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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONSEQUÊNCIAS / Neil Gaiman e John Bolton
CONSEQUÊNCIAS / Neil Gaiman e John Bolton

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Era outro dia glorioso no País Livre, uma tarde espetacular numa eternidade de horas felizes. Tudo estava bem no mundo, originalmente criado como santuário para crianças em perigo. Os espíritos graciosos, que eram o coração e a alma deste paraíso, os Cintiladores, dançavam por cima do lago cristalino. O riso das crianças podia ouvir-se nos sons de fundo, misturado com a água que corria, os riachos impetuosos, os chilreios dos pássaros e os balanços do vento. Este era um mundo onde aqueles que tinham sido primitivamente espoliados, maltratados e perpetuamente assustados podiam ser felizes e sentir-se seguros. Sim, tudo era como devia ser, como sempre era.

Ou não era?

Daniel estava taciturno, sentado num pequeno e frágil barco a remo, a olhar furioso para a vara de pesca. O cabelo loiro escuro e comprido estava amarrado num rabo-de-cavalo que saía de baixo da cartola estragada e caída sobre a testa. Arregaçara as calças listradas de algodão e as mangas do sobretudo para que não se molhassem, mas molharam-se. Isso não melhorou o seu estado de espírito.

 

 

 

 

— Alguma sorte? — perguntou Spud.

Spud empoleirou-se na proa do barco, virado para Daniel, com a linha de pesca por cima da borda. Daniel estava na popa, a olhar fixamente para as altas colinas que se erguiam das margens do rio. A idéia idiota de irem pescar fora de Spud. Daniel não lhe perdoaria aquele plano absurdo.

— Nada — queixou-se Daniel — Sabe, Spud, teria ajudado se tivéssemos trazido isca nestes anzóis.

— Caramba, Daniel — replicou Spud — Qualquer idiota pode apanhar peixe com isca! E eu que pensava que era um esportista.

— Eu te digo o que sou — resmungou Daniel — Sou alguém terrivelmente chateado, é o que sou.

— Awww, é um chato — queixou-se Spud — É um desmancha-prazeres. Desde que sua namorada foi-se embora.

— A Marya não era minha — Daniel rodou no banco, quase virando o pequeno barco. Endireitou-se antes de continuar — Éramos amigos. Só isso.

Spud bufou.

— Claro. Eram só amigos. Porque ela não queria nada com um sujeito como você.

Daniel virou-se no barco de modo a que Spud não pudesse ver-lhe o rosto. Fixou os olhos num lugar no horizonte e contou até dez. Cerrou os punhos, apesar de esforça-se para manter a calma.

— O que é que você sabe? — murmurou.

— Sei mais do que pensa — zombou Spud — Ouvi dizer que a Marya fugiu porque tentou beijá-la.

— O quê? — Daniel levantou-se do banco, sem pensar. Virou-se e pôs-se à frente de Spud, lançando um olhar carrancudo ao garoto.

— Pára de balançar o barco, está bem? Quer acabar na água? — resmungou Spud.

— Retira o que disse — ordenou Daniel. Sabia que não podia deixar que Spud falasse assim com ele... isso só o incitaria. Mas as coisas que ele dizia! Daniel não podia deixar passar aquilo em branco.

Como previra, Spud desfez-se em sorrisos e continuou a aborrecê-lo.

— Sim. Ouvi-o aproximar-se dela sorrateiramente em Shimmer Rock e a dar-lhe um beijinho! Ela desatou a chorar e fugiu, deixou o País Livre.

Daniel abaixou-se e agarrou o braço de Spud.

— Ai! — gritou Spud — Me larga!

Daniel obrigou Spud a levantar-se e ficaram cara a cara.

— Escute aqui — resmungou Daniel. A voz era baixa e grave. Pareceu-lhe que nunca tinha falado naquele tom — Nunca fiz nada disso.

Pela primeira vez, viu medo nos olhos castanhos de Spud. O garoto contorceu-se, tentando escapar e atirou o boné de tweed na água.

— Me larga! — disse Spud. Só que desta vez não era uma ordem, era uma súplica.

Daniel apertou ainda mais, já com ambas as mãos. Spud deixou de se debater e ficou inerte nas mãos de Daniel.

— Acha que a Marya foi embora por causa de alguma coisa que eu fiz? — perguntou Daniel, dando um pequeno safanão em Spud — O que acha que ela levou como recordação especial? Hã? — Sacudiu Spud outra vez — A pequena estátua da bailarina que lhe dei. O que me diz disso?

Largou Spud, que balançou e depois se sentou pesadamente no banco, fazendo entrar água no barco. Daniel dobrou um pouco os joelhos, fazendo balançar o barco, equilibrando-se.

Spud esfregou o braço e lançou um olhar carrancudo a Daniel.

— Está bem, está bem, não precisa ficar tão violento.

Daniel sabia que Spud tinha uma nódoa negra no braço, mas não quis saber. Spud precisava aprender que não podia dizer tais coisas e escapar impune.

— Então, por que é que a Marya partiu? — perguntou Spud, taciturno.

Os olhos de Daniel ficaram mais estreitos. Sentiu de novo a raiva a crescer dentro dele, só que desta vez não era com Spud que estava furioso.

— Foi aquele Timothy Hunter — disse ele, com os dentes cerrados — Timothy Hunter convenceu-a a ir para o Mundo Mau e eu o odeio por isso.

— Então, por que não vai atrás dela e traz para cá, em vez de me apoquentar — queixou-se Spud, esfregando de novo o braço.

Daniel olhou fixamente para Spud. Nunca percebera que Spud era um gênio até àquele instante. Era genial!

Sentando-se ao lado de Spud no pequeno barco, Daniel pôs as mãos no ombro de Spud. Spud estremeceu, como se tivesse medo que Daniel lhe fizesse mal outra vez.

— É isso mesmo que tenciono fazer, companheiro — disse Daniel a Spud, dando-lhe um abraço amistoso — Hei de encontrá-la. Hei de encontrar aquele maldito Tim, também. Timothy Hunter lamentará o dia em que pôs os pés no País Livre.

 

— Sabe, Molly, é o seguinte. — Timothy Hunter respirou fundo e iniciou o discurso — Sou o mágico mais importante de todos os tempos. Pelo menos — baixou modestamente a cabeça — é isso que dizem — Tim fez uma pausa e depois gemeu — Parece um pateta egocêntrico —, censurou-se.

Timothy Hunter, o garoto com potencial para realizar feitos de magia extraordinários, andava de skate de um lado para o outro em frente da casa maltratada de Molly O’Reilly. Há cerca de meia hora que fazia aquilo. Ele e Molly tinham combinado encontrar-se mais tarde, e estava decidido a ter essa conversa nesse mesmo dia. Experimentou vários discursos enquanto evitava cuidadosamente as inúmeras rachas que se espalhavam na calçada como veias. Naquela parte de Londres, um tipo tinha sorte se os semáforos funcionassem e o lixo fosse recolhido regularmente. Pedir asfalto liso era pedir demais. Tim não se importava — desenvolveu as terríveis habilidades com o skate, aprendendo a não se deixar apanhar por obstáculos como esses.

Chegou ao fundo da rua e parou bruscamente.

— Tenta outra vez — disse para si mesmo, pegando na prancha e virando-a — Versão número trezentos e doze — Bateu com os pés no chão até ganhar velocidade, depois equilibrou-se habilmente enquanto se desviava das fendas, do lixo e de um cão vadio e sujo.

— Muito bem, Molly, provavelmente não vai acreditar em mim, mas juro por tudo o que quiser que é verdade — declarou — A princípio, também não queria acreditar. Mas aqueles sujeitos... chamo-os de Brigada dos Encapotados... apareceram e convenceram-me de que era mágico.

Saltou para a calçada, quando um carro passou por ele, levantando um jato de lama cinzenta — a lama que restava do Inverno.

— Estive em outros mundos — continuou — Até salvei alguns. Franziu as sobrancelhas. Sempre que tentava contar à Molly imaginava algumas das coisas assombrosas que fizera; tinha de parar. Soava impossível e, pior ainda, soava a mentira. Depois acabava por se sentir como uma fraude, porque nem sempre tinha certeza de como fizera tudo.

Por exemplo, o País Livre, pensou. As crianças de lá quase que o raptaram, querendo usar os seus poderes para salvar seu mundo. Mas, em vez disso, provocaram um curto-circuito. Literalmente — enormes erupções de energia. A coisa mais estranha foi que isso os salvou. Tim protegeu aquele mundo por acaso. Sentiu-se satisfeito — só que não sabia como conseguiu isso.

E se Molly lhe pedisse que provasse que era mágico? Era, sem dúvida, uma garota que precisava de ver para crer. A sua natureza realista e prática era uma das qualidades que mais apreciava nela. Isso e o fato de ser muito dura, corajosa e muitíssimo divertida. Gostava do cabelo com aspecto macio e dos olhos castanhos, muito brilhantes. O que era ainda mais importante, era uma pessoa com quem podia falar. Como quando ele descobriu que o homem que o criou não era o seu pai verdadeiro.

Ficou empolgada quando lhe contou. Notas altas em todas categorias.

Só que nessa altura ele ocultou-lhe uma coisa. Uma coisa importante. Não lhe contou que também descobriu quem era o seu verdadeiro pai: um homem chamado Tamlin, que vivia num mundo completamente diferente, chamado País Encantado, e podia transformar-se numa ave. Tinha deixado de fora esse pequeno detalhe com penas quando conversou com Molly.

— Devia ter-lhe contado tudo nessa altura — murmurou. Ela ficaria zangada por ter levado tanto tempo para lhe dizer? Nunca lhe ocultara um segredo como aquele. Já tinham passado quase seis meses desde o episódio da Brigada dos Encapotados, e ela ainda não sabia. A neve derretia, a terra transformara-se em lama e os pequenos botões começavam a tentar desesperadamente desabrochar naquele mundo de concreto e asfalto, e Tim ainda não lhe contara.

Aconteceu tudo tão depressa — agora, o tempo parecia passar de forma diferente. Passou naquele primeiro dia — ou foi na primeira vida? — quando a Brigada dos Encapotados apareceu subitamente para lhe rogar aquela praga. Levaram-no ao passado, ao presente e até ao futuro, apenas para o largarem de novo no aqui e agora — só que para ele tudo mudara. “Aqui” incluía portões invisíveis, passagens para outros mundos, mundos que confinavam com o seu próprio mundo, e o “agora” significava uma coisa nesse mundo e outra completamente diferente em qualquer outro. Isto tornava difícil saber quanto tempo decorrera durante qualquer uma das suas aventuras. Quando Tim salvou o País Encantado das garras do diabólico manticore, Molly não sentiu saudades dele. Tanto quanto ela sabia, ele se ausentara apenas por umas horas, no entanto, Tim estivera às portas da morte e salvara-se. Pareceram-lhe dias, semanas, meses, até.

Era tudo tão incrível e, no entanto, acontecera. Não era de admirar que tivesse dificuldade em encontrar palavras para contar a Molly. Era uma situação delicada para explicar. Tim tentou em voz alta:

— Sei que pensa que me conhece — Abanou a cabeça. Uma garota não gostaria de ouvir aquilo. Sim, pensou, as palavras têm de ser perfeitas.

Você decidiu acreditar em magia, matutou Tim. Ser mágico. Viver num mundo mágico. Mas nada acontece como você pensa. Nenhum professor. Nem parente. Ninguém com quem possa contar a não ser contigo — a menos que conte à Molly.

Tim parou de repente. Estava a ser egoísta por não querer contar-lhe? Seria realmente por não haver ninguém com quem pudesse partilhar aquele dom opressivo? Sabia que Molly não lhe podia mostrar o que havia a fazer; precisaria de alguém com poderes mágicos. Alguém como Zatanna, a feiticeira, ou John Constantine da Brigada dos Encapotados. Mas nenhum deles se oferecera para ser o seu tutor em magia. Tinha uma sensação estranha, porém, de que ele e Molly poderiam descobrir. Mas seria justo? Ele parecia estar continuamente a correr risco de vida sempre que encontrava um mundo mágico, criaturas ou aventuras. Teria o direito de arrastar Molly também para o perigo?

Tim bufou. Podia ouvir Molly. “A decisão é minha, não é, Hunter? Apresenta-me os fatos e eu decidirei.” Ficaria mais irritada se descobrisse que lhe estava a ocultar um fato tão importante, sem olhar ao perigo que envolvia.

— Muito bem, é hoje — murmurou Tim — Desde que tudo começou que anda tomando coragem. Agora faça!

Passou pela porta dela mais uma vez no skate. Queria ter certeza de que seria capaz de explicar de forma que ela não questionasse a sua saúde mental. Queria que soubesse desde o princípio que aquilo que dizia era verdade. Mas como podia fazer isso?

— Provas! — declarou Tim, parando bruscamente. — Devia pensar numa magia que provasse a Molly que era tudo verdade. Assim ela saberá que não fiquei maluco. Só há um problema, lembrou-se. Você não faz a mínima idéia do que está fazendo. Se pudesse ter tempo para praticar, pensou. Mas onde posso fazer esse tipo de trabalho de casa?

Então, teve uma idéia. O terreno abandonado. Era o lugar perfeito para pensar quando era criança. Nunca havia ninguém por lá. Ficaria sozinho, e tinha certeza de que não haveria nada que pudesse fazer explodir ou partir. Era o lugar ideal para praticar magia. Precisava saber como orientar esse poder enorme para ser capaz de controlá-lo e não ser ao contrário. E então encontraria algo realmente surpreendente para mostrar à Molly.

Olhou para o relógio. Ainda tenho algum tempo até me encontrar com a Molly, concluiu, depois atravessou em cima do skate os poucos quarteirões que o separavam do terreno baldio. Estava coberto de ervas, mas o grande e largo carvalho ainda se erguia enorme como um castelo. Coisas velhas — peças de carros enferrujadas, uma roda de bicicleta, um sapato — espreitavam no meio da erva alta e do lixo.

Estava pior do que se lembrava. Tudo mudou, reparou, sobretudo os esconderijos da infância.

— Muito bem, Tim — murmurou para si mesmo. — Foi uma estupidez vir aqui — Sentou-se na prancha e pousou os cotovelos nos joelhos. Quando era pequeno, acreditava realmente que aquele era o lugar melhor e mais seguro para estar. Até tinha um grupo imaginário de amigos com os quais andava por ali.

— É surpreendente — resmungou — Deixamos de acreditar em lugares seguros quando começamos a precisar deles.

— Ei, Hunter — gritou um garoto — Se fosse você saía daí.

Tim virou-se e viu Scott Whitman, um companheiro dos passeios de skate, que deu um pontapé à prancha e agarrou-a com perícia. Era um ano mais velho que Tim e freqüentava outra escola, mas o skate tornara-os amigos. Tinha cabelo loiro e muito curto, e usava as calças largas desleixadas. Enfiando o skate debaixo do braço, meteu as mãos nos bolsos do blusão.

— Olá — Tim levantou-se e cumprimentou Scott — O que tem de mal o baldio?

—Trouxe a Darlene aqui ontem à noite, com esperança de ter um pouco de privacidade — explicou Scott — Entre os pais dela, os cães de guarda, e os estúpidos dos meus irmãos, nunca temos chance de ficarmos sozinhos, percebe?

Tim não percebia, mas acenou com a cabeça.

Scott deu uns passos para o meio da erva alta do terreno. Pousou a prancha na calçada e segurou-a com um pé enquanto examinava a área. Parecia perturbado com o lugar.

— Então, o que aconteceu? — As sobrancelhas de Tim levantaram-se.

— Ela acha que é alguma coisa sussurrando. Só que não podemos vê-la — Scott ajoelhou-se e remexeu na relva — Onde foi parar a maldita coisa? — murmurou — Sei que a atirei aqui. Oh, aqui está. — Mostrou uma coisa a Tim — Então, ela pisa nisto e ouvimos um riso sinistro.

Scott levantou-se e atirou o objeto na mão de Tim.

— Desatamos a correr.

Tim olhou para o objeto, horrorizado.

 

Não podia ser, disse Tim para si mesmo. Segurava uma cabeça pequena. Parecia que pertencera em tempo a uma espécie de gnomo ou duende. Tanto quanto podia ver, o rosto, as orelhas e o cabelo teriam passado despercebidos no meio dos arbustos, como se fossem concebidos para se camuflarem. Mas a cabeça fora cruelmente arrancada do corpo, e a boca parecia contorcida de dor. Também fora queimada, e salpicos de fuligem e cinza caíram nas mãos de Tim.

— Putz! — murmurou Tim.

— Sim — concordou Scott — Repugnante, não é? Alguém se divertiu a cortá-la e a queimá-la como se fosse lixo ou outra coisa qualquer.

Scott pegou no skate.

— Como eu já te disse, não ando mais por aqui. Não quero encontrar o tipo que achou isto divertido. Não vem?

Tim não tirou os olhos da pequena cabeça.

— Não, obrigado — replicou — Tenho o que fazer.

Scott encolheu os ombros.

— Como queira.

— Obrigado pelo aviso — gritou Tim a Scott. O garoto mais velho dobrou a esquina no skate a toda a velocidade e desapareceu.

Tim olhou fixamente para a cabeça. Era mais do que arrepiante — era familiar. Reconheceu o rosto.

— É você mesmo? — perguntou. Pois tinha na mão nem mais nem menos do que Tibby, um dos amigos imaginários do tempo em que Tim era um garoto. Ou aquilo que restava dele.

Por que razão alguém mataria um companheiro de brincadeiras imaginário? interrogou-se Tim. Espera... como é que amigos imaginários se tornam reais? Nunca tentara fazer uma boneca de Tibby, como fizera com algumas das suas idéias fantásticas. Então, como podia ter nas mãos aquela manifestação física?

Examinou o baldio e percebeu que mudara um pouco enquanto estivera ali. A árvore ficara maior, a erva mais alta. A área expandira-se de tal forma que já não via o fim dela. No entanto, há um minuto era visível o muro de tijolo das traseiras do Rei das Mobílias.

— Uh-oh — murmurou Tim — Lá vamos nós de novo — Ali havia magia. Seria o lugar? Estaria mais alguém ali? Tinha de descobrir.

Deu alguns passos no terreno e percebeu que tinha o mesmo aspecto como no tempo em que tinha uns cinco anos, quando passava ali a maior parte do tempo. A erva chegava-lhe ao peito como nessa época.

Embrenhou-se mais no baldio, afastando as ervas altas, tentando não tropeçar em restos de lixo.

— Realmente, Tim, se tem de entrar em contos de fadas, por que não tenta uma coisa mais agradável? — censurou-se. Tropeçou num monte de jornais encharcados e esfarrapados — Ou, pelo menos, uma coisa onde saiba qual é o resultado com antecedência e tenha certeza de um final feliz. Digamos, algo com ursos falantes — Suspirou — Quase tudo seria melhor do que atravessar um lugar, que inventou quando tinha quatro anos, e tentar descobrir o que matou o teu amigo imaginário.

Aproximou-se da base da enorme árvore e olhou fixamente para o complexo sistema de raízes e casca, que se desprendia. Olhou de esguelha para a pequena cabeça uma vez mais.

— Vejamos — dirigiu-se à cabeça — Você era o Narl que atirava bolotas nas pessoas de quem eu não gostava — Tim lembrou-se das vezes que se escondeu naquela árvore, desejando ser suficientemente corajoso para atirar bolotas nos garotos que o perseguiam. Às vezes, caía uma bolota espontaneamente e atingia um dos moleques, e Tim atribuía sempre isso ao Narl chamado Tibby. Imaginava Tibby ao lado dele no ramo, a fundir-se com a casca. Imaginava Tibby a deslizar até à ponta do ramo e a atirar as bolotas.

Tim abanou a cabeça, sentindo um leve rubor nas faces quando se lembrou de todas as suas fantasias da infância.

— Que embaraçoso. O que adianta crescer se não podemos deixar para trás todas estas coisas de criança?

Pousou suavemente a pequena cabeça na base da árvore.

— Aqui costumava haver muitos dos meus Narls imaginários — recordou-se — Um tinha o hábito de me esconder os óculos quando eu não queria usá-los. Outro costumava tornar-me invisível quando sabia que a mãe ia dar Spam picante no almoço — Pôs-se de quatro e espreitou para dentro do buraco na base da árvore — E um... Ei!

Subitamente, Tim foi atingido por mãos minúsculas. Recuou e viu duas criaturinhas a olhar para ele, furiosas. Pareciam feitas de pedaços de árvore e relva — tinham espetados nas cabeças pequenos ramos pontiagudos, os membros tinham espinhos e lascas, e a pele... podia ser casca? Tinham apenas quinze centímetros de altura, mas pareciam capazes de furar uma pessoa como um porco-espinho. Aqueles eram mais uns dos Narls que ele imaginara, como Tibby.

Querendo saber aquilo que as pequenas criaturas fariam, Tim sentou-se lenta e cautelosamente. Afinal, um tipo nunca sabia do que eram capazes criaturas mágicas, por menores e engraçadas que parecessem.

— Afaste-se, Tanger — ordenou um deles. Empunhou um ramo por cima do ombro como se fosse um bastão de baseball — Ooh, te dou uma paulada!

— Er, desculpe-me, Crimple? — disse aquele que se chamava Tanger. Puxou mais para cima os óculos pequenos no nariz comprido e pontiagudo. Era uns centímetros mais baixo do que o Crimple roliço. Ambos tinham os corpos cobertos de musgo e erva como pêlo — Espera um pouco.

Crimple ignorou-o. Deu uns passinhos na direção de Tim.

— Eu te ensino a espreitar nas árvores de pessoas honestas. Seu verme.

— Crimple! — disse Tanger, com mais energia. Desta vez Crimple olhou para Tanger. A criaturinha de madeira aproximou-se timidamente de Crimple e segredou com voz áspera atrás de uma mão cheia de espinhos — Está chamando o Abridor de verme. Ou sou uma caçarola! — Olhou para o chão, balançando para trás e para frente, apoiado nos pés minúsculos.

— O Abridor? — Crimple baixou a arma, que era um ramo. Os olhos arregalaram-se — Oh, que desgraça. Tem misericórdia de mim!

Ficou embasbacado a olhar para Tim, enquanto Tanger sorria timidamente. Tim olhou atentamente para as criaturas de madeira, escondendo um sorriso. Para criaturinhas tão engraçadas, eram muito manhosas e ferozes. Ficou admirado.

— Conheço-o — exclamou Tim. Apontou para Tanger — Costumavas esconder os meus óculos.

Tanger colocou uma mão no peito de Tim e baixou a cabeça.

— E era uma grande honra, a tua benevolência, estou certo.

— Oh, ora, ora! — disse Crimple — Não está aqui há tempo suficiente para polir uma raiz moribunda, Tanger, e muito menos para roubar óculos! Nenhum de nós!

O desacordo em fatos básicos da sua existência surpreendeu Tim.

— Há quanto tempo estão aqui? — perguntou.

— Há séculos, senhor, ou que eu seja um coador! — replicou Tanger.

— Tretas! — exclamou Crimple — Cinco luas e nem mais uma lasca!

Cinco luas? Tim percebeu que queria dizer cinco meses. Foi nessa altura que tivera a visita da Brigada dos Encapotados.

— Cinco luas? — repetiu Tanger — Cinco luas? É pouco provável, graças às recordações agradáveis que tenho do Abridor.

— Recordações? — zombou Crimple — O que tem para recordar, você que está aqui há tão pouco tempo?

— Estou aqui como você está! — retorquiu Tanger — Ou que eu seja um ralador de queijo!

Crimple levantou as mãos num gesto conciliador.

— Está bem, velho amigo, talvez tenha passado um pouco das marcas. Ultimamente ando diferente.

Tim ouviu-os discutir enquanto tentava adivinhar o que se passava. Se Tanger era realmente o Narl de que se recordava, estava ali há anos. Mas Crimple não concordava com o período de tempo. Uma vez mais o tempo fazia coisas estranhas quando a magia estava envolvida. E por que razão o chamavam de o Abridor?

Tanger levantou um dedo de madeira, pontiagudo.

— Se posso apresentar uma solução para este enigma — disse Tanger — Talvez tivéssemos estado aqui e depois voltamos.

— Se é esse o caso, cabeça lascada — disse Crimple —, para onde fomos?

A boca de Tanger abriu-se, depois fechou-se. Ambos se viraram para Tim e esperaram que ele desse uma resposta. Tim encolheu os ombros.

— Acho que Tanger está no caminho certo — disse ele. Tanger fez um sorriso presunçoso a Crimple — Creio que eram meus amigos quando eu era pequeno e depois hibernaram e acordaram há pouco tempo — É quase o tempo em que a minha magia foi despertada pela Brigada dos Encapotados. Vai saber.

— Muito bem — disse Tim, pondo-se de pé — Vim aqui, porque descobri um de vocês ali, e ele foi, bem, destruído. Quero saber o que lhe aconteceu. E outra coisa — Pôs as mãos nas ancas e examinou o terreno coberto de erva — Este lugar não está como eu me lembro dele. Para já, esta lixeira nunca existiu — Deu um pontapé num pneu velho.

— Não, mestre Abridor, creio que não — disse Tanger — Espero que o Wobbly tenha sido mais discreto, tapando o ninho com penas nesse tempo.

— Ei, como sabe da existência do Wobbly? — perguntou Tim — Era uma criaturinha com cabeça de pássaro, não era? E costumava dar-lhe de comer, uhmm... — arrastou a voz, tentando lembrar-se.

— Dava-lhe pedacinhos de pão — Crimple terminou a frase por ele — E brinquedos que não te agradavam. Cintos partidos e roupas velhas.

— Coisas que não tinham utilidade para ti — acrescentou Tanger — Coisas que punha à parte. Como nos pôs.

Uma sombra escura por cima de Tim o fez tremer. O nariz enrugou-se, quando um cheiro desagradável encheu o ar e um sussurro ia se aproximando cada vez mais. Tim olhou para o céu e ficou de boca aberta.

Uma criatura, parecida com um abutre, aproximava-se, a bater as asas enormes, fazendo uma brisa pestilenta. Em vez de osso, carne e penas, aquela ave de rapina era feita de lixo — bugigangas e velharias. Soltou um grito horrível e, cada vez que batia as asas grotescas, caíam pedaços, como se estivesse a desfazer-se. Unido por esterco e pó, terra e detritos, desceu a pique, abriu as garras e apanhou Tanger.

Horrorizado, Tim percebeu que aquela... aquela coisa era o Wobbly, a criatura que ele próprio inventara para se livrar de coisas sem valor.

Wobbly pairou sobre a terra, segurando Tanger com as garras poderosas, que balançava.

— Que adianta crescer — disse, com voz áspera, numa personificação terrível de Tim — se não podemos deixar para trás estas coisas de crianças.

— Tanger! Não! — Crimple saltava, tentando agarrar o pé minúsculo de Tanger, mas não conseguiu alcançá-lo.

Wobbly atirou a cabeça para trás e soltou outro grito arrepiante. Bateu as asas e começou a afastar-se.

— Pára! — gritou Tim.

O abutre de lixo parou e empoleirou-se num ramo da árvore.

— Abridor, gritou pára? A mim? Abriu o caminho entre reinos; abriu a porta entre o pensamento e a ação, a imaginação e a realidade. Obrigou-me a satisfazer o teu propósito. E agora diz para parar?

— Escute, Wobbly. Aquilo que acabou de dizer...

— É aquilo que você disse há pouco.

— Talvez tenha pensado nisso, mas não queria. Não como você quer. Pousa o Tanger.

— Estes inúteis. — Wobbly levantou a garra e abanou Tanger à frente de Tim — Estes inúteis e eu, voltamos com a nova magia que brota de ti.

— De mim? — Tim deu um passo atrás. Então era verdade. Chamavam-lhe o Abridor, porque era isso que a sua magia fazia: abria possibilidades. Quando ele escolhera o caminho da magia, aquelas criaturas tinham voltado a existir, repentinamente reais.

Wobbly abanava Tanger para trás e para frente. Os olhos do pequeno homem de madeira estavam redondos de terror por detrás dos óculos. Estava tão assustado que até tinha medo de gritar.

— Os inúteis formaram-se a partir da tua antiga forma de pensar — resmungou Wobbly — Mas eu formei-me a partir da nova. Não paro, Abridor. Não desisto. Sou guardião da forma nova. Trabalho para você, como é agora — Com a pata livre, arrancou uma serra de arco estragada e enferrujada do meio do lixo que era o seu corpo. — Está feito com estes. São uns inúteis. Devem ser postos de lado. Destruídos.

Crimple atirou ramos em Wobbly, depois erva e até pedaços de terra. Mas as mãos eram tão pequenas que só conseguia lançar pedaços que Wobbly nem sequer via.

Faz alguma coisa, incitou-se Tim. Diz alguma coisa. Até Crimple com quinze centímetros está a replicar. Devia fazer o mesmo.

— A minha missão é livrar o mundo dos inúteis — continuou Wobbly — Foi para isso que me fez. Colocou-os de lado, por isso serão destruídos. Como destruí aquele que chamava de Tibby.

— Está fazendo tudo errado — disse Tim, esperando parecer seguro de si mesmo — Já não queimamos o nosso lixo nem o reduzimos em pedaços.

Isso chamou a atenção de Wobbly.

— Não?

Não desista, disse Tim para si mesmo. Pode lidar com o velho abutre. Você o fez de paus e farrapos, quando tinha cinco anos, lembra-se? Como pode ser tão esperto?

— Serrar velharias, queimá-las, está fora de moda — zombou Tim — Agora a novidade é a reciclagem.

Wobbly atirou a cabeça para trás e bateu várias vezes com o bico, fazendo estalidos.

— O que significa isso, Abridor? Re-ci-cla-gem?

— Significa encontrar uma nova utilidade para as coisas inúteis — explicou Tim — Significa manter intactas as coisas inúteis e deixar que encontrem uma nova finalidade, uma nova forma de voltarem a ser úteis. Por isso, nada tem de ser cortado ou queimado.

— Sim! A reciclagem está na moda — disse Crimple, acenando várias vezes e rapidamente com a cabeça.

— Belo conceito, hein! — disse Tanger. A voz tremeu, mas ele sorriu como se não tivesse nenhuma preocupação — Muito engenhoso, realmente. Ou que eu seja uma chaleira.

— Crawwwwww — crocitou Wobbly, como se estivesse a pensar — Crawwwww.

— E se me pusesse no chão — disse Tanger, com ansiedade — Meto-me debaixo da, ah, da velha árvore reciclada. E posso começar a procurar uma nova utilidade para mim.

Wobbly deixou o ramo, fazendo balançar as folhas. Arrastou atrás dele latas e sapatos velhos e pedaços de hambúrguer meio comido quando se afastou.

— Muito obrigado, senhor Wobbly — gritou Tanger ao abutre de lixo.

Crimple correu para Tanger e cingiu-o com os braços hirtos e espinhudos. Tanger bateu levemente no ombro de Crimple e sorriu a Tim.

— É, jovem amo — disse Tanger —, se precisar de alguém que te esconda esses óculos, pode contar comigo.

Tim sorriu.

— Obrigado. Não me esquecerei de vocês.

Ficou a olhar para as criaturinhas, que voltaram para o interior da árvore, e abanou a cabeça sem saber ao certo o que tinha acontecido. Apenas sabia que foi importante.

Então, decidiu acreditar em magia, pensou. E, de repente, tudo aquilo em que acreditava tem importância. Tudo aquilo que fez tem conseqüências. Pendurar um trapo num pau e chamar-lhe Wobbly, por exemplo.

— Caramba — murmurou. Era muita pressão.

Tim vasculhou a erva alta e descobriu o Wobbly original, que fizera há tanto tempo, e agora em muito pior estado. A cabeça de trapos estava esfarrapada e o corpo, feito de pau, estava dobrado e torcido. Acocorou-se e examinou-o.

Devo tirar isto do baldio e enterrá-lo? Interrogou-se. Isso irá desfazê-lo? Ou irá modificá-lo... libertá-lo, talvez, com uma forma nova e perigosa. Wobbly transformara-se, sem dúvida, numa coisa monstruosa, embora não soubesse ao certo que tipo de perigo representava.

Tim concluiu que o mais seguro era deixar o Wobbly original onde estava. É melhor ter mais cuidado com os meus pensamentos, percebeu. Quem sabe que desejos se tornarão realidade?

Começou a sair devagar do baldio. Ali havia demasiadas recordações.

Quando era pequeno, tinha de criar amigos e criaturas imaginárias para fazerem aquilo que eu queria fazer. Precisei do Wobbly para me livrar de coisas. Precisei de Tanger e Crimple para me poder enfurecer com alguém ou evitar aquilo que não queria fazer. Agora tenho de enfrentar tudo, não tenho?

Enfrentar a realidade.

— Oh, não! — exclamou — Estou atrasado para o encontro com a Molly.

 

País Encantado

O Rei Auberon do País Encantado estava sentado numa cadeira de encosto alto e ricamente estofado. À frente dele, elfos e o povo do País Encantado dançavam no relvado verde e fresco, com o castelo magnífico que se erguia por cima deles. A esposa, a Rainha Titânia, dançava uma alegre quadrilha à frente deles, com o longo cabelo a balançar enquanto ela se divertia. As melodias ritmadas e tocadas nos alaúdes, os compassos dos tambores e das varetas não faziam com que os seus pés com chinelos dançassem. Ele observava belas criaturas aladas a esvoaçar nas sombras sarapintadas do crepúsculo; brincando, rindo, oferecendo todo o tipo de prazer. Mas ele não se sentiu atraído. Não pela comida, pela bebida, pelas mulheres, pelas canções. Por nada.

Estava infeliz. Titânia tornara-se ainda mais distante. Nunca imaginara que tamanha indiferença fosse possível quando se casaram. Mas agora tudo aquilo que estava entre eles encontrava-se carregado de expectativas goradas e segredos. Ela sofrera com a morte do Falcoeiro, Tamlin, sofrera mais do que uma Rainha devia sofrer por um cortesão. Primeiro, soluçara amargamente, depois ficara cheia de raiva, e agora, os divertimentos infindáveis, desesperados. Auberon já não podia fingir mais; reconhecia que a sua reação era a de uma amante que perdera o amado.

Auberon sentia uma dor estranha. Seria ciúme? Pôs de lado o pensamento. Titânia tivera as suas diversões ao longo dos anos; ele também as tivera. O que era uma mais numa longa fila de favoritos?

E, no entanto, o sofrimento de Titânia com a morte de Tamlin, fizera com que se interrogasse. Houvera algo mais... sério entre Titânia e Tamlin do que havia entre Titânia e ele? Titânia reagiria assim se alguma coisa lhe tivesse acontecido?

Contemplou a cena à sua frente, com a irritação a fervilhar sob a pele azul. Ela fizera aquela festa para se distrair da perda. Mas o seu riso tornara-se estridente e forçado; Auberon lembrou-se do tempo em que era suave e atraente.

Suspirou. Já não o divertiam aquele esplendor e aqueles passatempos do País Encantado. O Rei Auberon ergueu a taça de ouro e bebeu um gole.

— Não tem sabor — murmurou.

Mas o que podia fazer? Como podia preencher o tempo?

Ocorreu-lhe uma idéia. Podia deixar o palácio. Oh, para sempre, não. Apenas o tempo suficiente para levantar o ânimo. Uma mudança de cenário far-lhe-ia bem.

Desde a morte do manticore, os caminhos entre os mundos tinham-se reaberto. Alguns habitantes do País Encantado tinham-se aventurado a ir para a Terra, para o mundo dos humanos. O fato de alguns não terem voltado era ainda mais convincente. Por que é que Auberon não tentava algo de novo? Talvez encontrasse aquilo que procurava nesse outro lugar — algo que preenchesse aquele vazio, aqueles dias intermináveis. Algo para aquele coração que já não tinha motivo para bater a não ser para o manter vivo.

Sim, pensou Auberon, levantando-se e esticando as pernas compridas. Irei à aventura. Para me lembrar que estou vivo.

Ignorando o chamado dos cortesãos, atravessou o relvado com passos largos e embrenhou-se no bosque. Viu de relance o rosto perplexo de Titânia quando passou por ela sem uma palavra. Reparou, porém, que não deixara de dançar.

Talvez se desaparecesse, ela finalmente reparasse nele. Talvez sentisse saudades dele.

Atravessou o bosque, passou pelo lago, seguiu ao longo do riacho, sempre a pensar. Será que Titânia estranhou ter-se afastado da festa? Ele não se importava. Oh, não, ele não.

Caminhou mais depressa. Havia um lugar aprazível de que se lembrava do tempo em que os mundos se uniram. Uma pequena cidade agradável a fervilhar de vida, que ficava à distância de uma seta lançada por um arco das muralhas de Londres. Lembrava-se bem dela, um sorriso perpassou no rosto azul. Quem não se lembraria? Era uma cidade buliçosa, onde se realizava um mercado, quando lá esteve pela última vez. O povo do País Encantado também gostava de ir até lá sempre que queria; o seu aspecto estranho não seria surpreendente, nem deslocado para as pessoas do mercado.

Recordou-se dos gritos, que ecoavam: “O que nos falta? O que vamos comprar?” Havia tudo o que podia ser comprado ou trocado: cerveja condimentada, línguas de porco-do-mar, belos tecidos de lã de Inglaterra. Até se podiam comprar ursos para engodo e cerejas frescas, tortas e doces.

E mais. Auberon recordou-se da bolsa cheia de bolotas, relva e folhas, transformando-se tudo em ouro quando ele queria, e só voltando ao estado natural quando deixou o mercado. Sorriu, recordando-se da confusão que aquela transformação devia ter provocado depois da sua partida.

Que Titânia e os trovadores toquem os alaúdes e batam nos tambores, plenamente satisfeitos, pensou. Irei divertir-me com música mais animada e talvez encontre lá um coração mais contente para mim.

Chegou a um lugar muito silencioso. Ali a erva crescia em espiral; e começando no ponto mais afastado, seguiu o desenho, sussurrando as palavras. Libertou a magia para a atmosfera e sentiu-se desaparecer. Materializou-se de novo noutro mundo.

A primeira coisa de que se apercebeu foi do cheiro. Acre e desagradável, o ar era algo que podia praticamente saborear e ver.

Um ruído atrás dele fez com que se virasse. Para sua surpresa, um unicórnio branco e brilhante estava na calçada rachada, tão deslocado como Auberon se sentia. A criatura deve ter-me seguido e transposto o portal, concluiu Auberon. Antes que pudesse aproximar-se do belo animal, este relinchou, sacudiu a crina muito branca e afastou-se a trote. Estranho, pensou Auberon. Parecia que o unicórnio tinha um destino em mente. Ao contrário de mim.

O Rei Auberon virou-se para examinar aquilo que o rodeava. O que acontecera à cidade mágica? Reconheceu a forma da costa; as docas avançavam água adentro nos mesmos lugares como há anos atrás. Mas agora os molhes apodreciam, e a água estava coberta de óleo viscoso, e até as aves, que voavam em círculo em busca de alimento, pareciam ferozes e ameaçadoras.

Ali, o céu, naquele outro mundo, não era azul. Era cinzento como aço, salpicado de nuvens cor de fuligem. Chaminés altas vomitavam fumo preto. Pela primeira vez na sua longa vida, Auberon tossiu. A atmosfera poluída queimava-lhe a garganta e os olhos verdes lacrimejavam.

Enquanto o seu delicado sistema reagia à atmosfera carregada de partículas, as orelhas pontiagudas foram assaltadas por uma cacofonia confusa. Os sons competiam uns com os outros para reclamarem o título do mais dissonante. Máquinas guinchavam, buzinadas constantes, berros e pancadas fizeram com que Auberon perguntasse a si mesmo se os habitantes tinham descoberto uma forma de ensurdecer em autodefesa. Aquele era um mundo de barulho e toques estridentes.

E era quase insuportavelmente feio. Depois da vegetação luxuriante e dos tons dourados do País Encantado, o cenário que via era uma afronta. A imundície cobria a calçada irregular e os edifícios. Linhas vincadas e recortadas cortavam o céu — monstruosidades de aço erguiam-se à sua volta. Ali não havia nada suave e acolhedor. Tudo era metal frio.

Outrora, Auberon apreciara o contraste do mundo dos humanos com os tons de pastel do País Encantado. A energia viva, as linhas vincadas, os elementos primitivos, menos refinados — incluindo os habitantes — tinham sido refrescantes, estimulantes. Mas aquilo? Olhou à sua volta. O que podia aquele mundo oferecer a um cavalheiro como ele? Se considerasse o meio como prova, ele e os humanos tinham-se afastado muito. As diferenças entre eles eram excessivas. Não sabia como encontrar prazer naquele lugar triste e furioso.

Mas viera em busca de aventura; não ia virar as costas e fugir a toda a pressa. Talvez aquele lugar triste fosse apenas os arredores miseráveis de uma cidade menos desolada. Procurarei mais para o interior, decidiu. Talvez fosse precisamente isso que o unicórnio estava fazendo... talvez já tivesse estado ali.

Auberon deixou o cais, virando as costas à água coberta de óleo. Uns metros mais à frente, avistou um homem de pescoço grosso, com uma camisa e umas calças sujas, que falava com uma mulher jovem. Na verdade, foi a mulher que atraiu a atenção de Auberon. Não porque tivesse um rosto bonito e belos cabelos loiros caídos nas costas. Foi o seu porte. Usava uma saia comprida e uma blusa de renda, como as mulheres do mercado que ele encontrara no passado. Seria uma visita como ele? Esgueirou-se para uma ruela para ouvir, curioso por saber se ainda compreendia a língua.

— Então, deixe cair a sua alma aqui — explicou a jovem ao homem mal vestido, mostrando uma esfera de vidro — Então, fica com ele, querido. O seu mundo. Como quiser.

O homem coçou a barba de três dias.

— Não sei, anjo. Tenho um VCR e um aparelho de TV com ecrã gigante no meu apartamento. Tenho todo o entretenimento de que preciso, sem esse absurdo sobre almas — resmungou — Bolas de cristal e almas! Acredita mesmo nesse disparate?

A mulher franziu as sobrancelhas.

— Não suporto um homem que ri de mim. Juro que não suporto.

— Digo o seguinte, anjo — Aproximou-se mais da mulher — Por que não vem à minha casa e me dá uma demo? — Deu-lhe uma pancadinha debaixo do queixo — Não espera que compre uma coisa sem ver, não é? Acho que devo receber uma amostra.

A mulher afastou bruscamente o rosto do homem.

— Suponho que gostaria de me experimentar se te desse uma pequena oportunidade. Coisa que não farei!

— Ora, seja simpática, garota — disse o homem, com palavras meigas — Você e eu estávamos a nos dar tão bem — Tentou agarrá-la de novo, e Auberon estava farto. Saiu das sombras e desceu a mão grande e azul no braço do homem.

— Minha senhora — disse Auberon — Este vilão está a importuná-la?

O homem olhou de boca aberta para o Rei com dois metros e chifres de carneiro na cabeça, orelhas pontiagudas, cabelo verde e comprido, e pele azul. A boca dele abriu-se e fechou-se várias vezes, e revirou os olhos. Auberon pressentiu que o homem ia desmaiar e largou-o. O homem deslizou, sentando-se na calçada. Auberon pôs-se à frente dele.

— Creio que ele não a incomodará mais.

A mulher olhou fixamente para Auberon e pestanejou várias vezes. Em seguida, baixou os olhos e fez uma vênia.

— Meu Deus, um cavalheiro!

Auberon sorriu e tocou na cabeça.

— Senhora, um vosso criado — A aceitação rápida do seu aspecto incomum o fez suspeitar que já vira alguém semelhante a ele. Tendo em consideração a sua maneira de trajar e falar, perguntou a si mesmo se visitara o velho mercado no tempo em que os habitantes do País Encantado passavam facilmente entre os mundos.

— Oh, não, vossa senhoria. Perdoai-me, se há alguma coisa aqui que possa fazer, fá-la-ei.

— Dizei-me, se o fareis, por que razão graça e beleza como as vossas são desperdiçadas num lugar tão desolado?

— Senhoria, vendo os meus globos onde posso — Ela ergueu uma bola translúcida e cintilante, semelhante àquelas que Auberon vira as ciganas usarem para lerem a sorte no mercado.

— É em lugares horríveis como este que encontro compradores para aquilo que tenho para vender. Presentemente, poucas pessoas decentes acreditam no paraíso. E a maioria pensa que já comprou a sua parte.

Auberon estendeu a mão. Ela colocou o globo na palma da mão azul.

— Isto é o paraíso? Esta ninharia? — Ele tentou sorrir.

A expressão irritada da mulher indicou que os seus esforços para ocultar a descrença não tinham surtido efeito.

— Perdoai-me, senhor. Mas, quando falo em maçãs, não me refiro a laranjas. Experimentai e depois dizei-me que não é o paraíso — Ela levantou o queixo, num gesto de desafio.

— Senhora, sou Auberon do País das fadas — declarou Auberon — Governei um reino de alta Magia mais tempo do que a vossa raça arrogante se riu de alguém. Deve um senhor do País Encantado confiar a alma a um brinquedo concebido pelo homem? Não creio.

A atitude da mulher mudou por completo. Curvou-se e baixou os olhos.

— Claro que um cavalheiro tão distinto não pode rebaixar-se — disse ela, num tom de desculpa. Fez uma vênia de novo — Perdoai-me, senhor. É que foste tão amável comigo, esperava que... — Calou-se e abanou a cabeça — Não... não... hoje não falarei de esperança. É como dizes. Pertence a um trono e o meu lugar é numa sarjeta.

— Senhora, leva demasiado a sério as minhas palavras — protestou Auberon — Não queria ofendê-la, não queria que fosse embora — Gostou do ar de desafio, do rosto bonito, da linguagem familiar. Agradava-lhe a atenção e a imprevisibilidade de um namorico... um jogo sem conseqüências — Dizei-me o vosso nome, senhora.

— Gwendolyn — replicou ela, numa voz suave.

— Então, minha Gwendolyn, continuemos amigos. Será que uma ofensa tão leve nos fará afastar? Não gostaria que pensasses que zombo de vós ou da vossa raça e das vossas proezas.

Ela parecia ansiosa por se afastar, como se ainda estivesse ofendida com a desconsideração. Estendeu a mão pequena e bonita.

— Por favor, senhor, dai-me o globo. Tenho de ir-me embora.

— Duvidas de mim e da minha sinceridade. Como vos posso compensar? — Examinou o globo e reparou que tinha buracos em cima e no fundo para uma pessoa inserir os dedos — Experimentarei o vosso pequeno brinquedo se isso vos faz sentir melhor.

O rosto dela iluminou-se de satisfação. Auberon sorriu à garota, contente por ter suavizado os sentimentos ofendidos. Era realmente atraente. Pondo a prudência de lado, meteu os dedos nos buracos.

— Arghghh! — Atirou a cabeça para trás e gemeu. Uma enorme onda percorreu-lhe o corpo, como se estivesse a ser inundado de dentro para fora. Tentou tirar os dedos, mas estavam presos. Lutou contra a força do globo; sentiu o objeto terrível a sugar-lhe algo vital... ainda mais vital do que o sangue. Nos momentos finais de consciência, ele compreendeu que aquela não era uma forma de encontrar o paraíso. Era um dispositivo para apanhar almas. Então, o mundo tornou-se ainda mais descolorido e Auberon deixou de sentir o que quer que fosse.

Um sorriso maldoso perpassou no rosto de Gwendolyn.

— Obrigado, Chifres-lindos, foi um gesto muito galante. Soube assim que o vi que era um perfeito cavalheiro. Agora, deixe que o leve daqui.

 

Tim deixou o terreno baldio apressadamente, dirigindo-se à casa de Molly.

— Quem imaginaria que amigos imaginários podiam se tornar reais? — perguntou a si mesmo. Tim estremeceu.

Até os pensamentos têm conseqüências, percebeu. O Wobbly começou por ser um monte de farrapos e paus — agora tornara-se num predador totalmente desenvolvido.

— Como podia adivinhar? — disse Tim — Tinha apenas cinco anos quando o fiz.

Certamente nunca imaginara que teria de salvar amigos imaginários de outro!

Sorriu. Tanger e Crimple eram muito engraçados. Gostou de encontrá-los... bem, de carne e osso não parecia a expressão apropriada, uma vez que eram feitos de pequenos ramos. Mesmo assim, fora ao baldio para encontrar provas para Molly de que ele fazia realmente magia. Tanger e Crimple eram isso, sem dúvida! Só que, uma vez mais, Tim não sabia ao certo como foi feito aquele truque. Parecia que as criaturas tinham surgido por acaso.

Surgiram como a magia aconteceu, pensou Tim. Como o tinham chamado? O Abridor? E Wobbly dissera que Tim “abrira o caminho”. Parece que tenho jeito para abrir caminhos entre mundos, pensou Tim. Já saí e entrei em vários.

Mais tarde me preocuparei com o significado de tudo isto, disse Tim para si mesmo. Agora tenho coisas mais importantes com que me preocupar... como ter a Molly à minha espera.

Tim chegou à rua de Molly. A natureza monumental daquilo que estava prestes a contar-lhe fez com que abrandasse o passo. Verdade seja dita, também estava nervoso por vê-la, porque já estava atrasado uma hora.

— Então, era assim que Clint Eastwood se sentia em todos aqueles filmes rodados ao meio-dia — murmurou, com nervosismo — Não admira que andasse tão devagar — Foi só nessa altura que se apercebeu que estava andando. Bateu na testa — Tonto — disse — Deixou o skate no baldio. E agora não tenho tempo para ir buscá-lo — Bem, talvez os Narls tomassem conta dele. Pararia lá e iria buscá-lo mais tarde.

Tim bateu à porta. Ouviu o som de ferrolhos a serem puxados para trás. Molly abriu a porta, deixando apenas uma nesga, com o cadeado no lugar.

— Oh, é você — disse ela, com desdém.

— Uh, desculpa o atraso — disse Tim — É que... aconteceu uma coisa. Inesperada.

— Uh-huh — Molly olhou para ele através da nesga na porta — E devia desculpar-se, porquê?

— Porque... porque... — Tim enfiou as mãos nos bolsos, mexendo nas moedas — Porque estou super arrependido? Extra arrependido, formidavelmente, estratosfericamente arrependido?

Molly sorriu.

— Assim já está melhor.

Tim sorriu-lhe também.

— Brilhante.

Molly fechou de novo a porta para poder retirar o cadeado. Abriu-a e Tim viu que vestira o casaco.

— Vou sair — gritou para dentro de casa, depois fechou a porta atrás dela.

— Está bem — declarou ela — Vai me levar para tomar um sorvete como prometeu.

Era uma novidade para Tim.

— Prometi?

Molly levantou uma sobrancelha.

— Claro que prometi — disse Tim, apressadamente. Molly pegou-lhe a mão, arrastando-o pela calçada.

— Temos que escapar. Caso contrário minha família virá em peso.

Molly tinha uma família grande, e parecia haver sempre mais tios ou primos ou tias lá na casa.

— Então, você disse que tinha uma coisa para me contar — disse Molly, quando dobraram a esquina.

— Ah, sim.

Tim mantinha os olhos fixos nos tênis. Um passo, outro passo. Cada passo que dava era mais um dado sem contar a Molly o seu grande segredo. Está bem, disse para si mesmo. Mais um passo e diz tudo. Ooops. Mais três passos. Está bem, no próximo sinal de trânsito paro e digo.

— Espera! — ouviu Molly gritar atrás dele — Onde pensa que vai?

Tim parou e virou-se. Viera tão concentrado nos sapatos e nas palavras que giravam na cabeça, que não percebeu que deixara Molly para trás. Ela estava no fundo dos degraus de um prédio que tinha um letreiro pendurado na fachada.

— Escola de Dança Swan? — perguntou Tim, voltando atrás e lendo o letreiro — Que espécie de sorvete espera encontrar aqui? Corneto de Quebra-Nozes? Cone Lago dos Cisnes?

Molly pôs as mãos nos lábios e revirou os olhos.

— Tonto, não vamos comprar sorvetes aqui. Só vou buscar a mochila e as minhas coisas. Fiz um intervalo depois das aulas e deixei-a no armário.

— Você faz lições de dança? — Tim ficou admirado — Mas não parece... quer dizer, uhm... — Não acabou a frase, sabendo que tinha dito o que não devia. Tentou de novo — Quero dizer, nunca imaginei que você...

— Oh, calado — interrompeu Molly — Ainda se enterra mais se insistir.

Tim enfiou as mãos nos bolsos uma vez mais e não disse nada.

— Há muita coisa que não sabe a meu respeito, Timothy Hunter — declarou Molly — Ora essa! — E rodou, subindo as escadas a bater com as botas pesadas, e entrou.

— E há muita coisa que não sabe a meu respeito, Molly O’Reilly. — Tim sentou-se pesadamente no degrau para esperar. Soltou um suspiro de frustração. Será que conseguirei falar sem meter os pés pelas mãos? As garotas são complicadas demais. Abanou a cabeça. Talvez devesse ser monge... como aqueles que fazem voto de silêncio. Talvez assim não me metesse em tantas encrencas.

Molly subiu as escadas correndo e encaminhou-se para os armários, mas, em vez de abri-lo, encostou-se a ele, abraçando-se. Sentia-se tonta e cheia de energia. Soltou uma risadinha — e isso era uma coisa que raramente fazia.

— Fica tão engraçado quando está embaraçado — disse feliz para si mesma.

— Tem alguém aí? — chamou uma voz do estúdio.

Molly espiou para dentro da sala que pensava que estivesse vazia. Uma bela garota de cabelo ruivo, um pouco mais velha que Molly, fazia exercícios na barra.

— Devia ter adivinhado — gritou Molly a Marya. — Nunca para?

Marya fez vários jetés para atravessar a sala e parou na entrada.

— Claro que paro. Quando a Annie vem me buscar ou o porteiro fecha a porta para eu não entrar.

Molly sabia que Annie era a tutora de Marya e achava que não era delicado perguntar-lhe. Annie trabalhava muitas horas como garçonete, o que significava que Marya podia passar muito tempo no estúdio de dança.

— O que faz aqui? — perguntou Marya.

Molly remexeu no armário e descobriu os livros de que precisava para a escola. Enfiou-os na mochila.

— Vim buscar as minhas coisas. Deixaria até amanhã, mas vamos ter um exame. A Revolução Industrial.

— Ouvi falar nisso — disse Marya — Se bem me lembro, não foi lá muito agradável. Ou talvez fosse outra revolução.

Molly olhou para Marya de uma forma estranha. Simpatizava com a garota — Marya era de longe a melhor aluna da Sra. Swan, mas nunca era presunçosa ou irritante como algumas das outras garotas mais avançadas. Mas não se podia negar que era muito estranha. Havia muitas coisas que Marya não sabia, e as coisa que sabia eram muito estranhas. Molly supusera sempre que se devia ao fato de Marya ter vindo de outro país. Não que Marya tivesse lhe contado; foi o sotaque de Marya. A garota ruiva nunca falava dela.

Havia algo de frágil em Marya que fazia com que Molly não quisesse bisbilhotar. Mas gostaria de poder conhecê-la melhor.

— Ei — disse Molly — Quer vir tomar um sorvete comigo e meu amigo? Está à espera lá em baixo.

O rosto de Marya animou-se.

— Adoraria!

Parecia tão feliz que Molly ficou contente por lhe ter perguntado. Talvez Marya se sentisse só e fosse por isso que dançava tanto. Mas Molly também sabia que era também porque Marya adorava dançar, embora não percebesse bem. Claro que Molly gostava bastante das aulas, mas tinha-as mais para agradar à mãe do que por qualquer outro motivo. Se lhe dessem uma boa partida de rugby e muitas corridas, Molly ficava contente. Com a Marya era diferente. Marya parecia mais viva quando dançava; algo irradiava dela quando se movia.

Molly esperou na entrada enquanto Marya desapertava os sapatos de cetim cor-de-rosa com pontas e os metia no pequeno saco de dança. Calçou umas meias grossas e umas sapatilhas, pegou no casaco e pôs o saco ao ombro.

— Pronta — disse Marya.

Desceram as escadas, as botas de Molly faziam barulho, as sapatilhas de Marya batiam suavemente ao lado delas.

— Oh, escute — avisou Molly — Quando conhecer meu amigo, faz de conta que não sabe que é o meu namorado, está bem? Fica embaraçado com ninharias.

— Os garotos são tão esquisitos — comentou Marya — Eles... bem, nunca sabemos como reagem.

Molly olhou para ela, com curiosidade. Era evidente que Marya se referia a um garoto em particular, mas Molly nunca se intrometeria a não ser que lhe pedissem.

Na entrada, Tim remexia nos bolsos à procura de dinheiro trocado. Não planejara a expedição aos sorvetes.

— Na próxima vez que tenha de pagar sorvetes espero que me avisem com alguma antecedência —murmurou. Tirou a mão e olhou para as moedas — Tenho quase dinheiro que chegue para uma pequena quantidade de Rocky Road.

Ouviu a porta a abrir-se atrás dele.

— Voltei — anunciou Molly — E trouxe uma amiga.

— Uh, Molly, não sei como te dizer isto... — Levantou-se e virou-se.

O choque o fez recuar. A garota que estava com a Molly — conhecia-a! Mas era impossível que estivesse ali. Viera de outro mundo. Na realidade, tinha sido por causa dela que fora ao País Livre. Mas estava ali, grande como a vida, bem na frente dele. Com a Molly! Até parecia que se conheciam. Molly chamara-lhe “amiga”.

A garota ruiva também parecia estupefata, mas ver Timothy foi uma surpresa agradável para ela. Com grande excitação, virou-se para Molly e disse:

— Molly! Nunca me disse que o teu namorado era um mágico!

Tim sentiu o corpo a ficar frio por um instante, depois corou tanto que a testa se encheu de gotas de suor. Sabia que o rosto devia estar vermelho como uma beterraba e as pontas das orelhas ardiam.

Marya tinha contado à Molly que era mágico? Caramba! Passara as últimas horas a tentar arranjar coragem para explicar à Molly da forma mais correta e Marya deixou escapar tudo.

E, calma aí, havia outra palavra que estava com dificuldade em perceber. Namorado. Sim, era isso. Se era o namorado da Molly, ele não deveria saber? Não era assim tão pateta. Mas a única forma de Marya pensar que era namorado da Molly era porque Molly lhe dissera, o que significava... significava o quê?

Enquanto Tim tentava desesperadamente encontrar palavras, Molly olhou para trás e para frente no meio de Tim e Marya.

— Vocês se conhecem? — Depois abanou violentamente a cabeça, como se algo tivesse despertado no seu cérebro — Espera... um mágico?

— Oh, sim! — exclamou Marya — Nunca teria encontrado este mundo maravilhoso se não me tivessem mandado do País Livre para vir à procura do Timothy —Virou-se para Tim — O que aconteceu? O País Livre está bem?

Mesmo que Tim fosse capaz de falar naquele momento, nunca teria oportunidade de responder. Ambas as garotas não paravam de lhe fazer perguntas.

— Mágico como a Zatanna da TV ou mágico como os feiticeiros e feitiços verdadeiros e essas coisas? — perguntou Molly.

— Como voltou do País Livre? — perguntou Marya.

— De que ela está falando? — perguntou Molly — Onde fica o País Livre?

— Estão todos bem? — perguntou Marya.

— Quando saiu da cidade? Por que não soube?

— Uh-uh-uh... — foi o que Tim conseguiu dizer. A curiosidade e os pedidos de explicação das duas garotas eram como uma força que o empurrava para trás. Quanto mais depressa recuava, mais depressa elas se moviam.

Virou-se e desatou a correr para a ruela, mas as perguntas ainda o perseguiam.

— Espera, Tim — gritou Molly.

— Por que não contou à Molly que é mágico? É segredo?

— O que mais me escondeu?

Tim chegou a um beco sem saída. Rodopiou. Elas corriam para ele.

O pânico fez com que Tim estendesse as mãos para frente, como um sinaleiro a fazer sinal para pararem.

— Parem! Deixem-me pensar! — gritou. As garotas pararam. Completamente.

Marya tinha um pé no ar, pronta para dar outro passo. Os cotovelos de Molly estavam curvados para a ajudarem a ganhar velocidade. As bocas estavam abertas, a meio de uma frase. Tim imobilizara-as por artes mágicas. E não fazia a menor idéia como fizera isso.

 

Daniel encolheu-se nos degraus por baixo de uma estátua em Piccadilly Circus e esfregou os pés doloridos e sujos. A pedra era fria, mas, pelo menos, podia descansar ali sem que o vissem.

Londres é muito estranha, pensou. Mudou tudo enquanto estive no País Livre. Claro que viera muitas vezes em missões, mas nunca ficava muito tempo, e a maior parte das vezes não se afastava dos arredores para não atrair muita atenção. Durante essas viagens vira que a roupa que as pessoas usavam era diferente, e os veículos nas ruas, mas nunca lhe passou pela cabeça que a cidade inteira se tornasse irreconhecível.

Às vezes podia esgueirar-se nas sombras, passando sempre despercebido a não ser que quisesse ser visto. Agora dava na vista, e as multidões olhavam fixamente para ele. No seu tempo havia assim tantas pessoas nas ruas? Sim, nesse tempo tivera uma existência cheia. Cinco num quarto, dez num apartamento. Os operários da fábrica eram às dúzias, todos a comer, a transpirar, a praguejar, a trabalhar como se estivessem acorrentados. Mas não havia tanta gente naquela época a atravessar o centro da cidade.

— Ai — gemeu, coçando o outro pé. Há dias que percorria Londres, e noites também, à procura de Tim ou Marya, e começava a perder a esperança. Talvez tivesse sido uma má idéia ter vindo. A sua estadia no País Livre tornara-o frouxo, e aquela cidade era dura. Era uma aventura que gostaria de partilhar com Marya. Conversar com Marya ajudara-o sempre a pensar direito. Mas esse era o problema. Não tinha a Marya. Por isso, viera para Londres à procura dela e fracassara.

Esta cidade de Londres é demasiado estranha, pensou. Já não me oriento aqui. Sentiu um nó na garganta, quando pensou que nunca veria Marya.

Curvou-se, apoiando os cotovelos nos joelhos e o rosto nas mãos imundas. Respirava com dificuldade, esforçando-se para não chorar. É muito duro um sujeito perder uma garota desta maneira. Sem saber para onde foi. Ou se está bem.

— Não que Marya fosse realmente a minha namorada — disse ele, em voz alta. Rebentaria de riso se alguma vez lhe chamasse disso. Como ela teria rido. Ele riu também, imaginando-a a rodopiar como fazia, movida pelo riso, e ele sem se importar que se risse dele. Então, o riso ficou preso na garganta quando percebeu que a imagem que tinha na imaginação nunca mais seria realidade.

O outro pensamento abriu caminho até ao seu espírito. Marya já devia estar crescida. O País Livre impedia tudo isso — enquanto lá estivessem ficavam com a mesma idade que tinham quando lá chegaram. Dá vertigens numa pessoa, pensou. Marya devia ser já uma verdadeira senhora e por dentro continuaria a ser a sua Marya. Por pensar nisso, se ficar aqui, esse também será o meu destino. Terei de me decidir depressa. Outra coisa que gostaria de contar a Marya.

Limpou o nariz na manga esfarrapada, pôs a cartola e saltou para a calçada. Se alguém era capaz de imaginar aquele lugar e fazer truques para ela, essa pessoa era Marya. Sim, ela estava bem, tinha certeza disso. Era com ele que tinha de começar a preocupar-se. Com ele e a desforra com Timothy Hunter.

— Ai! — Uma pancada forte nas costelas e no joelho apanhou-o desprevenido e jogou-o estatelado no chão.

Três homens bem vestidos, com pastas de couro, tinham chocado com ele.

— Desculpa — disse uma voz suave. Mas eles pararam? Isso é que era bom. Derrubaram-no e continuaram a andar.

— Era assim quando atravessávamos no caminho dos grã finos que nos batiam com as bengalas — resmungou Daniel, quando se levantou. Sacudiu o pó, depois desistiu quando notou como o casaco estava sujo.

Passou pela vitrine de uma loja e lançou um olhar de indignação aos manequins.

— Raios os partam, gente de terno! — praguejou Daniel — Ficaram com ela. Tiraram-nos a nossa casa. Agora não há nenhum lugar onde gente como nós possa ir.

Olhou para baixo e viu uma grade na calçada.

— Não nos deixaram nada. Nem uma gota de cerveja, nem uma casca de pão. Nem uma fogueira para aquecermos as mãos — Desapertou o cinto e amarrou-o em volta da grade de ferro. Puxou-o, certificando-se se estava bem preso — Mas não podem ter mudado tudo! — Com um puxão forte, arrancou a grade da calçada. Caiu para trás, quando esta se soltou, e bateu com o traseiro no chão. Pôs-se de quatro e espreitou para dentro do buraco escuro. Um sorriso perpassou no seu rosto.

— Tem de haver algum lugar que aqueles tipos das malas ainda não tenham destruído. Algum lugar tem de estar do mesmo jeito — Desceu e caiu com um chape, levantando um jato de água no esgoto por baixo da calçada.

A água estava quente e lodosa. Estava habituado ao desconforto ou estava antes de encontrar abrigo no País Livre. Levaria algum tempo a habituar-se outra vez.

Remexeu nos bolsos e tirou uma caixa de fósforos e uma vela.

— Sou esperto — congratulou-se — É bom estar prevenido — Riscou o fósforo e acendeu a vela, iluminando o túnel.

O fedor não o incomodou: finalmente, havia uma coisa familiar.

— Aqui está um lugar que aqueles grã finos não estragaram — murmurou Daniel. Passara horas, até mesmo dias ali embaixo no passado. Nessa altura havia bons esconderijos. E, pela primeira vez, encontrou uma coisa em Londres que não mudara.

Será que alguém ainda trabalha nos velhos canos de esgoto? Deve cair aqui todo o tipo de coisas daquele lugar sombrio. Não me admirava se os restos fossem melhores agora do que eram naquele tempo. Aquelas pessoas lá em cima pareciam ser esbanjadoras, como se perdessem coisas a torto e a direito.

Daniel vagueou na escuridão, recordando o passado, o bando antigo. O velho Barney Aparvalhado, que contava uma história dos diabos. A Mary Rasca. O Rei do Fogo, que lhe mostrara os túneis; era um bom lugar para um garoto se esconder depois de roubar um bolso ou enfurecer o patrão. O Rei do Fogo conhecia os negócios com o lixo, mas Daniel adorava quando podia ver o jovem a comer fogo. Ele também era um incrível apanhador de ratazanas. Que teria sido feito dele? Interrogou-se Daniel. Dava um centavo para voltar a vê-lo. A todos. Mas, claro, já morreram há muito tempo, recordou-se Daniel.

De repente, apercebeu-se de uma coisa. A água subia rapidamente.. Levantou a vela e descobriu que a saída mais próxima fora tapada com tijolos.

— Também andaram aqui — disse, irritado. A água já lhe chegava à cintura. Levantou mais a vela, mas apagou-se, e ele ficou às escuras.

— Socorro! — gritou. Esperava mesmo que houvesse alguém lá em baixo — Acudam-me!

Sentiu um par de mãos a tapar-lhe os olhos.

— Demorou a gritar, não demorou, Daniel? — disse uma voz áspera e familiar na escuridão — Sempre foi tímido.

Aquela voz. Daniel sentiu um arrepio quando reconheceu quem falara. Não podia ser, não é?

— Reverendo Salggingham? — balbuciou Daniel — É possível que seja o senhor?

— Pode e é, meu garoto!

O homem alto e idoso, com costeletas grisalhas como costeletas de porco, soltou Daniel. Pouco depois o túnel ficou de novo iluminado. Slaggingham fizera aparecer uma lanterna e acendera-a com um gesto floreado.

— Então, lembra de mim — Slaggingham olhou para Daniel com olhos estreitos e cinzentos como aço, o rosto pálido cheio de rugas como sempre tivera — Com pouca satisfação, vejo. Bem, vim ao mundo desde que me conheceu como diretor do seu antigo orfanato, Danny. E mudou-me muito. Sou um homem diferente. Transformado, por assim dizer.

— Mas como? — Daniel não compreendia como é que Slaggingham ainda estava vivo. Daniel não era lá muito bom em contas e sabia que o tempo fazia coisas estranhas no País Livre, mas Slaggingham já era velho quando Daniel vivia no Mundo Mau. Isso fora há muito, muito tempo. Daniel sabia das missões rápidas do País Livre ao Mundo Mau e do aspecto dos recém-chegados e da forma como falavam quando lá chegavam.

Se Slaggingham percebeu a pergunta, ignorou-a. Também parecia aceitar que Daniel não morrera — nem envelhecera — durante os longos anos que passaram sem se verem. Bem, se ele não pergunta, eu não conto, decidiu Daniel.

— Bem-vindo ao nosso humilde abrigo, irmãozinho — disse Slaggingham, com voz áspera — Não podia ter vindo em melhor hora.

— Sério? — Daniel nunca confiara plenamente em Slaggingham, pois vira-o passar de amável a enfurecido no meio de uma frase; por isso, o interesse do velho pretensioso por ele o fez sentir-se um pouco desconfiado.

— Andou perdido, não andou? Também foi maltratado, suponho. Bem, não há nada como fazerem gato e sapato de nós para abrir o apetite, digo sempre.

— Diz sempre isso? — perguntou Daniel, esperando que Slaggingham não lhe desse um tabefe por ser impertinente. Foi esse tipo de descaramento que fez com que Daniel tivesse problemas com o reverendo no passado.

— E que tal um gole de chá antes de pormos essas suas mãos hábeis para trabalhar? — perguntou Slaggingham — Ia a caminho da fábrica.

Então era isso. Slaggingham ia colocá-lo de novo na linha de montagem. No passado, era o Reverendo Slaggingham que obrigava os garotos a trabalhar, entregando-os em tenra idade a outros patrões e recebendo depois os seus salários, atirando-lhes os centavos que sobravam como recompensa. Bem, Daniel decidiria. Mas, por mais que detestasse ter de admitir, era agradável estar com alguém que conhecia. Depois de tanta coisa, que era nova e estranha, era um alívio ver um rosto conhecido — e um que era mais simpático do que alguma vez fora. E aceitaria o chá. Tinha tão pouco que comer desde que partira do País Livre.

Sem Daniel ter percebido, Slaggingham levara-o através dos túneis, e só agora Daniel conscientizou-se disso. Podia ver luz entrando por uma arcada em cima. Sons, também, ecoavam à volta dos túneis — sons metálicos, sibilantes e estridentes, tal como no passado.

— Ah, chegamos — anunciou Slaggingham. Pararam na arcada, e Daniel ficou admirado com a vista.

Naquela parte dos túneis, o teto era alto e abobadado, mais alto do que o clube no topo da árvore no País Livre, mais alto do que as casas ao longo da pacata rua por onde passara Daniel nesse dia de manhã. No centro erguia-se uma máquina gigantesca. Válvulas, manômetros e mostradores roncavam enquanto fios zumbiam e fumaça a envolvia. Andaimes metálicos permitiam que os operários estendessem longas varetas de metal para manipularem as alavancas e empurrarem as cinzas.

Daniel observou os operários por algum tempo. Eram um grupo heterogêneo — na sua maioria homens, mas a avaliar pelas roupas, parecia que havia desde ricos a pobres, e os diversos estilos indicavam que vinham de épocas diferentes. Como no País Livre, observou Daniel. No País Livre, as crianças chegavam com a roupa que tinham vestido, quer fossem túnicas medievais ou jeans.

Só que estes tipos não parecem ser muito livres, pensou Daniel. Moviam-se em padrões rítmicos, como se fizessem parte da própria maquinaria. Só que aqueles que mandavam, como Slaggingham, e um homem que, ao passar, o reverendo saudou como Irmão Salamandra, pareciam ter vida própria. Os outros eram robôs silenciosos.

Não vou me transformar num deles, nem pensar, jurou Daniel, silenciosamente.

— Não é uma beleza? — Slaggingham pousou de leve o braço no ombro de Daniel. O reverendo ainda era mais alto do que ele, como sempre fora, mas Daniel notou que o toque era mais suave.

Talvez o velho Slaggingham seja um homem novo, sem dúvida, pensou Daniel. Agora não me chamará de “ignorante malcheiroso”. E não levantará a mão para me bater, muito menos uma bengala. Também já não cheira a rum como antes. Agora cheira a massa lubrificante e a óleo, como se trabalhasse com máquinas.

— É um prazer ter você aqui, garoto — disse Slaggingham — Vou poder, finalmente, ajustar contas contigo.

— O que quer dizer com “ajustar contas”?

— Não fui mau para você no passado? Não te ameacei, não te bati e não te xinguei?

— Sim — Daniel encolheu os ombros — Mas também fizeram todos os outros com os bolsos cheios de notas. Em comparação com os outros, o que fez não foi nada. Nunca me mandou descer chaminés até ficar arranhado e em carne viva. Nunca me pôs em salmoura como se fosse um porco, quando ficava violento. Nunca me fez passar fome para me obrigar a ter vontade de trabalhar.

— Pára — gemeu Slaggingham. Bateu no peito — Está a despedaçar o meu coração, garoto — Subitamente, estendeu a mão e puxou Daniel e curvou-se para lhe dar um abraço desastrado. Depois estendeu os braços, sem largar Daniel, e inclinou-se para o olhar nos olhos — Ia te levar para a fábrica — confidenciou Slaggingham — Fazer de você extrator-chefe. Mas agora te conheço melhor. Tem fogo nos olhos, meu garoto, e aço no coração — Abanou um dedo na frente do rosto de Daniel — Meu jovem, quero que seja meu sócio — Endireitou-se novamente e estendeu a mão — Dá cá um aperto de mão para selar a sociedade.

Daniel hesitou. Apesar do comportamento de Slaggingham, ainda não confiava nele. Além disso, Slaggingham nunca fizera nada desinteressadamente, fossem quais fossem as conseqüências para o outro sujeito.

— O que é um extrator? O que tenciona extrair? — Esperava que não fossem dentes.

Um apito soou e os operários silenciosos passaram de uma parte da maquinaria para outra.

Slaggingham ficou com um brilho nos olhos e abriu um sorriso largo. Meteu os polegares nos suspensórios e o peito inchou como o de um pombo.

— Felicidade! — exclamou — Extrairemos felicidade daqueles que a têm em excesso e daremos àqueles que têm pouca. Não reparou que há uma distribuição injusta de felicidade neste mundo, garoto?

— Sem dúvida — concordou Daniel. Pareceu-lhe muito ridículo, mas o que sabia ele em comparação com o velho reverendo? — Como tenciona fazer a extração?

— Ahhhhhhhh, meu garoto, meu garoto — Slaggingham esfregou as mãos — Espera até regalar os olhos com o meu orgulho e a minha alegria. A minha jóia da coroa de todas as minhas criações surpreendentes.

Conduziu Daniel por uma escadaria de metal, presa à parede de tijolo. Ela levou-os a um passadiço suspenso por cima do pavimento. Seguiram pelo passadiço e passaram por outra arcada. Vapor e gases perfumados erguiam-se da enorme maquinaria por baixo deles.

Na luz fraca, Daniel pôde ver corpos silenciosos que se moviam à volta da máquina. Daniel ficou impressionado. Slaggingham tinha ali uma importante operação em curso. E ele quer que faça parte dela, pensou Daniel. Eu! Pensa que valho alguma coisa.

Slaggingham parou junto a um painel de comando embutido numa das paredes.

— Deixa-me ajustar as luzes para que possa ver melhor o gênio dos tempos modernos — Slaggingham agarrou uma alavanca e puxou-a. Chiou e rangeu quando ele a baixou, depois apagaram-se várias luzes.

— Diabos! — Slaggingham, frustrado, bateu na alavanca — Está encravada outra vez!

— Precisa de óleo? — sugeriu Daniel.

— Precisa de proteção — Slaggingham resmungou. Virou-se e pegou numa das lanternas penduradas na parede.

As sobrancelhas de Daniel levantaram-se.

— Proteção de quê?

— Sabotagem! — Slaggingham ergueu a lanterna por cima da proteção do passadiço e averiguou a área.

Daniel seguiu o olhar. Ficou surpreendido por ver um indivíduo baixo, que parecia feito de ferramentas, desaparecer ao dobrar uma esquina.

— Você! — gritou Slaggingham, abanando o punho no ar — Inútil! Vai se arrepender! Irei te apanhar!

— Quem é aquele? — perguntou Daniel, intrigado com o aspecto da estranha criatura.

— Um Sabotador. Um inimigo do progresso! Awn, o Pisca, é o nome do agitador, com ferramentas em vez de dedos.

— De onde ele veio? — perguntou Daniel. Nunca vira ninguém como Awn, o Pisca. E que nome estranho — Como foi parar lá?

— Está aqui, porque um fedelho, um mágico da cidade, com miolos de lama, acredita nele. Graças à falação dele estamos atrasados — Slaggingham andou de um lado para o outro, a praguejar em voz baixa.

O estômago de Daniel roncou.

— Não falou em chá? — perguntou Daniel — Não passa da hora?

Slaggingham parou de andar no passadiço e olhou atentamente para Daniel. Olhou de novo para o lado onde Awn, o Pisca, desaparecera, e depois para Daniel uma vez mais.

— Não quer inspecionar primeiro o Extrator?

Daniel cruzou os braços.

— Nem pensar — Tinham-lhe oferecido um chá, por Deus, e estava decidido a tomá-lo.

Slaggingham parecia desapontado, mas encolheu os ombros.

— Então, te falo dele durante o chá... está bem, sócio?

Daniel ainda não aceitara a idéia de ser sócio, por isso não disse nada.

— Vem comigo, garoto — Slaggingham desceu as escadas e levou Daniel, contornando o Extrator. Uma vez mais, Daniel ficou intrigado com os operários. Não sabia ao certo o que havia de errado neles... vira comportamentos como os dos robôs entre os operários da fábrica no passado... mas, mesmo assim, perturbaram-no.

Enquanto caminhavam, Slaggingham pôs um braço nos ombros de Daniel.

— Há dois tipos de pessoas no mundo, Daniel — disse —, os felizes, diabos os levem, e nós. E por que, te pergunto?

Era uma pergunta idiota, sendo tão óbvia a resposta. Daniel contou os motivos pelos dedos.

— Comem regularmente e nós não. Têm casas que lhes pertencem. E nós não temos. Não têm que se esconder ou trabalhar como escravos como nós. E têm coisas. Muitas coisas bonitas.

— Muito bem! — Slaggingham agia como se Daniel tivesse um Muito Bom num exame na escola — Esse teu cérebro é um relógio, meu garoto. Então, dá um tick a isto. A lei de Slaggingham informa-nos que existe uma quantidade finita de felicidade a flutuar no mundo. Finita significa limitada, como sabe.

— Sim, eu sei — murmurou Daniel — Não sou estúpido.

— Oh, eu sei, garoto. É, de fato, o limpador de chaminés mais brilhante que conheço. Agora, digamos que queira libertar alguma felicidade para você e os teus amigos agarrarem. Como faria isso?

Daniel estava confuso. Mordeu o lábio.

— Eu... eu não sei — admitiu. Parecia impossível. Afinal, se as pessoas pudessem fazer isso, não estariam já todas fazendo o mesmo?

— Produziria infelicidade, seria isso que faria! — resmungou Slaggingham — Depois vendia às pessoas felizes. O que as tornaria infelizes, claro, tão certo como haver Natal uma vez por ano — Slaggingham parou e começou a gesticular dramaticamente, ilustrando a sua visão — Quando a felicidade começar a gotejar dos corações trespassados, você e os teus amigos apanhariam tudo até à última gota com o Extrator Anti-Tantálico. Patente pendente.

A cabeça de Daniel girava. Não fazia sentido. Mas, caramba, não seria uma loucura se isso fosse possível? Uma forma de humilhar aqueles orgulhosos. E ele estaria lá para apanhar toda essa felicidade.

— Como se fabrica infelicidade? — perguntou Daniel — E como é que alguém a compraria?

Um sorriso irônico perpassou no rosto enrugado de Slaggingham.

— Essa é a parte mais fácil. Consumismo. É o sistema capitalista. Publicidade. Existe há anos. Agora podemos entrar no sistema e usá-lo para os nossos fins.

Apesar deste plano parecer surpreendente, Daniel achava que era uma coisa em que não queria se envolver. Havia algo de errado na lógica, mesmo que não fosse capaz de localizá-lo ou encontrar palavras para explicar isso ao velho reverendo.

Além do mais, Slaggingham ainda não oferecera o chá. A oferta da bebida tinha sido uma impostura? Como pode-se confiar num homem que não só devia estar morto há anos mas também te atormenta com a mesma promessa de um gole de chá, mas não apresenta nada? Em vez disso, te faz andar por túneis sem fim, atravessar outra arcada até uma máquina gigantesca?

— E esse chá... — começou Daniel, mas Slaggingham interrompeu-o.

— O que vem a ser isto? — perguntou Slaggingham — Por que não estão nos seus postos?

Daniel reparou que ali, em vez de trabalharem diligentemente, os operários estavam todos parados, formando um círculo, afastados da máquina. Havia ferramentas espalhadas no chão, como se as tivessem simplesmente largado.

— O que se passa aqui? — bradou Slaggingham.

Quando os operários registraram a voz de Slaggingham, o círculo abriu-se lentamente.

Slaggingham prendeu o ombro de Daniel com a força de um torno mecânico.

— Impossível! — exclamou.

— Ai! — gritou Daniel.

Slaggingham não percebeu que Daniel tentava libertar-se das garras. Estava imóvel, a olhar fixamente para qualquer coisa em frente. Daniel espreitou pelo meio dos operários e ficou de boca aberta. Um unicórnio estava a olhar pasmado para o extrator da felicidade.

— Não pode ser, massa lubrificante e juntas a arder! — gritou Slaggingham — Um unicórnio. Arre, é lustroso. Bem, tirem daqui essa coisa ridícula.

Nenhum dos operários se mexeu. Era como se o unicórnio os tivesse hipnotizado.

Daniel olhou fixamente para a criatura e sentiu o coração a palpitar. Era belo, confiante e não tinha o direito de estar ali no meio da imundície escura. Percebia a raiva de Slaggingham. Uma vez que lhes lembrava aquilo que não eram. Estaria a rir-se deles? Teria vindo apenas para fazê-los sentir mal com a vida que tinham?

Slaggingham examinou os operários e deve ter percebido que eram inúteis naquela situação.

— Agitador miserável — gritou ao unicórnio.

Com vários estalidos, Slaggingham encaixou uma estranha mira de metal. Daniel ficou sobressaltado: a arma parecia ter saído do casaco de Slaggingham. Estava armado, percebeu Daniel. Ainda bem que não o irritei.

Então, piscando apenas um olho, Slaggingham disparou uma saraivada de balas contra o animal.

O unicórnio empinou-se e desatou a galopar por um dos túneis. Todas as balas falharam o alvo. Ninguém se mexeu para seguir a criatura.

— Vai para o diabo, maldito! — bradou Slaggingham — Jumento dos contos de fadas! Vai para o diabo, você e esse Timothy Hunter abelhudo!

O rosto de Daniel ficou quente e o coração bateu violentamente no peito.

— Disse... disse Timothy Hunter? — balbuciou.

Com vários estalidos, a arma de Slaggingham desapareceu no casaco. Slaggingham olhou para Daniel.

— Disse.

— Está dizendo que ele é o causador de todos os problemas aqui? Parando o trabalho e fazendo homenzinhos de ferramentas?

— É esse o vilão. Conhece?

— Conheço. Roubou a minha namorada, a Marya. — Daniel respirou fundo — Se está contra Timothy Hunter, então sou a pessoa que lhe convém. Odeio-o.

— Então, isso significa que temos um acordo? — perguntou Slaggingham, ansioso.

Daniel acenou com a cabeça, depois estendeu a mão ao homem.

— Temos.

 

Tim olhou fixamente para Molly e Marya, ambas congeladas. Cerrou os punhos, fechou os olhos com força e bateu nas têmporas.

— Tim, fez isto agora mesmo — censurou-se. Abriu os olhos. Infelizmente, a cena à frente dele não mudara. Prova da sua idiotice... como se precisasse de mais provas.

— Mas afinal o que foi que eu fiz? — perguntou, em voz alta — E como desfaço isto?

Andou devagar em círculo, em redor de Molly e Marya. Era como se fossem estátuas num museu. Pareciam vivas.

— Claro que parecem vivas... elas estão vivas! — Tim detestou o som de terror na voz. Tornou-se aguda. Examinou-as uma vez mais — Estão apenas em suspensão — Remexeu nas bugigangas que tinha nos bolsos, com esperança de que o gesto familiar o ajudasse a pensar.

Não ajudou.

Tim sentou-se pesadamente na borda da calçada, com os olhos sempre fixos em Molly. Meteu-se naquela confusão, porque embaralhara tudo e, em vez de enfrentar a situação como um homem, como um herói, ou talvez como o seu pai, Tamlin, teria enfrentado, ele apenas tentou reprimi-la para poder fingir que não estava acontecendo. O que tornava tudo muito pior, porque acontecera outra coisa — mas fora ele que fizera isso!

Levantou-se de novo, andando de um lado para o outro à frente das garotas. Quisera falar da magia à Molly; até planejara uma demonstração. Mas aquilo não era propriamente o que tinha em mente.

Pôs-se ao lado de Molly, fitando os olhos cintilantes. Que expressão era aquela no seu rosto? Parecia excitada e impaciente. Não parecia zangada; era um alívio. Claro, isso era antes de saber que a podia congelar e talvez não conseguisse descongelá-la.

Olhou para os dois lados da rua. Felizmente, tinha-se esquivado para uma ruela, e as garotas seguiram-no, por isso não havia carros, nem pessoas, nem testemunhas. Interrogou-se — se houvesse, também teriam ficado congeladas? Não fazia a menor idéia qual era o alcance daquele poder de congelação.

Respirou fundo. Tinha medo de tentar desfazer aquilo que fizera, porque não sabia como o fizera. E se piorasse as coisas?

Mas tinha de fazer qualquer coisa. Temia que quanto mais tempo ficassem congeladas, mais difícil se tornasse desfazer a magia. Ou haveria efeitos secundários ou qualquer coisa do gênero, se ficassem assim muito tempo? E ainda pior — se ficasse com a Molly até tarde na rua, o pai dela ia matá-lo.

— Tenho que deixar de andar de um lado para o outro e colocar mãos à obra — declarou. Sempre que tento jogar pelo seguro, percebeu, sai tudo às avessas. Bem, aqui não há ninguém que me ajude, por isso tenho de resolver a situação.

Lembrou-se do seu primeiro passo de magia, aquela vez em que impedira que a neve caísse em cima de Kenny, o amigo de Tamlin. O segredo fora concentração, focalização, relaxamento e força de vontade.

O que lhe dissera a Brigada dos Encapotados? A magia responde à necessidade. Precisava de um momento para pensar na ocasião em que as garotas correram atrás dele. Sentiu-se realmente com força e aconteceu. No País Livre estava irritado por se servirem dele, e essa energia quase destruíra o mundo. Aquilo que precisava de aprender era a usar o cérebro, não apenas os sentimentos caóticos. Foi por isso que o truque da neve resultou. Muito bem. Concentração. Abanou as mãos à frente de Marya.

— Desfaz! — declarou. Não aconteceu nada.

— Boa — murmurou Tim — Esta é mesmo boa.

 

Londres subterrânea

Slaggingham bateu palmas.

— Muito bem, muito bem, camaradas. O espetáculo terminou. Comecem a trabalhar. Imediatamente.

Sem um murmúrio ou uma pergunta, os operários da fábrica viraram-se e voltaram para os seus postos, arrastando os pés. Slaggingham sorriu para Daniel.

— Agora me lembro que estávamos para tomar chá.

Já não era sem tempo, pensou Daniel. Por instantes, pareceu-me que o chá era apenas uma invenção da imaginação do reverendo.

Slaggingham abriu uma porta e conduziu Daniel a um pequeno gabinete. Um disco elétrico estava em cima do balcão e prateleiras cobriam as paredes, cheias de comida enlatada.

Parecia que Slaggingham decorara o gabinete com reciclados e encontrara provisões no lixo.

Não interessa, concluiu Daniel. Comida é sempre comida, mesmo se a lata de onde vem tiver buracos e o rótulo arrancado. Passara coisas piores na vida.

Slaggingham começou a preparar o chá.

— Então, aquele Hunter matreiro roubou a tua namorada, não foi?

— Ela fugiu para Londres para vir à procura dele e nunca mais a vi — replicou Daniel — Algumas pessoas talvez não chamem isso de roubar, mas não sou idiota.

Slaggingham colocou a xícara de chá e uma caixa de bolachas cheias de poeira em cima da mesa, à frente de Daniel.

— Também gostaria de tomar uma bebida — disse ele.

Os olhos de Daniel arregalaram-se de espanto quando Slaggingham arrancou a pele das mãos, deixando à mostra maquinaria. Aquilo que Daniel julgava serem dedos, eram, efetivamente, engenhocas.

— O senhor... arrancou a pele! — balbuciou Daniel.

— As minhas luvas, Dan — corrigiu Slaggingham — Francamente, não espera que uma pessoa coma com as luvas.

Slaggingham meteu as pontas dos dedos de metal na pequena caixa. Daniel ouviu um ruído seco e sibilante e viu, horrorizado, quando Slaggingham tremeu com a corrente elétrica a percorrer-lhe o corpo.

Daniel ficou atônito. Bebeu um gole de chá, com as mãos trêmulas fazendo chocalhar a xícara de chá.

O que significa isto? interrogou-se Daniel. O que acabara de presenciar? Significa, percebeu, que Slaggingham não é humano! Como pôde acontecer isto? Claro, isso explicava como conseguia estar vivo ainda e dar coices depois de tantos anos passados. Foi sempre uma máquina.

Daniel franzia as sobrancelhas, confuso. Daniel calculava que tivesse sido humano noutros tempos. Afinal, vira o velho a comer avidamente um prato de guisado a fumegar, enquanto eles olhavam, tanta era a fome. Slaggingham, nessa altura, precisava de comida, como qualquer outro. Então, quando e como se dera aquela mudança?

Daniel bebeu outro gole de chá, esperando acalmar os nervos. O calor o fez sentir um pouco melhor. Afinal, o fato de ser uma máquina parecia ter feito vir à superfície o melhor que havia em Slaggingham. Servira chá e bolachas e tratava Daniel com muito mais gentileza do que alguma vez fizera no passado.

Slaggingham afastou os dedos da caixa e colocou de novo a falsa pele humana nas extremidades de metal.

— Então, tem motivos para querer esse Timothy Hunter morto — disse Slaggingham — Digo que conseguiremos.

— Morto? — repetiu Daniel — Não tenho tanta certeza.

— Ah — Slaggingham acenou com a cabeça, com um ar conhecedor — Então essa garota não é importante para ti.

— Nunca disse isso! — protestou Daniel — Retire o que disse.

Slaggingham sorriu ironicamente.

— Calma, calma, garoto. Não queria faltar ao respeito à tua namoradinha. Vejo que estava certo quanto ao fogo que há dentro de ti.

— Não entende, só isso — resmungou Daniel.

— Deixa-me esclarecer o nosso pequeno mal-entendido — disse Slaggingham — O que posso fazer para te compensar? Traz alguma coisa dela contigo?

— Tenho uma madeixa de cabelo — admitiu Daniel. Sentiu um rubor a subir às faces. Não queria revelar tudo a Slaggingham, mas estava com curiosidade em saber quais eram as intenções de Slaggingham.

Slaggingham ficou radiante.

— Excelente. Quer voltar a ver o anjo? A tua Marya? Dá-me a madeixa de cabelo e conseguirá.

Daniel tirou o medalhão que usava secretamente num fio em volta do pescoço. Tinha sempre o cuidado de mantê-lo dentro da camisa; não queria que nenhuma das crianças no País Livre zombasse dele. Encontrou o medalhão na tenda de Marya depois dela partir, e usou-o enquanto esperava pelo seu regresso. Mas nunca voltou. Assim que percebeu que talvez nunca mais a visse, tirou todo o tipo de objetos da pequena tenda. Descobriu a escova de cabelo e tirou os longos cabelos com um pente e prendera-os com uma fita. Marya dissera-lhe uma vez que a mãe guardara uma madeixa de cabelo, quando era bebê, como uma recordação, então por que não podia fazer o mesmo?

Abriu o medalhão e tirou as madeixas de cabelo ruivo presas com uma fita de cetim azul.

Slaggingham pegou nelas.

— Muito bem, muito bem.

Apertou um botão na parede. Um painel escondido abriu-se com um rangido, deixando à mostra uma pequena máquina. Aquela tinha uma espécie de tela em cima e uma pequena caixa com uma ranhura no fundo. Slaggingham apertou um dos botões, e a máquina vibrou com um ruído surdo. A tela ficou cinzenta-claro, como se fosse iluminado pelo lado de dentro, à espera que surgisse uma imagem. Slaggingham meteu a madeixa de cabelo na ranhura.

— Agora veremos como é, ah?

Afastou-se para que Daniel se aproximasse da tela. O coração de Daniel bateu violentamente uma vez mais. O que ia acontecer?

Lentamente, formou-se uma imagem na tela. A garota, a sorrir, com os braços na direção dele.

— Marya! — gritou Daniel.

— As minhas válvulas palpitam, mas é um anjo, não é? — disse Slaggingham.

Daniel olhou para Slaggingham, com os olhos muito brilhantes.

— Oh, conseguiu. É ela. — A felicidade, que nunca sentira, inundou-o, achando que o fato de ter encontrado o Reverendo Slaggingham fora um golpe de sorte. Graças ao velho, poderia encontrar a Marya. Era um dia feliz!

— Nunca a vi com este casaco — comentou Daniel.

— Deve tê-lo comprado desde que partiu... er, desde que chegou aqui — disse Slaggingham — Está mostrando Marya neste preciso momento.

— Caramba — Daniel olhou de novo para a tela. Era capaz de jurar que ela corria... com o cabelo comprido a ondular — Onde ela está? — perguntou — O que está fazendo?

Slaggingham apertou outro botão e saiu uma tira de papel da máquina. Olhou para ela e disse:

— Ela está em algum lugar na parte oriental de Londres, tão certo como as engrenagens terem dentes. Quanto àquilo que está fazendo, vamos dar uma olhada.

Slaggingham ajustou a máquina e a imagem andou para trás, dando-lhes uma visão mais ampla.

— Não — balbuciou Daniel.

Ali estava Marya, grande como era na realidade, só que Daniel pôde ver para quem ela sorria, para quem estendia os braços, para quem corria. Não era Daniel.

Era Timothy Hunter.

Sorridente. Dengosa. Para aquele mágico. E ficou com o sangue fervendo quando viu como Tim fitava Marya.

— Cão tinhoso! — berrou Daniel — Vai apanhá-la e beijá-la! Diabos me levem se não vai — Daniel rodopiou e tapou os olhos com o braço — Faça-a desaparecer — suplicou — antes que o meu coração arrebente — Atravessou a sala correndo e sentou-se pesadamente à mesa, enterrando o rosto nas mãos.

Daniel ouviu um estalido atrás dele.

— Desapareceu, garoto — garantiu-lhe Slaggingham — Já pode olhar.

— Olhar? — disse Daniel na curva do braço, com a voz embargada pela emoção — Eu digo quando poderei erguer de novo a cabeça. Quando aquele traidor com quatro olhos for carne para gato e eu tiver a Marya de volta.

— Hoje pode ser o nosso dia de sorte — prometeu Slaggingham — Te ajudarei. Tenho outra pequena invenção... uma coisinha que concebi e que pode ser útil. Vem, garoto.

Daniel limpou o rosto com a manga. Não queria que Slaggingham nem nenhum dos outros operários vissem que estava chorando. Levantou-se e sentiu-se envergonhado por não ter força nas pernas. Deixou que Slaggingham o conduzisse através dos túneis, indiferente aos atalhos e desvios por onde seguiam. Não queria saber para onde iam, caminhava, arrastando os pés, com dores em todos os poros.

            Não havia operários na sala para onde Slaggingham levara Daniel. Apenas uma máquina, semelhante a uma coluna, com fios, mostradores e coisas do gênero.

— Entra, garoto — ordenou Slaggingham. Daniel aproximou-se da cápsula de vidro.

— O que é isto?

— Esta beleza é um Potenciador Amalgo-Redutor de Pessoas. O que sou hoje devo a ele. E pode fazer o mesmo por você. O que tem de extraordinário é que tira aquilo que há dentro de você e transforma-o.

Daniel olhou fixamente para o invento.

— O que fará?

— Reduzirá o teu sofrimento — explicou Slaggingham — e aumentará o seu poder para enfrentar pessoas como Tim Hunter.

Os olhos de Daniel arregalaram-se.

— Estou nessa!

— Entra, sócio — incitou-o Slaggingham — E que você seja tudo o que possa ser.

Daniel subiu os degraus pequenos que iam até a cápsula. Slaggingham apertou um botão, e uma porta na cápsula abriu-se, rangendo. Daniel entrou. Nesse mesmo instante a porta fechou-se de novo. Era como estar numa câmara de vidro. Espreitou, tentando ver Slaggingham, mas através do vidro ficava tudo distorcido.

Slaggingham ocupou o seu lugar no painel de comando.

— Tem muita coragem, garoto. Está na hora de mostrá-la. Dá-lhe gás.

— Deixá-la sair, senhor? A minha coragem? — Uma vez mais, Slaggingham não dizia coisa com coisa.

— Sim, garoto. Cada pedaço dela, sujo, envenenado.

 

Tim continuava a olhar fixamente para Molly e Marya.

— Muito bem, até agora descobri isto — disse para as garotas imóveis — Tem alguma relação com o tempo. De alguma forma o tempo move-se na direção de vocês e depois na minha... e na de toda a gente.

Pôs as mãos nas ancas. O tempo pesa mais no lugar onde elas estão, mantendo-as imóveis. Estão como que presas nele. Estranho, nunca pensei que o tempo fosse pegajoso.

Tim estendeu as mãos, aproximando-as cada vez mais de Marya. Estava lá. Sentiu-o. O ar à volta dela ofereceu-lhe alguma resistência — provocou-lhe um formigamento. Com um gesto brusco, enterrou os dedos nas moléculas, que se moviam mais devagar, e arrancou de cima de Marya aquilo que parecia uma manta pesada.

Marya cambaleou para frente com tamanha força que caíram os dois ao chão.

— Ai! — resmungou Tim.

— Desculpa! — Marya deu uma risadinha e ajudou Tim a levantar-se. Endireitou os óculos no nariz — É tão bom te ver — exclamou ela — Queria te visitar, mas...

— Marya! — Tim precisava que ela se calasse. Agia como se aquele fosse o encontro mais normal do mundo. Isso era uma parte do problema, porém. Não pertenciam ao mesmo mundo.

Efetivamente, Tim percebeu, tecnicamente pertencemos. Todas as crianças que vivem no País Livre eram daqui, aquilo a que elas chamam o Mundo Mau.

Marya respirou fundo, depois recomeçou com as mesmas palavras a saírem dela em cascata.

— E a exploração e a dança, ainda não arranjei tempo.

— Marya, calma aí — disse Tim — Tenho que fazer alguma coisa com a Molly.

Marya virou-se e olhou para Molly.

— O que se passa com ela?

Tim bufou.

— O namorado dela é um mágico. E pouco esperto, receio — Ele acentuou a palavra com n, testando-a. Soava tão mal. Mas ele não devia ser incluído na discussão quando isso foi decidido? Parecia que era o último a saber, como sempre.

— Acha que pode segurá-la? — perguntou Marya. — Ela deve estar presa num momento sério, como você, e não quero que caia.

— É o mais certo.

Marya pôs-se ao lado de Molly.

— Preparada.

Tim procurou a sensação pegajosa no ar, que indicava que o tempo abrandara naquele lugar. Mexeu os dedos e deu um puxão. Molly precipitou-se para a frente e Marya agarrou-a quase no momento em que caía.

— Mantenha-se firme — disse Marya, ajudando Molly a equilibrar-se.

Molly virou-se para olhar para Tim, com os olhos esbugalhados e a boca aberta. Chegou a hora da verdade.

— Mágico? — disse ela.

— Namorado? — contra-atacou ele.

Molly corou. Pela primeira vez na vida, Tim levara a melhor sobre ela.

Ela olhou para as botas.

— Uh.

— Namorado — repetiu ele. Desta vez, porém, era mais uma afirmação do que uma pergunta.

Molly riu.

— Bem, você tinha que descobrir, mais cedo ou mais tarde. Esperava que percebesse.

— Quem, eu? — As sobrancelhas de Tim levantaram-se. — Você me conhece bem. Não percebo que está chovendo até os óculos ficarem embaçados.

— Hm. — Molly deu um passo, ficando mais perto dele — Bem, vejo que deixou de fugir, pelo menos.

— Acho que sim — Deu um passo, aproximando-se dela.

— Isso significa que você... uh... — a voz foi sumindo, e ela olhou para os pés, mais uma vez.

Espantoso, pensou Tim. Molly O’Reilly... emudecida. Decidiu não prolongar o seu constrangimento.

— Sim, creio que sim — Sorriu-lhe.

Só que desta vez foi Molly que recuou. Ele já fizera algo errado?

Examinou o rosto dela.

— A Marya não estava brincando, não é? Você é um mágico?

Ela não parecia receosa, apenas curiosa e espantada.

— Uh, sim, é verdade — replicou ele. Estava a correr melhor do que esperava.

— Legal! — murmurou. Depois arregalou os olhos. — Legal! — exclamou.

— Sim, é muito emocionante — admitiu Tim.

Molly empurrou-o.

— É lindo!

Tim virou-se para ver o que distraíra Molly, uma vez que já não lhe prestava atenção. Ele ficou de boca aberta.

Um unicórnio branco trotava pela ruela em direção a eles.

— O que faz aqui? — perguntou Tim ao unicórnio. Lembrava-se dele do tempo em que salvara o País Encantado. Tim e o unicórnio tinham derrotado o terrível manticore e, enquanto Tim estava às portas da morte, o unicórnio fizera-lhe companhia.

Muito bem, está tudo ficando cada vez mais esquisito. Primeiro a Marya chega ao meu mundo, agora o unicórnio? O que virá a seguir? Os mundos caíam uns sobre os outros. Afinal, talvez seja uma espécie de Abridor.

Tim pestanejou por detrás dos óculos. Poeira negra, densa, começou subitamente a rodopiar ao longo da ruela. Marya e Molly desataram a tossir.

— De onde vem? — perguntou Tim.

— Há um incêndio aqui perto?

— Penso que é fuligem — disse Marya, ofegante — Como a fuligem das chaminés.

— Não há vento — comentou Tim — Por que rodopia tanto?

— Não rodopia — gritou Molly — Vem diretamente para nós.

Em segundos, Tim, Marya e Molly foram engolidos pela nuvem negra. A fuligem e a fumaça rodopiavam em volta deles, cobrindo os prédios, impedindo-os de ver um centímetro à frente deles.

— Vamos sair daqui — disse Molly, a tossir — Não vejo nada!

— E o unicórnio? — perguntou Marya.

— Se for tão esperto como julgo que é, já foi embora — garantiu-lhes Tim.

— Não, não é! — gritou Molly — Olhem!

O vento mudara, fazendo uma pequena abertura na fuligem, por isso puderam ver. O unicórnio, asfixiado pelos fumos e sufocado com a poeira, caiu lentamente no chão.

Uma voz áspera saiu da nuvem preta.

— Digo que o cavalo esquisito morreu, seu companheiro. E diabos me levem se você não for o próximo!

Olhando de esguelha no ar sujo, a lacrimejar, Tim descortinou apenas um vulto aparecendo por cima do unicórnio caído. Era um garoto quase com a idade dele, com roupa esfarrapada e antiquada, e com uma vassoura, velha e suja.

— Daniel? — balbuciou Marya — É você?

 

Por baixo de Londres Gwendolyn conduziu o cavalheiro azul através de um túnel com água que lhes chegava aos tornozelos. Ele era tão alto — com uns dois metros pelos cálculos de Gwendolyn — que teve medo que raspasse com as hastes de carneiro, que ostentava na cabeça, no teto das passagens mais estreitas.

— Trabalhará para Slaggingham, Chifres-lindos — explicou ela, enquanto caminhavam na imundície — Dará a você cama e mesa. Creio que depois de algum tempo de trabalho até verá calos nessas mãos azuis e delicadas.

O cavalheiro não disse uma palavra. Raramente diziam desde que as almas lhes eram sugadas. Gwendolyn viu o valor do sistema de Slaggingham; o fato de não terem alma certamente mantinha os operários na linha. Nunca pensavam em fugir, em replicar. Nunca pensavam — apenas faziam o que lhes mandavam. Obedeciam às ordens, aqueles prisioneiros, e nunca questionavam, nem um pouco.

Por vezes, Gwendolyn perguntava a si mesma como Slaggingham decidiu quem daquele bando alegre devia conservar ou quem devia ser posto à parte. Ela reconhecia o seu valor — era uma isca, pura e simples. Mas por que razão Slaggingham a drogara e ao Irmão Salamandra com o tônico da longevidade mas não o pobre Teddy? Teddy, que fora em tempos conhecido como o Rei do Fogo, tornara-se um robô sem alma, quando outrora fora entre o mesmo grupo o agitador de maquinadores, um dos mais afortunados, como ela.

Mas somos os afortunados?A revolução, há muito prometida pelo reverendo, não se materializara. E estavam naquela situação há muito tempo.

Gwendolyn olhou para trás, para o seu mais recente prêmio. Era um bom partido, um cavalheiro. Um rei, certamente, se o elegante gigante azul fosse de confiança. Guardava recordações vagas de tanto tempo que tinha a irrealidade de um sonho. Recordava os dias de mercado, depois tudo se tornou terrivelmente mau para Gwendolyn e a família, antes de perderem a fazenda e a casa. Pensava que podia lembrar-se desses dias felizes na feira da cidade, quando era uma garotinha e todas as criaturas de todas as espécies se aventuravam a ir à feira. Gwendolyn atribuíra sempre essas imagens à fantasia da infância. Ver aquele Auberon, aquele Chifres-lindos, a fez duvidar das suas dúvidas.

— Não é que seja o primeiro rei a ser capturado por pessoas como eu — disse Gwendolyn — Gosta de História, querido? Repete-se, sabe. Recua o tempo que quiser. Há sempre alguma coisa para aprender. Toma como exemplo os antigos Romanos. Alguns desses cavalheiros podiam dizer-te como era. Senhor, espero que tenha aprendido muita coisa hoje. Espero que não tenha te deixado muito abalado para mais uma pequena lição: como trabalhar como se a tua vida real dependesse dela. O que, claro, é o caso.

Gwendolyn debruçou-se nos parapeitos de metal.

— Ei, Irmão Salamandra — gritou a um homem magro, que estava ficando calvo e olhava fixamente para um grande relógio — Para onde foi o bom reverendo?

O homem magro olhou para cima.

— Não sei, irmã. Está quarenta e nove minutos atrasado para a inspeção, acredite ou não. Podia chamar o encarregado. Ou ir ao gabinete dele.

— Está ouvindo, Chifres-lindos? Está com sorte. Talvez receba um pedaço de pão para comer e antes de te porem trabalhando como escravo. Por isso, ande.

Passaram por várias áreas de trabalho. Nenhum dos operários levantou os olhos ou reparou na criatura extraordinária à guarda de Gwendolyn. Levou o cavalheiro azul ao encarregado, onde os operários estavam no intervalo da refeição. Não havia sinal de Slaggingham.

— Vem, Chifres-lindos — disse ela. Sem fazer perguntas, Auberon seguiu-a até o gabinete de Slaggingham. Bateu com força na porta, depois entrou.

Slaggingham estava no gabinete cheio de ratos, olhando para uma espécie de máquina que projetava imagens.

— Isso mesmo, Daniel, meu garoto — murmurava Slaggingham para a imagem na tela — Mostra a esse maldito Timothy Hunter como elas mordem.

— Reverendo Slaggingham. Trouxe-lhe um cavalheiro — Gwendolyn observou Auberon — E se for forte como é estranho, fará o trabalho de uma dúzia de homens.

— Fico contente como ponche carbólico por ouvir isso — disse Slaggingham. Podia estar falando com Gwendolyn, mas os olhos mantinham-se fixos no visor — Guarda a alma dele na casa-forte e põe a carcaça privilegiada para trabalhar no Extrator.

— Talvez queira examiná-lo primeiro, Reverendo. É extraordinário, na verdade. É um rei. E é azul.

Slaggingham bateu com a mão na mesa com força.

— Irmã, por favor. Não me interessa se o vadio tem uma cauda de macaco de bronze. Examino-o mais tarde. Estou ocupado, está ouvindo? Ocupado! Tem as tuas instruções, bonequinha de trapo. Segue-as.

— Como queira, Reverendo.

Rodou nos calcanhares e saiu da sala. Parou no lado de fora da porta do gabinete. Irritada, respirou fundo várias vezes. Bateu na testa.

— Como fui capaz de me esquecer.

Meteu a cabeça na entrada.

— Vem comigo, Chifres-lindos — ordenou, com impaciência. Se não tivesse dado a ordem, ele teria ficado horas no gabinete de Slaggingham. Auberon acenou com a cabeça e entrou no túnel, caminhando atrás dela.

O aborrecimento de Gwendolyn fez com que andasse mais depressa.

— Então agora sou a bonequinha de trapo, é isso? Ora essa! Talvez sorria e mostre um tornozelo de vez em quando, senhoria. Mas faço isso pela causa. Sou tão respeitável como uma das costureiras que alguma vez passou fome em um sótão, fique sabendo.

Passado pouco tempo, chegaram ao depósito do globo. Gwendolyn estendeu a mão.

— Dá-me o globo, Chifres-lindos — Auberon obedeceu prontamente. Gwendolyn tirou uma pesada chave de ferro do bolso da saia e destrancou a porta.

— Fica aqui — ordenou. Ela entrou no depósito. Tudo o que havia lá dentro eram prateleiras que chegavam ao teto, repletas de globos como aquele que tinha na mão. Colocou-o cuidadosamente no meio dos outros e examinou-o por instantes. Talvez não seja como os outros, pensou.

Aquele globo tinha algo de diferente; algo que o fazia realçar. Aproximou-se mais e observou-o, vendo as chispas e a luz que brilhavam dentro dele. Parecia guardar algo misterioso. Podia ser... mágico? Abanou a cabeça, tentando afastar os pensamentos inquietantes que surgiram espontaneamente, enquanto contemplava o estranho globo da coleção, depois saiu para o túnel.

— Sabe aquilo de que me recordo com mais clareza da minha vida passada? — disse a Auberon quando trancou a porta. Sabia que ele não compreenderia, mas com a disposição com que estava, precisava falar — Não é o trabalho, embora Deus saiba que trabalhei arduamente desde o dia em que tinha idade para enfiar linha na agulha — Conduziu Auberon através do labirinto de túneis, passando pelas oficinas, pelas máquinas, pelas vidas. — É da comida que me lembro — disse ela — Com a minha mãe, a minha irmã e eu a costuramos sempre para podermos comer duas vezes por dia, a maior parte dos dias. Batatas cozidas e frias no desjejum. Batatas cozidas e quentes à ceia. Não era que gostássemos delas, mas porque eram baratas — Riu-se amargamente — E nós tínhamos sorte — Abanou a cabeça — Sabe o que quero deste reverendo excêntrico, senhoria? Um mundo onde ninguém tenha de comer batatas cozidas para manter unidos o corpo e a alma. Essa é a minha idéia de paraíso, Chifres-lindos. Divertido, não acha?

Gwendolyn o pôs trabalhando numa oficina, dando-lhe instruções precisas. Quando teve certeza de que entendera a sua simples tarefa, virou-se para ir embora. Chegando à arcada, olhou para trás para ver se ele seguia as suas instruções. Seguia. Olhando para o corpo elegante, os calções de veludo e a capa, as mãos macias, o cabelo sedoso, as jóias de ouro, um sorriso dengoso perpassou no seu rosto.

— Pensa só — gritou-lhe ela, quando se dirigia para a saída da arcada — Aqui tens oportunidade de ver como vive a outra metade — Calou-se e abanou a cabeça — Não — corrigiu-se — Como vivem os outros noventa por cento. É a isso que eu chamo educação.

 

Na superfície de Londres.

Surpreendente, pensou Tim. Por baixo de toda aquela fuligem e poeira ocultava-se o garoto carrancudo que conhecera no País Livre, Daniel. Era ele que o importunara constantemente por causa de Marya. E, naquele momento, parecia, sem dúvida, homicida.

Tim tossiu, sentindo as partículas negras a tapar-lhe a garganta, a irritar o nariz, os olhos. Tim tentou não inspirar e proteger o rosto com o braço. De pouco adiantava.

— Tim, levanta a camisa e tapa a boca com ela — sugeriu Molly. Podia ver que gritava através da camiseta.

Tim fez como ela lhe disse e o ardor abrandou na garganta. Os óculos protegiam um pouco os olhos.

Como é que Daniel produziu toda esta fuligem? Parece que tem uma maquina de fazer fuligem escondida em algum lugar.

— Muito bem, Hunter — gritou Daniel — Agora está feito.

Ótimo, pensou Tim. Só me faltava ouvir isto.

Marya deu um passo na direção da massa, que rodopiava e parecia emanar do garoto furioso.

— Daniel? — gritou — É você mesmo?

— A Marya conhece-o? — perguntou Molly a Tim.

— São da mesma terra — explicou Tim — É bom. Talvez consiga acalmá-lo.

— O que aconteceu, Daniel? — perguntou Marya — Alguém o tem obrigado a descer por chaminés outra vez? Está todo coberto de fuligem.

— Estava limpo como um apito quando você fugiu e me deixou.

— Eu não te deixei, Daniel — explicou Marya, sensatamente — Deixei o País Livre.

— Sem dúvida — resmungou Daniel — Para poder se juntar a esse cão traidor do Hunter.

Uh-oh, pensou Tim. Em vez de ajudar falar com a Marya talvez enfureça mais o Daniel.

— O Tim não tem nada a ver com isto — disse Marya — Concluí que era criança há muito tempo. Só isso.

— Então como é que eu te vi correr atrás dele há menos de quinze minutos? Eu vi. Não negue.

— Corríamos atrás dele porque estava fugindo — replicou Marya — Ficou embaraçado quando descobriu que eu sabia que ele era o namorado da Molly.

Que desculpa mais esfarrapada, admitiu Tim. Tenho de deixar de fugir de uma vez por todas. Isso se o Daniel não me matar, claro.

Molly deu-lhe uma cotovelada, depois acenou com a cabeça na direção de Daniel. Tim percebeu que estava chamando-lhe a atenção — Daniel afastara-se do unicórnio.

Tim e Molly aproximaram-se sorrateiramente do animal caído no chão. Talvez pudessem limpar as vias respiratórias e ele ficasse bom. Tim escutava, ao mesmo tempo, a conversa entre Daniel e Marya, esperando que Marya conseguisse acalmar o garoto. Molly tirou lenços de papel do bolso do casaco e limpou os olhos do unicórnio.

— Na verdade, a culpa foi minha — disse Marya — Não devia ter dito nada. A Molly contou-me que ele achava ridículo este tipo de coisas.

Tim observou o rosto de Daniel. Se estivesse no lugar dele, não acreditaria, pensou Tim. E se acreditasse, acharia que esse Tim Hunter era um débil mental. Fugir não é apenas inútil, compreendeu Tim. É perigoso a longo prazo.

— Está mentindo, Marya — disse Daniel, com voz sibilante — Porque tem medo de mim. Porque agora sou forte.

O unicórnio tomou fôlego, o que atraiu a atenção de Daniel. Olhou para Molly e Tim. Agitando a vassoura, furioso, afastou-se bruscamente de Marya.

            — Então é esse é o plano, hein, Marya! — berrou ele — Me acalmou enquanto o seu Timothy desfaz todo o meu trabalho! — Precipitou-se para Molly e Tim. Tim levantou-se rapidamente.

— Cuidado, Molly. O limpador de chaminés transtornado está vindo.

— Estou vendo — Molly acariciou a cabeça do unicórnio. Já estava muito mais limpo. Com as palavras meigas de Molly, a criatura pôs-se de pé, com dificuldade. Só nessa altura é que Molly também se levantou.

— Ei! Você aí, com o cabelo preto — berrou Daniel — Saia daí senão apanha junto com seu amigo.

— Namorado — corrigiu Molly — A partir de hoje, ele é o meu namorado. Fique sabendo. Eu tive um unicórnio. Um brinquedo. Era de plástico com uma ridícula crina com as cores do arco-íris.

— E daí? — zombou Daniel no meio da fuligem. Deu mais um passo, obviamente tentando intimidá-la. Tinha bem uns quinze centímetros a mais do que Molly, mas isso não pareceu perturbá-la.

Tim escondeu um sorriso. Não deve ter ninguém como a Molly O’Reilly na terra de onde vem Daniel, senão não se atreveria a falar com ela assim.

— O meu irmão mais velho roubou esse unicórnio — continuou Molly — Em seguida, molhou-o com gasolina e queimou-o todo. Só por brincadeira.

— Ah! Ele fez isso? — Daniel estava nitidamente a sorrir afetadamente. Aproximou-se do rosto dela — Deixou você chorando, não deixou?

Molly nem sequer estremeceu.

— Sim, chorei um pouco.

Uh-oh, é agora, pensou Tim. Sentiu pena de Daniel.

— Devia ouvi-lo, porém — disse Molly — Depois de eu ajustar contas com ele — Molly deu a Daniel um pontapé, rápido e forte, no lugar onde doía mais. Daniel soltou um ronco e dobrou-se, depois caiu de joelhos.

Molly virou-se e voltou para perto de Tim e do unicórnio.

— Pavorosas, Molly — disse Tim.

Molly estendeu o pé para mostrar a Tim.

— Sim, estas botas são boas para este tipo de coisas.

Ela acariciou os flancos trêmulos do unicórnio ofegante. Ainda respirava com dificuldade.

— Vamos tirar daqui esta pobre criatura.

Marya olhou tristemente para Daniel, depois foi-se juntar a eles.

— Está bem? — perguntou ela, batendo de leve no focinho aveludado do unicórnio.

— Ficará — prometeu-lhe Tim.

— Conhece um lugar seguro para o unicórnio? — perguntou Molly a Marya.

— Sim.

— Monta.

Marya olhou fixamente para ela.

— Mas nunca montei um cavalo.

— É fácil — tranqüilizou-a Molly — Segure-se com os joelhos. Com força, mas não com muita força. Pode guiá-lo, prendendo a crina se for preciso. Mas provavelmente não será, uma vez que ele é mágico.

Tim e Molly içaram Marya para o dorso do unicórnio. Ela virou o pescoço para olhar Daniel, que já estava todo encolhido na calçada.

— E o Daniel? — perguntou — Quero que também fique bem — Estremeceu — Está tão diferente. Tão zangado.

— Tim tratará dele — disse Molly — Ouvi dizer que também é mágico.

Sorriu a Tim. Tim sorriu-lhe também. Era tão bom que o seu segredo tivesse sido revelado. Molly estava reagindo bem. Ela era a maior.

— Vai para um lugar seguro — disse Molly a Marya.

— Mas... — Marya começou a protestar.

Molly bateu no flanco do unicórnio para fazê-lo andar. Ele afastou-se a trote, com os cascos batendo ruidosamente na calçada irregular.

Tim viu-os partir, o unicórnio desaparecendo ao dobrar a esquina.

— Molly, não devia ser você a montá-lo? Quero dizer, você é que foi criada no campo.

— Uh, não tínhamos unicórnios na fazenda, Tim — replicou Molly —, apenas cavalos.

— Não devia ter feito aquilo, mocinha — resmungou Daniel.

Tim e Molly voltaram-se. Daniel estava a poucos metros de distância, a nuvem de fuligem ainda mais densa. Tim pôde ver pequenas chamas tocando na roupa do garoto, mas isso não parecia perturbar Daniel.

Sacudiu violentamente a vassoura suja na direção deles.

— Não sou pessoa para andar por aí aos pontapés.

— Bem, nós não somos pessoas que gostem de ser cozidas — disse Tim, com rispidez.

— Mortas — corrigiu Molly.

— Oh, certo — murmurou Tim — Obrigado — Levantou de novo a voz — Não somos pessoas que gostem de ser “mortas”.

— Cuidado com a língua, tratante — retrucou Daniel.

— A Marya te disse a verdade — disse Tim — Não a vejo desde que ela me levou para o País Livre com o jogo da macaca. Na realidade, não fazia a menor idéia que estava em Londres, até hoje. E, além do mais, a Marya não é minha namorada. É a Molly.

Não custou muito a dizer, percebeu Tim. Levou um minuto a acostumar-se. De fato, agradava-lhe. Daniel semicerrou os olhos.

— Mente. Como um cão.

— Não acha que eu possa ser a namorada do Tim? — perguntou Molly. Parecia preparada para lhe dar outro pontapé.

Tim levantou as mãos, exasperado.

— Por que mentiria?

— Porque tem medo de mim, ora!

Tim sorriu. Não pôde evitar.

— Não tenho medo de você — disse. Assim que as palavras saíram da boca, percebeu que eram verdadeiras, mesmo que pudessem enfurecer Daniel ainda mais — Sabe por quê? Porque é a primeira pessoa que encontro que está ainda mais confusa do que eu.

— Não estou confuso com nada! — gritou Daniel. Levantou a vassoura e rodopiou. Começou a vomitar fuligem uma vez mais, enormes nuvens — E você é verme!

Daniel girou, girou. O vento fustigou a fuligem e, transformando-a numa nuvem gigantesca, que escureceu o céu, enegreceu a ruela. Daniel rodopiou cada vez mais depressa, e chamas libertavam-se dele, como se ele próprio estivesse queimando. Saía fumaça dele; os cabelos compridos eram emaranhados de fogo; a roupa esfarrapada, invisível por baixo da cinza, da fuligem e do fogo. E vinha até eles.

Tim tentou desesperadamente combater o ataque. Se concentre, disse para si mesmo. Mantenha uma passagem livre para se proteger. Para proteger Molly. A nuvem de fumaça e fuligem era tão espessa que Tim não conseguia ver nada, nem mesmo Molly ao lado dele. Mas ainda podia respirar.

Lembrou-se do momento em que impedira a neve de cair em cima de Kenny. Esse tipo de magia era o que precisava naquele instante — criar uma bolha protetora que mantivesse ele e Molly em segurança e os deixasse respirar.

Fechou os olhos — não apenas para não deixar entrar a fuligem ardente e as chamas mas para ajudar a concentrar-se. Projetou os sentidos para sentir a presença de Molly; precisava saber que área tinha que afetar. Uma barreira, pensou. É isso que precisamos. Algo que impedisse a entrada da poeira, da fumaça e da fuligem, que voavam por todo o lado. Visualizou o próprio ar a rebater, juntando-se a ele para enfrentar a cinza quente e ardente.

Ouvia Molly respirando fundo ao lado dele e percebeu que conseguira. Estavam a salvo numa bola de ar puro.

— Consegui! — rejubilou Daniel — Tim Hunter deixou de existir! — Suavizou a dança frenética e baixou a vassoura — Aquele Slaggingham é um gênio! Cada palavra que disse era verdade. Slaggingham e a sua máquina tornaram-me poderoso!

A fuligem assentou na rua, quando Daniel se acalmou. Tim e Molly estavam lado a lado, cobertos de fuligem e suor do ardor do ataque, mas respiravam.

— Slaggingham? — disse Tim, tossindo — Quem é Slaggingham?

Daniel ficou de boca aberta.

— Você... você nem sequer ficou chamuscado! — O corpo dobrou-se — Não é justo — Daniel sentou-se no chão — Está bem, bate-me, dá-me pontapés outra vez. Não quero saber.

— Uh, Daniel — Tim ousou dizer — Não vamos te fazer mal. Só queremos que acalme-se. Sabe, que fique um pouco menos homicida.

— Não valho nada — gemeu Daniel — Nem assim consigo nada.

Tim ajoelhou-se ao lado do garoto infeliz.

— Então, não foi sempre assim, sujo de fuligem e furioso?

Daniel abanou a cabeça e limpou o nariz com a manga.

— A Marya quase que não me reconheceu — disse ele, confuso e desolado.

— Ela disse que você tinha mudado — disse Molly.

— O que te aconteceu? — perguntou Tim.

Desanimado, Daniel encolheu os ombros.

— Só sei que me senti virado do avesso desde que Slaggingham me fez passar na máquina das Pessoas.

— A quê? — perguntou Tim.

— Uma invenção de que falava constantemente. Quando falei com ele, lá nos esgotos. Disse que me tornaria... melhor. Mas tudo o que sinto é diferente.

— Tim, tira os óculos — disse Molly.

— Os meus óculos? — Tim não imaginava o que Molly tinha em mente. Sabia que ficava praticamente cego sem eles.

— Sim — insistiu ela.

— Ooooh!. — Tim deu-lhe os óculos, com relutância.

— Toma — Estendeu os óculos a Daniel — Talvez tenha de rodar para fazer isso, mas olha para você no reflexo.

Daniel pegou os óculos de Molly e virou-os primeiro para um lado, depois para o outro. Ficou pasmado.

— S-sou eu! — Deixou cair os óculos.

— Ei! Cuidado com eles — Tim abaixou-se para recuperar os óculos, e Daniel agarrou-lhe o braço com tanta força que Tim se encolheu.

— Você faz magia! — gaguejou Daniel — Pode voltar a me mudar! Não posso me aproximar da Marya desta maneira, nem para lhe pedir desculpas. Por favor, tem que me ajudar. Tem que me ajudar.

O sofrimento do garoto de joelhos era tão profundo, a sua necessidade tão evidente e avassaladora que Tim não podia dizer que não. Em vez disso, declarou:

— Tentarei.

Tim ficou perto de Daniel e observou-o. Qual é a melhor maneira de tentar consertar as coisas para ele? interrogou-se Tim. Para começar, livre-se dessa fuligem malcheirosa. O que significa que tenho de descobrir o que é.

Tim estendeu as mãos na direção de Daniel, tendo o cuidado de não lhe tocar. Olhando fixamente para os olhos tristes de Daniel, Tim deixou que a mente se abrisse.

Tenta alcançar. Toca. Cinzas sufocantes e fuligem pegajosa. A viscosidade do alcatrão por baixo. Esses venenos não cobrem os trapos que revestem Daniel, trespassam-nos. Aproxime-se mais. Toca mais fundo. Limpe os trapos. Peneire a cinza que forma crosta e penetra, na mancha. Procura a fonte. Conhece os seus limites.

Uma dor excruciante atravessou o corpo de Tim, fazendo-o gritar. Imagens passaram velozmente no seu espírito. A bengala do amo. O cinto do amo. O punho do amo. Soco atrás de soco enchiam-no, por pequenos erros, às vezes sem nenhum motivo. Espancamentos quando havia trabalho que tinha de ser feito e quando não havia. Tufos de palha incendiados nas solas dos pés descalços para o obrigar a subir mais depressa às chaminés. Água salgada esfregada nos joelhos e nos cotovelos arranhados e em carne viva para endurecê-los para o trabalho. A única liberdade, a liberdade de escolher como eram passadas as noites. Trancado num cubículo num orfanato com um prato de sopa de couve ou perseguido nas ruas escuras, quando vasculhava no lixo à procura de alimento nutritivo.

Tudo ficou claro para Tim de um momento para o outro. As escórias, que saltavam de Daniel, eram os restos da esperança exaurida. A fuligem preta que espalhava eram os restos do sofrimento de Daniel que não fora capaz de esquecer ou perdoar. O fogo era a raiva obstinada, a fumaça mortal o medo.

Tim mexeu os pés, depois deu um passo atrás, libertando a ligação profunda que estabelecera com Daniel. Sentiu a mão de Molly no braço e isso o fez voltar a ser o que era.

Pestanejou algumas vezes, sem querer que nenhum deles visse como ficara abalado com a visão fugaz da vida de Daniel. E a notícia que tinha para lhes dar não era boa.

— Então, é capaz de fazer isso? — perguntou Daniel, com impaciência — Pode fazer com que volte a ser como era? A libertar-me de toda a porcaria negra?

— Daniel — disse Tim —, detesto ter de ser eu a te dizer isto, mas essa matéria que está em ti... é a sua alma. Não posso arrancá-la de você sem... bem, sem te matar.

Daniel pôs-se de joelhos uma vez mais e tapou o rosto com as mãos.

— Não há nada que possa fazer? — perguntou Molly, com preocupação e pena estampadas no rosto. Tim ficou contente por ela querer ajudá-lo depois de o ter chutado.

Tim suspirou.

— Não posso dizer que estou querendo fazer isso, mas sim, tenho uma idéia — Olhou de novo para Daniel — Há uma coisa que podemos tentar. Temos de obrigar esse tal Slaggingham a te passar por essa máquina outra vez. Ao contrário ou coisa assim.

Daniel estremeceu.

— Não me faz entrar de novo naquele caixão de vidro. Não, obrigado. Hoje já passei por muito — Puxou com força a aba da cartola puída e a pôs sobre o rosto. Tim pôde ver os lábios do garoto fazendo uma careta.

— Um ato de compaixão — zombou Molly — Mas que divertido.

— Porém, não é — disse Tim. Ali estava ele tentando ajudar, e o necessitado não ajuda em nada.

Tim agachou-se ao lado de Daniel e levantou a aba do chapéu.

— Quero ver esse Slaggingham em pessoa — disse a Daniel — E não vou percorrer os esgotos todo o dia à procura dele. Vai me levar até a ele. Já.

— Ficou doido? — zombou Daniel — Ele te mata, tão certo como dois e dois são quatro.

— Talvez sim, talvez não — replicou Tim — Pode nos levar ou teremos de procurar uma grade por onde possamos descer?

— Oh, posso te levar imediatamente à presença dele. Se é isso mesmo que quer.

— É isso que eu quero... quero. — Tim endireitou-se novamente e olhou para Molly — Se não voltarmos mais ou menos daqui a uma hora, pode iniciar a expedição aos sorvetes sem nós. Leva a Marya, se a achar. Porém, não sei ao certo se os unicórnios comem sorvetes.

— Está doido? — Molly olhou furiosa para Tim — Não pode ir lá embaixo — Apontou para Daniel — Ouviu o que ele disse — esse Slaggingham quer te ver morto. E você vai direito ao covil dele?

— Não chamaria de covil. É mais parecido com uma fábrica — corrigiu Daniel.

Molly levantou o pé em sinal de aviso, e Daniel ergueu as mãos num gesto conciliador. Tim agarrou-a pelo cotovelo e afastou-a uns passos de Daniel.

— Molly, estou certo de que a única maneira de eu poder ajudar o Daniel é fazê-lo passar de novo por aquela máquina. — Baixou a voz — Além disso, acho que não estamos em segurança com ele conforme está. O melhor é cortar o mal pela raiz.

Quando as palavras lhe saíram da boca, Tim percebeu que enfrentava finalmente qualquer coisa naquele momento. Em vez de seguir o padrão usual de fugir, enfrentava a crise.

Molly cruzou os braços.

— Então vou contigo.

— Oh, mau plano — disse Tim. Era impossível para Tim levar Molly naquela excursão aos subterrâneos. O fato de perseguirem um cara, que inventava máquinas que podiam fazer coisas como aquela que acontecera a Daniel, significa que não lidavam com uma pessoa comum. Não queria Molly por perto.

Mas conhecia-a bem demais — não era pessoa para ficar para trás e deixar que os outros se envolvessem numa luta. Como poderia convencê-la a ficar para trás?

— Olha, preciso de você aqui em cima como reforço — explicou ele — Se não voltar daqui a uma hora, então desce e vai me procurar. Se estivermos os dois lá em baixo, não há ninguém que ajude mais tarde.

Molly semicerrou os olhos como se tentasse decifrar se ele fingia ou falava a sério.

— Está bem — disse ela, hesitante — Só uma hora. E depois desço à sua procura.

— Obrigado, Molly. Está bem, Danny — disse Tim, virando-se — Vai na frente. Em silêncio — acrescentou. Só espero não me arrepender disto.

 

Por baixo de Londres.

O Reverendo Slaggingham sentia vontade de ver a transformação no seu protegido, Daniel. Ficou observando, cheio de satisfação, quando o garoto começou a praguejar de raiva contra aquela praga da humanidade, Timothy Hunter. Fuligem e cinzas rodopiavam por toda a parte — ninguém podia sobreviver àquele tipo de ataque. Agora que ele se tornara uma criatura modificada, talvez Daniel fosse capaz de suportar todo aquele fogo e toda aquela cinza. Se não, paciência, a vida é assim.

Um alarme estridente desviou a atenção de Slaggingham da máquina de imagens. Olhou para o relógio.

— Diabos me levem! Estou atrasado! Devia ter inspecionado o Extrator há três minutos e meio. Como me esqueci?

Slaggingham apertou o botão que fazia deslizar o painel, escondendo a máquina de imagens. Em seguida, correu para a parte principal da fábrica subterrânea. Foi inspecionar a seção de engarrafamento, admirando as filas perfeitamente simétricas de garrafas vazias no transportador rolante. Pegando numa, leu o rótulo em voz alta:

— Elixir da Felicidade de Slaggingham. Destilado e engarrafado nos subterrâneos de Londres.

Orgulhoso, examinou a área, satisfeito com a produção regular, a organização perfeita como o mecanismo de um relógio. Estava tudo em ordem.

Reparou num operário nos comandos que não reconheceu. Slaggingham nunca vira aquele sujeito. O indivíduo tinha mais de dois metros de altura, era azul e tinha chifres de carneiro na cabeça. E a roupa que usava... era como a dos trovadores dos livros: gibão de veludo, sapatos rasos, uma capa comprida. Quem seria?

— Como entrou aqui? — perguntou. Um gênio como o reverendo tinha de estar sempre atento a espiões e sabotadores.

— Trouxe-me a mulher — replicou o operário, num tom uniforme, sem parar de trabalhar.

— Oh, e quem era essa mulher?

— Aquela que me prendeu a alma num globo de cristal — replicou o cavalheiro azul.

Claro, Slaggingham lembrou-se, Gwendolyn não dissera que tinha trazido um exemplar raro? Ela não se enganara.

— Que beleza, mas encheria o circo. Quem era? E como é que alguém como você escolheu vir viver miseravelmente na cidade de Londres? — Slaggingham examinou a criatura, tendo uma idéia nova e terrível — É do bando do Hunter? — disse, com voz áspera.

— Era Auberon, Rei do País Encantado. Fugi do meu reino para escapar a um desejo mais insistente do que a minha alma podia suportar. Não era de ninguém até a tua serva me tirar a alma.

            — Então era rei, hein? — Slaggingham alisou o queixo com barba hirsuta — Não posso dizer que alguma vez tive o prazer de escravizar um monarca verdadeiro. Era feliz?

— Se a minha alma conhecesse a felicidade no País Encantado, acha que teria me arrastado para aqui?

— Mas deve ter sido feliz, seu idiota dos infernos — retrucou Slaggingham — Caramba, era rei! Vivia num palácio, suponho.

— Sim.

— Serviam-te o desjejum numa bandeja de prata.

— Sim.

— Mas não era feliz.

— Não.

— Caramba, que história triste. Que os meus ilhós metálicos estalem se isto não fez quase com que sentisse pena de ti — Slaggingham abanou a cabeça — Bem, Irmão Chifrudo, uma vez que a tua vida antiga era uma pia de tristeza de primeira, ofereço-te isto: quando a minha mercadoria arruinar as vidas de alguns habitantes da superfície e o meu Extrator sugar a felicidade perdida em quantidade suficiente para iniciar a destilação e o engarrafamento, te darei um pouco de felicidade para lavar a tristeza nas tuas entranhas. O que me diz disto, Irmão Chifrudo?

— Quando me devolverá a alma?

Slaggingham apontou um dedo a Auberon, abanando-o.

— Basta! Isso é segredo meu, não é? Ah, é melhor continuar com as inspeções.

Slaggingham continuou. Havia tantas máquinas para inspecionar! Seguiu por um passadiço até os comandos de uma das máquinas. Levantou a lanterna para ler os números nos mostradores.

— Esta marcação não pode estar certa — disse, aturdido — Os terminais extrativos estão operacionais há meses. E os habitantes da superfície nunca foram tão infelizes, por isso já devíamos estar a extrair litros de felicidade extra. Devia estar a nadar nela.

Andou para trás e para frente no passadiço, tentando entender por que razão a máquina não funcionava como devia.

— Talvez tenha feito flutuar o sensor do reservatório com peso a mais — murmurou. Sentiu o coração artificial batendo com o triplo da velocidade, que sabia que não era bom para ele, pois podia saltar uma engrenagem ou duas. A dúvida, a mais diabólica das emoções, ameaçava-o a cada momento. Sempre que suspeitava que os pensamentos se desviavam, preocupado que talvez não fosse o gênio que imaginava ser, afastava os pensamentos perturbadores o melhor que podia. Essas idéias eram muito perigosas.

Concentrou-se no problema presente e espreitou para as entranhas da máquina caprichosa.

— Ah. Eis a resposta — Sabia que corria um risco se usasse balsa.

Um ruído metálico atrás dele atraiu a atenção de Slaggingham. Virou-se e viu porcas saltando, e depois abriu-se uma grade de repente. Uma mão metálica com chaves de fendas em vez de dedos apareceu, e Awn, o Pisca, a vingança de Slaggingham — um terrível desordeiro — saiu do espaço minúsculo.

— Balsa, foi isso? — perguntou Awn, o Pisca — Pareceu-me que tinha um gosto um pouco orgânico.

— Tu?! — resmungou Slaggingham.

— Exatamente, senhor. Awn, o Pisca, em pessoa. E não propriamente ao vosso serviço.

— Foi longe demais — bufou Slaggingham de raiva — Levei setenta e sete desgraçados anos construindo este Extrator! Não deixarei que a minha maravilha seja estragada por uma ficção com antenas da imaginação de Timothy Hunter.

— Então, descobriu que fui eu quem fez isto, eh? — disse Awn, o Pisca — É mais esperto do que parece. E, como sou uma alma bondosa, te ajudarei. Posso te dizer qual é o problema da sua invenção.

— Com seiscentos diabos! Faria isso?

— Farei.

Slaggingham ficou radiante.

— Sabe, assim que pus os olhos em você, Sr. Pisca, disse para mim mesmo, aqui está um trabalhador honesto. Olhem só as mãos dele! Aquelas mãos fortes não estão manchadas com o sangue das classes operárias oprimidas, caramba, que mãos...

Awn, o Pisca, interrompeu-o:

— Cinqüenta libras, senhor. É o preço. É pegar ou largar.

Slaggingham abriu a boca. Depois fechou-a rapidamente com um estalido, e os olhos semicerraram-se.

— Quarenta libras e nem mais um cêntimo.

— Sessenta — retorquiu Awn, o Pisca.

— Muito bem, seu explorador. Sejam cinqüenta.

— Setenta e cinco.

— Remendão e fanfarrão — Slaggingham tirou uma carteira do bolso do casaco. Praguejando baixinho, contou as notas e as pôs na palma da mão de metal de Awn, o Pisca. — Pirata. Ladrão.

Awn, o Pisca, ignorou os nomes que ele lhe chamou, e conferiu o número de notas. Satisfeito, meteu-as no bolso traseiro dos jeans largos e sujos de graxa.

Slaggingham bateu impacientemente com o pé.

— Então? — perguntou, com rispidez. Awn, o Pisca, sorriu ironicamente.

— Está bem, senhor, agora que tratamos da parte do negócio da nossa conversa. Acerca desse seu Extrator Anti-tantálico.

— Sim? — Slaggingham detestou a ansiedade na voz, sabendo que revelava o medo por detrás da pergunta. Vá para o diabo! Não precisava de explicações de tipos como Awn, o Pisca! A sua cópia de um cérebro devia ser capaz de resolver qualquer enigma.

— O projeto é um colosso — declarou Awn, o Pisca — e a construção é uma maravilha.

Slaggingham ficou radiante.

— Claro, claro. Não é preciso elogios — O peito inchou um pouco. Talvez tivesse feito mau juízo da engenhoca com ferramentas em vez de dedos.

— O seu problema é totalmente conceptual.

Isto abalou Slaggingham.

— Oh? — As sobrancelhas levantaram-se. Um problema conceptual? Impossível! Isso significava que o problema existira sempre e ele nunca o vira. Na realidade, uma pessoa podia arriscar-se a dizer que se era um “problema conceptual”, então fora ele mesmo que o criara. Se fosse esse o caso, como podia viver consigo mesmo?

Awn, o Pisca, bateu levemente no Extrator, com os dedos de metal fazendo ruído na máquina.

— Esta engenhoca que arranjou, devia funcionar para extrair partículas ou gases da atmosfera. Mas felicidade? Hah!

— O... o que quer dizer? — O sujeitinho podia ter razão? Havia um defeito no plano em si? O que passei em claro? interrogou-se Slaggingham.

— As emoções não flutuam no ar como moléculas em movimento, senhor. Estava condenado ao fracasso desde o princípio.

— M... m... mas — gaguejou Slaggingham. Um erro não era possível! Não era possível!

Awn, o Pisca, continuou sem parar:

— E mesmo que conseguisse apanhar e engarrafar a matéria, que bem lhe faria? — Apontou um dedo com uma chave de fendas na ponta a Slaggingham — Transformou-se num mecanismo como esses que tem. Claro, permitia-lhe ter uma vida mais longa do que a maioria precisava, mas no final do dia, onde é que isso o levaria?

Slaggingham olhava de boca aberta para Awn, o Pisca.

— Não podia usar o elixir mesmo que existisse. Não foi feito para engolir e muito menos para digerir.

— Sua reles chave de fendas! — gemeu Slaggingham, quando compreendeu. Bateu com a mão na testa — Que idiota que eu fui.

Era verdade — era um fracasso total. Trabalhara durante anos — décadas, não, um século! — num erro de projeto. E mesmo que conseguisse arrancar a felicidade do próprio ar, as transformações, que fizera nele na tentativa de atingir os seus objetivos, tinham-no tornado um anormal, que jamais poderia beneficiar do trabalho árduo. A ironia da sua situação atingiu o coração sem sangue.

Desabotoou o colete, bateu nos parafusos do peito de metal e arrancou o coração. Olhou fixamente para o objeto — o objeto mecânico e frio. Fazia tic-tac harmoniosamente na mão, com minúsculas luzes a pulsar. Slaggingham arrancou a corrente que atravessava o corpo em vez de veias, para poder levar o coração até ao rosto.

— Oh, até os planos concebidos com a maior astúcia, diabos me levem! — Apertou o coração com mais força; as molas saltaram.

— Malditos! — bradou, atirando a cabeça para trás e soltando um grito. Arrancou a pesada corrente do corpo e atirou o coração mecânico ao chão. Olhou furioso para ele — Desgraçado, traíu-me! — Bateu violentamente com os pés e as peças mecânicas espalharam-se por toda a parte.

— Malditos! — sussurrou, quando sucumbiu no canto. Awn, o Pisca, sorriu ironicamente, depois saltou de novo pela grade.

 

Tim espreitou ansiosamente no meio da imundície. Os esgotos eram escuros, cheiravam mau, e ele nem queria pensar naquilo que poderia haver debaixo daquela água. Queria resolver o assunto com Daniel, sem demora, regressar à superfície e tomar uns trinta banhos de chuveiro.

Escorria água dos tetos úmidos, abobadados, fazendo chape-chape. A água pingando não é uma espécie de tortura? Tim começava a perceber porquê: o som repetitivo era realmente irritante. Aquele lugar causava arrepios.

Daniel devia ter reparado na expressão incrédula de Tim.

— Esta é apenas a entrada do sistema subterrâneo — explicou — Espera até ver a fábrica, as máquinas e os apetrechos.

Avançaram ao longo do túnel, e Tim viu que se ramificava em várias direções.

Que tamanho terá? interrogou-se.

— Por aqui — Daniel atravessou uma arcada e Tim seguiu-o. Era óbvio que Daniel conhecia o caminho... até conseguira não tropeçar em partes irregulares e nos montes de porcaria.

Assim que passaram a arcada, Tim descobriu que ele e Daniel estavam num passadiço comprido, que se seguia ao longo de uma enorme sala abobadada. No centro havia um monte de sucata — pedaços de metal torcido e engenhocas amontoadas como uma espécie de escultura esquisita. A sala estava deserta e as poucas lâmpadas tremeluziam como se ficassem sem eletricidade.

— Pensei que tinha dito que era uma fábrica — disse Tim.

— Era — Daniel parecia duvidoso — Minha e do Slaggingham. Éramos sócios.

— Não sei, Daniel. Neste momento parece que a sua fábrica não produz nada.

— Sim, concordo contigo.

— Aquilo era a máquina onde o Slaggingham te meteu? — perguntou Tim, acenando na direção do enorme monte de metal. Esperava que não, pois parecia precisar de uma boa reparação, e tinha certeza de que o manual de instruções não estaria ali.

— Não, era lá mais para dentro — explicou Daniel. Conduziu Tim pelo passadiço e por outra arcada. Depois desceram uma escada de metal e depararam com mais túneis.

Isto é uma autêntica cidade, Tim reparou. Supunha que em tempos tivesse sido uma fábrica; ali, certamente, havia bastante material e espaço. Mas não parecia estar em funcionamento.

Daniel parecia tão confuso como Tim.

— Nunca esteve tão silencioso por aqui — confessou — Antes, aquele ruído de máquinas e marteladas e... — levantou uma mão — Espera... está ouvindo?

Tim esforçou-se para ouvir. Daniel tinha razão — era fraco, mas ouvia-o. Um fzzzt, fzzzt fraco, uma chiadeira.

— Por aqui — Daniel avançou no túnel escuro, depois parou tão de repente que Tim bateu nele.

— O que é? — perguntou Tim. Então, viu um monte num canto. Pensara que era apenas um monte de farrapos e sucata, mas não era. Era...

— Slaggingham — Daniel balbuciou — Não está todo ali.

— Não, suponho que pode dizer isso.

Alguém — alguma coisa — estava estendido no canto. Aquele Slaggingham devia ter tido um rosto, Tim notou, mas aquilo que a criatura usara como pele, desprendera-se em grandes bocados, deixando à mostra metal prateado. O peito estava aberto, por isso Tim pôde ver as peças interiores. Devia ser uma espécie de robô, percebeu Tim. Ou uma combinação de robô e humano. Chapas, bocais e engrenagens faziam ruído por baixo dos pés enquanto Daniel e Tim iam se aproximando.

— Daniel, é você? — disse a criatura, com voz áspera — Tão certo como a chuva. Não estou todo aqui. Olha para mim, garoto, estou com o coração desfeito. Em curto-circuito.

A chiadeira, que tinham ouvido, vinha das unidades elétricas que provocavam curto-circuito nas peças interiores de Slaggingham. Tim receava que se se aproximassem muito fossem chamuscados pelas faíscas que saltavam da cabeça e do peito.

— Que isto sirva de lição para ti, garoto — disse Slaggingham, com voz arquejante — Nunca confie numa máquina. Ou tente ser uma.

— Não tentarei, senhor — replicou Daniel, parecendo sufocado.

— No entanto, abateu aquele fedelho do Hunter como o cão que ele é para mim, não foi, garoto? Mandou-o ir ter com aquele que o fez numa fonte terrível de faíscas, hein? Assim é que é. Bem feito, garoto. Faz com que me sinta orgulhoso.

Tim olhou rapidamente para Daniel e viu lágrimas nos olhos do garoto. Daniel pigarreou.

— Pode ter certeza, Reverendo — Olhou para Tim, com um sorriso fraco e triste no rosto — Ele já não o incomodará mais, essa é a verdade.

Tim recuou para as sombras para que o Reverendo Slaggingham não o avistasse. Sabia que Daniel precisava que aquele homem se orgulhasse dele — pensasse que Daniel cumprira a missão de que o incumbira. Era uma mentira inofensiva — bem, homem não era propriamente, mas a figura de pai — feliz antes de expirar. Que mal havia nisso?

Um gemido, um grito agudo encheram o ar, seguidos de um estrondo.

— Credo, o que é isto? — perguntou Daniel.

— Deve ser o rio que corre velozmente nos túneis — disse Slaggingham, com voz áspera — Sabe, o maldito sistema de controle de inundações está avariado desde... desde...

Com um som arrastado, sibilante, cada uma das lâmpadas, que pulsavam em Slaggingham, apagaram-se. Saltaram faíscas, depois fez-se silêncio.

— Morreu — murmurou Daniel

Tim deu um momento a Daniel. Quando viu o limpador de chaminés, cheio de fuligem, limpando os olhos, Tim pousou uma mão no seu ombro.

— Acho que é melhor sairmos daqui. Parece que a água está muito perto.

            — Sim — Daniel voltou-se para olhar de novo para Tim. O queixo estava firme e havia um brilho estranho nos olhos — Vou dar no pé, mesmo com a inundação. Mas você, larápio de garotas, pode ficar aqui em baixo e morrer afogado. Pode ter-me enganado por algum tempo, mas Slaggingham pôs-me os miolos no lugar.

— Mas...

— Ele foi a única pessoa que acreditou em mim, e diabos me levem se o deixo ficar mal. Por isso, quando vir o velho Slaggingham no outro mundo, diga-lhe quem te levou para lá. Tal como prometi.

Daniel levantou a vassoura na frente de Tim e a fez girar em sua volta. Fuligem e pó espalharam-se por toda a parte, cegando Tim e fazendo-o tossir. Quando a poeira assentou, Tim estava sozinho no túnel.

 

Tim abanou a cabeça

— Este teu desejo da morte, Tim — censurou-se — Tem que fazer alguma coisa — O som da água tornou-se mais distinto. — E tenho de fazer alguma coisa sem demora.

Olhando para Slaggingham pela última vez, Tim começou a explorar os túneis. Havia algumas lanternas penduradas nas paredes, mas a maioria das lâmpadas elétricas tinha-se fundido. Sombras altas tapavam tudo, tornando impossível dizer onde havia portas ou outros túneis ou se existia uma espécie de saída.

            — Por que fez isto, Tim? — perguntou a si mesmo — Já te disse uma vez, disse um milhão de vezes: nunca confie numa pessoa que um dia te quis ver morto. Sobretudo limpadores de chaminés delinqüentes.

A voz dele ecoou no corredor escuro. Os únicos sons eram da água, que subia, e dos seus pés que chapinhavam.

— Oh, acalme-se, Tim — continuou — Podia ser pior. Afinal, já não está tão escuro, e a água não chega ao teto. Por enquanto.

Chegou a uma arcada e espreitou. Outra máquina enorme erguia-se no meio da sala. Avistando uma escada de metal, contornou a máquina rapidamente e trepou para o passadiço. Ali ficaria por cima da água durante algum tempo.

— Estava tudo resolvido se tivesse uma lanterna e uns calções de banho. Oh, e alguém simpático que me mostrasse um caminho para sair daqui. — Chegou a um beco sem saída — Minha nossa, Tim. Não sei. Parece que é pedir muito — Virou-se e voltou atrás. Calma, aqui há qualquer coisa diferente. Tateou ao longo da parede e descobriu um puxador. Sorriu — Encontrou uma porta?

Estava tão escuro que não reparara na porta quando lá passara pela primeira vez. Empurrou-a com força, mas ela não se moveu.

— Sim, encontrei uma porta, só que ela está fechada à chave — disse. Frustrado, deu-lhe um pontapé. A não ser que... pensou. De repente, sentiu-se cheio de energia nervosa. Devia tentar ou não?

— Vá lá, é uma estupidez — censurou-se — Não devia ter medo de tentar sair daqui por artes mágicas. Fez tudo certo lá em cima com o Daniel.

Encostou-se à parede úmida.

— Sim, mas foi um fracasso com a Molly e a Marya... congelá-las daquela maneira — recordou-se — Teve sorte em ser capaz de desfazer o que fez, fosse lá o que fosse. — Sacudiu a cabeça, irritado — Presta atenção, Tim, está falando demais. Quer morrer aqui afogado? Ou vai levar a Molly ao sorvete?

Sabia que não podia perder tempo. Molly viria atrás dele dentro de uma hora. E ela cumpria sempre a sua palavra. E se já tivesse vindo à procura dele...

O coração bateu com força no peito — depressa e depois mais depressa quando se lembrou do perigo em que a sua ausência poria Molly. Tinha de sair dali — principalmente para salvar Molly.

Subitamente, uma grade levantou-se ao lado dele, fazendo-o dar um salto. Um homenzinho, com ferramentas em vez de mãos, pregos em vez de cabelo e um corpo composto de todos os tipos de engrenagens e peças desgarradas, entrou pela grade. A criatura tinha óculos protetores em vez de olhos, mas usava roupa normal; jeans sujos e uma camiseta nojenta.

Tim recuou. Esta coisa parecia ter alguma relação com o velho Slaggingham. Aquela criatura também queria matá-lo?

— Mestre Tim! — O homenzinho sorriu — Ora viva! Sou Awn, o Pisca. Trouxe-lhe a lanterna que queria. Porém, não consegui arranjar-lhe os calções de banho. Desculpe — O homem entregou a Tim uma lanterna grande, animadora.

— Obrigado, Sr., uh, Pisca. Sr. Awn — Tim acendeu a lanterna e sentiu-se melhor instantaneamente. Agora podia ver melhor aquilo que o rodeava, embora a vista não o enchesse propriamente de alegria. Espreitou por cima da amurada do passadiço. A água já subira quase um metro e oitenta.

— Não fale — disse Awn, o Pisca — Seria inútil brigar com o velho Slaggingham se for apenas para ele o ver se afogar, senhor.

Tim rodou a lanterna para iluminar Awn, o Pisca.

— Brigou com o Slaggingham?

— Briguei. Queria a todo o custo que o matassem. E eu não podia aceitar isso, naturalmente.

— Uh, naturalmente. Eu, certamente, não aceitaria.

— Por isso o deixei fora de serviço. Levei algum tempo para descobrir um meio, mas consegui. Sabe, despedacei-lhe o coração. Primeiro, o fiz de forma conceptual, depois ele fez pra valer. Se é que me entende.

— Não entendo, efetivamente, mas acredito na sua palavra. E obrigado.

— Sempre ao seu dispor, sempre. Não podemos deixar que morra por nós, não é? Afinal, se morrer, morremos todos.

— Sr. Pisca? Uma pergunta, se não se importa.

— Com certeza, meu jovem. Espere um pouco, porém... isto é muito provável que o vá submergir.

Levantando uma mão para impedir que Tim falasse, Awn, o Pisca, enfiou um dos dedos na fechadura, rodou-o, depois abriu a porta com um empurrão.

— Nossa! — Tim assobiou — Bom trabalho.

— Obrigado, meu jovem.

— Olhe, nós nos conhecemos? Tenho a estranha sensação de que já o vi. E parece que também me conhece.

— Boa, Mestre Tim. Registrei a pergunta e a resposta virá o mais depressa possível. Isto é, assim que estiver livre de perigo. Deve ter mais de cinco minutos antes que o rio chegue aqui impetuosamente.

— Ah, muito tempo, então.

— O suficiente, Mestre Tim. O suficiente, eu diria.

Tim seguiu Awn, o Pisca, ao longo do passadiço. De vez em quando, Tim olhava por cima do parapeito. A água já subia mais depressa.

— Está muito calado, Mestre Tim. A maquinar a vingança contra aquela doninha fedorenta das chaminés?

— Não. Tenho pena do sujeito — replicou Tim — Estava pensando, com satisfação, por não ter de nadar naquela porcaria. Graças a você.

— Sem dúvida. Não me admiraria se houvesse uma jibóia ou duas lá em baixo.

— Uma jibóia? Lá em baixo? — perguntou Tim.

— Bem, se fosse homem de apostar, senhor, apostaria para ganhar. Não acreditava que havia jibóias lá em baixo quando era garoto? O seu antigo companheiro, Jackie Frost, tinha uma bebê, lembra-se? Tinha-a guardada na banheira, até que um dia atacou o gato da mãe dele. Depois ela empurrou-a pela vaso sanitário abaixo! Você e o Jackie ficaram furiosos, quando descobriram. Então, a Sra. Frost disse a vocês que os esgotos eram um parque de diversões para as jibóias e que a vossa amiga Squirmy ficaria feliz lá. E, como era um garoto crédulo, acreditou na senhora.

— Sr. Pisca, está tentando me dizer que tudo aquilo em que costumava acreditar é real agora? Quero dizer, vi o Wobbly e os Narls, mas...

— E me viu, senhor, não se esqueça!

— Ééé... É por isso que me parece tão familiar! Agora lembro-me de você!

— Bingo, eu sabia que se lembraria. Eram três, talvez quatro, e o televisor não funcionava. Por isso, perguntou ao seu paizinho o que tinha a televisão. Ele disse “É Awn, o Pisca”. E como era um garoto imaginativo, imaginou-me.

Ele fez uma pequena reverência.

— Um estoura-lâmpadas extraordinariamente talentoso. Vinha e ia quando queria, estragando aparelhos com a maior das facilidades.

Girou as minúsculas brocas nas pontas dos dedos, fazendo um som sibilante.

— E, uma vez que sempre que interferia na vossa televisão pareciam ser as únicas vezes em que o vosso pai lhe prestava atenção, calculei que devia ser seu amigo. Sempre do seu lado, por assim dizer. E sou, jovem mestre, nunca duvide disso.

— Caramba. Obrigado — Então é verdade, percebeu Tim — Os meus amigos imaginários voltaram a ter vida, agora que descobri que tenho poderes mágicos.

— Não fale nisso — disse Awn, o Pisca — Além do mais, uma vez que me fez o favor de me inventar, sinto-me na obrigação de protegê-lo, visto que é o meu criador. É uma tarefa para toda a vida.

— Nossa! Algumas pessoas têm anjos da guarda: eu tenho Awn, o Pisca — Tim examinou o sujeitinho estranho, composto por ferramentas — Parece que quem saiu ganhando fui eu!

Awn, o Pisca sorriu-lhe.

— Agora é melhor levá-lo para onde é o seu lugar.

 

O Irmão Salamandra estava por cima de Gwendolyn na escada, bufando enquanto empurrava a tampa do poço de limpeza. Gwendolyn fechou os olhos, quando a luz do dia inundou a escuridão dos túneis. Apesar das idas à superfície, Gwendolyn estava mais habituada aos subterrâneos. Lá embaixo havia luzes, claro, mas a iluminação artificial projetava uma claridade verde-amarelada, estranha, dando aos operários a palidez dos doentes e dos mortos. Sentiu o cheiro da mudança quando o ar da superfície fez um esforço para descer enquanto a atmosfera comprimida tentava subir.

O Irmão Salamandra içou-se e saltou para a rua. Olhou para baixo, para Gwendolyn.

— Garota, passa-me a lanterna e o meu saco. E o teu cesto. Precisa de ambas as mãos para subir.

Gwendolyn assim fez, depois subiu pela escada. A saia estava encharcada até os joelhos. Sabia que faltava pouco tempo para que o rio reclamasse o seu antigo território. Içou-se e saiu para a calçada.

O Irmão Salamandra espremeu a água do macacão e abriu o fecho do saco encharcado.

— Espero que não esteja tudo estragado — murmurou. Olhou rapidamente para Gwendolyn, observando o cesto — O que trouxe? Se não se importa que pergunte.

— O meu orgulho.

O homem bufou.

— Nunca me passou pela cabeça que isso coubesse num cesto tão pequeno como esse.

Gwendolyn ignorou o comentário. Não era da sua conta se ela trouxera os utensílios de costura; podia voltar a ser uma garota trabalhadora e honesta como no passado.

— O que é que você trouxe? — perguntou-lhe ela.

— Trouxe o melhor que pude. Havia pouco tempo para ser muito miudinho na escolha. — Não, não havia. Remexeu no saco.

— Isto deve dar para beber e comer para quinze dias, pelo menos. O que acha, garota? — Mostrou um globo de cristal — Vendo-os como peso de papel? Amuletos? Bolas de ciganas cartomantes?

— Oh, não! — disse Gwendolyn, sobressaltada — O cavalheiro!

Agarrando a lanterna, Gwendolyn desceu rapidamente pelo buraco, que ia dar ao subterrâneo.

— Eh! Eh! Essa é a minha lanterna de carboneto, sua atrevida! — berrou Salamandra atrás dela — Me devolva!

— Devolverei! — Gwendolyn atravessou os túneis correndo. Tropeçou na bainha da saia ensopada em água — Malditos saiotes. E estes sapatos ridículos — Sentou-se na calçada molhada — Não pode subir com eles e não pode correr com eles. E não sabe nadar.

Abriu o cesto da costura. Pegou numa tesoura e cortou a saia do vestido, reduzindo-a a um comprimento chocante, por cima dos joelhos. As vezes uma garota tem que esquecer a modéstia e ser prática, pensou. Desabotoou as botas com saltos e rasgou o fundo das meias para não escorregar.

— Certamente não serei a única que se lembrou que os cavalheiros não sabem se defender — expressou a sua esperança em voz alta, enquanto corria.

Precipitou-se para a sala principal da fábrica, onde centenas de homens trabalhavam normalmente como autômatos, alimentando as fornalhas, oleando as engrenagens, apertando interruptores, transportando carga, descarregando, começando, parando, recomeçando. Vezes sem conta.

Chegou ao passadiço, onde o Reverendo Slaggingham costumava observar os operários, e olhou lá para baixo. Sentiu um aperto no estômago e um soluço a subir no peito.

— Afogados como ratos — murmurou, olhando para os corpos que flutuavam. O rio inundara aquela área e a água subira mais de quatro metros. Os homens não eram capazes de raciocinar, desde que lhes tiraram as almas. Só sabiam fazer aquilo que lhes mandavam, e tudo o que os mandavam fazer era trabalhar. Assim, apesar da água que subia, nenhum deles abandonara o seu posto.

Gwendolyn tapou o rosto com as mãos.

— E quem os enganou para lhes tirar as almas e o livre arbítrio com um sorriso e o vislumbre de uma meia de mulher? Quem era a jezebel... — interrompeu as recriminações quando se lembrou que havia um prisioneiro muito especial numa das plataformas lá em baixo.

Ele fora diferente. Não por ser azul, mas porque tentou ajudá-la quando aquele homem fora tão atrevido. Claro, ele era como os outros da aristocracia mimada e mal-habituada, mas expusera-se para intervir a favor dela.

Ainda estaria vivo?

— Chifres-lindos! — Correu pelo passadiço, atravessando arcada após arcada — Auberon! Auberon, está me ouvindo?

Desceu as escadas de metal e dirigiu-se ao lugar onde estivera Auberon. Estava quase submerso. Ainda havia esperança. Pousou a lanterna e o cesto num degrau e mergulhou.

Avistou-o imediatamente. Talvez tivesse ficado debaixo d’água há pouco tempo. Talvez pudesse salvá-lo. Cingiu-o com os braços e bateu com os pés com força. Com um esforço enorme, veio à superfície. Era tão grande e a roupa de veludo estava tão encharcada que o tornava muito pesado. Puxava-a para baixo, ameaçando afogar-se com o peso morto.

— Senhoria, nade! — ordenou.

Sem alma, ficara aturdido, inútil. Mas não parecia sofrer de falta de ar, pelo menos.

— Nadar? — repetiu ele.

Lutou para manter a cabeça fora da água.

— Pode não precisar de respirar, mas eu preciso! Nade! É uma nova ordem.

Ele deu uma braçada tão forte que se desprendeu das mãos dela. Ela nadou rapidamente para os degraus e saiu do lago profundo. Auberon continuou a nadar às voltas.

— Oh, meu Deus, Chifres-lindos — disse ela, desesperada — Saia daí — Enquanto Gwendolyn espremia alguma água dos saiotes e afastava o cabelo comprido e molhado do rosto, Auberon nadou até aos degraus e subiu para o passadiço. Ficou parado e imponente à frente dela.

— Então, Majestade, não vai me agradecer? — perguntou Gwendolyn — Ou estava divertindo-se ali em baixo?

— Não fui instruído para te agradecer — replicou Auberon —, nem para me divertir. Por isso, não faço nenhuma das coisas.

— Oh, valha-me Deus. Isto nunca vai dar certo — Examinou a extraordinária criatura. Era formoso, no seu jeito estranho e, sem alma, ainda se comportava com dignidade.

— Agora, não há trabalho para você, Chifres-lindos — explicou Gwendolyn — Portanto seja um cordeiro e venha. Vai me ajudar a encontrar sua alma. Provavelmente vai ser mais útil a você do que a qualquer outra pessoa.

Auberon acenou solenemente com a cabeça, embora Gwendolyn soubesse que tudo o que compreendia no estado em que se encontrava era que ela lhe dera ordens.

— Agora terá, provavelmente, de nadar, uma vez que as águas terão subido nessa parte da fábrica — explicou Gwendolyn, conduzindo-o através do passadiço — Mas, uma vez que conseguiu ficar submerso mais eficazmente do que eu, deve ser simples.

Não, pensou ela, encontrar a alma dele não será difícil. O verdadeiro problema seria levá-lo para o lugar onde pertencia. Era um truque que não aprendera. Nunca tivera um motivo para isso.

 

Marya acariciou a crina branca do unicórnio, enquanto estavam no estúdio vazio na Escola de Dança Swan. Tim dissera-lhe que fosse para o lugar mais seguro que conhecesse. Dançar fazia-a sentir inteira, completa e forte. Era assim que precisaria de se sentir se tivesse de enfrentar de novo Daniel.

— O Daniel é muito simpático. Quero dizer, costumava ser — disse ao unicórnio. Não tinha certeza se o ato repetitivo de pentear a crina do unicórnio com os dedos era mais calmante para ela ou para o unicórnio. Sabia, porém, que era reconfortante para os dois — Mas só de pensar que ele anda por aí fico com dores de estômago — Sentiu-se mal por dizer semelhante coisa, mas era a verdade. Ele não era propriamente mau. Era como se... Pensou por um momento, tentando encontrar as palavras certas para que o unicórnio entendesse — Bem, ele foi sempre tão carente. Como se não gostasse dele, por isso tínhamos de gostar dele por aquilo que é.

Pousou suavemente a testa no flanco do unicórnio.

— Não posso fazer mais isso. Agora tenho uma vida. Uma vida pra valer. Não uma vida no País Livre.

Levantou outra vez a cabeça e acariciou o unicórnio.

— Não quer ouvir isto, não é? Prefere uma maçã, aposto.

Ajoelhando-se, remexeu no saco à procura de uma maçã.

Ofereceu-a ao unicórnio. O unicórnio cheirou a maçã, depois tirou-a delicadamente da mão de Marya. Triturou o fruto, comendo-o com duas dentadas rápidas. Depois encostou o focinho ao braço de Marya.

Dando uma risadinha, Marya perguntou:

— Quer outra? — Meteu de novo a mão no saco, mas desta vez os dedos fecharam-se sobre uma pequena estátua. Tirou a estátua da bailarina e olhou tristemente para ela. Era o presente de despedida de Daniel quando ela deixou o País Livre.

— Oh, Daniel — disse, suspirando — Detesto dizer isto, mas espero que tenha sido a última vez que te vi.

De repente, viu cinza e fuligem a cair na direção dela, juntando-se em redor dos pés. Levantou-se rapidamente e voltou-se. Daniel surgiu na entrada do estúdio.

— Há quanto tempo está aí? — perguntou Marya.

— Há tempo suficiente — replicou ele. Deu um passo para ele.

— Daniel — disse, suavemente.

— Não me venha com falinhas mansas — Mostrou-lhe a vassoura cheia de fuligem, abanando-a, provocando-lhe um ataque de tosse — Não se atreva! Se soubesse metade do que sei, Marya, não teria feito figura de idiota por tua causa. Um perfeito idiota!

A cauda do unicórnio abanou e as orelhas viraram-se. Tomou fôlego algumas vezes.

— Quem me dera que não gritasse — disse Marya a Daniel — Perturba o unicórnio — Acariciou o focinho aveludado. Gostaria de saber por que razão nunca conseguira acalmar Daniel.

— Não estou gritando — retrucou Daniel — Nunca me ouviu gritar. Nunca te levantei a voz. Nunca!

— Está bem, não estás gritando — disse Marya, embora a voz de Daniel fosse alta e a pusesse nervosa.

Daniel passou de lado pelo unicórnio.

— Mantém na linha esse maldito animal — murmurou, lançando um olhar malévolo ao unicórnio.

A nuvem de pó, que o rodeava, queimava a garganta de Marya. Perguntou a si mesma como seria para Daniel, tão infeliz, com fuligem a rodopiar em volta dele e a alma toda retorcida.

— Vejo que já não fala tanto agora que tem de dizer cara a cara — zombou Daniel — Qual é o problema? Não tem mais mentiras?

— Nunca menti — disse Marya — A ti, não. Nem a ninguém. Exceto talvez a mim.

— Quando penso como me sorria e conversava comigo. Só para continuar a ter esperança...

— Daniel — Marya interrompeu-o — Sorria-te, porque simpatizava contigo. E parti porque fui obrigada.

— Sabe o que dizem lá no País Livre? — resmungou Daniel — Dizem que fugiu porque te beijei. Que partiu para ficar longe de mim. É o que todos dizem.

— É um disparate — disse Marya — Sabe que não é verdade. Parti, porque não queria representar o resto da vida. Esse é o único motivo.

— Representar?

— Representar, representar sempre. É assim a vida no País Livre. Queria crescer, Daniel. Não voltarei lá por nada deste mundo.

— Bem, eu voltaria, se pudesse.

— O que quer dizer? Não pode voltar? Daniel, isso é terrível. O que aconteceu?

— Você!

Marya, confusa, abanou a cabeça.

— Não entendo.

— Não? — Ele deu mais um passo — Mudei por causa de ti. Tornei-me nisto por causa de ti! Esta... coisa! Nunca me deixarão entrar neste estado. E para quê? Como tenho sido idiota. Tudo por você — Deu mais um passo para ela — Agora, por tua causa, nunca mais poderei voltar!

Levantou as mãos como se tencionasse bater-lhe. Marya ergueu as mãos para se proteger. Nesse mesmo instante, o unicórnio relinchou e empinou-se. Pousou as patas no meio de Daniel e Marya. Baixando a cabeça, tocou no coração de Daniel com a ponta do chifre. Daniel estremeceu como se um choque elétrico o tivesse atingido.

— Oh, não! — gritou Marya. Não percebia o que estava acontecendo a Daniel nem como o unicórnio se movera tão depressa. Tudo aconteceu numa questão de segundos.

— Por favor, não lhe faça mal — sussurrou ela. O unicórnio relinchou suavemente.

Marya viu, estupefata, quando os olhos de Daniel se reviraram e ficou paralisado no centro de uma bruma dourada. Parecia suspenso numa nuvem de ouro e centelhas. Toda a fuligem se evaporou, e o brilho saudável reapareceu no rosto dele.

O unicórnio bateu no chão com uma pata dianteira e depois recuou. Daniel cambaleou, atordoado.

Sentia-se... diferente. Mais leve. Mais como era antigamente. Seria possível? Olhou para o casaco, as calças. Estavam encharcadas da longa caminhada através dos túneis, mas já não estavam cobertas de fuligem.

— Diacho! — exclamou — Estou curado. Aquele cavalo mágico tocou-me e tornou-me melhor.

Olhou para o unicórnio, com os seus olhos cintilantes, solenes e misteriosos.

— Desculpa ter tentado te chamuscar quando nos encontramos pela última vez — disse ele ao unicórnio, baixando a cabeça, envergonhado — Eu... eu não era eu, nessa altura. Estou muito grato por aquilo que fez.

Lançou um olhar pela sala. Apertou o coração ver como Marya fugiu dele para o canto do estúdio de dança. Estava agarrada à longa barra de madeira que tinha o comprimento da sala, olhando fixamente para ele, com os olhos verdes arregalados. Não sabia se estava assustada ou não.

Claro que está, idiota! censurou-se. Quase lhe bateu. Marya. Meu anjo. Quase lhe deu uma bofetada. Como suporta estar na mesma sala contigo?

— Marya — disse ele, com a voz embargada — Eu... eu lamento profundamente. Sabe que nunca quis...

— Mas tencionava — disse Marya — O unicórnio te deteve.

Os ombros de Daniel baixaram. Ela tinha razão. Estava furioso e levantara-lhe a mão. Ele queria acreditar que nunca lhe teria batido, que teria se controlado. Mas não sabia ao certo.

— Naquele momento, sabe que não era realmente eu — disse ele, com os olhos ainda fixos no chão.

— Eu sei — replicou Marya, tristemente — Mas ainda não está tudo bem.

Daniel sentiu um aperto no coração. Desta vez estragara tudo, sem dúvida. Ela nunca lhe perdoaria. Como podia, quando não era capaz de se perdoar a si mesmo? Tinha de ir embora, manter-se longe dela. Até conseguir ser bom, bom mesmo.

— Talvez... talvez possa voltar para o País Livre agora — sugeriu Marya, calmamente.

Daniel encolheu os ombros. Não ousava falar. Encaminhou-se para a porta, arrastando os pés. Quando a abriu, ouviu Marya dizer:

— Adeus, Daniel.

Sem se virar, sem olhar para ela, respondeu:

— Adeus — e transpôs a porta.

Marya viu-o partir. Sabia que estava arrependido; sabia que estava triste. Ela também estava triste, mas não significava que pudesse tentar bater-lhe, nem sequer tentar. A cólera era perigosa.

Em tempos era tão amável, tão meigo. Mesmo no País Livre, porém, ela podia sentir a profunda tristeza a atormentá-lo. Talvez agora que percebera que ela não podia ser aquilo que ele queria que fosse, seria, finalmente, capaz de começar uma nova vida.

Lançou um olhar pelo estúdio coberto de fuligem. O unicórnio estava deitado num canto, a observá-la. Parecia calmo, até mesmo descontraído, agora que Daniel fora embora. Porém, Marya ainda estava perturbada. Os sentimentos eram confusos.

Esfregando os pés descalços na fuligem como se fosse a resina que usava nos sapatos com pontas, começou a dançar. Expressou o sofrimento de Daniel e a sua compaixão por ele. Expressou uma sensação de perda e despedida. Expressou gratidão por Tim e pelo unicórnio, e por encontrar amigas como a Molly. Dançou, dançou, dançou.

 

— Vamos lá, cuidado com os cotovelos — ordenou Awn, o Pisca, a Tim. Ajudou Tim a sair do bueiro para a rua.

— Ar! — rejubilou Tim — Luz do sol!

— Tim! — Molly correu para eles — Está bem? Estava mesmo para descer e ir à tua procura!

Parou bruscamente.

— Ah, olá — disse ela. Tim sorriu.

— Molly, este é Awn, o Pisca. Salvou minha vida.

— Viva, menina — cumprimentou Awn, o Pisca.

— Uh, oi — disse Molly, com um sorriso a perpassar no rosto — Credo, Tim. Suponho que agora que é um mágico, se envolve com círculos loucos.

— E nem todos humanos — concordou Tim.

— Obrigado por ter salvo a vida de Tim — disse Molly a Awn, o Pisca.

— Oh, o Mestre Tim está exagerando. Estava tentando sair da armadilha da doninha das chaminés por artes mágicas quando eu apareci.

Tirou um lenço sujo do bolso e limpou os óculos protetores.

— E agora despeço-me de vocês. Tenho muitas coisas para desarranjar, sabem — Pestanejou e desceu para o subterrâneo, colocando a tampa do bueiro por cima dele.

Assim que Awn, o Pisca, desapareceu, Molly voltou-se e lançou um olhar de indignação a Tim, com os olhos muito brilhantes.

— Então era uma armadilha — bufou — Como desconfiava — Pôs as mãos nas ancas e abanou a cabeça. — Vejo que ficou muito grato por tudo o que tentou fazer por ele.

— Sabe, isto pode parecer estranho — disse Tim —, mas acho que estava apenas tentando ser honesto. E a fazer com que o velho se sentisse orgulhoso.

Molly bufou.

— Sério — Tim coçou a cabeça, a matutar — Disse ao Slaggingham que me matou. Foi como se honrasse o pedido de um moribundo. E depois creio que lhe custou mentir. Por isso, teve de fazer com que se tornasse realidade. Entende?

Molly cruzou os braços e revirou os olhos.

— Bem, não posso crer que fosse muito egoísta para deixar que te matasse — disse ela, com a voz cheia de sarcasmo — Devia ter vergonha.

Girou nos calcanhares e afastou-se, batendo com os pés no chão.

— Creio que nunca te passou pela cabeça sentir pena dos vendedores de sorvete? — gritou a Tim — Podiam deixar de fazer negócio, antes de resolver te levar para tomar um sorvete!

— Molly, espera — Tim correu atrás dela — Por favor.

Molly parou, mas continuou de costas viradas para ele.

— Está bem, foi arriscado — admitiu Tim.

— Hmph.

— Provavelmente uma estupidez — acrescentou Tim.

— Concordo. Mas também corajoso e gentil — acrescentou ela, num tom mais suave.

Tim sorriu . Molly sorriu . Tim sorriu.

Molly virou-se e apontou-lhe um dedo, num gesto de censura.

— Se o Daniel tivesse conseguido te matar, nunca te perdoaria! Não posso crer que manteve a magia em segredo!

Tim suspirou.

— Eu sei. Tentava sempre te contar, desde que descobri há uns meses. Sério. Não imagina quantas vezes. Mas as palavras não me saíam da boca.

Molly sorriu ironicamente e Tim percebeu que estava tudo bem entre eles.

— Isso é bem típico de você — disse ela — Agora o que fazemos?

— Vamos ver se a Marya e o unicórnio estão bem — disse Tim — O Daniel pode ter ido procurá-los.

— Tem razão — Molly tremeu — Esse garoto parece obcecado.

— Conhece a Marya melhor do que eu. Faz idéia para onde terá levado o unicórnio?

Molly pensou por um momento, depois o rosto iluminou-se.

— Sei perfeitamente.

Molly pegou na mão de Tim e correram juntos pelas ruas, Molly seguia na frente. Tim respirava fundo. Nunca pensei que a parte oriental de Londres pudesse ter um cheiro tão bom, pensou Tim.

Chegaram ao Estúdio de Dança Swan e descobriram Marya espreitando por uma janela, com a cabeça do unicórnio no lado de fora de outra.

— Que visão — comentou Molly.

— Acostume-se, se quer andar comigo — avisou-a Tim — Acabará vendo todo o tipo de coisas estranhas.

Momentos depois, Marya e o unicórnio estavam na rua com Tim e Molly. Ela explicou o que acontecera com Daniel.

— Mas, pelo menos, voltou a ser como era antes — disse Marya.

— E isso é uma coisa boa? — murmurou Molly.

— Não sei o que pretendem, mas estou pronto para o sorvete — disse Tim.

— Que sabor acha que o unicórnio apreciará? — perguntou Marya.

— Feno? Cenoura? — Molly tentou adivinhar. Os três amigos caminharam pela rua rindo, seguidos pelo unicórnio.

Tim não se sentia tão bem desde que descobrira que era mágico. Já não escondia nada, estava com as amigas, e a última aventura terminara bastante bem, tendo tudo em consideração.

Dobraram uma esquina e Tim parou. Duas figuras muito estranhas aproximaram-se deles. Uma era uma jovem encharcada, com uma saia esfarrapada e a outra era um sujeito, também encharcado, azul e com dois metros de altura. Tim tinha a certeza de que já vira o sujeito azul.

Parece que esta aventura ainda não terminou, pensou Tim. Deu uma cotovelada em Molly.

— Não diga que não te avisei. Quanto quer apostar que eles querem falar comigo?

A boca de Molly abriu-se.

— O-o que é isto? É um demônio? Olhem para aqueles chifres?

— Nã — disse Tim, parecendo mais seguro de si do que se sentia — É alguém do País Encantado. O Rei em pessoa, se não estou enganado — E se a esposa, Titânia, é um exemplo, pensou Tim, a realeza do País Encantado é um bando taciturno e temperamental. O melhor é acabar já com isto, decidiu.

— Muito bem — disse-lhes Tim — O que querem?

A mulher pareceu surpreendida.

— Por que pensa que queremos alguma coisa? — perguntou ela.

— Bem, geralmente quando aparece alguém do País Encantado, anda à minha procura — Tim acenou com a cabeça para a figura alta e azul — Nunca fomos apresentados oficialmente, Rei Auberon, mas o vi uma vez no seu castelo.

O Rei Auberon não respondeu, mas a mulher sorriu.

— Conhece pessoalmente o Chifres-lindos? E visitou o seu reino? É maravilhoso.

— Por quê? — perguntou Tim.

— Se passou entre os mundos, então deve conhecer a magia.

— Olhe aqui! — disse Molly — Magia é praticamente o apelido dele.

— Ele é um mágico poderoso — concordou Marya.

— O meu nome é Gwendolyn — disse a mulher — Acha que pode ajudar o Chifres-lindos? Sabe, a alma dele está presa naquele globo que ele tem na mão e gostaríamos mesmo que voltasse para o lugar onde pertence.

Tim sabia que devia ficar surpreendido; aquilo não era o tipo de coisa que alguém ouvisse todos os dias. A não ser, claro, que o alguém seja eu, pensou Tim.

— Como é que a alma de Auberon foi parar nessa bola de cristal? — perguntou Tim — Antes de mais nada, o que ele faz aqui? Por que não está no País Encantado?

— Nunca me disse por que razão veio parar aqui — disse Gwendolyn. Olhou para o unicórnio — Creio que o teu magnífico corcel também é desse país. Talvez tenham atravessado da mesma maneira.

— Não sei como o unicórnio foi parar lá — disse Tim.

— Mas estamos muito contentes por ter vindo — disse Marya, batendo de leve no unicórnio — O Timothy também salvou o seu mundo como salvou o meu? — perguntou ela a Gwendolyn.

Gwendolyn sorriu.

— Que eu saiba, não.

— Nada disso explica o modo como a alma de Auberon ficou presa nessa coisa — disse Tim.

Gwendolyn mordeu o lábio, e Timothy teve a nítida sensação que ela tinha a ver com a situação difícil de Auberon.

— Auberon preferiu fechar a alma à chave a conhecer os seus verdadeiros sentimentos. Mas agora está preparando-se para recebê-la. Por favor, não pode ajudar?

Tim sabia que a situação era mais complicada do que Gwendolyn lhe contara, mas decidiu deixar passar.

— Eu... eu posso tentar — Tim pôs-se em frente da imponente figura real — Rei Auberon, gostaria de ter a sua alma, por favor. Prometo que não a partirei.

Os olhos do rei, outrora feliz, desviaram-se do globo e fixaram-se em Tim, depois uma vez mais no globo.

Ele parecia tão perdido, os olhos tão inexpressivos, que Tim decidiu ajudá-lo. Tornei-me um mágico altruísta, pensou Tim. Espero que o fato de tentar resolver os problemas de Auberon não me meta em maus lençóis como aconteceu quando ajudei o Daniel.

— Auberon, pode confiar em mim. Quero ajudá-lo. Gostaria de examinar esse globo.

Gwendolyn pigarreou.

— Er, senhor, terá de se expressar na forma de uma ordem ou um comando.

— Auberon, dê-me o globo — ordenou Tim ao Rei. Lentamente, Auberon levantou a cabeça e fitou Tim, com uma expressão vaga. Entregou o globo a Tim.

Tim examinou a bola brilhante, virando-a nas mãos.

— Vejamos. Há pequeno buracos, como os buracos para os dedos numa bola de boliche. Deve ser por lá que entra a alma. Mas não vejo nenhuma “saída” — Olhou para o resto do grupo — Isto pode parecer impróprio de um mágico, mas alguém tem um martelo?

Uma criatura minúscula voou perto de Tim e pousou no globo. Tim reconheceu-a, era Amadan, o bobo da Rainha Titânia.

— Faz dele um enxota-moscas — murmurou Tim.

Tim lembrava-se de Amadan de encontros anteriores e era um patife.

Uh-oh. Se este tipo anda rodopiando por aqui, deve ser por ordem de Titânia. Ou talvez seja a sua escolta.

Dito, e feito. Nesse instante, Titânia, em todo o seu esplendor verde, apareceu na frente deles. E, como era usual, parecia muito, muito zangada.

 

— Com que pessoas estranhas anda nos últimos tempos, meu marido — disse Titânia a Auberon, com frieza — Parece que desceste muito no mundo.

Lançou-lhe um olhar de indignação, quando ele se encostou à parede, sem fala. Ela cruzou os braços e bateu impacientemente com o pé.

— O quê? — perguntou ela, atirando o cabelo comprido por cima do ombro — Não tem nada para me dizer? Tenho andado como louca à vossa procura.

Auberon não disse nada. Tim jurava que Titânia não estava habituada a ser ignorada.

— Como ousa tratar-me assim! — gritou ao marido.

— Perdão, senhora — disse Gwendolyn — Não precisa continuar. O Chifres-lindos não está reconhecendo-a. É que perdeu a alma agora mesmo.

As sobrancelhas de Titânia franziram-se.

— Chifres-lindos? — repetiu ela.

Gwendolyn riu-se, o que enfureceu Titânia ainda mais.

— É assim que o chamo. Não acha que lhe fica bem? Mas não se preocupe. O Timothy irá pô-lo bom outra vez.

— Timothy? — Titânia olhou fixamente para Gwendolyn. Tim percebeu que Titânia nem sequer se apercebera da sua presença até àquele instante. Então, dessa vez ela não o perseguia... viera à procura de Auberon. Só que fixou os olhos semicerrados em Tim.

Cada centímetro de Tim quis encolher-se e recuar para as sombras e esgueirar-se. Mas não ia fazer isso com a Molly vendo. E ainda tinha de tratar da alma de Auberon. Marya e Molly tinham recuado e, naquele momento, o unicórnio estava na frente delas, como se quisesse protegê-las. Tim calculou que o unicórnio já tivesse visto Titânia em ação.

— Que confusão infernal tramas agora? — perguntou ela — Não fez o bastante?

Tim sabia que estava se referindo à morte do seu verdadeiro pai, Tamlin. Tamlin sacrificara-se para que Tim pudesse viver, e Titânia estava furiosa por causa disso.

— Eu não fiz nada — protestou Tim — Esta senhora perguntou-me agora mesmo se eu podia ajudar, se isso lhe é indiferente.

— Ele está apenas tentando fazer um favor a esta gente — acrescentou Molly — Por isso, afaste-se.

Tim estremeceu. Era agradável que Molly o defendesse, mas não seria se isso a levasse para outra dimensão.

Mas Titânia ignorou Molly e olhou simplesmente para o globo nas mãos de Tim.

— Então está nisso? — perguntou ela. Pôs-se à frente de Tim.

— Parece que sim — replicou Tim. Não gostava que Titânia ficasse tão perto dele. Deu uns passos atrás.

— A alma de Auberon está vulnerável no seu estado atual, Timothy — disse Titânia — Sugestionável.

— Uh — disse Tim. Muito bem, a atitude era arriscada, mas estava farto de ser tratado como um idiota por ela.

— Posso protegê-la como você não pode — explicou ela — Me dê.

— Diga “por favor”.

Titânia cerrou os dentes, e Tim teve certeza de que vira uma veia na testa ficando saliente. Estava fazendo um enorme esforço para se controlar. Tim gostaria de saber o que faria com a alma de Auberon assim que a tivesse em seu poder. Iria protegê-la realmente e libertá-la? Ou queria-a apenas para poder dominar o Rei do País Encantado? Tim não poria nada à frente dela.

O comportamento de Titânia mudara por completo. Tim sabia que estava relacionado com a magia. Tornara-se bela como era no dia em que a conhecera no País Encantado.

— Palavras amargas passaram entre nós na última vez que nos vimos, garoto — A voz era suave e calmante.

— Oh, se refere ao momento em que me ameaçou? — respondeu Tim — Sim, diria que a nossa conversa foi amarga.

— Disse muita coisa que não queria — continuou Titânia, aproximando-se — A dor que senti com a morte de Tamlin enlouqueceu-me por algum tempo — Tenho de pedir que encontre o perdão em seu coração.

Minha nossa. Deve querer muito a alma de Auberon para fazer uma cena como esta.

— Surpreendente. Você tem bons modos — comentou Tim. Titânia fez um sorriso radiante; quase cintilava. Sim, está fazendo algo mágico — um feitiço ou coisa parecida. Ela estendeu a mão.

— Dá-me essa bugiganga.

— Certamente. Assim que jurar pelo seu nome que libertará a alma de Auberon assim que lhe entregar — Tim sabia que jurar pelo nome era o voto mais sério que alguém mágico podia fazer. Se Titânia estivesse mentindo, nunca faria tal promessa. A raiva e a frustração fizeram dissipar todo o esplendor que Titânia urdira. Tornou-se instantaneamente colérica, hostil, e precipitou-se sobre Tim, tentando agarrar o globo.

— Não! — gritou Tim. Recuou cambaleando, largou o globo e este foi pelos ares. Atirou-se a ele, desesperado para evitar que se estilhaçasse no chão. Caiu violentamente de barriga no chão, os óculos voaram, e os cotovelos ficariam pisados e arranhados durante semanas. Mas não precisou dos óculos para saber que o globo se partira em mil pedaços. O som dos estilhaços revelou-lhe.

— Seu maldito idiota! — gritou Titânia — Destrói tudo aquilo em que toca!

— Eu? — disse Tim, olhando para ela da calçada. Sentou-se a custo e colocou de novo os óculos no nariz. — Você arrancou-o das minhas mãos. A culpa é sua!

— Silêncio! — ordenou Titânia.

O coração de Tim palpitou, à espera de ver o que aconteceria. Ela ficara furiosa quando Tamlin, o Falcoeiro, morrera. Ficaria muito mais furiosa se fosse o seu próprio marido que estivesse em perigo?

Ela encaminhou-se majestosamente para Tim.

— Eu mesma teria te destruído se tivesse tido uma oportunidade — disse, com voz sibilante — Se soubesse os desastres que provocaria, teria te matado no momento em que te dei à luz.

— O... o quê? — gaguejou Tim. Do que ela estava falando?

— Exatamente, idiota — resmungou ela — Primeiro, matou o teu pai. E agora, por causa daquilo que fez ao meu esposo, Auberon, eu, a tua mãe, te renego. És órfão de pai e mãe.

— Você? — A voz de Tim saiu como um sussurro — É a minha mãe? Como isso é possível?

— Posso ter te dado à luz, idiota, mas não é meu filho — disse Titânia.

Tim sentou-se sobre os calcanhares, com a boca aberta, olhando fixamente para a Rainha do País Encantado. O espírito rodava à toda. Tamlin e Titânia eram os seus pais verdadeiros? Isto era muito grande, enorme para poder compreender. E Mary Hunter, que estava no cemitério. A mulher que o Sr. Hunter desposara, porque estava grávida... de Tim? Pelo menos era o que ele julgava. Tim abanou a cabeça, tentando pôr as idéias em ordem, mas sentia-se confundido e vazio por dentro.

Um sorriso malévolo perpassou no rosto de Titânia.

— Acabou-se a conversa fiada, idiota? E agora — disse, com a voz ficando mais forte —, como condenou a alma do meu esposo ao limbo, tudo farei para que você e os teus malditos companheiros se juntem a ele!

Tim viu Titânia erguer as mãos, criando um forte redemoinho de vento. Ele sabia que devia fazer alguma coisa para detê-la — usar a magia, fazer qualquer coisa — mas a notícia de que ela era a sua mãe quase que o paralisara. Viu-a fazer magia como se ela estivesse muito longe, ou na televisão. Não parecia real, e muito menos ele.

O redemoinho movia-se cada vez mais depressa, e Tim pensou ter visto Molly, Marya e Gwendolyn rodopiando dentro dele. Era difícil dizer, porque foram engolidos por nuvens cintilantes de energia mágica.

Tim gemeu, tendo consciência de que fracassara mais uma vez.

Uma voz irrompeu no meio das nuvens.

— É uma bela manifestação de devoção, minha senhora.

O redemoinho parou abruptamente, e tudo ficou como estava antes. Molly e Marya estavam ao lado do unicórnio, Gwendolyn à frente deles. Apenas Auberon se erguia acima de Titânia.

— Não fará nenhum mal a esta pobre gente — ordenou.

— Chifres-lindos! — exclamou Gwendolyn — A sua alma voltou para o lugar que lhe pertence!

— A minha magia foi sempre mais forte do que a vossa, Titânia — disse Auberon — É bom que vos lembreis disso.

— Eu... eu estou radiante por terdes sido capaz de devolver a alma ao vosso corpo — disse Titânia — Estava nervosa, porque temia que o garoto desastrado vos tivesse destruído.

— Sois a única pessoa que me destruiria — replicou Auberon. Apontou para Tim e Gwendolyn — Eles são os meus professores.

— Professores? — zombou Titânia — Que conhecimentos pode um suserano do País Encantado esperar aprender com esta gentalha?

Tim detestava ter de admitir, mas Titânia tinha razão.

— Que conhecimentos pedis, minha senhora? — continuou Auberon — Sentir sem fazer fraca figura. Trabalhar quando não há o suficiente para desejar. Expandir-me apesar do medo ou do perigo. Faríeis bem em aprender estas lições.

Titânia abriu a boca como se fosse responder, mas incapaz de se lembrar de alguma coisa para dizer, fechou-a de novo. Auberon virou-se para Tim.

— Ouvi dizer à minha esposa que eras seu filho?

Tim acenou com a cabeça.

— Foi o que ela disse.

Auberon olhou para Titânia.

— Confirmais isto, senhora? Pois ele não é meu filho.

— Ele... ele é filho de Tamlin — replicou Titânia.

— Ah, sim. O vosso Falcoeiro.

Tim notou que Auberon não parecia surpreendido nem mesmo incomodado com a notícia. Se calhar fazem as coisas de modo diferente no País Encantado.

Auberon levantou o queixo de Tim.

— Sim. Vejo os traços de Tamlin em ti — Examinou o rosto de Tim e ficou perplexo — Dizeis que este é vosso filho? — perguntou a Titânia uma vez mais, sem nunca desviar os olhos do rosto de Tim.

— Já vos respondi uma vez, esposo. Não falemos mais disso.

— Hmmmm — disse Auberon. A expressão mais estranha perpassou no rosto azul. Tim era capaz de jurar que o Rei do País Encantado estava divertido. Largou Tim e virou-se novamente para Titânia — Agora, devemos regressar ao País Encantado — disse ele — Obrigado a todos vós.

Tim viu o casal real desmaterializar-se à frente deles.

— Nossa! — murmurou Molly — Igual aos efeitos especiais no cinema.

— Sim. — Tim sentiu os joelhos ficando fracos e encostou-se no muro da ruela. — Acontecem muitas coisas num curto espaço de tempo —, concluiu. — Não podiam espalhar melhor aquelas pragas em vez de as ativarem todas ao mesmo tempo?

— Não te disse que o Tim era um grande mágico? — perguntou Marya.

— Você está bem? — perguntou Molly a Tim, tocando-lhe no braço.

Tim acenou com a cabeça.

— Suponho...

— Pode nos dar uns minutos? — perguntou Molly a Marya. Marya acenou com a cabeça.

— Claro. Encontramo-nos na sorveteria.

Tim viu Marya e o unicórnio dobrarem a esquina. Ficou contente que Molly lhe tivesse pedido que os deixasse a sós. Tinha muita coisa para digerir.

— Escuta — disse Molly — Aquilo que disse acerca de ser a tua mãe? Aposto que era uma mentira dos diabos do País Encantado. Eu não acreditaria naquela Rainha verde, perversa.

— Eu... eu não sei — replicou Tim. Olhou para ela e viu preocupação nos olhos castanhos. Fez com que sentisse vontade de lhe contar tudo.

— Há uma coisa que não tive oportunidade de te contar — confessou — Sabe como descobri que o meu pai não era o verdadeiro pai?

Molly acenou com a cabeça.

— Bem, foi porque descobri quem é o meu pai verdadeiro. Era — corrigiu — Agora está morto mas, quando era vivo, o nome dele era Tamlin e vivia no País Encantado. Na verdade, tinha poderes mágicos para se transformar num falcão.

Molly assobiou baixinho.

— Genial. Quero dizer, esquisito, mas realmente brilhante. Pode fazer isso?

Tim encolheu os ombros.

— Não sei, nunca tentei — Abanou a cabeça — Então, não te parece que faz sentido que a Titânia possa ser realmente a minha mãe? — perguntou — Parece muito mais provável que Titânia tivesse um filho de Tamlin — Soltou uma gargalhada amarga — Desde que descobri, tenho tentado imaginar a minha mãe com um sujeito como aquele. Tem sido impossível. Quero dizer, como se teriam conhecido?

— Penso que é tudo verdade — concordou ela — Porém, não sei. Estão sempre acontecendo coisas estranhas — Sorriu-lhe — Você é uma prova disso!

Tim não pôde deixar de rir. Molly conseguia sempre fazer com que se sentisse melhor. Tentou ver o lado positivo da última cena.

— Assim que Titânia se acalmar, talvez vá ao País Encantado falar com ela. Seria agradável encontrar uma espécie de família que pudesse me ajudar a compreender melhor a minha magia.

— Não precisa dela! — garantiu-lhe Molly — Tanto quanto sei, está se saindo muito bem!

Tim sorriu-lhe e, quando pensou nisso, o sorriso tornou-se mais largo. A Molly tem razão, percebeu. Saio-me melhor sempre que tento fazer algo mágico. Talvez ainda haja esperança para mim!

— Sabe, aquele globo a estilhaçar-se e a magia estimula o apetite — disse Tim. Pegou na mão de Molly, com firmeza — Está na hora de um sorvete. E — acrescentou, enquanto desciam a rua —, uma vez que não vou te esconder mais segredos, tenho mais uma coisa para te contar.

— O que é? — perguntou Molly, com uma expressão de preocupação no rosto.

Tim sorriu ironicamente.

— Bem, a verdade é que estou sem dinheiro. Por isso, você paga! 

 

                                                                                                    Neil Gaiman e John Bolton

 

 

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