e em seguida abriu um sorriso encantador.

— Milorde, é um prazer conhecê-lo.

Juliana trincou os dentes, de certa forma surpresa com a onda de irritação que a assolou.

— Srta. Thrall — Nicholas também sorriu e inclinou-se em reverência, ao mesmo tempo fitando o jovem atrás dela.

Clementine abriu o leque e abanou-o com suavidade, fitando Nicholas por sobre ele. Nicholas voltou-se para Juliana.

— Espero que me permita visitá-la, Srta. Holcott. Juliana sorriu.

— Claro... quer dizer... — Voltou-se para a Sra. Thrall. — Se a senhora permitir, madame.

— Claro que sim — apressou-se a dizer a matrona, mostrando os dentes num sorriso largo, quase assustador. — Ficaremos honrados com a visita do conde em nossa casa. — Ela informou-lhe o endereço, acrescentando. — Não é um dos mais elegantes endereços. Esta é a primeira temporada de Clementine e não tinha idéia de com quanta antecedência teríamos que alugar uma casa para conseguir um bom local para morar.

— Oh, tenho certeza de que a presença de tão belas damas torna qualquer lugar elegante — respondeu Nicholas com diplomacia.

Clementine e a mãe sorriram com o comentário e Juliana sentiu um ciúme quase infantil. Nicholas era dela, gostaria de gritar.

Mas claro que aquilo era um absurdo. Nicholas não era e jamais poderia ser dela.

Nicholas afastou-se com uma mesura e um sorriso imparcial a todas. Logo que ele saiu, Clementine e a mãe viraram-se para Juliana.

— Você não nos contou que conhecia Lorde Barre! -exclamou a Sra. Thrall, num misto de acusação e deleite.

— Não tinha certeza de que ele se lembraria de mim — respondeu Juliana. — Passaram-se muitos anos desde que nos vimos pela última vez.

— Mas como o conheceu? — indagou Clementine, aproximando-se de Juliana e virando as costas com rudeza ao rapaz que estava a seu lado.

— Éramos amigos quando crianças — explicou Juliana.

— Eu... morava perto da família dele. — Era muito complicado explicar o relacionamento entre eles e, acima de tudo, ela não desejava expor sua história à curiosidade delas.

— É muito generoso da parte dele procurá-la — disse a Sra. Thrall, sem se preocupar com a rudeza de suas palavras.

Juliana, acostumada à sua posição de dama de companhia, ignorou o desdém da outra mulher.

— Ele é um homem generoso — disse secamente.

— Claro. Sem dúvida ele desejava conhecer Clementine — continuou a matrona, tentando explicar o fato estranho de um nobre se relacionar com alguém com tão baixo status como Juliana. — E conhecer você, Juliana, facilitou as apresentações.

Juliana engoliu sua raiva. Lembrou a si mesma de que a Sra. Thrall era uma mulher de pouco senso. Talvez não tivesse a intenção de ser rude. Ou talvez achasse que Juliana não possuía sentimentos suficientes para se ofender. Nicholas aproximou-se porque queria encontrá-la e não para ser apresentado à filha da Sra. Thrall.

Porém, à medida que a noite passava e Juliana observava Clementine flertar com sua horda de admiradores, sem parar de dançar um minuto sequer, aquela certeza começou a ruir. A moça era devastadoramente atraente, enquanto ela...

Desceu o olhar ao seu traje escuro e gasto. Estava vestida como uma governanta. Seus cabelos presos em coque no alto da cabeça. Uma dama de companhia não era paga para atrair atenção. Especialmente, no caso da Sra. Thrall que abominava qualquer concorrência com sua própria filha. Como poderia algum homem dispensar-lhe sequer um olhar quando se encontrava ao lado de Clementine?

 

Juliana remoeu aquele assunto pelo resto da noite. Não acreditava que Nicholas a tivesse usado para conseguir I ser apresentado a Clementine. Por outro lado, era bastante realista para saber que ele com certeza notara a beleza da moça quando a conhecera. E havia também o fato de ter demonstrado desejo de visitá-la. Isso deveria ' ter mais ligação com a beleza de Clementine do que com sua antiga amizade.

Não que tivesse a pretensão de achar que Nicholas pensasse nela com interesse romântico. Há muito tempo desistira desses sonhos tolos de infância. Agora era uma mulher adulta e ciente de que não sabia nada sobre o homem em que ele se transformara. Apenas conhecera o menino. Mas um dia ele fora muito querido, portanto doía pensar que sua motivação para visitá-la se devesse meramente ao interesse pela bela Clementine.

Durante o percurso para casa, a Sra. Thrall e a filha golpearam-na com perguntas sobre o belo e casadoiro Lorde Barre. Quantos anos tinha? Ele possuía uma residência em Londres? Ele era tão rico quanto realmente diziam?i

— Ele tem 31 anos, mas quanto ao resto, não sei — respondeu Juliana, agastada. — Não conversamos sobre essas coisas enquanto dançávamos. E não o via há muitos anos.

— Os rumores dizem que tem uma fortuna fabulosa — comentou Clementine com os olhos brilhantes.

— Ouvi dizer que fez fortuna no comércio com a China — acrescentou a Sra. Thrall. — Não é uma ocupação adequada a um nobre, claro, porém sua estirpe é impecável.

— E a fortuna é enorme — murmurou Juliana.

— Exatamente — concordou a Sra. Thrall, acenando com a cabeça, sem perceber o sarcasmo contido nas palavras de Juliana.

— Já ouvi boatos de que ele conseguiu sua fortuna durante a guerra — disse Clementine. — Sarah Thurgood disse que a tia dela lhe contou que ele era um espião.

— Ela disse de que lado? — perguntou Juliana.

— Ninguém sabe — confidenciou Clementine com os olhos muito abertos. — A reputação dele é de um homem bastante perigoso.

— Era um rebelde quando jovem — disse a Sra. Thrall.

— Ele sempre foi muito difamado — replicou Juliana. Aquele era o tipo de afirmação que sempre escutara com relação a Nicholas desde o dia em que o conhecera.

— Todos dizem... — começou Clementine.

— Ninguém o conhece — cortou Juliana.

— Francamente, Juliana. — A Sra. Thrall lançou-lhe um olhar irado.

Juliana engoliu a raiva. Sua língua afiada com freqüência a colocava em apuros. Fora uma árdua lição, mas com o passar dos anos aprendeu a não discutir com seus patrões.

— Desculpe-me, madame — disse ela. — Não pretendia contradizê-la. Apenas sei que Lorde Barre sempre foi julgado como mais perverso do que realmente é.

A Sra. Thrall sorriu condescendente.

— Deve acreditar em mim, querida, como alguém que conhece muito mais o mundo que você. Onde há fumaça, há fogo.                                                          

Felizmente, o senso de humor de Juliana superou sua raiva. A mulher declamou o provérbio como se fosse uma fonte de sabedoria.                                                

— Claro — concordou Juliana, comprimindo os lábios para evitar soltar uma risada. Afinal, que importância tinha o que uma tola como Elspheth Thrall pensava a respeito de Nicholas Barre?

Acomodou-se no canto da carruagem, ouvindo apenas parcialmente o cacarejar de Clementine sobre que vestido deveria usar no dia seguinte e que penteado seria melhor. Quando chegaram em casa, subiu para seu quarto, um pequeno aposento parcamente mobiliado no final do corredor, próximo à escada que levava à ala dos serviçais. Como dama de companhia, seus aposentos não ficavam junto com os dos demais empregados, porém estavam longe de ser considerados confortáveis. I Juliana pensou com nostalgia em suas acomodações quando trabalhava para a Sra. Simmons.

Bem, lembrou a si mesma, até mesmo morar em um pequeno quarto, tendo que aturar uma patroa como a Sra. Thrall era preferível a continuar vivendo da caridade de Lilith e Trenton Barre.

Com uma careta, Juliana começou a retirar a roupa. A mente voltava ao tempo que passara na propriedade dos Barre. Ela achava que o fato de ter encontrado Nicholas a levava àquelas recordações, pois há muito tempo conseguira enterrar suas lembranças, e normalmente não pensava no passado.

Juliana tinha 8 anos quando seu adorado pai, o erudito filho mais novo de um barão, falecera. Lembrava-se de ter ficado na cama à noite, ouvindo o som do suave pranto da mãe no quarto adjacente. Juliana estava assustada demais para chorar.

Da noite para o dia, seu mundo virou de cabeça para baixo. Não apenas o pai a deixara, mas a mãe, que sempre fora carinhosa e sorridente dera lugar a uma mulher pálida, triste e ansiosa, que vivia pelos cantos chorando. Primeiro, as empregadas partiram e em seguida o caseiro, um homem zangado e irritadiço, que vivia batendo à porta delas. Aquelas visitas invariavelmente faziam a mãe chorar.

Finalmente, abandonaram a pequena casa, na qual Juliana vivera a vida inteira, levando apenas as roupas do corpo e as jóias da mãe e mudaram-se para um conjunto de quartos em uma casa onde várias outras pessoas moravam. Sua mãe, Diana, passava o tempo à janela com o olhar perdido em algum ponto e escrevendo cartas. De tempos em tempos, Diana pegava sua pequena caixa de jóias e a abria, avaliando o conteúdo. Então, escolhia um conjunto de brincos ou um bracelete. Saía por algumas horas e voltava com os olhos vermelhos e um saco de doces para Juliana.

Somente alguns anos mais tarde, Juliana conseguiu entender o terror que a frágil e bela face da mãe denotava. Uma mulher com uma criança pequena, sem dinheiro e sem habilidade para exercer qualquer profissão, conseguindo sobreviver à custa da venda de suas parcas e preciosas jóias e ciente de que em breve aquela fonte também secaria e ficariam na miséria. A única renda da família eram os poucos bens deixados pelo pai em custódia com a avó e uma pequena quantia em dinheiro que ele ganhara com os artigos que escrevera. Ambos os rendimentos feneceram junto com o pai.

Um dia, um homem alto de cabelos negros veio visitá-las. Ele falou rapidamente com sua mãe, que começou a chorar. Juliana correu até ela, furiosa com o homem que magoara a mãe.

Diana estendeu os braços e abraçou a filha. Puxando-a de encontro ao peito, disse:

— Querida, este é o marido da prima Lilith e ele acaba de nos salvar. Foram muito bondosos em nos convidar para morar com eles.

No dia seguinte, viajaram para Lychwood Hall em companhia de Trenton Barre. Lychwood Hall havia sido um lugar grande e imponente, construído com rochas cinza e faixas alternadas de cimento escuro. Felizmente Juliana e a mãe não foram viver na propriedade propriamente dita, mas em um pequeno chalé nos fundos. Juliana achou o lugar triste e frio, mas a mãe sempre lhe dizia o quão afortunadas eram por encontrar um lar.

Diana explicara à filha que a prima, Lilith, casara-se com Trenton Barre e que o casal não apenas lhes estava fornecendo uma casa onde viver, como também permitiam generosamente que Juliana fosse educada junto com os próprios filhos na casa principal. Com cuidado, instruíra a filha como deveria agir na presença da família Barre — sempre educada e respeitosa — e nunca contradizê-los nem ser um estorvo para eles. Estavam lá apenas por caridade, explicou ela a Juliana e disse-lhe que jamais deveria se esquecer disso. Ela deveria brincar com os filhos dos Barre somente se lhe mandassem, e deveria dizer que eles sempre tinham razão em tudo, tanto nas brincadeiras quanto nos deveres da escola.

Tais avisos exasperavam Juliana, que sempre teve um espírito independente. Irritava-a depender da caridade alheia. Contudo, devido ao seu desejo de agradar a mãe e acalmar-lhe a ansiedade, prometeu seguir suas ordens. Em seguida, foi apresentada à família que na mente infantil de Juliana possuía um poder incalculável.

Lilith Barre era uma loura alta, esbelta e fria. Muito diferente da figura curvilínea e pequena da mãe de Juliana. Ela não parecia o tipo de pessoa que permitisse a uma criança sentar em seu colo e pousar a cabeça em seu ombro. Por certo, não demonstrava nenhum tipo de afeição nem por Juliana nem por sua mãe. Achava difícil acreditar que tivesse algum grau de parentesco com aquela gente.

Lilith encarou Juliana com olhar frio e avaliador e em seguida instruiu uma das serviçais a levar a criança ao encontro da preceptora e dos demais empregados.

A preceptora era uma mulher que parecia variar entre vários tons de cinza, desde os cabelos prateados até o vestido recatado. Chamava-se Srta. Emerson. Juliana foi apresentada também a Crandall e Seraphina Barre.

.Crandall era um menino robusto que deveria ter um ou dois anos a mais que ela, com uma expressão arrogante e olhos frios.

— Você é mais um parente pobre — anunciou ele, fazendo uma careta e pondo a língua para fora.

Juliana, que não estava acostumada à presença de outras crianças, ficou chocada, mas mesmo assim fez-lhe uma educada reverência como a mãe mandara e virou-se para a irmã dele. Seraphina tinha mais ou menos a sua idade e parecia-se muito com a mãe, alta para sua idade e magra, com longos cabelos louros, cuidadosamente penteados em trancas e presos no alto da cabeça.

— Olá — disse Seraphina em um tom mais amigável que o da mãe. — Mamãe disse que você veio para brincar comigo.

— Sim, se você quiser — respondeu Juliana, aliviada por pelo menos uma pessoa naquela casa não lhe demonstrar sentimentos de repulsa.

O olhar de Juliana passou pelas duas crianças e recaiu sobre outro menino que se recostava de modo relaxado à estante de livros. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos e uma fisionomia fechada. Ele parecia alguns anos mais velho que Juliana. Tinha cabelos negros e espessos que lhe caíam desgrenhados pela face e olhos igualmente negros. Olhou para Juliana sem demonstrar qualquer tipo de emoção enquanto ela o estudava com curiosidade.

— Oi — disse ela finalmente, intrigada com o menino que parecia muito mais interessante do que o resto da família. — Meu nome é Juliana Holcott. Quem é você?

— E o que isso lhe interessa? — retrucou o garoto.

— Nicholas! -— exclamou a preceptora.

— Ele mora conosco — explicou Seraphina.

— Ele é órfão — acrescentou Crandall com um riso de escárnio.

O garoto lançou um olhar ameaçador a Crandall, mas não disse nada.

— O nome dele é Nicholas Barre. — A preceptora informou. — É primo dos meninos. O Sr. Trenton Barre é seu tutor. O Sr. Barre, como você sabe, é um homem muito generoso e bondoso e tomou conta dele após o acidente dos pais. Contudo, sua pergunta foi bastante rude. Deve aprender a conter sua língua. Juliana encarou a mulher, surpresa.

— Mas de que outra maneira eu poderia saber quem ele era?

A Srta. Emerson franziu o cenho e a mandou mais uma vez conter a língua. Juliana, lembrando-se das instruções da mãe, engoliu o protesto que queria fazer. Ela olhou para Crandall, que a encarava com um sorriso malicioso, e em seguida para Nicholas, que a observava impassível.

Eles haviam começado a estudar. Juliana, cujo pai era um erudito e fora seu mestre no passado, achou os trabalhos escolares muito fáceis e maçantes. Quando a Srta. Emerson leu para eles o trecho de um livro que Juliana já havia lido, teve que lutar para manter os olhos abertos. Um olhar em torno demonstrou que Nicholas, cuja cabeça pendia sobre a mesa, nem sequer fingia ouvir. Juliana desejou ser tão ousada quanto ele.

Mais tarde, naquela tarde, enquanto a Srta. Emerson escrevia no quadro-negro problemas de matemática, Crandall retorcia-se na cadeira, obviamente enfadado. Depois de alguns instantes, ele retirou alguns itens do bolso. Em seguida, escolheu uma pedra pequena. Olhando em volta da sala, notou que Juliana o observava e então riu e piscou para ela. Logo após, lançou a pedra na preceptora. A pedra não a atingiu, mas foi de encontro ao quadro-negro e a Srta. Emerson pulou assustada. Ela virou-se com os olhos brilhando de raiva. — Nicholas! Isso foi muito perigoso. Estenda as mãos.

Ela marchou em direção ao garoto segurando uma pesada régua.

— Não fiz nada — reclamou Nicholas, furioso. — Foi Crandall.

— E agora está cometendo mais um pecado: a mentira — disse a preceptora. — Estenda as mãos já. — Ela levantou a régua.

— Não fui eu! — repetiu Nicholas, enquanto se.levantava e encarava a professora com raiva.

— Como ousa me desafiar? — gritou a Srta. Emerson, parecendo um tanto assustada. — Vá já para o seu quarto.

— Mas ele está dizendo a verdade — protestou Juliana. — Foi Crandall quem jogou a pedra. Eu vi.

O olhar frio de Nicholas voltou-se para Juliana. A preceptora virou-se para fitá-la também, a face vermelha de raiva.

— Não minta para mim, mocinha — disse ela.

— Não estou mentindo! — exclamou Juliana. — Eu não minto. Foi Crandall. Nicholas não fez nada.

As palavras pareciam apenas enfurecê-la cada vez mais.

— Será que esse garoto já a corrompeu? Ou vocês são simplesmente farinha do mesmo saco? Não há dúvidas de que também foi largada no mundo, tendo que depender da generosidade alheia...

Lágrimas surgiram nos olhos de Juliana e ela sentiu um desejo de voar em cima daquela mulher e agredi-la.

— É muito bom que não tenhamos que depender da sua generosidade — disse Nicholas à preceptora, abrindo e fechando os punhos. — Pois é evidente que não possui nenhuma.

— Vá para o seu quarto agora mesmo. Vamos ver se amanhã continuará tão desafiador depois de ficar sem jantar hoje à noite.

— Isso não é justo! — gritou Juliana.

— E você, mocinha, ficará de pé olhando para a parede no corredor até que eu lhe diga para parar. E sugiro que pense em seus atos e se pergunte se uma dama diria as mesmas coisas que você acaba de dizer.

Nicholas marchou para fora do salão e entrou em uma pequena sala contígua, batendo a porta atrás de si.

Juliana tomou seu lugar no corredor e mais tarde, quando a Srta. Emerson permitiu que ela voltasse às lições, manteve a boca fechada e ignorou os olhares atravessados de Crandall. Durante o lanche, ela guardou um sanduíche em seu bolso. Mais tarde, quando as crianças deveriam estar lendo e a Srta. Emerson cochilava em sua cadeira, Juliana esgueirou-se até onde Nicholas se encontrava.

Ele estava sentado olhando para fora da janela e admirou-se com a entrada brusca de Juliana. Franzindo o cenho, levantou-se e caminhou até ela.

— O que está fazendo aqui? — sussurrou ele. — Se o dragão a pegar, vai puni-la.

— Ela está dormindo — informou Juliana, levando a mão ao bolso e, retirando um sanduíche embrulhado em um guardanapo, entregou-o a Nicholas.

Ele encarou-a com olhar inquisitivo.

— Por que está fazendo isso?

— Porque achei que ficaria com fome — explicou ela. Ele a encarou por mais um momento e em seguida começou a comer.

— Não deveria ter feito isso, sabia?

Trazer-lhe comida? Ele deu de ombros.

— E também contradizer o dragão. Crandall está sempre certo e eu sempre errado. É assim que tem que ser em Lynchwood Hall.

— Não entendo. Isso não é justo.

Mais uma vez, Nicholas deu de ombros.

— Não importa. É assim que funciona. — Ele fez um gesto com a cabeça em direção à porta. — É melhor ir agora.

Juliana assentiu e atravessou a sala em silêncio. Ao alcançar a maçaneta da porta, Nicholas disse num tom muito baixo:

— Obrigado.

Juliana virou-se e sorriu. Então ele devolveu-lhe o sorriso. Aquele raro e doce sorriso que lhe transformava a face. Naquele momento, o laço entre eles foi formado.

As lições que Juliana aprendera naquele dia se confirmaram nos dias subseqüentes. Crandall e Seraphina nunca estavam errados e nunca eram punidos. Nicholas era invariavelmente acusado por todas as más ações.

Juliana reclamou com a mãe sobre a injustiça praticada pela preceptora, mas ela apenas balançou a cabeça e as rugas em sua testa tornaram-se mais e mais visíveis.

— Não contradiga a preceptora — avisou Diana. -Obedeça às ordens dela e seja uma boa menina. Você acha que ela agiria assim por iniciativa própria? Ela foi contratada pelo Sr. Barre. Nunca faria nada que o desagradasse. Ninguém nesta casa faria.

Juliana não entendeu a princípio o que as palavras da mãe significavam, mas a menção ao nome Trenton Barre era suficiente para calar seus protestos. Juliana o achava assustador. Ele era quieto e calmo. Jamais demonstrava raiva, mas seus olhos frios podiam congelar qualquer pessoa. Até Crandall se comportava na presença do pai.

Nicholas era a única pessoa que sustentava o olhar do tio, com as costas eretas e a cabeça erguida, mesmo quando sabia que aquela "impertinência" o levaria inevitavelmente a um castigo no escritório do Sr. Trenton Barre.

Juliana nunca entendeu onde Nicholas encontrava tanta coragem. Mesmo conseguindo brigar com Crandall e contradizer as instruções da Srta. Emerson, seu espírito sempre se anulava na presença de Trenton. Apesar de chamar a Sra. Barre de "tia Lilith", como Nicholas fazia, simplesmente não conseguia se dirigir ao Sr. Barre de qualquer outra forma que não fosse "senhor". Ele visitava o chalé delas periodicamente para uma visita de cortesia e Juliana tremia de medo todas as vezes que ele aparecia. A mãe a chamava para cumprimentar o Sr. Barre e ela obedecia, fazendo uma educada reverência. Juliana raramente conseguia erguer a cabeça e fitá-lo nos olhos, o que ele parecia achar engraçado. E no mesmo instante em que a dispensava, Juliana corria para o quarto e se trancava enquanto ele permanecia no chalé.

Sabia que a mãe ficava preocupada com aquelas visitas. Juliana podia sentir a tensão na face da mãe quando ouvia a voz do Sr. Barre na porta da frente. Diana fitava a filha ansiosa, arrumava o gorro e retirava o avental. E Juliana tinha certeza de que a mãe ficava preocupada de que ela a envergonhasse ou ofendesse o Sr. Barre de alguma forma.

Quando Juliana reclamava de ter que fazer uma aparição educada, sua mãe sempre a repreendia.

— Não diga uma coisa dessas. Os Barre têm sido muito generosos conosco. Não temos nenhum lugar para onde ir se nos mandarem embora. Você não pode ofender o Sr. Barre. E, por favor, não diga nada a ele sobre aquele menino malcriado.

— Nicholas não é malcriado! O Crandall sim, é malcriado e malvado.

Mas a palidez estampada na face da mãe a fazia parar. Ela se forçava para ser educada e aturar as horas que passava na companhia de Crandall e Seraphina.

Naquela época, Juliana não cogitava sobre o motivo pelo qual os Barre haviam sido tão generosos com elas. Simplesmente aceitara o fato como parte de sua vida. Mas, à medida que ia crescendo, começou a questionar aquela generosidade. Afinal, eles não eram pessoas bondosas e apesar de não ser muito dispendioso permitir que Juliana e a mãe vivessem naquele chalé vazio, até isso parecia fora do estilo deles. Certa vez perguntou à mãe o que achava a respeito disso, mas ela ficou muito assustada e respondeu-lhe que não devia questionar a boa sorte que tiveram.

Quando se lembrava daqueles tempos, anos mais tarde, quando crescera e se mudara daquela casa, Juliana acreditava que Trenton e Lilith Barre talvez as tivessem convidado a morar na propriedade porque ficaria mal aos olhos da sociedade deixar uma viúva e sua filha abandonadas e sem um tostão. Tinha certeza de que a atitude deles não fora guiada por qualquer tipo de generosidade. E quando soube que Nicholas herdaria aquela propriedade e que o tio apenas a administrava por ser seu tutor, Juliana conclui que aquele gesto de caridade saíra do bolso de Nicholas.

Durante os primeiros anos em Lychwood Hall, apenas sua amizade por Nicholas tornava a vida suportável.

Mesmo sendo quatro anos mais velho, permitia que ela sempre o acompanhasse e a protegia contra as maldades de Crandall. Mesmo sabendo que Nicholas seria punido por todas as más ações que praticasse, Crandall morria de medo dele.

Tendo Nicholas como seu aliado, a Srta. Emerson e o os filhos dos Barre podiam ser ignorados. Mesmo o fato de sua mãe jamais ter recuperado a alegria de viver poderia ser suportado.

Juliana ficou arrasada quando Nicholas partiu. Ela entendera sua atitude. Afinal, ele levava uma vida miserável em Lychwood Hall. Ele queria voltar a Cornwall, onde tinha vivido com seus pais. Mas sua ausência a deixara abatida e sozinha.

Agora, após todos aqueles anos, Nicholas voltara. Não podia deixar de imaginar que impacto aquilo teria na vida dela. Juliana, sentada na beirada da cama com o cenho franzido, começou a escovar os cabelos enquanto divagava.

Era óbvio que a Sra. Thrall e Clementine pensavam que poderiam tirar proveito da amizade dela com Nicholas para fisgarem o bom partido do ano. Juliana esperava que seu amigo não fosse tolo o bastante para ficar caído pela beleza de Clementine. Mas não era tão ingênua a ponto de reviver os sonhos românticos de infância há muito enterrados.

Na verdade, nem sabia o que esperar de Nicholas. A única coisa da qual tinha certeza era de como havia sido agradável a sensação de deslizar pelo salão nos braços dele. Como seu coração batia mais forte quando ele sorria. E pela primeira vez em um longo tempo aguardava ansiosa o amanhã.

 

Juliana encontrava-se na sala de estar na tarde do dia seguinte, bordando um lenço de mão, quando a criada anunciou a chegada de um visitante. Deixou o bordado de lado e levantou-se, seu coração falhando uma batida, enquanto a criada anunciava a chegada do conde.

— Nicholas! — Juliana não conseguiu disfarçar o prazer estampado em seu rosto.

— Juliana! — ele atravessou o salão e tomou suas mãos nas dele. — Você parece surpresa. Pensou que eu não viria?

— Claro que não. Apenas... — Ela deu de ombros. Não conseguiria explicar a surpresa e o prazer que sentia com a visita dele tão cedo após tê-la encontrado na noite anterior. — Por favor, sente-se.

Juliana sentou-se no sofá e Nicholas em uma cadeira em frente. A presença daquela figura máscula de certo modo a fez sentir-se muito menor. Estava consciente dos nervos apertando-lhe o estômago. Fitou-o, subitamente insegura quanto ao que dizer.

Ele removeu as luvas e Juliana percebeu o anel na mão direita, um simples sinete de ouro. Ela já o havia notado na noite anterior. Mas agora encarava-o, reconhecendo o H gravado nele.

— O anel de meu pai! — exclamou ela, espantada.

— O quê? — Nicholas seguiu a direção do olhar. — Oh, sim, é o anel que você me deu quando parti.

— E você o guardou todo esse tempo? — De repente, ela sentiu um aperto na garganta e os olhos ficaram cheios de lágrimas.

— Claro. — Ele sorriu. — Tem sido meu amuleto da sorte.

Juliana engoliu em seco. Ficou estranhamente feliz de saber que ele guardara uma lembrança sua, mas ao mesmo tempo sentiu-se um tanto desconfortável.

— Eu... já se passou tanto tempo. Nem sei por onde começar — disse ela por fim com um sorriso. — Para onde você foi? O que tem feito? A cidade fervilha de rumores sobre você.

Ele fez um muxoxo.

— E o que dizem sobre mim?

— Oh, que você foi tudo, desde contrabandista até pirata e espião. Desconfio que a verdade seja algo bem mais prosaico... um mercador marítimo, talvez.

Os olhos negros de Nicholas brilharam divertidos.

— Tudo que dizem talvez tenha um fundo de verdade. Apesar de nunca ter parado um navio e roubado baús de ouro e pedras preciosas.

— Oh, que decepção — comentou Juliana. — Não vou contar o que me disse a nenhuma das moças casadoiras. Vou acabar estragando a imagem que construíram de você.

— Por favor — disse ele, levando a mão ao peito. -Gostaria que destruísse essa imagem que fazem de mim. Seria ótimo poder comparecer aos eventos sem encontrar uma dessas cabeças-de-vento e suas odiosas mães determinadas a lançar as filhas em cima de mim.

— Oh, isso será difícil de acontecer — retrucou Juliana. — Sua reputação é de um homem muito rico. E com um título. Temo que seus caminhos estarão repletos dessas moças até que decida desposar uma delas.

— Nunca! — exclamou ele com uma careta.

— Então, devo avisá-lo que não deve ficar circulando por aqui — continuou Juliana.

Nicholas franziu o cenho e então entendeu o significado do que ela acabara de falar.

Oh! A moça loura?

Juliana assentiu com um gesto de cabeça.

— Clementine.

Ele abriu a boca para falar, mas naquele exato momento, como se aquela conversa a atraísse, ouviram passos do lado de fora e a Sra. Thrall entrou no aposento.

— Lorde Barre! Que surpresa agradável! Sinto muito não ter estado presente para cumprimentá-lo quando chegou.

Com um olhar significativo a Juliana, Nicholas levantou-se e fez uma reverência.

— Sra. Thrall. Estávamos justamente falando da senhora.

A matrona abriu um sorriso radiante, lançando-lhe um olhar coquete.

— Lisonjeador! Sei muito bem quem o senhor está interessado em ver e posso garantir que não sou eu. Não se preocupe, Clementine descerá em um momento. — Ela virou-se para Juliana. — Querida, por que não providencia um chá para nós? Podemos tomá-lo na biblioteca. -Virou-se outra vez para Nicholas com um sorriso. — Tem mais espaço, milorde. Não posso imaginar o que Juliana estava pensando para recebê-lo aqui.

Nicholas lançou um olhar indiferente em volta da sala.

— Estava mais interessado em conversar com Juliana do que no aposento.

Não havia muito a fazer, exceto seguir a Sra. Thrall enquanto ela arrastava Nicholas para fora da sala e o encaminhava à biblioteca. Juliana solicitou o chá e, sentou-se resignada por ter tido a conversa com o velho amigo interrompida.

Clementine surgiu alguns minutos mais tarde, quase sem ar e com um rubor atraente nas faces. Juliana notou que ela havia trocado de vestido e amarrado uma nova fita azul em volta dos cachos dourados.

— Lorde Barre! — Ela adiantou-se e fez uma graciosa reverência, estendendo-lhe a mão e sorrindo para ele. -Fiquei tão surpresa quando mamãe me disse que o senhor veio visitar-me!

Nicholas levantou uma sobrancelha.

— Na verdade, vim fazer uma visita a Srta. Holcott.

Os olhos de Clementine se alargaram àquela inesperada contradição, mas a mãe cuidou de cobrir o momentâneo silêncio da filha.

— Sim, ficamos tão surpresas em saber que nossa querida Juliana o conhecia — disse a Sra. Thrall. Ela levantou o dedo de forma brincalhona para a empregada. -Você, menina má, guardando um segredo desses!

Juliana ficou tentada a responder que os conhecidos dela não eram da conta de ninguém, mas Nicholas interveio.

— Sem dúvida a Srta. Holcott não pensou que um renegado como eu merecesse sua atenção, madame.

A Sra. Thrall deu uma risada.

— Oh, o senhor... — Ela abriu o leque e cobriu a parte inferior da face, deixando à mostra apenas aquele olhar bizarro.

Clementine, chateada por não ser o centro das atenções, voltou a atacar.

— A sua vida deve ter sido tão fascinante! — disse ela a Nicholas, encarando-o com os olhos brilhantes. — Já esteve em tantos lugares. Mal posso imaginar o que deve ter feito.

Oh, sim — concordou a Sra. Thrall. — Deve contar-nos tudo sobre suas viagens, Lorde Barre.

Juliana podia imaginar a Sra. Thrall a compilar trechos daquela conversa para jogar na cara de suas amigas. "Conforme me disse Lorde Barre...", ou "Lorde; Barre me contou que quando esteve na índia..."

Ela fitou o amigo, cuja expressão indicava que tinha pouca vontade de dialogar sobre suas aventuras com a Sra. Thrall e a filha. Ele olhou na direção dela e em seguida voltou-se para a matrona.

— Vai me desculpar, madame, mas infelizmente não disponho de tempo para prolongar nossa conversa. Só passei aqui para convidar a Srta. Holcott para um passeio amanhã em meu coche. — Ele olhou na direção da amiga. — Se estiver disposta, passarei aqui amanhã de manhã.

— Seria maravilhoso — respondeu Juliana depressa, sem sequer fitar a patroa para pedir permissão. Não estava disposta a deixar a mulher arrumar outra visita de Nicholas, dando-lhe a chance de jogar Clementine em cima dele.

— Excelente! -Nicolas levantou-se. -Agora, se me derem licença, devo partir, madames. Sra. Thrall, Srta. Thrall. — Ele fez uma pequena reverência na direção delas. — Srta. Holcott.

— Milorde.

Clementine ficou olhando para a porta após a partida de Nicholas, espantada demais para dizer alguma coisa. Em seguida, virou-se para fitar Juliana, com o rosto contorcido pela raiva. Juliana teve um súbito desejo de que os pretendentes dela a vissem daquela maneira,

— Não! — gritou Clementine. — Você não pode ir. Eu não permitirei.

 

Juliana enrijeceu.

— Como disse?

— Mãe — Clementine virou-se para a Sra. Thrall com a face rubra. — Você não pode permitir que Juliana saia com Lorde Barre. Eu é que deveria passear no coche dele.

Juliana precisou reunir toda sua força de vontade para não gritar que ela é que fora convidada e não Clementine.

— Oh, não, querida — respondeu a Sra. Thrall. — Não se preocupe com isso. É claro que ele precisava convidar Juliana. Não ficaria bem uma moça como você passeando sozinha com um homem solteiro. Juliana precisa acompanhá-la.

— Não. Não precisa — insistiu Clementine. — É muito natural que uma dama passeie sozinha em um veículo com um cavalheiro, especificamente a céu aberto. Juliet Soane me contou que damas e cavalheiros fazem isso o tempo todo.

A mãe pareceu insegura.

— Bem, sei que isso é aceitável para damas de mais idade, mas você é muito jovem e está há pouco tempo na cidade, portanto... — Ela relanceou o olhar para Juliana. — O que você acha?

— Acho que neste caso isso é irrelevante, pois Lorde Barre já me convidou para passear com ele.

— É verdade. -A Sra. Thrall concordou. — E pode estar certa, Clemmy, se um cavalheiro como Lorde Barre pediu que Juliana fosse junto, então é assim que tem de ser.

Juliana teve que apertar os dente para não responder à altura, dizendo-lhes que para início de conversa, Lorde Barre nem sequer havia convidado Clementine. Irritava-a pensar naquela chata intrometendo-se entre ela e Nicholas. Ela ficaria falando e flertando com ele o tempo todo e Juliana não teria chance de conversar com o amigo, como acabara de acontecer. No entanto, não poderia dizer à patroa que a filha dela não era bem-vinda. A Sra. Thrall, por certo, não a autorizaria a ir também.

Clementine ficou amuada por alguns instantes, lançando olhares irados na direção de Juliana, até que, por fim, a Sra. Thrall sugeriu que ambas fossem a uma loja da moda comprar um chapéu novo para a filha usar no passeio. E Juliana poderia aproveitar e levar Fiona à livraria, pois a moça estava insistindo em ir.

A Sra. Thrall ficaria surpresa se soubesse que Juliana preferia acompanhar a filha mais nova a Clementine ou a ela. Fiona tinha apenas 13 anos, porém possuía uma personalidade bem mais interessante do que a da mãe e da irmã juntas. Juliana passava bastante tempo com a menina, pois a Sra. Thrall achava as perguntas de Fiona bastante maçantes, portanto sempre empurrava a filha para as competentes mãos de Juliana.

Por seu lado, Fiona achava Clementine igualmente irritante.

— Se eu escutar mais uma palavra sobre Lorde Barre, acho que vou gritar — disse Fiona a Juliana e ambas caminharam em direção à livraria.

Juliana sorriu para a menina. Fisicamente parecia com a irmã. Os cabelos também eram louros e os olhos azuis, mas a semelhança terminava aí. Fiona já era tão alta quanto Clementine e continuava a crescer. Seu semblante denotava firmeza e em contraste com a irmã os olhos eram vivos e inteligentes.

— Ela não falou em mais nada a não ser nesse homem o dia inteiro — continuou a menina, irritada. — Como é bonito, o quanto é rico e como seu nome é respeitado.

— Lorde Barre é um homem... notável — respondeu Juliana.

A menina fez uma careta.

— Ninguém pode ser esse exemplo de perfeição que Clementine descreve.

Juliana riu.

— Bem, isso provavelmente é verdade. Mas ele é um grande amigo meu. Crescemos juntos e por muitos anos foi o único amigo que tive.

— É mesmo? — Fiona observou-a, pensativa. — Você é amiga do homem com quem Clemmy vai se casar?

Juliana ergueu uma sobrancelha cética.

— É isso que ela diz?

— Oh, sim. Ela disse que ele ficará a seus pés dentro de alguns dias. — Fiona fez outra careta. — E ela geralmente tem esse efeito sobre os homens, mesmo sendo terrivelmente ignorante em quase todos os assuntos, eles ficam caidinhos por ela.

Juliana começou automaticamente a lembrar à menina que ela não deveria falar da irmã daquele jeito. Mas, pensando melhor, decidiu que ela não deveria ser repreendida por falar a verdade.

— Não estou certa de que terá tanto sucesso desta vez.

Na noite anterior, Juliana cogitara a possibilidade de Nicholas ficar atraído por Clementine. Afinal, ele sorrira e conversara com ela. Mas seu comportamento daquele dia revelou que ele tinha pouca paciência para manipulações. Ele partira, alegando falta de tempo, logo em seguida à chegada de Clementine e a despeito do que a Sra. Thrall pudesse pensar sobre o convite que fizera, que, definitivamente, não incluía a filha dela. Talvez a Sra. Thrall e a filha pudessem fazer algum arranjo no dia seguinte para que Clementine fosse ao passeio, mas estava certa de que Nicholas não tivera intenção de incluí-la.

Juliana também vira muitas vezes Clementine atrair vários homens com um estalar de dedos e não tinha certeza se ela conseguiria esse feito com Nicholas, mas não seria fácil.

— Isso seria maravilhoso! — exclamou Fiona, rindo. — Ele deve ser mais esperto que a maioria dos homens que cortejam Clemmy.

— Sim, acho que é. Nicholas sempre foi muito perceptivo.

— Como o conheceu?

— Ele era órfão e vivia na casa do tio. Minha mãe era prima da mulher do tio dele e nós fomos morar em um chalé na propriedade deles. Nicholas e eu formamos uma... bem uma espécie de aliança entre renegados.

— Por que ele era renegado? Quero dizer, ele é um conde agora.

— Era estranho — concordou Juliana. — Ele não era tratado como um futuro conde. Nunca imaginei que isso aconteceria até ouvir que herdou o título. O avô dele estava doente e vivia em Bath e o tio de Nicholas era seu tutor. A maneira como todos agiam... bem, nunca perguntei, mas achei que o tio dele, o Sr. Trenton, seria o herdeiro do título e da propriedade e depois dele, seria o filho Crandall. Trenton Barre tomava conta da propriedade para o pai e todos agiam como se ele fosse o dono.

— Por quê? — perguntou Fiona.

— Trenton Barre era um tirano. Acho que provavelmente todos tinham medo dele. Havia pessoas, alguns serviçais e fazendeiros, que viviam nas imediações, que eram bons para Nicholas. Mas não na frente do tio dele. Nunca entendi por que o tio Trenton não gostava de Nicholas. Agora posso entender que a razão era que ele sabia que Nicholas herdaria o título e não ele ou seu filho. Deveria irritá-lo bastante o fato de que um dia ele teria que passar a propriedade às mãos de Nicholas e que teria que chamá-lo de milorde.

— Bem, ele não era muito esperto. Ou seja, não seria muito melhor tratá-lo bem? Talvez assim não tivesse que perder tudo quando Lorde Barre herdasse o título.

— Acho que tio Trenton não pensava dessa forma. Para ele sempre foi tudo ou nada. Ele tinha de estar no comando. Acho que julgava a propriedade sua e odiava Nicholas por lembrá-lo de que na verdade não era. — Juliana deu de ombros. — De qualquer maneira, não precisou presenciar o sucesso de Nicholas. Morreu há muitos anos.          

— Ele parece ter sido um homem horrível — comentou Fiona.

— E era mesmo. Fiquei contente de estar na Europa com a Sra. Simmons na ocasião em que ele morreu e, portanto, não precisei comparecer ao funeral. Teria sido difícil apresentar minhas condolências.

Elas caminharam em silêncio por alguns minutos e então Fiona disse:

— Bem... se Lorde Barre é seu amigo, então acho que gostarei dele. Isto é, caso não caia de quatro por Clemmy.

— Sim — concordou Juliana. — Acho que também se— ria difícil para eu continuar gostando dele caso isso acontecesse.

Fiona começou a falar sobre o livro que acabara de ler e Juliana ouvia apenas parcialmente o que a menina dizia.; Estava ocupada pensando no parco guarda-roupa que possuía, tentando achar um vestido que não fosse terrível-; mente insípido para usar no passeio do dia seguinte.      

Aquilo, pensou, seria uma tarefa quase impossível. Todos os vestidos que possuía eram sem graça e feitos de tecidos baratos em diversas tonalidades de cinza, azul escuro e marrom, escolhidos por sua durabilidade e praticidade, e para proporcionar-lhe uma aparência de dama de companhia. Damas de companhia, afinal, não eram contratadas para entreter as pessoas à sua volta e sim para denotar uma certa respeitabilidade.                      

Juliana pensou que não suportaria aparecer na manhã seguinte com uma aparência desalinhada, portanto naquela noite pegaria seu melhor chapéu e costuraria nele o ramo de cerejas que havia sido removido. Havia pouco que pudesse fazer quanto ao vestido, a não ser acrescentar-lhe uma renda à gola e às mangas compridas.

Pensou na triste figura que faria sentada ao lado de Clementine, que por certo estaria usando seu mais belo vestido e o chapéu novo e não pôde evitar um sentimento de ciúme. Passara toda sua vida ao lado de pessoas que tinham muito mais posses que ela e nunca sentira inveja. Sempre tentara acreditar que sua riqueza era uma boa saúde e uma aparência razoavelmente atraente, além da habilidade de abrir seu próprio caminho no mundo, sem depender da caridade alheia, como havia acontecido com sua pobre mãe. Era livre, tinha algumas economias e fizera alguns amigos na vida. Essas coisas eram mais do que muita gente possuía.

Mas daquela vez não podia evitar o ressentimento ao pensar em Clementine intrometendo-se num momento que era só seu. Aquela moça desagradável ficaria falando e flertando com Nicholas e estragaria o passeio. E não havia nada que pudesse fazer, exceto esperar que Clementine, como fizera tantas vezes, se atrasasse tanto que partiriam sem ela.

Infelizmente, na manhã seguinte, Clementine já estava pronta e sentada na sala de estar, rubra de excitamento. Os olhos brilhavam e as faces rosadas, Juliana tinha de admitir, a tornavam adorável. O chapéu que comprara no dia anterior era um assombro e lhe acentuava a tonalidade azul dos olhos.

Quando Nicholas foi anunciado alguns minutos mais tarde e entrou no aposento, seus olhos foram atraídos para Clementine e a mãe.

— Sra. Thrall. Srta. Thrall.

Em seguida fitou Juliana, e um sorriso amarelo apareceu em seus lábios.

— Juliana, já está pronta?

— Sim. — Juliana levantou-se, olhando na direção de Clementine que também se levantara.

— Milorde — disse Clementine, com um sorriso encantador e caminhou na direção dele, estendendo-lhe a mão. — Estou vibrando de emoção. Seu coche é muito alto? Ficarei bastante assustada, se for. — Ela deixou escapar uma risadinha, convidando-o a dividir o divertimento de seu tolo medo feminino.

Nicholas fitou-a sem, no entanto, tomar-lhe a mão. Apenas disse:

— Sinto muito, Srta. Thrall, deve ter havido algum mal-entendido. Meu convite desta manhã foi direcionado a Srta. Holcott.

O queixo de Clementine caiu diante de tal afronta, e Juliana precisou pressionar os lábios para evitar o riso.

A Sra. Thrall, por sua vez, observava a cena espantada, mas se recuperou mais rápido do que a filha.

— Eu... nós presumimos que tivesse sido um convite generalizado. Afinal, é impróprio para um cavalheiro e uma dama passearem sozinhos pela cidade em uma carruagem.

Nicholas virou o olhar para a matrona.

— É gratificante que a senhora esteja tão preocupada com a reputação da Srta. Holcott, madame, mas asseguro-lhe que é perfeitamente aceitável. Trata-se de uma carruagem aberta e também muito pequena. Apenas duas pessoas podem viajar nela e esta é a razão pela qual meu convite foi especificamente para Juliana.

A Sra. Thrall não conseguia pensar em uma resposta e simplesmente ficou de pé encarando-o. Nicholas aproveitou a oportunidade para virar-se e oferecer o braço a Juliana, que rapidamente caminhou na direção dele. Não queria perder tempo e dar à patroa a oportunidade de se recuperar e impedi-la de ir.

Nicholas aparentemente pensava da mesma forma, pois atravessou depressa o caminho até a porta e depois até seu novo coche amarelo, mal dando a Juliana tempo de apreciá-lo, antes de ser empurrada para dentro dele. Tomando as rédeas do cocheiro, Nicholas sentou-se ao lado de Juliana.

— Que mulher abominável! — exclamou ele, puxando as rédeas e pondo o veículo em movimento.

Juliana deu uma risada de prazer por ter destruído os estratagemas da Sra. Thrall. Sem dúvida, enfrentaria a ira da matrona quando voltasse, mas no momento não se importava. Era maravilhoso estar em companhia de Nicholas, livre pela próxima hora, circulando em um veículo que era a sensação do momento e tendo a maravilhosa vista da agitação de Londres. Juliana arrumou o chapéu, apertando o laço à altura do pescoço e encarou o amigo com um sorriso nos lábios.

Nicholas devolveu-lhe o sorriso.

— Como foi parar na casa daquelas duas? Juliana deu de ombros.

— Não é fácil arranjar um emprego de dama de companhia. As pessoas geralmente querem alguém mais velho e menos... bem...

— Menos atraente? — Nicholas arriscou uma opinião. Juliana lançou-lhe um sorriso atravessado.

— Bem, muito obrigada, senhor. — Estaria ela realmente flertando com Nicholas? De alguma forma, no entanto, não se incomodava com isso. — Na verdade, eu ia dizer subserviente.

Ele deixou escapar uma risada.

— Já vi que não mudou nada. Não consigo imaginá-la obedecendo cegamente a ninguém. De onde tirou essa idéia de virar dama de companhia?

— Pareceu-me o caminho natural, após ter vivido com Seraphina e sua tia Lilith todos aqueles anos — respondeu Juliana. — Eles me enviaram à escola para terminar meus estudos junto com Seraphina. — Ainda conseguia lembrar-se da alegria da mãe pela oportunidade dada à filha e que naturalmente elas jamais poderiam custear. Mas Juliana sabia o real motivo por trás da aparente generosidade dos Barre. — Eles precisavam de alguém para tomar conta de Seraphina e garantir que ela não se metesse em encrenca. O que não foi uma tarefa fácil. Ela virou uma mulher tão tola quanto era quando criança. E depois que terminamos os estudos, Seraphina ; fez um tour pelo continente. A guerra já havia terminado. Então, mais uma vez eu a acompanhei e quando voltei j achei que havia adquirido uma ampla experiência como I dama de companhia. Sabia tudo sobre carregar malas, ouvir conversas aborrecidas e adular as pessoas.

— A tia Lilith a dispensou? — perguntou ele em um tom de voz perigoso.

— Oh, não. Eu poderia ter ficado. Mas sabia que ela não gostava de mim, porém gostaria de minha ajuda no debut de Seraphina. Além do mais, não queria ser alvo de fofocas sobre ter jogado uma pobre moça sozinha no mundo. No entanto, não poderia continuar vivendo naquela prisão por mais tempo. E com a morte de minha mãe, não havia motivo para permanecer ali. Acho que Lilith ficou contente com minha decisão de partir. Se eu tivesse ficado, algum dia teria que me dispensar e isso a prejudicaria.

Juliana não acrescentou que Crandall mudara de tática quando ela cresceu. Em vez de puxar-lhe os cabelos, começara a tentar encurralá-la nos cantos da biblioteca para roubar-lhe um beijo ou passar a mão pelo seu corpo. Aquela perseguição fora decisiva para persuadi-la a deixar Lychwood Hall. Tia Lilith, a pensou, suspeitava que algo acontecia entre eles, mas estava convencida do contrário. Até mesmo acusara Juliana certa ocasião de perseguir o filho.

— Então tia Lilith escreveu uma carta de recomendação para mim e me estabeleci por conta própria. Demorou um pouco até que alguém me contratasse para tomar conta da mãe idosa. — Ela também não contou que aquele emprego terminara quando o patrão apareceu bêbado certa noite à porta de seu quarto e tentou tomar liberdades com ela. — Após algum tempo, encontrei a Sra. Simmons e foi um período muito agradável.

Nicholas franziu o cenho.

— Não gosto desse seu emprego na casa da Sra. Thrall.

— Nem eu — concordou Juliana. — No entanto, é um preço que estou disposta a pagar por minha liberdade. Pelo menos é uma transação estritamente comercial. Não dependo da caridade de ninguém.

Nicholas manobrava o veículo pelas ruas estreitas enquanto conversavam. Haviam alcançado o caminho que levava ao Hyde Park, onde havia menos tráfego e podiam relaxar um pouco e desviar a atenção dos cavalos. Ele fitou Juliana.

Ainda se surpreendia a cada vez que a encarava. Sabia que ela estaria mais velha, naturalmente, apesar de ter reconhecido de imediato a criança no rosto feminino. Ainda assim, de certa forma, era desconcertante ver a mulher na qual se transformara. O doce rosto familiar de criança transformara-se em uma beldade.

E não se tratava de uma beldade pálida e insípida como a filha da Sra. Thrall, a qual achara tremendamente enfadonha. A beleza de Juliana residia não apenas em seus vastos cabelos castanhos, sempre presos em um coque na nuca, apesar de ser o tipo de cabelo em que um homem gostaria de deslizar os dedos com luxúria. Nem estava nas feições bem modeladas de seu rosto. A beleza m dela brilhava em seus olhos cinzentos e no sorriso que lhe curvava os lábios, demonstrando inteligência e personalidade. Residia também em uma miríade de outra coisas que faziam de Juliana uma mulher única.          

Ele a conhecia e ao mesmo tempo não a conhecia e julgava aquela combinação extremamente atraente. Fitando-a naquele momento, Nicholas sentiu um súbito desejo de inclinar-se e beijar aqueles lábios macios, para descobrir o gosto que tinham.                                      

Os olhos dele tornaram-se escuros e precisou recorrer: a uma enorme firmeza interior para resistir àquela vontade. Ele girou o olhar para a paisagem ao redor por alguns instantes, ponderando o momentâneo desejo que se apoderou dele. Afinal, não deveria ter aquela espécie de sentimento em relação à Juliana.                                    

Ela era sua adorada companheira de infância. A garota que lhe proporcionou os únicos momentos de calor e amizade após a morte de seus pais. Tentou desesperadamente encontrá-la ao voltar à Inglaterra, mas somente por ser sua melhor amiga, quase uma irmã. Ele a amava tanto quanto seria capaz de amar alguém, mas era un amor puro, sem complicações, uma amizade profunda uma memória da infância.

Ainda assim, ali estava Juliana, não apenas uma memória, e sim uma mulher bastante desejável, e o senti mento que acabara de invadi-lo não tinha nada a ver com devoção infantil e sim com o desejo de um homem por uma mulher.                                                

Aquele sentimento o chocou. Parecia-lhe perversa tal sensação em relação a alguém que era quase uma anciã. Se qualquer outro homem expressasse aquele sentimento em relação à Juliana, sem dúvida lhe daria uma lição brutal.

Aquele inesperado desejo não poderia ser externado. Afinal, Juliana confiava nele. Jamais poderia tirar vantagem disso, por menor que fosse. Muitos o consideravam inescrupuloso, até mesmo perverso. E ele mesmo admitia que não era um homem bom. No entanto, jamais faria algo que pudesse mudar os sentimentos de Juliana em relação ele.

Além do mais, excetuando a importância de não ferir os sentimentos de Juliana, havia também a questão da reputação. Ela era uma dama e seu comportamento estava acima de qualquer reprovação. Era ainda mais imperativo que nada manchasse o nome da amiga, pois estava sozinha no mundo. Seria muito fácil manchar o nome de uma donzela sem família para protegê-la. Ele podia e iria defender seu nome, mas a defesa de um homem com a reputação dele talvez fosse prejudicá-la mais do que ajudá-la.

Nicholas estava ciente, portanto, de que jamais poderia prestar-lhe qualquer atenção especial, sem causar um escândalo envolvendo o nome da jovem. Não deveria visitá-la com muita freqüência, nem chamá-la para dançar mais do que uma ou duas vezes. Teria sido bem mais politicamente correto, admitiu, ter trazido a chata da Srta. Thrall com eles. Aquilo teria desviado a atenção de Juliana para Clementine e ele, para dizer a verdade, estava pouco ligando para o que falassem sobre a moça. Contudo, fora egoísta e quisera Juliana só para si, pelo menos daquela vez.

Notara muitos olhares dos transeuntes na direção dele e estava certo de que o ciclo de mexericos logo se iniciaria, especulando sobre a mulher vista ao lado de Lorde Barre no parque. Teria que evitar sair em público com Juliana pelo menos durante uma semana ou duas, e seria sábio nem mesmo visitá-la por alguns dias. Nicholas odiava ter que agir de acordo com a maledicência da sociedade, porém não podia manchar a reputação da amiga.

Ao fitar Nicholas, Juliana notou uma sutil mudança na fisionomia dele. A forma como o olhar recaía involuntariamente em seus lábios. E o ar ficou retido em seus pulmões, enquanto o estômago se contraía. Ele estava a um passo de beijá-la, pensou.

E de repente ele desviou olhar. Juliana relaxou, não muito segura se era de alívio ou desapontamento. Na verdade, não tinha certeza de nada que estava acontecendo. Será que confundira o brilho no olhar de Nicholas?

Não. Não estava enganada. Durante uma fração de segundo ele a desejara e algo dentro dela correspondera. Não poderia negar aquela resposta, nem o calor que a invadira e espalhara fagulhas por todo seu corpo. Fora rápido e tão sutil quanto um pensamento. Instintivo, sem dúvida.

Ela o fitou de soslaio. Ele agora observava a paisagem à frente. O queixo erguido. Gostaria de saber o que Nicholas estava pensando. O que sentia. Será que se arrependera do impulso involuntário? Com certo desapontamento, concluiu que provavelmente sim. Por que razão teria se virado tão de repente?                                    

Aquele pensamento a magoou. Afinal, se ele sentira um repentino desejo por ela, claramente se arrependera. Nicholas estava certo, é claro. Mesmo que um dia tivessem sido amigos íntimos, no presente era uma mulher que ele jamais cortejaria ou com quem pensaria em se casar. A diferença entre eles era imensa. Tudo que poderia esperar dele era a amizade e qualquer tipo de desejo estragaria tal sentimento.

Ele estava certíssimo e, se aquilo feria seu orgulho feminino, teria que superar. Não desejava que ele a tivesse beijado, lembrou a si mesma. Afinal de contas, era virtualmente um estranho após todos aqueles anos de separação. E ela estava muito mais madura e prática agora para dar importância aos sentimentos românticos de adolescente que um dia nutrira por ele. Não importava que tivesse sentido algum tipo de reação quando achou que ele a beijaria e que um súbito calor lhe percorresse o corpo. Nem estava certa de que o que sentira fosse atração ou medo.

E fosse o que fosse, pensou, agora era dona de sua vida e de suas emoções. Um beijo teria sido bastante inadequado e estava feliz que Nicholas não tivesse cedido ao impulso.

Ainda assim, não conseguia evitar sentir a presença de Nicholas com tanta intensidade. O calor de seu corpo, seu tamanho. Sua presença magnética ao lado dela. Fitou o rosto másculo, o perfil forte. O único toque suave era dado pelos cílios espessos.

Nicholas por certo notara o olhar fixo sobre si, pois se virou em sua direção. Juliana desviou os olhos depressa, sentindo a face queimar. Odiaria que ele a achasse atrevida.

Os olhos de Juliana, então, fixaram-se nas mãos fortes de Nicholas enquanto manobravam as rédeas. Lembrou-se do toque quente e forte daquelas mãos em sua cintura enquanto dançavam. Alguma coisa naquela lembrança a deixara sem ar.

A brisa acariciou-lhe a face rubra e fez alguns cachos de seus cabelos voarem. Juliana sentia como se a pele estivesse mais sensível que o normal, mais viva e quente do que o sol.

Ela depositou as mãos no colo e fitou-as. Nicholas a acharia extremamente maçante se continuasse ali sentada sem dizer uma palavra.

Passaram por uma carruagem ocupada por duas damas que lhes lançaram olhares severos. Juliana estava certa de que naquela noite toda a sociedade estaria falando que Lorde Barre passeara com uma dama desconhecida no parque e que ela era sem graça e malvestida.

— Todos comentarão sobre você, sabia? — disse ela. — Causará uma grande especulação o fato de estar em companhia de uma moça que ninguém conhece.

Nicholas deu de ombros.

— Sempre falam de mim. Ou, pelo menos, é o que as pessoas me contam. O bom de tudo isso é que nunca ouço os mexericos. — Ele a fitou. — Isso a aborrece?

Juliana sorriu para ele.

— Oh, não. Como disse, eles não saberão quem sou. E mesmo que soubessem, como você mesmo disse, não darei ouvidos aos rumores. O que me preocupa é o que a Sra. Thrall dirá quando eu voltar.

— Talvez eu devesse voltar com você. Se eu passar alguns minutos com aquela moça entediante, talvez melhore o humor da matrona.

— Não. Não lhe pediria tal coisa. — Juliana sorriu. -Tenho certeza de que vai ter que conversar com ela muitas e muitas vezes... quer dizer, se pretender evitar-me de novo. — Ela parou, notando que, sem querer, havia sido bastante ousada, presumindo que ele iria continuar a visitá-la. — Desculpe-me. Eu o coloquei em uma posição delicada. Tia Lilith sempre dizia que eu tinha a língua solta.

— Bobagem. Acho sua espontaneidade fascinante. E é claro que a visitarei mais vezes... mesmo que tenha que agüentar as mulheres da família Thrall.

— Não venha muitas vezes — avisou-o Juliana.

Ele ergueu uma sobrancelha com um olhar maroto.

— Acha minha presença tão tediosa assim?

— Não — Juliana apressou-se em dizer. — Claro que não. Mas a Sra. Thrall e Clementine o convencerão de que está loucamente apaixonado por ela se me visitar com freqüência.

— Nem pense nisso — respondeu ele. — Apesar de... bem eu poderia usá-la como ardil. Dessa forma, sua reputação não seria maculada se a visitasse com freqüência.

Juliana sentiu uma pontada de ciúme ao pensar em Nicholas fingindo cortejar Clementine.

— Sim, mas teria que propor casamento a Clementine ou então seria considerado um grosseirão.

Nicholas deu de ombros.

— Já me chamaram de coisas bem piores. Na verdade, já fiz coisas bem piores.

— Se pensa assim, é por que nunca passou um dia em companhia de Clementine.

Nicholas deu uma risada.

— Ah, Juliana, fico tão feliz que não tenha se transformado em uma dessas mulheres coquetes e estúpidas.

— E eu fico contente de poder conversar com alguém, com quem não precise segurar a língua.

— Acredito que metade do que diz na casa dos Thrall não seja nem mesmo compreendido.

— Não. Clementine tem uma irmã muito inteligente. Chama-se Fiona e não consigo imaginar como surgiu naquela família.

— Existe um Sr. Thrall?

— Oh, sim, mas ele teve o bom senso de permanece em Yorkshire durante a temporada de Clementine.

— Talvez seja dele que Fiona herdou a inteligência.

— Tem razão — respondeu Juliana, sorrindo.

Continuaram a conversar animados enquanto atravessavam o parque. Passaram por várias pessoas, algumas em veículos, outras cavalgando. Estava na moda cavalgar pela manhã, apesar de poucos terem condições de acordar cedo após as várias noitadas. Algumas pessoas cumprimentavam Nicholas ou falavam com ele. Outras esperavam ser notadas e receber um cumprimento dele.

— Um grande número de pessoas parece querer conhecê-lo — comentou Juliana.

— É incrível o quanto um título pode tornar a gente popular — retrucou ele.

— Oh, é preciso mais do que um título. Dinheiro, talvez.

Mais uma vez ele soltou uma risada. Nenhum dele estava ciente de como a curiosidade das pessoas com relação à identidade de Juliana era aguçada pelos olhares; que ele lhe lançava.

— Cínica — disse Nicholas. — Não sabe que deveria! protestar, dizendo que são minhas boas qualidades que os outros admiram?

— A experiência me ensinou que a maioria das pessoas nunca admira as boas qualidades — retrucou Juliana. — E estou certa de que nenhuma dessas pessoas as conhece.

— Tem razão. Acho que você foi sempre minha única amiga.

— O que não lhe valeu grande coisa. Se bem me lembro, nunca fui capaz de defendê-lo contra nenhuma punição.

Ele deu de ombros.

— Ninguém poderia, ainda mais uma menina de 10 anos. Meu destino foi selado no dia em que meu pai e minha mãe faleceram.

— Seu avô poderia ter tomado conta de você. Ou pelo menos interessar-se por sua sorte.

— O único interesse dele era nas dores que sentia, reais ou fictícias. Ele e meu pai haviam brigado. Não me lembro de tê-lo visitado nem de receber sua visita antes da morte de meus pais. A primeira vez que me lembro de tê-lo visto foi no funeral de meus pais, e em seguida ele me deixou aos cuidados de tio Trenton. E considerando as informações que recebia a meu respeito, duvido que tivesse alguma vontade de me ver.

— Isso não é desculpa — insistiu Juliana.

Ele a fitou com uma expressão indecifrável no olhar.

— Acho que não se lembra de mim como eu era. Você era uma amiga melhor do que eu merecia.

— Bobagem — retrucou Juliana. — Sei que não era um santo. Quase sempre vivia emburrado, era malcriado com a preceptora e às vezes tirava sangue do nariz de Crandall.

— Ah, então você realmente se lembra.

— Sim. Lembro também que poucas pessoas mereciam ter o nariz quebrado como Crandall. Ele era um menino desprezível que se tornou um homem de mau caráter. E a Srta. Emerson não era apenas severa. Era injusta. Talvez você devesse ser menos duro com Seraphina. Ela não era de fato má, acho. Apenas egoísta e tola. Mas como poderia deixar de odiar seu tio? Era um homem terrível. Quando soube que ele havia morrido, não tive o menor sentimento de pesar.

— Nem eu. Será que somos dois vilões?

— Acho que não. Apenas humanos.

— Você não sabe o que mais eu fiz — lembrou ele com expressão triste. — Ficamos muitos anos separados.

Juliana fitou-o diretamente nos olhos e viu refletido neles, como vira anos atrás, a mesma terrível solidão. Num impulso, segurou-lhe um dos braços.

— O que quer que tenha feito, Nicholas, tinha de ser feito.

— E isso o torna certo?

— Não sei. Mas significa que não tem um coração perverso.

Nicholas a fitou por um longo momento, sem dizer nada e as linhas de seu rosto se suavizaram. Ele passou as rédeas para uma só mão e pôs a mão livre sobre a dela. Por um momento permaneceram assim, silenciosos, e então ele retirou a mão.

— E seu coração deve ser muito generoso — disse, divertido. — Agora devo levá-la de volta para casa antes que a Sra. Thrall comece a cuspir fogo.

A pele formigava onde ele a tocara e sua face ficou subitamente quente. Evitou acariciá-la. Aquele gesto, por certo, revelaria muito do que estava sentindo. Concluíra, surpresa e chocada ao mesmo tempo, que gostaria que ele não tivesse retirado a mão. Que, em vez disso, se, inclinasse e a beijasse.

Juliana pressionou os lábios com força e virou o olhar para a estrada. Ele a considerava uma amiga. Não poderia deixá-lo desconfiar que o que sentia por ele era algo diferente.

 

Quando Juliana voltou para casa, encontrou Fiona no corredor da porta de entrada. A menina obviamente estava esperando por ela, pois fitou-a com expressão de alívio e, pegando-lhe a mão, puxou-a em direção à biblioteca. Juliana abriu a boca para perguntar a ela o que estava fazendo, mas Fiona gesticulou para que ficasse em silêncio, olhando para o topo da escada com expressão dramática.

Fiona fechou a porta atrás delas e virou-se para Juliana.

— É melhor se manter fora do caminho de Clementine. Ela ficou praguejando sobre você pela casa por mais de uma hora. Nunca a vi tão irritada.

— Oh, Deus! — suspirou Juliana. Adorara o passeio a sós com Nicholas, mas, como havia imaginado, teria que pagar por isso.

— O que aconteceu? Ela fala como se você tivesse arruinado a vida dela — perguntou Fiona. — Foi pior do que quando ela perdeu seu pente favorito no mês passado.

— Lorde Barre me levou para passear em seu coche sem convidar Clementine.

Fiona deixou escapar uma risada.

— Verdade? Imagino o que passou pela cabeça de Clementine. Ela ficava dizendo que você lhe roubou alguma coisa, mas sei que não faria uma coisa dessas.

Juliana fez uma careta.

— Suponho que tenho de encarar o dragão.

— Eu não iria se fosse você. Sempre achei que é melhor deixar Clementine se acalmar quando está zangada. Acho que ela seria capaz até de agredi-la. Por que não vai dar uma caminhada?

Juliana ficou tentada a obedecer, mas respondeu.

— Não. Obrigada pelo conselho, mas prefiro encarar a fera de uma vez.

Ela deixou Fiona e caminhou pelo hall em direção à sala de estar. Fiona estava certa em dizer que seria melhor deixar Clementine se acalmar e, como não queria problemas, o melhor a fazer seria não provocá-la.

Contudo, Clementine aparentemente ouviu os passos de Juliana, pois apareceu na escada.

— Aí está você!

— Olá, Clementine — disse Juliana em tom normal, acenando para ela.

— Como pôde fazer uma coisa dessas? — exclamou Clementine.

— Não sei do que está falando — respondeu Juliana calmamente. — Por que não vamos até a sala de estar para conversarmos?

— Conversarmos? Conversarmos? — A voz de Clementine denotava repugnância. — Você acha que pode tentar roubar Lorde Barre de mim e depois fazer tudo parecer certo com uma conversa?

Juliana lutou para manter seu temperamento sob controle.

— Clementine, garanto-lhe que não tentei roubar Lorde Barre de você.

— De que chamaria o que fez então? — retrucou Clementine com as faces em chamas. — Você me deixou de fora. Você...

— Não fiz nada disso. Lorde Barre explicou que só havia lugar para duas pessoas em seu coche e...

— E eu deveria ser convidada a passear com ele -completou Clementine, descendo até o final da escada, com a expressão de quem iria agredi-la.

— Lorde Barre me convidou — esclareceu Juliana. -Não caberia a mim dizer-lhe que a levasse.

— Você tramou contra mim. Você o forçou a convidá-la.

— Clementine, por favor, acalme-se. Isso não faz o menor sentido — protestou Juliana.

A mãe de Clementine apareceu na escada como um tanque de guerra e Juliana virou-se em sua direção.

— Sra. Thrall, eu...

A matrona estendeu a mão.

— Não pense que pode me enganar, mocinha. Você passou dos limites e isso está claro.

— Como disse? — Juliana não esperava que a Sra. Thrall fosse apoiá-la, mas o absurdo daquelas palavras a pegou de surpresa.

— Não vou permitir que fique usando de artimanhas com homens enquanto estiver sob o meu teto, fique sabendo.

— O quê?! — Juliana encarou a patroa espantada demais para saber como responder àquela acusação.

— Oh, não pense que não sei o que está pretendendo — continuou a Sra. Thrall, balançando a cabeça. – Clemmy é inocente e ingênua demais para perceber o que está pretendendo, mas eu não. Sei o que você fez, como seduziu Lorde Barre, forçando-o a levá-la sozinha, as promessas que deve ter feito. Aonde vocês foram?

— Como ousa insinuar uma coisa dessas? — gritou Juliana, as faces pálidas de fúria. — A senhora não tem motivos para dizer tais coisas sobre mim! Eu jamais...

A Sra. Thrall fez um gesto com as mãos para deter os protestos de Juliana.

— Oh, eu sei muito bem das coisas. Por que outro motivo um homem a escolheria para passear com ele ao invés de convidar Clementine? Não é preciso ser um gênio para saber as coisas que você prometeu... o tipo de tentação à qual nenhum homem resistiria, nem mesmo um cavalheiro. E não vou permitir isso em minha casa, onde residem duas moças inocentes.

— Mamãe! Não! — gritou Fiona da porta da biblioteca, de onde observava a cena.

Juliana aproximou-se da Sra. Thrall. Ao longo dos anos havia treinado para manter seu temperamento sob controle quando a provocavam, mas aquela acusação era demais para ela.

— Nunca houve a mínima mancha em minha reputação — retrucou Juliana com a voz embargada pela indignação.

— Ah! — exclamou Clementine. — Mamãe tem direito de dizer isso. Você sabia que ele me admira e o seduziu para levá-la no passeio.

— Não seja mais tola do que já é, Clementine — cortou Juliana. — Nicholas não a admira. Ele nem sabe quem você é. Ele é meu amigo há anos e me convidou para acompanhá-lo em um passeio porque queria conversar comigo. E não a convidou porque não queria que você fosse. Nem todos os homens do mundo devem cair a seus pés.

Antes que Clementine pudesse dizer qualquer coisa, Juliana virou-se para a mãe dela.

— E quanto à senhora, antes de fazer acusações sobre a reputação dos outros, sugiro que olhe primeiro para sua filha. Clementine flerta com todos os rapazes e eu tenho que manter os olhos bem abertos o tempo todo durante os bailes para certificar-me que ela não escape para o terraço com um deles. Se não lhe puser umas rédeas, ela acabará dando um mau passo. E se isso acontecer ficará arruinada perante a sociedade. E nenhuma beleza será suficiente para apagar essa mancha. Não importa o quanto possa ser atraente, qualquer um que a conheça pode dizer como é egoísta, presunçosa, mimada e tola. E se continuar assim, as s que fizer vão desaparecer. Se espera que sua filha consiga um bom casamento, faça com que ela seja o tipo de moça que a mãe de um cavalheiro aceitaria para sua nora, e não um tipo de beldade que corre atrás de qualquer um.

Juliana parou e respirou fundo. De repente, sentia-se calma. Concluiu que sem dúvida perdera seu emprego, mas não se arrependia de nada que disse... ou pelo menos não ainda. Estava satisfeita demais por ter conseguido externar seus sentimentos.

— Saia já desta casa! — gritou a Sra. Thrall. A ira estampada no rosto. -Agora mesmo! Ouviu?

— Com muito prazer — respondeu Juliana, passando pela matrona e olhando em direção à escada.    

— E não espere que lhe dê qualquer tipo de referência — continuou a gritar a Sra. Thrall.

— Nem pensaria numa coisa dessas — disse Juliana, subindo a escada. Atrás dela, ouviu os passos de Fiona.

— Srta. Holcott! Espere! — gritou a menina com expressão triste. — Juliana virou-se à porta de seu quarto. — Por favor, não vá, Srta. Holcott.

— Sinto muito. Não tive escolha. Sua mãe não permitiria que eu ficasse. — Juliana virou-se e entrou no quarto.

Fiona entrou atrás dela.

— Ela só está zangada. Mas vai se acalmar e então tenho certeza de que se arrependerá.

— Pois não tenho tanta certeza, depois de tudo que eu disse — retrucou Juliana com um suspiro. — Sinto muito. Não deveria ter dito tudo aquilo sobre a sua irmã.

— Não. — Fiona observava Juliana abrir um pequeno baú no fundo da cama e começar a enchê-lo com as roupas que estavam nas gavetas. — Você está coberta de razão. Clementine é uma criatura muito tola e egoísta também. E você não tem que agüentar as repreensões dela porque Lorde Barre não caiu a seus pés. Odeio ver você partir.

— Também sentirei sua falta — disse Juliana com honestidade, passando um braço ao redor dos ombros da menina. — Talvez sua mãe permita que vá me visitar algum dia.

— Talvez — respondeu Fiona, duvidosa. — Para onde irá?

Juliana concluiu que nem havia pensado nisso. Na verdade não sabia para onde ir, nem o que fazer. Agira no calor do momento. Mas, mesmo assim, não se arrependia.

— Acho que vou para a casa de uma amiga. Eleanor Townsend... bem, Lady Scarbrough agora, depois que se casou — respondeu ela, pegando um lápis e um pedaço de papel de uma das gavetas. — Vou anotar aqui o endereço para que possa visitar-me. Freqüentamos a escola juntas e ela sempre me convidou para ficar com ela.

Não demorou muito para arrumar todos os seus pertences e Juliana estava pronta para partir. Ela chamou um criado para ajudá-la a carregar o baú e então abraçou Fiona.

Os olhos da menina estavam repletos de lágrimas e Juliana sentiu um aperto no peito. Mesmo estando ali havia apenas alguns meses, desenvolvera um profundo afeto pela menina.

— Prometo visitá-la — garantiu Fiona. — Mesmo que tenha de me esgueirar para fora de casa.

— Não vá ficar em apuros por minha causa — disse-lhe Juliana. Sabia que a coisa certa a dizer à menina era que obedecesse à mãe, mas sabia também que Fiona era muito mais esperta do que a Sra. Thrall.

Juliana desceu a escada depressa, carregando uma pequena mala, a fim de se despedir da criadagem. Notou que o criado que levara seu baú já havia providenciado uma carruagem e o colocara lá dentro. Ele a ajudou a subir, fechando a porta atrás dela, e o veículo começou a rodar.

Lá estava ela, mais uma vez, sem emprego e sem esperanças de conseguir um. Juliana reclinou-se no banco e pela primeira vez nas últimas duas horas pensou na situação em que se encontrava.

Foi então que concluiu que Nicholas não saberia seu paradeiro.

 

A casa de Lady Scarbrough era uma elegante mansão branca ao estilo Queen Anne que ocupava um bom terço de um dos quarteirões mais requintados de Mayfair. Quando Juliana desceu da carruagem, ouviu o cocheiro soltar um assovio de admiração e descer para pegar o dinheiro, retirando o chapéu num gesto mais respeitoso do que quando ela entrara no veículo.

Enquanto o homem retirava a mala da traseira do co-che, Juliana caminhou até a porta e usou a grande aldrava de metal para se anunciar. A porta foi aberta um momento depois por um homem baixo, com feições angulosas, orelhas disformes e um nariz que lembrava o de um boxeador. Não era o tipo de aparência mais indicada para um criado e muito menos para um mordomo e administrador de uma casa, mas ela sabia que aquela era a função dele. Como muitos dos amigos e empregados de Eleanor, ele era heterodoxo, competente e extremamente leal.

— Srta. Holcott! — disse o mordomo, a face rude iluminando-se com um amplo sorriso. — Que prazer em vê-la. A Srta. Eleanor ficará muito contente. Entre, entre.

— Olá, Bartwell — respondeu Juliana, seguindo-o para o interior da casa e entregando-lhe a pequena sacola que trazia. — Perdoe-me por chegar deste modo. Mas não tive tempo de enviar uma carta à Srta.... quero dizer, Lady Scarbrough.

— Não se preocupe com isso. Sempre há um quarto pronto para a senhorita. — assegurou o mordomo, virando-se em seguida para falar com um homem jovem que surgiu dos fundos da casa — Fletcher, pegue as malas de milady e leve-as para o quarto azul.

Como Bartwell, Fletcher trajava vestes asseadas em tons de preto e branco, mas não usava libré, outra excentricidade dos criados de Eleanor. Eram uma mistura de nacionalidades, Bartwell e a criada pessoal eram americanos como a patroa; Fletcher e a maioria dos outros criados eram ingleses e a cozinheira, francesa.

Os criados não eram as únicas esquisitices na casa da amiga. Eleanor tinha o hábito de ajudar os outros, embora algumas almas cáusticas a considerassem uma intrometida inveterada. Nos últimos anos adotara duas crianças órfãs, uma delas uma vigorosa menina francesa chamada Claire e a outra um menino americano chamado Seth, bem como uma jovem indiana que Eleanor salvara de ser lançada em uma pira funerária junto com o marido morto e que havia se tornado babá das crianças. Seu gerente empresarial era um homem negro, bem versado, que o pai dela resgatara da escravidão e enviara à escola. Isso tornava a casa cheia de energia e, às vezes, ruidosa, mas todos a adoravam.

— A Srta. Eleanor está no estúdio — informou Bartwell. Era óbvio, pensou Juliana, que apesar do casamento com Sir Edmund, jamais seria Lady Scarbrough pra Bartwell. Seria sempre a Srta. Eleanor que ele conhecera ainda menina quando viera trabalhar para o pai dela.

— Quer que eu a leve até ela, ou prefere que lhe mostre o seu quarto primeiro, para que possa se refrescar um pouco?

Juliana respondeu que veria Eleanor antes. Sentia-se na obrigação de lhe pedir formalmente para ficar, embora soubesse que a amiga jamais lhe recusaria hospitalidade.

Foram amigas durante 12 anos e apesar dos caminhos opostos que suas vidas tomaram e as freqüentes separações, a amizade entre ambas ainda era tão intensa quanto no início. Conheceram-se na escola para moças, para a qual Juliana havia sido enviada juntamente com Seraphina Barre. A intenção dos pais de Seraphina era que ela tomasse conta da menina, ajudando-a com os estudos e certificando-se de que não se meteria em nenhuma confusão. Seraphina aceitara a ajuda de Juliana como uma obrigação, mas não a considerava uma amiga. Essa posição era reservada a outras meninas com status social semelhante ao seu.

Então, fora deixada de lado por Seraphina e seu grupo, bem como pela maioria das outras alunas. Todas sabiam que sua amizade não traria nenhum benefício para melhorar a posição delas na sociedade. Mas logo se tornara amiga de outras meninas também consideradas excluídas. Eleanor Townsend, embora muito rica, era americana e, de acordo com a opinião geral das alunas da Escola Miss Blanton para Moças, não passava de uma estrangeira. Juliana simpatizara com ela à primeira vista.

Enquanto Bartwell a conduzia ao longo do corredor em direção ao estúdio de Eleanor, ouviu o som de um piano sendo tocado. A música parou de repente, recomeçou de modo indeciso e parou mais uma vez.

— Sir Edmund está no quarto de música compondo — explicou o mordomo.

Juliana assentiu com a cabeça. Não conhecia muito bem o marido da amiga. Eleanor havia se casado dois meses atrás, em uma pequena cerimônia que Juliana assistira. Era um homem, esbelto, tranqüilo, que parecia, na sua opinião, manter-se à margem da vida da esposa. Depois do casamento, sempre que a visitara, Sir Edmund normalmente se encontrava isolado no quarto de música ou em seus aposentos com tosses e febres que, aparentemente, o acometiam. Era um gênio da música, a amiga lhe assegurara, e Juliana às vezes desejava saber se Eleanor não se casara com aquele homem apenas para se certificar de que a vida dele seria administrada corretamente. Dessa forma, permitia que ele se dedicasse à música, sem se preocupar com coisas mundanas, como comida ou remédios, ou ter que pagar contas.

Afinal, administrar era a especialidade de Eleanor.

Bartwell bateu à porta do estúdio. Então, a abriu quando a patroa respondeu.

— A Srta. Holcott está aqui para vê-la, madame.

Eleanor, que se encontrava exausta em meio a pilhas de figuras e lápis, olhou surpresa e viu Juliana. Com um grito de felicidade, ergueu-se e correu pegar as mãos da amiga.

Eleanor era uma mulher alta, que possuía um porte majestoso, ao contrário da magreza esbelta de Juliana. Os cabelos eram pretos, a pele clara e os olhos de um azul vivido. Tinha uma figura dominante, que chamava atenção em qualquer multidão e Juliana sempre a considerou muito bonita. Embora os depreciadores costumassem dizer que suas feições eram muito grosseiras, as,maçãs do rosto e a mandíbula muito angulosa para ser considerada uma beldade. Vestia-se do modo que a agradava, vestidos de cortes simples e cores vividas. Mesmo antes de se casar, quando as moças geralmente eram impelidas a usar tons brancos e pastel, Eleanor as julgava insípidas.

— Juliana! Que surpresa maravilhosa! — exclamou, num tom caloroso. — Traga-nos um pouco de chá, Bartwell.

— Claro, Srta. Eleanor.

Eleanor beijou-a na face e em seguida afastou-se. Então, segurando as mãos da amiga, encarou-a com as sobrancelhas se franzindo numa carranca.

— O que a traz aqui a esta hora num dia de semana? Algo errado?

Juliana suspirou.

— Receio ter vindo apelar pela sua clemência. Fui demitida.

— Demitida? — A face expressiva de Eleanor encheu-se de indignação. — Por aquele sapo detestável? Thrall?

Juliana não pôde deixar de rir da descrição da amiga sobre a ex-patroa.

— Sim.

— Santo Deus! Eu sabia que ela era tola, mas realmente... Venha, sente-se e me conte tudo.

Juliana fez o que amiga ordenou, contando-lhe a história do reencontro com Nicholas e todos os eventos que se seguiram. Parecendo intrigada, Eleanor a escutou atentamente, interrompendo-a uma única vez para dizer:

— Nicholas, o menino que era primo de Seraphina? De quem você costumava falar muito?

Diante do aceno positivo de Juliana, enrugou os lábios, pensativa, e lhe disse para continuar. Juliana obedeceu, só parando quando Bartwell entrou com o carrinho de chá.

— Mas que mulher estúpida! — comentou Eleanor vertendo chá nas duas xícaras. — Era a chance de ela entrar na sociedade onde tanto almeja colocar a filha e acabou perdendo a oportunidade. Se em vez disso a tivesse mantido no emprego e a tratado bem, a filha poderia ser convidada para as melhores festas devido ao seu conhecimento com Lorde Barre.

— Você conhece Lorde Barre?

Juliana sabia que a amiga freqüentava uma certa parte da sociedade de Londres. Eleanor havia se estabelecido como protetora das artes e mantinha um eclético salão, onde artistas e autoridades se misturavam com os ricos e nobres à procura de estímulo intelectual.

— Não pessoalmente. Ouvi falar do seu retorno. É um dos rumores mais populares na sociedade, mas não imaginei que ele fosse o seu Nicholas. Teria me esforçado para conhecê-lo se soubesse. — Ela sorriu. — Embora pense em fazer isso agora.

— Ele nem sabe o que me aconteceu ou onde estou -admitiu Juliana. — Não pude lhe enviar uma carta, dizendo para onde vim. Não seria apropriado.

Eleanor encolheu os ombros. Sabia tão bem quanto Juliana das restrições impostas às damas honradas. Estava louca para desconsiderá-las, mas sabia que a posição da amiga era mais precária que a sua.

— Não se martirize. Pensaremos em algo. Juliana sacudiu a cabeça.

— Não importa. Não é uma amizade que eu possa manter. Uma dama de companhia não deve receber visitas de homens ou de qualquer outra pessoa. E quando eu puder vir visitá-la ou a Sra. Simmons, em meus dias de folga, raramente poderei me encontrar com um cavalheiro. Quanto tempo me sobraria para vê-lo?

— Então fique comigo — ofereceu Eleanor. — Não precisa arrumar outro emprego. Sabe que é bem-vinda em minha casa. Já lhe convidei muitas vezes. Não haverá nenhum problema em Lorde Barre vir visitá-la aqui. Estou certa de que posso encontrar um modo de fazê-lo saber que está aqui comigo. Edmund e eu vamos para a Itália dentro de três semanas, é melhor para a saúde dele e para a sua música. Mas posso adiar a partida.

— Não, não faça isso por minha causa. É muito amável, mas não posso me impor dessa maneira — respondeu Juliana. Aquele era um argumento que ela e a amiga haviam discutido muitas vezes, o único ponto de discórdia entre as duas.

Eleanor fez uma careta.

— Você e seu orgulho! Não estou fazendo nada que você não fizesse por mim se a situação fosse inversa.

— Sabe que se a situação fosse inversa, iria sentir-se exatamente como me sinto — replicou Juliana com um sorriso estampado no rosto. — Não posso depender da sua caridade.

— Então vou contratá-la. Preciso de uma dama de companhia. As coisas são muitíssimo mais agradáveis quando se tem uma amiga com quem compartilhá-las. Posso lhe pagar o que a Sra. Thrall lhe pagava e então você será independente.

— Não precisa de uma dama de companhia, ambas sabemos disso. Não adianta querer disfarçar, continuaria sendo caridade, e mais dispendioso porque estaria me Pagando. — Juliana se ergueu e pegou a mão da amiga, dando-lhe um aperto afetuoso. — Conheço-a muito bem Para que possa me enganar.

Eleanor riu.

— Que injustiça. Embora deva admitir que gosto de organizar coisas. Ela lançou um olhar divertido a Juliana e acrescentou: — Mas tudo que desejo é que sua vida se torne mais fácil. Você merece ser mais feliz.

— Não sei o que mereço, mas com certeza minha vida continua e tenho que administrá-la sozinha.

— Claro. Eu entendo — concordou a americana. — Você é bastante independente.

— Preciso arrumar um emprego. E... tenho de ser realista em relação a Lorde Barre. — Juliana fitou a amiga com expressão sombria. — Pensei sobre isso durante todo o trajeto até aqui. Tenho vivido num mundo de ilusões nos últimos dias. E uma situação impossível. Não posso continuar vendo Nicholas.

 

Nicholas subiu os degraus da casa alugada dos Thrall, ligeiramente ansioso sob a respiração controlada. Havia esperado o que julgou ser dois dias bastante circunspetos antes de visitar Juliana novamente. Para ser franco, tinha achado aquele intervalo bastante melancólico e pensou mais de uma vez na tolice que era ter de esperar durante tanto tempo quando desejava falar com alguém, apenas por tratar-se de uma mulher.

Embora as regras ditadas pela sociedade significassem muito pouco para ele, era obrigado a segui-las, não por sua própria causa, mas por Juliana. Então, resolveu passar os últimos dois dias fazendo o tipo de coisas que os cavalheiros de folga faziam em Londres e achando tudo muito enfadonho. Vendera boa parte dos negócios e quando decidiu deixar a América e aceitar o título, sabia que isso o traria de volta à Inglaterra. O restante de seus interesses seria eficientemente administrado por seu procurador, o que não exigiria mais de uma visita sua de vez em quando. A quantia de dinheiro advinda com o título estava vinculada à propriedade em Lychwood Hall e era gerida pelo administrador do espólio, sob a supervisão de Crandall Barre. Ainda teria que viajar até a mansão, evitando o encontro inevitável com os parentes.

Sua batida à porta foi atendida por uma criada que sorriu e o conduziu até a sala de visitas da frente, onde ele lhe pediu para ver a Srta. Holcott. Após alguns minutos, a Sra. Thrall apareceu no recinto com um enorme sorriso nos lábios.

— Lorde Barre! Que prazer! Clementine descerá dentro de alguns instantes. Sabe como são as moças. Talvez aprecie uma xícara de chá?

— Obrigado. — Nicholas se conformara em ter que aturar a presença das Thrall durante a visita a Juliana. Era uma amolação, claro, mas não desejava criar-lhe problemas com a patroa. Porém muito o aborrecia saber que Juliana tinha que se preocupar com a opinião daquela mulher. Desejou saber onde ela estaria. Provavelmente, ajudando aquela jovem arrogante a se enfeitar.

A Sra. Thrall o envolveu com uma conversa fútil durante os minutos seguintes e Nicholas começou a ficar impaciente. Então, Clementine apareceu na sala e ele se ergueu para cumprimentá-la, olhando além dela para ver se avistava Juliana.

— E a Srta. Holcott? — perguntou, enquanto Clementine se sentava em uma cadeira próxima a sua. — Onde ela está? Espero que não esteja indisposta.

— Oh, não. Receio que tenha que conversar apenas comigo e Clementine esta tarde. — A Sra. Thrall sorriu. -A Srta. Holcott não está.

— Ah, entendo... — respondeu Nicholas, embora não estivesse dizendo a verdade. — Ela vai demorar? — Parecia o cúmulo da falta de sorte ter vindo visitá-la, justamente quando Juliana tivera que sair. Ponderou se deveria suportar a companhia daquelas mulheres durante mais alguns minutos na esperança do retorno de Juliana, ou simplesmente partir e voltar outro dia.

— Creio que não. Posso lhe servir mais um pouco de chá, milorde?

— Não. — Nicholas percebeu que sua paciência estava chegando ao fim. — Onde a Srta. Holcott foi?

A Sra. Thrall olhou ao redor da sala como se a resposta para aquela pergunta pudesse surgir diante de si. Por fim, com um pouco de relutância, confessou:

— A Srta. Holcott não trabalha mais aqui.

— Como? — Os olhos de Nicholas se estreitaram ao olhar para a mulher. — Ela deixou o emprego?

— Sim, sim, deixou — disse a mulher, assentindo com a cabeça.

— Para onde ela foi?

— Não sei lhe informar.

— Ela não deixou um endereço? — perguntou Nicholas, incrédulo.

— Não, não deixou. Para ser franca, fiquei surpresa com o seu comportamento. Esperava mais da Srta. Holcott — disse a Sra. Thrall, para dar mais veracidade a sua história.

— Por que ela partiu? — perguntou Nicholas, encarando a matrona com olhar penetrante.

A Sra. Tharall engoliu em seco e se remexeu incomodamente no assento.

— Ah, bem, é que, não estou bem certa. Humm...

— Ela estava nos roubando — declarou Clementine. — Mamãe teve que despedi-la.

Nicholas se virou na direção da jovem, fazendo-a sentir toda a força do seu olhar.

— Roubando? Juliana? Sugiro que repense essa resposta. Se eu ouvir essa história se espalhar pela cidade, vou tomar providências em relação a vocês duas.

Clementine corou. De repente, suas mãos ficaram úmidas de suor.

— Quem pensa que... Como ousa me ameaçar dessa maneira? — concluiu num fio de voz.

— Não a estou ameaçando. Estou lhe dizendo de modo direto que se ouvir essa mentira sobre a Srta. Holcott mais uma vez, saberei quem a espalhou e posso lhe garantir que qualquer esperança que tenha de fazer um casamento vantajoso cairá por terra. — Ele deixou Clementine boquiaberta e se virou para a mãe. — Fui bem claro, madame?

A Sra. Thrall assentiu com a cabeça, incapaz de falar.

— Agora, vou perguntar mais uma vez. Para onde foi Juliana?

— Não sei — lamentou a mulher. — Isso é verdade. Ela fez as malas e partiu. Não sei para onde foi.

Nicholas ergueu-se. Não era de bom-tom perguntar às mulheres por que Juliana havia partido, sabia disso. Tinha certeza de que a culpa recaía sobre as Thrall, mas estava igualmente certo de que não poderia obter uma resposta honesta da parte delas. Não que isso tivesse importância, pensou. Deviam estar falando a verdade quando disseram que não sabiam para onde Juliana tinha ido e isso era tudo que importava. Perdera-a mais uma vez.

Deixou a sala, cruzou o corredor e se dirigiu à porta da frente, ouvindo as vozes da Sra. Thrall e Clementine protestando.

— Lorde Barre! Espere!

Nicholas saiu, contendo-se para não bater a porta com força atrás de si. Estava furioso, ainda mais porque sabia que fora o causador daquilo tudo. Ignorara a jovem Thrall, tinha sido rude com ela desde o dia em que convidara Juliana para um passeio em sua carruagem. Tudo porque só havia pensado nele. A fedelha o estava irritando e ele desejava ficar sozinho com Juliana, então deu-lhe um basta e mandou-a ficar em casa. Não pensou nas conseqüências de suas atitudes, nem considerou a possibilidade de a jovem idiota vingar-se daquela humilhação.

Juliana fora expulsa da casa e estava só no mundo, sem qualquer meio de sobrevivência, por causa das suas palavras precipitadas. E ele nem sequer sabia para onde a amiga tinha ido.

Permaneceu parado por um longo momento no degrau da porta da frente das Thrall, imerso em seus pensamentos obscuros. Por fim, com um suspiro de desgosto, desceu a escada e chegou à calçada. Não havia andando muito, quando uma voz o fez estacar.

— Lorde Barre! Lorde Barre! Espere!

Era a voz de uma menina, um pouco ofegante, e vinha da casa. Nicholas virou-se e a viu correndo em sua direção pelo passeio estreito que conduzia à porta lateral. Era a entrada dos criados, mas era óbvio que não se tratava de uma criada. Ainda era uma adolescente, porque usava os cabelos presos para trás em trancas, mas o vestido de musselina simples era de boa qualidade.

Lembrou-se de Juliana ter dito que havia outra menina na casa dos Thrall de quem gostava, e sua esperança reacendeu.

— Srta. Thrall? — perguntou ele.

A menina parou ofegante na sua frente.

— Sim. Meu nome é Fiona Thrall. Sei o que realmente aconteceu.

— Com a Srta. Holcott? — Nicholas dispensou-lhe toda a atenção e se aproximou.

Fiona assentiu com a cabeça.

Sim. Não foi como minha mãe lhe contou. Juliana não partiu apenas. Ela não faria tal coisa.

— Tenho certeza que não. A Sra. Thrall a despediu?

— Sim. Houve uma grande discussão. Minha mãe e Clementine estavam furiosas. Clemmy disse que Juliana tentou roubá-lo dela e a mamãe disse... -A menina hesitou, com a face ardendo de embaraço. — Ela acusou Juliana de... de usar de malícia...

— Posso imaginar bem o que ela disse — Nicholas falou em tom severo. — Não precisa tentar descrever mais nada. Apenas me diga se sabe para onde Juliana foi.

— Sei — respondeu Fiona, parecendo contente em esquecer o assunto das acusações absurdas e difamadoras da mãe. — Juliana me deixou o endereço para que eu pudesse ir visitá-la. Foi para a casa de uma amiga. Lady Scarbrough. Disse que a conhecia da escola. -Amenina entregou-lhe um pedaço de papel. — Aqui está, pode copiar o endereço, se quiser.

Nicholas pegou o papel. Era apenas um endereço que ele rapidamente memorizou e devolveu a Fiona.

— Obrigado. Estou em dívida com a Srta. E se desejar visitá-la... — Ele enfiou a mão no bolso, retirou um cartão de visitas e entregou à menina... — só precisa me avisar e enviarei uma carruagem para buscá-la.

— Verdade? — Fiona pegou o cartão da mão dele e o brindou com um sorriso deslumbrante, que o fez pensar que um dia a jovem excederia em brilho e beleza a irmã mais velha.

Com um toque na ponta do chapéu, Nicholas se despediu e partiu para o requintado endereço em Mayfair, que estava escrito no pedaço de papel. Caminhou a distância a pé, mergulhado em pensamentos. Sua mente se debatia entre as dificuldades que causara a Juliana e o que poderia fazer a esse respeito. No momento em que alcançou a elegante casa branca, onde a lady Scarbrough vivia, havia chegado a uma conclusão satisfatória.

A porta foi aberta por um criado, ou assim ele presumiu, embora não usasse libré, mas sim um terno preto simples. O homem relanceou-lhe um olhar e o conduziu aos degraus em direção a uma sala de visitas espaçosa e graciosamente decorada que conseguia ser ao mesmo tempo acolhedora e elegante.

Juliana estava sentada com outra mulher, uma bela morena com impressionantes olhos azuis e, ambas riam de algo com a facilidade e o afeto de velhas amigas. A mulher de cabelos escuros olhou para a entrada da sala e Nicholas sentiu-se perfurado por seu olhar inteligente e vivido. A face de Juliana permaneceu curvada e ela não olhou até o criado anunciá-lo.

Então sua cabeça ergueu-se de imediato e ela o fitou, formando um "Oh" de surpresa na boca.

— Nicholas! Como conseguiu me achar aqui?

— Estava se escondendo de mim? — replicou ele, zombeteiro. -Nesse caso, não fez as coisas direito. Sua amiga, a sita. Fiona Thrall, deu com a língua nos dentes.

As faces de Juliana enrubesceram.

— Não, eu não quis dizer isso. Claro que não estava me escondendo. Apenas... não sabia como avisá-lo. Foi tudo muito súbito.

— Eu soube.

— Lorde Barre. — A outra mulher ergueu-se, cruzou a distância até ele, oferecendo-lhe a mão. — Sou Eleanor Scarbrough.

Sinto muito — disse Juliana depressa, também se pondo de pé. — Lorde Barre, permita-me apresentar-lhe minha amiga, Lady Scarbrough. Lady Scarbrough, Lorde Barre.

Juliana sentiu-se inexplicavelmente agitada pela presença de Nicholas. Quando ele entrara na sala, a alegria a dominou, deixando-a zonza. Havia se convencido dois dias atrás de que teria que abdicar da amizade dele, contudo, no momento em que o viu, seu coração disparou

dentro do tórax.

— É um prazer conhecê-lo, Lorde Barre — disse Eleanor. — Então, com um relance rápido a Juliana, acrescentou: — Sinto muito, mas tenho um negócio a tratar e preciso ir até o meu estúdio. Porém, tenho certeza de que a Srta. Holcott ficará feliz em conversar com o senhor. Se me dão licença...

Juliana sabia que a amiga estava discretamente lhe dando uma chance de falar com Nicholas a sós, mas, devido ao seu tumulto interior, desejou que Eleanor não tivesse sido tão obsequiosa. Não estava certa a respeito do que lhe deveria dizer. Sabia que precisava explicar-lhe a inutilidade de manter aquela amizade, mas tinha um medo terrível de começar a falar e sua voz entupir com uma enxurrada de lágrimas. Estava igualmente alarmada de que ele sentisse em sua voz o grande prazer que a visita lhe proporcionara. Não era aconselhável exibir tanta emoção, especialmente pelo fato de que a face de Nicholas parecia fechada em uma expressão severa. Estaria irritado com ela?, desejou saber.

— Tenho que me desculpar pelo que aconteceu -começou ele abruptamente, assim que Eleanor deixou a sala.

— Por quê? — perguntou Juliana confusa.

— Pelo comportamento daquela mulher tola — respondeu ele, sucinto.

— A Sra. Thrall? Ela não é responsabilidade sua — replicou Juliana, admirada.

— Não, mas você é. E ela não a teria demitido se eu não tivesse dispensado ela e a filha naquela manhã. Deveria ter sido mais cuidadoso. Não pensei como isso poderia afetá-la.

— Está tudo bem — disse Juliana, enrijecendo. Não queria pensar que Nicholas a considerasse como uma responsabilidade, principalmente uma responsabilidade onerosa como sua expressão parecia indicar. — A culpa não é sua. Logo arrumarei outro emprego.

Juliana já visitara uma agência de empregos, e embora não houvesse nenhuma vaga disponível para uma dama de companhia, tinha esperança de que em breve apareceria algo.

A expressão de Nicholas ficou sombria.

— Não. — Parecendo perceber o quão ditatorial aquela única palavra soou, acrescentou depressa: — Não precisa ser dama de companhia de ninguém.

Juliana ia começar a falar, mas antes que pudesse proferir uma palavra, ele continuou:

— Tenho a resposta para o seu dilema.

— Tem? — ela o encarou, desejando saber do que ele estava,falando.

— Sim. É bastante simples. Você se casará comigo. -Houve um longo momento de silêncio. Juliana o encarou, no início, aturdida demais para falar. Ficou surpresa com a súbita onda de desejo que a atingiu. Percebeu que queria desesperadamente aceitar a oferta. Mas logo, junto com a emoção, veio a dor aguda de raiva e humilhação.

Nicholas não podia ter sido mais claro. Não tinha nenhum desejo de se casar com ela. Estava pedindo, ou melhor, comunicando que se casaria com ela, apenas porque, de alguma maneira, se sentia responsável por sua situação.

— O que disse, milorde? — perguntou Juliana num tom frio, erguendo o queixo em desafio. — O senhor pode ter herdado um título, mas isso não lhe dá o direito de me dar ordens. Não sou sua criada.

— Claro que não é — respondeu Nicholas, um pouco impaciente. — Não estou tentando lhe dar ordens. Mas esta é a resposta mais clara.

— Resposta? Não percebi que havia lhe feito uma pergunta — replicou. — É sobre a minha vida que estamos discutindo, não sobre algum "problema".

— Sei que estou falando sobre a sua vida — respondeu ele, parecendo atordoado. — Estou lhe pedindo que se case comigo.

— Pedindo? Não ouvi nenhum pedido. Tudo que ouvi foi uma declaração. Tornou-se tão arrogante durante todos esses anos desde que o conheci? Esperava que eu desmaiasse a seus pés porque disse que se casaria comigo?

— Arrogância? -As sobrancelhas do Lorde se contraíram e os olhos escuros brilharam. — Chama de arrogância eu lhe oferecer o meu nome?

— Chamo de arrogância pensar que um casamento é a única coisa que pode me salvar. Que minha vida é um... um problema porque sou uma mulher solteira. Sim, tenho que ganhar meu próprio sustento, mas pelo menos sou independente. Escolho o que quero fazer.

— Chama de independência viver sob as ordens de outra pessoa? — rebateu Nicholas.

— Pelo menos sou recompensada financeiramente. Tenho um dia de folga a cada duas semanas, e se meus deveres se tornarem muito enfadonhos, sou livre para partir. Não vivo sob as ordens de algum homem 24 horas por dia, sete dias por semana, sem um ordenado e nenhuma possibilidade de partir!

— É isso que pensa que aconteceria caso se casasse comigo? — trovejou Nicholas. — Que eu tentaria controlar sua vida e a forçaria a me obedecer? Estou lhe oferecendo uma chance de escapar de uma vida de trabalho penoso e me atira isso na cara, como se eu estivesse tentando prejudicá-la.

— Não pedi sua ajuda! — exclamou Juliana, levando os punhos fechados aos quadris. — Você se meteu. Sem me perguntar, disse que eu me casaria com você. Disse que minha vida é uma miséria e que você daria um jeito.

— Juliana deu alguns passos à frente até ficarem a centímetros de distância um do outro e o encarou obstinada.

— Bem, muito obrigada, mas a miséria é minha e lhe agradeceria se mantivesse seu nariz fora disso.

— Ingrata! — disparou Nicholas, indignado.

Por um longo momento ambos ficaram imóveis, simplesmente fitando um ao outro, irritados demais para falar. Nicholas estava de frente para ela, com as mãos nos quadris, a cabeça erguida, e ela se encontrava de pé em uma posição quase idêntica, praticamente tremendo de indignação.

Então, para surpresa de Juliana, de repente o humor se refletiu nos olhos de Nicholas e ele relaxou. As mãos caíram ao longo do corpo e uma risada escapou dos seus lábios.

— Você sempre foi brava, não é?

Juliana tentou manter a expressão fechada, mas sentiu que ela se dissolvia. Depois de um momento, teve que rir, também.

— Não sou a única.

— Ah, Juliana! Por favor, não fique zangada. Não quis insultá-la. Se fui arrogante, peço que me perdoe. Não é por causa do título, receio, mas o fato é que cresci acostumado a dar ordens. Só queria ajudá-la. Mas, como bem sabe, nunca permiti que me obrigassem a aprender boas maneiras.

— Talvez suas maneiras fossem bem melhores se eles não tivessem tentado obrigá-lo — respondeu ela. Então, com um suspiro, se moveu, dizendo: — Sei que se preocupa comigo, Nicholas, mas...

— Mas o quê? Por favor, Juliana, apenas me escute. Não estou tentando forçá-la a nada. Não tenciono controlá-la e nem desrespeitá-la. Estou lhe oferecendo somente uma... uma vida mais tranqüila. Pense nas vantagens. Teria dinheiro, roupas, e liberdade para fazer tudo que quisesse. Seria um casamento de conveniência. Eu não a obrigaria a ser minha esposa em todos os sentidos.

— Mas, Nicholas, isso é uma loucura. Por que está me oferecendo tal coisa?

— Seria vantajoso para mim, também. Preciso de uma esposa. Agora tenho um título e há certas obrigações sociais advindas desse fato. Sabe que sou completamente inexperiente nessas coisas, como já testemunhou. Cometeria uma série de erros, provocando a antipatia de toda a sociedade.

— Você se preocupa com isso? — perguntou Juliana instintivamente.

Ele riu.

— Talvez não muito. Mas pode ser. Como envelheci um pouco, lamentaria ganhar a inimizade de todos os meus semelhantes. — Nicholas fez uma pausa e sua face assumiu uma expressão mais séria. — Sei o que as pessoas pensam a meu respeito. Selvagem e perverso. Na maioria das vezes isso não me aborrece. Mas... — Ele encolheu os ombros. — Ainda não me habituei totalmente. Acho que posso desejar não ser uma... uma criatura sem esperanças. — Algo chamejou nos olhos dele e desapareceu em seguida. — Você poderia me fazer respeitável. Saberia o que dizer e fazer, como promover festas e quem convidar. Assim eu não teria vontade de uivar virado para a lua em vez de ouvi-los. Juliana quase sorriu.

— Não sei se há alguém na sociedade que se ajustaria a essa descrição. Porém, assim como você, também sou uma excluída.

— Talvez. Mas você, pelo menos, é uma boa pessoa. Sabe o que é certo e errado.

— Você também, Nicholas. Se não fosse bom, não estaria aqui se oferecendo para me dar tudo isso.

— Não tão bom. Ambos sabemos que preciso de uma esposa. Tenho duas casas para administrar. E preciso de alguém para aparar minhas arestas.

— Mas por certo precisa de alguém de seu próprio nível social. Uma moça de uma excelente família.

Não há nada de errado com a sua família. Seu pai era somente o filho mais novo.

— De um filho mais novo — acrescentou Juliana. -Sim, nosso nome é bastante honrado, porém não possuímos riqueza. Nem posição social.

— Não deixe tia Lilith ouvi-la denegrir a família dela.

— Sou apenas uma prima.

— Mas vale cem vezes mais do que ela. Isso é o que importa para mim. Não tenho nenhum interesse em riqueza. Já sou rico o suficiente. Com quem deveria me casar, Juliana? Diga-me. Com uma dessas moças tolas que me perseguem? Cujas mães põem armadilhas para solteiros imprudentes no mercado do casamento? Talvez com uma beldade como Clementine Thrall?

— Nicholas! Claro que não. Mas há outras mulheres...

— Quem? Não estou interessado em moças dando risadinhas ao meu lado. Eu conheço você e sei que faria um trabalho excepcional e que sabe tudo o que é esperado da esposa de um nobre. E se você se casar comigo, não serei mais perseguido pelas jovem casadouras da sociedade, o que será um grande alívio para mim.

— Nicholas... isso é ridículo.

— Não. Pense um pouco, terei que viajar em breve para Lychwood Hall e enfrentar meus parentes. Sei que não é tão cruel a ponto de me deixar encontrar tia Lilith e Crandall sozinho, não é?

Juliana o fitou. Apesar da maneira engraçada de Nicholas, sentiu que havia um fundo de verdade naquele argumento.

Então, com um sorriso perverso, ele continuou:

— Venha, diga-me a verdade. Não gostaria de enfrentar tia Lilith como a nova dona da casa?

— Mas e o amor? — perguntou Juliana bruscamente. Em todos os seus argumentos, ele não falara nem uma vez sobre isso.

Nicholas lançou-lhe um olhar sardônico.

— O que tem isso?

— Não gostaria de se casar com uma mulher a quem amasse? Não é o objetivo principal do casamento? Estar com quem se ama para o resto da vida?

— É? — replicou ele, virando-se e fechando a expressão com a carranca habitual. — Não acredito no amor.

— Não diga isso.

— Por que não? É a verdade. — Ele se virou de frente para encará-la. — O amor é um conto de fadas na maioria das vezes, com poucos propósitos, exceto fazer as pessoas se sentirem bem consigo mesmas. É verdade que não se vê isso em todos os casamentos.

— Mas seus pais...

— Lembro muito pouco de meus pais. -A face de Nicholas se fechou. E ele parecia, pela primeira vez, muito estranho. — Mas lembro-me de minha tia e meu tio e não havia nada entre os dois, além de orgulho e antipatia.

— Não pode usar Lilith e Trenton Barre como exemplo! Aliás, eles não eram bom exemplo nem de marido e mulher, nem de pais e nem mesmo de pessoas. Minha mãe e meu pai se amavam demais. Viviam juntos e felizes.

— E sua mãe se transformou em um fantasma durante todos os anos em que a conheci — respondeu Nicholas.

Juliana sabia que aquelas palavras eram verdadeiras. A mãe vivera os últimos tempos da sua vida em uma névoa triste e remota e nada que a filha fizesse podia fazê-la feliz novamente.

— Pelo menos teve amor por algum tempo — replicou obstinada.

— Juliana... — Nicholas cruzou a sala na sua direção. -Você é a única pessoa neste mundo em quem confio. A quem de fato considero minha família. Quero que seja bem tratada. Tenho meios e vontade de cuidar disso, mas não há outro modo de conseguir tal feito sem desonrar o seu nome. O casamento seria a única solução para que eu possa lhe dar o que merece, o que desejo que você tenha. Além do mais, não possuo nenhum sentimento por outra mulher. Nunca senti nada alem de luxúria, facilmente satisfeita.

Os olhos de Juliana se arregalaram e ela pôde sentir o rubor queimar-lhe as faces.

— Eu sei — continuou ele, um pouco impaciente — que não deveria falar de tais coisas com uma dama. Mas devo ser honesto com você. Tenho de fazê-la acreditar que não ligo a mínima para o amor. Não vou me arrepender mais tarde. Lidarei sem problemas com uma relação sem paixão. Desejos da carne podem ser satisfeitos fora do casamento. Discretamente, é claro. Eu não a envergonharia.

— Bem, e quanto a mim? — rebateu Juliana, ignorando o rubor intenso que lhe tingiu a face. Seria tão direta quanto ele, pensou. — Poderei agir da mesma maneira, com discrição, é claro?

Um brilho frio flamejou nos olhos de Nicholas e por um momento sua expressão tornou-se fria e perigosa. Parecia o pirata que alguns diziam que ele fora no passado.

Então, com um esforço visível, relaxou.

— Confiarei no seu bom senso, é claro.

Ele ergueu uma das sobrancelhas e lhe enviou um olhar desafiador. Juliana percebeu que Nicholas estava completamente ciente de que ela jamais procuraria um relacionamento ilícito, mesmo presa em um casamento sem amor.

— Bem, sejam quais forem os seus sentimentos sobre o assunto, ainda espero me casar com alguém que eu ame.

— E como vai encontrar essa pessoa? — perguntou ele, sardônico. — Seja prática. Como pensa em encontrar alguém passando o tempo todo cuidando de moças tolas ou velhas ricas?

Ao ouvir aquelas palavras, lágrimas umedeceram os olhos de Juliana. Nicholas estava certo. Durante todos os anos em que fora dama de companhia, não conhecera um único homem qualificado ou, para ser mais franca, um que considerasse a possibilidade de casar-se com ela. E era realista o suficiente para admitir que dali por diante, só envelheceria e cada vez mais se tornaria improvável que alguém a pedisse em casamento, mesmo se encontrasse um homem para amar. Era uma perspectiva desanimadora e que mais de uma vez a havia feito chorar à noite, quando deitava a cabeça no travesseiro.

Virou-se, lutando para conter as lágrimas que agora ameaçavam sufocar-lhe a voz.

— Sei que não tenho muita chance. Mas... — Juliana endireitou os ombros, orgulhosa, e voltou-se para encará-lo de queixo erguido. — Pelo menos detenho o controle da minha vida.

A face de Nicholas amoleceu, seus olhos de repente ficaram tocados de pesar.

— Sinto muito se a feri. Minhas palavras foram ásperas demais. Jamais pretendi provocar esse sofrimento em seus olhos.

— Não tem culpa por ter falado a verdade — respondeu Juliana.

Nicholas a alcançou e tomou-lhe as mãos, contemplando-a fixamente.

— É uma mulher valente e maravilhosa. Se o mundo fosse justo, você seria uma duquesa e todas as Thrall e Clementines da vida estariam a seu serviço. Não posso mudar o que lhe aconteceu. Mas estou lhe oferecendo o que posso. Terá dinheiro para fazer o que deseja e comprar o que quiser. Terá criados para cuidar dos seus interesses e não haverá ninguém olhando-a de cima e lhe dando ordens. Não serei um marido controlador e exigente. Prometo. Seríamos como sempre fomos, amigos. E você seria livre e independente. Eu jamais tentaria lhe pôr rédeas.

Juliana sentiu um aperto no coração. Estava adorando a proximidade de Nicholas, a aspereza lânguida daquelas mãos em sua pele macia, o metal fresco do anel de sinete, o cheiro másculo do sabão de barba que lhe inundava as narinas, o calor do corpo rijo perto do seu. Se pelo menos ele lhe estivesse oferecendo seu coração... Se pelo menos fosse amor e não apenas bondade que via naqueles olhos escuros.

— E sobre filhos? — disse bruscamente, pegando a si mesma de surpresa.

— O quê? — Nicholas a fitou assustado. Embora envergonhada, Juliana continuou:

— E se eu quisesse ter filhos? É bastante natural uma mulher desejar ter um bebê. Uma família para amar e cuidar.

Nicholas a contemplou por um longo momento.

Juliana esperou. O rubor de embaraço começando a se misturar com outro tipo de calor completamente diferente.

— Quando sentir essa necessidade — disse ele em um tom sensual -, é só me falar. — Nicholas se aproximou e curvou a cabeça. Os olhos de Juliana involuntariamente buscaram os lábios dele. — Se decidir que quer um tipo diferente de casamento — murmurou ele -, isso pode ser arranjado.

Ela ofegou e fechou os olhos.

No momento seguinte, os lábios de Nicholas tocaram os seus. A princípio suaves e depois se movendo com mais intensidade contra os dela. De repente, Juliana sentiu a cabeça girar e os sentidos se avivarem. As mãos fortes seguraram seus braços, dedos firmes apertavam-lhe a carne e o calor do corpo masculino era quase palpável, tocando-a e aquecendo-a.

Um pouco trêmula, jogou a cabeça para trás e entreabriu os lábios. O gosto da boca de Nicholas era como mel, intoxicante. Não conseguia respirar, não podia protestar. Sentia-se como se estivesse oscilando na extremidade de um enorme precipício e sabia que só queria se atirar e afundar naquela brecha escura de desejo e ficar lá para sempre.

Nicholas se afastou e a contemplou. Os olhos escuros brilhavam como fogo.

— Pense sobre assunto — disse num tom rouco. — É tudo que lhe peço. — Com essas palavras, se virou abruptamente e saiu da sala, deixando-a estupefata atrás dele.

 

Juliana pensou sobre o assunto. Na verdade, não fez outra coisa o resto do dia senão pensar na cena que acontecera entre eles. O beijo de Nicholas deixou-a perturbada, cheia de sensações estranhas e pensamentos desconexos e ruidosos que a faziam tremer da cabeça aos pés.

O que ele pretendera com aquele beijo? Uma parte dela queria acreditar que fora uma indicação de que Nicholas sentia mais por ela do que havia expressado. Que apesar de suas declarações de não crer no amor, no fundo nutria esse sentimento por ela.

Mas tentou dispersar tais pensamentos. Conhecia bem o mundo para saber que havia uma diferença distinta entre amor e luxúria. E os homens podiam facilmente sentir desejo sem qualquer tipo de ligação mais profunda. Seria o cúmulo da loucura se permitir acreditar que a oferta de Nicholas significava algo diferente do que ele havia declarado: um casamento de conveniência, sem amor.

Nem Juliana podia negar que de fato a oferta era bastante tentadora. Muitas mulheres ficariam exultantes com a oportunidade de desposar Lorde Barre, mesmo sem a menor sombra de afeto. Tornar-se Lady Barre, a dona de duas casas e um grande número de criados, automaticamente lhe garantiria excelente posição na sociedade. Era o sonho de muitas jovens casadoiras. Para uma solteirona de 27 anos sem fortuna, forçada a ganhar o próprio sustento, era um presente quase inimaginável.

Durante toda a sua vida, vivera à margem do mundo de riquezas e privilégios, sempre olhando, mas nunca participando. Ajudara moças, como sua prima Seraphina ou Clementine Thrall, a se vestir e arrumar os cabelos, e depois assistia, vestida em suas roupas simples, essas moças irem aos bailes, à ópera ou a algum sarau.

Um casamento com Nicholas mudaria esse quadro. As roupas que comprasse seriam suas. Daria festas elaboradas e receberia convidados. Usaria jóias e tecidos caros. E jamais teria que se submeter a um patrão novamente ou se preocupar com a sua situação caso não conseguisse um emprego. Isso lhe proporcionaria, como dissera Nicholas, uma imensa liberdade.

Mas, ainda assim, não gostava da idéia de se envolver em um casamento sem amor. Sempre acreditara que se casaria apaixonada. Carregava consigo a lembrança do amor dos pais, a risada e o afeto que sempre compartilharam. O dinheiro nunca fora farto, mas os dois não se preocupavam com isso. O amor compensava qualquer necessidade. Era o que queria para si.

Nicholas era o homem que povoara seus sonhos de juventude. É claro que à medida que amadureceu, percebeu o quão tolos e improváveis eram esses sonhos. Mas se agarrara à esperança de que em algum lugar existia um homem que a amaria e que encontraria o mesmo tipo de amor que os pais tinham vivido. Parecia uma terrível ironia que, quando por fim fora pedida em casamento, a proposta que recebera fosse uma antítese de tudo que sempre desejava, feita pelo mesmo homem que ocupara seus sonhos românticos no passado.

Como poderia suportar se prender em tal arranjo, tão torturantemente próximo dos seus sonhos e ao mesmo tempo tão distante?

Por outro lado, sabia que seria um absurdo desperdiçar aquela oportunidade. Em sua situação atual, a probabilidade de vir a se casar por amor era quase nula. Nicholas estava certo em dizer que, na posição dela, raramente conheceria homens qualificados e, se isso acontecesse, certamente nenhum deles pensaria em pedir em casamento uma desvalida como ela.

Se não havia nenhuma possibilidade de se casar por amor, era tão terrível se casar quando havia pelo menos uma amizade verdadeira? Nicholas tinha um jeito próprio de gostar dela. Dissera que a considerava como parte da família. Por certo isso significava algo sobre o seu lugar na vida dele. Estava disposto a se casar para lhe dar uma vida melhor em vez de desposar uma das jovens beldades que o assediavam.

E mesmo se isso estivesse longe de ser amor, podia servir de base para um casamento duradouro. Compartilharam um passado juntos e eram amigos. E ele era um bom homem, a despeito de tudo que falavam da sua natureza malvada. Só sua bondade poderia tê-lo feito oferecer-se para se unir a ela pelo resto da vida.

Oh, mas havia, sem dúvida, um pequeno desejo perverso em Nicholas de figurativamente cuspir nos olhos dos parentes que o haviam maltratado. Seria irritante demais vê-lo assumir a casa e o título que eles tanto almejavam. E não seria ainda mais irritante vê-la, ela, outra criatura indigna aos olhos daquela gente, como a senhora da propriedade? Nicholas deixaria toda a sociedade consternada quando ouvissem dizer que ele havia se casado com uma jovem sem dinheiro.

Mas todos esses motivos não eram suficientes para fazê-lo querer se casar, Juliana estava certa. No fundo era sua natureza generosa que o incitara a fazer tal oferta. E um homem assim, por certo, seria um marido amável e generoso. Se alguma outra mulher na mesma posição tivesse lhe pedido um conselho, certamente a aconselharia a aceitar a proposta.

E foi o que Eleanor lhe disse mais tarde naquele dia, quando contou à amiga sobre a oferta de Nicholas

— É claro que deve aceitar. Você merece a vida que Lorde Barre pode lhe proporcionar, e ele sabe muito bem escolher uma esposa.

Juliana suspeitava que Eleanor não compartilhava dos seus sentimentos sobre os laços sagrados do matrimônio. Ela e o marido pareciam ter um tipo bastante estranho de relacionamento, algo muito fraterno, carinhoso, mas sem qualquer paixão. Sabia que a amiga queria o seu bem. Talvez tivesse razão no que disse.

Foi para a cama naquela noite sem ter solucionado o assunto pendente, e quando o dia amanheceu e despertou de um sono inquieto e sem sonhos, descobriu que ainda estava insegura sobre o que fazer.

Após o desjejum, Eleanor foi trabalhar em seu estúdio, como fazia na maioria das manhãs. Juliana deu um passeio com as crianças e a babá, a atraente jovem indiana de pele morena que ainda se mostrava um pouco tímida na sua presença. Depois as crianças subiram para estudar, deixando-a sozinha com seus pensamentos.

Devia ir até a agência de empregos e perguntar se havia surgido alguma vaga. Contudo, não se sentiu animada. Tinha que ficar ali para aguardar a visita de Nicholas.

Começou a trabalhar em um bordado que Eleanor precisava concluir, mas não conseguia se concentrar. Então, notou que teria de desmanchar metade do trabalho que fizera. Por fim, pôs o bordado de lado.

Estava na hora de tomar uma decisão.

Logo Nicholas estaria ali e teria que lhe dar uma resposta.

Suas perspectivas não eram boas, admitiu. Era improvável que encontrasse o amor que buscava. Logo, se insistisse em esperar, provavelmente jamais se casaria. Passaria o resto da vida à margem da vida de outra pessoa. Não seria melhor se casar com Nicholas? Ter a segurança e as vantagens que aquele casamento lhe traria? Entretanto, não suportava sequer pensar em se resignar a um marido que não a amava e que mantinha casos discretos na rua. Queria um casamento de verdade. Mas quando pensava em rejeitá-lo, sentia um aperto no coração.

Ao ouvir o som de uma batida na porta da frente, seu estômago se contorceu em expectativa e ela apertou as mãos junto ao colo. No instante seguinte, escutou o som de passos ao longo do corredor e logo Nicholas entrou na sala.

Ergueu-se ofegante, enquanto ele vencia a distância que os separava. Num gesto, ao estilo francês, curvou-se sobre a mão dela, endireitou-se e a fitou nos olhos com intensidade.

— Bem? — perguntou, com uma expressão séria. — Decidiu?

Não podia fazer aquilo, pensou Juliana. Não podia se algemar a tal vida. Abriu a boca para falar, mas, para sua surpresa, as palavras que saíram foram:

— Sim, eu me casarei com você.

 

Nicholas parecia quase tão surpreso quanto Juliana. Seus lábios se abriram num largo sorriso. Puxou-a para si e a abraçou. Por um momento, ela relaxou de encontro ao peito largo. Era mais fácil acreditar que o compromisso deles era normal, que ele estava contente porque a mulher que amava aceitara seu pedido de casamento.

Mas aquilo não era a verdade, disse a si mesma, e quanto mais cedo aprendesse a conviver com aquela realidade, melhor. Juliana se afastou, sorrindo desajeitada.

— Pensei que seria mais complicado convencê-la. Mas você tornou as coisas bem mais fáceis para nós dois — disse Nicholas.

— Eu... Era a coisa mais sensata a fazer — respondeu cautelosa.

— Tenho que ir a Lychwood Hall em breve. Por que não nos casamos lá? Por menos que eu goste deles, são tudo que nos resta de família.

Juliana assentiu com a cabeça. Não tinha muita vontade de rever os primos, mas aquele seria um dos seus primeiros deveres como esposa de Lorde Barre. Forte e próspero como ele era, poderia servir de pára-choque contra a família.

— Providenciarei uma licença especial de forma que possamos dispensar a leitura dos proclamas. E temos que conseguir tempo para lhe comprar um guarda-roupa novo.

— Não é necessário — começou, um pouco envergonhada.

— Tolice, é claro que precisa. Uma noiva precisa ter um enxoval, não é?

— Mas ainda não estamos casados.

— Tenho que esperar até depois da cerimônia? — perguntou ele, os olhos flamejando. — Temos que nos casar aqui e então comprar suas roupas antes de partirmos para a nossa propriedade?

Juliana fez uma careta.

— Não seja tolo. Não há necessidade de...

— É claro que há necessidade. Já se olhou no espelho? Não quero minha esposa vestida como uma governanta. Quero que o mundo veja como você é adorável. Quer que todos falem que sou um sovina, deixando minha esposa usar roupas velhas e tristes?

— Claro que não — objetou Juliana. Sentia-se uma mercenária em aceitar tal presente, como se estivesse se casando somente pela riqueza dele. O que não era verdade! Estava se casando porque... bem, era melhor nem pensar. — Certo — disse com um sorriso. — Compraremos meu enxoval.

Os dois deram a notícia a Eleanor. A amiga ficou exultante ao ouvir que Juliana ganharia um novo guarda-roupa.

— Maravilhoso! Deveríamos começar com madame Fourcey. Ela é a melhor modista do ano. Os rumores dão conta de que ela é filha de imigrantes aristocráticos franceses que fugiram da Revolução.

— Verdade?

Eleanor encolheu os ombros.

— Sobre isso não faço a mínima idéia. Na verdade, tenho minhas suspeitas. Acho que é mais provável que ela seja uma competente atriz de Ipswich. Porém, de uma coisa estou certa: a mulher é uma artista na confecção de vestidos.

— Confiamos na sua experiência, milady — assegurou Nicholas.

Os três foram visitar a loja da modista na manhã seguinte e Juliana ficou imediatamente encantada com um vestido exibido em um manequim. Era um vestido de baile de cetim creme, com bordados florais em linha de ouro pálido ao redor da bainha e na pequena cauda. O bordado se repetia ao redor da gola baixa e redonda.

— Mademoiselle gostou? — perguntou madame Fourcey com um sotaque bastante acentuado. Ela lançou um sorriso cortês a Juliana e depois a Nicholas e Eleanor. Sabia farejar dinheiro quando estava por perto. — Combina com seus cabelos e olhos. Deseja experimentá-lo? -indagou, já se virando e sinalizando para a assistente remover o vestido do manequim.

— Oh, não... — começou Juliana, um pouco surpresa pelo profundo e imediato desejo que sentia de usar aquele vestido.

— Sim, ela quer — respondeu Nicholas. — É para isso que estamos aqui, não é? Os olhos escuros se iluminaram ao contemplá-la.

— Sim, eu sei. — Juliana sentiu a face se ruborizar. Sabia que estava sendo tola. Mas o hábito de uma vida toda economizando centavos era difícil de romper.

Permitiu que a costureira a conduzisse até o vestiário na parte dos fundos, enquanto Eleanor permaneceu no sofá verde aveludado com uma revista de moda nas mãos. A costureira e a assistente ajudaram-na a se livrar do modesto vestido escuro. Madame Fourcey meneou a cabeça tristemente ao examinar o traje simplório e o lançou à parte.

— Não, não, não. Esta cor não combina com você — disse, enfática. Então, inclinou a cabeça e acrescentou, com um brilho divertido nos olhos: — Nem com ninguém.

Fourcey e a assistente ergueram o vestido de cetim e deslizaram-no cuidadosamente sobre a cabeça de Juliana. Enquanto a ajudante fechava os botões da parte de trás, a modista cuidou da saia, endireitando-a, até que todas as pregas se ajustassem com perfeição.

— Oh, sim — disse a mulher, radiante. — Está perfeito! Bem, um pouco curto, mas isso pode ser facilmente contornado. Um pequeno ajuste na saia e pronto. — Segurou a bainha do vestido, ilustrando para Juliana o que ia fazer. — Assim, não haverá nenhum remendo escondido.

Juliana se olhou no espelho e foi acometida por um desejo irresistível de possuir aquele vestido. Até mesmo com os cabelos presos para trás do seu jeito habitual, jamais se achara tão bonita. Os tons creme e dourado avivavam-lhe a pele e faziam um contraste perfeito com seus cabelos escuros. Nunca se imaginara uma pessoa vaidosa, mas não podia deixar de admirar sua aparência com aquele traje.

A costureira sorriu, satisfeita.

— Venha, vamos mostrar ao seu...

— Noivo — disse Juliana depressa, atenta à pontada de orgulho que sentiu.

Madame Fourcey a conduziu de volta à loja, onde Nicholas e Eleanor aguardavam sentados. Ao vê-la entrar, ele se ergueu e seus olhos escuros brilharam.

— Ah! Está encantadora! — disse com satisfação. — E assim que deve vestir-se.

Juliana enrubesceu sob o olhar penetrante. Sentiu o mesmo formigamento que experimentava tão freqüentemente na presença de Nicholas e desejou saber se ele também sentia algo quando estavam juntos.

— É muito caro — contestou ela, embora soubesse que não tinha força de vontade para abdicar daquele vestido.

— Não pense nisso — disse Nicholas, aproximando-se. — Quero que tenha roupas caras. Você será minha esposa.

Ele a fitou nos olhos e, de repente, Juliana percebeu que era importante para o noivo comprar-lhe roupas bonitas. Era mais do que um impulso amável da sua parte. Parecia satisfazê-lo, lhe dar prazer, e isso encerrava o assunto para ela.

— Obrigada — disse simplesmente.

Juliana passou a semana seguinte em verdadeira orgia de compras. Nicholas, depois do primeiro dia, deixou a tarefa nas mãos capazes de Eleanor. Como a mulher tinha um gosto refinado e muito dinheiro, estava bastante familiarizada com as melhores modistas e chapeleiras. As duas iam de loja em loja, fazendo compras e adquirindo tantas coisas que a deixaram zonza.

Compraram vestidos matutinos de musselina florida, bem como trajes vespertinos de musselina com qualidade superior, lã e seda, ornados com faixas de cetim ou bordados na bainha e nas mangas para passeio e vestidos de um tecido mais resistente para viagens de carruagem.

Quando Juliana protestou sobre o preço de um traje de equitação de veludo azul-escuro, dizendo "Mas nem mesmo tenho um cavalo", a amiga lhe lançou olhar óbvio e respondeu: "Mas vai ter."

Também compraram inúmeros vestidos de noite, embora nenhum se comparasse, na opinião de Juliana, ao primeiro vestido de baile que adquiriu. Eram dos mais elegantes cetim e tafetá, alguns com pequenas caudas e decotes profundos que deixavam à mostra boa parte dos seios.

Mas os vestidos, tantos que faziam a cabeça de Juliana girar, não eram o bastante. Precisava comprar roupas íntimas novas, desde chemises a anáguas e calçolas cor da pele que cobririam seu corpo esguio sob os vestidos finos e anáguas que estavam na moda. Também tinha que comprar camisolas de noite, enfeitadas com bordados e roupões de brocado e veludo.

E ainda havia os vários modelos de capas considerados adequados a uma senhora da sociedade, como casacos curtos e peliças, bem como mantos para usar com vestidos de noite e sobrecasaca de corpo inteiro. É claro que vários calçados também eram necessários. Botas de montaria de couro brilhante, sapatos para caminhar, chinelos de noite em pelica macia e colorida ou cetim bordado. Também não poderiam esquecer dos guarda-sóis de seda em grande variedade de cores para combinar com as roupas e luvas em diferentes comprimentos, materiais e tonalidades. Fitas... Leques... Bolsas... A lista de artigos necessários parecia infinita.

E nenhum guarda-roupa poderia ser considerado completo sem a adição de chapéus. Havia os de aba larga, bonés em forma de concha, alguns amarrados com um lenço no estilo "cigano" e outros com tiras coloridas largas. Havia toucas justas que moldavam a face docemente e chapéus de veludo estilo turbante. Alguns eram mais pontudos, outros achatados e outros ainda seguindo o estilo mais atual, com coroa alta. Todos possuíam enfeites, é claro, como penas de avestruz, pequenos cachos de cerejas de madeira pintadas, flores ou tiras.

Era um excesso de riquezas e, embora fosse encantador, Juliana logo começou a se sentir como uma criança enjoada de doces. Afinal, ninguém precisava de tantos chapéus, tantos sapatos e acessórios, e no final da semana resolveu dar uma parada.

E claro que a maior parte do que havia comprado precisou ser confeccionada. Alguns vestidos, como o elegante vestido de noite que experimentara primeiro, já estavam prontos, necessitando apenas de um pequeno reparo que as costureiras concordaram em apressar. Mas o restante das roupas, para as quais as modistas tiraram as medidas, seriam enviadas para Lychwood Hall quando estivessem prontas.

Devido à correria daqueles últimos dias, Juliana quase não vira Nicholas até irem para Lychwood Hall, pouco mais de uma semana depois. Mas esse dia pareceu chegar voando. Mal pôde acreditar quando se viu dando um beijo de adeus em Eleanor, antes de subir na esplêndida carruagem que a aguardava.

Olhou o veículo junto ao qual Nicholas estava de pé, esperando para ajudá-la a subir e quando retrocedeu o olhar à amiga, um súbito aperto incomodou-lhe o estômago.

— Oh, Eleanor — murmurou. — Estou fazendo a coisa certa?

A mulher sorriu.

— Claro que sim. Está apenas um pouco excitada com o fato de se casar. Senti o mesmo e você sabe como em geral sou bem calma.

— Mas eu mal o conheço — insistiu Juliana. — Nos tomamos dois estranhos nestes últimos 15 anos e...

Eleanor segurou-lhe a mão e a apertou.

— Sabe que é bem-vinda na minha casa. Se achar que está indo rápido demais... Bem, ele vai esperar, tenho certeza. Pode viajar para a Itália comigo e Sir Edmund e quando voltar, então pode se casar se ainda for da sua vontade.

As palavras da amiga foram o antídoto perfeito para o súbito nervosismo que a acometera. Oferecer-lhe a opção de não se casar, a fez recuar. Percebeu que apesar de qualquer apreensão pré-casamento que pudesse estar vivenciando, casar-se com Nicholas era o que de fato desejava.

Juliana riu, mais de si mesma do que de qualquer outra coisa, e retribuiu o aperto de mão de Eleanor.

— Não. Não quero esperar. De verdade. Você tem razão... É apenas a apreensão de embarcar em uma nova vida. Estou entusiasmada e assustada ao mesmo tempo. Só desejo que você esteja presente na cerimônia.

— Eu também — assegurou Eleanor. — Se já não estivéssemos com as passagens de navio compradas...

— Eu sei. E você não deve demorar na sua viagem. -Juliana não mencionou, da mesma maneira que Eleanor não o fez, que o som da tosse de Sir Edmund piorava a cada dia.

Com um abraço final, afastou-se da amiga e desceu os degraus que levavam à rua. Nicholas segurou-lhe a mão para ajudá-la a subir na carruagem e em seguida se curvou em uma reverência para Eleanor, antes de subir no veículo, seguindo Juliana.

Acomodou-se no assento em frente ao dela, porque, afinal de contas, era considerado impróprio a um cavalheiro sentar-se ao lado de uma dama na carruagem, a menos que fosse seu marido ou um parente, como um pai ou irmão. O veículo movimentou-se e Juliana se recostou no luxuoso assento. A parte de trás era bem acolchoada e o couro marrom que a recobria tão macio quanto manteiga.

— É esplêndida! — disse ela, sentindo um pequeno incômodo agora que estavam a sós.

— Fico feliz que tenha gostado. É sua — respondeu ele.

— É? — Juliana o fitou, surpresa. Ele encolheu os ombros.

— Um coche fica bem para um homem solteiro. Mas uma dama precisa de uma carruagem fechada.

Juliana deu outra olhada ao redor do veículo, encantada. Nicholas tinha razão, Lady Barre não poderia fazer suas visitas em um coche de duas rodas. Embora não pudesse evitar de pensar que aquela compra indicava mais que do que apenas atenção ao que era necessário à sua posição. Tinha de haver algum grau de sentimento da parte dele para fazê-lo ter escolhido e comprado aquela carruagem.

Ela alisou o couro macio e perfeito. Estaria sendo tola por pensar que talvez Nicholas a quisesse mais do que imaginava?

Seus olhares se cruzaram. As linhas fortes da face máscula de alguma maneira haviam se suavizado e os olhos escuros exibiam um brilho intenso. Ela fitou aqueles lábios sensuais e se lembrou de como se ajustaram aos seus, firmes e ao mesmo tempo flexíveis. O calor que havia experimentado a inundava agora só de pensar no beijo que trocaram. Então, virou o rosto, esperando que ele não percebesse.

Juliana clareou a garganta.

— Obrigada. Você é muito generoso comigo.

— Sinto prazer nisso — disse Nicholas simplesmente. — Há um limite para quanto uma pessoa pode comprar para si mesmo.

Juliana o encarou, os olhos faiscando quando disse:

— Há várias pessoas que não percebem isso, você sabe.

— Já reparei.

A carruagem rodou lentamente pelas ruas de Londres, mas aos poucos o tráfico diminuiu e as edificações escassearam. Estavam deixando a cidade. A viagem até Lychwood Hall, que se situava na encantadora costa verdejante do Kent, não era demasiadamente longa. Para os outros, supôs Juliana, parecia estranho que Nicholas ainda não tivesse visitado a casa ancestral. Mas, ela podia entender perfeitamente sua relutância. Aquela compreensão, pensou, talvez fosse a razão principal por que ele desejava se casar com ela. De todas as pessoas do mundo, era a única que sabia por que era tão difícil para Nicholas colocar os pés novamente dentro daquela fria mansão. Fora testemunha dos esforços empreendidos para domar o temperamento que ele tinha quando criança, dos castigos freqüentes que o mantinham preso no quarto sem jantar, das surras aplicadas no estúdio de Trenton Barre e, talvez o pior de tudo, da falta de amor dedicada a um menino órfão.

Quando criança, sentia-se confusa pelo modo como os Barre tratavam Nicholas. Agora entendia que era o ciúme o que movia Trenton Barre, inveja por saber que a criança um dia herdaria aquela propriedade e o título que ele tanto almejava. Não era capaz de perdoar aquele homem. Em vez do amor que deveria ter dado ao filho do irmão, ofereceu-lhe somente solidão e antipatia. Nicholas contava apenas com a amizade dela e de alguns dos criados e arrendatários da propriedade. Sentia-se um pouco triste em pensar que era provavelmente a única pessoa no mundo com quem ele podia esbanjar um pouco da sua fortuna.

Juliana o fitou. Ele estava contemplando a paisagem rural, a expressão ilegível. Desejou saber sobre o que ele estaria pensando em seu retorno à antiga casa.

— Será estranho ver a mansão novamente — comentou ela. — Não vou lá há mais de oito anos.

— Acho que será tudo muito familiar.

— Tem razão — concordou Juliana. — Ela fez uma pausa, então continuou. — O que pretende fazer lá?

— Examinar os livros e as terras, suponho. Resolver qualquer problema que surgir. Crandall tem tomado conta de tudo desde a morte do pai. E tenho sérias dúvidas sobre sua administração.

— Talvez ele tenha mudado.

— Talvez.

— Vai deixar que continuem vivendo lá?

Um sorriso perverso curvou os lábios másculos.

— Devo admitir que sentiria um certo prazer em botá-los para fora. — Ele encolheu os ombros. — Mas não seria de grande valia. Não pretendo viver lá. É um lugar repugnante, desagradável. Espero passar, ou melhor passarmos, a maior parte do tempo em Londres ou na casa que foi de meus pais em Cornwall. Seria mesquinho da minha parte despejar tia Lilith e Crandall, não concorda?

Juliana sorriu.

— Fico feliz por você pensar dessa maneira. Também não gosto muito deles, mas...

Mas tem um bom coração — terminou ele.

— Como você.

— Não. Apenas não vejo necessidade em simplesmente criar alvoroço. — A face de Nicholas assumiu um ar severo. — Contudo, não posso dizer que minha reação seria a mesma se tio Trenton ainda estivesse vivo.

— Era um homem mau. Sempre morri de medo dele. Tinha os olhos mais frios que já vi. Era como olhar para uma cova. Nunca tive coragem de encará-lo como você fazia.                                                              

— Meus joelhos ficavam bambos, posso lhe garantir, mas não queria lhe dar a satisfação de me ver assustado. Era mais teimosia que coragem.

— Bem, espero ser bastante teimosa para entrar naquela casa novamente.

Nicholas a fitou um tanto preocupado.

— Isso a preocupa tanto assim? Não era necessário termos vindo.

— Não, acho que era necessário por você. Não é? Ele levou algum tempo para responder.

— Sim. Mas não temos que nos casar lá. Você não precisava ter vindo.                                                  

— Provavelmente é tão necessário para mim quanto para você. De qualquer maneira, minhas recordações por certo não são tão ruins quanto as suas. Mas devo confessar que fiquei feliz por não ter planos de residir lá para sempre. Acho a casa de Cornwall muito melhor.

A face de Nicholas se iluminou.

— Sim. É uma casa adorável... ou era. Ficou abandonada com a minha ausência. Mas já providenciei os reparos. Deverá estar habitável dentro de alguns meses. Até lá, ficaremos em Lychwood Hall.

— Foi em Cornwall que você viveu quando menino, certo?

Nicholas assentiu com a cabeça.

— Sim. Fica em um penhasco sobre o oceano. A vista dos andares superiores é magnífica!

— Lembro-me de como você sentia falta de lá — disse Juliana suavemente.

— Acho que sentia mais falta do mar. Tínhamos um barco e meu pai me ensinou a velejar. Era o meu passatempo favorito.

— Foi para lá quando deixou Lychwood Hall? Ele fez um gesto afirmativo.

— Não para a casa. Tinha certeza de que seria o primeiro lugar onde Trenton me procuraria. Mas fui para Cornwall. Eu conhecia pessoas lá que me acolheriam. E poderia trabalhar nos barcos.

— Pescando?

— Entre outras coisas. — Ele olhou a paisagem através da janela e então voltou a fitá-la. — Contrabandeando, também. As histórias são verdadeiras sobre isso. Ganhava muito dinheiro e era um bom modo de me esconder do meu tio. A maioria das pessoas não me delataria. Mas aqueles que pensassem em fazê-lo teriam medo de trair um contrabandista.

— Então contrabandeava mercadoria da França.

— Sim. Conhaque e vinho, principalmente.

-. E sobre a espionagem? — perguntou Juliana.

— Também é verdade. Na época em que comandava o meu próprio navio, transportava espiões para a França. Outras vezes trazia apenas informações. — Ele encolheu os ombros. — Normalmente, eu não fazia o trabalho de espionagem. Ficar na França por meses dificultaria os meus negócios.

Normalmente? Isso significa que às vezes ficava na França, recolhendo informações?

— Fiquei uma ou duas vezes. Certa vez quando as comunicações foram interrompidas, precisaram descobrir o que havia acontecido e me ressarciram dos prejuízos. E mais tarde também, quando eu estava disposto a vendê-las de qualquer maneira. — Ele sorriu. — Como pode ver, as histórias que contam a meu respeito são verdadeiras. Não sou um sujeito muito correto. Talvez seja melhor repensar sua decisão de casar-se comigo.

— Espionava para a Inglaterra?

— Sim. Não era tão canalha a ponto de trabalhar para o outro lado.                                        

— Então era um patriota. E o contrabando era necessário ao seu disfarce. Não acho que tenha feito nada de errado.

— Teria contrabandeado de qualquer maneira. E eles me pagavam muito bem pelo resto. Fiz tudo pelo ouro, não por patriotismo.

— Então o que quer na verdade? — Juliana replicou com um sorriso. — Convencer-me de que é perverso?

Um sorriso curvou os cantos da boca de Nicholas.

— Acho que você é tão teimosa quanto eu.

— Talvez seja.

— Não espere muito de mim — disse ele num tom mais sério.— Não quero vê-la desapontada.

— Isso não vai acontecer. — Juliana não especificou se a sua resposta era em relação a esperar muito ou ficar desapontada. E Nicholas não perguntou.

O restante do dia decorreu num clima de tranqüilidade. Às vezes conversavam. Outras vezes permaneciam calados e recostados nos confortáveis assentos. Era notável, pensou Juliana, como era fácil estar com Nicholas, até mesmo depois de todos aqueles anos de separação. Havia momentos em que, inesperadamente, se achava contemplando as linhas rígidas da mandíbula dele, a curva escura das sobrancelhas ou o modo como a luz do sol rebrilhava nos cabelos escuros. Então não era mais amizade ou conforto que sentia. Era uma agitação, no fundo de suas entranhas, um outro tipo de sentimento, uma ex-citação ofegante, uma onda lenta de desejo que a fazia se remexer impaciente no assento e desviar o olhar, com as faces rubras de embaraço.

Era nessas vezes que se lembrava do beijo que ele lhe dera e desejava saber o que significara. Mais do que isso, desejava saber se ia acontecer novamente.

No meio do trajeto, pararam em uma hospedaria para almoçar. Ao entardecer, Juliana cochilou em um dos cantos do assento, acalentada pelo barulho monótono da carruagem. Quando despertou, já estava anoitecendo.

— Estamos quase chegando — disse Nicholas. Juliana endireitou-se e contemplou a paisagem através da janela.

A zona rural parecia familiar e ela percebeu que estavam chegando à aldeia. Lychwood Hall ficava do outro lado da cidade.

Alisou a saia, um tanto nervosa, então retirou as luvas e o gorro que usara durante a viagem de carruagem e o contemplou.

Nicholas lhe devolveu um sorriso lânguido.

— Não fique nervosa. Se eles a ofenderem, eu os mando embora.

Juliana retribuiu o sorriso.

Não é por eles... É... Não sei. Isto faz parecer como se uma nova vida estivesse começando.

— E está.

Agora trafegavam pela aldeia. Após contornarem uma curva, cercas vivas começaram a surgir bem próximas, logo após uma fileira de plátanos. E lá, no fim da estrada, erigia-se uma grande casa de três andares, em formato de um retângulo simples. Uma construção de pedra cinza e sílex preto. Apresentava uma frente perfeitamente simétrica, com quatro torres, uma de cada lado, com janelas de vidro e varandas nos três andares. O brasão dos Barre fora esculpido no topo. Era uma residência graciosa e elegante, mas havia certa frieza na sua perfeição.

Enfim, haviam chegado a Lychwood Hall.

 

A porta foi aberta por ninguém menos que Rundell, o mordomo. Um indivíduo bastante robusto, com um círculo de cabelo na parte de trás que ia de orelha a orelha numa cabeça perfeitamente calva. Trabalhava na casa como mordomo desde quando Juliana chegara a Lychwood Hall quase 20 anos atrás. Seu porte permanecia rígido como sempre, porém os cabelos haviam se tornado mais brancos e mais ralos.

Ele os saudou respeitosamente.

— Sejam bem-vindos, milorde, Srta. Holcott. Por favor, aceitem minhas felicitações.

— Obrigado, Rundell. — Nicholas entregou-lhe o chapéu e as luvas, que o mordomo passou a um dos criados.

— Presumo que queira ver a Sra. Barre primeiro, senhor — disse Rundell. — Então, é claro que se for do seu agrado, gostaria de lhe apresentar a criadagem.

Juliana tinha certeza de que seria mais prazeroso para Nicholas conhecer os criados do que se encontrar com a família. Entretanto, não pôde deixar de pensar se o comportamento dos parentes não teria mudado, dadas as circunstâncias.

Enganchando a mão no braço do futuro marido, mais para lhe oferecer apoio do que por educação, caminhou a seu lado atrás do mordomo até a entrada da grande sala quadrada no final do corredor. Rundell abriu a porta que levava ao recinto formal raramente usado e conduziu o casal ao interior.

Havia quatro pessoas na sala. Um homem que Juliana jamais vira antes, um indivíduo de estatura mediana, com cabelos castanhos penteados com esmero em um estilo popularizado anos antes por Lorde Byron. Sua fisionomia era agradável e um pouco indescritível. Os olhos tinham um tom mais claro que o castanho dos cabelos. Encontrava-se de pé junto à janela, olhando para fora de uma maneira entediada, e quando os viu, virou-se, fitando-os com interesse.

As outras três eram mulheres, duas sentadas no sofá e a outra numa cadeira. A mais velha era Lilith Barre, a tia de Nicholas, e o primeiro pensamento que ocorreu a Juliana foi como a mulher havia mudado tão pouco, desde que a vira pela última vez, quase nove anos atrás. O cabelo loiro claro, elegantemente penteado, parecia um pouco mais escuro com mechas cinza, mas a face e as mãos não exibiam rugas. Um tributo ao cuidado assíduo que sempre tivera, usando chapéus largos e luvas toda vez que se aventurava ao ar livre, bem como às aplicações, da mesma forma disciplinadas, de loções e cremes. Fisicamente também estava bastante conservada e isso, por certo, devia-se a sua devoção ao exercício da equitação. Amava cavalos, o único sinal de afeto que Juliana alguma vez percebera naquela mulher. Mantinha sempre um cavalo e uma égua para cavalgar pela propriedade.

— Sra. Barre — O mordomo se curvou diante de Lilith. — Lorde Barre e a sita. Holcott chegaram.

— Sim, estou vendo. Entrem. — Lilith se ergueu e caminhou até eles, a voz calma e as maneiras elegantes. Nem por olhares ou gestos demonstrou sinal de hospitalidade ou desconforto. — Lorde Barre. Srta. Holcott. Por favor, sentem-se. Devem estar cansados da viagem. E sedentos. Rundell, traga chá, por favor — dizendo isso, dirigiu-se às outras duas mulheres. — Já conhecem Lady Seraphina Lowell-Smythe, é claro. Permita-me apresentar-lhes a Sra. Winifred Barre, esposa de meu filho Crandall. Ele precisou se ausentar para resolver assuntos inerentes à propriedade.

Juliana percebeu no momento em que dera alguns passos à frente para cumprimentar Seraphina que ela mudara mais que a mãe. Os anos haviam lhe deteriorado a figura esbelta e se vestia com grande espalhafato. Talvez fosse uma tentativa de distrair os olhos de sua gordura. Uma fita azul circundava um arranjo exuberante de cachos dourados no alto da cabeça, combinando com as fitas azuis que atavam o vestido de musselina branco com flores azuis e amarelas bordadas na bainha, nas mangas e ao redor do pescoço. Uma faixa larga pregueada brotava do decote e um manto fino caía-lhe pelos ombros e braços. Um broche de camafeu de coral fora fixado no meio do vestido entre os seios e faziam par com brincos de coral pendurados nas orelhas. Uma corrente dourada e um medalhão ao redor do pescoço e várias pulseiras de ouro nos pulsos completavam o conjunto extravagante.

— Juliana! Nicholas! — vibrou Seraphina. Sorrindo, beijou-os na face como se fossem velhos amigos, apesar de não vê-los durante os últimos nove anos e jamais ter sido particularmente afeiçoada a nenhum dos dois quando eram crianças. — Como está elegante, Juliana!

Os olhos da mulher varreram a figura esbelta e o traje de viagem azul de Juliana com visível inveja.

— Winnie, não seja tímida — disse, dando meia-volta e puxando a mulher que estava de pé alguns passos atrás.

A esposa de Crandall sorriu e se curvou numa reverência graciosa diante dos recém-chegados.

— Milorde. Srta. Holcott.

Loira e de olhos azuis como Seraphina, a mulher era o oposto da cunhada na maneira de se vestir. Serena e com um sorriso tímido, trajava um vestido simples de musselina pintada e os únicos adornos que usava eram um par de brincos de pérola e a aliança de casamento. Jovem e com uma face angelical, não parecia ser o tipo que Crandall escolheria para se casar, lembrou-se Juliana. Mas talvez apenas uma moça assim pudesse agüentá-lo como marido.

— E este é o marido de Seraphina — disse tia Lilith, gesticulando para o homem que se encontrava junto à janela, que por fim caminhou até eles para cumprimentá-los.

— Sir Herbert Lowell-Smythe. Seraphina e Sir Herbert estão nos visitando neste verão.

Juliana achou estranho o casal estar passando férias ali, já que a temporada em Londres estava no ápice. A Seraphina que ela conhecera sonhava com o dia em que poderia passar as temporadas indo a todos os saraus e bailes de Londres. Sempre achara Lychwood Hall e a sua paisagem rural terrivelmente enfadonhos. E já que agora era uma mulher casada, não estava mais presa à propriedade como Crandall e a mãe. Tudo que Juliana pôde deduzir era que a curiosidade de Seraphina para ver Lorde Barre era grande o bastante para afastá-la da cidade.

Herbert cumprimentou Juliana e Nicholas de uma maneira amigável, perguntando como fora a viagem. E em seguida, foram feitos comentários gerais sobre o tempo e a monotonia da aldeia. Então a conversa inconsistente findou.

— Bem — Tia Lilíth disse depois de um longo momento de silêncio. — Imagino que vocês dois apreciariam a oportunidade de se refrescar um pouco antes do jantar.

— Sim, obrigada. — Juliana se agarrou de bom grado à desculpa.

— Muito bem. Chamarei Rundell.

O mordomo respondeu à convocação tão prontamente que Juliana suspeitou que o homem estivera espreitando atrás da porta o tempo todo. Ele os escoltou até o pé da suntuosa escadaria, onde uma fileira de criados uniformizados parecia aguardá-los. Juliana lembrou-se de que Rundell pedira a Nicholas que conhecesse o pessoal e se sentiu um pouco enfastiada por ter mais aquele dever a cumprir, antes que pudesse ter uma chance de ficar sozinha e descansar.

— Sra. Pettibone, a governanta — entoou o mordomo, conduzindo-os à cabeça da fila, onde uma mulher de meia-idade, rechonchuda, com um toucado branco e um austero avental preto sobre o vestido, se encontrava de pé, com um enorme molho de chaves pendurado à cintura, que era a indicação do seu ofício.

Ela fez uma mesura com grande dignidade e o mordomo continuou na fila, apresentando-lhes primeiro a cozinheira, depois os lacaios, as criadas de sala de estar e de quarto e assim por diante, até a última criada de copa e o ajudante de cozinha. Pela primeira vez Juliana refletiu sobre o fato de que em breve estaria dirigindo aquele verdadeiro exército, algo completamente além da sua experiência. Só esperava que a confiança de Nicholas em suas habilidades fosse justificada. Odiaria fracassar com tia Lilith por perto para observá-la e estava bem atenta ao fato de que, após todos aqueles anos trabalhando para Lilith, os criados provavelmente manteriam sua lealdade à mulher mais velha. Não era uma mudança fácil passar a direção de uma casa de uma patroa para outra, e por certo não era a melhor das situações.

Terminadas as apresentações, foram conduzidos afinal aos seus respectivos quartos e Juliana pôde enfim ficar só. Deitou-se e fitou por um longo momento o pesado dossel de brocado suspenso alguns centímetros acima da cama, uma volumosa peça estilo jacobino de nogueira escura na qual fora esculpida uma grande confusão de animais, faces e cenários. O dossel, suspenso por uma armação grossa, era em padrões de verde-escuro e dourado, combinando com o cortinado puxado para os lados em todas as quatro varas. Dada a imponência da sua cama, só podia imaginar como seria grande e ornada a cama do quarto principal. Desejou saber se aquela sempre fora a cama da atual Lady Barre, ou se Lilith a cedera a ela com o propósito de humilhá-la.                          

Bem, seria necessário bem mais do que uma cama para que isso acontecesse, Juliana prometeu a si mesma, erguendo o queixo inconscientemente. Sentou e deu uma olhada ao redor do aposento, observando todos os detalhes, que devido ao cansaço inicial, lhes passaram despercebidos.

Era um cômodo grande, com uma fileira de aprazíveis janelas que se abriam para o sul, mobiliado e decorado prodigamente, até mesmo com um certo exagero. Uma confortável chaise longue de veludo verde com almofadas douradas repetiam o esquema de cores da cama e as cortinas puxadas para o lado de cada janela eram de veludo verde, também. Um guarda-roupa grande, um baú alto e estreito e uma cômoda com gavetas rasas, todos na mesma nogueira escura, proviam armazenamento mais que suficiente para as suas roupas. Também havia uma penteadeira com espelho e banqueta, uma escrivaninha de leitura pequena e uma mesinha redonda ao lado da cama. E ainda assim o quarto dispunha de um amplo espaço livre. Era um lugar luxuoso, quase opressor para uma mulher acostumada a economizar cada centavo, e novamente Juliana não pôde deixar de imaginar que essa fosse a reação que tia Lilith esperava lhe evocar.

Um jogo de portas em um das paredes laterais do aposento chamou sua atenção. Caminhou curiosa naquela direção. Havia uma chave inserida na fechadura e ela a girou, deparando-se de repente com outro quarto. Podia ouvir o som de passos no outro cômodo. Fechou a porta depressa. Estava claro que seu quarto se conectava a outro, o que supôs ser o quarto de Nicholas. Era um arranjo bastante comum entre cônjuges da aristocracia.

Juliana se virou, um rubor involuntário tingiu-lhe as faces. Não queria pensar nas possibilidades que aquela porta suscitava.

Alguns minutos depois, ouviu uma batida à porta e dois criados entraram, carregando a sua bagagem. Estavam sendo seguidos por sua nova criada de quarto, uma moça chamada Célia que fora criada pessoal de Eleanor quando vivia na Inglaterra. A jovem recusara-se a acompanhar Eleanor para a Itália. A amiga lhe sugeriu que a contratasse e Juliana acatou a sugestão de imediato. Célia era uma feiticeira com penteados e era óbvio que agora com seu novo guarda-roupa e estilo de vida precisaria de uma criada para manter o ritmo de tudo.

Célia e o criado de Nicholas, Roberts, também haviam chegado de Londres naquela manhã. Tinham partido mais cedo e chegado depois, porque viajaram em uma carruagem que transportava a bagagem. De imediato Célia ocupou-se com a tarefa de guardar as roupas de Juliana, ajudada por uma das criadas da casa. Não levou muito tempo e a eficiente mulher já havia colocado tudo em seus devidos lugares. Então foi até o baú e pegou alguns dos elegantes vestidos formais, bastante enrugados pela viagem.

Juliana escolheu cuidadosamente o vestido que usaria naquela noite. Não queria que houvesse críticas quanto a sua aparência naquele primeiro jantar com a família de Nicholas. Uma jovem solteira devia se vestir com tons claros e embora soubesse que a sua idade já não a colocava mais nessa categoria, sentia que era melhor aderir ao que determinava a sociedade. Vestiu um traje de noite de seda branco, com um corte simples e ao mesmo tempo elegante. O único adorno era uma fita larga azul-escura, circundando-lhe o tórax logo abaixo dos seios. Célia lhe colocaria uma tira da mesma cor nos cachos de cabelos. O vestido possuía apenas uma leve sugestão de cauda e um folho mais comprido na frente. Entretanto, qualquer um que entendesse um pouco mais de moda, o reconheceria de imediato como sendo um trabalho de uma modista de ponta, que soube valorizar o físico esguio de Juliana.

Quando Célia terminou de lhe arrumar os cabelos e lhe entregou o leque, Juliana teve certeza de que sua aparência não podia ser melhor. Dirigiu-se ao corredor e olhou involuntariamente para a porta do quarto ao lado. Naquele mesmo momento, Nicholas saiu, carregando uma pequena caixa nas mãos.

Ele a fitou e um sorriso brincou nas feições másculas.

— Juliana — disse ele, parando diante dela. — Como está adorável!

Os olhos escuros cintilaram, o que a fez sentir uma onda imediata de calor.

— Obrigada — respondeu num tom suave. — Queria parecer merecedora... de ser sua esposa.

— Eu é que não a mereço, posso lhe assegurar — disse Nicholas. — Nem quaisquer daqueles abutres que nos esperam lá embaixo.

Juliana deixou escapar uma risadinha.

— Você é muito indelicado.

— Sou honesto e você sabe disso. E espero que também saiba o quanto é bonita. A voz baixa e um pouco rouca a fez sentir um arrepio na pele, como se ele tivesse roçado os dedos em seu braço.

Juliana não sabia para onde olhar e desejou saber se ele fazia idéia do efeito que lhe causava. Será que lhe causava o mesmo tipo de sensações.

Nicholas estendeu a caixa na direção dela.              

Trouxe algo para você.                                          

— O que é? — Juliana estendeu o braço para alcançar a caixa, fitando-o curiosa.                                            

— Abra e veja. — Ele acenou com a cabeça para a caixa. — Juliana ergueu a tampa. Dentro havia um colar de pérolas, perfeitamente simétricas. Ela ofegou.

— Nicholas! São adoráveis!

— Então vão combinar com você. Use-as.

Ele pegou o colar do suporte aveludado e abriu o gancho.

— Mas que presente... Não posso aceitá-lo.

— Claro que pode. Você é minha noiva. É perfeitamente natural. E são pérolas... Eleanor me assegurou que seria um presente apropriado. Pérolas até ser uma senhora casada. Então, penso que... hum... safiras seriam perfeitas, não acha? Pelo menos com este vestido.

— Nicholas... — Juliana o fitou. Ele tinha razão, é claro. Pérolas eram apropriadas para uma mulher solteira e um presente de casamento era aceitável, até mesmo esperado por parte do noivo. Estaria sendo tola em desejar que o presente sugerisse algo diferente do que era correto e esperado!

Nicholas sustentou o colar e deu meio passo na direção dela. A proximidade a fez prender a respiração. Estava totalmente atenta à presença dele, só dele. Alcançando-a, ele a rodeou para fechar o gancho do colar. As pérolas frias e macias tocaram-lhe a pele nua. Juliana sentiu o roçar dos dedos dele na base do pescoço e não pôde disfarçar o arrepio que tomou conta de suas costas.

O gancho foi fechado com um estalido e as mãos de Nicholas se afastaram, demorando-se um pouco mais sobre seus ombros. Ao fitá-la, os olhos escuros cintilaram repletos de intenções. Juliana desejou se perder na profundidade escura daquelas íris, e...

Ao vê-la oscilar na sua direção, Nicholas curvou a cabeça à frente. O estômago de Juliana se contraiu em antecipação e seus olhos se fecharam.

De repente, o som de uma porta se abrindo no final do corredor, a fez saltar para trás com os olhos arregalados. Nicholas se afastou ao mesmo momento e ambos se viraram em direção ao barulho. Sir Herbert surgiu, caminhando ao longo do corredor. Acenou com a cabeça e lhes deu um sorriso.

— Olá. Estão descendo para o jantar, não é? — perguntou num tom jovial, parando ao lado dos dois. — Seraphina ainda vai demorar um pouco, receio. — O homem lançou um sorriso conspirativo a Nicholas. — Vai compreender isso logo, logo, companheiro.

Juliana esforçou-se para esboçar um sorriso, embora seus sentimentos em relação a Sir Herbert não fossem tão amigáveis no momento. Não havia mais nada a fazer, a não ser acompanhá-lo até a sala de jantar.

Os outros já se encontravam reunidos na pequena ante-sala que era separada da sala de jantar por portas de correr. As pesadas portas de nogueira eram abertas com o intuito de ampliar o compartimento formal, quando eram oferecidos grandes festas e jantares, mas a maior parte do tempo a pequena saleta era usada para a conversa social que antecedia o jantar.

Lilith já estava lá junto com Crandall e a esposa que, sentada com as costas rijas, saboreava um cálice de xerez. Winifred se encontrava em uma cadeira próxima, também com um cálice de xerez na mão, mas o apertava com tanta força, que Juliana se admirou que a haste tão frágil ainda não tivesse quebrado. Fitava o marido, nervosa. Crandall estava de pé ao lado da mesinha de licor e, a julgar por sua aparência, aquela posição devia estar sendo constante aquela noite.

Quando os três entraram na sala, Crandall se virou na direção dos recém-chegados, com movimentos instáveis e os considerou com um ar belicoso. A mão de Juliana apertou o braço de Nicholas.

— Ora, ora — disse, com uma nota de amargura na voz. — O filho pródigo voltou.

— Crandall — respondeu Nicholas num tom uniforme. O homem o considerou por um momento, a face estampando a familiar arrogância. Então, se dirigiu a Juliana.

— E a pequena Juliana — disse, curvando-se na frente dela com uma mesura formal. O movimento foi um pouco deteriorado pelo fato de se desequilibrar e ter que amparar-se na mesinha de licor. — Parece que enfim conseguiram o que vinham perseguindo durante todos esses anos.

— Vejo que não mudou nada, Crandall — observou Juliana, seca.

A declaração era verdadeira no que se referia à personalidade, mas a aparência declinara bastante naqueles nove anos, desde que o vira pela última vez. A arrogância sempre se refletira demais na face de Crandall para Juliana apreciar-lhe a aparência, mas sabia que as amigas de Seraphina o consideravam um homem muito bonito. Tinha um tom de pele mais claro do que o de Nicholas, os cabelos castanhos cor de avelã e era tão alto quanto o pai. Também herdara o mesmo tipo de face angulosa, com sobrancelhas escuras e cerradas. Porém, os anos, se aquela noite fosse típica, e a ingestão exagerada de álcool, haviam lhe acrescentado alguns quilos no físico e recoberto com carne flácida o rosto de traços marcantes.

Trajava um casaco formal, calças até o joelho e um lenço de pescoço fino abaixo da papada e a face inchada como a de um sapo.

Juliana sentiu um arrepio de asco ao fitá-lo. Não pôde evitar se lembrar da última vez que estivera em Lychwood Hall. Crandall, aproveitando-se do fato de encontrá-la sozinha na biblioteca, pressionou-a de encontro às estantes. Ainda podia recordar as prateleiras duras machucando-lhe as costas, enquanto tentava se livrar como podia. Ele havia bebido e ela se recordou do cheiro de uísque no hálito quente e repugnante de encontro a sua pele. O peso do corpo apertando-a, as mãos ásperas agarrando-lhe os braços para contê-la. Também se lembrou com mais satisfação de quando ergueu o joelho e o acertou com um golpe baixo, que o fez cambalear, comprimindo a genitália e amaldiçoando-a ferozmente. No dia seguinte, ela pressionara Lilith a lhe escrever uma carta de recomendação e partira para Londres.

— Não posso dizer o mesmo a seu respeito, minha querida — disse Crandall, varrendo-lhe o corpo com os olhos. — Parece ainda mais adorável.

Juliana sentiu Nicholas enrijecer a seu lado e cravou os dedos em seu braço, relanceando o olhar suplicante para Lilith. Foi pega de surpresa ao perceber que a mulher fitou o filho com expressão glacial. Então, desejou saber se a mãe começara a enxergar o filho como realmente ele era.

Quando Lilith não fez nenhum movimento com respeito ao olhar de Juliana, Winnie ergueu-se e, caminhando até a mesa de licor, pôs a mão no braço do marido.

— Crandall, querido, por que não vem se sentar comigo?

Ele a encarou com um olhar desdenhoso.

— E ficar enfadado até a morte?

A mulher baixou a cabeça, com a face rubra de embaraço. Juliana sentiu pena da jovem.

Foi Sir Herbert quem quebrou o momento desagradável. Caminhou até Crandall e Winifred e disse:

— Não seja uma pessoa tão rude, cunhado. Por que não serve um pouco de uísque para mim e para Lorde Barre? — Então, virou-se para Nicholas e Juliana com expressão interrogativa. — Xerez, Srta. Holcott?

— Sim, obrigada — respondeu ela e em seguida caminhou até Winifred. — Venha, sente-se comigo, Sra. Barre, e vamos conversar um pouco.

A jovem a fitou com um olhar grato.

— Por favor, pode me chamar de Winnie. "Sra. Barre" soa tão velho. Quero dizer... — Ela ruborizou novamente, lançando um breve olhar a Lilith e percebendo que suas palavras ofendiam a outra Sra. Barre na sala.

— Muito adulto — suavizou Juliana. — Sei o que quer dizer. Agora, conte-me como você e Crandall se conheceram. Não é daqui, é?

— Oh, não. Sou de Yorkshire. Crandall fez uma visita a Brackenmore. Ele era amigo de um dos filhos do conde.

Na verdade, eu nem o tinha visto ainda. Mas minha mãe me deixou ir ao baile de Brackenmore. — Ela sorriu, os olhos brilhando de excitação ao se lembrar. — Crandall me convidou para dançar e, bem...

Ela encolheu os ombros. Juliana poderia deduzir o resto da história. Winifred, jovem e ingênua, deslumbrara-se com o baile e com a atenção do esperto londrino, apaixonando-se perdidamente.

Agora, alguns anos depois, Juliana suspeitava que a moça não o via mais com os mesmos olhos. Sentiu pena de Winnie, por ela ter vindo parar naquela casa fria, com Crandall como marido e a desdenhosa Lilith como sogra. Pelo modo como a jovem descrevera a família em Yorkshire, imaginou tratar-se de uma família respeitável, mas sem grande riqueza. É claro que os pais deviam ter ficado tão deslumbrados com o casamento quanto a filha. E sem dúvida Lilith a considerava de casta inferior. O que não conseguia entender era por que Crandall quis se casar com uma jovem tão doce e ingênua. Sem dúvida, Winnie devia ser uma moça muito bonita e cheia de vida quatro anos antes, mas a convivência com o marido e a sogra havia lhe roubado a beleza e a vivacidade. Era difícil imaginar Crandall loucamente apaixonado, até mesmo por uma bela mulher. Talvez tivesse apenas reagido instintivamente à oportunidade de se casar com alguém a quem poderia maltratar sem qualquer possibilidade de retaliação. Ou, conhecendo as tendências de Crandall, era provável que tivesse tentado seduzir a moça e fora descoberto e forçado a se casar por um pai ou irmão furioso.

— Oh, querido! -A voz de Seraphina na entrada atraiu a atenção de todos. A mulher entrou, contemplando-os com um sorriso. — Sou a última a chegar novamente?

Claro que é — observou Crandall.

— Mas a espera valeu a pena, como sempre — retrucou Sir Herbert num tom galanteador, pegando a mão da esposa e levando-a aos lábios.

— Sim, está adorável — respondeu Lilith. — Informarei a Rundell que estamos prontos.

A mulher se ergueu e tocou a sineta. Crandall ingeriu o resto da bebida de um só gole, aparentemente receoso em desperdiçar uma única gota do precioso líquido. Lilith olhou para o filho, contraindo os lábios.

Crandall caminhou até a irmã.

— Que belos brincos, Ser — comentou, tocando um dos reluzentes rubis. — São novos?

Havia uma nota de escárnio no seu tom de voz e seus olhos dançaram ao fitarem a irmã, como se falasse de uma piada que ninguém mais entendia.

Seraphina lançou-lhe um olhar fulminante.

— Claro que não, Crandall, não seja tolo. Pertenceram à família de Sir Herbert durante anos.

Naquele instante, Rundell surgiu na entrada para anunciar que a mesa fora servida e todos se dirigiram à sala de jantar. Juliana esperava que a comida deixasse Crandall sóbrio, mas logo perdeu as esperanças. O homem gesticulou de imediato para um dos criados, ordenando-lhe que enchesse o copo de vinho e continuou bebendo durante toda a refeição, portanto a comida que consumiu tinha pouca chance de cortar o efeito do álcool.

Também continuou se comportando da mesma maneira detestável, fazendo comentários desagradáveis a todos e amaldiçoando o criado que não era rápido 6 bastante para manter-lhe o copo cheio de vinho.

Até sua própria mãe pediu ao filho para prestar mais atenção aos modos.

— Meus modos? — indagou com um olhar zombeteiro. — Oh, sim, isso é tudo que importa. Aparências. Temos que fingir que somos corteses e civilizados, não importa a sujeira que está por baixo de nossos pés, não é? — perguntou, endereçando-lhe um sorriso frio e perverso.

— Crandall, francamente...

— Todos temos que sentar aqui e agir como se estivéssemos deleitados com a vinda de Nicholas para nos tirar tudo. — Crandall gesticulou para todos ao redor.

Juliana olhou para as pessoas à mesa. Winnie, ao lado do marido, baixou a cabeça e contemplou o prato. Sir Herbert fitou Crandall com uma expressão de desgosto e Seraphina evitou encarar o irmão. A boca de Lilith curvou-se em uma linha fina e ela também desviou o olhar do filho.

A expressão de Nicholas era de resignação quando disse num tom de advertência:

— Crandall, sugiro que pare antes que faça uma declaração da qual se lamentará amanhã de manhã.

— Lamentar? — repetiu Crandall, a voz engrolada devido à bebida e à raiva. — A única coisa que lamentarei é o fato de você estar aqui, reivindicando o lugar que deveria ser meu.

— Seu? — perguntou Nicholas, erguendo uma sobrancelha.

— Sim, meu! — Crandall curvou a cabeça para a frente, hostil. — Quem ficou aqui e tomou conta de tudo durante todos esses anos? Não foi você. Nem seu pai, que caiu fora para Cornwall a fim de passar o resto da vida velejando. Foi o meu pai quem ficou e cuidou da propriedade. Era ele quem administrava estas terras. E depois dele, eu. Eu deveria ter herdado Lychwood Hall, não um novo-rico como você!

A expressão de Nicholas não se modificou quando disse num tom calmo:

— E claro que seu pai o prejudicou quando o elevou à categoria de herdeiro da propriedade, quando obviamente você não podia ser, já que eu estava vivo.

— É mesmo uma grande falta de sorte você estar vivo

— rosnou Crandall.

— Não. — Nicholas abriu os lábios num sorriso frio.

— Não foi a sorte que me salvou, mas bons reflexos.

A face de Crandall se contorceu e ele se ergueu, derrubando a cadeira com um estrondo.

— Desgraçado! Você deveria ter morrido!— berrou irado, virando-se em seguida e deixando a sala.

 

Todos congelaram em suas respectivas cadeiras, encarando Nicholas. Por fim, Sir Herbert clareou a garganta e disparou:

— Realmente, isso é uma falta de modos.

Juliana baixou a cabeça para esconder um sorriso. Então, olhou para Nicholas e viu refletido em sua face que ele aprovava o comentário do marido de Seraphina.

— Receio que Crandall esteja um pouco alterado pela bebida — disse Nicholas, mantendo a mesma calma de Sir Herbert.

Um dos criados se apressou em colocar a cadeira derrubada novamente no lugar e todos voltaram suas atenções mais uma vez aos pratos de comida.

A conversa depois do ocorrido era formal e esporádica.

Duas manchas vermelhas luminosas queimavam as bochechas de Winifred e a face de Lilith parecia congelada numa expressão de apatia cortês. Sir Herbert fazia freqüentes comentários sobre a excelência da comida.

— Tem que nos pôr a par dos mexericos de Londres, Juliana — disse Seraphina num tom jovial. — Passamos a maior parte da temporada aqui e perdemos quase tudo.

Receio não saber de nenhum. — Ela desejou muito saber, para poder conduzir aquela refeição desajeitada até o final. — Não freqüentei a sociedade nos últimos anos.

Mas Seraphina, ao que parecia, sabia pelas duas.

— Você se lembra de Arme Blaisebury? Estudamos com ela na Miss Blanton... — a mulher começou a falar sobre as vidas e fortunas de todas as ex-colegas de escola.

Para ser franca, Juliana não se lembrava da maioria, mas ficou feliz por deixar Seraphina falar sobre as meninas e quebrar o incômodo silêncio. Porém, só escutava uma parte da conversa, talvez porque sua mente estivesse ocupada com as palavras que Nicholas e Crandall haviam trocado.

Não foi pega de surpresa pelo fato de não ter sido feito nenhum movimento para prolongar o jantar ou estender a noite, reunidos na sala de estar.

Nicholas caminhou na direção de Juliana, enquanto os outros se espalharam pela sala de jantar.

— Permita-me acompanhá-la até seu quarto.

— Quero falar com você — disse Juliana num tom uniforme.

— Certo. Bem... — Ele lançou um olhar ao redor. -Como tenho aversão ao estúdio de tio Trenton... — Ele gesticulou para a ante-sala na qual haviam se reunido antes da refeição. — Por que não voltamos para lá?

Juliana assentiu e ambos caminharam até a próxima porta que conduzia à pequena saleta, fechando-a em seguida. Ela se deixou cair sobre uma cadeira com um suspiro.

— Foi horrível.                                              

— Sim. Crandall e seu temperamento abominável. -Nicholas encolheu os ombros. — Quase esqueci o quanto ele é desprezível. — Ele caminhou até a mesinha de licor. -Acho que depois dessa, preciso de uma bebida... Embora deva dizer que ver Crandall daquela maneira é o suficiente para deixar qualquer um com aversão a álcool.

— Ele é uma pessoa rude, mesmo quando não está alcoolizado.

— Posso lhe servir um xerez? Ou talvez algo mais forte seria mais apropriado?

Juliana sacudiu a cabeça em negativa. Nicholas serviu um pouco de uísque para si mesmo e voltou a se sentar. Tomou um gole e suspirou.

— Eu diria que a noite, pelo menos, não poderia ser pior, mas desconfio que a capacidade de Crandall de criar problemas é maior do que imaginei — observou num tom seco. — Espero que não se deixe transtornar por ele.

— Estou acostumada com Crandall — respondeu Juliana. — Sempre esperei grosserias da parte dele e nuca me desapontei. Entretanto, agora ele parece muito pior.

Nicholas concordou com um gesto de cabeça.

— Ninguém à mesa parecia gostar dele. Você reparou? A irmã o encarava, horrorizada. A esposa estava obviamente humilhada e assustada pelo comportamento do marido. Até mesmo tia Lilith demonstrava estar enojada.

Juliana assentiu.

— Ele é um homem difícil de alguém gostar.

— Não sei o que vou fazer a esse respeito — meditou Nicholas. -Vão me chamar de impiedoso se o expulsar da única casa que ele conheceu. E a esposa dele sofrerá. A pobre criatura não tem culpa dos atos do marido. Mas me recuso a permitir que ele continue agindo de tal forma.

— O que ele quis dizer, Nicholas? — perguntou Juliana.

— Sobre o quê?

Você sabe muito bem — respondeu ela. — O que vocês dois estavam falando... Você deveria estar morto... Maldita falta de sorte... Não foi falta de sorte, mas bons reflexos...

Nicholas estudou a bebida por um momento, girando o copo de uísque. Então, suspirou e ergueu a cabeça para fitá-la.

— Não decidi fugir quando tinha 6 anos. Fiz isso porque tio Trenton tentou me matar.

Juliana o encarou. Havia suspeitado de algo desse tipo pelo que ouvira falar, mas mesmo assim as palavras a chocaram.

— O quê?! O que aconteceu? Tem certeza que ele tentou matá-lo?

— Não tem erro. Aconteceu nos degraus. Ele me empurrou e caí. Felizmente, fui bastante rápido para me agarrar ao corrimão e consegui escapar com apenas algumas contusões e os músculos doloridos. Mas estávamos no topo da escada, sobre o piso de mármore. Poderia ter quebrado o pescoço facilmente. Depois ele tentou fingir que eu havia somente tropeçado. Mas senti a mão nas minhas costas me empurrando. Não havia nenhum equívoco. E percebi que se ficasse aqui, não viveria muito tempo para herdar a propriedade. — Ele encolheu os ombros. — Então fugi.

— Oh, Nicholas! Que coisa horrível! — Num gesto impulsivo, Juliana pôs a mão sobre a dele. De repente, se sentiu atenta demais ao contato dos dedos mornos sob os seus. Com o coração acelerado, afastou a mão depressa, mantendo-a sobre o colo. — Por que não contou a alguém? Por que não disse nada?

Nicholas encolheu os ombros.

— Quem teria acreditado em mim? Sempre fui considerado perverso. Meu tio era o homem mais importante na região, um cidadão de bem. Quem teria acreditado no sobrinho rebelde e cabeça-dura? Seria a minha palavra contra a dele. Éramos os únicos no local, além de Crandall. E eu sabia que o filho juraria que o pai não havia feito nada contra mim. Como poderia provar que fui empurrado?

— Por que não me contou? — perguntou Juliana, um pouco surpresa pela dor que experimentou pelo fato de ele não lhe ter dito nada. — Não confiava em mim?

— Claro que confiava. Mas de que serviria lhe contar? Você era apenas uma criança e tinha que continuar vivendo lá. Não podia jogar esse fardo nas suas costas. Se não soubesse, ficaria bem. Tio Trenton não teria nenhuma razão para prejudicá-la. E, para falar a verdade, presumi que você seria mais bem tratada quando eu partisse, já que normalmente se metia em dificuldades por tentar me ajudar. Mas se soubesse o que aconteceu, era muito provável que se revoltasse, como sempre, e acabasse falando. Então, tio Trenton podia pensar num modo de mantê-la calada. Eu não podia fazer isso.

Juliana sentiu uma onda de emoção dominá-la. Pensou no jovem que ele fora, de fato não passava de um menino, tendo de agüentar aquele fardo todo sozinho. Deveria ter sido horrível saber que uma pessoa de sua .própria carne e sangue tentara matá-lo e, para piorar ainda mais as coisas, não poder contar a sua única amiga por medo de colocá-la em risco também.

— Nicholas, sinto muito. — Ela o fitou com os olhos marejados de lágrimas. Ergueu-se e estendeu-lhe as mãos.

— Juliana...

No momento seguinte, ela se viu nos braços dele, o calor do corpo másculo envolvendo-a, enquanto suas bocas se encontravam ardentes e vorazes.

Rodeando-lhe o pescoço, puxou-o para si. De súbito, todos os seus sentidos pareciam selvagens e despertos. Os lábios quentes e insistentes exigiam-lhe uma resposta. Juliana estremeceu, sem saber ao certo o que queria, mas o desejava.

As mãos de Nicholas deslizaram por suas costas, acariciando-lhe os quadris e os flancos, até lhe alcançaram o contorno dos seios. Os mamilos sensíveis enrijeceram ao toque ousado. O peito arfou de desejo. Jamais experimentara algo parecido. Na verdade, nem sabia que tais sensações existiam. Inconscientemente, escorregou as mãos, afundando-as nos cabelos fartos e escuros de Nicholas. As mechas sedosas se apartaram ao redor dos seus dedos. Juliana estremeceu de paixão, abandonando-se ao prazer daquele beijo.

Nicholas afastou os lábios e depositou-lhe uma trilha de beijos úmidos e sensuais ao longo do pescoço alvo, o que a fez arquear a cabeça, dando-lhe acesso à carne tenra. A respiração quente de Nicholas deixava um rastro de fogo sobre a sua pele e os lábios provocantes pareciam de veludo, percorrendo toda a expansão de colo exposta pelo decote generoso. Juliana ofegou ao toque, sentindo as chamas do desejo queimar-lhe o ventre.

Com movimentos ágeis, Nicholas envolveu-lhe um dos seios, esfregando o mamilo através do tecido do vestido. O pequeno botão de carne enrijeceu, despertando uma força viva e latejante entre as coxas de Juliana, o que a fez prender a respiração.

Ele murmurou o nome dela, movendo a língua num ritmo lento e torturante sobre a pele dos seios macios, despertando-lhe um desejo sem precedentes.

O limite do decote o impediu de continuar a carícia provocante. Juliana deixou escapar um pequeno gemido de protesto. Instigado, Nicholas introduziu a mão sob o vestido e tocou-lhe um dos seios, erguendo-o e retirando-o para fora do corpete.

Curvou-se novamente e dessa vez fechou os lábios em torno do mamilo sensível, fazendo-a sentir uma intensa onda de calor percorrer-lhe o corpo. A princípio, incitou o pequeno botão rijo com a língua, depois o fez vibrar com mais intensidade até deixá-la ofegante, querendo mais. No instante seguinte, sugou-o com sofreguidão. Juliana se moveu impotente, faminta e exaurida com a força do desejo que sentia.

A pele em chamas clamava pelo toque daquele homem e a dor tenra em suas entranhas aumentava a cada segundo. Nicholas gemeu e deslizou as mãos até os quadris curvilíneos, puxando-a para si, fazendo-a sentir a rigidez de sua ereção pressionada contra o ventre.

Juliana soltou um pequeno murmúrio de surpresa, nem tanto pela reação do seu corpo, mas pelo gesto em si. Nicholas ergueu a cabeça, o som penetrou a neblina de sua paixão. Aturdido, contemplou-a por um momento, antes de se dar conta do que estava fazendo e onde estavam.

Resmungando, ele deixou escapar um xingamento e a libertou, afastando-se em seguida e virando-lhe as costas. Em silêncio, Juliana o fitou ofuscada pelo desejo que ainda pulsava em suas veias.

— Nicholas? — A voz era suave e interrogativa, o que o atingiu como um punhal. Não queria pôr a reputação dela em risco. Ela só pretendia confortá-lo e ele reagira como um animal, como um selvagem. Apesar de todas as suas garantias e promessas, se deixara levar pelo desejo cru. Mais alguns minutos e teria perdido toda a razão, deitando-a no chão e possuindo-a ali mesmo.

— Sinto muito — desculpou-se num tom áspero, evitando encará-la. — Eu não devia... Isso não se repetirá. Juro.

Um calafrio, dessa vez não de desejo, mas de decepção, a fez estremecer. Juliana voltou à realidade com um baque. Nicholas não a queria. Lamentava o fato de tê-la beijado. De repente, sentiu-se nua e envergonhada. Com a face ardendo de embaraço, ajustou o vestido apressada, cobrindo o seio exposto. Odiava avaliar o que ele estaria pensando dela agora.

— Não. Por favor, não se desculpe — respondeu fria, também se virando para longe dele. — Isso foi... um momento de desatino. É tudo. — Sentiu as lágrimas traiçoeiras incomodando-lhe a garganta e as engoliu. Nicholas lhe oferecera um tipo de casamento. Não ia chorar porque não podia ser diferente. — Vamos esquecer o que aconteceu — acrescentou depressa. — Boa noite.

Com essas palavras, virou-se e deixou a saleta.

Foi um alívio constatar que sua criada pessoal não a estava aguardando quando chegou ao quarto. A última coisa que queria naquele momento era ver alguém.

Caminhou agitada até a janela e parou, fitando o jardim escuro lá embaixo. Pensou nos seus sonhos de moça, quando ainda era adolescente. O doce quadro 'que havia pintado era bem diferente da realidade. Não envolvia aquele incomensurável desejo pelo toque e olhar de Nicholas. Nem beijos que lhe perfuravam o coração, nem carícias que a deixavam arfante e abalada, nem o fogo que lhe fervia o sangue nas veias.

Juliana pôs a mão no tórax, como se pudesse conter as emoções que trovejavam em seu interior. A paixão que vivenciara aquela noite fora tão feroz, tão elementar... e sabia que preferia aquele furor incontrolável à doçura e ao amor insípido que imaginara quando menina. Seria fácil sucumbir àqueles sentimentos, cair na cama dele como uma libertina. E seria mais fácil ainda se apaixonar por Nicholas.

Mas também sabia que seria louca se agisse dessa forma.

Nicholas não acreditava no amor. Embora, estivesse convencida de que ele era uma pessoa mais emotiva e amável do que imaginava ser. Mas também sabia o quanto ele era cuidadoso e independente dessas emoções. Temia que Nicholas jamais se permitiria sucumbir a uma paixão de verdade. Permitia-se apenas afeto do tipo que sentia por ela, uma dose de bondade para temperar suas ações, mas mantinha o coração fechado, protegido da dor e da solidão que suportara quando criança.

Isso ficava óbvio pelo tipo de casamento que desejava ter. Não estava apaixonado, não entregara seu coração a uma mulher. Não. Procurara uma esposa com quem pudesse manter amizade, uma mulher que considerasse uma amiga, para quem não receasse perder seu coração. Propusera-lhe casamento por bondade, é claro, mas também estava certa de que era para se proteger. Nicholas não queria se apaixonar.

E se ela se apaixonasse por ele, seria um sentimento unilateral e permaneceria assim para sempre. Ele jamais sentiria algo diferente de um afeto fraternal e ela estaria garantindo para si a dor de um amor não correspondido.

Mas Nicholas sentira paixão, tinha certeza. Não havia equívoco sobre o fogo que o queimou quando a beijou e acariciou embora ele evitasse tais sentimentos. Virará as costas, pretendendo lembrar a ambos que desejo não fazia parte daquele casamento.

Sem dúvida, era melhor não se envolverem novamente. Era melhor aceitar o casamento sem amor que lhe fora oferecido do que tentar transformá-lo em outra coisa. Precisava pôr um freio em seu coração. Tinha que evitar situações semelhantes com Nicholas. Poderiam ter um casamento amigável, um laço de afeto, até mesmo amor fraternal. Mas não podia se permitir querer transformá-lo em algo diferente, nem sentir desejo por ele, nem deixar que tal desejo se transformasse em paixão ou amor.

Juliana se afastou da janela. Sentia-se dolorosamente vazia. Não pôde evitar pensar se não fizera papel de boba ao concordar em se casar Nicholas Barre.

 

As coisas sempre pareciam melhores de manhã, pensou Juliana, e o dia seguinte não seria nenhuma exceção. Quando a criada afastou as cortinas para deixar a luz do sol entrar, seu vigor ergueu-se inexplicavelmente e ela sorriu ao beber o chá matutino. Então, vestiu-se e desceu para o café-da-manhã.

Lilith e Nicholas já se encontravam sentados à mesa, fazendo a refeição em silêncio, quando Juliana entrou. Ao ver Nicholas, não pôde deixar de pensar no que acontecera entre os dois na noite anterior e, como acontecera antes, sentiu-se dominada por uma onda de calor. Desviou o olhar, envergonhada pela lembrança e aborrecida consigo mesma pela inabilidade de controlar seus desejos quando estava perto dele.

Nicholas ergueu a cabeça e a contemplou. De imediato, estampou-se um ar de alívio em sua face, que a fez esquecer o embaraço e se divertir. Obviamente, não devia estar nada satisfeito em ficar a sós com a tia.

— Bom dia, minha querida. — Ele caminhou na direção dela, beijou-lhe a mão e a conduziu até a cadeira. Um criado apressou-se em puxar a cadeira para ela sentar.

Juliana cumprimentou Lilith e a mulher mais velha apenas acenou com a cabeça. Era o tipo de cumprimento frio que Juliana esperara da prima da sua mãe. Não conseguia se lembrar de uma só vez em que Lilith se mostrara feliz em ver alguém ou algo, exceto, é claro, seus cavalos. Era toda sorrisos quando saía para montar. Juliana sempre se perguntara como uma mulher podia ser tão fria com as pessoas e amar tanto os animais.

— Sou a última a chegar outra vez? — uma voz vibrou alegremente, e Juliana se virou para ver Seraphina entrando na sala.

Pela segunda vez, houve uma série de saudações. Pelo menos Lilith conseguira dizer "olá" à filha, embora não relaxasse o bastante para lhe oferecer um sorriso.

. — Sir Herbert e Crandall não estão — comentou Nicholas.

— Oh, Sir Herbert nunca toma café-da-manhã — informou Seraphina — Meu marido é meio preguiçoso, receio. Até aqui no campo, onde não há nada para fazer, não sei como alguém pode ir dormir tarde. Ele gosta de se sentar e ler até altas horas da noite.

As últimas palavras foram ditas num tom de assombro que fez Juliana sufocar um sorriso. Estava certa de que Seraphina achava tal comportamento decididamente bizarro. Não se lembrava de tê-la visto alguma vez abrir um livro por vontade própria.

Percebeu que Seraphina não comentou nada sobre o irmão. Então, suspeitou que, dada a quantidade de álcool que Crandall havia ingerido na noite anterior, devia estar com uma forte dor de cabeça aquela manhã e duvidou que fossem amaldiçoados com a presença do arrogante. Curiosa, desejou saber se aquela conduta se tratava de um hábito ou o evento fora provocado pela chegada de Nicholas.

As duas recém-chegadas se serviram da ordem informal de pratos no aparador, com Seraphina tagarelando o tempo todo sobre a quantidade de comida.

— Se eu comesse sempre do modo que como aqui no campo, estaria do tamanho de uma casa.

— De fato é comida para um batalhão — comentou Juliana.

— Nunca como mais do que algumas torradas e chá pela manhã, quando estou na cidade. — Seraphina suspirou. -Mas aqui não há nada para se fazer, a não ser comer.

— Poderia se unir a mim em uma cavalgada matutina — disse a mãe. — Já fiz uma hoje. Não há nada melhor para tornar o dia de qualquer pessoa mais agradável.

Seraphina estremeceu.

— Oh, não sinto a menor vontade de pular cercas e saltar obstáculos assim que o dia amanhece.

— Não saí assim tão cedo, já que são quase nove horas.

— Ficaria na cama outras duas horas se eu estivesse em casa — replicou a filha, sentando e atacando a comida vorazmente.

— Surpreendi-me ao encontrá-la aqui com a temporada em Londres a pleno vapor — comentou Juliana.

Seraphina espetou um pedaço de presunto com o garfo e disse sem pestanejar:

— Sir Herbert desejava um pouco da paz e tranqüilidade do campo.

Juliana decidiu que aquele era um assunto fútil, então pensou em outra coisa para dizer.

— O que planeja fazer esta manhã? — perguntou Nicholas, auxiliando-a.

Ela lhe lançou um sorriso de agradecimento.

— Bem, na verdade, não pensei em nada. Receio não ter idéia de por onde começar. Tenho que ir falar com o vigário sobre a cerimônia. E, então, é claro, há muito a ser feito para a festa de casamento. — Ela se virou na direção de Lilith. — Espero que me auxilie com os preparativos, tia Lilith.

— Claro. — A mulher a fitou como se nada pudesse desagradá-la mais.

Mas, aparentemente, havia algo que poderia sim, e a sua expressão ficou ainda mais azeda quando Nicholas disse:

— Sem dúvida, tia Lilith vai querer lhe mostrar o lugar, Juliana. Ensinar-lhe todos os detalhes, já que você assumirá o comando da casa em breve.

— Naturalmente — murmurou a mulher, virando-se na direção de Juliana. — Levará algum tempo para aprender o que fazer, já que não está acostumada a administrar uma casa deste porte.

— Darei o melhor de mim — respondeu Juliana em tom firme.

— Tenho certeza de que Juliana é bastante capaz para essa assumir essa tarefa — disse Nicholas à tia, com expressão fria.

— Você se sairá muito melhor do que eu — observou Seraphina com um sorrisinho, dispersando um pouco da tensão quase palpável. — Estou nas mãos da minha criada e quase não ouso mudar nada do que ela faz. E quando ela fica falando sem parar sobre livros e o custo disso e o preço daquilo, concordo, é tudo que posso fazer para evitar adormecer.

Juliana sorriu para a prima. Seraphina ainda continuava a mesma cabeça oca, mas pelo menos parecia estar tentando ser agradável.

— Mas talvez possa me ajudar com o casamento, Seraphina. Será uma cerimônia simples, mas acho que os festejos serão grandes. Afinal, queremos fazer algo para os arrendatários e aldeões, bem como uma ceia para a família e amigos.

A face de Seraphina clareou só de pensar em uma festa.

— Oh, sim. Deveríamos dar um baile, não acha? E, é claro, um jantar antes disso. Talvez algumas mesas de jogo para os que não gostam de dançar.

A idéia de mesas de jogo em uma celebração de casamento soou um tanto estranhamente para Juliana, mas, enfim, não estava muito atualizada com as festas de casamento da sociedade.

— Não seja mais tola do que já é — repreendeu Lilith abruptamente, lançando um olhar de desaprovação à filha. — Não se usa colocar mesas de jogo em uma festa de casamento. Acho que devemos oferecer uma ceia aos arrendatários, é claro. E um baile também seria apropriado.

Um silêncio pesado recaiu sobre a mesa. Após alguns instantes, Juliana tentou recomeçar a conversa.

— O que vai fazer esta manhã, Nicholas, enquanto tia Lilith me mostra os arredores da casa?

— Revisar as contas com o administrador da propriedade e Crandall — respondeu ele.

Juliana suspeitou que Crandall se sentiria humilhado com aquilo, mas não disse nada. Desejou saber o que Nicholas encontraria. Não se surpreenderia se soubesse que o homem vinha lesando a propriedade durante todos aqueles anos, desde a morte do pai, nem tampouco se descobrisse que ele não havia feito quase nada em relação ao lugar, deixando tudo nas mãos do administrador. Crandall nunca lhe parecera alguém particularmente muito diligente. Por certo não se esforçara muito na escola.

Como se lhe adivinhasse os pensamentos, Lilith disse:

— Crandall tem feito um excelente trabalho administrando a propriedade. Sempre foi totalmente apaixonado pelas terras.

Havia um olhar aflito na face da mulher e Juliana desconfiou que Lilith compartilhava do pensamento do filho de que a terra deveria ser dele e não do sobrinho intruso.

— Tenho certeza de que encontrarei tudo em ordem — respondeu Nicholas, cauteloso. Juliana estava certa de que ele tinha o mesmo tipo de dúvidas que ela sobre a competência de Crandall.

A refeição continuou daquele modo desagradável e formal e foi um alívio quando terminou e puderam partir. Lilith ergueu-se e virou-se para ela.

— Posso levá-la até a criadagem agora, se desejar -disse com uma cortesia fria.

Juliana achou que Lilith pretendia intimidá-la com seu tom e maneiras, lembrando-a de que era uma apenas uma órfã pobre e ela a senhora do solar. Talvez, dessa forma, pudesse continuar administrando a casa. Para ser franca, não se importaria de deixá-la continuar com essa tarefa. Afinal, manter uma casa em ordem não era algo que a agradasse muito. Porém, agora seria a esposa de Nicholas. Era seu dever e responsabilidade. Além do mais, se deixasse a casa nas mãos de Lilith, seria uma parte da propriedade que estaria sendo usurpada de Nicholas e, não tinha a menor intenção de permitir que isso acontecesse.

— Obrigada — respondeu com cortesia semelhante. Os lábios de Lilith se contraíram em uma linha fina, mas a retraída senhora não disse mais nada, apenas caminhou pela sala e depois ao longo do corredor até a cozinha. Juliana a seguiu, determinada a não se deixar aborrecer com a rudeza da tia.

Quando chegaram à cozinha, todos os criados se viraram para fitá-las com curiosidade, erguendo-se e curvando-se em sinal de respeito. Juliana desconfiou que Lilith não era uma presença muito comum naquela área.

Rundell saiu da despensa e apressou-se até elas.

— Sra. Barre. Srta. Holcott. Em que posso ajudá-las?

— Estou mostrando a casa para a Srta. Holcott, Rundell. A Sra. Pettibone está aqui?

— Claro. — Ele se virou para procurar a mulher, mas a governanta já estava entrando na cozinha, cumprimentando-os com largo sorriso nos lábios, ao mesmo tempo em que lançava um olhar feroz aos outros criados, impelindo-os a voltar ao trabalho.

— Talvez apreciassem ir até minha sala de estar — sugeriu num tom animado. — Dorrie, traga um pouco de chá para nós.

Juliana gostaria de ter recusado, já que acabara de tomar o café-da-manhã, mas sabia que seria mal interpretada se recusasse o convite da criada. Então, sorriu e se resignou a tomar outra xícara chá.

Uma vez sentadas na pequena sala de estar da governanta, esperando que Dorrie trouxesse a bebida, Lilith se virou para a Sra. Pettibone, dizendo:

— A Srta. Holcott assumirá o controle da casa quando se casar com Lorde Barre, como sabe. Sem dúvida vai querer mudar o cardápio da semana e revisar seus horários.

A criada parecia alarmada com a notícia, mas disfarçou depressa sua reação, dizendo:

— Claro, madame. Permita-me ir buscar o cardápio.

— Oh, não, Sra. Pettibone. Não pretendo mexer no cardápio ou em seus horários. Estou certa de que a senhora controla ambos muito bem. Por certo, a Sra. Barre se equivocou — acrescentou lançando um olhar afiado a Lilith. — Gostaria somente de dar uma olhada no seu cardápio. E talvez no futuro possamos acrescentar um prato ou dois de acordo com os gostos de Lorde Barre.

— Oh, sim, claro, madame — a Sra. Pettibone concordou prontamente.

— Não quero perturbar o seu trabalho. Porém, algum dia, apreciaria se pudesse me familiarizar com o funcionamento do seu pessoal. Avise-me quando for conveniente para a senhora...

— A hora que desejar, madame. No final da manhã seria perfeito, se lhe agradar, é claro. Terei tempo para me certificar de que todos estão ocupados com seus afazeres, se sabe o que quero dizer. Então, poderemos analisar o cardápio juntas e visitar todas as alas da casa.

— Isso soa excelente. Digamos... por volta das onze?

— Ótimo, madame. Ótimo.

Toleraram mais uma xícara de chá e mais um pouco de conversa formal com a governanta e então deixaram a cozinha. Juliana manteve o passo com Lilith e quando ela começou a subir os degraus, Juliana se postou na sua frente, segurou-a pelo braço e conduziu até a sala de visitas.

— Gostaria de falar com a senhora, tia Lilith, por favor.

Por um instante, Juliana pensou que a tia ia se recusar, entretanto, com um estremeção de lábios, ela se virou e entrou na sala. Sentou-se em uma cadeira e se virou de frente para Juliana, as sobrancelhas erguidas de modo inquiridor.

— Presumo que queira que Rundell e a Sra. Pettibone se reportem a você e acatem suas ordens de agora em diante?

— Tia Lilith, não tenho nenhuma intenção de destituí-la da sua autoridade — disse Juliana num tom calmo. -Tenho certeza de que com a proximidade do casamento, haverá bastante trabalho para ocupar nós duas. Seria agradável se pudéssemos trabalhar juntas, em vez ficarmos uma contra a outra. A senhora conhece a casa, os criados, tudo, muito melhor do que eu. Estou simplesmente pedindo a sua ajuda. Gostaria que me ensinasse, que me mostrasse como administra a casa e me preparas se para essa tarefa. A senhora é perita nisso e eu apreciaria sua ajuda.                                            

— Para depois assumir a minha posição? — Um meio sorriso surgiu nos lábios de Lilith.

— Nenhum de nós pode fazer nada para mudar o fato de que Nicholas é o Lorde Barre. Embora a senhora pense que o destino foi ingrato com vocês nesse sentido, as coisas são como são. E vou me casar com ele. Serei a nova Lady Berre. Porém, não tenho nenhum desejo de tirá-la do caminho.

— Acha que não sei quanto prazer sentirá em tomar o meu lugar? — Os olhos da mulher chamejaram. -Aposto que seria ainda mais gratificante para a sua mãe saber que está me substituindo nesta casa.

Juliana fitou-a boquiaberta, surpresa pelo veneno que permeava a voz de Lilith. Sabia que a tia jamais gostara dela ou da sua mãe, mas nunca percebera a profundidade dessa antipatia. Nem podia imaginar uma razão para tal.

Lilith tirou proveito do estado atordoado de Juliana para se erguer.

— Se já me humilhou o bastante, eu gostaria de subir para meu quarto.

A mulher se dirigiu à porta com as costas eretas e a cabeça erguida. Juliana a seguiu, confusa. Ao sair, avistou Crandall apoiado de encontro à parede oposta do corredor. Ele sorriu ao vê-la.

— Não vai ser tão fácil assumir sua posição, não é? -perguntou cínico.

— Costuma espreitar as conversas dos outros atrás das portas? — disparou Juliana, num tom exasperado.

— Sim, desse modo podemos ouvir coisas bem interessantes — respondeu ele, com um sorriso ainda mais malicioso.

— Nossas opiniões sobre o que é ou não interessante são bem diferentes — rebateu Juliana num tom frio e acrescentou: — Não deveria estar revisando os livros com Nicholas?

Tenho certeza de que ele pode fazer isso muito bem sem a minha presença. — Crandall fez uma carranca.

— Estou certo de que ele ficará contente em colher os benefícios do meu trabalho. Fui um tolo maldito desperdiçando meu tempo durante todos esses anos para o sacana assumir tudo no final Juliana enrijeceu.

— Agradeceria se usasse linguagem menos vulgar.      

— Oh, sinto muito. Ofendi sua sensibilidade feminina? Não pode ter muito orgulho, já que está disposta a se casar com aquela víbora apenas para adquirir um título.

— Sabe tão bem quanto eu que a víbora neste caso   ;: não é Nicholas.                                                            

— Fiquei aqui trabalhando enquanto ele estava fora I viajando por todas as partes do globo, não é? Conheço todos os arrendatários, os nomes de todos os seus filhos. Sei como anda a colheita, o lucro que tivemos e que lucro anual que podemos esperar. Mas nada disso é meu. Ele vai me roubar tudo — Fez um gesto com os dedos enfatizando o que acabara de dizer.

Juliana pôde perceber uma expressão de dor sincera na face de Crandall. Quase podia sentir pena dele, exceto pelo fato de que ele estava repleto de ódio irracional por Nicholas.

— Sabia durante todos esses anos que não era o herdeiro destas terras. Mesmo assim permaneceu aqui. Por quê?

— Que mais eu poderia fazer? — perguntou ele, erguendo o queixo em desafio. — Esta é a minha terra! É tudo que conheço. Para onde mais eu iria? O que mais eu faria? — inquiriu, desencostando-se da parede. — A verdade é que eu esperava que ele nunca mais voltasse. Há muitas oportunidades no mundo lá fora. Com um pouco de sorte, Nicholas teria encontrado alguma.

Crandall a fitou, os olhos frios fizeram-na sentir um arrepio. Juliana pensou no que Nicholas lhe dissera na noite anterior sobre o tio ter tentado matá-lo. Não pôde deixar de imaginar se o filho não pretendia seguir o exemplo. Embora Nicholas já tivesse herdado a propriedade, se ele morresse, as terras e o título passariam para o parente masculino mais próximo na linha de sucessão, que era Crandall. E se o homem quisesse garantir a posse da propriedade na qual trabalhara por tanto tempo?

 

Juliana passou o resto da manhã passeando pela casa em companhia da Sra. Pettibone. A empregada parecia disposta a mostrar cada canto da residência, desde os porões até os quartos dos criados. Trouxe também o cardápio semanal e o explicou em detalhes. Não sabia se o excesso de pormenores se devia ao fato de Lilith ter convencido a serviçal de que Juliana seria uma rigorosa supervisora ou se realmente mantinha as rédeas curtas no que concernia aos trabalhos domésticos. Fosse qual fosse a razão, na hora do almoço a mente de Juliana continha mais informações do que poderia assimilar.

— Temo que leve algum tempo para que eu tenha noção de tudo — afirmou Juliana. — Porém, até lá, sei que poderei contar com sua competência para manter tudo em conformidade. A casa está muito bem cuidada.

A Sra. Pettibone sorriu, orgulhosa.

— Obrigada, Srta. Pode contar comigo.

— Não se preocupe com o cardápio. Estou certa de que está perfeito e não quero alterar nada. Especialmente com o trabalho extra que o casamento acarretará.

— Não tema, senhorita — retrucou a criada, decisiva. — Todos estão se mobilizando para isso. Se me permite... seja bem-vinda. Estamos felizes em tê-la conosco outra vez.

Juliana sorriu. Os cozinheiros sempre foram carinhosos com ela, quando vivia naquela casa. Sempre desviando alimentação para que levasse para Nicholas, quando o menino estava trancado no quarto sem direito a jantar ou lhe dando pedaços de bolo para sua mãe.

— Obrigada, Sra. Pettibone. Também estou contente em estar aqui.

Juliana decidiu que uma boa caminhada a ajudaria a clarear a mente, após receber tanta informação. Sendo assim, após o almoço, saiu para um passeio no vilarejo. Mal alcançou os primeiros degraus da escada da frente, ouviu seu nome e voltou-se em direção ao som, levando a mão em concha à fronte para proteger os olhos do sol. Nicholas atravessava o gramado em frente ao estábulo, fazendo-a supor que estava voltando da casa do administrador da propriedade.

— Nicholas! — exclamou, sentindo a já familiar palpitação, enquanto ele caminhava em sua direção, com as pernas longas e esbeltas devorando a distância entre ambos. A luz solar acentuando o brilho dos cabelos negros.

— Já está fugindo? — indagou com um sorriso.

— Estava tentada a fazê-lo — replicou Juliana. — A Sra. Pettibone mostrou-me toda a casa e temo que tenha me achado uma péssima pupila.

— Estou certo de que está enganada — contra-argumentou Nicholas, estacando em frente a ela. — Para onde ia?

— Pensei em visitar a Sra. Cooper. Era nossa empregada, quando eu era criança, lembra-se? Por certo ficará magoada se não a procurar de imediato. Era muito devotada a minha mãe.

Ele anuiu.

— Irei com você, posso?

Juliana exibiu um sorriso luminoso.

— Adoraria. Mas não tem que trabalhar? Nicholas fez um gesto descuidado.

— Acabei por hoje. Blandings quer me levar aos arredores para me apresentar aos inquilinos, mas isso levará um dia inteiro, então decidimos adiar para amanhã. Talvez Crandall se prontifique a se juntar a nós nessa tarefa.

— Ele não o fez hoje?                                              

Nicholas meneou a cabeça em negativa.                    

— Não, o que deixou Blandings nervoso, pensando que eu iria culpá-lo pela ausência do patrão.                    

— Eu o vi esta manhã.

— Quem? Crandall? Juliana assentiu.

— Sim. Estava espreitando no corredor, enquanto eu caminhava com tia Lilith. É um homem amargo.

— Eu sei — concordou Nicholas, dando de ombros. — j E tem razões para ser. Supervisionou a propriedade todos esses anos... e pelo que pude depreender dos livros de contabilidade e da conversa com Blandings, não fez um mau trabalho.

— Tenho de admitir que isso me surpreende.

— A mim também — comentou ele. — Acho que ele ama de fato este lugar... muito mais do que eu. Ainda assim, não há nada que possamos fazer sobre a herança. ! Não posso mudar o fato de ela ser inalienável ou de eu ; ser o herdeiro do título. Não quero desalojá-lo. Nunca o faria. — Fez uma pausa e voltou a falar, exasperado: — Se; ele ao menos não fosse tão desagradável.                      

— Crandall torna difícil que nos afeiçoemos a ele.

— Eu sei. Pensei que pudesse enterrar nossas diferenças do passado quando voltasse. Afinal, ele era apenas um menino naquela ocasião e tinha o péssimo exemplo do pai. Talvez tivesse mudado com a idade e se eu ignorasse o passado, meu primo também poderia fazê-lo. -Deu de ombros, desanimado. — Mas não consigo sequer permanecer no mesmo aposento que ele. E é obvio que Crandall sente o mesmo.

— Acho que ele sente mais que isso. Nicholas lhe voltou um olhar curioso.

— O que quer dizer?

Juliana hesitou, porém decidiu continuar.

— Crandall o teme.

— Teme? — repetiu ele, franzindo o cenho. — Por quê?

— Preocupo-me com o que ele possa fazer a você -prosseguiu Juliana sem responder à pergunta.

Nicholas soltou uma gargalhada.

— O que Candrall poderia fazer a mim? Se acha que me sentiria ameaçado por aquele bêbado desengonçado, imagino que noção faz de minhas habilidades de luta.

— Não estou me referindo a luta — retrucou Juliana, em tom mordaz. — Duvido que ele a vencesse, se fosse justa. Porém, não vejo razão para acreditar na honestidade de Crandall. Não o desafiaria para uma luta, mas poderia perfeitamente atirar em você a distância, forjando um "acidente" quando estiver cavalgando ou...

— Acha que ele pretende me matar?

— E tão improvável assim? — rebateu Juliana. — O pai dele já tentou uma vez. E Crandall foi enfático em desejar que Trenton tivesse conseguido se livrar de você. Se morresse, ele herdaria toda esta terra, não? Não se tornaria o Lorde Barre?

— Bem, sim... ele é o próximo na linha de sucessão. Mas seria apenas isso que Crandall herdaria, pois minha fortuna iria toda em testamento para você, como minha esposa.

— Acho que ele não se importa com o legado financeiro. O que ele quer é a terra e o título.

— Crandall não teria coragem. Sempre fez o tipo covarde, que costuma ferir os mais fracos ou que estão sob seu jugo.

— Quanta coragem é necessária para empurrar um homem escada abaixo, como fez o pai? — questionou Juliana. — Não viu como ele está hoje? Parece cheio de amargura e ódio por você.

Preocupada, ela tocou o braço forte com ambas as mãos, fitando-o com olhar intenso. Nicholas cobriu-lhe as mãos com as dele.

— Está bem. Tomarei cuidado com ele. — E, sorrindo ante o olhar de dúvida que Juliana lhe lançou. — Prometo. Não se preocupe. Não deixarei Crandall me ferir. Agora... vamos falar de algo mais prazeroso. Como por exemplo, como está bela com esse vestido.

Juliana riu disfarçadamente, com o coração aquecido e empurrou as preocupações para o fundo da mente.

— Elogiar meu traje, senhor, é gabar a si mesmo, já que foi um dos que escolheu pessoalmente.

— Não foi o vestido que elogiei — retrucou Nicholas, com um brilho intenso no olhar. — Ele apenas realça sua beleza.

— Lisonjeador — brincou Juliana, deslizando o braço sob o dele, enquanto atravessam o caminho.

Parecia tão certo, pensou ela, estar em companhia de Nicholas. Estava determinada a não permitir que as sensações que a assolavam quando estava em companhia dele arruinassem a perfeita cumplicidade que compartilhavam. Eram amigos, e deveriam permanecer daquela forma.

A Sra. Cooper vivia numa cabana nos arredores do vilarejo. Era uma residência pequena e quase totalmente coberta por heras e um jardim com um sem-número de flores vicejantes na parte da frente. A ex-criada de sua mãe veio atender à porta quando Nicholas bateu e deteve-se a observar Juliana por algum tempo, até que a mente clareasse e um sorriso se estampasse na face.

— Juliana! Sr. Nicholas!... Lorde Barre, devo dizer agora. Ouvi que tinham voltado a Lychwood e esperava revê-los.

— Claro que eu viria visitá-la — afirmou Juliana, dando um passo à frente e abraçando a mulher baixa e corpulenta.

A Sra. Cooper deu um passo atrás, ajeitando os cabelos como se tivessem escapado da grande touca branca, onde estavam habilmente presos.

— Entrem e sentem-se, por favor. Deixem-me providenciar um chá. Devem estar sedentos. Fizeram o percurso de Hall até aqui a pé? — indagou a senhora, precipitando-se em direção à exígua cozinha, onde podiam ouvi-la enchendo uma chaleira de água e procurando pratos. Minutos depois, retornou à sala, carregando uma bandeja que continha não só o bule de chá de porcelana branco e as xícaras, mas também um prato apinhado de docinhos.

— É bom revê-la, Julie — disse a senhora, esticando a mão para tomar a de Juliana. — Faz tanto tempo.

— Eu sei. Senti saudades da senhora — declarou Juliana. Sempre mantivera correspondência com a ex-criada, informando-a onde se encontrava e o que estava fazendo, porém sentia uma pontada de remorso por não tê-la visitado. — Porém, uma vez que saí daqui...

— Não precisa explicar, minha querida — interrompeu-a a senhora em tom suave, enquanto colocava o chá nas xícaras. — Ficou claro para mim que não viria visitar Hall após sua partida — continuou ela, sorrindo, enquanto lhes entregava as xícaras. — Mas agora está de volta a Lychwood Hall como patroa. Sua mãe ficaria orgulhosa de você.

Juliana retribuiu-lhe o sorriso, sem saber o que dizer. Porém a Sra. Cooper parecia não necessitar de resposta. Continuou a falar, discorrendo sobre sua mãe. Era evidente que a Sra. Holcott ocupava um lugar de honra no coração da ex-criada.

— Sua mãe era um santa. Sempre triste, mas alguma vez ouviu uma queixa sequer escapar de seus lábios? -A Sra. Cooper meneou a cabeça em negativa, respondendo a si mesma. — Nunca. Não teve boa sorte na vida, mas aceitou o fardo e seguiu em frente.

— Ela sentia muita saudade de meu pai — concordou Juliana. Recordava a mãe com o olhar perdido e triste, movendo-se através dos dias como um fantasma. O luto fechado, refletido nas vestes, faziam-na parecer ainda menor e mais pálida do que de fato era.

— O coração dela foi para o túmulo com ele — acrescentou a Sra. Cooper. — Chorei muito quando ela faleceu, mas por mim, não pela Sra. Holcott. Afinal, alcançou a paz e não sofreu muito. O coração lhe provocou um mal súbito que a levou bem depressa. Juliana anuiu.

— Sim. O médico garantiu-me que não seria demorado ou doloroso.

— Não foi assim com ele — continuou a Sra. Cooper, fitando de modo vago a parede.

Juliana não estava certa de a quem a senhora fazia menção.

— Refiro-me a Trenton Barre — esclareceu a ex-criada. Não havia necessidade de indagar à Sra. Cooper o que sentia em relação ao tio de Nicholas. A expressão da mulher era de genuína aversão.

— Não sei como ele morreu — comentou Juliana. — Na época não morava mais aqui.

— Hidropisia — informou a ex-criada. — Uma morte dolorosa. Estava inchado como um sapo. Disseram que era por causa do fígado — não é de se admirar, da maneira como bebia. Definhou por meses — acrescentou, dando de ombros. — Apenas uma amostra do que iria enfrentar na vida futura.

Juliana piscou várias vezes, tomada de surpresa pela malevolência no tom de voz da senhora. Supunha que tinha razão quanto à sorte futura do tio de Nicholas, mas não era comum as pessoas falarem mal dos mortos, mesmo que fosse verdade.

Felizmente, a Sra. Cooper voltou a falar da tão estimada Sra. Holcott e dos anos em que trabalhara em sua casa. Juliana não precisava fazer mais do que anuir com um gesto de cabeça ou fazer algum comentário apropriado sempre que a verborrágica senhora fazia uma pausa para tomar fôlego ou lhe lançava um olhar inquisitivo.

Algum tempo depois, quando haviam terminado o chá e Juliana recordara todos os ternos momentos que vivenciara na cabana em que morava com a mãe na propriedade dos Barre, ela e Nicholas se despediram da Sra. Cooper e retornaram à casa.

Fizeram o caminho de volta amistosamente, aproveitando o ar fresco do verão e a quietude da tarde depois das horas de confinamento na cabana da Sra. Cooper. Juliana sequer reparou que Nicholas lhe tomara a mão enquanto caminhavam. Quando o fez, um traiçoeiro calor emanou daquela mão, espalhando-se por seu corpo. Fitou-o de soslaio, imaginando se Nicholas estivera tão inconsciente do gesto quanto ela.

A mão era cálida e a palma levemente áspera, fazendo sua pele formigar sob ela. Embora momentos antes estivesse tão confortável na presença dele, naquele instante tinha consciência da figura máscula a seu lado — a proximidade do braço musculoso, a textura do tecido que o cobria, a espessura dos cílios que contornavam os olhos negros, a linha firme da mandíbula que se encontrava ligeiramente sombreada pela barba, no momento. Imaginou como seria lhe tocar a face. Se a pele seria macia ou um tanto áspera pela incipiente barba.

Ele baixou o olhar para fitá-la e de pronto a face de Juliana corou. De imediato, procurou um tópico diferente do que tinha em mente. Haviam emergido de um matagal e se encontravam em uma colina. Através do prado, podiam avistar Lychwood Hall, destacando-se sobre outra elevação. O sol estava baixo no céu e banhava de dourado as pedras cinzentas da construção.

— Veja. — Apontou Juliana em direção à casa. — É linda, não?

— Sim — concordou Nicholas, hesitante. — Se não a conhecerem.

Em um gesto inconsciente, ambos suspiraram e em seguida, Nicholas lhe voltou o olhar, ensaiando um sorriso.

— Pronta para outro jantar?

— Não, se for igual ao de ontem. Talvez Crandall não esteja lá.

— Temo que seja uma esperança vã — replicou ele, voltando o olhar à casa. — É uma pena que não possamos escolher nossos próprios parentes.

— O que fará? — indagou Juliana em tom suave.

— Sobre Crandall? — Nicholas meneou a cabeça. -Gostaria de saber. Ele parece querer me pressionar. É como se ele fosse ganhar algo em me induzir a expulsá-lo da casa. Não posso imaginar o que seria.

— Talvez o que almeje seja confirmar o que sempre pensou sobre você — opinou Juliana. — Para justificar o modo como sempre o tratou. O que o pai fez e o que ele mesmo tentou fazer com você. E conseguindo assim o pequeno estímulo de que necessita para eliminá-lo.

— Não esquecerá esse assunto, não? — indagou Nicholas, meneando a cabeça.

— Não posso. Crandall é um homem perigoso.

— É insignificante demais para ser levado a sério -retrucou ele. — Mas tomarei cuidado quando estiver próximo dele. Serei cauteloso.

— Não quero que nada de ruim lhe aconteça.

— Eu sei. — Nicholas a fitou nos olhos por um longo instante e Juliana percebeu algo mudar e ensombrear os olhos negros.

O corpo feminino de pronto ficou tenso. Ele iria beijá-la.

Mas, o olhar de Nicholas relaxou, enquanto ele dava um passo para trás.

— Bem — começou ele, com um sorriso sardônico. -Vamos enfrentar as feras mais uma vez?

Juliana anuiu e ambos se dirigiram à casa.

 

Os dias que se seguiram pareceram voar. Havia pouco tempo para os preparativos do casamento e os criados insistiam em consultar Juliana sobre cada pormenor do comando da casa. Uma situação que ela suspeitou ter sido forjada por Lilith. Em outras ocasiões, a Sra. Barre causava um caos doméstico, dando ordens conflitantes aos empregados.

Juliana estava determinada a não tumultuar as coisas, portanto, engoliu a irritação que sentia com a tia de Nicholas e limitou-se a resolver os problemas da melhor forma possível. Ao menos, Seraphina se revelava amigável o suficiente para não obstruir os esforços de Juliana, embora não a ajudasse em nada. Ainda possuía a mesma preguiça de sempre e ocupava seu tempo pensando em formas de nada fazer.

A esposa de Crandall se revelara bastante prestativa. Oferecia-se à sua maneira tímida a ajudar Juliana em tudo que podia. Ficou incumbida de enviar os convites do casamento, o que fez com esmero, pois possuía uma linda caligrafia. A noiva sentiu-se aliviada, pois sempre considerou sua escrita deplorável.

Juliana sentou-se ao lado dela, passando o mata-borrão, dobrando e selando os convites antes de Winifred endereçá-los e riscá-los da lista. Lançando um rápido olhar à esposa de Crandall, notou que a manga longa da blusa subira com o movimento da escrita, o que revelou o antebraço delicado da moça, que se encontrava pontuado por pequenos hematomas escuros que contrastavam com a pele nívea. Abriu a boca para questioná-la sobre o que teria acontecido, no mesmo instante em que percebeu que os ferimentos tinham o exato tamanho de pontas de dedos e deduziu que haviam sido produzidos por alguém mais forte.

Devia ter exibido uma expressão de espanto, pois Winifred seguiu seu olhar e percebeu o que lhe chamara atenção. A moça corou e, com um movimento rápido, puxou a manga para baixo, cobrindo os hematomas, e concentrou-se de novo na tarefa que executava.

Juliana desviou o olhar, não contendo a raiva que crescia dentro de si. Estava certa de que aqueles ferimentos tinham sido provocados pelo marido de Winifred. Por várias vezes testemunhara a impaciência de Crandall em relação à esposa e não a surpreenderia o fato de ele tê-la apertado ou mesmo surrado. Sentiu-se compelida a ajudar a moça. Protegê-la de alguma forma.

Mas o que poderia fazer? Aquela era uma questão entre marido e mulher e Juliana sabia que em relações conjugais, o homem gozava todos os direitos. Winifred se mostrara claramente envergonhada ao perceber que ela lhe notara os ferimentos e odiaria aumentar-lhe o embaraço, questionando-a sobre o que acontecera. Porém, tampouco poderia ignorá-los.

— Winnie — chamou-a em tom suave. — Você está bem? Posso fazer algo para ajudá-la?

A esposa de Crandall lhe devolveu o olhar com a face rubra.

— O quê? Estou bem.

— Mas seus ferimentos...

Oh, isso... — Winifred forçou um sorriso. — Não é nada. Acho que sou muito desajeitada. Estou sempre tropeçando em tudo...

— Mas esses hematomas parecem...

— Oh, sim! — interrompeu-a a moça, forçando outra risada. — Quase caí e Crandall teve de me segurar com força pelo braço para evitar o tombo. Fico marcada com muita facilidade... tem uma aparência péssima, não?

— Sim — concordou Juliana, certa de que a jovem estava mentindo, porém indecisa sobre o que deveria fazer, quando a própria Winifred partia em defesa do marido. — Saiba que se... precisar de ajuda, pode conversar comigo. Nicholas iria...

— Oh, não! — exclamou a jovem, parecendo alarmada. — Rogo-lhe que não fale nada com Lorde Barre sobre isso. Eu apenas... sou sempre tão tola. Mas... não há razão para incomodá-lo.                                                

Juliana vislumbrava uma boa razão para contar aquilo a Nicholas. No entanto, o olhar suplicante de Winifred a impediu. A jovem por certo sustentaria a versão falsa dos fatos e negaria que o marido tivera a intenção de feri-la. Embora tivesse certeza que Nicholas acreditaria: nela tanto quanto Juliana, não havia nada que pudessem fazer para provar o contrário.                                      

Nicholas, no entanto, iria se sentir compelido a tocar no assunto com Crandall, e dada a animosidade existente entre ambos, não queria pôr mais lenha na fogueira. Além disso, se o noivo questionasse o primo sobre a brutalidade; com que tratava a esposa, Crandall descontaria a raiva: contida na mesma mulher que ela estava tentando proteger. E se Nicholas o expulsasse daquela casa, Winifre ficaria sem lar, ou pior, completamente à mercê daquele bruto, que por certo a culparia de seus problemas.

Pensando assim, Juliana deixou escapar um suspiro resignado.

— Está bem. Não contarei a Nicholas... por enquanto.

Crandall continuava a se comportar de maneira odiosa. Era rude com todos, inclusive com a mãe, e por mais de uma vez Juliana testemunhou uma expressão desgostosa na face de Lilith, em reprimenda ao comportamento do filho. Algo que nunca presenciara quando morara com os Barre anos atrás.

Havia uma tensão declarada entre Crandall e a irmã. Ele sempre tecia comentários sarcásticos sobre ela ou lhe lançava olhares maldosos. Juliana não os compreendia, mas por certo a irmã sim, já que Seraphina o fitava com ódio ou o ignorava.

A relação de Crandall com o cunhado não era melhor. Sir Herbert parecia evitá-lo sempre que possível e, durante as refeições, quando forçado a suportar sua presença, raramente lhe dirigia a palavra. Por mais bizarro que pudesse parecer, o marido de Seraphina era a única pessoa com a qual Crandall parecia ser civilizado.

Juliana veio a compreender o comportamento de ambos dias depois, quando ouviu uma conversa entre eles. Para se livrar dos preparativos do casamento por algum tempo e desejando ficar sozinha, dirigiu-se ao banco próximo à janela no fim do corredor. Uma vez lá, com um livro em uma das mãos e uma maçã na outra, sentou-se com as pernas cruzadas sob o corpo, fora do alcance dos olhares.

Passados alguns minutos, ouviu o som de vozes e, temerosa de que pertencesse a alguém que a procurava, puxou o drapejado da cortina da janela um pouco à frente, ocultando-se sob ele.

Contudo, as vozes se aproximaram e Juliana descobriu que pertenciam aos dois homens que conversavam em tom baixo, porém intenso.

— Eu pagarei, juro. — Aquelas foram as primeiras palavras que ouviu, ditas por uma voz profunda que não podia distinguir.

— Mas você não está compreendendo — a primeira voz continuou, dando-lhe a oportunidade de reconhecê-la como sendo de Crandall. — Sir Herbert, tem de conseguir o dinheiro. Estou em apuros.

— Não me importa o quão desesperado esteja. Não lhe emprestarei mais um tostão.

— Eu pagarei. Cobre os juros que achar necessário. Os dois homens pareciam estar a poucos metros do

banco onde Juliana se encontrava escondida. Ela se espremeu por trás da cortina o quanto pôde, desejando desaparecer. Não podia revelar onde estava, pois descobririam que havia escutado ao menos parte da conversa e seria embaraçoso. Mas seria ainda pior se a descobrissem ali. Fechou os olhos, rezando para que seguissem adiante.

— Estou devendo muito dinheiro. Não posso repor sequer um terço dessa quantia.

— Não estaria nessa situação se não esbanjasse seu dinheiro em jogatina — retrucou Sir Herbert. — Emprestei-lhe dinheiro muitas vezes, e sempre me disse a mesma coisa. Que me ressarciria e pararia de jogar. Porém nunca o fez.

— Farei desta vez. — Era evidente o desespero que pontuava o tom de voz de Crandall. — Você verá. Mas tem de me dar uma chance. Não são apenas os agiotas. Endividei-me com muitos cavalheiros. Se não os ressarcir, meu nome será arruinado.

— Pelo que sei, seu nome já se encontra na lama — rebateu o cunhado.

— Somos parentes! Como pode permitir que o irmão de sua esposa seja condenado ao ostracismo por toda a alta sociedade? Serei conhecido como aquele que não honra seus compromissos. Dei minha palavra àqueles cavalheiros!

— Não conhece o significado da palavra "cavalheiro" — retrucou Sir Herbert. — Deus do céu, homem! Como tem coragem de pedir qualquer coisa a mim? Usar seu parentesco com minha esposa como razão para ajudá-lo? É por sua causa que Seraphina está em apuros. Por que acha que resolvemos vir para o campo no auge da temporada? Porque ela contraiu tantas dívidas que tive de lançar mão de todos os recursos para saná-las! Gastou toda a sua mesada e o dinheiro destinado ao pagamento dos criados. Seraphina devia dinheiro a agiotas e empresas de jogo. Nunca me senti tão envergonhado em toda minha vida quando um dia Lorde Carlton chamou-me em particular e disse que minha esposa lhe devida duas mil libras.

— Mas você as pagou, não? — indagou Crandall, amuado. — Por que não fica na cidade? Ela não precisa evitar a alta sociedade.

— Claro que sim! Não posso deixá-la solta em Londres, já que Seraphina não consegue se controlar. Não permitirei que ela estrague a vida dela como você fez com a sua. Como se não bastasse o que causou a si mesmo, resolveu destruir sua irmã também.

Eu não fiz isso!

— Como pode negar? Você apresentou-a às pessoas com quem andava. Levou-a àquela casa de jogos femininos Tomlinson. E a encorajou a retornar, dizendo-lhe que sua sorte mudaria, convencendo-a de que a única forma de ela pagar as dívidas que contraíra era jogando mais. Se não soubesse que é um tolo, que gerencia as próprias finanças da mesma forma, diria que estava recebendo propina daquele tubarão!

Houve um longo instante de silêncio. Juliana aguardou, imaginando o que estaria acontecendo no corredor.

Aparentemente, Sir Herbert identificara algo na expressão de Crandall pelo que ouviu a seguir.

— Deus! Então era isso, não? Recebia dinheiro quando lhe trazia novas vítimas. Guiava as ovelhas à carnificina!

— Não queria lhes causar nenhum mal — explicou Crandall, em tom débil. — Elas queriam jogar cartas. Apenas as introduzia aos clubes mais sofisticados. Seraphina pediu-me para levá-la.

— Você é irmão dela! Deveria tê-la protegido e não a levado para ser tosquiada! — rosnou o cunhado, indignado. — Seu Judas diabólico! Deveria lhe dar uma lição.

— Gostaria de vê-lo tentar — desafiou-o Crandall. Houve um impacto quando algo atingiu a parede ao lado do banco de Juliana, e em seguida o som de passos perfazendo o mesmo caminho por onde os homens tinham vindo.

— Fique longe de minha vista, Barre! — gritou Sir Herbert a centímetros de distância dela. Juliana supôs que Crandall havia empurrado o cunhado contra a parede e se retirado pisando duro.

Depois de alguns instantes, Sir Herbert deixou escapar um suspiro exasperado e se precipitou pelo corredor.

Só então Juliana conseguiu respirar aliviada.

Então Crandall havia introduzido a irmã na jogatina. Agora ficara clara a razão pela qual Sir Herbert desprezava o cunhado. E, sem dúvida, por que Seraphina demonstrava tanta aversão ao irmão. Os comentários mordazes que Crandall dirigia a ela e lhe arrancavam olhares cáusticos se relacionavam ao vício de jogar que Seraphina adquirira. Juliana sentia-se perplexa com a extensão da vilania do filho de Trenton Barre — induzir a irmã a se endividar com jogos e depois fazer pilhérias sobre o fato.

Crandall não compareceu ao jantar naquela noite, o que foi gratificante, não só para Juliana como para todos que se encontravam à mesa. A conversação durante a refeição tinha um tom quase normal. Lilith encontrava-se controlada e fria como sempre, mas ao menos Winifred, Seraphina e Sir Herbert abordavam vários assuntos com ela e Nicholas sem parecerem estar pisando em ovos.

Não houve sequer sinal de Crandall durante toda a noite ou no café-da-manhã do dia seguinte — o que não era anormal. Tampouco Juliana o viu durante toda a manhã, portanto a relativa paz que envolvia a casa se estendeu até a hora do almoço.

Toda a família, com exceção de Crandall, sentou-se à mesa no horário usual e os criados começaram a servi-los. Naquele instante, Crandall entrou na sala de jantar. Juliana ergueu o olhar ao som dos passos e seu queixo quase caiu. Do outro lado da mesa, Winifred ofegou.

A face de Crandall estava ferida e os lábios inchados. A pele ao redor da boca esfolada e sangrando. O olho direito roxo e fechado pela intumescência.

Num gesto involuntário, Juliana voltou o olhar para Nicholas.

 

Lilith ergueu-se, levando as mãos à garganta.

— Crandall! O que aconteceu a você?

O filho a ignorou, puxando uma cadeira e se deixando afundar nela. Winifred esticou a mão tocando-lhe o braço, mas ele se desvencilhou, irado.

— Deixe-me!

Lilith olhou para Nicholas.

— O que significa isso?

O Lorde a fitou com olhar franco.

— Acho que deve perguntar a seu filho.

— Crandall... — Lilith instou-o com voz de comando. Ele deu de ombros.

— Não é nada, mãe. Deixe-me em paz.

— Nada? Sua face está roxa e ferida e espera que eu aceite essa explicação? Nicholas é o autor desse estrago?

''Crandall fez uma careta.

— Um homem me atacou no vilarejo. Foi só. Agora podemos comer em paz?

— Não. Não podemos! — disparou Lilith. -Alega ter sido atacado e espera que continuemos como se nada tivesse acontecido? O que houve? O homem foi preso?

Tia Lilith, acho que quanto menos estardalhaço fizer em torno desse assunto melhor será — aparteou Nicholas! em tom calmo, enquanto lançava um olhar significativo a Crandall.

— Estardalhaço? — A mulher fitou Nicholas com frieza. — Meu filho foi atacado por algum bandido e acha que devemos achar natural? Quero saber se o homem que fez isso está preso.

— Não — replicou Nicholas, sucinto. — E esse não é um assunto apropriado para a hora do almoço. Sugiro que o protele até acabarmos a refeição.

Lilith lhe lançou um olhar furioso.

— Pode ter voltado para tomar conta deste lugar, Lorde Barre, mas não irá determinar o que posso ou não dizer em vista deste vil ataque ao meu filho. Quero saber o que aconteceu e porque esse homem não está preso!

Com um suspiro resignado, Nicholas pousou o garfo e se voltou para o mordomo.

— Rundell...

— Sim, milorde. — O mordomo fez um gesto para o criado de libré e ambos se retiraram da sala de jantar, fechando a porta suavemente.

— Muito bem. Discutiremos o assunto — começou Nicholas, voltando-se em seguida para Winifred. — Desculpe-me por fazê-la ouvir o que será dito.

A esposa lançou um olhar a Crandall, parecendo pálida e embaraçada.

— Crandall?

Ele a ignorou, cruzando os braços sobre o peito e recostando-se no espaldar da cadeira.

— Vá em frente, Nick. Estou certo de que mal pode esperar para contar a todos.

— Acredite-me, não me sinto nem um pouco à vontade em discorrer sobre suas indiscrições e menos ainda em lidar com as conseqüências delas — replicou Nicholas, voltando-se a seguir para Lilith. — Encontrei-me com o homem em questão está manhã. Chamou-me para me prevenir que mantivesse Crandall sob controle. Parece que seu filho estava fazendo investidas não desejadas e até mesmo forçadas à esposa dele. Ele os surpreendeu e, com toda a razão, fez seu papel de marido. É por esse motivo que o rosto de Crandall se encontra nesse estado.

— Quanta bobagem! — exclamou Lilith. — Por certo a prostitutazinha mentiu para o marido. Sem dúvida portou-se de maneira imprópria, encorajando Crandall, e ao ser descoberta, fingiu que era culpa do meu filho para evitar a raiva do marido contra si mesma.

Era óbvio, pensou Juliana, que embora a tia de Nicholas não se mostrasse tão encantada com o filho como o fazia no passado, estava completamente iludida no que concernia ao comportamento de Crandall com as mulheres.

— O homem os surpreendeu, tia Lilith — repetiu Nicholas, impaciente. — A esposa lutava contra Crandall, tentando empurrá-lo. Acho pouco provável que ela estivesse tentando seduzir seu filho ou que Farrow tenha se enganado quanto ao que presenciou.

— Ele está mentindo — protestou Crandall, voltando-se para a mãe. -Ambos estão.

— Claro que sim — concordou ela. — Quem é esse Farrow? Estou certa de que quer apenas dinheiro.

Do outro lado da mesa, Seraphina revirou os olhos, duvidando claramente das palavras do irmão. Winifred baixou o olhar, a face rubra de vergonha. Juliana tomou-se de compaixão pela jovem. Deveria ser humilhante ter de permanecer sentada ali, ouvindo a história do assédio do marido a outra mulher. Não era de admirar que Nicholas tivesse tentado evitar discutir aquele tópico à mesa.

— Acho que não foi esse o motivo que o trouxe até aqui esta manhã — esclareceu Nicky, em tom irritado. — O homem estava de fato furioso. Ele é o ferreiro do vilarejo e, sinceramente, a julgar pelo tamanho dele, diria que Crandall teve sorte de não ter mais do que um olho roxo e alguns ferimentos.

— Ele me atacou pelas costas! — protestou Crandall.

— Sequer percebi que ele estava lá.

— Sem dúvida estava muito ocupado para notar — retrucou Nicholas em tom seco.

— Acho que vou voltar lá e...

— Não seja idiota! — disparou Nicholas. — Não o desafiará para uma luta. Ambos sabemos disso. É e sempre foi um covarde. Limita-se a importunar mulheres ou os mais fracos que você. Jamais enfrentaria um homem como Farrow. Surpreendeu-me o fato de ter sido tão tolo a ponto de assediar a esposa dele e pensar que sairia ileso. Se supôs que seu nome o intimidaria, sinto dizer-lhe que estava redondamente enganado. Farrow não está interessado em dinheiro e mesmo que estivesse disposto a ser comprado, você não teria como pagá-lo. E posso lhe garantir que j amais gastarei uma moeda para livrá-lo de um apuro como esse.

— Nunca esperei que me apoiasse — afirmou Crandall.

— Muito inteligente de sua parte — rebateu Nicholas.

— Acho que consegui acalmá-lo. Garanti-lhe que incidentes como esse não iriam se repetir — continuou, inclinando-se à frente e cruzando as mãos sobre a mesa. Os olhos negros tinham um brilho frio e metálico ao fitar o primo. — Daqui em diante terá de parar de se comportar dessa maneira. Estou me fazendo entender? Se ouvir falar da Sra. Farrow ou qualquer outra mulher que tenha sido molestada por você, terá de se entender comigo. Crandall lançou-lhe um olhar ressentido e escorregou í um pouco na cadeira, fitando a mesa, com expressão contrariada.

— Pode ficar amuado o quanto quiser. É melhor aderir às minhas regras se quiser continuar a viver aqui — declarou Nicholas em tom áspero.

— Como se atreve? — interveio Lilith, o olhar brilhando de indignação. -Acha que pode dar ordens a meu filho?

— Se ele quiser continuar a depender de mim, sim. Exigirei decoro da parte dele — retrucou Nicky, com extrema calma.

— Sabe que nada disso é verdade — argumentou a tia, a face rubra de raiva. — Está auxiliando aquele homem a inventar mentiras sobre Crandall e espalhar rumores sórdidos que o comprometam. Você o odeia. Sempre teve I ciúme de seu primo. Meu filho sempre foi melhor do que I você, mais brilhante e inteligente. Você nunca suportou I isso. Sempre o atacou desde que era um menino. É um homem demoníaco. Não consegue suportar que alguém ! como Crandall seja bem-sucedido. Era perverso naquela época e...

— Basta! — gritou Juliana, erguendo-se num impulso, ; trêmula de raiva ao encarar Lilith. — Cale-se! — A senhora piscou várias vezes, silenciando ante o rompante. – A senhora é que é perversa — continuou, deixando de lado a cortesia e a diplomacia. — Sempre foi uma péssima mãe e uma tia pior ainda. É fria e egoísta, e a forma como a senhora e seu marido tratavam Nicholas era criminosa.

Um menino órfão, cujos pais haviam morrido de maneira trágica. Ainda assim, não fez esforço algum para amá-lo. Tratava-o com desprezo e crueldade. Crandall nunca chegou sequer aos pés de Nicholas, mas era cega demais para perceber. Arrumou seu próprio filho, perdoando-lhe todos os delitos. E tentou destruir Nicholas, mas não conseguiu, pois ele escapou de suas garras. Resistiu a todas as tentativas que fez de atirá-lo na lama.

Lilith se ergueu, encarando Juliana com a face pálida e os olhos faiscando de fúria.

— Como se atreve a falar comigo dessa maneira? A deslumbrada nouveau-riche. É tão ruim quanto sua mãe!

— Minha mãe não tem nada a ver com isso! Refiro-me a você e seu descaso em relação a uma criança que se encontrava sob seus cuidados. Ouça-me bem. Seu reinado acabou. Ainda está morando aqui pela benevolência daquele mesmo menino que negligenciou. Ele a sustenta. Proporciona um teto sobre sua cabeça. Nicholas pode relutar em atirar a própria tia na rua da amargura, mas não hesitarei em fazê-lo. Mandarei a senhora e o resto de sua família fazer as malas e partir se ousar tratar Nicholas com tamanho desrespeito mais uma vez. — Lilith a fitava com a face lívida. Os lábios comprimidos em uma linha tênue. — Aconselho-a — continuou Juliana, em tom mais brando — a pensar sobre isso. Dentro de alguns dias me tornarei Lady Barre e, como tal, terei o poder não só de despejá-la como de destruí-la mediante a corte. Posso fazer com que todos em Londres saibam exatamente o tipo de mulher que é. Contarei a todos como tratava Nicholas quando ele era criança. Um órfão vivendo sob seu teto. O que acha que pensarão da senhora?

Os músculos da face de Lilith se contraíram. Os olhos brilhavam de aversão. Por um instante, Juliana pensou que ela fosse enfrentá-la, mas a mulher baixou o olhar.

— Não tive intenção de desrespeitar Lorde Barre — afirmou, sem voltar o olhar para Nicholas. — Por favor, desculpe-me, meu sobrinho, se disse algo que o ofendeu.

— Por certo, tia Lilith.

— Agora, se me dão licença... acho que perdi o apetite — dizendo isso, a senhora disparou porta afora.

Juliana se deteve a fitá-la por alguns instantes e só então se deixou afundar na cadeira, os joelhos fracos demais para sustentá-la. Sentia-se levemente nauseada e tremia tanto que teve de entrelaçar as próprias mãos para controlá-las. Percebia o olhar de todos os presentes pousados nela.

Por certo, estavam chocados com sua perda de controle. Mas, não se sentia envergonhada. Em vez disso, ergueu o queixo, desafiadora, e olhou primeiro para Crandall e em seguida para Seraphina.

— Sabem que falei a verdade.

Crandall, como era de se prever, fitou-a com sarcasmo, porém a irmã corou e anuiu, levando os dedos aos lábios. Winifred parecia perplexa.

Juliana fitou Nicholas de soslaio. Ele a encarava com um olhar caloroso e divertido.

— Sir Herbert — chamou Nicholas em tom calmo. — Poderia fazer-nos o favor de tocar a campainha para chamar Rundell? Acho que podemos fazer a refeição agora.

O mordomo e o criado de libré retornaram de pronto. As faces de ambos não refletiam a curiosidade que Juliana estava certa de que sentiam. Todos comeram rapidamente, sem se arriscarem sequer a um comentário. Na primeira oportunidade, desculparam-se e se retiraram um a um da sala de jantar, deixando Juliana e Nicholas a sós.

Ela voltou-se para ele, esperando o criado de libré se retirar.

— Desculpe-me pela cena que fiz. Normalmente não ajo assim — afirmou, exibindo um sorriso tênue. — Embora tenha todo o direito de não acreditar.

Nicholas sorriu e esticou o braço para lhe tomar a mão.

— Não havia percebido o quão briguenta pode ser. Terei de me comportar bem com você.

Juliana deixou escapar uma risada divertida.

— Acho que não precisará se preocupar com isso. Nicholas levou a mão delicada aos lábios.

— Obrigado por me defender.

O toque macio dos lábios a aqueceu por completo. Ele girou a cadeira, puxando-a pela mão até que ela se erguesse. E então a sentou no próprio colo. Juliana riu, ofegante, quando ele a segurou, com o braço forte se curvando em suas costas para ampará-la. Parecia-lhe tão certo e natural estar ali, pressionada contra o peito largo.

Nicholas inclinou a cabeça e pressionou os lábios contra a pele macia do pescoço delicado. Subindo mais um pouco, mordiscou-lhe o lóbulo da orelha com a suavidade do toque de uma pena. Um arrepio percorreu a espinha de Juliana, acendendo labaredas de fogo que se concentraram na intimidade feminina. A outra mão de Nicholas, antes espalmada sobre seu estômago, deslizou para cima, envolvendo-lhe um dos seios. Ela podia sentir o desejo trazendo à vida cada célula de seu corpo. Queria sentir o toque ousado até se perder na magia sensual daquele homem. Desejava reclinar-se nos braços musculosos como uma devassa, convidando-o a lhe explorar o corpo, acariciá-la e excitá-la até que ardesse em chamas como na outra vez em que ele a tocara.

Juliana moveu-se de leve no colo masculino e um gemido baixo escapou da garganta de Nicholas. Estimulada, ela se mexeu outra vez, girando para encará-lo de frente e deslizando as mãos pelo peito largo. Ouviu-o ofegar por ar e ao fitá-lo percebeu o brilho predador nos olhos negros. A mão forte se moveu pelos seios firmes, traçando o contorno dos mamilos através do tecido fino da musselina do vestido, fazendo-os intumescerem de imediato.

Massageou-os com o polegar longo, enquanto a encarava sem desviar o olhar. Uma descarga elétrica fez vibrar todos os terminais nervosos do corpo dela, como se um fio de alta tensão conectasse a ponta do mamilo rijo ao centro da feminilidade de Juliana. Ela mordiscou o lábio inferior, cerrando as pálpebras ante a sensação prazerosa dos dedos experientes naquela parte sensível.

A mão máscula escorregou, descendo até atingir a reentrância pulsante entre as coxas macias. Nicholas pressionou os dedos contra ela, e, mesmo através do tecido do vestido e das anáguas, o toque a fez estremecer de prazer. Juliana cravou as unhas na camisa que cobria o peito musculoso, recostando a cabeça à parede sólida do tórax dele.

Podia sentir o coração de Nicholas pulsando sob sua orelha e a respiração pesada fustigando-lhe os cabelos. Sentia como se pudesse mergulhar naquele homem até ser consumida totalmente por ele.

O som de passos perto da porta e um arfar embaraçado atraiu a atenção de ambos. Juliana virou-se para observar o criado de libré afastando-se, vexado.

Nicholas soltou uma imprecação, soltando-a ao mesmo tempo em que ela se erguia com a face em chamas. Em seguida, levou a mão à face quente e, após fitá-lo por um instante, girou nos calcanhares e disparou pela porta.

 

Nicholas se inclinou à frente, apoiando os ombros sobre a mesa e sustentando a cabeça nas mãos. Admoestou-se em seu íntimo. Estava se comportando como um adolescente atrevido. Fizera uma promessa a Juliana e a quebrara na primeira oportunidade que se apresentava. Tinha todo o direito de estar furiosa com ele.

Sabia que não estava se portando como um cavalheiro. Embora nunca tivesse pretendido se transformar em um, jamais tencionara agir desrespeitosamente com Juliana.

E ainda assim, lá estava ele, permitindo que o desejo o levasse a quebrar tal promessa. Havia jurado a ela que aquele seria um casamento platônico e fora sob tal condição que Juliana aceitara o pedido. Suas ações nos últimos dias a levariam a imaginar que ele não seria capaz de honrar o acordo. Temia que a futura esposa achasse que fora enganada.

Nicholas não era afeito a temores. Havia aberto seu caminho no mundo e era um homem bem-sucedido, o que o tornava um vencedor. Porém, no momento, temia a possibilidade de perder Juliana.

Ela era a única pessoa no mundo a quem queria bem. Fora sua companheira e amiga quando se encontrava totalmente só no mundo. Confiava nela e não se lembrava de outra pessoa em quem tivesse depositado sua confiança. Por aquela razão, não poderia permitir que nada desfizesse o laço que os unia... não importava o quanto a desejasse.

Não lhe ocorrera que sucumbiria a tais sentimentos. A imagem fixada em sua mente era de uma criança que havia amado na infância. Juliana tinha sido como uma irmã para ele. Embora tivesse se dado conta de quão bela e desejável ela havia se tornado, não esperara que a luxúria o dominasse a ponto de quase perder o controle. Propusera-lhe casamento sem nenhuma razão ulterior. Odiara sabê-la à mercê de pessoas evidentemente inferiores a ela. Juliana merecia o que havia de melhor no mundo e seria ele a lhe proporcionar isso.

Porém, a convivência das últimas semanas transformara a amiga estimada em uma mulher extremamente desejável. O tipo de casamento que lhe propusera não mais o satisfazia. Desejava seduzi-la e levá-la para cama. Descobriu-se ansiando pela noite de núpcias com a aflição própria de um noivo.

Mas toda aquela luxúria não era justa para com Juliana. Afinal, ela concordara em ser sua esposa apenas no nome. Aceitara a proposta só por lealdade ao rapaz que fora seu amigo na infância. Não o amava. Ficara claro quando se mostrou relutante em aceitar o pedido de casamento. Para uma mulher como Juliana, amor e desejo estavam intrinsecamente ligados. Ao contrário de si mesmo, a amiga de infância não era imune a sentimentos profundos.

Juliana pensava que ele era capaz de sentimentos nobres, mas aquilo se devia ao fato de ver sua própria bondade refletida nele, o que a levava a analisá-lo à luz da benevolência, perdoar-lhe os pecados e desculpar seus erros. Construíra-o perfeito em sua mente e quando estava com ela, Nicholas se esforçava por não decepcioná-la. Só ele conhecia a mágoa e a frieza que lhe iam no íntimo. Os mesmos sentimentos que o deixaram indiferente à notícia da morte do tio. Recordava o ódio que fervilhava em seu íntimo a cada açoite da palmatória que o tio lhe desferia na parte posterior das pernas. Tinha ciência das leis que transgredira e outras que simplesmente burlara e as regras da honra e honestidade que ignorou na busca de seus objetivos.

Não era um homem bom. Apenas Juliana pensava o contrário.

Mas não estava disposto a permitir que a visão que Juliana tinha dele fosse denegrida. Embora não se importasse com o juízo que as pessoas faziam a seu respeito, a opinião de Juliana era vital.

Não que a futura esposa o rejeitasse se ele a solicitasse na noite de núpcias. Sabia que Juliana cederia a seu desejo, acreditando ser o dever da esposa cumprir os votos do casamento. Talvez achasse que lhe devia algo em troca da vida que teria como Lady Barre. Tampouco era modesto a ponto de pensar que não lhe proporcionaria prazer. Percebera a reação de Juliana quando a tomou nos braços. A respiração ofegante e a pulsação acelerada quando lhe beijara o pescoço. Suas carícias a excitavam. Mas, apesar do evidente desejo, ela não o amava e aquilo a aviltaria. Não queria que Juliana se sentisse obrigada a ceder a sua luxúria. Odiaria que sua futura esposa se visse como uma escrava do desejo quando não sentia amor.

Acima de tudo, não suportaria que se Juliana se desse conta de que ele não era o homem que imaginara. Seria por demais doloroso suportar seu olhar de desilusão. Saber que o via como ele realmente era: um homem capaz de quebrar a promessa que lhe fizera para Satisfazer o desejo carnal.

Não permitiria que acontecesse. Manteria a promessa de abstinência a qualquer custo.

Não deveria ser tão difícil, Nicholas tentou convencer a si mesmo. Depois de passar um bom tempo com a esposa ali, poderia contratar os serviços de alguma ra-meira de Londres.

Tinha de admitir que o pensamento não lhe agradava. Para ser franco consigo mesmo, a imagem de qualquer outra mulher empalidecia comparada a de Juliana. Até mesmo as mais atraentes amantes de seu passado pareciam agora enfadonhas e indesejadas se comparadas a ela. Não se sentia inclinado a procurar outra mulher para saciar o desejo carnal e aquele pensamento tornava a perspectiva da vida conjugai ainda mais rígida.

Jurou a si mesmo que não a levaria para a cama quando se casassem. O único problema era o fato de não saber como obedecer a si mesmo.

 

O dia do casamento amanheceu claro e iluminado. Como nos últimos dois dias chovera sem cessar, a luz do sol se revelava um bom presságio para Juliana. Sentia-se bastante nervosa para comer o lauto café-da-manhã posto à mesa, optando apenas por uma xícara de chá e uma torrada.

Desejava que Eleanor estivesse ali para ajudá-la a passar o dia. Winifred ofereceu-se para auxiliar a criada com o vestido e os cabelos, mas embora a jovem tivesse boa vontade, não era a mesma coisa que ter consigo a melhor amiga dos tempos de escola. Eleanor teria dominado a situação com seu estilo autoritário, eliminando todo e qualquer problema que surgisse e fazendo com que todos trabalhassem debaixo de seu jugo e, ao mesmo tempo, a teria acalmado.

Sendo assim, durante toda a manhã, Juliana alternou momentos de terror, em que pensava estar fazendo a coisa errada e momentos de expectativa, em que não via a hora de ir para a cerimônia. Estava certa de estar fazendo o que de fato desejava, porém insegura se era o melhor para ela.

Somado à incerteza, estava o fato de que nos últimos dias seu pensamento se voltava inexoravelmente ao desfecho da noite de núpcias. Iria Nicholas levá-la para a cama? Ele dissera que o casamento de ambos seria platônico, porém o modo como a havia beijado a fizera imaginar se não teria mudado de idéia. O que faria se o futuro marido fosse a seu quarto naquela noite? Sabia como reagiria às carícias e beijos de Nicholas, o que lhe daria todo o direito de achar que ela o desejava.

O problema é que de fato o desejava, porém corria o risco de ter o coração partido se fizessem amor. Iria considerar-se uma esposa na acepção da palavra, mas suspeitava que Nicholas não se sentiria da mesma forma. Declarara-se imune ao amor, o que demonstrava que não havia se apaixonado por ninguém e significava que não a amava. Entregar seu coração a um homem que não correspondia ao sentimento e amá-lo cada vez mais quando talvez ele se enfadasse de sua companhia, seria um desastre. Acabaria solitária e magoada.

Seria bem melhor, pensou, permanecerem apenas amigos. Iria refrear-se de se aventurar em águas mais profundas. Se Nicholas quisesse dormir com ela e recebesse uma recusa, por certo não insistiria. Porém não estava certa de que seria capaz de resistir ao desejo que sentia por aquele homem. Teria forças para negá-lo?

Encontrava-se perdida em tais pensamentos, e a conversa casual de Winifred não conseguia afastá-la deles. Sentiu-se aliviada quando por fim chegou a hora de partir para a cerimônia. Assim, Juliana pôde empurrar os devaneios para o fundo da mente e simplesmente seguir em frente.

Eles se casaram naquela tarde na igreja do vilarejo. Uma estrutura cinza com sua torre normanda quadrada. Havia poucos convidados, a maioria pertencente à nobreza local e aos membros da família. Nenhum dos noivos conhecia a maioria dos presentes, dado o tempo em que se encontravam ausentes da alta sociedade, e nenhum dos Barre mostrara interesse em convidar seus amigos. Na verdade, Juliana ficara surpresa quando um dos amigos de Crandall chegou de Londres no dia anterior. Um jovem chamado Peter Hakebourne. Por sua vez, Crandall também se mostrara atordoado com a presença do homem, o que a levou a imaginar se ele não seria um de seus credores.

Ainda assim, a escassez de convidados não incomodava Juliana. A cerimônia simples a emocionou e quando voltou o olhar para Nicholas, as mãos entrelaçadas nas dele, seu coração pareceu inflar de felicidade. Sorriu para o noivo com olhos marejados de lágrimas e teve certeza de que, não importava o que o futuro lhes reservasse, fizera a escolha certa. Sua vida estava entrelaçada à dele e o amanhã pertencia a ambos.

Após a cerimônia, voltaram à casa e receberam os cumprimentos. Lá se daria o jantar de comemoração e o baile para os familiares e convidados, mas antes tinham de receber as congratulações dos inquilinos e moradores do vilarejo, todos convidados a um banquete oferecido no jardim, sob o arvoredo. Juliana sorria e cumprimentava a todos, alguns dos quais recordava do tempo em que vivera ali. Outros eram-lhe completamente desconhecidos. A Sra. Cooper chegou em uma pequena charrete que Juliana lhe enviara. A ex-criada se curvou, aceitando a mão estendida de Juliana e assegurou-a de que seu casamento seria abençoado. Os inquilinos e suas 'esposas passavam em hordas a sua frente.

Até mesmo o ferreiro do vilarejo se encontrava presente. Um gigante louro, mais alto até mesmo que Nicholas, com peito largo e braços musculosos que combinavam com seu ofício. Falou pouco, assentindo com um gesto de cabeça para os noivos de modo respeitoso, mas não subserviente, antes de apresentar a bela jovem a seu lado como sua esposa.

Quando o casal se encaminhou à mesa das bebidas, Juliana inclinou-se em direção ao marido.

— Este não é o homem que surrou Crandall? — sussurrou. — Estou surpresa que tenha vindo.

Nicholas confirmou.

— Sim. Mas ele me parece um homem justo. Gostei dele. Esse homem conseguiu perceber que as ações de Crandall destoam do meu caráter.

Juliana observou-os abrir caminho na multidão. Ambos caminhavam de braços dados e ele inclinava a cabeça de maneira protetora para escutar a esposa.

— Ela é graciosa.

— Sim. É fácil imaginar por que Crandall se sentiu atraído por ela — retrucou Nicholas, sorrindo.

— Conhece o amigo de Crandall? — indagou Juliana, curiosa.

— O sujeito de Londres? Qual o nome dele?

— Hakebourne — informou ela. — Peter Hakebourne.

— Isso mesmo. Não, não o conheço, mas achei curioso que alguém que nunca vimos e que não convidamos se apresente para o casamento — comentou Nicholas.

— Acho que o próprio Crandall não sabia da chegada dele — opinou Juliana.

Ele franziu o cenho.

Conhecendo meu primo como conheço, acho que o amigo dele não está aqui com um propósito legítimo. Vou ficar atento e tentar descobrir o que está por trás dessa aparição repentina. — E dando um olhar à esposa com um sorriso débil. — Acha rude de minha parte pensar que ninguém faria uma visita amigável a Crandall?    

— Acho inteligente de sua parte — retrucou Juliana.    

Havia comida e bebida com fartura, tanto no interior quanto no exterior da casa, e horas depois deu-se início à dança. Nicholas guiou a esposa para o centro do salão, para dançar a primeira valsa como marido e mulher. Quando ele a tomou nos braços, Juliana não pôde evitar a lembrança da noite, um mês atrás, quando o reviu depois de 15 anos.

Recordou-se da sensação do braço forte lhe enlaçando a cintura e como o fitara nos olhos. Não havia passado muito tempo, porém parecia ter sido uma eternidade. Nunca imaginaria naquela noite que, apenas um mês mais tarde, seria a esposa de Nicholas.                          

E aquela noite... aquela noite, seria sua mulher de fato, ou apenas no nome? Era uma pergunta para a qual ainda não tinha resposta.

Finda a valsa, seguiram-se as danças obrigatórias com os demais convidados. Aquelas, pensou Juliana com um suspiro resignado, não eram tão prazerosas. Foi girada pelo salão por Sir Herbert e mais tarde por Peter Hakebourne. O marido de Seraphina dançava como que se esforçando para recordar as lições que tomara anos atrás. Podia quase ouvi-lo contar os passos. Quando os últimos acordes da música se fizeram ouvir, o sorriso que ele lhe deu era mais de alívio do que de divertimento. Hakebourne, por sua vez, era um dançarino passável, porém pouco falava. Quando se separaram na pista de dança, Juliana sabia pouco mais sobre ele do que quando deram os primeiros passos. Não estava certa se o amigo de Crandall procurava evitar perguntas ou se era apenas tímido.

Hakebourne executou uma mesura e a deixou, encaminhando-se ao local onde Crandall se encontrava, com um copo na mão, fitando taciturno as festividades.

Não era preciso muito para perceber que Crandall não estava feliz em ver o amigo. Ele lançou um olhar carrancudo a Hakebourne e deslizou o olhar a sua volta como se procurando um modo de escapar. O amigo, no entanto, se plantou diante dele e começou a falar com a facilidade que não expressara quando estava dançando com Juliana.

Naquele instante, o Sr. Bolton, um solteirão de meia-idade do vilarejo, solicitou-lhe a próxima quadrilha e, concentrada nos passos da dança, Juliana perdeu-os de vista. No entanto, quando seu parceiro, que se revelara um exímio dançarino, guiou-a de volta à cadeira que ocupava, ela avistou Crandall e Peter Hakebourne ainda conversando.

Ficava óbvio que estavam discutindo pelo tom de voz alterado. Surpresos, os convidados lhes lançavam olhares curiosos. A um gesto de Lilith, a orquestra apressou-se em soar os primeiros acordes da próxima música, mascarando o barulho produzido pelos dois cavalheiros. Lilith cruzou o salão em direção ao filho. Estacou diante dele e proferiu algumas poucas palavras. Hakebourne pareceu envergonhado e se calou, anuindo com um gesto de cabeça para a senhora. Em seguida, lançando um último olhar para Crandall, abriu caminho por entre a multidão. O filho, por sua vez, fitou a mãe, desafiador, e sorveu o resto da bebida num só gole.

Juliana observou desanimada quando Crandall girou nos calcanhares, encaminhando-se em sua direção. Tropeçou contra um dos dançarmos, cambaleou e seguiu em frente sem sequer se desculpar. Juliana desejou se virar e sair correndo, porém ficaria óbvio que o estava evitando. Só Deus sabia o que aquele homem seria capaz de fazer naquele estado de embriaguez — talvez até mesmo gritar por seu nome no salão.

Como a última coisa que desejava era uma cena no dia de seu casamento, permaneceu onde estava, observando-o aproximar-se com um pretenso olhar amigável estampado na face.

— Ju...Juliana — engrolou Crandall, executando uma profunda mesura e quase tombando para a frente.

— Crandall, por favor... — sussurrou Juliana. — Está bêbado. Suba e vá para seu quarto se deitar.

Ele a fitou de soslaio.

— Isso é um convite, minha querida?

— Não seja mais tolo do que já provou ser — sibilou ela entre dentes. — Por favor, pense em sua família, esposa e em você mesmo, pelo amor de Deus! Quer se humilhar diante de toda essa gente?

— Quero dançar com a noiva — retrucou Crandall, em tom pastoso. — Não mereço dançar com você no dia de seu casamento?

A voz de Crandall havia alcançado um volume considerável e Juliana pôde perceber cabeças girando na direção deles.

— Pois bem — concordou Juliana, resignada. — Dançarei com você, mas apenas se prometer que se recolherá depois.

— Claro que sim. Após dançar com a linda noiva meu dia estará completo — dizendo isso, envolveu-lhe a cintura com uma das mãos, empurrando-a para a pista de dança. Juliana reprimiu a própria irritação e voltou a olhar para ele. Seria uma provação dançar com Crandall a qualquer hora, mas pior ainda quando se encontrava bêbado. Ele lhe tomou a mão e deslizou a outra por sua cintura. Podia sentir o odor de álcool no hálito que lhe fustigava a face, embora estivesse afastada dele o máximo possível.

A música começou e Juliana esforçou-se para acompanhá-lo. A mão de Crandall pesava-lhe no flanco e lhe parecia que os dedos macilentos se enterravam em sua carne com mais força que o necessário.

— Linda noiva — repetiu ele.

— Obrigada — replicou Juliana em tom seco. Crandall lhe lançou um olhar malicioso.

— Sempre a desejei, sabia?

— Crandall... essa não é uma conversa apropriada. -Aquele homem era incorrigível.

— E verdade — continuou ele, como se Juliana o tivesse encorajado. — Todos os dias quando voltava da escola lá estava você... provocando-me.

— Não seja ridículo — disparou ela, indignada. Sabia que era inútil discutir com um bêbado, mas não poderia deixar de contestar a afirmação absurda. — Eu nunca...

— Oh, talvez pense que não — interrompeu-a Crandall, piscando para ela. — Mas eu sei que sim.

— Não sabe de nada — retrucou Juliana, o olhar brilhando de raiva. — Mas ao menos poderia se furtar em demonstrar sua ignorância tão abertamente.

Ele soltou uma gargalhada e lhe apertou a cintura de modo que Juliana cambaleou à frente, batendo contra o peito de Crandall.

— Contenha-se antes de fazer outra cena — admoestou-o ela.

Naquele instante, a mão de Nicholas pousou no ombro do primo.

— Desculpe-me. Estou certo de que não se importará que eu roube a noiva de você.

— Nicholas! — Juliana voltou-se para o marido com expressão aliviada.

Ele a encarou, observando-lhe o rubor da face e o brilho de ira nos olhos e voltou a atenção para Crandall.

— Não acha que já bebeu o suficiente? Acho que está na hora de se recolher.

— Não me importa sua opinião — retrucou Crandall. — Estamos dançando. Saia do caminho.

— Farei mais do que me atravessar em seu caminho se não largar minha esposa neste instante — replicou Nicholas em tom de voz normal, desmentido pela expressão desafiadora e o brilho frio dos olhos negros.

— Sua esposa... Está ansioso pela noite de núpcias? Acha mesmo que será o primeiro? Cheguei antes...

O que quer que Crandall pretendesse dizer se perdeu no instante em que o punho de Nicholas o atingiu em cheio no queixo, derrubando-o ao solo.

Uma mulher gritou. Crandall se ergueu, cambaleante, atirando-se sobre Nicholas, que se desviou com precisão e o atacante se projetou para o vácuo. Em seguida, o Lorde o pegou pelo braço, sacudindo-o. Crandall tentou desferir um soco, mas errou outra vez. Nicholas deu-lhe um soco no estômago e arremessou o joelho contra mandíbula do oponente. Crandall tombou com um baque surdo.

— Nicholas! — gritou Juliana, segurando o marido pelo braço. — Por favor, não! — A face de Nicholas se encontrava rubra de raiva e os punhos cerrados. Esperou em posição alerta, fitando o corpo inerte no chão. Crandall soltou uma imprecação, rolando para o lado e se esforçando para se erguer. — Nicholas — chamou Juliana outra vez, com urgência na voz. — Por favor, não estrague o dia de nosso casamento.

Ele baixou o olhar para a esposa e Juliana pôde perceber os músculos tensos do braço dele relaxarem.

— Desculpe, minha querida — E dirigindo o olhar outra vez ao primo. — Suba e vá dormir.

Os lábios de Crandall se encresparam. O olhar desafiador prejudicado pelo hematoma na face e o veio de sangue que lhe escorria dos lábios.

— Vou matar você!

— Em seu lugar eu não tentaria — retrucou Nicholas em tom calmo.

— Não seja tolo, Crandall — interveio Peter Hakebourne, abrindo caminho entre os presentes e segurando o amigo pelo ombro. — Venha.

Ele o puxou pelo braço e, depois de alguns instantes de hesitação, Crandall o seguiu, cambaleante. Os demais convidados se afastaram para deixá-los passar e em seguida voltaram-se uns para os outros, comentando a cena que haviam acabado de testemunhar. Juliana pensou, com um suspiro resignado, que seu casamento produziria lenha para manter acesa a chama dos mexericos durante semanas.

— Desculpe-me. Acho que arruinei a celebração — escusou-se Nicholas, em tom metálico.

— Não tem importância — assegurou ela, erguendo o olhar para o marido. Nicholas parecia distante, como se de repente tivesse se transformado em um estranho. Com uma pontada de medo a lhe espetar a alma, Juliana imaginou se ele não teria acreditado nas palavras do primo.

— Nicholas! — chamou ela, lançando-lhe um olhar aflito. — Não pode acreditar que Crandall...

— O quê? Claro que não. — A expressão do rosto másculo se mostrou ainda mais rígida, se é que era possível. — Aquele homem é um mentiroso. Sempre o foi. Mas... sinto muito que tenha sido obrigada a presenciar a briga.

Fazia anos, pensou Nicholas, que não se envolvia em uma luta. Deus sabia, que em sua adolescência, as brigas eram ocorrências corriqueiras, originadas de um manancial de ira que, contida em seu íntimo, explodia à menor provocação ou desafio. Aquele fora, na verdade, o único modo que conhecera de sobrevivência. Rebeldia e agressão haviam sido seu lema.

Levara anos para controlar aquele lado de sua personalidade. Pensara ter dominado a natureza brutal que sabia possuir e o surpreendeu, até mesmo perturbou-o, descobrir que ela aflorara com tanta facilidade. Detestava que Juliana o tivesse visto daquela maneira. Saber que a faceta animalesca ainda pulsava dentro dele, rosnando e sempre pronta a ganhar vida. Era difícil encará-la, quanto mais perceber o medo estampado na face delicada.

Sentiu-se aliviado quando Seraphina se encaminhou em direção aos dois, colocando uma das mãos no braço dele e outra no de Juliana. Em seguida, exibiu um sorriso jovial como se os últimos minutos não tivessem acontecido.

— Chegou a hora, não acham? Que ambos têm esperado impacientemente, desejando mandar todos nós para o inferno. Risadas se fizeram ouvir atrás da prima de Nicholas. Juliana lhe lançou um olhar agradecido. Ela estava tentando distrair a atenção de todos para a partida dos noivos.

— Não esperaria um segundo se fosse você, meu jovem — brincou um general aposentado que vivia no vilarejo.

— Oh, por certo não, general — concordou a esposa do cavalheiro, uma mulher alta que era uma das companheiras de equitação de Lilith. Era difícil imaginar a amizade entre a extrovertida mulher e a puritana tia de Nicholas. Porém, há muito, Juliana aprendera que a paixão por cavalos proporcionava as mais exóticas ligações.

A face de Juliana se tornou rubra ante o comentário ousado da mulher.

— Oh, Sra. Cargill, a senhora fez a noiva corar — brincou Seraphina. — Venham, está na hora de partirem.

Juliana sentiu-se aliviada por escapar do salão de baile e da presença dos convidados, embora o coração batesse descompassado ante a visão do futuro iminente. O casal permitiu que Seraphina os guiasse para fora do salão, despedindo-se e recebendo os votos de felicidades de todos.

Subiram a escada, deixando os convidados a fitá-los. A mão de Juliana se encontrava pousada sobre o braço de Nicholas. Os músculos pareciam sólidos como ferro sob o tecido do paletó. Em seu interior se mesclavam uma miríade de sensações — excitação, ansiedade e indecisão sobre o que desejava que acontecesse. Chegara o momento crucial.

Nicholas abriu a porta do quarto de Juliana e a guiou para dentro, seguindo-a. Não conseguia encará-lo por temer que o semblante traísse o que estava sentindo. Desejava-o. Ansiava que o marido a tomasse nos braços e lhe enchesse a face de beijos. Queria ser a esposa de Nicholas no sentido literal da palavra. Porém não estava certa do que ele queria, e por aquele motivo, sentia-se temerosa.

Lançou um olhar de soslaio à cama e o desviou de pronto. Parecia que tudo naquele aposento lhe lembrava das possibilidades que se vislumbravam a seguir.

Atrás dela, Nicholas clareou a garganta. Voltou-se para fitá-lo.

O que viu não a encorajou. Tampouco serviu para atenuar-lhe os receios. Aquele homem parecia ter se transformado em um estranho. A face impenetrável. Os olhos negros, que se alternavam entre calorosos, divertidos ou predadores, não transpareciam qualquer emoção.

Ele deslizou o olhar pelo aposento, cruzando as mãos atrás das costas. Parecia, pensou Juliana, um professor, decidindo o castigo que iria impingir ao aluno. Tentou desesperada encontrar algo para dizer, que os trouxesse de volta à cumplicidade habitual. O que primeiro lhe veio à mente foi Crandall e a cena que ocorrera instantes atrás, porém aquilo não os relaxaria.

— Foi uma bela cerimônia — comentou Juliana, por fim.

— Sim. E o jantar estava... delicioso.

Nicholas a fitou, sentindo-se tolo e tenso. Juliana era bela e ele a desejava com toda força de seu ser. Pensara desesperadamente em algum modo de tomá-la nos braços e fazer amor com ela sem quebrar a promessa que fizera, mas aquilo era impossível. A sedução seria uma forma mais gentil do que exigir os direitos conjugais, mas estaria fazendo o que jurara não fazer do mesmo

modo.

Havia piorado as coisas lhe mostrando o quão bruto poderia se tornar. Embora soubesse que Juliana não devotava nenhuma simpatia a Crandall, por certo não a agradara ver a festa de casamento ser estragada por uma briga violenta — e sendo o marido um dos envolvidos! Devia ter sentido repulsa por seu comportamento. Não poderia dar-lhe certeza de sua natureza animalesca, levando-a para a cama e quebrando a promessa que fizera. Não suportaria que Juliana expressasse desilusão ou desapontamento em relação a ele.

— Bem... hã... — Nicholas fez um gesto em direção à porta que conectava os quartos. — Vou para meu quarto agora. Desejo-lhe uma boa noite.

Juliana anuiu, entorpecida. Sentia um certo alívio em não ter que decidir se dormiria ou não com Nicholas, porém percebeu que o primeiro sentimento foi de decepção. Teria se enganado quanto aos sinais de desejo e luxúria que identificara no marido? Ele sequer queria levá-la para a cama? Fora tão tola a ponto de se preocupar em como iria reagir quando a beijasse?

— Sim, claro. Boa noite — respondeu ela, sentindo um aperto na garganta.

Observou-o se encaminhar à porta e escancará-la. Com um aceno de cabeça, Nicholas entrou no próprio quarto, fechando a porta. Naquele momento, Juliana se deixou afundar na cadeira a seu lado.

Então aquilo era tudo, concluiu ela, com os olhos marejados de lágrimas. Aquela seria sua vida de casada — Nicholas distanciado e alheio a ela. Teria de se contentar com a amizade entre ambos, sem esperar o amor e proximidade de um verdadeiro casamento. Ele lhe prometera filhos se aquela fosse sua vontade, mas Juliana sabia que nunca lhe faria tal exigência. Não suportaria tê-lo daquela forma fria e sem amor. Em breve, Nicholas procuraria prazer em outro lugar e só lhe restaria a velhice e a solidão, sem filhos e sem conhecer a paixão carnal.

De repente, parecia-lhe que, a despeito do conforto e segurança que tinha através do casamento, fizera uma péssima barganha.

Desamparada, ergueu-se e tocou a campainha para chamar a criada. O elegante vestido de seda que usara Como traje de casamento, possuía uma carreira de pequenos botões na parte traseira, que tornava impossível a tarefa de removê-lo sozinha. Se fosse uma noiva como as outras, o marido teria se encarregado daquela função com todo o prazer.

Célia adentrou o aposento alguns minutos depois, sorrindo. Solícita, começou a desabotoar o traje delicado repleto de laços e fitas. Conversava excitada, enquanto auxiliava Juliana a se livrar do vestido.

— Oh, Srta.... devo dizer, milady. Não está nervosa? Oh, o Lorde é um homem tão belo. Alto e forte...

Juliana lhe devolveu um sorriso superficial. Os comentários da jovem estavam lhe dando nos nervos. Estava cônscia dos ruídos que vinham do quarto contíguo. Imaginou o que ele estaria fazendo. Talvez estivesse se despindo também. A visão dos dedos longos e ágeis desabotoando a camisa se formou em sua mente. O modo como ele retiraria a camisa, passando a mãos pelos cabelos que sempre lhe caíam na testa. Juliana sentiu os dedos se encresparem, ansiando tocar a mecha dos cabelos negros. Sabia como deslizariam por sua pele e conhecia o olhar agradável que ele lhe lançaria de soslaio.

Recriminou a si mesma por pensar daquela forma. Tinha de aceitar a vida como ela se mostrava. Seria aquilo de fato o que o futuro lhe reservava? O simples pensamento parecia por demais doloroso.

Ela se sentou, permitindo à criada retirar os prende-dores dos cabelos e escová-los. Bloqueou da mente a tagarelice da jovem e observou o próprio reflexo no espelho. Não seria bela o suficiente?, imaginou. Seriam seus cabelos castanhos muito lisos, espessos e comuns? Ou a face sem graça, com as sobrancelhas muito retas, nariz e lábios graciosos, porém não deslumbrantes? Se possuísse as maçãs do rosto salientes, os olhos grandes e a boca carnuda de Eleanor, Nicholas se sentiria mais atraído por ela? Teria ficado em seu quarto?

Obrigou-se a interromper aquela linha de pensamento. Nicholas prometera manter o casamento de ambos em nível platônico porque desejava apenas ajudá-la. Pensava em seu bem-estar e que aquela união fosse suportável para ela. Era ignominioso de sua parte interpretar a generosidade e delicadeza de Nicholas como repulsa.

Ainda assim, uma pontada mesquinha de dúvida lhe assombrava a mente — se ele a desejasse de verdade, não teria sido tão fácil afastar-se.

A criada deu um passo atrás, fitando-a de cima a baixo.

— Está deslumbrante, milady. O Lorde será um homem afortunado esta noite.

Em seguida, soltou uma risadinha pela própria audácia e, curvando-se em leve mesura, precipitou-se em direção à porta. Juliana se voltou e examinou o aposento, sem saber o que faria. Não se sentia inclinada a dormir.

Ajustando a faixa do penhoar à cintura, caminhou até a mesa onde se encontrava o livro que estivera lendo nos últimos dias. Sentou-se e o abriu, porém o largou sobre o colo, inclinando a cabeça para trás e fitando a parede oposta.

Ouviu passos no quarto de Nicholas e por instantes seu coração disparou ante a possibilidade de ele estar se encaminhando à conexão entre os quartos. Porém os passos se afastaram e, no momento seguinte, escutou a porta do aposento de Nicholas que dava para o corredor bater. Ele havia saído.

Juliana escutou as passadas do marido abafadas pelo carpete do corredor com os olhos marejados de lágrimas.

Empertigando-se, forçou-se a voltar a atenção à leitura. Tentou se concentrar nas frases escritas, sem obter êxito. Ouvia pessoas caminharem pelo corredor de vez em quando e ansiou escutar a porta do quarto do marido se abrir e fechar outra vez.

Passado algum tempo, ouviu o som pelo qual estava esperando. Apurou os ouvidos, tentando identificar os ruídos, enquanto ele se movia pelo aposento, dizendo a si mesma que estava fazendo papel de tola.

Com um profundo suspiro, ergueu-se e dirigiu-se à cama, desatando o penhoar e o deixando escorregar pelos ombros. Em seguida, o atirou na extremidade da cama e deslizou para dentro das cobertas.

De repente, a porta que conectava os quartos se abriu com um estalido que a fez dar um salto. Girou para encontrar Nicholas parado à entrada de seu quarto. O coração de Juliana pareceu querer saltar pela garganta, onde sua voz ficara presa. Portanto, limitou-se a encará-lo.

Não havia como duvidar do desejo estampado no rosto de Nicholas — o formato sensual dos lábios carnudos, o olhar predador e enigmático. Com algumas passadas, ele atravessou o quarto e quando a alcançou, segurou-lhe os braços puxando-a para si. Juliana podia sentir o hálito de conhaque e imaginou que ele estivera no andar térreo, talvez trancado em seu escritório, bebendo. Os olhos negros a fitavam, penetrantes, e os dedos longos lhe apertavam o braço, fazendo-a sentir-se um tanto amedrontada, porém ainda mais excitada.

— Não consigo parar de pensar em você — murmurou ele. — Fico imaginando-a aqui, tão próxima de mim, dormindo nesta cama, e não sou capaz de conciliar o sono. Minha mente não consegue se concentrar em outra coisa que não você.

— Nicholas... — suspirou Juliana, derretendo ante aquelas palavras.

— Não quero um casamento inanimado. Desejo-a em minha cama.

Com um único e preciso movimento, Nicholas a puxou contra a parede sólida do próprio peito e tomou-lhe os lábios, possessivo. As mãos fortes se enterraram na massa de cabelos sedosos, as pontas dos dedos lhe pressionando o couro cabeludo, mantendo-lhe a cabeça inerte, enquanto os lábios famintos a devoravam.

Juliana deslizou os braços em torno do pescoço largo, erguendo-se nas pontas dos pés, moldando o corpo ao dele. Um desejo avassalador a engolfou, fazendo-a pressionar os quadris contra a rigidez dos de Nicholas. A boca, ávida, correspondendo com igual intensidade. Sentia os seios inchados e pulsantes, ansiando pelo toque masculino, o que a fez roçá-los contra o peito musculoso. Apenas o fino tecido da camisola e da camisa de Nicholas separavam a pele de ambos. Quando Juliana se moveu, os mamilos enrijeceram de pronto ante a fricção abrasiva. Recordou os dedos de Nicholas a acariciá-los, o que só fez aumentar o desejo que sentia.

As mãos delicadas procuraram, aflitas, os botões da camisa de Nicholas, porém o tremor quase a impedia de executar a tarefa. Ele a afastou um pouco para lhe segurar a camisola e em seguida a escorregou pela cabeça de Juliana, deixando-a nua. Surpresa, ela se descobriu despudorada e tomada por uma onda avassaladora de calor. Deleitava-se com o fogo que emanava do olhar de Nicholas ao fitá-la despida.

Ele arrancou a camisa, deslizando-a apressadamente pelos ombros e soltando uma imprecação quando a peça de roupa se prendeu em seus punhos pelas abotoaduras. Deixou-a pender dos braços, tão ávido se encontrava por tocá-la. As mãos fortes lhe cingiram a cintura, puxando-a um pouco mais para a frente e inclinando a cabeça em direção aos seios fartos. Beijou-lhes a superfície, deslizando pela extensão alva e macia. Os lábios macios possuíam a textura de veludo contra a pele de Juliana, enviando fagulhas elétricas por todo o corpo, quando lhe tomaram os mamilos rijos, fazendo-a soltar um gemido de prazer.

Nada a preparara para aquilo — o calor, o tinir do excitamento, a avidez que a engolfava, exigindo alívio, enquanto o próprio corpo ansiava por prolongar aquelas sensações para sempre. A língua quente e experiente traçava o contorno do mamilo, fazendo-o ainda mais rígido e extremamente sensível e quando os lábios de Nicholas rumaram para o outro seio, o toque do ar frio na pele úmida do seio a excitou ainda mais.

A umidade crescia entre as pernas de Juliana, onde parecia o centro da conflagração que a consumia. As mãos másculas deslizaram pela cintura delgada, descendo para se espalmarem nas nádegas torneadas. As pontas dos dedos longos se cravando em sua pele e a puxando contra a excitação do corpo masculino, enquanto os lábios carnudos cobriam um dos mamilos, sugando-o e estimulando-o com o movimento da língua.

Juliana gemeu, perdida no próprio desejo. As mãos delicadas se enterraram nos cabelos negros e sedosos, apertando-se contra a nuca larga. Suspirando, pronunciou o nome de Nicholas, sentindo-se imergir em um mar de paixão.

E então, em algum ponto da casa, uma mulher soltou um grito horripilante.

 

Nicholas e Juliana pareceram congelar. Ele ergueu a cabeça e a fitou, estupefato, enquanto o grito se perpetuava, antes de soltá-la e se precipitar em direção à porta. No caminho, puxou a camisa pelos ombros e a abotoou. Juliana se abaixou, pegando a camisola e a jogou por cima da cabeça, sem perceber que a vestira ao avesso. Nicholas disparou pelo corredor e ela, após pegar o penhoar e vesti-lo, seguiu-o, apressada.

Ao longo do corredor, portas se escancaravam e as pessoas apareciam, assustadas, questionando o que teria acontecido. Nicholas desceu os degraus da escada de dois em dois, com Juliana em seu encalço, e todos os demais seguindo-os. No andar térreo, agrupados no corredor principal, estavam alguns criados e outros tantos correndo naquela direção, vindos da parte posterior da casa.

O mordomo estava segurando uma das serventes pelo braço, enquanto a mulher urrava histérica e outras duas criadas os fitavam com os olhos arregalados de pavor.

— O que foi? O que aconteceu? — inquiriu Nicholas. Rundell se voltou para ele com expressão de alívio.

— Milorde! Mary Louise encontrou... aconteceu uma tragédia!

 

— O quê?

Como resposta, o mordomo o guiou pelo corredor até uma das pequenas salas de recepção em direção aos fundos da casa. Juliana os seguiu, liderando o grupo de criados.

O aposento era ricamente apainelado em nogueira e bastante escuro. Uma lamparina a querosene postada em uma das mesas, provia um círculo de luz à volta. O sofá se encontrava voltado para a lareira e o espaço atrás dele levava às janelas que davam vista para o jardim.

Lá, Crandall jazia ao solo com a cabeça virada para baixo e os cabelos empapados de sangue.

Juliana prendeu a respiração e Nicholas deixou escapar um xingamento. Em seguida virou para trás, tentando deter o avanço dos demais, mas era tarde. Lilith se encontrava parada atrás deles, fitando a forma inanimada esparramada ao chão. A face lívida e os olhos sombrios.

— Crandall... — sussurrou ela, voltando o olhar para Nicholas. — O que aconteceu? Ele está...

— Juliana... — chamou ele e a esposa acorreu de imediato a Lilith, tomando-lhe o braço e guiando-a para fora da sala.

O estado de choque em que se encontrava a mulher permitiu que deixasse se levar sem resistência. Seraphina se encontrava parada atrás do marido e Winifred surgiu à retaguarda deles. Juliana levou Lilith ao encontro das outras duas mulheres.

— Seraphina — começou ela. — Por que você e Winifred não levam sua mãe para a sala de visitas?

— O que aconteceu? — indagou Seraphina, parecendo assustada.

— Por quê? O que há ali? — quis saber Winifred, com expressão confusa. — Ela falou o nome de Crandall?

Crandall foi ferido.

— O quê? — inquiriu Winifred dando um passo à frente, mas Juliana impediu-lhe a passagem.

— Não entre aí. Não gostará do que irá ver.

— Ver o quê? — A esposa de Crandall parecia cada vez mais assustada. — O que aconteceu com ele?

— Não sei — retrucou Juliana. — Nicholas nos dirá. Neste momento, não sabemos nada. — Olhou ao redor, avistando o grupo de serviçais, e gesticulou para sua criada pessoal. Célia, ao menos, tendo trabalhado para Eleanor, não cederia tão facilmente à histeria. — Poderia cuidar das damas? Traga-lhes um cálice de conhaque.

Célia anuiu e, sem fazer perguntas, obedeceu. No momento em que as mulheres partiram, Juliana girou, passando por Peter Hakebourne e Sir Herbert.

Nicholas se encontrava ajoelhado ao lado do primo e se ergueu quando Juliana adentrou o aposento.

— Está morto.

— O que aconteceu? — indagou Sir Herbert.

— Parece que alguém o golpeou na cabeça pelas costas. O atiçador da lareira está ao lado dele e manchado de sangue.

— Deus do céu! — Sir Herbert parecia chocado.

O Sr. Hakebourne piscou várias vezes, e lançou um olhar nervoso ao corpo estirado ao chão.

— O que vai fazer?

— Chamar o magistrado, suponho. O juiz Carstairs compareceu ao casamento. — Nicholas voltou-se para o mordomo, que aguardava por perto. — Rundell, mande um dos criados à casa dele.                          

— Sim, milorde.

— Mas antes diga-me o que sabe sobre o que aconteceu.

— Muito pouco — replicou o mordomo. Embora se expressasse em tom calmo, Juliana percebeu que o homem parecia mais pálido do que o usual. — Havíamos acabado a limpeza da casa e estávamos nos preparando para dormir. Uma das criadas percebeu luz no aposento e veio até aqui apagá-la. Foi quando encontrou o Sr. Crandall...

— Aquela que gritou?

— Sim, milorde.

— Viu alguém entrar ou sair desta sala? Rundell meneou a cabeça em negativa.

— Não. O aposento sequer foi utilizado esta noite. Todos os convidados ficaram no salão de baile principal e, claro, havia os convidados na parte exterior da casa. Qualquer pessoa poderia ter entrado aqui, mas não vi ninguém fazê-lo.

— Incluindo Crandall?

— Não. Sim. Quero dizer, não o vi também.

— Quando foi a última vez que o viu? — questionou Nicholas.

— Não estou certo, milorde. Estávamos muito ocupados, saindo e entrando da casa.

Nicholas se voltou para os outros dois cavalheiros.

— Sir Herbert? Sr. Hakebourne?

O marido de Seraphina se moveu, apreensivo.

— Bem, suponho que tenha sido quando ele, hã... quando da altercação entre vocês dois. Ele deixou o salão logo depois.

— Eu o levei para fora do salão — interveio Hakebourke. — Nos dirigimos ao andar de cima até o quarto dele.

Crandall iria lavar o rosto. Sugeri que se deitasse e dormisse, mas... — O homem deu de ombros. — Não sei se seguiu meu conselho. Voltei à festa e não mais o vi.

— Quero falar com todos os criados — comunicou Nicholas ao mordomo. — Reúna-os todos na cozinha depois de mandar um deles chamar o magistrado.

— Pois não, milorde. — Rundell se curvou em uma mesura e deixou o aposento.

Os cavalheiros trocaram um olhar significativo. Juliana podia quase adivinhar o que ia na mente de ambos. Crandall e Nicholas se odiavam. Haviam se agredido, verbal e fisicamente, naquela mesma noite. Quem teria motivos para golpeá-lo com o atiçador senão o próprio Lorde Barre?

A ansiedade a consumia por dentro. Não fora Nicholas. Não podia ser. Ele havia subido com ela e estavam juntos quando ouviram o grito. Mas, quem poderia dizer por quanto tempo Crandall estivera estirado ali antes de a criada o encontrar? Poderia ter acontecido muito antes de... até mesmo durante o tempo em que Nicholas deixara o próprio quarto. Não obstante a certeza que tinha na inocência do marido, não poderia prová-la.

Os homens voltaram mais uma vez o olhar para Crandall. Juliana fez o mesmo e um arrepio gélido lhe percorreu a espinha. Sempre detestara Crandall — não conseguia se recordar de um único momento em que lhe devotara um pensamento amigável -, mas era terrível vê-lo deitado ali, inanimado e ensangüentado. Aquela fora uma morte horrível.

Nicholas cruzou o aposento em direção à pequena mesa e ergueu a lamparina, trazendo-a até o corpo. Os três homens se agacharam, fitando a forma sem vida. O sangue que brotara da nuca brilhava escuro e úmido.

Juliana sentiu o estômago revirar e, de imediato, desviou o olhar. Quando o fez, avistou algo que brilhava. Deu um passo à frente, aproximando-se da parede e deslizou o olhar pelo chão, em torno do conjunto de estantes. A princípio nada viu, mas então Nicholas moveu a lamparina mais uma vez e o reflexo da luz captou algo pequeno e brilhante.

Ela se inclinou, avistando um pequeno pedaço de vidro. Segurou-o entre os dedos. Era vermelho e, com a proximidade, percebeu que não se tratava de um vidro, como pensara, mas de uma jóia. Um rubi.

Juliana entreabriu os lábios para anunciar o que havia descoberto, mas mudou de idéia, lançando um olhar aos homens presentes. Nenhum deles a estava observando. Sem dizer uma palavra, guardou a gema no bolso do penhoar. O rubi poderia ter se despregado da jóia de alguém, mas também poderia ter caído de algo que estivesse em poder do assassino. Talvez constituísse uma pista que levasse à pessoa que matara Crandall e, se fosse esse o caso, não queria que ninguém soubesse que o havia achado. Desde que o assassino não se desse conta de que perdera a gema, não se desfaria de qualquer jóia de onde ela tivesse se despregado.

Era possível que Hakebourne ou Sir Herbert fossem Culpados. Juliana sabia o quanto o marido de Seraphina detestava o cunhado e testemunhara o Sr. Hakebourne discutindo acaloradamente com Crandall naquela noite. Mesmo que nenhum dos dois fosse o assassino, poderiam comentar com alguém que ela encontrara a gema e a notícia se espalharia por toda casa.

Nicholas ergueu-se e levou a lamparina de volta à mesa e os dois homens se afastaram do corpo. Juliana percebeu que Hakeborne franziu o cenho, fitando seu marido, mas nada disse.

Deixaram a sala, fechando a porta atrás deles, e Nicholas postou um dos criados de libré em frente ao aposento, instruindo-o a não deixar ninguém entrar até a chegada dos policiais. Em seguida, dirigiu-se à cozinha para conversar com os empregados que se encontravam lá reunidos, enquanto Juliana saia à procura das outras mulheres. Encontrou-as na sala de estar. Célia havia acendido a lareira e o aposento se encontrava aquecido. Lilith, no entanto, estava sentada perto do fogo, um xale envolvendo-lhe os ombros.

A mãe de Crandall tinha a aparência desfigurada. A face parecia acinzentada e os olhos duas poças de desespero. Juliana foi tomada de piedade pela mulher. Entre todas as pessoas daquela casa, Lilith era a única que de fato lamentaria a morte de Crandall. Embora demonstrasse desaprovação ao modo do filho agir, em seu coração de mãe nunca o vira como ele realmente era, mas como o bondoso e honesto filho que criara em sua mente. Ela era responsável por uma boa parte dos desvios de caráter de Crandall, pensou Juliana, por tê-lo mimado e lhe incutido arrogância, nunca acreditando em nenhuma verdade que ouvia sobre ele e aceitando a versão distorcida que o filho lhe apresentava. Mas ninguém podia negar que Lilith amava Crandall e que deveria estar devastada com sua morte.

Seraphina, que se encontrava bem distante da lareira, ocupava o mesmo sofá que Winifred e, abanando-se, ergueu o olhar quando Juliana entrou na sala de estar e lhe dirigiu um sorriso abatido. Em seguida, voltou o olhar para a mãe, que fitava o fogo como se alheia ao mundo ao redor. Juliana seguiu-lhe o olhar. Não sabia ao certo o que fazer. Confortar Lilith era algo que nunca pensara fazer na vida.

Ainda assim, atravessou o aposento e acomodou-se em uma cadeira diante de Lilith, esforçando-se para ignorar o calor que emanava da lareira.

— Tia Lilith...

A mulher lhe devolveu um olhar vago, como se não a reconhecesse.

— Sinto muito. — Juliana se limitou a dizer. Lilith continuou a encará-la, silente.

— Talvez fosse melhor se recolher a seu quarto e descansar.

— Não conseguiria dormir — replicou a senhora.

— Posso pedir que lhe preparem uma xícara de leite quente.

— Não quero dormir — afirmou Lilith.

Juliana não conseguia se lembrar de nada mais que pudesse sugerir. Porém não poderia abandonar a mãe sofredora. Sendo assim, permaneceu sentada como a filha e a nora, sem dizer mais nada.

Passado algum tempo, Sir Herbert e o Sr. Hakebourne adentraram a sala de estar. Parecia que ninguém conseguira se recolher, porém eles também não tinham nada a fazer. Mais tarde, ouviram o som de vozes estranhas no corredor e Juliana concluiu que o magistrado havia chegado. A suposição se confirmou quando o juiz Carstairs entrou, executando uma profunda mesura diante de Lilith, e depois para as outras.

— Um episódio lamentável — comentou ele.

Juiz Carstairs. — Lilith ergueu-se e caminhou em direção ao magistrado. — O que descobriu?

O homem parecia um tanto agitado em ter de encarar a mãe do homem assassinado.

— Bem... hã... o Sr. Barre... a senhora deveria estar recolhida. Esse não é um assunto agradável aos ouvidos de uma dama.

— Ele era meu filho — replicou, Lilith com dignidade. — Tenho o direito de saber.

— Bem... um... certamente. Parece-me um homicídio acidental — declarou o magistrado. — Claro que não podemos afirmar até a visita do médico legista, mas acho que ele não discordará de mim.

— Sim, mas quem o matou? — indagou Seraphina, com as mãos espalmadas no vestido. — Tem idéia de quem poderia... — O magistrado começou a menear a cabeça, mas a mãe de Crandall continuou sem lhe dar tempo de responder. — É óbvio, não acha? Quem odiava meu filho a esse ponto? Quem o agrediu esta noite na pista de dança?

O juiz parecia desconfortável. Fora um dos convidados do casamento e, como os demais presentes, testemunhou a briga entre Nicholas e Crandall.

— Bem, isso não significa que Lorde Barre tenha algo a ver com...

— Ele não poderia ter — afirmou Juliana. — Esteve comigo o tempo todo depois da briga.

— Bem, aí está — começou o juiz Carstairs, parecendo aliviado. — Lorde Barre tem um álibi. Disse durante toda a noite?

— Era nossa noite de núpcias — retrucou Juliana, resoluta.

— Claro... óbvio — concordou o magistrado, mostrando-se mais embaraçado do que Juliana ao tocar no assunto. Em seguida, voltou para Lilith. — O médico-legista empreenderá uma investigação detalhada, Sra. Barre. A morte de seu filho não ficará impune.

Lilith fitou o juiz por um longo instante e em seguida voltou o olhar para Juliana.

— Acho que vou me recolher agora. Damas, sugiro que deixem os cavalheiros fazerem seu trabalho.

Juliana não se sentia disposta a acompanhá-la, mas quando Lilith estendeu a mão à procura de seu braço, não pôde se furtar a acompanhá-la. As mulheres se encaminharam ao andar superior, em silêncio. Juliana, concluiu que, assim como ela, encontravam-se por demais chocadas pelos acontecimentos da noite para pensarem claramente.

Uma vez em seu quarto, Juliana deslizou a mão para o bolso do penhoar e retirou de lá o rubi. Dirigindo-se à lamparina do toucador, inclinou-se e examinou a gema contra o reflexo da luz. Não poderia dizer se o tinha visto antes e por fim o guardou na parte superior de sua caixa de jóias. Retirou o penhoar e o colocou de lado, lançando um olhar à cama. Não conseguiu evitar recordar o que ela e Nicholas estavam fazendo ali quando foram interrompidos pelo grito. Baixou o olhar para a própria roupa e só então percebeu que havia vestido a camisola ao avesso. A frente da peça ficara à mostra no decote do penhoar, o que deixava óbvio que a vestira às pressas e todos deviam ter deduzido a razão. Um rubor intenso aflorou-lhe à face

Ao menos, pensou enquanto deslizava para baixo das cobertas, sua aparência teria emprestado veracidade à versão que contara ao magistrado sobre o paradeiro de Nicholas na hora do crime.

Virando para o lado, tentou concatenar os pensamentos, mas descobriu-se por demais dispersa. Não conseguia se fixar em nada por mais de um minuto.

Por fim, ouviu o som de passos subindo a escada. Deveriam pertencer aos cavalheiros, pensou, ao perceber que nenhum adentrou o aposento contíguo. Continuou aguardando, incapaz de pegar no sono.

Mas a próxima coisa que percebeu foi a manhã.

 

O sol havia penetrado por uma fenda entre o drapejado, e o reflexo da luz que lhe incidia nos olhos a acordou. Juliana sentou-se, sonolenta. Não dormira por muito tempo, mas sabia que seria incapaz de conciliar o sono outra vez. Dobrou os joelhos e apoiou a face sobre eles, deixando escapar um gemido.

Gostaria de pensar que os eventos da noite anterior não haviam passado de um pesadelo, mas sabia que não era verdade. Crandall estava morto e alguém o assassinara. Lilith obviamente acreditava — ou queria acreditar — que fora Nicholas.

O fato de ele e Crandall terem discutido tão abertamente em público pesava contra o marido. E embora lhe tivesse fornecido um álibi, a palavra de uma esposa constituía uma prova frágil. Era imperativo que ela e Nicholas descobrissem o assassino.

Levantou-se e lavou o rosto na bacia de porcelana. Em seguida tirou do armário um vestido matinal que não necessitava de ajuda para vestir. Não queria solicitar Célia àquela hora da manhã. Após calçar os sapatos, colocou o rubi no bolso num gesto impulsivo e encaminhou se ao andar térreo.

Nicholas era o único à mesa do café-da-manhã. Ergueu o olhar quando Juliana entrou e, com um sorriso cansado, levantou-se e puxou a cadeira para que ela sentasse.

— Não conseguiu dormir também?

— Acordei cedo — replicou Juliana. — Eu... tive um sono agitado.

— O que não é de admirar.

Quando se sentou, uma das criadas, chamada Annie, adiantou-se para lhe servir o chá. Juliana percebeu um tremor intenso nas mãos da serviçal, o que fez o bico do bule de chá bater contra a xícara. E quando ergueu o olhar para fitar a face de Annie, percebeu a palidez e a expressão assustada nos olhos dela.

— Annie, você está bem? — indagou, preocupada

A criada engoliu em seco e voltou o olhar para o criado de libré que servia os ovos a Nicholas.

— Sim, milady.

A jovem parecia tão nervosa que Juliana resolveu não pressioná-la. Sequer seria necessário. Não era de se estranhar que alguém estivesse amedrontado em uma casa em que ocorrera um assassinato.

Annie serviu o chá a Nicholas também e colocou o bule no aparador. Em seguida, pegou um prato com iguarias de café-da-manhã e o trouxe para a mesa, com as costas voltadas para a porta. Naquele instante, o mordomo entrou no aposento da maneira silenciosa como sempre fazia, dirigindo-se ao aparador por trás de Annie. Quando a criada se virou, quase colidiu com ele e soltou um grito, deixando cair o prato que trazia nas mãos.

— Menina avoada! — exclamou Rundell. — Volte para a cozinha. Neste instante!

— Des... Desculpe-me, senhor — desculpou-se a criada, girando nos calcanhares e disparando pela porta em prantos.

O criado de libré apressou-se em limpar os cacos e o mordomo se voltou aos patrões.

— Peço-lhe desculpas, milorde. — E dirigindo-se a Juliana. — Milady. Temo que a criada esteja um tanto assustada.

— É compreensível — replicou Nicholas de pronto. -Não se preocupe com isso.

— Vou providenciar outro prato imediatamente.

A sujeira foi removida em apenas alguns segundos e o mordomo deixou a sala, retornando pouco depois com outro prato repleto de petiscos. Em seguida dispensou o criado de libré e incumbiu-se de terminar de servir o café-da-manhã sozinho.

Nicholas não demorou a dispensá-lo também, orientando-o a acalmar os demais serviçais que por certo estariam agitados. Rundell executou uma mesura e deixou o aposento, fechando a porta atrás de si.

Nicholas deixou escapar um profundo suspiro, pousando a faca e o garfo.

— Estou sem apetite esta manhã.

— Ficou acordado até tarde tratando do...? — Juliana se interrompeu, incapaz de atinar em uma maneira delicada de expressar seu pensamento.

— Corpo? — completou Nicholas, de modo direto. -Sim. Fiquei acordado até que eles partissem. E certifiquei-me de trancar a porta pessoalmente para evitar que alguém entrasse lá. — E, fazendo uma careta: — Claro que sou o principal suspeito.

— Nicholas... não.

Ele a fitou por alguns instantes.

— Não contou a verdade ao magistrado sobre ontem à noite. Disse que eu estive com você a noite toda depois que deixamos o salão de baile. Porém passou-se uma hora durante a qual ficamos separados.

— Eu sei — retrucou Juliana em tom calmo. — Ouvi quando saiu de seu quarto.

E por que não lhe contou isso?

— Sei que não matou Crandall. E não poderia deixar que Lilith afirmasse que o fez.

— Crê demais em mim. Fiz muitas coisas desprezíveis em minha vida e odiava Crandall. Como pode ter tanta certeza que não o golpeei na cabeça?

— Eu o conheço — afirmou ela, de maneira direta. -Imagino que não tenha vivido de modo exemplar. Talvez tenha feito coisas que não eram exatamente... lícitas. Mas sei que não é um covarde. Se tivesse matado Crandall, seria por uma séria razão e no calor da raiva, em luta face a face, como ontem na pista de dança. Jamais o atacaria daquela forma sorrateira e covarde, atingindo-o pelas costas com um atiçador. — Em um gesto impulsivo, ela esticou o braço e tomou nas suas as mãos do marido, fitando-o diretamente nos olhos. — Estou enganada?

Nicholas a encarou por um longo instante e ela percebeu uma discreta mudança na expressão dele. Um relaxamento e afetuosidade, enquanto os dedos longos se enrascavam nos dela. Em seguida, levou a mão delicada aos lábios.

— Sou grato por ter me dado a honra de ter se tornado minha esposa — declarou.

Juliana sorriu, enlevada.

— Não mais que eu.

— Tem razão, claro — concordou Nicholas, soltando-lhe a mão e se reclinando na cadeira. — Não matei Crandall. Tampouco sou o maior suspeito do magistrado, o juiz Carstairs está inclinado a culpar Farrow.

— O ferreiro? Nicholas anuiu.

— O homem tinha muito rancor em relação a Crandall. Surrou-o semana passada e teve oportunidade. Afinal, era um dos convidados.

— Mas isso é algo muito remoto. Por que o mataria tanto tempo depois e não quando o descobriu assediando a esposa?

— Não sei. Não estou convencido de que foi ele. Mas é possível que Crandall tenha se excedido na própria estupidez e voltado a assediar a Sra. Farrow ontem à noite. Após o assassinato, quando conversei com os criados, dois deles o viram misturado aos inquilinos.

— Mas ele foi morto dentro da casa.

— Teria sido fácil para alguém segui-lo. Aquela sala não é distante da entrada lateral. Não podemos descartar Farrow. — Nicholas fez uma pausa para tomar fôlego. -Porém, como disse, não me sinto inclinado a culpá-lo. Acho-o honesto e justo... não do tipo, como você afirmou sobre mim, que golpearia um homem pelas costas. Mas, temo que o magistrado focará a atenção nele. Seria mais fácil para eles condenar um homem comum do que um cavalheiro de grande influência.

— Ou uma dama de grande influência.

— Tem razão — concordou Nicholas, anuindo com um gesto de cabeça. — Estou certo de que um bom número de mulheres teria prazer em ter feito aquilo com ele.

— Não podemos deixar que coloquem a culpa em Farrow se ele for inocente. E não posso deixar de me preocupar com o fato de Lilith querer convencê-los de que você foi o responsável. Deveríamos investigar por nossa conta.

— Não pretendo deixar a tarefa apenas com o magistrado e o médico-legista — afirmou Nicholas, resoluto. -Vou investigar pessoalmente. No entanto, eu...

— O problema... — interrompeu Juliana. Suspeitava de que Nicholas iria lhe dizer para que ficasse fora da investigação e não pretendia ser excluída. — É que há poucas pessoas as quais podemos descartar. Crandall fez inimigos por todos os lugares.

— Isso é verdade — concordou o marido.

— O amigo dele, o Sr. Hakebourne, por exemplo. Eu o vi discutindo acaloradamente com Crandall na noite passada, quando estava dançando. Não acho que tenha vindo até aqui apenas para visitar um amigo. Crandall ficou surpreso com a presença dele e não muito satisfeito em vê-lo. Acho que talvez lhe devesse dinheiro. Também escutei uma conversa entre Sir Herbert e Crandall um dia. Seu primo lhe pedia dinheiro emprestado e o cunhado deixou escapar que Crandall devia a muitos cavalheiros.

— Mas se Crandall lhe devia dinheiro não faz sentido o Sr. Hakebourne tê-lo assassinado. Dessa forma, nunca reaveria a quantia emprestada.

— É verdade. Porém, ele estava furioso com Crandall na noite anterior. Talvez a ira tivesse sobrepujado o bom senso — argumentou Juliana. — E depois há Sir Herbert.

— O cunhado? — indagou Nicholas, erguendo o sobrolho. — Ele parecia não gostar de Crandall, mas não o suficiente para matá-lo.

Juliana deu de ombros.

— Não sei. Quando presenciei Sir Herbert e Crandall discutindo naquele dia, o marido de Seraphina parecia bastante aborrecido com ele. Pelo que pude entender, emprestara uma grande soma a Crandall e não a recebeu de volta.

— Não me parece motivo para um assassinato. Bastava não lhe emprestar mais nada.

— A ira de Sir Herbert não se limitava ao empréstimo. Ele o acusou de ser responsável por envolver Seraphina com o mundo do jogo. Ao que parece, sua prima perdeu uma grande quantia em dinheiro nos jogos de azar. Foi por esse motivo que vieram para cá em vez de permanecerem em Londres para a temporada.

— Ah, então foi isso — começou Nicholas, meneando a cabeça. — Seraphina não parece do tipo que se enfia no campo quando pode estar freqüentando os bailes da corte.

— Não. Eu me atreveria jurar que ela odeia estar aqui e que culpa Crandall por isso.

— O irmão parecia estar sempre fazendo algum comentário que a desagradava — acrescentou Nicholas.

— Sim. Achava isso estranho. O que ele dizia, embora nos parecesse inócuo, suscitava olhares furiosos da parte dela.

— É certo — especulou Nicholas. — Que a pessoa que mais tinha motivos para querer se ver livre de Crandall seria a esposa.

— Winifred? — indagou Juliana, surpresa. — Mas ela é tão pequena e... bem, tímida.

— Sir Herbert e Seraphina não tinham de conviver com Crandall. Se ele os incomodava tanto, porque simplesmente não partiriam? Porém, Winifred estava amarrada a ele. Estou certo de que há muito percebeu o erro que cometeu em ter aceitado se unir a Crandall. Juliana pressionou os lábios, pensativa.

— Sim. Ela teria motivos mais graves para querer se livrar dele. Deveria ser terrível conviver com um homem como aquele. — Fez uma pausa, recordando as marcas que vira no braço de Winifred no dia em que a jovem a ajudava com os convites do casamento. — Acho que talvez a ferisse... fisicamente, quero dizer. Um dia percebi hematomas em volta de seu braço, como se alguém mais forte a tivesse apertado. Sem contar com o fato de que ela deveria se deparar a toda hora com as notícias das traições de Crandall aos votos que fizeram no casamento. O marido não deixava as outras mulheres em paz e naquele dia, durante o almoço...

— Sim. Ficou clara a infidelidade de Crandall ao assediar a esposa do ferreiro. Não havia como ela ignorar o fato — afirmou Nicholas. — E quanto a ela ser pequena e tímida... bem, ele foi atingido pelas costas com um atiçador, o que anularia a disparidade física entre ambos.

— Não podemos descartar a possibilidade de ter sido uma mulher — concordou Juliana. — Veja o que descobri ontem à noite no chão da sala em que ele foi morto, apenas a alguns centímetros do corpo.

Ela enfiou a mão no bolso da saia e de lá retirou o rubi, esticando a palma da mão em direção ao marido. Nicholas ergueu as sobrancelhas.

— O que é isso? — Pegou a gema e a segurou contra a luz que incidia da janela. — Um rubi?

— Sim. Avistei-o quando segurou a lamparina sobre o corpo de Crandall. O reflexo chamou minha atenção. Estava próximo da estante, perto do pé de Crandall. E se Pertencer ao assassino?

Nicholas estudou a gema, pensativo.

— Pode ser, claro. Aquela sala é pouco utilizada e se tivesse caído do ornamento de alguém no passado, alguma criada o teria encontrado enquanto limpava o aposento.

— É uma possibilidade. Infelizmente não é grande. Poderia ter passado despercebido. Só o notei porque você moveu a lamparina.

Nicholas voltou o olhar para a esposa.

— Contou a alguém sobre isso?

— Não. Fiquei calada quando o encontrei. Temi que, se fizesse alarde, daria ao assassino...

— A chance de se livrar do ornamento de onde o rubi se desprendeu — concluiu Nicholas. — Está com toda razão. Não é uma prova conclusiva, claro, mas talvez nos dê uma idéia mais acurada de quem cometeu o crime. -Estacou, pensando antes de continuar: — Mesmo que isto pertença ao criminoso, não significa que seja necessariamente uma mulher. Essa pedra preciosa pode ter caído de uma abotoadura.

Juliana anuiu com um gesto de cabeça.

— Gostaria de lembrar o que cada convidado estava usando ontem à noite.

— Para mim seria um esforço inútil. Só consigo me recordar de como estava bela. — Ele se calou e, para surpresa de Juliana, a face bronzeada parecia um tanto rubra. Em seguida, Nicholas se ergueu de modo abrupto e se encaminhou ao aparador para encher a xícara de chá. Deixou-se ficar lá por alguns instantes, com o olhar baixo, e depois girou, ficando de frente para a esposa.

— Devo-lhe desculpas — declarou, tenso, sem, contudo, encará-la. — Pelo meu comportamento de ontem à noite. Eu... bem, não tenho desculpas para justificá-lo a não ser pelo fato de ter bebido.

Levou alguns instantes para Juliana perceber ao que ele estava se referindo. Quando percebeu que o comportamento em questão foi o modo como a tomara nos braços e a beijara com ousadia, esmoreceu. O que ela havia achado tão prazeroso era motivo de arrependimento para o marido.

— Compreendo — replicou ela, desanimada. Nicholas sentia remorso por tê-la beijado. Preferia ter permanecido em seu quarto e não haver sucumbido à paixão. Não fizera nada daquilo por causa dela e sim pelo efeito do álcool? Sentiu vontade de chorar ao simples pensamento.

— Não deveria ter me imposto a você daquela forma — continuou Nicholas.

— Não foi...

— Não! — interrompeu ele, meneando a cabeça em negativa. — Não tente desculpar-me. Firmamos os limites de nosso casamento e eu os ultrapassei. Agi de maneira indigna. Espero que possa me perdoar. Prometo-lhe que não acontecerá outra vez.

Juliana baixou o olhar, sentindo-se embaraçada. Imaginou se o marido não teria achado seu comportamento inadequado também, já que reagira com igual intensidade. Talvez não tivesse agido como Nicholas desejava que uma esposa se comportasse.

— Aceito seu pedido de desculpas — retrucou ela, por fim.

— E muito generoso de sua parte.

Nicholas se deteve junto ao aparador por algum tempo. Juliana sentia-se incapaz de encará-lo, receando que as emoções que a agitavam se refletissem no seu semblante— Por fim, ele se encaminhou à porta e a escancarou.

A princípio, Juliana pensou que ele pretendia sair, porém o marido voltou para a mesa e se sentou. Ela remexeu a comida que se encontrava no prato, sem apetite para continuar a refeição. Pousou o garfo e ergueu o olhar, mantendo a expressão o mais neutra possível.

Nicholas a observava pouco à vontade. Imaginou se o marido temia que ela fizesse alguma cena. Pensando assim, dirigiu-lhe um sorriso luminoso, pretendendo desculpar-se e sair.

Naquele instante, ouviram passos no corredor e Peter Hakebourne adentrou a sala. Nicholas olhou de imediato à esposa e ela lhe adivinhou o pensamento. O primeiro suspeito de ambos estava ali, e Nicholas pretendia arrancar-lhe o máximo possível de informações.

Juliana desistiu do desejo de deixar a sala no mesmo instante. Podia não ser esposa de Nicholas no sentido literal da palavra, mas ao menos no que concernia ao assassinato se uniria a ele. Pretendia ajudá-lo a descobrir o criminoso.

— Ah, Sr. Hakebourne — começou Nicholas de maneira gentil, erguendo-se e dirigindo-se ao aparador para encher uma xícara de chá para o convidado. — Estamos nos servindo esta manhã. Espero que não se incomode.

— Claro que não — concordou Hakebourne, simpático.

— Dormiu bem, Sr. Hakebourne? — indagou Juliana.

— Tanto quanto possível, suponho — redargüiu o homem, enquanto se sentava. Em seguida, sorveu um gole da bebida quente e pousou a xícara. — Ouviu alguma coisa em relação às suspeitas dos agentes da lei?

— Não muito — retrucou Nicholas. — Lady Barre e eu estávamos discutindo isso. Tem idéia de quem poderia ser?

Hakebourne deu de ombros.

— Acho que será difícil encontrar alguém que não desejasse a morte de Crandall. — E, encarando Nicholas com olhar desafiador: — O mais difícil, sem dúvida, será imputar o crime a uma única pessoa.

 

Um silêncio embaraçoso seguiu o comentário provocativo de Hakebourne antes de Nicholas retrucar habilidosamente.

— Crandall possuía tantos inimigos assim? O homem deu de ombros.

— Conhecia-o bem. O que acha?

— Crandall podia ser bem desagradável — concordou Nicholas. — Mas seria o suficiente para alguém matá-lo?

— Talvez algumas pessoas não necessitem de muitos motivos para isso — contrapôs Hakebourne.

— E quanto ao senhor? — inquiriu Juliana. O homem lhe voltou um olhar surpreso.

— Está perguntando se o matei? — Antes que ela pudesse responder, continuou: — A resposta para sua pergunta é não. Mas quanto ao fato de estar aborrecido com ele, é verdade. Crandall me traiu.

— Como? — quis saber Nicholas.

— Vendendo-me um cavalo de corrida inútil. Oh, eu sei — caveat emptor, é o que dizem, especialmente no que concerne a cavalos. Mas, danação! O homem se dizia meu amigo! E então, vendeu-me um campeão que sabia estar estropiado. Diabos! — E, voltando-se para Juliana. — Desculpe-me, milady.

— Então ele lhe vendeu um cavalo incapacitado? -questionou Nicholas.

— O animal se encontrava em prefeitas condições quando o vi aqui pela primeira vez. Estava visitando Crandall e encantei-me pelo garanhão. Fiz-Lhe uma oferta, mas ele não se mostrou interessado em vender. Meses depois, em Londres, Crandall disse-me que havia decidido colocar o cavalo à venda, pois estava precisando de dinheiro. Claro que concordei em comprar... o animal era um espécime espetacular. Porém, a primeira vez que montei o cavalo, percebi que algo havia acontecido ao animal. Obviamente Crandall negou tudo, alegando que nada ocorrera. Uma mentira deslavada.

— Era sobre esse assunto que estavam discutindo ontem à noite?

— Discutindo? — Hakebourne parecia surpreso.

— Percebi que o senhor e Crandall estavam tendo uma conversa alterada enquanto dançava — explicou Juliana. — Não parecia amistosa.

— E não era. Crandall tentava colocar a culpa em mim. Imagine! — O homem lhes lançou um olhar indignado. — Como se eu fosse um idiota! Foi por isso que vim até aqui... sequer sabia sobre o casamento — afirmou Hakebourne com um sorriso amarelo. — Não queria impor minha presença a vocês. Pensei que talvez, se falasse com Crandall, ele caísse em si. Afinal, não se trai um amigo.

Juliana achava que não era certo trair ninguém, mas evitou o comentário.

Suponho que Crandall tenha se recusado a lhe devolver o dinheiro que pagou pelo cavalo — interveio Nicholas.

— Sim. E mais de uma vez.

— Deve ter ficado furioso — comentou Juliana, compreensiva.

— É verdade. Não estou em excelente condição financeira também. Poderia ter usado o dinheiro que paguei pelo animal para outro fim. Crandall podia ter ao menos dito que usou a quantia para pagar uma dívida ou coisa parecida. — E deixando escapar, uma exclamação de incredulidade: — Porém utilizou-o para fazer outra aposta no jogo. Ele não conseguia parar. Estava obcecado.

Aquela era uma característica comum entre os pares de Crandall, pensou Juliana. Muitos cavalheiros destruíam suas fortunas em mesas de jogo.

— Em que ele apostava? — indagou Nicholas.

— Em qualquer coisa — replicou Hakebourne em tom suave. — Corrida de cavalos, carteado, lutas de boxe... o que encontrasse pelo caminho. Certa feita, apostou em uma corrida entre ratos com Everard Hornbaugh. É óbvio que no fim perdeu tudo. Estava devendo a uma multidão... não só agiotas, mas a cavalheiros também.

— Foi a única pessoa que Crandall traiu?

— Claro que não. Penso que o fez com outras pessoas antes de tentar com um velho amigo. Pedia emprestado como louco.

— De quem?

— De qualquer um tolo o bastante para lhe emprestar dinheiro. O cunhado, por exemplo. Sempre recorria a Sir Herbert primeiro, devido ao laço familiar entre ambos. Ele lhe emprestou centenas e centenas de guinéus com o passar dos anos e Crandall nunca lhe devolveu um centavo. Porém, acho que o cunhado parou de lhe fazer empréstimos. Ele estava furioso com Lady Seraphina.

— Por que Crandall a introduziu no mundo da jogatina? — quis saber Juliana.

Hakebourne anuiu.

— Como sabe? Crandall fez isso durante algum tempo para pagar as próprias dívidas com as casas de jogos. Trazia-lhes otários para serem tosquiados e em troca tinha seus débitos perdoados ou recebia mais crédito.

— Então ele traía os amigos nesta época também? Hakebourne deu de ombros.

— Bem, a maioria era nova na cidade para acreditar que Crandall os levaria ao jogo honesto. Mas suponho que lady Seraphina não pensou que o próprio irmão fizesse aquilo com ela. Ou talvez se achasse protegida. Sir Herbert não economiza tostões. A princípio ela ganhava... é assim que eles agem. Porém mais tarde começou a perder. Ouvi dizer que acabou com a própria fortuna. Foi por isso que vieram passar a temporada no campo. Ao menos é o que se diz à boca pequena.

Juliana e Nicholas trocaram um olhar cúmplice. As palavras de Hakebourne confirmavam o que ela escutara na discussão entre Crandall e o cunhado. O homem permaneceu em silêncio por algum tempo, enquanto comia o presunto, parecendo pensativo.

— Acho que ele tomou dinheiro de Seraphina também — disse Hakebourne por fim.

— O que quer dizer com isso?

— A última vez em que o vi, quando da compra do cavalo, Crandall deixou escapar que a irmã estava lhe emprestando dinheiro. Fiquei surpreso... depois de tudo que ele fizera para Seraphina, mas Crandall afirmou que era melhor ela lhe dar dinheiro do que o marido ficar sabendo de seus segredos.

— E que segredos eram esses? — inquiriu Nicholas.

— Não sei ao certo. Crandall não me contaria. Ele sempre... descobria algo sobre as pessoas, coletava informações que poderiam envergonhá-las e usava isso contra elas. Geralmente para conseguir dinheiro.

— Que ser humano desprezível! — exclamou Juliana. Hakebourne lhe lançou um olhar inquisitivo.

— Fez isso com a senhora também?

— Não. Porém, acho que não teria hesitado se soubesse de algo que pudesse usar contra mim. Jamais gostei dele, mas não imaginei que enveredasse pelo caminho da chantagem.

— Ultimamente ele estava pior. Mais desesperado por dinheiro do que nunca.

— Por quê? — indagou Nicholas, inclinando-se à frente, com expressão interessada.

— Bem, talvez por sua causa.

— Por minha causa? — repetiu o Lorde, surpreso. -Por pensar que eu o expulsaria daqui?

— Não estou certo. Talvez sim. Porém acho que os credores estavam apertando o cerco em torno dele. Antes de o senhor aparecer, muitos achavam que ele iria herdar a fortuna da família quando o pai morresse. Nem todos, lógico. Alguns sabiam que a linhagem vinha de seu pai, milorde. Os afortunados. — Fez uma pausa antes de acrescentar: — Não eu.

— Realmente — murmurou Juliana. — O senhor me surpreendeu.

— Oh, bem, tenho um certo capital, sabe, mas nunca fui afeito aos livros ou assuntos como árvores genealógicas ou coisa parecida.

— Crandall espalhava a notícia de que pretendia herdar a fortuna? — questionou Nicholas.

— Não era bem assim — explicou Hakebourne. — Era o modo como se referia a Lychwood Hall e como dirigia este lugar. Agia como se fosse herdá-lo algum dia. Porém, quando o Lorde morreu e todos descobriram que não era Crandall o sucessor, mas sim uma pessoa que ninguém conhecia... bem, muitos ficaram preocupados quanto ao dinheiro que lhe haviam emprestado. Sequer sabiam se o teriam de volta. Sendo assim, começaram as cobranças.

— Ah, compreendo.

Hakebourne levou à boca a última fatia de presunto e tomou um gole do chá.

— Bem... — Bateu de leve no estômago para indicar que estava satisfeito. — Tem uma excelente comida, mi-lorde.

— Obrigado, Sr. Hakebourne. Espero que fique desfrutando de nossa hospitalidade por algum tempo.

— E mesmo? — indagou o hóspede lançando-lhe um olhar surpreso. — Pensei... bem, desde que não me conhecem e já que era amigo apenas de Crandall... bem, que fosse mais adequado que partisse o quanto antes.

Bobagem — retrucou Nicholas, favorecendo-o com um sorriso. — Sentir-me-ei honrado com sua presença em Lychwood Hall.

— Sendo assim — disse Hakebourne, sorrindo. — É muito generoso de sua parte. Afinal, haverá o funeral de Crandall. Terei de prestar minhas condolências. E, bem, Londres não está muito confortável para mim. Também estou tendo dificuldades em manter os credores longe da minha porta... ainda mais agora que não reaverão o dinheiro que emprestaram a Crandall.

Seguro de que Nicholas estava feliz em tê-lo como hóspede, o Sr. Hakeboume deixou a sala, com ânimo renovado.

— Parece estar lidando muito bem com a tristeza pela perda de Crandall — comentou Nicholas em tom seco.

— Sim. Ao que me parece, a indignação do Sr. Hakeboume quanto à traição de Crandall só se justifica no que concerne a ele.

— Acho que podemos concluir que o amigo de Crandall não é um homem de moral ilibada — acrescentou Nicholas. — Porém pergunto-me se ele seria capaz de matar Crandall, ainda mais quando isso não o beneficiaria em nada.

— Ele parece do tipo que age apenas em benefício próprio — concordou Juliana.

— É possível que o Sr. Hakeboume não nos tenha contado a verdade sobre sua vinda até aqui... ou ao menos toda a verdade.

— Tem razão. E a ânsia em nos contar os motivos que os outros tinham para repudiar Crandall é um tanto suspeita. Não me parece do tipo assassino, mas acho que ainda não podemos excluí-lo da lista. — Com um profundo suspiro, Juliana se ergueu. — Por menos que me agrade, tenho de providenciar os preparativos para o funeral de Crandall, e por certo haverá muito o que fazer. Preciso verificar como estão Lilith e Winifred e ver o que posso fazer para lhes abrandar a dor. E, claro, temos de descobrir quem matou seu primo.

— Juliana... — chamou Nicholas, erguendo-se ao mesmo tempo que ela. Havia um tom de advertência na voz dele. — Não se esqueça de que alguém nesta casa matou Crandall e pode não gostar do fato de você ficar fazendo perguntas. Por favor, não faça isso a não ser em minha presença.

— Tenho de falar com todos, de qualquer modo — contrapôs Juliana. Porém acrescentou, ante a expressão de alarme do marido: — No entanto, terei cuidado em não dizer nada que preocupe o assassino.

Pela expressão de Nicholas, era óbvio que ele não acreditara em suas palavras. Pensando assim, disparou pela porta sem lhe dar tempo para posteriores objeções.

Passou o resto do dia tentando manter os trabalhos domésticos sob controle. Os criados — como todos na casa — pareciam bastante agitados. Pratos foram quebrados e objetos derrubados. Juliana percebeu que as empregadas pareciam trabalhar em dupla, o que expressava de maneira óbvia o medo que sentiam de ficar sozinhas na ampla casa.

Não ajudou muito o fato de o policial do vilarejo passar a maior parte do dia inquirindo toda a criadagem. Ele foi quase deferente quando questionou Juliana, e aceitou de pronto a afirmação de que Nicholas estivera com ela durante toda a noite depois de deixarem a festa. Mas toda aquela complacência a preocupou, pois temeu que o policial não estivesse disposto a investigar a fundo nenhum membro da família Barre e pretendesse se concentrar apenas no ferreiro, sem se esforçar em apurar a verdade.

A julgar pelo tipo de pessoa que fora Crandall, o ódio do assassino fora direcionado a ele, o que não colocaria em risco nem um outro membro da família. Ainda assim, compreendia o sentimento de insegurança que rondava a casa. O que antes parecia protegido dos males externos, fora invadido pela perversidade, o que naturalmente suscitava o medo.

As providências quanto ao funeral ficaram todas por conta de Juliana, bem como receber os visitantes que vinham prestar condolências, já que a mãe e a esposa de Crandall não saíam de seus quartos.

Juliana foi visitar Winifred e a encontrou sentada, ainda trajando a camisola de dormir, o olhar perdido na janela. Voltou-se quando Juliana entrou e forçou um sorriso.

— Vim saber se precisa de algo — declarou Juliana, cruzando o quarto e se acomodando em um banco próximo à cadeira de Winifred.

A esposa de Crandall meneou a cabeça em negativa.

— Trouxeram-me algo para comer, mas não consegui me alimentar. — E girando a face pálida e mais envelhecida para Juliana. — Sou uma pessoa desprezível.

Juliana imaginou se a jovem não estaria prestes a confessar que matara o marido, mas limitou-se a dizer:

— Estou certa de que isso não é verdade.

— Mas é verdade — insistiu Winifred. — Não consigo chorar a morte dele. Gostaria muito de poder fazê-lo. Juro-lhe que tentei, mas não fui capaz. — A jovem se inclinou à frente, lançando-lhe um olhar sincero. — Meu marido está morto e eu... sinto-me aliviada. — Winifred levou a mão à boca, cobrindo-a como a conter os sentimentos que acabara de expressar. Juliana não sabia o que dizer. Era capaz de compreender perfeitamente por que uma pessoa casada com Crandall se sentia daquela forma. — A mãe dele está sofrendo terrivelmente — continuou ela em tom de voz baixo. — Percebi que a criada que esteve aqui esperava ter me encontrado em prantos também. Você veio para tentar me confortar, mas eu... — E deixando escapar um longo suspiro, ergueu o olhar para a janela. — Quando conheci Crandall, pensei estar diante do homem mais belo que jamais conhecera... os cabelos negros e aqueles olhos esplêndidos. Tão sofisticado e arguto. Tinha tanta experiência. Vivenciara tantas coisas. — Os olhos da jovem viúva brilharam ante as recordações e o tom de voz se tornou quase jovial. — Não conseguia crer que ele havia me escolhido entre tantas jovens da corte. Havia acabado meus estudos recentemente e nunca viajara ou fizera outra coisa. Crandall dedicou-me tanta atenção que minha mãe preveniu-me para ser cautelosa quantos às intenções dele. Teria dançado três valsas comigo naquela noite se minha mãe não tivesse me proibido de fazê-lo.

— Soa muito romântico — comentou Juliana, esperando não deixar que a própria aversão a Crandall transparecesse em sua voz.

— E era — concordou Winifred, os lábios curvados em um tênue sorriso ante as recordações. — Quando ele me propôs casamento, senti-me a jovem mais feliz da Inglaterra. — E então o sorriso feneceu. — Porém, mais tarde, ele veio a se arrepender de tê-lo feito.

— Não, Winifred... — interveio Juliana, incapaz de se furtar em protegê-la da tristeza.

Porém a jovem meneou a cabeça, devolvendo-lhe um olhar agradecido.

— E muito gentil, mas é verdade. Sei disso. Outro dia... quando Lorde Barre revelou o episódio com a esposado ferreiro...

Sinto muito que tenha escutado aquilo — afirmou Juliana, tomando nas suas a mão de Winifred.            

— Não foi a primeira vez que aconteceu. Já tinha ouvido boatos e comentários velados por parte dos criados. Eu sabia. A própria mãe dele afirmou que o filho nunca deveria ter se casado comigo.

Juliana trincou os dentes.

— Não deve levar em conta o que Lilith diz. Ela é... bem, consegue ser bastante cruel em seus comentários. Não tem nada a ver com você. Ela jamais consideraria ninguém bom o suficiente para o filho. Quando éramos crianças, Lilith o venerava.

— Isso é verdade — concordou a jovem viúva. — Acho que até hoje o faz, embora algumas vezes Crandall fosse bastante desagradável com ela. Vivia lhe pedindo dinheiro e, muitas vezes, quando Lilith negava, ele se irritava com a mãe. Lembrava-lhe que, do jeito como ela prezava as aparências, não iria querer que o próprio filho acabasse na prisão e manchasse o nome da família. E a fitava com um escárnio que me fazia imaginar por que Lilith não o esbofeteava. Mas ela nunca o fez. Ao contrário, de vez em quando, dava-lhe dinheiro ou alguma jóia para que vendesse.

— Então, como vê, não pode levar a sério as afirmações de Lilith.

— Mas aquele também era o pensamento de Crandall. Não me achava inteligente o bastante para ele. Considerava-me uma tola. Nunca me levou a Londres e quando pedi... — Naquele instante, as lágrimas até então contidas banharam seus olhos. — Ele me disse que eu o envergonharia. Que seus amigos iriam me considerar uma caipira.

Juliana foi assolada por uma onda de compaixão pela jovem. Por certo, Winifred seria mais feliz sem Crandall, mas seu futuro não seria dos mais promissores. Com base no que escutara nas últimas semanas, Crandall estava falido e não lhe deixaria nada. Nicholas, sem dúvida, permitiria que ela vivesse ali sem que se sentisse uma parente agregada, mas ainda assim, Winifred saberia que aquela era sua condição.

Juliana se ergueu e se ajoelhou diante dela, fitando-lhe a face. Em seguida, cobriu as mãos da jovem com as suas.

— Conheci Crandall desde criança e sei que era perfeitamente capaz de ser cruel e negligente com a mãe. Não é de bom-tom falar mal dos mortos, mas a verdade é que ele nunca foi afeito à sinceridade. Não pode levar a sério o que seu marido lhe dizia. Provavelmente não queria ter uma esposa em Londres. — E, lançando-lhe um olhar sincero. — Os erros de Crandall não são responsabilidade sua. E eu... bem, acho bastante compreensível que não consiga chorar sua morte. Por mais lamentável que seja dizer, acho que ninguém nesta casa o fará, com exceção da mãe.

Winifred a fitou, pesarosa.

— Sei disso e é triste. Contudo, lhe agradeço as palavras de conforto. Fizeram-me sentir... melhor — dizendo isso, apertou a mão de Juliana e lhe ofereceu um sorriso.

-,. Agora... acha que pode comer algo? — indagou Juliana, erguendo-se. — Posso mandar trazer uma refeição bem quente, se desejar.

— Sim, talvez eu consiga. — Outra vez Winifred sorriu. — Obrigada.

Juliana deixou o quarto, refletindo que seria difícil considerar aquela jovem uma assassina. Ao mesmo tempo em que tinha sérias razões para repudiar o marido, parecia lamentar mais a perda do antigo amor do que revoltar-se contra Crandall e estava inclinada a culpar-se pelo fracasso do casamento.

Havia a possibilidade de Winifred estar representando em benefício próprio, mas se fosse o caso, por que não fingia estar arrasada pela morte do marido em vez de se referir às mazelas de seu casamento?

Juliana tocou a campainha para chamar a criada e lhe ordenou que levasse uma refeição frugal ao quarto de Winifred.

— Veja se a convence a dormir um pouco, sim? Após a partida da criada, Juliana seguiu para o quarto de Lilith. Apesar do relacionamento inconstante entre ambas, não poderia se abster de lamentar pela mulher. Por certo, era a única pessoa em toda aquela casa a sentir de fato a morte de Crandall.

Juliana bateu à porta, esperando que a senhora a dispensasse, mas depois de algum tempo a voz de Lilith soou lá de dentro.

— Entre.

Ela entrou para descobrir a mãe de Crandall sentada numa cadeira ao lado da janela e, como a nora, tinha o olhar perdido na paisagem exterior. Porém, ao contrário da jovem, nada, nem mesmo o mais extremo sofrimento permitira-lhe estar de camisola àquela hora do dia. Vestia um traje preto de gola alta e mangas longas e sem uma ruga sequer. Os cabelos se encontravam presos no costumeiro penteado, atado por um pente preto.

Lilith lançou-lhe um olhar acre.              

— Veio até aqui para se regozijar?

— Tia Lilith! — exclamou Juliana, chocada com a animosidade na voz da mulher. — Claro que não. Como pode dizer uma coisa dessas?

— Por que não? Não sou tola, Juliana. Sei o quanto odiava meu filho.

— Ele não me deu motivos para que sentisse o contrário — retrucou Juliana em tom calmo. — No entanto, não acredito que até mesmo a senhora possa pensar que me regozijo pelo sofrimento alheio. Sinto muito por sua perda.

— Não espere que eu acredite que lamenta a morte de meu filho.

— Não sou hipócrita a esse ponto. Mas que a senhora...

— Não sabe nada — afirmou Lilith efusiva, porém em tom baixo. — Não tem noção do meu sofrimento. Segurei-o nos braços quando era um bebê e não conheci felicidade maior do que aquela. Eu o amava.

Juliana sentiu uma pontada de piedade para com a mulher, apesar da repulsa de Lilith em relação a ela.

— Sei que o amava.

Lilith girou o corpo e ergueu o olhar para o retrato do marido pendurado na parede.

— Claro — disparou com amargura. — Eu amava o pai dele também. Por todo o bem que me fazia. — E, fitando a pintura por mais alguns instantes. — Combinávamos em tudo. Um casal perfeito... era o que acreditava. -Franziu o cenho, parecendo sair do transe, e então seus lábios se encresparam quando voltou a encarar Juliana. -Foi tudo culpa dela! — gritou.

Juliana a fitou, estarrecida com o ódio estampado nos °lhos da mulher.

— O que... disse?

— Sua mãe! A sempre tão delicada e graciosa Diana. A caçadora. Um nome perfeito... embora ninguém dissesse pelo semblante tão frágil. Sempre tão doce e apaixonada pelo falecido marido.

— Ela amava muito meu pai — afirmou Juliana, sentindo-se compelida a defender a mãe. — Não sei a que está se referindo. Do que acusa minha mãe? Asseguro-lhe que ela jamais pretendeu causar-lhe qualquer problema. Era muito agradecida pelo fato de nos ter acolhido.

— Agradecida! Hah! Que mulher expressa gratidão roubando o marido da outra?

— O quê?! — indagou Juliana, indignada. Teria a morte do filho a deixado louca?

— Ela era de fato uma caçadora, embora dissimulada. Não deixava ninguém perceber as investidas a meu marido. Era tão digna de pena, tão tristonha... sem dúvida precisava de seus ombros largos para chorar e dos conselhos dele. E durante todo o tempo flertava com meu marido, provocava-o, encorajava-o...

— Não! Não sei o que a levou a pensar assim, mas está enganada! — protestou Juliana.

— Enganada? Acho que não. — Lilith se ergueu, encarando-a com fúria há muito contida estampada nos olhos. — Por que acha que sua estada aqui foi permitida por tanto tempo? Por que motivo foi acolhida e educada como nossos próprios filhos?

— Está enganada — repetiu Juliana. — Foi pelo fato de minha mãe ser sua prima.

— Acha que eu a queria aqui? — indagou Lilith com escárnio. — Posso lhe garantir que, se fosse por minha vontade, vocês duas teriam sido banidas daqui, poucas semanas depois de ter chegado. Foi meu marido quem as abrigou naquela cabana. Era a ele que sua mãe agradecia de uma maneira muito especial.

— Não! — protestou Juliana, agastada. Sentia o estômago revirar e, girando nos calcanhares, preparou-se para deixar o quarto. — Com licença.

Precipitou-se em direção à porta e saiu para o corredor, só parando de correr quando se encontrava na segurança do próprio quarto. Lá, deixou-se afundar em uma cadeira e apoiou a cabeça nas mãos.

Aquilo não podia ser verdade!, gritou em seu íntimo. Sua mãe não seria capaz de manter um caso de amor com Trenton Barre. Por certo não se entregaria àquele homem frio e perverso. Não poderia tê-lo amado.

Deixou escapar um gemido de pesar, relembrando a infância. Embora tivesse sofrido como uma agregada in-desejada daquela família, as circunstâncias poderiam ter sido bem piores. A cabana era ampla e bem decorada. E embora muitos de seus trajes fossem sobras de Seraphina, ao menos eram finos e bem acabados. Não era característico dos Barre enviá-la a uma escola especial para moças da sociedade, muito embora Seraphina precisasse de alguém que a vigiasse. Afinal, a menina não era pior do que as amigas que haviam sido mandadas à escola sem ninguém para tomar conta delas.

E, de acordo com Lilith, a generosidade da qual ela e a mãe haviam desfrutado não partira dela. A Sra. Barre detectava sua mãe e teria se livrado dela em tempo recorde. Por certo, fora Trenton a dar-lhes a casa, sustentá-las e mandar Juliana para a escola.

Era evidente para Juliana que Trenton Barre não tocaria tais atitudes por puro altruísmo, a julgar pelo tratamento que dispensava ao próprio sobrinho. Aquele homem nunca fora movido por instintos caridosos. Não era afeito à compaixão.

Imaginou por que não percebera aquilo antes.

Relembrou as visitas de Trenton Barre à cabana e pela primeira vez, considerou o quão estranho era o fato de que sempre ele e nunca a prima da mãe as procurava. Podia contar nos dedos o número de vezes em que Lilith assomara à porta da cabana. Porém o marido as visitava semanalmente.

Recordou o estado de agitação da mãe, sua inquietação toda vez que se aproximava a hora da visita de Trenton. A forma como sempre insistira para que a filha se mostrasse impecavelmente arrumada para o Sr. Barre, com seu melhor vestido e os cabelos arrumados com um laço de fita. Ela, por sua vez, não descuidava da própria aparência naquelas ocasiões. Vestia seu mais elegante traje, prendia os cabelos e se maquiava. Não era de surpreender o fato de alguém querer parecer agradável a seu benfeitor. Ainda assim, Juliana não podia evitar questionar-lhe os motivos naquele momento. Estaria a mãe esforçando-se para não fazer feio na frente de seu benfeitor... ou de seu amante?

Sempre que Trenton entrava na casa, a mãe a trazia até a sala de visitas, onde tinha de sorrir e se curvar em uma mesura para o senhor. Juliana detestava aquelas ocasiões. Sempre temera e odiara Trenton e se sentia agoniada de estar em sua presença, sorrindo e respondendo de maneira educada às perguntas que ele lhe fazia. Era sempre com grande alívio que, após alguns minutos, a mãe anuía com um gesto de cabeça e a mandava se recolher. Juliana corria para o próprio quarto e fechava a porta, agradecida por se afastar daquele homem.

Nunca havia questionado o fato de Trenton demorar-se tanto naquelas visitas, ou o motivo pelo qual sua mãe lhe ordenava que ficasse no quarto até que ele partisse. Ficava apenas agradecida por não ter de suportar a presença dele.

Juliana levou a mão ao estômago, sentindo-se nauseada. Era como se sua vida tivesse sido virada ao avesso. Seria mentira tudo que pensara sobre a mãe? Ela não passara o resto da vida lamentando a perda do marido? Teria a mãe se deitado com um homem tão abjeto quanto Trenton Barre? Será que o amara? Seria a mãe uma adúltera que roubava as afeições do marido da prima?

Tais possibilidades eram terríveis demais para ser levadas em consideração. Por certo Lilith mentira. Ela sempre sentira ciúmes de Diana — o que não era de se admirar dada a docilidade e gentileza de sua personalidade em contraste com a frieza de Lilith. Talvez aquelas suspeitas não tivessem fundamento. Podia até mesmo acreditar no que dissera sobre sua mãe e Trenton, mas aquilo não significava que fosse verdade.

Havia alguém que devia saber a resposta, pensou Juliana, agarrando-se à possibilidade como a uma tábua de salvação. A Sra. Cooper, a mulher que as servira desde o primeiro dia em que chegaram a Lychwood Hall. Por certo, saberia o que ocorrera durante todos aqueles anos. O fato poderia ter passado despercebido a uma criança, porém não por uma mulher adulta que trabalhava naquela pequena cabana e era tão ligada à dona da casa. Apenas ela poderia lhe dizer se o freqüente visitante era amante de Diana.

Faria uma outra visita à Sra. Cooper. Concluiu, com uma pontada de náusea, que o que ouviria da mulher poderia devastá-la, mas não conseguiria continuar na ignorância. Por mais que ficasse ferida, teria de descobrir a verdade.

 

O funeral de Crandall se deu no dia seguinte. A manhã estava bastante clara e ensolarada para uma ocasião como aquela e o cemitério não se encontrava sombrio, mas sim salpicado de luz solar e sombra. Rosas trepavam pela cerca de ferro do jardim da igreja, banhando com sua doce fragrância o grupo presente.                                        

Juliana deslizou o olhar pelos presentes agrupados em torno da cova recém aberta. Todas as mulheres trajavam preto e os homens traziam faixas pretas de luto amarradas ao braço. Juliana fizera questão, tanto no dia anterior quanto naquele, de verificar toda e qualquer jóia que as pessoas estivessem usando. Mas logo percebeu que ninguém usara nada tão festivo como rubis. Os brincos se limitavam a azeviche e ônix e as abotoaduras e alfinetes de gravata dos homens eram de ouro ou prata sem adornos. Winifred se encontrava de pé ao lado de Juliana. As mãos apertadas uma contra a outra, os olhos fitos no esquife. Em frente a elas, a figura rígida de Lilith. Embora a palidez contrastasse com o negror profundo do vestido e chapéu, a face expressava um semblante controlado. Aquela mulher, pensou Juliana, nunca capitularia às emoções, mesmo em favor do filho.

O vigário terminou o sermão e declamou uma pequena oração. Em seguida, o esquife foi baixado ao solo. Um por um, os membros da família passavam, começando por Lilith, e continuavam a caminhar em direção às respectivas carruagens. Juliana sabia que aquele seria o momento propício para ir ao encontro de Lilith, apoiá-la até onde ela permitisse, porém descobriu-se incapaz de fazê-lo.

Dormira pouco na noite anterior. A mente voltando, inexorável, às acusações que Lilith fizera à mãe.

Juliana girou e caminhou, não em direção à carruagem, mas ao outro jazigo da família que ficava próximo dali. O túmulo de Trenton Barre ficava localizado ao lado do que fora enterrado o filho. Na parte superior do jazigo se encontrava o túmulo de sua mãe.

Estacou diante da lápide simples e a fitou por um longo instante. Percebeu Nicholas assomar a seu lado e tomar-lhe a mão. Ergueu o olhar para fitá-lo com um débil sorriso lhe curvando os lábios. De alguma forma, o toque gentil a enchia de força.

— Está preocupada — afirmou Nicholas, sorrindo para ela. — Percebo em seu semblante. Há algo além da morte de Crandall perturbando-a.

Juliana anuiu.

— É que... Lilith acusou minha mãe de ter roubado Trenton dela. Contou-me que estavam tendo um caso.

Nicholas a fitou diretamente nos olhos

— O quê? E você acreditou nela?

— Não vejo por que Lilith mentiria sobre uma coisa como essa. Ela amava o marido e jamais denegriria seu nome apenas para me aborrecer. Acho que acredita na acusação. Mas quanto a ser verdade... não sei. Não quero pensar isso de minha mãe.

Ergueu o olhar para encará-lo, com o semblante preocupado, ao mesmo tempo em que o marido lhe apertava a mão.

— Tia Lilith está sempre disposta a pensar o pior das pessoas — afirmou Nicholas. — É cheia de raiva e desdém. O fato de acreditar nisso não o torna verdade.

— Eu sei. Fico repetindo isso para mim mesma, mas há detalhes...

— Quais?

— Singularidades... sobre nossa situação aqui em Lychwood Hall. Minha mãe era prima de Lilith, não possuía parentesco com Trenton. Porém era óbvio que não foi ela a permitir que ficássemos aqui, portanto deve ter sido Trenton. E desde quando aquele homem agia com compaixão?

— Ele me abrigou, embora me odiasse — argumentou Nicholas.

— Sim, mas era obrigação dele fazê-lo. Seu avô designou sua guarda a ele. E logicamente Trenton esperava que você morresse antes de seu avô, permitindo que ele herdasse a propriedade.

— Ainda assim, ambos estavam dispostos a fazer o que pareceria ser de bom tom. Não queriam que seus pares os julgassem parcimoniosos ou egoístas. Abandonar a prima de Lilith com a filha teria refletido mal para a imagem deles.

— Eu queria apenas saber se essa acusação tem fundamento. Pensei... que a Sra. Cooper talvez pudesse confirmar ou não a versão de Lilith.

— Talvez possa. Deveria conversar com ela antes de acreditar em minha tia. Irei até a casa dela com você amanhã à tarde.

Juliana sorriu, sentindo-se um pouco melhor. O que quer que descobrisse não pareceria tão ruim se Nicholas estivesse a seu lado.

Juliana estava descendo para o jantar naquela mesma noite, quando viu a porta do quarto de Seraphina escancarada. A irmã de Crandall estava de pé em frente ao toucador com uma caixa de jóias na mão, procurando algo com o cenho franzido.

O coração de Juliana começou a bater descompassado. Decidida, entrou apressada no quarto.

— Não vai descer para jantar? Eu lhe faço companhia, se me permite.

— O quê? — indagou Seraphina, distraída. — Oh, sim. Desculpe-me. Estou me sentindo tão... estranha. É como se tudo à minha volta estivesse passando muito rápido e eu não pudesse alcançar. — Meneou a cabeça. — É uma bobagem, eu sei. Estou aqui há algum tempo, tentando encontrar uns brincos para colocar. Ao que parece não tenho nada de azeviche.

Juliana caminhou até postar-se ao lado dela, examinando a caixa.

— Possui lindas jóias.

E então avistou um reflexo vermelho em meio às peças misturadas e esticou a mão para pegá-lo. Era um brinco, um pingente de rubis, porém não estava faltando nenhum. Tentando não parecer óbvia, deslizou o olhar pela caixa à procura do par. Ou talvez um cordão que fizesse conjunto com ele.

Seraphina praticamente lhe arrancou a jóia da mão. Juliana a fitou, intrigada pela reação repentina. Ela a fitava com... sim, havia quase medo nos olhos da irmã de Crandall.

O coração de Juliana pareceu perder uma batida. Seria Seraphina a assassina do irmão? Seria aquele o motivo que a levara a explorar a caixa de jóias em busca do rubi perdido?

— Esses rubis são lindos — elogiou, observando o semblante de Seraphina. — Tem algum cordão que combine com eles?

— Sim, claro. — O alarme no olhar da mulher pareceu aumentar.

— Adoraria vê-lo — declarou Juliana, lutando para manter o tom de voz inalterado, apesar da tensão que crescia dentro de si.

— Por quê? Oh, Deus, você sabe, não é? — Seraphina levou a mão aos lábios, com os olhos arregalados. — Como poderia saber? Oh, por favor, não conte a Herbert...

— Seraphina... estou certa de que deve ter tido uma razão para o que fez — começou Juliana, mantendo a voz calma, enquanto levava a mão ao braço da irmã de Crandall. — Não a crucificarão se confessar.

— Não! — exclamou Seraphina, desvencilhando o braço e dando um passo atrás. — Não posso contar a ele. Você não pode entender! — Lágrimas lhe banhavam os olhos. — Como soube? Crandall lhe contou?

— O quê? — ofegou Juliana.

— Ele me prometeu que não contaria a ninguém. Dei-lhe dinheiro para que não o fizesse! — gritou ela.

— Seraphina... do que está falando? — inquiriu Juliana, percebendo que não estavam se referindo ao mesmo assunto. — O que Crandall prometeu não contar? Por que lhe deu dinheiro?

— Quer dizer que não sabia de nada? — Seraphina a estava, estupefata. — Mas você... acho que estou ficando maluca. Pensei que tinha percebido que os rubis são falsos — dizendo isso, soltou uma histérica gargalhada.

— Quer dizer que não são verdadeiros?

— Não. Esse é o problema — lamentou-se Seraphina.

— Herbert ficará furioso se descobrir. Temo que algum dia ele os examine mais de perto e descubra...

— Ele não sabe que são falsos?

— Claro que não! Oh, que confusão! — Seraphina deixou-se afundar na cadeira em frente ao toucador e pousou os cotovelos sobre a superfície, descansando a cabeça nas mãos. — Por que me permiti perder tanto dinheiro?

— Jogando? — indagou Juliana, enveredando pela linha de conversação que Seraphina por certo entenderia.

A irmã de Crandall anuiu.

— Sim. A princípio eu ganhava. Era tão excitante! -Ergueu o olhar para Juliana, os olhos brilhando com as recordações. — E meu irmão os conhecia. Foi ele quem me introduziu àquele mundo. Pensei que deviam ser pessoas dignas, mesmo não as conhecendo. Quero dizer, eram simples rodadas de carteado na casa da Sra. Battle. Não era como freqüentar uma casa de jogos.

— E então começou a perder dinheiro — completou Juliana.

Seraphina deixou escapar um longo suspiro.

— Sim. Um monte dele. Não sabia como podia perder tanto se no início apenas ganhava. Sir Herbert disse-me que eles haviam me enganado... que me deixaram ganhar para atrair-me para a armadilha. — Seraphina a fitou com lágrimas lhe banhando os olhos como uma criança que acabara de descobrir a inexistência de Papai Noel.

— Acha que ele tem razão?

Juliana foi atingida por uma inesperada onda de compaixão pela irmã de Crandall.

— Temo que sim. O Sr. Hakebourne contou-nos que Crandall fazia esse tipo de coisa. Levava pessoas aos "amigos" que os trapaceavam no carteado.

Seraphina anuiu com expressão tristonha.

— Nunca pensei que ele pudesse fazer isso comigo. Eu... não éramos muito ligados, e sabia que meu irmão tinha atitudes abjetas, mas...

— Foi perverso da parte dele — concordou Juliana. -Parece-me que estava desesperado por dinheiro.

A expressão de Seraphina endureceu.

— Eu sei. Extorquiu-me dinheiro para guardar segredo.

— Sobre o quê? Sir Herbert sabe sobre suas perdas no jogo, não?

— Não tem conhecimento sobre as jóias — explicou Seraphina. — Eu as vendi. Não tinha como pagar meus débitos e eles não permitiriam que continuasse jogando se não o fizesse. Isso foi antes de Sir Herbert descobrir. Não sabia o que fazer... havia lançado mão de toda minha herança e mais ainda. Não havia pagado à costureira nem à chapeleira, porque joguei todo o dinheiro destinado ao gasto com minhas roupas. Havia perdido o controle. Tinha de continuar jogando. Era a única forma de reaver meu dinheiro, compreende? E então Crandall... oh, foi tão injusto! Foi ele a sugerir aquilo! — Seraphina parecia indignada.

— Sugerir o quê? Que vendesse as jóias? Seraphina assentiu.

— Sim. Disse-me que podia penhorá-las e usar o dinheiro. Pensei que conseguiria reaver o dinheiro no jogo e as tiraria do prego. Sugeriu-me também que durante aquele tempo fizesse cópias das jóias. Pareceu-me a solução ideal e então as entreguei a ele: todo o conjunto de rubi, todas as minhas pérolas, meus anéis e o bracelete de safira que Herbert me presenteou por ocasião de nosso noivado.

— Penhorou tudo isso? — indagou Juliana, estupefata.

— Não ao mesmo tempo. Uma de cada vez. Eles me pagavam tão pouco por elas! — Seraphina a fitou, ultrajada. -Ao final, não consegui reaver uma jóia sequer. Continuei perdendo no jogo e quando Sir Herbert descobriu ficou furioso comigo. Disse-me... — Deixou escapar um profundo suspiro, parecendo devastada. — Que sentia vergonha de mim. Acho que desejou nunca ter casado comigo. Sendo assim, não poderia revelar que havia vendido todas as minhas jóias. Não sei o que meu marido faria se descobrisse.

— Compreendo.

— E então... — continuou Seraphina, estreitando o olhar. — Crandall ameaçou contar tudo a Herbert sobre o penhor. Exigiu dinheiro em troca de seu silêncio. Como pôde ter sido tão injusto quando foi ele quem sugeriu que eu o fizesse?

Juliana não sabia o que responder. Não havia nada de ruim que Crandall já não tivesse feito? A cada dia descobria coisas piores sobre o primo do marido.

— Sempre fazia referências ao assunto, mesmo depois que lhe dei dinheiro. Cumprimentava-me pela beleza de meu cordão em tom de deboche, para que eu lembrasse que dividíamos um segredo pelo qual deveria pagar. Eu não tinha muito dinheiro. Herbert mantinha as finanças a rédeas curtas e tudo o que conseguia entregava a Crandall. É horrível, devo confessar, mas quando o vimos estirado no chão, pensei... bem, senti-me aliviada! Não seria capaz de me extorquir sequer uma moeda mais.

Juliana suspirou profundamente. Imaginava se Seraphina tinha noção do quanto revelara. Por certo a irmã de Crandall tinha boas razões para lhe desejar a morte. Enquanto ele estivesse vivo, seguiria dando-lhe dinheiro em troca de seu silêncio. A morte do irmão retirava-lhe um fardo das costas. Daí a se concluir que poderia ter sido Seraphina a matar era um pulo.

Ainda assim, Juliana não conseguiu se furtar a sentir piedade da mulher. Não obstante o fato de Crandall não poder lhe extorquir mais dinheiro, temia que o marido descobrisse o que fizera com as jóias.

— Seraphina... talvez fosse melhor se confessasse a Sir Herbert o que fez. Ele sabe que estava desesperada por dinheiro.

— Não! — Os olhos de Seraphina se dilataram de pavor. — Não poderia. Ele não deve saber. Os rubis eram herança de família. Assim como os anéis. E muitas das jóias foram presentes dele. Meu marido ficaria enfurecido.

— Talvez a princípio, sim, mas não eternamente. Dessa forma você não terá paz, temendo que ele descubra. Ao menos, Sir Herbert poderá reaver parte das jóias.

— Mas ele teria de pagar por elas!

— Bem, sim, teria de devolver a quantia que pegou emprestada, mas desta forma reaveria a herança de família. Seria pior se o seu marido descobrir daqui a alguns anos e não puder fazer nada.

No entanto, Seraphina se mostrou irredutível em não contar a verdade ao marido, fazendo Juliana prometer que nada lhe revelaria. Mas, tencionava contar a Nicholas e se concluíssem que a irmã de Crandall o havia matado, então tudo viria à tona.

Juliana deixou o quarto de Seraphina, imaginando como seria viver acuada, mentindo para o marido e sempre preocupada que ele descobrisse. Como poderia ser feliz no casamento quando tinha de fingir o tempo todo? O casal não podia ser unido com tantos segredos entre eles.

Porém naquela noite, quando se encontrava sozinha na cama, acordada e esperando ouvir o som da porta se abrindo e Nicholas entrando em seu quarto, perguntou-se se não estaria vivendo uma grande mentira, assim como Seraphina. Fingia ser uma esposa, mas passava as noites sozinha. Nunca deveria ter concordado com aquela forma inócua de união. Não podia impedir-se de questionar como conseguiria viver o resto da vida daquela maneira.

Lágrimas lhe banharam os olhos, rolando pelos lados de sua face. Juliana enterrou o rosto no travesseiro. Mentira, não só para o marido, mas para si mesma, fingindo que amizade era tudo que desejava de Nicholas.

A verdade era que amava o marido desde criança. Durante todos os anos em que ele estivera ausente, aquele amor ficara adormecido dentro de seu coração, e bastara apenas Nicholas voltar para trazê-lo à vida. Tentara em vão negá-lo, fingir que o que sentia por ele era apenas amizade. Contudo, com o passar dos dias, descobriu que era amor, do tipo que ligava uma mulher a um homem, fundamentado no passado e que florescera, transformando-se em algo profundo e vibrante.

Em seu coração era esposa de Nicholas. Aquele era o único homem que amara em toda sua vida. Porém ansiava por mais. Desejava ser o centro da vida dele. Unir-se a ele em todos os sentidos. Conhecer-lhe o toque, o beijo e a luxúria que sabia que poderia explodir entre ambos.

Mas a percepção de que Nicholas não lhe correspondia o sentimento era como uma nuvem negra projetando sombras em seu casamento. Alegava ter por ela a afeição de um amigo, expressava o quanto lhe era grato e cumprira a promessa que fizera há muito de um dia resgatá-la. Mas nunca mencionara amor. Ele se achava incapaz de tal sentimento.

Estava certa de que Nicholas era capaz de amar. O que lhe despedaçava o coração era pensar que talvez ele não fosse capaz de amar a ela.

 

Na manhã seguinte, Juliana e Nicholas se dirigiram ao vilarejo para visitar a Sra. Cooper. O clima estava glorioso, claro e ameno. Um dia de fim de verão que fazia parecer que o outono nunca chegaria. Juliana despertara com dor de cabeça. Uma conseqüência do fato de ter chorado até conciliar o sono. Porém, sob o sol e a brisa suave, com Nicholas a seu lado, descobriu que o mal-estar desaparecera junto com suas preocupações.

Caminharam da maneira amistosa como sempre faziam. Juliana imaginou como seria possível sentir-se tão à vontade e ao mesmo tempo tão excitada pela simples proximidade de Nicholas.

O marido lhe deu um sorriso e Juliana sentiu-se quase entontecer. A risada de Nicholas a enchia de felicidade e a fazia vasculhar o cérebro em busca de algo engraçado que o estimulasse a sorrir. E quando ele deslizou o braço Por sua cintura, ajudando-a a descer do cavalo, um formigamento lhe percorreu a espinha.

A Sra. Cooper cumprimentou-os à porta com um sorriso luminoso e os convidou a entrar, oferecendo-lhes chá.

— Oh, não, por favor. Não podemos nos demorar -declarou Juliana. — Eu queria apenas... há algo que gostaria de lhe perguntar sobre minha mãe.

— Claro, minha querida. Entrem. — A senhora gesticulou em direção às cadeiras agrupadas na exígua sala de visitas. — O que quer saber?

Juliana hesitou, indecisa em como abordar o assunto, agora que se encontrava face a face com a mulher.

A Sra. Cooper a fitava, expectante.

Juliana tinha a impressão de que estava prestes a perturbar a paz daquela mulher com o que pretendia perguntar.

— A Sra. Lilith Barre, contou-me ontem... bem, disse-me que minha mãe e o Sr. Trenton...

Não precisou terminar a frase, pois os olhos da Sra. Cooper se encheram de indignação.

— Oh, a Sra. Barre! Aquela mulher! Sua mãe sempre foi educada e gentil com ela, não obstante a rudeza com que a prima a tratava. — Os olhos da senhora se encheram de lágrimas, porém tentou disfarçá-las. — Não obstante o modo como a Sra. Lilith Barre agisse, desprezasse ou a acusasse, sua mãe nunca lhe respondeu à altura.

— Então A Sra. Barre contou a minha mãe sobre suas suspeitas?

— Ela a agrediu com palavras como se a culpa fosse da Sra. Holcott. Como se a responsabilidade pela maneira abominável como aquela homem a tratava.

— Trenton? — manifestou-se Nicholas pela primeira vez. — Meu tio?

— Sim! — A Sra. Cooper quase vomitou a palavra. — Ele era demoníaco. Quando penso no modo como se utilizava da Sra. Holcott, como abusava de sua docilidade e...

— Sra. Cooper — interrompeu Juliana, inclinando-se à frente e lhe tomando as mãos. — Está dizendo que o... Sr. Trenton forçava minha mãe?

A expressão da ex-criada endureceu. Os olhos duros e frios.

— Não fisicamente, talvez, mas a forçava de qualquer forma. Sua mãe não queria nada com ele, mas sabia que não podia suscitar-lhe a ira se quisesse continuar vivendo ali. Tinha de fazer aquilo para que você não vivesse na pobreza.

— Ela de fato teve um caso com Trenton? — indagou Juliana.

A Sra. Cooper anuiu, porém apertou a mão de Juliana entre as suas.

— Não culpe sua mãe, minha criança. Era uma boa mulher. Estava apenas tentando sobreviver. Tinha medo daquele homem. Odiava suas visitas. Repugnava-lhe o toque. Nunca houve outro homem para ela além de seu pai. Mas se não cedesse a Trenton, seria atirada às ruas, sem meios para sustentar vocês duas. Não havia nada que pudesse fazer, especialmente com uma criança, a não ser lavar ou costurar.

Juliana concordou com a afirmação da criada. As perspectivas seriam desanimadoras para uma viúva pobre com uma criança. Mesmo os empregos que Juliana conseguira durante sua vida, não estariam disponíveis Para alguém que trouxesse consigo uma criança. Recordava o quanto a mãe se mostrara temerosa sobre o futuro nas semanas que seguiram à morte do marido. A maneira como caminhava de um lado para outro, chorando pela casa e, acima de tudo, o alívio que sentira quando Trenton Barre chegou.

Lembrava o pranto convulsivo da mãe ao abraçá-la e lhe dizer que tinham sido salvas. Juliana imaginou se na ocasião ela sabia o preço que Trenton exigiria por oferecer-lhes abrigo... ou se descobrira após se mudar para a cabana.

— Oh, meu Deus! — ofegou Juliana, cobrindo a face com as mãos.

— Ela fez tudo aquilo por você — continuou a Sra. Cooper. — Não a julgue mal.

— Claro que não — interveio Nicholas. — A culpa foi de meu tio. Todos temos consciência disso. — E deslizando a mão pelo ombro da esposa. — Obrigado, por nos contar o que Juliana precisava saber. Agora temos de ir.

A expressão da Sra. Cooper ainda era de preocupação quando Nicholas guiou a esposa em direção à porta, porém não protestou, limitando-se a segui-los, em silêncio. Após auxiliar Juliana a montar no cavalo, puseram-se a caminho de Lychwood Hall.

O dia que há pouco parecia tão claro e belo se mostrava melancólico para Juliana. A cabeça parecia oca e tinha dificuldades em concatenar qualquer pensamento. Desejava chorar, porém engoliu em seco e segurou as emoções, prometendo a si mesma que não daria vazão ao prato enquanto não se encontrasse sozinha.

Mas ao se aproximarem de Hall, Nicholas diminuiu o trote. Juliana limitou-se a segui-lo. A mente, ainda em turbilhão ante as recentes revelações, levou alguns instantes para perceber que o marido a estava guiando para a cabana onde vivera quando criança.

Sentiu o corpo se retesar e estava prestes a gritar que não queria iria para lá, quando alcançaram o arvoredo que descortinava a pequena casa, onde morara em companhia da mãe. Parecia-lhe extremamente familiar. Sentara-se naquela mesma árvore larga de galhos baixos, lendo e logo atrás da cabana havia o jardim, onde costumava brincaicom suas bonecas. Lá estava a janela do quarto que ocupava, onde se detinha por incontáveis ocasiões a fitar a paisagem.

Surpresa, descobriu que aquele era o lugar onde desejava estar naquele momento. Ambos se detiveram por instantes, deslizando o olhar pelos arredores. Os arbustos e árvores haviam crescido em torno da pequena casa e as janelas eram ocultadas pela vegetação. Parecia fechada e abandonada e, embora Juliana julgasse nunca ter gostado daquele lugar, entristeceu-se ao vê-lo naquele estado.

— Eu devia ter mandando alguém cuidar da cabana

— Nicholas quebrou o silêncio. — Não deveria estar com essa aparência. Ordenarei que cuidem do jardim e limpem a casa.

Juliana lhe voltou um sorriso débil.

— Obrigada, mas acho que ela não tem muita utilidade.

— Não há necessidade de ser útil — replicou o marido.

— Este lugar me é querido. — Juliana o fitou um tanto surpresa! Percebendo-lhe o olhar, ele continuou: — Era onde me abrigava daquela casa grande e fria. Onde você vivia e vinha visitá-la. A Sra. Cooper sempre tinha um pote de doces e me oferecia um prato deles. Sua mãe, sempre gentil, sorria e me dizia que estava mais alto a cada dia. O mesmo que minha mãe costumava dizer.

— Oh, Nicholas! — Num gesto impulsivo, Juliana estendeu a mão e tocou a dele. — Não sabia...

Ele lhe apertou a mão.

— Pode parecer tolo, mas era como um refugio para mim. Um lugar onde me sentia feliz.

— Gostaria que tivesse sido assim para ela — declarou Juliana, pensativa.

— Sinto muito — disse Nicholas, voltando-se para ela.

Juliana meneou a cabeça.

— Não é culpa sua. Aquele homem estragou a vida de todos. Certamente Crandall teria sido uma pessoa melhor se não o tivesse como pai.

Ambos desmontaram e Nicholas amarrou os cavalos em uma das árvores. A porta estava emperrada e ele teve de empurrá-la com os ombros para abrir.

No interior, um leve odor de mofo impregnava o ambiente. Os móveis encontravam-se cobertos com lençóis. Nicholas atravessou o aposento, descerrou as cortinas e destrancou as janelas para que o ar pudesse entrar.

Caminharam vagarosamente pela casa, abrindo uma janela de vez em quando. Juliana escorregou os dedos pelo papel de parede do corredor, relembrando a infância.

— Sempre pensei que minha mãe fosse infeliz devido à morte de meu pai... que durante todos aqueles anos lamentava sua perda.

— Sem dúvida o fazia.

— Sim, mas agora percebo o quão infeliz foi sua vida. Sabia que minha mãe detestava Trenton, embora me fizesse sorrir e ser educada com ele. Podia sentir a pressão dos dedos dela em meus ombros, quando me trazia à presença dele. Deve ter sido tão difícil para ela... e pensar que me aborrecia com minha mãe pelo fato de se mostrar sempre tão infeliz! -As lágrimas lhe inundaram os olhos, incapazes de ser contidas. Juliana levou as mãos à face, dando vazão ao pranto enquanto lutava para se controlar. — Sacrificou-se por mim! Escravizou-se para que eu pudesse viver em um lugar decente, ter boas roupas e educação, enquanto me ressentia pelo fato de ela não sorrir e brincar comigo!

— Ela a amava — afirmou Nicholas, tomando-a nos braços e a aconchegando ao peito. — Fez o melhor que pôde para que fosse feliz e sei que ela não desejaria que se culpasse por isso.

As mãos fortes lhe acariciavam as costas de maneira confortadora e Juliana enterrou a face ao peito largo, entregando-se ao choro convulsivo. Lamentava pelos sacrifícios que a mãe fizera e pela criança que fora, sempre ansiando pela figura materna que tinha antes da morte do pai.

Aos poucos o pranto cedeu, mas Juliana permaneceu desfrutando do calor e segurança dos braços do marido. Da aura sensual e do desejo que dele emanava. Corou de leve, envergonhada pela natureza dos sentimentos que a assolavam quando ele apenas a consolava. Por desejá-lo mesmo quando tomada de compaixão pela mãe. No entanto, não podia negar ou ignorar o calor que se concentrava na virilha e se irradiava por todas as células de seu corpo, queimando-o e o fazendo pulsar.

Num ato impensado, roçou a face na dele, fazendo a mão de Nicholas congelar em suas costas. Por um momento ambos se detiveram, indecisos. Podia ouvir a respiração pesada do marido junto a seu ouvido. Sentir-lhe as batidas aceleradas do coração contra a própria face.

Em seguida, com um movimento lento, Juliana se afastou o suficiente para fitá-lo nos olhos. O desejo que viu estampado neles lhe roubou o ar dos pulmões. Nicholas a queria tanto quanto ela o desejava. Seria um erro negar o que ambos sentiam.

Erguendo-se nas pontas dos pés, ela lhe ofereceu os lábios.

 

Os braços de Nicholas a envolveram, pressionando-a contra a parede sólida do seu corpo másculo, e os lábios carnudos tomaram os dela. Juliana pensou estar imergindo num abismo de prazer, sem temer a queda. Um fogo intenso a engolfava, envolvendo-a no calor da reação do marido.

As mãos fortes se enterraram nos cabelos de Juliana, retirando-lhe os prendedores e deixando que as mechas sedosas lhe caíssem em cascata pelas costas, enquanto lhe segurava a face e devorava seus lábios em um beijo possessivo. Juliana deslizou os braços em torno do pescoço largo, pressionando o corpo contra o dele e reagindo ao beijo com igual intensidade. Ávidos, ambos os corpos se colaram, procurando alívio para o desejo que os consumia.

Acariciando-se mutuamente e retirando as próprias i roupas, mantinham os lábios unidos, girando e remexendo -se numa dança frenética cadenciada pela luxúria. A jaqueta de equitação de Juliana foi atirada em uma cadeira e a capa de Nicholas ao chão. Ele puxou a blusa fina de dentro da saia do traje de equitação, porém os pequenos botões frustravam os movimentos dos dedos longos, até que Juliana viesse em seu socorro.

Ele a fitou com olhar semicerrado, enquanto Juliana executava a tarefa. Tão logo terminou, Nicholas deslizou-lhe a peça pelos ombros e a atirou ao chão. Os seios fartos se destacavam no decote do corpete, incontidos pelos laços de fita que o atavam.

Nicholas segurou uma das pontas da fita azul e a puxou com suavidade. No mesmo instante, as extremidades do corpete de algodão se abriram e ele continuou desatando fita por fita da parte frontal da peça íntima feminina. Os olhos seguindo o caminho dos dedos.

E então ergueu o olhar, fitando-a, e Juliana percebeu o fogo estampado no negro de sua íris. A luxúria que queimava mais ardente que uma labareda.

— Tenho deitado nu todas as noites imaginando isso — sussurrou ele em voz rouca. — Tenho me chamado de tolo todo esse tempo por nos ter imposto a castidade.

Juliana ofegou.

— Eu também.

Nicholas riu, inclinou a cabeça, tomou-lhe os lábios num beijo impetuoso e rápido antes de se afastar e desatar de vez o corpete. Com um movimento lento, as mãos fortes deslizaram pelo colo alvo e macio, enquanto lhe retirava a peça de tecido fino, fazendo-a cair ao chão.

Os olhos negros detiveram-se em lhe apreciar os seios, antes que roçasse os dedos sobre os contornos volumosos. Os mamilos se encaram em resposta, tornando-se mais rijos a cada carícia. Então, Nicholas tomou-os nas mãos, esfregando-os com os polegares, até que cada fibra do corpo de Juliana retinisse de prazer.

Ela deixou escapar um gemido lânguido. Ansiava por mais, desejava desfrutar de todas as sensações às quais tinha direito.

Inclinando-se, Nicholas substituiu os polegares pelos lábios, sugando os mamilos com extrema suavidade, provocando-a a cada movimento da língua contra apele macia, Ela sentiu os joelhos cederem e temeu cair, mas o braço forte a cingiu pela cintura, duro como ferro, mantendo-a de pé, enquanto a boca experiente envolvia-lhe os seios.

Um fluxo de sensações eletrizantes vibrava dentro de Juliana, aumentando a umidade crescente entre suas pernas, onde a pulsação acelerava a cada movimento dos lábios de Nicholas, levando-a a cravar as unhas nos ombros largos, incapaz de conter os gemidos.

Queria que aquela doce tortura se perpetuasse, mas ao mesmo tempo ansiava para que ele a despisse completamente e a levasse ao limite do prazer. Desejava tudo ao mesmo tempo. Os sentimentos em um turbilhão caótico.

Os dedos delicados escorregaram, trêmulos, pelos botões da camisa de Nicholas. Quando a entreabriu, deslizou as mãos por sob o tecido, explorando a pele do peito másculo e deleitando-se com as várias texturas. Encontrou e lhe acariciou os mamilos, sorrindo com o leve gemido que escapou dos lábios do marido.

Com um movimento rápido e preciso, Nicholas se empertigou e arrancou a camisa, dando à esposa a oportunidade de pressionar os lábios contra os músculos do peito másculo. Ele permaneceu imóvel, incapaz de se mexer, enquanto Juliana traçava uma linha de beijos na pele quente, deslizando a língua sobre os mamilos planos. Sussurrando o nome da esposa, segurou uma mecha dos cabelos lisos, enquanto a boca de Juliana lhe explorava o peito.

Por fim, quando pensava que fosse explodir, Nicholas se afastou, retirando as botas e se livrando da calça.

Ao mesmo tempo, Juliana terminou de se despir. A urgência sobrepujando a vergonha e a timidez. Examinou o corpo másculo forte e esguio e uma onda avassaladora de desejo a engolfou. Nunca antes vira um homem nu, mas no marido identificou uma beleza selvagem composta de músculos e ossos fortes.

— Você é linda — murmurou ele, tomando-a nos braços e beijando-a como se sua vida dependesse daquilo.

Juliana sentiu-se derreter por dentro, deleitada com o movimento das mãos longas que lhe exploravam as re-entrâncias do corpo. Elas lhe percorreram o ventre e pousaram entre as pernas, separando-as com uma carícia e a fazendo gemer, enquanto se movia de encontro ao toque sensual.

Nicholas puxou uma das cobertas que cobriam os móveis e a estendeu no chão. Em seguida puxou a esposa consigo, deitando-a sobre o lençol. Postado ao lado do corpo feminino, deteve-se a acariciá-lo e beijá-lo, prolongando-lhe o prazer até levá-la ao limite da insanidade.

E então, ele se moveu, postando-se entre as coxas macias, e com movimentos lentos e precisos a penetrou. Juliana ofegou com a pontada de dor inicial, detendo-o. Nicholas baixou a cabeça para fitá-la nos olhos e percebeu o sorriso da esposa que lhe segurou a cabeça e lhe tomou os lábios num beijo apaixonado. Em seguida, ele deslizou pela convidativa e macia reentrância.

Vagarosamente, Nicholas começou a se mover dentro dela, enquanto Juliana envolvia o dorso reto com os braços. Os dedos delicados pressionados contra as costas desnudas, enquanto ele entrava e saía em ritmo crescente. A paixão fluindo a cada movimento, cada tez mais rápido em direção a algo indefinível que parecia estar além do alcance de ambos. Juliana ofegava, enquanto percebia o corpo se retesar. O desejo aumentando numa espiral que ameaçava arremessá-la a um mundo desconhecido.

E então, uma onda de espasmos explodiu no centro de sua feminilidade, propagando-se por todo o corpo e sacudindo-a com violência enquanto Nicholas deixava escapar um grito de prazer, cedendo ao próprio clímax antes de deixar o corpo descer sobre ela.

Juliana fechou os olhos, saboreando aquele momento. Deslizou a mão pelas costas largas, úmidas de suor. Aquele homem não a amava. Temia que nunca viesse a amá-la. Sabia que o que acontecera ali nascera do desejo que Nicholas sentia e não do amor.

Porém, naquele momento, enquanto o abraçava, era suficiente.

 

Juliana passou o resto do dia numa névoa de felicidade. E a alegria foi ainda maior quando Nicholas, naquela noite, escancarou a porta que unia seus quartos e a tomou nos braços. Fizeram amor mais uma vez e Juliana descobriu-se inebriada quando ele não se afastou depois do ato, mas a manteve cativa em seus braços durante toda a noite, acordando-a pela manhã para se amarem de novo.

Ele a deixou dormir e Juliana sentiu-se envergonhada por só despertar muito depois do café-da-manhã. Corou quando a criada entrou no quarto, com um sorriso luminoso e um tanto malicioso nos lábios, trazendo uma bandeja com o desjejum. No entanto, sentia-se muito feliz para se deixar levar pela vergonha. Então, cantarolou enquanto se banhava na tina escorregadia e vestiu um traje diurno que Célia separou para ela.

O vestido tinha gola alta, que encobria a nódoa vermelha na base do pescoço, onde a barba curta de Nicholas lhe arranhara a pele aquela manhã. A criada, pensou divertida, além de observadora era discreta.

De banho tomado e adequadamente vestida, Juliana desceu a escada, encaminhando-se à sala de visitas, controlando a expressão do rosto para não denotar tanta felicidade em uma casa enlutada. Lá, encontrou Seraphina e Lilith. A mãe costurava algo e a filha olhava pela janela, parecendo enfadada.

Seraphina ergueu o olhar, exibindo um sorriso quando Juliana entrou.

— Oh, estava esperando por uma distração. Winnie foi caminhar pelo campo e me deixou aqui sem nada para fazer.

Lilith devolveu-lhe o olhar, fitando, em seguida Juliana de soslaio e voltou a atenção à costura, evidentemente desinteressada em aliviar o tédio da filha.

— O que gostaria de fazer? — indagou Juliana, em tom amigável. Pensou em sugerir um jogo de cartas, mas deteve-se a tempo, imaginando que aquela não era uma opção apropriada para Seraphina, devido ao vício que a destruíra.

— Nada — replicou a irmã de Crandall. — Estava disposta a juntar-me a Winnie no jardim.

Juliana sabia que muitas cartas de condolências haviam sido enviadas, que precisavam ser lidas e respondidas, mas estava certa de que a tarefa não atrairia Seraphina.

— Talvez possamos ir até o jardim colher algumas flores para encher os vasos.                          

Seraphina torceu o nariz para a idéia.

— Deixarei isso por sua conta e de Winnie. A vida no campo é muito enfadonha. Até mesmo as distrações são entediantes.

— Realmente, Seraphina — interveio Lilith em tom áspero, erguendo a cabeça e lançando-lhe um olhar frio. -Não espero que Juliana faça luto por seu irmão. Não me surpreende o fato de ela pensar apropriado encher a casa de flores, apesar de meu filho ter sido enterrado há apenas dois dias. Mas pensei que ao menos você pudesse mostrar alguma reserva e respeito.

— Desculpe-me — escusou-se Seraphina, em tom disciplinado.

— A mim também. — Juliana apressou-se em dizer. -Falei sem pensar. Não colocaremos flores nos vasos.

— Faça como quiser — replicou Lilith, em tom gélido. -Afinal, está é sua casa agora.

Juliana reprimiu um suspiro exasperado. O luto não havia abrandado as mágoas de Lilith.

Naquele instante, um baque surdo fez-se ouvir no corredor e Juliana ergueu-se num impulso, correndo em seguida, em direção à porta. Lá, encontrou uma jovem de joelhos, recolhendo cacos de um vaso quebrado. Ela ergueu o olhar para a patroa com os olhos rasos d'água.

— Desculpe-me, senhorita.... não tive intenção. Foi um acidente.

— Está falando com Lady Barre. — A voz irritada de Lilith soou atrás delas. — Não se refira a ela como senhorita.

A face da jovem se tornou escarlate pelo embaraço, enquanto ela se erguia e fazia uma mesura para ambas.

— Sinto muitíssimo, m... milady. Não quis faltar-lhe com o respeito. Sou nova aqui. Limparei tudo num instante — afirmou, voltando um olhar suplicante à dona da casa.

Juliana percebeu que a jovem temia perder o emprego.

— Está tudo bem. Apenas pegue uma vassoura e retire os cacos.

Lilith voltou-se para Juliana, uma das sobrancelhas erguida em expressão típica de desaprovação.

— Contratou uma criada nova?

— Não. Quero dizer, acho que a governanta o fez. Porém, não me falou nada sobre isso.

O olhar de Lilith não deixava dúvidas de que o controle de Juliana sobre a casa deixava a desejar.

A criada, que havia partido em busca da vassoura, voltou.

— A Sra. Pettibone contratou-me esta manhã. Teve que fazer uma rápida substituição, pois uma das criadas pediu demissão.

— Quem? — indagou Juliana, surpresa.

— Não sei ao certo, m... milady — replicou a jovem. — Mas, segundo ela disse, foi bem repentino.

— Por mais que aprecie deter-se no corredor a mexericar com a criadagem — começou Lilith -, acho que deve deixá-la fazer seu serviço.

A jovem girou nos calcanhares e desapareceu depois do comentário de Lilith. Juliana sentiu a face afoguear e os dedos se encresparem. Gostaria de replicar que nada daquilo era da conta de Lilith, porém lutou para controlar a irritação. Afinal, a mulher havia perdido o filho recentemente.

— Se me der licença — disse por fim Juliana, lançando mão de todo o seu autocontrole. — Vou falar com a Sra. Pettibone.

— Por que não? — retrucou Lilith, girando para voltar à sala de visitas.

Seraphina, que estivera parada atrás delas durante todo o tempo, lançou um sorriso envergonhado a Juliana, dando de ombros. Em seguida, foi atrás da mãe, resignada.

Juliana avançou pelo corredor em direção à cozinha. Confiava na capacidade da Sra. Pettibone e não se importava com o fato de a governanta ter contratado uma criada sem consultá-la, mas não se achava capaz de continuar na sala de visitas trocando amenidades com Lilith, portando aproveitou a desculpa para sair.

Encontrou a Sra. Pettibone no corredor em frente à cozinha, chamando a atenção da criada que quebrara o vaso. Quando a avistou, a governanta veio em sua direção, parecendo mortificada e dispensou rapidamente a jovem.

— Milady — começou, vexada. — Por favor, desculpe-me por não consultá-la sobre a contratação da criada. -E, lançando um olhar crítico a jovem que se afastava: — Acho que ela não tem experiência suficiente, mas não houve tempo para um bom recrutamento.

— O que aconteceu? — inquiriu Juliana. -A criada me contou que uma das serventes partiu de repente?

A Sra. Pettibone anuiu, guiando Juliana de volta pelo corredor em direção à sua saleta particular.

— Posso lhe servir um chá, milady?

— Sim, obrigada — concordou Juliana, imaginando que conversar com a governanta seria mais interessante do que fazê-lo com Lilith.

A Sra. Pettibone abriu a porta e emitiu uma ordem Para que fosse trazido o chá. Em seguida, retornou e sentou-se ante a anuência de Juliana.

— Peço-lhe desculpas, milady. Tudo esteve desordenado esta semana, com esse constante entra-e-sai e interrogatórios aos criados. E então Annie Sawyer partiu. Aquela garota tola! Disse que estava com medo de permanecer nesta casa e queria ir embora.

— Oh, sim. — Juliana recordava-se da criada que se mostrara trêmula e assustada durante o café-da-manhã do dia seguinte a morte de Crandall. — Bem, suponho que um assassinato na casa é o bastante para assustar qualquer um.

A Sra. Pettibone torceu o nariz, com expressão inalterada.

— Não vejo motivos para ela ter ficado tão assustada. Não é como se tivesse um maluco solto por aí atacando todo mundo, não acha?

— Sim — concordou Juliana. — Diria que o assassino tencionava fazer mal apenas a Crandall.

— E, Deus sabe, havia muitos que o detestavam. — A governanta deteve-se, parecendo agastada ao perceber o quanto dos próprios sentimentos em relação ao ex-patrão acabara de deixar transparecer. — Desculpe-me, milady. Não deveria ter dito isso.

— Por que não? — questionou Juliana. — E verdade. Não há motivo para fingir que Crandall era um homem agradável.

A Sra. Pettibone deixou escapar um suspiro.

— É triste, mas o policial continua perguntando constantemente sobre o ferreiro. -A expressão da governanta deixava transparecer sua opinião sobre aquilo. — Como se Farrow fosse atacar um homem pelas costas. Eu disse ao policial que havia muitos que desejavam a morte do Sr. Crandall e que ele devia procurar em outro lugar. — E, dando de ombros: — Bem, acho que não foi para ouvir isso que veio até aqui. É sobre o fato de Cora ter quebrado o vaso, não? Não se preocupe. Providenciarei para que seja punida e lhe garanto que não voltará a acontecer. Designei-lhe a tarefa de limpar o chão. Assim, não poderá quebrar nada.

— Estou certa de que Cora estava apenas nervosa -afirmou Juliana. — Sem dúvida, com a prática se aperfeiçoará.

— Terá de melhorar — concordou a Sra. Pettibone com expressão severa.

Juliana deteve-se por mais algum tempo em companhia da governanta, tomando uma xícara de chá, discutindo os afazeres da casa e acalmando-a quanto ao incidente com a nova criada. Por fim, despediu-se, rumando à ala principal da casa.

Pensou, relutante, se devia retornar à sala de visitas. Na condição de dona da casa, Lilith e Seraphina eram de alguma forma sua responsabilidade. Não havia como melhorar o humor de Lilith, mas podia pensar em algo que distraísse a filha.

Entretanto, quando virou a curva para o corredor principal, encontrou Nicholas caminhando em sua direção, e tudo pareceu desapareceria mente de Juliana. Ele sorriu e seu coração se encheu de alegria.

— Nicholas.

— Juliana. — O marido a alcançou, estendendo-lhe as mãos e deu-lhe um sorriso encantador. — Estava à sua procura.

— Estive conversando com a Sra. Pettibone sobre uma das criadas.

Quero convidá-la para um passeio a cavalo. — E, inclinando a face, sussurrou-lhe ao ouvido. — Desejo estar sozinho com você.

Juliana não pôde se furtar a lhe retribuir o sorriso com os olhos brilhando de felicidade.

— É mesmo?

— Sim. — Os olhos negros a fitavam, predadores. -Ordenei que encilhassem nossos cavalos e orientassem a cozinha a nos preparar um piquenique.

A idéia lhe pareceu perfeita, o que a fez concordar de pronto.

— Vou subir para me trocar.

— Está bem. — No entanto, Nicholas manteve nas suas as mãos da esposa, puxando-a para si e se inclinado para murmurar: — Talvez possa ajudá-la.

Os olhos negros escureceram ainda mais, tirando o fôlego de Juliana.

— Milorde, acho que levaríamos uma eternidade se o fizesse.

O comentário arrancou um sorriso de Nicholas.

— Talvez tenha razão. Acabaríamos não saindo de seu quarto — dizendo isso, pressionou os lábios contra a testa da esposa e mais abaixo, onde lhe roçou a boca. O coração de Juliana flutuou dentro do peito. Desejava se atirar nos braços de Nicholas e beijá-lo apaixonadamente no meio do corredor.

Mas ele se afastou, erguendo-lhe a mão e depositando um beijo suave na juntas dos dedos delicados. Em seguida, gesticulou em direção à escada.

— É melhor ir agora, ou não faremos nosso passeio. Juliana assentiu e, incapaz de falar, apressou-se em direção ao próprio quarto.

Meia hora mais tarde, ela e Nicholas cavalgavam através da propriedade, dirigindo-se, não ao vilarejo, mas afastando-se dele. Cruzaram o prado que se estendia além dos jardins e pomar. O ar recendia a feno novo e o sol refletia cálido nos ombros de Juliana.

— Para onde estamos indo? — indagou ela, embora não se importasse, desde que tivesse a companhia de Nicholas.

— Há um moinho abandonado não muito longe daqui — replicou Nicholas. — Está em ruínas, mas tem uma bela vista. Achei que seria um lugar agradável para sentarmos e observarmos o rio.

Juliana sorriu. A cena lhe parecia perfeita.

— Acho que estou me lembrando dele. Costumávamos explorar aquele local. Parecia exótico e excitante.

Nunca mais voltara lá depois da partida de Nicholas, e aos poucos o lugar caiu no esquecimento. Mas naquele momento, recordava-se das paredes de pedra cinza e do grande moinho.

Passaram pelas chácaras de vários inquilinos e as crianças corriam para saudá-los. Em algumas, as esposas se juntavam aos filhos para cumprimentá-los. Nicholas, ao que pôde perceber, viera preparado para aquilo, pois a cada chácara, enfiava a mão no bolso e de lá retirava balas que jogava para as crianças. Detinham-se alguns instantes para conversar com os adultos e Nicholas a apresentava às mulheres que se curvavam em uma cortesia.

— Lembro-me de você quando era desse tamanho -disse uma das mulheres a Juliana, levando a mão abaixo da cintura. Era uma senhora roliça de cabelos negros mareados de branco. — Dos dois, correndo em direção ao rio para pescar.

Juliana sorriu. Naquela época não se importava com a pescaria. Ficava feliz apenas em desfrutar da companhia de Nicholas.

— Sim, eu me lembro.

Além daquela chácara, o caminho se estreitava em uma trilha, quando adentraram o bosque. Instantes depois, emergiram do arvoredo e estacaram, apreciando a paisagem à frente. O rio passava incólume diante de sua vista, estreitando-se naquele ponto. A água cinza-esverdeada que se movia preguiçosa mais acima, se encontrava ali agitada. O velho moinho estava lá, parcialmente oculto pelos arbustos que haviam crescido ao seu redor. Juliana deslizou o olhar por toda a roda de madeira e em seguida às paredes de pedra.

Nicholas desmontou e se aproximou para ajudá-la. O caminho que levava ao moinho era escorregadio e repleto de pedras e seria mais fácil guiar os cavalos a pé até lá. Quando deram os primeiros passos, Juliana percebeu um movimento na porta do moinho e estacou, levando a mão ao braço de Nicholas para detê-lo.

Ele seguiu o olhar da esposa. Uma pessoa estava saindo do moinho e virou para trás para falar com alguém. Era. uma mulher, trajando um vestido preto e segurando um chapéu nas mãos. Apesar das sombras que se projetavam no moinho, os cabelos louros se destacavam.

Era Winifred! Ela se afastou da porta e a pessoa com quem falava emergiu do moinho. Era um homem, de cabelos louro-escuros que se inclinava para escutar o que a jovem dizia.

Juliana ofegou, surpresa, e Nicholas se retesou a seu lado. Ligeiro, deu um passo atrás, refugiando-se à sombra das árvores, levando Juliana e os cavalos. Permaneceram imóveis, observando a cena.

Winifred e o homem conversaram por alguns instantes e por fim, ele se inclinou e tomou-lhe os lábios num beijo longo, que não dava margem a dúvidas quanto à natureza daquele relacionamento. Em seguida, giraram e contornaram a construção, dirigindo-se às árvores atrás do moinho.

Juliana fitou Nicholas, sem saber o que dizer.

— Acho que seria melhor fazermos nosso piquenique em outro lugar — sugeriu ele, indulgente, tomando-lhe a mão e a guiando rio acima.

Ambos nada disseram durante o percurso. O leito do rio descrevia uma curva suave e as árvores se inclinavam sobre as pedras que o ladeavam, fazendo com que o moinho se perdesse de vista. Nicholas encontrou um aprazível recanto ao lado da corrente de água. Um pedaço de terra escondido por árvores, arbustos e duas grandes rochas.

Ele estendeu o lençol sobre a terra e ambos se acomodaram com a cesta de piquenique entre eles. Por um instante, nada disseram, limitando-se apenas a apreciar a paisagem.

— Conhece aquele homem? — indagou Juliana por fim.

Nicholas anuiu.

— Pareceu-me Sam Morely. E um de meus inquilinos... um homem trabalhador, do tipo honesto, pelo que ouvi dizer.

— Acho que não há como negar que o que vimos era um...

— Encontro amoroso? — completou ele. — Acho que ficou claro o que vimos lá.

Sei que é errado — começou Juliana. — Mas, ainda assim, acho difícil culpar Winnie. Crandall era um marido abjeto e a fazia infeliz.

— Tenho certeza disso. Esse parece ter sido seu maior talento em vida — replicou Nicholas, em tom seco. — Mas não podemos ignorar o leque de possibilidades que isso nos abre.

— Dá a Winifred razões para ter desejado se livrar do marido — concordou Juliana.

— E outro suspeito — afirmou Nicholas. — É difícil imaginar Winifred, por mais que ela o detestasse, nocauteando Crandall com um atiçador.

— Mas o homem que amava a esposa de Crandall e desejava salvá-la daquela vida ou até mesmo se casar com ela, seria capaz de fazê-lo — opinou Juliana, completando-lhe o raciocínio. — Sim. Tem razão. Ele estava presente naquela noite? Você o viu?

— Sim. Ele nos cumprimentou. Deve ter esquecido.

— Eram tantas pessoas — admitiu Juliana. — Mas como você mesmo disse, se ele estivesse no jardim não seria difícil entrar na casa e dirigir-se àquela sala. Talvez tenha seguido Crandall até lá.

Juliana abriu a cesta e ambos comeram enquanto conversavam, sem sequer prestar atenção na deliciosa refeição que a cozinheira havia preparado, de tão absortos no assunto.

— Ocorreu-me mais uma coisa — anunciou Juliana, quando a discussão sobre Winnie e o amante arrefeceu. — Uma das criadas, Annie, pediu demissão repentinamente. A Sra. Pettibone teve de contratar uma nova serviçal. — Nicholas a fitou com uma das sobrancelhas erguidas. — Contou-me que Annie estava muito assustada e disse à governanta que queria voltar para casa. Era ela a criada que deixou cair o prato no desjejum da manhã seguinte à morte de Crandall.

— O que está dizendo? — indagou Nicholas. — Acha que ela teve algo a ver com o crime?

— Não sei. Não dei muita importância ao fato na ocasião. Não achei o medo da criada infundado, já que um homem havia sido assassinado naquela casa. Muitos criados pareciam nervosos. Até mesmo eu fiquei um tanto assustada. Porém, algum tempo depois, todos pareceram se acalmar. Como disse a Sra. Pettibone, não se trata de um assassino aleatório. O criminoso não teria razões para fazer mal a mais ninguém.

— A não ser que tivessem presenciado algo — concluiu Nicholas. — É isso que está sugerindo?

— Não tenho certeza — admitiu Juliana. — Talvez não signifique nada além de uma criada facilmente amedrontável. Mas se ela viu alguém seguir Crandall até aquela sala? Ou se presenciou algo que possa identificar o criminoso... como aquela jóia que encontrei?

— Então teria uma boa razão para se preocupar com a possibilidade de o assassino tê-la visto e decidir que ela é uma perigosa testemunha para deixá-la impune.

Juliana assentiu com um gesto de cabeça.

— Talvez fosse interessante irmos até o vilarejo amanhã — sugeriu Nicholas. — Visitar Annie e descobrir por que está tão assustada.

— Acho uma ótima idéia.

Nicholas empurrou o prato para o lado, e deitando-se de lado, apoiou o peso do corpo no cotovelo.

— E agora — começou com um sorriso sensual — estou cansado de falar sobre crimes e assassinos. Vim até aqui para ficar a sós com minha esposa. — Estendeu a mão em direção a Juliana e ela a tomou de pronto.

Em seguida, Nicholas a puxou em sua direção e ela se aninhou contra o corpo másculo com a cabeça apoiada na curvatura do braço musculoso.

— Desejei tê-la só para mim durante toda a manhã. Quando estava sentado com o administrador da propriedade, tudo em que conseguia pensar era em você. Não assimilei nem a metade do que ele falou — confessou Nicholas, fitando-a um olhar intenso.

A outra mão dele se encontrava espalmada sobre o estômago da esposa e, enquanto falava, deslizava-a para cima em direção ao volume dos seios firmes. De imediato, Juliana sentiu uma descarga de desejo atingir-lhe a virilha e fechou os olhos, inebriada com as sensações que ele lhe despertava.

Nicholas sorriu ao perceber o evidente desejo estampado no rosto dela e inclinou a cabeça para lhe tomar os lábios, enquanto murmurava:

— É tão linda.

Em seguida, beijou-lhe a boca outra vez, deslizando os lábios pela face delicada até alcançar o lóbulo da pequena orelha. Juliana estremeceu em resposta ao toque sensual, ciente da umidade que lhe crescia entre as pernas e da ânsia que aumentava até arrebatá-la por completo. Sentiu um arrepio de antecipação.

— Foi para isso que me trouxe aqui? — indagou, provocante, entreabrindo os olhos para fitá-lo. Os cabelos negros brilhavam como asas de um corvo à luz do sol e os olhos queimavam de desejo.

— Exatamente — confirmou ele, levando os lábios a pescoço delgado. — Pretendia raptá-la e arrebatá-la.

Juliana deixou escapar uma risada ofegante.

— Milorde... é deveras audacioso.

— Milady... estou ardendo de desejo — replicou ele, deixando a mão viajar pelo ventre de Juliana e alcançando a reentrância cálida entre as coxas macias.

Juliana descobriu-se apartando as pernas de modo despudorado ao toque ousado, enquanto o marido a estimulava através do tecido das saias, fazendo aumentar a labareda de fogo que a queimava. Nicholas inclinou a cabeça e tomou-lhe os lábios num beijo profundo, enquanto lhe erguia a saia e a anágua, deixando-lhe as pernas expostas. Em seguida, deslizou a mão pelas panturrilhas cobertas pelas meias e mais acima, até atingir o centro de sua feminilidade.

Acariciou-a por sobre o tecido fino da peça íntima, que se encontrava totalmente úmida, fazendo-a arquear o corpo em direção ao toque sensual.

— Nicholas...

A urgência da voz feminina fez-lhe o desejo crescer em espiral. Sem mais delongas, desatou os laços de fita que lhe atavam a roupa íntima e escorregou a mão pelas reentrâncias da feminilidade, roubando o ar dos pulmões de Juliana.

— E se alguém nos vir? — indagou ela com um fio de voz.

— Ninguém passará por aqui — assegurou-lhe Nicholas. — Mas se quiser que eu pare...

— Não! — Juliana sorriu para o marido com olhar promissor e estendeu os braços, enlaçando-lhe o pescoço e puxando-o para si.

O beijo foi lento e profundo, levando o desejo de Juliana a um ponto insuportável. Ele acariciou-lhe a intimidade e quando a esposa apartou as pernas em um convite explícito para que a penetrasse, Nicholas se postou entre as coxas macias, livrando-se das próprias vestes.

E então estava dentro dela, preenchendo-a por completo. Em breve, os corpos ondulavam em total harmonia, em busca da satisfação plena.

 

Na tarde seguinte, Nicholas e Juliana foram ao vilarejo visitar a casa dos pais de Annie Sawyer, onde, surpresos, descobriram que a ex-criada não estava.

A mãe, excitada pela chegada de tão ilustre visita, mostrava-se incapaz de proferir sequer duas palavras coerentes. Deslizava pelo ambiente, limpando o pó de algumas cadeiras, antes de se decidir onde eles deviam sentar. Por fim, precipitou-se em direção à cozinha para preparar o chá. Só então, quando as formalidades haviam sido observadas e recebidos os elogios de Juliana quanto à residência e à qualidade dos biscoitos é que a senhora se acalmou o suficiente para revelar que Annie partira um dia antes.

— Ela foi para a casa da prima em Bridgewater — informou a Sra. Sawyer, lançando um olhar à filha caçula como se a pedir apoio.

' — Bridgewater? — indagou Juliana. Nicholas anuiu.

— Fica à oeste daqui. Mais ou menos duas horas a cavalo.

— Sim — confirmou a Sra. Sawyer. — Insistiu tanto para ir. Para lhes dizer a verdade, minha filha nunca mais foi a mesma depois da morte do Sr. Crandall. Tem estado nervosa e sobressaltada.

— Ela lhe contou o motivo? — inquiriu Nicholas.

— Disse-me que estava assustada pelo fato de ele ter sido assassinado. Argumentei que não havia razão de uma coisa daquelas acontecer com ela, mas Annie não me disse mais nada. Tentei convencê-la a voltar a Lychwood Hall, alegando que lhe dariam o emprego de volta. Que compreenderiam que estava assustada, mas minha filha não concordou. E então, quando recebeu aquele dinheiro ontem... simplesmente partiu.

— Dinheiro? — questionou Juliana, empertigando-se na cadeira. — Ela recebeu dinheiro?

A mãe assentiu, enfática.

— Oh, sim, milady. Muito dinheiro.

— Como? Quem deu dinheiro a Annie?

— Não sei. Estava embrulhado num pacote do lado de fora da porta, quando saímos ontem de casa. O nome de Annie estava escrito nele. Ela ficou lívida e tive de obrigá-la a abri-lo. E quando o fez, encontrou cinqüenta libras esterlinas dentro!

— Havia alguma carta no pacote? — Nicholas quis saber.

— Não. Nada, milorde. Não sabia o que fazer com aquilo. Perguntei-lhe quem havia mandado aquela soma, mas Annie não revelou. Limitou-se a dizer que era melhor que eu não soubesse. Depois disso, juntou suas coisas e tomou a carruagem do correio quando passou. Não consegui arrancar nada dela. — A senhora fitava-os, ansiosa. — Ela não está metida em alguma encrenca, está? Minha Annie é uma boa menina... de fato é.

— Acho que ela não fez nada de errado — assegurou Nicholas. — Mas é possível que saiba algo sobre a morte do meu primo.

— Annie? Como poderia saber qualquer coisa? — A mãe parecia bastante apreensiva.

— Não sei, mas preciso falar com ela. Se de fato sabe de algo sobre o assassino de Crandall, pode estar correndo perigo.

A Sra. Sawyer ofegou, os olhos dilatados.

— Minha Annie? Em perigo? Bertram Gorton... ele é um açougueiro em Bridgewater. E onde ela está. Minha sobrinha Ellen casou-se com ele há dois anos e Annie foi para a casa deles. -A senhora apressou-se em explicar o paradeiro da filha. — Vai encontrá-la? Irá ajudá-la?

— Sim — prometeu Nicholas. — Farei todo o possível para ajudá-la.

— Acha que Annie sabe quem matou Crandall? — indagou Juliana minutos depois, quando ambos se encontravam acomodados na carruagem a caminho de Lychwood Hall.

— Não sei, mas é óbvio que sabe de algo que a assustou — replicou Nicholas. — O que quer que ela saiba, o assassino está temeroso de que Annie revele. Deve ter sido ele a lhe enviar o dinheiro.

— Como o criminoso pode ter certeza de que ela não contará o que sabe? Como pode saber se daqui a alguns dias, meses, ou mesmo anos, Annie não será consumida pelo remorso e revelará seu nome?

— Ele não pode — replicou Nicholas. — E é por esse motivo que Annie está em perigo e continuará até que revele o que sabe. Uma vez que tenha contado, não haverá razão para o assassino persegui-la. Mas enquanto permanecer em silêncio, o criminoso estará seguro... e pode tentar assegurar o silêncio eterno de Annie, matando-a.          

— Então sugiro irmos ao encontro dela amanhã — opinou Juliana.                                                                  

Nicholas anuiu, pensativo.                                        

— Mas acho melhor não revelarmos a ninguém aonde   vamos e por que motivo.                                                

Acha que é alguém da casa, não? — questionou Juliana, em tom calmo.                                                    

Não tenho certeza. Pode ter sido alguém de fora. Mas Annie estava temerosa de permanecer naquela casa, o que me leva a pensar que sabe ser um de nós e não alguém do vilarejo, do contrário, não procuraria refúgio na casa dos pais.

— E não podemos esquecer do dinheiro.

— Sim. Tem de ser alguém que tenha recursos. O ferreiro e Sam Morely têm uma boa renda, mas não os imagino capazes de arranjar cinqüenta libras de uma hora para outra.

— Acho que será melhor dizermos a todos em Lychwood Hall que ela foi embora do vilarejo. Assim, quem quer que seja o assassino, pensará que o suborno teve êxito.

Nicholas concordou com um gesto afirmativo de cabeça.

— Sim. E gostaria de ver a expressão de cada um quando ficarem sabendo do desaparecimento de Annie.

Sendo assim, durante o jantar, quando a sopa foi servida, Juliana tomou a palavra em tom casual.

— Fomos visitar Annie Sawyer esta tarde — declarou, olhando em torno e avaliando a reação de cada um. A maioria a fitou, com expressão impassível.

— Quem? — indagou Seraphina.

— Uma das criadas — explicou Winifred. — A jovem     que pediu demissão outro dia.

— Oh. — Seraphina limitou-se a dizer, voltando a atenção ao próprio prato.

— Sim — confirmou Juliana, incapaz de definir se o olhar de Winifred fora de ansiedade ou surpresa.

— Ela voltará a trabalhar aqui? — indagou a esposa de Crandall. — Acho que estava apenas aborrecida com o que... bem, com o que aconteceu.

— Bobagem. Eu não a aceitaria de volta – aparteou Lilith, com desdém. — Obviamente não é confiável.

— Acho que ela não voltará — interveio Nicholas. — Ela saiu da cidade.

— Que diabos está falando? — indagou Sir Herbert. — Para onde ela iria?

— Não faço idéia — replicou Juliana. — A mãe não soube nos dizer. Contou-nos que ela tomou a carruagem do correio ontem. Disse-nos que estava muito assustada, o que me faz imaginar o que a teria amedrontado.

— Por que estamos falando de uma criada? – inquiriu Seraphina, entediada.

— Aquela jovem é uma tola — afirmou Lilith. — Temia fantasmas ou coisa parecida. — Uma boa surra a faria esquecer essas bobagens.

— Sim. Sei como é afeita a esse tipo de solução — retrucou Nicholas, em tom frio, os olhos negros impassíveis e duros como aço.

Lilith ergueu as sobrancelhas e voltou a atenção à sopa.

— Acho que ela sabe de alguma coisa — comentou Juliana.

— Sabe de alguma coisa? — repetiu Winifred, parecendo desconcertada.

— Quer dizer sobre o assassino? — indagou Sir Herbert.

— O quê? — quis saber Lilith, aparentando surpresa.

— Acha que Annie matou Crandall?

— Bem... — Sir Herbert voltou o olhar para Winifred, e em seguida o desviou, remexendo-se um tanto desconfortável na cadeira. — Acho que isso seria impossível. Crandall, bem, ainda tinha uma certa reputação.

Seraphina pareceu, enfim, se interessar pelo assunto, pois anuiu em concordância com o marido antes de acrescentar:

— Annie é uma bela jovem.

— Acha que Crandall tomou liberdade com a criada?

— Peter Hakebourne se manifestou. — E ela o matou?

— Quanta bobagem! — exclamou Lilith, os olhos faiscando de raiva. — Como pode dizer uma coisa dessas? Acha que pode denegrir a reputação de meu filho dessa forma só por ele não estar mais presente para se defender? Não admitirei isso!

Juliana apressou-se em intervir.

— Asseguro-lhe que não estamos tentando difamar Crandall. Não creio que Annie o tenha matado. Mas e se ela viu algo? Ou descobriu alguma coisa que incrimine alguém? — indagou, alternando o olhar entre os presentes, esperando vislumbrar um sinal que traísse algum deles. Se estivesse certa e o assassino tivesse perdido o rubi, ele ou ela teria se dado conta de que a gema desaparecera. Porém não conseguiu perceber nada no olhar dos presentes.

— Mas se fosse esse o caso, por que Annie não teria dito? — indagou Sir Herbert.

— Não sei. Obviamente estava bastante assustada. Deve ter imaginado que o assassino iria atrás dela se revelasse algo — argumentou Nicholas.

— Mas se ela partiu, como saberemos o que viu? — inquiriu Seraphina.

— Acho que não será possível — replicou Juliana, franzindo o cenho. Não era difícil transparecer frustração, já que não conseguira divisar nada suspeito nos semblantes à mesa.

— Bem — começou Lilith em tom firme. — Esta não é uma conversa apropriada para a hora do jantar.

Juliana desistiu. Submissa, pegou a colher e a discussão teve fim.

Ambos não revelaram a ninguém os planos de viajar para Bridgewater. Quando desceram para tomar o desjejum, encontraram Lilith e Peter Hakeboume sentados à mesa em companhia de Sir Herbert. Falavam sobre assuntos de pouco interesse. Comentaram sobre o tempo e os planos de Sir Herbert de comprar dois cavalos para sua carruagem.

Lilith inquiriu de maneira polida, sem mostrar muito interesse, quais seriam os planos de Juliana para aquele dia.

— Acho que irei visitar a Sra. Cooper — mentiu ela. Era a melhor desculpa em que podia pensar para justificar sua ausência na maior parte do dia.

Lilith assentiu.

— Mais chá?

— Sim, obrigada — agradeceu Juliana, estendendo a xícara.

Lilith parecia estar bem disposta naquela manhã. A face estava mais corada e se mostrava mais participativa na conversação.

Comentavam sobre a colheita e Sir Herbert se mostrou bastante interessado no assunto, ao contrário do Sr. Hakebourne. Juliana imaginou por quanto tempo a falta de dinheiro sobrepujaria o tédio que o amigo de Crandall demonstrava por estar enfurnado no campo.

Juliana remexeu a comida no prato. Encontrava-se demasiadamente ansiosa para conseguir comer. Tomou alguns goles do chá, mordiscou uma torrada e observou os demais pratos à mesa, na esperança de que em breve terminassem o desjejum. Não via a hora de tomar a estrada, temendo que Annie pudesse pensar em ir para outro lugar antes de a encontrarem.

Por fim, os demais terminaram o desjejum.

— Se me dão licença... — manifestou-se Juliana.

— Claro, minha querida. — Nicholas ergueu-se de imediato para lhe puxar a cadeira.

Juliana se pôs de pé num impulso. Quando o fez, sentiu uma leve vertigem e oscilou. O marido se apressou em segurá-la pelo braço.

— Você está bem? — indagou, franzindo o cenho.

— Sinto-me... um tanto... tonta — declarou Juliana, surpresa. Em seguida, levou a mão ao estômago, que parecia revirar.

— Talvez seja melhor se deitar — sugeriu Lilith.

— Sim, apenas por um minuto — concordou Juliana. Ambos deixaram a sala com Juliana amparando-se no braço do marido. O chão parecia se mover debaixo de seus pés, tremular e ondear...

Estacou, levando a mão à boca. Engoliu em seco, esforçando-se para não vomitar. Seria humilhante expelir o desjejum diante de todos, especialmente de Nicholas.

— Desculpe-me — sussurrou.

— Não há do que se desculpar — garantiu-lhe o marido. — Está muito pálida. Vou carregá-la pela escada.

— Não. Posso andar — protestou Juliana, mas ele ignorou a negativa, erguendo-a nos braços e subindo os degraus.

Juliana fechou os olhos e apoiou a cabeça ao ombro largo, tentando desesperadamente controlar a náusea. Teria comido algo estragado? Ou estaria... oh, não. Seria muito cedo... Mesmo que tivesse engravidado, os enjôos matinais não começariam tão depressa. Ainda assim, não conseguiu conter a pontada de prazer. Um bebê... de Nicholas.

Continuou engolindo em seco e percebeu, surpresa, que salivava em excesso.

Havia acabado de entrar no quarto, onde o marido a pousou na cama, quando a criada chegou, apressada.

— A Sra. Barre chamou-me e me disse que estava doente! — exclamou, acorrendo à beirada da cama e estendendo a mão para tocar a testa da patroa para se certificar de que não estava febril.

O quarto parecia rodar violentamente e Juliana trincou os dentes.

— Estou nauseada...

— Vou providenciar uma bacia — anunciou Célia em tom calmo, retirando-se em seguida.

Juliana lançou mão dos últimos resquícios de força. Não demoraria muito e estaria vomitando. O estômago Parecia se contorcer. Não queria que Nicholas a visse naquele estado.

Acho que é melhor você ir — aconselhou-o Juliana, esforçando para soar normal.

— Não. Iremos outro dia — retrucou Nicholas, decidido. A face máscula se encontrava mais pálida do que o normal. — Ficarei a seu lado.

— Não, por favor. Ficarei bem. É apenas um enjôo, provavelmente por algo que comi. Célia cuidará de mim.

— Mas eu...

— Não é necessário que fique — interrompeu ela, estendendo a mão, suplicante. — Quero que vá. Precisa conversar com ela. Não podemos deixar que escape por entre nossos dedos. Estarei recuperada quando voltar. Acho que de fato não podemos esperar.

Nicholas parecia indeciso.

— Não posso deixá-la nesse estado.

— É apenas um enjôo, senhor — afirmou Célia, retornando com a bacia. — Acho que em breve teremos boas notícias — garantiu, sorridente.

— O quê?

— São recém-casados. Não seria nenhuma surpresa — continuou a criada, com um olhar de sabedoria.

— O quê? — repetiu Nicholas, parecendo confuso. -Está brincando? -Voltou o olhar à esposa sem conseguir conter o sorriso que lhe curvava os lábios. — Será? Acha que pode ser?

— Não sei — retrucou Juliana, pesarosa. Esperava que aquele não fosse um enjôo matinal de gravidez. Não estava certa se agüentaria sentir-se daquela maneira deplorável por vários meses.

Nicholas exibia um sorriso radiante e inclinou-se para lhe beijar a fronte.

— Está bem. Eu vou. Mas talvez fosse melhor chamarmos um médico.

— Ainda é muito cedo para sabermos — murmurou Juliana, antes de trincar os dentes quando uma nova onda de náusea a atingiu, inexorável.

Nicholas se encaminhou para a porta, prometendo voltar o mais breve possível. Juliana resmungou algo incompreensível e tão logo ele partiu, voltou-se agradecida à criada, que segurava uma bacia, antes de esvaziar o conteúdo do estômago.

Nicholas preferiu cavalgar a viajar de carruagem, ansioso que estava por chegar a Bridgewater e voltar o mais breve possível. Encontrava-se dividido entre a alegria ante a possibilidade de Juliana estar grávida e um medo profundo de ela estar doente. Testemunhara a palidez acentuada da face delicada e o suor que lhe assomava à testa. Por certo um enjôo matinal de gravidez não seria tão violento.

Seu desejo era ficar ao lado da esposa e ajudá-la no que pudesse, mesmo que fosse apenas para lhe segurar a mão. Percebera porém pela expressão de seu rosto que Juliana desejava que ele partisse. Tentara disfarçar o mal-estar. Podia compreender por que ela agira assim. Sabia o quão orgulhosa e independente ela era. Seria uma humilhação para Juliana vomitar em sua presença. Ela se sentiria melhor se ele não estivesse lá. Por aquela razão, ele concordara em partir, embora a curiosidade em saber quem matara Crandall não se comparasse nem de longe com a preocupação em relação a Juliana.

No entanto, tinha de admitir que era bom estar fazendo alguma atividade para distrair a mente de debater sobre o que estaria acontecendo com a esposa. A visão da palidez da face de Juliana e a dor em seus olhos haviam lhe partido o coração.

Não deveria ser nada sério, disse a si mesmo, empurrando para o fundo da mente o medo que lhe apertava o peito. Juliana não morreria. Deveria ser apenas uma indisposição por algo que comera, como ela dissera. Ou talvez o palpite da criada estivesse certo sobre a gravidez. Ela era jovem e saudável. Era bobagem achar que estivesse seriamente doente.

Tais pensamentos o estimulavam a seguir em frente e Nicholas alcançou a cidade de Bridgewater em tempo recorde. Com algumas poucas informações, localizou a casa da prima de Annie Sawyer e logo estava batendo à porta da frente da cabana de taipa.

Segundos depois, a porta foi aberta por uma jovem, que fitou Nicholas, estupefata.

— Cor...

— Estou procurando pela Srta. Annie Sawyer — esclareceu ele.

— Annie? — A mulher parecia ainda mais confusa.

— Sim. Ela está? — indagou Nicholas em tom gentil.

— Oh, sim, sim. Claro que está. Desculpe-me os modos, senhor, mas não costumamos receber visita tão ilustre. — Desajeitada, a jovem se curvou em uma cortesia e gesticulou para que ele entrasse. — Vou... hã... buscá-la. Gostaria de um...? -A mulher deslizou o olhar pelo interior da pequena casa como se nunca a tivesse visto antes e apontou na direção da sala principal, onde estavam várias cadeiras e alguns bancos. — Por favor, sente-se, senhor. Trarei Annie de imediato.

Nicholas obedeceu, esperando, enquanto olhava ao redor. Momentos depois, Annie adentrou a sala tão estupefata quanto a mulher que havia atendido à porta. Havia também, um certo tique nervoso no olhar da ex-criada.

— Olá, Annie.

— Milorde! O que está fazendo aqui? — E então pareceu perceber a rudeza do questionamento e apressou-se em acrescentar: — Desculpe-me, milorde, mas o senhor me tomou de surpresa.

— Vim fazer-lhe algumas perguntas — explicou Nicholas.

O olhar antes surpreso se transformou em assustado.

— Perguntas? — repetiu, com expressão inquisitiva.

— Sim. Fomos visitar sua mãe ontem e ela nos contou que estava aqui.

— Minha mãe! -Annie parecia não ser capaz de visualizar tal encontro. — Mas por que... quero dizer...

— Há algumas coisas que necessito lhe perguntar sobre a morte do Sr. Barre.

Nicholas a observava atentamente e não lhe escapou a tensão que lhe alterou as feições à menção do nome de Crandall.

Annie desviou o olhar.

— Asseguro-lhe que não sei nada sobre isso, senhor.

— Talvez saiba mais do que pensa. Certamente mais do que contou a qualquer um.

— Não sei a que está se referindo, senhor — retrucou a ex-criada. O medo que transparecia no olhar desmentia as palavras.

— Pois acho que sabe. Parece-me muito estranho ter saído de sua casa daquela maneira — contrapôs Nicholas.

Annie o fitou, confusa.

Estranho? O que quer dizer?

— Bem, quando alguém é morto dentro de uma casa e um dos empregados desaparece como que por encanto, levanta suspeitas.

O corpo da jovem se retesou. A indignação era evidente na face antes assustada.

— Está dizendo que matei o Sr. Crandall?

— Não. Estou apenas tentando fazê-la ver que sua partida suscita questionamentos.

— Não tive nada a ver com aquilo. Ou com ele — afirmou Annie em tom sincero.

— Ainda assim é obvio que sabe algo sobre o assassinato.

— Não! — protestou Annie.

— Então por que alguém lhe daria cinqüenta libras esterlinas? E por que deixou a cidade?

— Não quero mais trabalhar lá, é só — replicou a jovem. — Uma casa onde ocorreu um assassinato? É assustador demais.

— É de fato um pensamento amedrontador — admitiu Nicholas. — No entanto, acho que é do conhecimento de todos que muita gente desejava mal a Crandall. Parece óbvio que quem o matou não tem razões para matar mais ninguém. — Fez uma pausa antes de continuar: — A não ser, é claro, que pensasse que alguém naquela casa pudesse desmascará-lo.

Annie ofegou.

— Não! Não sei de nada!

— Acho que sabe. Está claro como este dia. Basta olhar para a senhorita. Viu Crandall naquela noite? Sabe quem o matou?                                                  

— Não!

— A única maneira de escapar do perigo é contando o que sabe — afirmou Nicholas em tom preocupado. — Uma vez revelada a identidade do assassino, não há razão pra alguém lhe fazer mal.

— Não vi nada! Apenas... — Annie deixou escapar um suspiro exasperado. — Estava à caminho do jardim, para levar mais comida para os convidados. Carregava uma grande tigela e o Sr. Crandall me segurou pelo braço. Quase deixei a tigela cair. Então ele me tomou a tigela das mãos, perguntando-me se eu não queria fazer algo mais divertido do que carregar tigelas pesadas. Quando lhe respondi que aquele era meu trabalho, o Sr. Crandall soltou uma gargalhada e apertou-me tão forte que eu mal podia respirar, e então começou a me beijar.

Annie baixou o olhar, corando ante a lembrança amarga-

— Ele sempre fazia aquilo. Beliscando-me, deslizando o braço em torno do meu corpo ou me agarrando. Todas nós temíamos entrar em um aposento em que o Sr. Crandall se encontrasse sozinho.

Nicholas estudou a jovem por alguns instantes.

— Lutou para se libertar? — indagou em tom gentil. -Pegou o atiçador para se livrar dele?

— Não! — A ex-criada ergueu o olhar para fitá-lo, alarmada. — Nunca! Apenas o empurrei e lhe disse que me deixasse em paz, mas o Sr. Crandall estava bêbado, senhor, e continuou a me assediar. Parecia possuir seis mãos. E então a Sra. Barre entrou e nos surpreendeu...

— A esposa dele?

— Oh, não, milorde. Se fosse ela teria começado a chorar. Foi a mãe dele.

— Lilith?

Annie anuiu.

— Sim. Ela gritou com ele, mandando-o parar... bem, não gritou exatamente. Na verdade, não ergueu a voz, porém soou incisiva como sempre faz.

— Eu sei.

— E então ele me largou. Recolhi a tigela que havia caído no chão e saí correndo da sala o mais rápido que pude. Isso é tudo que sei, juro. Foi só o que vi. Mas não poderia ter sido ela a matá-lo, o senhor não acha? Não a mãe!

Nicholas limitou-se a fitá-la por um longo instante, enquanto a inquietação dentro dele aumentava. Lilith! Não ocorrera a ele ou a Juliana que a mãe de Crandall poderia ser o assassino.

Apesar de ter ouvido a história de Annie, aquilo parecia absurdo. Não obstante os recentes sinais de que não estava satisfeita com as atitudes do filho, Lilith o adorava. Na verdade, não havia nada, além dos cavalos, que Lilith amasse mais do que Crandall. Não poderia tê-lo matado.

— Não errei em omitir o fato, não? — indagou a jovem. — A Sra. Barre não poderia tê-lo assassinado.

— Não tenho dúvida de que está certa — concordou Nicholas. Porém, em sua mente, enquanto saía da casa e montava o cavalo, não tinha tanta certeza.

Afinal, alguém enviara dinheiro a Annie. Obviamente, quem quer que fosse, acreditava que ela vira algo incriminador. Quem mais mandaria o dinheiro senão Lilith? E por que motivo o faria se não tencionasse calar a criada?

Nicholas se encaminhou a Hall, imerso em questionamentos, Por que Lilith não contara a todos que vira Crandall na sala onde fora morto pouco antes do crime?

Por que logo a mãe esconderia informações que ajudariam a chegar ao assassino?

Não fazia sentido... a não ser que não desejasse ver o criminoso na cadeia.

Pensou em Juliana sozinha naquela casa, indefesa sobre uma cama. A esposa nunca imaginaria que Lilith pudesse ser a assassina. Estaria precavida contra qualquer um naquela casa, mas não contra Lilith.

Uma onda de temor o assolou, inexorável, fazendo-o fustigar o cavalo com os calcanhares, incitando-o a um galope.

 

Juliana recostou-se ao travesseiro, deixando escapar um profundo suspiro. Não havia mais nada em seu estômago, portanto, limitou-se a fechar os olhos até que os espasmos passassem.

Ao menos, estavam mais espaçados, pensou, resignada. E a estranha e intensa salivação também diminuíra. Preferia não testar a tontura, portanto, continuou deitada.

Imaginou que horas seriam. A manhã havia passado em horas intermináveis de mal-estar. Desejou, não pela primeira vez, não ter insistido para que Nicholas partisse. Por mais que a desagradasse a idéia de o marido vê-la naquela condição, houve ocasiões em que se sentira tão assustada que ansiara pela presença de Nicholas a seu lado. Tudo parecia menos assustador e mais suportável quando ele estava por perto.

Pela primeira vez desde que o marido partira, imaginou o que ele teria extraído de Annie. Talvez, aquele fosse um sinal de melhora. Pelo menos assim pensara Célia, que havia descido para lhe preparar um caldo, na esperança que Juliana conseguisse segurar alguma coisa no estômago.

A porta se abriu e alguém entrou. Pelo som do farfalhar de tecido, era uma mulher. Juliana não se esforçou para abrir os olhos, deduzindo que seria a criada.

Porém, quando a visitante falou, reconheceu de pronto a voz.

— Tia Lilith? — Surpresa, Juliana descerrou as pálpebras e observou a mulher se aproximar da cama, com uma pequena bandeja nas mãos.

— Sim. Vim saber como está.

— Melhor, acho.

Embora ciente da expressão surpresa de Juliana, a Sra. Barre exibiu um tênue sorriso.

— Tenho prática em cuidar de doentes. Afinal, criei dois filhos e assisti Trenton quando adoeceu.

Juliana conteve-se para não mencionar que o que lhe causava estranheza não eram suas habilidades em assistência, e sim a repentina delicadeza que demonstrava.

— Trouxe-lhe um xarope — anunciou Lilith, pousando a bandeja ao lado da cama. Havia um copo com um pouco de água e um pequeno frasco com rolha de cortiça que continha um líquido marrom. Não estava disposta a ingerir nada, muito menos o repulsivo xarope.

— Acho que não conseguirei — afirmou Juliana.

— Bobagem — retrucou Lilith em sua maneira peremptória. — Isso a fará se sentir melhor. É um remédio antigo que minha mãe costumava nos dar quando adoecíamos.

— Estou me sentindo melhor — protestou Juliana, observando-a, desconfiada, enquanto ela retirava a rolha de cortiça e despejava um pouco do líquido marrom no copo com água.

— Não seja infantil — começou Lilith, agitando o copo para misturar o líquido. — Tem um sabor um tanto amargo, mas vai sentir-se melhor quando o tomar.

Lilith caminhou em direção à cama, segurando o copo numa das mãos. Juliana pressionou a cabeça contra o travesseiro. A simples visão da mistura fez seu estômago revirar. Pensou em algo que pudesse atrasar Lilith, na esperança de que Célia entrasse e convencesse a patroa a não forçá-la a ingerir nada.

Olhou para o broche sobre a garganta de Lilith. Uma mecha de cabelos negros trançados em um ornamento. Percebendo o olhar de Juliana, a mulher levou a mão ao pescoço.

— É um broche de luto. Confeccionei-o com uma mecha de cabelos de Crandall.

Os olhos de Lilith se encheram de lágrimas e Juliana não pôde evitar uma pontada de piedade.

— Sinto muito.

Lilith meneou a cabeça de maneira quase imperceptível.

— Era um menino extraordinário. Amava-me. Meu filho não era como as pessoas o faziam parecer. E não quero que a imagem de Crandall seja denegrida por aqueles que o invejavam.

A expressão da senhora endureceu à medida que falava. O olhar se tornando velado. Juliana começou a falar, tentando lhe oferecer algum tipo de consolo, quando de repente a imagem de Lilith no dia do casamento lhe veio à mente. Trajava um vestido cinza-claro e havia um broche atado à gola alta — não um como aquele à sua frente, mas uma grande jóia cravejada de diamantes e rubis.

Juliana se viu paralisada de medo. O olhar se alternando entre Lilith e o broche. O temor a impedia de agir, limitando-a a fitar a senhora.

Os olhos de Lilith tinham um brilho maquiavélico, quando a segurou pelos ombros e levou o copo aos lábios de Juliana.

— Beba — ordenou. — Vá. Beba tudo.

— Não! — Juliana fez menção de rolar na cama, mas a mulher a agarrou pelo braço, detendo-a. Em seguida, pousou o copo na mesa e colocou as mãos nos ombros de Juliana, pressionando-a contra o colchão, enquanto subia na cama, estendendo a perna sobre seu corpo para impedi-la de se mover.

— Terá de beber! — exclamou em tom estridente, com um brilho insano nos olhos. A face da mulher pairava sobre Juliana como uma máscara de ódio. Os dedos cravados em seus ombros enquanto a pressionava sobre o colchão com toda a força do peso que possuía. Juliana não podia acreditar na força que emanava daquela senhora e seus músculos se encontravam demasiadamente debilitados devido às horas de vômito.

— Largue-me! — gritou Juliana, com todo o fôlego que conseguiu juntar. Praguejou contra o mal-estar que a deixara tão fraca e então a constatação lhe atingiu a mente. — Você! Foi você que fez isso comigo! Deu-me algo esta manhã para que eu adoecesse! -A mente de Juliana trabalhava, frenética. — No chá. Serviu-me o chá!

— íris! — Lilith deixou escapar um som desdenhoso. — Não a matará, apenas lhe causou um mal-estar. Era o que eu tinha à mão. Precisei de algum tempo para conseguir as sementes de teixo. Deveras apropriado, não? Você morrer como sua mãe?

Juliana paralisou, fitando a mulher, estupefata, enquanto digeria a informação.

— Minha mãe! Matou-a também?

— Claro que sim. Sabia que ninguém iria suspeitar. Sementes de teixo são extremamente venenosas. Colhi-as e fiz uma decocção com elas. Em seguida, misturei-a ao remédio de enxaqueca de sua mãe e na próxima vez que lhe acometeu uma dor de cabeça... — Lilith deu de ombros.

Os olhos de Juliana se encheram de lágrimas.

— Você a matou?

— Ela me roubou o marido — replicou Lilith em tom casual. — Pensei que, se me livrasse dela, Trenton voltaria para mim. — O olhar da mulher escureceu. — Mas ele continuou a agir do mesmo modo. Servindo-se de prostitutas, envergonhando-me e desdenhando de mim. Engravidou uma das criadas em minha própria casa! — Um rubor intenso lhe aflorou à face e o olhar distante, indicava que Lilith falava para si mesma. — Recusava-se a ser um bom marido, a despeito de minhas tentativas. Dei-lhe todas as chances!

— E então o matou? — indagou Juliana. Tinha de manter Lilith distraída. Talvez a força com que a mulher a detinha abrandasse, dando-lhe a oportunidade de escapar.

— Claro que sim. De modo diferente. Seria suspeito que outra pessoa morresse do que parecia ser um ataque cardíaco, não acha? — Os lábios de Lilith se encresparam. -Ninguém suspeitou. Por que alguém desconfiaria de que eu conhecesse venenos? — A voz gélida soava repleta de escárnio. — Tolos! Como se eu não tivesse aprendido tudo com meu pai... todas as plantas que poderiam fazer mal aos cavalos. Sabia o que evitar e o que utilizar para simular um ataque do coração — ou uma doença. Dei a Trenton ervas-de-são-tiago... em doses homeopáticas. Todos os dias durante semanas. Isso destrói o fígado. Todos julgaram que a hidropisia se devia ao álcool. Foi um fim terrível. Regozijei-me em vê-lo sofrer.

A amargura e o ódio nos olhos de Lilith eram aterrorizantes.

— Mas por que matou Crandall? — inquiriu Juliana. -A senhora o amava.

— Ele era como o pai! — disparou Lilith. — Recusava-me a acreditar naquilo. Todos aqueles anos... as coisas que Crandall fazia... eu arranjava desculpas para todas elas. Disse-lhe que não devia viver à imagem do pai. Que estava errado em deixar aquele novo-rico herdar uma terra que deveria ser dele. Culpei a pequena tola que tomou como esposa por não ser boa o bastante para segurar o marido. Mesmo quando ele mentia e traía, e ainda quando roubou minhas jóias para pagar os débitos de jogo... amava-o demais para lhe perdoar os erros. E então... — Os lábios se retesaram ante as recordações. Os olhos se encheram de lágrimas e a voz falseou. — Surpreendi-o com a criada, agarrando-a e a forçando, enquanto ela lutava para se desvencilhar, suplicando-lhe que a deixasse. E então soube. Não havia como negar. Crandall era como o pai: vil e lascivo... um libertino imundo. Não pude suportar aquilo!

A pressão que Lilith exercia nos ombros de Juliana abrandou, fazendo-a concluir que chegara o momento. Juntou as mãos e as erguendo, arremessou-as contra o estômago da mulher com toda a força que foi capaz de reunir, jogando-a para o lado e rolando para fora da cama.

Mas antes de alcançar a outra extremidade, Lilith estava sobre ela, segurando-a e arranhando-a. Juliana lutou com ela, tentando se desvencilhar, mas a força da mulher era insana. Ambas rolaram sobre a cama. Lilith bateu com o punho fechado contra o queixo de Juliana, fazendo brotar lágrimas em seus olhos. Juliana chutou e se revirou na cama, afastando-se, mas a Sra. Barre a atingiu nas costas, sentando-se sobre ela e lhe enterrando a face na colcha macia com ambas as mãos. Juliana tentou erguer a cabeça, mas o tecido da manta colava-se à face, impedindo-a de respirar.

Foi então que a distância ouviu o som de uma batida e Nicholas chamando seu nome. Em seguida, socos na porta, que Juliana julgou estar trancada. Pontos escuros se formavam em sua visão. Nunca mais o veria. Não teria oportunidade de lhe dizer o quando o amava...

Naquele momento a porta se escancarou e, instantes depois, o peso lhe foi tirado das costas. Juliana rolou, lutando por ar, enquanto Nicholas e Lilith caíam ao chão do outro lado da cama.

Célia se materializou ao lado da patroa, ajudando-a a se erguer, e o restante da família, seguidos por uma horda de criados adentrou o aposento. O mordomo e Sir Herbert correram até Nicholas para ajudá-lo com Lilith, que esbravejava, gritando palavras incoerentes.

Nicholas a entregou aos dois homens e se dirigiu à cama.

— Juliana! — gritou, precipitando-se em sua direção e lhe tomando a mão. — Meu amor, graças a Deus! Você está bem?

— Sim — ofegou Juliana, atirando-se nos braços fortes. — Estou bem agora.

— Que diabo farão com ela? — indagou Juliana, no dia seguinte, sentada em sua cama e totalmente recuperada do mal-estar. Lilith estava certa sobre os efeitos da íris em seu organismo. Após o ataque da Sra. Barre, Juliana aos poucos se recobrou do enjôo e dormiu durante quase toda tarde nos braços do marido. Na verdade, Nicholas só a havia deixado há uma hora, quando desceu para conversar com o magistrado sobre o destino de Lilith. Ainda assim, designara Winifred para tomar conta dela até que ele voltasse.

— Aparentemente enlouqueceu — explicou Nicholas, empoleirando-se na beirada da cama ao lado dela. — Confessou o assassinato de Crandall, assim como o de Trenton e o da sua mãe. E então, quando a guiaram para a cela que ocuparia na prisão, começou a balbuciar palavras incoerentes, gritando e chutando, desvairada. De acordo com o juiz, está sentada, imóvel em sua cela desde então, com o olhar fixo na parede. Ele não sabe ao certo o que fazer com Lilith e veio pedir minha opinião.

— E o que lhe disse?

A expressão da face se retesou.

— Pelo que ela fez com você, sugeriria que matasse aquela bruxa.

— Ela está louca — afirmou Juliana, em tom suave. — E deve estar vivendo um inferno particular. Matou a única pessoa que amou na vida.

— É o que Lilith merece — replicou Nicholas em tom áspero. — Mas não posso esquecer que o julgamento seria um sacrifício para você. E um terrível escândalo.

— Pobre Seraphina! Como se não fosse suficiente o assassinato do irmão, por pior que ele fosse, descobriu que a mãe foi a responsável pela morte dele e do pai!

Não podemos fazer isso com ela. Embora fútil, não é má pessoa. E Winifred sofreria. Quando esteve aqui mais cedo, contou-me sobre Sam Morely e o amor que os une. Contou-me que planejam casar após passar o luto. Parecia tão feliz. Porém, se houver um julgamento e tudo sobre Crandall, Lilith e Trenton vier à tona, arruinará a felicidade dela e manchará o nome da família. Winifred não se aventuraria a casar com o Sr. Morely se um escândalo desses se abatesse sobre ela. Não acho justo que as perversidades de Lilith causem mais sofrimento àquela jovem. Eles têm de julgá-la e condená-la à forca? Não há mais nada que se possa fazer em relação a ela?

— Sabia que essa seria sua opinião — replicou Nicholas, com um leve sorriso a lhe curvar os lábios. — O magistrado quer trancafiá-la num manicômio. É um destino terrível, mas seria melhor do que enforcá-la.

— Sinto-me quase com pena dela — declarou Juliana.

— Eu também me sentiria assim, se ela não tivesse tentado matá-la. Isso, não poderei perdoar — afirmou Nicholas, esticando o braço e a puxando para si. — Peço a Deus nunca mais precisar passar por horas como as de ontem. A medida que cavalgava em direção a Lychwood Hall, aumentava a certeza de que tia Lilith havia matado o filho e só conseguia pensar em você deitada nessa cama, fraca e vulnerável. Refleti sobre seu mal-estar e lembrei que ela lhe havia servido o chá naquela manhã. -Nicholas beijou-lhe a fronte antes de continuar: — Nunca me senti tão assustado em minha vida. Não sei o que faria se a perdesse.

Juliana deslizou os braços pelo pescoço largo e o apertou contra o colo.

— Eu o amo — murmurou. Em seguida, afastou a face para fitá-lo. — Sei que não quer um casamento com amor. Porém, ontem, quando vi a morte se aproximar, lamentei nunca ter lhe dito isso. Eu o amo e não posso continuar fingindo que o que sinto por você não é amor. Amo-o desde que posso me recordar.

Um sorriso curvou lentamente os lábios de Nicholas.

— E eu a amo desde sempre, também. Recordo-me do lhe que disse. Fui um idiota. Pensei que nunca havia amado, mas era porque em meu coração só havia você, o que me tornava incapaz de amar outra mulher. De alguma forma, sempre soube que voltaria para você. Não chamava isso de amor, porque o que eu sentia era muito maior e mais intenso do que o que as pessoas rotulam como amor. Você é minha vida, meu lar e meu ar.

Nicholas envolveu-a nos braços, cobrindo-lhe a face de beijos.

— Eu a amo, Juliana.

Ela se entregou ao corpo másculo, os olhos banhados de lágrimas. Aquilo, pensou, era o tudo que sempre esperara na vida.

— E eu o amo, Nicholas.

 

 

                                                                  Candace Camp

 

 

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