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CONSPIRAÇÃO NO FIM DO MUNDO / Said Farhat
CONSPIRAÇÃO NO FIM DO MUNDO / Said Farhat

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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CONSPIRAÇÃO NO FIM DO MUNDO

 

A placa branca na margem da estrada dizia em letras garra­fais: "En este sitio, el hombre irresponsable destruyó miles de años de vida". Por toda parte, a mesma advertência, em variações mais ou menos inspiradas. O ar seco do sul da Argentina, mais o frio vindo dos Andes e/ou do Pólo Sul, tornam a vegetação regional facilmente inflamável. Um fósforo aceso, um cigarro mal apagado podem causar morte e destruição. Árvores, pás­saros, esquilos, veados, javalis e outros animais silvestres que ali têm seu hábitat desde tempos imemoriais podem desaparecer. Não há recursos humanos capazes de estancar o fogo uma vez começado.

Antônio Gomes, um professor brasileiro, viúvo, aposentado e em viagem de recreio, revestido dos paramentos do turista em férias, parou no acostamento da estrada de terra o carro alu­gado e pôs-se a pensar: "Engraçado. Tanto cuidado com a vida nativa e na outra mão, a poucos quilômetros daqui, na margem de outro lago, prepara-se a sua destruição. Como podem os ho­mens ser tão estúpidos?"

Na verdade, sob o nom de guerre de Antônio Gomes — um dos muitos nomes brasileiros neutros, facilmente assimiláveis pelos vizinhos argentinos e, por isso mesmo, facilmente esquecíveis — escondia-se o coronel-engenheiro Antônio Schmidt de Oliveira, catarinense de boa cepa germano-brasileira, jovem ainda. Mais conhecido como Schmidt, Antônio era um brilhante oficial do Exército brasileiro, com cursos de especialização no exterior. Nada, porém, o impedia de continuar perplexo com os termos vagos da missão da qual participava — na Patagônia, como antes em outros países supostamente amigos — e os tra­balhos de preparação do grupo que deveria executá-la.

Quando a conclusão? Qual sua finalidade real? Quantos nesse grupo? Com que fim?

Pelo visto, a missão consistia na perspectiva de "penetrar ter­ritório adverso, em indeterminado país vizinho do Brasil". Nin­guém lhe dissera, até pouco antes da sua partida, o nome do país ou dos países em questão. "Tomara que a Argentina não seja um deles", pensou Schmidt, quando convocado. Era.

 

Já fora do carro, Antônio olhou em torno. O ponto onde pa- rara era um mirante no Circuito Chico, um dos mais bonitos pas­seios às margens do lago Nahuel Huapi. O nome do lago, dizia o folheto turístico, significa, na língua dos índios araucanos que existiram por lá, "Ilha do Tigre". Hoje não há mais tigres na Patagônia, se jamais existiram. Nem índios: a colonização os dizimou, a civilização acabou com eles.

O lago Nahuel Huapi tem várias ilhas, a mais notável das quais é a Isla Victoria. Seu duvidoso título de glória é ter sido o local onde se fez o desenho animado Bambi, graças aos veadinhos desse tipo ainda existentes ali, mas quase extintos. Schmidt tentou con­ferir a informação num dos guias turísticos. Não achou nada ao certo. Veria mais tarde, no hotel.

Conforme lhe recomendaram, Antônio apresentava-se como perfeito turista: câmara fotográfica a tiracolo, mapas, guias, livro de anotações, relógio à prova de água, bússola, altímetro e boné (emprestado pelo filho Alexandre). Ao fim de cada dia fazia notas minuciosas.

"Meu Deus", pensou Antônio, "Mercedes adoraria ver estas pai­sagens, tão diferentes das nossas. Petrópolis e Campos do Jordão perderiam de longe. Sem falar na alegria dos meninos brincando com neve pela primeira vez na vida! Terei de trazê-los aqui."

 

Embora tomassem a forma de diário de viagem escrito para um filho de 16 anos, as notas de Antônio continham dados con­cretos de cada local visitado e os exercícios feitos, tudo de acordo com as instruções recebidas. Dados que seriam facilmente inter­pretados por quem tivesse conhecimento dos eufemismos combinados e dos códigos secretos aplicáveis.

Em detalhe, eram registrados altitude, temperatura e profundi­dade da água dos lagos, descrição da floresta que os cerca, pontos de observação e estacionamento, tipos de peixes mais freqüentes em cada estação, peso e tamanho médios das trutas, locais em que se pode obter uma refeição decente, horários de funcionamento, meios de transporte disponíveis para acesso às monta­nhas e a outras paisagens. Enfim, tudo o que alguém que viesse depois aos mesmos lugares precisaria saber para se orientar sem ter de fazer muitas perguntas.

Como haviam recomendado a Antônio, a linguagem de seus textos situava-se entre o basbaque e o grandiloqüente. Em termos que fariam o orgulho de uma associação de hotéis, descrevia o panorama em segmentos de 45 graus, fechando o círculo em oito etapas, separadas umas das outras por expres­sões inocentes: "Debrucei-me na amurada do mirante do cerro Otto; lá embaixo, o lago; o sol do entardecer, à minha esquerda, cria longas sombras; está ainda claro, embora sejam 9 e meia da noite (noite?) na hora local. Você haveria de ficar entusiasmado, meu filho, com o que se vê daqui. Um pouco adiante, a estrada caminha para o Llao Llao (pronuncia-se 'jao-jao'), que fica na península do mesmo nome".

O lago Nahuel Huapi era "uma belíssima e límpida massa de água formada pela neve derretida que se acumula nos cerros an­dinos e ali permanece, ora em maior, ora em menor quantidade, o ano inteiro. Estamos no auge do verão, nestes primeiros dias de janeiro. Com o degelo, os lagos ficam cheios de água, mas ainda há muita neve na Cordilheira".

No meio da baboseira, os dados concretos: a altura de cada cerro, sua descrição, fotografias, meios de acesso: estradas — pa­vimentadas ou não —, trem, veículos funiculares ou cadeirinhas; e o tempo que se leva até chegar ao topo, o que se faz e se vê de lá.

Conhecida a chave, era possível identificar com razoável pre­cisão, em graus e minutos, as coordenadas da localização de todos os acidentes geográficos, altitudes, facilidades e dificuldades de locomoção, hotéis e hosterías, lugares em que se come bem, os mais freqüentados pelos turistas e os de preço mais conveniente, que só os "locais" realmente conhecem.

Algumas horas depois, completadas as notas sobre o lago Nahuel Huapi e cercanias, Antônio recolheu suas coisas e tomou o carro de volta. O veículo era um Volkswagen argentino, modelo Gacel, em bom estado, mas sem nada que o distinguisse no meio das estradas ou nas ruas da cidade. Alugado, sempre por prazo curto e em agências diferentes, era o mais próximo possível da invisibilidade sobre rodas. "Engraçado, a maior preocupação desta missão é o anonimato", pensou Antônio.

O objetivo da coleta e do arquivamento de dados era, con­forme havia dito o major-brigadeiro Herculano, reunir elementos para que cada pessoa que tivesse de andar por ali pudesse saber sempre, de dia ou de noite, onde se encontrava.

O que Antônio ignorava é que era o décimo segundo e úl­timo a fazer igual exercício. No fim de cada viagem, as anotações eram recolhidas sempre pelo mesmo portador, que se identifi­cava somente como Alberto e tinha feições regulares, difíceis de descrever com acuidade. Textos, estatísticas e fotografias eram passados para um computador e formavam um "retrato falado" de cada um dos locais visitados. Prestavam-se, também, à ava­liação da capacidade de concentração e de expressão de cada um dos oficiais envolvidos na missão.

Antônio teria de fazer inicialmente a mesma coisa que os outros tinham feito antes. Mas visitar os locais designados en­volvia, em si, uma operação de despistamento. Antes de viajar, ele recebera papéis novos que o identificavam como professor de eletrônica e informática de uma obscura universidade do norte de Minas Gerais. Papéis necessários para não ter de re­velar sua vida militar, inventar estórias de infância ou cair em contradições evidentes.

O caminho nunca era direto. Nada de voos non stop do Rio a Santiago, a Buenos Aires ou a Guayaquil. Professor anda de ônibus. Lá se fora Antônio, com o novo sobrenome Gomes, que os de língua espanhola teimavam em dizer "Gómez". Ia de avião de Brasília ao Rio e a Porto Alegre, daí a Uruguaiana, de ônibus. E à cidade de Paso de los Libres, do outro lado do rio Uruguai. Hotéis sempre razoáveis, de três estrelas, como convém à parca pecúnia de um "faminto profissional" — os professores universi­tários gostam de assim se designar.

Antônio não achava isso mais difícil que a dureza dos acampa­mentos militares em que vivera parte de seu tempo de serviço no Brasil, ajudando a construir centrais de telecomunicações, cen­tros de comutação dos sistemas telefônicos nacional e internacional, postos de radar sobre elevações e montes de difícil acesso. "Isso é até refresco para um cara como eu."

O anonimato, porém, era "fogo". Antônio podia conversar po­lidamente com alguns poucos passageiros, de preferência velhas senhoras em viagem de visita a algum parente, filho ou neto, e cuja atenção se concentrava de preferência em como seriam recebidos os presentes que levavam, em quanto lhes custara decidir-se a viajar — "na minha idade, o senhor sabe", disse uma delas, "a gente só encontra companhia em pessoas ainda mais velhas, caquéticas. É bom ter alguém inteligente como o senhor para conversar".

Em situações assim, além de palavras de estímulo para que a senhora do lado continuasse a falar e o livrasse dessa mesma obri­gação, Antônio só se referia a si para ensaiar a história da Uni­versidade do Serro e para informar que ela pretendia concorrer com a Universidade de Itajubá na formação de engenheiros ele­trônicos e especialistas em cibernética. Com detalhes que tomara emprestados da sua própria adolescência e vida estudantil ou das estórias ouvidas de outros, formava-se um "pano de fundo" de boa credibilidade.

Na medida em que as viagens se repetiam, ele pensava: "Estou falando demais e com tanta convicção, que alguém vai acabar querendo matricular seus filhos na Universidade do Serro. Daqui a pouco digo que o ex-governador Aécio Neves estudou lá. Vou ter de esfriar o meu entusiasmo verbal, para não estimular quem quer que seja a pagar para ver". E sorria. Com o tempo, tudo foi fi­cando mais fácil. Sua inclinação natural para estudar e os anos de instrutor e diretor de ensino no Instituto Militar de Engenharia formavam uma bagagem da qual podia sacar sempre.

Após atravessar o rio, de Uruguaiana a Paso de los Libres, pro­curou uma agência de viagens de nome Amistur, criada havia poucos meses por um brasileiro expatriado, Jorge Fernandes, em­penhado em promover "la amistad entre brasileños y argentinos". A operação parecia bem recebida, pois era intenso o movimento dos ómnibus de la amistad, a partir de Paso de los Libres e de Uruguaiana e com destino ao litoral brasileiro ou ao sul argentino.

Jorge recebeu Antônio com um largo sorriso: "Você vai en­contrar nossos ônibus em todo o caminho. Temos linhas diretas para Buenos Aires, Mendoza, Bariloche, Comodoro Rivadavia e para a província de Três Rios. Em menos de um ano teremos uma viagem inesquecível por terra de Manaus ou Belém ao extremo sul da Patagônia".

"Aliás", acrescentou Jorge, "desculpe chamá-lo de 'você', mas com essa história de usted, em espanhol, a gente vai perdendo os hábitos da própria língua". "Mentira", pensou Antônio, "esse cara está aqui há pouco tempo. Deve ser parte do seu marketing.

O que Antônio não sabia é que Jorge era parte de sua missão. Ele tinha de, sem ser notado, providenciar que o pessoal das mis­sões viajasse com segurança. E recebia com as mesmas palavras todos os brasileiros que o procuravam. A viagem de ônibus de Manaus ou Belém à Patagônia destinava-se a criar a imagem de alguém empreendedor, cujos veículos estavam em toda parte, a toda hora. Para alegria de alguns e irritação de outros membros das associações argentina e brasileira de agentes de viagem.

Antônio tomou seu ônibus para Bariloche. Viagem de mais de dois mil quilômetros, coberta em dois dias e uma noite. O ônibus era confortável, mas, no fim, ninguém agüentaria um quilômetro mais. Em Bariloche, um hotel de três estrelas. Nada de El Casco, ou Interlaken, ou Bella Vista, na mesma cidade. Uma simples Hostería Suiza, limpa e confortável, situada na periferia, mas acessível à maioria da brasileirada que, no verão ou no inverno, povoa a cidade e lhe dá a alcunha de "Brasiloche".

Na mesma hostería, deu-se um momento de perigo quando dele se aproximou um brasileiro alto, moreno, também ex-pro­fessor — e turista compulsivo. Apresentações: "Meu nome é Odetto Bessoni. Vi seu nome e sua profissão no livro de registros de hóspedes. Também fui professor no Senai, em São Paulo. Já vi­sitei quase tudo. Hoje vamos ao Cerro Catedral; parou de ventar e as cadeirinhas estão funcionando; o ônibus sai às 3 da tarde; se quiser, podemos ir juntos. Minha mulher, Haydée, está se arru­mando e vai descer logo. Aqui é tudo muito bonito. O senhor e sua mulher vão gostar".

Apesar de, na vida real, ser casado e ter filhos, a natureza da missão exigia que Antônio se apresentasse como viúvo. Ele tentou escapar do passeio e da conversa. Pois, como se recor­dava da sabedoria materna, "a mentira tem pernas curtas". Mas era difícil resistir ao charme combinado de Odetto e sua mulher Haydée. Filha de pai espanhol e mãe brasileira, Haydée era uma morena alta e simpática, magra, despachada, do tipo mulher executiva: para ela, não havia dificuldade que não quisesse re­solver logo, no ato.

Ambos insistiram na ida ao Cerro Catedral. Quando Antônio perguntou, timidamente, "será que tem lugar?", Haydée retrucou: "Agora mesmo vi um casal desistindo do passeio; acharam que ainda estava muito frio depois de tanto vento".

Antônio mencionou em seguida a longa viagem de ônibus. Foi a vez de Odetto dizer: "Sabe, é como curar a mordida de cobra com o veneno da própria cobra; nada melhor para descansar do que a vista maravilhosa que se descortina de lá". Um pouco por cansaço, um pouco por ter gostado dos dois, Antônio "baixou a guarda". E foi com o casal.

No agradável percurso de ônibus Odetto mostrou fotos dos lugares que já havia visitado. Descreveu o roteiro de barco de Valparaíso a Puerto Montt, no sul do Chile: geleiras, correntes frias, pescarias; os dias, cada vez mais frios, embora mais longos; a viagem a Bariloche, primeiro de ônibus, depois de barco e, por fim, novamente de ônibus, do Chile até ali.

Em certo momento, Antônio percebeu a utilidade das informa­ções contidas na conversa. E, para encantamento do ex-professor, agora escultor, começou a fazer perguntas sobre estabelecimentos científicos "que as más línguas dizem existir por aqui". Odetto e Haydée desmentiram tudo: não tinham visto nada que não fosse natureza ou paisagem turística. Nem haveria motivo, acrescen­taram, para fazer pesquisas científicas naquela região deserta, porque a Argentina "tem área suficiente para a sua população e para todas as atividades que os argentinos desejem empreender".

Nos dias seguintes, voltaram a se encontrar e a fazer excursões juntos.

Antônio tinha a respeito do casal dois sentimentos contradi­tórios: primeiro, a indiscutível simpatia e inteligência de ambos — "Mercedes, por certo, gostaria dos dois", pensava ele. Então, surgia o segundo sentimento, oposto ao primeiro: "Estou numa missão das Forças Armadas brasileiras. Momentos de prazer intelectual, sim, mas sem permitir que me distraiam dos objetivos da minha presença aqui".

 

No meio da década de 1940, a família Oliveira tinha acom­panhado o pai, Adelino Oliveira, coronel de engenharia, nomeado para comandar o 18o Regimento de Engenharia no recém-criado Território de Iguaçu, formado com partes des­membradas dos Estados do Paraná e de Santa Catarina, na fron­teira brasileira com o Paraguai e a Argentina.

Família de militar não estranha mudar de pouso. Assim, quando o Território de Iguaçu foi extinto, em 1946, Greta e os filhos do casal não pensaram duas vezes ao ouvir as palavras de Adelino: "Acabou-se o sonho, o regimento não tem mais nada que fazer aqui. A estrada de Ponta Porã a São Borja, costeando a fronteira, não vai mais ser feita. Vamos voltar". "Para onde?", perguntaram a mulher e os filhos. Adelino não sabia.

Resultou que voltaram todos — Adelino, Greta e os filhos Guido, Marília e Eduardo — para Florianópolis, cidade que a fa­mília apreciava por causa do clima e das praias. Os filhos apre­ciavam ainda mais e desses, em particular, o pré-adolescente Eduardo.

Dos anos na fronteira, a família Oliveira guardava algumas boas lembranças. Outras, nem tanto. Os argentinos da província de Misiones eram, para os meninos, iguaizinhos aos paraguaios.

Só os distinguiam uns dos outros quando lhes pediam para tocar ou cantar algo. Os paraguaios cantavam guarânias tristes, amores infiéis ou perdidos. Os argentinos dedilhavam seus acordeões com tangos de amores também tristes, histórias de infidelidade ou abandono. Embora os meninos não lhes alcançassem o sig­nificado, a diferença de ritmos era evidente. Assim, para eles, os argentinos eram"tangueiros" e os paraguaios, "guaranis", simples­mente. Ficou-lhes o bom ouvido para a língua espanhola. Uma afeição particular à Argentina e aos argentinos haveria de acompanhá-los por toda a vida.

Em 1956 nasceu um filho temporão a quem deram o nome de Antônio. Cresceu, como tantos outros filhos de militar, com a perspectiva de carreira no Exército.

Havia vantagens em ser filho de militar para seguir a carreira do pai: colégios gratuitos e ensino de boa qualidade. Concluídos os cursos, Antônio escolheria a engenharia como a sua Arma. Oficial, faria o curso de engenheiro civil e militar, o que lhe daria boa base para a carreira. E quando se aposentasse, coronel ou general, teria condições para um bom emprego civil em com­panhia estatal ou privada; de preferência, multinacional. Além disso, gostava da idéia de seguir os passos do pai e ser um dia, como ele fora, diretor de engenharia do Exército, comandando engenheiros como ele.

Aos onze anos, Antônio entrou no colégio militar do Rio. Aluno dedicado e estudioso, sete anos depois passou à Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, situada em Resende, Estado do Rio de Janeiro, e assim chamada em homenagem ao pico das Agulhas Negras de Itatiaia, que serve de pano de fundo da escola. Inaugurada dez anos antes, a Academia Militar substituiu a velha escola de Realengo — apertado subúrbio carioca do Rio.

Já com dezoito anos, alto, bonito e elegante, tudo incremen­tado pelo aprumo no uso do uniforme militar, Antônio fazia su­cesso com as jovens nos lugares aonde ia. Não só com as jovens, mas com as mães, ansiosas por encontrar marido ideal para a filha ou filhas.

Na Aman foi o primeiro de sua turma, detalhe que prenun­ciava a condição de "tríplice coroado", como são chamados os alunos que sucessivamente obtêm o primeiro lugar nas respec­tivas turmas, nos cursos da Aman, da Esao (aperfeiçoamento para capitães) e da EME (Estado-maior, para majores e tenentes-coronéis). Aprovado no topo da lista de aspirantes formados na­quele ano, recebeu a espada de oficial das mãos do presidente Juscelino Kubitschek. A distinção de ser primeiro da turma lhe dava também a oportunidade de escolher para onde desejaria ser enviado ou, pelo menos, de não o ser para um posto inóspito da Amazônia ou de Mato Grosso.

Mas Antônio tinha outros planos: queria ser mais que o pri­meiro de sua turma, queria ser um excelente engenheiro espe­cializado — não necessariamente limitado à engenharia militar. Como preliminar a esse intento, escolheu ir para o Instituto Mi­litar de Engenharia, aí aprendera o que então se sabia sobre as novidades da eletrônica, que começava a engatinhar, e, eventual­mente, noções de engenharia nuclear.

Para conseguir isso, entretanto, era preciso planejar com ou­sadia e executar o plano com prudência. Primeiro, falar com o comandante das Agulhas Negras. Não era coisa simples essa en­trevista. Ele pediu a audiência poucos dias antes da "declaração de aspirantes", ou seja, da cerimônia de formatura dos cadetes da Aman. Como era de rigor, seguiu a via dos "canais competentes": falar com seu tenente, antes de tudo; depois, pela ordem, com o comandante da companhia, o instrutor-chefe, o comandante do corpo de cadetes, o subcomandante da escola. À medida que subia os degraus da rígida hierarquia militar, também lhe subiam as tensões na cabeça e no peito.

Confidenciou a um colega: "Pedi uma audiência ao velho" (como os cadetes chamavam o comandante ao conversar entre si). "Será que ele vai me receber?" O amigo quis saber para que e Antônio desconversou: "Quero falar umas coisas daqui". Talvez tenha se expressado mal, mas era um amigo. Esse, pensando em denúncia de irregularidades na Intendência, advertiu: "No Exér­cito não se usa isso. Você vai, diz ao velho algo de que ele pode não gostar e toma uma mancha na sua folha. Deixe de bobagem. Você está começando a carreira militar daqui a duas semanas, não caia nessa".

Antônio ficou firme e falou das garotas de Resende: "Elas devem ter uma emoção danada: todos os anos chegam novos ca­detes, namorados elegíveis". O outro respondeu: "Que nada, elas devem ficar pês da vida. Cada turma que se vai são tantos ma­ridos potenciais a menos. No fim acabam casando mesmo com os preferidos da adolescência, o filho do farmacêutico, o enteado do juiz, o irmão do padre. Aspirante que se preza busca mulher rica em outros lugares, embora nem sempre encontre".

A conversa não prosperou. Antônio fazia sucesso com o sexo oposto por toda parte e não se importava com o interesse das "meninas" locais. Pensou: "Eu vou é procurar uma jovem rica, casar com ela e ter futuro garantido na hora da aposentadoria".

Quando afinal veio o aviso de que o "velho" o receberia para au­diência de quinze minutos na quarta-feira antes da formatura, An­tônio tinha discurso pronto. Dez minutos antes lhe competia estar na sala de espera do comando, dizia o regulamento não escrito.

Ele não queria perder a chance e ali chegara ainda mais cedo, às 8h35. Um capitão, ajudante de ordens do comandante, entrou na sala. Antônio perfilou-se. Falou: "Cadete Antônio Schmidt Oliveira, da companhia de Engenharia, apresento-me porque tenho uma audiência com o general-comandante". O capitão Josafá perguntou o horário, que estava cansado de saber. Antônio disse: "9 horas".

O capitão fez que sim com a cabeça. Disse: "Cadete Schmidt, quinze minutos representam um trinta e dois avos do tempo total do comandante no dia de hoje. Você sabe que ele é um homem ocupadíssimo. Não exceda um minuto. Aliás, fico muito admi­rado que ele tenha querido recebê-lo. Deve ter sido por causa do seu pai, que foi instrutor do general, comandante da escola".

Antônio ficou ligeiramente irritado com o tom paternalista do capitão. Mais, ainda, com o fato de no Exército ser chamado de "cadete Schmidt". Schmidt era o nome de família de sua mãe. Ja­mais compreendera por que não podia ser chamado Antônio, ou Oliveira, simplesmente.

Explicaram-lhe mil vezes. No dia da apresentação, o instrutor da turma ia chamando um por um os novos cadetes. Na hora, cada um "assumia" um nome. Ou, então, o instrutor atribuía a cada um o nome mais característico. Naturalmente, havia dois ou três Oliveiras e quatro Antônios, cota normal para uma turma de mais de duzentos. O nome Schmidt ia "pegar" e Antônio seria depois cadete, aspirante, tenente, capitão, major e coronel Schmidt. Um dia, se chegasse a general, seria também Schmidt. "Pobre pai. O filho perdeu o seu nome", pensou Antônio. "Pelo menos", continuou, "não me chamaram de cadete alemão', apelido que eu teria de carregar pelo resto da vida."

Um minuto antes das nove, o capitão o fez entrar. Antônio co­nhecia bem o seu comandante. De hábito limpo e arrumado, o cadete tinha engraxado especialmente os sapatos, até chegarem àquele brilho intenso apreciado pelo general. Botões em ordem, nenhum com a linha frouxa ou desalinhado. Peito estufado, mas sem exagero; magro, nem sombra de estômago, que os exercícios às 6 da manhã haviam ajudado a afundar. Antônio era a imagem viva do modelo do jovem militar brasileiro: nenhum fio de ca­belo fora do lugar. E isso também ajudava no seu sucesso com as mulheres.

Aberta a porta, esperou que o general o olhasse e fizesse sinal para entrar. Perfilou-se, bateu os calcanhares — nem com tanto ruído que parecesse prussianismo, nem com tal discrição que o general não percebesse. O gorro na mão esquerda, a direita co­lada à calça com o dedo médio sobre a costura vertical, tudo con­forme mandavam as filigranas do figurino militar. Falou com voz clara, lembrando a recomendação do seu instrutor: "Cadete An­tônio Schmidt Oliveira, da companhia de Engenharia". O general acenou: "Sente-se, meu filho. Que posso fazer por você?"

Antônio explicou. "Meu general, vou ser oficial de engenharia, como meu pai. Mas, além do muito que aprendi na Academia, há toda uma ciência nova que desponta, a eletrônica. Em poucos anos, os aparelhos elétricos que hoje consideramos eficientes serão obsoletos. No seu lugar entrarão os eletrônicos. Para não falar muito, seu impacto nas comunicações, especialmente nas comunicações militares, será decisivo."

O general o olhava.

Antônio continuou: "No Brasil, a melhor escola de comunica­ções e eletrônica é a da Marinha. Mas o Instituto Militar de En­genharia, o nosso IME, começou há algum tempo um curso de engenharia eletrônica. Eu gostaria de ir para lá e fazer esse curso". Após um segundo de parada, acrescentou: "Além disso, há todo um papel novo no controle do ciclo nuclear, no campo da energia — tanto para uso civil quanto para uso militar".

O comandante da escola — general de divisão Olivério Sil­veira — era oriundo da cavalaria. Não prezava os engenheiros, que considerava obtusos e presunçosos. Achava-os "meio pai­sanos", pois, suprema injúria, não sabiam montar. Ouvira falar vagamente em eletrônica e, menos ainda, em "ciclo nuclear". Não sabia bem o que eram essas coisas, ou a diferença entre eletrônica e eletricidade, mas devia ser importante. Fez perguntas. Pediu detalhes. De energia nuclear sabia apenas as questões mais evi­dentes, relacionadas com o poder altamente destrutivo da bomba atômica.

 

O tempo foi passando. Esgotaram-se os quinze minutos. Quando o relógio já marcava 9 e 20, o ajudante de ordens chegou à porta e tossiu discretamente. Antônio virou-se e, pela cara do capitão, percebeu que tinha violado o limite de tempo. Fez menção de levantar-se e sair (embora soubesse que, quando se fala com oficial de patente superior, quem encerra a entrevista é este, mais ainda sendo general). O comandante da escola falou: "Não importa, capitão Josafá, eu não tenho nada de urgente para hoje". Consternado, Josafá saiu com a dignidade possível.

Uma hora depois, o general Silveira já se convencera de ter rece­bido uma lição compacta e completa sobre rudimentos de eletrô­nica e energia nuclear, na perspectiva de seus usos pelo Exército. Perguntou: "Onde e quando você aprendeu tudo isso, cadete?"

Antônio teve de confessar: "Os exercícios intelectuais e de cálculo do curso de engenharia sempre foram muito fáceis para mim. A maior parte, aprendi com meu pai, nas férias. Ele queria que eu fosse o melhor engenheiro militar e cuidou disso pessoal­mente. Como eu tinha algum tempo livre na Academia, comprei livros e revistas estrangeiras e li tudo o que apareceu. Hoje, sem ser técnico, acho que sei tanto sobre eletrônica quanto os professores do Brasil, incluindo os do IME. Mas, general, eu vou precisar do título. Sem ser engenheiro eletrônico, ninguém vai me respeitar".

Por boa medida, acrescentou: "O pouco que sei de energia nuclear aprendi da mesma forma: lendo o que sai nas revistas e publicações oficiais. Ou seja, quase nada". O comandante ima­ginou que era a pura verdade, sorriu, passou a mão pelo cabelo num gesto característico e respondeu: "Não sei. Vou pensar. Não prometo nada. Depois falo com você. Vou despachar agora com o capitão Josafá".

Antônio perfilou-se, agradeceu e saiu. Ao passar na antessala, o ajudante de ordens à sua mesa ia falar, para verberar a audácia do cadete, mas soou a campainha sinalizando o chamado do ge­neral. "Salvo pelo gongo", pensou Antônio. Literalmente.

O comandante da Academia Militar das Agulhas Negras, ge­neral Olivério Silveira, fez mais do que o cadete havia imaginado. Telefonou ao diretor de ensino e pesquisa do Exército propondo uma exceção à regra: admitir Antônio diretamente no IME, sem que fizesse a passagem regular por uma guarnição longínqua ou esperasse as promoções regulamentares. Acrescentou: "Não no ano que vem ou daqui a 'x' anos, e sim agora, para aproveitar a coincidência de anos letivos. Sair de uma escola para outra. Nós temos o melhor técnico em eletrônica do Exército, mas é só um aspirante, ninguém vai prestar atenção ao que disser. Precisamos abrir a oportunidade para Schmidt se formar pelo IME. Ele é capaz de ir para a escola da Marinha, que terá prazer duplo em recebê-lo. Ou, então, para uma universidade civil, como a USP".

E, com galhardia, o comandante desferiu o golpe fatal: "Então, nós vamos perdê-lo".

Daí, de general em general, cada vez mais estrelas sobre om­bros mais vetustos, o inaudito foi subindo, até despacho do mi­nistro do Exército, então chamado Ministério da Guerra, para autorizar a matrícula do aspirante Schmidt diretamente no IME.

Três anos depois, Antônio tornou-se engenheiro militar, es­pecialista em eletrônica, no primeiro lugar de sua turma, distan­ciado do segundo. Outros dois anos depois, concluiu a Escola de Aperfeiçoamento, em primeiro lugar. Por fim, a Escola de Estado-Maior, também em primeiro lugar.

"Tríplice coroado", como previsto por seus instrutores, Antônio foi mandado pelo Exército para a Escola Superior de Guerra da França. Em seguida fez mestrado em eletrônica na mais famosa das universidades francesas, a Sorbonne, e partiu para treina­mento em Fort Leavensworth, nos Estados Unidos, para a qual são enviados os oficiais estrangeiros mais brilhantes.

Finalmente, por insistência dos americanos, fez curso de dou­torado em ciência eletrônica e de telecomunicações no MIT, o famoso Massachusetts Institute of Technology, com tese sobre microeletrônica e miniaturização. Por todo esse tempo conti­nuava a ler e refletir sobre a energia nuclear e o impacto de sua utilização como instrumento de desenvolvimento de fontes alter­nativas de energia elétrica e outros usos não militares. Ler, con­versar, ouvir e, quase sem querer, aprender mais e mais.

Uma mania aparentemente inócua mas estimulada pelos es­tudos de telecomunicação, enraizou-se na cabeça de Antônio. Para ele, com tantos satélites pairando sobre os oceanos e continentes, haveria mérito, senão utilidade imediata, em criar e desenvolver um sinal eletrônico apto a dar a volta ao mundo, que pulasse de um satélite para o próximo, deste ao seguinte e assim por diante.

Para quê? Nem ele mesmo sabia. Mas Antônio imaginava o que teriam sentido os grandes navegadores: era preciso "ir", "viajar". Para onde? A resposta era: "Veremos depois!".

Com tantas horas dedicadas ao estudo, ele mal arranjava tempo para a vida social. Para namorar. E menos ainda para ir ao cinema, passear ou fazer turismo local, no Rio ou por onde an­dasse. Mesmo assim, não lhe faltavam convites para os famosos e sempre monótonos bailes de formatura. De raro em raro lhe aparecia a oportunidade de fazer alguma coisa mais divertida que debruçar-se sobre os livros.

Numa dessas ocasiões, pelo ano 1990, conheceu Mercedes, filha de um militar paranaense e arquiteta. Ficou encantado com a moça. Não tanto pelo fato de estar habituada à rotina da vida de família militar, ou pelo fato de ser paranaense e ter profissão téc­nica, a qual por certo a ajudaria a compreender as manias do parceiro. Mas por seu charme, sua atitude alegre e feliz e sua prosa descontraída.

Mercedes mexeu fundo com o coração e o cérebro de Antônio. O coração dizia: "Seria ótimo se me casasse com ela. Certamente nossos filhos seriam lindos e inteligentes". Mas o cérebro ponde­rava: "Será que, se me casar com ela, terei tempo para continuar estudando e investindo na minha carreira?"

Imaginava que, embora a maior parte da vida de Mercedes se passasse em frente a uma prancheta de desenho e não, como a dele, diante de um computador, uma arquiteta poderia com­preender os percalços da vida de um engenheiro, não só militar, mas especializado em eletrônica e energia nuclear, ciências "se­cretas" para a maioria das pessoas. Afinal, Antônio já era capitão e chegava aos 30 anos. Era tempo de tomar uma decisão.

"O que eu ganho, mais os possíveis honorários de arquiteta de Mercedes, deve chegar para manter uma casa simples e confortável", pensava Antônio. Ao longo de sua carreira militar, a vida frugal lhe permitira juntar uma média poupança, bastante para ajudar nos preparativos do casamento e no começo da vida em comum.

Procurou aumentar o tempo livre para namorar e conhecer melhor a primeira jovem pela qual sentira interesse mais que pas­sageiro. Assim saberia se estava tendo outra atração fugaz, ou se realmente encontrara a pessoa com a qual dividiria a vida. Ima­ginava que Mercedes, filha de militar, não estranharia suas su­cessivas transferências de um batalhão de engenharia para outro. Não estranharia também o fato de que na vida militar há tarefas e missões nem sempre passíveis de revelar à família.

Mercedes, de sua parte, aí pelos 28 anos, bem que pensara em "arranjar marido". Mas não queria qualquer um, ou o primeiro que aparecesse. Alta e magra, conforme o "jeitão" de sua família paranaense, e com alguns traços europeus (ou, matutava a jovem Mercedes, "talvez algumas gotas de sangue judeu"), ela era corte­jada por toda parte. Mas queria casar-se por amor. Não por con­veniência. Menos, ainda, por fastio.

Por essas e outras, o namoro com Antônio era sem sustos ou traumas. Ambos tinham gostos parecidos. Amavam um chur­rasco regado a cerveja supergelada. Apreciavam os mesmos filmes: comédias, que faziam a platéia rir "a bandeiras despregadas", como se diz em Portugal, ou enredos que os levavam a nítido estado de tensão, à espera do desfecho.

Passou-se um ano de namoro. Antônio continuou lotado no mesmo lugar, o Rio de Janeiro. E na mesma função de adjunto do gabinete do general diretor da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, que cursara com distinção e louvor na época própria.

Resolveu ir em frente. Propôs casamento a Mercedes. Nem imaginava que ela viesse pensando em linhas paralelas às suas; e, sem surpresa, ela prontamente aceitou.

Mercedes considerara: "Vida de civil e arquiteta é bem dife­rente da de engenheiro militar. Podemos cada qual levar uma vida pessoal desligada da profissão do outro. Mas, se tivermos de conversar sobre isso, também cada um tem base para entender o trabalho do outro".

Casaram-se. Não demorou muito e vieram dois filhos, logo ambientados à carreira errante de militar, transferido de posto para posto. Mercedes parecia haver-se adaptado bem às peripé­cias da vida de Antônio e os quatro viviam felizes e alegres.

 

Com 25 anos de serviço militar, casado e pai de João Lucas, 16 anos, e Alexandre, 14, tenente-coronel e já no quadro de acesso a coronel — quando alguns dos seus contemporâneos apenas recebiam a promoção de major a tenente-coronel —, An­tônio ia agora entrar na ciranda da promoção final de carreira. Obteve-a um par de anos depois, por mérito, passando mais uma "carona" nos colegas — isto é, promovido antes de outros, mais antigos. (No Brasil, as promoções até coronel seguem os critérios de antigüidade e mérito. O posto de general, entretanto, é de livre escolha do presidente da República. Em tese. De fato, prevalece a indicação do respectivo ministro.)

Muitos dos colegas tinham inveja do seu sucesso: promoções rápidas demais, sempre por merecimento; escolas na Europa e nos Estados Unidos. Acima de tudo, a grande injúria: doutorado summa cum laude no MIT. A partir daí, o engenheiro Schmidt havia despertado a atenção dos talent hunters, caçadores de ta­lentos da IBM, da AT&T e de empresas chinesas e japonesas. Todas às voltas com projetos para expandir e sofisticar ainda mais a fabricação, no Brasil, de microprocessadores e computadores pessoais.

Ao chegar de volta de um dos cursos no exterior, doutor e tenente-coronel, Antônio teve de tomar a decisão mais séria de sua vida. No aeroporto encontrou uma inesperada comitiva de recepção. Emissários da próspera e inovadora indústria de com­putadores do Brasil, em plena expansão, queriam que ele pedisse passagem para a reserva — espécie de aposentadoria militar pre­coce — e fosse trabalhar na indústria privada, em São Paulo ou no Rio, com melhores perspectivas de salário, bônus anuais e prê­mios pelas descobertas feitas.

Diante das muitas propostas, pediu prazo para refletir e con­versar com a família. Pensava: "Devo ao Exército tudo o que sou e o que venha a ser. É verdade que retribuí isso, dedicando-me de corpo e alma a aprender e a ensinar o que aprendi. Agora, estou pronto para o que der e vier. É verdade também que, entre estudos aqui e lá fora, o Exército me deixou tempo livre para na­morar, casar e constituir família".

"A paga no Exército sempre foi medíocre, mas a vida é se­gura", continuou pensando. Da infância lhe vinha o refrão da cantiga: "Marcha, soldado, cabeça de papel. Quem não mar­char direito vai preso no quartel". Marchar direito, em sentido literal e em sentido figurado, sempre foi a boa receita para subir os degraus da carreira. "Agora, sou um dos melhores, senão o melhor engenheiro eletrônico do Brasil. Mas tenho a obrigação de contentar-me com a remuneração de tenente-coronel, que é uma miséria."

A dúvida resolveu-se afinal por si mesma.

No dia seguinte à sua chegada, foi visitar informalmente os co­legas da diretoria de engenharia, para saber das coisas. Abraçou os companheiros no velho prédio do largo de Santana, onde ainda funcionavam partes do Ministério da Guerra, tornado Ministério do Exército, cuja sede principal tinha sido transferida para Bra­sília. Pôs-se em dia com o anedotário, as fofocas de promoção, a crônica falta de verbas.

Logo, um colega falou: "O general quer vê-lo imediatamente". Era outro general, agora de quatro estrelas, mais velho que o an­terior, mais contido, como parece acontecer com todos os generais, tanto menos falantes quanto mais envelhecem e sobem na hierarquia.

Já o ritual era o mesmo. Na porta, a continência e a frase de introdução: "Tenente-coronel engenheiro Antônio Schmidt Oliveira; apresento-me a Vossa Excelência por ter regressado do pe­ríodo de estudos nos Estados Unidos". O general era baixinho, mal chegava a 1,64 m. Ao vê-lo, todos pensavam: "Deve ter-se esticado no serviço de biometria para entrar na escola. Ou en­colheu depois". Pensavam. Mas ninguém ousava chamá-lo pelo apelido-padrão de "amostra grátis".

Ao contrário do general, Antônio era alto e magro para os pa­drões brasileiros: 1,81 m; 78 kg; nem sombra de barriga; olhos claros, azuis, herança alemã e orgulho do lado Schmidt; cabelo castanho-escuro que trazia a assinatura do lado Oliveira e era a sua compensação: o avô nunca aprovara muito o casamento do filho Adelino com a filha gringa do "seu" Schmidt. Dizia o velho: "Vai ver, além de alemoa, ela só sabe comer chucrute. Quem sabe? O pai pode ter sido nazista".

Antônio refletia sobre isso. O avô Oliveira sonhava ver Adelino casado com a filha do fazendeiro mais rico de Laguna. Mas ele amava Greta e, afinal, com ela se casou. (Greta era a necessária e cômoda forma abreviada do nome Gretchen Hildegard Franziska Schmidt.) Para alívio dos seus avós, Antônio, último filho de Adelino e Greta, parecia-se com ambos. Alto e empertigado, de tez amorenada e jeito de homem da terra, era Oliveira. "Simbiose perfeita com os nossos traços", dizia Greta, que era professora.

No princípio da vida do casal Adelino e Greta, o velho Oliveira detestava o fato de seu filho não se ter casado com a filha do fa­zendeiro. Depois aceitou Greta. E passou a amar o casal, a adorar os filhos, seus netos e, mais ainda, seus bisnetos.

 

Concluída a digressão familiar e nostálgica, Antônio voltou ao presente e ao lugar onde se encontrava. Notou, mais uma vez, que, para não acentuar o contraste da altura, o general permanecera sentado e fora direto ao assunto: "Coronel, nós sabemos que o senhor é um oficial brilhante, do colégio militar à Aman, ao IME e a todos os institutos que frequentou. Agora, chegou a hora de o senhor devolver ao Exército uma parte do que o Exército fez pelo senhor. Há uma vaga de subdiretor de ensino do IME. É posto de coronel, mas ninguém está mais habilitado que o senhor para exercê-lo. O ministro concordou e o senhor vai ser desig­nado 'por necessidade do serviço' para esse lugar. Só que tem de assumir logo, para preparar o próximo ano letivo e a reforma do IME, com ênfase na eletrônica".

Antônio já pressentira que algo parecido o esperava. De fato, havia conversado com Mercedes e avisado os filhos da possibili­dade de um novo posto, nova localização, nova residência — do Exército? —, novas escolas e tudo o mais. O IME tinha sede no bairro da Urca, no Rio de Janeiro. O que, para dizer o mínimo, seria do agrado de Mercedes. E seus filhos pulariam de alegria com a proximidade das praias cariocas.

 

Em duas décadas e meia de convívio, principalmente com su­periores, Antônio tinha aprendido a distinguir entre um convite e uma ordem. Esta era ordem. Nem pestanejou. Levantou-se, perfilou-se e disse apenas: "Quando, meu general?". A nomeação sairia no "boletim", a súmula diária de ordens da diretoria de engenharia daquele dia.

"Então, se assim estiver bem, assumo amanhã", disse Antônio. E desse modo, ele pensava, continuaria na carreira de engenheiro, embora não na indústria privada. Do ponto de vista pessoal, era um passo a mais na direção do cargo de diretor de uma das es­colas superiores de formação do pessoal do Exército.

Entreteve-se com seus planos: "Afinal, para uma família mi­litar, mudança não é coisa complicada. Basta levar roupas, ob­jetos pessoais, alguns móveis e procurar um novo teto! Mas a quem penso que estou enganando?"

Como previra, Mercedes gostou da idéia de morar na zona sul da capital fluminense. João Lucas e Alexandre repicaram: "Quer dizer que vamos morar em Copacabana?".

Nos quatro anos seguintes, como subdiretor de ensino, An­tônio reorganizou e modernizou o IME e introduziu a eletrônica na Aman. Passou os anos seguintes entre ajudar a desenvolver o Centro Técnico Aeroespacial da Aeronáutica, em São José dos Campos, e colaborar com a Marinha no desenvolvimento dos seus sistemas de direcionamento de foguetes. Tudo isso lhe dera a promoção a coronel e fizera dele um dos raros oficiais do Exército com livre trânsito nos meios técnicos das três Forças. Seu destino, porém, haveria de ser outro, muito outro, como Antônio Schmidt de Oliveira constataria por si mesmo.

 

"Agora, espião", pensaria Antônio algum tempo depois. Só que, agora, circularia não mais como Antônio Schmidt de Oliveira e sim como Antônio Gomes. Não como militar, mas aparentando ser civil e professor aposentado. E viúvo, pois não poderia levar a família. Nem permitir que os seus percebessem o que ia fazer.

Mercedes detestava a idéia de ver o marido partindo para mis­sões secretas das quais ela nada poderia saber. Mas lembrou-se de suas palavras antes do casamento, ao lhe dizer que em nenhuma hipótese atrapalharia a sua carreira. Assim fez. O que, muitas vezes, lhe dera a sensação de ter criado os filhos sozinha. "An­tônio é pai somente entre uma missão e outra", pensava Mercedes em momentos de saudade.

"Espião", continuou a pensar Antônio enquanto observava, do mirante no Circuito Chico, onde parara o carro, o lago Nahuel Huapi, que ficava próximo à cidade de Bariloche, na Patagônia, República Argentina. Era mais uma das missões secretas das quais fora incumbido, mas cujo mecanismo não lograva com­preender de todo. E menos ainda compreendia o propósito delas.

"Para quê? E para onde me mandarão depois desta? Afinal, o Brasil faz fronteira com todos os países da América do Sul, exceto o Chile e o Equador, como se aprende na escola primária." Mas isso era AE, isto é, Antes da Eletrônica, e AA, Antes da Aviação. Agora, o conceito de "país vizinho" é outro, muito mais amplo, com o elenco de "interesses recíprocos" como seu substrato. Montanhas, cordilheiras, distâncias, quilômetros ou milhas, mares e oceanos, países continentais ou ilhéus, nada disso cons­titui entrave ao conceito de "vizinhança". Para qual desses iria o professor, ou que nova profissão lhe dariam? "Na verdade, con­tinuo não entendendo nada", pensou Antônio.

 

Pouco depois de sua passagem pelo CTA de São José, Schmidt seria classificado no Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa), considerado por muitos "enterro de primeira classe". Nova mu­dança de residência. Não mais a bela paisagem carioca, mas o clima seco e quase sem árvores do Planalto Central, que se estendia do Distrito Federal a Goiás e ao restante do Centro-Oeste. Mercedes e os dois rapazolas sabiam que nada teriam a dizer. E que a moradia deles seria em uma das casas de um centro re­sidencial do Exército, fora do "Plano Piloto", como até hoje as pessoas designam a área urbana de Brasília desenhada por Lúcio Costa e transformada numa cidade de marcantes características arquitetônicas pelo gênio de Oscar Niemeyer. Era a Novacap, ainda chamada afetivamente desse modo, embora inaugurada em 1960.

O Emfa ocupava sete dos oito "andrés" (corruptela de "an­dares") de um dos prédios que delimitam, ao norte e ao sul, a praça da Novacap, a conhecida Esplanada dos Ministérios.

Além da chefia do Emfa, o último andar do prédio abrigava então a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional. Enquanto existiram, até os militares tinham dificuldade para distinguir bem, umas das outras, as funções do Emfa e do CSN. Segundo leis e regulamentos, ambos deveriam "assessorar o presidente da República": o CSN, em assuntos de segurança na­cional; o Emfa, no planejamento estratégico conjunto das Forças Armadas.

Naturalmente, as áreas de superposição eram enormes e os conflitos latentes só não explodiam com o uso de muita diplo­macia de parte a parte. E, às vezes, da hierarquia: o chefe do Emfa era sempre general, brigadeiro ou almirante de quatro estrelas, último posto da carreira. O secretário-geral do CSN era o ministro-chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, habitualmente um general de duas estrelas.

Muitos atritos pessoais foram evitados, até o momento em que a sede do CSN se mudou para um dos novos anexos do palácio do Planalto. Nessa ocasião, o general (de brigada) Danilo Venturini, ministro-chefe do Gabinete Militar da Presidência da República e secretário-geral do CSN, sentenciou: "Nas situações difíceis, a melhor alternativa para a presença de espírito é a ausência de corpo". Fato que Schmidt e seus colegas de profissão haveriam de comprovar numerosas vezes — especialmente, no curso dessas missões, no âmbito territorial de diferentes países mais ou menos "vizinhos" do Brasil.

Os oficiais designados para trabalhar no Emfa tinham muita coisa de rotina para fazer, mas pouco trabalho realmente útil que justificasse a presença de cinco generais e várias dezenas de oficiais superiores, além de outras dezenas de oficiais de nível intermediário, majores, capitães e tenentes, mais sargentos e "pracinhas" encarregados das tarefas menores. Antônio notou: "Com o tempo, a rotina adquire pátina própria. As pessoas con­tinuam a fazer as mesmas coisas só porque essas coisas estão aí para ser feitas".

Lembrou-se de um cartoon que vira na revista The NewYorker. Numa alusão à teoria de que a vida nascera no mar e os peixes acabaram por subir à terra, o desenho mostrava um peixe, já meio fora da água, que diz, voltado para o outro, tímido, que per­manecia na água, satisfeito com o seu meio ambiente: "Porque a terra está aí mesmo". Assim é a rotina, pensou Antônio: tem de ser feita porque é preciso cumpri-la.

Havia, é claro, muita distinção, convívio com os adidos mi­litares de todas as embaixadas, possíveis convites, bons vinhos, discussões infindáveis com os companheiros da Marinha e da Aeronáutica, além dos do Exército — chamados genericamente "verde-oliva" — que estivessem ali. Reuniões eram freqüentes, aparentemente sem propósito, dos chefes designados por acrô­nimos tão do agrado dos militares. (O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas era o Chemfa; o vice-chefe, o Vicemfa; mas nin­guém designava os três subchefes como Subemfas, pelo menos na sua presença. Ficava feio.)

 

O Cerro Catedral tem esse nome devido ao perfil de sua cumeeira recortada, que, vista da planície, lembra o estilo da catedral de Milão. Do sopé da montanha imponente, a proxi­midade prejudica o efeito de conjunto e, ao olhar do turista de- savisado, o cerro é mais uma entre tantas montanhas de cume gelado. Nas encostas, pistas de esqui parecem incongruentes na tarde de verão. Do alto se avista a planície patagônica num arco de 270 graus, em todo o seu esplendor e rusticidade.

A Patagônia é uma extensa área plana com mais de 800 mil quilômetros quadrados em que se encontram imensas riquezas naturais, incluindo quase todo o petróleo argentino. Ê escassa­mente povoada, com menos de um milhão de habitantes. Restam poucos indígenas, sobreviventes da chacina promovida na colo­nização que o conquistador espanhol dom Francisco de Viedma comandou. Daí o nome Ciudad de Viedma, capital da província do Rio Negro, nas margens do rio que marca a fronteira nortenha da Patagônia.

Praticamente, ali não existe indústria, salvo a extração e o re­fino de petróleo e um pouco de petroquímica em torno de Co­modoro Rivadavia. Sua principal atividade é o turismo. Para Bariloche, principalmente, a mais famosa estação de esportes de inverno da Argentina. E um pouco para outras cidades de acesso menos fácil, como San Martin de los Andes.

O que se avista do alto do morro da Catedral é a planura sem fim. Aqui e ali, tufos de vegetação natural, principalmente pi­nheiros. Em outras partes, núcleos de colonização sistemática: retângulos perfeitos, com 50 e 100 hectares, divididos em glebas delimitadas por linhas retas de altos ciprestes. Povoados, mais que vilas, pontilham o panorama.

Para os lados da cidade, avista-se bem o lago Nahuel Huapi, cuja margem norte é desprovida de habitações. Para o leste di­visa-se um maciço de árvores que, de fato, encobrem de vistas estranhas os estabelecimentos militares ali sediados. E, por boa medida, também o centro atômico. "Árvores são, às vezes, muito convenientes", pensou Antônio.

Naquele dia, no alto do morro da Catedral, os turistas eram poucos, afugentados pelo frio que os ventos polares traziam, àquela altura já dispersados. Não havia no céu nuvem nenhuma. Nem, na planície, fumaça ou poluição para atrapalhar a vista. O casal Bessoni continuava a mostrar uma raríssima combinação de boa conversa e discrição formal.

Antônio ficou uma hora com eles, embevecido pela paisagem. Indagou ao guia se haveria outro ônibus mais tarde e se poderia ficar para voltar nele. "Normalmente, o senhor tem de voltar co­nosco", disse o guia. "Os lugares são contados e, se ficar, não terá como voltar." Antônio ficou. Despediu-se dos Bessoni, combi­naram jantar juntos. Mal o funicular começou a descer, pôs-se a fotografar e anotar. Era tarefa da viagem. Depois viriam os outros cerros e lagos. Aproveitou o silêncio e o isolamento para falar via laptop com a família. Todos estavam bem. Desceu a pé até a es­tação e daí, de carro, foi para o hotel.

Sete dias passados desde a chegada de Antônio a Bariloche, a parte mais difícil da primeira fase de sua missão começou pouco antes da lua nova. À noite, nos locais em que não há iluminação artificial, só resta a claridade persistente do dia que custa a ter­minar. Pelas 11 da noite apenas, a escuridão se torna completa.

Sem pontos de referência à vista, Antônio estacionou o carro, apagou as luzes, fechou as portas e, conforme as instruções, cami­nhou por vinte e cinco minutos na mesma direção. "Devem ser uns dois quilômetros", dizia o livro gravado em sua mente. Então, fechou os olhos, girou dez vezes sobre si mesmo, para a direita, outras tantas para a esquerda, deitou-se no chão, ainda de olhos fechados, contou até trinta e, enfim, abriu os olhos. As instruções diziam: "Nesse ponto, você estará completamente desorientado. Mas é aí que começa de fato o seu treinamento".

Antônio pensou: "Se fosse um filme, os meninos iriam adorar!".

Já havia passado por treinamentos quase tão loucos como esse. Não teve problemas especiais. Cumpriu o ritual sem dificuldades. Dessa feita, porém, sentiu-se um pouco tonto. "Deve ser a idade", pensou. Ao abrir os olhos, nada viu, exceto um par de pontos fosforescentes: um coelho, ou esquilo, talvez. Mexeu-se e os pon­tinhos desapareceram.

Em torno, com ajuda da pálida luz das estrelas, começou a enxergar as coisas: primeiro, as margens da estrada. À medida que os olhos se habituavam à escuridão, pôde perceber com sur­preendente grau de detalhes o que havia ao redor; um tronco caído, uma árvore de galhos baixos, uma trilha aberta pelos pés de lenhadores ou caçadores.

Do meio da estrada, procurou localizar a cordilheira: não foi difícil, seu perfil de serra dentada destacou-se do céu estre­lado. A questão agora era andar. Mas andar fora das trilhas. E, com meia hora de caminhada, procurar localizar-se: onde es­tava, onde ficavam os pontos de referência identificados em sete dias de trabalho intenso, de onde viera, para onde iria. "Com um companheiro teria sido mais fácil", murmurou, irritado. Em continuação, pensou: "Nesta, os meninos ficariam tensos, mas excitadíssimos".

Era a terceira vez que fazia um exercício parecido. Na pri­meira, em outubro do ano anterior, fora ao Equador. Depois, na última semana de novembro, ao sul do Chile, pelo lado de Portillo, também estação de esqui no inverno. E agora Bariloche. Para onde, daqui?

Tudo o que sabia é que ele e outros estavam sendo preparados para uma futura missão fora do Brasil, ainda mais secreta, prova­velmente hostil. Suas instruções eram claras quanto ao comporta­mento, mas tremendamente obscuras sobre o que e por que fazer.

O pensamento que aflorava à sua mente era inexorável: "Será tudo isto um simples exercício de inocuidade? Ou estou fazendo coisas realmente úteis? Em que ponto todos estes exercícios fúteis na aparência serão vantajosos para o nosso país?"

De regresso a Brasília, voltou à rotina no prédio do Emfa.

 

Meses depois, a missão secreta na Patagônia quase esquecida, Schmidt foi chamado ao gabinete do vice-chefe do Emfa, almirante de esquadra Eduardo Jaime Fakhoury. Passou mecanicamente pelo ritual da apresentação e, a convite do almirante, sentou-se.

Não esperava ouvir uma das mais extraordinárias conversas de sua vida. Disse o almirante: "Coronel, nós conhecemos toda a sua história. Seu passado e o dos seus familiares foram colocados na peneira fina. Acredito que o que não sabemos a seu respeito provavelmente não é importante, nem o senhor se lembra disso. Ou não vale a pena lembrar".

A estranheza de Antônio diante desse início de conversa deve ter aflorado aos seus olhos ou ao rosto, pois o almirante Fakhoury indagou: "Surpreso?" Não podia negar. Nem imaginar aonde le­varia essa conversa. Ou se levaria a alguma parte.

O Vicemfa continuou: "Temos uma missão talhada para o senhor. Requer completo controle de nervos, muita audácia, ca­pacidade de liderar e certa dose de calculismo, servida por uma tremenda cara de pau. Ou, como eu deveria dizer, por invulgar sangue-frio".

Antônio não sabia o que dizer e, conforme uma velha regra de sabedoria herdada do pai, permaneceu em silêncio.

O almirante não teve jeito. Continuou: "A missão é tão secreta, que não lhe poderemos dizer em que consiste concretamente, ou onde se realizará, até o momento em que o julguemos pronto para executá-la. Mas há um prazo final: terá de ser cumprida já".

Antônio sabia que não devia mostrar curiosidade. Não mos­trou. Continuou atento, olhos postos no seu superior, pen­sando: "Esses marinheiros, especialmente os que na prática já estão aposentados, embora ainda na ativa, acham que sabem tudo só porque fazem viajar suas naus, outrora maravilhosas. Garanto que sei mais sobre o sistema inercial de direção de um cruzador do que esse almirante, de esquadra ou de flotilha". Como o silêncio se prolongasse e para evitar embaraços, disse apenas: "Sim, meu almirante".

Fakhoury respirou fundo. Estava num momento difícil e arris­cado da conversa, quase chegado ao ponto sem retorno de toda viagem: cada frase agora era importante. Em poucos minutos não poderia voltar atrás: o homem à sua frente saberia demais. Pensou: "Que trapalhada danada. Você lê tudo e, no fim, não sabe nada".

Para essa "missão", o almirante já entrevistara onze oficiais.

Em oito casos, a baixa qualidade dos relatos, fotos e opiniões dos militares sobre o que haviam visto nas respectivas missões concorrera para descartá-los desde logo.

Em dois outros casos voltara atrás neste ponto: os relatórios eram "passáveis" ou "bons", mas a personalidade dos entre­vistados não parecia adequada à nova missão. Tivera de usar a "retranca", colocar a missão em futuro incerto, advertir os candi­datos de que haveria curso no exterior e treinamento intensivo. Por fim, a mentira clássica: continuariam a conversar sobre o as­sunto "depois". Ou seja, nunca mais. Bateu em retirada, com o máximo de dignidade e discrição possíveis e o mínimo de dano.

Um dos candidatos, também da Marinha, o que era uma lás­tima, tinha "pedido soda", como se diz. Estava para casar e sair da ativa; seu requerimento de passagem para a reserva já estava pronto e ele aspirava a ter uma casa no campo, "como na música da Elis Regina".

Para o almirante, ele fugira ignominiosamente. Seus dias e sua carreira na Marinha estavam contados, mesmo que não entrasse com o pedido de reserva. "Resta-me o último. O décimo primeiro deu azar. Cruz, credo!", pensou então o almirante.

No caso de Antônio, a sensação do almirante era inversa: "Este cara é frio demais, calculista demais para o meu gosto; mas, pro­vavelmente, é também o mais apto a participar da missão e, quem sabe?, ser seu executor ou, se houver mais participantes, seu líder".

Resolveu ir em frente. Disse calmamente que o coronel teria o direito de, naquele ponto, declinar de ouvir mais, "e isso não representará nenhuma mancha na sua brilhante folha de ser­viço". Mas, acentuou, "se aceitar continuar esta conversa, o se­nhor não poderá recuar. Sei que o senhor é casado e tem dois filhos. Informei-me e soube que sua mulher é filha de militar. Em muitos anos de casamento, ela jamais impediu ou ques­tionou o fato de o senhor ter de executar as missões secretas que lhe foram atribuídas".

Fez-se uma pausa para reflexão e Fakhoury perguntou: "Quer pensar no assunto?"

Antônio não tinha por que pensar. Com pai e mãe mortos anos antes, só lhe restava o velho avô Schmidt, já meio caduco. O almi­rante se referira corretamente à atitude de Mercedes. A decisão nesse caso, Antônio sabia, seria dele mesmo. Mercedes ficaria preocupada com mais uma missão secreta de cujos detalhes nada saberia. Mas sem dúvida ia concordar com o que ele decidisse. E, como sempre, ele não tinha a menor vontade de recusar um desafio que antecipava um dos maiores, ou o maior, de sua vida.

Os anos passados nos Estados Unidos haviam desenvolvido nele o hábito de pensar com clareza. Teve vontade de dizer: "What the hell?", mas achou que o almirante não compreenderia. Falou simplesmente: "Se existe uma missão e se o senhor acha que eu sirvo para ela, não tenho nada a dizer ou ponderar. Muito menos recuar ou desistir. Eu não desisto nunca, se me permite falar assim, meu almirante".

Como estava nas páginas sobre o coronel, que Fakhoury co­nhecia de cor, Antônio, ainda cadete, tinha praticamente "forçado a porta" do comandante da Aman para obter a sua matrícula no Instituto Militar de Engenharia antes do prazo regulamentar, tornando-se por essa via um jovem engenheiro eletrônico — e danado de bom.

O almirante sorriu e mentiu: "Era isso mesmo o que eu espe­rava". Continuou: "O senhor vai ter um trabalho duro, intensivo, quase inumano. Quanto à missão, só lhe direi que é a continuação virtual daquela que o senhor realizou há uns dois anos. Esta nova fase envolve, como a anterior, a penetração em território de um país amigo e vizinho, em um trecho particular que o senhor co­nhece melhor do que a palma da sua mão".

"Bobagem", pensou Schmidt, "ninguém conhece a palma da sua mão, nem bem nem mal." Alguns anos antes, numa discussão sobre isso, tinha feito uma aposta com cinco colegas: imprimiu a palma da mão de cada um deles numa folha de papel em branco para depois ver quem descobria a sua. Ganhou a aposta: ninguém identificou a palma da própria mão. Mas, concluiu, a comparação vale como figura de retórica.

O almirante continuou: "Além disso, no território que lhe for destinado nesta missão o senhor deverá localizar-se perfeitamente de dia e de noite. De dia, sem pedir informações, exceto em casos de extrema necessidade. Nas noites sem lua, terá de guiar-se pelas estrelas e pelos acidentes geográficos. O senhor tem de saber tudo de cor, de trás para diante. Em toda a missão, não haverá notas ou instruções escritas. O senhor estará sozinho, sem equipe de apoio ou retaguarda, nem status, diplomático ou de qualquer natureza".

Antônio voltou a pensar: "Mais um filme de suspense que os meninos adorariam ver".

Um minuto de pausa e o almirante prosseguiu: "No que nos diz respeito, o senhor não existirá mais. Para todos os fins prá­ticos, terá tido um acidente no desempenho de funções militares e morrido. Vamos enterrá-lo com honras, dar seu nome a um laboratório do IME e nunca mais se ouvirá falar do senhor. Se voltar, não será reintegrado, mas cuidaremos de encontrar-lhe um emprego com salário muito superior ao que ganharia como general. O senhor nunca realizará seu sonho de ocupar a cadeira que um dia foi do seu pai na diretoria de Engenharia".

Olhou firme para Antônio, à procura de sinais de preocu­pação. Nenhum sinal.

Fakhoury retomou a fala objetiva: "Como sabe, a morte por acidente no exercício de função militar dá direito a promoção post-mortem, o que, entre outras coisas, elevará ao nível de ge­neral de brigada a pensão a que sua mulher teria direito, se fosse tudo verdade. Essa pensão será depositada em sua conta conjunta, no Banco do Brasil, enquanto ela viver. Seus filhos, obviamente, como descendentes de militares, terão prioridade na matrícula em qualquer colégio ou escola das Forças Armadas".

"Puxa vida, esse cara realmente sabe tudo de mim e de minha família", pensou Antônio. "Além do que, isso parece filme de ficção científica."

O almirante não disse, mas ficou patente para Schmidt que sua carreira militar terminava ali. Se não aceitasse a missão, jamais chegaria a general. Se falhasse na execução, provavelmente mor­reria na tentativa. E, se triunfasse, não teria sequer o consolo de ostentar as estrelas de general nos ombros. "Merda", lamentou-se. "Pra que fui me meter nessa?"

A voz do almirante penetrou afinal na bruma do seu pen­samento. Antônio ouviu apenas algumas palavras: "... desistir agora, nós compreenderemos, embora o senhor também deva compreender que teremos...". Não ouviu mais. Interrompeu o superior: "Desculpe, almirante, mas eu não desisto nunca".

Quis voltar à sua sala. Eram já 6 horas da tarde. "Hora em que milico vai para casa", pensou. "E agora, mais do que nunca, preciso sair e conversar com Mercedes, pois essa missão, que ainda não sei em que consiste, vai afetar profundamente nossa vida e nosso futuro como casal, e a vida e o futuro dos nossos filhos."

Nesse instante, o ajudante de ordens do Vicemfa entrou com a pasta do chefe, mais o quepe de Antônio, e convidou: "Vamos?"

A noite logo chegou ao Planalto Central. Na portaria do prédio do conjunto habitacional do Exército, em que morava com a fa­mília, Antônio encontrou um recado escrito: "O coronel Schmidt deve apresentar-se amanhã, às 8h30, na chefia do Emfa, em traje civil, mas sem bagagem. Às 8 horas, um carro oficial virá buscá-lo em sua porta".

Ele compreendeu tudo o que a mensagem significava e, men­talmente, disse adeus a Brasília. Preparou-se para a conversa com Mercedes, que imaginava dificílima.

Não foi fácil. Pela primeira vez desde o casamento, Mercedes discordou, chorou, disse que Antônio já havia desempenhado missões demais em sua vida militar e, pela primeira vez, brigou, "esperneou" contra a parte "tenebrosa", provavelmente "perigosa", senão "fatal", da nova missão. "A última da minha carreira", disse Antônio, mas Mercedes nem ouviu. Só perguntou: "E o que será de nós, sua família, sua mulher, seus filhos?".

Antônio explicou o lado financeiro da promoção post-mortem a general de brigada. A pensão que ela receberia enquanto vivesse, quer voltasse vivo ou não dessa última missão. "Não é nisso que estou pensando", disse Mercedes, "mas na nossa vida de família".

Ele continuou: "Aceitando ou não a missão, e já aceitei, a minha carreira no Exército terminou hoje. Jamais serei promovido a ge­neral como sempre sonhamos".

Para surpresa dele, esse argumento final foi o que convenceu Mercedes a dar seu assentimento. "Agora vamos ver como contar isso aos nossos filhos", disse ela. "Chamo João Lucas e Alexandre enquanto você prepara o conto."

Chegados os meninos, Antônio percebeu mais uma vez como era profundo o amor de uns pelos outros na família Schmidt de Oliveira. E sentiu uma forte dor de saudade no peito.

Disse-lhes: "Tenho de viajar ao exterior em missão do Exército. Vou manter contato quase diário, por telefone ou e-mail, com a mãe de vocês. Não sei quando volto. Mas espero e confio que vocês dois saberão manter o bom convívio que sempre tivemos. E que continuem a obedecer à sua mãe. Até a minha volta, sua mãe e vocês vão morar aqui. No meu regresso, peço reforma, para ter um emprego civil com remuneração bem acima do salário de coronel ou, mesmo, de general".

Voltando-se para Mercedes: "Pela nota que acabei de receber aqui, tenho uma reunião amanhã de manhã no gabinete do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. E, creio, sigo viagem para o meu destino amanhã mesmo. Portanto, vamos todos tomar banho, vestir roupa limpa e cair na farra. Quer dizer: vamos ao cinema e ao melhor restaurante de Brasília, para comemorar".

Comemoraram, sem saber bem o quê.

Na hora marcada, na manhã seguinte, vestido "à paisana", en­controu o carro. Dentro dele, um major da Força Aérea, econô­mico nas palavras: "Coronel, vamos conduzi-lo ao Emfa, onde o senhor tem uma longa reunião antes de embarcar na Base Aérea".

"Cadê o acidente?", perguntou Antônio aos seus botões; de­pois, deu-se conta: o assunto já estaria resolvido. No caminho para o Emfa viu um carro preto completamente destruído por bater numa árvore. Ambulância, polícia da Aeronáutica, fotó­grafos da Empresa Brasileira de Notícias, agência noticiosa do governo. Pensou com um pouco de amargura que no dia seguinte leria nos jornais o seu necrológio. Ou então, acrescentou com ironia, só uma notinha de ocorrência policial sem importância.

Sorriu, lembrou-se de seus tempos de bom aluno de latim: Sic transit gloria mundi. E, já que estava "com a mão na massa", re­cordou as vezes em que, coroinha, respondia mecanicamente nas missas de Finados: Requiescat in pace. "Amém", disse em voz alta. O major perguntou: "O que disse?". Antônio falou: "Nada, es­tava rezando pelo defunto". Mas o coronel Schmidt se enganara. Aquele acidente era legítimo. O "seu" viria depois, de forma ines­perada. E em lugar distante dali, sem testemunhas, sobre o mar, não sobre o planalto.

Contudo, os chefes do Emfa desistiriam da "morte" de An­tônio no curso de um "acidente de trabalho". O Chemfa achava Schmidt bom demais para "perdê-lo".

 

O carro levou Schmidt ao prédio da Esplanada dos Ministé­rios até o andar no qual se localizava o gabinete do general de exército Fernando Pais de Oliveira, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. O gabinete primava pela simplicidade e pela austeridade, como é próprio dos locais de trabalho de militares que prezam a sua condição e pensam honrá-la todos os dias: a mesa grande, em perfeita ordem; duas poltronas para eventuais interlocutores; nas paredes, retratos presidenciais, os símbolos da República e das três Forças Armadas. Uma mesa de reuniões, com oito cadeiras: uma na cabeceira principal, para ele próprio, Chemfa; na outra cabeceira, o lugar para o vice-chefe (Vicemfa); os seis lugares restantes destinados aos três subchefes do Emfa e ao oficial superior de cada Força, que compunham o staff do Emfa. Atrás da poltrona do Vicemfa estava um detalhado mapa do Brasil. Nas demais paredes, fotos dos antigos chefes do Emfa.

Como todos os seus antecessores, o general Oliveira conside­rava a sua organização a principal equipe de assessoramento do presidente da República em questões ligadas à defesa nacional e à coordenação das três Forças. Para eles, a hipótese de um Minis­tério da Defesa incorporando Marinha, Exército e Aeronáutica, sob chefia civil, era "idéia de jerico", tida por políticos "de esquerda" execrados pelos militares e por seus "asseclas" — mais liberais, mais interessados no cargo ministerial e menos na defesa nacional.

Tão logo Antônio entrou no gabinete, o Chemfa lhe disse: "Co­ronel, você é o único engenheiro militar brasileiro que conheço exímio em eletrônica e energia nuclear, duas ciências da maior importância para a missão secreta e decisiva que lhe vamos con­fiar". Antônio pensou: "E daí? Como isso afetará a vida de Mercedes, João Lucas e Alexandre? Eles já estão prevenidos, mas vou correr risco de morte nessa missão?"

O general prosseguiu: "Nós sabemos que certos setores do go­verno argentino têm o que se chama 'domínio completo do ciclo nuclear'. Isso não quer dizer necessariamente que seus engenheiros e professores já sejam capazes — agora ou no curto prazo — de fazer uma bomba atômica. Mas com certeza eles estão a caminho. Além disso, não é certo que os militares argentinos estejam 100% de acordo com a adesão do seu governo aos tratados de não proli­feração de armas atômicas. Ou, mesmo, à política de redução dos estoques disponíveis nos países que possuem a bomba".

Antônio pensou, então: "Para que diabos os argentinos pre­cisam de uma bomba atômica? A questão das Malvinas é página virada. Eles não têm inimigos à vista. Aliás, os militares já foram afastados dos centros de poder em Buenos Aires e agora, embora relutantes, subordinam-se aos civis. Eles depuseram uma presidente mulher — Isabelita Perón —, o que era caso de humilhação para militares naturalmente machistas. Mas outra mulher acaba de ser eleita e, provavelmente, será reeleita. E eu com isso?".

A voz do general interrompeu seu pensamento: "Nós que­remos, ou melhor, precisamos saber tudo sobre a capacidade nu­clear dos argentinos, civil e militar, e como isso nos afetará. Saber já, para projetar o futuro, e não depois, quando for tarde". Passado um minuto, o Chemfa acrescentou: "A nossa segurança nacional está em jogo".

Outro minuto de silêncio. O general retomou o fio da meada: "Nós conhecemos todas as teorias ligadas ao enriquecimento de urânio e os argentinos não terão descoberto coisa nova nessa matéria. O que precisamos apurar, sim, é até que ponto eles já chegaram ao processo de enriquecimento; e, em conseqüência, a que uso se destinará o urânio que têm. Como você deve saber, os suprimentos legais de urânio, em âmbito mundial, são feitos em clima de segredo. De onde vem o urânio deles? Importam ou produzem legalmente?"

Antônio estava perplexo: "Bomba atômica ou uso pacífico da energia nuclear para fins medicinais e/ou para a geração de eletricidade?". E continuou: "A Argentina é uma grande planície, sem rios caudalosos e volumosas cachoeiras aptas a fazer usinas hidrelétricas de grande potência. Depende de fontes não reno­váveis — como o petróleo, cada dia mais caro — ou, alternativa­mente, de energia nuclear. E eu com isso?"

Então, o general-chefe do Emfa disse qual era a missão: "Pre­cisamos que o coronel viaje como turista à Argentina. Aparente­mente, em férias de professor aposentado e viúvo — sem filhos; mas, na verdade, com o fim de espionar e avaliar o que eles — civis e/ou militares argentinos — estão fazendo em matéria nuclear".

Antônio pensou: "Já estive por lá e identifiquei a sede dos tra­balhos referentes à energia nuclear. Mas não pude sequer chegar perto. Que é que vou fazer agora?".

O Chemfa não parava: "Na Argentina, agora, ao contrário da vez anterior, você deve misturar-se com as pessoas, conversar, 'bater papo', aparentemente sem objetivo e sem dar pista dos fins de sua viagem. Mas, na medida do possível, tem de fazer com que as pessoas digam o que queremos ouvir. Na aparência, para todos com quem falar, você está em viagem ponderando sobre o seu futuro, na tranqüilidade do descanso".

"Eu gostaria que você partisse já, mas antes teremos duas reu­niões aqui, no meu gabinete. Imediatamente depois você viaja pela FAB ao aeroporto de Cumbica, tomando um avião da linha regular das Aerolineas Argentinas para Buenos Aires. Ficará uns três ou quatro dias na cidade, vendo as coisas, passeando, comendo churrasco e bebendo o vinho argentino, como todo turista brasileiro que se preza. Daí seguirá para o seu destino, que vai constar das instruções dadas a você no momento do embarque."

"Marcada para as 9 horas", explicou o Chemfa, "a reunião tem, oficialmente, três convidados: você, um embaixador de carreira do Itamaraty, para falar de problemas políticos do Brasil com a Argentina, e um técnico da Comissão Nacional de Energia Nu­clear (CNEN), para falar dos objetivos, do alcance e da viabilidade dos acordos dos dois países. Os acordos se referem ao desenvolvimento, em conjunto, de pesquisas e enriquecimento de urânio para a geração de energia elétrica e outros fins pacíficos."

O general acrescentou: "Você viaja para lá imediatamente de­pois desta reunião. Temos tudo preparado: você se chama An­tônio Gomes; seu passaporte com esse nome registra viagens de estudo e doutorado à França, Estados Unidos e outros países; sua profissão é de professor de eletrônica e informática da obscura Universidade do Serro, no interior de Minas — uma das dezenas que o governo anterior criou no papel. Nessa função você se apo­sentou depois do fechamento daquela escola".

Após pequena pausa, o Chemfa continuou: "Toda a sua vida profissional sob o nome de Antônio Gomes está documentada em publicações oficiais e em registros no Ministério da Educação, nos Conselhos Nacional e Regional de Engenharia e Arquitetura, e em todos os demais órgãos de direito capazes de comprovar a sua identidade e profissão".

Outra pausa, para prosseguir: "Sua mala está pronta, com roupa usada, mas em bom estado, e tudo o que você precisa para higiene pessoal, banho e barba. Você vai levar um smartphone e um iPad, que usará para se divertir e se comunicar conosco.

As mensagens enviadas ou recebidas pelo tablet serão apagadas automaticamente, minutos depois, sem deixar vestígio. Assim, se você perdê-lo ou se ele for roubado, não haverá indício do que tenha feito, dito, lido ou escrito. Nem das instruções que lhe pas­sarmos. Como pode imaginar, não queremos um episódio do tipo Wikileaks a respeito da sua missão.

"Além do iPad, você leva um laptop moderníssimo e com acesso a dados na 'nuvem'. Ele vai ajudar você a fingir que se de­dica a assuntos próprios com fins científicos, pacíficos."

Antônio pensou: "Se a memória é volátil, é porque assim a pro­gramaram; se não querem vazamentos do tipo Wikileaks, é porque o assunto é mesmo sério. Deixem comigo, que cuido desse assunto. Não vou usar um iPad sem memória. Usarei a do laptop".

Ele esperava que seu rosto não mostrasse a estupefação que lhe ia na alma e no coração. Antecipara a Mercedes a natureza secre­tíssima da missão, mas não o seu objetivo concreto, que ignorava até aquele momento. Quanto mistério, e para quê? Desde 1980, os dois países tinham tratados que previam a cooperação aberta de seus governos, e nunca se arguira a hipótese de desenvolvi­mento de armas nucleares por nenhuma das partes.

É verdade que, na sua primeira missão confidencial, em países da América do Sul, ele havia identificado instalações suposta­mente "civis", mas secretas, de desenvolvimento de tecnologia nuclear, justamente na Argentina, à margem de um dos lagos, na cidade de Bariloche.

Antônio sabia o suficiente sobre energia nuclear para avaliar os problemas e dificuldades que se seguiriam, desde o "domínio completo do ciclo nuclear" até a confecção de uma bomba atô­mica. "E com que finalidade? Será que os argentinos enlouque­ceram e pretendem recriar o vice-reinado do rio da Prata com a ameaça nuclear?".

Pontualmente, às 9 horas, chegaram os membros do conselho do Emfa e os dois convidados não militares. O chefe do Emfa apresentou-lhes o Vicemfa, almirante de esquadra Eduardo Jaime Fakhoury, e os três subchefes do Estado-Maior das Forças Armadas: vice-almirante Francisco das Chagas Rodrigues, pela Marinha; general de divisão Ferdinando Contini, pelo Exército; e major-brigadeiro Jerônimo Florença, pela Aeronáutica.

Sentados todos à mesa de reuniões, o Chemfa abriu a sessão: "Apresento-lhes os nossos três convidados: o embaixador José Carlos da Silva Lopes; o cientista, especialista em energia nu­clear, professor doutor Armando de Oliveira Dias, da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN); e o professor aposentado Antônio Gomes, que lecionou por uns trinta anos em diversas universidades brasileiras e, ultimamente, na Universidade do Serro, em Minas Gerais".

"Antônio Gomes é especialista em eletrônica e informática, incumbido pelo governo brasileiro de trabalhos conjuntos com seus colegas argentinos. Por isso mesmo, ele tomará notas e, como o Vicemfa e os subchefes do Emfa, fará perguntas aos ou­tros dois ilustres convidados. Espero que, não obstante o caráter sério desta reunião e da razão que a motiva, consigamos manter o senso de humor e a informalidade."

O general pensou, mas não disse: "Embora isso seja muito incomum em reuniões de militares e mais ainda em face dos as­suntos de que nos ocuparemos". Isso posto, o general dirigiu-se ao embaixador e perguntou: "Quais as razões, em sua opinião e na do Itamaraty, para o espírito de animosidade que, apesar de todas as palavras, juras e formalidades em contrário, sempre existiu e continua a existir entre o Brasil e a Argentina?".

José Carlos da Silva Lopes respondeu: "Muito obrigado por seu convite; e, para manter a informalidade que o senhor ge­neral anunciou, devo dizer que sou mais conhecido, entre os meus amigos e colegas de carreira, como Juca da Silva, apelido que pegou. Ao mesmo tempo, sou lembrado como alguém que inicia do marco zero qualquer história que vá contar. Ainda no meu tempo, sobrevivia em nosso grupo a tradição de começar qualquer história a partir de um marco zero. É o que vou fazer. Para responder a sua pergunta, tenho de começar pela infância do problema".

E prosseguiu: "A história das rivalidades começa entre o fim do século XV e o começo do século XVI, a época das grandes navegações. Então, Portugal e os reinos de Castela e Aragão, que viriam a formar a Espanha, disputavam a supremacia dos mares e oceanos e o domínio das 'terras que vierem a ser descobertas', conforme palavras da Igreja".

"Lembro que, na época, o papado exercia uma espécie de su- seranato sobre os reis europeus, em particular os 'reis católicos' — português e espanhol. Assim, nos termos de uma bula do papa Sisto IV, deveria traçar-se um paralelo, ao longo das Ilhas Canárias, que eram possessões espanholas, com uma divisão caprichosa: terras novas, descobertas ao norte do paralelo, seriam da Espanha; as situadas ao sul da linha pertenceriam à Coroa portuguesa."

Após um momento de pausa — provavelmente para dar ên­fase ao que iria dizer, pensou Antônio —, o embaixador retomou a palavra: "É bem verdade que, ao lado da preeminência do pa­pado sobre os monarcas europeus, vários destes — e, sobretudo, seus Tesouros nacionais, bem assim certos interesses e 'potências' privadas — exerciam enorme poder político, acima dos temas e questões religiosas, sobre quem seria ou não seria eleito papa. E, em menor medida, sobre as policies que o novo pontífice adotaria ou rejeitaria".

Antônio nada disse, embora pensasse: "E daí? Do ponto de vista histórico, estamos falando de Portugal e Espanha, e questões in­ternas da Igreja do tempo da Idade Média; e, do ponto de vista geográfico, do Hemisfério Norte. Brasil e Argentina ficam no Sul".

Mas, impávido, Juca da Silva prosseguiu: "Contudo, o centro de interesse das grandes navegações era o Sul e o Leste: para ex­plorar o caminho das Índias e das especiarias que lá se produ­ziam. E, mais ambiciosamente, dar a volta ao mundo, viajando para o leste, além da índia, ou via oeste, na direção do outro lado' e dos outros oceanos', em que, acreditavam portugueses e espa­nhóis, estariam povos desconhecidos, cuja provável existência era aceita por eles. Esses povos hoje formam o Japão e a China, entre mil outros".

Juca da Silva parou uns segundos, olhou em torno da mesa e continuou: "A insatisfação de portugueses e espanhóis com a Bula de Sisto IV levou — para encurtar uma longa história — ao tratado assinado em 1494 pelos dois reinos, na cidade espanhola de Tordesilhas. O tratado cria um meridiano virtual, situado a 370 léguas (cerca de 2.000 quilômetros) a oeste do arquipélago (português) de Cabo Verde. As novas terras que viessem a ser descobertas a leste dessa linha pertenceriam a Portugal. As novas terras a oeste da linha, à Espanha".

A linha virtual ficou conhecida como o "meridiano de Tor­desilhas". "Naturalmente", continuou Juca da Silva, "em face dos precários instrumentos disponíveis na época, para calcular dis­tâncias, situar os navegantes no mar e criar mapas confiáveis, os geógrafos de então traçaram várias linhas nas cartas geográficas existentes para representar o 'meridiano de Tordesilhas'. A mais geralmente aceita era a que partia da área do que é hoje Belém do Pará e chegava ao sul de Santa Catarina ou ao extremo norte do Rio Grande do Sul."

"Mas a questão não terminava por aí", prosseguiu impávido Juca da Silva. "Diferentes geógrafos marcaram outras linhas 'de Tordesilhas': mais a leste ou mais a oeste daquela. Natu­ralmente, as várias linhas, traçadas por geógrafos de renome, alimentavam a discussão sobre o que pertenceria realmente à Coroa portuguesa e o que caberia à espanhola. Estava plantada a semente do pomo da discórdia. Com o passar dos anos e sé­culos, o desacordo dos dois reinos desenvolveu-se com maior ou menor agressividade de parte a parte."

Depois de obter uma grande régua, o embaixador mostrou no mapa, pendurado atrás da poltrona do Vicemfa, onde se situavam, grosso modo, a linha de Tordesilhas e, também, as linhas das demais versões do meridiano que citara pouco antes — as quais eram, ob­viamente, apoiadas ou rejeitadas de maneira mais ou menos in­formal por um ou outro dos dois reinos, conforme beneficiassem ou contrariassem as respectivas ambições coloniais.

Juca da Silva continuou: "Aos poucos, os portugueses aqui chegados esqueceram o tratado das duas Coroas ibéricas e empenharam-se na exploração da cultura da cana de açúcar e dos recursos naturais abundantes, em grande escala, na colônia que ganhou o nome de uma das riquezas naturais da região, o pau-brasil".

"Como os colonos lusitanos eram poucos, juntaram-se aos in­dígenas, mão de obra relativamente abundante e gratuita, e suas mulheres jovens. Importaram também centenas de milhares de africanos: homens para trabalhar como escravos e mulheres para ficar, mais ou menos abertamente, disponíveis.

"Foi-se formando aqui uma sociedade mestiça: descendentes de brancos entre si ao lado de mestiços: mulatos (brancos com negras), mamelucos (brancos com índias) e cafuzos (negros com índias). E vice-versa. Incidentemente, a miscigenação dos brasileiros criou certo sentimento de superioridade racial' e, em conseqüência, também de primazia intelectual' dos portenos sobre os brasilenos — que não desapareceu de todo até o presente."

Juca da Silva continuou a falar das diversificadas correntes mi­gratórias que ajudaram a povoar a terra brasileira e a explorar e desenvolver seus recursos: portugueses por toda parte; italianos, principalmente no que são hoje os Estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul; alemães em Santa Catarina, onde, até a Segunda Guerra Mundial, formavam uma comunidade mais ou menos à parte; japoneses para a agricultura paulista; sírios e libaneses (re­feridos, coletivamente, como "turcos", em face do predomínio do Império Otomano sobre os seus países de origem), que desenvol­veram o comércio em todos os seus níveis; judeus perseguidos na Europa e em diversas partes. E numerosos outros, vindos de todo o mundo.

"Diferentemente do que ocorria em outras terras coloniais, a regra não escrita no Brasil era que todos se misturariam entre si e com os indígenas e negros, fato e circunstância vigorantes até os dias de hoje. Os quais, por fim, produziram a sociedade brasileira como a vemos e estimamos — relativamente sem preconceitos de origem e da etnia dos indivíduos.

"Do fluxo migratório e da miscigenação fica claro", disse Juca, "que o Brasil reúne na atualidade o maior conjunto de descen­dentes de espanhóis, portugueses e japoneses vivendo fora dos respectivos países de origem. Sem falar nos libaneses, os quais, com seus descendentes brasileiros, formam uma população maior que a do próprio Líbano."

A palestra parecia ir bem, do ponto de vista da história e da diplomacia. Mas qualquer observador medianamente atento per­ceberia certo grau de insatisfação dos ouvintes.

Antônio pediu a clássica licença para interromper. E disse: "Poderia o palestrante explicar a expansão territorial da colônia portuguesa e o fracionamento, em diversos países indepen­dentes, do que seriam os dois vice-reinados espanhóis: o do rio da Prata — compreendendo o que é hoje a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e a Bolívia — e o do Peru, com as colônias do lado do Oceano Pacífico: Chile, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela?"

O embaixador voltou a olhar o mapa do Brasil e, apontando um a um os locais de que falava, disse: "Em primeiro lugar, vale a pena lembrar que espanhóis e seus descendentes argentinos não eram favoráveis à migração de nacionais de terras não europeias, principalmente de africanos. E também que, do ponto de vista geográfico, se preocupavam principalmente com a bacia hidro­gráfica dos rios Paraná e Paraguai e seus numerosos afluentes, a qual se estendia por mais de um milhão de quilômetros qua­drados, até boa parte do Brasil, as minas de prata da Bolívia e as áreas mais férteis do vice-reinado".

Uma pausa e a continuação: "Ao mesmo tempo, as autori­dades locais não davam muita atenção às terras da margem es­querda do rio Uruguai. A planície que as compunha era propícia à criação de gado e, por esse e outros motivos, bastante cobiçada pelo Império brasileiro. Por breve período de tempo, como se re­corda, o nosso Império chegou a incorporá-las como 'Província Cisplatina' (isto é, 'do lado de cá do rio da Prata'), mas foi obri­gado a sair de lá sob pressão da Argentina. Criou-se ali a atual República do Uruguai".

Após um momento de silêncio, Juca da Silva prosseguiu: "No plano mais amplo, do mesmo modo que os argentinos, os brasi­leiros não se deixaram cercear pelos tratados assinados por seus colonizadores. Ignoraram as limitações impostas pela pressão da Igreja e foram entrando pelo continente — literalmente, no que a história denomina Entradas e Bandeiras".

"Partiram rumo oeste, pelo rio Tietê — onde hoje fica a cidade de São Paulo —, e pelos rios Grande e Paranaíba, que delimitam o chamado Triângulo Mineiro, todos afluentes e sub-afluentes da bacia do Paraná, e só foram detidos pelas barreiras representadas pelas imensas quedas de água existentes no que hoje denomi­namos 'tríplice fronteira. Voltaram-se para o norte, exploraram a bacia do rio Paraguai e incorporaram a área que compreende todo o nosso Centro-Oeste: Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, mais o Distrito Federal.

"Os argentinos fizeram o caminho inverso: viajaram rumo norte e leste, rio acima, pelo Paraná e seus afluentes, até a barreira das mesmas cachoeiras. No que é hoje a cidade de Assunção, capital do Paraguai, tomaram o rio Paraguai, onde os esperava outra barreira, representada pelo pantanal mato-grossense."

Retomando a linha de pensamento, o embaixador continua: "De repente, navegando pela segunda maior bacia fluvial da Amé­rica do Sul, brasileiros e argentinos encontram-se frente a frente em mais de uma localidade. Tudo sugeria possíveis confrontos guerreiros, sangrentos. Contudo, ambos os lados possuíam terras mais que suficientes e optaram informalmente pelo convívio quase pacífico, que dura desde então".

Juca da Silva apontou, no mapa, para a Amazônia. Sorriu e disse: "Aqui, os hispânicos jamais chegaram. Teriam de vir do Pa­cífico, enfrentando primeiro os Andes; depois, terras inóspitas, povoadas por civilizações indígenas, possuidoras de cultura mais desenvolvida que a dos nossos índios, até chegarem às nascentes do que seria a bacia do Amazonas. Assim, o Brasil incorporou ao seu território milhões de quilômetros quadrados de terras que na verdade, conforme o Tratado de Tordesilhas, pertenceriam legi­timamente à Espanha. E, em conseqüência, aos diferentes países de língua espanhola do nosso subcontinente".

"Nesse processo, até os primeiros anos do século XX, houve numerosos incidentes e questões territoriais ao longo do que vi­riam a ser as fronteiras do Brasil com os países que hoje formam a banda hispânica da América do Sul. Ao lado de milhares de es­caramuças locais, ocorreram poucas guerras de verdade, mesmo porque as áreas de fronteira ficavam bem distantes dos centros de poder de todas as colônias e países e eram de difícil acesso para as forças militares dos possíveis interessados.

"Há várias exceções. Do nosso lado ocorreu uma guerra 'in­formal', com a ocupação do Acre pelos brasileiros, ávidos de ex­plorar a borracha dos seringais da região. Não foi uma guerra 'do Brasil', mas dos brasileiros por lá residentes.

"Com a rendição dos militares do Exército boliviano que pro­curavam manter a sua soberania sobre o sul da planície amazô­nica, os brasileiros vitoriosos criaram o 'Estado Independente do Acre', que durou até a intervenção da diplomacia brasileira com o barão do Rio Branco à frente. É fato histórico que essa e todas as nossas demais disputas fronteiriças foram resolvidas, em caráter definitivo, mediante entendimentos diplomáticos e tratados bila­terais negociados pelo Itamaraty."

Após nova pausa e novo copo de água, o embaixador prosse­guiu: "A guerra mais séria envolvendo o Brasil é a chamada 'Guerra do Paraguai', que durou de 1864 a 1870. Como se recorda, o di­tador paraguaio Francisco Solano López, seguindo o pensamento dos outros ditadores que o haviam precedido, queria obter de qualquer maneira uma 'saída para o mar', desse modo permitindo a exportação de produtos paraguaios sem ter de sujeitar-se ao trân­sito pelos rios e territórios brasileiros, argentinos ou uruguaios. O melhor caminho lhe pareceu chegar ao Atlântico pelo domínio de parte do Império brasileiro. Como primeiro passo para esse fim, invadiu a então província de Mato Grosso e empenhou as tropas brasileiras na mais longa das guerras de que participaram. Seis anos depois, derrotadas, as tropas paraguaias retiraram-se para suas terras e estabeleceram-se linhas fronteiriças definitivas".

"De qualquer modo, faltava aos vice-reinos hispânicos da América do Sul um forte sentimento de unidade interna. O clima seco do sul do continente, os ventos frios que vinham ora do pólo sul, ora da cordilheira dos Andes, e o baixo índice de fertilidade da área esfriavam consideravelmente o interesse dos coloniza­dores pelo imenso território que é hoje a Patagônia. Seus habi­tantes, desigualmente espalhados pelo espaço patagônico, eram os nativos da região. A parte central e mais desenvolvida do vice-reinado do Rio da Prata era designada como 'Províncias Unidas dei Rio de La Plata', nome depois substituído pelo de República Argentina, ainda em vigor. Contudo, o espírito federativo não tem raízes muito fortes nesses países."

Nova consulta ao mapa, mais indicações com a ponta da régua, e Juca prossegue: "A unidade nacional foi obtida no Brasil, inclusive pela nomeação de governadores-gerais e vice-reis para toda a área.

O que permitiu — enquanto do outro lado se afirmavam as divi­sões — a consolidação territorial da colônia, do Reino Unido de Dom João VI, com Portugal e Algarves, do Império e, por fim, da República. Esse processo facilitou a expulsão de invasores franceses, holandeses e vindos de mais países europeus, que tentaram ocupar o Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão e outras províncias".

Após um momento de silêncio e diante do aparente interesse dos militares pela história, que eles não podiam ignorar, Juca da Silva achou melhor continuar no mesmo tema.

"Assim, enquanto os portugueses expandiam e consolidavam o seu domínio sobre a região brasileira, as antigas províncias his­pânicas entregavam-se a guerras e disputas territoriais entre si. Ao longo dos anos, a Bolívia perdeu partes de seu território para todos os vizinhos: Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e Peru. Um dos fatos notáveis da época foi a 'Guerra do Pacífico', de 1879 a 1883, com o Chile, de um lado, e a Bolívia e o Peru, do outro. Tropas chilenas invadiram os dois países, chegaram a ocupar a ci­dade de Lima e, por fim, anexaram a província peruana de Tara- pacá e a boliviana de Antofagasta, na costa do Pacífico. Privaram assim a Bolívia de saída própria, soberana, para o Pacífico. Saída que ela reivindica até hoje, ante a indiferença dos chilenos."

O embaixador Juca da Silva assumiu a postura formal carac­terística dos diplomatas: "Daí, o processo subsequente à gestão colonial foi coroado em 1814 e 1822, pela independência, respecti­vamente, da Argentina e do Brasil. Surgiu então, e desenvolveu-se, a cooperação das duas nações em vários setores das atividades so­cial, cultural e econômica, nos quais, de fato, as estruturas dos dois povos e países se complementam".

Nenhum dos presentes pensou em aceitar "cooperação e es­truturas nacionais que se complementam".

A palestra prosseguia: "Da cooperação do Brasil com os países hispânicos surgiram obras, do lado brasileiro — por exemplo, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, parte da indenização à Bo­lívia pela incorporação do Acre ao Brasil. Essa ferrovia teve o fim primordial de permitir a exportação de produtos bolivianos, par­ticularmente a borracha e outros de origem silvestre, oriundos da região nordeste da Bolívia, transportados pelos afluentes e sub-afluentes do rio Amazonas para os mercados do mundo".

"Como se recorda", continuou Juca da Silva, "a exportação boliviana era dificultada, senão inviabilizada, pelas várias quedas de água existentes ao longo dos rios Madeira e Mamoré, no atual Estado de Rondônia — caminho natural da produção dessas regiões da Bolívia para o Atlântico e, por essa via, para os mercados mundiais."

A palestra não terminava. Mas o embaixador evitava estender-se nas razões, antigas e atuais, da rivalidade entre o Brasil e a Ar­gentina. O Itamaratoca — como são chamados, derrisoriamente, os nossos diplomatas em referência ao palácio do Itamaraty, an­tiga sede do Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro

preferia falar sobre temas mais amplos, como: "Outras formas de cooperação bilateral são as estradas e pontes internacionais, ligando as margens de rios fronteiriços, como na tríplice fronteira e em Uruguaiana, e o surgimento do Mercosul, destinado a com­plementar e reforçar as economias do Brasil e de três dos países do antigo vice-reinado da Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai".

Com a prudência habitual, os generais das três Forças pre­sentes à reunião queriam saber mais. Sobretudo, as razões his­tóricas e outras que formavam o substrato das tensões presentes - jamais admitidas formalmente — no relacionamento de Brasil e Argentina, por baixo e ao lado da troca de amabilidades e votos de perpétua amizade e colaboração dos governos e, com maior ou menor sinceridade, dos povos dos dois países.

Perguntas mais ou menos vagas e respostas formais, abstratas, mal disfarçavam o fato de a diplomacia brasileira recusar-se a re­conhecer — para consumo fora de seus quadros — o que os bra­sileiros comuns estavam fartos de ver por todo lado: a onipresente e multifacetada rivalidade dos dois países e seus nacionais. Não só nas disputas esportivas de atletas e equipes dos dois países, mas também, e cada vez com mais força, nas relações econômicas: falta de confiança recíproca, ciúme, baixo teor de franqueza dos dois países e da sua gente — mais, é claro, da parte dos governos que das pessoas.

"Esses são os fatos que, aos nossos olhos", pensava um dos sub­chefes do Emfa, "se comprovam no dia a dia. Ora por meio de impostos e entraves crescentes às exportações brasileiras para o país vizinho, ora na resistência de seguidos governos argentinos à presença de produtos, empresas e investimentos brasileiros em seu território. Ou seja, o que eles denominam a crescente alienação e predomínio de estrangeiros' da economia argentina".

Mostrando o seu descontentamento com o formalismo tí­pico dos diplomatas, o Vicemfa almirante Fakhoury colocou tal sentimento em termos formais. Pediu aparte e falou: "Pelo jeito, estamos fazendo o que os povos de língua inglesa denominam 'beating around the bush', isto é, dando voltas em torno do nada. A gente sabe, pelos jornais e pelo noticiário do dia a dia, que o governo argentino tem resistido a investimentos de empresas brasileiras em seu território e à aquisição de negócios, empresas e interesses argentinos por brasileiros. Tudo isso além de agravar impostos sobre importações do Brasil — ao contrário do que prescreve a base do espírito construtor dos mercados comuns. Então, pergunto: a cooperação dos dois países — no campo nu­clear, sim, mas em tudo o mais — é coisa viável ou mais conversa para inglês ver'? Vamos ter cooperação ou não vamos?".

O embaixador Juca da Silva pigarreou, tossiu, olhou para os lados e por fim falou: "Somos aqui, todos, funcionários civis ou militares do mesmo governo. Por isso, não podemos ter segredos uns com os outros. Mas também não posso falar oficialmente' o que vou dizer agora. Se me permitirem, falarei off the record. Nós esperamos uma mudança radical na atitude do governo argen­tino em relação ao Brasil. Mas não acreditamos muito que tal fato aconteça nos próximos anos".

"Por isso mesmo, o nosso governo vem tentando estabelecer ligações estáveis e mais criativas com outros países, de outras regiões. Os europeus, os africanos, os do Oriente — árabes, in­dianos, chineses, japoneses, entre outros. Pensamos, embora isso não se diga abertamente, que o destino do Brasil é a cooperação entre níveis de interesses mais altos e menos sujeitos ao que cha­mamos de 'retranca', isto é, o desapreço pela colaboração efetiva e criativa de vizinhos que têm muito a fazer cooperativamente, mas cuja relação é prejudicada por anos e séculos de rivalidades tolas."

Para todos os fins práticos — pensava o general Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emfa —, a reunião com o representante da diplomacia brasileira tinha chegado ao seu término, sem contri­buir em nada para o tema principal do encontro: a colaboração mútua dos dois países no desenvolvimento da tecnologia nuclear e a utilização desta para fins pacíficos.

Do exposto ficava clara a inexistência da possibilidade de coo­peração sincera das partes no sentido que motivara o encontro. "Se o Brasil quiser utilizar a tecnologia nuclear para fins pací­ficos", continuou a pensar o general, "o bom caminho será o acordo Brasil-Alemanha dos tempos do presidente-general Ernesto Geisel para a construção das usinas de Angra dos Reis, duas das quais em operação há décadas e a terceira em construção. Ali temos a tecnologia nuclear básica. Sobre ela, podemos construir e desenvolver usos e produtos de forma autônoma, sem nos preo­cupar com os vizinhos".

O Chemfa concluiu seu pensamento e tomou a atitude típica dos dirigentes de reunião que chegam a um impasse. Disse: "Muito obrigado ao embaixador José Carlos da Silva Lopes por sua longa e proveitosa exposição. Vamos interromper para um cafezinho".

 

A segunda parte da reunião começou alguns minutos de­pois do cafezinho. O Chemfa disse as frases protocolares, apresentando o professor doutor Armando de Oliveira Dias. E passou-lhe a palavra. O professor deu um sorriso meio tímido e falou: "Bem. Muito obrigado pelo convite do general-chefe do Emfa para falar nesta tão ilustre reunião. Infelizmente, não tenho coisas espirituosas, ou mesmo interessantes, como o nosso em­baixador Juca da Silva — se me permite chamá-lo assim".

Todos os presentes sabiam dos acordos assinados pelos dois países com esse fim em 1980 e nas décadas seguintes, nenhum dos quais tinha ido muito além do papel. O mais recente, datado de 2011, previa a construção pela Argentina de dois reatores des­tinados à "pesquisa nuclear conjunta": um para uso da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) brasileira e o outro para uso da sua congênere argentina. Ficara claro, porém, no docu­mento bilateral, que os reatores em causa não serviriam para "en­riquecimento" do urânio. Mas por algum motivo o general espe­rava que o homem da CNEN se estendesse na área de revelações, de preferência secretas — o que, ao menos aparentemente, não iria acontecer.

Oliveira Dias olhou ao redor da mesa para todos os presentes e retomou a palestra. "Como os senhores sabem, tudo o que se conhece sobre energia nuclear, com exceção do que se tornou pú­blico e notório e se encontra em qualquer enciclopédia ou revista, das questões mais técnicas às mais gerais, é secreto. Eu não po­deria sequer mencionar e menos ainda comentar o tema, mesmo que conhecesse os senhores. Ninguém melhor que os senhores, portanto, para entender que eu me limite a dois pontos: uma sim­ples recapitulação do que todos sabem e, o que considero mais importante, os aspectos políticos daquilo a que gostamos de nos referir como a questão nuclear?'

Fez pequena pausa e retomou a palavra: "Vou fazer, também, fora da pauta, uma rápida digressão sobre um campo diferente do que nos reúne aqui. Todos tendemos a pensar no urânio, pri­meiramente, em termos da bomba — isto é, como fator de des­truição da vida; em seguida, como gerador de energia elétrica, ou seja, em sua função na economia. Mas o caminho no qual nos encontramos agora tem mais a ver com a preservação da vida. Falo da interatividade da energia nuclear — em diferentes graus de enriquecimento do urânio — com a eletrônica e a medicina preventiva e curativa. Nessa fase, farei um vol d'oiseau sobre o campo das esperanças sonhadas pelos estudiosos".

A posição assumida pelo professor Oliveira Dias não pare­cia apta a convencer ninguém; em particular, o chefe do Emfa. O motivo da reunião, rememorava o Chemfa, era a cooperação argentino-brasileira no desenvolvimento da energia nuclear. Cla­ramente, o cientista da CNEN "passaria voando" sobre ele.

Mas o Chemfa disse apenas: "Prossiga, professor, nós com­preendemos".

Oliveira Dias havia planejado o que dizer ou calar, nos estritos termos das instruções que recebera dos dirigentes da CNEN — nada de "secreto" ou mesmo de "sensível", embora tivesse de falar perante chefes militares brasileiros do mais alto nível. Retomou a palavra e procurou encaminhar o assunto de modo inteligível para quem pensava saber tudo, ou quase tudo, o que se poderia saber, fora dos quadros científicos, sobre os aspectos físicos e pro­cessuais do uso militar ou pacífico da energia nuclear.

Para começar do princípio, disse o professor: "Como os se­nhores sabem, o minério de urânio foi descoberto originalmente em 1781, por um cientista alemão de nome Martin Kalproth. De­pois, do fim do século XIX ao início do século XX, vários cientis­tas — entre os quais o casal Pierre e Marie Curie — dedicaram-se ao estudo da radioatividade".

E continuou: "Atualmente, pode-se encontrar urânio em esta­do natural em diversas partes do mundo. As principais jazidas do minério estão localizadas no Congo, na África do Sul, nos Estados Unidos, no Canadá, na Rússia, na Austrália, na França e em outras regiões do mundo, incluindo o Brasil e países da América Latina".

"Entretanto, todas as fontes de urânio natural, grandes ou pe­quenas, são conservadas — sobretudo exploradas e seu produto transportado — em sigilo absoluto. O minério extraído dessas jazidas contém mais de 99% de urânio 238 (geralmente referi­do como U238), material não físsil — isto é, não utilizável para produzir energia, ou a bomba —, e menos de 1% de urânio 235 (U235), o material físsil, que nos interessa no momento."

Apesar da obviedade do início da exposição, o professor tinha a atenção fixa das demais pessoas sentadas à mesa. Após um gole de água, Dias prosseguiu confiante: "É também do seu conheci­mento que, para ser usado como fonte de energia, o U235 precisa ser enriquecido', isto é, separado do U238. O enriquecimento' é feito pela centrifugação, em máquinas de concepção simples, mas de operação complexa e perigosa. Apesar disso, o processo se de­senvolve em passos mínimos e demanda tempo longo — não só dias ou semanas, mas meses e anos — em instalações secretas, situadas de preferência em locais fora de centros populacionais e de vias de transporte e comunicação importantes".

Nova parada. Novo olhar pelo entorno. Sem perder o fio da meada, Dias prosseguiu: "Considera-se, em geral, que o uso de urânio com baixo teor de enriquecimento — algo em torno de 10% de U235 — seja suficiente na geração de energia elétrica. Como nas nossas usinas já em operação em Angra dos Reis e teremos na terceira, cuja construção foi retomada".

Silêncio na mesa. Dias percebeu que devia continuar: "Em bai­xos graus de enriquecimento, o U235 serve também para outros fins mais ou menos pacíficos. Serve, como os almirantes Fakhoury e Chagas Rodrigues podem afirmar com conhecimento pessoal de causa, para a propulsão de navios civis e militares, de superfície, ou submarinos. E, como atestará o brigadeiro Florença, engenhos nucleares podem servir como ogivas de mísseis balísticos de curto ou de longo alcance, como bombas atômicas voadoras".

"Na produção de eletricidade e na propulsão de navios, o urâ­nio funciona como qualquer gerador de potência a vapor — uma caldeira, por exemplo — para acionar locomotivas, máquinas, mo­tores e outros engenhos. Em alto grau de enriquecimento — acima de 80% ou 90%, o U235 só serve para fazer bombas atômicas."

Nesse momento, Antônio relembrou uma das frases favoritas dos "turcos" de sua terra para exprimir dúvida e perplexidade, por ele guardada desde a adolescência: "Que diabo de isto é aqui­lo?". E refletia: "Esse professor pode até ser sábio, mas até agora só falou coisas óbvias, que todo mundo conhece de cor e salteado. Para que estamos reunidos aqui?". E continuou: "Preciso apren­der algo para a missão que vou executar?".

No meio da sua perplexidade, ele conseguiu ouvir o que dizia o professor: "Diante do que falei antes, vou abordar alguns as­pectos políticos' da questão de maior interesse para os Estados-Maiores militares: o uso da energia nuclear na bomba atômica e como tudo começou no fim da Segunda Guerra Mundial".

Nesse momento, o professor parou um instante para refletir: "Será isso o que eles querem ouvir?". E, à falta de melhor resposta, continuou: "Vencida a guerra na Europa, com a rendição das for­ças do Eixo, restava o conflito no Extremo Oriente, onde o Japão continuava a exercer posição de domínio. O presidente americano Harry S. Truman — que sucedera Franklin D. Roosevelt — e seus Estados-Maiores político e militar percebiam a extrema dificulda­de de manter — e, sobretudo, ganhar — uma guerra transcontinental. Mas sabiam que, na localidade de Los Alamos, cientistas americanos queimavam pestanas em torno do Projeto Manhattan, dedicado ao domínio e à utilização militar do potencial dos átomos de U235 como fonte de energia devastadora. Truman e Roosevelt foram estimulados por numerosos cientistas, de dentro e de fora do governo, a acelerar os estudos e viabilizar a construção de uma poderosíssima arma nuclear".

Oliveira Dias pensou: "Isso não é novidade para eles". Assim mesmo continuou: "As duas bombas atômicas, lançadas por aviões americanos sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, com três dias de espaço entre uma e outra, foram suficientes para precipitar a rendição do Japão e o fim da guerra".

O professor procurou o olhar de cada uma das pessoas em torno da mesa e prosseguiu: "Um dos motores do governo dos presidentes Roosevelt e Truman, para ativar e pressionar os dou­tores de Los Alamos a produzir uma bomba, era o receio de que, eliminada da contenda a Alemanha e vencido o Japão, o novo adversário do bloco ocidental seria a União Soviética. Vitoriosa no Leste europeu, a URSS havia cortejado ou cooptado, senão seqüestrado, a colaboração de cientistas alemães e de outras na­cionalidades para desenvolver no seu território uma bomba se­melhante às que, informava sua numerosa e competente rede de espionagem, os americanos estavam fazendo com o fim de lançá-las sobre alvos japoneses".

O Vicemfa aparteou para afirmar: "Como sabemos todos, an­tes da tomada do poder pelo partido nazista, vários engenheiros e doutores judeus eram parte relevante do establishment tecnoló­gico alemão. Mas, com a chegada de Hitler ao poder, os cientistas judeus foram sucessivamente eliminados — demitidos, banidos, mortos — apesar de sua capacitação técnico-cientifica. Contudo, e até por isso mesmo, a ciência alemã não havia ainda chegado ao ponto crucial de seus estudos e experiências referentes aos usos militares do urânio. Embora numerosos cientistas alemães dispusessem da base técnica para interessar-se pela questão e apesar de se encontrarem em terras alemãs várias jazidas desse minério, os círculos próximos ao centro de poder pensavam: 'É coisa de judeu, não tem futuro nem aplicação prática'. E concluíram que não valeria a pena gastar dinheiro com isso".

Após um momento de silêncio, Oliveira Dias retomou a pala­vra onde havia parado o almirante e continuou: "Logo, os ame­ricanos perceberam que a próxima potência a dispor de bombas atômicas seria a União Soviética. Esta fora aliada dos adversários de Hitler — fator decisivo para ajudar a derrubar seus exércitos — e adotara um programa expansionista, não apenas ideológico, mas também territorial e econômico. Em busca do ideal de todas as ditaduras importantes: o domínio do globo terrestre, suas na­ções e seus povos".

"O mundo", continuou o professor, "caminhava claramente para a bipolarização: a URSS e seus satélites, de um lado, e os EUA e seus aliados, do outro. Por isso, a posse de bombas atômi­cas, tão eficientes quanto as americanas e tão ou mais numerosas que as deles, era, na opinião dominante no Kremlin, um fator decisivo de igualdade dos dois polos de poder".

"Como sofria de certo déficit de talentos nacionais aptos a de­senvolver o seu projeto nuclear, a URSS não hesitou em recrutar cientistas, espiões e delatores — inclusive, como se constatou de­pois, em círculos bem próximos dos centros de pesquisa ameri­canos. Logo, com base principalmente nas contribuições destes, os soviéticos criaram e desenvolveram um gigantesco arsenal, com milhares de bombas atômicas de diferentes potências."

Alguém perguntou: "Mas os Estados Unidos não faziam o mesmo ao mesmo tempo?".

Oliveira Dias voltou a falar: "Sim. Em poucos anos, a União Soviética e os Estados Unidos tinham potencial nuclear não só para destruir um ao outro, mas para eliminar a vida da face da Terra. O que, então, se denominava equilíbrio de terror'".

"Países europeus, como a França e a Inglaterra, que já haviam desenvolvido suas bombas, descontinuaram seus programas — certos de que os estoques atômicos americanos e soviéticos servi­riam como 'desencorajadores' recíprocos de peripécias nucleares. E como dissuasórios de aventuras nucleares por outras nações menores, ávidas de prestígio mundial. Isso, pensavam, dispensa­va alemães, italianos e as nações em desenvolvimento dos inves­timentos em capital e talento necessários a criar e manter os seus próprios arsenais atômicos.

"Ao mesmo tempo", continuou o homem da CNEN, "espalhou-se por vários países do mundo a convicção da facilidade de desen­volver armamento nuclear — embora a Suécia, que havia embar­cado na fase inicial do seu processo, tenha resolvido desistir dele. O caso da África do Sul é ainda mais ilustrativo do equilíbrio de terror. Dispondo de grandes reservas de minério de urânio em estado natural, os sul-africanos criaram e detonaram uma bomba, da qual eventualmente viriam a desistir e a pedir desculpas ao restante do continente."

O contra-almirante Chagas Rodrigues, subchefe do Emfa, perguntou: "Em sua opinião, professor, qual a motivação dos diferentes países para produzir bombas atômicas? E, mais, quantos países o senhor estima que tenham efetivamente armas nucleares?".

A resposta veio rápida: "A razão principal para um país fazer bombas atômicas é, se me permitem dizer, a aquisição de certo sentimento de superioridade' relativamente aos demais que não dominam o ciclo do combustível nuclear'. Quanto ao seu núme­ro, estima-se atualmente que uns dez países — Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França, índia, Paquistão, China, Israel e as duas Coréias — disponham de bombas atômicas, ou estão em fase próxima dessa hipótese".

Oliveira Dias perguntou aos presentes: "Por quê? Para quê?". Ele próprio respondeu: "Em todos os casos, os países que embar­caram em programas desse tipo alegavam interesses eminente­mente defensivos. Cada um tinha certo adversário em mente. O que não se aplica, é óbvio, aos países latino-americanos. Nenhum dos países da nossa região tem inimigos mortais".

"A posse de armas atômicas pelos que se consideravam 'países alvos' de ataques de seus rivais serviria como fator de dissuasão de eventuais propósitos agressivos dos outros'. Assim, a China construiu milhares de bombas no objetivo de prevenir um sem­pre temido ataque americano, ou novas aventuras japonesas no território chinês. Como a índia iniciara um programa nuclear, o Paquistão, seu adversário irreconciliável desde que os ingleses abandonaram o subcontinente indiano, também adotou o seu, com igual sucesso."

Após pequena pausa, o cientista continuou na mesma linha: "Todos sabem — embora ninguém possa provar — que Israel dispõe de bombas atômicas suficientes para barrar ambições ter­ritoriais dos países islâmicos sobre a terra judaica. Por isso mes­mo, o governo dos aiatolás do Irã persegue a bomba atômica para poder falar 'de igual para igual' com Israel nas insolúveis questões que opõem árabes e judeus".

"Por fim", disse o professor, "os diplomatas de quase todo o mundo pensam que, se houver uma guerra entre as Coréias do Norte e do Sul, armas atômicas serão utilizadas por ambos os la­dos, com tremendos riscos de destruição muito além das respec­tivas fronteiras. O que, entre outros resultados, tem estimulado as autoridades dos dois países, mais a China e os Estados Unidos, a advogar condutas moderadas de parte a parte."

O professor fez nova pausa, tomou mais um gole de água e continuou: "Vários países — Itália, Alemanha, África do Sul, Suécia, Noruega, Holanda, Polônia, México, Argentina, Brasil e outros, europeus e latino-americanos — dispõem da capacidade científica e da infraestrutura tecnológica suficientes para desen­volver estudos de enriquecimento do urânio e seu uso com fina­lidades civis e pacíficas; eventualmente, também, com objetivos militares. Outros países têm no seu subsolo reservas naturais de minério de urânio, que podem valer como moeda de troca no desenvolvimento de programas nucleares".

"Mas, na verdade, como os senhores militares sabem melhor que eu, não existem no mundo atual condições morais e políticas para uma guerra atômica.

"Nesse contexto, as Nações Unidas patrocinaram alguns trata­dos que visam à chamada não proliferação' de armas nucleares. Existem acordos entre os Estados Unidos e a Rússia, com a ade­são de outros países — como o START, sigla em inglês do tratado de redução de armas atômicas. Tais países os assinam conforme os mais responsáveis se convencem de que, dada a enormidade dos arsenais agressivos e de retaliação à disposição de vários, o único resultado possível de uma guerra nuclear, mesmo de 'pe­queno porte' e de 'âmbito local', como se diz, seria a destruição recíproca dos litigantes. E, talvez, a destruição do resto do mundo ou de grande parte dele."

Fez-se mais uma breve pausa. Ninguém conseguia esconder a emoção. Todos pensavam em milhões de vidas ameaçadas no caso de um "incidente nuclear" que, começando limitado, se estendes­se para nações interessadas na paz e no bom convívio dos povos.

O vice-chefe do Emfa, almirante Fakhoury, falou então: "Como o ilustre palestrante se lembrará, ante as crescentes ten­sões do bloco da União Soviética com o liderado pelos Estados Unidos, acreditava-se que, com propósitos ditos defensivos, mas potencialmente agressivos, os americanos haviam estoca­do armas nucleares em países europeus próximos da Rússia, inclusive na Polônia e em outros que, antes, pertenciam ao 'blo­co soviético'. Paralelamente, os russos espalharam suas armas nucleares pelos Estados que formavam a União Soviética. Os comentaristas de defesa da época achavam que, assim, ambos os lados teriam criado uma cortina defensiva. O professor tem algo a dizer a respeito?".

Oliveira Dias respondeu de pronto: "O principal resultado da corrida nuclear' foi a arrogância que tomou conta dos soviéti­cos. Vale notar que os americanos — ao contrário dos russos, que apenas engatinhavam nesse programa — já haviam desenvolvido mísseis balísticos de alcance intercontinental capazes de atingir alvos russos a partir de bases situadas em território americano. Tudo isso foi confirmado pela espionagem soviética."

"Em dado momento, porém, do alto do seu arsenal nuclear, comparável ao dos americanos senão maior que o deles, os sovié­ticos imaginaram uma ação de equilíbrio de poder": a estocagem de bombas atômicas soviéticas em território cubano. Cuba era então um país socialista sob completa liderança russa, situado bem próximo à costa leste dos Estados Unidos, de onde seria facílimo atingir alvos estratégicos americanos.

"Do pensamento à ação, um passo rápido. Em outubro de 1962, uma flotilha de cargueiros russos partiu pelos mares — contendo um número desconhecido de bombas atômicas, pre­sumivelmente de alta potência — para a longa viagem da Rússia em direção a Cuba.

"Percebendo o que acontecia e as possíveis conseqüências do movimento, o então presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, deu um ultimato ao líder soviético, Nikita Kruschev: ou os navios retornavam imediatamente aos seus portos, com as bom­bas, ou haveria represálias mortais dos americanos.

"Os russos sabiam quais eram as 'represálias mortais' implí­citas nas palavras de Kennedy. Concordaram com o ultimato e os navios deram meia-volta. A crise que poderia ter destruído o mundo durou menos de duas semanas e está relatada, na visão americana, no livro de Robert F. Kennedy, irmão do presidente, com o título Thirteen days (Treze dias)".

"Seguiram-se, então, tensas e extensas negociações, que resul­taram na assinatura de vários tratados internacionais, com vistas, primeiro, à 'não proliferação' de armas nucleares, e, depois, à re­dução sistemática dos arsenais existentes."

Nesse momento foi a vez de Antônio intervir: "Contudo, ilus­tre doutor, com a dissolução da antiga União Soviética, não res­taram bombas atômicas em poder dos antigos componentes da URSS, agora países independentes, com interesses próprios?"

"Não há como fugir dessa questão", pensou Oliveira Dias. E disse: "Sim. Há dois problemas da maior seriedade na questão nuclear, nos dias de hoje. Um deles é o terrível e insondável segre­do mantido a respeito da existência de bombas atômicas no terri­tório de antigos membros da URSS. Existem? Quantas são? Onde estão? A outra questão é a possibilidade do desenvolvimento de bombas de potência relativamente baixa — embora terríveis, do ponto de vista da humanidade — e passíveis de ser obtidas, criadas, copiadas, roubadas, desenvolvidas ou transportadas por grupos de terroristas, aptos a usá-las como armas táticas, contra alvos situados nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo".

A audiência mostrava sinais de cansaço. Mas Oliveira Dias vol­tou aos usos pacíficos da energia nuclear. Olhou para todos, um por um, e recomeçou: "Como ficou evidente nos dois mais graves acidentes nucleares — em Three Mile Island, nos Estados Unidos, em 1979, e em Chernobyl, na Ucrânia, em 1986 —, explosões nu­cleares são capazes de destruir completamente todas as formas de vida nos locais em que ocorrem. Além disso, os efeitos da radiação residual geram câncer durante vários anos nas pessoas que vivem na área do desastre. Há que notar, também, as diferenças de re­sultados decorrentes de reações nucleares, em função do grau de enriquecimento do urânio e de sua eventual associação com outras matérias radioativas e meios eletrônicos, digitais, de acionamento a distância".

"Nada de novo para os militares", pensou Oliveira Dias.

E, em continuação: "Entre as principais características das radiações emitidas pelo U235 com baixo grau de enriqueci­mento encontram-se duas. De um lado, sua versatilidade — po­dem ser empregadas para vários usos, como o tratamento ou a prevenção de certas doenças tidas como incuráveis. De outro lado, sua seletividade. Isto é, em termos leigos, sua capacidade de ferir, matar, favorecer determinados organismos e deixar ou­tros intatos".

"Muitos cientistas imaginam que, com baixo grau de enrique­cimento — e em associação com outros elementos, radioativos ou não —, o U235 pode ser usado para fins específicos, ou para outros completamente diferentes daqueles. Assim, em termos simplórios, a radiação do urânio pode ser comparada às ondas magnéticas de diversas freqüências, acionadas pelos botões de um controle remoto. Cada um deles é capaz de ativar a função determinada de um aparelho qualquer — por exemplo, no nosso dia a dia, um receptor de televisão — sem que a ativação dessa função interfira no funcionamento das demais."

Antônio voltou a pensar: "E daí? Onde deseja chegar o pro­fessor?"

Como se tivesse lido a dúvida de Antônio, o professor conti­nuou: "Existem sábios, pelos países do mundo, que predizem o uso das radiações de urânio, em diferentes graus de enriqueci­mento — e diversos modos e fatores de associação com outros materiais —, não só para tratar de doenças, mas como o grande preventivo a ser descoberto".

"Diferentes cientistas sonham com o uso da energia nuclear como fator decisivo de imensos benefícios para a humanidade.

Um deles seria a possibilidade de eliminar focos de doenças re­presentados pelas condições geográficas e topográficas locais, como pântanos, lagunas, rios, canais, represas, etc. Outro bene­fício imaginado seria a capacidade de mudar a estrutura fisioló­gica de certos organismos — bactérias e/ou seus portadores — e eliminar a sua capacidade de abrigar ou facilitar a reprodução de germes letais para outros seres.

"Para não alongar o assunto, alguns cientistas sonham — en­quanto outros trabalham ativamente nesse sentido — com a pos­sibilidade de eliminar os vetores e os germes transmissores de epidemias e pandemias, como a cólera, a aids, a malária, a tu­berculose, a dengue, a varíola, a gripe em suas diversas formas e assim por diante. Uma espécie de certificado de vida mais longa para a humanidade."

"Sim", pensou Antônio, "mas, com o aumento da longevidade e, portanto, da população mundial, quem garante que haverá co­mida para todos?"

O professor Oliveira Dias parou, olhou um por um os presen­tes e retomou o fio da palestra: "Isso é praticamente tudo o que posso dizer quanto à questão da energia nuclear. Quanto à coo­peração dos brasileiros e argentinos nessa matéria, vou dar-lhes uma opinião pessoal, que não reflete necessariamente o que pen­sa ou diz, em caráter oficial, a CNEN. Por isso, peço aos senhores que esqueçam o que vou falar e quem o disse".

Houve um longo instante de silêncio. O olhar do professor se deteve em cada um dos participantes da mesa — todos mostran­do fortes sinais de atenção e interesse. Depois, ele falou:

"Eu, como fulano de tal, simplesmente, e não como mem­bro da CNEN, não acredito na viabilidade de colaboração sin­cera e sem reservas mentais dos dois países, enquanto Estados soberanos e com regimes políticos próprios e diferenciados. No Brasil, o programa nuclear é essencialmente civil, tocado por mestres e doutores em física, com baixo índice de patro­cínio, interferência ou presença militar. Na Argentina, deduzo das conversas necessariamente superficiais que tivemos com os cientistas de lá, existe forte interesse e supervisão dos mi­litares nos seus programas de desenvolvimento da tecnologia nuclear".

O almirante Fakhoury, vice-chefe do Emfa, pensou, embora não falasse: "Não é bem assim. Nós, militares brasileiros, temos nossos próprios laboratórios e centros de estudo do uso militar da energia atômica. Entretanto, o nosso ministro da Defesa, um civil, é solidário com a orientação do governo, frontalmente contrária ao desenvolvimento e à experimentação do setor".

Oliveira Dias continuou:

"Há três anos, depois de extensas e demoradas negociações, a comissão nuclear argentina convidou a CNEN a mandar alguns de seus técnicos em visita a uma de suas principais instalações de desenvolvimento de tecnologia nuclear. Eu fui um deles.

"Posso dizer aos senhores generais, almirantes e brigadeiros que o convite continha várias palavras-chaves. Uma delas é 'visitar' — não trabalhar, discutir, examinar em profundidade; mas simples­mente visitar. Outra é a expressão 'uma de suas principais instala­ções'. Ou seja, eles admitiam que não nos mostrariam 'tudo, ou to­das as instalações' mas só o que lhes conviesse. Fomos, assim, a um centro de tecnologia nuclear situado à margem de um lago, perto dos Andes, nos arredores da bela estância de férias de Bariloche."

Antônio não interrompeu, mas pensou: "Esse é o tal centro que identifiquei perto do lago Nahuel Huapi. Se eles admitem 'vi­sitantes' estrangeiros, é porque nada de muito secreto, como o uso militar da energia nuclear, está sendo processado ali".

Oliveira Dias continuou serenamente: "Vimos o que eles que­riam nos mostrar. Nada de muito importante. Só o enriquecimento de U235 em baixíssimos teores. E nada se falou da aplicação prática do que ali se fazia. Talvez, em outros lugares, eles deem continui­dade ao enriquecimento do urânio em níveis mais altos. Ou algum outro grupo de cientistas estude diferentes aplicações práticas do U235 separado dos outros minérios encontrados nas jazidas. Uso militar, com certeza, não era o objetivo do que ali se fazia".

O professor achava que já havia dito tudo o que deveria — e algumas coisas que não deveria. Agradeceu o convite e a paciên­cia dos ouvintes e sentou-se. O chefe do Emfa, de sua parte, disse as palavras protocolares de encerramento de uma reunião como aquela, despediu-se de todos, um a um, mas disse a Antônio: "Por favor, fique um pouco mais no meu gabinete, pois ainda temos muito que conversar".

 

O general-chefe do Emfa e Antônio permaneceram sentados à mesa de reuniões. Olharam um para o outro, emudecidos pelas últimas palavras do professor Antônio de Oliveira Dias. O ponto focal do seu pensamento era determinar se o homem da Comissão Nacional de Energia Nuclear estaria certo ou errado no que dissera. Se procedente a conclusão do professor Oliveira Dias, então a instalação de pesquisa nuclear existente nos arre­dores de Bariloche não poderia ser considerada "um laboratório relevante" para a feitura da bomba atômica argentina. Nem um centro científico "dos mais importantes" daquele país. Não pas­saria tudo de window dressing? Coisa só para divertir os argen­tinos, enquanto estes levavam os brasileiros "na conversa"?

Sem se dar conta de que repetia a mesma conclusão do coronel Schmidt, o general Fernando Pais de Oliveira pensou: "Se eles re­cebem visitas, é porque lá não se cria nada secreto ou importante".

E continuou a pensar: "Então, tudo o que fizemos até aqui — imaginando que em Bariloche existiria um programa nuclear des­tinado a desenvolver uma bomba atômica argentina — foi pura perda de tempo? Nosso erro foi só de local? Ou precisamos co­meçar tudo de novo, 'da estaca zero', como se diz?"

O chefe do Emfa tocou a campainha chamando seu ajudante de ordens. Quando chegou o ajudante, o Chemfa lhe disse: "Ca­pitão, vá ao gabinete do almirante Fakhoury e peça-lhe para vir até aqui. Preciso falar com ele".

Enquanto esperavam, o general e Schmidt se mantiveram em completo silêncio, aturdidos com a gravidade potencial do que acabavam de saber.

Mudaram-se para a mesa do Chemfa. Minutos depois, o Vi­cemfa chegou e sentou-se ao lado de Antônio, na outra poltrona para visitantes. Também nada disse.

O general falou num ímpeto: "Almirante Fakhoury, o coronel e eu estamos perplexos com as conclusões do professor Oliveira Dias a propósito das instalações que identificamos e o professor visitou na região de Bariloche. Como o almirante sabe, o coronel Schmidt partirá para lá novamente hoje à tarde. Sua missão é saber se os amigos argentinos estão usando aquelas instalações, ou alguma outra, em diferente localidade, para desenvolver armas atômicas. Enfim, Schmidt vai espionar e reportar tudo o que puder obter com relação ao programa argentino de armas nucleares".

Concluiu: "Se nossos serviços de inteligência tiverem razão, podemos deduzir que eles estão, mesmo, fazendo uma bomba, mas, pelo que nos disse o professor Oliveira Dias, não em Bari­loche. Nesse caso, teremos de reformular a missão do coronel".

E, voltando-se para o almirante: "O que você acha disso tudo?"

Fakhoury nem precisou refletir. Reproduziu o pensamento que também lhe ocorrera no final da exposição do professor da CNEN: "Se eles estão recebendo visitas lá e mostrando aos visitantes o que fazem, então podemos deduzir que não é nada importante. Mas isso pode ser um simples truque: os argentinos só teriam deixado os brasileiros verem o que consideram irrele­vante para um projeto de bomba atômica".

Qualquer observador notaria entre os três o mesmo senti­mento de frustração diante da incerteza, lançada sobre a mesa pelas palavras do professor, quanto ao programa até então aceito como verdadeiro na opinião unânime dos altos escalões do Emfa.

Fakhoury então falou: "Considerados os fatos, as nossas opi­niões e as palavras do professor, podemos concluir que naquelas instalações, em Bariloche, e naquela ocasião eles não estavam en­riquecendo urânio em alto grau. Sim, creio que podemos e até devemos reformular a missão do coronel Schmidt. O problema é decidir o que ele deverá fazer agora".

Após um breve silêncio, o almirante Fakhoury continuou: "Valerá a pena Schmidt voltar àquela cidade para apurar se es­távamos certos ou errados em nossa conclusão de que o labora­tório à margem do lago é o local de enriquecimento de urânio para fins militares".

"E, ao lado dessa pesquisa, mas sem prejuízo do aprofunda­mento dos dados que temos, tentar saber de outros locais em que uma bomba atômica talvez esteja em construção."

Antônio pediu licença para falar.

Com a anuência dos dois chefes, disse o que lhe passava na mente desde o fim da palestra do professor: "Estou 100% de acordo com os senhores. Mas, se me permitem, precisamos di­vidir o assunto em três partes e essas tendem a misturar-se. Isto é: primeiro, os argentinos estão mesmo enriquecendo urânio em nível para obter uma bomba atômica? Segundo: onde fazem isso? Terceiro: em que ponto do processo se encontram?"

O chefe e o vice-chefe do Emfa só precisaram de um breve instante para entender os três lados da questão. Olharam para o coronel Schmidt e sinalizaram para que prosseguisse.

Antônio não hesitou: "Os indícios que possuímos são elo­qüentes. Nossos cientistas, e mesmo nossos adidos militares, têm sentido um ar de superioridade por parte dos colegas argentinos sempre que tratam de cooperação dos dois países em questões ligadas à energia nuclear. Tem havido muita con­versa mas nenhum progresso em termos de atuação conjunta.

O que é compatível com a idéia de esforço secreto em direção à bomba".

"Se os argentinos estiverem trabalhando no enriquecimento de urânio para uso militar, pode não ser em Bariloche, mas cer­tamente será numa região de baixa densidade populacional e de difícil acesso para quem não for de lá.

"O norte e o nordeste da Argentina são as províncias mais de­senvolvidas e industrializadas desse país. Por ali existe tráfego intensíssimo de pessoas e produtos agrícolas e industriais, argentinos ou estrangeiros, do Brasil e do Paraguai e para o Brasil e o Paraguai. Há também contrabando de produtos locais e importados, além dos pirateados. Esse local não serve para uma instalação secreta."

O Vicemfa concordou e continuou: "Para mim, a província da Patagônia, a mesma em que se situa Bariloche, é, de toda a Ar­gentina, a região que melhor corresponde aos conceitos de isola­mento e discrição adequados ao trabalho de fazer a bomba".

"Esse projeto não precisa desenvolver-se, necessariamente, em torno daquela cidade. Penso, antes, em localizações bem para o sul, em terras de glaciares, de inóspito clima frio, ventos gelados, população dispersa e poucos recursos humanos e materiais. Sua fronteira terrestre com o Chile é formada, basicamente, pela cor­dilheira dos Andes e seus montes intransponíveis, cobertos de neve eterna. Sim. Creio que a missão do coronel Schmidt terá de ser reformulada em seus objetivos e em sua geografia. Mas o esquema de seu deslocamento imediato deve ser mantido, e am­pliado o território a ser coberto por ele."

Fez-se um longo silêncio e o general falou: "Estou de acordo. Depois, Fakhoury, falaremos com os subchefes do Emfa, pois eles estão por dentro dos nossos objetivos".

Voltou-se para Antônio e disse-lhe: "Como você já sabe, temos tudo pronto para a sua partida à tarde para Guarulhos e daí, pela Aerolineas, para Buenos Aires, onde lhe fizemos reserva por quatro noites no hotel cujo nome está junto de sua passagem".

Sorriu e continuou: "Nessa cidade você passará quatro dias fazendo, como lhe disse antes, tudo o que um turista brasileiro de classe média alta faz normalmente: passeios, excursões, ir a restaurantes, bares etc. Poderá, se quiser, dar um pulo a Mar de Plata, Punta del Este ou Montevidéu. Ou apreciar as coisas boas da cidade. De Buenos Aires você seguirá para Bariloche, em vôo doméstico da Aerolineas".

"Em Bariloche fizemos reserva, em nome de Antônio Gomes, no hotel residencial Los Pampas, de quatro estrelas, pelo prazo máximo que eles aceitam: um mês. Se precisar de mais tempo, você poderá prorrogar a reserva e pagar com um dos seus car­tões. De qualquer modo, Bariloche é o principal centro de movimentação de turistas brasileiros na Patagônia. Tendo ali sua base, você será menos notado nas movimentações que tiver de fazer. Em particular, com a ida e volta do seu novo objetivo, o sul da província.

"Na sua pasta, além do iPad de que lhe falei hoje de manhã, incluímos uma câmera fotográfica para acentuar a sua aparência de turista, embora o tablet faça fotos de primeira qualidade, aces­síveis aos meios eletrônicos habituais. E pusemos um notebook Apple com o que os técnicos chamam de 'memória Solid State'; um altímetro, uma bússola e um GPS.

"Estão nela os necessários cartões internacionais de crédito de uma conta em seu nome no Banco do Brasil, agência do Gama, para as suas despesas comuns. Mais um cartão de débito, também do Banco do Brasil, para você sacar dinheiro vivo em qualquer banco, em qualquer lugar do mundo, se e quando precisar."

Antônio acenava com a cabeça mostrando que compreendia tudo o que o general lhe dizia. Mas perguntou: "Até que limite eu posso usar os cartões?"

O general respondeu, com a concordância do almirante: "Co­ronel, quando nós o escolhemos para esta missão, sabíamos tudo a seu respeito, incluindo a sua seriedade e prudência em questões financeiras. Você não tem limite prévio. Sua cabeça é que lhe dirá, a cada momento, qual é o seu limite".

Schmidt ficou visivelmente surpreso, talvez um pouquinho co­movido. Agradeceu as palavras do general e disse: "Na missão an­terior, a recomendação era para eu guardar distância das pessoas e isolar-me de tudo e de todos. Falar o mínimo possível. Essa regra permanece válida, dado que o sentido da missão agora é outro?".

Coube ao almirante Fakhoury tomar a palavra: "Nas nossas conversas a respeito de sua missão, o general e eu achamos que, a partir de hoje, seu papel é muito diferente. Você deve procurar contatos, justamente para, afinal, descobrir o que desejamos saber".

"Fale com todos. Mas, sobretudo, incentive as pessoas a fa­larem de si mesmas — coisa de que todos gostam. Falarem da vida e da experiência profissional de cada qual. E saiba ouvir, o que nem sempre é fácil. Mais cedo ou mais tarde, você encontrará alguém a par dos programas nucleares argentinos, ou, mesmo, de parte deles. E, se tiver estabelecido bom relacionamento com essa pessoa, ou essas pessoas, elas falarão. No mínimo lhe darão pistas que você explorará."

Após um momento, o general continuou: "Você evitará ao má­ximo usar telefones públicos ou particulares. Não creio que os ar­gentinos venham a descobrir a sua missão. Mas, se simplesmente desconfiarem, a primeira coisa que farão será grampear' os seus telefonemas. E, com certeza, gravarão todas as ligações que fizer para o Brasil".

Antônio sentiu que nada mais tinha a fazer ali. Levantou-se e ia perfilar-se como militar diante de superiores, mas o ge­neral interrompeu: "Não. Nada de 'bater continência. Agora, você é o professor civil, aposentado e viúvo Antônio Gomes. Boa viagem!"

Antônio aproveitou a menção do general ao seu estado civil e pediu permissão para um telefonema à sua família. "Só vou dizer que estou partindo para a missão da qual falei a Mercedes e aos meninos. Em nenhum momento, obviamente, lhes dei uma pista da natureza da missão ou do lugar em que se realizaria — o que, aliás, eu não sabia quando falei em casa. Vou só dizer que estou bem, indagar de sua saúde e dizer até a volta?'

O general concordou: "Você pode usar o telefone do meu ga­binete". Antônio entendeu as razões do general (evitar possíveis indiscrições) e falou dali mesmo. Ponto final.

Na antessala do Chemfa, o ajudante de ordens lhe disse: "O carro para levá-lo à base aérea está à sua disposição, professor Antônio Gomes. É só falar na portaria, onde está também a sua bagagem completa. Boa viagem!"

Em seguida, o chefe do Emfa chamou novamente o ajudante de ordens e lhe disse: "Capitão, o almirante Fakhoury e eu temos o maior interesse em conhecer imediatamente qualquer men­sagem do professor Antônio Gomes que chegar aqui. Você e/ou o plantonista de serviço aqui devem passar imediatamente a um de nós dois — a mim, pessoalmente, ou, na minha ausência, ao almirante Fakhoury — toda comunicação feita pelo professor Gomes, por e-mail ou por qualquer outro meio. Sem demora. Embora pelo texto possa não parecer, o assunto mencionado pelo professor terá importância estratégica para o nosso país".

O capitão disse haver compreendido e que agiria estritamente na forma da instrução, passando-a aos demais oficiais que man­tinham plantão de 24 horas por dia, sete dias por semana, no ga­binete do chefe do Emfa.

Antônio tomou o elevador. Na portaria encontrou a sua ba­gagem e a informação de que o carro estava à sua disposição. Daí foi para a Base Aérea de Brasília e seguiu de avião da FAB para Guarulhos, tudo na hora, na melhor forma "milica". No aero­porto internacional, a espera habitual, avião no horário e, para surpresa de todos, viagem pontual ao aeroporto bonaerense de Ezeiza. Troca de uns mil reais por pesos argentinos. Daí para o Hotel Meliá, em táxi da empresa Tienda Lion. (Fora advertido de que deveria recusar os táxis oferecidos nos corredores, pois 'tem muito picareta'.)

No hotel de quatro estrelas, a reserva em ordem; e, de fato, lá chegando, nenhuma obrigação o aguardava, exceto desfazer parte da bagagem e ter um bom jantar regado a vinho tinto Malbec, para compensar o lanche frugal servido no voo da FAB.

Enquanto revia as possibilidades de um bom jantar, lembrou-se de que lhe haviam recomendado o restaurante Sucre, na rua do mesmo nome, lugar de gente bonita e animada, serviço bom, cardápio de primeira e preços acima da média.

Depois do jantar, sentindo-se em férias remuneradas, pensou em ouvir tangos numa das muitas casas da Calle Callao. Porém, cansado de um dia de grandes tensões — mais que da viagem —, resolveu voltar para o hotel.

"Amanhã", pensou, "vou a Puerto Madero, onde há diversos restaurantes com comida francesa, além do melhor churrasco da cidade. Agora, preciso pôr a cabeça em ordem."

No quarto, Antônio pôs-se a pensar: tinha de criar uma estória plausível das razões pelas quais estava ali. Dizer-se professor, e agir como tal, seria fácil: tinha ensinado em todas as escolas do Exército na maior parte do seu tempo de serviço e tinha mil his­tórias para contar, umas divertidas, outras nem tanto; dizer-se aposentado seria meio difícil, diante da sua idade aparente, 52 anos bem conservados; dizer-se em férias seria mais conveniente.

Mas isso não bastava para manter uma conversa com pes­soas versadas em ciências. Acima de tudo, por que estaria lá, no meio da planície patagônica? Para onde viajaria? Por que não na capital, Buenos Aires, em que encontraria tantas coisas para fazer, ver, distrair-se?

Checou seus documentos: além do passaporte, dos certifi­cados de vacina exigidos, mas não pedidos pelas autoridades do aeroporto, cartões de crédito e de débito, carteira de motorista com validade internacional e a parafernália de instrumentos para quem teria de deslocar-se sem saber bem aonde ir e poder voltar com segurança ao hotel-residência.

Numa maleta apropriada, o iPad e o notebook. Certa dose de duplicidade, claro. Mas, ante a eventual necessidade de co­municar-se urgentemente com o Chemfa, ele teria de carregar o tempo todo esses dois aparelhos. Como justificar a duplicidade, se alguém levantasse a questão? Bem. Isso não seria impossível nem mesmo difícil de explicar para quem tivesse nível médio de conhecimento da área das comunicações eletrônicas.

Uma hora depois, já tinha recapitulado alguns dos muitos itens das ciências de seu interesse. Um ponto permanente de sua atenção — e de várias tentativas frustradas — na área da informática era descobrir como "dar a volta ao mundo", por meio de mensagens transmitidas por meio de seu computador, para atingir um saté­lite de comunicação entre os milhares em movimento ao redor da Terra, com instruções específicas para o primeiro satélite repassar a mensagem ao segundo; este, por sua vez, ao terceiro, e assim por diante. Algo parecido com o que fazem a todo instante, e qualquer pessoa pode perceber, os apresentadores dos jornais das emissoras de televisão para comunicar-se com os seus correspondentes em várias partes do mundo e deles receber notícias e comentários exi­bidos ao vivo.

Não seria impossível construir uma boa estória em cima dessa premissa. Até mesmo, pensou Antônio, falar disso, sem detalhes, para leigos, e com certas minúcias para cientistas.

Contudo, restava uma questão, sobre a qual era preciso pensar.

Antônio sorriu e disse à imagem refletida no espelho do ba­nheiro: "Vou dar uma de Fernão de Magalhães, figura lembrada pelos nativos ou simples moradores da Patagônia, onde se situa o estreito que leva o nome do navegador".

"Como todos se recordam das lições da escola", Antônio conti­nuou a pensar,"Magallanes, como o chamam os argentinos, foi o primeiro a dar a volta ao mundo. Partindo rumo oeste, do Atlân­tico ao Pacífico, chegou ao Japão, à China e à Índia 'do outro lado' da Terra. Daí pelo Índico e, depois, contornando o sul da África, de volta ao Atlântico, e pela costa ocidental do continente afri­cano, até as plagas lusitanas."

"Direi mais, que, nas tentativas do meu projeto, de satélite em satélite, atingi a China e o Japão, o que é verdade, mas de lá não pude continuar, o que também é verdade, pois ambos os países ficam do lado oposto do globo, a partir do Brasil. Por isso, mi­nhas atuais tentativas de fazer o caminho pelo Pacífico no estilo Magallanes. Bonito!"

Satisfeito, sentiu que podia dormir. "Amanhã começo a vida de turista, aposentado, viúvo, sem família. Direi a quem perguntar que, se gostar, posso até ir ficando por aqui mesmo, em terra de clima e costumes tão diferentes dos do Brasil, para gozar, na tranqüilidade das minhas férias definitivas, o que me restar de anos de vida."

Mas Antônio desconhecia o que se passara no gabinete do chefe do Emfa depois que de lá se havia retirado e começado a rota da sua nova missão.

O general Pais de Oliveira manteve-se em silêncio por bastante tempo. Enfim, voltou-se para o almirante vice-chefe do Emfa e disse: "Estou sentindo dentro de mim que a missão do Schmidt poderá ser curta ou, mesmo, abortada. Se ele nada encontrar de concreto, terá de voltar. Conforme os planos originais, ele teria morrido num acidente. Aí, nós não poderíamos utilizá-lo em novas missões, ou para continuar o serviço que vem fazendo aqui no Emfa. Não seria melhor deixá-lo vivo em missão num lugar não determinado?".

O almirante Fakhoury ficou quieto por dois ou três minutos, pensando: "O Chemfa tem razão. A ausência breve ou prolon­gada de Schmidt será notada aqui mesmo, no âmbito do Emfa. Se ele for dado como morto em acidente, que outro disfarce poderia ser usado para justificar o fato de voltar a cumprir a rotina do nosso cotidiano?"

Dirigindo-se ao Chemfa, o almirante falou: "Você tem razão. Que idéia concreta da 'missão' poderíamos 'atribuir' ao Schmidt para evitar perguntas e especulações?".

O general Pais de Oliveira pensou um pouco mais e disse: "Você talvez se lembre, Fakhoury, dos pedidos de assistência téc­nica dos militares de países africanos de língua portuguesa, como Guiné-Bissau, Moçambique e Angola. Poderíamos fazer uma pu­blicação de rotina no nosso boletim interno — cuja circulação, não preciso dizer, é limitada ao âmbito do próprio Emfa — designando o coronel Antônio Schmidt de Oliveira para 'prestar assistência técnica em questões referentes ao uso da informática por países de língua portuguesa. Nem nomes de países, nem refe­rências à África. Que lhe parece?".

Solução proposta e aceita. Só restava o ato burocrático de sua inclusão no boletim do dia.

 

Na manhã seguinte, depois do lauto café servido pelo hotel, Antônio saiu todo serelepe — no melhor estilo "turista em férias" — e foi direto à mesa da chefa dos serviços de portaria, uma senhora relativamente jovem e atraente, de uns quarenta e poucos anos, cujo nome, Margarida López, constava da etiqueta colada à sua roupa. E falou, no melhor portunhol de que era capaz: "Senhorita López, eu sou brasileiro, professor de eletrô­nica, recentemente aposentado, em férias nesta bela cidade de Buenos Aires. Que recomendação a senhorita pode me fazer em termos de ver, ouvir tango, visitar etc.?".

No seu espanhol porteno, Margarida respondeu: "Que pena. Se usted tivesse chegado alguns dias antes, poderia ter visto o maior e melhor espetáculo de tango de todos os tempos". Diante da perple­xidade de Antônio, ela continuou: "Há dois dias houve, no Teatro Colón, o mais importante de Buenos Aires, um inesquecível show dos mestres do tango — gente de hoje e de ontem, mas todos ainda vivos e mais que perfeitos em sua arte; e, como eles mesmos se denominam, 'maestros'. O Café de los Maestros não se repetirá".

Vendo o desapontamento que podia ser lido por extenso na cara de Antônio, Margarida López prosseguiu: "Em outra oca­sião, você poderia também ter assistido ao concerto Tango Argen­tina, executado pela Orquestra Sinfônica de Buenos Aires, regida pelo nosso maestro de fama internacional Daniel Barenboim. Uma combinação magnífica e inusitada: tango e orquestra sinfô­nica! Espetáculo imperdível e inesquecível".

Desapontado, Antônio só conseguiu perguntar: "E, então, o que eu posso fazer?". Margarida respondeu de pronto: "Amanhã mesmo temos outro espetáculo que vale a pena ver, às 11 da noite no bar Taconeando, lugar de shows de tango situado na Calle Defensa. O show será em memória de Mercedes Sosa, que morreu há um ano. Mercedes fez carreira aqui, mas seus grandes sucessos aconteceram fora da Argentina. Agora vão ser reapresentados seus velhos sucessos, como Gradas a la Vida, Duerme Negrito e Piedra y Camino. De certa forma, a nossa Mercedes Sosa lembra a vossa Carmen Miranda, a qual era meio famosa no Brasil e foi para Hollywood, onde, além de muito famosa, ficou rica, can­tando sambas em filmes".

"Certa ironia na citação a Carmen Miranda?", perguntou-se Antônio.

Ele retomou a palavra: "No Brasil tenho ouvido falar bastante de Mercedes Sosa. Nossas emissoras de rádio costumam tocar suas canções, todas muito bonitas, sempre que têm algum pro­grama com conotação bonaerense ou argentina".

Fez pausa de segundos. Continuou: "Para os brasileiros da minha geração, a lembrança indelével do tango está associada à figura e ao repertório de Carlos Gardel, com Mi Buenos Aires Querido, El Dia que me Quieras e outros tangos inesquecíveis, de vida eterna".

E disse mais: "Sim. Vou ver a homenagem a Mercedes Sosa. Como obtenho ingressos?" Margarida respondeu: "Posso re­servar em seu nome pelo telefone, com débito na sua conta no hotel. Quantos ingressos quer?". Antônio pensou e perguntou: "Você me acompanharia?". Margarida respondeu sem hesitar: "Não posso. Sou casada. Tenho três filhos e, como diria o vosso Adoniran, tenho minha casa para cuidar".

Limitada a reserva a um só bilhete, Antônio fez a segunda per­gunta óbvia: "E para hoje, como poderei visitar a cidade?". Daí a minutos ele tinha tudo de que precisaria: um carro com motorista, que era também guia turístico, e o roteiro clássico de Buenos Aires: Avenida Nueve de Júlio e seu tradicional obelisco ("O mesmo", acentuou o motorista guia turístico, "em torno do qual Maradona, quando técnico da Seleção Argentina, disse que dançaria nu se sua equipe ganhasse a Copa do Mundo da África do Sul"). Mais Cor- rientes, Centro Cultural Recoleta, Museu Nacional, Teatro Colón, ruas e distritos de compras — a preços muito mais em conta que no Brasil — e tudo o mais que deve ser visto na cidade.

Por fim, mas não menos importante, a Casa Rosada, sede da Presidência da República Argentina, no mesmo horário em que por lá se reúnem as Madres y Abuelas de La Plaza de Mayo para reclamar providências que nunca vêm a respeito de seus filhos e netos mortos ou desaparecidos nos anos de regime militar do país. Num recanto da praça, numa barraca claramente improvi­sada, alguns veteranos combatentes da frustrada Guerra das Mal­vinas continuam em vão esperando pensões do governo.

Diante da imponência da Casa Rosada, o palácio cor-de-rosa, Antônio não pôde deixar de evocar o filme Evita, com a estória da mulher que, sem exercer cargo nenhum, foi a pessoa mais im­portante do governo e do movimento peronista, líder inconteste da classe trabalhadora, idolatrada pelo povo. De uma das sacadas do prédio, Madonna, a popstar americana que fez o papel de Eva Maria Duarte de Perón, mulher do general e ditador Juan Perón, conhecida simplesmente como Evita, cantou em inglês a ines­quecível Don't cry for me Argentina. Lembrando disso, Antônio teve dificuldade de segurar as lágrimas.

Naquele dia e nos seguintes, Antônio fez todos os passeios que lhe foram sugeridos. Encantou-se com certos monumentos e paisagens. Puerto Madero ficou especialmente gravado em sua memória por estar situado à margem do imponente Rio da Prata, em sua foz. Ele cumpriu todos os programas de excursão pró­prios para turistas, dentro e fora da cidade.

Preferiu não ir a Montevidéu ou a Mar dei Plata, mas guardar tempo para pensar sobre o que dizer e como dizer para animar as pessoas a falarem de si mesmas e de seu trabalho.

Leu os jornais locais, principalmente o Clarín, espécie de Es­tadão bonaerense, na esperança (frustrada) de que trouxessem notícias das atividades que eram o objeto de sua missão. E, via iPad, leu os jornais brasileiros de cada dia.

Na manhã do último dia, pegou o avião para Bariloche. Por todo o vôo, de nada mais se ocupou que não fosse "conversa mole pra boi dormir", como se bovinos dormissem com conversa. Do aeroporto foi de táxi para o hotel residencial Los Pampas, situado na periferia da zona central da cidade de Bariloche. Perto, mas fora do congestionamento urbano.

No hotel, surpresa em cima de surpresa: o residencial primava pela amplitude dos espaços; o apartamento que lhe tinham reser­vado era constituído de boa sala, quarto amplo, banheiro confor­tável e quitinete numa das paredes da sala. No primeiro andar do prédio, uma sala para café da manhã e um grande restaurante.

Informaram-lhe na portaria que, se desejasse alugar um carro, tinham preços competitivos e espaço reservado na garagem para o seu estacionamento.

No térreo, além da piscina — convidativa, mas pouco freqüen­tada por causa do vento frio —, viam-se esteiras e todos os de­mais equipamentos necessários à prática das diversas formas de ginástica aeróbica, esportes e exercícios.

Ao lado, ainda no térreo, uma grande "área de estar", onde os hóspedes dos quarenta e oito apartamentos podiam ficar o tempo que quisessem, conversando, jogando cartas, vendo televisão, lendo jornais e revistas ou, simplesmente, não fazendo nada.

Ao fundo, um bem sortido bar, com seu longo balcão e assentos altos, no estilo dos filmes de faroeste.

"Aqui vou fazer a minha base", pensou Antônio. "As pessoas que moram neste hotel não têm residência permanente na região da Patagônia. Mas também não estão aqui apenas de passagem. Quem sabe, gente do laboratório?"

 

Como primeiro passo para o que teria de fazer, Antônio alugou por uma semana um automóvel pequeno, sem nada que o distinguisse e, portanto, lhe permitisse o anonimato por onde andasse. Percorreu ruas e estradas principais, vagueou pelas vicinais, mas em nenhum lugar encontrou indícios de novas "ins­talações secretas" — diferentes daquela identificada na missão anterior.

Onde houvesse estrada morro acima, ele ia de carro até o ponto inicial das linhas de ônibus ou outros meios de transporte que le­vavam os turistas ao topo dos cerros. Aprendeu a guiar-se pelo GPS e a encontrar sempre, com facilidade, o caminho de volta ao hotel.

De qualquer modo, como era pleno verão de janeiro, a tempe­ratura na planície era amena, em torno de 10 a 20 graus. Exceto nos muitos momentos de chuva ou vento forte. Mas, à medida que subia as encostas andinas, a temperatura caía perceptivelmente. Um dia, no ônibus que o levava ao cume do cerro Catedral, co­mentou o fato com um vizinho de assento, que respondeu: "Sim, cai mais ou menos um grau a cada 50 metros de altitude".

Em qualquer lugar que parasse, e mesmo nos transportes co­letivos, Antônio mexia sempre com seus instrumentos, em par­ticular o iPad, e isso não deixava de despertar a curiosidade dos demais soi disant "alpinistas".

Dava explicações: "O iPad é pura distração; com o compu­tador, procuro criar sinais de comunicação capazes de dar a volta ao mundo e retornar automaticamente ao ponto de partida — ou seja, ao próprio computador". Na prática, ninguém entendia nada. O que, para Antônio, era sinal de que não seriam cientistas empenhados em instalações secretas.

Contudo, "dar a volta ao mundo" com um sinal magnético, en­trando anonimamente nos vários satélites de comunicação, era um dos hobbies de Antônio, mesmo nos muitos anos de sua carreira no Exército e nos intervalos dos seus cursos de pós-graduação.

De fato, como acontece com todo hobby, Antônio só pudera dedicar ao seu as poucas semanas de férias das escolas nas quais lecionava ou estudava e as raríssimas horas vagas da vida militar. "De hoje em diante", pensou, "nos intervalos de espionagem, vou continuar as minhas tentativas, agora com mais tempo disponível e afinco proporcional".

Nos períodos em que ficava no hotel, seu lugar habitual era, como havia pensado, a "área de estar". De dia se encontravam ali principalmente senhoras de todas as idades, presumivelmente esposas dos que lá "residiam". Muitas jogavam cartas entre si — principalmente a "canastra" argentina, jogo parecido com o "bu­raco" brasileiro, porém mais difícil e mais divertido. Outras viam tevê, liam, costuravam ou bordavam. Tédio visível.

À noite apareciam os homens, os maridos, e outras senhoras cuja presença Antônio não observara de dia. "Também cientistas, técnicas ou trabalhadoras", pensou.

Com a discrição apropriada, mostrava interesse pelos jogos, sorrindo, dizendo "bom-dia", "boa-tarde", uma ou outra palavra sobre nada, sem "palpites", ou, de qualquer forma, não interfe­rindo na estratégia ou nas conversas das senhoras. Também dis­cretamente, procurava "participar" dos grupos de homens à noite.

Ninguém falava muito. Todos observavam as mesas de jogo, agora misturando homens e mulheres. No longo balcão do bar, os comentários eram sempre sobre assuntos banais, como o tempo, a temperatura da cerveja, o sabor dos vinhos argentinos, o uísque escocês em face dos aperitivos argentinos, os jogos de futebol do fim de semana passado ou do próximo — sem faltar o confronto entre Maradona e Pelé. Nada que valesse a pena registrar, só "bate-papo furado". Antônio esperava que desses temas alguém evoluísse para uma conversa descontraída sobre si mesmo, suas atividades, algo ligado à sua missão.

Passou-se uma semana sem fatos dignos de nota. Antônio ex­plorou, passo a passo, a planície, os montes e lagos em torno de Bariloche. Nada parecido com um laboratório secreto.

Nos raros momentos em que conseguira falar com os homens, "penetrar sua couraça", como gostava de pensar, ninguém lhe re­ferira o respectivo trabalho, estudo, ocupação.

Até que um dia, no mesmo balcão do bar, um homem de seus 60 anos lhe disse: "Tenho observado que, quando o senhor está sozinho — o que parece acontecer todo o tempo —, se debruça sobre um laptop e um iPad e trabalha atentamente. Que é que o senhor faz?" E, por boa medida, acrescentou: "Eu sou Fernando Gutierrez, engenheiro. E o senhor, quem é e o que faz por aqui?".

Antônio estendeu a mão para o interlocutor e falou: "À boa moda brasileira, muito prazer em conhecê-lo, prezado colega. Sou Antônio Gomes, também engenheiro, professor de eletrô­nica e informática, recentemente aposentado. Estou em viagem de férias, para decidir o que farei pelo tempo que me restar de vida. Quem sabe, até, morar por aqui".

Continuou: "Tenho 52 anos, comecei no magistério aos 18, como monitor na Universidade Federal do Paraná. Depois, pro­fessor adjunto, professor titular por concurso".

"Com o programa de expansão da rede de universidades fe­derais fui passando de uma para outra, até minha aposentadoria há poucos meses na Universidade do Serro, no Estado de Minas Gerais. Fiz mestrado na Sorbonne e doutorado no MIT, nos Es­tados Unidos."

"Felizmente", pensou Antônio, "ele não notou que uso o iPad para comunicações freqüentes com o Emfa e, uma vez por dia, para breve mensagem a Mercedes e nossos filhos."

Percebendo que havia penetrado na cabeça, senão no afeto, do engenheiro argentino, Antônio continuou a série de meias verdades e mentiras inteiras. Disse mais: "Sou viúvo sem filhos. Minha mulher, Doroteia, morreu há dois anos num acidente de carro. Minha vida familiar, nas raras ocasiões em que es­tamos juntos, gira em torno de sobrinhos, muito queridos e in­teligentes. Os quais acreditam que, sendo engenheiro, eu posso fazer funcionar os seus games e consertar os seus brinquedos quebrados".

Sorrisos recíprocos, conversas de engenheiro pra lá e pra cá, até o argentino observar: "Mas o senhor não me disse o que faz o dia inteiro com seus aparelhos aqui em Bariloche".

Antônio alegrou-se e pensou: "Seja qual for o trabalho do Fer­nando Gutierrez, vou poder falar das coisas de que gosto".

Em seguida começou a explicar: "Um dos meus hobbies é tentar dar a volta ao globo terrestre com um sinal eletrônico reversível — isto é, de ida e volta — usando como veículo os numerosos satélites de comunicação que existem pelo mundo afora, para ligações tele­fônicas, internet, transmissão de imagens televisivas etc.".

"Mas isso", falou o engenheiro argentino, "na melhor das hi­póteses, é invasão de propriedade e, possivelmente, intromissão em comunicações de pessoas, entidades ou governos. Atos como esse, se forem factíveis, o que não creio, representam quebra do sigilo das telecomunicações. Desculpe, mas parece outra coisa."

Antônio ficou assustado: "Será que ele percebeu o real sentido da minha presença aqui?" Mas, tratando-se de um técnico do mesmo padrão que ele, continuou: "Sua impressão a respeito da impenetrabilidade e confidencialidade das comunicações é correta, mas só até certo ponto na história. Três princípios ge­rais, reconhecidos, aceitos e aplicáveis à comunicação pelas vias tradicionais, só eram válidos em épocas passadas. Hoje, com a comunicação digital que se instalou e se difundiu no mundo, substituindo os velhos meios de transmissão da palavra e per­mitindo a difusão intercontinental e simultânea de imagens ao vivo, aqueles princípios não vigoram mais. Pelo menos, na prá­tica de todas as horas".

Ante a perplexidade do colega, Antônio prosseguiu. "Explico: nos sistemas digitais de comunicação, deixaram de prevalecer os conceitos de 'código secreto', 'segredo inviolável', 'fortaleza impe­netrável'. Essa história de firewall, barreira de fogo, que os fabri­cantes de computadores e provedores de internet 'vendem nos catálogos, como meio de proteger e tornar invioláveis os seus ser­viços, simplesmente não existe mais."

"Os computadores mais modernos não trazem mais os ou- trora famosos hard disks, os discos rígidos de memória. Em vez disso, trazem um moderníssimo sistema de armazenamento solid state, muito mais rápido, eficiente e confiável. Com isso, os laptops estão ainda mais leves, ficam mais 'portáteis' e têm capacidade de memória imensamente maior."

"Como o meu", murmurou Gutierrez, sem se dar conta de que Antônio poderia ter ouvido suas palavras e guardado a infor­mação na cabeça.

Apesar de surpreso com a importância da informação que acabava de adquirir, Antônio prosseguiu serenamente: "A me­mória do que neles se faz fica guardada numa 'nuvem', ou seja, numa memória remota, localizada em data centers espalhados pelo mundo e acessados via internet. Os dados são protegidos por criptografia. Para acessar essas informações, o hacker pre­cisa 'roubar' a chave criptográfica para quebrar o código. Não é nada fácil".

"O que você quer dizer?", perguntou Fernando Gutierrez. "Então, o que está no meu computador será acessível a qualquer outra pessoa? O que é feito do sigilo pessoal?"

Antônio estava preparado para questões como essa. Respondeu sem hesitar: "Não. O que está na memória do seu computador fica lá. Mas, no momento em que você transmite essas informa­ções, por via digital, a outro destinatário, ou à sua 'nuvem', então fica tudo vulnerável, penetrável pelos hackers aplicados. Quer dizer: fica lá, mas é acessível".

E prosseguiu serenamente: "Hackers precisam saber não só 'onde esta a memória, mas, sobretudo, saber o que 'procurar' nelas. E, mais ainda, devem ser capazes de reconhecer o que es­tiverem procurando, quando o encontrarem. Por exemplo, o Wi­kileaks: vazamento de correspondência confidencial de órgãos do governo americano com seus funcionários, embaixadores e agentes, domésticos ou internacionais".

Gutierrez discordou mais uma vez: "Mas, concretamente, al­guém que deu ao Julian Assange o código de acesso ao arquivo do Departamento de Estado norte-americano".

"Sim", respondeu Antônio. "Mas a posse do código de acesso não é suficiente para violar segredos guardados em arquivo di­gital. Não basta ter na mão a chave da porta. É indispensável saber o que — coisas, papéis, dados, informações — o hacker vai procurar."

Percebendo o interesse de Gutierrez, Antônio continuou: "O Assange entrou num dos muitos arquivos do Departamento de Estado. Mas não sabia o que procurar. Não teve oportunidade, ou tempo, de analisar o que via, nem conhecimento suficiente para distinguir o que era importante do que não era. Por isso, copiou arquivos inteiros e precisou armazenar centenas de milhares de papéis e milhões de informações na memória de vários compu­tadores. Para criar impacto na mídia, foi soltando 'revelações' e 'segredos' aos poucos".

Diante da perplexidade do seu interlocutor, Antônio prosse­guiu: "Viu-se depois que grande parte, senão a maior parte, do material recolhido por Assange caía em umas três categorias principais. Havia textos do tipo 'fulano disse' ou 'fulano me disse', isto é, conversas formais — ou, mais freqüentemente, informais —, diretas ou de segunda mão, sobre ações possíveis de governos e autoridades nos quais os missivistas eram credenciados".

"Ou, então, mensagens do tipo eu acho', com opiniões ou con­clusões, quase sempre pessoais, dos embaixadores, enviados e agentes, sobre o que se dizia ou se 'pensava' nos meios em que circulavam, a respeito de assuntos presumivelmente de interesse do governo americano, da sua política externa ou do seu relacio­namento com outras nações.

"E um terceiro tipo de mensagem: algo como 'a tendência parece ser', quando os remetentes das mensagens davam sua interpretação dos fatos, propostas, opiniões que ouviam. Ou, freqüentemente, análises mais ou menos profundas, de outras pessoas.

"Quase tudo", concluiu Antônio, "é um amontoado de simples banalidades que poderiam ser vexatórias, humilhantes, ou preo­cupantes, na ocasião em que foram ditas ou transmitidas, mas que perderiam importância à medida que o tempo passava".

Antônio prosseguiu serenamente: "Pense também nos outros vazamentos, de um lado e do outro do mundo, antes e depois do Wikileaks, todos eles facilitados pelas boas razões seguintes: pri­meiro, por quê? Porque, na verdade, por mais secretos que sejam os códigos de acesso a tais arquivos, todos têm certas caracterís­ticas em comum. Devem ser relativamente simples, para poder ser guardados na memória humana e em lugares secretos, mas de fácil acesso por meio de chaves' também simples, que dispensem ser anotadas em papeluchos extraviáveis. Além disso, por mais complicados que sejam, para ser úteis, esses códigos têm de ser lógicos e coerentes".

Após pequena pausa, Antônio continuou: "Daí, os códigos numéricos costumam limitar-se a quatro ou até seis algarismos — o que dá no máximo dez mil a um milhão de combinações, números que um computador de velocidade média resolve em segundos ou minutos".

"Para não sobrecarregar demais a memória pessoal, humana, finita, de quem a eles tem acesso, os códigos numéricos, adotados por um funcionário de qualquer nível, reproduzem em geral nú­meros da vida pessoal ou datas significativas fáceis de lembrar por essa pessoa: nascimento, casamento, formatura, prêmio, luto, 'palpites' habituais na loteria esportiva, os números das casas, dos meios de transporte etc., etc."

Gutierrez permanecia visivelmente incrédulo. Antônio pros­seguiu: "Códigos verbais são mais difíceis de quebrar. Mas todos eles, como eu disse há pouco, têm de ser lógicos. Assim, identi­ficado o primeiro elemento de um código verbal, os demais vão sendo encontrados — dentro da lógica da formulação. Os com­putadores dos hackers são programados para suspender a busca quando o código é identificado e a entrada, permitida".

A conversa parecia ter parado aí. Fernando Gutierrez balançou a cabeça, mostrando incredulidade. Em seguida, perguntou: "Quer dizer que, se você quiser, pode entrar no meu computador e bisbilhotar tudo o que se encontra nele?".

Antônio viu na pergunta a sua chance de identificar o interlo­cutor em termos de local de trabalho e seus objetivos. Respondeu: "Não, eu não poderia. Não tenho o treinamento necessário para isso. Mas um hacker de média competência poderá, a qualquer tempo. Basta que saiba onde está o seu computador, ou em que 'nuvem' está a sua memória — para que possa procurar e achar um e a outra. E, segundo, que ele disponha de um mínimo de in­formações sobre a natureza do trabalho que você faz, para saber o que deve procurar e identificar o seu objetivo se e quando o encontrar".

Continuou: "O que faço é completamente diferente. Não violo segredos. Somente envio um sinal neutro, com uma cláusula de passo seguinte e retorno, para um satélite de comunicação, com localização pré-determinada, dos muitos conhecidos e utilizados pelos profissionais da área de telecomunicações".

Gutierrez continuava a demonstrar interesse. Em face disso, Antônio continuou: "Atingido o primeiro satélite e uma vez ha­vendo esse passado a mensagem adiante, vou em frente e aciono o segundo satélite, com instruções para ele passar o mesmo sinal — com a mesma cláusula de retorno — ao terceiro. Passo ao quarto satélite e assim por diante".

Certo de haver 'fisgado' a atenção do seu interlocutor, prosse­guiu: "Ao longo de anos de tentativas frustradas, consegui enviar o sinal aos vários satélites de comunicação que cobrem o Japão e o vasto território chinês. Como costumo dizer, meu objetivo é 'dar a volta ao mundo' com o meu sinal. Por quê? Por pura dis­tração de engenheiro desocupado. Para quê? Sem propósitos co­merciais, objetivo de lucro ou mesmo aplicação prática visível ou previsível. Coisa de aposentado que não consegue ficar parado".

Gutierrez então falou: "Mas, tendo chegado ao Japão e à China, você já andou a metade do caminho no seu programa de volta ao mundo por via eletrônica. Por que não continua o caminho de lá a partir de localidades brasileiras, como até agora?".

Pergunta esperada, resposta pronta e rápida: "Como você sabe, chineses e japoneses são os antípodas dos brasileiros. Meu sinal chega lá por impulsos sucessivos, que vou dando a um satélite de comunicações e depois a outro. O sinal do meu computador é capaz de atingir, mas não de acionar os satélites chineses e japo­neses situados 'do outro lado do mundo'. Assim, lembrei-me do nosso Fernão de Magalhães, o primeiro navegador a dar a volta à Terra. Por onde? Justamente atravessando do Atlântico ao Pa­cífico pelo canal que hoje leva o seu nome e visitando o Japão, a China, a Índia etc., e voltando ao Ocidente".

Complementou: "Dada a enorme extensão do Pacífico, eu não conseguia, com os meus instrumentos simples, vencer o obstáculo dos Andes a partir dos lugares próximos do nível do mar onde eu vivia e trabalhava no Brasil. Desse modo, não conseguia passar ins­truções a ser cumpridas pelos satélites japoneses e chineses".

"Por esses e outros motivos, decidi vir para cá e tentar chegar ao Extremo Oriente a partir dos pontos elevados da cordilheira dos Andes. Já atingi satélites de comunicação do Havaí e de ou­tras ilhas e arquipélagos do Pacífico com o restante do mundo. Penso que estou no roteiro certo e que, em algumas semanas ou poucos meses, fecharei o círculo."

Gutierrez disse: "Não sei o que pensar, mas a sua exposição vale um uísque, com bastante gelo, puro, sem clube soda".

"Que eu aceito com prazer", respondeu Antônio. "Mas falei muito de mim e você nada disse de si. Vamos lá, pode começar: o que você faz?"

Gutierrez pediu os uísques, pensou, balançou a cabeça e disse: "Não sei se posso lhe falar sobre o meu trabalho. Pelo menos, agora. Por ora, vamos apreciar o nosso uísque e, como vocês bra­sileiros dizem, 'bater papo furado'. Depois, quem sabe?".

Antônio pensou: "Acho que acertei na mosca. Gutierrez tra­balha no centro de pesquisa nuclear do lago Nahuel Huapi, aqui mesmo em Bariloche. Se a pesquisa para a bomba não estiver sendo feita aqui, ele pelo menos saberá alguma coisa a respeito. Vou cultivar sua amizade', camaradagem ou seja lá o que for. De­pois veremos".

Beberam, conversaram, depois jantaram, e um cordial "até amanhã".

Já no quarto, Antônio considerou: "Por que ele não quer falar de si ou de seu trabalho? Ou esse cara é o meu alvo principal ou ele desconfia de mim, o que sou, o que faço ou represento. Deus me livre e guarde!".

 

Na noite seguinte Gutierrez apresentou Antônio à sua mulher: "Este é o professor brasileiro Antônio Gomes de quem lhe falei longamente e com quem tenho conversado. Gomes aposentou-se recentemente como catedrático de eletrô­nica e informática de uma universidade do interior do seu país. Ele anda por aqui, como você há de ter observado, com seus aparelhos inseparáveis: um iPad e um laptop, procurando dar uma de Fernão de Magalhães: a volta ao mundo pelo Pacífico, agora por via eletrônica".

A mulher de Gutierrez, de nome Leyla, quis saber do que se tratava. Antônio explicou. Ela pouco ou nada entendeu. Nos dias e noites seguintes, Antônio foi apresentado a outros moradores do hotel e a suas famílias: quatro engenheiros, um médico, um físico, um químico, todos aparentemente trabalhando no mesmo lugar, jamais mencionado especificamente.

Dias e semanas foram passando. Muita conversaria e muito jogo de cartas. Infinitas e vagas conversas no bar, mas nada de concreto, ou que tivesse ligação com o objetivo da missão de An­tônio. Certa vez, antes do jantar, quando todos tomavam seus aperitivos, Antônio pôs-se a falar: "Tenho vagado muito pelas redondezas — na planície, nos cerros e nas margens dos lagos, admirando a vegetação e sua resistência ao frio e aos ventos. O solo patagônico me parece extremamente fértil, para que os ve­getais resistam às intempéries locais. Em particular, gostei de ver, nos picos, as arvores bandeiras', cujos galhos e ramagens ficam na horizontal pela força dos ventos constantes vindos do Pacífico".

"Vocês com certeza já viram tudo isso e muito mais. Mas as pessoas com quem falo me dizem que a paisagem é ainda mais bonita no extremo sul da Patagônia. Por lá parece que existem glaciares e paisagens geladas inesquecíveis. Além de peixes raros, pingüins e outros pássaros e animais exóticos."

Um dos presentes, o médico Carlos Rupert, respondeu: "É tudo verdade. Vale a pena visitar, mas só agora, no verão, quando a tem­peratura varia por lá entre dez graus positivos no meio do dia e dez graus negativos no meio da noite. No inverno, a temperatura cai muito mais e mantém-se gelada por meses. Só há trinta dias sem chuva por ano. Mas estamos falando de uns dois mil e quinhentos quilômetros de distância. Muita gente gosta de fazer essa viagem, com ida de avião e volta por terra, de ônibus ou automóvel, para apreciar. À medida que vem para o norte, você observa as mu­danças de clima, vegetação, fauna, paisagens, mais gelo, menos gelo, rios, lagos, montanhas e glaciares".

Antônio perguntou: "E qual é o bom destino, a primeira pa­rada, o itinerário?". Com a aparente concordância de todos, Rupert falou: "Vá de avião até El Calafate, à margem do Lago Ar­gentino. Lá por perto ficam os cerros Buenos Aires e Avellaneda, ambos com mais de 1.500 metros de altitude, bem perto da fron­teira com o Chile. E muitos passeios para fazer, pelo lago, pelas geleiras, montanhas e planícies quase desertas".

Depois de pensar um pouco e embora tivesse estudado cui­dadosamente os mapas e guias turísticos, Antônio preferiu fingir ignorância e perguntou: "Quer dizer que em El Calafate estarei próximo da Terra do Fogo e da Antártida?".

Foi a vez, então, de um dos outros engenheiros, Pedro Agostini, responder: "Não. Você ainda estará longe da Terra do Fogo e da península Mitre, pontos de destaque do extremo sul da Argentina. Esses dois acidentes geográficos são inacessíveis por terra. O bom caminho para chegar lá é tomar um pequeno avião em El Calafate — há muitas linhas aéreas locais — e voar por uns 70 a 80 minutos até Ushuaia, onde termina a estrada de rodagem nacional. Ushuaia é muito bonita e fica à margem do Canal de Beagle, pelo qual você pode seguir até o fim do con­tinente, que os locais e mesmo os guias turísticos denominam apropriadamente 'Fin dei Mundo'. Mas não recomendo. É sacri­fício demais".

Antônio replicou: "Acho essa viagem tentadora para um apo­sentado em férias, sem nada melhor para fazer. Vou indagar em agências de viagem, olhar guias e quem sabe me anime a tentar".

Em seguida perguntou: "Por que a região se chama Terra do Fogo? Há incêndios florestais por lá? Florestas na região?" Outro engenheiro, Juarez Blanco, que também havia trabalhado por lá, respondeu: "Não. Chama-se Terra do Fogo porque os primeiros viajantes, ao passar pela região, encontraram numerosos vulcões em erupção — hoje, todos extintos ou adormecidos — e o nome era adequado então. 'Pegou'".

Antônio teria mesmo de ir à região: o chefe e o vice-chefe do Emfa haviam concordado em que, se a instalação do lago Nahuel Huapi não fosse o lugar em que se desenvolvia a bomba atômica argentina, uma localização provável seria o sul da Patagônia. Na­quelas bandas, pensou, com pouca ou nenhuma distração, as pes­soas talvez estivessem mais propensas a falar. "Mas este pessoal sabe muito sobre o sul da Patagônia. Será que todos trabalharam em possíveis instalações acaso existentes lá para criar uma bomba atômica?"

Olhou em torno. Alguns dos presentes não conseguiam es­conder a tensão que os dominava. Depois, as mesmas conversas de sempre, cordiais, mas inócuas do ponto de vista da missão de que ele estava incumbido.

Na dúvida, pensou: "Devo mencionar as instalações secretas das quais ninguém sem credenciais pode aproximar-se?". Pelo sim, pelo não, arriscou umas palavras:

"Outro dia, andando de carro à toa pela planície a partir de Bariloche, encontrei uma edificação perto de um lago, que, fi­quei sabendo, era o quartel de uma companhia de engenharia de montanha, ou coisa parecida. Sendo eu também engenheiro, em­bora de planície — sorrisos gerais —, tentei falar com algum dos oficiais engenheiros. Não me deixaram nem chegar perto. Desde então me pergunto: por quê?"

Foi a vez de Fernando Gutierrez dizer: "Nós não sabemos o que é, nem vamos para aqueles lados. Parece que existe por ali uma academia militar, mas não temos contato com nenhuma das duas. Nosso trabalho é muito diferente".

Ponto final. O que Antônio nem imaginava é que as suas pa­lavras haviam aguçado as suspeitas de Gutierrez sobre o objetivo real da sua presença na região.

Na manhã seguinte, Gutierrez tomou a si a tarefa de levar suas suspeitas — menos que suspeitas, pensava ele, simples dúvida e alguma perplexidade — ao chefe da operação das margens do lago Nahuel Huapi. O prédio era tão anônimo quanto poderia ser um estabelecimento com área construída de mais de dez mil metros quadrados, mas não tinha placa indicando seu nome — se é que tinha nome.

Ao chegar a seu local de trabalho e de reflexão sobre o mérito do que fazia ali, o cientista nem entrou em sua sala, foi direto ao gabinete do diretor. Embora vestindo traje civil, o diretor deixava transparecer — pela maneira de cortar o cabelo, pelos gestos e por certa rigidez de atitude e de palavras — a sua condição de militar de média ou alta patente, também engenheiro, mas com especiali­zação em energia nuclear, como convinha àquela instalação.

Feitos os cumprimentos de praxe, Gutierrez dirigiu-se ao di­retor: "Dr. Ernesto Larreta, espero que compreenda o que vou dizer dentro do mesmo espírito com que vou falar. Há umas três semanas mora no Hotel Los Pampas um engenheiro brasileiro especializado em eletrônica, de nome Antônio Gomes, professor universitário recentemente aposentado. Ele passa o dia inteiro debruçado sobre um iPad e um laptop, com o fim, diz, de emitir um sinal eletrônico neutro, dirigido aos satélites de comunica­ções internacionais'. Esse sinal levaria uma instrução ao primeiro satélite, o qual então direcionaria o sinal a um segundo satélite, este a um terceiro e assim por diante, até, como diz o dr. Gomes, 'dar a volta ao mundo' pela cadeia de satélites de comunicação de uso público".

Gutierrez parou, à espera da reação do diretor. Este fez apenas três perguntas: "Primeiro: o que o tal Gomes, ou que nome tenha, está fazendo na Patagônia? Segundo: o que nós, deste laboratório que se ocupa de coisas muito diferentes, temos com isso? Ter­ceiro: ele tem alguma ligação ou vivência com energia nuclear?".

Mas Gutierrez tinha de limitar-se às explicações que Antônio havia passado: chegara até os satélites de comunicação chineses e japoneses, ressalvando que, pelo fato de a China e o Japão se situarem, literalmente, do outro lado do mundo em relação ao Brasil, ele não conseguira passar instruções aos satélites de lá para que continuassem a fazer progredir os sinais de volta ao conti­nente sul-americano, fechando o círculo da "volta ao mundo".

Assim, continuou Gutierrez, dada a imensidão do Pacífico, ele viera à Patagônia para, "do alto dos nossos cerros, situados virtual­mente às margens do oceano, atingir os satélites que permitem as comunicações internacionais de e para o Havaí, o Japão, a China, a Nova Zelândia, a Austrália e os outros países da Oceania, fechando o círculo".

"Como ele mesmo diz, pretende reproduzir o feito pioneiro de Fernão de Magalhães e dar a volta ao mundo pela via do Pacífico, usando ondas eletromagnéticas invisíveis e imperceptíveis, em vez de pesadas caravelas."

Larreta repetiu: "E o que é que nós temos com isso?".

Gutierrez sentiu que havia chegado ao ponto crucial da visita ao gabinete do diretor. Depois de pensar um minuto, falou: "Nós, engenheiros deste laboratório, temos, menos que uma suspeita, uma desconfiança de que Antônio Gomes não esteja sendo com­pletamente verdadeiro. Não sei se é a circunstância de ele ser brasileiro, o que levanta a nossa instintiva desconfiança, ou se é o fato de se interessar muito por nossas vidas: quem somos, o que fazemos etc. Outro dia, disse-nos, chegou até o quartel da companhia de engenharia de montanha, aqui perto, mas não o deixaram falar com os engenheiros dali".

Larreta perguntou: "Você acha que o nosso trabalho está cor­rendo algum risco, por exemplo, de sabotagem?". Gutierrez res­pondeu negativamente e levou Larreta a indagar mais uma vez: "E o que é que você quer que eu faça?!".

"O que é que eu quero, mesmo? Por que e para que eu vim até aqui?", pensou com seus botões o engenheiro, pouco afeito a digressões verbais.

Depois falou: "Acho que ficaríamos todos mais seguros — e eu menos preocupado — se o senhor, usando as vias normais de governo, pedisse ao nosso pessoal diplomático em Brasília para checar essa história de professor universitário aposentado, espe­cialista em eletrônica, com diploma de mestrado obtido na mais famosa universidade francesa, a Sorbonne, e doutorado no igualmente famoso MIT, dos Estados Unidos, e nestes dias completa­mente abúlico. Ou se, embora não pareça, é alguém camuflado, da área de energia nuclear do Brasil, em missão de espionagem".

Larreta hesitou, balançou a cabeça e disse: "Você sabe que, se o que ele diz for verdade, nós faremos papel de bobos perante nossos superiores. Brasil e Argentina têm, há mais de trinta anos, sucessivos acordos de cooperação bilateral no campo do uso da energia nuclear para fins pacíficos. A expressão-chave é 'fins pací­ficos'. Bem sei que em tudo isso há muitas palavras bonitas, mas praticamente nada em termos de ações concretas".

Pequena parada e continuação: "Como você também sabe, há uns dois ou três anos esteve aqui para nos visitar uma delegação da comissão de energia nuclear brasileira. Ela queria, realmente, saber até que ponto estávamos enriquecendo urânio nestas ins­talações. Nós lhes mostramos tudo. Isto é, tudo o que devia ser mostrado".

E continuou: "Os cientistas brasileiros saíram daqui con­vencidos de que, na melhor das hipóteses, seríamos capazes de chegar a uns 20% de enriquecimento, para uso na geração de ele­tricidade. O que não existia naquela época e, portanto, eles não viram nem desconfiaram, é o que estamos fazendo agora".

Após uma longa pausa, Larreta retomou a palavra: "Eu nem desconfio de vazamentos de informação sobre o nosso trabalho. Mas, de qualquer modo, vou falar com os meus chefes e pedir- -lhes que acionem os meios diplomáticos, ou outros, com um ra­zoável pretexto para checar as credenciais do seu amigo Antônio Gomes. Dê-me os dados dele".

Gutierrez disse tudo o que sabia de Antônio Gomes: nome, idade, profissão, aposentadoria, local do magistério, cursos de mestrado e de doutorado. Larreta agradeceu simplesmente: "Muito obrigado pela advertência".

Gutierrez despediu-se e saiu, não sem certo peso na cabeça: "Fiz a coisa certa? Ou terei exagerado?".

Na noite do dia seguinte, encontros no bar, saída de Antônio com o casal Gutierrez para saborear um bom jantar num dos melhores restaurantes de Bariloche. Conversas normais, mesmo após Antônio dizer: "Tenho pensado muito na promoção que vocês fizeram das belas paisagens do sul da Patagônia. Como ainda estamos no auge do verão, irei, sem medo de congelar, ver as belezas que vocês proclamaram".

Leyla de Gutierrez apoiou a decisão. Gutierrez "fechou-se em copas", como se diz.

Leyla continuou: "O que você não vai encontrar em grande quantidade por lá é gente. A população é muito rarefeita e, sendo poucas pessoas, todas gostam de falar muito com todos, locais ou estranhos, sobre tudo e sobre nada. Se ficar muitos dias, vai achar monótono. E, para quem vem 'de fora, como nós mesmos quando por lá moramos, o tédio é absoluto. Nós, e todos os ou­tros que trabalhavam juntos, tivemos de sair de lá e vir para cá. Aqui é meio deserto. Lá é deserto e meio. Nem o pessoal do go­verno agüenta". Gutierrez quase estourou de tanto rir. E pensou: "Talvez eu devesse chorar. A Leyla revelou tudo".

Antônio achou que já sabia de tudo e que, a rigor, nem preci­sava ir ao sul do continente. Os trabalhos de pesquisa da bomba haviam mesmo sido transferidos para cá. Mas continuou a co­média: "Sim. Vou viajar para lá daqui a alguns dias e seguirei o roteiro que você, Gutierrez, me indicou: primeiro irei a El Calafate. Depois, de avião local, a Ushuaia. Daí à ponta do continente. Assim, poderei fazer mil fotos e escrever aos meus sobrinhos, contando tudo o que as paisagens, flora e fauna representam".

Tomaram seus aperitivos, jantaram e voltaram ao hotel resi­dencial Los Pampas. Se hipocrisia fosse como uma canelada, os dois homens estariam gemendo de dor.

De seu lado, embora Antônio nem desconfiasse, o dr. Larreta — aliás, coronel engenheiro Larreta — começava a estimular a burocracia argentina a mexer-se.

A noite, uma simples comunicação ao Emfa: "Sigo amanhã ao extremo sul". E outra, igualmente lacônica, a sua mulher Mer­cedes: "Continuo bem de saúde e com muitas saudades. Vou con­tinuar a viagem". Não disse para onde, nem por que motivo.

 

A burocracia funcionou devagar, como sempre, mas a con­tento. Quinze dias depois do encontro de Gutierrez e Lar­reta, o adido cultural da Embaixada da Argentina em Brasília, Juan Domingo Rossi, recebeu o encargo de descobrir quem era Antônio Gomes, sua idade, seus títulos profissionais (engenheiro com pós-graduação, professor aposentado?) e o que mais fosse possível saber, sem mostrar suas cartas.

Para desincumbir-se da tarefa, Rossi passou horas telefonando para todos os lados. Mas ninguém do seu relacionamento pes­soal ou diplomático tinha a menor idéia de quem seria Antônio Gomes. Numa visita à Faculdade de Engenharia da Universidade de Brasília, seu contato, José Maria de Figueirola, um dos vice- diretores da escola, informou, depois de demorada e extensa pesquisa nas listas de graduados nos vários ramos de engenharia, desde a fundação da UnB: "Tenho aqui uns oitenta Antônios, uns cinqüenta Gomes, uns doze Antônios Gomes, mas nenhum em idade compatível com a pessoa do seu interesse".

Quase desanimado, Rossi falou: "Pelo que sei, ele seria pro­fessor aposentado há pouco tempo pela Universidade do Serro, no Estado de Minas Gerais. Mas, por mais que eu tente, não consigo contato com essa escola, nem mesmo o número do seu telefone".

"Não admira", disse Magalhães, "essa universidade foi fechada pelo governo federal há uns quatro meses. Talvez você obtenha alguma informação no Departamento de Ensino Superior do Ministério da Educação. O diretor-geral do departamento é o professor Emiliano Dias Ferreira. Posso telefonar para ele, pedindo-lhe que o receba pessoalmente ou que designe alguém para ajudá-lo nas buscas."

Rossi aceitou a oferta, agradeceu a atenção e saiu meio desa­nimado. Dois dias depois, entretanto, recebeu na Embaixada um telefonema da doutora Ernestina Madureira, chefe de gabinete do diretor-geral do Ensino Superior, marcando uma audiência pessoal para a segunda-feira seguinte, às 10 horas da manhã, no oitavo andar do prédio do Ministério, na esplanada onde ficam as sedes ministeriais em Brasília.

No dia e hora marcados, Rossi apresentou-se ao gabinete do diretor-geral. O qual, como de costume, ainda não havia chegado. Tratando-se de um diplomata de país amigo, a chefe de gabinete explicou a situação, alegando algum motivo de força maior, e pôs-se à disposição para responder às perguntas do adido cultural.

Rossi percebeu que o diretor-geral não iria recebê-lo e que teria de contentar-se em falar com a chefe de gabinete. Pensou alguns segundos e resolveu ir em frente: "O governo argentino tem interesse nos serviços do engenheiro Antônio Gomes. Creio que especializado em eletrônica. Mas temos encontrado dificuldades praticamente insuperáveis para checar os dados biográ­ficos que ele nos deu: idade, 52 anos; engenheiro formado numa das catorze universidades do Estado de São Paulo; professor aposentado da Universidade Federal do Serro, em Minas Gerais; diploma de mestrado obtido na Universidade da Sorbonne, na França, e de doutorado no MIT, nos Estados Unidos. Você po­deria confirmar?"

Ernestina Madureira sorriu e disse: "Sua dificuldade de con­tato não me causa surpresa. A Universidade do Serro era uma das que um governo anterior criou, no papel, com o objetivo de­clarado de promover o desenvolvimento das atividades ligadas à pesquisa e às aplicações de várias ciências — direito, medicina, economia, engenharia, ciências sociais, magistério, tecnologia di­gital, mecânica e tudo o mais que uma universidade deve prover".

Parou, mas continuou: "Desculpe-me falar assim: o novo go­verno, o atual, que sucedeu àquele, logo verificou que a iniciativa tinha muito de demagogia e quase nada de técnica educacional. Primeiro, os níveis de ensino elementar e médio, que realmente necessitavam de investimentos para a sua universalização e eficiência, ficaram de fora. Segundo, não havia professores em nú­mero suficiente para prover as cadeiras das antigas universidades e, muito menos, para as cem novas. Por fim, a localização das chamadas universidades regionais' não foi decidida por critérios técnicos, mas pela capacidade dos políticos com interesses locais de pressionar o governo federal para obter decisões que demons­trassem seu prestígio nos altos círculos e, eventualmente, benefi­ciassem seu eleitorado".

O adido cultural passou a entender ainda menos a situação. Perguntou: "E em relação à Universidade do Serro, onde pretensamente Antônio Gomes foi professor?".

Ernestina disse: "O Serro é uma média cidade no coração do Estado de Minas Gerais. Tem longa história dos tempos colo­niais, mas sua baixa população atual é insuficiente para a oferta de vagas de nível superior. A poucos quilômetros de lá, fica a ci­dade de Diamantina, muito mais populosa que a do Serro, com sua universidade própria".

E continuou: "Assim que o novo governo assumiu, a Univer­sidade do Serro entrou na lista das que seriam extintas — o que aconteceu, de fato, há quatro meses. Seus arquivos foram encaixo- tados e remetidos ao Arquivo Nacional — departamento do Mi­nistério da Justiça —, o qual, se e quando tiver tempo disponível, vai tirá-los do 'fim da fila dos papéis de menor importância que aguardam classificação, avaliação e, eventualmente, sobrevida".

Juan Domingo Rossi então falou: "Quer dizer que não tenho chance de verificar os dados biográficos do senhor Antônio Gomes?" Ernestina respondeu: "Não é bem assim. Tenho, para cada universidade federal, a lista dos professores aprovados em concurso público e, portanto, nomeados por meio de ato ministerial. Vou ver o que diz o meu file". Ernestina levantou-se, saiu da sala por uns cinco minutos e voltou com um papel impresso pelo computador. E disse a Rossi: "Aqui estão os dados que tenho. Conferem com os seus?"

Rossi examinou o papel, comparou os dados com suas anota­ções e respondeu: "Sim. De fato. Mas é muito pouco, aqui só se fala da nomeação por concurso para a Universidade do Serro, de seus títulos acadêmicos, da sua aposentadoria; nada diz sobre os anos anteriores.

Você não poderia obter essas informações? Além de tudo, aposentadoria aos 52 anos não é uma coisa fora do comum?"

Já meio cansada da lenga-lenga, Ernestina Madureira voltou a falar: "O arquivo sobre a vida de um professor, com os trabalhos feitos e os detalhes de sua vida profissional, é mantido pela uni­versidade na qual o professor leciona. Se você tiver a lista das uni­versidades nas quais ele trabalhou, em poucos minutos eu terei sua história".

"Não tenho", respondeu Rossi. "Mas resta o detalhe da apo­sentadoria aos 52 anos", continuou. "Parece cedo demais para al­guém se aposentar."

Ernestina deu resposta imediata: "De qualquer modo, o An­tônio Gomes deverá ter, pelo menos, trinta anos de serviço ao governo federal. Além disso, pela lei brasileira, a nomeação para o magistério por concurso público dá ao aprovado um cargo vi­talício. E a lei que autorizou a extinção daquelas universidades expressamente deu aos professores com mais de trinta anos de serviço a possibilidade de optar entre duas hipóteses: aceitar a remoção para outra universidade federal ou aposentar-se com salário integral. Aparentemente, o nosso Antônio Gomes terá optado pela aposentadoria e férias permanentes".

Juan Domingo Rossi percebeu que isso era tudo o que poderia obter no Ministério da Educação: a identidade de Antônio estava confirmada, em boa forma possível.

Restava, porém, em sua mente, uma dúvida inspirada por meias palavras de autoridades de outras áreas ou sussurradas aos diplomatas que o haviam incumbido da pesquisa. Sem muito pensar, perguntou a Ernestina: "Seria possível saber se Antônio Gomes se dedicou ao estudo ou manifestou algum interesse pro­fissional em questões ligadas à energia nuclear?".

"Não sei", respondeu Ernestina. "Nem é possível saber isso aqui, no Ministério da Educação. Quem cuida de assuntos re­ferentes à energia nuclear, com absoluta exclusividade, é a Co­missão Nacional de Energia Nuclear. A CNEN, segundo o pouco que se sabe a respeito, tem um cadastro completo de todas as pes­soas que, no Brasil, são técnicas ou têm, ao menos, certo grau sig­nificativo de interesse pelo assunto. Você terá de ir lá e perguntar."

Um momento depois, Ernestina Madureira acrescentou: "Para poder exercer a profissão, todo engenheiro brasileiro, seja qual for a sua especialidade, tem de registrar seu diploma no Con­selho Regional de Engenharia e Arquitetura, o Crea do Estado onde reside ou pretende exercer a profissão. Se ele for registrado no Distrito Federal, o Conselho Nacional, sediado aqui mesmo em Brasília, tem acesso aos registros de todos os Creas e poderá confirmar o status da pessoa de seu interesse".

Rossi pediu nomes, endereços e números de telefone. Agra­deceu a acolhida e despediu-se.

De volta à embaixada, pôs-se novamente em campo, em Bra­sília, à procura de meios para obter duas audiências: uma com o presidente da CNEN, ou, alternativamente, com um outro alto funcionário capaz de responder às suas perguntas, e uma se­gunda audiência com alguém do Conselho Nacional de Engenharia e Arquitetura.

Sem surpresa, foi preciso que o embaixador argentino Fran­cisco Portonegro falasse pelo telefone sobre as duas audiências com o chefe da divisão da América Latina do Ministério das Re­lações Exteriores — ele também, Felipe Arantes, embaixador de carreira.

Nem houve surpresa quando o diplomata quis conhecer o objetivo das audiências. Portonegro deu a versão neutra: "Bus­camos detalhes sobre um técnico brasileiro em energia nuclear que o meu governo tem certo interesse em conhecer e, even­tualmente, contratar para prestar serviços na Argentina, bem na linha dos acordos bilaterais de cooperação no uso pacífico da energia nuclear".

Arantes prometeu providenciar. Falou com o presidente da CNEN e este achou que a pessoa daquela comissão mais cre­denciada para dar detalhes sobre técnicos seria o diretor de re­crutamento, professor Luiz Gonzaga Brito. Arantes ligou para Brito, explicou tudo, pediu a colaboração do cientista travestido de burocrata e acrescentou: "Não deixe de manter os olhos bem abertos. Essa estória de energia nuclear entre Brasil e Argentina contém, por definição, muitas armadilhas. Qualquer coisa que se passar entre você e o adido cultural, fora da simples identificação de determinada pessoa, fale comigo logo depois".

Marcou-se hora para o dia seguinte na CNEN. Rossi estava no auge do contentamento.

Enquanto as coisas andavam à sua revelia em Brasília, Antônio se preparava, em Bariloche, para a "sua" viagem ao sul da Pata­gônia. Numa das conversas de bar, falou com Gutierrez: "Ah! Vou fazer aquela viagem que vocês me aconselharam. Amanhã, saio de avião para El Calafate. De El Calafate e redondezas seguirei viagem rumo ao extremo sul. Depois, volto para cá e conto a vocês tudo o que vi, o que gostei e não gostei".

Juan Domingo Rossi chegou na hora para a visita ao professor Luiz Gonzaga Brito, na CNEN, que o recebeu imediatamente. Apresentações recíprocas, minutos de conversa informal. A sala era de tamanho mediano, mais para simples. Retratos na parede: do presidente da República, do ministro da Ciência e Tecnologia, da presidente da CNEN. As paredes "livres" eram ocupadas por pesadas estantes, cheias de livros grossos. Sobre a mesa, fotos de família: mulher e filhos.

Então, Rossi falou: "Bem, professor, o que me traz aqui é uma indagação simples: o governo argentino gostaria de ter informa­ções sobre a capacitação profissional, no campo nuclear, de certo engenheiro de 52 anos chamado Antônio Gomes. Conforme nos disse o Itamaraty, o senhor, como diretor de recrutamento da CNEN, sabe tudo de todos os técnicos brasileiros de níveis médio e superior que lidam com energia nuclear".

Brito confirmou: "De fato. Não importa o grau de especiali­zação das pessoas, onde trabalhem ou o que façam na área nu­clear, todas são registradas na CNEN, nesta diretoria. Quem é mesmo que o senhor gostaria de conhecer?". Rossi imediata­mente sacou do bolso um cartão no qual tinha anotado os dados de Antônio Gomes: nome, idade, graduação como engenheiro, pós-graduação — mestrado e doutorado — e aposentadoria.

Depois de ler os dados, Brito disse: "Fácil. Aqui, na sede da CNEN, ele não trabalha, ou eu reconheceria imediatamente o seu nome. Mas o meu computador sabe tudo", e voltou-se para o laptop ao seu lado. Entrou no programa certo, digitou o nome Gomes e o resultado logo apareceu. Rossi havia feito o possível para não parecer indiscreto, mas tudo vira e anotara mentalmente: quatro pessoas com o nome Gomes. Parecia bom começo. Mas a tarefa apenas começara, havia ainda muito ca­minho a percorrer.

Brito falou: as informações que vou passar a você são confi­denciais. Porém, em face de sua posição como diplomata, vou chamar cada um dos nomes.

E falou: "Temos a engenheira Alice Schindler Gomes, natural de Santa Catarina, pai brasileiro, mãe descendente de alemães. Como fala alemão fluentemente, está trabalhando com os compatriotas' dela na montagem da usina Angra III, a qual, como você sabe, foi fornecida há mais de trinta anos pela indústria alemã, mas só agora está sendo preparada para entrar em operação".

Novo nome: "Emílio de Vasconcelos Gomes, nascido no Es­tado da Bahia", disse Brito. "E agora em curso de mestrado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos."

E passou adiante: "Aqui mesmo na CNEN temos dois enge­nheiros Gomes: um grande, meio pesado, chamado por todos de 'Gomão', e outro pequeno e magro, chamado Ferdinando Gomes da Silva, mais conhecido entre os colegas pelo apelido de 'Go- minho'. Apelidos que em espanhol seriam algo como 'Gomezón e 'Gomezito'. Você quer conhecê-los? Posso chamá-los agora aqui, ao meu gabinete".

Rossi declinou. Mas perguntou: "Não seria possível que o An­tônio Gomes que estou procurando seja efetivamente um técnico em energia nuclear e trabalhe ou simplesmente exista em algum lugar, sem registro ou conhecimento da CNEN?".

Brito respondeu em cima: "Vou ignorar o comentário que você acaba de fazer e que eu poderia considerar depreciativo da minha competência. Mas o fato é que na CNEN nós temos registro de todo — repito, todo — o pessoal técnico da nossa área".

"Talvez você ainda tenha a velha informação", continuou Brito, "de que o Brasil só dispõe de pequenas jazidas de urânio, e da nossa baixa capacidade de mineração e de enriquecimento. Bem, isso não é mais verdade. Hoje, o Brasil tem uma das maiores re­servas de urânio do mundo — algo acima de 300 mil toneladas de minério. O que, em nível de enriquecimento, de 2% a 20%, daria para operar por muitos anos os geradores de eletricidade de todas as maiores cidades do globo. Em menos de dez anos dei­xaremos de importar urânio e passaremos a ser um dos maiores exportadores mundiais do produto."

Rossi tentou desculpar-se, não era sua intenção ofender o cientista. Este, porém, continuou sem hesitar: "Atualmente, é verdade, importamos da França o urânio enriquecido neces­sário para operar as usinas de Angra dos Reis. Mas o governo brasileiro está cuidando de criar em nosso próprio território e em ritmo acelerado importantes centros de enriquecimento de urânio, operados por empresas brasileiras. Afinal, existem atualmente no mundo mais de cinqüenta projetos de cons­trução de usinas elétricas movidas a energia nuclear: uns vinte a trinta na China, outras na Coréia do Sul e na própria França, além de seis no Brasil".

E continuou: "Por isso mesmo, precisamos conhecer uma a uma, para eventualmente recrutar, todas as pessoas especiali­zadas ou praticantes de qualquer setor da nossa área".

Sem ter mais a dizer, Juan Domingo Rossi preferiu o silêncio. Agradeceu as informações, despediu-se e ouviu a frase final: "Não existe atualmente no Brasil nenhum técnico em energia nuclear chamado Antônio Gomes, com a idade e os títulos que você mencionou. Se esse cara' se intitula técnico nuclear, ele não passa de um impostor".

Meio desacorçoado, o adido cultural voltou à sede da missão, no Setor de Embaixadas de Brasília. Parou um pouco na sua sala, com o duplo objetivo de recuperar-se da objurgatória do diretor de recrutamento da CNEN e de organizar e avaliar as informa­ções que recebera das diversas fontes. Antônio Gomes existia, sim. Mas seria profissional de qualquer especialidade, menos energia nuclear. Brito fora decisivo: não havia nenhum brasileiro chamado Antônio Gomes atuando em energia nuclear.

Tudo parecia indicar que Antônio Gomes era realmente o que dizia ser: engenheiro especializado em eletrônica e professor aposentado da extinta Universidade do Serro.

Faltava checar o registro como engenheiro. Bem perto do convencimento, Rossi foi, conforme combinado, à sede do Con­selho Nacional de Engenharia e Arquitetura, no anexo de um dos prédios ministeriais de Brasília. Recebeu-o cordialmente um as­sessor da presidência do Conselho, que ouviu suas perguntas e, de posse do nome, idade e menção dos diplomas de graduação e pós-graduação, voltou-se para o seu computador e foi checando os registros dos vários Creas. Minutos depois, mostrou a Rossi a inscrição de Antônio Gomes nos Creas de São Paulo e Minas Gerais, como engenheiro eletrônico, sua graduação e pós-gra- duação e a referência à sua área de residência: a cidade do Serro, em Minas.

Rossi pensou então que nada mais restava a fazer. Os dados obtidos confirmavam as informações recebidas de Buenos Aires a respeito do que Antônio Gomes dizia ser. Voltou à embaixada e foi ao gabinete do embaixador dar-lhe conta do que soubera. Contudo, para não ficar mal perante si mesmo e perante seu superior, diria apenas que confirmara a identidade de Antônio Gomes e comprovara que ele não atuava em energia nuclear.

Feito isso, o embaixador pediu-lhe que escrevesse um sucinto relatório a respeito. Afinal, acrescentou o diplomata, o assunto não parecia tão importante para justificar uma comunicação urgente, por telefone ou mala diplomática, com Buenos Aires. "Limite-se a confirmar por e-mail a identidade e o registro profissional do engenheiro. Como ninguém nos perguntou oficial­mente sobre a qualificação do Gomes em energia nuclear, guarde a informação para eventual uso futuro, se for o caso."

 

Enquanto viajava em direção ao sul da Patagônia, Antônio nada sabia sobre a pesquisa a seu respeito feita pela em­baixada argentina em Brasília. Mas, se tivesse conhecimento do que se passara na capital federal brasileira, teria "tirado o chapéu" para o Emfa: eles haviam feito tudo o que um bom es­trategista recomendaria para comprovar a identidade de uma pessoa inexistente.

A pesquisa não chegara a esse ponto, mas uma pergunta pelos "canais competentes" à Sorbonne e ao MIT confirmaria a existência, nos arquivos daquelas entidades, dos dados re­ferentes ao mestrado e doutorado de certo Antônio Gomes, pessoa que jamais passara por seus portões. Informações que, obviamente, haviam sido "plantadas" nas duas instituições a mando do Emfa, interessado em confirmar a sua identidade e os seus títulos acadêmicos.

Tudo o que, se Antônio soubesse, confirmaria a sua tese ex­posta no bar do hotel residencial Los Pampas sobre a vulnerabi­lidade dos registros digitais. E a possibilidade de acesso — para saber o que por lá se encontra, modificar informações existentes, acrescentar dados novos, enfim, "deitar e rolar" nos computa­dores mais sofisticados. Possibilidade limitada, naturalmente, a hackers com nível adequado (alto e muito alto) de capacitação profissional.

 

Na embaixada argentina o assunto estava encerrado e cada qual se ocupava de suas tarefas. Mas, na sala do diretor de recru­tamento da CNEN, professor Luiz Gonzaga Brito, a questão aflo­rava de vez em quando. Ele pensava: "Cooperação entre Brasil e Argentina, para uso pacífico da energia nuclear, tem de ser conduzida, sempre, de governo a governo. Isso de um governo fazer investigações 'informais' sobre técnicos nacionais do outro país me parece história mal contada. Seria o caso de despertar a atenção do Itamaraty?".

Na verdade, não havia muito o que dizer. Era comum, na área da energia nuclear, alguém querer "tomar carona" nos trabalhos que outros estivessem fazendo. As perspectivas de glória e fama, para não falar no "vil metal", eram muitas. Nada a fazer, concluiu.

Porém, vários dias depois — na hora do almoço informal na cafeteria da CNEN —, o professor Brito ouviu outro alto funcio­nário, o também professor Armando de Oliveira Dias, mencionar algo referente à "cooperação bilateral para uso pacífico de energia nuclear" Lembrou-se imediatamente de uma reunião no Estado-Maior da Forças Armadas, à qual Dias teria comparecido, para discutir justamente essa questão. Brito aproximou-se de Dias e lhe perguntou: "Você não participou de uma reunião no Emfa sobre cooperação entre Brasil e Argentina para o uso pacífico de energia nuclear?".

Ante a resposta afirmativa, Brito falou: "Engraçado. Há dias esteve comigo o adido cultural da embaixada argentina fazendo perguntas ditas 'informais' sobre a qualificação de um engenheiro brasileiro — acho que o nome é Antônio Gomes, ou parecido — que o governo argentino pensaria contratar para trabalhar lá, em matéria relacionada com o uso pacífico de energia nuclear. Só que o cara, cuja identidade ele desejava confirmar ou infirmar, não tem formação ou especialização em nenhuma área do campo nuclear. Se tivesse, nós saberíamos. Eu disse mais ao adido cul­tural, que, se o sujeito insistisse em declarar-se capacitado em energia nuclear, não passaria de um vigarista vulgar".

O nome Antônio Gomes tocou discreta campainha na cabeça de Oliveira Dias, que pensou: "Esse era o nome do engenheiro especializado em eletrônica presente à reunião e que iria viajar para a Argentina no contexto de cooperação bilateral, no campo da sua especialidade, a eletrônica, não no da energia nuclear. De qualquer jeito, vou conferir".

Respondeu a Brito: "Sim. É engraçado. Mas acredito que não seja perigoso ou não contenha ameaça aos nossos programas na­cionais, ou aos programas de cooperação bilateral".

Na mesma tarde, Oliveira Dias resolveu dar um telefonema ao general de exército Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emfa, que havia convocado e presidido aquela reunião. Feitos os cumpri­mentos de praxe, Dias falou: "General, tenho um assunto — não sei se importante, mas estranho — que gostaria de lhe transmitir. Na semana passada esteve na CNEN o adido cultural da embai­xada argentina procurando informações sobre um engenheiro que ele dizia ser especializado em energia nuclear, de nome An­tônio Gomes. Esse não era o nome do engenheiro eletrônico que partiria no mesmo dia para a Argentina, num programa de coo­peração na área da sua especialidade, eletrônica?".

O general confirmou. Perguntou que informações a CNEN passara ao adido cultural.

Dias retomou a palavra: "Aqui, nós temos o cadastro completo de todos os técnicos de graus médio e superior existentes no Brasil, na área nuclear. O nome de Antônio Gomes não figura no nosso cadastro. Portanto, o diretor de recrutamento da CNEN, que atendeu o adido, deu-lhe os fatos e disse que, se o tal Antônio insistisse em dizer que era técnico de energia nuclear, ele não passava de um impostor".

Para o general Pais de Oliveira, a situação era clara: Antônio teria despertado alguma suspeita sobre a finalidade real de sua presença na Argentina e convinha preveni-lo.

Contudo, o general resolveu continuar a conversa, embora mudando ligeiramente seu foco, para dar a impressão de desimportância da pesquisa argentina a respeito de Antônio.

E falou: "Como o senhor sabe, professor Oliveira Dias, se há alguma coisa no campo da energia nuclear que o Brasil e a Argen­tina cultivam com igual ênfase, essa é a desconfiança recíproca. Ambos os países são signatários do TNP, o tratado multinacional que prevê a não proliferação. Mas nem um nem outro quer as­sinar sozinho o Protocolo Adicional ao TNP. Como sabe, esse protocolo prevê a abertura de oportunidades mais amplas de ins­peção, por parte da AIEA, das instalações nucleares dos países signatários.

O Brasil não assina se a Argentina não assinar. A Argentina só assina depois que o Brasil assinar".

O professor entrou no mesmo tom e mencionou o fato de que os dois países haviam criado uma agência bilateral para ins­peção recíproca das instalações, pesquisas, indústrias, comércio de minério, seu enriquecimento etc. Mas o professor da CNEN acentuou que "muito pouco de concreto essa agência tem podido fazer em matéria de inspeções, lá ou cá".

Despediram-se e, do lado civil, tudo parecia ter voltado ao normal.

O general, contudo, tomou duas providências: chamou o almi­rante Fakhoury ao seu gabinete e colocou-o a par do acontecido. Em seguida pegou o seu iPad, único instrumento com capaci­dade de falar com o de Antônio. Em comum acordo, o general e o almirante lhe enviaram a seguinte mensagem: "Parece que os vizinhos desconfiam do que você faz aí. Redobre a vigilância".

Mensagem recebida por Antônio no aeroporto de El Calafate, no sul da Patagônia. Resposta imediata e sucinta: "Sim. Redobrarei. Já estou no sul".

Antônio lembrou-se da recomendação do chefe do Emfa: "Não tome notas, não faça minutas nem deixe traço das comu­nicações que fizer. As que você receber serão automaticamente deletadas da memória do seu iPad". Antônio pensou: "Se quiser escrever memórias ou um relatório sobre esta missão, só terei acesso, mesmo, às minhas lembranças".

E continuou a pensar: "Na verdade, é melhor assim. Sem com­provação de suas suspeitas, os argentinos não poderão me pegar, prender, julgar, condenar".

Com cuidado e discrição, Antônio olhou para todos os lados, ainda no aeroporto, tentando identificar alguma figura suspeita. Se o governo argentino mostrara desconfiança quanto à sua pre­sença no país, seria natural que lhe desse um "rabicho", uma ou mais pessoas o seguindo por onde fosse. Mas não viu ninguém diferente: só residentes da região de volta a casa e notórios tu­ristas, principalmente brasileiros. Ainda assim, conforme prome­tera ao Chemfa e a si mesmo, redobraria a atenção e o cuidado com seus movimentos, sua atitude, suas palavras e sua "volta ao mundo" pela via eletrônica.

Checkout no aeroporto, bagagem, táxi para o hotel e, depois do registro, mapa da região, informações turísticas e aluguel de carro. O sul da Patagônia é reconhecido mundialmente como a "Terra dos Glaciares", alguns dos quais — como o Glaciar Perito Moreno e o Glaciar Upsala, situados no Parque Nacional dos Gla­ciares — tombados como patrimônio natural da humanidade. Constituem monumentais massas de gelo eterno, "esculpidos direta e pessoalmente", diziam algumas pessoas, "pelas mãos do nosso próprio Deus".

Nos primeiros dois dias, Antônio fez as excursões clássicas, em ônibus, a partir do hotel. Visitou a Villa Turística, confortável hotel à margem do Lago Argentina; fez o itinerário fluvial, no próprio lago e em seus braços norte e sul. Visitou os glaciares re­comendados aos turistas e ficou devidamente deslumbrado com as paisagens de gelo. Em todos os lugares falava com todos, mas em particular com os que aparentavam ser "locais". Por todos os lados, enormes criações de carneiros de lã polpuda para tosar na força do verão, consideráveis manadas de "guanacos" e não poucas raposas e outros animais silvestres locais.

Mas seu objetivo não era turístico, e sim, certamente, muito outro. Convencido de que não estava sendo seguido, pegou o carro e, com a ajuda dos mapas que havia recolhido, foi primeiro para o norte, pela estrada pavimentada que faz a ligação de El Ca­lafate com o Lago Viedma, no sopé dos Andes, ao lado da fronteira com o Chile.

Antônio procurava com afinco os menores indícios de um pos­sível laboratório ou centro de pesquisas que pudesse funcionar na região como sede de trabalhos no campo da energia nuclear. Parava em cada localidade, andava em torno de seu centro, mi­rava as pessoas na vã esperança de encontrar alguém com "cara de cientista". Em seguida fazia mentalmente duas indagações. A primeira: "Será que esta povoação (cidade, vilarejo, aldeia) seria adequada — em termos de recursos habitacionais e alimentares, eletricidade, telecomunicações, estradas, meios de transporte etc. — para abrigar um centro de pesquisas de alta tecnologia?". A segunda: "Como é a cara de um cientista? Eu mesmo sou um. Antigamente, ligava-se cara de cientista à figura de Einstein, mas eu sou o oposto. Um cara de 52 anos, ainda 'boa pinta', corpo conservado, cabelo bem aparado, etc.".

Após a avaliação inicial "necessariamente subjetiva", pensava ele, Antônio entrava num restaurante, bar ou boteco, freqüen­tado só, ou principalmente, na sua avaliação, por pessoas da terra. Um sanduíche, um refrigerante, um copo de água mineral ou de vinho, e puxava conversa com os locais. Seu portunhol havia me­lhorado muito. Afinal, estava, havia semanas, tentando esconder que era fluente em espanhol, mas suas frases estavam, cada dia, mais para 'nhol' do que para 'portu' ou para os dialetos locais".

Uma pergunta que achava "inteligente" era a respeito de um laboratório que, "alguém lhe havia dito", existiria por ali. Resposta típica mais ou menos assim: "Aqui só temos gelo, animais e pai­sagens. Nada de laboratórios, universidades, escolas superiores".

Ante a conclusão negativa referente a uma localidade, seguia com o mesmo objetivo e perseverança pelas estradas nacionais ou provinciais em busca de outras. A partir da via principal, to­mava estradas vicinais pavimentadas — "ninguém vai fazer um centro de pesquisa nuclear numa estrada de terra", pensava ele — e seguia até o fim da pavimentação.

Uma vila e uma cidade média lhe pareceram especialmente interessantes. A vila, Punta dei Lago, era ponto de interseção de duas vias pavimentadas: para o oeste até os Andes e em direção ao leste até áreas tipicamente rurais. A cidade, na ponta noroeste da estrada, era El Chaltén — o "morro da fumaça", na linguagem indígena —, longe de tudo e de todos. O que lhe parecia a locali­zação ideai para esconder alguma coisa.

Bateu-se, então, de carro para o noroeste. No caminho, repetiu toda a rotina, localidade a localidade. Entrou em cada uma das estradinhas secundárias à sua direita ou esquerda, esquadrinhou El Chaltén, mas nada encontrou até a fronteira do Chile.

"Estou viajando em vão", pensou Antônio. Uma semana de­pois, estava convencido de que, se houvesse instalação de pes­quisa nuclear no sul da Patagônia, seria em outra área, não nas redondezas de El Calafate. Mais tarde, porém, após momentos de séria reflexão, Antônio percebeu a superficialidade da sua conclusão. El Calafate parecia ideal, do ponto de vista de aces­sibilidade por via aérea a partir da capital e da disponibilidade de eletricidade, meios de transporte, comunicações modernas e, sobretudo, boas condições de hospedagem.

Após meticulosa revisão mental das condições locais, Antônio percebeu que os hotéis da Villa Turística, à beira do lago — o melhor e mais bem equipado da região — e os mais urbanos, como o Mirador del Lago e outros, ofereciam claramente a pos­sibilidade de hospedar, sem superlotação evidente, vinte a quarenta técnicos de todos os níveis que trabalhassem em um centro de pesquisa. Por isso mesmo, decidiu, teria de voltar a explorar — "passar um pente fino" — nos arredores de El Calafate, onde se poderia esconder o centro de desenvolvimento de energia nu­clear que preocupava as autoridades brasileiras diante da possibi­lidade de nele se fabricar uma bomba atômica.

Como tinha mesmo de voltar a El Calafate para tomar o avião para Ushuaia, capital da província da Terra do Fogo, Antártida e Ilhas do Atlântico Sul, seu próximo destino e objetivo, resolveu que, antes de viajar, a coisa certa a fazer seria renovar, estender e aprofundar a pesquisa em El Calafate, rios, lagos e montanhas ao seu redor.

Foi, esquadrinhou cada quilômetro quadrado em torno da ci­dade e do lago, mas nada encontrou. Perguntas discretas junto à gerência do hotel, com referência à hospedagem por longo tempo, à conta de pessoas jurídicas, nacionais ou estrangeiras, resultaram negativas.

De mãos vazias e "cabeça cheia", tomou o avião que o levaria de El Calafate a Ushuaia.

 

A cidade de Ushuaia está situada na Isla Grande, ao sul do es­treito de Magalhães. A parte norte da ilha é território chi­leno e o sul é argentino. Para surpresa de Antônio, ele viu nos mapas da região que Ushuaia é a única cidade argentina situada "do outro lado" dos Andes. A cordilheira, como se aprende na escola primária, corre pelo oeste de toda a América do Sul e faz a divisa de Chile e Argentina. Mas, na "ponta" do subcontinente, os Andes dão uma virada para o leste. Aí, ao pé da encosta da Martial Mountain, ficam Ushuaia, e, ao sul desta, a localidade chilena de Puerto Williams. "Esquisito", pensou Antônio, "ver de que lado o sol nasce e se põe aqui."

Ushuaia ostenta o título pomposo de capital da Província da Terra do Fogo, Antártida e Ilhas do Atlântico Sul. A parte argen­tina da Isla Grande se desdobra ao longo do Canal de Beagle. Seu espaço administrativo compreende também várias ilhas oceâ­nicas, algumas habitadas (poucas pessoas). Outras são simples rochedos, maiores ou menores, mas desabitados. A Ilha dos Pás­saros serve de viveiro para milhares de pingüins que ali se repro­duzem. A Ilha dos Lobos serve de abrigo para leões-marinhos e sua prole.

Antônio se deu conta de que, embora capital da província, Ushuaia é uma pequena cidade, com uns 45 mil habitantes — apesar de esse número representar mais que o triplo da popu­lação de El Calafate (12.500), igualmente importante do ponto de vista turístico. E concluiu: "O sul da Patagônia tem pequenas cidades, vilas e povoados e é habitado quase somente por descen­dentes de europeus. Pouquíssimos nativos".

De fato, ao longo dos primeiros séculos de conquista, os filhos e netos dos europeus ali chegados haviam dizimado os povos indígenas locais. Mais ainda, pouca gente ousava aventurar-se muito para dentro daquelas áreas — de ambos os lados dos Andes — em face do rigor do clima, da imensa quantidade de gelo nas montanhas e glaciares e da relativa dificuldade do exer­cício de qualquer atividade econômica, mesmo quanto à extração de minerais e ao cultivo de vegetais para alimentação, comércio local e regional ou exportação.

O sul da Patagônia tem belíssimas paisagens, formadas por milhões de toneladas de gelo acumulado em terra firme. Além de imensas geleiras desprendidas do continente e boiando no mar, e outras, ainda maiores, frutos de rachaduras no continente antár­tico. "Todas elas", refletia Antônio, "serão provavelmente afetadas pelo aquecimento global. Se e quando isso acontecer, tenderão a deslocar-se pelo Atlântico afora, perturbando a navegação, até se derreterem. O que, para muitos, é só uma questão de tempo — e não muitas décadas. Ou, quem sabe, poderão causar novos de­sastres como o do Titanic".

Relativamente próximos da costa patagônica ficam os arqui­pélagos que compreendem as ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul — ocupadas pelos ingleses em 1833. Como An­tônio pôde observar na leitura dos textos acessados na internet por seu iPad — a presença de "estrangeiros" nessas ilhas consti­tuiu, desde os primeiros anos após a sua descoberta, o ponto focal de disputa da Argentina com o Reino Unido — e, nos primeiros anos, também a França. A colonização daqueles arquipélagos por escoceses deu lugar a intermitentes hostilidades diplomáticas, quando não a guerras sangrentas das duas nações, que, fora esse espinho, sempre se consideraram "amigas".

No contexto da ditadura das juntas militares que governaram a Argentina desde 1976, depois da deposição da presidente Isabelita de Perón — vice-presidente, viúva e sucessora do presidente Juan Perón em seu mandato eleito pelo voto popular —, a reivin­dicação da soberania argentina sobre o arquipélago tomou novo ânimo. Em abril de 1982, tropas argentinas invadiram e domi­naram as Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul.

Mas, nesse mesmo ano, sob o governo da "dama de ferro" Margaret Thatcher, os britânicos retomaram a região e restabele­ceram a sua soberania sobre as frígidas ilhas.

Embora situadas a enorme distância da Grã-Bretanha e sem significativas fontes de riquezas naturais — agrícolas ou animais —, o domínio das ilhas que os ingleses denominam Falklands transformou-se rapidamente em questão de orgulho nacional e tema dominante na política interna de ambos os países.

A reconquista das ilhas assegurou a reeleição, em 1983, da maioria do Partido Conservador no Parlamento britânico, e con­sequentemente deu novo mandato a Margaret Thatcher como chefe do governo. Do lado de cá do Atlântico, a derrota militar precipitou o fim da ditadura e ensejou a eleição de um presidente argentino civil. Historicamente, esses fatos são lembrados como a "Guerra das Malvinas".

O assunto, entretanto, não morreu no sul da Patagônia. As Malvinas são, como a cidade de Ushuaia, portas de entrada (ou de saída) e últimos centros de abastecimento para quem se dirige ao continente antártico ou dele retorna para o norte.

Logo, logo, Antônio percebeu dois pontos que, em Ushuaia, transformavam a questão das Malvinas em tema propício ao de­bate e ao encontro ou desencontro de opiniões.

Em primeiro lugar, muitos pensavam que a situação geográ­fica desse arquipélago poderia dar lugar a uma forma ou outra de "controle", por parte de quem os dominasse, do acesso à Antártida. Em segundo lugar, admitia-se a possibilidade da ocorrência de ja­zidas de petróleo em nível profundo do mar, ao largo das ilhas.

Depois, Antônio descobriu um terceiro tema, propício a con­versas sem-fim: a população e as autoridades de Ushuaia con­tinuavam a cultivar a memória de Evita Perón. Por toda parte, cartazes lembravam dizeres de Evita sobre as mais variadas ques­tões e mantinham acesa a chama do peronismo. E, pensava Antônio, certa simpatia pelo militarismo no país.

Mais uma vez, Antônio debruçou-se sobre o seu iPad e, com diligente pesquisa na internet, procurou aprofundar-se nessas questões: regime Perón, militarismo, Evita, Isabelita, Malvinas, Antártida, temas propícios à abertura e manutenção de intermi­náveis conversas, aptas a mais cedo ou mais tarde permitir per­guntas sobre "centros de pesquisa tecnológica" nessa província, apropriadamente cognominada "Fim do Mundo".

Outras matérias capazes de abrir debates e quebrar barreiras eram comparações entre os acidentes territoriais e os equipamentos ou estabelecimentos (naturais ou feitos pelo homem) a serviço do turismo, situados de um lado e de outro dos Andes. Os argentinos se orgulhavam particularmente de suas estações de esqui e snow-board, como o Cerro Pastor e o Valle Tierra Mayor; de seus parques nacionais, como o de Lapataia e da Terra do Fogo; o Museu do Fim do Mundo; hotéis e restaurantes na cidade e nas áreas de excursão.

Outro ponto de comparações intermináveis era a questão dos vinhos. Do lado argentino, as formas de cultivo e a qualidade das uvas; os processos artesanais de produção e o orgulho pela co­lheita manual de uvas; o tempo de envelhecimento e estocagem do vinho, sua cor, tonalidade e sabor; a melhor data, depois do engarrafamento, para degustar o produto de cada safra, e por aí afora. Desde logo se opunham os vinhos da região de Mendoza — a mais conhecida e famosa da Argentina — aos produzidos no Chile. Depois, a comparação se acirrava quando o tema eram as diversas "bodegas" locais e suas especialidades.

Tratando-se de vinhos, Antônio seguia o princípio básico de mais ouvir que falar. Mas, quando interferia nas conversas, a cul­tura on Une por via do seu iPad era extremamente útil. Até mesmo quando as discussões punham frente a frente os vinhos de Mendoza e os feitos no sul da Patagônia, a partir de uvas Malbec, por uma vinícola adequadamente denominada Bodega del Fin del Mundo. Outro parâmetro de comparação era o superapreciado e valorizado Cheval des Andes, fruto da união dos produtores do bordeaux Cheval Blanc com os produtores de uvas da área mon­tanhosa da vinícola Terraza de los Andes.

As muitas conversas sobre vinhos ocorriam quase sempre em bares ou restaurantes — os mais conhecidos dos quais citados como "as tias": Tante Sara, Tia Elvira, Tante Nina e El Paradero del Fin del Mundo — ou em áreas próprias de hotéis e pousadas onde as pessoas se reuniam depois de um dia de trabalho não muito intenso ou de folga total.

Às discussões seguia-se naturalmente a fase de degustação, tornando ainda mais fácil a relação de Antônio com os locais — não só os "marmanjos", mas também senhoras e senhoritas de todas as idades. Antônio buscava informações ou, pelo menos, "dicas" sobre o assunto de seu interesse. Mas as conversas e em especial a degustação o levaram a tomar mais vinho do que habi­tualmente: nas refeições, para aguçar o paladar; e nos intervalos, para compensar os ventos gelados que vinham de todos os lados.

 

A partir de certo momento, Antônio lembrou-se do dito latino "in vino veritas", que os americanos haviam traduzido livremente como "o vinho solta a língua". Não só a língua dos "outros", como convinha ao brasileiro, mas também a sua, o que seria trágico, para dizer o menos. Daí em diante, Antônio esmerou-se em beber menos vinho — nem tão pouco que pudesse causar estra­nheza, nem tão muito que o levasse a falar o que não devia e, assim, deixar perceber a razão verdadeira de sua presença no sul da Patagônia.

Conversa vai, conversa vem, quase sempre surgia oportuni­dade para indagações a respeito de moradores vindos de outras áreas do país, de desenvolvimento científico e por aí adiante.

Respostas sempre negativas, até o dia em que alguém, devi­damente estimulado pelo "vino", levantasse o véu da "veritas" di­zendo algo como: "Aqui, não. Não existem centros de pesquisa, particulares ou do governo. Houve um episódio de procura de lugar adequado para um laboratório qualquer. Mas os técnicos e cientistas não gostaram do clima. Ainda menos gostaram da pre­sença de tantos turistas que vêm por terra, aviões, navios, iates e outros meios. Resolveram procurar melhor localização, mais sos­segada, no norte da Patagônia".

Para Antônio, essas palavras confirmavam as conclusões a que chegara nas inúmeras vezes em que navegara pelo canal de Beagle, ou se embrenhara pelas estradinhas vicinais, ou andara de barco pelos lagos, ou passeara pelas margens e pelo topo dos glaciares, ou em torno de cidades como El Calafate e outras menores.

Sem prova concreta, consolidava-se em sua mente a im­pressão, transformada em certeza depois de dias sem nada en­contrar, de que o centro de desenvolvimento nuclear estaria mais para o norte da Patagônia. E, por simples "palpite", que as instala­ções procuradas eram mesmo aquelas às margens do lago Nahuel Huapi, em Bariloche.

Por desencargo de consciência, Antônio resolveu que, antes de partir em direção ao norte, de onde viera, deveria "dar um pulo" nos glaciares, ilhas, ilhotas e rochedos. Para comprovar se por lá haveria condição para o funcionamento de instalações de desen­volvimento nuclear. E, na outra mão, para julgar se seriam lugares adequados a testar uma bomba atômica — sem criar muito "ti-ti-ti" político, diplomático e militar e sem despertar muito ruído na hora "H" —, se e quando os cientistas argentinos chegassem a esse ponto.

 

Nos momentos de intervalo das atividades da sua missão, An­tônio continuava a perseguir o objetivo de "dar a volta ao mundo" com um sinal eletrônico. Uma vez que sua posição em Ushuaia era "do outro lado dos Andes", sem obstáculos para o Pacífico, resolveu experimentar outro roteiro para chegar com seu sinal até a China.

Agora, em vez de tentar a via direta, sobre espaços imensos de puro oceano e pouca gente, mandaria um sinal paralelo à costa oeste das Américas. "Desse modo", pensou, "chegaria aos poderosos satélites de comunicação da Califórnia, usados pelos americanos para comunicar-se com seus estados da costa oeste e meio-oeste e com todos os países do Oriente".

Assim dito, assim feito. Conseguiu localizar os satélites californianos, enviar-lhes um sinal com instruções para passá-lo adiante a endereço certo: satélites japoneses e chineses; e, mais ainda, instruções para inverter o caminho que seu sinal já havia percorrido a partir do Brasil. O que produziu o resultado so­nhado e por ele tido, em termos de satisfação, como o "repeteco" da circum-navegação da Terra. Cinco séculos antes, Fernão de Magalhães, partindo pela via do Pacífico, fora daí para o Índico, o Atlântico e de volta a casa. Era o inverso do seu sonho original, mas um tremendo feito, se não científico, técnico e experimental.

Após essa aventura, resolveu viajar imediatamente de carro para o norte, inspecionando todas as estradas e parando em todas as localidades que reunissem o mínimo de condições para abrigar um centro de pesquisas de alta tecnologia. Antônio sabia: a viagem seria longa e penosa. Mas a sua missão era descobrir e não "desconfiar" ou "palpitar".

Do ponto de vista pessoal, ele voltava literalmente encantado com o que vira no extremo sul do continente. "Um dia", pensou, "vou trazer Mercedes e os meninos para visitar estas terras e ver estas paisagens tão diferentes das nossas".

Logo no começo da viagem para o norte, o iPad soou: mais uma comunicação de sua mulher. Mercedes dizia simplesmente que ia tudo bem em casa. Mas, acrescentava, uma das amigas do casal, Soninha Maradei Silva, lhe havia enviado por e-mail um longo relato de lugares maravilhosos situados "na ponta da Ar­gentina", que havia conhecido em viagem com outras amigas. A mensagem de Mercedes, mais longa que habitualmente, concluía: "Gostaria que nós quatro visitássemos esses lugares quando você voltar".

"Bela coincidência", pensou Antônio. "Só que não posso dizer nada do que vi nessa região e a magnífica impressão que levo daqui. Vou dizer só que estou 100% de acordo."

 

A primeira decisão de Antônio ao sair de Ushuaia foi enviar ao general de exército Fernando Pais de Oliveira, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (Chemfa), um relatório deta­lhado sobre o que vira e fizera na região conhecida como Tierra del Fuego. Sua comunicação se dividia em vários itens distintos:

 

Informação de que partiria de volta ao norte, mas seguiria por terra — e não por via aérea — para pesquisar esse es­paço, apesar de seu baixíssimo índice de ocupação e notória carência de recursos humanos e materiais.

Dados objetivos sobre o que observara nas dezenas de ci­dades, vilas, povoados e seus arredores, que visitara pessoal­mente no extremo sul da Argentina, quanto a existirem por ali instalações de pesquisa ou de desenvolvimento nuclear.

Conclusões a que chegara sobre o impacto das peculiaridades geográficas e humanas da região, em seus aspectos internos e internacionais, terrestres e marítimos, no objeto da missão de que fora incumbido no extremo sul da Patagônia.

O fato histórico de que, após inúmeras discussões e frus­tradas tentativas de acordo em relação à demarcação de fronteiras do Chile e Argentina, o tratado final, homologado pelos dois países, resultara numa série de linhas, ora ligando acidentes geográficos fáceis de identificar, ora ao longo deles (rios, lagos, canais, montanhas), ora em linhas retas entre pontos mais fáceis de localizar nos mapas do que no terreno. O que, entre outros efeitos, causava inúmeras violações pontuais das fronteiras, todas resolvidas em paz, principalmente pelas autoridades locais dos dois lados.

A circunstância de que as ligações terrestres da Tierra del Fuego e o restante da Argentina tinham de passar, necessa­riamente, por vastos trechos de território de soberania chi­lena — inclusive, mas não menos importante, na travessia do estreito de Magalhães, todo ele sob jurisdição e governo do Chile.

A conclusão inexorável de que os fatos históricos e os dados geográficos inviabilizavam o transporte, por via terrestre, de urânio e/ou materiais pesados e equipamentos estratégicos para o desenvolvimento de energia nuclear no extremo sul.

A impressão de que o mar entre o continente e a Antártida (Passagem de Drake), com inúmeras ilhotas e glaciares inabitados, seria lugar apropriado para a detonação experimental de uma primeira bomba atômica argentina, transportada a Ushuaia por via aérea ou marítima e daí ao seu destino, por helicóptero.

Os motivos pelos quais considerava desnecessário voltar à região de El Calafate, já explorada minuciosamente, e viajar pela Estrada Nacional n° 3, ao longo da costa do Atlântico, analisando as vias secundárias à direita e à esquerda da EN 3.

Sugestão de a Força Aérea Brasileira (FAB) enviar um dos seus aviões não tripulados, invisíveis ao radar, fazer um mapa minucioso da Passagem de Drake e vizinhanças, para ser usado pelos brasileiros se e quando for o caso.

 

Fiel à instrução do Chemfa, de não tomar notas ou fazer ras­cunhos de suas comunicações, Antônio preferiu nada enviar a partir de Ushuaia. Parou na primeira hospedaria à margem da estrada e aí se pôs a dedilhar no iPad o texto do seu relatório, acrescentando a informação de que manteria seus meios de comunicação desligados quando se encontrasse em território chi­leno. Lido e revisto, Antônio transmitiu o texto ao Chemfa.

Em seguida, pagou a conta da hospedaria e "se mandou" para o norte pela EN 3. Saiu dela para a estradinha que leva a Puerto Almanza e daí à Península Mitre. Nada de novo ou suspeito. Voltou à EN 3 e daí para o norte.

Antônio parou em Tolhuin e em todas as cidades e nos grandes e pequenos povoados, antes e depois dela. Vasculhou as cidades de Rio Grande e San Sebastián, esta situada ao lado de sua homô­nima chilena. Inspecionou as estradas vicinais de ambos os lados da EN 3. Nada.

Desligou os equipamentos, atravessou o estreito de Magalhães na balsa que faz esse trajeto, continuou em território chileno, com o passaporte à mão, vistos e carimbos na entrada e na saída. Por fim, retornou ao território argentino, na Reserva Nacional da Laguna Azul. Nada.

Prosseguiu até Rio Gallegos, onde pernoitou. Novas inspeções, novas perguntas. Nada.

Em Rio Gallegos começa (ou termina) a EN 5, que também vai para o norte, mas pelo interior da Província de Santa Cruz.

Aí se colocou a questão: seguir para o norte pela EN 3, perto do Atlântico, ou pela EN 5, via "interiorzão" da Província. Decidiu-se: não iria embrenhar-se nas áreas menos povoadas cortadas pela EN 5, a qual, em sua etapa final, levaria a El Calafate. Áreas e lugares que, embora em tese fossem propícios a uma instalação necessariamente confidencial, já haviam sido inspecionados em minúcia por ele.

Antônio continuou pela EN 3, "subindo" sempre em direção ao norte e parando para inspecionar vilarejos e estradas vicinais. Visita a Puerto Santa Cruz e novo pernoite em Comandante Luis Piedra Buena. Inspeções cá e lá provaram ser improdu­tivas. Supercansado, Antônio resolveu ficar mais um dia — ou pelo menos, mais algumas horas — na região, para descansar um pouco. Decisão que provaria ser quase milagrosa.

No dia seguinte, na sala do café da manhã do hotel, um senhor aparentando menos de 60 anos, alto e esbelto, 1,78 m de altura e uns 75 quilos de peso, sem barriga volumosa, indicando a prática regular de esportes, se aproxima da mesa de Antônio e pergunta:

"Aquele carro azul, quase novo, é seu?". Resposta afirmativa de Antônio.

O senhor continua: "Vai para o norte? Até Buenos Aires?". An­tônio responde: "Para o norte, sim, mas não até Buenos Aires. Muito antes, vou para o oeste, até perto dos Andes. Ou, se os arranjos familiares funcionarem, para o norte, até a tríplice fron­teira. Meus sobrinhos adoram a idéia de pular do Brasil para o Paraguai, daí para a Argentina, voltar ao ponto de partida e re­começar tudo. Além da tentação irresistível da minha irmã, de comprar barato um monte de coisas inúteis. Por que pergunta?".

O senhor respondeu: "Eu sou o general de brigada de enge­nharia Marcelo Antígua Magallanes. Estou reformado há pouco tempo, e frustrado há muitos anos. Moro em Buenos Aires, mas venho freqüentemente para este lado visitar minha família — pais, tios, irmãos, sobrinhos. E você?"

Antônio respondeu: "Eu me chamo Antônio Gomes. Sou bra­sileiro, como pode facilmente deduzir do meu portunhol. Sou também engenheiro, especializado em eletrônica, professor apo­sentado de uma pequena universidade extinta há menos de um ano. Estou em férias forçadas, à procura do que fazer ou, mesmo, de onde morar".

"Você me daria uma carona para o norte, até onde lhe convenha?"

Antônio pensou: "Uma das penúltimas coisas de que preciso é de alguém que atrapalhe minhas pesquisas; mas não seria de todo ruim ter uma pessoa para conversar. Posso livrar-me dele em qualquer intersecção de rodovias". E respondeu: "Sim. Mas receio que não poderemos ir juntos até muito longe. Provavel­mente, você precisará de outras caronas".

"Não importa", respondeu Marcelo. "Com o meu rendi­mento de aposentado, só tenho um automóvel e só posso usá-lo quando meus filhos permitem. Sempre que venho em visita à família, viajo de ônibus. Mas parece que há uma greve de moto­ristas e tenho de tomar carona para Buenos Aires. Posso sentar-me à sua mesa?"

Antônio concordou.

Marcelo sentou-se e começaram a "bater papo" sem propósito definido. Em determinado momento, perguntou: "E o que faz na Patagônia um professor brasileiro aposentado na 'flor da idade e em férias forçadas?".

Antônio falou de seus cursos de pós-graduação na Sorbonne e no MIT e conduziu a conversa ao seu hobby, dizendo: "Por pura distração, imaginei a possibilidade de emitir um sinal eletrônico dirigido a um certo satélite de comunicação, com instruções para que esse satélite passasse o sinal a um segundo, também prede­terminado; este a um terceiro e assim por diante, até dar a volta ao mundo. Cada um dos satélites me informa o recebimento do sinal e confirma seu envio ao seguinte, que faz a mesma coisa".

E continuou, com moderado entusiasmo: "A partir do Brasil, consegui chegar aos nossos antípodas, a China e o Japão. Mas não pude passar instruções aos satélites 'do outro lado do mundo' para fazer prosseguir a comunicação. Por isso, vim aos Andes para, como Fernão de Magalhães, dar a volta ao mundo a começar do oceano Pacífico. E consegui".

"Como?", perguntou Magallanes. Antônio tirou da pasta o seu iPad e o laptop e retomou a palavra: "Daqui, tenho dois caminhos para chegar à China: ou vou direto, cobrindo o Pacífico pelos sa­télites secundários de comunicação do Havaí e outras ilhas, ou, como descobri na Tierra del Fuego, falando diretamente com os poderosos satélites da Califórnia, que ligam os sistemas de comu­nicação americanos aos do resto do mundo. Está tudo aqui".

"E para que serve isso?", perguntou Magallanes.

"Para nada", respondeu Antônio. "Simples fantasia de técnico que aprendeu tudo o que se ensina nas universidades, na sua área de conhecimento, e não tem mais nada para fazer."

Um instante depois, diante da dúvida que se lia na face de Mar­celo, Antônio retomou o entusiasmo e a palavra. Disse: "Mesmo não acreditando 100% no que digo, você gostaria de fazer uma experiência? Mandar pelo meu laptop, do modo fácil que lhe in­dicarei, um sinal próprio, que só você reconhecerá, para dar a volta ao mundo?".

"Como assim?", perguntou Marcelo. Antônio explicou: "Você pega o meu laptop, vai para um lugar onde eu não o veja, e manda o seu sinal ou código personalizado, o qual seguirá via Estados Unidos, Japão, China, Austrália, Madagascar, África do Sul, An­gola, Senegal, Rio de Janeiro e Buenos Aires, e daí até onde nos encontramos".

Polidamente, Marcelo Magallanes imaginou recusar. Pensou com os seus botões: "Isso não deve passar de um truque ba­rato". Mas a tentação era grande demais. Disse: "Está bem. Mas como vou saber que você não enviará daqui mesmo, desta mesa, pelo seu iPad, uma instrução para o laptop, que eu interpretarei como sendo a volta da minha mensagem?". Antônio respondeu no ato: "Primeiro, não sei qual será o seu sinal. Segundo, você leva também o meu iPad desligado. Assim fica seguro de que não estou fazendo trapaça".

Marcelo concordou. Antônio explicou o que e como fazer e em quantos segundos, aproximadamente, a mensagem estaria de volta. Acrescentou: "Eu não vou sair daqui. Quando você ter­minar, me encontrará no mesmo lugar, mas com uma nova xí­cara de café".

Magallanes pegou os dois aparelhos, viu que o iPad estava des­ligado, mas resolveu levá-lo assim mesmo. Saiu à rua pela porta principal.

Um minuto depois, voltou com a maior admiração estampada no rosto. E falou: "Pode ser uma vigarice, mas convence. Passei o dia do nascimento da minha mãe e, em menos de um minuto, ele estava de volta, confirmando todo o roteiro que você me havia dado. E um detalhe que você não havia revelado: poucos instantes depois de chegar de volta, o sinal desaparece. A tela do computador fica limpa. Tentei uma segunda vez, com outra men­sagem também confidencial, e tudo funcionou a contento. Você já pensou em vender esse seu sistema? Deve valer milhões!"

Antônio lembrou a Marcelo que só completara o sistema havia poucos dias. E, sobretudo, que não o fizera visando a lucro, mas como distração de engenheiro eletrônico em férias, sem obriga­ções, sem ambição, sem descendentes diretos, sem destino.

Longo silêncio. Antônio lembrou que Magallanes havia fa­lado em frustração e perguntou: "O que faz um general aposen­tado?" De fato, ele próprio militar de carreira, não precisava de resposta. Mas insistiu: "Você disse há pouco que estava recém-aposentado e que sofria uma frustração antiga. Se aliviar você um pouco, conte para mim. Mas, se não quiser falar, não tem problema. Seguiremos viagem para o norte, como programado, e você poderá contar as árvores do caminho até onde eu tiver de tomar outro rumo".

Marcelo pensou, pensou. Coçou a cabeça. Olhou para os lados e disse: "Sim. Você tem razão. É um peso arrasador. Falarei quando estivermos no carro. Mas, como você logo verá, o que lhe vou dizer é extremamente confidencial. Só poderei falar se você me prometer, com palavra de honra, que nada revelará do que lhe contar".

Antônio prometeu. Pagaram as respectivas contas, juntaram as malas, foram para o carro azul e partiram para o norte pela EN 3.

 

A primeira meia hora, no carro, transcorreu em silêncio total. Antônio nada disse. Não queria atiçar o companheiro de viagem nem parecer curioso demais, embora o clima de mistério mexesse fundo com sua imaginação. Por isso mesmo e como me­dida de precaução para a hipótese, que considerava longínqua, de seu "caronista" ter realmente alguma coisa importante a dizer, ele havia ligado o gravador de seu smartphone, o que seria suficiente para registrar até umas seis horas de conversa.

De sua parte, Marcelo Antígua Magallanes fazia a recapitulação mental da sua vida. E ponderava sobre a sabedoria de descrever suas esperanças e relatar sua imensa decepção a um completo es­tranho. Engenheiro. Acima de tudo, brasileiro. Decidiu que sim.

Na sua adolescência, lembrava Marcelo, as oportunidades de trabalho eram mínimas na região. A economia argentina se de­batia em altos e baixos, mais baixos que altos. Não o atraía a idéia de permanecer na cidade de Comandante Luis Piedra Buena, fa­zendo pequenas coisas aqui e ali, como seu pai, e ganhando quase nada, sem grandes alternativas ou oportunidades para o futuro. Sua vontade era estudar em Buenos Aires. Mas, lá, as escolas eram caras e a questão de empregos estáveis, mais uma incógnita.

Aos 18 anos, tendo concluído com distinção os cursos básicos das escolas locais, Marcelo resolvera que o melhor e mais seguro seria uma carreira militar. Escola grátis. Emprego para toda a vida. Aposentadoria garantida, em termos conhecidos. A impor­tância dos militares — com Perón e seus companheiros à frente —, além de firme, parecia crescente. Resolvido, tomou a si a her­cúlea tarefa de convencer os pais. Difícil, mas conseguiu. Foi para Buenos Aires. Passou nos exames de admissão ao colégio militar. Seguiu com entusiasmo os currículos.

Quando chegou a hora de optar por uma Arma, como se diz no jargão militar, escolheu a engenharia. Depois, já oficial enge­nheiro, achou que a especialidade do futuro seria a que lidava com o "ciclo completo do combustível nuclear". Primeiro passo no caminho — pensava Marcelo, como outros colegas de curso — de se fazer uma bomba atômica. Para quê? Para nada. Por uma questão de prestígio nacional. No fim de contas, alguns países po­lítica e economicamente mais fortes, todos, tinham a sua bomba. Estudou, formou-se na especialidade. Aí começou a sua frus­tração. Que só cresceria, ano após ano.

Como capitão especializado, Marcelo fora chamado para aju­dante de ordens do general Jerónimo Vinatero, o qual, no Exér­cito argentino, comandava o setor teoricamente incumbido de energia nuclear. O chefe supremo do programa era o almirante Emilio Massera, membro da Junta que governava o país desde a deposição da presidente Isabelita de Perón e responsável pelos seus atos somente perante a própria Junta.

"Generais e almirantes", pensava Marcelo, "imaginam que seus ajudantes de ordens são bonecos. Passam o dia em uma mesa, à porta dos gabinetes dos chefes, mas não percebem o que ocorre lá dentro". Muito ao contrário, Marcelo quase tudo ouvia, lia todos os papéis dirigidos ao general e de tudo sabia.

Um dia animou-se e explicou ao general Vinatero que seu in­teresse pela energia nuclear era mais que simplesmente teórico.

E que gostaria muito de ser transferido para um dos laboratórios nos quais o Exército perseguia seus projetos.

O general quis saber o motivo. "Você não está satisfeito aqui? Por que razão trocaria os atrativos de Buenos Aires por um local distante, com baixo nível de conforto, ambiente fechadíssimo, pouquíssimo contato com outras pessoas?"

"Ao contrário, senhor general Vinatero. Sinto-me feliz na ca­pital e tenho muito orgulho de servir ao seu lado, gozar da sua confiança. Mas, se me permite continuar a tomar o seu tempo, acho que posso restituir ao nosso país tudo o que ele fez por mim — educação, sentimento de segurança, carreira — com a maior dedicação ao serviço da nossa pátria."

Pequena pausa e, ante o assentimento do general, Marcelo con­tinuou: "O senhor general não sabe, mas, além do curso formal de engenharia nuclear, sou fluente em inglês e leio tudo o que se publica nos países mais adiantados sobre a questão nuclear. Sem arrogância, mas sem falsa modéstia, acredito que poderei prestar melhores serviços à Argentina num laboratório do que, com o de­vido respeito, atendendo pessoas e telefonemas e fazendo coisas protocolares, quando não simplesmente burocráticas".

Vinatero pôs-se a pensar. Logo depois falou: "Certamente você terá notado, capitão, que nós estamos amarrados', na questão nu­clear, a uma série de acordos internacionais. Em tese, esses atos proclamam o direito de todos os países ao domínio da tecnologia adequada ao desenvolvimento e ao uso da energia nuclear para fins pacíficos. Estamos presos, também, ao compromisso de não proliferação de armas nucleares em nosso continente".

"Em terceiro lugar, vários tratados entre a Argentina e o Brasil, assinados e ratificados a partir de 1980, criam ambiciosos pro­gramas de cooperação e fiscalização recíproca, os quais, entre­tanto, não saem 'do papel'. Pouquíssimo — melhor dizendo, nada de concreto — tem sido feito pelos dois países para dar vida a esses tratados e acordos."

Marcelo pensou e ousou perguntar: "Então, se o senhor ge­neral me permite, pergunto: o que fazemos? Para que existem nossos laboratórios? O que se faz neles?".

"Quase nada", respondeu o general. "Como você sabe, ocorreu, tanto no Brasil quanto na Argentina, a falência dos respectivos sistemas de poder civil. Ambos os países têm governos militares. E a nossa Junta considera ponto de orgulho nacional cumprir as limitações acordadas entre o governo militar argentino e o go­verno militar brasileiro."

E prosseguiu: "Nós chegamos a ter uma planta militar de pro­cessamento de urânio no sul da Patagônia, que, em tese, funcio­nava sem limitação do grau de enriquecimento. Fomos obrigados a fechá-la, por insistência de um dos membros da Junta. De pú­blico, alegamos razões fictícias, como reivindicações dos cientistas quanto ao clima, turismo, etc".

"Agora, há um laboratório nas proximidades de Bariloche iden­tificado como unidade civil', dirigido por um cientista de renome internacional. O limite, lá, é de enriquecimento até 20% de U235. Quer dizer: para a geração de eletricidade e outros usos menores."

Tornou-se difícil para Marcelo esconder seu desapontamento. Mas o general continuou: "Perto desse laboratório existe uma pe­quena unidade do Exército — uma Companhia de Engenharia de Montanha — que está ali para dar segurança ao laboratório. Um dia desses vamos quebrar as regras e tratar de atingir níveis mais altos de enriquecimento. Mas a chegada lá, agora, de um militar da ativa cujo passado foi sempre de uniforme criaria ten­sões indesejáveis entre os cientistas civis; e, em certa medida, com a população local".

Marcelo percebeu que sua carreira militar estava circunscrita a fazer de conta que trabalhava no desenvolvimento do ciclo do combustível nuclear. Continuou ao lado de Vinatero, como seu ajudante de ordens e, depois de promovido a major, como seu assistente.

Nos anos seguintes, mesmo no regime militar, as regras não foram quebradas. Mas a derrota na Guerra das Malvinas pre­cipitou o encerramento — de direito, senão de fato — do pre­domínio dos militares na vida política e nas decisões mais importantes dos governos civis que sucederam as Juntas.

Na questão do urânio, continuou valendo a limitação de en­riquecimento até 20%. Mesmo sob o olhar desconfiado dos di­rigentes civis do país, os militares que haviam servido o regime ditatorial permaneceram nas respectivas carreiras e foram pro­movidos — ainda que relutantemente — conforme os respectivos regulamentos.

"É verdade", pensava Marcelo anos depois, "que inúmeras pes­soas, mesmo jovens estudantes, todas ativas na oposição ao re­gime das Juntas Militares, haviam sido seqüestradas ou mortas e eram dadas simplesmente como 'desaparecidas?' O que, entre outros resultados, havia incentivado os parentes dessas pessoas a formar um movimento — as Madres de la Plaza de Mayo. Elas se reuniam freqüentemente diante da Casa Rosada, sede do go­verno, para pedir informações sobre seus filhos, sem êxito; ou para pedir, pelo menos, a devolução de seus corpos. Assim lhes dariam funeral digno, mantendo viva a sua lembrança.

Foi então, ao recordar esses fatos, que Marcelo Antígua Ma­gallanes resolveu o dilema de contar ou não contar todas as ra­zões de sua duradoura frustração. Em determinado momento pensou: "Que diabo. Vou contar tudo. Pelo menos, do princípio até o meio!".

Enquanto Magallanes falava, Antônio ouvia com a maior atenção. Confiava na efetividade da gravação de tudo pelo smart­phone. E fazia o possível e o impossível para não deixar transpa­recer a sua satisfação em ver confirmados vários pontos que havia descoberto ou deduzido em suas pesquisas. Mas queria saber mais, muito mais ainda. Fez os comentários apropriados, obvia­mente elogiosos, ao interesse do seu companheiro de viagem em utilizar na prática os conhecimentos teóricos adquiridos ao longo de muito estudo — "eu bem sei o que é isso", pensou — e resolveu estimular Magallanes a falar mais.

Em certo momento, disse-lhe: "Suas razões para sentir-se frustrado são lógicas e respeitáveis. Mas não tão profundas que possam ter durado até hoje".

Magallanes sucumbiu. E continuou a sua narrativa: "Na pers­pectiva de a Argentina dedicar-se exclusivamente ao uso pacífico da energia nuclear, a unidade chefiada por Vinatero foi fechada ainda no regime militar. Mas ele foi nomeado vice-diretor de pesquisa e desenvolvimento técnico do Exército argentino e me chamou, já então promovido a tenente-coronel, para chefiar a equipe do seu gabinete. Fui, alegremente. Pensava: no âmbito do Exército, pesquisa e desenvolvimento do quê? Certamente, de armas. Nucleares?".

Mesmo um rápido olhar de esguelha para Marcelo permitia a Antônio notar as lágrimas que ameaçavam cair. Por prudência, não pressionou. Chegou mesmo a dizer: "Se você achar que já falou demais, pode parar por aí. Não desejo constrangê-lo".

Magallanes parou, pensou e recomeçou: "Nos governos civis, só podíamos pensar, em termos de engenharia, em obras con­cretas: estradas, pontes, quartéis e coisas parecidas. A energia nu­clear estava fora dos nossos propósitos. Daí vem grande parte da minha frustração, que, espero, você compreenderá ao ouvir o que lhe vou contar agora, para desabafar parte da minha mágoa. Mas sob o seu compromisso de honra de sigilo absoluto".

"Já estávamos nos anos 2000", continuou Marcelo Magallanes. "O regime militar era só uma lembrança amarga na política ar­gentina. Em certo momento, o ministro da Guerra do governo civil, general Emilio Colombo, foi chamado à Casa Rosada. Mas não, como imaginara, para falar com o presidente Hernane Kristenberg de problemas prementes do Exército, objeto de seus pe­didos de audiência anteriores."

"Colombo foi recebido por dois membros do entourage do presidente: o chefe do Gabinete Civil e principal conselheiro pre­sidencial, Gregorio Mariolem, e o assessor político Roberto Ludmilo. Colombo achou esse fato peculiar'. Mas não quis revelar a sua surpresa."

"O chamado era conseqüência", continuou Magallanes, "de uma das muitas discussões entre assessores diretos do gabinete presidencial sobre se a Argentina deveria ou não empenhar-se no esforço necessário para alcançar a capacidade plena de en­riquecimento do urânio e sua utilização para fins pacíficos. Ou militares. E se o país dispunha dos equipamentos técnicos e do pessoal qualificado necessários a tal fim."

Pausa carregada de incógnitas. Antônio mal conseguia coibir o desejo de fazer perguntas.

Marcelo continuou a sua narrativa: "Não faltou quem lem­brasse que, em 1980, o então presidente argentino Leopoldo Galtieri comunicara oficialmente ao presidente brasileiro — o general João Figueiredo, creio — que a Argentina já havia alcan­çado o 'domínio completo do ciclo do combustível nuclear'. Isso era real no campo da teoria, mas, na verdade, limitadíssimo no campo da experimentação concreta".

"Nesse meio-tempo, tinham ocorrido discussões sem-fim dentro e fora do palácio presidencial. Prós e contras. Fazer ou não fazer uma bomba atômica? O ponto de vista vencedor, nas reuniões de gabinete, era no sentido de que uma bomba atômica colocaria a Argentina no clube seleto dos que a possuem. E nos permitiria falar com eles de igual para igual.

"Houve perguntas do tipo: 'E o que os brasileiros pensarão a respeito?'. Ou: 'Para que precisamos de uma bomba atômica?'. De fato, ninguém se importava muito com o que os brasileiros — go­verno ou público — pensassem a respeito.

"Um assessor especialmente próximo do presidente disse, numa dessas conversas: 'Nós não sabemos de fato. Não temos provas. Mas eu não ficaria surpreso se o establishment militar brasileiro estivesse enriquecendo urânio — em primeiro lugar, clandestinamente, e, em segundo lugar, por meio de um acordo tácito que permitisse aos argentinos fazer o mesmo'.

"Surpresa geral. Dúvida. Perplexidade. Falar ao presidente? Dizer o quê? Propor o quê? Informar a diplomacia argentina? Não haveria vazamentos? Aquela reunião do ministro da Guerra com o gabinete civil da presidência era o desfecho dessas discussões.

"Naquele dia, Mariolem começou a conversa: 'Não estranhe, ministro. Nós estamos aqui para falar, em absoluta confidenciali­dade, de um assunto de interesse da defesa do nosso país. Temos informações — ou, se preferir, suspeitas reveladas por fatos anô­malos — de que os militares brasileiros, sob a orientação do seu Ministério da Defesa ou do respectivo Estado-Maior das Forças Armadas, estão empenhados clandestinamente no enriqueci­mento de urânio em teor elevadíssimo, capaz de servir para fazer uma bomba atômica. O senhor sabe alguma coisa a respeito? Seus serviços secretos têm alguma pista?'.

"O ministro Colombo não sabia o que pensar. Por fim, falou: 'Nós também não sabemos ao certo. Suspeitamos. Vários indícios não confirmados nos fazem acreditar numa exploração clandes­tina do enriquecimento de urânio em altas proporções, além das referentes ao seu uso pacífico. Também não sabemos se é trabalho civil, sob a autoridade do ministério brasileiro de Ciência e Tec­nologia, ou se é coisa de militares, sob ordens do Emfa, fora das linhas normais de comando da Marinha, Exército e Aeronáutica.

"Foi então a vez de o assessor político falar. Roberto Ludmilo pigarreou e disse: 'Se todos nós suspeitamos que eles estejam fazendo, por que não fazemos o mesmo?'. E, olho no olho do general Emilio Colombo, Ludmilo perguntou: 'Nós temos capa­cidade material e pessoal especializado para isso? Temos algum laboratório capaz de empenhar-se no enriquecimento de urânio e apto a levá-lo ao nível suficiente para o uso militar??'

Antônio acompanhava, no auge da perplexidade, a narrativa de Magallanes. E dirigia o carro com o máximo de atenção que lhe permitisse tudo ouvir e registrar na memória.

Marcelo Magallanes prosseguiu: "O general Colombo falou, então, do centro de pesquisa nuclear situado à margem do lago Nahuel Huapi, nas cercanias de Bariloche, da academia militar e da Companhia de Engenharia de Montanha, e de como esse centro poderia ter a sua equipe de cientistas reforçada e ser dirigido por um militar — especialista em tecnologia nuclear, mas disfarçado de civil. E como ali se poderia, com dinheiro que o Ministério da Guerra não tinha, dedicar-nos ao objetivo de fazer a bomba".

"Foi, então, a vez de Gregorio Mariolem intervir: 'Dinheiro não é problema. Como o general sabe, todo governo tem acesso a fundos secretos, desconhecidos de todos e jamais objeto de fisca­lização ou auditoria pública.

"E, após um momento, a pergunta-chave: 'Mas o Exército tem algum oficial com capacidade técnica para dirigir um centro de desenvolvimento de tecnologia nuclear?'.

"O general Colombo não hesitou: 'Mais de um. Mas acho que, no propósito de preservar a aparência de 'unidade civil', devemos ter lá um só militar'.

"Os civis concordaram. Mariolem acrescentou: 'O presidente da República Hernane Kristenberg não quer ser responsabilizado pelos fatos, se tornados públicos'. E mais: 'Estamos aqui com au­torização expressa do presidente e a ele relataremos os detalhes da reunião de hoje e como os fatos se desenvolverem'. O que era pura mentira.

"Mariolem prosseguiu, sem pestanejar: 'Contudo, do ponto de vista do público nacional ou internacional, esta reunião e os fatos dela decorrentes jamais aconteceram. Nos seus despachos com o presidente, o senhor, general Colombo, jamais mencionará essa questão. É como se ela fosse clandestina e sem a sua autorização'. O que era pura verdade."

Antônio pensou: "Era a vez de Magallanes". Não era.

Mas Magallanes continuava seu relato:

"Colombo voltou ao Ministério da Guerra e, imediatamente, convocou o general Jerónimo Vinatero, já então diretor de pes­quisa e desenvolvimento técnico do Exército, a um despacho ex­traordinário com ele, ministro, em seu gabinete.

"Chegando ao gabinete do ministro da Guerra, Vinatero ouviu, perplexo, toda a estória da reunião que o general Emilio Colombo tivera na Casa Rosada. Concordou com a suspeita de que os brasi­leiros estivessem em processo de fabricação de sua bomba e, entu- siasticamente, com a idéia de os argentinos virem a fazer o mesmo.

"Colombo perguntou: 'Temos algum oficial superior com qualificação profissional suficiente para, fingindo ser civil, dirigir o nosso programa nuclear em Nahuel Huapi?'.

"Em segundos, Vinatero deu ao ministro uma lista de cinco oficiais, referiu suas qualificações técnicas e disse ao ministro: 'Qualquer um que o senhor ministro escolher terá excelentes condições de dirigir o programa. Porém, vamos contratar vá­rios técnicos e cientistas civis para tocar o bonde para a frente. Para isso, também temos nomes bastantes. Mas não temos nem sombra dos recursos necessários a esse fim?'

Magallanes enxugou discretamente uma pequena lágrima e disse: "Foi aí que minha chance se esvaiu por entre os dedos. O ministro escolheu outro oficial, seu amigo, o coronel Ernesto Larreta. Literalmente, fiquei a 'ver navios'. Continuei subindo na carreira e, quando me aposentei, fui promovido a general de bri­gada. Mantive minha dedicação à pátria e ao Exército e pratiquei todos os atos de rotina do dia a dia. Mas sem aquele entusiasmo que vem da convicção de que o nosso dia chegará. Não chegou".

De parte a parte, não havia mais o que dizer. Magallanes calou-se. Antônio pensou: "Tomara que tenha gravado tudo". Tinha.

Seguiram viagem por várias horas em silêncio. E muita tensão.

 

Depois de tantas revelações, Antônio cuidava de pôr em ordem a montanha de dados — evidentemente confiden­ciais — revelados por Marcelo Antigua Magallanes, fruto, se verdadeiros, do profundo desgosto e da frustração de suas expec­tativas como militar e sobretudo como especialista em energia nuclear.

Não foram necessárias muitas palavras para Antônio Gomes compreender que, se fosse verdade o pedido de aposentadoria de Marcelo, antes da idade legal de 65 anos, era uma forma silen­ciosa de protesto e expressão material de seu desapontamento.

E, quanto à sua promoção a general de brigada aos cinqüenta e poucos anos, o próprio Marcelo explicara: a legislação argentina dispunha que todos os militares em serviço ativo que tivessem tido alguma ligação, mesmo indireta, com a Guerra das Malvinas adquiriam automaticamente dois direitos: aposentadoria mais cedo (em idade) e promoção automática ao posto seguinte na hierarquia militar, na hora da "passagem à reserva". Algo como um "prêmio de consolação", mesmo para quem não tinha arris­cado a vida na aventura fracassada da recuperação da soberania sobre os arquipélagos.

"Mais importantes que os ressentimentos de Marcelo", pensou Antônio, "são os fatos relatados por ele. E, mais uma vez, se forem mesmo fatos verdadeiros". Continuou a pensar: "Por que motivo Marcelo teria falado o que falou? Simples expressão de desgosto ou armadilha para um suspeito de espionar os trabalhos argen­tinos em energia nuclear?".

"Afinal", ponderava Antônio, "alguém, agindo em nome do governo argentino, andou fazendo perguntas não tão discretas a meu respeito em Brasília. Seria toda essa conversa — por mais plausível que pareça — uma tentativa de sabotar as investigações que o serviço secreto argentino poderia supor que eu estou fazendo? Ou de quebrar o segredo de minha identidade e me desencaminhar da busca dos objetivos que me haviam trazido até aqui?

Após longo silêncio, atribuível à gravidade dos fatos, Antônio resolveu tomar certas atitudes: "Na primeira oportunidade pos­sível vou encenar um chamado dos meus sobrinhos para um pre­tenso encontro na tríplice fronteira". Antônio mencionara essa possibilidade a Marcelo na hora em que ele lhe pedira a carona. Mas, de fato, como razão para largá-lo em qualquer lugar onde Marcelo pudesse buscar outro meio de transporte para Buenos Aires. E, acima de tudo, para permitir a continuidade de suas buscas sem censura à vista.

Em seguida transmitiria ao Chemfa, palavra por palavra, via iPad, tudo o que Marcelo havia dito e o que mais viesse a dizer. Ao mesmo tempo solicitaria ao Emfa que procurasse confirmar a identidade militar de Marcelo Antigua Magallanes. Como mi­litar profissional, Antônio sabia que o Exército argentino, à se­melhança do brasileiro, publica um almanaque anual, com os nomes, postos e carreiras de todos os seus oficiais. A identifi­cação de Marcelo era viável e facílima. Talvez a própria biblioteca do Emfa tivesse exemplares do almanaque de pessoal ativo do Exército argentino. Tinha.

Na sua cabeça, porém, Antônio abrigava três dúvidas. A pri­meira, sobre a fase em que se encontraria hoje o desenvolvimento da pesquisa nuclear para fins militares na Argentina. Outra, sobre a conveniência de um contato pessoal com o Chemfa, se confirmada a identidade de Marcelo. Para quê? Para discutir a estratégia a seguir em busca de prova concreta da existência e da extensão do programa nuclear militar argentino. E o que fazer, caso as palavras de Marcelo passassem pelo teste da veracidade.

A terceira dúvida era a mais importante: "Bem. Estão fazendo a sua bomba. Mas onde?".

Pararam numa hospedaria à margem da estrada para per­noitar. Chegando ao seu quarto, Antônio enviou ao Chemfa um minucioso relatório com tudo o que Marcelo lhe havia dito.

Pediu ao Emfa que confirmasse ou não a identidade do ge­neral de brigada Marcelo Antigua Magallanes, sua especialidade, carreira e aposentadoria.

Por fim, solicitou ao chefe de gabinete do Chemfa que no dia seguinte, por volta do meio-dia, hora brasileira, enviasse a ele um e-mail com o seguinte texto:

 

             Querido Tio Antônio:

O nosso encontro na tríplice fronteira agora é para valer. Vamos nos en­contrar lá daqui a dois dias? Mamãe e Maria de Fátima estão doidas para fazer compras. Nós também.

Beijos.

                     Duda, Zé Francisco e Carlos Alberto.

 

Recomeçaram a viagem na manhã seguinte. Voltaram a parar num posto de gasolina, não só para reabastecer, mas também, alegadamente, para ir ao banheiro. Pelo sim, pelo não, antes de voltarem ao carro, Antônio tornou a ligar o gravador de seu smartphone. "Vamos continuar a conversa de ontem", pensou consigo.

Pelas 10 horas chegou a mensagem encomendada. Antônio se apressou a mostrá-la a Marcelo, dizendo: "Não já, mas quando chegarmos a Comodoro Rivadavia, terei de mudar de itinerário. Precisarei tomar outro meio de transporte e depois um avião que me leve a Puerto Iguazu, do lado argentino da tríplice fronteira. Lá, ou em Ciudad dei Este, no Paraguai, ou, do lado brasileiro, em Foz do Iguaçu, me encontrarei com minha irmã e meus so­brinhos, fonte de grande alegria para mim".

Marcelo disse que compreendia. Afinal, Antônio mencionara essa possibilidade na mesma hora em que lhe pedira a carona. Prosseguiram viagem. Longos silêncios. Não havia muita coisa a falar. Suspiros quase inaudíveis de Marcelo.

Continuavam no rumo de Comodoro Rivadavia, na direção geral de Buenos Aires. Em certo momento, Antônio achou con­veniente pôr à prova o que Marcelo lhe havia contado. Afinal, ele ficara sabendo, na reunião no Emfa, que dois ou três anos antes uma delegação brasileira havia visitado as instalações de pesquisa nuclear do lago Nahuel Huapi e nada encontrara capaz de levantar suspeitas de processamento de urânio acima de 20%. Para uso pacífico, portanto, e nem sombra de uso militar.

Antônio, é claro, não podia mostrar conhecimento desse fato. Portanto, foi por outro caminho e falou: "Marcelo, tudo o que você me disse faz sentido — pelo menos, para um leigo na ma­téria como eu. Mas, pelo que a gente lê nos jornais diários e nas revistas semanais de interesse geral, um processo como o descrito por você exigiria vários anos de trabalho, pesquisa e desenvolvi­mento. Você não mencionou datas, portanto eu lhe perguntaria: há quanto tempo o processo de alto enriquecimento de urânio está em andamento? Isto é, se não se tratar de matéria confiden­cial, que você não poderia ou preferiria não revelar".

Magallanes hesitou um pouco. Em seguida disse: "Não citei datas, mas disse o nome do presidente da República e seus asses­sores, quando o projeto teve início, o que permitiria identificar a data aproximada dos fatos. Faz mais de cinco anos e, como qual­quer cientista da área confirmará, depois desse tempo só há duas hipóteses: ou o fracasso completo, sem remissão, o que teria de­terminado o encerramento da experiência, ou eles se aproximam do sucesso. Esta última parece a melhor das hipóteses, pois, pelo que sei, a equipe continua trabalhando no mesmo lugar e o pouco que se ouve nos meios militares é animador".

Antônio pensou: "Cinco anos? E os brasileiros que visitaram as instalações de Nahuel Huapi há apenas três anos? Será que eles não viram tudo? Existem por lá áreas escondidas?".

E resolveu pedir foto aérea — tirada pelo avião invisível ao radar — das instalações visitadas pelos cientistas brasileiros à margem do lago Nahuel Huapi, cujas coordenadas geográficas ele mesmo, Antônio, havia passado ao Emfa na sua primeira missão.

Como se tivesse lido o pensamento de Antônio, Marcelo Ma­gallanes continuou: "Não sei se você está ao par, mas nossos dois países — Argentina e Brasil — não permitem inspeções das res­pectivas instalações de pesquisa nuclear pelos fiscais da Agência Internacional de Energia Atômica, a AIEA".

"Por mais que El Baradei, o secretário-geral da AIEA, insista, e tem insistido muito, nossos governos recusam sistematicamente a presença de inspetores nos dois territórios.

"E quando países amigos, com os quais temos acordos de cooperação recíproca, pedem para ver o que estamos fazendo, só mostramos o que nos convém. As instalações são suficien­temente grandes e complicadas para confundir visitantes. Eles saem pensando que viram tudo, mas só viram o que desejávamos que vissem."

Em tom de conclusão, Marcelo continuou: "Existe uma orga­nização bilateral, a Agência Brasileira e Argentina de Contabi­lidade e Controle de Materiais Nucleares, mais conhecida pela sigla Abacc, teoricamente encarregada dessas inspeções. Mas, de fato, seus agentes só veem o que cada lado permite que vejam".

Um par de horas depois, enquanto tomavam café, chegou o e-mail do gabinete do Chemfa: "Confirmamos identidade e todos os demais dados".

"Bem", pensou Antônio. "Se Marcelo é efetivamente o que diz, agora mesmo é que eu preciso de uma conversa pessoal com o Chemfa."

Chegaram a Comodoro Rivadavia. Antes de se despedirem, trocaram as amabilidades de praxe. Antônio pediu e Marcelo lhe passou um cartão com nome, endereço postal, endereço de e-mail, telefone etc. Antônio deu a Marcelo apenas um endereço de e-mail, acrescentando: "Como você sabe, estou procurando um lugar onde morar".

 

Após as despedidas de praxe, Antônio prosseguiu a viagem para o norte. "Mas", pensou, "agora tenho de parar para refletir. Para onde vou? Bariloche? Brasília, para encontrar-me com o Chemfa, discutir a situação e combinar estratégias?" Na sua cabeça, o quadro estava muito claro: desenvolvia-se, à margem do lago Nahuel Huapi, um programa de enriqueci­mento de urânio para uso militar, sob controle das Forças Ar­madas argentinas.

"Quer dizer", continuou a pensar, "para fazer uma bomba atômica. Para quê? Afinal, nenhum dos nossos países tem ambi­ções ou reivindicações territoriais legítimas. A questão das Mal­vinas é coisa do passado. E, mesmo que os argentinos lancem uma bomba sobre cada ilha, nada vai sobrar de vida no arquipélago. Nessa visão, o esforço para fazer bombas, bem assim a destruição causada por elas, não teria recompensa nenhuma".

"Desejo de supremacia? Sobre quem? Sobre o Brasil? Para obter o quê? Espaço territorial não falta à Argentina, com seus quase três milhões de quilômetros quadrados."

Construir bombas atômicas só fazia sentido, na cabeça de Antônio, com um propósito estratégico bem definido e objetivos políticos bem equacionados. "Pensará o governo argen­tino em reconstituir o espaço geográfico do antigo vice-reinado do Rio da Prata? Mas isso significaria a invasão do Paraguai e/ou da Bolívia. Ou a invasão do Centro-Oeste brasileiro para res­suscitar o meridiano de Tordesilhas? Três sangrentas loucuras sem remissão."

Depois de muito refletir, ele chegou à conclusão de que teria de voltar a Bariloche, buscar a confirmação do que Magallanes lhe contara. Afinal, em sua primeira conversa, no bar do hotel residencial Los Pampas, Gutierrez ficara de refletir sobre se contaria ou não a Antônio o que fazia, onde trabalhava etc., tal como Antônio fizera em relação a si próprio. Se Gutierrez fa­lasse, Antônio esperava a ratificação da palavra de Magallanes sobre o que se fazia à margem do lago. Por isso, pensava, já não há o que procurar em outras áreas, em termos de instalações de pesquisa e desenvolvimento nuclear.

Além disso, a informação dada por Magallanes de que o projeto vigorava havia cinco anos, somada ao sentimento de sucesso que prevalecia entre os militares, conferia grande ur­gência a tudo: os cientistas argentinos deveriam estar próximos do final do seu programa. Por isso, não continuaria a viagem por terra, mas tomaria um avião no aeroporto mais próximo.

E de Bariloche, fosse qual fosse o resultado de suas conversas com Gutierrez, pediria um encontro pessoal com o general Fer­nando Pais de Oliveira, chefe do Emfa.

Ali mesmo, em Comodoro Rivadavia, havia um pequeno aeroporto, para vôos domésticos. Após certificar-se de que Magallanes já havia partido, contratou um vôo direto para San Carlos de Bariloche (o nome oficial, que ninguém usa) e pagou-o com o cartão de crédito fornecido pelo Emfa. Antes de viajar, telefonou ao Hotel Los Pampas para fazer sua reserva. Devolveu o carro alugado a uma agência próxima da locadora e "se mandou".

No hotel, viu basicamente as mesmas senhoras de antes fa­zendo as mesmas coisas: vendo televisão, conversando, costu­rando, bordando, jogando cartas.

Como era a segunda ou terceira vez, Antônio e as senhoras se sentiram "velhos amigos", trocaram sorrisos e amabilidades, do tipo: "Como você parece bem disposto!" e "pelo jeito, a viagem ao sul da Patagônia fez bem a você".

As respostas de Antônio eram de duas naturezas: ou no mesmo nível de amabilidade formal, ou tecendo os maiores elo­gios ao panorama dos glaciares, lagos, rios, montanhas, canais. Tudo lhe parecia muito bem. Bem demais?

De sua parte, retomou a rotina da viagem anterior: debruçou-se sobre o iPad e o laptop e, sem que ninguém percebesse, en­viou um e-mail ao Emfa dando conta de onde se encontrava e reiterando as razões expostas em sua mensagem anterior.

Esperou o fim da tarde e a reunião habitual no bar do hotel. Pelas 7 horas foi ao bar, onde já se encontravam Fernando Gu­tierrez e os demais amigos — companheiros de trabalho de Gu­tierrez? — que ele lhe apresentara na estada anterior.

Palavras amáveis e elogios recíprocos. Antônio imaginou ver algo como mais calor — quase afeto — nas palavras que os ar­gentinos lhe dirigiam.

Duas noites depois, soube a razão disso.

Mais uma vez em torno de uma boa dose de uísque, com gelo, mas sem clube soda, Gutierrez falou: "Tenho um pecado a confessar. Nós andávamos desconfiados de você. Achávamos que você era curioso demais, fazia muitas perguntas a respeito do nosso trabalho. E que essa história de 'volta ao mundo com sinal eletrônico' era simples 'papo furado' que você usava para disfarçar sua verdadeira intenção: penetrar no nosso trabalho. Espionar, talvez. E pedimos à nossa embaixada em Brasília para conferir os dados que você nos dera: nome, idade, pro­fissão de engenheiro, professor universitário aposentado. Tudo foi confirmado. Por isso, acredito que lhe devemos um pedido de desculpas".

Antônio sorriu. Bem que desconfiara. E respondeu: "Em pri­meiro lugar, não há o que desculpar. Acredito que a natureza do trabalho de vocês os mantenha em alerta quanto a even­tuais mexericos e intromissões. Em segundo lugar, sou curioso mesmo. Gosto de saber das coisas e de conhecer as pessoas com quem converso, quem são, o que fazem, o que pensam. Desde criança. Minha mãe dizia que era por 'inclinação intrauterina'".

Brindou com seu uísque e continuou: "Foi essa curiosidade inata que me levou a tentar a volta ao mundo com um sinal ele­trônico. Vocês se lembram: de satélite em satélite, eu havia che­gado com os meus sinais ao Japão e à China, mas não conseguia continuar de lá a partir do Brasil. Por isso, vim aqui. Para tentar vencer a barreira dos Andes e, do alto, passar minhas instruções aos satélites de comunicação chineses e japoneses. Quase tive sucesso, como disse a vocês. Mas de Ushuaia, a única cidade ar­gentina situada 'do outro lado dos Andes', consegui falar com os poderosos satélites americanos da costa do Pacífico e, por meio deles, atingir e dar instruções aos satélites dos nossos antípodas. Assim, pude repetir Fernão de Magalhães: dar a volta ao mundo pelo caminho do oceano Pacífico".

Todos olharam. Alguns mostravam sua incredulidade. "Tenho aqui meu laptop. Se alguém quiser testar o que digo, eu ensino como enviar o sinal — representado por alguma in­formação de conhecimento só de quem transmite — e dar ins­truções aos sucessivos satélites para passarem o sinal adiante, até que ele chegue de volta ao laptop, alguns segundos depois. Descrevendo, inclusive, o caminho percorrido. Aliás, eu consi­deraria um favor se alguém quisesse testar. Longe de mim. Fora do meu campo visual. Vale outro uísque. Quem topa?"

Fernando Gutierrez adiantou-se e disse: "Eu quero fazer o teste". Antônio lhe deu as instruções necessárias à operação e acrescentou: "Para você não imaginar que eu possa bisbilhotar sua mensagem, leve também o meu iPad desligado. Aposto que dará certo".

Gutierrez levantou-se, saiu do bar, foi para a área externa do hotel e deu todos os passos ensinados por Antônio. Voltou dois minutos depois, com ar de quem tinha visto fantasmas. E disse a todos: "Antônio ganha mais um uísque. Ninguém jamais saberia o teor da minha mensagem: o nome da cidadezinha espanhola onde nasceu meu bisavô; e, na segunda tentativa, o nome que a minha mulher Leyla e eu tínhamos escolhido para o nosso futuro neto, ainda nem concebido. Parabéns. E o que você vai fazer com essa invenção?"

"Nada", respondeu Antônio. "Trata-se do produto de um engenheiro extremamente curioso, com alguma imaginação e competência, útil somente para quem nada tem que fazer."

Mais uísques, "conversa fiada" e nada de importante. Mas Antônio se roía por dentro, à espera de uma revelação sobre os trabalhos de energia nuclear realizados à beira do lago. Já tinha, como se diz, a "certeza moral" de que ali se preparava a primeira bomba atômica argentina. Mas, depois, onde a deto­nariam? Haveria outras? Para quê?

Em certo momento, Leyla de Gutierrez apareceu no bar, cumprimentou Antônio efusivamente e falou com o marido: "Vamos jantar, Fernando. Leve o Antônio também".

O restaurante de sempre: o melhor de Bariloche. Mais um uísque. Depois, vinho. E a inevitável comparação com os pro­dutos chilenos e franceses. Antônio aderiu à dança e citou os vinhos do "Fim do Mundo", do sul da Patagônia, altamente apreciados pelos locais.

Mais conversas sobre o sul da Patagônia e o extremo sul do continente. Por sua vez, Leyla entrou na discussão. Disse: "Quando estávamos por lá, também apreciávamos os vinhos do 'Fim do Mundo'. Eles são fortes o bastante para compensar o frio e, em certa medida, a solidão dos nossos cientistas, que faziam trabalho confidencial no meio de uma multidão de tu­ristas indo e vindo a toda hora".

Foi a vez de Gutierrez falar, impulsionado talvez pelo estí­mulo do uísque e do vinho: "Bem. Já que a Leyla abriu as cor­tinas do palco, vou contar o resto da peça. O que nós, cientistas — basicamente, a mesma equipe reunida no laboratório da margem do lago —, fazíamos lá no sul e continuamos a fazer aqui é o enriquecimento mais ou menos secreto de urânio, bem acima da marca dos 20%, utilizada para fins pacíficos. Tal como, nós pensamos, os brasileiros devem estar fazendo".

Pausa e continuação: "Há muitos meses superamos a etapa do yellow cake e já nos aproximamos do nível de 80% a 90% de enriquecimento. O que só serve para fazer bombas. Nada de uso para o bem da humanidade".

Gutierrez parou. Um momento depois retomou o fio: "Pro­vavelmente, eu não deveria lhe contar estas coisas. Talvez eu esteja, até, cometendo um crime. Ou, no mínimo, uma indis­crição. Mas, para nós, engenheiros e técnicos, o urânio que existe na natureza só deveria ser utilizado para gerar energia, para fins medicinais e para outros objetivos a bem da humani­dade. Jamais como arma arrasadora, de destruição em massa de todas as formas de vida".

Nova parada. Então, Gutierrez falou: "Não sei se você acre­dita na sinceridade do que eu e meus colegas pensamos. E se tem acesso aos cientistas que, no Brasil, se ocupam do enrique­cimento de urânio. Se tiver acesso, prestará um serviço à huma­nidade conseguindo convencê-los a não imitar os países vilões que procuram, às claras ou às escondidas, criar bombas que não servem para nada. Como, aliás, nenhum armamento serve".

Antônio percebia o embaraço de Leyla e a tristeza de Gu­tierrez. Não queria fazer mais perguntas. Mas havia uma, in­dispensável: "Bem compreendo, Fernando, os sentimentos que você expressou e que, entendo, são também de seus colegas. Mas, pelo pouco conhecimento que tenho do assunto, o pro­grama nuclear de países novatos no assunto, como o seu e o meu, só chega ao auge com um primeiro teste, uma primeira explosão. A qual, mesmo se acontecer em lugar deserto, deixa um rastro de morte de animais e plantas. Resta somente a maior desolação, sem nada que se possa considerar positivo".

E concluiu, com a intenção oculta de tudo saber: "Espero que vocês não estejam pensando em um teste nuclear próximo a uma zona habitada do território argentino, mesmo as de baixa densidade demográfica. Ou em áreas como a Antártida, que são reservas de todos nós".

Antônio nem sabia ao certo se desejava mais revelações de Gutierrez.

Mas este estava disposto a levar o drama à cena final: "Nós ainda não temos data certa, mas será dentro de pouco tempo: um mês, um trimestre, um semestre. Este ano".

"Você provavelmente não sabe, mas no extremo sul, na Pas­sagem de Drake, além da ponta do nosso continente, existem ilhas desertas onde só vivem pingüins ou lobos do mar. Além de glaciares flutuantes, onde não há espécie alguma de vida. Uma explosão lá seria ignorada por todo o mundo. Exceto, natural­mente, pelos promotores dessa triste idéia."

Antônio achava que já sabia tudo o que precisava saber. Voltou-se para Gutierrez e disse: "Manterei em confidência o que disse. Mas veja a Leyla, ela está com jeito de quem passa fome. Vamos pedir nosso jantar?"

Gutierrez, entretanto, ainda não havia chegado ao fim do seu discurso.

E prosseguiu: "Tenho mais uma coisa a dizer: nós, cientistas, já discutimos a hipótese de nos negarmos a continuar o pro­cesso. Fazer uma greve. Afinal, uma bomba atômica não serve a nenhum propósito construtivo. Só a fins destrutivos. Não sei dizer se chegaremos a esse ponto. Afinal, nós — cientistas nucleares e os técnicos que nos ajudam — só temos um tipo de empregador no mundo: o governo. Alguns pensam que fi­zemos a escolha profissional errada. Veja o seu caso, Antônio. Como engenheiro eletrônico, Você tem empregadores em todo o mundo: empresas locais, nacionais e multinacionais, em de­zenas de especialidades. Nós, não".

Por fim, pediram o jantar. Até a sobremesa só falaram ba­nalidades. Depois, todos, com a tristeza estampada no rosto, voltaram para as suas acomodações no hotel.

 

De volta ao hotel, Antônio fez o inventário mental das infor­mações que recebera de Magallanes e Gutierrez. Na melhor perspectiva, a situação era grave: haveria uma bomba atômica, do lado argentino, em questão de semanas ou de poucos meses. O governo brasileiro tinha de ser informado. E tomar alguma ati­tude a respeito. Urgentemente. Antes que fosse tarde demais.

Contudo, estava confuso sobre como agir e a quem passar as informações de que dispunha. Numa esperada — mas sempre adiada — reforma administrativa, o governo federal brasileiro re­solvera consolidar a direção das três Forças Armadas — Marinha, Exército e Aeronáutica — no Ministério da Defesa, chefiado por um ministro civil.

Cada Força teria um comandante do seu próprio meio, dire­tamente subordinado ao ministro da Defesa. A integração não parecia fácil. Poucos "milicos" aceitavam de bom grado a sua subordinação — não só a um civil, mas, era provável, a alguém saído dos meios políticos. E, por isso mesmo, ignorante de as­suntos de defesa e segurança nacional.

Para completar o quadro de mudanças radicais, o eleitorado brasileiro elegera uma mulher, Mariana Rousseau, para presi­dente da República (ou presidenta, como ela preferia chamar-se). Ex-guerrilheira, ex-prisioneira do regime militar, jurista de re­nome em Minas Gerais e ex-ministra da Justiça, Mariana tinha zero de experiência em política partidária.

Do mesmo modo, a Argentina havia elegido uma mulher, Sil­varia Lapena, presidente do país. As duas presidentas já se haviam encontrado, assinado tratados e, aparentemente, desenvolvido boa sintonia pessoal. Os principais líderes políticos dos dois países es­peravam que a simpatia pessoal se estendesse às relações oficiais dos respectivos governos e facilitasse a união de pontos de vista em assuntos da economia e da política internacionais.

À noite, Antônio preparou e enviou minucioso relatório con­firmando tudo o que dissera anteriormente, mais o dado crucial da iminência do teste da primeira bomba argentina.

Pediu também que fosse marcada uma reunião no Emfa com o general Fernando Pais de Oliveira — o qual, até onde Antônio sabia, continuava no cargo de Chemfa — para data e hora compa­tíveis com a sua proposta de viajar daí a dois dias, de uma forma e com itinerários capazes de evitar novas suspeitas sobre o que fazia ali.

Nesse contexto, e pelas mesmas razões, Antônio pediu ao gabinete do Emfa para repetir, no dia seguinte, em hora coin­cidente com a reunião diária no bar do hotel, a suposta men­sagem dos sobrinhos confirmando uma reunião na tríplice fronteira.

Via iPad, o Chemfa informou que receberia Antônio no mo­mento em que este pudesse chegar a Brasília. E que não só o ouviria, mas o levaria "a quem de direito" para seu relato pes­soal do que vira, observara, ouvira e deduzira em suas várias semanas e milhares de quilômetros de viagens pelas diferentes regiões da Patagônia.

 

Como programado, o e-mail dos "sobrinhos" chegou enquanto todos estavam no bar.

O iPad fez um barulhinho típico, que levou Antônio a ligar o aparelho bem à vista de todos. E falou: "Ah! Meus sobrinhos favoritos me enviaram um e-mail confirmando um encontro que vimos discutindo há meses, na tríplice fronteira".

"Minha irmã Teresa, minha sobrinha Maria de Fátima e meus três outros sobrinhos Duda, Zé Francisco e Carlos Alberto estão todos doidos para passear, visitar o que chamam 'terras estranhas', comprar mil coisas inúteis a preços baixíssimos — comparados com os brasileiros — nas lojas argentinas e paraguaias.

"Acho que terei de ir a Puerto Iguazu amanhã ou depois, passar para Ciudad dei Este, no Paraguai, o principal centro de compras de bugigangas preferido pelos brasileiros de classe média alta, e ficar por lá até eles gastarem todo o dinheiro do meu cunhado. O que não será difícil, dado o apetite de Teresa e seus filhos pela idéia de uma loja depois da outra."

Todos riram. Antônio pediu licença, foi ao balcão da agência de viagens situado no saguão do hotel, disse ao agente qual era o propósito da viagem, perguntou preços, marcou voo domés­tico para a cidade argentina de Puerto Iguazu, no dia seguinte, e deixou a volta em aberto.

Quando o agente de viagens perguntou a respeito de hospe­dagem, Antônio fingiu procurar a informação no seu iPad e res­pondeu: "Não é preciso. Meus sobrinhos têm reserva confirmada para todos nós, num hotel de Foz do Iguaçu, do lado brasileiro". Pagou tudo com seu cartão de crédito e voltou ao bar.

Nova rodada de uísque. Mais conversa alegre e inconseqüente.

Alguém lhe perguntou: "E você não vai comprar nada para você mesmo?".

A resposta estava pronta, imediata: "Não sou de fazer com­pras. Essa viagem é em pagamento de uma aposta que fiz com os meus sobrinhos — em particular, com o Eduardo, que todos chamamos pelo apelido de Duda, corintiano fanático — sobre quem ganharia a partida do campeonato de futebol: o Flamengo, do Rio, ou o Corinthians, de São Paulo, os dois clubes com as maiores torcidas do Brasil. Flamenguista roxo, eu pensava que ganharia, mas perdi. A aposta era sobre quem acompanharia Te­resa e os quatro sobrinhos numa viagem à tríplice fronteira. E, sobretudo, quem pagaria as contas de viagem e hotel".

O planejamento da viagem era minucioso e tático.

Na tríplice fronteira, brasileiros, argentinos e paraguaios cir­culam livremente entre as três cidades, mostrando carteira de identidade. Nada de exibir passaportes, nem carimbos de vistos de saída e retorno ao território argentino, paraguaio ou brasileiro. Tudo na santa paz.

Ao chegar a Puerto Iguazu, em vôo direto de Bariloche, An­tônio alugou no aeroporto um armário desses que existem para guardar bagagens. Deixou a sua mala e levou apenas uma pasta com o laptop, o iPad, documentos pessoais, dinheiro, mais os itens comuns, necessários para a higiene pessoal.

Na saída do aeroporto pegou um táxi e foi para a ponte internacional. Olhou de relance para as belezas da região, em particular para a vista das cataratas do Iguaçu a partir do ter­ritório argentino. Era uma vista deslumbrante. "Algum dia", pensou, "voltarei a esta região, mas como turista". Em seguida, no mesmo táxi, cruzou a fronteira para Ciudad dei Este e daí, de ônibus, como outras centenas de brasileiros, seguiu para Foz do Iguaçu.

Novo táxi, até o aeroporto de Foz do Iguaçu. Primeiro voo para Brasília, via São Paulo.

Chegada a Brasília no fim da tarde, mas ainda a tempo de ligar para o chefe de gabinete do Chemfa e marcar reunião para a manhã seguinte, sem hora pré-determinada.

Não foi para casa, não quis perturbar o segredo da viagem e seu motivo. Passou um rápido e-mail para Mercedes: "Estou na terra. Mas não sei se poderei ver você e os meninos. Se puder, aviso. Estou bem de saúde e continuo meu trabalho em paz".

Mercedes respondeu: "Não deixe de nos ver. Estamos todos bem, mas com muita saudade".

No principal shopping center de Brasília comprou um pijama e duas mudas completas de camisa social e demais peças íntimas, para poder apresentar-se ao chefe do Emfa limpo e vestido corre­tamente. Obteve hotel, mesmo sem reserva. Depois de um bom prato de comida brasileira em um restaurante da cidade, voltou ao hotel para o minucioso preparo da reunião decisiva que teria no Emfa em algum momento do dia seguinte.

Não deixou de reagir, como todas as pessoas que chegam a Brasília, ao abafamento causado pela baixa umidade do ar do pla­nalto central brasileiro. A comparação com o clima de Bariloche, igualmente seco, foi inevitável. "Mas lá", pensou, "a diferença de latitude para o sul do continente faz uma enorme diferença: menos calor, freqüentes rajadas de vento fresco, quando não frio, e a bela vegetação local tornam a vivência mais agradável."

No dia seguinte, no começo da manhã, telefonou para o chefe do gabinete do Chemfa. Ele lhe disse: "Venha o mais depressa que puder. O general Oliveira, Chemfa, e o almirante Fakhoury, Vicemfa, querem falar com você logo cedo".

Antônio vestiu-se, tomou café, pegou um táxi e voltou ao edi­fício onde ficava o Emfa.

 

No gabinete do Emfa, o general Oliveira, chefe, e o almirante Fakhoury, vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, estavam à espera de Antônio. Ele, ao chegar, fez as saudações de praxe no estilo militar ao qual se habituara, pediu licença para falar e começou seu relato. Julgou necessário repetir pessoal­mente as informações constantes dos relatórios que enviara, com suas conclusões e deduções inspiradas no que observara, vira e ouvira em torno da cidade de Bariloche e no sul da Patagônia.

Repetiu quem tinha sido seu interlocutor na viagem do sul para o norte pela EN 3, o engenheiro especializado em energia nuclear e general de brigada aposentado Marcelo Antigua Magal­lanes. Deu os motivos — que Marcelo lhe passara com evidente sinceridade — de sua frustração por não ter sido escolhido para dirigir a operação, na margem do lago Nahuel Huapi, destinada a enriquecer urânio em nível adequado para fazer a bomba.

Lembrou que a identidade, a carreira e o posto de Magal­lanes haviam sido confirmados pelo próprio Emfa. E sublinhou a crença nas suas palavras pelo fato de coincidirem com o que ele havia visto e com as conclusões a que chegara no seu périplo na Patagônia.

"É verdade", interrompeu o Chemfa, "que você pode ter sido levado a acreditar em Magallanes por duas razões subjetivas. A primeira é que você já devia estar cansado de entrar e sair de es­tradas para visitar localidades de menor importância e procurar em vão sinais de uma instalação de processamento de urânio. A segunda é que as informações de Magallanes confirmavam o que você deduzira de tudo o que tinha visto, ouvido e pensado. Essas duas circunstâncias poderiam, naturalmente, comprometer a sua objetividade."

"Sem dúvida, general", respondeu Antônio. "Mas, sendo eu conhecedor das técnicas e dos problemas inerentes ao enriqueci­mento de urânio — como os senhores mesmos reconheceram ao me escolher para a missão —, não teria sido possível alguém me enganar gratuitamente e na extensão de tudo o que Magallanes me contou."

Pequena pausa. Antônio prosseguiu: "Como os senhores me advertiram, tinha havido perguntas a meu respeito — identidade, profissão, aposentadoria etc. — feitas por pessoa ou pessoas do governo argentino. Cheguei a pensar que Magallanes havia sido plantado' ao meu lado para me desorientar. Mais de uma vez re­fleti sobre as coincidências do que ele me havia contado e o que eu vira ou deduzira. E, mais ainda, sobre como tudo era com­patível com as conclusões às quais chegara nos vários recantos visitados na Patagônia".

O Vicemfa, almirante Fakhoury, interveio para dizer: "Nós aqui também tínhamos as mesmas dúvidas. Principalmente, sobre a atitude que deveríamos tomar com o governo brasileiro caso aceitássemos as suas informações e conclusões".

"Relembramos o fato de o presidente George W. Bush ter auto­rizado a invasão do Iraque, com a perda de milhares de vidas de ambos os lados, na presunção de que o ditador Saddam Hussein estaria construindo o que os Estados Unidos denominam MDW — mass destruction weapons, ou armas de destruição em massa.

"Lendo o livro de memórias do ex-presidente, não dá para saber se seu governo decidira invadir o Iraque por presumir que Saddam Hussein patrocinava a fabricação de armas químicas ou por imaginar que fazia bombas nucleares.

"Em vista disso, o general Oliveira, aqui presente, acionou a Comissão Nacional de Energia Nuclear, a CNEN, para que esta pedisse à ABACC, a Agência Brasileira e Argentina de Contabili­dade e Controle de Materiais Nucleares) o favor de, conforme seu nome pomposo, averiguar se havia na Argentina algo parecido com o que Magallanes dizia estar acontecendo à margem do lago que você menciona.

"A resposta foi enfaticamente negativa. Pela contabilidade da ABACC, todos os materiais nucleares do país vizinho estavam sob controle estrito das autoridades por eles responsáveis. Con­clusão inelutável: para a ABACC, não se fazia bomba atômica na Argentina."

Foi então a vez do general Oliveira falar: "Nossas dúvidas sobre o que estaria acontecendo por lá se reforçaram mediante uma pergunta para a qual nem nós, nem a CNEN, nem a ABACC tínhamos resposta: 'Eventuais adversários dos argentinos teriam inventado uma mentira tão verossímil quanto a de projetos de MDW que o presidente Bush acreditava existirem no Iraque?'. Daí, você veio com as revelações — ou, melhor dito, confissões — do seu amigo Fernando Gutierrez. E agora, o que faremos? Qual o nosso próximo passo?".

Antônio respondeu: "Compreendo, general e almirante, a po­sição dos senhores. Imaginei que a sua reação seria mais ou menos no sentido do que disseram. Mas, do ponto de vista de quem tudo ouviu e da sinceridade evidente das pessoas que falaram comigo, eu não tenho dúvidas sérias. Acho que, sim, os argentinos estão construindo uma bomba à margem do lago Nahuel Huapi. E acho, até, que eles a testarão daqui a pouco tempo numa das ilhas desertas ou num dos glaciares flutuantes ao sul da Patagônia".

Silêncio pesado. Quem falaria agora? Sobretudo, o que dizer?

Por fim, o general perguntou a Antônio: "Você tem alguma sugestão concreta sobre o que nós, brasileiros, deveríamos fazer? Uma bomba argentina pode não servir para nada sério. Mas cer­tamente quebrará o equilíbrio não só político como, acima de tudo, militar na relação dos dois países. Não se fazem bombas atômicas sem objetivos concretos, como você está farto de saber. Quais serão os objetivos deles? E como prevenir um ataque ca­tastrófico, sangrento, destruidor ao nosso território?! Ou como responder a uma bomba atômica?".

Antônio estava preparado para essa pergunta. Respondeu: "Depois de muito refletir sobre a questão e suas implicações, em termos políticos e de defesa nacional, alinhei quatro providências que o Brasil deverá tomar antes do fato e a partir do momento em que a primeira bomba for detonada, mesmo em caráter experi­mental. Duas delas são medidas preventivas, que nos prepararão para as duas outras medidas defensivas, abortivas do desenvolvi­mento de uma bomba nuclear pelos cientistas argentinos".

"Concretamente, o que você nos propõe?", perguntou Fakhoury.

Antônio pensou: "Chegou o momento decisivo para mim, para a minha carreira — se é que ainda terei uma — e a minha vida". Agora, só lhe restava ir em frente.

E falou: "Primeiro, conforme sugeri, o levantamento de uma carta geográfica detalhada da Passagem de Clarke, ao sul da Pa­tagônia, suas ilhas desertas, icebergs e glaciares flutuantes. Esse mapa servirá de guia para a execução posterior de uma das pro­postas abortivas".

Após pequena pausa, continuou: "Ao mesmo tempo, pro­ponho colocar um satélite espião, invisível ao radar, estacionário sobre o laboratório e a área em torno de Bariloche. O satélite deve passar-nos uma imagem do local a cada minuto, dia e noite, para vermos se e quando caravanas suspeitas se deslocam a partir do lago Nahuel Huapi e em que direção. Em particular, ao aeroporto e às estradas que levam ao sul da Patagônia. Lá estão pontos de­sertos, convenientes a uma detonação atômica não detectável pelas grandes potências".

"E aí?", perguntaram ao mesmo tempo o general e o almirante.

Antônio respondeu: "Aí vêm as medidas defensivas e abortivas de que falei, para o caso de se confirmar a hipótese de eles terem uma bomba experimental: primeiro, bombardearemos o local para onde eles levarem a bomba, antes mesmo da sua explosão. Num segundo momento, logo a seguir, destruiremos o laboratório à margem do lago Nahuel Huapi. Dessa forma eliminamos a ameaça representada — para o Brasil e para o resto do mundo — por uma bomba atômica na mão dos militares da Argentina".

Perplexidade. Fakhoury perguntou: "Você está louco? Isso é guerra, sem adjetivos!"

Mas Antônio tinha uma quinta proposição: tratar a questão de governo para governo. Não pelas vias burocráticas da diplomacia formal. Mas por meio de contato pessoal da presidenta brasileira Mariana Rousseau com a presidenta argentina Silvana Lapena.

O chefe e o vice-chefe do Emfa debateram entre si a sugestão de Antônio.

No fim, viram os problemas que Antônio parecia ignorar. Entre esses, o fato de que chefes de Estado ou de governo não se reúnem sem grandes preparativos, reuniões dos respectivos ministros das Relações Exteriores, pauta comum previamente acordada. Na prática, eles (no caso, elas) se limitam a assinar atos bilaterais examinados, discutidos e acordados entre os respectivos governos. Sua intervenção pessoal restringe-se a certas questões de princípio, à compatibilidade das decisões com os interesses dos respectivos países. Raramente, presidentes têm coisas con­cretas a discutir. No caso havia, ainda, a questão da urgência.

Nesse contexto, o general Oliveira começou a pensar em voz alta: "Estamos no fim de março. A previsão do coronel Schmidt é de que a primeira bomba explodirá em questão de semanas.

Como agendar uma reunião das presidentas Mariana e Silvana para daqui a alguns dias, por motivo tão relevante que justifique a pressa, mas não desperte especulações sobre a motivação real do encontro?".

Aí, o almirante Fakhoury lembrou algo aparentemente plau­sível: "Daqui a quatro semanas chega o dia 21 de abril, comemo­rativo da morte de Tiradentes, o qual, desde os nossos dias de curso elementar, é citado como o 'protomártir da Independência. Temos até uma Ordem de Tiradentes com todos os graus de condecoração: de simples medalhas a comendas e grã-cruzes, até o grande colar, reservado a chefes de Estado. Se a nossa presidenta estiver de acordo, a entrega do grande colar — com o qual a pre­sidenta brasileira agraciaria sua colega argentina — pode ser o motivo da vinda da presidenta Silvana Lapena a Brasília, e então poderá haver a conversa séria, face a face, a respeito da bomba".

O general Oliveira deu mostras de ter gostado da idéia. "Mas", acrescentou, "isso tem de ser discutido primeiramente entre nós: você, Fakhoury, eu e os três subchefes do Emfa. E, depois, com a presidenta Mariana Rousseau".

Antônio pediu licença para falar. Concedida, disse: "Com o devido respeito e sua permissão, sugiro que a reunião se divida em duas. Na primeira, discutiremos todas essas questões e pro­postas com os três subchefes do Emfa. Quando chegarmos a um consenso, no âmbito do Emfa, poderemos fazer uma segunda re­união mais ampla".

Interrogações "pulavam" dos olhos do general e do almirante. "Então", continuou Antônio, "seria vantajoso ter a presença, na segunda reunião, do professor doutor Antônio de Oliveira Dias, da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Como se recordam, ele participou da primeira reunião, quando eu estava de partida para a Argentina, e nos falou das dificuldades e problemas da execução dos acordos de cooperação em energia nuclear entre os dois países. Ele talvez tenha, agora, algumas coisas a dizer, off the record, ou, se tivermos muita sorte, talvez saiba de algum fato novo que possa, ou queira, compartilhar conosco".

Chefe e vice-chefe do Emfa concordaram. O general tocou a campainha para seu ajudante de ordens, mandou que ele cha­masse os três subchefes e, ao mesmo tempo, fizesse uma ligação para o professor Oliveira Dias, com quem o general desejava falar.

Quando o professor veio ao telefone, o Chemfa lhe disse: "Prezado doutor Oliveira Dias, estamos diante de alguns fatos — novos e até certo ponto preocupantes — na questão da coope­ração do Brasil com a Argentina, no desenvolvimento e uso da energia nuclear. Vamos ter uma reunião a respeito aqui, na sede do Emfa — onde o senhor esteve há algumas semanas —, hoje, às 14 horas, e gostaríamos de ter a sua presença, os seus conheci­mentos e a sua capacidade de avaliar os fatos novos. Posso contar com o senhor?"

Oliveira Dias concordou. Prometeu vir na hora marcada.

Começou então a reunião do comando do Emfa: o general de exército Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emfa; o almi­rante de esquadra Eduardo Jaime Fakhoury, vice-chefe; e os três subchefes: o vice-almirante Francisco das Chagas Rodrigues, o general de divisão Ferdinando Contini e o major-brigadeiro Jerônimo Florença.

Todos sentados à mesa de reuniões, o Chemfa disse: "Vocês todos estavam presentes numa reunião nesta mesma sala, há al­gumas semanas, quando discutimos a colaboração entre Brasil e Argentina no desenvolvimento e uso da energia nuclear".

Foi a vez de o Vicemfa tomar a palavra. Disse: "O coronel Antônio Schmidt de Oliveira — desde então conhecido como o professor aposentado Antônio Gomes —, a cuja doutrinação se destinava aquela reunião, partiu no mesmo dia para a Argentina, com o fim de tirar nossas dúvidas sobre a suspeita de que os cien­tistas desse país estavam efetivamente empenhados no desenvol­vimento de uma bomba atômica".

O almirante continuou: "O coronel Schmidt passou as últimas seis a oito semanas percorrendo o sul da Argentina — a província da Patagônia, a partir da cidade de Bariloche, até o extremo sul do continente, apropriadamente chamado de Fim do Mundo".

"Naquela região nós suspeitávamos que estivesse localizado o laboratório em que se fazia o enriquecimento do urânio, onde eles construiriam a sua bomba atômica. O coronel foi, apurou fatos notáveis, juntou peças de um incrível quebra-cabeça e, com uma boa dose de sorte, nos trouxe hoje a confirmação do que mais temíamos. O general Pais de Oliveira e eu não precisamos acentuar o caráter secreto do que nos dirá o coronel."

Antônio tomou a palavra e, pela segunda vez no mesmo dia, contou a sua história: o que vira, os locais aonde fora pessoal­mente, os indícios percebidos, as revelações — ou confissões — de Magallanes e Gutierrez, quem eram eles, as razões para ter acreditado em suas afirmações. E, por fim, o que as palavras daqueles interlocutores demonstravam, coincidindo com o que ele, Antônio, havia visto ou deduzido.

Repetiu ainda para os subchefes presentes as quatro sugestões defensivas e abortivas que havia apresentado momentos antes ao Chemfa e ao vice-chefe do Emfa. E a proposta de que o assunto fosse tratado, afinal, de governo para governo e diretamente entre a presidenta brasileira Mariana Rousseau e a presidenta argentina Silvana Lapena.

O general Pais de Oliveira e o almirante Fakhoury, por sua vez, falaram das suas dúvidas sobre a veracidade das estórias dos dois interlocutores do coronel ali presentes, e de sua hesitação em aceitar como sérias e seguras as conclusões e opiniões de An­tônio. Aí veio a pergunta do Chemfa: "Bem sabemos que vocês não foram pegos de surpresa pela missão confiada ao coronel Schmidt e pelos fatos revelados por ele ou pelas conclusões às quais chegou. Mas tenho que perguntar: o que vocês acham de tudo isso?".

Os três subchefes pediram licença para uma conversa entre si. Dirigiram-se a um canto do gabinete, junto da mesa do Chemfa, e confabularam por alguns minutos. De volta à mesa de reuniões, foi a vez de o subchefe da Aeronáutica, major-brigadeiro Jerônimo Florença, transmitir o pensamento comum ao qual haviam chegado.

Suas palavras: "O almirante Chagas Rodrigues, o general Contini e eu nos inclinamos no sentido de apoiar as conclusões e sugestões do coronel Schmidt. Afinal, ele esteve lá, ao vivo'. As pessoas que lhe revelaram seus sentimentos e, por meio deles, os fatos concretos que nos trazem novamente a esta mesa parecem merecedoras de crédito. Em particular, o general Magallanes, cujas identidade e carreira militar nós mesmos confirmamos".

Silêncio de todos. Olhar em volta da mesa, e o brigadeiro con­tinua: "Sim. Nós achamos que o assunto deve ser tratado de go­verno para governo, não pelas vias burocráticas da diplomacia formal. Mas em contato pessoal, a sós, das duas presidentas. Pro­vavelmente, a presidenta Lapena negará que a Argentina esteja em via de construir uma bomba atômica. Mas o encontro a sós será uma prova de boa fé do Brasil no trato desse assunto".

"E aí, onde ficamos?", perguntou o almirante Fakhoury. "Vocês têm alguma sugestão para o dia seguinte à conversa e à negativa?"

"Sim", respondeu o brigadeiro.

E prosseguiu: "Como os senhores general Pais de Oliveira e almirante Fakhoury sabem, nós tivemos acesso — por determi­nação dos senhores — a toda a correspondência enviada pelo coronel Schmidt, incluindo os relatórios sobre o que ele viu, as conversas que teve e suas conclusões de tudo o que ocorrera em sua missão".

"Não só isso", pensou o Chemfa. "Devem ter discutido o as­sunto em detalhes, entre si."

"Na verdade", prosseguiu o brigadeiro Florença, "como o co­ronel e os senhores deixaram claro, os indícios são veementes. Mas, de fato, ninguém pode ter certeza absoluta do que se está fazendo à margem do lago, em Bariloche. Se os cientistas estão criando uma bomba ou, simplesmente, enriquecendo urânio para fins pacíficos — produção de eletricidade, usos medicinais etc. Ou, mesmo, se estão trabalhando de fato com urânio. E, caso afirmativo, de onde vem o minério bruto que eles estariam enriquecendo?".

Perguntas que cada um dos presentes se havia feito e para as quais ninguém tinha resposta certa.

O brigadeiro Jerônimo Florença continua: "Em nossas discus­sões — as quais foram conferidas nos poucos minutos em que nos reunimos ali ao lado — também achamos que o assunto de­verá ser tratado de governo para governo, na forma direta suge­rida. Concordamos com as sugestões finais do coronel Schmidt e a proposta de ações preventivas e abortivas do desenvolvimento de uma bomba atômica na Argentina. Com uma exceção".

O Chemfa pediu um cafezinho para todos, permitindo que, na pausa até a chegada das xícaras, pudessem melhor refletir sobre o que os subchefes haviam acordado entre si nas discussões pri­vadas do assunto.

Servido o café e levada de volta a louça suja, o general Pais de Oliveira retomou a palavra: "Penso interpretar corretamente o pensamento do almirante Fakhoury ao dizer que ele e eu sen­timos muito orgulho do raciocínio que vocês acabam de apre­sentar. É por essa e outras razões — a clareza do pensamento, a inteligência e a capacidade de avaliar os fatos e colocá-los um em face do outro — que vocês, nos postos semifinais das respectivas carreiras, ocupam as funções nas quais se encontram. Parabéns".

Mas o Chemfa não havia terminado. E perguntou: "Qual a exceção?"

Florença olhou para os seus dois colegas e, com o assentimento deles, representado por um sorriso e inclinação de cabeça, disse: "A exceção é a seguinte: achamos que devemos levantar o mapa do mar entre a Patagônia e a Antártida, sugerido pelo Schmidt, sim, mas guardá-lo para uso eventual caso isso se torne realmente indispensável. Concordamos, também, com a vigilância estacionária, invisível, sobre o laboratório à margem do lago".

Pausa. E continuação: "Mas achamos que, mesmo confirmada a remessa de uma bomba para detonação na Passagem de Clarke ou em outra área qualquer, não devemos interferir. Vamos deixar que ocorra a explosão. Detectada pelos brasileiros ou por outros países, faremos coro com o clamor mundial que se seguirá. Haja ou não haja repercussão internacional imediata à detonação de uma bomba — literalmente, no 'Fim do Mundo' —, então deveremos tomar a segunda medida abortiva sugerida pelo coronel Schmidt".

"Que seria o quê?", perguntou o general Pais de Oliveira.

"Destruiremos o laboratório com uma bomba certeira lan­çada por um dos nossos aviões invisíveis ao radar, o qual sairá de Mato Grosso, sobrevoará a Bolívia e, depois de passar pelo Chile e pelos Andes, voará algumas milhas sobre o Pacífico, voltará a Bariloche, com o mínimo de sobrevoo dos territórios chileno e argentino. Feito isso, nosso governo, tal como o de outros países, 'lamentará' o desastre acontecido, as vidas perdidas etc. etc."

"Só isso? E qual será, na opinião de vocês, a reação do governo argentino?"

Até esse momento, Schmidt mantivera o silêncio recomen­dado pela prudência e hierarquia. Mas chegara a sua vez de falar: "Penso que o governo argentino assumirá a posição clássica nesses casos. Lamentará o ocorrido, dirá que vai 'apurar rigorosa­mente os fatos', não mencionará a questão nuclear — e a negará, se algum país a levantar — e, em pouco tempo, tudo cairá no esquecimento conveniente do fato em si e de suas implicações".

Um instante de silêncio. E Antônio continuou: "O raciocínio dos três senhores subchefes do Emfa é perfeito. Retiro a minha sugestão de bombardear previamente o lugar que os argentinos escolherem — ou nós pensarmos que eles tenham escolhido — para detonar a bomba. Evitar a detonação de uma bomba no Fim do Mundo só será válido se isso se tornar indispensável. Daí a conveniência de ter um mapa detalhado da região, com a identi­ficação de todas as ilhas e demais acidentes, incluindo glaciares flutuantes, just in case".

"E o bombardeio do laboratório?", perguntou o general Dias de Oliveira.

Enquanto o subchefe do Emfa dizia o que ele e seus colegas pensavam, Antônio concentrara sua atenção nesse ponto. E res­pondeu prontamente: "Com ou sem repercussão mundial da ex­plosão de uma bomba atômica argentina, devemos manter a idéia de bombardear o laboratório do lago Nahuel Huapi. Por quê? Porque a detonação de uma bomba qualquer no meio de montes de yellow cake desencadeará sério aumento da pressão sobre os átomos de U235 e possivelmente desencadeará uma tremenda explosão nuclear. O que, além da destruição física e da morte de pessoas, levará ao túmulo o programa nuclear argentino".

Todos se mostravam mais ou menos chocados com a idéia, embora Antônio já a houvesse apresentado antes. Todos a ha­viam aceitado naquele momento como fato material. Mas nin­guém pensara, aparentemente, em morte e destruição.

Silêncio. Refletia-se sobre quantas vidas seriam perdidas no ato abortivo do programa nuclear dos vizinhos. E sobre quantas vidas mais se perderiam se o programa fosse mantido e as armas de destruição em massa eventualmente fossem utilizadas pelos vizinhos.

Ao fim de algum tempo, o general Pais de Oliveira falou: "Acho que nenhum de nós gosta dessa hipótese. Isto é, se houver alter­nativa. Agora, vamos almoçar. Temos nova reunião às 14 horas, com mais um ilustre convidado: o professor doutor Armando de Oliveira Dias, da Comissão Nacional de Energia Nuclear".

 

Após a volta do almoço, pontualmente às 14 horas, iniciou-se nova reunião na sala do Chemfa. O general Pais de Oliveira abriu o encontro, lembrando aos militares a identidade do pro­fessor Armando de Oliveira Dias e sua presença no evento prepa­ratório da viagem de Schmidt à Argentina, várias semanas antes. Dirigindo-se ao professor, disse: "Caro professor, agradecemos a sua aceitação do nosso convite, em cima da hora, para esta reunião. Como se recordará, no nosso encontro anterior tratávamos de pre­parar o coronel Antônio Schmidt de Oliveira — assumindo' então a pessoa do professor universitário aposentado Antônio Gomes — para a viagem que faria à Argentina, naquele dia, no propósito de discutir a cooperação dos dois países, ostensivamente na área da eletrônica, mas, de fato, em matéria de energia nuclear".

Pais de Oliveira pediu desculpas pelo artifício usado para es­conder a realidade dos olhos do professor, mas explicou que o fi­zera diante da natureza da missão do coronel. "Nós o mandamos à Argentina em busca da confirmação, ou não, da suspeita de que os hermanos haviam embarcado num projeto de enriquecimento de urânio em percentual compatível com o seu destino militar. Isto é, para fazer uma bomba atômica".

O professor Oliveira Dias respondeu que compreendia a si­tuação, dada a delicadeza da missão. E as implicações decorrentes de seus objetivos reais serem revelados ou descobertos pelos ar­gentinos. Perguntou: "E o que o professor, ou melhor, o coronel apurou?".

O general voltou-se para Antônio e disse simplesmente: "Por favor, coronel, passe ao professor todas as informações que ob­teve em sua missão. Suas deduções do que viu e suas sugestões de hoje para a conduta que o nosso governo deverá tomar a esse respeito".

Pela terceira vez no mesmo dia, Antônio relatou nos mínimos detalhes o que considerava importante de tudo o que tinha visto, ouvido e inferido nas semanas em que inspecionara cada quilô­metro quadrado ao redor do lago Nahuel Huapi e as inúmeras localidades por ele visitadas, de Bariloche ao Fim do Mundo, no extremo sul da província da Patagônia.

Após a conclusão da minuciosa exposição, mas ainda no em­balo do que julgava ser o caminho para o reconhecimento do seu mérito, Antônio pediu licença ao Chemfa para dizer mais al­gumas coisas e dar opinião sobre a execução do que propunha. Continuou: "Com o devido respeito, digo também isto a propó­sito das missões a cargo da Aeronáutica sobre o levantamento do mapa detalhado do espaço marítimo entre o extremo sul da Pa­tagônia e a Antártida e o bombardeio das instalações à margem do lago Nahuel Huapi. Em todos os eventos, os satélites e as ae­ronaves — visíveis ou invisíveis — que farão os dois serviços de­verão sobrevoar o mínimo possível os territórios de soberania argentina. Sugiro ainda que deles se removam todos os sinais e detalhes que, em caso de sua derrubada ou apreensão, facilitem sua identificação como brasileiros".

"Se os senhores me permitem, sejam quais forem os cami­nhos e meios utilizados, acho da maior importância que pos­samos alegar sempre, com o máximo de credibilidade, que o Brasil — governo e/ou Forças Armadas — nada tem a ver com tais fatos."

Fez pequena pausa e retomou o fio da palavra: "Peço per­missão, ainda, para sugerir concretamente que, no voo para fazer o mapa do Fim do Mundo, como o chamam os argentinos, o avião teleguiado e invisível ao radar saia de uma das nossas bases no Rio Grande do Sul e faça o percurso de ida e volta sobre o Atlântico, longe da costa".

Antônio olhou para o subchefe do Emfa, cumprimentou-o com um movimento de cabeça e continuou para ilustração do pro­fessor Oliveira Dias, já que todos os dirigentes do Emfa estavam de acordo: "A rota sugerida pelo senhor brigadeiro Jerônimo Flo- rença para a destruição do laboratório me parece perfeita, para a ida e a volta: a partir do Mato Grosso, sobrevoando a Bolívia e o Chile, algumas milhas para o sul sobre o oceano Pacífico e pe­queno voo sobre o Chile e os Andes, ao pé de cuja cordilheira fica a cidade de Bariloche, e, próximo dela, o laboratório de pesquisa do lago Nahuel Huapi".

A intervenção de Antônio, embora cercada das mesuras de praxe e do blá-blá-blá habitual quando um coronel se dirige a seus superiores, tinha causado algum mal-estar. Especialmente ao brigadeiro Jerônimo Florença, a quem caberia planejar e su­pervisionar as providências envolvendo dispositivos aéreos, suas tarefas e o modo de executá-las.

Logo em seguida, porém, o general Fernando Pais de Oli­veira, chefe do Emfa, que presidia a reunião, dirigiu-se ao pro­fessor Armando de Oliveira Dias: "Como o senhor professor pode deduzir do que falamos aqui, todos nós — chefe, vice-chefe e subchefes do Emfa — aceitamos as observações do coronel Schmidt. Em conseqüência, estamos todos convencidos de que a Argentina caminha para construir e detonar — pelo menos experimentalmente — uma bomba atômica. E, daí em frente, fazer mais bombas".

A cara e o olhar do professor Oliveira Dias mostravam que ele aderia à preocupação geral.

Em seguida o Chemfa prosseguiu, falando com um misto de calma superficial e ênfase profunda: "Na melhor das hipóteses, isso comprometeria o equilíbrio militar e político da nossa região. As negociações envolvendo nossos países, como as referentes ao predomínio do Brasil na balança comercial bilateral, passariam a ter por pano de fundo a supremacia militar argentina na área nuclear. Isso agravaria os fatores que, por exemplo, emperram a consolidação do Mercosul e a criação de uma verdadeira união aduaneira".

Sentindo-se convocado, o professor e técnico da CNEN Oli­veira Dias disse mais: "Nós, cientistas da CNEN, estamos limi­tados, no que podemos exprimir de público a esse respeito, pela posição oficial do governo brasileiro. Nossas autoridades aceitam como verdadeiras as informações dadas pelo governo argentino de que o país não está em busca de bomba atômica, pois sua capacidade de enriquecimento de urânio se limita ao teor de 4% a 5% de U235. E que, em alguns anos, poderá atingir 20%, nível adequado a usinas geradoras de eletricidade, navios, submarinos. Segundo nos dizem as autoridades argentinas, seus cientistas e laboratórios estão longe da capacidade necessária ao grau de enriquecimento de urânio para uso militar".

"Mas a posição oficial do governo não nos impede de ter opi­niões próprias e, sobretudo, dúvidas de foro íntimo. Dúvidas não somente nossas, mas também de autoridades de outros países igualmente preocupadas com certas questões importantes. A pri­meira delas é o risco inerente à proliferação de armas nucleares entre países considerados não confiáveis', como o Irã e a Coréia do Norte, além de outros.

"A segunda preocupação, ainda mais temível, refere-se à even­tualidade de acesso a bombas atômicas pequenas e portáteis pelos vários grupos terroristas, pessoas e/ou organizações adversas aos Estados Unidos e a tudo o que se denomina 'a civilização oci­dental'. A possibilidade da posse, ou mesmo a simples presunção de posse, de armas nucleares por terroristas tira o sono dos diri­gentes de vários países, presumíveis alvos de tais bombas."

Era fácil. Todos perceberam aonde o professor queria chegar. Ele continuou:

"Não é novidade para vocês que todo processo de enriqueci­mento de urânio acima de determinado nível libera surtos' de radiação, como pequenos 'ruídos'. Mesmo em nível que não pre­judique a vida e a saúde das pessoas ao seu redor, esses 'ruídos' podem ser percebidos pelo instrumental certo, existente ou em fase de criação e desenvolvimento".

Silêncio. Preocupações à vista. O professor disse: "Em busca de certa medida de tranqüilidade, os Estados Unidos estão expe­rimentando um novo satélite teleguiado capaz de detectar a ra­diação emitida por centros de enriquecimento de urânio acima de nível seguro em qualquer parte do mundo' — na palavra (ou esperança?) dos americanos".

"Um dos técnicos da área nos disse que, na fase atual de desen­volvimento, seu satélite de detecção do enriquecimento de urânio funciona como se tivesse 'ouvido' certos sons vindos de áreas pró­ximas dos lugares em que se encontra.

"Por ora, o satélite ainda é incapaz de determinar o local pre­ciso da origem dos 'ruídos'. Mas dizem que daqui a pouco po­derão identificá-lo em termos de latitude e longitude, em graus, minutos e segundos.

"Outro dia, o mesmo técnico americano nos disse na CNEN que haviam detectado dois locais de enriquecimento de urânio no Brasil. Em parte, é verdade. Nos arredores da cidade de Re­sende, no Estado do Rio de Janeiro, temos nossa única planta de enriquecimento de U235 a 20%, para uso nas duas centrais elé­tricas já em operação em Angra dos Reis e, em breve, para a ter­ceira central, em fase de construção.

"Como vocês sabem, os meios científicos de países do pri­meiro mundo' acreditam que o Brasil é o único país da América do Sul com capacidade de enriquecimento de urânio. Isso não é bem verdade. Mas o técnico americano não se deu por satisfeito. E disse: 'Nós percebemos sinais típicos, embora fracos, de enri­quecimento de urânio numa localidade situada a uma distância que não pudemos precisar, a sudoeste do Estado do Rio. Vocês estarão enriquecendo urânio no Paraná ou no Mato Grosso do Sul?'.

"Nossa resposta foi, evidentemente, negativa. O que fazemos no Brasil é conhecido pelo mundo afora, em todos os centros de processamento de energia nuclear. É certo que vamos aumentar exponencialmente a nossa capacidade para a exportação de com­bustível nuclear destinado a usos pacíficos. Mas isso também fa­zemos às claras, à vista de todo o mundo."

Qualquer pessoa que entrasse na sala perceberia o que pen­savam os militares em volta da mesa: seria a confirmação do que Antônio ouvira? Olharam para o mapa na parede atrás da cadeira do Vicemfa e constataram sem surpresa: a Patagônia ficava na direção geral do sudoeste do Rio. Era, portanto, somente uma questão de tempo até os satélites americanos — desenvolvidos e aperfeiçoados — serem capazes de identificar e localizar em termos precisos a fonte das radiações indicativas de enriqueci­mento de urânio na região de Bariloche.

"Arre!", pensaram todos.

Na prática, as revelações do professor Armando de Oliveira Dias haviam confirmado as conclusões de Schmidt quanto ao fato da localização, em Bariloche, da planta de enriquecimento de urânio para fins militares. Chegara então a hora de agir. "Mas fazer o quê?!", pensaram em sintonia todos os militares sentados em torno da mesa da sala do Chemfa.

O general Fernando Pais de Oliveira agradeceu a atenção e os esclarecimentos dados pelo professor Armando de Oliveira Dias.

Despediram-se. O general levou o doutor à porta. Sem que o ge­neral dissesse uma palavra, todos entenderam que deviam conti­nuar ali mesmo, para "filtrar" ou "destilar" o significado real, em termos políticos e militares, da confirmação da suspeita de que os argentinos estavam a ponto de produzir uma bomba atômica.

O Chemfa retornou à mesa. Olhou firmemente para cada um dos presentes. A pergunta espelhada em sua cara e em seus olhos prescindia de palavras. "Que devemos fazer?"

A resposta era mais que evidente: "Temos de falar com o go­verno. Vou pedir uma audiência à presidenta Rousseau". Pais de Oliveira olhou o relógio. Já passara da hora de fim de expediente, mesmo no palácio do Planalto. Com a reforma da Presidência da República e a redistribuição de vários órgãos antes subordinados diretamente ao gabinete presidencial, o general não sabia bem a quem se dirigir. "Vou pensar nisso à noite", resolveu.

Um minuto depois, falou em voz alta: "Agora, não temos mais um ministro chefe do Gabinete Militar. Assim, não sei bem quem devo contatar. Amanhã de manhã telefono ao chefe do Gabinete Civil ou ao secretário-geral da Presidência. Direi que preciso tratar pessoalmente com a presidenta de um assunto da mais alta relevância". Isso não ia acontecer.

Percebendo que a reunião terminara, Antônio dirigiu-se ao Chemfa: "Meu general, o senhor sabe que tenho família e resido aqui em Brasília. Passei a noite de ontem em um hotel. Mas, se o senhor general me permitir, eu gostaria de dormir hoje em casa. Ver minha mulher e meus filhos, com quem não falo pessoal­mente há mais de dois meses. Não preciso dizer que a Mercedes compreende bem a necessidade de sigilo absoluto. Ela não fará perguntas sobre a minha missão e eu não direi palavra a respeito".

O general concordou. Mas disse a Antônio: "Não deixe de comparecer ao meu gabinete às 8 horas da manhã. Dessa vez em traje militar, para o caso de eu ter de levá-lo ao Planalto ou aonde eu tenha de ir falar do nosso assunto".

Perfilado, Antônio pediu licença e saiu. Com ele, os generais do Emfa.

A chegada de Antônio à sua casa, no conjunto residencial do Exército, foi uma festa. Mercedes e os filhos João Lucas e Ale­xandre, que não o viam havia dois meses, deliravam de alegria. Perguntas de cada um se atropelavam, juntamente com as expres­sões de felicidade: todos queriam dizer, antes dos outros, quanto os alegrava o retorno do marido e pai.

De sua parte, Antônio queria saber tudo: como tinham pas­sado os dois meses de sua ausência, o que tinham feito, como iam de saúde, trabalho e estudos.

João Lucas, próximo dos dezesseis anos, falou de seu desejo de, uma vez concluído o curso médio, entrar numa escola de engenharia — mas civil, não militar. Contou suas experiências de participação em exames vestibulares como de simples treina­mento e familiarização com a rotina de perguntas quase sempre complicadas e alternativas múltiplas, como respostas mais ou menos plausíveis. E, portanto, como era preciso saber a correta.

Lembrou ao pai que em poucos meses, quando completasse dezesseis anos, poderia tirar carteira de habilitação para dirigir o automóvel da família. Mas precisaria de autorização paterna, que esperava lhe fosse concedida. "Sim", respondeu Antônio.

Alexandre, de sua parte, não tinha muito o que dizer. Próximo de completar catorze anos, ainda não optara por uma carreira. "Mas", falou, dirigindo-se a Antônio, "vendo a vida que você leva — as mudanças de sede, as missões secretas, os afastamentos da família —, sei que vou optar por uma carreira civil. Vou bem nos estudos e penso em advocacia e pedagogia como profissões capazes de me ajudar a lutar por um mundo melhor para todos".

Conversaram até próximo da meia-noite, quando Mercedes mandou os meninos para a cama: o dia seguinte era dia de aula e eles não podiam faltar nem se atrasar. Marido e mulher conti­nuaram a conversar, sem pensar muito no que dizer.

Mercedes, acostumada aos segredos da vida profissional do marido, absteve-se de fazer perguntas sobre a sua missão. An­tônio, por sua vez, nada disse a respeito.

Perguntou-lhe novamente como ia o seu trabalho de arquiteta; se a remuneração dele, mais os honorários profissionais dela, es­tavam bastando para assegurar aos três uma vida confortável, preocupação constante de Antônio como marido e pai.

Mercedes mal se continha no desejo de comentar a carta que recebera de Soninha Maradei Silva, amiga de longa data da fa­mília. Mais que uma carta, o e-mail de Soninha era um rela­tório, que faria o orgulho de qualquer agência de viagens, sobre o que vira e apreciara no sul da Patagônia. Dos glaciares aos pingüins da Colonia Magallanica, ao chá na Casa de Te Galés, na cidade de Chubut; daí ao Museo Paleontológico. A viagem a El Calafate, a Ushuaia, ao Fim do Mundo e a todas as belezas naturais da região.

Quase sufocando de alegria e emoção, Mercedes disse ao ma­rido: "Sabe, Antônio, quando você voltar em definitivo e puder tirar umas férias do serviço, eu gostaria que nos levasse à Pata­gônia para fazer o mesmo trajeto da Soninha".

"Sim, levarei", respondeu Antônio. Ele, entretanto, esperava que Mercedes não tivesse percebido que aquilo tudo o afetava. "Sim", pensava com os seus botões, "a Soninha tem razão no que diz. Vi tudo isso e muito mais. Até gostaria de rever tudo com a família e sem o peso de uma missão secreta. Espero estar vivo para voltar àqueles lugares encantadores que percorri quilômetro por quilômetro."

Continuaram a conversar. Os assuntos eram uma simples ten­tativa de "pôr em dia" os mil e um casinhos dos quais não haviam falado nos dois meses de ausência de Antônio. Por fim, cansados e ante a expectativa de Antônio ter de comparecer logo cedo ao gabinete do chefe do Emfa, foram para o quarto. Antônio ad­mirou a beleza do corpo de Mercedes, que os anos não haviam prejudicado. Sem gorduras, pele macia, nada de barriga, propôs um rápido banho e, depois, um perfeito sonho de amor, tor­nado realidade para um marido em dois meses de jejum sexual.

Tudo perfeito. Na hora certa, o despertador tocou. Antônio levantou-se e foi ao banheiro. Quando voltou para vestir a farda, Mercedes já havia saído do quarto para preparar-lhe o desjejum.

 

Manhã do dia seguinte. Antes das 8 horas, todos no gabi­nete do chefe do Emfa, que logo disse: "Vou agora mesmo pegar no telefone e ligar para o Palácio do Planalto. Não sei com quem devo falar. Mas espero que a presidenta me receba ainda hoje. O assunto não pode esperar pela burocracia". Um momento de pausa.

Entra o capitão Antunes, ajudante de ordens do general Pais de Oliveira, e diz: "General, acabo de receber um telefonema da doutora Sônia Maria Bernardes, principal assessora direta do ministro José Eduardo Figueiredo, chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Ela me passou a informação de que o ministro gostaria de falar pessoalmente com o senhor, de prefe­rência ainda hoje. E, se possível, às 11 horas da manhã. Que devo dizer?"

Todos pensaram ao mesmo tempo: "Que bruta coincidência. Será bom sinal? Ou mau?"

Não havia o que pensar. Com a reestruturação da Presidência da República e a redução drástica de secretarias, departamentos e serviços a ela subordinados, o principal conselheiro do (ou da) chefe de Estado era mesmo o ministro chefe do Gabinete Civil.

"Responda que sim. Estarei lá na hora marcada." Antunes se retirou, o Chemfa olhou para todos, um a um, e disse, voltado para Antônio: "Coronel Schmidt, você vai comigo, para a even­tualidade de a visita ao Gabinete Civil resultar numa audiência com a presidenta. Você ficará do lado de fora, mas disponível para dar detalhes que eu possa ter omitido ou, mesmo, esquecido".

Antônio fez que sim, com a cabeça e com a palavra adequada.

Às 10 horas, o general pediu o carro. Às 10h20, acompanhado de Antônio, desceu até a portaria do prédio. Repórteres procuraram cercá-lo, mas ele se recusou a dar-lhes bom-dia. Menos de 15 mi­nutos depois, chegou à portaria do Palácio do Planalto — antes da hora marcada, como faz todo militar que se preza. Ao parar o carro diante da entrada geral, uma sentinela o avisou de que o ministro pedira para ele descer à garagem e subir pelo elevador privativo ao quarto andar, onde ficava a sala do chefe do Gabinete Civil.

"Bom sinal", pensou Pais de Oliveira. Não era.

Pontualmente, às 11 horas, José Eduardo Figueiredo recebeu o general. Ao entrar no gabinete do ministro, Pais de Oliveira notou a presença de Sônia Maria e do ministro da Defesa, o ex-senador alagoano Flávio Sales — muitas vezes referido como "mapa do Chile", por sua altura e magreza. O general Pais de Oliveira achou estranho, mas calou sua estranheza.

Limitou-se a cumprimentar todos. Sentou-se no lugar indi­cado pela assessora do chefe do Gabinete Civil e pôs-se a esperar que lhe dissessem a razão de estar ali.

O ministro Figueiredo foi o primeiro: "Muito obrigado, ge­neral, por ter aceitado tão prontamente a nossa chamada. Tenho uma comunicação importante a fazer e não queríamos que ela chegasse ao senhor em 'segunda mão', ou que viesse a ter conhe­cimento dela pelos jornais". Pais de Oliveira esboçou um "muito obrigado pela atenção" e calou-se.

O chefe do Gabinete Civil continuou: "A presidenta Rousseau, como o senhor sabe, está empenhada em simplificar a estrutura da Presidência da República. Várias secretarias e agências foram descentralizadas — como é o caso, por exemplo, da Abin, incum­bida dos serviços de inteligência. A Abin é parte, agora, do Minis­tério da Integração Nacional".

Não era difícil para o Chemfa perceber em que direção ia a conversa. Ele esperava que sua atitude e sua face escondessem a enormidade da decepção que lhe ia na alma.

Após um breve silêncio, o ministro Figueiredo retomou a pa­lavra: "A presidenta Mariana Rousseau vai assinar ainda hoje, para publicação no Diário Oficial da União de amanhã, um de­creto autorizado pela lei de simplificação da burocracia federal. Em virtude desse ato, o Estado-Maior das Forças Armadas deixa de ser parte da Presidência da República e passa a ser assessoria direta do ministro da Defesa, aqui presente. As funções do Emfa permanecem as mesmas, assim como a sua organização e os ob­jetivos de sua atuação".

O general Pais de Oliveira disse simplesmente: "Todos nós te­remos prazer em servir sob as ordens do ministro Flávio Sales".

Pausa decorosa. O Chemfa prosseguiu: "Tenho certeza de falar não só por mim, mas também em nome do vice-chefe do Emfa, almirante de esquadra Eduardo Jaime Fakhoury, e dos três sub­chefes, vice-almirante Francisco das Chagas Rodrigues, general de divisão Ferdinando Contini e major-brigadeiro Jerônimo Flo­rença. Nossos cargos, obviamente de confiança pessoal — antes do chefe de Estado e agora do ministro da Defesa —, estão à sua disposição. Como somos todos militares da ativa, se o senhor mi­nistro resolver substituir-nos, voltaremos com naturalidade aos nossos quartéis, navios e bases aéreas".

O ministro Flávio Sales respondeu em seguida: "Não tenho planos ou idéias de substituí-los. Embora já tivesse conhecimento da intenção da presidenta Mariana de baixar o ato do qual o mi­nistro Figueiredo acabou de falar, nada comentei a respeito, nem mesmo com os comandantes em chefe das três Forças. Ao sair daqui vou imediatamente me reunir com eles, para informá-los da decisão presidencial". (Antônio pensou: "E conferir com eles se devemos continuar nesses cargos ou voltar à tropa, o que não seria tão mau assim".)

Ao vivo, o ainda chefe do Emfa falou diretamente ao ministro da Defesa: "Senhor ministro, de fato, nós do Emfa temos um as­sunto de gravíssima importância para a segurança e defesa do Brasil, que precisará ser levado com urgência à consideração da presidenta Mariana Rousseau. A questão envolve o equilíbrio po­lítico e militar do nosso continente e estamos prontos para relatar os fatos e nossas conclusões, além de nossas propostas, a quem de direito, no mais breve prazo possível".

Flávio Sales respondeu em seguida: "Ainda hoje, sem falta, marcarei uma reunião para ouvir o que os senhores do Emfa têm a dizer".

A reunião terminara. Ninguém tinha mais nada a dizer. O ge­neral Pais de Oliveira levantou-se. Pediu licença para sair. Na an- tessala, encontrou o coronel Schmidt, no mesmo lugar em que o deixara. Schmidt viu a cara do general e percebeu que não havia boas notícias. O Chemfa disse apenas: "Vamos para o Emfa. Lá conversaremos".

Na portaria do prédio do Emfa, mais repórteres. Um deles gritou: "Então, general, o senhor e seus colegas concordam com a mudança do Emfa para o Ministério da Defesa?".

O Chemfa não respondeu. Mas pensou: "Agora sei o que o chefe do Gabinete Civil queria dizer quando falou em saber da notícia ém segunda mão'. Pelo jeito, a informação vazara do palácio do Planalto e já deveria estar nas redações dos jornais e na internet".

De volta ao seu gabinete, Pais de Oliveira pediu ao ajudante de ordens, capitão Antunes, que convocasse o Vicemfa e os subchefes do Emfa para uma reunião urgente. Voltou-se para Antônio e disse: "Você, Schmidt, fica na sala do Antunes. Se tivermos de nos reunir com o ministro da Defesa, você precisará estar à mão para contar toda a história. Bem, como você terá percebido, nós não somos mais assessores diretos da Presidência da República, mas passamos a ser parte do Ministério da Defesa. Vamos ver em que isso vai dar".

Antônio saiu da sala, enquanto o Vicemfa e os subchefes do Emfa chegavam. Todos mais ou menos assustados, como se previssem coisa ruim. Sentaram-se todos à mesa de reuniões. O Chemfa as­sumiu o seu lugar na cabeceira. Olhou em torno. Silêncio.

Depois de alguns segundos, o almirante Fakhoury perguntou: "Então, você chegou a marcar uma audiência com a presidenta Mariana Rousseau? Quando será?".

Pais de Oliveira falou com a gravidade adequada às circunstân­cias e refletindo a sua própria decepção com tudo o que se passara: "Não. E, pior que tudo, nós não somos mais o principal órgão de assessoramento da Presidência da República em questões de de­fesa nacional e de operação conjunta das Forças Armadas. Como a presidenta Rousseau está resolvida a simplificar a organização da Presidência da República, o Emfa deixa de fazer parte da chefia da nação e passa a integrar o Ministério da Defesa".

Decepção geral, que se podia ler na face de cada um dos mili­tares à volta da mesa.

O general Chemfa retomou a palavra: "Essa decisão me foi comunicada oficialmente, hoje, pelo ministro chefe do Gabinete Civil, numa reunião da qual participaram também o ministro da Defesa, o ex-senador alagoano Flávio Sales, e a assessora do chefe do Gabinete Civil, Sônia Maria. Segundo o ministro José Eduardo Figueiredo, ele desejava falar diretamente comigo. Não queria que tivéssemos conhecimento da notícia 'em segunda mão' ou pelos jornais. Mas a questão já tinha vazado. Repórteres me abordaram aqui mesmo, na porta do nosso prédio, quando eu ia para o Planalto e na volta de lá".

Silêncio em torno da mesa. Perplexidade em todas as faces e em todas as mentes.

Então, o almirante Fakhoury disse: "Penso que falo por todos. Temos duas indagações. Uma, pessoal: o que devemos fazer? Ou: como ficamos? A outra é a questão relevante que nos tem preocu­pado nas últimas semanas: a bomba atômica argentina e suas im­plicações militares e políticas, não só na relação dos dois países, mas em termos continentais".

Diante do assentimento geral, ainda que sem palavras, o ge­neral Pais de Oliveira respondeu: "Quanto à primeira questão — isto é, como ficamos —, eu disse ao ministro da Defesa, em nome de cada um de nós, que nossos cargos estavam à disposição dele. Se ele quisesse nos substituir, como somos todos oficiais generais da ativa, nós voltaríamos alegremente aos nossos navios, quartéis e bases aéreas".

Assentimento geral. O Chemfa continuou: "Ele disse que já sabia da decisão presidencial havia dias, mas não tinha ainda fa­lado a respeito com nenhuma pessoa. Nem mesmo com os co­mandantes em chefe da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. E que ia falar com eles a esse respeito ainda hoje".

Pais de Oliveira continuou: "Ele não disse, mas ficou implícita a dúvida sobre qual seria a nossa posição no organograma do Mi­nistério da Defesa. Como ficaríamos: ao lado dos comandantes em chefe, ou entre eles e o ministro, ou abaixo dos comandantes. Ninguém entendia bem qual seria ou deveria ser o relaciona­mento do Estado-Maior das Forças Armadas com as próprias Forças, seus comandantes e as operações a cargo de cada uma delas. Bela confusão, pensei".

Balançar de cabeças. Olhares que eram pontos de interrogação expressando dúvidas.

Fakhoury então perguntou: "E a bomba? Chegou a falar nela?".

O chefe do Emfa respondeu: "Não diretamente. Disse apenas ao ministro que nós tínhamos um assunto da maior relevância, que precisaria chegar urgentemente ao conhecimento da presi­denta da República, por envolver o equilíbrio político e militar do continente. Ele ficou de me chamar logo depois de conversar com os comandantes em chefe".

"Quando será essa reunião?", perguntou o brigadeiro Jerônimo Florença.

Pais de Oliveira respondeu: "Não sei quando será. O ministro precisa saber, antes de tudo, onde e como nos encaixaremos no seu ministério. Imagino que teremos de ter uma reunião de todos nós, com o ministro e os comandantes, para discutir, em termos de militares, a coordenação dos respectivos trabalhos — o que será de nossa competência, como Estado-Maior conjunto, e o que será da alçada dos comandantes de cada Força e seus respectivos Estados Maiores. E como nos entrosaremos com cada uma das Forças Armadas".

Passados alguns instantes, Pais de Oliveira retomou o assunto: "Só nos resta, neste momento, aguardar o chamado. E rezar para que os argentinos demorem em concluir os trabalhos para fazer a sua bomba. De qualquer modo, estou mantendo o coronel Schmidt em estado de alerta para o caso de precisarmos dele para dar deta­lhes do que viu, ouviu ou deduziu, e sua interpretação de tudo. Bem assim para relatar as providências sugeridas aqui mesmo e apro­vadas por todos nós. Se é que o assunto será discutido conosco".

As horas passaram e nada de chamado do Ministério da De­fesa. Todos ficaram em torno da mesa, conversando, fumando, olhando uns para os outros. Pelas 7 horas da noite, o general Pais de Oliveira falou: "Acho que podemos ir embora. Não creio que haja uma convocação para irmos ao Ministério ainda hoje. E, se ligarem para cá, o oficial de plantão saberá como nos alertar, como nos transmitir o chamado".

Todos se despediram uns dos outros. E, mentalmente, cada um disse um adeus mudo à sede do Emfa, onde todos haviam trabalhado por dois anos ou mais.

Antônio foi para casa. Mais uma noitada de conversa alegre e descontraída do casal com os filhos. Ele apenas disse à mulher: "Acho que você vai gostar, Mercedes. É bem possível que eu não tenha de viajar tão logo. Por outro lado, receio que minha pro­moção a general de brigada demore — se é que vai sair. Ando brincando com a idéia de pedir passagem para a reserva e ver se desperto a possibilidade, que anda dormindo há tempo, de trabalhar no setor privado como engenheiro com doutorado em eletrônica e informática".

Mercedes quase desmaiou de surpresa. Só disse: "Que bom se isso acontecer".

Jantaram, recolheram-se, fizeram amor e dormiram Na manhã seguinte, Antônio não sabia bem o que fazer. Lembrou-se de que, como coronel, tinha funções no Emfa. E decidiu: "Volto para lá, para a minha mesa de trabalho". Voltou.

 

Antônio voltou ao Emfa no horário habitual. Foi à antessala do gabinete do Chemfa, deu bom-dia ao ajudante de ordens, capitão Antunes, e disse-lhe: "Aparentemente, estou de volta às minhas funções normais aqui no Emfa. Estarei na seção de es­tratégia, como sempre, dando prosseguimento a tudo o que lá estiver, e ficarei à disposição para novos assuntos da minha área. Se o senhor general Chemfa perguntar por mim, você sabe onde me encontrar".

Era uma sexta-feira, que prometia passar bem devagar; como de hábito, com pouquíssimos acontecimentos dignos de nota.

Naturalmente, o exemplar do dia do Diário Oficial da União foi objeto da curiosidade geral. Lá estava — como adiantara o chefe do Gabinete Civil — o decreto presidencial.

O Emfa passava a denominar-se "Estado-Maior da Defesa Nacional", sigla "Emdena", da qual ninguém gostou. Deixava de ser subordinado à Presidência da República e passava a integrar o Ministério da Defesa, subordinado diretamente ao respectivo ministro.

Sua principal função, implícita no nome, era o planejamento estratégico da defesa nacional, em colaboração, conforme fosse necessário e ficara explícito no decreto, com as três Forças. A parte operacional e tática da Defesa continuava a cargo da Ma­rinha, do Exército e da Aeronáutica, cada qual com seu coman­dante. Nada de muito novo.

Chegou o meio-dia, e nada. Almoço. Volta ao expediente da tarde. Nada.

Ao menor pretexto, ou mesmo sem pretexto nenhum, os generais do Emfa passavam pelo gabinete do Chemfa. ("Aliás", pensavam todos, "devemos chamá-lo de agora em diante de Chemdena? Puxa, que nome horrível!")

No meio da tarde, a assessora de relações institucionais do Ministério da Defesa, Sônia Maria Botelho, telefonou ao capitão Antunes e pediu-lhe para transmitir ao general Fernando Pais de Oliveira uma mensagem do ministro, que ela passaria imediata­mente por e-mail.

Poucos minutos depois, chegou a mensagem:

 

             Do: Ministro da Defesa

Para: General-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas

Desculpe não haver entrado em contato antes. Mas os coman­dantes do Exército e da Aeronáutica estão em viagem a serviço e só pude marcar minha reunião com eles para segunda-feira pela manhã.

Gostaria que nos reuníssemos todos, os generais do Emfa e os co­mandantes em chefe, no meu gabinete, segunda-feira, às 14 horas. Favor confirmar.

                       Cordialmente,Flávio Sales, ministro da Defesa.

 

Dias de Oliveira chamou o Vicemfa e os subchefes do Emfa, mostrou-lhes a mensagem do ministro da Defesa e falou: "Não há o que dizer. Temos de ir".

Chamou o ajudante de ordens, capitão Antunes, ditou a sua resposta. Nada restava a fazer. Só esperar a hora de encerrar o expediente, ir para casa e divertir-se no fim de semana.

Foi o que todos fizeram.

 

Antônio aproveitou o sábado para cumprir uma velha pro­messa feita a João Lucas e Alexandre: levá-los a passear de barco no lago Paranoá, do qual se descortina uma paisagem inusitada das "asas" sul e norte de Brasília. Não deixou de chamar a atenção dos meninos para o grande número de árvores plantadas por su­cessivos governos do Distrito Federal, com o fim de amenizar a secura do ar e esverdear a paisagem vegetal raquítica do Planalto Central.

Mercedes, por sua vez, fizera os arranjos necessários para uma feijoada regada a "caipirosca" e cerveja para os adultos e refri­gerantes para os meninos. ("Meninos?", perguntou-se Mercedes. "Daqui a pouco me aparecerão com namoradinhas a tiracolo, se é que já não as têm escondidos. Nem eu, nem o Antônio sabemos ao certo como guiá-los nessa situação. Nossos tempos eram ou­tros. Para nossos pais, namorar, só depois dos 18 anos!")

Domingo tranqüilo. Missa na catedral, desenhada, como tudo o que Brasília tem de belo, pelo gênio arquitetônico de Oscar Niemeyer. Depois, visita obrigatória ao Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, também desenhado por Niemeyer e inaugurado em 1986.

Manhã de segunda-feira. Os generais do Emfa reúnem-se no gabinete do Chemfa. Este manda chamar o coronel Schmidt e o previne da reunião, à tarde, no gabinete do ministro da De­fesa. "Como no palácio do Planalto, você ficará fora do gabinete, mas poderá ser chamado a qualquer momento para dar esclarecimentos complementares, informações, confirmar dados, expor os motivos de suas conclusões, etc."

O general não disse, mas pensou: "Embora eu não ache que chegaremos ã discussão concreta do assunto que tanto nos preocupa".

Às 9 horas, conforme a convocação do ministro da Defesa, este se reúne em seu gabinete com os comandantes em chefe das três Forças: almirante Francisco Mirador, da Marinha; general João Carlos Matias, do Exército; e brigadeiro Aluísio Miranda da Rocha, da Aeronáutica. Tema: discutir o decreto referente ao deslocamento do Emfa, da estrutura da Presidência da Repú­blica para a do Ministério da Defesa. ("Discutir, não", pensou um dos comandantes. "Em ocasiões como esta, militares pensam e, quando não podem evitar, chegam a 'dar opiniões' discordantes de seus chefes.")

A reunião duraria umas três horas. Desde a primeira hora, os comandantes em chefe sabiam que não lhes restava posição ne­nhuma, exceto aceitar o que estava no decreto. Era só ler — en­tender, se possível — e, em qualquer caso, cumprir. E pensavam em silêncio: "Enquanto fisicamente longe e subordinado diretamente ao Planalto, o Emfa tinha tido poucas oportunidades de interferir no cotidiano das três Forças. Será que vai continuar assim?".

Na opinião do general Matias — também nordestino, como o ministro da Defesa —, este havia proposto logo no começo da reunião uma idéia "de jerico": reunir no mesmo prédio, na espla­nada dos Ministérios, todo o alto comando das Forças Armadas. No décimo andar — o mais alto —, o seu gabinete; no nono andar, o Emdena; no oitavo, o comando em chefe da Marinha; no sétimo, o do Exército; e no sexto, o da Aeronáutica.

O resultado inevitável desse agrupamento dos três coman­dantes seria, na opinião íntima, embora unânime, uma série de interferências indesejáveis, em nome da "estratégia da defesa na­cional", nas operações de cada Força: onde elas deveriam estar, para onde se deslocar, como, quando e com que finalidade rea­lizar "exercícios conjuntos", e por aí adiante.

Coube, mais uma vez, ao general Matias expressar as dúvidas dos três comandantes: "Senhor Ministro, a localização dos nossos gabinetes não é fator importante na coordenação da filosofia, dos planos, projetos e operações referentes à defesa nacional. Nós conservamos nossos comandos nas antigas sedes dos velhos mi­nistérios, consolidados no da Defesa em benefício da adminis­tração de cada uma das nossas Forças. Não por capricho, ou como atitude negativa, referente ao comando das Forças Armadas por um ministro civil".

Pausa. E continuação: "Afinal, o Estado brasileiro abandonou o regime militar em 1985 e ninguém pensa em retorno à sucessão de generais presidentes, escolhidos à revelia da Nação. Ao mesmo tempo, como acompanhamos muito do que ocorre no mundo, nós sabemos que, em todos os países ditos civilizados', prevalece o comando civil das Forças Armadas como afirmação do sistema político democrático e pluralista".

Pensou, embora não dissesse: "Isso não quer dizer coman­dantes situados no mesmo prédio e longe da aparelhagem de co­mando da sua Força e de execução das suas instruções".

O comandante da Marinha, almirante Francisco Mirador, conversou em voz baixa com o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Aluísio Miranda da Rocha. Um minuto depois, o al­mirante dirigiu-se ao ministro: "Senhor Ministro: a Marinha e a Aeronáutica pensam ao longo das mesmas linhas expostas pelo general João Carlos Matias. Importante, para nós, não é a contiguidade física, mas a convergência de pensamento e a comuni­dade de idéias e de filosofia operacional. Com o devido respeito, nós sugerimos concentrar nossa atenção nos termos do decreto presidencial".

Nenhum disse, mas os três pensaram ao mesmo tempo, ao longo das mesmas linhas lógicas, algo como: "O problema não é termos um ministro civil. Mas um político derrotado eleitoral­mente, cujo único título para exercer a chefia das Forças Armadas é o fato de, no Senado, ter presidido a Comissão de Relações Ex­teriores e Defesa Nacional".

Outro comandante pensou então: "Título pomposo, passa­porte diplomático, condecorações, doutorados honoris causa, via­gens 'de Estado' ou 'a serviço', nas quais nada acontece. As relações entre países correm, na verdade, do planejamento à execução, sob controle presente e atuante dos diplomatas profissionais. Daí, a nova presidenta não ter hesitado em nomear um embaixador de carreira para chefiar o Itamaraty. Vamos ver no que dá".

Pensou em paralelo: "Comissão de Defesa Nacional? Não me lembro de qualquer coisa de importância referente à defesa nacional que tenha passado pelo Senado nos últimos anos. Sua nomeação como ministro da Defesa deve ter sido um ato da pre­sidenta Mariana Rousseau, no papel de 'Consolatrix aflictorum, consoladora dos aflitos, como é o caso".

O silêncio fora mais longo do que habitualmente. O ministro Flávio Sales estranhou um pouco. Mas deu para perceber que havia perdido a parada.

Voltou-se então para os comandantes e perguntou: "E, na opi­nião dos senhores, o que deverá mudar no nosso relacionamento com o antigo Emfa, novo Emdena?".

"Nada", respondeu um dos chefes. "Só que, antes, o Emfa fa­lava diretamente com o (ou a) presidente da República. Agora, o Emdena só poderá dirigir-se ao chefe de Estado por intermédio do ministro da Defesa." Anuência implícita dos demais e formal do ministro.

Flávio Sales retomou a palavra: "Hoje à tarde, às 14 horas, teremos uma reunião aqui no meu gabinete — para a qual os senhores foram devidamente convocados — com o chefe, o vice-chefe e os subchefes do Emdena. O principal propósito da re­união é o reconhecimento de que a mudança de subordinação do Emdena e as demais disposições do decreto presidencial não afetam, realmente, as relações das nossas áreas".

Todos se entreolharam e fizeram gestos que indicavam a sua vontade de sair. Mas o ministro disse mais: "Na semana passada, como os senhores sabem, tivemos uma reunião na qual o mi­nistro chefe do Gabinete Civil da Presidência da República deu ciência ao chefe do então Emfa do decreto presidencial que seria assinado naquele dia, e que nos reúne aqui".

"Contudo", prosseguiu o ministro Flávio Sales, "o general Fer­nando Pais de Oliveira mencionou uma questão da maior gra­vidade', de interesse da defesa nacional, que deveria ser levada, com a máxima urgência, ao conhecimento da presidenta da Re­pública. Não sei do que se trata, mas peço a sua máxima atenção para o que ele tiver a dizer".

A reunião havia terminado. Saíram todos, com a previsão de volta às 14 horas.

 

Vinte minutos antes do horário marcado, os generais do Emfa atravessaram a pé a chamada Esplanada dos Ministérios em direção ao prédio onde se localiza o gabinete do ministro da De­fesa. As sedes dos comandos de cada Força estão situadas nos locais em que, antes, funcionavam os ministérios da Marinha, do Exército e da Aeronáutica — fora, e até mesmo distantes, do cha­mado "plano piloto", termo usado pelo urbanista Lúcio Costa para designar a sua genial concepção de como deveria estruturar-se o projeto definitivo da nova capital federal.

Enquanto andava em direção ao Ministério da Defesa, um dos comandantes pensou: "Genial, mesmo, foi o Juscelino, que soube distinguir, no meio de tantos projetos floreados, o traço simples e original de Lúcio Costa". De fato, em pouco mais que uma folha de papel vegetal, Lúcio fizera um esboço — um "plano piloto" — de sua concepção da cidade a ser erguida em torno de um lago artificial, na forma de um gigantesco avião, com duas "asas", norte e sul, separadas por um "eixão". "Isso, sim, é gênio", concluiu o comandante.

Chegando à antessala do gabinete ministerial, os generais do Emfa, acompanhados da figura silenciosa do coronel Schmidt, encontraram os comandantes de cada uma das Forças — da Ma­rinha, almirante de esquadra Francisco Mirador; do Exército, general de exército João Carlos Matias; e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Aluísio Miranda da Rocha.

Os generais do Emfa e os comandantes das respectivas Forças conheciam-se havia muitos anos. Alguns, desde os bancos de escolas ou cursos que haviam freqüentado ao longo da carreira de cada um, e requisito essencial para as promoções que tinham recebido. Em outros casos, generais e comandantes haviam ser­vido nas mesmas guarnições, navios ou bases. Quando havia diferenças, essas eram um pouco de idade, ou de posto, ou de an­tigüidade no mesmo posto. Todos foram extremamente cordiais uns com os outros.

Os comandantes em chefe haviam comparecido pela manhã à reunião convocada pelo ministro da Defesa. Assunto: discutir as conseqüências práticas, do ponto de vista operacional, das res­pectivas Forças, do decreto presidencial referente à nova situação do Emfa. A conclusão fora no sentido de que nada de importante deveria mudar no relacionamento dos comandos com o Emdena. Nenhum dos comandantes conseguia, entretanto, esconder in­teiramente — ora no seu rosto, ora na sua voz — a frustração resultante da certeza antecipada da inocuidade da reunião que ia ocorrer em alguns minutos. Tremendo erro.

Na hora certa, a assessora ministerial para assuntos institucio­nais, Sônia Maria Botelho, convidou todos a entrar no gabinete do ministro. Como acertado, Schmidt permaneceu na antessala. Sônia havia prevenido o ministro Flávio Sales da importância da pontualidade entre os requisitos necessários a assegurar o respeito dos militares a uma autoridade civil.

Flávio Sales recebeu todos à porta do seu gabinete e os enca­minhou a seu lugar na mesa de reuniões. Para evitar erros, o ga­binete ministerial havia providenciado placas bem legíveis com o nome, posto e cargo de cada um dos participantes.

Todos atentos à palavra do ministro da Defesa, ele começou, dirigindo-se aos generais do Emdena: "Como os senhores estão sabendo, hoje pela manhã nos reunimos, em torno desta mesa, os comandantes em chefe das três Forças e eu, para examinar as conseqüências práticas do decreto que subordinou o Emdena ao ministro da Defesa. Chegamos à conclusão unânime de que, na prática, nada muda. Exceto que o Emfa deveria assessorar a presidência da República em questões de estratégia referentes à defesa nacional, enquanto o Emdena prestará assessoria ao mi­nistério de Estado da Defesa".

Flávio Sales achou que essa seria a melhor oportunidade pos­sível, senão a única à sua disposição, para afirmar perante a platéia a autoridade de um ministro civil da Defesa sobre todos os órgãos militares: comandos, tropas e organizações das Forças Armadas.

Dirigindo-se aos generais do Emdena, Sales resumiu a sua po­sição de autoridade: "Os senhores são agora o meu Estado-Maior. O Emdena se reportará somente a mim".

Falando aos comandantes das três Forças: "Os senhores conti­nuarão a cuidar, como antes e com a mesma autoridade, das ques­tões operacionais e táticas de responsabilidade das respectivas Forças. Seus comandos continuarão, até fisicamente, nos mesmos lugares".

Por boa medida, o ministro acrescentou: "Os senhores despa­charão comigo, como antes. Mas as questões estratégicas, espe­cialmente as que envolvam a participação de mais de uma Força, serão tratadas pelos senhores com o chefe do Emdena e, junta­mente com este, virão a despacho comigo".

Como político com vasta e multifacetada experiência em tratar de assuntos controversos, especialmente os ligados a questões de autoridade — do tipo "quem manda mais" ou "quem manda aqui sou eu" —, o ministro Flávio Sales sabia que era muito tênue a linha a separar a autoridade verdadeira do autoritarismo. Achou que precisava falar também de suas cre­denciais para ocupar a posição de chefia da Defesa, logo abaixo da chefia da Nação.

E disse: "Como os senhores sabem, não sou jejuno em ma­téria de defesa nacional. Pela minha comissão do Senado — a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional — passaram todos os projetos de lei, incluindo o referente à criação do Minis­tério da Defesa. Em todos os casos, as matérias foram discutidas em profundidade também com a assessoria dos antigos ministé­rios militares, agora reunidos sob o mesmo comando".

"Que nada!", pensou um dos comandantes. "As discussões de políticos foram sempre superficiais, até quanto a esse projeto. Aliás, não me lembro de leis importantes para a defesa nacional aprovadas pelo Congresso nos últimos anos. Mas deixa pra lá."

Aparentemente, a reunião chegara ao fim.

Nesse momento, antes que todos se levantassem, a assessora Sônia Maria passou um bilhete ao ministro Flávio Sales recor­dando a "questão de máxima importância" que os generais do Emdena desejavam fazer chegar à presidenta da República.

Dirigindo-se ao general Pais de Oliveira, o ministro Flávio Sales disse: "Em primeiro lugar, senhores generais, almirantes e brigadeiros, desejo confirmar a designação dos senhores para os cargos que exerciam no Emfa e continuarão a exercer no Emdena".

Um minuto depois, perguntou ao chefe do Emdena: "Na nossa reunião, quinta-feira passada, com o ministro José Eduardo Fi­gueiredo, chefe do Gabinete Civil da presidenta Mariana Rousseau, o senhor mencionou um assunto de gravíssima importância que deveria ser levado com urgência à consideração da presidenta. De­seja tratar do assunto agora?".

Figueiredo nada tinha a opor: assunto da gravidade de uma possível bomba atômica argentina não podia ser negado ao conhecimento dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Tinha de ser agora, mesmo. "Aliás", pensou, "já de­moramos vários dias".

Achou que a presença de Sônia Maria, apesar do seu cargo, poderia envolver riscos indesejáveis de vazamento. Em voz baixa explicou ao ministro que o assunto era do maior sigilo e olhou na direção da assessora. O ministro compreendeu e pediu para Sônia retirar-se.

Em seguida, o general Pais de Oliveira tomou a palavra e disse: "Senhor Ministro, senhores comandantes em chefe: há mais de dois anos, nós, do Emfa, investigávamos a suspeita, agora confir­mada, de que os argentinos estão enriquecendo urânio em níveis altos, inadequados ao uso para fins pacíficos e só compatíveis com o uso militar. Numa palavra, eles estão próximos da capacidade de fazer uma bomba atômica. Em questão de semanas, ou poucos meses, atingirão o nível crítico. Uma detonação experimental é provável, em lugares inabitados como certas ilhotas e glaciares flutuantes ao sul da Patagônia".

Surpresa geral. E incredulidade absoluta.

O comandante em chefe da Marinha, almirante Francisco Mirador, disse o que passava pela cabeça de todos: "Impossível! Em primeiro lugar, a Argentina é signatária do Tratado de Não Pro­liferação. Em segundo lugar, temos acordos bilaterais com a Ar­gentina, há mais de trinta anos, prevendo a colaboração dos dois países no enriquecimento de urânio somente para fins pacíficos. Não faz muitas semanas, nossa presidenta assinou acordo com a presidenta argentina prevendo a construção, naquele país, de equipamentos a ser usados pelos dois países, mas com vedação expressa do seu uso para enriquecimento de urânio".

Os outros dois comandantes em chefe assentiram. Os generais do Emdena mostravam o maior pessimismo quanto ao progresso do que consideravam a sua "missão". Um fracasso, naquele mo­mento, poria a perder todo o trabalho feito até então. Pior que isso, pensavam todos, a negativa de aceitar o assunto punha em risco a vida de todos nós. Além de representar, como sabemos, o rompimento do equilíbrio político e militar do continente.

O ministro Flávio Sales achou que precisaria intervir para evitar o primeiro choque dos integrantes do mais alto comando da defesa nacional. E perguntou: "Em que se baseia o senhor, ge­neral Pais de Oliveira, para uma afirmação da maior gravidade como a que acaba de fazer? O senhor tem documentos, provas, indícios sérios? Fazer uma bomba atômica seria gravíssima vio­lação, pela Argentina, dos acordos bilaterais. E risco mortal para todos e cada um de nós. Aliás, para que diabo a Argentina preci­saria de uma bomba atômica?".

O chefe do Emdena sentiu que sua única saída seria a revelação completa dos fatos e suas implicações. Não hesitou. E falou: "Há cerca de dois anos, senhor ministro, senhores comandantes, nós, do Emfa tínhamos indícios e suspeitas a respeito do enriqueci­mento de urânio em nível adequado ao seu uso militar, por parte de algum país sul-americano. Mandamos doze oficiais nossos — quatro de cada Força, todos do nível de coronel ou tenente-coronel — para, em missões individuais, literalmente, espionar' o que se fazia, em processamento de urânio, em países como o Chile, a Colômbia, a Venezuela e a Argentina".

Ninguém falou, mas todos os comandantes pensaram: "E daí?".

Pais de Oliveira continuou: "No final do ano passado, os in­dícios se acumulavam de que o país em causa seria a Argentina. Não só por ser o mais desenvolvido do nosso subcontinente, de­pois do Brasil, mas em vista do peso político do establishment mi­litar na política interna desse país, com fortes reflexos, facilmente detectáveis, na sua política externa".

"Mandamos, então, um dos nossos oficiais — o coronel enge­nheiro Antônio Schmidt de Oliveira, com diplomas de mestrado e doutorado em eletrônica e conhecimento profundo de energia nuclear — literalmente 'morar' na Patagônia, que nos parecia a província mais adequada, pelo seu isolamento e baixa densidade demográfica, para o desenvolvimento em segredo de um pro­grama de enriquecimento de urânio para fins militares."

Em seguida: "Devo dizer que, dos doze oficiais enviados em momentos diferentes àqueles e a outros países, as melhores ob­servações e os relatórios mais coerentes foram feitos pelo coronel Schmidt. Essa foi a razão decisiva para designá-lo para nova missão a partir de janeiro deste ano, a qual durou mais de dois meses, com o fim de aprofundar a nossa indagação sobre o en­riquecimento de urânio, pelos argentinos, em nível de utilização militar".

Olhou em volta. Os comandantes em chefe tinham o ar de quem assistia a um filme de ficção científica: viam as cenas, mas não acreditavam nelas.

O ministro Flávio Sales perguntou: "Um militar nosso? Só esse fato não seria suficiente para despertar a desconfiança dos nossos irmãos? E, mais, o que ele poderia fazer? Concre- tamente, o que ele viu? E como pode ter certeza de que viu as coisas certas e não o que lhe queriam mostrar os militares ar­gentinos, cientes da espionagem?".

Pais de Oliveira retrucou: "Há dois anos, na sua primeira missão, o coronel Schmidt havia identificado, perto da cidade de Bariloche, um estabelecimento civil' de processamento nuclear. Esse mesmo laboratório havia sido visitado, por insistência bra­sileira, por cientistas da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Mas nossos cientistas só viram o que os dirigentes do laboratório lhes quiseram mostrar. De fato, não viram nada de grave".

"E então?", perguntaram os comandantes.

O chefe do Emdena tinha a resposta pronta: "Schmidt viajava sob o nome de Antônio Gomes, professor aposentado da Universi­dade do Serro, em Minas Gerais, a qual, como os senhores sabem, fora criada no governo passado e extinta pela presidenta Rousseau".

"Ele levava todos os documentos necessários para provar a sua identidade como Antônio Gomes. Nós imaginamos que os argentinos poderiam desconfiar de um professor aposentado aos 52 anos de idade. E que poderiam investigar. Isso de fato aconteceu. Mas tínhamos tudo preparado para o caso de uma investigação: registros próprios no Ministério da Educação que documentavam a sua condição de magistério e aposentadoria; no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, para provar que ele era engenheiro. Entramos até nos arquivos da universi­dade da Sorbonne, onde Schmidt havia obtido seu mestrado, e no Massachusetts Institute of Technology, o MIT, onde fizera o curso de doutorado."

Parou e disse: "De fato, os argentinos desconfiaram e investi­garam. Mas ficaram convencidos da autenticidade de tudo o que Schmidt lhes dissera a respeito do professor Antônio Gomes. E lhe pediram desculpas pela indiscrição".

"Por fim, Schmidt vasculhou cada metro quadrado de terreno em volta de Bariloche e visitou centenas de lugares no sul da Pa­tagônia. Comparou dados, fez deduções, ouviu confissões — re­forçadas, depois, por instrumentos de espionagem americanos — que nos convenceram da veracidade do que suspeitávamos. Na nossa área, não temos dúvida a respeito."

Havia mudado o ambiente. Percebiam-se sinais de dúvida séria entre os comandantes e o ministro — eles, até então, só ti­nham manifestado incredulidade.

O general Pais de Oliveira concluiu ser chegada a hora de propor que Antônio falasse "ao vivo". Disse: "Senhor ministro, senhores comandantes: o coronel Schmidt está na antessala do gabinete, pronto para contar em detalhes tudo o que viu, ouviu e deduziu, assim como expor as razões que o levaram, e nos le­varam, à convicção da iminência de uma bomba".

Flávio Sales olhou em torno. Percebeu a aquiescência dos co­mandantes e disse, simplesmente: "Pode mandá-lo entrar. Ele terá uma hora para dizer tudo".

 

Schmidt entrou no gabinete do ministro da Defesa. Perfilou-se, "bateu" continência e identificou-se: "Sou o coronel en­genheiro Antônio Schmidt de Oliveira. Trabalho na seção de estratégia do Emfa. Fui incumbido pelas autoridades do Estado-Maior das Forças Armadas de executar a missão na Argentina, que nos reúne aqui".

"A partir deste momento, conforme instruções do senhor ge­neral Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emfa, transmitirei ao senhor ministro da Defesa e aos senhores comandantes em chefe das três Forças o panorama geral e minucioso da missão da qual fui incumbido."

Schmidt parou um minuto e prosseguiu: "A missão era cons­tituída, na verdade, de duas fases distintas. A primeira, há mais de dois anos, era só um teste preliminar, realizado em diferentes países da América do Sul, da capacidade de vários oficiais do Emfa de reconhecer o terreno em determinada região de um país sul-americano, orientar-se pelos acidentes geográficos, andar à luz de estrelas nas noites sem lua. E sua capacidade de reduzir a palavras o que haviam visto. A mim coube, naquela fase, reportar tudo o que encontrasse, em determinadas áreas de três países sul-americanos.

Uma das áreas era a parte da Patagônia situada em torno da cidade de Bariloche, na República Argentina".

"A segunda parte da missão — sem dúvida, a mais importante do ponto de vista da defesa nacional — começou em janeiro deste ano e se estendeu por mais de dois meses, abrangendo, além da primeira área, o extremo sul daquela província. Por quê? Porque ali, diziam os indícios ao dispor do Emfa, era o lugar mais adequado ao desenvolvimento e experimentação de técnicas de enri­quecimento de urânio para fins civis e/ou militares.

"Conforme as instruções que recebi, vou relatar os propó­sitos, as minúcias do trabalho realizado, os atos e circunstâncias da missão; os principais lugares visitados e o que neles pude ver — ou não ver — e ouvir; o que descobri, ou deduzi do que vi e ouvi; as confissões e desabafos de pessoas credenciadas, que con­correram para formar e consolidar a minha convicção de que os cientistas argentinos, a serviço das Forças Armadas desse país, estão de fato enriquecendo urânio em nível adequado somente para uso militar. E, mais, que tudo isso ocorre, precisamente, nos subúrbios de Bariloche.

"Os senhores me desculpem, mas, para melhor compreensão dos fatos, tenho de contar tudo em detalhe e a partir do ponto zero."

O general Pais de Oliveira pensou consigo mesmo: "Lá vem outro Juca da Silva, contando o que tem a dizer a partir da in­fância da vida". Em voz alta, porém, dirigiu-se ao ministro Flávio Sales e aos comandantes-em-chefe: "Não só como nosso emis­sário em missão secreta, mas também como nosso principal téc­nico em energia nuclear, o coronel Schmidt reflete perfeitamente o pensamento unânime de todos nós do Emfa. Tudo o que ele disser é como se um de nós estivesse falando".

Pela quarta vez em poucos dias, Schmidt iniciou o relato de toda a sua estória. Citou os inúmeros lugares visitados, as miríades de possibilidades exploradas, as dezenas de estradas e caminhos percorridos, as centenas de indagações sobre a exis­tência, por aquelas bandas, de um discreto centro tecnológico. Transmitiu a confirmação de que houvera um laboratório no Fim do Mundo — como os argentinos denominam, com boa razão, o extremo sul do continente. E seu fechamento por solicitação dos cientistas, incomodados na sua vida pelo clima e perturbados em seu trabalho pelo vaivém de milhares de turistas.

Reproduziu o que ouvira de Fernando Gutierrez, um dos cien­tistas do centro tecnológico que funciona à beira do lago Nahuel Huapi, e também o seu encontro e os seus dias de convívio lado a lado, ao longo de estradas nacionais e locais, com o general ar­gentino aposentado Marcelo Antigua Magallanes, engenheiro es­pecializado em energia nuclear.

Falou da suspeita, transmitida por um técnico americano ao professor doutor Armando de Oliveira Dias, da Comissão Na­cional de Energia Nuclear, de que o Brasil estaria enriquecendo urânio em duas localidades: perto da cidade do Rio de Janeiro e em algum lugar a sudoeste do Rio, possivelmente, disse o americano, no Paraná ou no Mato Grosso do Sul.

Mencionou ainda a resposta dada por Oliveira Dias ao cien­tista americano: o enriquecimento de urânio no Brasil era feito até o nível de 20% em um só lugar: em Resende, no Estado do Rio, para abastecer as duas — e em breve três — usinas geradoras de eletricidade de Angra dos Reis. E, no futuro, para exportação. Fatos esses de conhecimento mundial.

Schmidt reproduziu, a seguir, a explicação que os chefes do Emfa e ele tinham ouvido diretamente do professor brasileiro: os americanos haviam determinado que o enriquecimento de urânio acima de níveis mínimos emitia radiações fracas, mas detectáveis.

Algo como um "ruído". Esse era percebido, mas não localizado com precisão, por aparelhos teleguiados capazes de circular em torno da Terra. Ainda em fase de desenvolvimento e aperfeiçoa­mento, alguns dos aparelhos já voavam em caráter experimental em órbitas terrestres.

Voltou-se, em seguida, para o ministro e os comandantes em chefe. Olhou para as paredes e disse: "Não temos um mapa da América do Sul nesta sala. Mas, como os senhores se recordarão, Bariloche fica na direção geral do sudoeste do Brasil".

Schmidt disse então as palavras com as quais esperava con­cluir a sua exposição: "Para os senhores generais do Emfa e para mim, também, a suspeita do cientista americano reforça a nossa convicção de que, na margem do lago Nahuel Huapi, nos arre­dores de Bariloche, se enriquece urânio muito acima dos níveis úteis para o seu uso pacífico".

E finalizou: "Se os senhores me permitem, esse é o assunto de extrema gravidade' que os chefes do Emfa acham deve ser, sem demora, levado ao conhecimento da presidenta Mariana Rous­seau. Seja para eventuais entendimentos diretos com a presi­denta argentina Silvana Lapena, seja, alternativamente, para que a nossa presidenta autorize ações preventivas contra a hipótese de haver a detonação de uma bomba atômica. Ou, se isso vier a acontecer, providências abortivas da continuação do progresso daquele programa".

Pediu licença para sentar-se e ocupou uma das cadeiras vagas em torno da mesa.

Silêncio, estupefação, descrença. Todos se entreolharam.

Por fim, o ministro Flávio Sales falou: "Evidentemente, todos nós reconhecemos a gravidade do que vocês, do Emfa, agora Emdena, nos disseram. Mas, como podem imaginar, nenhum de nós tem condições de avaliar a veracidade do que contou o co­ronel Schmidt. Não estou dizendo que consideramos tudo uma fantasia. Só que, no mínimo, precisamos de tempo para analisar esse monte de informações e suas implicações em face dos inte­resses do Brasil e da preservação da nossa capacidade de cuidar da defesa nacional".

Voltou-se para os comandantes em chefe e perguntou-lhes: "Vocês, o que acham?".

O comandante da Marinha, almirante Francisco Mirador, foi o primeiro a reagir.

Suas palavras foram extremamente cuidadosas. Não queria dar a impressão de menosprezar o que haviam dito os chefes do Emdena, pela palavra do coronel Schmidt, mediante expressa au­torização do seu chefe, general Fernando Pais de Oliveira. Mas, sentia, não podia aceitar toda essa história pelo seu valor de face.

Disse o almirante Mirador: "Nós, na Marinha, sempre manti­vemos os olhos abertos para possibilidades como a citada aqui. Conversas com os nossos camaradas argentinos têm-se caracte­rizado por dar mil e uma voltas em torno do assunto. Nem eles falam dos seus programas nucleares para fins militares, nem nós baixamos a guarda, falando dos nossos".

"Na verdade, não tenho propostas concretas sobre o que de­vemos fazer. Gostaria de ouvir a opinião do general João Carlos Martins e a do brigadeiro Aluísio Miranda da Rocha."

Voltando-se para eles, perguntou: "O que vocês acham?".

O general comandante em chefe do Exército disse: "Em prin­cípio, estou de acordo com o almirante. Mas a cena só estará com­pleta para emitirmos uma opinião construtiva quando soubermos o que o Emdena imagina propor como ação governamental".

O brigadeiro Miranda da Rocha disse apenas: "Também penso assim".

Ninguém se aventurara a entrar no mérito do assunto: esta­riam os argentinos, concretamente, cuidando de desenvolver uma bomba atômica? Para que fins? Ou, melhor, contra quem?

Pela cabeça do ministro Flávio Sales passou rapidamente a imagem da solução "política" para situações de impasse: adiar a discussão do problema. Contudo, sentiu que não poderia en­cerrar a reunião naquele clima de incertezas.

E falou, dirigindo-se ao chefe do Emfa: "É claro que conti­nuamos todos no terreno das incertezas, da falta de demarcação nítida, separando os fatos da nossa imaginação. Assim, ainda no terreno das hipóteses mais ou menos prováveis, pergunto: quais as providências que, na opinião de vocês do Emdena, convencidos do que nos relatou o coronel Schmidt, proporiam fossem tomadas pelo governo brasileiro? Como lidaríamos com essa questão?".

Longo silêncio. Por fim, o general Pais de Oliveira conse­guiu esconder seu desapontamento e falou: "Em primeiro lugar, achamos que o assunto deve ser tratado de governo para governo. Mas não pelas burocráticas vias diplomáticas. Estamos conven­cidos de que essa matéria requer um contato preliminar, face a face, das duas presidentas, a nossa, Mariana Rousseau, e a argen­tina, Silvana Lapena".

O ministro da Defesa retrucou: "Não vamos entrar agora em detalhes desse eventual encontro. No momento oportuno, volta­remos a ele. O que mais nos interessa nesta hora é uma passagem da exposição do coronel Schmidt na qual ele menciona medidas preventivas de uma explosão atômica e abortiva do prossegui­mento do programa nuclear argentino para finalidades militares".

E em seguida: "Que medidas seriam essas?".

Pais de Oliveira respondeu: "Como se trata de ações em sua maior parte de incumbência da Aeronáutica, peço ao brigadeiro Jerônimo Florença que as exponha".

Florença, que permanecera calado praticamente por toda a reunião, respondeu de imediato: "A primeira medida preventiva será levantar um mapa detalhado do espaço marítimo entre o sul da Patagônia e a Antártida. Como os senhores sabem, existem por lá numerosas ilhas inabitadas por seres humanos e glaciares flutuantes, que se desprendem do continente polar. Uns e outros seriam os locais mais favoráveis para detonar uma bomba expe­rimental. Possivelmente, dadas as distâncias e a demografia, sem repercussão mundial".

Foi então a vez do general João Carlos Matias, comandante em chefe do Exército, perguntar: "Como seria feito esse mapa? E para que serviria?".

Florença respondeu: "O mapa seria levantado por um avião teleguiado, invisível ao radar, que partiria de uma de nossas bases no Rio Grande do Sul e voaria sobre o Atlântico até o ex­tremo sul do continente; aí faria o levantamento minucioso de todas as ilhotas e glaciares. Esse mapa ficaria de reserva para ser utilizado no caso de termos de adotar uma das respostas abor­tivas da experiência nuclear argentina, das quais falarei daqui a pouco".

E continuou: "A segunda medida preventiva seria estacionar um satélite igualmente teleguiado e invisível ao radar sobre a área de Bariloche. De minuto em minuto, o satélite nos enviaria imagens da área do laboratório à margem do lago. Essas imagens seriam analisadas por nós. Ao notarmos a movimentação de comboios suspeitos saindo do lago Nahuel Huapi, o satélite seria instruído a acompanhar o cortejo. Em particular, se dirigido ao aeroporto de Bariloche ou, por terra, ao sul da Patagônia".

Pequena pausa. O brigadeiro retomou o caminho de sua ex­posição: "Nossa expectativa é no sentido de que a explosão do protótipo da bomba ocorrerá no sul da Patagônia, na área da Pas­sagem de Drake, onde ficam as ilhas habitadas por pingüins e leões marinhos. E que a bomba será levada por avião até uma das cidades do extremo sul da província, como Ushuaia; daí, por helicóptero, à ilhota ou ao glaciar escolhido".

"Nesse ponto entraria em operação a primeira medida abortiva. Conhecido o itinerário do protótipo, bombardearíamos e destruiríamos o seu destino: a ilhota desabitada ou um glaciar impróprio para qualquer tipo de vida. Contudo, essa medida está em suspenso nas nossas cogitações. Será melhor para a nossa causa se o mundo tomar conhecimento imediato da detonação de uma bomba atômica argentina."

O ministro Flávio Sales achava que já haviam ido longe de­mais. E pensava em encerrar a reunião. Mas o almirante Fran­cisco Mirador, comandante em chefe da Marinha, interveio: "Tudo muito ousado. Tudo muito bonito. No papel. Na prática, detonada a primeira bomba, a Argentina se encontraria em po­sição de construir um enorme arsenal nuclear. E aí?".

O brigadeiro respondeu no ato: "Aí, fosse qual fosse a reper­cussão da primeira bomba — clamor mundial ou dúvida e si­lêncio, que é a esperança dos argentinos —, nós acionaríamos a segunda medida abortiva. Um avião nosso partiria do Mato Grosso, sobrevoaria a Bolívia, cruzaria os Andes até o Pacífico, viraria para o sul e, na latitude de Bariloche, voaria sobre o es­treito território chileno, ocupado pelos Andes, lançando uma bomba certeira para destruir o laboratório de enriquecimento de urânio às margens do lago".

Silêncio. Estupor. Ninguém se aventurava a falar.

Flávio Sales, político, ex-senador e agora ministro da Defesa, lembrou-se mais uma vez do remédio para as situações de im­passe: adiar a questão, na expectativa de que refletindo por uma noite se possa chegar a milagres de compreensão e a uma solução.

Sem esquecer que, no caso concreto à mão, faziam-se conjeturas na orla de hipóteses.

O ministro olhou para cada um dos componentes da mesa e resumiu a situação: "Obviamente, nenhum de nós estava pre­parado para um assunto da magnitude e complexidade do que acabamos de ouvir. Antes, porém, de levar a matéria adiante, pre­cisamos chegar a consenso sobre o que de fato acontece por lá. E, em seguida, sobre o que fazer".

Concluiu: "Diante de tudo isso, peço aos senhores que re­flitam profundamente nas questões postas diante de nós. E nos reuniremos todos, também com o coronel Schmidt, amanhã às 8 horas, para dar prosseguimento e, espero, tirar conclusões do que aqui se tratou".

Despediram-se. Cada qual foi para o seu lado. Decepções. Ex­pectativas. Até amanhã!

 

Manhã do dia seguinte, terça-feira, 8 horas. Pontualmente, os mesmos oficiais do dia anterior reúnem-se no gabinete do ministro da Defesa. Todos com a fisionomia pensativa. Ninguém tem muito a dizer. Cada um olha para os demais, com ar interrogativo: "Teria alguém chegado a alguma conclusão? Os argentinos estarão mesmo fazendo uma bomba atômica? Para quê?".

Os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica haviam perguntado aos chefes dos respectivos órgãos de inteli­gência. Alguém sabia de alguma coisa ao certo? Em cada Força a resposta era a mesma: "Nós não sabemos. Desconfiamos que sim. Mas não temos provas ou, mesmo, indícios concretos de ati­vidade nesse sentido".

Poucos minutos depois, entra o ministro da Defesa, Flávio Sales. Cumprimentos a todos.

O ministro senta-se à cabeceira da mesa de reuniões e per­gunta aos comandantes em chefe: "Os senhores têm algo a dizer sobre a apresentação de ontem do coronel Schmidt, em nome dos senhores chefe, vice-chefe e subchefes do Estado-Maior da De­fesa Nacional? Em uma palavra: os senhores têm sugestões con­cretas sobre o que devemos fazer?".

Com o assentimento tácito dos seus colegas, o comandante do Exército falou: "Da minha parte, indaguei da nossa equipe de inteligência se tínhamos alguma evidência, prova confiável de que os argentinos estão a ponto de fazer a sua primeira bomba atômica". Olhou para os outros dois comandantes, que acenaram afirmativamente, indicando ter feito o mesmo em sua área.

O general João Carlos Matias concluiu: "A nossa inteligência desconfia há muito que os colegas argentinos estão fazendo isso. Mas não temos nenhuma prova da sua capacidade de enriqueci­mento de urânio acima de 20%, o que, como os senhores sabem, é o nível adequado para a geração de eletricidade e a propulsão de motores em navios de superfície e submarinos. Nós não po­demos infirmar, mas também não podemos confirmar o que nos relatou o Emdena na palavra do coronel Schmidt".

Praticamente a mesma coisa disseram os dois outros co­mandantes em chefe, almirante Francisco Mirador e brigadeiro Aluísio Miranda da Rocha.

A reação do ministro da Defesa foi a que se poderia esperar na­quelas circunstâncias: perplexidade e dúvida profunda ("dúvida cruel", ele pensava) sobre o próximo passo. E disse: "Na medida em que se reflita no relacionamento do Brasil com a Argentina, essa questão envolve repercussões mais ou menos profundas e não apenas bilaterais, mas com os demais países do continente sul-americano. Ou, possivelmente, com o resto do mundo. Penso que é necessário, ou pelo menos útil, conversar com o Ministério das Relações Exteriores antes do próximo passo. De qualquer modo, o que vocês do Emdena pensavam propor como etapa se­guinte a esta reunião?".

O general Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emdena, res­pondeu de pronto: "Sem dúvida, seja qual for o caminho que es­colhermos, a atitude do governo brasileiro terá repercussões na relação com os vizinhos. Entretanto, senhor ministro, senhores comandantes, nós, do Emdena, achamos que a melhor opção é levar o assunto direta e preliminarmente à consideração da pre­sidenta Rousseau, para ver se ela concorda em agir conforme su­gerimos, ou que outra atitude acha mais conveniente. De repente, ela opta por nada fazermos. Por 'deixar o barco correr', como se diz. Contudo, não vamos esquecer que, tratando-se de bomba atômica, falamos de vidas incontáveis em risco".

"E o que a presidenta Mariana Rousseau teria a fazer?'' in­dagou o comandante do Exército.

Pais de Oliveira sabia qual deveria ser o passo seguinte. Res­pondeu: "No cenário sobre o qual nós, do Emdena, estamos de acordo, seria útil e necessário haver um contato pessoal, direto e confidencial — de preferência, sem testemunhas —, da nossa presidenta com a presidenta argentina Silvana Lapena. Nessa ocasião, a presidenta Rousseau diria à sua colega ter informações das atividades argentinas de enriquecimento de urânio em nível alto, não utilizável para fins pacíficos, mas apenas para fazer uma bomba atômica".

"Na minha cabeça", contrapôs o ministro da Defesa, "Lapena negará peremptoriamente".

"Sem dúvida", respondeu o chefe do Emdena. "Essa é a resposta que, temos certeza, ela dará. É até possível que todo o programa de alto enriquecimento de urânio para fins militares aconteça à revelia da presidência da República argentina. Foi assim que co­meçou todo o programa". Voltando-se para Schmidt, o general falou: "Coronel, quer repetir o que nos escreveu a respeito no seu relatório?".

Schmidt não hesitou um segundo. Embora houvesse obser­vado a recomendação do chefe do Emfa de não tomar notas nem fazer rascunhos, tinha todos os fatos na memória. Fatos que tinha revisto, lendo o teor dos relatórios que enviara sobre as conversas do general argentino aposentado Marcelo Antigua Magallanes, engenheiro em energia nuclear, incluindo sua mágoa incurável pelo fato de o Exército ter escolhido outro especialista — menos qualificado do que ele, na sua própria opinião — para assumir a chefia das operações do laboratório à margem do lago Nahuel Huapi, nos arredores de Bariloche.

E falou: "Conforme está nos meus relatórios ao Emfa, fatos de alta relevância me foram revelados pelo general aposentado argentino Marcelo Antigua Magallanes".

"Como escrevi, Magallanes — um dos quatro ou cinco oficiais argentinos especializados em energia nuclear — se sentiu prete­rido quando o Exército designou outro oficial, o coronel Ernesto Larreta, para chefiar a operação de enriquecimento de urânio, em nível adequado ao seu uso militar, no laboratório à margem do lago. Daí, segundo ele próprio me contou, seu desapontamento — e, diria eu, seu complexo de inferioridade —, que o levou a derramar mágoas e mesmo lágrimas diante de um perfeito es­tranho: eu.

"Segundo palavras literais de Magallanes, a decisão de enri­quecer urânio para uso militar foi tomada por volta do ano de 2005, no governo do presidente Hernane Kristenberg. Os deta­lhes de como isso aconteceu seriam cômicos se o assunto não fosse trágico.

"Dois altos funcionários da Presidência argentina — o chefe do Gabinete Civil, Gregório Mariolem, e o principal assessor po­lítico, Roberto Ludmilo — chamaram à Casa Rosada o general Emilio Colombo, ministro da Guerra. Dizendo falar em nome do presidente — mas, na verdade, à revelia dele —, transmitiram ao ministro a incumbência de executar o projeto de enriquecimento de urânio, do qual muito se falava, mas ainda não saíra do papel. A razão dessa atitude era a crença, nos meios argentinos, de que o Brasil já estaria, na prática, enriquecendo urânio para fins mili­tares. E a Argentina não poderia ficar para trás."

Pausa para caçar os fatos na memória. Em seguida, Schmidt prosseguiu: "Para cobrir o custeio do projeto nuclear, os dois altos funcionários puseram recursos financeiros secretos da Pre­sidência à disposição do general Emilio Colombo, ministro da Guerra argentino".

"Disseram ao ministro que agiam com o conhecimento e em nome do presidente Kristenberg. Mas que este decidira não se envolver pessoalmente na questão. E que, mesmo nos despachos habituais do ministro com o presidente, o assunto jamais deveria ser abordado. Assim, ele poderia, sempre, negar o conhecimento de quaisquer atividades, militares ou civis, ligadas a uma eventual bomba atômica argentina. O que, concluíra Magallanes, era tudo mentira."

Então, Schmidt encerrou a narrativa: "O processo está em an­damento, financiado com verbas presidenciais secretas, há mais de cinco anos. É possível que o segredo perdure até hoje. E, de fato, a presidenta Silvana Lapena talvez ignore o fato concreto do enriquecimento de urânio para fins militares".

Flávio Sales, o ministro da Defesa, percebeu que a situação havia ficado ainda mais complicada. Ponderou: "Admitindo, em­bora ad absurdum, que as duas presidentas discutam o assunto pessoalmente, pergunto: como ficamos, se a presidenta Lapena negar o enriquecimento de urânio para fins militares?"

A resposta veio imediatamente do almirante Eduardo Jaime Fakhoury, que ainda pensava de si como Vicemfa: "Como quase todas as questões, a que nos propõe o senhor ministro tem mais de duas faces. A primeira é a negativa da presidenta Lapena de ter conhecimento dos fatos. Essa é fácil. Valendo-se do bom nível de relacionamento pessoal das duas, a nossa presidenta lhe pedirá para inteirar-se, para 'dar uma olhada profunda' no assunto. Mas não lhe dirá que sabemos do que acontece. Isso poderia parecer fruto de espionagem, ou intromissão indevida do Brasil em as­suntos internos argentinos".

"A segunda face seria a negativa peremptória da presidenta argentina de que, no governo do seu país, esteja alguém, civil ou militar, empenhado no enriquecimento de urânio em grau compatível com o seu uso militar. Essa resposta daria grande força moral a uma possível represália brasileira à eventual deto­nação de uma bomba atômica argentina. Detonação que teria, necessariamente, de estar documentada acima de quaisquer dúvidas."

Silêncio em torno da mesa. Fakhoury toma um gole de água antes de continuar.

"Uma terceira face é menos provável, mas a que despertaria maiores complicações — não apenas nos aspectos bilaterais. Do ponto de vista da solidariedade dos povos, o Brasil não poderia justificar o sigilo sobre a admissão de uma possível bomba atô­mica argentina. Pode-se prever que tal resposta desencadearia fortíssima reação, não só na América Latina, mas em todo o mundo. Especialmente entre as grandes potências militares e po­líticas, como os Estados Unidos, a União Européia, a China, o Japão. E a própria ONU."

O ministro Flávio Sales interveio: "É fácil de ver que essa con­versa das duas presidentas, se jamais vier a acontecer — o que, in­cidentemente, eu duvido —, conduzirá o affaire bomba atômica argentina a situações embaraçosas para uma ou ambas as partes".

"Por exemplo, a presidenta Silvana Lapena pode responder que nada sabe a respeito e se comprometer a apurar os fatos em seu país. E, se concluir com certeza e nos convencer de que lá não se faz bomba atômica, então o assunto se encerra.

"Contudo, é possível que os militares argentinos mintam para a sua chefa de Estado. E, na verdade, estejam desenvolvendo se­cretamente uma bomba. Dada a importância do poder e da pre­sença dos militares na política argentina, o fato de mentirem à presidenta acirrará o desconforto dos homens de armas com o fato de serem liderados por um chefe de Estado civil. E, pior, mu­lher. Não se pode descartar, nesse caso, a eventualidade de um golpe e da tomada do poder, com o restabelecimento da ditadura militar como anteriormente.

"Na segunda hipótese", continuou Flávio Sales, "se a presidenta Lapena negar, por mentira ou por desinformação, que seu país desenvolve uma bomba atômica, creio que as medidas preven­tivas enunciadas pelo brigadeiro Jerônimo Florença, subchefe do Emdena, terão todo cabimento. E se, depois de algum tempo, acontecer a detonação de uma bomba nuclear, entrarão para a ordem do dia as medidas abortivas citadas pelo brigadeiro".

O comandante em chefe do Exército, general João Carlos Matias, interveio para dizer: "Embora, em tese, estejamos de acordo com o princípio da eliminação, pela força, se necessário, da ameaça nuclear argentina, as medidas abortivas propostas - destruição do local da explosão da bomba experimental e do laboratório do lago Nahuel Huapi — conduzirão fatalmente a confrontos sangrentos e destrutivos".

E continuou: "A terceira face dessa questão, a admissão pura e simples, pelos argentinos, de que estão 'fazendo uma bomba, levaria a questão ao plano mundial. Quero dizer que as princi­pais nações do mundo se articulariam, em especial no âmbito do Conselho de Segurança da ONU, para exigir' que a Argentina encerre o seu programa nuclear. Uma resolução desse órgão teria grande peso moral".

Fakhoury perguntou: "Mas qual será a atitude de uma di­tadura militar se ocorrer o desdobramento da segunda fase da questão — a rebelião dos militares e a deposição do governo civil - diante da condenação de uma organização distante e impes­soal, contra o que os nossos colegas argentinos considerariam o maior interesse da pátria'? Certamente, ignorariam um pronun­ciamento feito em Nova York, of all places, por um conselho no qual, neste momento, os argentinos nem sequer têm o assento rotativo que lhes cabe em certos anos".

Ninguém sabia ao certo o que pensar. Em si, o problema em discussão era simples. Mas seus desdobramentos e conseqüên­cias, tremendamente complicados.

Diante do silêncio geral e da sensação de ser insolúvel o pro­blema, o ministro da Defesa retomou a palavra: "Admitindo, só a título de exercício mental, que devemos seguir as linhas pro­postas pelo Emdena, lembro que, como vocês estão fartos de saber, encontros de chefes de Estado ou de governo não se rea­lizam de improviso. Requerem, sempre, várias semanas de dis­cussões preliminares, agenda relevante e pública, programas de reuniões, visitas a certos lugares e por que motivos, etc., etc. O que o Emdena pensa disso?".

O general Fernando Pais de Oliveira respondeu: "Nós pen­samos num ato de grande valor simbólico e que poderia ser combinado pelo Palácio do Planalto com a Casa Rosada, para acontecer dentro de duas semanas. Como os senhores sabem, o governo brasileiro criou a Ordem de Tiradentes, para premiar pessoas e instituições que, no Brasil e no mundo, se distingam na defesa da liberdade e da independência. A Ordem toma a forma de medalhas, comendas, grã-cruzes e colares. Estes são reser­vados a chefes de Estado de nações amigas. Até hoje, nenhuma condecoração dessa Ordem foi dada a qualquer pessoa".

"O dia de Tiradentes, 21 de abril, está aí à nossa porta. Se a presidenta Mariana Rousseau concordar, sabendo a razão da pro­posta, o Itamaraty pode entrar em contato imediato com a presi­denta argentina Silvana Lapena e convidá-la a receber o Grande Colar da Ordem de Tiradentes no próximo dia 21. Haverá, é claro, outros condecorados. Mas o motivo principal de tudo é propor­cionar a oportunidade do encontro pessoal das duas presidentas e o desenrolar do cenário proposto e detalhado pelo Emdena."

O ministro da Defesa parou, olhou para cada pessoa em volta da mesa e disse: "Não sei. Vou pensar. Mas, tratando-se de sim­ples suspeita da nossa parte quanto ao enriquecimento de urânio para fins militares, se mais pessoas se envolverem nessa matéria, maiores serão os riscos de vazamento. E de constrangimento para o nosso governo".

"Não sei. Vou pensar. Nos reuniremos outra vez às 14 horas."

Lá fora, jornalistas começavam a perguntar qual o motivo de tantas reuniões do ministro com os chefes militares. A res­posta era, ao mesmo tempo, evasiva e real: "Estão discutindo a articulação do Estado-Maior com os comandantes em chefe e o ministro, por causa do decreto presidencial que afetou a subordi­nação do antigo Emfa, agora Emdena".

 

Imediatamente após a reunião da manhã, o ministro da Defesa tomou uma decisão: procuraria falar com a presidenta Mariana Rousseau. Pediu à sua assessora, Sônia Maria Botelho, que falasse pelo telefone com a sua xará Sônia Maria Bernardes, assessora do ministro José Eduardo Figueiredo, chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, para articular um contato também te­lefônico urgente dos dois ministros, que aconteceu logo a seguir.

Os ministros falaram com muita cautela: sabiam que nem mesmo os telefones dados como "mais seguros" e testados com freqüência estavam livres de "grampos" clandestinos. Feitos os cumprimentos de praxe, disse o ministro da Defesa: "Meu caro ministro Figueiredo, preciso falar com máxima urgência com a presidenta Mariana Rousseau. Na hora que ela marcar, levarei comigo o chefe do Emdena, general Fernando Pais de Oliveira. Como você se lembrará, nós dois estivemos juntos no seu gabi­nete quando você comunicou ao general a decisão da presidenta de subordinar o então Emfa ao Ministério da Defesa".

"Sim. Lembro-me perfeitamente", respondeu o chefe do Gabi­nete Civil. "Vou falar com a presidenta na primeira oportunidade que surgir e comunicarei a você a decisão dela".

Despediram-se. Em seguida, Flávio Sales cancelou a nova reu­nião que havia marcado para a tarde do mesmo dia com os co­mandantes em chefe e os generais do Emdena. Afinal, a questão em pauta havia sido discutida por eles em profundidade e exten­sivamente. Nada restava a fazer enquanto a presidenta não dis­sesse o que pensava de tudo.

Na hora do almoço, no refeitório anexo ao gabinete presiden­cial, citado como "restaurante informal" do Palácio do Planalto, o ministro Figueiredo encontrou-se com a presidenta Rousseau e lhe falou do pedido de audiência extraordinária feito pelo mi­nistro da Defesa. Disse-lhe mais, que, se Mariana resolvesse re­cebê-lo, o ministro da Defesa pedia permissão para trazer com ele o general-chefe do Emdena.

O chefe do Gabinete Civil informou a presidenta que, na reu­nião que tinham tido para comunicar ao chefe do então Emfa o decreto presidencial daquele dia, o general Pais de Oliveira mencionara um "assunto de extrema importância" que precisaria transmitir à presidenta. Figueiredo não sabia do que se tratava. Mas a presunção era de relevância. "Valeria a pena", sugeriu, "abrir espaço na agenda presidencial para ouvir os dois".

A presidenta Mariana concordou e marcaram a audiência para as 17 horas. Ela concluiu: "Como não sabemos do que se trata, é bom você estar presente também".

Pontualmente, chegaram ao Planalto o ministro e o chefe do Emdena. Este havia trazido o coronel Schmidt, que permaneceria na antessala do gabinete "para o caso de ser necessário passar de­talhes à presidenta".

O ministro da Defesa e o general-chefe do Emdena foram re­cebidos imediatamente pela presidenta. Como ela desejara, es­tava presente o chefe do Gabinete Civil. Houve cumprimentos e continência do general.

A presença de Mariana Rousseau inspirava serena autoridade. Com 1,70 m de altura e pequeno excesso de peso, ela não ser­viria para desfilar nas passarelas de moda, mas se impunha pela clareza de pensamento e a concisão nas palavras. Natural de São João dei Rei, em Minas Gerais, era filha de um casal francês admirador, estudioso e colecionador de milhares de objetos de arte brasileira, principalmente de imagens de santos. Seu nome com­pleto era Mariana Vila Rica Rousseau, em homenagem a duas cidades coloniais brasileiras.

Na juventude, Mariana havia participado, como guerrilheira, da oposição ao regime militar vigente na época. Presa, torturada e confinada em horríveis clausuras, tinha conseguido fugir e re­fugiar-se no Uruguai. Pedira aí asilo político, negado em nome da solidariedade dos países vizinhos e das ditaduras amigas. Devol­vida ao Brasil, fora novamente presa, torturada e, afinal, libertada em virtude da lei de anistia de 1980, proposta pelo então presi­dente, general João Figueiredo e aprovada por unanimidade pelo Congresso.

Voltando a Minas, Mariana resolveu completar os estudos. Formou-se em direito e exerceu a advocacia, principalmente em Belo Horizonte. Casou-se com João Miranda de Vascon­celos, com quem teve três filhos. Depois, ao divorciar-se, ganhou a guarda das crianças, mas retomou o nome de solteira. Foi ali "descoberta" pelo presidente da República e por este nomeada ministra da Justiça. Os filhos cresceram. Cada qual foi para um lado. Pouco se viram, até que sua filha lhe desse um neto, semanas antes de sua posse como presidenta.

Dos seus anos de ministra da Justiça, Mariana guardava lem­branças contraditórias. De um lado, seu sucesso em livrar o país da maior parte da legislação do regime militar ainda em vigor. No lugar dessa, procurou e conseguiu restabelecer plenamente a vigência dos conceitos de igualdade, liberdade e transparência dos atos do poder público.

No plano ainda mais alto, Mariana foi instrumento da reafir­mação, na prática, dos princípios que regem uma sociedade de­mocrática. Em particular, os referentes à origem de todo poder político: o voto popular, única fonte legítima de poder. Sem in­tervenções estranhas ao seu exercício, fossem elas de origem civil ou militar.

De outra parte, Mariana não escondia a sua frustração por não haver conseguido modernizar os códigos civil, penal e de processo — e outras leis velhas de dezenas de décadas e carentes de atualização e modernização. Promoveu numerosos debates públicos com parlamentares e juristas. A opinião era unânime: todos os códigos precisavam de atualização e adequação a uma sociedade diferente da existente à época em que haviam sido editados. Mas a convergência de opiniões se encerrava aí. Nunca fora possível chegar a acordos sólidos e consistentes sobre o teor de novos códigos.

Sua campanha eleitoral tinha sido uma maratona: viagens de norte a sul e de leste a oeste do Brasil. O empenho pessoal do presi­dente da República, que indicara — alguns dizem "forçará" — a es­colha do seu nome pelo partido do governo, garantiu a sua eleição. Muitos esperavam que ela fosse simples figura de fachada, sem pro­gramas ou idéias originais, uma "procuradora" do seu antecessor e patrono de candidatura. Mas, no dia a dia do exercício do cargo, Mariana provava ser dona de si e ter pensamento próprio.

De qualquer modo, sua presença sóbria, com poucas palavras, mais os fatos conhecidos de sua vida, de seus pais, do nome que estes lhe deram, conferiam a ela certo ar barroco. "Exagerando um pouco", pensou consigo o ministro Flávio Sales, "era como se as pessoas que falavam com ela estivessem conversando com imagens do Aleijadinho".

A voz firme da presidenta despertou o ministro da Defesa de seu devaneio: "Então, ministro Flávio Sales, qual o motivo desta audiência?".

O ministro respondeu imediatamente: "Os nossos generais do Emdena estão convencidos de um fato extremamente sério, o qual, se verdadeiro, pode representar importante fator de dese­quilíbrio político e militar do nosso continente. E, com certeza, afetar nossas relações com a Argentina. Além de pôr em gravís­simo risco inúmeras vidas brasileiras. Com sua licença, pedirei ao general Pais de Oliveira, chefe do Emdena, para dizer do que se trata".

Pais de Oliveira tinha o discurso pronto: "Para resumir uma longa história, informo à senhora presidenta que nós, do Emdena, estamos convencidos de que os militares argentinos estão bem próximos do fim do processo de enriquecimento de urânio em nível adequado a fazer uma bomba atômica".

"Pelas informações de que dispomos e sobre as quais baseamos essa convicção, os argentinos planejam detonar a primeira bomba daqui a algumas semanas ou meses.

"Embora de caráter experimental, essa bomba terá grande poder destrutivo. Nossas análises nos levam a acreditar que a sua explosão acontecerá numa das ilhas desertas ou num dos glaciares — espécie de icebergs — situados entre o extremo sul da Patagônia e a Antártida."

A presidenta Rousseau franziu a testa e retrucou imediata­mente: "Não é possível. Há poucas semanas fui a Buenos Aires, na minha primeira viagem para fora do Brasil, e assinei com a presidenta Lapena um acordo bilateral de cooperação nuclear. Em decorrência desse documento, os argentinos construirão dois equipamentos destinados à pesquisa nuclear — um para eles pró­prios, outro para nós, brasileiros. Mas o acordo proíbe expressa­mente seu uso para enriquecer urânio".

Após pequena pausa, acrescentou: "A presidenta Silvana La­pena e eu temos muito em comum no nosso passado anti-militarista. Ela não chegou a ser presa, mas um dos seus irmãos, um cunhado e um primo, todos opositores ativos da ditadura militar argentina, foram presos e até hoje estão 'desaparecidos'. Uma de suas tias faz parte ativa do grupo Madres y Avuelas de La Plaza de Mayo. Esse grupo, como sabem, reúne-se periodicamente na praça onde fica a Casa Rosada e reclama informações sobre os 'desaparecidos', ou, pelo menos, a devolução de seus corpos, para lhes darem enterro decente".

"Dada a nossa solidariedade virtual, por esses e outros pontos de união, Silvana e eu desenvolvemos uma relação imediata de simpatia e solidariedade. Ela não mentiria para mim."

Diante da perplexidade da presidenta e do ministro do Gabi­nete Civil, o general Pais de Oliveira pediu licença para esclarecer a situação: "Senhora presidenta, nós, do Emdena, não ficaremos surpresos se o desenvolvimento de energia nuclear para fazer uma bomba atômica estiver ocorrendo, na Argentina, à revelia da presidenta Lapena".

"Como assim?", reagiu Mariana Rousseau.

Flávio Sales tomou a palavra, para continuar o que a exposição do general deixara apenas implícito: "Em primeiro lugar, temos de considerar as diferenças de comportamento nas relações dos militares com o poder civil nos nossos dois países. Aqui mesmo, no Brasil, a reunião das três Forças Armadas em um só minis­tério chefiado por um civil causou muito desconforto nos nossos militares".

Fez uma pausa antes de continuar: "A aceitação da decisão pre­sidencial nesse sentido progrediu muito, nos últimos anos. Mas esse progresso não tem sido fácil. Nem está completo, consoli­dado. Ainda temos militares que, embora obedeçam ao ministro civil, não o fazem em perfeita paz de espírito".

Pais de Oliveira pediu licença e interrompeu: "Ao mesmo tempo, nos últimos trinta anos, nossos militares têm dado mos­tras de haver-se convencido de nada ter a dizer ou fazer em ques­tões políticas. Essas, reconhecemos, pertencem inteiramente à área civil".

O ministro da Defesa retomou o fio do seu pensamento: "Por experiência própria, estou 100% de acordo com as palavras do general Pais de Oliveira. Na Argentina, porém, a situação é com­pletamente diversa. Embora formalmente fora do exercício do poder, os militares de lá retêm certa dose de 'poder oculto', em paralelo, embora não ostensivamente, ao poder constitucional do presidente da República".

Pais de Oliveira continuou: "Na questão nuclear, as informa­ções que temos apontam para 2005 como o ano em que, à revelia do então presidente Hernane Kristenberg, o chefe do seu Gabi­nete Civil e o seu principal assessor político deram instruções e recursos ao ministro da Guerra argentino para criar uma insta­lação capaz de enriquecer urânio em nível de utilização militar. Os dois assessores disseram falar em nome de Kristenberg, mas isso era uma grossa mentira. O presidente argentino de nada sabia".

A presidenta Rousseau não se conteve diante de mais essa questão inesperada: "O senhor acha mesmo, general, que os ar­gentinos estão fazendo a bomba atômica à revelia da presidenta Silvana Lapena? Que razão teriam eles, primeiro, para fazer a bomba; segundo, por que sem conhecimento da presidenta?".

Flávio Sales retomou a palavra: "A primeira razão, segundo nosso informante, é simples: eles desconfiam que nós, militares brasileiros, estamos desenvolvendo a nossa própria bomba, e não querem ficar para trás. O motivo do segredo é a possibilidade de o presidente Kristenberg ter vetado a idéia. Nesse caso, a Argen­tina ficaria em posição de inferioridade em relação ao Brasil — o que, para os militares argentinos, seria intolerável".

"Por isso, nós, da Defesa, não ficaremos surpresos se a sone­gação do assunto ao conhecimento presidencial tiver persistido até a atualidade."

A presidenta Mariana Rousseau pediu licença, chamou a sua secretária particular e pediu: "Acredito que esta reunião poderá demorar. Por favor, cancele todos os compromissos que eu ainda tenha hoje".

Para o ministro e o general, perguntou: "O que gostariam que eu fizesse? Não digo que farei, mas quero ouvir as suas sugestões".

O ministro da Defesa voltou-se para o general Dias de Oli­veira: "As idéias vêm de vocês mesmos. Por isso, peço-lhe que as transmita à senhora presidenta".

O chefe do Emdena falou para Mariana: "Nossa sugestão pre­liminar é que a senhora converse pessoalmente — de preferência, a sós — com a presidenta Silvana Lapena. Com uma simples per­gunta, da maneira mais casual possível. Algo como: 'Disseram-me que vocês estão perto de concluir o processo de fazer bombas atômicas. É verdade?'. Não se surpreenda, presidenta Rousseau, se a resposta dela for negativa. Como dissemos antes, é possível que tudo ocorra sem conhecimento presidencial, como aconte­cera antes".

"Supondo que eu aceite a idéia", disse a presidenta Rousseau, "como falar com ela? Chefes de Estado raramente se falam por telefone. E como, por telefone, ser casual? Vocês já conversaram com o Itamaraty?"

O ministro falou, em continuação: "Não, senhora presidenta. Achamos que não deveríamos falar com ninguém antes de trazer o assunto ao seu conhecimento. Tememos envolver mais pessoas nesta fase da questão, com receio de possíveis vazamentos".

"Nossa proposta é simples: foi criada no Brasil a Ordem de Ti­radentes, condecoração para homenagear pessoas e instituições que se distinguirem na luta em prol da independência e da liber­dade dos povos. A Ordem tem diversos graus, mas ainda não foi concedida a ninguém. O grau mais alto é o Grande Colar, reser­vado a chefes de Estado."

"Então, o que seria feito? E quando?", perguntou a presidenta.

O general Pais de Oliveira respondeu: "O dia consagrado a Ti­radentes é o próximo 21 de abril. Daqui a duas semanas. Nossa sugestão é que a senhora presidenta baixe um decreto outorgando a Ordem de Tiradentes, em seus diferentes graus, a personali­dades brasileiras e internacionais, como o presidente da União de Nações Sul-Americanas, a Unasul, o secretário-geral da ONU, o presidente do Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. E, no grau supremo de Grande Colar, exclusivamente à presidenta Silvana Lapena. Seria a oportunidade para uma conversa a sós das duas presidentas e ocasião propícia à pergunta".

Mariana Rousseau refletiu sobre a proposta e disse: "Não sei. Vou pensar. Mas não podemos deixar o ministro das Relações Exteriores fora do assunto. Não apenas da condecoração, que darei de bom grado à minha amiga e colega Silvana Lapena e a outros condecorados. Mas, também, dessa questão que vocês me trazem. Vou chamá-lo para um despacho extraordinário, amanhã pela manhã. E peço que os senhores também compareçam".

Todos os presentes pareciam muito satisfeitos consigo, com o que haviam transmitido à presidenta. Com o fato de não ter ela rejeitado "de cara" o que lhe haviam dito.

Contudo, Mariana Rousseau deixou-os em suspenso ao acres­centar: "Supondo que aceitemos a idéia de que nossos irmãos argentinos estejam fazendo uma bomba atômica, tenho várias perguntas a fazer-lhes amanhã de manhã. Uma delas é o que nós — o governo, a diplomacia, as Forças Armadas brasileiras — de­vemos fazer se acreditarmos nessa história".

Pequena pausa, e depois: "Acima de tudo, preciso saber se os argentinos têm razão. Isto é, se nossos cientistas civis ou militares estão trabalhando para fazer uma bomba atômica".

"Voltamos a falar pela manhã", concluiu a presidenta. Le­vantou-se e todos perceberam que era hora de ir embora. A presidenta voltou-se para o ministro-chefe do Gabinete Civil e pediu-lhe que ficasse mais um pouco. Os demais saíram. Na an- tessala encontraram Schmidt e lhe pediram que os acompanhasse ao Ministério da Defesa.

Ao chegarem ao gabinete, a assessora Sônia Maria Botelho os aguardava com uma mensagem: "Reunião amanhã, às 8 horas, na chefia do Gabinete Civil da Presidência". E a recomendação: "Tragam também o coronel Schmidt".

Flávio Sales nem perguntou se havia despachos urgentes. Saíram todos ao mesmo tempo.

 

No dia seguinte, 8 horas da manhã, na sua sala do quarto andar do Palácio do Planalto, aguardava-os o ministro do Gabinete Civil, José Eduardo Figueiredo. Ao seu lado, o ministro das Relações Exteriores, embaixador Roberto de Sousa Alighieri. Após os cumprimentos, Figueiredo explicou a razão desse ho­rário: "O ministro Alighieri tem audiência às 10 horas com a pre­sidenta Mariana Rousseau para tratar do assunto que nos traz aqui. O objetivo da audiência é definir com ela, se for o caso, as ações diplomáticas a adotar, tanto no plano bilateral como em âmbito internacional".

"Ontem mesmo", continuou o ministro Figueiredo, "expliquei ao embaixador Alighieri o motivo que nos reúne: a possibilidade de uma bomba atômica argentina e como isso nos afetaria. Mas ele gostaria de ouvir o relato em primeira mão de todos os fatos e das deduções deles decorrentes. Por isso, pedi para trazerem também o coronel Schmidt."

Schmidt foi chamado à sala e apresentado a todos. Sentou-se no lugar indicado.

Pela sexta vez em poucos dias, recontou nos mínimos detalhes que julgava pertinentes a estória das duas missões secretas das quais fora incumbido pelo Emfa na província da Patagônia. Partiu da suspeita de todos os membros do Emfa de que os militares ar­gentinos estivessem em processo de fazer uma bomba atômica. Foi interrompido numerosas vezes em sua exposição por pedidos de esclarecimentos do ministro das Relações Exteriores. Alighieri queria mais informações sobre fatos, circunstâncias, deduções e seus fundamentos. Basicamente, as mesmas perguntas que Sch­midt ouvira de membros do Emfa e do ministro da Defesa sobre a confiabilidade dos interlocutores e a possibilidade de serem eles armadilhas secretas, erguidas para nelas "cair" o governo brasileiro. E, com isso, ridicularizar-nos perante o mundo por nossa eventual denúncia ou por qualquer outra posição que viéssemos a tomar.

O ministro Roberto de Sousa Alighieri questionou ainda a proposta da concessão do Grande Colar da Ordem de Tiradentes à presidenta Silvana Lapena. Não o fato em si, mas a coincidência de o Brasil ter a Medalha da Inconfidência outorgada precisa­mente no dia 21 de abril. Os que recebessem a mesma Ordem da presidenta Lapena ficariam orgulhosos. Mas os que só recebessem a Medalha da Inconfidência poderiam sentir-se humilhados. A solução, pensou Alighieri, seria dar a Ordem somente a figuras internacionais.

Por fim, o ministro das Relações Exteriores perguntou: "A presi­denta Mariana Rousseau já está sabendo de todos esses detalhes?".

O ministro Flávio Sales respondeu: "O general Pais de Oliveira, chefe do Estado-Maior da Defesa Nacional, novo nome do Emfa, responsável pelas missões do coronel Schmidt, e eu demos à pre­sidenta um relato pormenorizado da questão. Ficou para ser dis­cutido hoje o que fazer, em termos preventivos e abortivos, para deter o processo de fabricação de armas atômicas argentinas. Ou de que forma deveremos contrapor-nos a esse fato".

O chefe do Gabinete Civil olhou o relógio. Viu que passava das 9 e meia e disse: "Bem, eu pensava mesmo que precisaríamos de tempo para colocar o ministro Alighieri a par do assunto. A hora é boa, agora, para nos movimentarmos. A presidenta costuma ser pontual em seus compromissos e, provavelmente, não teremos uma longa espera".

Em silêncio — não o silêncio diplomático, mas o de perplexi­dade —, o ministro Roberto de Sousa Alighieri acompanhou os demais ao terceiro andar, onde fica o gabinete presidencial.

Logo em seguida, antes mesmo da hora marcada, a presi­denta Mariana Rousseau recebeu a todos — inclusive o coronel Schmidt. Este foi-lhe apresentado como a pessoa incumbida pelo Emfa das missões secretas, assunto que os trazia ao gabinete.

Depois de receber e retribuir os cumprimentos de todos, a presidenta olhou para o ministro José Eduardo Figueiredo e per­guntou: "Como é? Passaram tudo ao ministro Alighieri?".

Voltando-se para este, Mariana perguntou: "E você, embai­xador Alighieri, acha que está a par de todos os detalhes do as­sunto de uma possível bomba atômica argentina?".

O ministro das Relações Exteriores — que havia mantido a necessária reserva diante da gravidade dos fatos relatados por Schmidt — respondeu à presidenta: "O que nos contou o coronel só nos surpreende em parte. Especialmente, o muito que ele viu e ouviu. O enorme espaço percorrido, as inspeções feitas em tantos lugares diferentes".

E acrescentou: "Nós, do serviço diplomático — tais como os militares —, não temos provas. Mas há muito tempo temos sérias suspeitas. Nossas missões na Argentina nos reportam os rumores que escutam, as confidências, as inconfidências que correm no meio diplomático da capital lá. Mas ninguém viu nada ou tem prova de coisa alguma".

A presidenta Mariana Rousseau perguntou: "E o que você acha da sugestão do Grande Colar da Ordem de Tiradentes para a presidenta Silvana Lapena, como oportunidade para uma per­gunta informal sobre a bomba atômica? E se a resposta dela for negativa? Você admite que fatos tão graves ocorram sem conhe­cimento da presidenta?".

"Sim, sim e sim", disse Alighieri. "Respondo afirmativamente às suas três perguntas, senhora presidenta."

"Em primeiro lugar, sim, nada temos a perder, só a ganhar, com a outorga do Grande Colar da Ordem de Tiradentes à pre­sidenta argentina. Há questões menores, como a coincidência da sua outorga no próximo dia 21, quando também é concedida a Medalha da Inconfidência na cidade de Ouro Preto. Mas, nessa questão, temos uma sugestão interessante: dar a Inconfidência somente a brasileiros e a Ordem de Tiradentes só a estrangeiros de renome internacional. Se a senhora concordar, prepararemos uma lista de nomes que farão boa companhia à presidenta Sil­vana Lapena. Afasta-se também, desse modo, qualquer suspeita das razões da outorga. Encontros privados de chefes de Estado em visitas oficiais são atos de rotina na vida diplomática. Nin­guém estranhará.

"O que me leva ao segundo sim", continuou Alighieri. "O en­contro reservado será a melhor oportunidade possível para a pergunta sobre o processo de enriquecimento nuclear com fins militares. Essa pergunta deve ser feita. Também por uma questão de boa-fé no que tivermos de fazer, mais à frente, se confirmada a hipótese que vimos discutindo.

"E sim, em terceiro lugar: é bem possível, embora não muito provável, que os argentinos estejam enriquecendo urânio para construir uma bomba sem conhecimento da chefa do seu Poder Executivo. Os militares de lá não aceitam de bom grado uma chefia civil. E, sendo de fato machistas, menos ainda aceitam ser chefiados por uma mulher."

A presidenta Mariana Rousseau pensou um pouco e falou, primeiro, ao ministro Roberto de Sousa Alighieri: "Tudo bem, ministro. Vamos fazer o que sugere. Convém movimentar logo a nossa embaixada em Buenos Aires e a embaixada argentina aqui em Brasília para assegurar que a presidenta Silvana Lapena possa vir no dia 21 receber a Ordem".

Voltou-se então para o ministro da Defesa, Flávio Sales, e para o chefe do Emdena, general Pais de Oliveira, e lhes disse: "Tenho também perguntas para vocês. A primeira refere-se às ações pre­ventivas e abortivas, se confirmada a hipótese da bomba atômica argentina. Que providências seriam essas?".

Pais de Oliveira olhou em direção a Schmidt, que permane­cera em silêncio, e pediu permissão à presidenta para que o co­ronel desse a resposta.

Schmidt não hesitou: "Nós, do Emdena, estamos convictos de que a bomba experimental será levada por helicóptero de Ushuaia, no extremo sul da Patagônia, até o Canal de Drake, trecho de mar bastante estreito entre a ponta do sul do nosso con­tinente e a Antártida. Nele, Atlântico e Pacífico se unem. Existem ali várias ilhas inabitadas que servem apenas de abrigo, centro de reprodução de pingüins e refúgio de lobos do mar".

"Instalada a bomba numa ilhota ou glaciar, os engenheiros re­tornariam ao continente e, provavelmente, acionariam a sua de­tonação por controle remoto.

"A explosão de uma bomba num desses lugares não causaria vítimas humanas e poderia até mesmo passar despercebida do restante do mundo. Por isso, pensamos mandar um avião te­leguiado, invisível ao radar, levantar um mapa detalhado do Canal, para futura referência e uso eventual numa das possíveis ações abortivas.

"A segunda ação preventiva seria mandar um satélite, igual­mente teleguiado e invisível ao radar, para uma posição estacionária sobre a região do lago Nahuel Huapi, onde suspeitamos que se localiza o laboratório nuclear. A cada minuto, o satélite enviaria imagens do local ao Emdena. Um dos nossos técnicos em serviço interpretaria essas imagens para identificar algum veículo ou comboio suspeito que esteja em deslocamento a partir do laboratório rumo ao aeroporto ou às estradas que levam ao sul da Patagônia. Nesse caso, o satélite será instruído a acompanhar o veículo ou comboio suspeito, determinar a sua rota e, quiçá, o seu destino.

"Pelo plano original, quando o veículo ou comboio que estiver transportando a bomba chegar ao local escolhido, teria lugar a primeira ação abortiva, que foi posta em reserva pelos senhores generais do Emdena. Tal ação consistiria na destruição da bomba por um avião brasileiro. Assim se abortaria o experimento dos cientistas e militares desse país.

"A razão dos nossos generais consiste basicamente em que, se o bombardeio atingir o seu objetivo, ou seja, se destruir a bomba, esta sofrerá grandes pressões que podem levar à sua detonação. Isto é, a bomba atômica explodiria — por iniciativa nossa, não dos argentinos.

"O mundo poderá ficar sabendo, ou não, dessa explosão. Mas o Emdena prefere manter mãos limpas' no episódio. Contudo, se houver decisão de abortar a detonação experimental, o mapa detalhado orientará os nossos aeronautas a levar seu avião ao lugar certo."

A presidenta mostrava claros sinais de descontentamento e de­sacordo. Schmidt olhou para ela e perguntou: "Devo continuar, senhora presidenta?"

Ante um meneio afirmativo de cabeça, Schmidt retomou o fio da sua exposição: "A segunda ação abortiva seria o bombardeio do centro de desenvolvimento da bomba, à margem do lago Nahuel Huapi. Um bombardeiro nosso partiria de uma base aérea de Mato Grosso, voaria em direção ao Pacífico por sobre a Bo­lívia; no Pacífico, voaria para o sul, até um lugar apropriado à altura de Bariloche, quando, viajando para o leste, bombardearia e destruiria o laboratório de enriquecimento de urânio à margem do lago Nahuel Huapi. Tudo: prédio, instalações, material nuclear em fase de processamento".

"Com isso", concluiu Schmidt, "nós esperamos ter liquidado a capacidade da ciência e da tecnologia argentinas de fazer uma bomba atômica pelos próximos dez a quinze anos".

A presidenta Mariana voltou-se para Schmidt e disse: "Co­ronel, nós apreciamos enormemente tudo o que fez pelo Brasil. Apreciamos também, embora não tenha mencionado o assunto, os prováveis riscos pelos quais passou. Muito obrigada. O coronel merece uma recompensa".

Olhou em seguida para todos. Seu olhar era como um grande ponto de interrogação.

Ficou evidente pela sua expressão, mesmo antes de ela falar, que discordava de quase tudo, em termos de ações do governo e das Forças Armadas, na delicada questão da bomba atômica argentina.

E falou em seguida: "De tudo o que se passou aqui, cole­cionei informações da maior importância. Mas tenho algumas perguntas a fazer. E, em função das respostas a essas perguntas, tomarei as decisões adequadas. Desde logo, as de aplicação ime­diata. E em seguida, ou em outro momento, as mais profundas, incluindo as de médio ou longo prazo".

Voltando-se para Schmidt, falou: "O coronel disse que a des­truição da bomba experimental poderá resultar na detonação do seu componente nuclear. Então, preciso fazer duas perguntas: primeiramente, a destruição do laboratório à margem do lago poderá resultar, também, em explosão nuclear? E, em segundo lugar: em qualquer dos casos — ou em ambos — haveria vaza­mento radioativo?".

Schmidt respondeu: "Sim, senhora presidenta. A destruição do laboratório do lago Nahuel Huapi por uma bomba convencional, não atômica, pode desencadear a explosão do material físsil nele contido e que já esteja enriquecido em níveis altos. Nessa hipó­tese — e só nesse caso —, é mais que provável o vazamento de material radioativo".

"E as conseqüências disso?", perguntou a presidenta.

"Em toda probabilidade, a liberação de altos teores de radioa­tividade eliminará, num raio mínimo de uns dez quilômetros, todas as formas de vida ali existentes."

Nova pergunta da presidenta: "Algo parecido com os acidentes de Chernobyl, na Ucrânia, e do Césio 137, em Goiânia, aqui mesmo no Brasil?".

"Sim", respondeu Schmidt. "Igual a, maior ou menor que Cher­nobyl, dependendo de haver urânio enriquecido em estoque, do nível do enriquecimento e do volume estocado."

"Pelo que vejo, coronel, suas ações abortivas criariam um de­serto de proporções inimagináveis em um dos grandes pontos de atração turística da Argentina", disse a presidenta.

Ela continuou: "Não resta dúvida de que a radiação liberada nos dois episódios ainda tem conseqüências fatais, um quarto de século depois. Até hoje, pessoas que tiveram contato, em 1987, com um aparelho radiográfico descartado em Goiânia, contendo menos de cem miligramas de Césio 137, são portadoras de câncer e de outras doenças imputáveis à sua exposição à radioatividade liberada por essa ínfima porção".

"O caso de Chernobyl é muitas vezes pior. A explosão da usina geradora de eletricidade, movida a energia nuclear, resultou na evacuação de centenas de milhares de pessoas residentes na região. A Ucrânia era, então, parte da União Soviética, da qual se tornou independente. Mas a 'herança maldita — para usar a frase de um dos meus antecessores — continua até os nossos dias. Chernobyl ainda é considerada 'zona de exclusão'. Todas as formas de vida foram destruídas na explosão. E até hoje a entrada de pessoas na área afetada só é permitida por tempo limitadís­simo e sujeita à autorização expressa das autoridades."

Seus quatro interlocutores — o ministro-chefe do Gabi­nete Civil, o ministro da Defesa, o general-chefe do Emdena e Schmidt — estavam calados e mudos ficaram.

A presidenta Mariana Rousseau manteve-se absolutamente calma ao retomar a palavra:

"Cheguei a certas decisões em face do que eu já sabia e do que aprendi nestas nossas reuniões. Tenho refletido constantemente sobre a questão nuclear em vários dos aspectos que afetam a nós, brasileiros. Não necessariamente ao restante do mundo.

"Desde logo, as decisões fáceis. Primeiro, vamos convidar a presidenta Silvana Lapena para a cerimônia do Grande Colar da Ordem de Tiradentes. Se ela aceitar e vier ao Brasil para re­ceber a condecoração, o que espero, vou fazer-lhe, em particular, a primeira das grandes perguntas: se eles estão construindo uma bomba atômica. Mas não levantarei a hipótese de isso estar acon­tecendo à revelia dela. Essa pergunta fica para depois.

"A segunda decisão fácil é autorizar, o que faço neste mo­mento, as duas ações preventivas aqui apresentadas pelo Emdena nas pessoas de seu chefe e do coronel Schmidt.

"Contudo, não autorizo — pelo contrário, proíbo terminantemente — as duas medidas abortivas. Não destruiremos a even­tual bomba experimental dos argentinos, mesmo que venhamos a ter conhecimento com certeza do local em que a explosão ocor­rerá. Nós, brasileiros, não podemos fazer algo capaz de destruir vidas humanas ou a fauna de outros países. Do mesmo modo, e com maioria de razão, não haverá bombardeio e destruição das instalações em que eles porventura estejam enriquecendo urânio.

"Não preciso dizer que não tolerarei qualquer desobediência a essas proibições.

"Quem fizer alguma coisa diferente do que digo terá demissão sumária ou será punido administrativamente da maneira mais severa permitida pelas leis do nosso país."

A reunião parecia ter chegado ao fim. Não chegara.

A presidenta retomou a palavra. Voltou-se para os dois mi­litares. Disse a Schmidt: "Não pense, coronel, que as minhas decisões referentes à sua proposta depõem contra o senhor ou diminuem o mérito do seu trabalho. Ao contrário. Tenho a maior admiração pelo que fez. Compreendo o seu raciocínio. Mas o se­nhor deve compreender as minhas razões. Se estivesse no meu lugar, o senhor teria agido do mesmo modo".

Falou em seguida ao chefe do Emdena: "General, reconheço que os senhores devem ter, como se diz, queimado as pestanas' em torno desse assunto. As minhas decisões são fundamentadas na política e assim devem ser entendidas. Volto, porém, ao mérito do trabalho do Emdena: devemos continuar a acompanhar local­mente o assunto. O coronel Schmidt deve retornar à Argentina e retomar os trabalhos dos quais tão bem se desincumbiu. Se acon­selhável, talvez os senhores tenham outra pessoa para mandar lá".

E continuou: "Não sei se isso, de outra pessoa, será bom. Como em tudo, a questão tem duas faces: de um lado, o coronel já esta­beleceu relações e está familiarizado com o problema, as pessoas e os locais. Se os senhores decidirem reenviá-lo à Patagônia, de minha parte tudo bem. Mas, se optarem por outro oficial, então quero dispor do coronel Schmidt no Planalto. Gostei muito da sua capacidade de relatar fatos em detalhes relevantes e sua feno­menal memória".

"Agora, se me desculpam, preciso manter uma rápida reunião com os três ministros aqui presentes. Muito obrigada pelo seu belo trabalho."

Os dois militares compreenderam que deviam sair, despe­diram-se e saíram.

 

A presidenta Mariana Rousseau continuou a reunião com os três ministros — Roberto de Souza Alighieri, das Relações Exteriores, Flávio Sales, da Defesa, e José Eduardo Figueiredo, chefe do Gabinete Civil. Ela queria aprofundar o exame das im­plicações, para o Brasil, de dois fatos importantes relacionados com o que fora discutido na reunião daquela manhã.

Primeiro, as conseqüências do desastre natural e tecnológico ocorrido no Japão e as suas repercussões sociais, políticas e eco­nômicas naquele país e no resto do mundo. Segundo, o que repre­sentaria, política e militarmente, a confirmação de uma bomba atômica argentina.

E, mais, que influência esses dois fatos — independentes um do outro, mas relacionados entre si pelo enriquecimento do urânio — teriam nas posições políticas, sociais e econômicas do Brasil, tanto no plano interno quanto no internacional.

Voltou-se para o ministro das Relações Exteriores e disse: "Cheguei a pensar, embaixador Alighieri, em levantar o assunto da bomba atômica argentina junto ao governo americano. Mas, sendo eles como são — e imaginando-se a potência máxima da Terra —, a conclusão inevitável logo aflorou: se eu assim fizesse, jamais seríamos informados adequadamente dos fatos. E talvez só viéssemos a saber do seu resultado final pelos jornais".

"Em plano de atualidade", prosseguiu, "não podemos deixar de refletir sobre o efeito cumulativo do fortíssimo terremoto e do avassalador tsunami que danificaram ou destruíram várias usinas elétricas japonesas movidas a energia nuclear. Devemos pensar nas suas conseqüências adversas, sob vários pontos de vista. E como tudo isso nos afetará".

"Desde logo, os aspectos humanos: se e quando milhões de vidas voltarão à normalidade à qual estavam habituadas. De­pois, o lado social: o restabelecimento do bem-estar, da saúde, da moradia, dos empregos. O Japão terá de tomar, ainda, decisões fundamentais no campo da tecnologia: valerá a pena continuar a usar a energia nuclear para produzir eletricidade? Ou: que outras formas de energia renovável estarão disponíveis por lá?

"Quando, como e a que preço o Japão conseguirá — se jamais conseguir — restabelecer as bases de sua economia, sua indús­tria, comércio, agricultura e serviços?

"Todos lemos que, desde a primeira hora, o Tesouro japonês injetou bilhões ou trilhões na economia, com o fim de apressar a recuperação e a restauração das atividades produtivas.

"Será bastante? Será só, ou principalmente, uma questão de dinheiro?

"E a reconstrução do país? Quanto tempo levará? Como será feita? Com certeza, como aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, o ideal da reconstrução será capaz de motivar o povo japonês a recompor sua sociedade, reerguer a sua economia, re­construir sua pátria.

"Ficam, porém — e só Deus sabe por quanto tempo —, as perguntas sem resposta pronta sobre como serão controladas as usinas e quando serão aliviados os efeitos da catástrofe tecnoló­gica: a liberação de fortes ondas de radiação capazes de afetar a saúde ou mesmo de ameaçar a sobrevivência das pessoas atin­gidas por elas. Mais perguntas: quando poderão voltar a seu lar as pessoas evacuadas do raio de 30 quilômetros no entorno da usina de Fukushima? Pior que isso: poderão voltar? Ou terão de migrar para outras províncias e viver longe da sua terra e dos seus?

"Perdoem-me a longa digressão. Não paro de pensar na con­clusão dos franceses, no sentido de que uma onda radiológica, originária dos reatores japoneses, destruídos ou danificados, atingirá rapidamente a Europa. Ou a constatação, dizem outros, de que os ventos carregam a radiação para as Américas. Por isso, recomendo a vocês, ministros, que reflitam minuciosa e pro­fundamente sobre as possíveis repercussões dessa catástrofe no Brasil."

Os três ministros tinham ouvido em silêncio a fala de Ma­riana Rousseau. Embora trabalhassem com ela havia meses, ou tivessem convivido com ela quando ministra da Justiça, a con­clusão era unânime, embora silenciosa. E inevitável: "Essa mu­lher não é preposta de ninguém. Seu governo não será simples reflexo de quem a indicou e elegeu. Será dela".

A presidenta voltou-se então para o ministro da Defesa e per­guntou: "Ministro Flávio Sales, nossas Forças Armadas estão de alguma forma, direta ou indiretamente, envolvidas em pro­gramas de enriquecimento nuclear capazes de atingir níveis pró­prios para uso militar?".

E acrescentou: "Por favor, uma resposta simples e direta: sim, ou não, ou não sei".

Sales hesitou. Respondeu: "Não sei. O assunto nunca foi tra­tado nos meus contatos com os comandantes das três Forças. Não temos verbas específicas para esse fim. Mas vou convocá-los ao meu gabinete e exigir respostas sinceras e rápidas".

A presidenta retrucou: "Você tem uma semana para uma res­posta final, conclusiva. Entenda, porém, e transmita aos coman­dantes em chefe, que a minha decisão inabalável é no sentido de que o enriquecimento de urânio, no Brasil, passa a ter como li­mite absoluto, a partir de hoje, o nível adequado ao seu uso pací­fico. Isto é, em termos atuais, 20%".

Voltando-se para o embaixador, ela falou: "Peço ao Itamaraty que examine o nosso status perante a Agência Internacional de Energia Atômica".

"Do mesmo modo que a Argentina, nós não permitimos a en­trada de seus fiscais em território nacional. O que, entre outros resultados adversos, alimenta a suspeita de que procuramos sim­plesmente esconder atividades não permitidas pelo Tratado de Não Proliferação e/ou pelos protocolos adicionais, destinados a prevenir o advento de bombas atômicas.

"Ministro", continuou a presidenta, "bem sei que mantemos uma posição esdrúxula: os argentinos dizem que só assinarão tais tratados e protocolos se assinarmos também. O Brasil dizia que só assinaríamos depois que a Argentina os assinasse".

"A partir deste momento, a situação muda. Desejo ver a as­sinatura brasileira nesses papéis, tão logo o ministro da Defesa tenha a resposta definitiva para a minha pergunta. Independen­temente do que fizer ou não fizer a Argentina. No dia 21, na reu­nião face a face com a presidenta Silvana Lapena, vou avisá-la da nossa posição."

A presidenta Mariana Rousseau dirigiu-se então ao chefe do Gabinete Civil: "Sua tarefa, ministro José Eduardo Figueiredo, é complexa mas não secreta, como as duas outras. Você deverá reunir-se hoje, ou no mais tardar amanhã, com os ministros de Ciência e Tecnologia, de Minas e Energia, do Meio Ambiente e do Desenvolvimento e Comércio Exterior. Com este objetivo: determinar estudos urgentes sobre dois aspectos da questão de energia".

"Primeiro, sobre o modelo' a adotar capaz de suprir o país de eletricidade suficiente para garantir a continuidade do nosso de­senvolvimento. Isto é, se continuaremos a executar o nosso pro­grama de construir novas centrais elétricas movidas a energia nuclear, como está previsto. Ou se vamos dar maior ênfase às hi­drelétricas. Ou voltar-nos em grande escala para usinas eólicas e as acionadas por outras fontes renováveis, não poluentes.

"E, segundo: manter, reduzir ou cancelar o programa de enri­quecimento de urânio a 20%, para uso doméstico e exportação.

"Na perspectiva doméstica, nossa decisão terá de basear-se nos pareceres técnicos dos ministérios com cujos titulares você conversará. De qualquer modo, o novo 'perfil' do suprimento de eletricidade no Brasil levará em consideração o limite físico da disponibilidade de sítios adequados à construção de hidrelé­tricas, respeitado o equilíbrio ambiental. Os problemas ocorridos no Japão nos remetem ao estudo da conveniência e da viabili­dade de criar estímulos e incentivos fiscais a outras fontes não poluentes de energia.

"Na perspectiva internacional, como você sabe, alguns países falam em modificar os planos de expansão das suas redes de ge­ração de energia. Fugir do urânio e adotar outros combustíveis. Ninguém pode dizer se essas perspectivas resultarão em posições definitivas. Se valerão somente enquanto as imagens estão diante de nós, ou se serão para sempre.

"Por todos esses motivos", concluiu a presidenta, "não espero de vocês, nos próximos dias, posições ou recomendações defini­tivas. Mas, sim, desejo que o assunto seja estudado de hora em hora, enquanto nossos possíveis clientes tomam suas decisões. E longe do noticiário alarmante do acontecido no Japão, do sofri­mento do seu povo, etc.".

"Decerto, porém, não podemos 'dormir no ponto'. Se houver mesmo redução drástica dos programas de eletricidade gerada a partir de energia nuclear, teremos de resolver o que fazer com as instalações de Resende. Se o assunto esfriar', e espero que isso aconteça, o mercado estará aí para quem tiver urânio à venda."

Mariana encerrou a reunião. Os ministros se despediram e saíram do gabinete presidencial.

Levavam a cabeça "cheia" de preocupações e da certeza da co­brança cotidiana, pela própria presidenta, do que ela mandara fazer.

Antes de todos seguirem para seu gabinete, o ministro das Relações Exteriores, embaixador Roberto de Souza Alighieri, ex­pressou em palavras o que cada um pensava: "Parece que a presi­denta Mariana mudou o foco das nossas preocupações. Do ponto de vista geográfico, da Argentina para o Japão. E, do ponto de vista estratégico, a capacitação dos nossos amigos e vizinhos para fazer uma bomba atômica cede espaço à nossa posição política e internacional diante da questão do enriquecimento e dos usos do urânio enriquecido".

Dito isso, cada ministro seguiu para o seu lado.

Por acaso, ou por simples coincidência de raciocínio, os gene­rais do Emdena pensavam ao longo das mesmas linhas.

 

De volta ao Emdena, o general Fernando Pais de Oliveira chamou à sua sala o vice-chefe e os subchefes para a pri­meira reunião do Estado-Maior da Defesa Nacional, depois do decreto presidencial que mudara a designação e sigla Emfa. "Emdena, droga de nome, difícil de pronunciar", ele pensou.

"Não só o nome e a sua subordinação", continuou a pensar, "mas também as suas funções." Como Emdena, o órgão deixava de ser principal na assessoria do presidente da República para assuntos referentes à defesa nacional. E passava a trabalhar para o ministro da Defesa, em concorrência virtual — talvez frontal — com os três comandantes-em-chefe.

Sentados todos em torno da mesa de reuniões, o general Pais de Oliveira falou aos demais dirigentes do Emdena em pala­vras que mal escondiam a sua amargura: "Meus caros amigos e companheiros de luta, almirantes Fakhoury e Chagas Ro­drigues, general Contini e brigadeiro Florença: nestes últimos dias, tive reuniões seguidas não só com o ministro da Defesa, o ex-senador Flávio Sales, mas também com a presidenta Ma­riana Rousseau e os ministros do Gabinete Civil e das Relações Exteriores".

"O nosso coronel Schmidt foi chamado a uma dessas reuniões para relatar à presidenta as missões que realizou na Patagônia. Ela ficou profundamente impressionada com a narração dele, com a minúcia do trabalho por ele executado e com as conclusões a que chegara. Aceitou o fato de nós, do velho e querido Emfa, termos concordado com a confirmação da suspeita de que os hermanos argentinos estariam a ponto de completar o processo de enrique­cimento de urânio e de, em conseqüência, explodir a sua primeira bomba atômica."

O Vicemfa e os subchefes pareciam satisfeitos com a reação da presidenta. Mas compartilhavam da decepção do general-chefe do Estado-Maior com seu "rebaixamento" de assessores diretos da Presidência da República para apenas parte do Ministério da Defesa.

Pais de Oliveira falou: "A presidenta disse que o coronel Sch­midt merecia uma recompensa por seu desempenho na missão. Ela acha que Schmidt deve retornar à Patagônia e retomar a missão tão bem executada. Mas que — se nós resolvêssemos que a missão do Schmidt estava concluída — ela gostaria de tê-lo no Planalto para funções que não especificou".

"O mais importante, porém, é que, antes de nos dispensar, a presidenta aprovou as ações preventivas que havíamos proposto. Mas negou peremptoriamente — aliás, proibiu expressamente — as ações abortivas, como a destruição da primeira bomba a ser detonada em experiência e o bombardeio das instalações do lago Nahuel Huapi, uma vez que, em ambos os casos, a nossa iniciativa poderia resultar em explosões atômicas e destruição de vidas. Ela acha que o Brasil não pode nem deve fazer nada que leve a tais resultados.

"A presidenta concordou, ainda, em outorgar o Grande Colar da Ordem de Tiradentes, agora, no dia 21 de abril, à presidenta argentina Silvana Lapena. O Itamaraty vai entrar em contato com o governo argentino, pelos habituais canais diplomáticos."

Em seguida: "Lendo nas entrelinhas das palavras da presidenta Rousseau, uma hipótese inesperada me veio à mente. Passei a imaginar que o pensamento da chefa do governo teria mudado de foco. Ela não me pareceu tão preocupada com uma possível bomba atômica argentina. Mas, em face da tragédia japonesa, sua atenção predominante parece ter-se voltado para os danos à eco­nomia e às diversas formas de vida, causados por um acidental vazamento de uma das nossas usinas elétricas movidas a energia nuclear".

"Acredito", continuou o chefe do Emdena, "que a Aeronáutica já deve estar informada da aprovação presidencial das medidas preventivas sugeridas. E, em poucos dias, elas estarão em curso. Precisamos ver se temos — ou, se não tivermos, devemos requi­sitá-los — meios e pessoas capazes de interpretar as imagens que nos serão enviadas pelo satélite invisível estacionado sobre as instalações nucleares à margem do lago Nahuel Huapi.

"Apesar da queda de prioridade da questão da bomba, nossa ta­refa é a mesma: reconfirmar nossas informações e conclusões sobre o enriquecimento de urânio, para fins militares, na Argentina. Por isso, penso, devemos reenviar o coronel Schmidt à Patagônia para checar os fatos relatados e as hipóteses deles decorrentes."

Todos concordaram. O chefe do Emdena mandou chamar o coronel Schmidt. E, quando este chegou à sala, o general Pais de Oliveira lhe disse: "Nós, do Emdena, estamos muito orgulhosos do seu trabalho, coronel Schmidt, e subscrevemos tudo o que a presidenta Mariana Rousseau disse a esse respeito. Parabéns". Todos os generais bateram palmas.

Schmidt agradeceu e disse: "Estou pronto a fazer o que for ne­cessário: aqui, na sede do Emdena, no Palácio do Planalto ou na continuidade da missão na Patagônia". Na verdade, como militar de carreira, não lhe restava nenhuma outra opção.

Pais de Oliveira retomou a palavra: "Nós todos, aqui no Emdena, achamos que sua missão já produziu as informações que nos interessavam e dão sólida base à nossa convicção da cons­trução de uma bomba atômica pelos nossos colegas argentinos. Contudo, a prudência recomenda que você volte à Patagônia, por alguns dias, só para verificar se tudo continua na mesma. Desse modo, habilitaremos a nossa presidenta a conversar com a sua colega argentina no dia 21, no encontro que terão a sós antes da cerimônia do Grande Colar".

Schmidt perguntou simplesmente: "Quando devo viajar? E quando regressar?".

O general-chefe do Emdena tinha tudo pronto na cabeça e respondeu logo: "Fica inteiramente por sua conta a escolha dos dias para ir e voltar. Você retoma a personalidade do professor aposentado Antônio Gomes. E, com certeza, precisamos de seu relatório final antes do dia 15, pois teremos de passar as informa­ções à presidenta Rousseau o mais cedo possível. Isso vai permitir que ela se prepare com a antecedência necessária para a conversa reservada com a presidenta Silvana Lapena no dia 21".

"Ok", respondeu Schmidt. "Viajo amanhã, sem bagagem, a Foz do Iguaçu. Atravesso a fronteira de táxi para Puerto Iguazu, onde coleto a mala que deixei num depósito do aeroporto. De Puerto Iguazu sigo para Bariloche em voo doméstico."

À noite, em casa, Schmidt transmitiu a Mercedes e aos filhos os detalhes convenientes — omitindo a natureza da missão e os lugares em que se realizaria — e os highlights de sua conversa com a presidenta Mariana Rousseau. Repetiu com orgulho as palavras elogiosas. Em especial, as referentes a ele "merecer uma recom­pensa", cuja natureza ela não deixara explícita. Promoção? Con­decoração?

Em seguida, Schmidt disse a Mercedes: "Não se surpreenda, querida, se não pudermos sair de Brasília, como tantas vezes imaginamos. A presidenta disse que, se eu não tiver de dar con­tinuidade à missão da qual acabo de regressar, gostaria que eu fosse trabalhar no Planalto. Fazendo o quê? Ela não disse, nem eu imagino".

Por fim, a bomba: "De fato, vou viajar amanhã mesmo para o que considero a parte final da missão, que deverá durar não mais que uma semana ou dez dias".

Fiel à tradição de família de militares, Mercedes entendia que nada tinha a dizer. Mas os "meninos", quase rapazes, detestaram a idéia de mais alguns dias sem o pai por perto. Entretanto, já aceitavam que de nada adiantava falar ou protestar. O pai teria de ir — sabe Deus para onde — e cumprir a missão. "Vida de militar é isso", pensou um deles.

Schmidt fez a viagem, conforme planejara, com a identidade de Antônio Gomes. Recolheu sua mala no aeroporto de Puerto Iguazu e seguiu para Bariloche. Como pagara a tarifa do hotel residencial Los Pampas por trinta dias, e se ausentara por uma semana, no máximo, seu apartamento estava disponível, arru­mado e limpo. Abriu a mala, arrumou a roupa nos armários e foi "dar uma olhada" na área de estar. Tudo igual. Basicamente, as mesmas senhoras, fazendo o mesmo: televisão, jornais, revistas, joguinhos de cartas, "conversa fiada". Uma ou outra cara nova. Ou cuja presença ele não notara nas vezes anteriores.

Todos os dias, nos fins de tarde, conversas no balcão do bar. Lá estavam alguns dos cientistas que lhe haviam sido apresentados por Fernando Gutierrez. Mas, assim como notara a ausência de sua mulher, Leyla de Gutierrez, na área de estar, era evidente que Fernando não estava ali para o habitual uísque de fim de tarde.

"Pergunto por ele?", pensou Antônio. "Diante do que ele me disse, seria prudente levantar o fato de sua ausência? Afinal, ele pode estar simplesmente em férias ou ausente por qualquer outro motivo temporário." Nada perguntou. Tomou seu uísque e compartilhou das conversas de sempre com os demais convivas. Pensou em sair, mas resolveu jantar sozinho no restaurante do hotel. Era uma boa oportunidade para refletir.

Todo esse tempo, entretanto, Antônio procurava manter a vi­gilância possível sobre o laboratório do lago Nahuel Huapi. De fato, a prudência o aconselhava a observar de perto os cientistas e ouvir as suas palavras, em busca da confirmação dos indícios levantados nas diferentes viagens e conversas que formaram a essência da missão anterior. Salvo pela ausência de Fernando Gu­tierrez, tudo parecia continuar na mesma.

Nada aparecia como novidade. Sobretudo, nada que pudesse levar a conclusões diferentes daquelas às quais chegara na fase anterior da sua missão.

Na manhã do terceiro dia, quando todos os homens haviam saído para trabalhar, Antônio não resistiu à curiosidade. Foi à mesa do chefe da portaria e perguntou: "Você poderia ligar para o apartamento do professor Fernando Gutierrez? Ele é meu amigo. Estive fora uma semana e gostaria de revê-lo".

O chefe da portaria, Luiz Molina — como se podia ler na eti­queta colada à sua roupa —, respondeu sem hesitar: "Ele não está mais aqui. Voltou para Buenos Aires há alguns dias. Por acaso o senhor é o professor Antônio Gómez?".

Surpreso, Antônio confirmou a sua identidade.

Então Molina disse: "Ah! O professor Gutierrez deixou comigo um envelope em seu nome, para entregar-lhe quando voltasse da viagem a Puerto Iguazu. Se não me engano, como disse o pro­fessor, para encontrar-se com seus sobrinhos na tríplice fronteira".

Antônio não cabia em si. Recebeu e abriu o envelope. Dentro, um simples cartão com os nomes de Fernando e Leyla Gutierrez, seu endereço e telefone em Buenos Aires. Nenhuma mensagem.

Mas esta ficava implícita: "Ligue para mim quando quiser".

Dúvidas e perplexidade enchiam a cabeça de Antônio. Evi­dentemente, Gutierrez queria conversar. Mas Antônio achava que a possibilidade de "grampos" secretos seria enorme. Não de­veria confiar nas linhas telefônicas do hotel nem nos telefones públicos da cidade. E, mesmo usando seus meios próprios de comunicação, não seria prudente falar da área do hotel ou em suas proximidades. Lembrou-se dos mil e um lugares ermos, livres de interferência, que identificara na missão anterior. Escolheu um, de memória, e foi para lá.

Chegando ao ponto escolhido, ligou para o número indicado no cartão. O chamado foi atendido por Leyla. Palavras amáveis de lado a lado.

Ela disse: "Com certeza, você quer falar com Fernando". E passou o telefone a Gutierrez.

"Olá, como vai?", para um lado e para o outro. Gutierrez falou: "Pena que nós não estávamos aí para recebê-lo. Se você vier a Buenos Aires nos próximos dias, jantaremos juntos. Os restau­rantes daqui são muito melhores que os daí; a comida e os vinhos, mais finos e variados na capital do que na província".

Era um claro chamado. Antônio respondeu: "Sim. Acabo de voltar do meu encontro com os sobrinhos na tríplice fronteira, aonde fui por ter perdido uma aposta de futebol. Agora, meu so­brinho Duda [pura invenção] quer fazer outra aposta ainda mais ambiciosa. No final do campeonato, que se aproxima, haverá um jogo decisivo do clube do qual ele é torcedor fanático — o Corinthians — com o meu, o Flamengo. Quem perder, paga uma viagem de todos nós a Montevidéu, Buenos Aires, Santiago e res­pectivas praias e montanhas".

"Muito interessante", disse Gutierrez. "Por que você não vem aqui e nós lhe mostraremos tudo o que há para ver na cidade?"

Antônio compreendeu o que ficava implícito na frase de Gu­tierrez. E respondeu, simplesmente: "Sim. Quando voltar para o Brasil, vou via Buenos Aires".

Do mesmo lugar em que se encontrava e como mandam as regras, ele enviou ao Emdena um relatório da conversa, do que pensava a respeito e de sua disposição de viajar a Buenos Aires para falar com Fernando Gutierrez, a não ser que o Emdena fosse contrário à idéia. Por fim, renovou a informação de que nada mudara na sua percepção do laboratório nuclear de Bariloche.

No fim da mesma tarde, Antônio reencontrou no balcão do bar os vários colegas de trabalho que Fernando Gutierrez lhe havia apresentado. Todos com ar particularmente alegre, como se tivessem algo a comemorar. Um uísque para lá, outro para cá e, com um pouco de imprudência, Antônio dirigiu-se a um deles: "Vocês parecem muito felizes. Só está faltando aqui o mestre Gu­tierrez. Por onde anda ele?".

Silêncio geral. Então um deles, o professor Ernesto Goldenberg, falou: "Você não sabe? O Fernando é um bonaerense nostál­gico e invencível na sua nostalgia da cidade que ama. Não gostava muito do trabalho que fazia aqui. Voltou para lá, vai retomar a sua cadeira de professor de energia nuclear na Universidade Nacional de Buenos Aires".

Para Antônio, a frase-chave foi "não gostava muito do tra­balho que fazia aqui". Tudo certo, conforme Gutierrez lhe havia dito. Tudo esclarecido. "Adeus", pensou.

E mandou seu relatório ao Emdena.

Segundo Antônio, Gutierrez havia deixado o laboratório e precisava de um "ombro amigo" para tudo dizer. Mas a surpresa seria muito maior do que ele jamais esperaria.

 

No dia seguinte, Antônio recebeu a confirmação do Emdena de que deveria viajar a Buenos Aires para encontrar-se com Fernando Gutierrez e ver se ele tinha algo novo a contar. Arrumou as coisas na mala e fechou a conta do hotel. Na sua cabeça, a missão havia chegado ao fim: a alegria dos cientistas da margem do lago, no dia anterior, era em comemoração ao êxito no trabalho de enriquecimento de urânio. "Agora", pensou, "é só fazer a bomba propriamente dita". Já estava sendo feita.

Antônio se "manda" para o aeroporto de Bariloche. Antes do meio-dia, toma o primeiro vôo doméstico para a capital ar­gentina. Do aeroporto, faz reserva para três noites no Alvear, o mesmo hotel no qual se hospedara da vez anterior. Apartamento confortável, de boa arquitetura, acomodações amplas, espaço para trabalhar ou nada fazer.

Lá chegando, sua primeira preocupação é localizar a residência de Gutierrez. Consulta rápida ao guia de Buenos Aires, e vê que o endereço dado — Calle Posadas — está situado no bairro da Recoleta, com belas residências — algumas bem antigas, outras com ar de "casa velha" precisando de reforma —, bom comércio varejista, renomados restaurantes.

"Acho que o Fernando vai me trazer por aqui mesmo", pensou Antônio. Engano.

Buenos Aires é extremamente simpática. Plana, boas calçadas, muitas lojas, urbanização agradável, nenhuma favela à mostra. Convida o visitante a circular a pé. Até os seus cemitérios — em geral situados no meio de bairros de quando a cidade era menor — valem uma visita sem outro objetivo além de apreciar o panorama.

De um telefone público, bem longe do hotel, Antônio telefona a Gutierrez: "Estou na cidade, no Hotel Alvear. Quando você e a Leyla quiserem, podemos sair".

"Que tal hoje à noite?", responde Gutierrez. "Podemos jantar num dos bons restaurantes de Puerto Madero, onde você terá a melhor carne argentina e os bons vinhos de Mendoza. Se estiver de acordo, passo no hotel pelas 8 horas e nos mandamos para lá. Não preciso fazer reserva, pois na foz do Rio de La Plata há quatro ou cinco ótimas opções."

Antônio concordou no ato. Mas ficou um pouco nervoso com a antecipação do que Gutierrez poderia dizer-lhe ou não. Saiu a passeio pelo bairro de Palermo.

Às 8 horas, Fernando e Leyla param o carro na porta do hotel. Gutierrez desce um momento, avista Antônio, que o esperava no grande hall do hotel, e o chama. Abraços. Palavras gentis. Boa-noite a Leyla.

"Andei lendo no guia sobre Puerto Madero", disse Antônio. "A opção parece boa. As referências a Puerto Madero são as mais entusiásticas. Como vamos escolher entre tantos restaurantes citados no guia? Eu gostaria também, se for seguro, de passear pelas margens do rio da Prata e olhar para a água, coisa que a gente pouco via em Bariloche."

A menção a Bariloche levou Gutierrez a fazer, com o dedo in­dicador nos lábios, um gesto de silêncio. E, apontando para todos os lados, sinalizou seu próprio ouvido. Antônio pensou entender: "Vai ver, ele está chamando a minha atenção para a possibilidade de escuta clandestina, mesmo dentro do carro. O que terá acon­tecido?"

Daí em diante, os assuntos foram o futebol, os sobrinhos de Antônio, o retorno à casa — herança da família — na qual Fer­nando e Leyla haviam vivido desde o seu casamento. Sua frus­tração por não terem filhos, e por aí afora.

De repente, param à porta de um restaurante. Pela aparência, parece bom. Mas não há sinal de rio da Prata por perto. Antes que Antônio faça perguntas, Gutierrez sinaliza silêncio.

Saíram do carro, pediram e obtiveram mesa.

"Para variar", ambos pediram um uísque com gelo, sem clube soda. A cara de Antônio era um silencioso ponto de interrogação. Gutierrez falou em tom baixo, inaudível nas mesas vizinhas: "Desculpe, Antônio, por toda a encenação. Mas tenho razões para suspeitar que a minha casa, meus telefones e até o meu carro estejam grampeados'. Aparentemente, os poderes de fato não se conformam com as razões da minha saída de Bariloche".

Antônio sinalizou que entendera. Gutierrez continuou: "Como eu havia dito a você, minha consciência se opunha ao enriqueci­mento de urânio para fins militares — quando a ciência aponta tantos caminhos para o uso de suas radiações com finalidades positivas, no campo da medicina curativa e da preventiva. Um dia, eu disse o que pensava ao diretor do laboratório do lago Nahuel Huapi, doutor Ernesto Larreta — que era, de fato, o coronel Ernesto Larreta. E disse que eu decidira deixar o laboratório e voltar ao meu trabalho habitual de professor da Universidade Nacional de Buenos Aires".

"Que é que você disse ao diretor?", perguntou Antônio.

"Disse-lhe que não poderia continuar a colaborar na execução de um programa que levaria a um único fim: a construção de armas de destruição em massa."

"Ele aceitou as suas razões de consciência?"

"Não", respondeu Gutierrez. "Larreta tentou me convencer a ficar. Continuou dizendo: 'Nós estamos na fase final do pro­grama. Se tudo der certo, aí pelo mês de junho, quando o clima do extremo sul do nosso continente se tornar adequadamente inóspito, estaremos prontos para a primeira experiência concreta. Você, que tanto trabalhou até aqui e nos deu valiosíssima contri­buição técnica, não poderia ficar ausente das nossas comemo­rações. Além do mais, você está por dentro dos nossos segredos mais importantes e seu afastamento implicaria um fator de risco que preferiríamos não correr'. Fiquei firme. Insisti em que meu destino era voltar para o cargo de professor na Universidade."

"Porém", continuou Gutierrez, "sinto que, mesmo na Univer­sidade, passei a ser persona non grata. Não sei o que falaram a meu respeito, mas sou olhado com certa desconfiança por alguns dirigentes da Escola de Engenharia. Tenho a impressão de ser se­guido aonde vá. Por isso mesmo, usei o pouco que sei em matéria de despistamento para evitar a espionagem em Puerto Madero. Não sei se estamos de fato sozinhos neste restaurante."

Antônio não sabia o que dizer. Só pensava: "Mais uma confir­mação do que fazem por lá. E até uma data-alvo para a primeira detonação. Não admira que Gutierrez esteja sendo vigiado pelos militares empenhados em fazer uma bomba atômica".

Contudo, pensou um pouco e decidiu arriscar mais uma per­gunta. E, com o ar mais casual possível (não conseguiu grande coisa nesse aspecto), disse: "Pelo pouco que sei, o potencial de armas atômicas se expressa em quilotons — isto é, milhares de toneladas de TNT — ou, mesmo, em megatons — milhões de toneladas. Como é isso em Bariloche?"

Gutierrez hesitou só por um momento. Reconheceu que já havia ido bem longe e pouco restava de segredo. Agora, a única opção era "ir em frente", contar tudo: "O potencial de uma arma nuclear depende de vários fatores. A quantidade de urânio enri­quecido é uma delas. Mas, se a experiência for conduzida com metodologia apropriada, o volume de átomos de U235 e a po­tência do detonador que desencadeia a fissão nuclear são os itens decisivos".

"Numa primeira bomba — a qual tem, sempre, objetivo di­dático e experimental e serve, principalmente, para descartar os erros e descobrir os caminhos certos —a potência é sempre baixa: alguns quilotons. Que eu saiba, só a Rússia e os Estados Unidos conseguiram fazer bombas com potência de megatons. Jamais experimentadas na prática, mas capazes de destruir todas as formas de vida, por exemplo, no continente europeu. Ou no asiático."

Nada mais havia a perguntar. A primeira bomba argentina era "experimental" e, portanto, relativamente falando, de baixa po­tência: alguns quilotons. Milhares de toneladas de TNT.

Desse ponto em diante, certo de que havia dito tudo o que sabia, Fernando Gutierrez passou a falar dos muitos anos felizes de sua vida com Leyla. De seu desejo de visitar o Brasil, algum dia. Em especial, para ver o carnaval do Rio de Janeiro.

Antônio, de sua parte, nada mais tinha a perguntar. Pensava só no que dizer aos seus chefes. E na perspectiva das revelações de Gutierrez, nas decisões que tomaria a esse respeito a presidenta brasileira Mariana Rousseau.

Uma última pergunta brincava no tobogã em que se transfor­mara a cabeça de Antônio: "Será que a bomba atômica argentina está sendo feita com o conhecimento e a autorização da presidenta Silvana Lapena?" E, dúvida cruel, perguntar ou não perguntar?

Não resistiu mais. Perguntou: "Você acha, Fernando, que os trabalhos do lago Nahuel Huapi são do conhecimento da sua pre­sidenta? Têm a aprovação dela? Ou são clandestinos?".

Gutierrez pensou um pouco e respondeu: "Não sei. Esse as­sunto nunca foi tratado entre professores e técnicos. Presumimos sempre que sim. Seria a coisa mais natural". Não era.

Antônio só pensava em regressar ao Brasil. Não poderia viajar diretamente para Brasília, desse modo despertando ou agravando suspeitas. Mas resolveu: a primeira coisa, ao chegar ao hotel, seria enviar um relatório ao general Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emdena. E, a segunda, pedir autorização para voltar no pri­meiro voo a São Paulo ou ao Rio e, daí, a Brasília.

Fez as duas coisas. E logo recebeu resposta afirmativa do Emdena.

Na manhã seguinte, no aeroporto de Ezeiza, pegou um avião da TAM para o Rio. Com chegada em Brasília no fim da tarde, mas ainda antes do encerramento do expediente nos órgãos do governo.

 

No Aeroporto de Brasília, Antônio retoma sua personalidade de coronel Antônio Schmidt de Oliveira e telefona para o Estado-Maior da Defesa Nacional. Conforme as instruções que lhe passam, segue diretamente para o gabinete do general Fer­nando Pais de Oliveira, chefe do Emdena. Pelo iPad, avisa Mer­cedes do retorno e que, provavelmente, irá jantar com a família.

No gabinete, o general Pais de Oliveira o aguardava, sentado à mesa de reuniões com o vice-chefe do Emdena, almirante Fakhoury, e os subchefes, almirante Chagas Rodrigues, general Contíni e brigadeiro Florença.

Embora em trajes civis, Schmidt perfilou-se, identificou-se e saudou a todos. O general Pais de Oliveira mandou que também se sentasse à mesa — o que Schmidt fez imediatamente — e re­latasse as minúcias dos fatos recentes, embora todos tivessem conhecimento deles pelas mensagens enviadas da Argentina via iPad. Schmidt cumpriu a ordem. E repetiu, palavra por palavra, o que relatara em inúmeras comunicações ao Emdena.

O brigadeiro Florença foi o primeiro a falar: "O que suspei­távamos acabou por se confirmar. Então, precisamos ver com o comando da Aeronáutica se já está tudo pronto para as medidas preventivas autorizadas pela presidenta da República". Assentimento geral.

O chefe do Emdena transformou em palavras o que estava na mente de cada um dos membros do Estado-Maior: "Bem. Passou a ser urgentíssimo transmitirmos essas informações e a confir­mação de nossas suspeitas à senhora presidenta Rousseau. Nos velhos tempos, eu não teria dúvidas: passava a mão num telefone e pedia uma audiência urgente. Agora, ficou mais complicado e burocratizado. Temos de ir via ministro da Defesa".

Chamou o ajudante de ordens, capitão Antunes, e pediu-lhe que fizesse o necessário para que ele, general Pais de Oliveira, falasse com o ministro Flávio Sales. Vários minutos depois de passar por duas ou três pessoas — civis, naturalmente — o mi­nistro vem ao telefone.

O chefe do Emdena diz: "Conforme foi acertado em nossa reunião no Planalto, o coronel Schmidt retomou a missão e tudo parece confirmado. Temos até data provável para a primeira ex­periência. Precisamos passar tudo à presidenta Mariana Rous­seau. Afinal, já estamos no dia 14 de abril e a reunião dela com a presidenta Silvana Lapena será no dia 21".

Como político, Flávio Sales estava habituado a circunlóquios, meias verdades e linguagem emblemática. Mas as palavras do ge­neral o haviam deixado pleno de dúvidas. "Que será, mesmo, que ele quer dizer? Aonde quer chegar?", pensou. E, na dúvida sobre o alcance real do que lhe dissera o chefe do Emdena, retrucou: "Muito bem, general, antes de falarmos à presidenta, gostaria que tivéssemos uma reunião, no meu gabinete, com vocês todos, in­clusive o Schmidt, juntamente com os três comandantes em chefe".

Por boa medida, acrescentou: "Meu gabinete organizará os en­contros, entrará em contato com os comandantes e avisará o seu gabinete da data e hora da reunião".

"Muito obrigado", retrucou Pais de Oliveira. "Lembro, porém, a urgência da nossa reunião. E, com sua licença, sugiro que seu gabinete articule nova audiência nossa com a presidenta Rous­seau, juntamente com os ministros do Gabinete Civil e das Rela­ções Exteriores, como aconteceu da última vez em que discutimos essa matéria."

Ao contrário do ministro, seu gabinete percebeu que se tratava de algo de real importância. Após numerosos telefonemas, a reu­nião do ministro Flávio Sales com o chefe, vice-chefe e subchefes do Emdena, mais os comandantes em chefe, ficou marcada para as 9 da manhã do dia seguinte no gabinete ministerial, na Espla­nada dos Ministérios.

E, para as 2 da tarde do mesmo dia, marcou-se audiência da presidenta Mariana Rousseau com os três ministros. Ficou no ar a dúvida: "Levamos, ou não levamos, o Schmidt a essas reuniões?".

Por fim, resolveu-se pelo lado mais fácil: Schmidt iria com os chefes do Emdena, mas ficaria do lado de fora, para o caso de ser chamado a passar adiante suas informações.

Fim de tarde, fim de expediente, cada um vai para sua casa. Antônio é recebido com beijos e abraços, como de costume, por Mercedes e pelos filhos João Lucas e Alexandre. Informa que considera encerrada a fase de missões secretas. Todos se animam e resolvem sair para comer uma pizza e tomar um chope (refrige­rante para os "meninos"), comemorando a reintegração do mis­sionário à sua família.

Manhã seguinte. Nova caminhada dos chefes do Emdena ao prédio da Esplanada onde fica o gabinete do ministro da Defesa. Este os recebe pontualmente. Pergunta: "Cadê o coronel Sch­midt?". Olha para o general e pergunta: "Não seria melhor ou­virmos o testemunho pessoal de tudo o que ele viu e observou?".

Pela primeira vez, o general Pais de Oliveira hesitou, pensando: "Que diabo! Esse cara não nos considera capazes de reproduzir o que o Schmidt nos relatou?" Mas ministro é ministro e subordi­nação é subordinação. Mandou chamar Schmidt, que, mais uma vez, ficara sentado na antessala do gabinete ministerial.

De uniforme, Schmidt fez a continência de praxe e apresentou-se ao ministro na mais estrita forma regulamentar. O ministro mandou que se sentasse à mesa e relatasse em detalhes o que teria para dizer da última, mas não necessariamente derradeira, fase da sua missão.

Schmidt não hesitou: "Senhor ministro, como informei aos senhores chefes do Emdena aqui presentes, tudo em Bariloche continua como antes. O laboratório à margem do lago Nahuel Huapi permanece ativo, com igual rotina. A primeira novidade que notei foi a ausência do professor Fernando Gutierrez; ele, como os senhores sabem, me havia revelado o que se fazia na­quele laboratório. Confirmei que Gutierrez pedira demissão do laboratório — em termos que não me pareciam os mais alvissa­reiros — e regressara à Universidade Nacional de Buenos Aires, na qual é catedrático de engenharia nuclear".

"Havia uma segunda surpresa. Gutierrez deixara um enve­lope em meu nome, com um cartão de visitas seu. Nada escrito. Apenas impressos, nome e endereço na capital argentina. Para mim, era como um recado do tipo: 'Gostaria de conversar com você'. Minha interpretação provaria estar certa.

"E uma terceira surpresa: algo parecido com uma comemo­ração dos técnicos e cientistas que trabalham no laboratório. Imaginei que eles celebravam a conclusão, com sucesso, do pro­cesso de enriquecimento de urânio para uso militar, isto é, fazer a bomba atômica.

"Naquele momento, minha conclusão era apenas um pressen­timento', mero 'palpite'. Depois obtive confirmação de tudo, con­forme relatarei a seguir."

Flávio Sales, o ministro da Defesa, mostrava certo ar de en­fado. Pensou: "A história é velha. Ou, como se diz no Nordeste, 'hipóteses na orla de conjeturas'. Nada de concreto".

Schmidt percebeu a queda de interesse do ministro por sua exposição. E "mandou ver".

"O fato importante foi o meu novo contato pessoal com Gu­tierrez. Autorizado pelo Emdena, fui a Buenos Aires e Gutierrez me contou tudo". Relatou então aos presentes os detalhes do pe­dido de afastamento de Gutierrez e suas razões: "não desejava participar de um programa conducente à destruição de vidas em massa". E a vontade por ele manifestada de voltar a ensinar os possíveis usos pacíficos e médicos do urânio em baixo grau de enriquecimento.

Falou do sentimento de quase rejeição experimentado por Gutierrez na sua velha Escola de Engenharia da Universidade, pela qual se formara e onde lecionava havia vários anos.

"Gutierrez reafirmou perante o doutor Ernesto Larreta", continuou Schmidt, "a sua decisão de voltar de imediato para a Universidade. Larreta, disse-me Gutierrez, era de fato coronel-engenheiro do Exército argentino, incumbido, pelo Ministério da Guerra, de chefiar os trabalhos de alto enriquecimento de urânio para uso estritamente militar".

Por fim, o "susto": "Como último argumento para tentar 'se­gurá-lo' no laboratório", continuou Schmidt, ainda conforme as palavras de Gutierrez, "Larreta lhe dissera que o programa se achava próximo do fim. E que a primeira parcela de urânio al­tamente enriquecido estaria pronta para ser detonada em junho, no extremo sul da Patagônia".

"Nessa época, ainda nas palavras de Larreta transmitidas por Gutierrez, o clima estará especialmente antagônico para quais­quer pessoas de fora. Isso, na minha opinião, confirma a razão da euforia dos cientistas e documenta as informações que recolhi."

Silêncio geral. Interrompido, afinal, pelo ministro Flávio Sales: "Tudo o que nos conta o coronel Schmidt corrobora as conclu­sões a que haviam chegado os chefes do Emdena. Entretanto, nada temos de concreto, palpável, capaz de comprovar que os mi­litares argentinos se encontrem de fato empenhados no programa de fazer uma bomba atômica. Relembro as muitas vezes em que nós mesmos levantamos o grande ponto de interrogação: 'Para que os argentinos querem uma bomba? Para usar contra quem?'. Afinal, bombas atômicas são armas ofensivas. Podem ser dissuasivas de agressão. Mas não são armas defensivas".

"Como qualquer observador atestará, nosso continente vive em paz. Apesar das diferenças encontradas na situação interna de cada um — em termos de ideologia oficial e do vigor dos conceitos de liberdade, igualdade e democracia e seus eventuais reflexos na estima recíproca e no respeito mútuo —, ninguém pensa em guerras ou conquistas territoriais."

Na verdade, o raciocínio do ministro da Defesa refletia a ojeriza dos "políticos profissionais" à obrigação dos membros do Poder Executivo de tomar decisões que afetariam milhares ou milhões de vidas. Em sua longa vida política, Flávio Sales aceitara ser governador do seu Estado por apenas um mandato. Depois, negara-se a concorrer à reeleição.

Seus correligionários não se cansaram de apontar que, se­gundo as ridículas normas eleitorais brasileiras, ele não precisaria deixar o cargo para candidatar-se à reeleição com apoio de toda a máquina estadual. Mas teria de renunciar ao governo do Estado se quisesse candidatar-se à Câmara ou ao Senado. Candidatou-se a senador, venceu a eleição e exerceu o mandato por oito anos. Candidatou-se a novo mandato, mas não se reelegeu na eleição seguinte. Derrotado, mas membro do partido de apoio ao go­verno, ganhou um ministério.

Seu modo de pensar e de agir era creditado aos seus avós e bisavós, oriundos de Minas Gerais. Em situações tidas como "difíceis", ele procurava obter o "mínimo de consenso", a melhor "solução de compromisso" e ir, sempre, pelo "caminho do meio", longe das posições radicais dos membros dos partidos baseados em "programas" e "ideologias".

Depois de longo silêncio e ponderação, o ministro Flávio Sales voltou-se para os militares em torno da mesa e perguntou: "O que os senhores acham que devemos fazer? Qual deve ser a nossa recomendação à presidenta da República?". Parou, retomou a pa­lavra: "Nada do que o coronel Schmidt nos disse e os generais do Emdena endossaram permite afirmar que os militares argentinos estão concretamente fazendo uma bomba".

"Desse modo", concluiu, "peço aos senhores as suas recomen­dações como estrategistas e comandantes da mais alta patente que são".

O general Pais de Oliveira, chefe do Estado-Maior, sentiu-se pessoalmente desafiado. E respondeu: "Sim. O senhor ministro tem razão. Mas só em parte. Nós recomendamos, e a senhora presidenta Rousseau autorizou, duas providências preventivas a cargo da Aeronáutica, que serão extremamente úteis para com­provar a verdade do que pensamos.

A primeira é o levantamento de um mapa detalhado do mar entre o extremo sul do continente e a Antártida. A segunda é ter um satélite teleguiado e invisível estacionário sobre o laboratório no qual, suspeitamos, está sendo processado o enriquecimento de urânio para utilização com finalidade militar. O satélite, lembro, deve ser capaz de deslocar-se conforme instruções que receba".

Voltou-se para o tenente-brigadeiro Aluísio Miranda da Rocha e perguntou: "O brigadeiro poderia nos informar em que ponto estão as medidas preventivas aprovadas pela presidenta Mariana Rousseau, o mapa e o satélite?".

A resposta do comandante em chefe da Aeronáutica foi ime­diata: "A questão do mapa é extremamente simples. Um avião invisível ao radar já se encontra na base aérea de Porto Alegre. Sua tripulação tem conhecimento completo do que deve fazer. A missão pode começar dentro de uma hora seguinte ao recebi­mento da ordem, a ser dada, naturalmente, pelo senhor ministro".

"A segunda tarefa — só para lembrar — é um satélite teleguiado, igualmente invisível ao radar, equipado para enviar imagens lo­cais ou panorâmicas. O satélite deve ser capaz de permanecer estacionário sobre determinado ponto ou deslocar-se para qual­quer lugar, segundo as coordenadas que lhe forem dadas. Mais, ainda, deve ser capaz de executar as nossas instruções e seguir a rota de um comboio, veículo ou avião. Não preciso dizer que a tarefa é extremamente complexa, como os senhores podem ima­ginar. Mas aí entra o fator coincidência felicíssima."

Para aguçar a curiosidade de todos, o brigadeiro fez uma pausa e continuou: "Está marcada para o dia 14 de maio, isto é, de hoje a quatro semanas, no Centro de Lançamento de Alcântara, no litoral do Estado do Maranhão, a partida de um veículo espacial carregando um satélite capacitado a executar todas essas tarefas e outras mais".

"A missão original do satélite, conforme acordo assinado há três anos entre o antigo Ministério da Aeronáutica e os ministé­rios do Meio Ambiente e Ciência e Tecnologia, já era múltipla. Inicialmente, limitava-se a supervisionar a conservação e docu­mentar as agressões às nossas florestas naturais — na Amazônia e por todo o território nacional. Estendeu-se, depois, a informa­ções sobre a vida e a contaminação do pantanal de Mato Grosso, o nível dos rios e represas e suas alterações. Em seguida, passou a fazer mapas, levantamentos e previsões — ventos, pressão atmos­férica, temperaturas, chuvas, tempestades e demais fenômenos e condições que influem no clima das diferentes regiões brasileiras.

"Como os senhores bem podem imaginar, a construção desse satélite, com tantas funções e versatilidade de atuação, consumiu os três anos desde o acordo dos Ministérios.

"Esse objetivo foi ampliado novamente em seu aspecto geográ­fico: os governos do Peru e da Bolívia nos pediram — e o governo brasileiro concordou — que os levantamentos se estendessem aos Andes e à costa do Pacífico, onde se originam os principais fenô­menos de clima, temperatura e fertilidade do solo desses países.

"Tudo isso pode ser mudado — ou, pelo que ouço aqui, várias dessas tarefas e vários desses objetivos podem ser simplesmente adiados — por decisão do nosso governo, com a participação dos Ministérios das Relações Exteriores, Meio Ambiente e Ciência e Tecnologia. De qualquer modo, se a presença do nosso satélite for observada sobre os Andes, esse fato poderá ser levado à conta do pedido de serviços dos dois governos amigos."

O ministro da Defesa perguntou, então: "Brigadeiro, o senhor nos disse que podemos manter sob vigilância não detectável o la­boratório de Bariloche, onde, imaginamos, está sendo desenvol­vida a bomba atômica argentina. E, também, seguir um eventual transporte da bomba até o local da sua explosão; podemos ainda captar imagens da explosão e mandá-las ao seu comando e/ou ao Emdena. Estou certo?".

"Sim", respondeu o comandante em chefe da Aeronáutica.

Schmidt, que havia permanecido em silêncio até aquele mo­mento, pediu licença para falar. E entrou com uma pergunta potencialmente embaraçosa: "Nós estamos imaginando — com boa base, mas sem prova — que a explosão se dará numa ilhota desabitada ou num glaciar do mar que separa da Antártida o que os argentinos chamam "Fin del Mundo". Teremos imagens da eventual explosão que deve ocorrer sem perda de vidas hu­manas. Mas não teremos nenhum elemento identificador da natureza da bomba ou do local em que se deu a detonação. Que devemos fazer?".

O almirante Francisco Mirador, comandante em chefe da Marinha, tomou a palavra: "Aí entramos nós. Como todos aqui sabem, os meses de junho a setembro são terríveis na Antártida, do ponto de vista do clima e da iluminação solar. Frio insupor­tável e dias curtíssimos, ou mesmo noite permanente, impedem o trabalho dos cientistas da nossa base Comandante Ferraz, si­tuada ao sul do paralelo 60. Assim, pelo fim de maio, um navio nosso — não um vaso de guerra, mas um navio de transporte, dotado de helicóptero — segue para a Antártida, aproxima-se da base e, via helicóptero, traz nossos cientistas ao navio".

"Nós podemos aguardar a confirmação da explosão da bomba até 30 de junho, no máximo. Nosso navio estará por perto e, um dia depois da detonação, receberá os nossos cientistas. A radiação conseqüente à explosão certamente contaminará o mar em torno da ilhota ou do glaciar — se algo sobrar deles. Como se trata de águas internacionais — a junção do Atlântico e do Pacífico — e não de mar territorial, navegaremos livremente até lá, a fim de recolher amostras da água do mar para análise e comprovação".

O comandante em chefe do Exército nada havia dito até então. Mas falou para apoiar o que disseram os seus colegas da Aero­náutica e da Marinha.

Aparentemente, nada mais havia a fazer.

O ministro da Defesa lembrou a todos o despacho que teriam à tarde com a presidenta da República. E convidou os coman­dantes em chefe — cuja participação não estava prevista original­mente — a comparecer também no gabinete presidencial.

 

Minutos antes da hora, ministros e comandantes chegam ao gabinete da Presidência da República, no terceiro andar do Palácio do Planalto. A assessora que os recebe na antessala in­forma ao ministro da Defesa que a presidenta Mariana Rousseau concordara com o seu pedido de participação dos comandantes em chefe na audiência. A presidenta, disse ela, "queria ouvir dos comandantes em que pé se achavam as providências para exe­cutar as medidas preventivas aprovadas na reunião anterior".

Às 14 horas entram todos no gabinete: o ministro da Defesa, Flávio Sales, o do Gabinete Civil, José Eduardo Figueiredo, o das Relações Exteriores, Roberto de Sousa Alighieri, e os três co­mandantes em chefe, almirante Francisco Mirador, da Marinha, general João Carlos Matias, do Exército, e brigadeiro Aluísio Miranda da Rocha, da Aeronáutica, além do general Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emdena.

O coronel Schmidt, como de hábito, ficara do lado de fora. Mas a presidenta Mariana Rousseau perguntou por ele e mandou-o entrar. Sentaram-se todos ao longo das duas "asas" da mesa de reuniões do gabinete; a presidenta na cabeceira, os ministros na "asa" à direita da presidenta e os militares na "asa" à sua esquerda.

Pelo espaço entre as duas "asas" circula o serviçal com o cafe­zinho de praxe. Quando ele recolhe as xícaras, começa a reunião.

"Muito bem, senhores ministros e comandantes: quais os fatos novos de hoje?"

O ministro da Defesa pede licença à presidenta para que o ge­neral Pais de Oliveira fale inicialmente. Ela concorda e o chefe do Emdena diz: "Conforme a sua autorização e as suas instru­ções, senhora presidenta, o coronel Schmidt voltou à Argentina e obteve novas confirmações daquilo que sempre suspeitamos: sob orientação de militares desse país, o laboratório das proximidades de Bariloche está, de fato, na fase final do processo de enriquecimento de urânio, com o objetivo de fazer uma bomba atômica".

"O coronel Schmidt conseguiu, também, a informação de que a detonação dessa primeira bomba está prevista para acontecer em junho, isto é, daqui a seis ou oito semanas. A região escolhida para a detonação, como havíamos previsto, seria a Passagem de Drake, o mar que separa a Antártida do extremo sul do conti­nente. Nesse espaço se unem os oceanos Atlântico e Pacífico. A Aeronáutica tem tudo pronto para fazer o mapa detalhado dessa região, o que foi a primeira das medidas preventivas aprovadas pela senhora".

A presidenta perguntou: "E no laboratório de Bariloche, o que está acontecendo? Terão eles mais bombas a ponto de ser detonadas?". E continuou, sem interrupção: "Tenho mais duas perguntas: primeira, nós dispomos de instrumentos capazes de comprovar, acima de qualquer dúvida, a explosão dessa bomba e sua natureza atômica? Segunda, temos meios de executar satisfatoriamente a segunda tarefa preventiva, da qual falamos?".

"Isto é", prosseguiu a presidenta, "temos capacidade, em material e pessoal habilitado, para manter-nos informados da continuidade dos trabalhos em Bariloche e, se for o caso, acompanhar o desloca­mento da bomba, da saída do laboratório ao ponto da detonação?"

O ministro da Defesa respondeu: "Os comandantes-em-chefe da Marinha, almirante Francisco Mirador, e da Aeronáutica, bri­gadeiro Aluísio Miranda da Rocha, aqui presentes, já têm devida­mente planejadas as duas ações preventivas aprovadas".

"Com a sua permissão, passo a palavra ao brigadeiro Miranda da Rocha. Ele lhe dirá que a Aeronáutica está com tudo pronto. Em questão de minutos, poderá dar a partida ao levantamento do mapa detalhado da região em que, imaginamos, ocorrerá a ex­plosão. Em seguida, o almirante Mirador explicará o mecanismo de documentação da natureza nuclear da bomba, se ela for explo­dida naquela região ou em lugares que possamos alcançar."

Mirador e Miranda da Rocha "venderam seu peixe". A presi­denta pareceu convencida da boa articulação do planejamento das Forças. Voltou-se para Flávio Sales: "Até aqui, tudo bem. Mas como saberemos da execução do plano de detonar a bomba?".

O ministro da Defesa passou de novo a palavra ao coman­dante em chefe da Aeronáutica, que repetiu todas as minúcias do planejamento necessário para, em duas ou três semanas, colocar em órbita um satélite, invisível ao radar, mas apto a desempenhar várias missões. As previstas no acordo original da Aeronáutica com os ministérios do Meio Ambiente e de Ciência e Tecnologia, mais o acréscimo de área geográfica solicitado pelos dois países vizinhos, Peru e Bolívia, e mais a nova tarefa.

Enfatizou (com pequeno sorriso de orgulho) a capacidade da Aeronáutica de equipar um satélite com todos os meios neces­sários a levantar dados táticos e estratégicos e, mesmo assim, re­ceber, à ultima hora, novas incumbências de execução ainda mais complexa.

A presidenta Mariana Rousseau tinha outras perguntas, que fez diretamente a Schmidt.

"Primeiramente, coronel, o senhor sabe, presume, ou admite, que os trabalhos do laboratório de Bariloche estejam sendo feitos à revelia da presidenta argentina?"

"Essa é fácil", pensou Schmidt. Disse: "Fiz essa pergunta ao professor Gutierrez, que, como a senhora presidenta sabe, é uma das nossas principais fontes de informação. Sua resposta foi, sim­plesmente, não sei'. Na opinião dele, ninguém, no laboratório, imaginaria uma operação de tal vulto — e suas complexas implicações e conseqüências políticas e militares — sem autorização presidencial explícita".

"A segunda pergunta, coronel", continuou a presidenta, "é: como especialista em energia nuclear, quantas bombas o senhor acha que estarão em processo de fabricação naquele laboratório?"

"Essa ninguém fez até agora", pensou Schmidt.

Ele não sabia. Nem lhe havia ocorrido perguntar aos seus in­formantes, professor Gutierrez e general Magallanes. Só cabia, no caso, uma resposta honesta. E Schmidt a deu: "Não sei, senhora presidenta. Nem creio que as pessoas sentadas em torno desta mesa possam ter uma resposta precisa e objetiva à sua pergunta. Mas, se me permite, podemos raciocinar juntos".

"O enriquecimento de urânio, em qualquer nível, é operação cara, demorada, de alta complexidade. As tentativas são sujeitas a altos e baixos, erros e consertos. Livros e revistas não permitem afirmar com certeza, mas deixam entrever que essa operação é executada unidade por unidade. E, penso eu, as bombas atômicas devem ser construídas uma a uma.

"Por quê?", continuou Schmidt em voz clara.

Ele mesmo respondeu: "Essa conduta será mais lógica e mais segura. Toma-se um caminho, corrigem-se os erros identificados e refazem-se os procedimentos a partir do ponto de erro. Quando se chega à etapa final, a primeira bomba está teoricamente pronta. Testado com sucesso, o processo que permitiu o êxito das tenta­tivas passa a ser uma espécie de 'figurino'. Modelo a ser seguido, daí em diante, bomba por bomba".

Voltou-se para a presidenta, olhou para os presentes, um a um, e concluiu: "Com toda a humildade, peço à senhora presi­denta, aos senhores ministros e generais aqui presentes, que me entendam: não estou fazendo afirmações. Mas simplesmente de­senvolvendo em voz alta um raciocínio que me parece lógico".

"Penso que não teria cabimento tentar fazer ao mesmo tempo, digamos, meia dúzia de bombas. E, ao descobrir-se um erro de processo, recomeçar tudo, desde o primeiro passo, em cada um dos 'xis' processos em andamento. É melhor aprender fazendo e errando, errando e consertando, consertando e aprendendo, até chegar ao processo correto. Daí em diante continua o aprendi­zado cotidiano e o aperfeiçoamento do modelo dia após dia.

"E, em seguida", concluiu Schmidt, "fazer mais uma bomba. E outra. E outra".

Silêncio geral. Quebrado pela presidenta, que disse: "Chegamos à hora de tomar decisões. Decidir com base nos dados ao nosso dispor. Bem sei que, em quase todos os aspectos desta questão, só temos indícios, suspeitas e deduções. Mas vamos em frente".

Olhou para o ministro da Defesa e, em seguida, para os co­mandantes em chefe.

"Senhor ministro, senhores comandantes. Autorizo ação ime­diata quanto às duas medidas preventivas aqui expostas. Reco­mendo, porém, que o lançamento do foguete portador do satélite seja feito sem publicidade alguma. Mas não autorizo as medidas abortivas'. Essas só poderão ser levadas adiante com o meu consentimento expresso, caso a caso."

"O Gabinete Civil", continuou, "informará o Ministério do Meio Ambiente de que a Aeronáutica prevê um atraso de algumas semanas no lançamento do satélite climatológico".

Voltou-se para Alighieri e disse: "Talvez o Itamaraty precise dizer alguma coisa aos governos do Peru e da Bolívia quanto ao adiamento das pesquisas que serão feitas pelo satélite a pedido desses governos, a partir do Pacífico e dos Andes. Embora o nosso acordo com esses países justifique a presença de um gadget brasileiro na área".

Todos pensaram que a reunião terminaria neste ponto. Não terminara.

A presidenta encarou o ministro da Defesa e os comandantes em chefe e lhes perguntou, olho no olho: "Desejo saber, aqui e agora, se algum órgão, departamento ou serviço das nossas Forças Armadas está enriquecendo urânio, em qualquer grau e para quaisquer fins".

Os comandantes responderam, um a um, com firmes nega­tivas.

A presidenta então disse: "Na reunião passada, com os três ministros e o chefe do Emdena aqui presentes, eu proibi expres­samente que as nossas Forças Armadas se ocupem de energia nu­clear, em qualquer grau e para quaisquer finalidades".

E continuou: "O que vou dizer agora ainda é confidencial e assim deve ser mantido por alguns dias. O Itamaraty está em tratativas com a Agência Internacional de Energia Atômica — a AIEA — para que o Brasil venha a assinar o 'Protocolo Adicional' ao 'Tratado de Não Proliferação'. Tal assinatura pressupõe a de­cisão de não fazer armas nucleares".

"A partir daí", continuou, "os agentes da AIEA poderão visitar e inspecionar todas — repito, todas — as nossas instalações de pesquisa e desenvolvimento de energia nuclear. E, obviamente, não quero ser surpreendida com a descoberta de procedimentos clandestinos".

O ministro das Relações Exteriores, embaixador Roberto de Souza Alighieri, falou então: "Em nota enviada nesta manhã à se­nhora presidenta, informamos que nosso contato foi muitíssimo bem recebido pela AIEA. Como sabe, Mohamed El-Baradei já não está no comando dessa agência da ONU. Mas o novo diretor-geral da AIEA — o cientista holandês Heinrich van Rotterdam — aplaude com entusiasmo a posição brasileira e desejaria vir a Brasília para dar a máxima solenidade ao ato de nossa adesão ao Protocolo Adicional".

A presidenta agradeceu ao embaixador Alighieri. Despediu- -se de todos e foi particularmente gentil com Schmidt. Todos se levantaram para sair.

Ela pediu ao chefe do Gabinete Civil e ao ministro das Rela­ções Exteriores que permanecessem para uma segunda reunião. Ostensivamente, "sobre outros assuntos". De fato, porém, a nova reunião daria continuidade à que se encerrava.

Mariana Rousseau desejava informações sobre a reação da presidenta argentina Silvana Lapena à outorga do Grande Colar da Ordem de Tiradentes. Alighieri voltou a mencionar as notas envidas pelo Itamaraty ao Planalto naquela manhã.

E continuou: "A presidenta argentina ficou extremamente or­gulhosa do prêmio. Pretende chegar a Brasília na noite de 20 de abril. Segue diretamente da base aérea para a Embaixada do seu país e dispensa as cerimônias diplomáticas da acolhida de chefes de Estado".

"Sugere café da manhã no Alvorada ou no Planalto, restrito às duas presidentas.

"Esse será o momento apropriado para a pergunta que a se­nhora lhe fará."

Mariana Rousseau concordou. Olhou interrogativamente para Alighieri.

"A cerimônia da outorga da Ordem de Tiradentes", continuou o ministro, "está marcada para as 10 horas no auditório do Palácio do Planalto. Além da presidenta Lapena, a senhora aprovou os nomes do secretário-geral da ONU, do secretário-geral da OEA, da secretária de Estado americana e do ministro da Educação do Chile. Conforme o regulamento da Ordem, eles receberão o grau de grã-cruz depois da outorga do Grande Colar".

"Somente a senhora presidenta Mariana Rousseau falará — antes ou depois da outorga, como preferir. Combinei com o Ga­binete Civil que deveria ser uma fala de dez a quinze minutos em torno do tema da Independência defendido por Tiradentes.

"Para surpresa nossa, a presidenta Silvana Lapena gostaria de ir a Belo Horizonte no nosso avião presidencial e, daí, ainda com a senhora, ir a Ouro Preto. Não para participar da cerimônia da Medalha da Inconfidência, mas pelo desejo de conhecer as ci­dades coloniais brasileiras. Ela fará esse percurso acompanhada apenas do guia que já selecionamos no Itamaraty. Depois, vai re­gressar de carro a Belo Horizonte, onde estará o avião presiden­cial argentino para levá-la de volta a Buenos Aires."

"Muito bem", disse a presidenta. "Já estou trabalhando no meu discurso. Vou falar depois das condecorações. Receio que durará mais de quinze minutos."

Fim de papo. Todos se despedem. Mariana volta à cansativa rotina presidencial.

 

À espera do dia 21, as horas passaram correndo. Cada membro da equipe empenhada no assunto da bomba atômica conti­nuou a fazer a sua parte. Sem novas reuniões ou discussões: todos sabiam o que deles se esperava. De repente, ministros e coman­dantes se deram conta: chegara a noite do dia 20. A Base Aérea comunicou ao Planalto a chegada da presidenta argentina Silvana Lapena. Os demais agraciados com a Ordem de Tiradentes já es­tavam em Brasília, hospedados em hotéis ou em suas embaixadas.

Manhã do dia 21. Encontro a sós das duas presidentas para o café da manhã. Discutem os assuntos "pautados" pelos respectivos ministérios das Relações Exteriores. Vencida essa etapa, começam a "bater papo". Ou, como diria Lapena, a manter "conversa de mu­lher": modas, perfumes, tendências, bisbilhotices e tal.

Nesse clima, Mariana Rousseau diz, sorrindo, à colega argen­tina: "Escute, Silvana, anda por aí um mexerico, do tipo Wikileaks amador, segundo o qual militares argentinos estariam desenvol­vendo uma bomba atômica em algum ponto da Patagônia".

Sorri novamente e continua: "Será verdade? Se verdadeiro, vocês estarão anos e quilômetros à frente dos nossos técnicos e cientistas especializados em energia nuclear".

A presidenta Silvana Lapena não esconde a sua surpresa: "Deve ser mexerico mesmo, e de baixo nível. Os argentinos querem energia nuclear, sim, mas para desenvolver nossos sistemas de geração de eletricidade. Fins militares? Não. Nós desejamos paz duradoura e construtiva com nossos vizinhos e com o restante do mundo. Não queremos guerra".

Depois de curto silêncio, Silvana diz: "Contudo, você sabe, nossos militares inclinam-se a fazer coisas em segredo. Mas uma pesquisa como essa, da bomba atômica, exigiria no mínimo muito dinheiro e expressa autorização presidencial, o que não ocorreu".

No íntimo, a presidenta Silvana Lapena refletia: "Como é pre­cário o controle civil das Forças Armadas na Argentina! Está chegando a hora em que teremos de decidir: desejamos uma so­ciedade civil e democrática ou nos conformaremos em deixar o poder real nas mãos dos militares? Poder de facto, por baixo da mesa, ou ditadura ostensiva?".

Pela enésima vez, desde que a brasileira levantara o assunto, a presidenta argentina se perguntava: "Pra que diabos nós preci­samos de uma bomba atômica?"

Com tais palavras ditas para si mesma, Silvana não percebia estar repetindo a pergunta feita mil e uma vezes por todos os bra­sileiros que haviam tomado conhecimento da possibilidade de um artefato argentino de guerra nuclear. E continuou a pensar: "Por que empregar os escassos recursos do nosso Tesouro numa pesquisa, na melhor hipótese, inútil para o bem-estar do nosso povo, quando temos tanta necessidade de dinheiro para promover a saúde, a educação, a vida de dezenas de milhões de pessoas?".

Após longo silêncio, ela disse: "Vou investigar e digo tudo a você.

A presidenta brasileira sorriu: "Vai ver, é fofoca mesmo, como dizemos aqui".

"Passando a coisas sérias nessa questão de energia nuclear", continuou a presidenta Mariana Rousseau, "queria dizer a você, antes de comunicar o fato ao resto do mundo, que o Brasil vai assinar o Protocolo Adicional ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, o que, entre outros resultados, permitirá que os agentes da AIEA inspecionem todas as nossas instalações de pesquisa e desenvolvimento nuclear. Aqui só temos laboratórios civis. Como o pessoal da AIEA poderá verificar a qualquer hora".

A tensão despertada pelo assunto durou pouco tempo. Logo, as duas presidentas voltaram a conversar informalmente sobre interesses bilaterais. Comércio dos dois países. Turismo. As cata­ratas do Iguaçu. As discussões sem-fim sobre projetos comuns, juntamente com o Paraguai, para fazer da tríplice fronteira mais que um roteiro de compras e muito mais que um antro de con­trabando e pirataria. Falaram também das enormes vantagens que os viajantes brasileiros estavam encontrando, sob a forma de preços baixos, nas lojas da Argentina.

Alguns minutos antes das 10 horas, o ministro brasileiro das Relações Exteriores, Roberto de Souza Alighieri, bateu à porta da sala do café. E, acompanhado do seu colega argentino Miguel de La Puerta, chamou as duas presidentas para a cerimônia da Ordem de Tiradentes.

Os demais agraciados já se encontravam no auditório do andar térreo do Palácio do Planalto, sentados nas primeiras filas de ca­deiras. Na mesa diretora, o vice-presidente da República, Ulisses da Cunha Lima, e os presidentes da Câmara dos Deputados, Luiz Manuel do Porto, do Senado, Miguel Fagundes Mendes, e do Supremo Tribunal Federal, José Almeida Cunha. Todos conver­savam entre si, num raro encontro desse nível.

As duas presidentas foram recebidas com aplausos. Entre os agraciados havia um lugar especial para a presidenta Silvana La­pena. A presidenta brasileira assumiu a posição central da mesa diretora. Alighieri foi à tribuna situada à direita da mesa e abriu a sessão. Disse qual era o seu propósito e que passaria a chamar os condecorados pelo nome.

A presidenta Mariana Rousseau impôs o Grande Colar à pre­sidenta Silvana Lapena.

Após esse ato, Alighieri chamou cada um dos quatro outros agraciados e indicou, ao mesmo tempo, a autoridade brasileira que lhes entregaria a respectiva grã-cruz.

Correu tudo da melhor forma, ao gosto do Itamaraty. Cumpri­mentos, abraços, beijos.

Quando todos estavam de volta ao seu lugar, Alighieri anun­ciou o único discurso da cerimônia. A presidenta Mariana des­locou-se da mesa para a tribuna e começou a falar.

Saudou nominalmente as autoridades brasileiras e os agra­ciados. Disse tudo o que precisava dizer — em vários minutos — sobre as razões pelas quais cada um havia sido escolhido para a primeira outorga da Ordem de Tiradentes. Citou o fato de Tiradentes ser conhecido por todos os brasileiros, desde o banco da escola primária, como o "Protomártir da Independência".

Vencidos os detalhes protocolares, pegou o texto datilografado em letras garrafais — cada frase, uma linha — e começou a ler a parte do seu discurso dirigida mais aos estrangeiros:

 

Estávamos no fim do século XVIII. Tal como acontecia na França, na mesma época, o ideal da independência da então colônia portuguesa penetrava no coração e na mente dos brasileiros. Um dos seus principais líderes era Joaquim José da Silva Xavier, conhecido como o "Tiradentes". Preso e condenado pelos tribunais submissos à Coroa portuguesa, Tiradentes foi executado em 1792.

O motivo que hoje nos reúne aqui — e, à tarde, na vetusta cidade de Ouro Preto — é, basicamente, o princípio da independência. Não como ideal abs­trato, realizado em termos formais de rompimento da sujeição de uma nação colonizada a outra dominadora, metropolitana. Mas como idéia concreta, ilustrada pelo acontecido no que denominamos a "Inconfidência Mineira": a traição, por poucos, do ideal de muitos.

Desde então — e, hoje, mais que antes — defendemos sem hesitação e sem trégua o princípio da igualdade de todos os povos e nações.

Para nós, brasileiros, o conceito de independência abrange a realização de outras conquistas. No plano externo, é uma via de duas mãos: nós queremos nossa independência respeitada. Mas temos de respeitar a dos demais países.

Rejeitamos a idéia de guerra. Todas as formas de guerra, suas armas e seus objetivos. Sobretudo, as guerras de conquista, nas quais um país, ou um povo, nega a independência de outro país ou outro povo e procura incorporá-lo, conquistar suas terras, dominar sua gente, fazer esquecer sua história e formatar seu futuro.

No plano interno, o conceito de independência é irmão gêmeo de outro, igualmente importante: o da liberdade. Bem pessoal, inalienável, intransferível. Ir e vir, fazer o que quiser. Não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer, exceto por meio de lei.

A idéia de lei, por sua vez, é inseparável da vigência de um sistema político democrático. Não só na teoria, no papel. Mas, sobretudo, na prática de todos os dias.

Com eleições livres e limpas, isentas do poder do dinheiro. Votos não sub­missos a lideranças espúrias. Segundo regras e leis votadas por um Legislativo também legítimo, fruto do voto popular direto, livre de imposições ou constran­gimentos.

Dentro do marco da independência, Tiradentes visava também a atingir outros objetivos. Livre do domínio da metrópole, cuidar do bem-estar dos cida­dãos, do seu desenvolvimento social; do aproveitamento racional dos bens da terra e do produto do trabalho das pessoas; chegar ao máximo do seu potencial econômico.

Não seriam essas, provavelmente, as palavras de Tiradentes e seus companheiros de ideal. Mas tudo isso, e muito mais, estava subjacente em sua cons­piração.

 

Mariana fez uma pausa, olhou para os agraciados um a um e retomou seu texto:

 

É nesse espírito que desejo declarar, com a maior sinceridade possível, que nossa política externa tem como parâmetro a colaboração leal e igualitária entre as nações. Com o objetivo de paz e a renúncia unilateral e convicta a políticas e princípios que não se coadunem com os defendidos no plano mundial pela Organização das Nações Unidas e no plano continental pela Organização dos Estados Americanos.

 

Aplausos gerais. A presidenta fez uma pausa em prol da sole­nidade com que iria dizer:

 

Hoje, de modo coerente com os princípios defendidos por Tiradentes e seus companheiros, desejo anunciar, perante esta ilustríssima platéia, que o Brasil vai assinar o Protocolo Adicional ao Tratado de Não Proliferação de Armas Atômicas.

Desse modo, renunciamos, de direito e de fato, à construção de bombas atômicas e de outros instrumentos e meios que possam servir à feitura e ao uso de armas de destruição em massa. Não queremos guerras químicas, guerras bioló­gicas ou quaisquer outras formas de guerra, sejam quais forem os armamentos nelas empregados.

Nós queremos paz. E que a Paz de Nosso Senhor desça sobre cada um de nós.

 

Quando os longos aplausos cessaram, os duzentos convidados — ministros e diplomatas, brasileiros e estrangeiros — correram a abraçá-la. Nada mais havia a dizer.

Do Palácio do Planalto ao aeroporto, rumo a Belo Horizonte, havia uma escala para a continuação da viagem de helicóptero a Ouro Preto. E a visita da presidenta argentina às cidades coloniais daquela região. Suas ruas, casas, igrejas, esculturas. O chamado "barroco brasileiro".

Enquanto almoçavam no avião presidencial brasileiro, Silvana Lapena disse a Mariana Rousseau: "Fiquei encantada com o seu discurso. E, sobretudo, com o que me pareceu a aprovação unâ­nime dos brasileiros ali presentes ao que você quer fazer. Nós não podemos ficar atrás. Não por espírito de imitação, mas por acre­ditar sinceramente em tudo o que você disse. Nós vamos fazer o mesmo. Também não queremos guerra. Nem armas de des­truição em massa. Queremos paz. E vamos consegui-la".

Em Ouro Preto, a cerimônia da Medalha da Inconfidência correu estritamente de acordo com o protocolo. Mais de quarenta pessoas receberam a comenda com orgulho e satisfação.

A conselheira do Itamaraty, Adelaide Coutinho da Silva, desta­cada como guia turística para acompanhar a visita da presidenta Silvana Lapena a Ouro Preto e Mariana, nascida e criada por ali mesmo, bem sabia o que lhe mostrar.

Silvana admirou tudo o que viu: casas centenárias, igrejas e suas torres e sinos, esculturas do Aleijadinho e de todos os outros artesãos que dominavam como ninguém mais o talho da ma­deira nas imagens de centenas ou milhares de santos, cultuados até hoje pela Igreja.

Quando chegou à cidade de Mariana, a presidenta argentina perguntou à conselheira Adelaide: "Por acaso o nome da sua pre­sidenta tem algo a ver com o nome desta cidade?".

A conselheira respondeu: "Sim. Os pais dela, embora fran­ceses de nascimento, apaixonaram-se pela arte que nós gostamos de denominar 'barroco brasileiro'. Compraram casa aqui mesmo. Viajaram, por toda a vida, entre as nossas cidades coloniais: São João del Rei, São José del Rei (hoje Tiradentes), Diamantina, Serro, a Vila Boa de Goiás, antiga capital do Estado, e por aí afora. Em vida, foram os maiores colecionadores de estatuetas brasi­leiras. Poucos anos antes de sua morte, doaram umas cinco mil imagens ao museu municipal, que nós vamos visitar em seguida".

"E, sim", continuou. "O nome da presidenta é Mariana Vila Rica Rousseau. Mariana, em homenagem a esta cidade. Vila Rica é o nome tradicional da cidade de Ouro Preto, antiga capital do Estado de Minas Gerais. No fim do século XIX, os governantes mineiros viram que o progresso urbano da capital destruiria a beleza de Ouro Preto. Tiveram a sabedoria de construir nova ca­pital, a cidade de Belo Horizonte, onde está o seu avião."

Silvana Lapena estava encantada com o que via. Lamentou ter de voltar a Buenos Aires ainda no mesmo dia. No fim das visitas, pediu à conselheira Adelaide Coutinho da Silva que transmitisse seus agradecimentos à presidenta Mariana Rousseau e ao Itamaraty, na pessoa do ministro Alighieri.

Para finalizar, disse: "É pena que nós, na Argentina, não te­nhamos tido a preocupação de conservar o que de belo nos dei­xaram os colonizadores espanhóis".

Despediu-se, abraçou e beijou a conselheira. Tomou o carro rumo à base aérea da capital mineira, onde a aguardava o avião que a levaria a Buenos Aires e aos deveres presidenciais.

 

Passam-se os dias. Cada qual cumpre a sua rotina. No Emdena, no meio de tanta tensão — mais ou menos camuflada —, não havia muito o que fazer em relação ao assunto da bomba argen­tina. A ordem era aguardar. Serenamente. Mas chefes e subchefes repetiam mentalmente a toda hora: "Já estamos no início de maio e nada de comunicação da presidenta Silvana Lapena". A dúvida era simples, mas cruel: a presidenta brasileira fizera a sua per­gunta em termos não oficiais, fora da linguagem e dos caminhos protocolares. Sua colega argentina bem poderia ter deixado de levar a sério o muito que a questão embutia.

Enquanto isso, a presidenta brasileira Mariana Rousseau tra­tava diligentemente, com os ministros do Meio Ambiente, de Ciência e Tecnologia e de Minas e Energia, mais o presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear, das minúcias dos di­versos programas brasileiros de uso de energia nuclear. Para a ge­ração de eletricidade, o que era matéria simples e conhecida pelo mundo afora. E, salvo imprevisíveis catástrofes naturais — como as que dizimaram a população, demoliram cidades e arrasaram as usinas japonesas —, apresentava um quadro de riscos e aci­dentes havia muito incorporado ao cotidiano dos técnicos.

A presidenta Mariana procurava também estimular com pala­vras de apoio e incentivo os cientistas e o pessoal técnico — tanto os do governo como os da iniciativa privada — a pensar, estudar e programar iniciativas capazes de ampliar, inovar e trazer para o cotidiano novos usos pacíficos do imenso cabedal de energia contido num átomo de urânio.

Em plano mais específico, a sua maior preocupação girava em torno de iniciativas para adotar medidas capazes de prever — e, sobretudo, evitar — acidentes e distúrbios, tidos como inevitáveis pelos críticos do uso da energia nuclear para qualquer fim.

"Segurança antes de tudo", gostava de pensar a presidenta Ma­riana como a sua ideia-força. Afinal, ninguém podia, ou devia, esquecer que as três usinas elétricas movidas a energia nuclear do complexo de Angra dos Reis estavam situadas também à beira-mar. Nunca houvera maremotos ou tsunamis na costa brasileira. Mas era preciso prever tudo. Ter mecanismos e equipamentos de reserva prontos para agir em caso de falha dos originais.

"O problema da Argentina e sua bomba é principalmente deles mesmos", pensava Mariana. "A solução seguirá seu curso próprio e terá de vir de lá, não do Brasil."

Contudo, a falta de resposta da presidenta Silvana Lapena in­comodava Mariana muito mais do que ela gostava de admitir. Várias vezes por dia, todos os dias, a presidenta brasileira se per­guntava: "Telefono? Chamo o Itamaraty para oficializar a minha indagação?". Resolveu pela negativa. Afinal, não parecia boa tá­tica dar ao assunto importância maior que a de simples pergunta informal no meio de conversa sobre banalidades.

Enquanto isso, a Aeronáutica progredira bastante nas suas atri­buições: o mapa detalhado do mar entre a Patagônia e a Antár­tida ficara pronto, incluindo as coordenadas geográficas precisas de todos os acidentes: ilhas, ilhotas, glaciares. A cada um foi dado nome de código inesquecível para aviadores e controladores de voo do satélite invisível: Santos Dumont, Eduardo Gomes, Torre Eiffel, 14-Bis, Brigadeiro, Campo de Bagatelle, Piloto e assim por diante.

A Marinha, por sua vez, observara o movimento de marés na­quelas latitudes. Identificara as correntes marinhas: a sua direção e velocidade, o efeito dos ventos sobre elas e sobre a aceleração do processo de derretimento de glaciares.

O lançamento do foguete que conduziria à sua rota o satélite teleguiado e invisível — estacionário ou apto a deslocar-se para destinos que lhe fossem dados — já tinha data marcada: 6 de maio. O último problema — vencido, afinal, com boa técnica — era a articulação das lentes para fornecer imagens panorâmicas que cobrissem áreas de dez a cem quilômetros quadrados. Mais o acionador do efeito zoom, capaz de identificar e enviar imagens detalhadas de pequenos alvos: aviões e veículos terrestres, suas marcas, modelos, deslocamento. Ler inscrições e placas e até, com um pouco de sorte e ângulo certo, os seus números.

Maio entrou voando. No dia 9 chegou a mensagem da presi­denta argentina:

 

               Querida Mariana:

A bolsa de luxo de que me falou, feita com peles de animais silvestres do sul da Patagônia, está fora do mercado. A oficina que a fazia foi fechada há dois anos.

                                             Beijos, Silvana.

 

A presidenta Mariana Rousseau levou um minuto para en­tender. A "bolsa de luxo" era o eufemismo para não revelar o se­gredo: a bomba atômica. E "oficina que a fazia" referia-se, sem dúvida, ao laboratório que o nosso pessoal imaginava ter identi­ficado na Patagônia.

Em seguida, a presidenta convocou reunião, no mesmo dia, com os ministros do Gabinete Civil, da Defesa e das Relações Ex­teriores, os comandantes em chefe das três Forças Armadas, mais o chefe do Emdena. Com este, o coronel Schmidt.

Todos compreenderam imediatamente o sentido oculto da mensagem. Mas ela criara uma montanha de perplexidade na ca­beça de cada um.

A presidenta falou: "Como é fácil entender, a presidenta Sil­vana Lapena me diz que os argentinos não estão fazendo bombas atômicas. E que o laboratório que o coronel Schmidt pensava ter identificado — informação aceita por vocês pelo valor de face — foi fechado há dois anos. Pelo visto, perdemos muito tempo com esse assunto. Vamos arquivá-lo".

E continuou: "Entretanto, cada palavra que eu disse a respeito do nosso programa de energia nuclear continua de pé. Enriqueci­mento de urânio, só por instituições civis e para uso pacífico, não militar. Mantemos nosso programa de Angra 3, mais as quatro usinas do Nordeste. Mas, como sabem, recomendei aos minis­térios interessados e à CNEN o máximo de cuidado em rever a implantação dos itens 'segurança e 'bem-estar das populações', acima de todas as preocupações com custos, viabilidade, economicidade, eficiência, etc.".

Mariana preparava-se para encerrar a reunião quando Schmidt pediu licença para falar: "Com a sua permissão, se­nhora presidenta, a mensagem da presidenta argentina contém uma palavra-chave que não pode ser ignorada ou esquecida. É a expressão 'sul da Patagônia. Imagino que a senhora tenha lhe fa­lado apenas genericamente que uma bomba estaria sendo feita 'na Patagônia. A senhora teria mencionado especificamente 'sul da Patagônia'?".

"Não", respondeu Mariana. "Como havíamos combinado, mencionei a província, sem detalhes de região ou lugar." Pequeno silêncio. A presidenta perguntou: "E daí, coronel?".

Schmidt respondeu: "Conforme relatei ao então Emfa e re­produzi nas nossas reuniões no gabinete presidencial, chegou a haver um laboratório de desenvolvimento de energia nuclear no sul da Patagônia, fechado há uns dois anos. Razão: o desconforto dos cientistas com o clima e com a perturbação causada pelo in­tenso movimento do turismo".

"A bomba está sendo feita, sim, na Patagônia. Mas em Bari­loche, naquela província.

"A resposta é verdadeira no que diz, embora incompleta. No meu modo de ver, quem deu a informação à presidenta argen­tina repetiu aquele nosso velho jogo de dizer, enfiando a mão na manga da roupa, 'por aqui não passou'. A presidenta Lapena deve ter sido enganada pelos mesmos militares que estão fazendo a bomba ou por quem ela tiver consultado."

Ninguém sabia o que pensar. Encerrar o assunto? Haveria algo mais a pesquisar? Valeria a pena mandar Schmidt de volta a Bari­loche? Ou outra pessoa? Como se tivesse lido o pensamento dos demais, Schmidt pediu autorização para continuar.

Disse: "Senhora presidenta, senhores ministros, senhor ge­neral: eu poderia voltar a Bariloche a qualquer momento, mas não creio que vá encontrar coisa alguma diferente do que já vi. Ao mesmo tempo, se minha presença for notada pelo pessoal do laboratório — mesmo que eu me hospede em outro hotel —, poderia levantar desconfianças e suspeitas sobre os motivos das numerosas vezes em que estive por lá".

Não faltou quem pensasse: "O cara está tirando o corpo fora!".

"Entretanto", prosseguiu Schmidt, "uma parte da tarefa da Marinha, se houver mesmo detonação de bomba nuclear onde pensamos — numa ilhota ou glaciar —, será o levantamento da presença de radiação atômica no mar. Como nos relatou o comandante em chefe da Marinha, um navio nosso estará na­quela área em junho, época provável da detonação, para recolher o nosso pessoal de pesquisa que trabalha na Base Comandante Ferraz, na Antártida. Lá será inverno, com dias curtíssimos, ou noites permanentes, e ninguém pode trabalhar. A presença de um navio brasileiro na região será fato natural, não despertará desconfiança".

"Um helicóptero, além de transportar o nosso pessoal da base para o navio, pode levar instrumentos aptos a detectar a presença no mar de radiações nucleares e sua intensidade.

"O professor Oliveira Dias foi minucioso quando falou co­nosco a esse respeito. Confirmou o que está nos livros: todo pro­cesso de enriquecimento de urânio acima dos níveis mínimos deixa escapar certa medida de radiação. Em baixo grau de enri­quecimento, o teor da radiação também é baixo. Essa radiação, salvo em exposições demasiado longas, não é imediatamente prejudicial à saúde.

"Ainda conforme o professor, na medida em que sobe o nível de enriquecimento, crescem proporcionalmente os índices de ra­diação ambiental. Talvez, não a ponto de afetar imediatamente a vida dos profissionais que trabalham no processo. Mas eles se tornam a cada dia mais vulneráveis a doenças graves, presentes ou futuras. No médio prazo, as pessoas podem ser vítimas de câncer ou de males degenerativos, os quais, embora não necessa­riamente fatais, as transformam em aleijões.

"A exposição mais ou menos longa de seres vivos à radioativi­dade, nos casos de alto enriquecimento ou de explosão nuclear, pode ser desastrosa. A explosão da usina de Chernobyl destruiu todas as formas de vida na sua redondeza por várias décadas."

O ministro da Defesa então indagou: "Por que não enviamos um avião nosso, com esse equipamento, sobrevoar o laboratório de Bariloche e identificar a radiação?".

A resposta de Schmidt à sugestão do ministro Flávio Sales foi imediata: "Segundo nos disse em reunião no Emfa o professor Oliveira Dias, os americanos estão a meio caminho na tentativa de desenvolver um equipamento capaz de identificar radiações a partir de um avião. Para não ser flagrado, o avião terá de estar entre três e cinco mil metros de altitude".

"Os nossos aparelhos, pelo que me disse o professor em outra ocasião, ainda estão longe dessa capacidade. Para detectar a radiação nuclear em processos de qualquer nível de enrique­cimento, nossos medidores precisam estar perto da fonte de ra­diação. Por isso, alguém teria de transportá-los até a proximidade do laboratório. E, aí, ligar os seus sensores."

Schmidt achou que falara demais, monopolizara a palavra. Calou-se e olhou em torno de si.

A presidenta Mariana Rousseau, entretanto, continuava interessadíssima no tema. Disse: "Coronel Schmidt, diante de tudo o que nos expôs, não podemos ficar quietos. Temos de fazer al­guma coisa. O que o senhor sugere?".

Schmidt retomou a palavra: "Minha sugestão é a convocação do professor Oliveira Dias para essa missão. Conheço bem o ca­minho, via tríplice fronteira, por onde entraremos em território argentino sem problemas de inspeção de bagagem nas aduanas. Acompanharei o professor e, se necessário, nos hospedaremos em um dos muitos hotéis da cidade. Não no hotel residencial Los Pampas, onde fiquei todas as vezes em que lá estive".

"Chegando lá, alugaremos um carro, que dirigirei até um ponto nas proximidades do lago Nahuel Huapi, de onde se en­xergue o laboratório.

"O professor fará suas observações e medições. Voltaremos pelo mesmo caminho, possivelmente no mesmo dia, com os re­sultados em mão. Essa será, penso eu, a prova cabal de estar em curso ou não o enriquecimento de urânio naquele laboratório. Com sorte, espero obter também o grau de enriquecimento ali processado. E, portanto, a sua finalidade."

Todos se olharam, com grande ponto de interrogação na face. Ninguém disse palavra.

Nesse momento, a presidenta Mariana Rousseau voltou-se para o general Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emdena, e perguntou: "Que acha o senhor disso tudo? Devemos aprovar a nova missão? Mais que isso: será possível, ou racional, continuar a pensar que os militares argentinos estejam fazendo uma bomba atômica, arma eminentemente agressiva, sem o conhecimento e a autorização da presidenta Silvana Lapena?".

Não era só possível. Acontecia de fato. Como Silvana Lapena viria a descobrir.

Mas a discussão na mesa de reuniões do gabinete da presi­denta brasileira era mais restrita: autorizar a nova missão ou es­quecer tudo?

Pais de Oliveira falou: "O que nos disse o coronel Schmidt, nas reuniões anteriores e na de hoje, faz sentido. Nós, do Emdena, aprovaríamos — e agora mesmo recomendamos — a nova missão. É a prova final que nos falta".

"Está bem", retrucou a presidenta Mariana Rousseau. "Mas esta será a última missão que autorizarei, para confirmar ou infirmar o que me diz a chefe de Estado argentina."

A presidenta pediu ao ministro-chefe do Gabinete Civil que entrasse em contato com o Ministério da Ciência e Tecnologia e com a CNEN, falando-lhes o mínimo possível da missão. "A natureza da missão", acrescentou, "será passada pelo Emdena e seus detalhes, como o dia da partida, os meios de transporte, o itinerário etc., serão combinados com o coronel Schmidt."

A presidenta fez sinal do encerramento da reunião. Todos se levantaram.

Ninguém imaginava que a presidenta argentina teria dúvidas semelhantes. E o que ela faria.

 

Praxes burocráticas postas de lado, o general Fernando Pais de Oliveira tomou a si a tarefa de informar o vice-chefe e os subchefes do Estado-Maior das minúcias da sua última reunião com a presidenta Mariana Rousseau. Todos convergiram na pre­sunção de que os militares argentinos — na boa forma de sua tradição de décadas — rejeitavam o comando civil das Forças Armadas. E, portanto, era admissível que se empenhassem em desenvolver uma bomba atômica sem conhecimento presiden­cial, assim reafirmando onde se encontrava realmente o centro de poder do país.

Concordaram também em que a missão de medir a força da radioatividade nas proximidades de Bariloche era a melhor, senão a única, das mil coisas a fazer para confirmar a hipótese da bomba atômica argentina — ou liquidar com ela de uma vez por todas.

O foguete portador do satélite fora lançado com sucesso na data prevista, 6 de maio. Desde então, permanecia estacionário sobre o lago Nahuel Huapi. Como programado, transmitia de minuto em minuto as imagens do que observava. Analisadas, datadas e classificadas pelos controladores de voo do satélite, as imagens eram arquivadas em computador, segundo um sistema apto a facilitar a pesquisa com base no seu significado real ou presumido.

Por elas, era possível notar a entrada e saída de dezenas de pessoas em horários determinados: 8 da manhã e 5 da tarde, sete dias por semana. Sinal — pensavam os chefes do Emdena — de que muitos trabalhavam lá regularmente. Mas, eles estranharam, só um turno por dia? Falta de pessoal qualificado? Ou falta de verbas suficientes?

O satélite mostrava também, às 6 da tarde, a saída do pessoal da limpeza. Para recolher o quê? Detritos e lixo? Originários do quê? — tendo em vista que ninguém vivia lá? Perguntas para as quais os controladores de vôo do satélite não tinham resposta.

De outra parte, a tentativa de contato com o professor Antônio de Oliveira Dias, na CNEN, produziu a primeira decepção: ele se encontrava nos Estados Unidos, num congresso de cientistas especializados no uso pacífico da energia nuclear. Seu tema: o setor na "era pós-Fukushima", como se dizia no jargão nuclear. Previsão de retorno, 14 de maio. Sábado.

Outras perguntas se repetiam nas chefias do Emdena: "De­vemos convocar um novo cientista para a intimidade do pro­blema? Ou esperar o regresso do professor Oliveira Dias? Ou treinar Schmidt nos aparelhos de medição de radiação? A partir do zero?".

Oliveira Dias, todos ponderavam, estava bem informado sobre o problema da bomba atômica argentina na visão do Emdena, pois participara de duas ou mais reuniões do Estado-Maior cujo tema era energia nuclear. Podia imaginar, também, em que me­dida a possibilidade de uma bomba atômica argentina preocu­pava as autoridades brasileiras da área de Defesa. Não carecia de doutrinação ou convencimento. Estava em dia, também, com o problema de emissões radioativas conseqüentes do enriqueci­mento de urânio. E com a sua medição.

O consenso chegou, afinal: restava apenas esperar mais al­guns dias.

Por fim, vem a segunda-feira, 16 de maio. Oliveira Dias re­começa a trabalhar na CNEN. Encontra um monte de recados recebidos e anotados em sua ausência de vários dias. Um desses é do general Fernando Pais de Oliveira, nome que logo reconhece. Diz: "Poderia o professor telefonar-nos no dia da sua chegada?".

Entre as primeiras respostas aos recados, mandou ligar para o general Fernando Pais de Oliveira, chefe do Emdena. Depois das "boas-vindas" protocolares, o general pediu: "Poderia o caro professor vir ao Emdena ainda hoje?". O professor não entendeu a sigla e o general Pais de Oliveira levou um minuto para explicar o novo nome do velho Emfa, com outra subordinação, mas ainda no antigo endereço.

Vencidas as conversas preliminares, Pais de Oliveira explicou: "Temos coisas muito urgentes para falar com o professor, em continuação aos assuntos discutidos antes. Não gostaria de entrar em detalhes pelo telefone, mas apreciaria muitíssimo sua vinda ao Emdena ainda hoje. Compreendo que esteja muito atarefado ao regressar de um congresso técnico, mas a questão é do maior interesse do nosso país. Não só dos militares, ou do governo".

Oliveira Dias percebeu que não havia o que discutir. "Esses milicos' pensam que são donos da verdade e do patriotismo. E como gostam de exagerar!" Viu, porém, que de nada adiantaria protelar. Concordou em comparecer à reunião com o chefe, o vice-chefe e os subchefes do Emdena, mais o coronel Schmidt, no mesmo dia, às 15 horas.

A primeira hora da reunião foi consumida em transmitir ao professor, do princípio ao fim, a quase certeza do pessoal do Emdena de que os militares argentinos estavam prontos a de­tonar, daí a dias, a sua primeira bomba atômica.

O general Pais de Oliveira relatou ao professor Oliveira Dias os detalhes do encontro reservado das duas presidentas por ocasião da outorga pela brasileira, à sua colega argentina, do Grande Colar da Ordem de Tiradentes. Com a ênfase conveniente ao seu ponto culminante: a pergunta informal de Mariana Rousseau a Silvana Lapena sobre a possibilidade de os militares de seu país estarem secretamente empenhados em fazer uma bomba atômica na pro­víncia da Patagônia, objeto das conclusões do Emdena com base nas várias missões de Schmidt.

De memória, o general reproduziu palavra por palavra a per­gunta e a resposta aparentemente inócua da presidenta Silvana Lapena à indagação de sua colega brasileira. A essa altura, o pro­fessor Oliveira Dias não escondia o seu interesse pelos fatos e pela história.

Nesse clima, o general transmitiu ao professor da CNEN a convicção — quase certeza —, baseada nas observações do co­ronel Schmidt e aceitas pelo Emdena, de que as etapas cruciais do projeto da bomba ocorriam sem conhecimento da presidenta argentina. Em seguida, pôs em destaque as expressões "cifradas" usadas por ela: a "bolsa de luxo, feita com peles de animais sil­vestres do sul da Patagônia" — isto é, a bomba; a "oficina que as fazia" — ou seja, o laboratório; "oficina" que fora "fechada há dois anos".

Oliveira Dias não conseguia esconder as dúvidas que pairavam por sua mente. Não se conteve e, mal escondendo uma ponta de ironia, perguntou ao general Pais de Oliveira: "Então, general, o que estamos discutindo aqui? Se a oficina que fazia a bomba foi 'fechada há dois anos', parece claro que não existe bomba atômica argentina. Na minha leitura, creio que nada nos resta fazer. Não é essa também a opinião de vocês?".

"Não é bem assim, professor", respondeu o general. "Vou pedir ao coronel Schmidt para decodificar o que ele denomina as palavras-chave' contidas na mensagem da presidenta Lapena.

Palavras que, acreditamos, abrem caminhos novos e confirmam nossas velhas suspeitas nesse assunto. Por favor, coronel Schmidt, conte tudo ao professor."

Pela enésima vez desde o fim da missão, Schmidt contou a his­tória das suas suspeitas, observações e conclusões. E como elas haviam sido confirmadas pelos desabafos que ouvira do general argentino, especialista em energia nuclear, Marcelo Antigua Magallanes. E, mais adiante, pelas confissões do professor de enge­nharia da Universidade de Buenos Aires, Fernando Gutierrez, que havia abandonado o laboratório de Bariloche "por não querer participar de um projeto que levaria à criação de armas de des­truição em massa". Depoimentos que, nitidamente, davam base às suas conclusões. E as confirmavam.

Falou das seguidas reuniões com a presidenta Mariana Rous­seau, das quais havia participado por sugestão do Emdena ou por solicitação da presidenta. Colocou na paisagem correta a pergunta da presidenta brasileira e a resposta cifrada da presidenta Lapena.

Por fim, deu conta ao professor Oliveira Dias das providências preventivas aprovadas pela presidenta Mariana Rousseau. Citou o fato de um navio brasileiro encontrar-se em águas do extremo sul do continente, para o fim de trazer de volta ao país — no in­verno do extremo sul — os nossos cientistas que trabalham na base Comandante Ferraz, na Antártida.

Enfatizou a importância do satélite invisível e teleguiado, ora estacionário sobre o lago Nahuel Huapi, mas capaz de seguir no rumo que seus controladores determinassem. Falou da capaci­dade já comprovada desse gadget de observar espaços de dez a cem quilômetros quadrados. E sublinhou a utilidade do seu dispositivo de zoom, apto a focalizar pequenas áreas e identificar os veículos que nelas circulassem.

Schmidt concluiu a sua exposição acentuando como tais fatos e circunstâncias o haviam conduzido à conclusão inevitável de que — segundo lhe haviam dito seus contatos argentinos Magallanes e Gutierrez — ali estava em andamento um projeto de bomba atômica.

O professor não podia esquecer que acabava de retornar de um congresso científico voltado justamente para as interrogações que lavravam pelo mundo, após a catástrofe do Japão, sobre os usos pacíficos de energia nuclear. Nem menosprezar a dupla una­nimidade suscitada pelo acidente de Fukushima. De um lado, o "susto". Do outro, a certeza de que o mundo inteiro — governos, cientistas, empresas — teria de debruçar-se com afinco em busca de soluções satisfatórias para o item "segurança". Das instalações. E da vida em seu redor.

Lembrou-se da oposição, aparentemente irreconciliável, das duas correntes principais de participantes do congresso. De um lado, os que optavam pela limitação do uso de energia nuclear a formas e níveis baixos, capazes de neutralizar ou reduzir ao mí­nimo o perigo para as diversas espécies de vida existentes em seu entorno, as fontes de abastecimento de água potável, o ar e os oceanos. Para os outros, a melhor atitude diante dos fatos seria abandonar para sempre, ou por muito tempo, qualquer utilização dessa energia.

E a síntese do pensamento dominante no congresso: "O uso da energia nuclear só será viável com a mais minuciosa vigilância do seu emprego. E, mais, do seu processo". Conclusão que na mente de Oliveira Lima soava como um eco da campanha eleitoral de 1945, quando Carlos Lacerda cunhara a frase: "O preço da liber­dade é a eterna vigilância".

Oliveira Dias percebeu que teria de olhar o problema sob a ótica dos militares ali presentes. Voltou-se para o general Pais de Oliveira e disse: "Vejo que as conclusões dos senhores deste Estado-Maior não são sem fundamento. Mas suspeita é suspeita. Em assuntos relacionados com bombas atômicas, é preciso ter certezas. Como podemos chegar lá?"

Schmidt pediu licença para falar. Concedida a licença pelo chefe do Emdena, dirigiu-se a Oliveira Dias: "Professor, a prova provada de que os nossos vizinhos argentinos estão mesmo construindo uma bomba será a sua detonação. Conforme já foi dito aqui, nós estamos preparados para isso. Na hipótese de a explosão acontecer no local onde imaginamos — o trecho de mar entre a Patagônia e a Antártida —, estaremos aptos a docu­mentar o fato".

"Mas essa possibilidade tem duas circunstâncias de dúvida. Em primeiro lugar, como diria o meu primo, professor de direito no Paraná, nossas suspeitas só se confirmarão expost facto, isto é, 'depois do fato' da detonação. Em segundo lugar, as providências preventivas, que submetemos à presidenta e foram aprovadas por ela, envolvem o uso de imensos recursos em pessoal especializado, para não falar no seu custo em verbas públicas.

"Numa palavra, precisamos comprovar agora, não depois, se os argentinos estão no processo de enriquecimento de urânio em grau necessário ao uso na bomba. O senhor nos disse, aqui mesmo, que o processo de enriquecimento de urânio gera indí­cios de radiação proporcionais ao grau em que o processamento ocorre. 'Um certo ruído', como lhe disse um cientista americano com quem conversou. Estou certo?"

"Sim", respondeu o professor Oliveira Dias.

Schmidt continuou: "Segundo lhe disse o tal cientista, os ame­ricanos estão em processo de viabilizar um sistema confiável — montado em avião teleguiado — de detecção da radiação causada pelo enriquecimento de urânio, em qualquer parte do mundo. Ele lhe falou de um lugar indeterminado, a sudoeste do Rio', onde o avião percebera tal 'ruído'. Com base na geografia, imaginamos que o 'ruído' poderia vir da província argentina da Patagônia".

"Agora, ficamos sabendo que a CNEN tem sensores capazes de identificar — mas só a curta distância — a presença de radioativi­dade causada pelo enriquecimento de urânio."

Silêncio geral. Todos olham sucessivamente para Schmidt e para o professor Oliveira Dias. Um minuto depois, o professor confirma: "Sim. Mas nós considerávamos essa informação, no mínimo, reservada, senão secreta'. Muito bem. E o que propõe fazermos?".

Schmidt voltou-se para o general Pais de Oliveira. Seu olhar pedia licença para falar. O general lhe disse: "Continue, coronel. Nós todos o apoiamos. Mas você é o autor da idéia. E, como tal, deve dizer tudo ao professor".

"Bem, professor", disse Schmidt. "Nós gostaríamos que o se­nhor e eu fôssemos a Bariloche, levando o seu sensor, para medir o nível de radioatividade acaso existente em torno do laboratório do lago Nahuel Huapi. E, se for o caso, nas águas do lago. Será a 'prova provada, num sentido ou no outro, da hipótese de a bomba estar em construção ali."

"Só tem um detalhe", disse o professor Oliveira Dias. "Um dispositivo como o nosso não passaria na alfândega de nenhum país. Não estou dizendo que aceitaria a tarefa, mas pergunto: como o levaríamos à Argentina? A aduana de Buenos Aires é co­nhecida mundialmente por sua imprevisibilidade. Seus funcio­nários vivem em estado latente de greve. Ora se empenham em 'operações-padrão': revistam todas as bagagens, implicam com qualquer coisa, apreendem itens em geral de menor importância, só para aborrecer os viajantes."

"Ou, então", continuou o professor, "não examinam nada e deixam passar tudo. Mas, se chegarmos lá num dia de 'operação-padrão', ou mesmo de simples mau humor do agente aduaneiro que nos tocar, então será um inferno!".

"Não se preocupe, professor", retrucou o general Pais de Oli­veira. "A viagem será indireta, mais longa e com escalas. Vocês partirão de Brasília, em avião da Aeronáutica, diretamente para Foz do Iguaçu, do lado brasileiro da tríplice fronteira. De lá, de táxi, para Puerto Iguazu, no lado argentino, sem inspeção adua­neira ou qualquer outro obstáculo. E daí, em vôo doméstico, até Bariloche. Só com bagagem de mão".

"Mas nós precisamos da sua presença e da sua competência. Qualquer dificuldade na CNEN, mobilizaremos o ministro da Defesa, o ex-senador Flávio Sales, que se entenderá com o chefe do Gabinete Civil. Este falará com o ministro da Ciência e Tec­nologia — tendo a autoridade presidencial subentendida. Daí a convencer a CNEN é só um passo."

Parou um instante, para melhorar o "efeito" da sua demons­tração de prestígio.

E concluiu: "O que nos interessa é a presença do senhor, ao lado do coronel Schmidt, que conhece aquelas paragens como poucos, e a sua capacidade de medir as radiações".

Oliveira Dias retrucou: "Não sou 'milico'. Sou o civil mais pai­sano que existe, como dizia o presidente João Figueiredo de um dos ministros mais identificados com ele. Mas conheço minhas obrigações com o meu país. Minha resposta é sim'. Lembro so­mente que terei de enfrentar a insatisfação da minha mulher e dos filhos ante uma viagem logo depois de voltar de outra. Mas espero convencê-los, embora perceba que nada poderei revelar sobre o motivo da viagem, o seu destino e a duração. Eles não estão habituados a isso".

Continuou: "Amanhã mesmo converso com o presidente da CNEN, revelando-lhe o mínimo possível da nossa tarefa. Du­rante a semana combinaremos tudo".

"Não olhei ainda a minha agenda para os próximos dias. Verei o que posso cancelar ou adiar. Imagino que o coronel Schmidt poderá viajar a qualquer hora. Vou me entender com ele sobre os detalhes. Da ida e da volta."

Com isso, a reunião chegara ao fim. O chefe do Emdena le- vantou-se e agradeceu calorosamente ao professor por sua res­posta. Em seguida, despediu-se de todos, um a um. E "fim de papo".

Para Schmidt, porém, não era fim de papo. Dali a pouco teria de contar a Mercedes, sua mulher, e aos filhos João Lucas e Ale­xandre que a perspectiva de "papai em casa" ficara mais uma vez adiada. Mas, dessa vez, passaria em Ciudad dei Este, do lado pa­raguaio, a Meca dos brasileiros — e, em particular, das brasileiras — ávidos de comprar coisas desnecessárias. Mesmo sem saber bem para usar quando, onde e como.

 

Logo cedo, terça-feira, 17 de maio, o professor Antônio de Oliveira Dias vai à sala do presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear e leva o também professor Roberto Gon­zaga dos Santos. Na sua mente, o assunto relevante é a missão secreta que terá de executar, a pedido do Emdena. Convencido de tudo o que ouvira no Emdena, Oliveira Dias queria discutir a fundo as implicações políticas e militares de uma bomba atô­mica argentina sobre os interesses e a segurança interna e ex­terna do Brasil.

Mas o presidente da CNEN, Roberto Gonzaga dos Santos, só se interessava pelos temas discutidos no congresso do qual Oli­veira Dias participara, como por exemplo, a opinião dos cien­tistas — por certo, ainda chocados com a catástrofe japonesa —, sobre o futuro do uso da energia nuclear para fins pacíficos e, sua conseqüência menor, a sobrevida da CNEN. Ou a im­portância das questões relacionadas com a energia nuclear no desenvolvimento da ciência e das técnicas de geração de eletri­cidade, no tratamento e na prevenção de doenças. E, em plano mais amplo, o seu impacto sobre o progresso da humanidade, a economia, a saúde e o bem-estar dos povos.

Oliveira Dias lembrou que o congresso fora convocado, vários meses antes, na perspectiva de novos estudos, experiências, teo­rias e descobertas capazes de ampliar, cada vez mais, o emprego da energia nuclear — tida como "limpa, não poluente, pratica­mente inesgotável e sem impacto no aquecimento global". A notícia — ou, para muitos, a falta de notícias completas e confiáveis — do acontecido nas centrais elétricas de Fukushima mudara ra­dicalmente a atitude dos cientistas sobre a fissão nuclear como fonte universal de energia.

Boa parcela de participantes do congresso mantinha atitude serena — "esperar para ver" — e a convicção de que a sua atenção teria de voltar-se, a partir de agora, para os itens referentes à "se­gurança". Das instalações, sim. Mas, sobretudo, da vida em torno delas.

Outra parcela de congressistas, entretanto, assumira posição radical. Para esse grupo, a desgraça do terremoto seguido de tsunami confirmava e ilustrava, com requintes de horror, o medo daqueles cientistas descrentes da validade do uso da tecnologia nuclear para fins pacíficos. Ninguém disse em palavras concretas, mas alguns pensavam: "Só serve mesmo para guerra atômica".

Gonzaga dos Santos fez inúmeras perguntas ao colega Oliveira Dias sobre as questões técnicas — pouco e mal debatidas no con­gresso — e sobre o impacto da catástrofe japonesa no futuro da especialidade a que se dedicavam. Tanto no plano da engenharia e do ensino como no exercício da profissão de ambos.

A insistência de Oliveira Dias em conversar sobre a missão do Emdena recebia o mínimo de atenção de Gonzaga dos Santos, que pouco queria saber de detalhes — assim poupando o seu colega de entrar em assuntos e minúcias confidenciais. O presidente da CNEN reagiu à idéia dizendo apenas o seguinte: "Se você acha que deve fazer o que lhe foi pedido, vá simples­mente em frente. Passe as suas tarefas para alguém cuidar delas enquanto estiver fora".

Oliveira Dias reviu com sua secretária a agenda de compro­missos para o final de maio. Cancelou ou adiou o que pôde. Porém, sobraram para a semana em curso algumas obrigações assumidas havia meses e por isso, ou por sua natureza, inadiáveis ou não canceláveis: palestra na Universidade Federal do Rio de Janeiro, encontro com cientistas franceses na sede da embaixada desse país em Brasília e outras de igual calibre.

Tinha também de dar alguma medida de satisfação à família, que reclamava com razão do imenso apego dele ao trabalho e da escassa atenção aos seus. Não teve como negar à mulher e aos filhos a programação que haviam arquitetado para o fim de se­mana, com outros casais amigos e seus filhos e netos.

Por fim, resolveu: "Só vou poder viajar mesmo a partir da segunda-feira, 23 de maio". Pediu à secretária que ligasse para o coronel Schmidt no Emdena. Quando Schmidt atendeu a cha­mada, Oliveira Dias falou dos compromissos familiares. E ficou surpreso com a reação compreensiva de Schmidt: os problemas de ambos eram os mesmos.

Concordaram em viajar no dia 23, de manhã cedo, a fim de chegar a Bariloche antes do anoitecer. "Não que o horário tenha importância", disse Schmidt. "Eu aprendi a me virar por lá de um lado para o outro: de dia orientando-me pelos acidentes geo­gráficos e em noites sem lua, pelas estrelas. Mas devemos chegar a tempo de alugar um carro no aeroporto." E concluiu: "Não se preocupe. Todas as reservas serão feitas pela agência de viagens que sempre usamos, a qual, suponho, tem contato conosco".

Oliveira Dias estranhou por um momento que o Emdena usasse uma agência de viagens para reservar hotéis e alugar carros. "Mas isso deve ser cortina de fumaça", pensou.

Schmidt lhe explicou, ainda, que teriam de viajar com papéis falsos. Ele reassumiria a identidade do professor aposentado An­tônio Gomes. Os "canais competentes" do Emdena providencia­riam passaporte, carteira de identidade, registros profissionais de Oliveira Dias, como engenheiro e professor da Universidade Fe­deral de Brasília, além dos demais documentos necessários. "Que nome você gostaria de usar?", perguntou Schmidt.

Um minuto depois de pensar profundamente, Oliveira Dias disse: "Me chamarei 'Ulysses Neves', em homenagem sincera a duas personalidades já falecidas, mas que muito admirei: o depu­tado Ulysses Guimarães, com 'y', e o presidente Tancredo Neves".

Assim foi feito. Na segunda-feira, dia 23, 7 horas, Schmidt — agora Antônio Gomes — passou de carro para apanhar Oliveira Dias — agora Ulysses Neves. Ambos com o mínimo de bagagem — uma maleta de mão cada um, mais o medidor de radiação do professor, o laptop e o iPad de Antônio. Seguiram para a Base Aérea. Avião à espera, partiram.

Chegada às dez e meia em Foz do Iguaçu. Cada um num táxi, os dois prosseguiram para Puerto Iguazu, do lado argen­tino da tríplice fronteira. Eram dois entre centenas de turistas brasileiros em férias. Ninguém a incomodá-los. Da cidade ao aeroporto foram em outros dois táxis. No balcão da Aerolineas Argentinas, honradas as suas passagens, marcaram o voo para as 14 horas.

Desceram em Bariloche pelas quatro e meia. O carro estava à disposição. O hotel três estrelas, confirmado. Hospedaram-se em quartos separados, no mesmo andar. Marcaram encontro para as 6 horas no lobby do hotel, cada qual com a sua "tralha".

A idéia que Antônio expôs a Ulysses era simples: "dar uma volta" de reconhecimento, até umas 7 e meia da noite. Não chegar perto do lago Nahuel Huapi; menos ainda do suposto laboratório. Só para Ulysses começar a sentir o "clima" de es­pionagem.

Deram a volta pelas redondezas da cidade. Ulysses amava tudo o que via naquele fim de tarde de outono ainda florido e vicejante.

Foram jantar num restaurante médio da cidade. Antônio queria evitar, se possível, encontros fortuitos com os técnicos e cientistas que trabalhavam no laboratório e com os quais con­vivera no hotel residencial Los Pampas, onde todos se hospe­davam. Motivo: não "topar" com algum deles nos restaurantes de luxo preferidos pelos cientistas. E, desse modo, não ter de dar explicações sobre o seu quarto ou quinto retorno à Patagônia.

Jantaram em paz — conta paga com o cartão de crédito que o velho Emfa havia dado a Antônio e ainda em pleno vigor.

Nove horas, noite de quarto minguante, estrelas brilhando no céu patagônico. Antônio voltou a parar o carro, como nas vezes anteriores, à margem da estrada. Ambos retiraram seus instru­mentos de trabalho e seguiram a pé, pelos bosques, na direção geral do lago e dos prédios identificados na primeira missão de Antônio. Apesar da noite escura — a lua só apareceria lá pelo meio da noite —, Ulysses apreciava a silhueta dos cerros, a neve eterna dos Andes, os lagos de água límpida, o arvoredo colorido e viçoso.

Tomaram a estrada estreita, mas asfaltada, que os levaria às proximidades do laboratório. Quando Antônio avisou que es­tavam a uns dois quilômetros de distância do prédio principal, notaram um coelho morto na margem do bosque, do lado direito da estrada. Ninguém disse nada. Mas Ulysses tirou do bolso a sua câmera eletrônica e fotografou o bicho.

Resolveu, então, ligar o medidor de radiação. E tomou o pri­meiro susto: o aparelho mostrava nível alto de radiação. Disse a Antônio: "Em termos leigos, registro umas dez a vinte vezes o teor normal de radiação em áreas sem atividade nuclear". Ulysses propôs, então: "Vamos entrar pelo bosque e andar até a floresta que se vislumbra à luz das estrelas". Não falou, mas pensou: "Poé­tico, mas indispensável. Acho que vamos ter surpresas"

As surpresas começaram a surgir nos primeiros metros da ve­getação.

Mesmo sem o uso de lanternas, para não despertar atenções indesejáveis, dava para ver: flores aparentemente "queimadas", como se tivessem sido expostas ao sol forte do Nordeste brasi­leiro; sem chuvas; folhas dos arbustos caídas pelo chão; e, em geral, falta de viço.

Antônio falou: "Agora percebo a razão pela qual, todos os dias, às 6 da manhã e às 6 da tarde, saem equipes de limpeza do labora­tório. Nossos controladores de imagens não sabiam para que fim. Podemos concluir: para recolher vegetais queimados ou danifi­cados e animais mortos. Vamos continuar: até a floresta ou para o lado do laboratório?".

Continuaram andando pelo mato, mas na direção geral do la­boratório. A cada cinco minutos, Ulysses olhava o marcador de radiação e via os índices crescerem. Em determinado momento, falou: "Pelo comportamento dos níveis de radiação, não tenho dúvida: por aqui estão enriquecendo urânio muito acima do nível compatível com o seu uso pacífico. Para afirmar com cer­teza, preciso observar mais, e também nos horários de funciona­mento do laboratório. Quero ver se a água do lago também está contaminada".

Continuou: "Preciso recolher amostras da vegetação que vimos, para determinar o seu conteúdo de radiação. E, no caso do coelho, para descobrir sua causa mortis. Se você acha que po­demos ir a Foz do Iguaçu com mais uma mala, deixo para reco­lher tudo no dia em que tivermos de voltar".

Dia seguinte, 10 horas, Antônio e Ulysses outra vez na estrada para o laboratório.

Entraram pelo bosque em direção à floresta. À luz do dia, não havia dúvida: folhas mortas pelo chão, arbustos e árvores com sinais evidentes de exposição a altos níveis de radiação. Ulysses recolheu amostras e guardou-as. Os níveis de radiação dispa­raram: prova de que, no horário de funcionamento, observado pelo controlador das imagens do satélite, o enriquecimento de urânio adquiriria nova intensidade e vigor.

Ulysses não se conteve e falou: "Esse laboratório é dirigido por pessoas sem experiência específica dos azares do enriquecimento de urânio acima de certo nível e/ou sem respeito pela vida hu­mana. A última hipótese não me surpreende muito, uma vez que se dedicam a fazer armas que ceifarão milhares ou milhões de vidas humanas".

Num primeiro momento, Antônio não entendeu o comen­tário em sua cruel extensão. Perguntou a Ulysses: "O que quer dizer? Aonde pretende chegar com isso?".

Ulysses respondeu: "A falta de competência fica evidente na vulnerabilidade do laboratório: processos inadequados deixam vazar níveis assustadores de radiação. Não sou profeta, mas, em minha opinião, todos os que trabalham aqui terão câncer nos próximos cinco a dez anos. E, não bastasse isso, o meio ambiente ficará diretamente vulnerável. Em menos de um ano a flora e a fauna deste lugar morrerão e esta bela paisagem se transformará em deserto por várias décadas. Pior ainda, a radiação afetará a saúde de todos os que habitam a cidade de Bariloche e as suas redondezas. Uma catástrofe pior que a de Chernobyl".

Antônio ponderou: "Agora, entendo tudo o que você quis dizer. Com certeza teremos de verificar se as águas do lago Nahuel Huapi também estão contaminadas. Do ponto de vista científico, só nos resta fazer mais algumas dezenas de checagens. Mas, na perspectiva da documentação do que vimos, como da­remos provas convincentes a terceiros?".

Ulysses respondeu de pronto: "Em primeiro lugar, todos os números referentes à radiação ficam arquivados na memória do meu radiômetro'. Em segundo lugar, você terá notado que, a cada momento em que faço a medição, descrevo o ponto em que nos encontramos; o que fica também gravado no meu apa­relho. E, afinal, somos duas pessoas responsáveis. Dignas de fé. Não dois loucos que ficam inventando coisas por vaidade ou autoafirmação".

Antônio voltou ao questionamento: "Como você pode afirmar que os níveis de radiação que encontramos por aqui revelam o enriquecimento de urânio acima daqueles empregados para o uso pacífico da energia nuclear? Tomemos como padrão o urânio enriquecido utilizável, por exemplo, para mover um navio ou para acionar uma usina elétrica".

"Você está falando, Antônio, de enriquecimento até 20%. O que se faz rapidamente, com o mínimo de contato humano e ní­veis de radiação de mais ou menos 1% do que estamos obser­vando aqui. Como cientista, responsável e cioso do meu nome, afirmo com 100% de convicção que neste laboratório alguma organização — certamente governamental, civil ou, mais prova­velmente, militar — está desenvolvendo uma bomba atômica. E, mais ainda, que o processo está praticamente concluído, ou será encerrado nos próximos dias ou semanas. Não meses. Ou anos."

Antônio achou que, ao reassumir a sua personalidade, o professor Antônio de Oliveira Dias não poderia dizer alguma coisa diferente do que havia falado até aquele momento. Mesmo porque, sem que Ulysses notasse, Antônio havia ligado seu smartphone na tarefa "gravar" e tudo ficara registrado para fu­tura consulta e confirmação.

Um novo coelho cambaleante se aproximou dos dois. Antônio disse a Ulysses: "Esse vai morrer logo. Vamos pegá-lo e levar a Brasília, para a autópsia. Recolha agora, por favor, as amostras que desejar. Em seguida vamos checar se o lago está contaminado e em que grau. Amanhã tomamos o caminho de volta ao Brasil".

O resto do dia foi consumido no levantamento do nível de radiação em outras áreas próximas do laboratório. Verificaram também o que ocorria, em termos de vazamento nuclear, na ci­dade de Bariloche. Embora não necessariamente mortal, o nível era bastante alto para — se mantido por alguns meses — com­prometer a saúde de seus habitantes. Tomaram um barco para navegar no lago Nahuel Huapi formando a letra "x", de modo que servisse como ponto de identificação dos controladores de vôo do satélite estacionado sobre o lago.

Na mesma noite, Antônio mandou mensagem ao chefe do Emdena: "Já temos todas as informações necessárias. Nossas suspeitas são confirmadas. Retornamos amanhã, dia 25, a Foz do Iguaçu. E agradeceremos um avião para levar-nos de Foz do Iguaçu a Brasília".

Ele pensou: "Na tríplice fronteira, vou às compras para Mer­cedes e os meninos".

 

Dia 25 de maio. Caminho de volta, estritamente como plane­jado. Pelas 11 horas, voo doméstico de Bariloche a Puerto Iguazu, ainda do lado argentino. Como o avião especial da FAB, despachado para levá-los ao Distrito Federal, só chegaria a Foz do Iguaçu à tarde, Antônio revela a Ulysses seu desejo de ir a Ciudad dei Este, do lado paraguaio, comprar presentes para a mulher e os filhos adolescentes. Ulysses concorda e resolve fazer o mesmo.

Vão de táxi a Foz do Iguaçu, onde deixam maletas e instru­mentos. Em outro táxi, atravessam a Ponte da Amizade para Ciudad dei Este. Lá se esbaldam no comércio de produtos im­portados, piratas e falsificados que acirram a vontade de com­prar dos brasileiros. Voltam cheios da satisfação de "sacoleiros", prelibando a alegria da família.

Começo de noite. Com "armas e bagagens", chegam à Base Aérea de Brasília. A bordo do avião da FAB, ambos reassumem suas personalidades reais, ou seja, voltam a ser o professor Armando de Oliveira Dias e o coronel Antônio Schmidt de Oliveira. Oliveira Dias havia prevenido seu assessor direto, o professor-assistente Vaz de Cabral, para encontrá-lo na Base, pois trazia "certos itens" que deveriam ser checados imediata­mente com a maior urgência.

Em questão de minutos, Oliveira Dias conta o essencial a Vaz de Cabral e lhe passa a valise contendo as amostras de vegetais colhidas no entorno do laboratório de Bariloche e o corpo do segundo coelho morto. Dá instruções a Vaz de Cabral para, sem perda de tempo, confirmar os níveis de radioatividade dos ve­getais e determinar a causa de morte do coelho.

Carros da Base Aérea de Brasília levam os viajantes para casa. São recebidos com festa. Os presentes comprados em Ciudad dei Este fazem o maior sucesso, e dão a cada família uma "pista" — evidentemente errada — dos lugares em que haviam traba­lhado.

Telefonemas ao plantonista do Emdena confirmam nova reunião de Schmidt e do professor Oliveira Dias com todos os chefes do Estado-Maior para o dia seguinte, às 9 horas.

Armando Vaz de Cabral — assistente do professor Oliveira Dias — "vara" a noite toda nos laboratórios da CNEN. A au­tópsia do coelho encontrado morto na mata patagônica com­prova a sua causa como excesso de radiação nuclear. Resultado semelhante fica evidente na análise radiológica das flores e folhas colhidas no mesmo lugar. Logo cedo, Vaz de Cabral passa ao professor as suas observações e pesquisas. Resultados positivos.

Como precaução, o assistente leva um detector portátil para determinar se Oliveira Dias e Schmidt carregam resíduos pe­rigosos da radiação existente nos lugares por onde teriam an­dado. Resultado negativo: o tempo de exposição de ambos fora relativamente curto, ao contrário dos vegetais "queimados" e do animal morto.

Como de costume, a reunião no gabinete do chefe do Emdena começa na hora certa.

Fernando Pais de Oliveira inicia os trabalhos. Cumprimenta o professor e o coronel pelo "brilhante trabalho realizado, con­forme atestam os relatórios enviados pelos dois profissionais". E acrescenta: "Entendo, professor, que o senhor trouxe provas cabais do nível de radioatividade na área do laboratório e da contaminação das águas do lago que fica ali perto. Por favor, conte-nos tudo, nos mínimos detalhes".

"Sim", começou Oliveira Dias. "Desejo ressaltar, inicialmente, a valiosa colaboração do coronel Schmidt. Não só na questão de localizar, na noite escura e sem lua, o caminho que devíamos percorrer, mas também na interpretação dos fatos. Muito mais do que se poderia esperar de um engenheiro eletrônico — provavelmente pouco familiarizado com as questões referentes à energia nuclear."

O general achou necessário falar ao professor da especiali­zação de Schmidt em energia nuclear, por meio de seus cursos no exterior.

"Modéstia às favas", pensou Schmidt, "se fosse civil, eu seria tão bom quanto o professor. E estaria trabalhando diretamente ao seu lado na CNEN ou numa Nucleobrás da vida. Aliás — já que os chefes do Emdena desistiram de me 'matar e eu con­tinuo 'vivinho da silva', com nome, diplomas e tudo o mais —, tenho duas ocupações em mente: trabalhar como engenheiro nuclear ou dar aplicação prática à minha volta ao mundo com um sinal eletrônico. Recomeço tudo do ponto em que parei, via satélites de comunicação da Califórnia."

Após alguns segundos de embaraço — afinal, Oliveira Dias e Schmidt pouco haviam conversado sobre as suas especiali­dades, enquanto se preocupavam em identificar e analisar os sinais registrados pelo "radiômetro" —, o professor retoma a palavra.

"Pelos dados recolhidos nos bosques, nas florestas e nos lagos existentes nas proximidades do laboratório, eu não tenho dúvidas. Afirmo: lá se está enriquecendo urânio em grau ele­vadíssimo; umas vinte a cinqüenta vezes acima dos níveis ade­quados ao seu uso pacífico. Os mesmos dados atestam, ainda: o processo está próximo da sua conclusão."

"Não ficarei surpreso", falou o professor com um toque de malícia, "se os senhores afirmarem que os argentinos se encon­tram na fase final da construção de uma bomba atômica".

"Sem entrar no laboratório e explorar todos os seus recantos, não se pode saber se eles já resolveram todas as questões me­nores. Entre mil e uma, as de engenharia e proteção do núcleo da bomba, até a detonação dos explosivos de TNT que fazem disparar o processo da fissão dos átomos de U235; o meio de transporte da bomba até o local de sua explosão; a proteção de todas as pessoas que tiverem de lidar com ela no laboratório e a partir de lá até o lugar da detonação; e seu acionamento, prova­velmente por controle remoto."

Os generais do Emdena mal se continham. De um lado, a satisfação de ver confirmadas as suas suspeitas; mas, de outro, a preocupação com o emprego, pela força militar de um país vizinho, de um instrumento de destruição em massa. O qual, é óbvio, não se faz simplesmente para se "ter", mas para se "usar".

Oliveira Dias continuou: "O coronel Schmidt e eu trouxemos dos bosques locais um coelho morto e amostras de flores e fo­lhas de plantas. Todos queimados' pelo alto nível da radiação originária do laboratório. Fato comprovado pela análise feita na noite passada pelo professor-assistente Armando Vaz de Cabral, também da CNEN, em nossos laboratórios aqui em Brasília".

Schmidt pediu ao general Pais de Oliveira licença para falar e disse: "Os dados recolhidos pelo professor Oliveira Dias apontam para a iminência do disparo da bomba. Estamos no final de maio e as informações de que disponho apontam para o começo de junho como data-alvo para a detonação. Com o devido respeito, não temos tempo a perder".

Os generais em volta da mesa mal continham o sorriso de sa­tisfação diante dos fatos relatados pelo professor e da urgência de "fazer alguma coisa", implícita nas palavras de Schmidt. Que­riam encerrar logo a reunião, correr ao Ministério da Defesa e pedir um encontro urgente com a presidenta Mariana Rous­seau, os ministros do Gabinete Civil e o das Relações Exteriores, mais os comandantes em chefe das três Forças. Passar-lhes as informações que acabavam de receber e discutir as conseqüên­cias militares, políticas e sociais, para o Brasil e para o mundo, suscitadas pelo fato de a Argentina possuir uma bomba atô­mica. Decidir sobre a estratégia a adotar no campo das rela­ções oficiais dos dois países — e, mais restritamente, no que se referia à confiança recíproca formada pelas duas presidentas. Além disso, em plano mundial, a posição desses países perante as demais nações.

Mas o professor Oliveira Dias não havia terminado. Reco­meçou: "Antes de concluir, preciso pedir a atenção dos senhores generais para um fato relevante, ainda não mencionado aqui. Todo enriquecimento de urânio gera radiação prejudicial à vida por muito tempo e em proporção direta ao grau de enriquecimento do material exposto em determinado lugar".

"Assim, no Japão, cerca de duzentos operários que, em turnos de cinqüenta, se ocuparam do resfriamento dos reatores aci­dentados no conjunto de Fukushima sabem que seu longo con­vívio com altos níveis de radiação os levará à morte em pouco tempo. Pesa na cabeça de cada um daqueles operários que, por causa de seu trabalho, serão vítimas de câncer e morrerão em meses ou em poucos anos."

O almirante Fakhoury, vice-chefe do Emdena, não se furtou de pensar: "Isso é lá do outro lado do mundo. Não temos nada com isso". Pensou, mas não falou.

Oliveira Dias continuou: "Os níveis de radiação que encon­tramos em Bariloche trazem algumas mensagens relevantes. Primeiro, que a bomba argentina será, provavelmente, aquilo que os cientistas denominam 'bomba suja'. Isto é, não apenas capaz de matar todas as formas de vida existentes na área do impacto direto da explosão, mas, como aconteceu com a ex­plosão da usina de Chernobyl, seus danos permanecerão ativos por anos e, talvez, décadas. Nenhuma forma de vida vicejará em seu entorno".

"Além disso, a operação do laboratório do lago Nahuel Huapi causa vários tipos de especulação. O grau de radiação observado em seus arredores indica a precariedade das defesas montadas para proteger os cientistas que ali trabalham. O vazamento de radiação sugere, por sua vez, edifícios inadequados a abrigar os processos neles desenvolvidos.

"Esses fatos têm várias explicações. A primeira seria a incom­petência dos dirigentes do programa. Ou eles não se dão conta, em profundidade, do que está acontecendo lá, ou — segunda hipótese, mais terrível — não se incomodam com tais coisas. Sabem que todas — repito, todas — as pessoas que trabalham no laboratório contrairão câncer e/outras doenças e deforma­ções capazes de incapacitá-las pelo que lhes restar de vida. Ou causar a sua morte prematura. Quem estiver vivo, nos próximos cinco a dez anos, poderá atestar o que digo."

As perspectivas traçadas pelo professor Oliveira Dias eram arrasadoras.

O general Pais de Oliveira, chefe do Emdena, disse, refle­tindo o que pensavam todos os presentes: "Isso acontecerá na Argentina. Mas, apesar da geografia, tal desgraça nos interessa diretamente. Não falo só em termos de defesa nacional, mas de cuidado humanitário. Não podemos ficar quietos enquanto isso tudo acontece 'do lado de lá' das nossas fronteiras terrestres. Temos de conversar urgentemente com a presidenta Mariana

Rousseau. Ver o que ela tem a dizer à presidenta argentina. Se deve adverti-la dos perigos iminentes".

"Mais importante que tudo, a nossa presidenta precisa ave­riguar se a presidenta Silvana Lapena está sabendo do fato da construção da bomba argentina e com ele concordando. Ou se, como suspeitamos, corre tudo à sua revelia."

Nada mais havia para dizer. O general fez um agradecimento especial ao professor Oliveira Dias, elogiou o coronel Schmidt e encerrou a reunião.

Minutos depois, o general Pais de Oliveira falou pelo tele­fone com o ministro da Defesa, Flávio Sales. Disse-lhe simples­mente: "Temos a confirmação do que suspeitávamos. Preciso conversar com o senhor no mais breve prazo possível. E, depois, como concluirá comigo, teremos de ir ao Palácio do Planalto e transmitir tudo à presidenta Mariana Rousseau e aos demais ministros que têm participado das nossas reuniões".

O ministro da Defesa respondeu rápido, cheio de curiosi­dade pelas revelações que iria ouvir:

"Da minha parte, poderemos conversar hoje à tarde. Nossos gabinetes acertarão a hora. Creio que os comandantes em chefe devem ser informados do que vocês tiverem apurado.

"Traga também as pessoas que obtiveram as provas. Não se ofenda, mas eu gostaria de ouvir seus relatos em primeira mão."

Não fugia da cabeça do general-chefe do Emdena o pen­samento ácido: "Esses políticos gostam de reuniões. Mas só a dois. Ou, então, com o maior público possível".

Uma pausa. O ministro continuou: "A presidenta, como o general deve saber, está viajando desde ontem pelos principais países da União Européia em busca de acordos comerciais que possam dar vida ao Mercosul. Ou, então, acordos bilaterais que beneficiem o Brasil, embora possam não ser do agrado total dos demais parceiros do nosso mercado comum, que teima em permanecer semiativo ou em ficar girando no terreno das boas intenções".

"Segundo informa o Gabinete Civil, a presidenta chegará de volta na quinta-feira, 2 de junho. Na segunda, dia 6, terá reunião com os chefes de Estado do Mercosul em Assunção. Justamente para decidir sobre o futuro da integração econômica dos quatro países — Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai — e a admissão da Venezuela no Mercosul. Temos de obter uma hora com a presidenta nos poucos dias que passará em Brasília.

"Nos veremos ainda hoje, se for possível. Obrigado. Até logo."

 

Às 4 da tarde, conciliados os vários horários e agendas, reúnem-se no gabinete do ministro da Defesa os generais do Emdena, os comandantes em chefe, o professor Armando de Oliveira Dias e o coronel Antônio Schmidt de Oliveira. Com o apoio da memória fotográfica de Schmidt, o professor Oliveira Dias expõe tudo o que haviam visto, inspecionado, medido, le­vantado, gravado em termos de radiação, em torno do labora­tório dos arredores de Bariloche e nas águas do lago Nahuel Huapi.

Citou os animais mortos, as flores e folhas "queimadas". Res­saltou que não observaram peixes mortos no lago, mas que isso poderia ocorrer em questão de dias.

Os dois participantes da missão enfatizaram o caráter fatal da exposição prolongada de todas as pessoas que trabalham dentro ou em torno do laboratório aos níveis de radiação ali encon­trados. Sua opinião quanto à probabilidade de o processo de fazer uma bomba atômica estar em sua fase final. O que, por outro lado, confirmava as conclusões de Schmidt sobre o ar festivo dos cientistas residentes no Hotel Los Pampas, onde também se hos­pedara o coronel. E sugeria a iminência do disparo da primeira bomba, em testemunho do sucesso da operação. Por fim, a aber­tura do caminho para as bombas seguintes.

Exceto por um ou outro ocasional pedido de esclarecimento, o ministro Flávio Sales ficara praticamente mudo em toda a expo­sição de Oliveira Dias.

Concluído o relato, com as minúcias desejáveis, o ministro voltou-se para cada um dos presentes e disse: "Vocês têm 100% de razão. O assunto precisa ser levado imediatamente à Presi­dência da República. Só que a presidenta Mariana Rousseau está na Europa, não sei se na França ou na Alemanha. Mas isso não é coisa para se falar por telefone. Nem mesmo via Itamaraty, pois o ministro das Relações Exteriores está viajando com ela. E não creio que seja prudente trazer mais gente para a intimidade desse enorme problema".

"Fiquei me perguntando também", continuou o ministro, "se deveríamos comunicar o que sabemos ao vice-presidente Gordon Vilela Koontz — em pleno exercício do cargo de presidente. No mínimo, como prova de consideração; mas, também, por dever de ofício".

"Quanta volta em torno do nada para chegar ao óbvio ulu­lante", pensou Schmidt. "Por mim, devíamos telefonar imediata­mente ao Planalto pedindo uma audiência extraordinária ainda hoje, agora mesmo. Ou deixar o 'marfim correr' livre."

Como se tivesse escutado esse pensamento, o ministro chamou a sua assessora de relações institucionais, Sônia Maria Botelho, e pediu-lhe que falasse com sua colega também Sônia Maria, as­sessora do ministro José Eduardo Figueiredo, chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, com o qual Sales precisava falar urgentemente.

Flávio Sales transmitiu ao ministro Figueiredo o pedido de uma audiência extraordinária com o vice-presidente da Repú­blica, presidente em exercício, "para hoje, se possível". Motivo: informar o vice-presidente de importantes fatos novos relativos à matéria que, nas últimas semanas, vinha sendo discutida com a presidenta Mariana Rousseau. Figueiredo não fez perguntas. Tendo participado de todas as reuniões que a Defesa mantivera com Mariana, ele logo percebeu que se tratava da bomba argentina.

O ministro da Defesa informou, ainda, que precisaria levar com ele o chefe do Emdena e as duas pessoas que lhe haviam relatado os "fatos novos". Razão da urgência: os fatos eram extre­mamente importantes do ponto de vista político e, ainda mais, da Defesa.

Não muito depois, veio a confirmação: "O presidente em exer­cício receberá o ministro da Defesa e sua comitiva às 19 horas, logo após a última audiência agendada para o dia".

Os relógios marcavam o horário de verão em Brasília. Era ainda dia claro quando os quatro chegaram, no carro do ministro Flávio Sales, ao subsolo do Palácio do Planalto. Subiram, pelo ele­vador privativo, diretamente ao terceiro andar, onde se situa o ga­binete presidencial. Sem grande atraso, o vice-presidente Vilela, como era chamado rotineiramente, recebeu os visitantes, mais o ministro-chefe da Casa Civil, José Eduardo Figueiredo.

Schmidt não demorou a pensar: "Esse aí, cujo último nome é Koontz, também é chamado, como eu, pelo sobrenome materno. O pai dele deve ter a mesma frustração que o meu".

Pensando em sua tranqüila vida pessoal, Vilela queria abreviar a audiência para ir o mais rápido possível ao Palácio do Jaburu, sua residência oficial, onde o esperavam a mulher, a filha viúva e os dois netos cujo convívio alegre ele tanto apreciava.

O vice-presidente perguntou, logo depois das apresentações e cumprimentos de praxe: "Então, qual é o assunto urgente, de interesse da nossa defesa, que temos para hoje?"

O ministro Flávio Sales respondeu imediatamente: "Nos úl­timos dois anos, o Estado-Maior da Defesa Nacional vem man­tendo missões secretas em certos países sul-americanos, nos quais, com maior ou menor razão, suspeitava-se que estivesse em andamento um processo de fabricação de bombas atômicas".

"Como o senhor vice-presidente sabe, tais bombas são refe­ridas como armas de destruição em massa. Pelo seu poder des­trutivo de todas as formas de vida, humana, animal e vegetal e pelos seus efeitos arrasadores nas áreas atingidas — florestas, edi­ficações, cidades.

"A suspeita dos serviços secretos americanos de que tais armas estivessem em processo de fabricação no Iraque foi uma das ra­zões da invasão daquele país pelos Estados Unidos."

O vice-presidente olhou para o ministro. Em seu rosto e seus olhos, a pergunta: "E daí?"

Flávio Sales pediu licença ao vice-presidente para passar a pa­lavra ao general Fernando Pais de Oliveira. Com assentimento do vice, o general relatou como vários países foram eliminados das suspeitas, até que essas se concentrassem na Argentina. Deu uma visão geral das missões que, em dois anos, haviam levado à identificação do laboratório no qual o urânio era enriquecido em níveis altos demais para o seu uso pacífico. Nível no qual o U235 — "desculpe o jargão", disse Flávio — só serve para fazer a bomba.

Deu a maior ênfase às qualificações técnicas dos dois espe­cialistas ali presentes — coronel Antônio Schmidt de Oliveira e professor doutor Antônio de Oliveira Dias — e pediu-lhes que re­latassem suas observações e a documentação do que haviam en­contrado.

Oliveira Dias contou tudo. A hora de chegar ao Jaburu já passara, mas o vice-presidente Vilela não perdia uma só pa­lavra. Fez perguntas pertinentes, que desmentiam a perspectiva de um vice-presidente da República sempre "por fora" dos fatos importantes.

No caso de Vilela, a situação era muito diferente. Economista e empresário de sucesso na indústria pesada, ele passara grande parte de sua vida como homme du monde. Antes de ser escolhido para companheiro de chapa da candidata presidencial Mariana Rousseau, circulava pelos grandes centros de atividade técnica e social no país e no exterior.

Vilela se interessava por tudo o que dizia respeito ao desenvol­vimento econômico do Brasil e do mundo. Aos 56 anos de idade, como vice-presidente da República, mantinha a posição discreta que o cargo exige. Mas se interessava por tudo o que chegava ao seu conhecimento. Sempre que a presidenta achava útil pedir a sua opinião sobre qualquer assunto, comparecia com a experiência e a visão não engajada de quem, mesmo sem participar do cotidiano, tinha clara noção das coisas e da vida.

Em certo momento da exposição — e conformado com a hi­pótese de que se atrasaria na volta à vida de família —, o vice-pre­sidente quis saber, também, até que ponto a presidenta Mariana estava ciente da questão e de seus detalhes. E sua posição, relati­vamente às relações do Brasil com a Argentina, nos campos diplomático, político e econômico. Além, é claro, das repercussões desses fatos em suas relações pessoais com a presidenta argentina Silvana Lapena.

O vice-presidente Vilela quis saber ainda mais: "Pelo linguajar corrente nos meios políticos, o fato de um país dedicar vultosos recursos ao desenvolvimento da bomba atômica tem duas cono­tações: ou é uma questão de equilíbrio de poder — e, digo eu, de terror —, como no caso Índia/Paquistão, ou é um fator de dissuasão, como Israel em face dos países árabes".

"Nesse contexto, tenho duas perguntas a fazer. A primeira é óbvia: para que a Argentina precisa de uma bomba atômica? Que se saiba, nossos vizinhos não têm inimigos à vista. Nem reivin­dicações territoriais, exceto o sonho de retomar a soberania do arquipélago das Malvinas, ocupado pelos ingleses há mais de um século. Mas, se isso acontecer, pensa um leigo como eu, uma bomba atômica só teria efeito destrutivo. Do qual nada restará a ser povoado — pelos argentinos, pelos ingleses ou por qualquer outro povo."

Todos sorriram intimamente. O vice-presidente repetira a mesma pergunta que cada um deles havia feito a si mesmo e aos demais circunstantes. Ninguém sabia a resposta.

"A segunda pergunta é mais terra a terra: como, do ponto de vista militar, a existência de uma bomba atômica argentina poderá afetar a defesa do nosso território e da nossa gente? Os senhores têm alguma sugestão sobre se devemos fazer algo de concreto, como prevenção — ou, como se diz, de equilíbrio de poder dos dois países? E, mais ainda, se devemos fazer alguma coisa com o objetivo de defesa contra um eventual ataque nuclear argentino?

"Penso, também, que a opinião pública mundial reagirá una­nimemente contra a Argentina se alguém comprovar que ela construiu ou está construindo uma bomba atômica. Embora ainda ocorram inúmeros casos de ações militares — na sua maior parte, em âmbito localizado —, não vejo perspectivas de novas guerras púnicas entre civilizações ocidentais. Sim. Entendo que na Ásia persistem fortes correntes contrárias aos interesses ame­ricanos e à sua presença em terras como o Iraque e o Afeganistão.

"Contudo, esses fatos ocorrem em pontos da Terra tão dis­tantes do nosso continente, que nem posso imaginar alguém ten­tando trazê-los para o nosso âmbito local.

"Resta, é obvio, o receio dos governantes de todos os países econômica e politicamente importantes no mundo quanto à eventualidade de armas nucleares de pequeno porte, mas enorme poder destrutivo, caírem em mãos de grupos de terroristas, des- compromissados com a vida, a liberdade e os direitos das pessoas humanas. E inspirados, apenas, no que pensam ser os instru­mentos mais adequados não só para destruir os 'inimigos' de sua forma de vida e civilização como, também, a fonte de todas as injustiças do mundo."

 

O vice-presidente Vilela percebeu que se tinha alongado de­mais. E que seus interlocutores haviam dito tudo o que sabiam sobre a matéria. Mas, pensou, ninguém aventurara alguma su­gestão concreta sobre o que fazer. Ou, ainda, sobre se cabia a ele — vice-presidente, em exercício por poucos dias — fazer algo na ausência da titular do cargo.

Olhou para todos. Cada um podia imaginar o que passava na cabeça de Vilela. Ninguém se aventurava a falar. O vice-presi­dente dirigiu-se então ao ministro Figueiredo, chefe do Gabinete Civil: "E você, ministro, o que pensa de tudo o que se disse aqui?".

José Eduardo Figueiredo também não sabia o que pensar. E re­solveu dar "uma de mineiro": na falta de sugestões concretas, saiu pela tangente: "As notícias, os fatos são todos novos demais. Um passo em falso — seja do lado de lá, seja do lado de cá — poderá ter conseqüências fatais para qualquer dos dois países, ou para ambos, e seus povos. Concordo com o pensamento subjacente nas palavras do senhor vice-presidente: esse assunto é daqueles que só podem ser resolvidos pela presidenta, na perspectiva do relevo do seu cargo, bem assim da duração do seu mandato e da posição do Brasil perante o mundo".

Por fim: "A presidenta chega de volta de sua viagem na manhã da quinta-feira próxima, dia 2 de junho. Assim, só temos duas escolhas: aguardamos o seu regresso ou mandamos o professor e/ou o coronel encontrar-se com ela para transmitir-lhe os fatos e as opções de ação que pudermos alinhar até agora. Pessoal­mente, não gosto da última hipótese. Entre várias outras razões, porque não temos, de fato, sugestões concretas a fazer à presi­denta. Creio que a melhor hipótese ainda é o Emdena colocar os fatos sobre a mesa e discutir com o ministro da Defesa e os comandantes em chefe o que podemos ou o que devemos fazer. E quando".

O vice-presidente concordou. Ele também não sabia o que fazer. Só que perderia o sono, naquela noite, pensando nas vá­rias hipóteses de ação. Agradeceu a presença de todos. Como ato final, disse apenas: "Quando vocês chegarem a uma sugestão concreta, voltaremos a nos reunir. O ministro Figueiredo dará prioridade absoluta ao nosso novo encontro".

 

À partir das revelações do professor Oliveira Dias e do co­ronel Schmidt, o clima nos centros de decisão da capital brasileira era só de incertezas, perguntas sem resposta pronta e satisfatória. Do tipo "o que devemos fazer?", ou "há alguma coisa que podemos ou devemos fazer em relação à bomba atô­mica argentina?"

Em poucos dias, a bomba argentina passara da categoria de "nós achamos" para a de "temos certeza". Certeza sempre acom­panhada da pergunta "como isso nos afeta no plano da defesa nacional?", ou, na perspectiva internacional, "nós devemos de­nunciar ou calar?".

De outra parte, o roteiro da presidenta Mariana Rousseau pelas principais capitais europeias era considerado por ela "a viagem dos meus sonhos". Não só em razão do que vira pela primeira vez, depois de tanto ter lido a respeito — museus, monumentos, ruínas, paisagens. Ou das pessoas com as quais conversara: rainha, presidentes, primeiros-ministros, líderes comerciais e industriais, ícones científicos, gente que parecia tudo saber e mal escondia certo sentimento de superioridade em relação a um país dito "emergente".

Contudo, o principal motivo da viagem, o motivo da sua ale­gria e a razão do seu sucesso, saíra da cabeça da presidenta bra­sileira. Ela escolhera uma determinada diretriz, transmitida com grande força e convicção em reunião convocada especialmente para esse fim, na véspera da partida, com os três ministros — Relações Exteriores, Ciência e Tecnologia e Educação — e os em­presários que participariam da sua comitiva: "Nós vamos viajar para Vender' o Brasil, a nossa capacidade de suprir os países da União Européia de vários produtos e serviços dos quais neces­sitam e importam de outras partes".

"Sim", continuou a presidenta. "Matérias-primas para as suas indústrias, mas não em forma primária: queremos não apenas investimentos financeiros, mas também mais ciência, mais tec­nologia. Investimentos capazes de desenvolver a nossa produção primária e transformá-la em itens elaborados, com valor agregado apreciável.

"No assunto tecnologia, não pensemos em 'transferência de tecnologia' pronta, vendida a peso de ouro. Mas, principalmente, na capacitação do nosso pessoal técnico na pesquisa e desenvol­vimento de tecnologias capazes de servir às nossas necessidades. Não só para consumo interno, mas também para exportar. Algo na linha de deixarmos de exportar minério de ferro e passarmos a vender o nosso aço — e os produtos que dele se fazem.

"Por isso, a sua missão nesta viagem, meus ministros, consis­tirá em identificar as oportunidades de acordo para ações capazes de nos habilitar — literalmente, em todos os setores — a 'dar o salto tecnológico' que o Brasil precisa transformar em realidade e do qual tantas vezes falei. Acordos com laboratórios, universi­dades e centros científicos, para formação, estágios e treinamento do nosso pessoal, mais cursos dados pelos cientistas europeus.

"Nosso modelo está mais para a China e a índia, com a sua ca­pacidade demonstrada de transformar matérias-primas em pro­dutos finais, dotados de maior conteúdo tecnológico, maior valor agregado. Como vocês sabem, o mercado consumidor mundial nos oferece inúmeras oportunidades de diversificar e sofisticar a nossa pauta de exportações, deixando para trás o simples co­mércio de commodities."

Assim, quando o primeiro-ministro britânico Patrick Smith abordou a venda de submarinos movidos a energia nuclear, Ma­riana concordou em que o Brasil precisaria deles para policiar os sítios de exploração de petróleo do pré-sal. "Mas o Brasil", disse ela, "não se contentará em ser mais um membro da Opep, mais um exportador de petróleo bruto".

A presidenta brasileira enfatizou o seu conhecimento do ganho exponencial dos países produtores, quando comparado o custo do petróleo "na boca do poço" com o seu preço de venda em Londres e Nova York. Mas acentuou: "Do petróleo bruto, vendido nesses mercados, para os derivados, o lucro adicional é várias vezes maior".

Na visita da presidenta Mariana Rousseau ao Palácio do Eliseu, em 27 de maio, o presidente francês Jean-Luc Renault insistiu na proposta feita e reiterada por ele ao antecessor de Mariana, da venda de aviões de caça franceses para a Força Aérea Brasileira.

Em resposta, ela tocou com aparente conhecimento de causa na tecla de transferência de tecnologia. "Não queremos copiar o Dassault Rafale", disse, "mas desenvolver produtos sofisticados, usados na aviação e para outros fins." E propôs que os dois governos pro­curassem, por meio de suas organizações estatais de ciência e tec­nologia, criar programas capazes de realizar o seu ideal: "Dar um salto. Do relativo atraso em que nos encontramos — e que a nin­guém interessa legitimamente — ao topo do século XXI".

Renault não respondeu, sim ou não, se patrocinaria tal pro­grama pelo lado francês. Mas pensou: "Essa mulher vai longe". E falou: "Sei que a senhora presidenta é advogada. Mas fala com tanta firmeza sobre a questão de tecnologia que parece enge­nheira. Vou pensar".

O presidente não se furtou de comentar a ascendência fran­cesa implícita no sobrenome de Mariana. Quis saber o grau de parentesco da brasileira com o pensador e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau — "o mais francês dos suíços", disse o presidente. Tendo vivido no século XVIII, Rousseau teve papel decisivo, por seus escritos e sua filosofia, em criar a mentalidade que levou à Revolução Francesa uma década depois da sua morte. Revolução que fundou os princípios dos regimes democráticos de todo o mundo até os dias atuais.

Mariana disse o pouco que sabia do seu parentesco. Na época da Revolução, um dos primos distantes de Rousseau emigrara para um país indeterminado da América do Sul. Anos depois, nova imigração, dessa vez para o Brasil, onde vivem seus descen­dentes, sem ligação alguma com a Suíça ou a França. "Mas, como o senhor presidente Renault deve saber, eu mesma fui revolucio­nária", disse Mariana. "Lutei contra o regime militar, que durou mais de duas décadas no Brasil. Fui presa, torturada e abusada. Escondi-me como pude. Refugiei-me no Uruguai. De lá, fui de­portada para o Brasil. E, por fim, anistiada em 1980."

A maior parte do fim de semana de 28 e 29 de maio Mariana passou como turista em Paris. Visitou o Louvre, o Centro Georges Pompidou, o Jeu de Paume, foi à Torre EifFel (não subiu), subiu no Arco do Triunfo para apreciar a beleza da Avenue des Champs Elysées, visitou a Opera, a Catedral de Notre Dame, o Jardim das Tulherias e as melhores partes da Rive Gaúche. Seguiu minuciosamente o roteiro dos bons turistas brasileiros em Paris.

No fim da tarde do domingo, dia 29, foi para Berlim no avião presidencial.

As conversas com Dora Schaeffer, chanceler alemã, foram das mais proveitosas. O principal tema do governo alemão dizia respeito ao término da construção da terceira usina de Angra dos Reis, conforme os acordos Brasil/Alemanha assinados mais de trinta anos antes. Acima de tudo, Schaeffer propunha novo acordo para a construção, pelos técnicos alemães, das usinas elé­tricas movidas a energia nuclear que o Brasil pretendia fazer fun­cionar na região do Nordeste e em outras partes do país.

Discutiram longamente os reflexos do desastre nuclear japonês e a convicção de ambas as chefas de governo de que — passado o "sufoco" e serenada a ansiedade alimentada pelo comprometi­mento de vidas em torno das usinas de Fukushima — diversos países retomariam seu programa de geração de eletricidade a partir de centrais nucleares. E, portanto, haveria muito a fazer, nos dois países, em termos de engenharia e de enriquecimento de urânio para fins pacíficos. Para consumo interno e para exportação.

Ambas admitiram a possibilidade de recuos "táticos": decla­rações sobre a suspensão, nos próximos anos, dos programas de geração de eletricidade a partir da energia atômica. E declara­ções — destinadas mais a satisfazer o ambiente político interno, do que promessas de realidade — de cancelamento do programa nuclear nacional nas décadas seguintes.

No dia 30, a caminho de Roma, houve uma pequena parada do avião presidencial em Viena. O ministro das Relações Exte­riores, Roberto de Souza Alighieri, assinaria, na sede da Agência Internacional de Energia Atômica, a adesão do país ao Protocolo Adicional ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Mariana desejava prestigiar o ato. E dar ênfase à autorização da entrada no Brasil de fiscais da AIEA para inspecionar as instala­ções de pesquisa nuclear e simbolizar a renúncia à construção de armas atômicas.

Em seguida, Roma. Encontro com o primeiro-ministro Donato Falconi. Mesmos temas. Perspectivas semelhantes. Visita ao papa, no Vaticano.

Todos os dias, Mariana e os ministros que a acompanhavam queriam saber, pelo telefone e pelos boletins da agência gover­namental de notícias, como iam "as coisas". Do lado brasileiro, diziam que corria tudo bem, no melhor dos mundos.

No dia primeiro de junho, à noite, fez-se o vôo de retorno a Brasília, com chegada pela manhã do dia 2. Na Base Aérea, o vice-presidente, Gordon Vilela Koontz, e todos os ministros receberam efusivamente a presidenta Mariana Rousseau, cumprimentando-a pela repercussão da viagem nos meios de comunicação brasileiros e europeus.

Minutos antes de entrar no automóvel que a levaria ao Palácio da Alvorada, Vilela se aproximou da presidenta e lhe disse em voz baixa: "Com sua permissão, gostaria de acompanhá-la no carro. Tenho algo importante a dizer-lhe". Mariana concordou. Vilela deu instruções ao seu ajudante de ordens para que o encontrasse com o carro no Alvorada, de onde voltariam para o gabinete vice-presidencial.

Entraram na limusine presidencial, fecharam a janela de vidro que separa o banco da frente — ocupado pelo motorista e pela ajudante de ordens de Mariana — dos assentos de trás, em que se acomodavam com todo o conforto a presidenta e o vice-pre­sidente — que, aliás, foi direto ao assunto: "Lamento, presidenta Mariana, que temos confirmação insofismável de que, como você e a Defesa suspeitavam, os militares argentinos estejam mesmo desenvolvendo urânio para fazer uma bomba atômica".

Como seria de esperar, Mariana ficou estupefata com a no­tícia. "Como assim? A presidenta Silvana Lapena me disse que o laboratório capacitado a enriquecer urânio, que existia no sul da Patagônia, foi fechado há mais de dois anos!"

E em seguida: "Eu tinha dado ao Emdena a missão secreta de aprofundar a averiguação, que eles vinham fazendo há bastante tempo, justamente para obter a verdade, além de toda dúvida, sobre essa questão".

Parou um momento e perguntou: "Você tem elementos novos para confirmar o que diz?".

O vice-presidente relatou à presidenta os detalhes das medi­ções de radiação feitas em torno do laboratório, à margem do lago Nahuel Huapi, pelo coronel Antônio Schmidt de Oliveira, que ela conhecia pessoalmente e em cujas pesquisas confiava, e pelo professor Armando de Oliveira Dias, da CNEN. Transmitiu-lhe as informações referentes a animais mortos e vegetais murchos nos bosques e florestas em torno do laboratório e à presença de radioatividade nas águas do lago.

Da estupefação à perplexidade. E daí à dúvida. Mariana não podia imaginar que a presidenta argentina lhe tivesse mentido ao informar sobre o fechamento da "oficina" que fazia "bolsas de luxo" no sul da Patagônia. E disse o que pensava.

O vice-presidente esclareceu no ato: "Como a senhora se re­cordará, o coronel Schmidt, e todo o Emdena, interpretaram a comunicação da presidenta Silvana Lapena como indício de que ela fora enganada pelos seus militares. Nós não ficaríamos surpresos se os procedimentos do laboratório de Bariloche, cuja existência e atividade foram identificadas pelos nossos dois en­viados, estejam sendo conduzidos à revelia dela".

Mariana Rousseau disse apenas: "Vou pensar em qual deve ser a nossa atitude. De qualquer modo, autorizei a Aeronáutica a manter um satélite — teleguiado e invisível ao radar — estacionário sobre o local onde pensamos existir um laboratório. O satélite está funcionando? Enviando imagens? Essas imagens confirmam nossas suspeitas?".

Vilela confirmou tudo. E sugeriu que a presidenta se encon­trasse, na primeira oportunidade possível, com os ministros e generais que haviam participado das reuniões anteriores sobre esse assunto, mais o coronel Schmidt e o professor Oliveira Dias. "Valeria a pena", continuou o vice-presidente, "para o seu convencimento pessoal e cabal, a presidenta ouvir deles em primeira mão os elementos e detalhes que os convenceram dos fatos."

A presidenta Mariana Rousseau concordou.

Ao chegarem ao Palácio da Alvorada, residência presidencial, despediu-se de Vilela. Sem um minuto de descanso, só uma rá­pida chuveirada, tomou o caminho do Planalto. Chegando à sua sala, chamou imediatamente o ministro José Eduardo Figueiredo, chefe do Gabinete Civil.

Sem se estender sobre a viagem da qual acabava de regressar, comentou com o ministro: "Parece que temos novidades sérias quanto à bomba atômica argentina". Figueiredo confirmou. Ma­riana continuou: "Estive pensando: dificilmente posso imaginar que Silvana tenha mentido para mim. E tenho brincado com a idéia de enviar-lhe uma mensagem, tão cifrada como a que ela me mandou. Algo mais ou menos assim: 'Parece que existe, no norte da Patagônia, uma nova oficina fazendo bolsas de luxo com peles de animais silvestres. Talvez você queira investigar. Não resolvi nada. Antes de tomar posição nesse assunto quero ouvir os relatos do coronel e do professor que identificaram o laboratório. Marque uma reunião, se a minha agenda comportar, para esta tarde".

Figueiredo respondeu: "Como a senhora presidenta esteve via­jando e o vice-presidente passava o dia inteiro aqui, os assuntos de rotina foram todos resolvidos por ele. Obviamente, diversos ministros desejam audiência para expor problemas e fazer pro­postas. Posso acomodar tudo e todos. Marcarei a reunião que a senhora deseja para a tarde".

Continuaram o despacho até o fim. Figueiredo voltou ao seu gabinete e deu os telefonemas necessários para programar a reu­nião desejada pela presidenta naquela tarde. Obviamente, todos os convocados estavam disponíveis.

Na hora marcada, chegaram todos ao gabinete presidencial: os ministros da Defesa, das Relações Exteriores e do Gabinete Civil, os comandantes em chefe e todos os generais do Emdena, mais o coronel Schmidt e o professor Oliveira Dias. A presidenta cum­primentou todos e deteve-se um segundo com Schmidt, falando-lhe: "Tenho algo a lhe dizer".

O professor Oliveira Dias foi devidamente apresentado à pre­sidenta Mariana Rousseau, com seus títulos acadêmicos e cientí­ficos. Em particular, com sua especialidade em energia nuclear, de cuja comissão nacional era membro.

Oliveira Dias e Schmidt expuseram à presidenta um retrato falado de tudo o que haviam feito, visto, observado, fotografado, registrado nos arredores do laboratório de Bariloche. E os ele­mentos de convicção — particularmente, os índices de radiação medidos e arquivados nos meios apropriados do CNEN — que comprovavam a sua quádrupla certeza.

Primeiro: ali se estava enriquecendo urânio em graus incom­patíveis com o seu uso civil. O U235 produzido naquele labora­tório só serviria para fazer uma bomba.

Segundo: pela intensidade e extensão da área sujeita à ra­diação, o processo deveria encontrar-se em sua fase final. Uma bomba poderia ser explodida daí a dias, não a meses.

Terceiro: nos próximos cinco a dez anos, todos os que traba­lharam naquele laboratório acabarão vítimas de câncer e/ou de outras doenças e deformações.

Quarto: os arredores do laboratório e, talvez, a própria cidade de Bariloche ficariam inabitáveis por, pelo menos, trinta anos: o tempo de degradação dos elementos de U235.

Entre os presentes caiu um silêncio insondável.

A presidenta Mariana Rousseau perguntou: "Vocês têm al­guma idéia da potência da bomba que estaria, como vocês dizem, em 'fase final' de construção? E, mais ainda, se os nossos vizinhos estão fazendo 'uma bomba ou se têm mais de uma em processo?".

A resposta foi dada pelo professor Oliveira Dias: "Como ne­nhum de nós trabalha no laboratório de Bariloche, é impossível responder com certeza às suas duas perguntas".

"Contudo, como sabemos, o processo para fazer bomba atô­mica não tem manuais disponíveis e geralmente aceitos. Os cien­tistas devotados a uma primeira bomba caminham passo a passo.

Fazem tentativas. Avançam com os acertos. Identificam e con­sertam os erros. Evitam a sua repetição. O que nem sempre é fácil ou possível.

"Testada a primeira bomba com sucesso, fica bem mais fácil construir as bombas seguintes a partir do caminho certo des­coberto. Por isso, pensamos que, neste momento, eles só devem ter a primeira bomba. O que seria medida de prudência, em caso de acidente."

Schmidt citou a sua última conversa com Fernando Gutierrez, professor de energia nuclear da Universidade Nacional de Buenos Aires. Segundo dissera Gutierrez, a primeira bomba argentina teria a potência na ordem de quilotons. Isto é, alguns milhares de toneladas de dinamite ou TNT. Começar pelas altíssimas potên­cias — expressas em megatons, ou milhões de toneladas de TNT — seria, "no mínimo, um ato de inacreditável imprudência".

Schmidt continuou: "As palavras do professor Gutierrez fazem sentido. Mas não implicam muita diferença em termos de potencial agressivo. O efeito destrutivo de uma 'pequena' bomba atômica expressa em milhares de toneladas é simplesmente devastador".

Silêncio completo. Ninguém sabia o que pensar. Muito menos, dizer.

A presidenta Mariana começou a repetir em voz alta algumas das perguntas que cada um tinha feito em silêncio a si próprio: "Na opinião de vocês, o que devemos fazer?".

Olhou em volta e continuou: "Vamos pensar um instante no plano mais restrito das relações dos militares com o poder civil na Argentina. Como vocês sabem, o establishment militar dos nossos vizinhos não aceita de bom grado o controle civil das Forças Armadas. Com base nessa premissa, vocês acreditam que tudo o que me relataram, nesta reunião e nas anteriores, esteja sendo feito com o conhecimento da presidenta Silvana Lapena? Ou, no cúmulo da incerteza, que tudo se passe à revelia dela?".

E acrescentou: "Não imagino a hipótese de ela ter mentido para mim quando me informou que a oficina que fazia a bolsa de luxo' no sul da Patagônia havia sido fechada".

"Peço sugestões. Devemos abrir a boca e denunciar o fato para o mundo inteiro? Temos base suficiente para a nossa convicção? Ou seria melhor eu falar com a presidenta Silvana? Afinal, nós temos uma reunião dos chefes de Estado do Mercosul nos pró­ximos dias, em Assunção, quando vamos receber a Venezuela como quinto país membro permanente do nosso mercado comum."

Continuava o impasse: ninguém sabia o que pensar, nem o que o satélite estacionário sobre o lago Nahuel Huapi lhes informaria no sábado seguinte, dia 4. Todos pediram um prazo para refletir.

Despediram-se todos. Cabisbaixos. Ninguém esboçava um sorriso.

A presidenta pediu ao ministro da Defesa que permanecesse mais um pouco em seu gabinete. E que Schmidt, na antessala, aguardasse ser chamado.

 

A presidenta voltou-se para o ministro Flávio Sales e disse: "Ministro, como sabe, as promoções aos postos de general, almirante e brigadeiro deveriam ter ocorrido há três dias. Como eu havia pedido, o vice-presidente se absteve de assiná-las na data habitual, primeiro de maio. Eu gostaria de fazer duas promoções no Exército. Talvez elas não coincidam com a proposta do co­mando endossada por você".

Flávio Sales pensou: "Aí vêm novidades que o pessoal do Exér­cito vai detestar".

Mariana Rousseau continuou: "Como sabe, costumo acatar, nessa matéria, a recomendação do comandante de cada Força. Mas, como presidenta da República, sou comandante em chefe das três Forças Armadas. Gostaria de promover a general de divisão o general de brigada Luiz Emanuel Bulhões, atual mi­nistro do Gabinete de Segurança Institucional. E, em conse­qüência, designá-lo para um comando compatível com o seu novo posto".

A promoção de Bulhões estava entre as propostas pelo co­mando do Exército. O ministro respirou, aliviado. Mas só por um momento.

Em seguida, Mariana disse: "Gostaria, também, de promover a general de brigada o coronel Schmidt. Em seguida, nomeá-lo ministro do Gabinete de Segurança Institucional".

A promoção de Schmidt não havia sido proposta pelo co­mando do Exército. Embora já estivesse no "quadro de acesso" para promoção, junto com duas ou três dezenas de outros co­ronéis, "se Schmidt for promovido agora", pensou o ministro da Defesa, "pulará por cima de outros coronéis mais antigos". Seria uma nova "carona" nos seus colegas de posto.

Mas Flávio Sales sabia que a promoção ao generalato, nas três Forças, era ato privativo do chefe da nação. Assim, não lhe restava nada a dizer. Somente, convencer o comandante do Exército de que a presidenta exercera uma das suas prerrogativas e, assim, nada havia a ponderar ou objetar. Menos, ainda, pelo fato de ele vir a ser nomeado ministro de Estado, prestando serviço direto à Presidência da República. Teve de concordar.

Mariana mandou chamar o coronel Schmidt. Disse-lhe: "Como sabe, coronel, eu apreciei muitíssimo o seu trabalho em todas as atividades secretas relacionadas com a descoberta da bomba atô­mica argentina. Você não sabe, mas o general Luiz Emanuel Bu­lhões será promovido hoje a general de divisão. Nesse novo posto, deverá ser designado para um comando territorial compatível".

Mais uma vez, Schmidt pensava: "E eu com isso?".

A presidenta voltou-se então para ele e disse: "Acabo de com­binar com o ministro Flávio Sales que você será promovido, também hoje, a general de brigada. Em seguida, eu o nomearei ministro do Gabinete de Segurança Institucional. Nesse cargo, exercerá toda a sua capacidade de pesquisar e analisar fatos e colocá-los em perspectiva. Espero que aceite. Você será um dos meus assessores diretos e despachará comigo diariamente".

Schmidt não sabia o que dizer. Emocionado, simplesmente agradeceu. Mariana despediu-se dele com uma última recomen­dação: "Não preciso dizer-lhe, coronel — aliás, general de brigada e ministro — Schmidt, que o assunto é confidencial, até o seu anúncio oficial no fim da tarde de hoje e a publicação no Diário Oficial da União de amanhã".

Ao chegar em casa pelas 19 horas, exausto por conta do tra­balho e das missões secretas, mas também pelo peso dos fatos novos, Schmidt não conseguia esconder um misto de satisfação e preocupação. Mercedes logo notou que havia alguma novidade. Não se conteve e perguntou: "Vejo na sua cara, maridão, que há uma grande novidade. Qual é?"

Schmidt falou: "Na verdade, são três: primeira, não vou mais fazer missões secretas; segunda, serei promovido hoje a general de brigada. Embora eu já esteja no quadro de acesso' para a pro­moção, vou passar na frente de uns dez coronéis mais antigos. Isso pode causar problemas futuros que eu gostaria de evitar, mas vai acontecer de qualquer jeito".

Calou-se por uns instantes, até Mercedes dar-lhe um grande beijo e dizer: "Quando sai o ato? Vou chamar logo os meninos para contar as boas notícias. Mas falta a terceira novidade. Qual é?".

Schmidt falou: "A presidenta me convidou para ser ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI. Ela disse ter apreciado muito a minha capacidade de investigar, descobrir coisas e pôr os fatos em perspectiva. O GSI é um órgão de assessoramento direto da Presidência da República. Combina as fun­ções do antigo Gabinete Militar e do execrado SNI. Mas, sendo eu ministro, teremos melhor pagamento, boa casa para morar e diversas regalias com as quais um coronel do Emdena nem pode sonhar".

Mercedes riu, chorou, abraçou e beijou o marido, chamou os "meninos", ambos adolescentes, e lhes contou tudo. Mas disse que só no dia seguinte, quando a promoção e a nomeação saíssem no Diário Oficial, eles poderiam comemorar fora de casa. João Lucas e Alexandre abraçaram e beijaram o pai e a mãe e perguntaram: "Quer dizer que não teremos de nos mudar de Brasília para outra cidade? Que bom! Nós gostamos da 'turma' daqui!".

Mais tarde, na mesma noite, a Secretaria de Comunicação So­cial da Presidência deu todas as notícias, imediatamente repro­duzidas pelas rádios e tevês e, na manhã seguinte, pelos jornais. Agora era só esperar a reação dos colegas — em especial, dos co­legas do Emdena. Todos o abraçariam e diriam as palavras corretas. Mas muitos iriam "roer-se" de inveja.

Afora a novidade da promoção de Schmidt, o dia seguinte, sexta-feira, 3 de junho, passava na maior "modorra" no Emdena. Nada parecia acontecer na sua área de atuação. Era como se seu mundo houvesse parado. O satélite estacionário sobre o labora­tório continuava observando e enviando as suas imagens a cada minuto, mas tudo parecia "normal".

Entre o Gabinete Civil da Presidência e o Itamaraty, os speechwriters da presidenta trabalhavam no discurso que ela de­veria fazer, por solicitação dos presidentes dos demais países do Mercosul — Argentina, Paraguai e Uruguai —, saudando o pre­sidente venezuelano Mário Franco. Oficialmente, a Venezuela se tornava novo membro do Mercosul.

 

Pelas 23 horas da sexta-feira, 3 de junho, horário de Brasília, 20 horas em Bariloche, os controladores de voo do satélite es­tacionário sobre o laboratório situado à margem do lago Nahuel Huapi identificaram as novas imagens — esperadas, mas temidas por todos. Não a solidão, característica das horas seguintes ao fim do expediente e à volta do pessoal de limpeza com os animais mortos, flores e folhas murchas recolhidos nos bosques e na flo­resta em torno do laboratório. Mas imagens que perturbariam o sono de todas as pessoas envolvidas na questão da bomba atô­mica argentina.

Essas imagens foram interpretadas pelos controladores de vôo como a chegada ao laboratório de uma caravana composta de uma caminhonete de médio porte, com a carroceria coberta por uma "tenda" de lona, seguida de três vans para transporte de pessoal. Na visão dos controladores, seria o comboio que, todos imaginavam, levaria a bomba argentina ao seu destino. Ou, mais provavelmente, ao aeroporto, para ser transportada a local distante.

Pelo sim, pelo não, os controladores de vôo concluíram que deveriam transmitir imediatamente as suas observações e con­clusões ao subchefe do Emdena, major-brigadeiro Jerônimo

Florença, ao qual se subordinavam. Àquela hora, Florença se preparava para dormir. Mas, diante do relato dos controladores, vestiu rapidamente o seu uniforme e "se mandou" para a sede do Emdena.

Olhos pregados na tela, o major-brigadeiro achou que preci­saria avisar o chefe do Emdena da suspeita dos controladores, subscrita por ele, do que parecia ser a probabilidade do trans­porte iminente da bomba para o seu local de explosão.

Mas, antes mesmo de dar andamento à informação, passou instruções aos controladores de voo: "Se a caminhonete receber alguma carga, devemos tirar um zoom para tentar identificar do que se trata. Se eles se movimentarem em qualquer direção, o satélite deve acionar as lentes de aproximação e acompanhar a ca­ravana até o seu destino. Quero um zoom bem claro da hora em que a carga do caminhão for transferida — seja para um avião, seja para um depósito. Se a carga passar para um avião, o satélite acompanhará o voo até o destino final". E pensou: "Mais alguma coisa a recomendar?"

Segundos depois, o brigadeiro Florença continuou: "É pro­vável que o material carregado no caminhão seja transportado para o aeroporto. Se estivermos certos em nossa suspeita, seguirá à noite até a ponta do continente. Amanhã ou depois de amanhã a carga será transportada por helicóptero para o seu destino final. Temos de ter as coordenadas exatas do lugar em que o material for descarregado e do ponto para o qual será transferido".

Apesar da hora tardia, Florença ligou para o chefe do Emdena. Este talvez se assustasse com um telefonema no meio da noite, mas a notícia era "quente". Não podia esperar, sob pena de "es­friar" e se tornar inútil. Nem deixar escapar a oportunidade de acompanhar passo a passo a eventual detonação da primeira bomba atômica argentina.

Caberia ao general Fernando Pais de Oliveira, como chefe do Emdena, decidir se avisaria também, e quando, o vice-chefe e os demais subchefes do Estado-Maior, os comandantes em chefe, os ministros da Defesa e das Relações Exteriores. O chefe do Emdena pediu a Florença que chamasse todos. Depois avisariam a presidenta Mariana Rousseau.

Na cabeça do brigadeiro Florença, a detonação da bomba ar­gentina aconteceria daí a um ou dois dias. Ele esperava, como todos os membros do Emdena, a confirmação da suspeita de que a explosão ocorreria numa ilhota deserta ou num glaciar da Pas­sagem de Drake, entre o extremo sul da Patagônia e a Antártida, onde Pacífico e Atlântico se fundem. Na área conhecida e citada apropriadamente pelos argentinos como Fin del Mundo.

Era preciso alertar o navio brasileiro que se aproximava da Antártida para recolher os cientistas brasileiros que lá ficavam a maior parte do ano. Em caso de detonação, esse navio mediria o grau de radioatividade que a explosão de uma bomba lançaria sobre a água do mar, com eventuais deslocamentos da radiação pelos oceanos e danos à fauna marinha.

Pela 1 hora da madrugada haviam chegado à sede, confor­mados com a perspectiva de uma noite em claro, o chefe do Emdena, general Fernando Pais de Oliveira, o vice-chefe, almi­rante Eduardo Jaime Fakhoury, e os outros dois subchefes, almi­rante Francisco Chagas Rodrigues e general Ferdinando Contini.

Às 2 da manhã, horário brasileiro, 11 da noite em Bariloche, houve sinais de movimentação do laboratório ao caminhão. Era impossível identificar a carga. Menos de uma hora depois, ima­gens do satélite mostraram a caravana que partia do laboratório e caminhava em baixa velocidade numa direção compatível com o percurso para o aeroporto da cidade.

"Estão levando a bomba", pensaram todos.

O satélite, instruído pelos controladores de voo, seguiu o com­boio e enviou regularmente imagens de seu percurso. Na aparência, o dia e a hora escolhidos para o deslocamento eram favoráveis: não havia ninguém pelas ruas capaz de desconfiar do que se passava, de perguntar para onde ia a caravana ou o que transportava.

Alta madrugada. A caminhonete e as vans chegaram ao aero­porto e, depois de negociações rápidas, os veículos entraram na pista, onde se encontrava um avião de transporte da Força Aérea Argentina. O volume levado pela caminhonete foi descarregado diretamente no compartimento de bagagem do avião. As ima­gens noturnas não eram claras o bastante para identificar a natu­reza da carga transferida da caminhonete para a aeronave.

Das vans desceram dez ou doze pessoas, que embarcaram no avião; ele levantou voo e seguiu na direção sul. O satélite foi instruído a acompanhá-lo e a enviar imagens da rota. Tudo pa­recia correr estritamente de acordo com o script desenhado pelo Emdena, com base nas observações do coronel — agora general — Schmidt, do transporte do que, segundo as medições do pro­fessor Oliveira Dias, deveria ser um artefato atômico.

Nesse momento, passou pela cabeça do brigadeiro Florença, como um relâmpago, uma idéia que ele mesmo julgou estapa­fúrdia: "Está tudo conforme demais com o que suspeitamos. Seria possível que os argentinos tivessem descoberto a nossa es­pionagem e montado um quadro compatível com o que achamos, para, depois, desmoralizar-nos?".

Florença não falou diretamente com os demais generais do Emdena do que lhe passara pela cabeça. Mas concordou, embora tardiamente, com a decisão da presidenta Mariana Rousseau de não permitir a ação abortiva de destruição da bomba antes da ex­plosão. Assim, o país evitava um ato agressivo a um vizinho e a decepção que se seguiria à eventual descoberta de que tudo era co­média para iludir e ridicularizar os brasileiros.

Uma hora depois, Florença não resistiu. Perguntou: "Será que as imagens que estamos vendo refletem fatos reais? Ou os argen­tinos estão montando uma ficção para nos enganar?".

Ninguém respondeu. Aparentemente, essa hipótese havia ocorrido a todos.

Um par de horas depois, um dos controladores de voo chamou a atenção dos generais para as imagens que acabava de receber. Pela comparação delas com o mapa do sul da Patagônia, ao seu lado, parecia evidente que o avião pousaria na cidade de Ushuaia, capital da província da Terra do Fogo, Antártida e Ilhas do Atlân­tico Sul. Tudo de acordo com o "figurino". A todos, tudo parecia "certinho" demais para ser verdadeiro.

O dia começava a amanhecer no planalto central brasileiro. Então, o general Pais de Oliveira achou que deveria acordar o mi­nistro da Defesa e informá-lo do que se passava. Telefonou para a residência ministerial e o ministro atendeu irritado, com voz de sono: "Quem me incomoda a esta hora? Se for trote, meu telefone registra o número que chama e tomarei providências".

Pais de Oliveira usou de toda a diplomacia para identificar-se e passar ao ministro as informações deduzidas das imagens enviadas pelo satélite teleguiado, do laboratório à capital provincial. E o que isso poderia significar, como parte do que os militares brasileiros intitulavam "programa argentino de fazer uma bomba atômica".

A essa altura, 100% desperto, o ministro quis saber mais. E perguntou: "Como poderei ver as imagens? E onde? Quando?".

Completou: "Se vocês estiverem certos, avisarei a presidenta da República e os ministros do Gabinete Civil e das Relações Ex­teriores". E repetiu: "Onde posso ver as imagens?".

O general-chefe do Emdena recorreu novamente à diplomacia para dizer ao ministro que, como as imagens chegavam exclusiva­mente à sede do Emdena — e, mais, como mudavam de minuto a minuto —, o ministro teria de vir pessoalmente "até aqui" e acom­panhar passo a passo a sucessão delas e a sua interpretação.

Para o ministro Flávio Sales, ir à sede de um órgão a ele su­bordinado era uma espécie de "humilhação" à qual não desejava submeter-se.

Perguntou: "Vocês não podem trazer as imagens ao meu ga­binete?".

Pais de Oliveira explicou: "São centenas ou milhares de ima­gens virtuais, eletrônicas. Elas podem, evidentemente, ser gra­vadas em papel ou em outro meio, mas refletirão uma situação estática: o que aconteceu em determinado minuto. Com cer­teza, o senhor vai querer ver tudo, de maneira dinâmica, nos instrumentos de controle de voo do satélite que envia as ima­gens desde a saída do laboratório até o aeroporto, e seu voo ao sul da Patagônia".

Relutantemente, Flávio Sales acedeu. Mas perguntou: "Quem mais sabe desse assunto?"

O general respondeu: "Neste momento, de fora do Emdena, só o senhor verá as imagens. Depois, o senhor terá de resolver o que devemos mostrar e a quem mostrar o quê".

Não muito depois, o ministro da Defesa chegou à sede do Emdena e foi recebido, na porta, pelo almirante Fakhoury, seu vice-chefe. Flávio Sales foi levado à sala de controle de vôo do saté­lite e acompanhou, com natural perplexidade, a seqüência de ima­gens selecionadas pelos controladores e pelo brigadeiro Florença.

Seu comentário: "Parece que vocês têm razão. Precisamos chamar os ministros do Gabinete Civil e das Relações Exteriores para vir aqui e ver pessoalmente essas imagens".

Os dois ministros não gostaram muito da idéia, mas aceitaram o convite. E, tendo visto a série de imagens selecionadas, concor­daram com a conclusão do Emdena.

O ministro do Gabinete Civil disse então: "Temos de comu­nicar tudo à presidenta Mariana Rousseau. Ela se encontrará com a presidenta Silvana Lapena em Assunção, na segunda-feira. E não poderá deixar de tratar desse assunto com ela. Hoje, sábado, é dia sem expediente no Planalto. Porém, dada a sua ausência na viagem à Europa, ela tem vários papéis a assinar e leis a sancionar ou vetar".

Perguntou: "Este equipamento poderia ser levado ao Palácio da Alvorada ou ao Planalto para permitir que a presidenta veja tudo com os próprios olhos?".

A resposta veio do brigadeiro Florença: "Não, senhor ministro. O equipamento está ligado a uma série de outros instrumentos, como antena, leitores de imagens etc., que fazem pesado volume de materiais, alguns desmontáveis, outros não. Além disso, se a explosão da bomba efetivamente se der, pode ocorrer a qualquer momento e, para futura ação governamental brasileira, é indis­pensável termos a prova dos fatos".

"Nós imprimiremos em papel uma série de imagens que os senhores ministros poderão levar à senhora presidenta e, assim, confirmar que viram tudo aqui. Lembro apenas", falou Florença, em consonância com a dúvida levantada por ele mesmo, "que nós temos apenas suspeitas. Não temos prova de que o mate­rial transportado de Bariloche para Ushuaia seja, de fato, uma bomba atômica. Ou se os argentinos descobriram a nossa espio­nagem. E, nesse caso, se estariam preparando um truque para nos desmoralizar."

Pelas 9 da manhã, "hora decente para falar pelo telefone com a presidenta", o ministro-chefe do Gabinete Civil ligou pessoal­mente para o número privativo da chefa de Estado. Mariana atendeu pessoalmente. Figueiredo pediu confirmação dos planos da presidenta de ir pela manhã ao Planalto, conforme combi­nado, para assinar os atos pendentes de sua aprovação. Mariana marcou o começo do expediente extra para as 10 horas.

Em carros separados e com vários minutos de diferença para cada um, os três ministros e o chefe do Emdena chegaram ao Palácio do Planalto antes das 10 horas.

Para não despertar demais a atenção dos repórteres — quase todos em sonolento plantão na sala de imprensa do Palácio do Planalto —, a presença da presidenta, dos ministros e do chefe do Emdena em Palácio, no sábado, foi explicada informalmente como o despacho de assuntos deixados à sua decisão final pelo vice-presidente em exercício do cargo.

Além de atos de rotina, haveria a promoção — com dias de atraso — de outros oficiais, além dos generais das Forças Ar­madas, já promovidos, e a assinatura de leis e decretos. Tudo urgente, em vista da viagem da presidenta na segunda-feira a As­sunção para formalizar a adesão da Venezuela ao Mercosul.

Reunidos todos no gabinete presidencial do terceiro andar do Planalto, o ministro da Defesa, Flávio Sales, pediu ao general Pais de Oliveira que mostrasse à presidenta Mariana Rousseau as cópias em papel das imagens relevantes enviadas durante toda a noite de sexta e manhã de sábado pelo satélite teleguiado e lhe explicasse seu significado.

Pais de Oliveira abriu a pasta na qual carregava umas trinta imagens, selecionadas entre centenas, documentando a chegada ao laboratório da caravana de caminhonete e vans, a sua partida, a chegada ao aeroporto, a transferência da caminhonete para um avião do volume transportado, a partida e rota do avião até Ushuaia. De onde, imaginavam os brasileiros, o volume saído do laboratório — presumivelmente uma bomba atômica — deveria ser conduzido ao ponto da detonação.

Obviamente, a presidenta ficou no auge da perplexidade. As imagens e o relato do chefe do Emdena eram consistentes com o que se sabia, do lado brasileiro, em referência à construção de uma bomba atômica pelos militares argentinos. Mariana conti­nuava a refletir sobre o teor da mensagem que recebera da presidenta Silvana Lapena, sobre o fechamento, "há dois anos, ou mais", das instalações em que os argentinos processavam urânio, para eventualmente enriquecê-lo e fazer uma bomba.

Teria a presidenta argentina, que Mariana considerava sua amiga, mentido deliberadamente? Ou teria ela sido enganada pelos militares? Ou seja: as imagens mostravam uma realidade concreta, mantida à revelia da presidenta? Seria isso possível?

Mariana não se conteve e fez duas perguntas: "Por que o co­ronel — aliás, general — Schmidt não está a par dessas imagens e das conclusões do Emdena?". Ninguém sabia o que responder. De fato, ninguém havia pensado em chamá-lo. E a pergunta ficou sem resposta.

Então, Mariana fez a segunda pergunta: "Nós temos certeza de que o material transportado é, comprovadamente, uma bomba atômica?".

O brigadeiro Jerônimo Florença pediu licença para falar. Com o assentimento da presidenta, transmitiu a sua dúvida, comparti­lhada pouco a pouco pelos demais chefes do Emdena e, por fim, pelas demais autoridades ali presentes.

"De fato, senhora presidenta, tudo parece acontecer em con­formidade absoluta com o que nós, brasileiros, suspeitamos. Chegamos a imaginar uma ação traiçoeira, a partir de um script concebido para nos fazer crer que estamos certos. Poderia ser tudo mentira, com o fim de suscitar alguma ação da nossa parte, como a destruição de uma bomba inexistente. E, assim, levar-nos ao ridículo internacional.

"Por isso mesmo, senhora presidenta, embora na hora eu e alguns outros entre nós pensássemos de maneira diferente, hoje todos subscrevemos a sua decisão de vetar a primeira ação abortiva. Ou seja, a de destruir uma 'bomba talvez inexistente."

"Tudo bem", respondeu a presidenta. "Vocês têm alguma reco­mendação sobre o que eu deveria fazer? Como sabem, depois de amanhã, segunda-feira, dia 6, me encontro com a presidenta Sil­vana Lapena em Assunção, quando vamos concretizar a adesão formal da Venezuela ao Mercosul."

Momento de pausa. Depois, a presidenta continuou: "Se aquilo for mesmo uma bomba atômica, a lógica me diz que ela seria deto­nada nas próximas horas ou neste fim de semana. Não faria sentido trabalhar por tanto tempo no enriquecimento do urânio, trans­portar o produto final até o lugar onde vai explodir e nada fazer".

"No clima de informalidade que existe entre nós duas, creio que posso enviar uma mensagem à presidenta Lapena sobre a possibili­dade de uma nova oficina estar fazendo 'bolsas de luxo' a partir de 'peles de animais silvestres' em outra parte da Patagônia.

"Ela entenderá a minha comunicação no contexto em que ela própria me enviou.

"Que acham vocês?"

Ninguém sabia o que dizer. Todos se calaram. Uns instantes depois, o ministro Alighieri, das Relações Exteriores, disse apenas: "Não vejo mal nessa mensagem. Depois de amanhã, em Assunção, a senhora poderá ter uma conversa reservada com a presidenta Lapena e, se nada do que pensamos for verdade, essa fase da questão se encerra".

"Tudo bem", disse a presidenta. "Mas gostaria que o general Schmidt, o novo ministro de Segurança Institucional, fosse posto a par de tudo. E nos acompanhasse a Assunção."

Despediram-se todos. Mais tarde, o Gabinete Civil distribuiu à imprensa a lista de atos assinados e decisões tomadas, naquela manhã de sábado, pela presidenta Mariana Rousseau, assistida pelos ministros das pastas neles interessadas. Ninguém fez per­guntas: todos tinham matérias diversas para enviar às redações dos respectivos meios de comunicação.

 

Para a presidenta Silvana Lapena, o sábado, 4 de junho, de­veria um misto de mínimo trabalho e máximo relaxamento e descanso — como para quase todo o mundo ocidental. Quanto a obrigações, imaginava-se disponível apenas para as de altís­sima importância ou urgência. Sábado era seu dia preferido para falar com a família: dois filhos, uma filha, cinco netos. "Conversa fiada", ela aprendera que se dizia no Brasil: "Como vão vocês, os estudos, a vida?" — além da eventual visita dos que pudessem ir à Casa Rosada.

Nada muito diferente de centenas de outros sábados. Aos 56 anos, divorciada, Silvana se encontrava no ponto mais alto da sua carreira política. Desde os anos 1980, no final do curso de direito, ela adotara posições coerentes com os ideais da democracia, re­presentados pelo slogan da Revolução Francesa: liberdade, igual­dade, fraternidade.

Nessa linha, juntara-se a milhares de outros jovens que, em praça pública e sob o olhar repressor, torturador e encarcerador dos militares, pediam o fim da ditadura instalada com a depo­sição da presidenta Isabelita de Perón. A posição do seu grupo era, de modo geral, pela devolução do poder político aos eleitos pelo povo. E, quanto à "libertação" do arquipélago das Malvinas, dominado havia mais de um século pelos ingleses, os jovens pre­viam que sua "retomada", dada como triunfo espetacular dos militares, fracassaria quando os britânicos resolvessem reagir e expulsar os argentinos. Como de fato acontecera.

Essas posições, obviamente contrárias ao que pensava e dese­java estabelecer a ditadura, não a recomendavam ao bom con­vívio com os militares. Mas Silvana seguia em frente, impávida. Restaurado o poder civil, dedicou-se à política, em cuja militância conheceu Marcelo Trevisan, com quem se casou e teve três filhos. Foi candidata a sucessivos cargos eletivos. Uma vitória aqui, uma derrota ali, nas eleições das quais participou, Silvana escalou todos os degraus da representação popular: em âmbito local, provincial e, por fim, depois de mandatos consecutivos como senadora, a presidência da nação argentina.

Boa revisão da sua vida para uma manhã de sábado. Entre um telefonema e outro, e após as conversas de amor e carinho com os netos, Silvana ponderava: "Devo candidatar-me à reeleição daqui a dois anos? Ou começar o merecido descanso depois de quase três décadas de vida pública?". Nem ela mesma tinha respostas satisfatórias a essas perguntas. E pensou: boas razões para, como fazia sempre que dispunha do tempo necessário, dedicar-se a uma boa hora de ioga e meditação. O que, certamente, lhe daria mais ânimo.

Para todos os presidentes argentinos, um dos aspectos mais agradáveis da Casa Rosada tem sido a combinação, num só prédio, da residência oficial do chefe de Estado e do gabinete pre­sidencial — com todos os serviços pertinentes a ambos os usos. Assim, pelo meio-dia, como fazia quase todos os sábados, Silvana resolveu "dar um pulo" do setor residencial ao seu Gabinete. Ver se havia alguma coisa urgente a fazer. Algum processo impor­tante e complicado que, como de costume, deixara para ler e reler no sábado.

Haveria, como sempre, um assessor do gabinete de plantão. O fato de este nada lhe ter falado até o momento indicava uma digna véspera de domingo: nada de importante a fazer.

Foi para lá. O plantão estava a cargo de uma assessora, Vicentina López, jovem diplomata de carreira, aspirante natural a uma promoção — mais cedo do que mais tarde — em vista do seu trabalho direto com a presidenta.

Vicentina cumprimentou Silvana e lhe disse: "Hoje parece o bom começo de um fim de semana tranqüilo. Nada de impor­tante até agora. Temos até algo divertido: uma mensagem da sua amiga, a presidenta brasileira Mariana Rousseau, sobre bolsas de luxo feitas de peles de animais silvestres e prestes a ser lançadas no mercado".

Silvana reconheceu imediatamente a linguagem cifrada. Afinal, fora ela mesma que se referira à bomba como "bolsas" de luxo, ou de grife, feitas com peles de animais silvestres. Pediu para ver a mensagem. Era simples e cordial:

 

 

               Querida Silvana:

Disseram-me que uma oficina de Bariloche está fazendo bolsas de luxo, com peles de animais silvestres, que serão lançadas no co­mércio por esses dias. Você já sabia?

Até segunda-feira, quando nos encontraremos em Assunção.

                       Saudades e beijos, Mariana.

 

Silvana não teve dúvidas sobre o sentido da mensagem da pre­sidenta brasileira. Algumas semanas antes, Mariana lhe havia fa­lado da possibilidade de uma iniciativa dos militares argentinos para construir uma bomba atômica. Em resposta à sua inda­gação, o ministro da Guerra, general Carlos Quintana, lhe dissera que sim e não. Segundo ele, houvera uma tentativa de enriquecer urânio no sul da Patagônia, mas esse laboratório fora fechado havia mais de dois anos. Essa foi a versão transmitida pela presi­denta argentina à sua colega brasileira.

E agora? A menção ao encontro em Assunção, dali a dois dias, significava, no entendimento de Silvana, que a presidenta bra­sileira teria mais coisas a dizer. Esperar? Ou explorar o assunto mais profundamente? Voltou-se para Vicentina e pediu-lhe uma comunicação urgente com o chefe do gabinete da presidência, Ferdinando Saenz Pena. A assessora lembrou: "Como a senhora presidenta sabe, o doutor Saenz Pena viajou ontem para Mendoza, onde moram seus pais, cujas bodas de ouro serão come­moradas hoje. Ele deixou um número de telefone para eventuais contatos. Vou chamar".

Minutos depois, a presidenta Silvana Lapena falava com Saenz Pena: "Boa tarde, Ferdinando. Desculpe incomodá-lo, mas pre­ciso que você volte o mais rápido possível a Buenos Aires. Tenho um assunto da maior importância que preciso tratar pessoal­mente com você. De preferência, ainda hoje. Mas não é coisa para falar pelo telefone. Se quiser, ou se precisar, mando um avião mi­litar a Mendoza para buscá-lo".

Ferdinando Saenz Pena pensou por um momento. Imaginou a decepção dos seus pais, em particular de sua mãe, mais senti­mental, com a ausência do filho predileto na festa que se reali­zaria naquela mesma noite. No desapontamento de sua mulher. E na frustração dos seus filhos, que contavam como coisa certa um passeio com o pai pelas paisagens espetaculares dos Andes.

Passado um momento, o chefe do gabinete disse à presidenta: "Não precisa mandar um avião militar me apanhar. Será mais prático, além de chamar menos a atenção, eu tomar um voo fre­tado, partindo imediatamente de Mendoza para Buenos Aires. Vou falar com os meus pais. Eles compreenderão. Até logo".

Pelas 6 da tarde, Saenz Pena chegou à Casa Rosada e foi direto para o Gabinete presidencial. Por telefone celular havia avisado a presidenta de que já estava na cidade.

Começou, então, uma reunião a dois com ares de surrealismo. Silvana Lapena lembrou a Saenz Pena a primeira ocasião em que a presidenta brasileira lhe havia falado da possibilidade de os mili­tares argentinos estarem fazendo uma bomba atômica — "bolsas de luxo", na linguagem cifrada de ambas. Mencionou a sua per­gunta a esse respeito ao ministro da Guerra, general Carlos Quintana, e a resposta dele, informando que o laboratório — "oficina", na mensagem — fora fechado havia dois anos.

A presidenta Silvana Lapena voltou-se então para o chefe do seu gabinete e perguntou: "O que você acha disso tudo, Ferdinando? Minha amiga Mariana está longe de ser uma pessoa leviana. Se ela voltou ao assunto, deve haver algum fato novo. Você acha possível que os nossos militares estejam enriquecendo urânio — isto é, fa­zendo uma bomba atômica — à revelia da presidência? Em que lugar? E de onde sai o dinheiro para custear os trabalhos?".

Ferdinando Saenz Pena hesitou por algum tempo, até a pre­sidenta lhe dizer: "Se você tem conhecimento de alguma coisa, a hora de me dizer é agora. Neste minuto. Como você sabe, os quatro presidentes do Mercosul encontram-se depois de amanhã, em Assunção, para receber oficialmente a Venezuela como quinto membro do nosso mercado comum. Não posso ir lá sem saber de tudo, nos mínimos detalhes. Não quero fazer papel de tola".

O chefe do gabinete então disse: "Presidenta, vou contar tudo o que sei. Há mais de cinco anos, desde o governo do presidente Hernane Kristenberg, os nossos militares desenvolvem um pro­grama de criação de armas nucleares. Esse projeto nasceu de um entendimento do Ministério da Guerra com o gabinete presidencial. No primeiro ano, o programa foi financiado com recursos secretos da Presidência da nação. Depois, as verbas necessárias para esse fim têm sido incluídas, sob rubricas disfarçadas, no orçamento do Exército".

"Pela tradição oral, passada de um chefe de gabinete ao seu sucessor, o então ministro da Guerra, Emilio Colombo, recebera instruções diretas de Gregorio Mariolem, chefe do gabinete do presidente Kristenberg, e do assessor político Roberto Ludmilo para o Exército desenvolver secretamente um programa atômico. Os dois membros do gabinete presidencial diziam falar em nome do presidente. Mas, ainda segundo a tradição verbal, o entendi­mento das duas partes previa que em nenhuma hipótese o as­sunto deveria ser tratado pelos militares com Kristenberg ou com os seus sucessores na Presidência da nação argentina."

"Por quê?", perguntou perplexa a presidenta Silvana.

"A idéia era deixar o chefe da nação apto a negar, em quais­quer foros ou circunstâncias, ter conhecimento de um projeto nuclear argentino. Isso continua até hoje. Quando a senhora perguntou ao atual ministro da Guerra, general Carlos Quintana, sobre uma bomba atômica argentina, a resposta dele — se ele tiver falado de boa-fé — reproduz o entendimento em pauta há mais de cinco anos. A senhora sempre poderia negar a exis­tência do programa, ou dizer que nada sabe a respeito de uma eventual arma nuclear argentina."

Mais uma vez, a presidenta Silvana Lapena parou para pensar. Seu espírito analítico, entretanto, levou-a a dizer a Ferdinando Saenz Pena: "Referindo-se ao nosso ministro da Guerra, general Carlos Quintana, você usou a expressão 'se ele tiver falado de boa-fé'. O que você deixou implícito? Você admite que a presidenta Mariana tenha concluído que nossos militares estão com um programa nuclear em andamento, à revelia da chefia da nação?".

"Não sei", respondeu Saenz Pena. "Mas não é impossível. Como a senhora bem sabe, nossos militares não aceitam de bom grado o fato de ser subordinados à autoridade civil. Daí a sua resistência à criação do Ministério da Defesa, reunindo sob o comando de um civil as três Forças Armadas." Pausa. "Menos ainda gostam de ser chefiados por uma mulher."

"Bem", disse a presidenta, "parece que a hora da verdade está chegando. Convoque o general Carlos Quintana e os ministros da Marinha e da Aeronáutica para uma reunião ainda hoje, ou, no mais tardar, amanhã, aqui no meu gabinete."

Ferdinando Saenz Pena pediu licença e se retirou para con­vocar a reunião.

Mas nem ele nem a presidenta anteviam o clima de surpresa que os aguardava.

 

No começo da noite, o chefe do Gabinete presidencial tele­fonou para a residência dos ministros das Forças Armadas. Nenhum deles estava na capital. Haviam viajado com a mulher, para passar o fim de semana fora de Buenos Aires, ou aproveitar os últimos dias de sol do começo do outono. "Para onde foram?", perguntou Ferdinando Saenz Pena aos empregados que atendiam a seus telefonemas na casa de cada ministro. Ninguém sabia. As informações eram vagas: o ministro da Marinha teria ido para as praias de Mar del Plata; para os arredores de Salta, a sua terra natal no norte da Argentina, teria ido o ministro da Aeronáutica; para o sul da Patagônia e a Antártida, o ministro da Guerra.

Para surpresa de Saenz Pena, nenhum deixara em casa telefone para contato. Apesar de ser sábado, tentou o oficial de plantão no gabinete dos ministros. Falou com um, falou com outro. As informações foram imprecisas ou contraditórias. Saenz Pena re­solveu "dar uma bronca" no ajudante de ordens do ministro da Guerra, general Carlos Quintana: "Como é possível o ministro viajar e não deixar endereço ou número de telefone para con­tato?". Resposta: "Sim. Temos endereço e número. Mas está tudo no gabinete, no Ministério".

Saenz Pena resolveu, então, usar a autoridade presidencial: "A presidenta da nação deseja falar urgentemente com os ministros militares. Peço que o senhor vá, agora, ao gabinete ministerial e me transmita essas informações". Mutatis mutandis, o mesmo se passou com o ajudante de ordens de outros dois ministros.

Lá pelas 11 da noite, ainda no sábado, Ferdinando Saenz Pena recebeu o número de telefone dos locais onde estariam os três ministros. Telefonemas frustrados — "não está", ou "saiu, mas não disse a hora em que voltaria", ou algo assim. Deixou recados nos três telefones — área residencial do quartel-general da região, para o ministro da Guerra; hotel em que outros dois se hospe­davam. Ele se dispôs a esperar chamadas de volta. Em vão.

Na manhã de domingo, 5 de junho, Saenz Pena chamou no­vamente os telefones dos quais tinha o número. O ministro da Marinha e o da Aeronáutica poderiam voltar no primeiro vôo comercial daquele mesmo dia. O ministro da Guerra tinha par­tida marcada naquela manhã para a base militar da Antártida, que programara inspecionar várias semanas antes. "Mas", acres­centou, "se a presidenta Lapena quiser, cancelo a inspeção e re­torno a Buenos Aires ainda hoje. Tenho um avião militar à minha disposição para a visita à Antártida e verei se ele pode me levar de volta a Buenos Aires."

Surpresa. Desapontamento. Dúvidas "cruéis". Frustração. Mi­nistros militares viajando sem ajudante de ordens? Suspeita de viagens "articuladas" entre os ministros militares justamente para evitar contato com a presidenta. Esses sentimentos entristeciam Ferdinando Saenz Pena, mas ele procurou não os transmitir à presidenta. Disse-lhe que iria para o seu gabinete e que avisara os ministros de que passaria o dia inteiro na Casa Rosada à espera deles. A cada um, Saenz Pena pediu que se comunicasse com ele logo que tivesse resolvido os detalhes da volta à capital.

Às 8 horas da noite de domingo chegaram os últimos viajantes ao gabinete presidencial. Silvana Lapena, os três ministros mi­litares, mais Saenz Pena, sentaram-se em torno da mesa presi­dencial de reuniões. A presidenta agradeceu protocolarmente a presença de todos. Não pediu desculpas pelo incômodo de um encontro urgente no domingo.

Silvana esperava que, mesmo em face da magnitude do as­sunto que os reunia naquela noite, seu rosto não refletisse o in­tenso desapontamento que abalava a sua natural serenidade. Foi direto ao cerne da questão: "Senhores ministros, chegou ao meu conhecimento que os militares do nosso país estariam desenvolvendo um programa para a criação de uma bomba atômica. Mas sem conhecimento da presidenta da nação. É verdade?".

Os dois outros ministros militares se voltaram para o general Carlos Quintana. Com aceno de cabeça, pediram que respon­desse. O ministro da Guerra preferiria não tratar desse assunto com a presidenta. Conhecia a história da sua vida política. Sabia, de antemão, que ela teria se oposto a iniciativas com esse objetivo. E que não daria o seu consentimento. Não obstante o muito que ele detestava ter de prestar contas a uma autoridade civil, era impossível não falar. A presidenta era, também, em razão do seu cargo, comandante-chefe das Forças Armadas do seu país.

O general resolveu começar do princípio. Relatou os fatos do tempo do presidente Kristenberg e as instruções que seus ante­cessores receberam de jamais mencionar o assunto ao chefe da nação e — confirmando tudo o que Saenz Pena relatara — a razão do silêncio.

Silvana Lapena dirigiu-se então ao ministro da Guerra: "O doutor Saenz Pena me relatou tudo isso na reunião que tivemos ontem. Não culpo os militares por haverem cumprido as instru­ções que lhes foram dadas. Mas detesto mentiras e meias ver­dades. Há algumas semanas, quando a presidenta brasileira me enviou uma mensagem a esse respeito, o senhor me disse que o laboratório montado para esse fim, no sul da Patagônia, fora fe­chado havia mais de dois anos. Agora, ela me dá outras notícias: não só da montagem de uma bomba, mas do seu lançamento daqui a poucos dias. O que os senhores têm a dizer?".

Novo silêncio. Novo aceno dos outros dois ministros militares para o general Quintana.

A presidenta interrompeu a troca de olhares: "Eu desejo e, mais do que desejo, preciso ser informada de todos os fatos e detalhes. Por isso, pergunto, em primeiro lugar: nós estamos mesmo fa­zendo uma bomba atômica? Onde? Em que ponto do processo nos encontramos? Quando vocês pretendem — ou acham que podem — detonar uma primeira bomba?".

"Em segundo lugar, fico surpresa por ver um fato de tamanha relevância para a Argentina revelado pelo governo de outro país. E não, como seria lógico e coerente com o princípio de soberania nacional, por iniciativa dos senhores. Como isso se explica?"

O ministro Carlos Quintana concluiu que teria de abrir total­mente o jogo. Disse: "Trata-se de uma longa história de espio­nagem dos militares brasileiros sobre as nossas atividades. Se a senhora tiver a paciência necessária, contarei tudo, em detalhes".

Silvana disse: "Sim. Quero saber. Tenho paciência. Vá em frente, ministro, conte tudo".

O general Carlos Quintana olhou novamente para os seus dois colegas, reconheceu o assentimento deles e recomeçou: "A senhora presidenta talvez não saiba, mas o Estado-Maior das Forças Armadas do Brasil — mais conhecido pela sigla Emfa — mantém, há mais de dois anos, um serviço bem organizado de espionagem nuclear em nosso país".

"Nós também dispomos de espiões e informantes no país vi­zinho. Há muito sabemos do interesse do Emfa no desenvolvi­mento, pelos nossos cientistas, de tecnologia atômica própria. Um coronel engenheiro do Exército brasileiro, cujo nome ainda não nos foi revelado, esteve várias vezes na região de Bariloche, onde se situa o nosso laboratório dedicado à energia nuclear, en­gajado em atividades de espionagem.

"Aparentemente, o espião brasileiro teria ouvido a revelação, por pessoas do próprio laboratório, dos objetivos do nosso tra­balho. Dessa ou de outra forma, os brasileiros ficaram sabendo que ali estamos enriquecendo urânio em grau compatível com o seu uso militar, conforme foi recomendado pelo presidente Kristenberg."

O general Carlos Quintana hesitou por alguns momentos. Os ministros da Marinha e da Aeronáutica pensaram: "Já que che­gamos até aqui, temos de ir até o fim".

A presidenta Silvana Lapena parecia ter vencido a irritação. Perguntou: "Algum espião entrou no laboratório e pôde verificar pessoalmente o que lá se faz?"

Quintana respondeu no ato: "Não, senhora, o laboratório, em si, é impenetrável. Embora situado às margens de um lago na­vegável por pequenas embarcações e cercado por bosques e flo­restas apreciadas por visitantes interessados na flora e na fauna patagônicas, só uma pessoa expressamente autorizada por um dos ministros militares pode, de fato, entrar no edifício onde se trabalha com urânio".

"Contudo, nós sempre imaginamos que os espiões brasileiros não se contentariam em saber o que estávamos fazendo naquele lugar, em certo momento de determinado dia. Seu interesse seria permanente. Constatamos, então, além de toda a dúvida, que os brasileiros mantêm um satélite teleguiado, invisível ao radar, es­tacionado sobre o laboratório.

"A cada minuto, o satélite envia imagens externas do local. As quais permitem aos brasileiros acompanhar horários de funcio­namento, gente que entra ou que sai, o número aproximado de pessoas que ali passam o dia; e, assim, avaliar o ritmo do nosso trabalho. Nada, porém, relativamente à natureza do que estamos fazendo naquele lugar."

A presidenta Silvana Lapena pensou: "Mais meias verdades?" Em seguida perguntou: "O senhor acha, ministro, que imagens externas, como disse, podem constituir base suficiente para a pre­sidenta brasileira afirmar dois pontos importantes: que estamos fazendo uma bomba atômica e que está prestes a ser detonada?".

"Não, senhora presidenta", respondeu o general Carlos Quin­tana. "Mas é possível que o espião brasileiro tenha conversado com técnicos nossos que, ou por discordarem da finalidade do nosso projeto, ou por qualquer outro motivo de natureza pessoal, abandonaram o laboratório. Não ficarei surpreso se esses técnicos tiverem contado ao espião brasileiro, inclusive, o ponto em que se encontra o programa de detonação experimental".

"Seja como for, senhora presidenta, os brasileiros sabem o que fazemos no laboratório de Bariloche. E, também, que a primeira explosão acontecerá por estes dias. Não por meio das imagens transmitidas pelo satélite. Mas, provavelmente, por delação de al­guém nosso.

"Mais, ainda. Como o satélite brasileiro é invisível ao radar, não podemos localizá-lo e, portanto, abatê-lo. Mas as imagens enviadas por um satélite a outro satélite são vulneráveis. Quer dizer: com a tecnologia de que dispomos, somos capazes de ver e copiar essas imagens e acompanhar o material à disposição da espionagem dos nossos vizinhos."

Silêncio total. O ministro continuou: "Neste fim de semana, fizemos um teste esclarecedor da extensão do conhecimento dos espiões brasileiros. Preparamos o simulacro do envio de uma bomba — na verdade, simples volume de lixo — do laboratório de Bariloche para a cidade de Ushuaia, em cuja região os brasi­leiros imaginam que detonaremos a primeira bomba".

"Comprovando o que imaginávamos, o satélite brasileiro acompanhou o percurso do caminhão que transportava o lixo do laboratório a um avião no aeroporto daquela cidade. Depois, seguiu o avião até Ushuaia. Por todo o tempo enviou imagens de identificação da rota do avião. Os brasileiros pensam que vamos detonar a bomba em Ushuaia."

"E não é esse o projeto de vocês?", perguntou a presidenta Sil­vana Lapena.

"Não", respondeu o ministro da Guerra. "Embora a população do sul da Patagônia seja rarefeita, pelos padrões das regiões cen­tral, oriental e norte do nosso país, Ushuaia é a capital de uma província. Nós não a destruiríamos com uma bomba atômica ou de outra natureza qualquer. Não desejamos destruir vidas. Vamos detonar nossa bomba sobre um local inabitado, distante do continente sul-americano e, igualmente, da Antártida."

A presidenta Silvana Lapena não conseguiu esconder a sua irritação. E disse, então: "Pelo que sei, os efeitos devastadores de uma explosão nuclear só se dissipam algumas décadas após a detonação. Independentemente de onde ocorra a explosão da nossa bomba, estaremos comprometendo todas as formas de vida numa área considerável em torno desse ponto. É isso o que os militares argentinos desejam? Gostaria de ouvir um sim, ou um não, partindo de cada um dos senhores ministros".

Todos, evidentemente, responderam pela negativa. Seu pro­pósito era de natureza defensiva. Jamais agressiva. Menos, ainda, pensavam em destruir vidas em seu país.

Silvana não se contentou com as respostas, mas prosseguiu: "Neste momento, tenho mais duas perguntas. A primeira é sim­plesmente circunstancial: como vocês, membros do meu go­verno, podem explicar que, sabendo da presença de um satélite incumbido por outro país de espionar atividades desenvolvidas em território argentino, não me comunicaram a violação do nosso espaço aéreo?"

A resposta foi dada pelo ministro da Aeronáutica, briga­deiro Júlio Lamarca: "Nós sabíamos que, se lhe transmitíssemos nossas suspeitas e as evidências de que dispomos, a senhora presidenta teria, até mesmo por dever de ofício, de exigir do governo brasileiro a retirada do satélite. Exigência que levaria, inexoravelmente, à revelação pública da natureza dos trabalhos desenvolvidos no laboratório, objeto da espionagem. O que nós não admitimos".

Silvana tudo ouviu e disse: "Talvez isso fosse conveniente na­quele momento. Agora não é mais. O que nos leva à questão de mérito, ainda não mencionada nesta reunião. A pergunta que não quer calar e ocupa espaço enorme na minha cabeça é: para que diabos a Argentina precisa de uma bomba atômica? Respondam objetivamente, por favor".

Todos se voltaram para o ministro da Marinha, almirante Miguel de Ias Heras. Sugestão muda para que ele respondesse à presidenta, o que ele fez: "Senhora presidenta, nós, militares ar­gentinos, pensamos no domínio objetivo, concreto e demonstrável, da tecnologia para a construção de uma bomba nuclear, como uma espécie de bilhete de passagem da nossa condição atual de 'Terceiro Mundo' para o campo restrito das chamadas grandes potências'. Com a bomba, poderemos falar de igual para igual com países como os Estados Unidos, China, Japão e todos os que formam a União Européia".

Pausa. "Servirá, ainda mais, como instrumento de afirmação da nossa soberania. Inclusive quanto ao arquipélago das Mal­vinas, cuja reconquista é assunto sempre presente nas discussões das três Forças, sobre a nossa estratégia de longo prazo".

"Além do que foi dito, os estudos, as tentativas e a troca de experiências para enriquecer urânio em nível adequado ao seu uso militar têm sido poderosos fatores de entendimento, esforço conjunto e colaboração das três Forças, como jamais havíamos obtido antes. Só por isso, já valeria o esforço e as verbas empre­gadas com esse fim."

A presidenta Silvana Lapena notou o olhar de superioridade dos três ministros militares.

No auge de sua revolta com a prepotência implícita nas pa­lavras dos seus ministros, concluiu que chegara o momento de afirmar a autoridade da cidadã civil — titular de mandato pelo voto direto e majoritário — sobre os militares. Lembrou-se de que, ao longo da história argentina — como acontecia em outros países latino-americanos —, seus militares jamais se submeteram de bom grado ao controle civil de seu pensamento e de suas ações. Só obedeciam quando sentiam que o povo não aceitaria mais uma rebelião ou golpe de estado.

E falou: "Senhores ministros, há sempre margem de discussão quando se trata de destinar uma verba pública para determinado fim. Jamais falta quem ache que os recursos usados para custear um projeto ou fazer qualquer coisa poderiam ser mais bem empre­gados. Contudo, aqui falamos de pontos vitais para a nossa nação".

"Sob o aspecto estratégico, todos os países que envolveram seus recursos técnicos, financeiros e humanos no desenvolvi­mento de bombas atômicas tinham — ou têm — um adversário concreto em mente. Primeiro, os Estados Unidos, para ganhar a guerra no Extremo Oriente; depois, como fator de equilíbrio com a União Soviética. A Índia e o Paquistão, como meio de evitar uma guerra sangrenta na disputa da soberania sobre a Caxemira. Nós não temos disputas capazes de levar à guerra com qualquer dos nossos vizinhos.

"A França e a Inglaterra simplesmente deixaram de fazer bombas atômicas; a Suécia e a África do Sul, depois de obterem sucesso em seus programas com tal finalidade, resolveram aban­doná-los. Assim, digo'com toda a clareza e com a autoridade de chefe da nação: não nos devemos preocupar com as Malvinas. Isso é história. É passado. Não voltará mais".

"Da mesma forma, fazer uma bomba atômica deve ser uma das menores prioridades do povo argentino. Temos numerosas outras preocupações, em matéria de bem-estar da nossa gente, do nosso desenvolvimento econômico, do aproveitamento das nossas riquezas.

"Por essas e outras razões e com a autoridade de chefe da nação argentina, declaro aos senhores ministros que nosso país vai as­sinar o Protocolo Adicional ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, o que permitirá a inspeção de todos os nossos centros de enriquecimento de urânio pelos fiscais da AIEA."

Em quase uníssono, os três ministros militares protestaram.

Coube ao almirante Miguel de Ias Heras, da Marinha, dizer o que passava na cabeça de todos: "Não pode ser, senhora presidenta. Com o devido respeito, nós não podemos abandonar o nosso pro­grama. Nossos investimentos em capital humano e científico nos últimos cinco anos precisam ser levados em consideração. Além de tudo, o fato de a senhora presidenta tomar tal decisão logo de­pois de o Brasil ter aderido àqueles acordos nos põe em situação de caudatários do nosso maior rival. Por favor, reconsidere."

A presidenta Silvana Lapena retrucou: "Não. Não somos cau­datários. Eu já vinha pensando nesse assunto desde o início do meu mandato, há dois anos. Contudo, a questão parecia tudo, menos prioritária. Afinal, pensava eu, a questão nuclear só nos interessa marginalmente. Por isso, adiei a decisão até o fato concreto que nos reúne em torno desta mesa".

"Vou passar instruções ao nosso ministro das Relações Exte­riores para que ele dê os passos necessários à nossa adesão a esses acordos. Obviamente, farei a comunicação pública dessa decisão ao povo argentino antes da assinatura dos atos.

"Por isso — e, além disso, pela própria natureza do assunto —, não posso hesitar em transmitir-lhes instruções diretas e oficiais no sentido de encerrarem imediatamente todas as atividades re­ferentes à feitura de uma bomba atômica argentina.

"Amanhã, como sabem, estarei o dia todo em viagem a As­sunção. Os quatro presidentes do Mercosul vão receber oficial­mente a Venezuela como quinto participante do nosso mercado comum. Não posso deixar de ir."

Em seguida, falou ao chefe do Gabinete Civil: "Enquanto isso, Ferdinando, converse com o ministro das Relações Exteriores sobre a adesão ao Protocolo do qual falamos aqui".

No auge de sua irritação, Silvana Lapena olhou para cada um dos presentes, agradeceu o seu comparecimento e despediu-se de todos. Os ministros militares cumprimentaram e saíram. A presi­denta voltou-se para o chefe do seu Gabinete, Ferdinando Saenz Pena, e disse: "Parece que tudo foi bem. Cheguei a imaginar um ato de indisciplina por parte dos militares, mas eles se mostraram dispostos a tudo aceitar na boa paz. Você não acha?"

Saenz Pena concordou.

Mas ambos estavam errados. Ao sair da Casa Rosada e antes de cada um tomar seu carro, os três ministros militares combinaram uma reunião para o dia seguinte no gabinete do Ministério da Guerra. Para quê? Para discutir as opções que lhes restavam: con­cordância, na forma da lei. Ou rebeldia.

 

Para os paraguaios da capital, Assunção, uma reunião de cinco presidentes sul-americanos era motivo de simples curiosi­dade, Para os que a visitam pela primeira vez, uma das principais atrações da cidade é a sua geografia, à margem do rio Paraguai, em frente à baía formada pelo desaguadouro do rio Pilcomayo. Uma das mais antigas áreas urbanas do vice-reinado do rio da Prata, Assunção conserva muitas relíquias arquitetônicas — se­melhantes às encontradas nas "cidades coloniais" brasileiras: igrejas, conventos e moradias, formando o estilo conhecido como "barroco guarani".

Mas, para os meios de comunicação locais e internacionais, o fato que os congregava — o acolhimento oficial da Venezuela como quinto membro do Mercosul — era ocasião propícia para mil palavras ocas, representando a unidade apenas protocolar dos vizinhos. Ou, se alguém desejasse ser sincero, para a lembrança de antigas conquistas territoriais e velhas rivalidades. Umas e ou­tras tidas como insolúveis.

Freqüentemente, nas reuniões do bloco, Uruguai e Paraguai, economias menores, sentiam-se simples figurantes nos dramas representados pelo enfrentamento — nem sempre discreto — das duas maiores economias, Brasil e Argentina. De certa forma, pensavam alguns repórteres e correspondentes, por seu peso es­pecífico, a Venezuela entra como desempatador de rivalidades. Seu saldo comercial com os Estados Unidos, baseado principal­mente na exportação de petróleo, dava certo respaldo à arro­gância do seu presidente quase vitalício.

Contudo — por esse e outros motivos, mais políticos do que econômicos —, a admissão da Venezuela como membro pleno do mercado comum despertara reações diferentes em cada um dos quatro países originais. O Congresso brasileiro "segurou" por vários anos a ratificação dos acordos internacionais com esse objetivo. Não faltava quem pensasse na imobilidade dos parla­mentares brasileiros como forma de virtual rejeição da Venezuela - mais por inspiração política do que por motivos econômicos.

De seu lado, o governo argentino saudava o ingresso de um quinto membro como fator de equilíbrio nos embates, na inte­ração — no confronto — de seus interesses com os do Brasil.

Naquele ponto, já era evidente que a insuficiência de estímulos governamentais adequados levara a segunda maior economia da América do Sul à perda da competitividade de sua indústria, comércio, serviços e até da agropecuária, tradicional esteio do sistema econômico argentino. Fatos que, em conjunto ou isolada­mente, ajudavam as aspirações de expansão ainda maior da eco­nomia brasileira, à custa do peso relativo da produção argentina.

Na opinião dos que teriam de escrever a respeito da reunião - seja aos seus meios de comunicação, seja aos seus governos —, a reunião marcada para aquele dia no palácio de Los López, sede do governo paraguaio, tinha tudo para ser meramente pro­tocolar. Bonitas palavras, renovadas juras de amor eterno, mas muito pouco, ou mesmo nada, de concreto sairia dali. Salvo, pen­savam outros, se alguém aproveitasse a oportunidade para "lavar a roupa suja" dos interesses nacionais mais tendentes à dissensão do que ao acordo.

Pontualmente, às 11 horas, o presidente paraguaio Pablo Pellegrini — moreno, alto e gordo, fazendo jus ao seu apelido de "King Kong" — entrou no salão nobre do palácio. Cerca de duzentas pessoas, que formavam a audiência, aplaudiram Pellegrini. Nenhuma novidade: todos eram representantes de grandes em­presas exportadoras interessadas na expansão dos respectivos mercados; altos funcionários dos países membros do Mercosul; diplomatas de outros países, credenciados junto ao governo para­guaio; e altos funcionários do governo nacional. Todos especial­mente convidados para o ato.

O presidente paraguaio pediu ao seu cerimonial que convi­dasse os chefes de Estado que até então formavam o Mercosul para tomar lugar na mesa diretora. Novos aplausos. Em seguida, o presidente Pablo Pellegrini convidou os representantes oficiais do Chile e da Bolívia, membros associados do grupo, a também participar da mesa.

Ato contínuo, disse à platéia: "Com permissão das senhoras presidentas da Argentina e do Brasil e do senhor presidente do Uruguai, vou pessoalmente receber à porta o ilustre presidente venezuelano, excelentíssimo senhor general Gilberto Monserrat, que assinará, em nome do seu país, o Tratado de Assunção, pelo qual o Mercosul foi criado em 1991".

O general Monserrat foi recebido com os devidos aplausos. Um diplomata paraguaio levou-lhe o termo de adesão ao Tratado. Monserrat o assinou e foi seguido pelos quatro outros presidentes, como testemunhas do ato de adesão. Fim das cerimônias protocolares. A Venezuela passou a ser membro pleno do Mercosul.

O presidente paraguaio Pablo Pellegrini tomou a palavra e leu com grande entusiasmo o seu discurso, vazado na mais pura linguagem grandiloqüente, órfã de conteúdo substantivo, sobre o "sangue novo" injetado no Mercosul. E sobre quanto este se engrandecia pela integração dos mais de 26 milhões de venezuelanos nos esforços dos quatro membros originais, no sentido do desenvolvimento econômico e social do continente sul-americano.

Foi a vez então de o general Monserrat dar as razões pelas quais a Venezuela entrava para o grupo do Mercosul. Começou com as saudações devidas aos membros originais. Elogiou os esforços dos quatro países para vencer as dificuldades inerentes aos pro­gramas de integração regional. Não era bem o caso. Em particular, qualquer observador ali registraria mais campos de disputa entre as duas maiores economias regionais e menos proposições e reali­zações construtivas. O que conduzia muitos a duvidarem da "du­ração perpétua" do mercado comum, nas palavras de Monserrat.

Feitas as mesuras devidas, o presidente venezuelano passou a atacar os países dominadores. Citou nominalmente os Estados Unidos e a União Européia — com os quais se desentendia a pro­pósito de tudo —, "cujos governos imaginam que ainda se encon­tram no tempo em que os mais fortes colonizavam os mais fracos. Se não é em termos de colonização política, à moda de Portugal e Espanha, o modelo, agora, é a dominação da economia dos países menos desenvolvidos. O controle de sua produção e empecilhos ao seu comércio".

Monserrat saiu por aí e encerrou o seu discurso afirmando que, mais que simples esforço de integração econômica, "o Mercosul deve ser a nossa corajosa arma de ataque em favor da igualdade de países e povos. Na economia, sim. Mas sobretudo na política".

Aplausos fracos, olhares interrogativos por todos os lados.

A presidenta argentina Silvana Lapena, sentada ao lado da brasileira Mariana Rousseau, sugeriu a esta que não deixasse o assunto passar em branco no discurso de saudação protocolar que, em nome dos demais membros do Mercosul, deveria dirigir ao presidente venezuelano. E recolocasse o papel do Mercosul na perspectiva correta.

Mariana também repudiava a ameaça de guerra comercial implícita nas palavras de Monserrat. E tinha as suas próprias dúvidas quanto à capacidade dos diferentes países do bloco de compreender por que e para que ele existia. Mas achou que seria ruim, do ponto de vista diplomático, revidar na hora.

O presidente paraguaio Pablo Pellegrini esquecera a saudação protocolar da presidenta brasileira, constante do programa do dia. Preparava-se para encerrar a reunião e convidar todos para o almoço em outro salão do palácio. Mas ocorreu-lhe perguntar se algum dos membros da mesa desejava usar a palavra.

Mariana Rousseau resolveu deixar de lado o texto preparado com a ajuda do Itamaraty, levantou-se e disse: "A presidenta ar­gentina e eu discordamos da perspectiva aberta pelo ilustre ge­neral Monserrat em referência ao papel do Mercosul no campo político. Nós concordamos com a opinião de que um mercado comum, como o que desejamos construir na América do Sul, tem de voltar-se primordialmente para o bem-estar dos nossos povos. E, em seguida, para o desenvolvimento e a complementaridade das nossas economias nacionais. Não projetamos o futuro como instrumento de guerra política, econômica ou militar".

Depois de um momento de perplexidade geral, choveram os aplausos e gritos de "apoiado", ou "muito bem", ou "assim é que se diz". Mariana e Silvana se abraçaram e trocaram beijos na face. Na outra ponta, Monserrat mostrava o seu desapontamento. E Pellegrini julgou de melhor alvitre encerrar a reunião. Nem se lembrou de convidar os presidentes e presidentas para o almoço. As duas presidentas saíram juntas.

No caminho da saída, Silvana elogiou as palavras de Mariana. Esta falou à colega: "Preciso muito conversar com você, se pos­sível agora mesmo, na embaixada brasileira. Tenho coisas impor­tantes a dizer com referência à última mensagem que lhe enviei".

Silvana concordou, dizendo: "Eu também quero falar com você sobre o assunto. Surgiram problemas do meu lado. Quem sabe podemos esclarecer tudo".

 

Cada qual no seu carro, as duas presidentas chegaram ao mesmo tempo à sede da embaixada brasileira. Mariana pediu ao embaixador que cedesse a sua sala para permitir que as duas se falassem em segredo. Fecharam-se no gabinete do embaixador. Depois de um cafezinho protocolar, Mariana começou a falar: "Você talvez tenha ficado surpresa com o fato de nós sa­bermos tantas coisas a respeito do trabalho em curso no labora­tório à margem do lago, em Bariloche".

Silvana disse que sim: "Surpresa absoluta. Como vocês ficaram sabendo?".

A presidenta brasileira continuou: "Há cerca de dois anos, nossos serviços de inteligência — para não dizer de espionagem' vêm recebendo informações a respeito do enriquecimento de urânio, para uso militar, em um país da América do Sul. Nossos militares achavam, com ou sem razão, que a posse de bombas atômicas pelos países vizinhos — muitos deles sujeitos a golpes militares e a outras formas de ditadura mais ou menos instáveis poderia representar uma ameaça concreta de destruição de vidas. E que o Brasil seria o destino mais provável de um ataque nuclear. Nossos militares investigaram o assunto em todos os nossos vizinhos. E, por fim, concluíram que a Argentina era a resposta mais plausível".

"Por quê?", perguntou, bem a seu modo, a presidenta Silvana Lapena.

Mariana Rousseau respondeu à pergunta da presidenta argen­tina, mas não da maneira que esta esperava. De modo didático, como era seu feitio, dividiu a resposta em três partes.

"Em primeiro lugar, basta olhar o mapa econômico, político e social do nosso subcontinente para concluir que somente o Chile e a Argentina, além do Brasil, teriam condições técnicas suficientes para habilitar o seu pessoal científico a empenhar-se, com possibilidade de sucesso, no trabalho de enriquecimento de urânio em nível adequado ao seu uso militar.

"O Chile é signatário do Tratado de Não Proliferação e seu Protocolo Adicional, fatos que implicam a possibilidade de ins­peção da AIEA e, em conseqüência, a renúncia à construção de bombas atômicas. Embora os militares argentinos imaginem os seus colegas brasileiros empenhados em criar bombas, nós queremos enriquecer urânio para a geração de eletricidade. Para consumo interno e, ultrapassada a reação à crise japonesa, para exportação.

"Em segundo lugar, os americanos estão desenvolvendo um aparelho voador destinado a ouvir' certos 'ruídos' — ou seja, a radiação causada pelo enriquecimento de urânio, em qualquer parte do mundo. Na fase atual, o satélite ainda é rudimentar em matéria de precisão. Assim, eles identificaram as nossas ins­talações de enriquecimento de U235 situadas no município de Resende, perto do Rio de Janeiro, para uso nas nossas centrais elétricas movidas a energia nuclear. Tudo bem. Esse fato é de co­nhecimento mundial.

"O aparelho americano também ouviu' — sem, contudo, lo­calizar com precisão — outros 'ruídos' de enriquecimento em 'algum lugar' no 'sudoeste do Rio de Janeiro'. Como só temos o centro de Resende com essa finalidade, não foi difícil chegar a Bariloche, onde, há dois anos, havíamos identificado uma insta­lação civil' de processamento nuclear.

"Em terceiro lugar", continuou Mariana, "a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares, a ABACC, foi criada pelos nossos dois governos, com o propósito de permitir que argentinos inspecionassem os depósitos e usos de materiais nucleares no Brasil; e que, reciprocamente, os brasi­leiros fizessem a mesma inspeção na Argentina. No papel, tudo parece funcionar bem. Mas, de fato, os inspetores de cada país só inspecionam as instalações que o governo do outro declara exis­tirem em seu território.

"Não preciso acrescentar o quanto, na prática, é fácil, para cada país, burlar as atividades dos inspetores do outro, no plano da ABACC". Silvana não escondia seu desapontamento. Mas Mariana concluiu: "Isso, querida amiga, os nossos espiões desco­briram em Bariloche."

Com o seu espírito analítico e contestador em ação, a presi­denta Silvana Lapena retrucou: "Tudo bem, amiga Mariana. O que você diz são conjeturas e deduções. As quais não docu­mentam os dois fatos importantes contidos em sua mensagem: que estamos, de fato, tratando da construção de uma bomba atô­mica; e que a sua detonação estaria para acontecer nos próximos dias. Ambas as hipóteses são compatíveis com o que fiquei sa­bendo em reunião, ontem, com os meus ministros militares. Mas como vocês chegaram até aí?".

A presidenta brasileira viu que era hora de contar tudo, em­bora, provavelmente, ela não fosse a pessoa mais habilitada para esmiuçar os detalhes.

Voltando-se para Silvana, disse: "Eu acho que sei tudo a res­peito do assunto, depois de haver conversado numerosas vezes com os nossos militares. E, em particular, com o então coronel Schmidt, mestre e doutor em engenharia eletrônica e nuclear, que realizou os nossos trabalhos de espionagem de Bariloche até o extremo sul da Patagônia. Pedi-lhe que me acompanhasse nesta viagem, para o caso de você querer ouvir tudo em primeira mão".

Silvana pensou um instante. Depois resolveu: "Que diabo! Tem tanta coisa certa e tanta coisa errada, de parte a parte. Acho que vale a pena". E deu um "sim" a Mariana.

A presidenta brasileira chamou Schmidt e o apresentou: "Este é o general Schmidt, o qual eu acabo de promover e nomear meu ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Ninguém conhece melhor os detalhes do que estamos falando".

Dirigindo-se a Schmidt, Mariana disse: "Você pode contar absolutamente tudo à minha amiga presidenta Silvana Lapena. Como se estivesse falando comigo. Não omita nada".

Apresentação cumprida, Schmidt começou. Falou das suas duas missões secretas, suas incursões na Patagônia e, sem citar nomes, contou as revelações do professor Fernando Gutierrez, que abandonara o laboratório para não participar de projetos de armas de destruição em massa. E as confissões do general Marcelo Antigua Magallanes, frustrado por sentir-se preterido na di­reção militar do laboratório de Bariloche. „ A presidenta Silvana repetiu, quase nas mesmas palavras, o que havia dito aos ministros militares argentinos: "Sim. Você confirmou uma parte dos fatos. Mas as suas conclusões são ba­seadas em conjeturas, inspiradas em palavras de possíveis dissi­dentes. Não explicam como chegou aos dois pontos cruciais da nossa conversa: o fato de estarmos fazendo uma bomba e a oca­sião do seu lançamento".

Com suporte explícito da presidenta brasileira, Schmidt con­cluiu que tinha de ir até o fim.

E disse à presidenta argentina: "Diante de tudo o que sa­bíamos, ou pensávamos saber, chegamos à conclusão de que, se quiséssemos agir — por via diplomática ou por outro caminho —, precisaríamos de provas irrefutáveis. Eu e um professor da nossa Comissão Nacional de Energia Nuclear fomos a Bariloche, armados com instrumentos de alta precisão, aptos a determinar o grau de radiação emitida pelo eventual enriquecimento de urânio. Nosso alvo era, primariamente, o entorno imediato do laboratório e a extensão da área afetada".

"Nos bosques e florestas que cercam o laboratório, os níveis de radiação eram assustadores. Numa escala mundialmente aceita de 1 a 7 — sendo o máximo o nível aplicável à explosão de Chernobyl e à catástrofe de Fukushima —, encontramos radiação entre 4 e 5, não imediatamente fatal à vida humana, mas apta a piorar rapidamente. E as pessoas a ela expostas por muito tempo, como os técnicos e cientistas que trabalham naquele prédio, con­trairão câncer, deformações e outras doenças incuráveis ao longo dos próximos cinco a trinta anos.

"Pelos bosques encontramos animais mortos, flores e folhas queimadas' pela radiação. Aparentemente, equipes de limpeza saem do laboratório duas vezes por dia para recolher o que resta daquelas perdas. E evitar a possibilidade de pânico entre os tra­balhadores.

"Depois de registrar e fotografar tudo o que encontramos, resolvemos estender o teste de radiação às áreas próximas. As águas do lago Nahuel Huapi também estão contaminadas. Logo, logo aparecerão peixes mortos em sua superfície. A cidade de Ba­riloche também foi atingida pela radiação. E não seria fora de propósito imaginar a necessidade de um plano de evacuação de gente, num círculo de uns cinco a dez quilômetros em torno do laboratório.

"Nossa conclusão, portanto, era inevitável: fazia-se ali uma bomba atômica.

"Depois de removida a bomba e dependendo do volume de urânio remanescente, o laboratório continuará a emitir radiação por vários anos. O prédio é permeável às emanações do urânio não utilizado. Para evitar uma catástrofe humana na região será preciso, como em Chernobyl, construir uma redoma' de con­creto armado envolvendo toda a parte do imóvel em que se fez o enriquecimento, capaz de reter mais de 90% da radiação."

Embora os ministros militares argentinos houvessem admi­tido, na reunião com a presidenta Silvana Lapena, que estavam fazendo uma bomba, o aspecto contaminação pela radiação havia sido omitido. De qualquer modo, as medições feitas por Schmidt e pelo professor da CNEN confirmavam as suspeitas brasileiras. E assustavam a argentina.

Mas faltava a segunda parte: como Schmidt podia afirmar a proximidade da data para a detonação da primeira bomba. E mais: haveria outras, em andamento?

Sob o olhar mais ou menos orgulhoso da presidenta brasileira ante a precisão da fala de Schmidt, Silvana não conseguia es­conder a sua estupefação. E falou: "Muito bem. A minha surpresa com a intensidade e a duração das ondas de radiação em torno do laboratório é total. Mas como vocês sabiam da iminência da detonação da primeira bomba?"

Depois de pequena pausa, Silvana Lapena continuou: "E onde seria a primeira explosão?". Sem parar, prosseguiu: "Você acha que os nossos cientistas estavam trabalhando para fazer só uma primeira bomba? Ou haverá outras, que ficarão prontas logo a seguir?".

Schmidt respondeu à primeira parte da pergunta: "Nós não temos prova de quando será, efetivamente, a primeira detonação. Mas a intensidade da radiação atesta o altíssimo grau de enri­quecimento de uma parcela de urânio. Segundo os meus infor­mantes, a data alvo é o próximo dia 8, depois de amanhã. Pode ser verdade, ou não".

"Os seus militares, senhora presidenta, imaginam que nós, bra­sileiros, acreditamos que o local da explosão dessa bomba seja nas cercanias da cidade de Ushuaia. Não é assim. Os fatos que temos e as deduções do que sabemos até agora nos permitem imaginar que a bomba será detonada em uma das ilhotas desertas ou em um dos glaciares existentes entre a Patagônia e a Antártida. Eu, particularmente, subscrevo a preferência por um glaciar. Assim, não se destruirão vidas de animais terrestres. Embora a contami­nação dos mares seja inevitável."

As duas presidentas trocaram opinião sobre o que acabavam de ouvir. Silvana voltou-se para Schmidt e lhe disse: "Cada vez que você responde a uma das minhas perguntas, abre o caminho para outras. Você não disse se há mais de uma bomba em proces­samento".

A resposta de Schmidt veio em seguida: "Como nenhum de nós jamais entrou no laboratório, não é possível responder com precisão ao que a senhora presidenta pergunta. Mas a regra — quando se procura, pela primeira vez, fazer bombas atômicas — é de 'tentativa e erro'. Quer dizer: os técnicos e cientistas vão experimentando caminhos para uma primeira bomba. Anotam e corrigem os inevitáveis erros. Depois do primeiro sucesso, repro­duzem todos os detalhes que deram certo, aproveitam o urânio parcialmente enriquecido de que dispõem. E, então, fazem as de­mais bombas do programa".

Silvana Lapena percebeu que havia aprendido muito com as informações e opiniões de Schmidt. Mas ainda faltava um de­talhe para ser esclarecido: "E o satélite estacionário e sua viagem a Ushuaia?".

O general brasileiro não hesitou: "Na nossa perspectiva, era possível pensar na hipótese de o governo argentino desistir do programa e fechar o laboratório. O satélite não podia adivinhar o que lá se fazia. Mas nós precisávamos saber se continuava em funcionamento".

"Contudo, acompanhar o transporte de um volume não iden­tificado, mas que poderia ser a bomba, do laboratório ao aero­porto e daí a Ushuaia, é outra história. Nós havíamos pautado uma rota exatamente nessas linhas, para o transporte da bomba ao Fin del Mundo, no extremo sul da Patagônia.

"Sempre desconfiamos que os militares argentinos mantêm uma rede de espionagem junto aos nossos estabelecimentos e serviços militares. Quando o transporte do tal volume foi feito exatamente como imaginávamos, admitimos a possibilidade de que um dos agentes argentinos haja transmitido o nosso pensamento aos seus militares e estes tenham montado uma operação de despistamento com o objetivo de frustrar o nosso aparato de observação."

Apesar de desapontada com a conduta dos militares argen­tinos em relação a ela, Silvana sorriu diante da hipótese levantada por Schmidt.

Ele continuou: "De fato, nós temos mais de uma forma de ob­servação de uma explosão atômica, se esta vier a ocorrer na Pas­sagem de Drake, entre a Patagônia e a Antártida. Mas essa é outra história. Desconfiados do que se passava, mandamos nosso saté­lite voltar a estacionar sobre o laboratório. Nossos controladores de voo informaram que um helicóptero partiu hoje pela manhã diretamente do laboratório para o extremo sul da Patagônia".

"Levando a bomba? Para detonar hoje? Amanhã? Ninguém sabe. Mas o nosso satélite teleguiado acompanhou o helicóptero e hoje está parado em cima do lugar do seu pouso."

Schmidt sentiu que havia contado tudo. Mariana pensava que a presidenta argentina havia compreendido o que ficara implícito na sua última mensagem.

A presidenta Silvana Lapena agradeceu efusivamente ao brasi­leiro. Ele percebeu que chegara a hora de sair. Despediu-se, fez a continência regulamentar e deixou a sala.

Silvana dirigiu-se à presidenta brasileira e disse: "Tudo o que ouvi aqui confirma o que me disseram os meus ministros. Mas deixa bem à mostra a sua conduta menos que leal diante da chefe da nossa nação. Vou proibir a detonação da bomba. E determinar a destruição ou o isolamento completo do laboratório, para evitar mais mortes pela radiação".

 

Na tarde do mesmo dia, 6 de junho, o avião presidencial levou Silvana de volta a Buenos Aires. Naturalmente, o seu chefe de gabinete tinha vários assuntos a tratar com ela. Havia também dezenas de atos a assinar, propostas e sugestões a despachar. Tudo urgente. Para "ontem". Só no começo da noite Silvana teve tempo livre suficiente para transmitir ao chefe do seu gabinete, Ferdi­nando Saenz Pena, a súmula do que lhe dissera o general brasi­leiro de nome Schmidt, ás da espionagem atômica brasileira. Para facilitar a compreensão de Saenz Pena quanto às revela­ções de Schmidt, o resumo de Silvana consumiu a maior parte daquelas horas. Ambos concordaram com a avaliação da falta de sinceridade dos ministros militares em relação às informações prestadas à presidenta da nação. Nenhum dos dois conseguiu se­gurar o sorriso diante da esperteza dos ministros na encenação do transporte de uma falsa bomba, do laboratório até Ushuaia. Mas admiraram a esperteza dos militares brasileiros em não se deixar enganar pela "lorota".

A presidenta Silvana Lapena voltou-se para Saenz Pena e lhe disse: "Tenho de tomar três atitudes. Imediatamente. Em honra do nosso projeto de paz e convívio amigo com todos os nossos vizinhos, não admito a possibilidade de a Argentina fazer uma bomba atômica".

"Portanto, a primeira providência diante de nós é apressar a nossa assinatura do Protocolo Adicional ao Tratado de Não Pro­liferação de Armas Nucleares. Converse com o ministro das Re­lações Exteriores e veja em que pé estão as coisas.

"A segunda atitude é passar essa decisão aos ministros mili­tares e determinar o encerramento do nosso eventual programa de bomba nuclear. Cancelar a explosão da primeira bomba e de­molir, ou blindar, a sede do laboratório do lago Nahuel Huapi, para evitar a continuidade das emissões de radiação. 'Limpar' toda a área atingida pela radiação. Inclusive, na medida do ne­cessário, fazer o mesmo na cidade de Bariloche e no lago. Quero falar com os três ministros ainda hoje. No máximo, até amanhã.

"A terceira é comunicar ao povo argentino, em rede nacional de rádio e televisão, as duas decisões que acabo de tomar. Talvez o foro adequado para esse anúncio seja uma sessão conjunta da Câmara e do Senado, com a presença também do presidente do Supremo Tribunal Nacional. Assim, teremos uma virtual decisão dos três poderes da nação.

"Por favor, Ferdinando, ponha tudo em marcha agora mesmo."

Meia hora depois, Saenz Pena voltou ao gabinete presiden­cial e relatou a situação à presidenta: "Dada a relevância do as­sunto, os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo estão à sua disposição para a reunião, a qualquer dia e hora de sua conveniência. Os três aplaudiram a decisão e elogiaram a sua coragem. Também o Ministério das Relações Exteriores já ini­ciou contatos com a AIEA e todos estão prontos a tornar efetiva a nossa adesão, além de louvar a sua decisão. Não haverá pro­blemas por aí".

"A dúvida", continuou Saenz Pena, "está na reunião com os mi­nistros. O general Carlos Quintana viajou hoje cedo de volta a Ushuaia, onde retomará a inspeção da base militar da Antártida, interrompida quando da nossa última reunião. Falei com ele pelo telefone e ele me disse que poderá adiar novamente a inspeção e retornar à capital amanhã."

O resto da segunda-feira, dia 6, passava na rotina habitual do palácio presidencial. Sem novidade sobre o processo de enrique­cimento de urânio em Bariloche. Em certo momento, porém, ocorreu à presidenta Silvana Lapena uma idéia não discutida antes.

Ela chamou Saenz Pena e lhe disse: "Ferdinando, até aqui, as únicas informações de que dispomos a respeito do alto grau de radiação nos arredores do laboratório, no lago — e, possivel­mente, também na área urbana de Bariloche —, são as fornecidas pela espionagem brasileira, nas palavras da presidenta Mariana Rousseau. Tenho confiança nela. Mas não sei se confio na espio­nagem brasileira".

"Por isso, mas também para falar com segurança em nossa reunião de amanhã à tarde com os ministros militares, eu gos­taria de checar essas informações. Com certeza temos, no âmbito da Secretaria de Ciência e Tecnologia ou nas nossas universi­dades, pessoal capacitado e equipamentos adequados para fazer tais medições.

"Verifique tudo. O técnico indicado deve ir a Bariloche agora mesmo. Requisite um avião militar para levar a pessoa lá e trazê-la de volta, sem perda de tempo."

Saenz Pena fez os contatos necessários. O Ministério da Edu­cação indicou o professor Fernando Gutierrez, "o qual já traba­lhou por lá", acrescentou o chefe do gabinete ministerial.

Falou, em seguida, com o gabinete do ministro da Aeronáutica. Mediante o uso da autoridade presidencial, tudo se programou para aquela noite. Por isso mesmo, o oficial de plantão no gabi­nete do ministro achou desnecessário avisar o ministro da Aero­náutica, brigadeiro Júlio Lamarca. O que viria a ser considerado grave erro do oficial plantonista.

O chefe do gabinete presidencial conseguiu falar por tele­fone com o próprio Gutierrez. Não na Universidade Nacional de Buenos Aires, mas em sua residência. Saenz Pena explicou o assunto de que se tratava, insistiu na urgência da medição, mas fantasiou seu motivo. Embora já tivesse anoitecido, Gutierrez se dispôs a viajar imediatamente.

Pediu, apenas, que a base aérea de Bariloche lhe cedesse um meio de transporte adequado para circular por algum tempo na região. Prometeu trazer os dados pela manhã.

Gutierrez explicou a Leyla, sua mulher, que teria de viajar ime­diatamente para Bariloche e o que iria fazer por lá. E acrescentou, na sua cabeça: "Bem que eu desconfiava que teríamos problemas sérios de radiação com o enriquecimento de urânio para fins mi­litares. Só espero que ninguém tenha sido gravemente afetado ou venha a morrer".

Passou por sua sala na Universidade, daí foi ao pequeno la­boratório usado para aulas práticas relacionadas com a energia nuclear e apanhou o seu radiômetro.

Com o uso da autoridade presidencial, tudo funcionou perfei­tamente. Gutierrez tomou um táxi para a base aérea bonaerense. Recebido com a cortesia devida a quem se apresentava em nome da presidenta da nação, um avião militar de transporte de passa­geiros, já à sua disposição, o levou, em questão de hora e meia, à base de Bariloche.

Nas duas bases, os oficiais de plantão acharam estranha a mo­vimentação. Sobretudo, a hora e o clima de pressa. No destino, um carro com motorista o esperava. Gutierrez ainda se recordava muito bem da geografia e da topografia locais. Deu ao motorista todos os detalhes necessários para chegarem próximos ao labo­ratório onde ele havia trabalhado. Ligou o "radiômetro" e logo se assustou: o nível de radiação era alto demais. Com certeza, todas as formas de vida expostas a ela por longos períodos se tornavam vulneráveis a males e doenças provavelmente incuráveis.

Em certo momento, mandou parar o carro. Desceu e entrou no bosque. Folhas mortas por todos os lados. Depois, um filhote de raposa e dois coelhos mortos. Mediu a radiação junto aos corpos e se assustou ainda mais: todos haviam morrido devido ao excesso dela.

Voltou para o automóvel e pediu ao motorista que fossem até a margem do lago. Por toda parte, níveis altos de radiação. Daí foi para os arredores de Bariloche e, depois, ao centro da cidade. Os níveis de radiação na zona urbana eram mais baixos. Mas a hipótese de uma evacuação programada não podia ser excluída.

Fernando Gutierrez percebeu que já havia visto o suficiente para uma noite. Se as autoridades desejassem um relatório mais pormenorizado, ele se dispunha a voltar, tirar fotos, medir tudo de novo. Os números daquela noite estavam na memória do radiômetro".

Passava da meia-noite quando chegou novamente à base aérea. Pediu para ser levado imediatamente de volta a Buenos Aires. Os oficiais registraram tudo no boletim da base, a ser examinado no dia seguinte pelo seu comandante, com surpresa de "cair o queixo".

Chegando à base aérea de Buenos Aires, Gutierrez tomou o primeiro táxi disponível e foi para casa. Olhou a hora e percebeu que era tarde demais para telefonar a Saenz Pena. Mas deixou um recado na secretária eletrônica do chefe de gabinete, dizendo apenas: "Aqui é o Gutierrez. Fiz tudo e cheguei de volta. Amanhã cedo passo por aí".

Não parou de pensar: "Ainda bem que saí de lá. Que tomei essa decisão antes de a radiação chegar a nível mortal".

Doce e ledo engano.

Da mesma forma que os demais participantes do projeto de fazer uma bomba atômica no laboratório à margem do lago Nahuel Huapi, Fernando Gutierrez havia passado por longo pro­cesso de exposição à radiação resultante do alto enriquecimento de urânio. Em alguns anos ele chegaria à conclusão de que ele havia retardado demais a saída do laboratório em funciona­mento naquela área. E, como havia residido com a esposa por vários meses no hotel próximo de Bariloche, ambos começariam a sentir, então, os efeitos danosos da radiação.

Mas, como tantas vezes acontece na vida, seria tarde demais.

Na manhã do dia 7 de julho — depois de uma noite mal dor­mida, dominada pela gravidade do que observara e pelo temor conseqüente —, Fernando Gutierrez chegou à Casa Rosada. Na portaria recebeu instruções para ir diretamente à sala do chefe do gabinete presidencial Ferdinando Saenz Pena. Um funcionário o acompanhou.

Saenz Pena quis saber inicialmente se a logística do transporte por avião militar de Buenos Aires a Bariloche e de deslocamento local havia funcionado a contento. Gutierrez confirmou tudo. Mas estava ansioso para revelar o que encontrara em torno do laboratório.

Começou: "Doutor Saenz Pena, o nível de radiação existente nas proximidades do centro de enriquecimento de urânio, obser­vado e registrado na memória do meu "radiômetro", é simples­mente assustador. Fatal para todas as formas de vida. Encontrei pequenos animais mortos e vegetais destruídos pelos efeitos do vazamento de radiação".

"O prédio no qual funciona o laboratório não oferece proteção. É permeável ao vazamento externo. Dentro dele, os técnicos e cientistas estão em permanente risco de morte. Provavelmente morrerão, nos próximos anos, de câncer ou de outras doenças incuráveis.

"Como você ficou sabendo tantas coisas em poucas horas de trabalho local?", perguntou Saenz Pena. "E o lago e a cidade, estão contaminados?"

"Como o senhor provavelmente sabe, eu trabalhei por mais de um ano naquele laboratório", respondeu Gutierrez. "E conheço tudo, por dentro e por fora. Sabia aonde ir e o que procurar. No lago ainda não há peixes mortos. Aparentemente, não há vaza­mento de água contaminada do laboratório para o lençol freático e deste para o lago".

"Dada a distância da cidade ao laboratório, os níveis de ra­diação observados na zona urbana de Bariloche são mais baixos, ainda não fatais. Mas tudo pode mudar de um dia para o outro. Especialmente se o programa de enriquecimento de urânio em alto nível for mantido por mais tempo naquele mesmo lugar. Nesse caso, o governo teria de pensar num plano de evacuação de Bariloche e dos arredores do laboratório."

Saenz Pena agradeceu a Gutierrez e falou: "Fique na minha antessala. Pretendo levá-lo à presidenta Silvana Lapena, a quem você relatará tudo o que viu".

Após um momento, continuou: "Tudo o que você diz con­firma, ponto por ponto, o que a espionagem brasileira havia reve­lado. Isso é importante. Mas salienta dois pontos: o descuido dos nossos chefes militares com referência a um projeto que, segundo eles mesmos, seria secreto. E seu desprezo pela vida das pessoas que ali trabalham".

Menos de uma hora depois, Fernando Gutierrez foi levado ao gabinete da presidenta Silvana Lapena, a quem repetiu toda a his­tória contada a Saenz Pena.

Saenz Pena lembrou à presidenta o que lhe contara antes, sobre o fato de Gutierrez ter deixado o trabalho no laboratório "por não querer participar de um programa de construção de armas de destruição em massa". Continuou o chefe do Gabinete: "Essa cir­cunstância revela o fato de que todos conheciam a finalidade do trabalho em que se empenhavam".

Antes das despedidas, a presidenta quis informações sobre a Universidade Nacional de Buenos Aires, onde Fernando Gutierrez ocupava, justamente, a cátedra de teoria da energia nu­clear. Fernando disse o que sabia. Despediram-se cordialmente.

Depois da saída de Gutierrez, a presidenta voltou-se para Saenz Pena e falou: "Agora só nos resta esperar pelos ministros militares, hoje à tarde. Imagino que não tenham alguma tolice em mente. Tal como detonar a bomba. Ou rebelar-se contra o poder civil".

 

A presidenta Silvana Lapena preparou-se cuidadosamente para a reunião daquela tarde com os três ministros mili­tares. Segundo a boa tradição latino-americana, toda a área mi­litar argentina constitui um conjunto mais ou menos "fechado" aos olhos da autoridade civil. Comandos, promoções e remoções são decisões formalmente de competência presidencial. De fato, são decisões dos ministros. Ao chefe da nação só resta homo­logar, com a sua assinatura, o resolvido por eles.

Fiel aos ideais da sua juventude, à sua independência e ao pre­domínio do poder eleito pelo povo, Silvana Lapena era conside­rada "subversiva" pelos militares. Como presidenta, pretendia, sem arrogância mas com firmeza, afirmar-se a autoridade su­prema da nação. Ela sabia que o dia seria decisivo para a História. E pretendia vivê-lo à altura desse fato.

Na hora certa chegaram os ministros militares: o general Carlos Quintana, do Exército; o almirante Miguel de Las Heras, da Marinha; o brigadeiro Júlio Lamarca, da Aeronáutica; mais o chefe do gabinete presidencial, Ferdinando Saenz Pena. Cum­primentos e palavras amáveis. Depois, Silvana foi diretamente ao ponto crucial que os congregava naquela tarde.

"Senhores ministros, desejo confirmar uma decisão da maior importância que lhes havia passado em nossa última reunião e que, espero, os senhores compreendam e cumpram.

"Neste momento, no interesse da paz mundial e do bom con­vívio com os nossos vizinhos e demais países amigos, a Argen­tina renuncia ao programa de construir uma bomba atômica. Nosso Ministério das Relações Exteriores já está em contato com a Agência Internacional de Energia Atômica, a AIEA, para assinarmos o Protocolo Adicional ao Tratado de Não Proliferação de Armas Atômicas. Esse fato abrirá as portas da Argentina aos fiscais da AIEA para inspecionar todas as nossas instalações nucleares."

O olhar dos três ministros militares mandava uma mensagem de desacordo que bem podia ser entendida por qualquer obser­vador como de desobediência.

"Por tais motivos", continuou a presidenta, "determino o en­cerramento imediato de quaisquer projetos de enriquecimento de urânio acima dos níveis adequados ao seu uso pacífico. Mais o cancelamento do programa de detonação de uma bomba atô­mica, em qualquer lugar do nosso país ou, mesmo, fora das nossas fronteiras ou do nosso mar territorial.

"Em terceiro lugar, mas não menos importante, a destruição ou blindagem do prédio à margem do lago Nahuel Huapi, no qual funciona o laboratório em que se enriquece urânio para uso militar. Como os senhores devem saber, os níveis de radiação observados em torno do laboratório, no lago e nas áreas subur­banas e urbanas de Bariloche, são tão elevados que já agrediram e impossibilitaram a vida silvestre nos bosques da região. E, pro­vavelmente, afetaram a saúde das pessoas que trabalham no labo­ratório ou vivem em seu entorno."

Ninguém abriu a boca. Mas a discordância dos ministros mi­litares era evidente.

Então, a presidenta Silvana continuou: "Já falei com os presi­dentes da Câmara dos Deputados, do Senado e do Supremo Tri­bunal. Nós quatro convocaremos uma sessão conjunta dos três poderes da nação para que eu possa fazer a comunicação pública dessas decisões".

"Tenho a certeza de que o povo argentino aplaudirá tais ati­tudes como um caminho que leva à paz e ao bom entendimento dos povos."

Era evidente que a presidenta encerrara seu discurso. Olhou em torno da mesa. Ninguém falou nada. Um minuto depois, o ministro da Guerra disse: "Desculpe, senhora presidenta, mas nós três, ministros militares, falando em nome das nossas tropas, não podemos cumprir as suas determinações. Nesta mesma tarde, estamos explodindo a nossa primeira bomba num dos glaciares desabitados entre o sul da Patagônia e a Antártida".

O ministro Carlos Quintana olhou para o seu relógio de pulso e disse: "Mesmo que assim quiséssemos, seria impossível sus­pender a operação. A bomba é acionada por meio de um relógio eletrônico. Sua explosão ocorrerá daqui a seis minutos, sem in­tervenção ou embargo de quaisquer pessoas". Os dois outros ministros confirmaram.

"Em segundo lugar, o laboratório de Bariloche é a nossa única instalação capaz de enriquecer urânio para uso militar. Não po­demos fechá-lo. Em hipótese alguma. Lamentamos o que tenha acontecido com as pessoas, os animais e as plantas. Podemos re­forçar ou blindar as paredes do laboratório, para evitar a conti­nuidade do vazamento. Mas não o fechar."

A presidenta viu que chegara a hora decisiva de afirmação de autoridade: poder civil, eleito pelo voto popular, em regime de­mocrático, ou poder militar, ditatorial.

Tomou a palavra: "Como os senhores sabem, ministros, está escrito nas constituições dos países democráticos, o poder emana do povo e é exercido, em seu nome, pelos seus representantes. Estes são eleitos em pleitos travados em plena liberdade. Os atuais membros dos poderes do Estado, em nosso país, foram eleitos pelo povo. Só respondem perante o povo, e a este devem prestar contas. Qualquer desvio desse roteiro é ditatorial".

"Os eleitos podem ser civis ou militares — essa condição é ir­relevante para os fins eleitorais. Mas o exercício diário do poder constitui uma ação eminentemente civil — não importa quem o exerça. Na estrutura das nações democráticas, o setor das Forças Armadas é sujeito ao poder civil e atua conforme instruções dadas por este.

"Posso relevar a quebra de um dos princípios mais caros aos militares — a disciplina —, violação representada pelas palavras do general Quintana com o apoio implícito do Almirante de Ias Heras e do brigadeiro Lamarca. Mas só o farei sob a condição irremovível do cumprimento imediato das decisões que lhes trans­miti há pouco."

Na melhor maneira disciplinar, o ministro da Marinha, almi­rante Miguel de Ias Heras, pediu licença para falar. Parecia evi­dente que tinha discurso preparado e que falaria não só pelos três ali presentes, mas em nome de todo o corpo militar argentino.

"Senhora presidenta, nós bem compreendemos as suas pa­lavras. Mas temos certas observações a propósito do relaciona­mento civil/militar em nosso país. O movimento militar, que durou de 1976 a 1983, teve razões e objetivos bastante conhe­cidos. Não preciso falar deles neste momento. Bem sabemos que houve numerosos atos de abuso de autoridade por parte dos membros e funcionários do governo militar contra civis.

"Não desejo, nem posso negar os fatos. Mas, no intuito de pa­cificar a nação, o nosso Poder Legislativo aprovou, em 1986, uma lei de anistia conhecida como 'Lei Ponto Final'. Como tão bem a senhora presidenta sabe, 'anistia' significa 'esquecimento', mais que 'perdão'. Isso não aconteceu entre nós. A própria lei da anistia foi revogada em 2003.

"Assim, ainda temos, nos dias de hoje, quase trinta anos depois da reinstalação do poder civil, cerca de quinhentos companheiros presos. Militares que, por certo, teriam praticado atos censurá­veis, agindo sob as ordens de seus superiores hierárquicos.

"Dois antigos presidentes do regime militar, o general Jorge Videla e o general Ronaldo Bignone, mais o general Eduardo Cabanillas, foram condenados à prisão perpétua. Quer dizer: não houve perdão' de quaisquer atos ilegais acaso praticados por eles. Menos, ainda, 'esquecimento'. Mas, sim, uma espécie de 'revanche'. O que é imperdoável e incompreensível por parte de go­vernos que desejam considerar-se democráticos.

"Ao que nos parece", continuou o almirante de Ias Heras, "o lado civil das sociedades dos países sul-americanos mantém o desejo de conservar-se formalmente 'separado' do segmento militar. No Uru­guai, criou-se uma 'Lei de Reconciliação Nacional'. Mas lá também se cuida agora de punir os militares anistiados. O Chile fala em exumar o ex-presidente Salvador Allende, para determinar se ele se teria suicidado ou se o general Augusto Pinochet teria mandado matá-lo. Tudo isso, ocorrido há várias décadas".

"Os civis do nosso continente parecem rejeitar o bom convívio com os seus militares."

No bom estilo de teatro ensaiado, o brigadeiro Júlio Lamarca, ministro da Aeronáutica, falou em seguida: "Como foi dito aqui mesmo no seu gabinete, na reunião passada, o programa de en­riquecimento de urânio para fins militares é o maior fator de convergência e unidade das três Forças Armadas da Argentina. Trabalhamos juntos nesse processo, sem discussões ou desenten­dimentos, todos de mãos dadas".

"Bem sei que, pelo mundo afora, cada país que mantém um arsenal nuclear tem um adversário em vista. É o caso Índia/Pa­quistão, ilustrado nestes dias com o desenvolvimento, pelos pa­quistaneses, de um míssil de curto alcance capaz de transportar uma ogiva nuclear. Isto é, perfeitamente apto a atacar alvos in­dianos. É certo que a Índia responderá 'em espécie'. Quer dizer, os indianos farão também o seu míssil de alcance regional, com ogiva nuclear, para atacar o Paquistão, ou para responder a um ataque deste.

"Nós, argentinos, não temos inimigos atuais, ou adversários em potencial, como é o caso do Irã versus Israel. Ou, ainda, das duas Coréias, do Norte e do Sul. Nossos vizinhos são, todos, nossos amigos de longa data. Nada temos a reivindicar deles. A bomba que estamos experimentando não é feita contra ninguém, como parece ser a regra mundial. O trabalho que realizamos tem dois ob­jetivos: pesquisa teórica e exercício de unidade das nossas Forças. Por esses motivos, não vemos razão para cancelar o programa."

Embora não desejada, essa atitude de rebeldia dos ministros militares não surpreendeu totalmente a presidenta Silvana La­pena. Ela tinha dúvidas, entretanto, sobre se a posição se limitava aos três ministros ou se estendia a toda a tropa comandada por eles. Sua resposta à posição trilateral foi simples e direta: "Nesse caso, senhores ministros, estamos diante de atos evidentes de in­disciplina e desobediência. E só me resta uma atitude constitu­cional: exonerá-los de suas funções. O que faço aqui e agora".

Voltou-se para o seu chefe de gabinete e disse: "Dr. Saenz Pena, por favor, prepare os três decretos de exoneração dos atuais mi­nistros; e outros três, para designar os chefes de Estado-Maior de cada Força para assumir interinamente o respectivo Ministério".

O chefe de gabinete se levantou para cumprir as ordens rece­bidas, mas o general Carlos Quintana o interrompeu: "Não, Dr. Saenz Pena. Com todo o respeito e apesar de todo o apreço que temos pela senhora presidenta, nós não podemos aceitar essa sua decisão. Por favor, chame o meu ajudante de ordens, que traz alguns papéis a ser assinados aqui".

Saenz Pena não se mexeu. Não ia deixar de cumprir uma ordem direta da presidenta para cumprir outra ordem originária de um ministro. Este percebeu o impasse. Foi, ele mesmo, à porta do gabinete presidencial e, olhando para fora, pediu ao seu aju­dante de ordens a pasta com os papéis que os três ministros militares haviam preparado para uso eventual.

Com os papéis na mão, o general Quintana voltou-se para os dois outros ministros; tinha uma pergunta implícita no olhar: "Vou em frente?". Os dois sinalizaram afirmativamente.

Quintana dirigiu-se à presidenta: "Doutora Silvana Lapena, como a senhora sabe, nós três somos estrategistas por profissão. Como tais, tratamos de prever todos os possíveis movimentos do adversário. Nos últimos dias, não viajamos a parte alguma. Fi­camos fechados no prédio do Estado-Maior Conjunto das três Forças. Arranjamos uns telefones fictícios, para o caso de a se­nhora nos procurar. Mas não saímos de Buenos Aires".

"Fazendo o quê?", perguntou, com um pequeno sorriso, o ge­neral Quintana. "Planejando o que dizer, ou que posições tomar, em cada uma das suas reações possíveis. Inclusive esta, de exo­nerar-nos pelo fato de nos recusarmos a cumprir as suas ordens."

"Com a perfeita unidade de vistas das três Forças", continuou o general, com assentimento explícito dos dois outros oficiais, "ad­mitimos que, se chegássemos a este ponto, só nos restaria uma hipótese: rebelar-nos contra a chefia da nação. É o que fazemos neste momento. A partir do qual a senhora entenderá que se con­suma a sua deposição.

"Este papel, que lerei daqui a um minuto, após assinado pelos colegas, é uma proclamação ao povo argentino explicando que a estamos destituindo a bem da segurança de nossa pátria, a qual a senhora põe em risco pela negativa da continuação do programa nuclear."

Quintana assinou e, depois, os dois outros — de Ias Heras e Lamarca — também o fizeram.

Silvana estava estupefata. Calada ficou.

Quintana então lhe disse: "Doutora Silvana Lapena, este ato, de natureza supraconstitucional, será imediatamente divulgado por todos os meios de comunicação argentinos, e distribuído às agên­cias noticiosas internacionais". Quintana leu os dez itens do ato:

Destitui a senhora Silvana Lapena do cargo de presidenta da nação argentina.

Cria a Junta Militar Governativa. Esta entra imediatamente em fun­cionamento na chefia do Poder Executivo e assim permanece até nova decisão dos signatários.

Ficam dissolvidos os poderes legislativos nacional, provinciais e locais.

A Junta exercerá — enquanto assim resolverem 05 seus membros — todos os poderes constitucionais de competência dos poderes Executivo e Legislativo.

Os governadores das províncias e os chefes das municipalidades são mantidos provisoriamente nos seus cargos, como interventores e acumu­lando funções legislativas provinciais e locais, nos termos do que a res­peito for decretado pela Junta.

Ficam suspensos, enquanto assim decidir a Junta, os direitos indivi­duais do cidadão.

A Constituição nacional poderá ser emendada e revista mediante de­cisão da Junta.

Os atos da Junta vigorarão a partir de sua assinatura. Sua constitucionalidade, bem como os efeitos dela decorrentes, são isentos de revisão judicial.

É anulada a lei de 2003 que revogou a lei da anistia de 1986.

São anuladas as penas de prisão perpétua aos generais Jorge Videla, Ronaldo Bignone e Eduardo Cabanillas. Serão revistas, no prazo mais curto possível, pelos tribunais que as impuseram, as demais penas im­postas em virtude da lei de 2003.

Quintana voltou-se, então, para Silvana Lapena e lhe disse: "Doutora Silvana, tenho aqui um ato que a senhora deve assinar renunciando ao cargo de presidenta da nação. Quando o fizer, poderá sair para a sua residência, onde permanecerá em liber­dade. Ou, se temer pela sua segurança e preferir deixar o país, ou pedir asilo numa embaixada, como passo inicial com esse fim, nós estaremos de acordo. Um oficial a acompanhará aonde for".

Silvana voltou a falar: "Senhores ministros, eu também sou es­trategista. Mas acredito, acima de tudo, no amor à Pátria, à Lei e à Ordem constitucional. Com o ato que acabam de assinar, os senhores violam, de direito e de fato, a Constituição e as Leis, votadas pelos representantes eleitos pelo povo e que os senhores juraram observar e obedecer".

"O povo que me conhece é o mesmo que me elegeu para este cargo pelo voto da maioria absoluta dos eleitores aptos a votar. E tornará a me eleger, se voltarmos a ter eleições livres em nossa terra."

Um instante de silêncio. Silvana olhou para cada um dos pro­tagonistas de sua deposição. E disse: "Mas eu não vou compac­tuar com a ilegalidade que os senhores acabam de praticar. Não assino a renúncia. Não saio do país. Não me asilo em embaixada. Se quiserem, matem-me. Ou prendam-me. Eu me nego a sair daqui pelos meus próprios meios".

"Então, a senhora ficará em prisão domiciliar", disse Quintana. "Temos senhoras coronéis e generais que a conduzirão a sua casa. Neste momento, a Plaza de Mayo está cheia de soldados capazes de impedir o povo de observar e a imprensa de ver e fotografar a sua saída."

Já havia, então, na antessala do gabinete presidencial, quatro mulheres militares. Chamadas à sala, a mais graduada delas disse, simplesmente: "Doutora Silvana Lapena, nós não queremos constrangê-la. Nem a arrastar. Nem a retirar deste gabinete sob a mira de um revólver. De mulher para mulher: por favor, nos acompanhe ao carro".

Silvana levantou-se. Despediu-se, apenas, de Ferdinando Saenz Pena: "Quando puder, me procure. Precisamos conversar".

Entrou um oficial com a informação de sucesso da detonação da primeira bomba.

Acompanhados de outros oficiais, os três antigos ministros — agora membros da Junta, em exercício do poder nacional de facto — foram até a sacada da Casa Rosada, celebrizada pelo cinema com a presença de Evita Perón, em sucessivos discursos à nação.

Àquela altura, a Plaza de Mayo, onde se situa a Casa Rosada, estava praticamente lotada de gente: além dos militares, muitos civis de todos os níveis e representantes do sistema argentino de comunicação — jornais, rádios, televisões, revistas — já avisados de que algo de muito grave seria revelado dali a instantes. Embora ninguém imaginasse o que poderia vir a público, naquele lugar e momento, as expectativas desencontradas tendiam para o pior.

No melhor estilo militar-político, o general Quintana leu o texto que os três ministros haviam aprovado: "Para os que não me conhecem, eu sou o general Carlos Quintana, comandante do Exército argentino. Ao meu lado, estão os meus colegas al­mirante Miguel de Ias Heras, comandante da Marinha, e briga­deiro Júlio Lamarca, comandante da Força Aérea. Nós temos várias comunicações da mais alta relevância para fazer à socie­dade argentina".

"Primeiramente, informo ao nosso povo, e ao mundo, que nós, militares argentinos, acabamos de testar, com sucesso, hoje mesmo, a nossa primeira bomba atômica. Concebida, criada e desenvolvida por nossos técnicos, em laboratório nacional. A de­tonação aconteceu em águas desertas ao sul da Patagônia, sem criar perigo à vida em nosso território.

"Com essa experiência", prosseguiu Quintana, "deixamos de fazer parte do imenso contingente de nações em desenvol­vimento', ou 'povos emergentes' — pobres eufemismos para designar, a partir de sua presunçosa superioridade, os povos eco­nomicamente pobres e socialmente atrasados. A bomba nos faz entrar no seleto clube das nações desenvolvidas".

"Agora, sempre que, em qualquer parte do mundo, as nações se reunirem para discutir questões de segurança mundial, nós, argen­tinos, teremos de ser chamados a participar, em termos de igual­dade com os demais países política e militarmente importantes."

Quintana fez pequena pausa, aguardando o aplauso que não veio. De fato, nenhum ouvinte conseguia imaginar motivos ra­cionais para a Argentina fazer uma bomba atômica.

Entusiasmado consigo mesmo, o general continuou: "A bomba atômica não é, para nós, um instrumento de agressão. Mas um elemento de defesa, cujo alcance e cuja importância serão ime­diatamente percebidos por todos os países. E um fator de dis- suasão de eventuais propósitos de domínio e conquista da nossa civilização por outros povos, outros países".

"É, também, a demonstração eloqüente da capacidade técnica dos nossos cientistas em enfrentar quaisquer problemas refe­rentes ao progresso do nosso povo, do nosso país, da nossa vida, da nossa saúde e da nossa economia.

"Contudo", prosseguiu Quintana, "a senhora Silvana Lapena que, até hoje exercia a presidência da nossa República, não com­preendeu os altos propósitos da nossa iniciativa — a qual, devo acentuar, foi estritamente militar, tanto em sua concepção quanto na execução".

"Em conseqüência da negativa da ex-presidenta de aceitar nossas razões, o almirante Miguel de Ias Heras, comandante da Marinha, o brigadeiro Júlio Lamarca, comandante da Força Aérea e eu, comandante do Exército, resolvemos formar uma Junta Mi­litar Governativa e depor a senhora Lapena do cargo de presi­denta da Nação Argentina. Em conseqüência, a Junta exercerá, até futura decisão, os poderes nacionais, Executivo e Legislativo."

Nova pausa. Nada de aplausos. Mas algum murmúrio indica­tivo de desaprovação.

Passado um minuto e sem compreender o silêncio do povo, o general Quintana retomou a palavra: "Se, no plano internacional, a bomba que acabamos de detonar nos garante a entrada no clube fechado das nações poderosas, a formação de uma Junta Militar redime a Argentina e o povo argentino da má conduta dos polí­ticos civis. Os quais, como a nossa história comprova, só pensam em valer-se do exercício dos poderes do Estado em seu próprio benefício. Esquecidos do bem comum do povo, do seu progresso material e, sobretudo, do seu bem-estar social e dos objetivos comuns, nas áreas da saúde, do trabalho e sua remuneração, da educação. Numa palavra: da sua qualidade de vida".

Ninguém parecia entender o que se passava.

Ante a apatia do público presente, os antigos ministros mili­tares, agora membros da Junta Governativa, despediram-se em silêncio. Dentro da Casa Rosada, cumprimentaram-se recipro­camente. "Está tudo 100%", pensaram os três. "Agora, vamos ao trabalho."

Nada estava 100%. Eles não contavam com o poder de mobi­lização das redes sociais.

Nem com o peso específico da opinião pública, quando os go­vernantes fazem algo contrário ao que pensa a maioria dos cida­dãos bem informados.

 

Na mesma hora, os membros da Junta Militar Governativa di­vulgaram a nota, previamente preparada para distribuição a todos os meios de comunicação locais e aos correspondentes da mídia internacional, contendo os principais fatos do "ato supra-constitucional" que haviam assinado. Incluindo a deposição da presidenta Silvana Lapena e o motivo da sua destituição; a dis­solução dos poderes legislativos nacional, provinciais e locais; a instituição de uma Junta Militar Governativa, a qual assumira, no mesmo ato, os poderes Executivo e Legislativo argentinos; a ex­plosão com sucesso de uma primeira bomba atômica e a decisão de continuar o desenvolvimento nuclear.

Um oficial da Marinha, almirante Cláudio Belgrado, apre­sentou-se ao Ministério das Relações Exteriores com instruções para assumir — diante da consternação dos funcionários e diplo­matas em serviço àquela hora — todas as responsabilidades do ministro de Estado.

Primeira tarefa: comunicação urgente às embaixadas de todos os países que mantinham relações diplomáticas com a Argentina, relatando os fatos do dia e pedindo a atenção dos governos para as mudanças institucionais ocorridas no país.

Ao mesmo tempo, os auxiliares diretos dos três chefes mili­tares convocaram a imprensa para "uma comunicação urgentís­sima e da maior importância" dirigida a toda a nação argentina, a ser feita "pelos novos titulares do poder público", em termos semelhantes ao texto lido perante a presidenta Silvana Lapena e o povo reunido na Plaza de Mayo.

Naquele momento, notícias e boatos desencontrados cor­riam por todos os lados: detonação de bombas atômicas argen­tinas; deposição — ou morte — da presidenta Silvana Lapena, por haver-se oposto às bombas; criação da Junta Militar e sua aceitação, ou contestação, no meio da tropa, etc. Os meios eletrônicos de comunicação — rádio, televisão, internet, redes so­ciais — prometiam mais notícias e pediam à população que se mantivesse alerta.

Como não podia deixar de ser, uma entrevista coletiva, reali­zada na Casa Rosada, entre os membros da Junta e os meios de comunicação, correu em meio ao maior tumulto: os jornalistas queriam saber mais; perguntas ficaram sem respostas satisfató­rias; todos tratavam de apressar-se em função das horas de fecha­mento do noticiário.

Do lado oficial, ninguém respondia com clareza o que era per­guntado.

Em questão de minutos, os meios de comunicação de todo o mundo já registravam com destaque a dupla notícia: explosão de uma bomba atômica argentina e deposição do chefe de Estado, pelos militares daquele país, em razão de sua negativa de aprovar a aventura dos militares do seu país na questão nuclear.

Sem resposta ficava também a pergunta que todos faziam a si próprios ou de viva voz: "Para que diabo a Argentina precisa de uma bomba atômica?". Ou: "Onde se encontra a presidenta Sil­vana Lapena? Podemos conversar com a presidenta?".

A ninguém ocorria chamá-la "ex-presidenta".

De seu lado, as embaixadas apressaram-se a transmitir as no­tícias aos seus governos, nos quais despertaram igual perplexi­dade. Logo se levantou a questão do "reconhecimento" da Junta Militar como poder de facto.

A primeira reação oficial e pública veio do Brasil. A presidenta Mariana Rousseau mandou o seu ministro das Relações Exte­riores, embaixador Roberto de Souza Alighieri, declarar que o Brasil considerava inaceitável a deposição da presidenta Silvana Lapena — muito menos pelas razões alegadas: a sua negativa de aprovar o programa de construção de bombas atômicas. O Brasil se recusava, também, a reconhecer a Junta Militar Governativa como poder de fato.

As relações diplomáticas dos dois vizinhos ficavam em sus­penso, com grave tensão entre as partes, até a restauração do poder eleito pelo povo argentino.

Logo em seguida, o Uruguai e o Paraguai — seguidos do Chile, Bolívia, Colômbia e Equador — tomaram atitudes semelhantes. A Venezuela foi o único país da América do Sul, e membro do Mercosul, a reconhecer a Junta. Estados Unidos, Canadá e Mé­xico, bem como os países da América Central, também negaram o reconhecimento.

Para os governos europeus, a Junta argentina era apenas mais um caso de violação das normas constitucionais de um país la­tino-americano. Ninguém podia imaginar se seria uma mudança duradoura de regras políticas ou mais um movimento pendular, a definir-se por uma ditadura brutal, mas transitória, se e quando o país retomasse o caminho da legalidade. A atitude tomada pelos países da União Européia foi no sentido de "esperar para ver".

Os meios oficiais e científicos de todo o mundo manifestaram com maior ou menor veemência seu repúdio ao ingresso de mais um país na "aventura nuclear", com evidente desvio de recursos intelectuais e materiais do bem comum, para uma finalidade des­ligada de quaisquer preocupações com o bem da humanidade, em geral, e do seu próprio povo, em particular.

As reações do resto do mundo foram, em geral, no mesmo sentido. Exceções notáveis: os governos do Irã e da Coréia do Norte. Ambos se apressaram não só em reconhecer a Junta, mas também em aplaudir a bomba atômica argentina.

No plano dos organismos de representação internacional, a reação foi igualmente dura: a OEA suspendeu a representação argentina em seu seio. O Conselho de Segurança das Nações Unidas reuniu-se e condenou com igual veemência os dois fatos: o golpe militar que depusera os poderes legítimos da nação e a construção de bombas atômicas pela Argentina, considerada uma ameaça à paz e à segurança mundiais. A AIEA revelou ao mundo que o governo da presidenta Silvana Lapena já havia feito contatos para balizar a futura assinatura, pela Argentina, do Pro­tocolo Adicional ao Tratado de Não Proliferação.

Enquanto isso se passava pelo mundo, os dias corriam devagar na Argentina. A Junta se sentia como se vivesse numa ilha. Nin­guém para falar, resolver dúvidas, encontrar caminhos, remover impasses. A censura imposta a todos os meios de comunicação formais — jornais, revistas, rádio, tevê — não deixava perceber o que pensava a população.

Mais solidão. Nacional e internacional. E a ameaça, sentida por todos, de caos iminente.

Do ponto de vista operacional, nada funcionava a contento.

Bancos fechados, com receio de uma "corrida" devastadora de pessoas ávidas de transformar seus depósitos em "caixa viva". Portos parados: ninguém se animava a importar produtos ar­gentinos. Navios destinados ao país eram desviados para outros destinos, uma vez que poucos exportadores se aventuravam a entregar mercadorias sem a certeza de receber o seu valor. Li­nhas aéreas internacionais suspenderam voos para aeroportos argentinos.

A previdência social interrompeu os pagamentos aos segu­rados — ninguém sabia de onde tirar dinheiro para pensões e in­denizações. A saúde pública entrou numa fase de irregularidade ainda mais séria na prestação de serviços: alguns postos funcio­navam, mas, muitas vezes, sem médicos e pessoal habilitado; ou, mais freqüentemente, permaneciam fechados.

Os militares não percebiam, porém, que o povo pensava e as pessoas falavam umas com as outras: "Para que precisamos de uma bomba atômica?". Ou então: "Por que e para que uma nova ditadura militar?". Ou mesmo: "Para onde caminha a Argentina?"

Além de pensar e falar para si mesmas, as pessoas faziam correr — em mensagens via internet pelo Facebook, pelo Twitter e demais redes sociais, além de virais pelo YouTube — uma onda de insatisfação com o status quo. Criaram-se mil slogans para expressar o repúdio da sociedade à reviravolta política sem justificação plausível. Mensagens de protesto contra nova ditadura militar multiplicavam-se exponencialmente.

Por fim, surgiu a frase-resumo do desejo da nação: "Devolvam o poder aos eleitos".

Repetida centenas, milhares, milhões de vezes, a frase adquiriu poder de mobilização. Não partidária, mas a favor da normalidade democrática. Por fim, alguém marcou um dia "D": domingo, 26 de junho, todos os que se opunham a mais uma ditadura militar — milhões de pessoas — sairiam às ruas das grandes, médias e pequenas cidades.

Outra campanha, pelos mesmos meios e com o mesmo poder de multiplicação, tinha o objetivo de convencer os sol­dados: "Vocês também são do povo, como nós". Para concluir: "Não atirem em seus irmãos, seus amigos, sua família". Todos compreenderam.

As frases, de palavras simples mas expressivas, fáceis de ouvir e entender, foram repetidas ao infinito. De sua parte, a maioria dos soldados se recusava a dispersar com balas o povo desarmado. Insubordinação, diziam os membros da Junta.

No dia combinado, mais de um milhão de bonaerenses — um terço da população da capital — convergiram para a Plaza de Mayo, a Avenida Nueve de Júlio e seu obelisco e todos os tra­dicionais pontos de reunião do povo de Buenos Aires. Vários outros milhões se concentraram nas praças das cidades, vilas e povoados do norte ao sul e do leste ao oeste do país.

Os membros da Junta procuraram substituir os comandos para ver se, com maior agressividade, os militares dominariam a "rebelião". Mas viram que, pouco a pouco, a indisciplina parecia subir de posto em posto.

De repente, chegou à Junta a pior notícia que seus membros podiam esperar: na noite anterior, fora do horário de trabalho, o laboratório do lago Nahuel Huapi havia sido destruído por uma explosão. "Nuclear?", perguntavam-se os militares.

As respostas e informações dos chefes do laboratório eram confusas e contraditórias.

"Não deve ter sido explosão nuclear, pois lá só havia pequena quantidade de urânio e em nível inicial de enriquecimento".

Ou: "Não sobraram, no laboratório, materiais físseis capazes de iniciar uma explosão não provocada". Ou: "Pode ter sido uma bomba convencional, lançada por um avião".

"Vindo de onde?" Ninguém sabia, ninguém tinha visto.

Os militares passaram a sentir-se ainda mais sozinhos. Na ci­dade. No país. No mundo.

Mas o povo não parou. Alguém se lembrou de ir à residência de Silvana Lapena, trazê-la de volta à Casa Rosada e reintegrá-la ao seu cargo de presidenta da nação.

Pelo caminho, em carro aberto até a Plaza de Mayo, Silvana foi delirantemente aplaudida. Primeiro, pelos civis. Depois, também, pelos militares. Pelo jeito, militares e civis queriam igualmente a volta dos eleitos, o restabelecimento dos poderes constitucionais.

Ao chegar ao seu gabinete, Silvana encontrou os três mem­bros da Junta. Desacorçoados. Tristes. Quase chorosos. E certos de que tinham zero por cento de apoio popular.

O general Carlos Quintana então falou: "Senhora presidenta, nós ainda consideramos a nossa posição, com referência à bomba atômica, a melhor para a Argentina".

"Talvez a senhora não saiba, mas na noite passada o labora­tório de Bariloche foi destruído por uma explosão. Nossos téc­nicos afirmam não ter sido uma explosão nuclear. Afinal, uma vez retirada de lá a primeira bomba acabada, só restaram poucos átomos de urânio no ponto inicial de enriquecimento e, portanto, incapazes de explodir. Nós podemos reconstruir o laboratório, em Bariloche ou em outro ponto do território argentino.

"Contudo", prosseguiu Quintana, "o nosso povo dá mostras de rejeitar a idéia de um governo de fato. Quer de volta o poder que ele elegeu".

"Assim seja, então. Vamos fazer a vontade do povo e esperar pelo melhor.

"O almirante Miguel de Ias Heras, o brigadeiro Júlio Lamarca e eu renunciamos à idéia de Junta Militar e devolvemos à senhora os poderes do Executivo. Estamos prontos a reassumir nossos cargos de ministros ou a exercer outras funções nas nossas Forças.

"Se resolver ser drástica, pode demitir-nos da nossa condição de militares. Mas, se agir com generosidade, então assine a nossa aposentadoria. Com a pensão de retirados' viveremos em paz com a nossa família enquanto Deus for servido."

"Muito bem. Farei exatamente isso", disse a presidenta Silvana Lapena. Ferdinando Saenz Pena, chefe de seu gabinete, já havia chegado à Casa Rosada. Ela o chamou e pediu os decretos de "re­forma" dos três oficiais-generais. Com isso, a crise militar che­gava ao fim.

Os três ex-ministros e ex-membros da ex-Junta despediram-se. Envergonhados, deixaram o Gabinete presidencial. Ao sair da Casa Rosada, foram entusiasticamente vaiados pelo povo.

Jamais poderiam compreender como se fizera tamanha mobi­lização popular praticamente em silêncio. Sem comícios ou gri­taria. Era a sua primeira lição — ou a última? — sobre o poder quase infinito de multiplicação e difusão de informações pelos novos meios de comunicação eletrônica. E o que mais estaria por vir, em termos do futuro da palavra impressa e dos meios físicos. Do que restaria dos jornais, livros, revistas, fotografias e tudo o mais que havia feito a alegria da sua juventude e do seu tempo.

 

Na Plaza de Mayo, as tropas iniciaram o caminho de volta aos seus quartéis, navios e bases. As pessoas que lotavam todos os recantos da praça começaram a clamar pela palavra da presidenta Silvana Lapena. Por todos os lados ecoava o refrão: "Queremos ouvir Silvana". Ela percebeu que não tinha alterna­tiva. Chegou a uma das sacadas do palácio presidencial e sentiu na pele a mesma emoção transmitida por Madonna ao cantar, no papel de Evita Perón: "Don't cry for me, Argentina'.

Silvana mostrou-se à altura do que sentia, e o povo desejava ouvir.

Sob aplausos delirantes, repetiu várias vezes a frase: "Ditaduras militares, nunca mais".

Falou do pleno restabelecimento dos direitos constitucionais dos cidadãos; da restauração dos poderes legislativos de todos os níveis; da renúncia da Argentina à idéia da posse de bombas atômicas, dizendo e repetindo: "Nós não temos inimigos. Não queremos bombas".

Dirigiu-se, em particular, às populações argentinas mais dire­tamente atingidas pelos efeitos do enriquecimento de urânio: os moradores da área de Bariloche, afetados pelas radiações oriundas do laboratório destruído. Prometeu tudo fazer para "limpar" a região, suas cidades e vilas, bosques e florestas. E torná-las nova­mente habitáveis, seguras e saudáveis.

Estendeu-se, em particular, no anúncio de providências efi­cazes para socorrer a população do extremo sul da Patagônia, diretamente afetada, nas pessoas, nas plantações e nas criações, pela "estúpida explosão" da bomba atômica perto de suas mar­gens marítimas. "A qual só se justifica no íntimo do pensamento de militaristas alienados", acrescentou.

Continuou por vários minutos no mesmo tom. Compreen­dendo perfeitamente o que ela dizia, o povo sentia reforçados os seus pensamentos de patriotismo e orgulho cívico.

Não muitos dias depois, a situação começou a dar sinais de volta à normalidade. Na Casa Rosada. Na capital. Nas províncias. No país.

Sob a inspiração e o incentivo de correligionários e membros do seu governo, a presidenta Silvana Lapena passou a consi­derar seriamente a hipótese de candidatar-se a novo mandato na eleição seguinte, dois anos depois. Nada decidido. Havia muita coisa a fazer.

Uma das primeiras providências, no plano internacional, foi a assinatura do Tratado de Não Proliferação e seu Protocolo Adi­cional. A Argentina desistia oficialmente da idéia de construir bombas atômicas e de enriquecer urânio para fins militares.

Com esse passo, Silvana esperava também acalmar os pro­testos recebidos de países que diziam ter sido expostos à radiação da bomba argentina. A África do Sul e outros países da costa afri­cana do Atlântico já notavam sinais de radiação. Do "outro lado", a Austrália, a Nova Zelândia e mais regiões do Pacífico se queixavam da radiação, carregada pelos oceanos e ventos até o seu território.

A população do extremo sul da Argentina reclamava da po­luição das águas costeiras, da morte de peixes, pingüins, lobos do mar e outros animais silvestres, das faunas terrestre e ma­rinha. O Brasil e os países africanos da costa do Atlântico mos­travam iguais receios e insistiam em que a Argentina "fizesse alguma coisa".

Mas a presidenta se convencera também de que — apesar dos problemas levantados pela explosão da bomba argentina e pela catástrofe do noroeste do Japão — continuaria a haver demanda de urânio enriquecido para uso na geração de eletri­cidade. Tal como o Japão, a Argentina não dispunha de fontes renováveis de energia suficientes para suprir a demanda futura. Para ambos, a solução residia em usinas acionadas por fontes de energia nuclear.

Precisava de alguém de confiança, apto a verificar o que res­tava das instalações dos arredores de Bariloche. Se seria o caso de reconstruí-las ou de procurar outra localização.

Lembrou-se, então, do professor Fernando Gutierrez, da Uni­versidade Nacional de Buenos Aires, o qual lhe havia reportado o altíssimo nível de radiação existente em torno do laboratório do lago Nahuel Huapi. Mandou chamá-lo.

No mesmo dia, Gutierrez ouviu a incumbência especial que lhe fora reservada pela presidenta: "O senhor acha, professor, que, depois da explosão que destruiu o nosso laboratório de Bari­loche, o nível de radiação restante em seu entorno seja adequado à vida?"

Gutierrez pensou um momento e respondeu: "Não sei, senhora presidenta. A radiação é sempre duradoura. Falo em termos de décadas, embora outros falem em séculos. Mas ela é, também, proporcional ao nível de enriquecimento do urânio. Removida a bomba, que depois foi explodida na Passagem de Clarke, sobrou apenas uma pequena quantidade de urânio a ser eventualmente enriquecido".

"Enquanto o laboratório funcionou, seus dirigentes não que­riam manter um estoque apreciável de urânio em estado na­tural. Receavam que, se houvesse um acidente qualquer com o urânio em processamento, o mesmo acidente poderia afetar o minério bruto. E, nesse caso, a explosão resultaria em danos piores que os causados pela bomba americana na cidade japo­nesa de Hiroshima.

"De acordo com essa premissa, senhora presidenta, acredito que o nível de radiação residual naquela área seja atualmente bem baixo. Mas o lugar é vulnerável a ataques aéreos partidos do Chile, do Brasil ou de qualquer país vizinho. Ou de um navio estacionado ao largo da costa do Pacífico. Como a senhora sabe melhor que eu, o Brasil assinou os tratados. E o Chile rejeita a idéia de enriquecimento de urânio a pequena distância do seu território."

Após pequena pausa, Gutierrez retomou o pensamento: "Posso ir lá, se a senhora quiser. Medirei os níveis de radiação, incluindo a zona urbana de Bariloche, e checarei se o teor de radiação ainda restante naquela área é adequado à vida".

"De qualquer modo, senhora presidenta, com a sua permissão, tenho mais duas observações: a primeira é no sentido de que, seja qual for o resultado da minha inspeção, o nosso governo escolha outro local, em sítio mais remoto, para construir o novo labora­tório, que deve ter paredes reforçadas, blindadas, capazes de im­pedir o vazamento de radiação.

"A segunda é de caráter estritamente pessoal: não me parece que a destruição do laboratório à margem do lago seja conse­qüência de uma explosão nuclear espontânea. Penso que, à noite, um avião qualquer lançou uma bomba convencional, com dis­positivo de retardamento da detonação, a tempo de voar de volta para o lugar de onde veio."

"Quem, por exemplo?", perguntou Silvana.

"Não sei", respondeu Gutierrez. "Mas, na minha visão, só pode ter partido do Chile ou do Brasil. O Brasil, pelos recursos mili­tares. O Chile, pela proximidade."

Silvana aprovou a ida de Gutierrez a Bariloche e incumbiu-o da pesquisa posterior para a definição de local para o novo laboratório de enriquecimento de urânio exclusivamente para fins civis.

Gutierrez despediu-se. Como fora instruído pela presidenta, combinou os detalhes da viagem com o chefe do gabinete presi­dencial, Ferdinando Saenz Pena.

Foi. Inspecionou o que restava do prédio. Pelos escombros, concluiu que a detonação ocorrera fora da parte do laboratório onde era mantido o pequeno estoque de urânio in natura. O que confirmava a sua hipótese: bomba convencional, lançada "de fora" do complexo.

Mediu os graus de radiação no lago, nos bosques e na floresta. Confirmou a sua previsão inicial de que os níveis já tinham caído a pontos não necessariamente fatais. A zona urbana e os arredores de Bariloche eram habitáveis. E, os parques e jardins, recuperáveis.

Voltou e relatou à presidenta Silvana Lapena tudo o que vira e as conclusões a que chegara. Renovou a sua recomendação para construir o novo laboratório em outro lugar.

Silvana tinha ido muito além das suspeitas de Gutierrez.

Em sua cabeça, a presidenta deduzira, com razão, que a bomba só poderia ter sido despachada, num avião invisível ao radar, de uma base brasileira. A bomba, com efeito retardado, fora lançada sobre o laboratório. O avião voltara à sua base sem ser notado.

Sorriu mil vezes. Ação típica de sua amiga, a presidenta brasi­leira Mariana Rousseau.

Chamou a sua secretária e pediu-lhe que enviasse uma men­sagem de caráter "pessoal" à colega brasileira, nos termos que ditou:

 

                 Querida Mariana:

Agora sei que foi você quem fechou a oficina e tirou do mercado as bolsas feitas com peles de animais silvestres da Patagônia. Para­béns pelo sucesso.

Fico muito grata a você. Me telefone, por favor.

                                       Beijos, Silvana.

 

Mariana recebeu a mensagem. Riu para valer.

De sua parte, não havia mistério. Diante da explosão de uma bomba entre a Patagônia e a Antártida e da virtual deposição de Silvana, com a formação de uma Junta Militar, a presidenta bra­sileira viu reforçadas as preocupações, demonstradas pelos seus militares, no sentido de que, depois do sucesso na experiência, os argentinos iriam fazer mais bombas. E que o alvo mais provável de armas nucleares argentinas seria o Brasil. Sem demora.

"Precisamos fazer alguma coisa", pensou a presidenta Mariana.

Mandou chamar o general Antônio Schmidt de Oliveira, seu novo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e lhe transmitiu as conclusões e informações dadas pelo professor Gu­tierrez à presidenta argentina. "Que acha você que devemos fazer?"

Schmidt não tinha dúvidas. Lembrou à presidenta que uma das duas operações abortivas do processamento de bombas atômicas argentinas, vetadas por ela, era o bombardeio e a destruição do la­boratório. O trabalho proposto seria feito por um avião brasileiro, invisível ao radar, que voaria até o Pacífico e voltaria de lá ao local do laboratório, à margem do lago Nahuel Huapi. A ação abortiva devia ser tentada, com altíssima probabilidade de sucesso.

Mariana aprovou e assim foi feito.

Agora, com a sua inteligência e espírito analítico, a presidenta Silvana Lapena descobrira o essencial: destruição do laboratório por iniciativa da sua colega brasileira.

Mariana sorriu novamente. Schmidt pediu licença e saiu.

Nesse momento, a presidenta brasileira passou a mão no seu telefone confidencial. Ligou para o número secreto da presidenta argentina. Quando esta atendeu, Mariana lhe disse: "Eu sempre acreditei na sua inteligência. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, você descobriria. Agora, receba meus parabéns por ter assinado o Tratado e seu Protocolo!".

"E sobretudo, querida amiga", continuou Mariana, "receba a gratidão, ainda que muda, dos milhões de brasileiros e argentinos cuja vida você acaba de preservar!

 

                                                                                Said Farhat  

 

                      

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