Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTAGEM DECRESCENTE / Joy Fielding
CONTAGEM DECRESCENTE / Joy Fielding

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONTAGEM DECRESCENTE

 

                    "ESTAVA A IMAGINAR UMA FORMA DE MATAR O MEU MARIDO."

Martha Hart, a quem todos menos a mãe chamavam Mattie, pois insistia sempre em que Martha era um nome adorável!

- "não vês a Martha Stewart a mudar o nome dela, pois não?" -, nadava de um lado para o outro na longa piscina rectangular que ocupava a maior parte do seu espaçoso pátio. Mattie nadava todas as manhãs desde os princípios de Maio até meados de Outubro, excepto em dias de tempestade com relâmpagos ou durante as primeiras quedas de neve em Chicago, cinquenta minutos, cem vezes o comprimento da piscina, com braçadas precisas de bruços e crawl, para um lado e para o outro, na bem aquecida extensão de doze metros. Normalmente já estava na água às sete da manhã, para poder terminar antes de Jake sair para o trabalho e Kim para a escola mas, naquele dia, tinha adormecido, ou melhor, não tinha dormido nada até poucos minutos antes do despertador tocar. É claro que Jake não tivera o mesmo problema para adormecer e já estava fora da cama e no duche antes de Mattie ter tido tempo de abrir os olhos.

- Sentes-te bem? - perguntara-lhe ele, já vestido e a sair de casa qual indistinta mancha azul, antes de Mattie conseguir articular uma resposta.

Podia usar um facalhão de talho, pensou Mattie, empurrando a água com os punhos cerrados, brandindo no ar a lâmina imaginária de trinta centímetros e enfiando-a no coração do marido, a cada subida e descida dos braços. Chegou ao fim da piscina, usou os pés para dar impulso na parede de cimento e voltou para o outro lado, o que a fez recordar que um empurrão bem calculado, do alto de uma escada, podia ser uma maneira mais fácil de despachar Jake. Ou então podia envenená-lo, acrescentando uma pitada de arsénico, em vez do queijo parmesão ralado, ao seu prato de massa favorito, como o que tinham comido no jantar da véspera, antes de Jake supostamente voltar para o escritório para trabalhar no importantíssimo argumento final que apresentaria hoje ao júri e ela descobrir a conta do hotel no bolso do casaco dele - o casaco que ele tinha pedido para ela mandar para a lavandaria - e que anunciava a sua mais recente infidelidade com a mesma clareza de uma notícia num placard de supermercado.

- "Podia dar-lhe um tiro," - pensou, apertando a água que lhe passava por entre os dedos, como se apertasse o gatilho de um revólver, seguindo a bala imaginária com o olhar, vendo-a espalhar água na superfície da piscina, seguindo em direcção ao desprevenido alvo, enquanto o seu marido vadio se levantava para se dirigir aos jurados.

Observou Jake a abotoar o casaco azul-escuro segundos antes da bala o atingir, o sangue vermelho-escuro a escorrer-lhe lentamente sobre as linhas diagonais da gravata às riscas azuis e douradas, o leve sorriso de menino que lhe emanava dos lábios e dos olhos gélidos, diminuindo e desaparecendo por completo com a queda, de frente, no chão duro do velho e imponente tribunal.

Senhoras e senhores do júri, chegaram a algum veredicto?

- Morte ao infiel! - gritou Mattie, pontapeando a água como se fosse um cobertor incómodo enrolado nos tornozelos, sentindo os pés estranhamente pesados, como que presos a grandes blocos de cimento. Por um segundo Mattie achou que as suas pernas eram objectos alheios a si, como se pertencessem a outra pessoa e tivessem sido cosidas ao acaso nos seus tornozelos, servindo apenas de lastro. Tentou ficar de pé, mas as solas dos pés não encontravam o fundo da piscina, apesar de o nível da água estar apenas a um metro e meio do fundo e ela ter quase vinte centímetros de altura a mais.

- Bolas - resmungou Mattie, perdendo o ritmo da respiração e engolindo uma boa porção de cloro.

Engasgou-se ruidosamente, lançou-se em direcção ao lado da piscina e dobrou o corpo sobre a beira, descansando sobre o bordo de arenito liso, enquanto as mãos invisíveis continuavam a puxar-lhe pelas pernas, tentando arrastá-la para dentro de água.

- É bem feito para mim - resmungou ela entre espasmos dolorosos de tosse. - Bem feito, por ter pensamentos tão maus.

Limpou um pouco de saliva da boca, depois explodiu num acesso de riso histérico, e a gargalhada misturou-se com a tosse, uma alimentando a outra, os sons desagradáveis ricocheteando na água, ecoando ruidosamente nos seus ouvidos. - "Porque estou a rir?" - pensou ela sem conseguir parar.

- O que se passa? - A voz vinha de qualquer lugar por cima da sua cabeça. - Mãe? Mãe, estás bem?

Mattie pôs a mão na testa para proteger os olhos dos fortes raios de sol que se concentravam nela como um holofote, e olhou para o grande alpendre de cedro que partia da cozinha nas traseiras da casa de dois andares de tijolos vermelhos. A sua filha, Kim, estava recortada no céu de Outono e o resplendor do Sol deixava indefinidas as feições normalmente marcantes da adolescente. Não tinha importância. Mattie conhecia os traços e contornos do rosto e do corpo da única filha tão bem quanto os seus, talvez até melhor. Os enormes olhos azuis, que eram mais escuros do que os do pai, maiores do que os da mãe, o nariz comprido e recto que herdara do pai, a boca arqueada da mãe, os seios que despontavam saltando uma geração, passando directamente da mãe de Mattie para a sua filha e que já eram, mesmo na tenra idade dos quinze anos, uma força a ser respeitada. Kim era alta, como o pai e a mãe, e magricela, como a mãe tinha sido quando tinha a mesma idade, só que a sua postura era muito melhor do que a de Mattie aos quinze anos, melhor, na verdade, do que a actual. Kim não precisava de ninguém que lhe recordasse que deveria endireitar os ombros, ou levantar a cabeça, e ali, apoiada nas tábuas resistentes da balaustrada, balançando como uma árvore nova ao vento suave, Mattie ficou maravilhada com a segurança espontânea da filha, perguntando a si própria se tinha de facto tomado parte no seu desenvolvimento.

- Estás bem? - perguntou Kim de novo, esticando o pescoço longo e elegante na direcção da piscina. O cabelo louro natural que lhe batia nos ombros estava todo puxado para trás e preso num pequeno carrapito no topo da cabeça. O seu ar de Miss Grundy, Mattie por vezes era provocante.

- Está alguém aí contigo?

- Estou bem - disse Mattie, mas continuava a tossir e as palavras saíram ininteligíveis, de modo que teve de repetir: - Estou bem - disse de novo, e então deu uma gargalhada.

- Qual é a graça? - Kim soltou um risinho, um som leve e trepidante, querendo participar naquilo a que a mãe achava tanta graça.

- Tenho o pé dormente - disse Mattie baixando lentamente os dois pés até ao fundo da piscina, aliviada ao sentir que estava de pé.

 

1 Professora da Escola de Riverdale, personagem dos Archie Comics e protótipo do que é convencional. (N.T.)

 

- Enquanto estavas a nadar?

- Sim. Engraçado, não é?

Kim encolheu os ombros, num movimento que dizia não ser assim tão engraçado, não tão engraçado a ponto de dar gargalhadas, e inclinou-se ainda mais para a frente, saindo da sombra.

- Tens a certeza de que estás bem?

- Estou óptima. Apenas engoli um pouco de água.

Mattie tossiu mais uma vez, como se quisesse dar ênfase ao que acabava de dizer. Reparou que Kim vestira o casaco de cabedal e, pela primeira vez naquela manhã, se deu conta do frio do fim de Setembro.

- vou agora para a escola - disse Kim, mas não se mexeu. - O que vais fazer hoje?

- Tenho hora marcada esta tarde com um cliente para ver umas fotografias.

- E de manhã?

- Esta manhã?

- O pai vai fazer a sua alegação final para o júri esta manhã - declarou Kim.

Mattie assentiu com a cabeça, sem saber onde é que aquela conversa ia parar. Olhou para o grande ácer que se avolumava majestosamente por cima do quintal do vizinho, para o vermelho profundo que se espalhava pela folhagem verde, como se as folhas sangrassem lentamente até à morte, e ficou à espera de que a filha falasse.

- Aposto que ele ia gostar muito se fosses ao tribunal para o incentivar. Sabes, como costumam fazer quando participo de uma peça da escola. Para lhe dar apoio e tal.

- "E tal", - pensou Mattie, mas não disse nada, optando por tossir em vez de falar.

- De qualquer maneira, tenho de me ir embora já.

- Tudo bem, querida. Que passes um bom dia.

- Tu também. Dá um beijo ao pai por mim, deseja-lhe boa sorte.

- Que passes um bom dia - repetiu Mattie, vendo Kim desaparecer dentro da casa.

Sozinha de novo, fechou os olhos e deixou o corpo afundar-se sob a superfície lisa da água. A boca ficou imediatamente coberta e as orelhas encheram-se de água, silenciando o ruído branco da natureza, bloqueando os sons episódicos da manhã. Já não havia cães a ladrar nos quintais da vizinhança, pássaros a cantar nas árvores próximas, automóveis a buzinar a sua impaciência pela rua. Tudo era silêncio, paz e sossego. Já não havia maridos infiéis, nem mentes adolescentes inquiridoras.

Como será que ela faz isto? interrogou-se Mattie. Que tipo de radar possuía a rapariga? Mattie não tinha dito nada a Kim a respeito da descoberta da mais recente traição de Jake. Nem havia dito nada a ninguém, a nenhuma das suas amigas, à mãe, a Jake. Quase deu uma gargalhada. Quando foi a última vez que confidenciou qualquer coisa à mãe? E quanto a Jake, ainda não estava preparada para o confrontar. Precisava de tempo para pensar, organizar as suas ideias, como um esquilo juntando as nozes para o Inverno, para ter a certeza de estar bem preparada para qualquer atitude que resolvesse adoptar nos longos meses de frio que tinha pela frente.

Mattie abriu os olhos debaixo de água, afastou do rosto o cabelo louro escuro, cortado à altura do queixo. É desta, pensou. Está na altura de abrir os olhos. The time for hesitating's through acabou, ouviu o lamento de Jim Morrison de um qualquer ponto no fundo da sua cabeça. Come on, baby, light my fire. Era isso que estava à espera... que alguém acendesse uma fogueira debaixo dela? Quantas facturas de hotel teria de encontrar para tomar finalmente uma atitude? Já era altura de agir. Era altura de admitir certos factos irrefutáveis sobre o seu casamento. Senhoras e senhores do júri, neste momento gostaria de apresentar como prova este recibo de hotel.

- Maldito sejas, Jason Hart - explodiu Mattie, engolindo ar ao levantar a cabeça da água, o nome do marido parecia estranho e irreal nos seus lábios. Tratava-o por Jake, desde o dia em que foram apresentados, dezasseis anos antes.

Light my fire. Light my fire. Light my fire.

- Mattie, quero que conheças Jake Hart - tinha-lhe dito a amiga Lisa. - É aquele amigo do Todd de quem eu estava a falar.

- Jake - repetiu Mattie, gostando do som. - É o diminutivo de Jackson?

- Não, de Jason, mas ninguém me chama Jason.

- Prazer em conhecer-te, Jake.

Mattie olhou em volta da sala principal da biblioteca da universidade Loyola, quase certa de que um dos alunos mais estudiosos daria um pulo e faria shhh para os calar.

- E Mattie? É o diminutivo de Matilde?

- Martha - admitiu ela, envergonhada. Como é que a mãe a poderia ter ligado a um nome tão antiquado e sem graça nenhuma, mais apropriado para um de seus amados cães do que para a sua única filha?

- Mas, por favor, chama-me Mattie.

- Eu gostaria de... quero dizer, gostaria de te telefonar.

Mattie concordou com a cabeça, olhando fixamente para a boca do rapaz, para o lábio superior mais cheio, que cobria um pouco o de baixo, mais fino. Era uma boca muito sensual, pensou, idealizando já como seria beijar aquela boca, sentir aqueles lábios contra os seus.

- Desculpa - ouviu a própria voz, gaguejando. - O que disseste?

- Disse que soube que estavas a tirar História de Arte.

Mais uma vez ela acenou com a cabeça concordando e fazendo um esforço para olhar para os olhos azuis dele, quase da mesma cor dos dela, só que de pestanas mais longas, observou Mattie, e não achou muito justo. Porque haveria um homem de ter pestanas tão compridas e uma boca tão sensual?

- E o que fazem exactamente as pessoas formadas em História de Arte?

- Não faço ideia - disse Mattie, com a voz um pouco alta demais, e dessa vez alguém fez shhh!

- Queres ir tomar um café?

Pegou-lhe no braço e levou-a para fora da biblioteca sem esperar pela resposta, como se não tivesse dúvida alguma de qual seria. Assim como não teve dúvida quando, mais tarde, perguntou se naquela noite ela queria ir ao cinema, e depois, mais tarde, quando a convidou para o apartamento que dividia com alguns colegas do curso de Direito, e mais tarde ainda, quando a convidou para a sua cama. E nessa altura já era tarde demais. Dois breves meses depois daquela apresentação, dois meses depois de, cheia de entusiasmo, se ter rendido ao apelo sedutor das pestanas dele e da indescritível suavidade daquele lábio superior, Mattie descobriu que estava grávida, exactamente no dia em que ele resolveu que estavam a ir longe demais, que precisavam de ir mais devagar, acalmar um pouco, acabar tudo, pelo menos temporariamente.

- Estou grávida - informou ela, desanimada, incapaz de dizer qualquer outra coisa.

Conversaram sobre o aborto, conversaram sobre adopção, e finalmente deixaram de conversar e casaram-se. Ou casaram-se e deixaram de conversar, pensou Mattie, saindo da água para o frio do Outono e pegando na grande toalha vermelha que estava dobrada em cima da cadeira branca de lona, salpicada de folhas. Usou uma ponta da toalha para secar o cabelo e enrolou-se nela, bem apertada, como numa camisa-de-forças. Agora Mattie compreendia que Jake realmente nunca se quisera casar, assim como na altura o compreendera, apesar de fingirem os dois, pelo menos no princípio, que o casamento seria inevitável.

Depois de um curto intervalo, ele ia acabar por entender o quanto a amava e voltaria para ela.

Só que não a amava. Nem naquela altura, nem agora. E para dizer a verdade, Mattie não tinha certeza se algum dia amara Jake.

Era incontestável que se sentira atraída por ele. Que ficara deslumbrada com a sua beleza e encanto natural, disso nunca tivera dúvidas. Mas dizer que se tinha realmente apaixonado por ele, isso não sabia. Não tivera tempo para descobrir. Tudo acontecera com demasiada rapidez. E então, subitamente, já não havia mais tempo.

Mattie prendeu a toalha no peito e subiu a correr os doze degraus de madeira até à cozinha, abrindo a porta de correr envidraçada e entrou, a pingar água no chão de grandes ladrilhos azuis-escuros. Normalmente aquele compartimento da casa fazia-a sorrir. Era todo em tons de azul e amarelo fortes, com móveis de aço inoxidável e uma mesa redonda com tampo de pedra, decorada com frutas pintadas à mão e rodeada por quatro cadeiras de vime e ferro forjado. Mattie sonhava com uma cozinha assim desde que vira uma fotografia na revista Architectural Digest sobre as cozinhas da Provence. Orientara pessoalmente a renovação da cozinha no ano anterior, precisamente quatro anos depois de se terem mudado para a casa com três quartos na Walnut Drive. Jake fora contra a renovação, assim como tinha sido contra a mudança para os arredores, apesar de Evanston ficar a apenas um quarto de hora de carro do centro de Chicago. Ele queria permanecer no apartamento da Lakeshore Drive, mesmo concordando quando Mattie argumentou que os arredores eram mais seguros, tinham melhores opções no que dizia respeito a escolas, e o espaço era sem dúvida maior. Ele afirmou que se opunha à mudança por uma simples questão de conveniência, mas Mattie sabia que a questão era estabilidade. Uma casa nos arredores dava uma sensação muito grande de vida estável, especialmente para um homem com um pé fora de casa.

- Será melhor para a Kim - argumentou Mattie na altura, e Jake acabou por concordar.

Tudo por Kim que, para começar, fora o motivo para ele se ter casado com ela.

A primeira vez que lhe fora infiel aconteceu logo a seguir ao segundo aniversário de casamento. Ela tropeçou na prova incriminatória enquanto examinava os bolsos dos jeans antes de as pôr a lavar, vários

bilhetes amorosos, com corações minúsculos substituindo os pontos dos is. Rasgou-os todos e deitou-os na sanita puxando o autoclismo, mas os bocados de papel azul-claro voltaram à tona, desobedientes, recusando-se a ser dispensados com tanta facilidade. Um aviso do que estava para vir, pensou Mattie no presente, mas na altura ignorou o simbolismo. Durante os quase dezasseis anos de casamento, houve uma sucessão de bilhetinhos semelhantes, de números de telefone desconhecidos em pedaços de papel esquecidos displicentemente pela casa, vozes anónimas no gravador de mensagens, os murmúrios não tão discretos dos amigos, e agora isto, o mais recente, a factura da conta de um quarto no Ritz-Carlton, com data de alguns meses atrás, mais ou menos na época em que ela sugerira a possibilidade de terem outro filho, a factura deixada no bolso do casaco que ficara para ela deixar na lavandaria.

Precisaria ser tão exibicionista? A descoberta das suas indiscrições seria necessária para validar a experiência? As suas conquistas seriam de alguma forma menos reais sem ela, mesmo tendo-se ela recusado a reconhecê-las até então? E será que tomar conhecimento dos casos dele era exactamente o que estava a tentar forçá-la a fazer? Porque ele sabia que se a forçasse a reconhecer as suas infidelidades, se a forçasse a atirar-lhe isso à cara, então isso significaria o fim do casamento. Será que era o que ele queria?

Será que era isso que ela queria?

Talvez estivesse tão cansada como o marido daquele falso casamento.

- Talvez - disse ela em voz alta, olhando para a sua imagem reflectida na porta de vidro fosco do microondas.

Não era nada feia - alta, loura, olhos azuis, o estereótipo da típica americana - e só tinha trinta e seis anos, que não era idade para ser posta na prateleira. Os homens ainda a consideravam desejável.

- Eu podia ter um caso - sussurrou para o reflexo cinzento, marcado pelas lágrimas.

A sua imagem parecia surpreendida, consternada, desanimada. Já Experimentaste uma vez. Lembras-te? Mattie virou o rosto e olhou decidida para o chão.

- Foi só uma vez, e só para ficarmos quites. Então, volta a fazer o mesmo.

Mattie abanou com a cabeça e as gotas de água do cabelo molhado formaram pequenas poças aos seus pés. O caso, se é que se podia chamar infidelidade a uma noite de traição, tinha acontecido havia quatro anos, pouco antes da mudança para Evanston. Foi muito rápido, furioso e totalmente para esquecer, só que não fora capaz de esquecer, embora lhe fosse difícil recordar as feições do homem, já que fizera os possíveis para evitar olhar para ele, mesmo quando ele a penetrara. Era um advogado, tal como o marido, só que de outra firma, e especializado noutra área. Um advogado da área do espectáculo, lembrou-se de ele lhe ter dito, ao mesmo tempo que lhe facultara a informação de que era casado e pai de três filhos. Tinha sido contratada pela firma dele para comprar quadros para as paredes do escritório, e ele procurou explicar o que a empresa queria, antes de avançar mais e dizer o que ele queria. Em vez de ficar chocada, em vez de ficar zangada, como já acontecera naquele dia, ao ouvir o marido marcar um jantar ao telefone com a amante mais recente, ela combinou encontrar-se com ele alguns dias depois, na mesma semana, de forma que na mesma noite em que o marido estivesse na cama com outra mulher, ela estaria na cama com outro homem, imaginando, com ironia e sem alegria, se os orgasmos seriam simultâneos.

Nunca mais viu o homem, embora ele lhe tivesse telefonado várias vezes, com o pretexto de discutir os quadros que ela estava a seleccionar para a firma. Finalmente deixou de ligar e a firma contratou outro marchand, cujo gosto para arte "combina melhor com o que nós pretendemos". Nunca revelou o caso a Jake, embora fosse esse o objectivo inicial... Onde estava o gosto da vingança, se a parte prejudicada continuava sem conhecer a ofensa? Mas, sem saber porquê, não era capaz de contar, não por não o querer magoar, e tentou convencer-se disso na altura, mas porque tinha medo de lhe estar a oferecer a desculpa que ele precisava para a deixar.

E foi assim que não disse nada e a vida continuou como sempre. Continuaram a fingir que tinham uma vida a dois, a conversar tranquilos à mesa do pequeno-almoço, a sair para jantar com amigos, a ter relações algumas vezes por semana, mais vezes quando ele estava a ter um caso, a discutir por qualquer coisa e por todas as coisas, excepto pelo que realmente deveriam discutir. Andas a dormir com outras mulheres! Berrava ela interiormente, por trás das suas ladainhas sobre a reforma da cozinha. Quero sair daqui para fora!, gritava por trás dos protestos dele, que ela estava a gastar dinheiro a mais, que tinha de reduzir as despesas. Às vezes Kim despertava com as vozes alteradas e furiosas dos dois, corria para o quarto deles, ia imediatamente para o lado da mãe, e eram duas contra um, outra triste ironia que Mattie achava que Jake, que ali estava apenas por causa da filha, percebia muito bem.

Talvez Kim tivesse razão, pensou Mattie, olhando para o telefone na parede ao seu lado. Talvez bastasse uma pequena demonstração de apoio, algo que fizesse o marido saber que ela apreciava o esforço que ele fazia, o facto de tentar com tanto afinco - sempre o tentara - fazer bem as coisas. Pegou no telefone, hesitou um pouco e mudou de ideias. Resolveu ligar para a amiga Lisa. Lisa saberia aconselhá-la. Sabia sempre o que fazer. E, além do mais, Lisa era médica. Os médicos não tinham resposta para tudo? Mattie digitou os primeiros números, depois, impaciente, pousou de novo o telefone. Como poderia incomodar a amiga no meio de um dia certamente atarefado? Claro que podia resolver os seus próprios problemas. Mattie marcou rapidamente a sequência correcta de números e deixou o telefone particular de Jake tocar uma, duas, três vezes. Ele sabe que sou eu, pensou Mattie, balançando a perna numa tentativa de acabar com o desagradável formigueiro que teimava em

atacar-lhe a sola do pé direito. Ele está a pensar se há-de atender ou não.

- As alegrias de saber de que número estão a ligar - resmungou ela em tom irónico, imaginando Jake sentado atrás da pesada secretária de carvalho que ocupava um terço da sua acanhada sala no quadragésimo segundo andar do prédio John Hancock, no centro de Chicago.

O escritório, um dos 320 idênticos que formavam a famosa firma de advocacia Richardson, Buckley & Lang, tinha janelas que iam do chão ao tecto, com vista para a Michigan Avenue, e carpetes elegantes da marca Berber, mas era pequeno demais para receber a clientela cada vez mais numerosa de Jake, já que esta parecia crescer vertiginosamente a cada dia, especialmente desde que, recentemente, a imprensa o transformara numa espécie de celebridade local. Era como se o marido tivesse o dom de escolher os casos aparentemente impossíveis, e de vencer sempre. Mesmo assim, Mattie duvidava que a capacidade considerável e o formidável encanto de Jake fossem suficientes para obter o perdão para um jovem que admitira ter matado a própria mãe num acto de inegável premeditação, e depois se tinha vangloriado do assassinato diante dos amigos.

Seria possível que Jake já tivesse ido para o tribunal? Mattie olhou para os dois relógios digitais do outro lado da cozinha. O relógio do microondas marcava 8 e 32. O relógio do forno convencional, logo abaixo, marcava 8 e 34.

Já ia desligar quando atenderam o telefone entre o quarto e o quinto toques.

- Mattie, o que houve? - A voz de Jake soou alta e apressada, uma voz que anunciava pouco tempo para conversa fiada.

- Olá, Jake - começou Mattie, e a sua voz denotava delicadeza e apreensão. - Saíste pela porta demasiado depressa esta manhã e nem tive hipóteses de te desejar boa sorte.

- Desculpa. Não pude esperar que te levantasses. Tive de sair...

- Não, tudo bem. Não quis dizer que... - estava ao telefone ainda não havia dez segundos e já tinha conseguido deixar Jake pouco à vontade. - Eu só te queria desejar boa sorte. Não que precises. Tenho a certeza de que serás brilhante.

- A boa sorte nunca é demais - disse Jake.

Palavras que deviam ser escritas num bolinho da sorte, pensou Mattie.

- Olha, Mattie, tenho mesmo de ir. Obrigado por teres telefonado...

- Estava a pensar em ir ao tribunal esta manhã.

- Por favor, não faças isso - disse ele rapidamente. - Até demais. Quero dizer, não é necessário.

- Eu sei o que queres dizer - disse ela, sem se preocupar em disfarçar a decepção.

Era óbvio que havia um motivo para ele não querer que ela fosse ao tribunal. Mattie ficou a imaginar que aparência devia ter esse motivo, depois afastou o pensamento incómodo.

- De qualquer maneira, só liguei para te desejar boa sorte - Quantas vezes tinha dito isto já? Três? Quatro? Será que não sabia o momento de dizer até logo, a hora de sair de cena elegantemente, a hora de embrulhar os seus votos de felicidades e o seu orgulho, e seguir em frente?

- Até logo - a voz de Jake ressoou com aquele tom falso, exageradamente animado, grande de mais para a ideia que transmitia. - Tem cuidado contigo.

- Jake... - começou Mattie a dizer, mas ele não ouviu, ou fingiu que não ouviu, porque a única resposta que recebeu foi o som do telefone a ser desligado.

Na verdade, o que é que ia dizer? Que sabia tudo sobre o último caso dele, que estava na hora de admitir que nenhum dos dois era feliz naquela prolongada farsa do casamento, que estava na hora de desistir? The party's over, ouviu vozes distantes a cantar quando desligou o telefone.

Mattie saiu lentamente da cozinha para o largo corredor central. Mas o pé direito tinha ficado de novo dormente e teve dificuldade em manter o equilíbrio. Tropeçou e ficou por segundos a pular no pé esquerdo sobre o tapete bordado dourado e azul, enquanto o calcanhar direito lutava em vão para encontrar o chão. Sentiu que estava a cair e, mais assustador ainda, que não podia fazer nada para o evitar, finalmente cedeu ao inevitável, e caiu sentada, batendo com força no chão. Ficou assim durante uns segundos, calada e atordoada, temporariamente abalada pela indignidade de tudo aquilo.

- Maldito Jake - conseguiu finalmente dizer, engasgando-se com as lágrimas indesejáveis. - Porque não podia amar-me simplesmente? Será que era assim tão difícil?

Talvez a segurança de saber que era amada pelo marido pudesse gerar a coragem de o amar também.

Mattie não tentou levantar-se. Pelo contrário, ficou sentada no meio do corredor, o fato de banho encharcado a molhar o belo tapete bordado, e começou a rir até que acabou a chorar.

 

- Com LICENÇA - DISSE MATTIE, ESBARRANDO com OS JOELHOS obstinados de uma mulher enorme, vestida em vários tons de azul, para chegar ao lugar vago mesmo no meio da oitava e última fila do sector público da sala do tribunal 703. - Desculpe. com licença - repetiu para um casal mais velho sentado ao lado da mulher de azul. E de novo - Desculpe - para a jovem loura e atraente ao lado de quem passaria a maior parte da manhã. Seria ela a razão de Jake não querer que fosse ao tribunal naquele dia?

Mattie desabotoou o seu casaco creme e despiu-o fazendo o mínimo possível de movimentos, sentindo que se enrolava nos cotovelos, prendendo os braços aos lados numa posição desconfortável, forçando-a a remexer-se no assento numa tentativa vã de o puxar, incomodando não só a loura atraente à direita, mas também a loura igualmente atraente que acabava de notar à esquerda. Seria que as louras atraentes de Chicago não acabavam, e que todas elas tinham de estar no tribunal onde o marido dela estava naquela manhã? Talvez se tivesse enganado na sala. Quem sabe se, em vez de ao Cook County contra Douglas Bryant, tivesse ido parar num qualquer tipo de convenção de louras atraentes? Andariam todas a dormir com o marido?

Mattie olhou directamente para a frente da sala e localizou-o na mesa da defesa, com a cabeça baixa, a conversar baixinho com o seu cliente, um rapaz vulgar de dezanove anos, com um ar visivelmente desconfortável no fato castanho e gravata de lã estampada que obviamente tinha sido aconselhado a usar. Tinha uma expressão curiosamente neutra, como se ele, tal como Mattie, tivesse entrado na sala errada e não soubesse muito bem o que ali estava a fazer.

E o que estava ela ali a fazer?, pensou Mattie de repente. O marido não lhe tinha dito claramente para não ir? Lisa não lhe dissera a mesma coisa quando cedera e ligara para ela? Devia levantar-se e ir-se embora agora, levantar-se simplesmente e esgueirar-se antes que ele a visse.

Fora um erro ir ao tribunal. Em que estaria ela a pensar? Que ele agradeceria o seu apoio, como Kim havia sugerido? Seria por isso que ali estava? Para lhe dar apoio? Ou teria ido na esperança de dar uma espreitadela à última amante dele?

Amante, pensou Mattie, mastigando a palavra, lutando contra o impulso repentino de vomitar enquanto esticava o pescoço no meio das filas de espectadores, avistando duas jovens morenas a rir no fim da primeira fila. Jovens demais, concluiu Mattie. E imaturas também. Definitivamente não eram o tipo de Jake, mas, verdade fosse dita, ela não tinha a certeza de qual era realmente o tipo do marido. Eu não sou certamente, pensou, passando os olhos rapidamente por uma cabeça de caracóis castanhos que ocupava a cadeira da coxia na segunda fila, antes de percorrer as filas e parar no perfil perfeito de uma mulher de cabelos negros que reconheceu como sendo uma das sócias da firma do marido, uma mulher que tinha entrado para a Richardson, Buckley & Lang mais ou menos na mesma altura de Jake. Shannon qualquer coisa. A especialidade dela não era planeamento imobiliário, ou qualquer coisa mais ou menos indefinida? O que estaria ali a fazer?

Como se sentisse que estava a ser observada, Shannon qualquer coisa virou-se lentamente na direcção de Mattie, os olhos pararam exactamente em Mattie e um sorriso lento esboçou-se-lhe ao canto dos lábios. Está a tentar lembrar-se de onde me conhece, compreendeu Mattie, reconhecendo aquele olhar e correspondendo ao sorriso da outra com muita segurança. Mattie Hart, anunciava o sorriso, a mulher do Jake, o homem do momento, o homem que todas nós estávamos lá para ver, o homem que tu possivelmente viste na noite passada num ambiente bem mais íntimo.

Shannon qualquer coisa fez um enorme sorriso de reconhecimento. Ah, essa Mattie Hart, dizia o sorriso.

- Como está? - ela formulou o cumprimento com os lábios.

- Nunca estive melhor - respondeu Mattie em voz alta, dando mais um puxão na manga enrolada no seu cotovelo, ouvindo a costura a descoser-se. - E você?

- Óptima - foi a resposta instantânea.

- Andei a pensar em ligar para si - surpreendeu-se Mattie a anunciar, quase com medo do que ia dizer em seguida. - Quero modificar o meu testamento - Queria? Quando teria resolvido aquilo?

O sorriso desapareceu dos lábios de Shannon qualquer coisa.

- O quê? - disse ela.

Então talvez a especialidade dela não fosse planeamento imobiliário, pensou Mattie, baixando os olhos, dando sinal de que a conversa tinha acabado, olhando de novo alguns segundos depois, aliviada porque Shannon qualquer coisa, e será que anda a dormir com o meu marido? prestava de novo atenção à parte da frente do tribunal.

Não queres estar aqui, decidiu Mattie. Definitivamente não queres estar aqui. Levanta-te já. Levanta-te e vai-te embora antes de fazeres o papel da mais completa idiota. Quero modificar o meu testamento? De onde é que saiu isso?

- Deixe-me ajudá-la - ofereceu-se a loura da esquerda, e puxou a manga teimosa do casaco de Mattie antes que ela tivesse tempo de protestar, sorrindo para Mattie como Mattie sorriria para a própria mãe, com uma expressão um pouco forçada, com mais pena do que boa vontade.

- Obrigada - Mattie esboçou seu mais sincero sorriso à mulher, um sorriso que dizia, é assim que se faz, mas a jovem já se tinha virado para a frente do velho e imponente tribunal, sustendo a respiração, prevendo o que ia acontecer. Mattie alisou as pregas da saia de lã cinzenta e ajeitou a gola da blusa branca de algodão. A loura à sua direita, usava uma camisola angora cor-de-rosa e calças compridas azul-marinho, olhando de lado para ela, como se dissesse "será que não podes estar quieta?", e Mattie fingiu não reparar. Devia ter escolhido outra roupa, algo menos tipo professora primária, menos Miss Grundy, pensou, a sorrir quando a imagem de Kim lhe surgiu na mente. Uma coisa mais suave, como uma camisola angora cor-de-rosa, pensou, olhando cheia de inveja para a mulher do lado. Apesar de nunca ter gostado de angora. Provocava-lhe sempre espirros. Como que de propósito, Mattie sentiu um espirro a crescer nas profundezas do seu nariz e mal teve tempo de pegar num lenço de papel dentro da bolsa antes de enfiar nele o nariz. A força do espirro ecoou por toda a sala. Seria que Jake tinha ouvido?

- Santinha - disseram as duas louras em uníssono, chegando-se o mais para longe dela possível.

- Obrigada - disse Mattie, disfarçando uma olhadela na direcção do marido, aliviada por ver que ele continuava entretido na conversa com o cliente. - Desculpem - espirrou de novo, e voltou a pedir desculpas.

Uma mulher de olhos castanhos com reflexos dourados, que estava mesmo à frente de Mattie voltou-se para trás.

- Sente-se bem?

A voz era profunda e um pouco rouca, mais velha do que o rosto redondo de onde emanava, um rosto cercado por um halo de frenéticos caracóis ruivos. Nada combinava bem, pensou Mattie distraída, agradecendo à mulher pela atenção.

Então houve uma certa agitação, quando o funcionário judicial pediu para se levantarem todos e a juíza, uma bela mulher negra, cujo cabelo preto e encaracolado tinha salpicos grisalhos, como cinzas, ocupou o seu lugar presidindo ao tribunal. Foi só nesse momento que Mattie reparou no júri, sete homens e cinco mulheres, mais dois homens como suplentes, a maioria de meia-idade, embora alguns parecessem recém-saídos da adolescência, um homem negro, três hispânicos e um asiático. Os rostos deles reflectiam diversos graus de interesse, de seriedade e de cansaço. O julgamento já durava havia quase três semanas. As duas partes tinham apresentado as suas alegações. Sem dúvida, os jurados tinham ouvido, tudo o que queriam ouvir. Agora só desejavam voltar para os empregos, para as famílias, para as vidas que tinham deixado em compasso de espera. Estava na hora de tomar uma decisão e depois seguir em frente.

Eu também, pensou Mattie, inclinando o corpo para a frente, quando a juíza mandou a acusação continuar. Está na hora de eu tomar uma decisão e seguir em frente.

Light my fire. Light my fire. Light my fire.

Um dos assistentes do promotor público pôs-se imediatamente de pé, abotoou o casaco cinzento como sempre fazem os advogados na televisão, e caminhou para junto do júri. Era um homem alto, de cerca de quarenta anos, com rosto fino e nariz comprido, adunco na ponta, como uma vela a pingar cera derretida. Houve visível agitação na área do público quando todos se chegaram para a frente ao mesmo tempo, num silêncio pesado, como um nevoeiro muito denso, esperando que a voz do advogado os guiasse para a luz.

- Senhoras e senhores do júri - começou o promotor, fazendo deliberadamente contacto ocular com cada jurado e depois, a sorrir, continuou: - Bom-dia - os jurados sorriram respeitosamente, e o sorriso de uma mulher desapareceu num bocejo. - Quero agradecer a paciência de todos nestas últimas semanas - fez uma pequena pausa, engoliu, e a grande maçã-de-adão ficou à vista por cima do colarinho azul-claro da camisa. - Cabe-me recordar-vos os simples factos deste caso.

Mattie tossiu, um espasmo repentino e violento que lhe fez subir as lágrimas aos olhos.

- Tem certeza de que se sente bem? - perguntou a loura da esquerda, oferecendo outro lenço de papel a Mattie, enquanto a loura da direita revirava os olhos exasperada.

És tu, não és?, pensou Mattie, secando as lágrimas com o lenço de papel. És tu que vais para a cama com o meu marido.

- Na noite de vinte e quatro de Fevereiro - continuou o advogado de acusação, Douglas Bryant, voltou para casa depois de uma noite a beber com os amigos e foi inquirido pela mãe, Constance Fisher. Discutiram, e Douglas saiu furioso de casa. Voltou ao bar, bebeu mais e, em seguida, foi para casa, mais ou menos às duas horas. Por essa altura a mãe já tinha ido para a cama. Entrou na cozinha, tirou uma enorme faca afiada de uma das gavetas, foi ao quarto da mãe e, com uma calma deliberada, espetou-lhe a faca na barriga. Apenas podemos imaginar o terror que Constance Fisher sentiu quando percebeu o que estava a acontecer com ela, e fez um esforço corajoso para desviar os golpes que o filho desferia. Ao todo, Douglas Bryant esfaqueou a mãe catorze vezes. Um golpe perfurou um pulmão, outro foi directo ao coração. Como se não bastasse, Douglas Bryant cortou então a garganta da mãe com tanta força que quase lha separou totalmente do corpo. Voltou para a cozinha e usou a mesma faca para fazer uma sandes para si, tomou um banho e foi para a cama. Na manhã seguinte, foi para a escola e vangloriou-se do assassinato diante dos colegas, e um deles chamou a polícia.

O assistente do promotor público continuou a recordar os factos simples do caso, lembrando ao júri as testemunhas que confirmaram que Constance Fisher tinha medo do filho, que a arma do crime estava coberta de impressões digitais de Douglas Bryant, que as roupas dele tinham o sangue da mãe. Facto após facto, cada um só por si uma condenação e arrasadores quando todos somados. O que poderia Jake Hart dizer para mitigar o horror daquilo que Mattie acabara de ouvir?

- Parece bem definido - ouviu Jake concordar, como se lhe pudesse ler os pensamentos, como se estivesse a falar directamente para ela.

Mattie olhou para o marido quando este se levantou, com o casaco do seu clássico fato azul já abotoado. Ficou satisfeita ao reparar que ele tinha seguido o seu conselho e vestido uma camisa branca e não uma azul, mas não conhecia a gravata cor de vinho que tinha posto. Sorriu, o lábio superior parecido com o do Elvis, e começou a sua alegação final para o júri falando daquele modo suave que era a sua imagem de marca, como se conversasse com eles, com intimidade até. Consegue fazer com que cada um se sinta a única pessoa na sala, pensou Mattie encantada, observando cada membro do júri sucumbindo sem dar por isso ao seu encanto, inclinando o corpo para a frente, dedicando-lhe uma atenção ilimitada. As mulheres dos dois lados de Mattie remexeram-se nas cadeiras, polindo, nervosas, o assento duro de madeira com os seus elegantes traseiros.

Porque teria ele de ser assim tão atraente?, pensou Mattie, sabendo que Jake sempre considerara a sua aparência uma maldição e uma bênção ao mesmo tempo. Tinha-se esforçado muito para atenuar as suas feições naturalmente belas nos catorze anos de trabalho como advogado, os últimos oito com Richardson, Buckley & Lang. Jake sabia que muitos dos seus colegas afirmavam que, para ele, era tudo muito fácil, a bela aparência, os altos conceitos, o instinto que lhe indicava quais os casos que deveria aceitar e quais os que deveria evitar. Mas Mattie sabia que Jake trabalhava tanto como qualquer outro na firma, talvez até mais, chegando ao escritório antes das oito todas as manhãs e saindo raramente antes das oito da noite. Se é que realmente ficava no escritório e não num quarto do Ritz-Carlton, pensou Mattie, fazendo uma careta como se tivesse levado uma bofetada.

- Da maneira como o Dr. Doren apresenta as coisas, tudo neste caso é ou preto ou branco - disse Jake, coçando um lado do nariz aquilino. - Constance Fisher era uma mãe dedicada e amiga leal, amada por todos que a conheciam. O filho era uma pessoa difícil, um fracasso na escola, que saía todas as noites para beber. Ela era uma boa pessoa. Ele, um completo terror. Ela vivia cheia de medo. Ele era o seu inimigo mortal. Ela sonhava com uma vida melhor para o filho. Ele era o pior dos pesadelos para qualquer mãe - Jake fez uma pausa e olhou para o seu cliente, que se remexia, aflito, na cadeira. - Certamente parece bastante simples - continuou Jake, olhando novamente para os jurados, capturando-os a todos na sua rede invisível, sem qualquer dificuldade. - Só que raramente as coisas são tão simples como parecem. E todos nós sabemos disso - alguns jurados sorriram, concordando. - Da mesma forma que sabemos que quando misturamos preto com branco, temos o cinzento. Aliás, diferentes tons de cinzento.

Mattie observou o marido voltar as costas ao júri e caminhar até ao seu cliente, sabendo que era seguido pelo olhar de todos os jurados. Estendeu o braço e pôs a mão no ombro do réu.

- Então, vamos dedicar alguns minutos ao exame dos vários matizes de cinzento. Podemos fazer isso? - perguntou, virando-se novamente para o júri, como se pedisse a sua permissão.

Mattie notou que uma das mulheres até acenou afirmativamente com a cabeça.

- Primeiro vamos analisar Constance Fisher mais de perto, uma mãe dedicada e amiga leal. Pois bem, eu não vou deitar as culpas para a vítima - disse Jake Hart, e Mattie riu-se, consciente de que ele ia fazer exactamente isso. - Acho que Constance Fisher era realmente uma mãe dedicada e amiga leal. Mas...?- Mattie ficou à espera.

- Mas também sei que era uma mulher frustrada e amarga, que maltratou verbalmente o filho quase todos os dias da vida dele, e muitas vezes recorria também à violência física - Jake fez uma pausa, deixou assentar o peso daquelas palavras. - Agora, também não vou dizer que Douglas Bryant fosse uma criança fácil para a mãe. Não era. Era quase tudo aquilo que a acusação afirmou que era, e nós, que temos filhos - disse, igualando-se subitamente aos jurados - compreendemos a frustração que essa mãe deve ter sentido, tentando lidar com um filho que não lhe dava ouvidos, que a culpava pelo facto de o pai se ter ido embora quando era criança, que foi essencial no fracasso do seu segundo casamento com Gene Fisher, que se recusava a demonstrar o amor e o respeito que ela julgava merecer. Mas vamos parar por um minuto - disse Jake, fazendo exactamente o que sugeria, enquanto o tribunal sustinha a respiração, esperando que ele continuasse.

Quantas vezes teria ele ensaiado aquele momento? - perguntou Mattie a si própria, consciente de que também sustinha a respiração, como todas as pessoas. Quantos segundos de duração programara para aquela pausa?

- Parem e considerem a origem de todo este ódio - Jake continuou passados cinco segundos, sugando de novo a plateia naquele instante. - Os rapazes não nascem maus. Nenhuma criança nasce a odiar a mãe.

Mattie levou a mão à boca. Então era por isso que ele tinha resolvido defender esse caso, ela compreendeu. E por isso ia vencer.

Era pessoal.

O trabalho de um advogado é quase sempre o reflexo da sua própria personalidade, tinha dito Jake uma vez. Consequentemente, não seria o tribunal o equivalente legal do sofá do psicanalista?

Mattie ouviu atentamente o marido a contar os horrores da violência que Douglas Bryant tinha sofrido quase que diariamente nas mãos da mãe - lavava-lhe a boca com sabão quando era pequeno, os maus-tratos eram constantes, chamava-lhe burro e inútil, batia-lhe frequentemente até lhe provocar ferimentos e ossos partidos, muitas vezes documentados -, o que resultou na reacção incontrolável de Douglas Bryant quando não suportou mais os abusos, um caso clássico da "síndrome da criança vítima de maus-tratos", Jake declarou solenemente, referindo-se ao testemunho prévio de alguns psiquiatras especializados.

Foi assim contigo? perguntou Mattie em silêncio ao marido, duvidando que pudesse receber uma resposta satisfatória. Quando começaram a sair juntos, Jake fizera várias referências veladas à sua infância problemática, uma coisa que atraiu a empatia instantânea de Mattie, já que era, ela mesma, sobrevivente de uma infância difícil. Mas quanto mais saíam juntos, menos Jake lhe contava, e sempre que ela insistia em saber mais pormenores, fechava-se por completo, desaparecia dias seguidos, até que ela aprendeu a não fazer mais perguntas sobre a família dele. Temos muita coisa em comum, pensou naquele momento, como pensava muitas vezes durante os silêncios tensos de todos aqueles anos juntos - as mães loucas, os pais ausentes, a falta de qualquer apego familiar concreto.

Em vez de irmãos, Mattie tinha compartilhado a sua infância com os inúmeros cães da mãe, nunca menos de seis, às vezes até mesmo onze, todos mimados e adorados, muito mais fáceis de amar do que uma criança problemática que se parecia muito com o pai que as tinha abandonado. E apesar de Jake não ter sido filho único, tinha um irmão mais velho que morrera num acidente com um barco, e um irmão mais novo que desapareceu numa misteriosa história que envolvia drogas, alguns anos antes de eles se conhecerem - Mattie sabia que a adolescência do marido tinha sido tão solitária e tão cheia de sofrimento

como a sua.

Não... pior. Muito pior.

Porque é que nunca conversaste comigo sobre isso?, pensou ela, erguendo a mão sem dar por isso, como se quisesse perguntar em voz alta. O movimento chamou a atenção do marido, que se distraiu na sua exposição. Quem sabe se eu não te poderia ter ajudado? ofereceu ela em silêncio, quando os seus olhos encontraram os dele no outro lado da sala. O rosto bonito de Jake registrou surpresa, confusão, raiva e medo, tudo isso em menos de uma fracção de segundo, invisível para todos, menos para ela. Eu conheço-te bem demais, pensou, sentindo um ardor estranho na garganta. E, no entanto, não sei nada sobre ti.

E certamente tu não me conheces.

Então, de repente, o ardor na garganta explodiu e ela começou a rir alto, uma gargalhada tão ruidosa que todos se viraram para olhar para ela, um riso tão descontrolado que a juíza começou a bater com o seu martelo, como fazem na televisão, pensou Mattie, rindo mais alto ainda, vendo o funcionário uniformizado a aproximar-se. Percebeu a expressão horrorizada do marido, ficou de pé e projectou-se para fora da fila, arrastando o casaco pelo chão. Mattie chegou à grande porta de madeira com moldura de mármore nos fundos do tribunal e virou-se para trás. Os seus olhos encontraram por um breve momento o olhar horrorizado da mulher de cabelo ruivo encaracolado que estava à frente dela. Sempre quis ter caracóis como aqueles, pensou Mattie quando o funcionário a empurrou rapidamente para fora da sala do tribunal. Se lhe disse alguma coisa, Mattie não conseguiu ouvir por causa do riso, que continuou sem parar na descida dos sete lances de escada e no átrio principal, nos degraus do lado de fora, e na rua.

- ORDEM. ORDEM NO TRIBUNAL. - A juíza batia com o martelo na mesa, saltando para cima e para baixo na cadeira de couro de espaldar alto, enquanto à frente dela a galeria se agitava num murmúrio, como abelhas de uma colmeia inesperadamente invadida. Alguns espectadores sussurravam escondendo a boca com as mãos, outros riam abertamente. Alguns membros do júri conversavam animadamente.

- Que diabo...?

- O que acha que...?

- O que foi aquilo?

 

Jake Hart estava no centro da antiga sala de audiências, de tecto alto, grandes janelas laterais e revestimento de madeira escura, a meio caminho entre o seu cliente e os jurados, atordoado demais para se mexer, e o choque foi criando raízes no tapete vermelho desgastado por baixo dos seus sapatos pretos, a fúria foi tecendo um casulo invisível de protecção em volta dele, o ruído e a confusão do tribunal esvoaçando, como morcegos acabados de acordar, em volta da sua cabeça. Sentia-se uma granada a que alguém tivesse tirado a cavilha. Se desse um passo, se respirasse, explodiria. Era importante ficar completamente imóvel. Tinha de se concentrar novamente, recuperar a segurança, recuperar o terreno perdido.

Que diabo tinha acontecido?

Estava tudo a correr tão bem, tudo a correr exactamente conforme havia planeado. Tinha trabalhado três semanas naquela exposição final, não só nas palavras que ia dizer, mas no modo como as ia pronunciar, na inflexão, na acentuação que dava a certas sílabas, favorecendo algumas, no ritmo das frases, quando fazia uma pausa, quando continuava. Tinha decorado as palavras, aperfeiçoado a cadência. Ia ser o discurso da sua vida, o argumento final que tudo controlaria, o remate do caso mais sensacional da sua carreira, um julgamento que tinha suscitado ressalvas entre os sócios maioritários da firma quanto a ser Jake a assumi-lo, um caso que haviam argumentado ser uma causa perdida, que teria as mesmas hipóteses, que uma bola de neve no inferno. Era também o caso que muito possivelmente lhe garantiria sociedade, se ganhasse, que o impulsionaria para o topo da profissão na maturidade dos seus trinta e oito anos.

E tinha-o conseguido. Todo aquele trabalho duro tinha valido a pena. Estava com o júri na palma da mão, amarrado a cada frase que dizia. Síndrome da criança vítima de maus-tratos - o que significava isso antes de Jake o ter promovido à categoria de uma defesa? "A comparação com a síndrome da esposa vítima de maus-tratos é inevitável e inegável", era o que ia dizer em seguida. "Na verdade, a criança vítima de maus-tratos é mais vulnerável do que a esposa maltratada, porque a criança tem ainda menos controle sobre a situação, menor capacidade de escolher o ambiente em que vive, de fazer as malas e fugir." As palavras estavam na ponta da língua; detivera-se para respirar fundo, estava a preparar-se para falar, quando alguém lhe desferira o soco no seu plexo solar e o deixara completamente sem ar.

O que tinha acontecido?

Vira qualquer coisa com o canto do olho, um movimento vago, como se alguém lhe quisesse chamar a atenção. Olhou e lá estava ela, Mattie, a sua mulher, a quem tinha pedido especificamente para não ir ao tribunal naquela manhã, lá estava ela, a rir, e não era só um risinho parvo, mas sim um riso horrível, despropositado, ria-se de qualquer coisa, ele não sabia de quê, talvez do que ele estava a dizer, da audácia do seu argumento, talvez apenas um riso de desprezo, rindo do tribunal, do processo, dele, e depois a juíza Berg começou a bater com o martelo e a pedir ordem, e Mattie tropeçou desajeitada no colo das pessoas que estavam a seu lado, arrastando o casaco pelo chão e saindo da sala escoltada, sempre rodeada por aquele burburinho histérico, insano, que ainda lhe estalava nos ouvidos, como fios eléctricos em curto-circuito.

Mais cinco minutos. Não teria precisado de mais tempo. Mais cinco minutos e teria terminado a sua alegação final. Seria o momento da réplica da procuradoria. Aí, Mattie poderia fazer qualquer encenação que lhe apetecesse. Podia pular para cima e para baixo como um palhaço de dentro de uma caixa, podia tirar a roupa toda se quisesse, e dar gargalhadas até morrer.

O que se estaria a passar com ela?

Talvez não se sentisse bem, pensou Jake, tentando ser compreensivo. Tinha dormido até mais tarde naquela manhã, o que não era normal, depois aquele telefonema estranho para o seu escritório, aquela voz de menina ao telefone, totalmente vulnerável, dizendo que talvez fosse ao tribunal. Que Jake soubesse nada havia de vulnerável em Mattie. Era forte e decidida como um vendaval. E com o mesmo potencial de destruição. Teria feito de propósito para o sabotar? Seria por isso que tinha aparecido no tribunal naquela manhã, depois de lhe ter pedido para não ir?

- Ordem no tribunal! - ouviu a juíza exclamar bem alto, embora ninguém lhe obedecesse.

- O que está a acontecer? - perguntou o réu, com o olhar de uma criança encurralada e apavorada.

Conheço este olhar, pensou Jake, vendo o reflexo da própria infância. Conheço este medo.

Afastou para longe a lembrança indesejada e procurou fazer o mesmo com a mulher. Mas Mattie continuou diante dele como um bloco esguio de pedra, delicado para os olhos mas espantosamente difícil de mover. Como sempre o fora, desde o dia em que se tinham conhecido.

Meu Deus, estes pensamentos de novo não, pensou Jake, fazendo um esforço para pôr um pé à frente do outro, livre do casulo protector, que agora parecia mais um caixão, para se sentar ao lado do cliente. Cobriu com as suas as mãos geladas do rapaz.

- As suas mãos estão muito frias - disse Douglas Bryant.

- Desculpe - Jake quase riu, só que naquela manhã as gargalhadas no tribunal já tinham ido longe de mais.

- Faremos uma pausa de meia hora - informou a juíza e a sala do tribunal começou a esvaziar-se em redor de Jake, as pessoas a serem atraídas para as várias saídas como se fossem ímanes. Jake sentiu as mãos de Douglas Bryant a escaparem-se-lhe dos dedos quando o levaram. Observou os jurados a saírem em fila. O que posso fazer para vos reconquistar?, pensou Jake. O que posso dizer para apagar a insolência que a minha mulher perpetrou neste tribunal?

Será que alguém sabia que era a minha mulher?

- Jake...

A voz era familiar, suave, extremamente feminina. Olhou para cima. Ah, meu Deus, pensou, de repente enjoado. Por que precisava ela de estar aqui?

- Estás bem?

Acenou afirmativamente com a cabeça sem nada dizer. Shannon Graham estendeu a mão como se fosse tocar nele, mas parou a poucos centímetros do seu ombro deixando a mão erguida no ar.

- Posso fazer alguma coisa? - perguntou.

Ele abanou a cabeça. Sabia que a pergunta, na verdade, era: que diabos tinha acontecido, mas como, tal como ela, não conhecia a resposta, não disse nada.

- Passa-se alguma coisa com a Mattie?

- Ele encolheu os ombros.

- Ela disse-me uma coisa estranha esta manhã, continuou Shannon, ao ver que Jake não ia responder. - Assim, sem mais nem menos, disse que queria modificar o testamento.

- O quê? - Jake olhou para trás muito rapidamente, como se alguém lhe tivesse arrancado um punhado de cabelos.

Foi a vez de Shannon encolher os ombros.

- De qualquer forma, se houver alguma coisa que eu possa fazer... ofereceu-se outra vez com uma voz sumida.

- Podes manter a discrição - disse Jake, mas imaginava já Shannon Graham a ensaiar o seu discurso para os outros advogados da firma mesmo enquanto se afastava. Havia uma certa antecipação, até uma aflição no andar de Shannon, parecia que mal podia esperar para chegar ao local para onde se dirigia. Não tinha importância. A explosão de Mattie já seria bem conhecida antes de Shannon Graham sair do edifício. A profissão da lei era igual a qualquer outra, sob este aspecto. Adorava mexericos. Histórias exageradas sobre o comportamento da sua mulher estavam já, sem dúvida, a proliferar pelos sagrados tribunais de justiça de toda a cidade, saltando da decadente esquina da Califórnia Avenue com a Twenty-fifth Street, onde se situava o tribunal, para a pretensiosa Miracle Mile da Michigan Avenue, onde ficavam os escritórios da Richardson, Buckley & Lang.

- Já souberam do escândalo que a Mattie Hart armou hoje no tribunal?

- Qual é o problema da mulher do Jake Hart?

- Foi incrível. Ela começou pura e simplesmente a rir em pleno tribunal... no meio da alegação final do marido.

Às vezes desejava simplesmente que ela desaparecesse.

Não que desejasse a Mattie algum mal concreto. Não queria que morresse, nem nada parecido. Só queria que desaparecesse, saísse da sua vida, da sua cabeça. Havia semanas que pensava em como lhe havia de dizer que estava tudo acabado, que se tinha apaixonado por outra, que a ia deixar. Ensaiara as palavras como se preparasse a sua alegação final para o júri, e era exactamente isso, pensava ele agora, a exposição final do seu casamento, Mattie era o júri, o juiz, o supremo carrasco.

"Não é culpa de ninguém" - era assim que o discurso começava sempre, depois falhava, porque, na verdade, a culpa era de alguém. Era dele. Mas era dela também, segredava-lhe agora uma voz. Culpa dela, para começar, por ter engravidado, por ter insistido em ter a criança, por aceitar imediatamente a sua relutante oferta de casamento, apesar de saber que não era o que ele queria, que não estavam feitos um para o outro, que era um erro, que ele guardaria para sempre essa mágoa em relação a ela.

"Demos o nosso melhor de nós" continuava o discurso.

Mas ele não tinha feito tudo quanto podia, e os dois sabiam isso. Porém Mattie não era totalmente inocente, insistia a voz, agora mais alto. No princípio envolvera-se completamente no manto da maternidade, amamentando Kim a todas as horas do dia e da noite, deixando Jake de fora. E apesar de ser verdade que ele não se interessava por mudar fraldas, que os bebés o deixavam nervoso, isso não significava que não amasse a filha, ou que gostasse de ficar relegado ao papel de observador esporádico da vida dela. Invejava a afinidade que Kim tinha com a mãe, sentia inveja da união entre as duas. Kim era definitivamente a menina da mamã. Era tarde demais para ser a menina do papá.

E então, no mês passado, Mattie deixou subitamente no ar a ideia de ter outro filho, introduzindo-a a meio de uma conversa ocasional, procurando disfarçar o seu entusiasmo, fingindo indiferença, como se fosse apenas mais uma ideia, algo em que não estava sempre a pensar. E ele sabia que não podia deixar passar muito tempo, senão acabaria de novo preso. Precisava dizer a Mattie que a ia deixar.

Só que não disse. E agora havia a nítida possibilidade de ter demorado demais, de ela já estar grávida, das suas hormonas confusas e alucinadas serem responsáveis pelo estranho comportamento no tribunal naquela manhã.

- Por favor, não - ouvia a própria voz a dizer. - Qualquer coisa, menos isso.

- Qualquer coisa menos o quê?

Jake olhou para cima ao som da voz dela, estendeu a mão, sentiu uma onda de excitação quando os dedos dela se entrelaçaram nos seus. Ora bolas! E daí, se alguém os visse juntos? Além do mais, não havia mais ninguém no tribunal. Era fácil ser corajoso.

- Aquela era a tua mulher, não era? - perguntou, com a voz carregada de noitadas e de cigarros de mais.

Sentou-se na cadeira do réu e inclinou a cabeça para o lado dele, de forma que a profusão de caracóis ruivos se encostou ao rosto de Jake, como um gato a roçar numa perna nua. Na noite anterior segurara e apertara aqueles cabelos avermelhados, deslumbrado com a sua suavidade. E ela olhou para ele e esboçou aquele sorriso maravilhoso que ameaçava derramar-se para além dos contornos do rosto redondo, os lábios separados revelando o encanto dos dentes tortos do maxilar inferior. O que teria aquela mulher, que ele achava tão incrível e atraente?

com a blusa de seda cara e os jeans debotados que usava com muita elegância, tudo em Honey Novak era uma combinação perfeita. O cabelo podia ser ruivo e encaracolado, mas as sobrancelhas eram decididamente pretas e direitas. Os seios eram grandes de mais para o corpo magro, as pernas longas de mais para alguém que mal chegava a um metro e sessenta de altura, e o nariz levemente adunco e meio torto, o que lhe dava uma expressão um pouco vaga. Não era nenhuma beleza, segundo a definição habitual e, aos trinta e quatro anos, não correspondia à ideia de uma mulher jovem. Objectivamente, a sua mulher era mais atraente. E, no entanto, ele sempre ficara intimidado pela beleza luminosa e tipicamente americana de Mattie. Fazia com que Jake se sentisse uma fraude.

- Era a Mattie - concordou.

Honey nada disse, o que era típico dela, pois raramente falava quando não tinha nada para dizer. Tinham-se conhecido havia alguns meses, no ginásio do prédio dele. Ele estava na passadeira, a caminhar, a uns sete quilómetros por hora. Ela corria ao lado dele e o mostrador registava uns impressionantes doze quilómetros por hora. Ele iniciou uma conversa casual. Ela respondeu com sorrisos variados e grunhidos. Depois de algumas semanas, convidou-a para tomar um café e ela aceitou, apesar de saber que era casado. Afinal era apenas um café. Na semana seguinte o café transformou-se num jantar e uma semana depois, o jantar serviu meramente de entrada para uma noite de paixão no Ritz-Carlton Hotel. Uma entre muitas, só que o local mudou rapidamente para o apartamento dela, de um quarto, sempre desarrumado com muito encanto, na Lincoln Park.

Ele não se pretendia apaixonar. Amor era o último sentimento na sua agenda. Não tinha já complicações suficientes na vida? O encontro de uma noite era uma coisa, um caso trivial, tão insignificante quanto breve; só contava com isso. Foi o mesmo com ela, confidenciou-lhe Honey mais tarde. Tinha acabado de se divorciar, não tinha filhos por opção, trabalhava como escritora freelancer enquanto tentava escrever um romance, e tratava de dois gatos intratáveis recentemente abandonados por um vizinho do prédio em que morava. A última coisa que precisava,

disse-lhe Honey uma noite, nua e em cima da sua barriga no caos casual do quarto dela, os gatos a brincarem com os dedos dos pés de ambos, era apaixonar-se por um homem casado.

- Achas que a tua mulher sabe de nós? - perguntara finalmente Honey.

Jake encolheu os ombros, como já antes o fizera. Tudo é possível, pensou, uma ideia que lhe sugerira liberdade sem limites, mas que agora achava quase esmagadoramente claustrofóbica.

- O que vais fazer? - perguntou Honey.

- Não posso ir para casa - disse ele, com voz fria e raiva no olhar. - Acho que não vou conseguir olhar para ela.

- Parecia apavorada de morte.

- O quê?

Honey estava a falar de quê?

- Eu vi o olhar dela quando ia a sair - explicou Honey. - Parecia aterrorizada.

- Tem bons motivos para estar aterrorizada.

- Isso é incompreensível.

- Certamente que é - Jake bateu com as mãos nas próprias coxas e gostou do ardor. - De qualquer maneira, uma coisa de cada vez.

Deu uma sacudidela na gravata de seda cor de vinho que Honey lhe tinha oferecido na véspera, para dar sorte.

- Tinha-los na mão - disse Honey, apontando com a cabeça para o banco dos jurados. - Vais recuperá-los.

Jake concordou com a cabeça, e a sua mente já se adiantava acelerada para a hora em que o julgamento seria reatado. O que ia dizer? Mattie tinha estragado o julgamento mais importante da sua carreira rindo alto no meio da alegação final, expondo-o ao ridículo, e o seu cliente a uma possível anulação do julgamento. O júri, na verdade todos que estavam presentes, devia estar à espera para ver o que ele ia fazer. Não podia ignorar pura e simplesmente o que tinha acontecido. Precisava de usar aquilo. Usá-lo em seu benefício.

Para fazer isso precisava de concentrar a raiva que sentia da surpreendente crise de Mattie num pequeno embrulho, e deixá-lo escondido numa gaveta no fundo da mente, para ser aberto mais tarde.

Seria difícil, mas não impossível. Jake tinha aprendido, praticamente desde a infância, que a sua sobrevivência dependia da capacidade de compartimentar, e agora a sobrevivência de outra pessoa dependia disso também. O destino de Douglas Bryant, na verdade a vida dele, estava nas suas mãos e Jake ia salvá-lo, porque compreendia o rapaz, porque tinha conhecido a mesma raiva e a mesma frustração que haviam levado Douglas a matar. Lá vou eu, com a graça de Deus, pensou Jake, tenso na sua cadeira, largando a mão de Honey quando as portas do tribunal se abriram e as pessoas começaram a entrar, apressadas para conseguirem os melhores lugares.

- Amo-te, Jason Hart - disse Honey.

Jake sorriu. Honey era a única pessoa no mundo a quem ele deixava tratar por Jason, o nome que a mãe lhe tinha dado, o nome que berrava quando lhe batia "Jason, menino mau! Jason, menino mau!", até as palavras ficarem misturadas, como se fossem uma só na cabeça dele. Jason menino mau, Jason menino mau, Jason menino mau. Só nos lábios de Honey as palavras se separavam, e se transformavam noutra coisa, diferente de uma maldição, diferente de uma definição abrangente. Só com Honey, Jason Hart conseguia deixar o menino para trás e tornar-se no homem que sempre quis ser.

- Precisas de ficar uns minutos sozinho - afirmou Honey com simplicidade, já de pé.

Mattie teria posto um ponto de interrogação no fim da frase, forçando Jake a tomar uma decisão, a sentir-se culpado por a deixar de fora, por a mandar embora. Mas Honey sabia sempre o momento de se aproximar e de se afastar.

- Não te afastes muito - disse-lhe ele, num sussurro quase inaudível.

- Última fila, no meio - informou ela.

Jake sorriu, ao observar o bambolear malicioso de Honey, malicioso porque sabia que ele estava a olhar, regressando à área reservada ao público. Segundos depois, os jurados voltaram em fila para os seus lugares e Douglas Bryant ocupou a sua cadeira na mesa da defesa.

- A cadeira ainda está quente - observou Douglas Bryant. Jake esboçou um sorriso para o tranquilizar, pondo a mão ao de

leve na mão do réu, o oficial de diligências pediu ordem no tribunal e todos fizeram silêncio nesse mesmo instante. A juíza voltou ao seu lugar, com uma expressão desconfiada nos olhos escuros, examinando a sala à procura de novos focos de problemas.

- Se houver mais alguma manifestação - avisou - ordenarei a imediata evacuação da sala.

Jake considerou o aviso desnecessário. Nunca tinha visto uma sala de tribunal tão silenciosa. Estão todos à espera, pensou. Esperam para ver como é que eu resolvo isto, esperam para ouvir o que lhes vou dizer.

- A defesa está preparada para prosseguir a sua alegação final? - perguntou a juíza Berg.

Jake Hart pôs-se de pé.

- Sim, Meritíssima.

Preparado ou não, pensou Jake, respirou fundo, olhou para o júri, respirou fundo mais uma vez, e depois olhou directamente para o lugar que Mattie havia ocupado antes.

- Todos acabaram de ouvir uma mulher às gargalhadas - começou, reconhecendo o incidente logo ao princípio, mas não identificando a mulher. - Não sabemos por que se riu. Não importa, embora tenha sido perturbador - deu uma gargalhada, dando azo a que todos no tribunal rissem com ele, para aliviar um pouco a tensão que permanecia no ar. - Mas a verdade pode ser igualmente perturbadora - prosseguiu Jake, prendendo suavemente os jurados pelo pescoço - e a verdade, neste caso, é que é a vida de Douglas Bryant está a ser julgada.

Fez uma breve pausa, pousando o olhar em cada membro do júri, deixando que lágrimas de raiva brotassem nesse olhar, sabendo que o júri confundiria a sua fúria contra Mattie com a compaixão em relação ao réu.

- Douglas Bryant está a defender a sua vida neste julgamento repetiu Jake. - E isso não é motivo para risos.

Os jurados suspiraram, como um amante reagindo a uma carícia no lugar certo. Consegui, pensou Jake, vendo algumas mulheres a verter algumas lágrimas de compaixão. Sem saber, Mattie tinha-lhe proporcionado a maior vitória da sua carreira. Ele ia conseguir o veredicto de inocente, muita publicidade, a participação na sociedade. E devia tudo a Mattie. Como sempre, devia tudo à mulher.

 

MATTIE PAROU NOS DEGRAUS DA ENTRADA DO INSTITUTO de Arte de Chicago, sentindo o vento frio no rosto.

- com mais força - resmungou baixinho, pondo o rosto para a frente como se desafiasse o vento a fustigá-la.

Vá lá, derruba-me. Atira-me para longe. Humilha-me diante de todos estes patronos das artes cheios de dinheiro. É isso que eu mereço. É a vingança, por ter humilhado o meu marido daquela maneira, no tribunal.

- Vamos - sussurrou, tentando ainda entender o que tinha acontecido. - Dá tudo o que poderes.

- Mattie?

Mattie deu meia volta, ao ouvir o seu nome e a boca abriu-se-lhe num sorriso exagerado quando Roy Crawford, um homem de rosto cinzelado como o de um lutador de boxe e o corpo esguio de dançarino, se aproximou, com os olhos cinzentos a brilhar sob uma vasta cabeleira grisalha. Anda com os ombros, observou Mattie, analisando os passos do homem que caminhava na sua direcção, todo emproado e confiante, ombro direito, ombro esquerdo, ombro direito. Definitivamente o borracho lá do sítio, de calças pretas desportivas e camisola creme, sem casaco, apesar do frio cada vez mais intenso. Roy Crawford tinha feito o seu primeiro milhão antes de completar os trinta e recentemente havia celebrado o seu quinquagésimo aniversário deixando a mulher número três para ir morar com a melhor amiga da sua filha mais nova.

- Roy - disse ela, apertando a mão dele com entusiasmo. - Ainda bem que conseguiu sair mais cedo.

- Sou o dono da empresa - disse ele com naturalidade. - Sou eu que determino as regras. Quase me partes a mão.

- Desculpe - Mattie largou imediatamente os dedos dele.

- Não tem nada de que se desculpar.

Nada de que me desculpar, repetiu Mattie mentalmente, lembrando-se da sala do tribunal 703, e o que tinha feito brilhou à sua frente como se estivesse sob uma luz estroboscópica, que revelava imagens congeladas no tempo, marcadas a fogo para sempre dentro do seu cérebro. Nada de que me desculpar. Ah, mas é aí que se engana, senhor Crawford. Tenho tudo de que me desculpar. A começar pela imprudente ida ao tribunal dessa manhã, continuando com a cena que armara, e que não fora uma cena qualquer, não, fora a mãe de todas as cenas, a cena do inferno. Cenas de um casamento, pensou Mattie com tristeza, sabendo que o marido jamais lhe perdoaria, que o seu casamento estava acabado, a sua triste desculpa de casamento, o casamento que realmente nunca existira, apesar dos quase dezasseis anos e da filha que produzira, a única coisa da qual não precisava de se desculpar na vida.

- Lamento mesmo muito - repetiu Mattie e de repente começou a chorar.

- Mattie? - Os olhos cinzentos de Roy Crawford dançavam desconfiados para um lado e para o outro, os seus lábios formavam um bico, relaxavam-se, formavam bico outra vez, enquanto estendia os braços e abraçou Mattie, que começou a tremer junto ao corpo dele. - O que foi? Qual é o problema?

- Sinto muito - repetiu Mattie mais uma vez, incapaz de dizer qualquer outra coisa.

O que é que se estava a passar com ela? Primeiro o riso no tribunal, e agora lágrimas na escada do famoso Instituto de Arte de Chicago. Talvez fosse um problema ambiental, uma espécie insidiosa de envenenamento por chumbo. Talvez fosse uma alergia a edifícios majestosos. Fosse o que fosse, não queria perder o conforto e a segurança dos braços de Roy Crawford. Havia já muito tempo desde a última vez que alguém a tinha agarrado com aquela ternura tão evidente. Mesmo quando Jake e ela faziam amor, e o amor deles continuara surpreendentemente apaixonado durante todos aqueles anos, o que faltava era a ternura. Compreendeu naquele momento que sentia muita falta disso. Sentia muita falta.

- Sinto muito.

Roy Crawford chegou-se para trás, mas não se separou dela, continuou a segurá-la nos seus braços com as mãos fortes, os dedos largos

apertando-lhe a carne por baixo da manga do casaco.

- O que posso fazer?

Coitado, pensou Mattie. Ele não fez nada, mas parece culpado, como se estivesse habituado a fazer as mulheres chorar, pronto para assumir toda a responsabilidade, independentemente do facto de ser inocente. Mattie imaginou por instantes se seria aquilo que todos os homens sentiam, se passavam toda a vida com medo das lágrimas de uma mulher.

- Só preciso de um minuto. Já passa.

Mattie ofereceu a Roy Crawford o que esperava ser o seu sorriso mais tranquilo. Mas sentiu o queixo e os lábios trémulos e o gosto salgado das lágrimas através dos dentes cerrados, e Roy Crawford não ficou nada tranquilo. Na verdade parecia apavorado.

Quem o poderia censurar? Ele pensava que se ia encontrar com a sua marchand para ver uma exposição de fotografias, e o que foi que encontrou? O pior pesadelo de qualquer homem - uma mulher histérica, a ter uma crise num lugar público! Não admirava que a atitude de Roy Crawford indicasse que desejava que a terra se abrisse e o engolisse por inteiro.

Mesmo assim, o constrangimento na expressão de Roy Crawford não era nada, comparado com a imagem do mais puro horror que tomara por completo conta do marido, quando Mattie fizera aquele escândalo no tribunal. O que não teria ele pensado! O que não deveria estar a pensar naquele momento! Nunca mais lhe perdoaria, tinha certeza disso. O seu casamento estava acabado, e não com acusações e recriminações, mas sim com uma gargalhada.

Quando Mattie saíra a correr do tribunal, às gargalhadas, correndo pela Califórnia Avenue entre a Twenty-fifth e a Twenty-sixth Street, sabendo que aquela não era a melhor área da cidade, reparou num bêbado a atravessar a rua em ziguezague para evitar esbarrar com ela. Até os bêbados querem afastar-se de mim, pensou ela, rindo ainda mais alto, ouvindo passos e olhando para trás, à espera de ver Jake, mas viu apenas dois negros com gorros de malha puxados por cima das orelhas, que desviaram o olhar e apressaram o passo ao passarem por ela.

O seu carro, um Intrepid branco a precisar de ser lavado, estava estacionado a dois quarteirões do tribunal, junto de um parquímetro cujo tempo tinha expirado, Mattie enfiou a mão na carteira à procura das chaves, encontrou-as, deixou-as cair no chão, apanhou o porta-chaves e deixou-o cair outra vez. Segurou a chave com força entre os dedos, tentou abrir a porta do carro várias vezes. Mas a chave desviava-se na sua mão e a porta continuava teimosamente trancada.

- Devo estar a ter uma trombose - declarou para a fila de prédios pequenos e em mau estado que estavam ali perto. - É isso, estou a ter uma trombose.

Mais parece um esgotamento nervoso, concluiu Mattie. De que outra forma seria possível explicar aquele extraordinário comportamento? Como explicar a sua completa e absoluta falta de controlo?

A chave entrara subitamente na fechadura da porta do carro. Mattie tinha respirado fundo uma vez, depois duas, sacudindo os dedos das mãos, encolhendo os dedos dos pés dentro dos sapatos pretos de camurça. Tudo parecia estar a funcionar bem. E tinha parado de rir, observou agradecida, sentada ao volante, olhando pelo espelho retrovisor. Usou o telefone do carro para ligar para Roy Crawford e saber se podiam mudar a hora do encontro, talvez ver a exposição mais cedo, e discutir depois o que comprar, durante o almoço, a convite dela.

Belo convite, pensou Mattie já no presente, secando as últimas lágrimas, lutando para apresentar pelo menos um controle aparente. Porque é que Jake não fora atrás dela? Obviamente devia ter percebido que alguma coisa estava errada. Ele devia saber que aquela crise não tinha sido projectada para o sabotar. Mas como é que ele podia saber, se nem ela tinha certeza?

- Acha que agora já está bem, - perguntou Roy Crawford, implorando um simples sim com o olhar.

- Estou bem - disse Mattie obsequiosa. - Obrigada.

- Podemos fazer isto noutro dia.

- Não, é verdade, estou bem.

- Quer falar sobre o assunto? - desta vez os olhos de Roy Crawford imploraram um simples não.

- Acho que não - Mattie respirou fundo e viu Roy Crawford fazer o mesmo. Ele tem a cabeça muito grande, pensou, distraída.

- Entramos?

Minutos depois estavam os dois de pé diante de uma mulher nua, numa pose artisticamente planeada à volta duma pia antiga, de modo que apenas as suas nádegas e a curva do seio esquerdo ficavam expostas ao olhar intrometido da máquina fotográfica.

- Willy Ronis é membro do famoso triunvirato de fotógrafos franceses - explicou Mattie com a sua melhor voz profissional, procurando manter a mente no presente, a sua visão treinada na exposição deslumbrante de fotografias a preto e branco que se alinhavam nas paredes de uma das salas mais resguardadas do instituto.

Quando misturamos preto e branco, ouviu Jake a interromper, temos o cinzento. Aliás, vários tons de cinzento.

Vai-te embora, Jake, ordenou Mattie mentalmente. Ver-te-ei no tribunal, pensou, e quase riu, mordendo o lábio com força para manter o silêncio.

- Os outros dois membros do grupo, claro, são Henri Cartier-Bresson e Robert Doisneau - continuou Mattie quando achou que era seguro.

- Esta fotografia especificamente, chamada Nu Provençal, é provavelmente a fotografia mais famosa e divulgada de Ronis.

Então, vamos dedicar alguns minutos ao exame dos vários matizes do cinzento.

Não vamos não, pensou Mattie.

- O interesse pela forma do nu feminino é um traço marcante no trabalho de Ronis - disse ela.

- Tem algum motivo para gritar? - interrompeu Roy Crawford.

- Eu estava a gritar?

- Só um pouco. Não precisa ficar preocupada - acrescentou ele rapidamente.

Mattie abanou a cabeça tentando livrar-se da voz do marido de uma vez por todas.

- Desculpe.

- Por favor, não se desculpe - disse Roy, obviamente com medo que Mattie começasse de novo a chorar.

Então ele sorriu, um grande sorriso que combinava perfeitamente bem com a sua cabeça grande, e Mattie compreendeu, naquele instante, por que é que as mulheres de todas as idades achavam Roy Crawford tão atraente. Metade patifório, metade criança - uma combinação fatal.

- Sempre quis conhecer França - disse Mattie, baixando a voz e concentrando-se nas fotografias, procurando convencer-se de que era capaz de ter uma conversa normal, adulta, apesar de estar sem dúvida mesmo no meio de um completo colapso nervoso.

- E não conhece?

- Ainda não.

- Imaginava que alguém com a sua cultura e os seus interesses deveria conhecer França há muito tempo.

- Um dia - disse Mattie, pensando nas inúmeras vezes que tentara convencer Jake a passarem umas férias em Paris, e nas suas persistentes recusas. Não tenho tempo suficiente, dizia ele, quando o que realmente queria dizer é que tinha tempo demais. Tempo demais para ficarem a sós. O amor é que não era suficiente. Mattie anotou na sua agenda mental para contactar o seu agente de viagens quando chegasse a casa. Não tinha passado a lua-de-mel em Paris. Talvez passasse lá o seu divórcio.

- De qualquer forma - continuou, e as palavras cortaram o ar, assustando os dois - esta fotografia é da mulher de Ronis na casa de Verão.

- É muito erótica - comentou Roy. - Não acha?

- Acho que o que a torna tão sensual - concordou Mattie - é a apresentação quase tangível da atmosfera. Podemos sentir o calor do sol a entrar pela janela aberta, sentimos o cheiro do ar, a textura do antigo chão de pedra. O nu é a parte do erotismo, mas só parte.

- Faz com que tenhamos vontade de nos despirmos e saltemos para dentro da fotografia com ela.

- Uma ideia interessante - disse Mattie, tentando não visualizar Roy Crawford nu, conduzindo o cliente até outro grupo de fotografias: dois homens a dormir num banco de praça, trabalhadores em greve a descansar numa rua de Paris, carpinteiros a trabalhar no campo, em França. - Há uma inocência nestas primeiras - disse Mattie e subitamente ocorreu-lhe uma ideia perturbadora, de que Roy Crawford podia estar a atirar-se a ela - que não existe na maior parte das fotografias mais recentes. A simpatia para com a classe trabalhadora continua a ser um ponto de referência no seu trabalho, mas há mais tensão nas fotografias que Ronis tirou depois da Segunda Guerra Mundial. Como esta aqui - disse ela, levando Roy Crawford até uma fotografia recente intitulada Natal, na qual um homem, com uma expressão atormentada no semblante solene, parecia solitário no meio de uma multidão do lado de fora de um grande armazém parisiense. - Não há o mesmo encadeamento entre as pessoas - explicou Mattie - e essa distância transforma-se muitas vezes no tema da fotografia. Faz sentido o que acabei de dizer?

- Há uma distância entre as pessoas - reiterou Roy. - Para mim faz sentido.

Mattie assentiu com a cabeça. Para mim também, pensou ela enquanto ambos examinavam as fotos mais recentes por alguns minutos em silêncio. Mattie sentiu o braço de Roy encostado ao dela, esperou que ele se afastasse e ficou estranhamente satisfeita por ele não o ter feito. Talvez a distância não seja assim tão grande, pensou.

- Eu prefiro estas.

Mattie sentiu Roy Crawford sair do seu lado, como um penso rápido a ser arrancado lentamente de uma ferida aberta. Voltou para os nus mais antigos, olhando intensamente para o corpo de uma jovem sentada de modo provocante numa cadeira, com a cabeça e o pescoço fora do alcance da câmara, um seio exposto, o pronunciado triângulo de pêlos púbicos como ponto fulcral da imagem, as longas pernas nuas esticadas em direcção à câmara. A perna vestida de um homem aparecia maliciosamente no canto esquerdo da foto.

- A composição desta fotografia é especialmente interessante começou Mattie. - E, claro, a justaposição das diferentes texturas, a madeira, a pedra...

- A carne nua.

- A carne nua - repetiu Mattie. Estaria mesmo a querer engatá-la?

- As coisas simples da vida - disse Roy Crawford.

As coisas raramente são tão simples como parecem, ouviu o marido dizer. E todos sabemos disso.

- Vamos dar uma espreitadela ali. - Mattie levou Roy Crawford para um segundo conjunto de salas.

- O que temos aqui?

- Danny Lyon - respondeu Mattie, retomando a sua voz mais profissional. - Provavelmente hoje em dia um dos fotógrafos mais influentes da América. Como pode ver, é um fotógrafo bastante diferente de Willy Ronis, apesar de partilhar os interesses de Ronis por pessoas vulgares e acontecimentos actuais. Estas são as fotografias que tirou do eclodir do movimento pelos direitos civis entre 1962 e 1964, depois de deixar a nossa Universidade de Chicago para viajar à boleia para o sul e tornar-se no primeiro fotógrafo da equipe da SNCC, que conforme se deve lembrar é a sigla da...

- Comissão de Coordenação Estudantil de Não-Violência.

- - Sim, lembro-me muito bem. Tinha catorze anos nessa altura. E você não era nem sequer uma faísca nos olhos do seu pai.

Uma faísca que ele apagou quando se foi embora, pensou Mattie.

- Na verdade nasci em 1962 - disse ela. Ele tinha de estar a engatá-la.

- O que significa que tem...

- Mais ou menos o dobro da idade da sua namorada actual.

- Mattie apontou rapidamente para o primeiro conjunto de fotografias, com o riso fácil de Roy Crawford ecoando atrás dela.

- - E então, o que acha? Mais alguma coisa lhe chamou a atenção?

- Muitas coisas - disse Roy Crawford, ignorando as fotografias, olhando directamente para Mattie.

- Estás a meter-te comigo? - perguntou Mattie de forma tão directa que surpreendeu os dois.

- Acho que estou - Roy Crawford esboçou aquele grande sorriso curvo.

- Sou uma mulher casada. - Mattie tocou na fina aliança de que usava no anelar da mão esquerda.

- E isso o que é que quer dizer?

Mattie sorriu, percebeu que estava a gostar daquilo, mais do que devia.

- Roy - começou ela, e um sorriso desagradável ameaçava destruir a seriedade intencional do seu tom de voz -, tem sido meu cliente há quantos anos... cinco, seis?

- Há mais tempo do que os meus dois últimos casamentos juntos concordou ele.

- E durante todos estes anos decorei as suas diversas casas e escritórios com arte.

- Trouxe cultura e bom gosto à minha rude existência - concedeu, Roy Crawford, galanteador.

- E todo esse tempo nunca me assediou.

- Acho que tem razão.

- Então, porquê agora?

Roy Crawford pareceu confuso. As suas sobrancelhas, negras em relação ao cabelo grisalho, juntaram-se no topo do nariz, criando uma linha longa e frondosa.

- O que é que está diferente? - insistiu Mattie.

- Você está diferente.

- Estou diferente?

- Há alguma coisa de diferente em si - repetiu Roy.

- Pensa que só porque tive uma crise há bocado, sou uma presa fácil?

- Era o que esperava.

Mattie começou a rir alto. Ficou assustada e tentou sufocar o som na garganta antes de começar de novo. Agora tenho medo do meu próprio riso, pensou Mattie, engolindo com força.

- Acho que por hoje já vimos fotografias suficientes.

- Hora do almoço?

Mattie rodou a aliança até a pele ficar irritada. Seria tão fácil, pensou, imaginando a grande cabeça de Roy Crawford entre as suas coxas esguias. Por que estava a preocupar-se? O marido andava a traí-la, não andava? E o seu casamento tinha acabado, não tinha? Não tinha?

- Importa-se de adiar o nosso almoço para outro dia? - perguntou ela, deixando cair as mãos ao longo do corpo.

Como resposta Roy Crawford ergueu imediatamente as mãos, como se um acto fosse contínuo ao outro.

- Você manda - respondeu calmamente.

- Depois compenso-o - disse-lhe Mattie minutos mais tarde, acenando-lhe dos degraus da frente.

- Fico à espera - respondeu ele.

Aquilo fora brilhante, pensou Mattie. Localizou o carro no parque de estacionamento na esquina da galeria e entrou nele. É profissional. Muito profissional. Provavelmente nunca mais ouviria falar de Roy Crawford, mas no mesmo instante em que a ideia lhe cruzava a mente, foi substituída por outra, a visão do seu corpo nu sentado em posição provocante numa cadeira, o sapato de Roy Crawford, aparecendo maliciosamente ao canto da sua imaginação.

- Meu Deus, és tarada - disse Mattie, abanando a cabeça com força para sacudir aquela imagem perturbadora.

Mattie entregou o bilhete ao funcionário do estacionamento, que lhe acenou para sair sem qualquer restituição do dinheiro depositado. Saiu do parque, virou à direita na primeira esquina, à esquerda na seguinte, sem prestar atenção para onde se dirigia, interrogando-se sobre o que iria fazer durante o resto do dia. Uma mulher sem planos, pensou, tentando resolver o que iria dizer a Jake quando este voltasse para casa... se é que voltava. Talvez devesse procurar um psiquiatra, alguém que a ajudasse a lidar com as suas frustrações, com toda aquela hostilidade sufocada, antes que fosse tarde de mais, apesar de já ser tarde de mais. O seu casamento já tinha acabado.

- O meu casamento acabou - disse, simplesmente. Nada é tão simples como parece.

Mattie viu o semáforo alguns quarteirões à frente, reparou que estava vermelho e transferiu o pé do acelerador para o pedal do travão. Mas foi como se o travão tivesse desaparecido de repente. Mattie começou a travar freneticamente mas o calcanhar nada encontrava. Tinha o pé dormente, pisava o ar e o carro ia muito depressa. Não sabia como reduzir a velocidade do carro, quanto mais parar, e havia pessoas na faixa transversal, um homem e duas crianças, meu Deus, ia atropelá-los, ia passar com o carro por cima de duas crianças inocentes, e não podia fazer nada para evitar o acidente. Devia estar louca, ou a ter alguma espécie de convulsão, mas de qualquer modo, um homem e duas crianças pequenas iam morrer se não fizesse qualquer coisa. Tenho de fazer qualquer coisa.

No instante seguinte Mattie guinou violentamente para a esquerda, desviando o carro para a faixa dos automóveis que vinham em sentido contrário e directamente para a frente de um veículo que se aproximava. O motorista do outro carro, um Mercedes preto, desviou-se para evitar a colisão de frente. Mattie ouviu o ruído dos pneus, o estrondo dos metais e o estilhaçar dos vidros. Houve um estrondo muito alto, como uma explosão, quando o airbag de Mattie inchou, batendo-lhe no peito como punho gigantesco, prendendo-a ao banco, empurrando-lhe o rosto como um pretendente indesejado, roubando-lhe o espaço para respirar. Preto e branco colidindo, pensou, agarrando-se à consciência, procurando lembrar-se do que Jake tinha dito na sua alegação final sobre poucas coisas serem pretas ou brancas, apenas vários matizes de cinzento. Sentiu o gosto do sangue, viu o motorista sair do outro carro, a berrar e gesticular como louco. Pensou em Kim, na bela, doce e maravilhosa Kim, e imaginou o que a filha faria sem ela.

E então, misericordiosamente, tudo desapareceu em vários matizes de cinzento, e não viu mais nada.

 

A RECORDAÇÃO MAIS ANTIGA DE KIM ERA DOS PAIS A Discutirem. Sentada ao fundo da sala da aula, caneta azul a rabiscar uma série de corações entrelaçados na capa do caderno de inglês, inclinou a cabeça para o professor que escrevia no quadro verde diante da turma, apesar de mal dar pela presença dele, de não ter ouvido uma única palavra do que ele dissera durante toda a aula. Mexeu-se um pouco na cadeira, olhou para a janela que ocupava toda a parede da sala de aula do décimo ano. Não que houvesse alguma coisa lá fora para ver. O antigo pátio relvado fora pavimentado no ano anterior e nele tinham sido instalados pré-fabricados, três ao todo, estruturas cinzentas muito feias, com janelas minúsculas, altas de mais para espreitar para fora ou para dentro, com salas que eram, quentes de mais, ou frias de mais. Kim fechou os olhos, reclinou-se na cadeira e ficou a imaginar como se sentiria quando acabasse a aula de matemática. Afinal, o que estava ela a fazer naquela estúpida escola? A vantagem de mudar para os arredores não era tirá-la de turmas numerosas de mais, proporcionar um ambiente mais propício à aprendizagem?

Não fora por causa disso toda aquela gritaria?

Não que os pais gritassem assim tanto. Não, a raiva deles era mais calma e era mais difícil de lidar com ela. Era mais do género de ficar enroscada e sonolenta, como cobras num cesto, até alguém cometer a imprudência de tirar a tampa protectora, esquecendo-se que a palavra-chave nesse caso era enroscada, e não sonolenta, e que a raiva estava sempre lá, pronta, à espera, ansiosa para atacar. Quantas vezes tinha acordado a meio da noite, a consciência desperta pelo som de sussurros furiosos e sibilados através de dentes cerrados, e corrido para o quarto dos dois para encontrar o pai a andar de um lado para outro e a mãe lavada em lágrimas? "O que aconteceu?", perguntava ela ao pai. "Porque é que a mãe está a chorar? O que é que lhe fizeste para ela estar a chorar? "

Kim lembrou-se do medo que sentiu quando presenciou aquela cena pela primeira vez. Quantos anos tinha? Três, talvez quatro? Estava a dormir a sesta, na sua pequena cama de latão azul, chegada a um enorme Poupas de peluche, um Ferrão a cair aos bocados bem preso debaixo do braço. Talvez estivesse a sonhar, talvez não. Mas, de repente, acordou e ficou com medo, sem saber bem porquê. Então ouviu os sons abafados do quarto ao lado, a mãe e o pai a sussurrarem, mas não da mesma maneira que as pessoas costumavam sussurrar. Eram sussurros muito altos, frios e cortantes como o vento no Inverno, sussurros que fizeram Kim cobrir as orelhas do Poupas e escondê-lo sob as cobertas ao lado do Ferrão, antes de ir investigar.

Kim abandonou-se na cadeira, batendo distraída no pequeno carrapito, verificando se não tinha nenhum cabelo solto, se tudo estava bem seguro e no lugar certo, como gostava. Miss Grundy, provocava-a às vezes a mãe, com voz de riso.

Kim gostava de ouvir a mãe rir. Sentia-se segura. Se a mãe estava a rir, significava que estava feliz, e se estava feliz, significava que estava tudo bem, que os pais continuariam juntos. Ela não se ia transformar numa estatística desagradável e num cliché sem esperança, filha de um lar desfeito, produto de um divórcio amargo, como tantos amigos e colegas de turma.

Se a mãe estava a rir, era porque tudo no mundo estava bem, Kim procurava acalmar-se, tentando apagar o som fantasmagórico da gargalhada da mãe naquela manhã, um som invulgar que era tudo menos feliz - frenética como antónimo de abandonada, mais próxima da histeria do que da alegria autêntica, e, como os sussurros furiosos das primeiras lembranças que Kim tinha da infância, ruidosa de mais. Muito, muito ruidosa.

Seria isso? Os pais teriam tido outra discussão? O pai na véspera tinha saído de novo depois do jantar, supostamente para voltar para o escritório e preparar o julgamento de hoje. Mas não era esse um dos motivos de se terem mudado para os arredores, para terem espaço para montar um escritório em casa, completo, com computador, impressora e fax? Teria sido mesmo necessário voltar à cidade? Ou haveria qualquer outro motivo, um motivo jovem, bonito, com metade da idade dele, como o motivo que o pai de Andy Reese descobriu para deixar a família? Ou o pai de Pam Baker, que se dizia ter mais de um motivo para abandonar a dele.

 

1 A enorme galinha da Rua Sésamo. [N.T.]

2 Personagem da série infantil Os Marretas que vive numa lata de lixo. [N.T.]

 

Ou o motivo que Kim tinha visto o pai beijar numa esquina, na boca, numa tarde ensolarada, mais ou menos na época da mudança para Fvanston, um motivo gorducho, de cabelo escuro, que não se parecia nada com a mãe.

Será que era esse o motivo por que tinha descido para tomar café naquela manhã e encontrado a mãe sozinha, de pé no meio da piscina no quintal, a rir como uma lunática?

Kim nunca contara à mãe que tinha visto o pai com outra mulher, em vez disso procurou convencer-se de que a mulher era apenas uma amiga, não, menos que isso, uma conhecida, talvez até conhecida do trabalho, talvez uma cliente agradecida, só que desde quando se beijava uma cliente, por mais grata que fosse, na boca, daquela maneira? Mesmo na boca, pensou, como Teddy Cranston a beijara no sábado à noite, com a ponta da língua dele a brincar com a sua.

Kim levou os dedos aos lábios, sentindo ainda o formigueiro, revivendo a suavidade do toque de Teddy, tão diferente dos beijos dos outros rapazes da sua idade. Claro que Teddy era alguns anos mais velho do que os outros com quem tinha andado. Tinha dezassete anos e estava no último ano, iria para a universidade no próximo Outono, Columbia ou NYU, segundo lhe dissera com toda a confiança, dependendo do que resolvesse, se ia estudar medicina ou cinema. Mas no sábado à noite parecera mais interessado em enfiar a mão na sua camisola, do que em entrar para a faculdade de medicina ou de cinema, e ela ficou tentada, realmente tentada, a deixar. Todas as outras raparigas faziam isso. Isso, e mais. Muitas raparigas da idade dela já tinham ido até ao fim. Ela escutava os seus risos nas casas de banho da escola, amontoadas em volta das máquinas que vendiam preservativos. Os rapazes odiavam os preservativos, ouvia as raparigas comentar, por isso a maioria das vezes elas nem se preocupavam em

usá-los, principalmente quando já o tinham feito várias vezes e achavam que os rapazes eram de confiança.

- Devias experimentar, Kim! - provocou-a uma das colegas, atirando-lhe com uma caixa de preservativos à cabeça.

- Experimenta - gritavam as colegas em simultâneo, atirando os preservativos para cima dela. - Experimenta. Vais gostar.

Será? Kim ficou a pensar, sentindo a mão invisível de Teddy no seu seio.

Os seus seios, pensou Kim maravilhada, observando como o seu peito, que já não era de criança, subia e descia com a respiração. Naquela altura do ano passado, os seus seios praticamente não existiam e, de repente, há cerca de seis meses, lá estavam eles. Sem aviso nenhum, nada de Acho que é melhor que te prepares. Da noite para o dia passara do tamanho 32 para o 36 e, de repente, o mundo começara a reparar nela. Parecia que, no caso do tamanho do peito, um 36 era melhor do que um 32.

Kim lembrou-se dos assobios e piropos dos rapazes quando na última Primavera levara pela primeira vez a sua nova camisa branca da Gap para a escola, o olhar invejoso das raparigas, e os olhares não tão discretos dos professores. Da noite para o dia tudo mudara. De repente ficara popular, objecto de muitas conjecturas e mexericos. Parecia que todos tinham uma opinião quanto ao seu novo status - que era uma vadia, que era a rainha do gelo, que provocava tudo quanto era homem... como se os seus seios tivessem engolido por completo o que ela era antes, e fossem agora os únicos responsáveis pelo seu comportamento. E Kim descobriu, surpreendentemente, que já não precisava ter opiniões. Bastava ter peito. Na verdade, os professores demonstravam alguma surpresa pelo facto de Kim poder formular alguma ideia coerente.

Até os pais foram afectados por aquela evolução repentina e inesperada. A mãe olhava para ela com um misto de espanto e preocupação, e o pai evitava olhar para ela e, quando o fazia, concentrava-se tanto no seu rosto que ela pensava sempre que ele ia cair de gatas.

O telefone começou a tocar dia e noite. As raparigas que nunca se interessaram por ela, de repente queriam ser suas amigas. Os rapazes que nunca falavam com ela na escola, tanto os palermas como os desportistas, telefonavam depois das aulas, a convidá-la para sair: Gerry McDougal, o capitão da equipa de futebol; Marty Peshkin, o melhor batedor; Teddy Cranston, o dos olhos cor de chocolate derretido.

Mais uma vez os lábios de Kim formigaram com a recordação do toque suave de Teddy. Mais uma vez sentiu a mão dele a encostar-se à sua camisola, com tanta suavidade que parecia acidental, como se não o quisesse fazer. Mas é evidente que a intenção dele era exactamente essa. Senão, porque estaria ali?

- Não - dissera ela baixinho, e ele fingira não ouvir, então ela repetira, em voz mais alta, e dessa vez ele ouviu, mas só que mais tarde tentou de novo, e ela fora obrigada a dizer novamente a dizer pensando na mãe: "Não. Por favor, não faças isso."

- Não tenhas tanta pressa - tinha-a avisado a mãe numa das primeiras conversas que tiveram sobre o sexo. - Tens muito tempo pela frente. E mesmo com todas as precauções do mundo, os acidentes acontecem - e as faces dela ficaram levemente ruborizadas.

- Como eu? - perguntou Kim, que descobrira havia muito tempo que um bebé que pesava mais de quatro quilos não podia ter nascido prematuro, de seis meses.

- O melhor acidente que já me aconteceu - disse a mãe, sem lhe insultar a inteligência ao negar o óbvio, abraçando Kim e beijando-lhe a testa.

- Tu e o pai ter-se-iam casado de qualquer maneira? - insistiu Kim.

- Claro - disse a mãe, dando a resposta que Kim queria ouvir. Mas agora Kim pensava que não. Percebia muito bem na maneira

como os pais olhavam um para o outro, olhares fugazes em momentos de maior distracção que alardeavam os seus verdadeiros sentimentos, bem mais alto que os sussurros raivosos que emanavam com uma regularidade crescente por detrás da porta fechada do quarto. Os pais não estariam juntos se não fosse pela inesperada interferência dela. Ela obrigara-os a casar, a ficarem juntos. Mas essa obrigação era antiga e já não tinha força para os segurar. Era apenas uma questão de tempo para que um dos dois reunisse a força e a coragem para se libertar. E então como ficaria a pequena Kim?

De uma coisa tinha certeza: jamais permitiria que as suas hormonas a encurralassem num casamento sem amor. Escolheria com sensatez e bem. Mas que escolha tinha ela, na verdade? As suas duas avós não tinham sido abandonadas pelos maridos? Kim agitou-se desconfortável na cadeira. Será que o destino das mulheres da sua família era escolher homens infiéis, que um dia as iam abandonar? Talvez fosse inevitável, provavelmente até genético. Talvez fosse algum tipo de antiga maldição de família.

Kim encolheu os ombros, como se quisesse livrar-se fisicamente daquela ideia desagradável, e o movimento súbito fez cair o caderno para o chão, atraindo a atenção indesejada do professor. O sr. Bill Loewi, cujo amplo nariz era grande de mais para o resto do rosto fino, e cuja pele, avermelhada de mais, traía o seu apego à bebida, virou-se de costas para o quadro onde estava a escrever e olhou para o fundo da sala.

- Algum problema? - perguntou, e Kim deixou cair o livro Romeu e Julieta enquanto tentava apanhar o caderno que tinha caído.

- Não, senhor - disse imediatamente Kim, estendendo a mão para apanhar o livro.

Caroline Smith, que estava sentada na fila ao lado, e cuja boca grande era inversamente proporcional ao tamanho do cérebro, inclinou-se para o lado e estendeu a mão para o livro no mesmo momento que Kim.

- Estás a pensar no Teddy? - perguntou.

Caroline enfiou o dedo indicador da mão direita na rodela formada pelo indicador e polegar da mão esquerda e mexeu para dentro e para fora, sugestivamente.

- Vai tratar da tua vida - disse Kim em voz baixa.

- Vai-te foder - foi a resposta imediata.

- Alguma coisa que queiram contar ao resto da turma? - perguntou o sr. Loewi.

Caroline Smith começou a rir-se.

- Não, senhor.

- Não, senhor - concordou Kim, pondo o livro em cima da carteira e olhando para a frente.

- Vamos ler alguns parágrafos do texto - sugeriu o sr. Loewi. Página trinta e quatro. Romeu declara o seu amor a Julieta.

- Kim - disse para os seios da rapariga -, podes ser a Julieta.

Teddy estava à sua espera depois das aulas, acocorado ao lado do cacifo de Kim, quando esta foi buscar o almoço.

- Pensei que podíamos comer fora - sugeriu ele, erguendo-se até ficar completamente direito, quatro ou cinco centímetros acima do metro e oitenta e dois. Segurou na mão de Kim e puxou-a pelo corredor dos cacifos, fingindo ignorar os olhares e mexericos dos outros. Ele estava habituado à atenção. Para isso contribuía o facto de ser atlético, rico e "bonito de morrer", de acordo com a legenda sob a sua fotografia no último anuário da escola.

- Está bom tempo lá fora - disse ele.

- Então deixa-o lá fora - sugeriu Caroline Smith que se encontrava perto deles.

Annie Turofsky e Jodi Bates deram uma sonora gargalhada ao lado da amiga.

As Três Mosqueteiras, zombou Kim. Usavam o mesmo tipo de roupa, jeans muito justas e camisolas mais justas ainda, cabelo castanho comprido e liso, com risco ao lado, e narizes endireitados pelo mesmo cirurgião plástico, apesar de Caroline insistir que tinha feito a plástica por causa de um desvio de septo.

- Miúdas, vocês são um ponto - disse Teddy.

- Experimenta... - continuou Annie Turofsky.

- Vais gostar de nós - completou Jodi.

- Acho que não - disse Teddy a meia voz, acelerando o passo, empurrando Kim para a porta lateral.

- Há uma festa no sábado à noite - gritou Caroline para os dois. - Na casa da Sabrina Hollander. Os pais dela vão viajar no fim-de-semana. Levem quem quiserem.

- Uma festa cheia de raparigas de quinze anos - disse Teddy, com sarcasmo, enquanto abria a pesada porta para o mundo exterior. - Mal posso esperar.

- Eu sou uma rapariga de quinze anos - lembrou-lhe Kim e uma fria rajada de vento açoitou-lhe o rosto.

- Tu não és como as outras - disse Teddy.

- Não sou?

- És mais madura.

Tamanho 36, pensou Kim, mas não disse nada. não queria assustar Teddy, por ser inteligente de mais, sábia de mais, madura de mais.

- Por aqui? - Teddy apontou para o parque de estacionamento da escola.

- O que tens ali? - perguntou Kim.

- O meu carro.

- Ah - ela deixou o saco do almoço cair no chão, ouviu a lata da Coca-Cola que tinha embrulhado naquela manhã começar a borbulhar e ficou a pensar se iria explodir. - Pensei que querias comer aqui fora.

- Está mais frio do que eu imaginava.

Ele pegou no saco que tinha caído sem qualquer preocupação aparente e pegou-lhe no cotovelo, levando-a para o Chevrolet verde-escuro, modelo recente, que estava do outro lado do parque de estacionamento.

Tê-lo-ia estacionado lá de propósito?, pensou Kim, sentindo o coração acelerado e a respiração mais curta, quase penosa.

Teddy apontou o controlo remoto para o carro que guinchou como um porco assustado, indicando que as portas estavam destrancadas.

- Vamos para o banco de trás - disse ele naturalmente. - Há mais espaço.

Kim entrou de repente para o banco de trás do carro e começou a tirar a sandes de dentro do saco.

- Atum - ela disse constrangida, mostrando-lhe. - Fui eu que fiz - começou a desembrulhar e parou ao sentir a respiração de Teddy no rosto. Virou-se para ele e os seus narizes colidiram ao de leve. – Desculpa não percebi que estavas tão perto... - começou a dizer ela, mas os lábios dele interromperam-na.

Kim ouviu um gemido baixinho, afastou-se rapidamente e descobriu que partia dela.

- Que se passa?

- Nada - disse ela, olhando para a frente como se estivesse a assistir a um filme num

- drive-in, falando pelos cotovelos como sempre fazia quando estava nervosa, quando queria recuperar o controle. Não que não o quisesse beijar. Desejava-o tanto que nem conseguia ver em condições. - Penso que será melhor comermos. Tenho aulas toda a tarde e depois prometi à minha avó Viv, a mãe da minha mãe - tentava explicar, embora soubesse que Teddy, cuja mão acariciava a sua cabeça, não dava importância nenhuma à sua avó Viv -, disse-lhe que a ia visitar depois de sair da escola. Um dos cães dela teve de ser abatido. Estava muito doente, e ela disse-me que ele olhava para ela com aqueles olhos, sabes, aquele olhar a dizer que chegara a hora de partir e ela ficou muito triste, por isso disse-lhe que aparecia por lá. Daqui a uns dias fica boa, assim que uma das cadelas tiver a ninhada. Aí ela terá um motivo para parar de pensar no Duke. Era esse o nome do cão. Era meio collie, meio cocker-spaniel. Muito esperto. A minha avó diz que os rafeiros são mais inteligentes do que os de raça pura. Tens algum cão?

- Um labrador amarelo - disse Teddy, e um sorriso malicioso

- espalhou-se-lhe dos lábios para os olhos enquanto tirava a sandes de atum da mão de Kim e a metia novamente no saco. - De raça pura.

Kim revirou os olhos, depois fechou-os.

- Tenho a certeza de que é um cão muito esperto.

- É burro que nem uma porta - Teddy passou os dedos pelos lábios de Kim. - A tua avó tem razão.

- Eu não tenho cão - disse Kim, abrindo os olhos enquanto os dedos de Teddy desapareceram por dentro da sua boca, continuando com o seu discurso quase impossível. - A minha mãe detesta cães - insistia ela obstinadamente, contornando os dedos dele. - Diz que é alérgica, mas acho que não é. Acho que pura e simplesmente não gosta deles.

- E tu? - perguntou Teddy, com voz rouca, inclinando o corpo para a frente para beijar um lado da boca de Kim. - Do que é que gostas?

- Do que gosto?

- Gostas disto? - começou a beijar-lhe o lado do pescoço.

Se gosto, respondeu Kim mentalmente, prendendo a respiração, consciente da excitação crescente no corpo todo.

- E assim? - Os lábios dele acariciaram os olhos dela, encostando-se às pestanas, sobre as pálpebras fechadas. - E isto? - e cobriu a boca de Kim com a dele.

Sentiu a língua de Teddy a abrir-lhe suavemente os lábios, enquanto lhe acariciava a cabeça com uma das mãos e a outra descia lentamente pela frente da camisola. Existiria coisa mais deliciosa?, imaginou ela, com todo o corpo a vibrar. Só que as vibrações não eram internas, partiam de algum ponto do lado de fora do seu corpo.

- Oh, meu Deus - disse ela, batendo com a mão no bolso das calças. - É o meu bip.

- Não ligues - disse Teddy, tentando puxá-la de volta para os seus braços.

- Não posso. Sou uma daquelas pessoas compulsivas. Preciso de saber quem é.

Kim tirou o bip do bolso, apertou o botão para ver quem a procurava e viu o número desconhecido a brilhar no ecrã, seguido dos números 112, indicando uma emergência.

- Aconteceu alguma coisa - disse. - Preciso de um telefone.

 

- Oh, MEU DEUS, TIREM-ME DAQUI! TIREM-ME DAQUI!

- Procure acalmar-se, Mattie. É preciso que fique completamente imóvel.

- Tirem-me daqui. Não consigo respirar. Não consigo respirar!

- Está a respirar muito bem, Mattie. Acalme-se. vou tirá-la agora... Mattie sentiu a mesa estreita sobre a qual estava deitada começar

a mover-se e a empurrá-la com os pés para a frente, da monstruosa máquina de ressonância magnética. Tentou engolir ar, mas era como se alguém estivesse de pé com saltos de agulha em cima do seu peito. Os saltos rasgavam a roupa azul do hospital, furavam-lhe a pele, perfuravam-lhe os pulmões e transformavam até a respiração mais superficial em sofrimento, quase impraticável.

- Pode abrir os olhos agora, Mattie.

Mattie abriu os olhos e sentiu que se lhe encheram de lágrimas.

- Sinto muito - disse ela para a técnica, que era pequena, morena e assustadoramente jovem. - Acho que não vou conseguir fazer isso.

- É bastante assustador - concordou a técnica, enquanto batia ao de leve no braço ferido de Mattie. - Mas o médico estava ansioso para ver os resultados.

- Já alguém avisou o meu marido?

- Creio que já foi avisado sim.

- E Lisa Katzman?

Mattie apoiou o corpo nos cotovelos e sem querer descompôs as almofadas que lhe tinham sido colocadas dos dois lados da cabeça. A dor provocada por milhares de golpes minúsculos percorreu-lhe todas as articulações. Não havia nenhuma parte do seu corpo que não estivesse dorida. A porcaria do airbag quase me matava, pensou Mattie, passando a mão, no queixo dolorido.

- A Dra. Katzman estará à sua espera quando terminar aqui.

A técnica, cujo cartão de identificação dizia chamar-se Noreen Aliwallia, conseguiu esboçar um pequeno sorriso enquanto compunha as almofadas.

- E quanto tempo vai isto durar?

- Cerca de quarenta e cinco minutos.

- Quarenta e cinco minutos?

- Sei que parece muito tempo...

- Mas é muito tempo. Sabe como são as coisas lá dentro? É como ser enterrada viva.

Por que estou a dificultar as coisas?, pensou Mattie, desejando muito ouvir a voz tranquila da amiga Lisa, a voz da calma e da razão, que desde a infância lhe transmitia paz.

- Sofreu um acidente de automóvel - lembrou Noreen Aliwallia com paciência. - Perdeu a consciência. Foi um grande acidente. A ressonância magnética é para verificar se não há nenhum hematoma escondido.

Mattie concordou com a cabeça, procurando lembrar exactamente o que significavam as iniciais RM. Tinha alguma coisa a ver com imagem magnética, fosse o que fosse que isso quisesse dizer. Um nome complicado para raios X. O neurologista já lhe tinha explicado quando ela recuperara a consciência na sala de urgências, mas não tinha prestado muita atenção porque a sua mente tentava ainda entender o que tinha acontecido. A cabeça latejava-lhe, sentia o gosto do sangue seco na boca, e estava a ter dificuldades para se lembrar da ordem precisa das coisas. Doía-lhe tudo, apesar de lhe terem dito que, milagrosamente, não tinha partido nenhum osso. Então, de repente, estava a ser levada de maca para a cave daquele hospital, não sabia qual - tinham-lhe dito o nome, mas não se conseguia lembrar -, e aquela jovem, técnica em radiologia, com o nome harmonioso, Noreen Aliwallia, que parecia recém saída de uma escola secundária, pediu para Mattie deitar naquela mesa estreitíssima e para pôr a cabeça dentro de uma caixa idêntica a um caixão.

A máquina de RM parecia um grande túnel de aço. Ocupava quase toda a sala, pequena e sem janelas, cujas paredes brancas encardidas não tinham qualquer enfeite. À entrada do túnel havia uma caixa rectangular com um buraco redondo. Mattie tinha recebido um par de tampões para pôr nos ouvidos. Disseram-lhe que aquilo era muito barulhento. E puseram-lhe as almofadas dos dois lados da cabeça para evitar que se mexesse.

Passaram-lhe um botão de campainha para a mão para utilizar se sentisse que ia espirrar ou tossir, ou fazer qualquer coisa que pudesse perturbar a operação da máquina. Se se mexesse em qualquer momento do exame, explicou Noreen, a imagem ficaria danificada e teriam de começar do princípio. Feche os olhos, recomendou Noreen. Pense em coisas boas.

O pânico começou assim que Mattie sentiu a cabeça dentro da caixa e lhe puxaram a tampa até ao peito, cobrindo-lhe o rosto, de modo que mesmo ali deitada, de olhos fechados, a sensação era de estar numa cova, a sufocar. Então a mesa sobre a qual estava começou a deslizar lentamente para o túnel, longo e estreito, e ela sentiu-se como uma daquelas bonecas russas, uma boneca, dentro de outra boneca, dentro de outra boneca, e descobriu que tinha de sair daquela maldita máquina que era pior do que o acidente, pior do que o airbag, pior do que qualquer outra coisa que tinha experimentado em toda a sua vida. Precisava de sair dali, senão morreria, por isso começou a berrar pedindo ajuda à técnica, esquecendo o botão da campainha, esquecendo tudo, menos aquele pânico, até que Noreen disse que podia abrir os olhos e começou a chorar porque tudo doía, agia como uma criança e nunca sentiu tanta solidão na vida.

E agora Noreen Aliwallia pedia-lhe para pôr de lado todo o medo e toda a solidão, e para fazer aquilo de novo, e Mattie pensava, não, prefiro arriscar a ter uma hemorragia interna no cérebro e qualquer outra coisa que possa estar à espreita por lá, do que passar por tudo isto de novo. Sempre tivera um medo secreto de sufocar, de ser enterrada viva. Não podia. Não ia fazer aquilo novamente.

- Vai tirar-me desta máquina se eu entrar em pânico? - perguntou. O que estaria a acontecer com ela? Teria ficado louca?

- É só apertar o botão e eu tiro-a - os braços surpreendentemente fortes de Noreen baixaram os ombros de Mattie até a encostar à mesa. - Procure ficar calma. Pode até dormir.

Oh, meu Deus, meu Deus, meu Deus, pensou Mattie, fechando os olhos com força, segurando o botão da campainha de encontro ao coração que batia acelerado, e mais uma vez a sua cabeça foi posta dentro da caixa, a tampa deslizou-lhe por cima do rosto até ao peito e, ficou mergulhada na mais profunda escuridão e total desespero. Não posso respirar, pensou Mattie. Estou a sufocar.

- Há quanto tempo conhece a Dra. Katzman? - perguntou Noreen, - esforçando-se obviamente para distrair Mattie.

- Desde sempre - respondeu Mattie através dos dentes cerrados, visualizando a Dra. Lisa Katzman como uma menina com o rosto cheio de sardas. - É a minha melhor amiga desde que tínhamos três anos de idade.

- Isso é espantoso - disse Noreen, e as suas palavras foram sumindo no ar enquanto saía do lado de Mattie. - vou ligar a máquina agora, Mattie. Como é que está?

Nada bem, pensou Mattie. A mesa por baixo dela começou a mover-se, levando-a para dentro do corpo da máquina. Fica calma. Fica calma. Vai ser rápido. Quarenta e cinco minutos. Não é tanto tempo assim- É muito tempo. É quase uma hora, pelo amor de Deus. Não posso fazer isto. Preciso sair daqui. Não consigo respirar. Estou a sufocar.

- A primeira série de raios X vai começar agora - disse Noreen. - O som parece-se um pouco com o bater de cascos de cavalos, e dura mais ou menos cinco minutos.

- E depois? - Continua a respirar, Mattie disse para consigo mesma. Mantém-te calma. Pensa em coisas boas.

- E depois haverá um intervalo de alguns minutos, então mais raios X. Cinco ao todo. Está pronta?

Não, não estou pronta, gritou Mattie mentalmente por cima do som de cavalos vindo de longe. Isto é interessante, pensou, deixando o pânico temporariamente de lado para ouvir bem alto o dip-dop, dip-dop, enquanto um grupo de garanhões pretos e brancos galopavam na sua direcção, por trás dos olhos fechados. Pretos e brancos, reflectiu. As coisas raramente são pretas ou brancas, têm vários tons de cinzento. Onde é que tinha ouvido aquilo?

O acidente, pensou, e subitamente estava de novo no seu carro, observando, impotente, a guinada em direcção dos carros que vinham em sentido contrário. Preto e branco a colidir. Diversos tons de cinzento. Em que estava a pensar?

- Sente-se bem, Mattie?

Mattie resmungava, tentando fingir que a tampa da caixa não estava a poucos centímetros do seu nariz. Tenho muito espaço, procurou

convencer-se. Estou deitada numa praia deserta de areia branca, nas Bahamas, e os meus olhos estão fechados, e o mar molha-me os dedos dos pés. E cem cavalos galopam na minha direcção e vão enterrar-me viva na areia, pensou quando a segunda série de raios X começou. Mantém-te calma. Mantém-te calma. A campainha na mão. Podes apertar o botão quando quiseres. Tem pensamentos positivos. Pensa com calma. Estás numa praia nas Bahamas. Não, não está a dar resultado. Estás numa mesa, num hospital no meio de Chicago. Estão a tirar fotografias do interior da tua cabeça. O que vão dizer quando descobrirem que está vazia?

Não consigo respirar. Estou a sufocar. Preciso de sair.

Pensamentos positivos. Pensa que estás deitada na cama. Não, isso não serve. Quando foi a última vez que te sentiste segura e a salvo na cama? Quando eras bem pequena, pensou Mattie, vendo-se imediatamente como uma criança séria, deitada sob o seu cobertor azul e branco, o pai sentado perto da sua cabeça, encostado à cabeceira da cama, a ler-lhe uma das suas histórias favoritas.

- Por hoje é tudo, Mattie - ouviu o pai dizer, beijando-a na testa, fazendo-lhe cócegas com o bigode na pele macia.

- Ficas comigo até eu adormecer? - fazia a mesma pergunta todas as noites. E todas as noites ele dizia a mesma coisa: "Já és uma menina crescida, não preciso de ficar aqui contigo", enquanto se ia instalando aos pés da cama, mesmo quando a mãe o chamava, mesmo quando ela aparecia à porta, com uma mão impaciente apoiada na outra, apesar de tudo, ele ficava sentado aos pés da cama até Mattie adormecer, por mais que demorasse.

- A terceira série começou agora - anunciou Noreen. Quanto tempo tinha passado? Mattie imaginou e já ia perguntar em voz alta quando o som dos cavalos novos a fez parar. Este, é um outro som. O som de batidas, como se alguém estivesse a martelar na ponta do túnel. Como é que podia dormir com um barulho destes?

Aquele barulho fazia-lhe lembrar a renovação da cozinha, os operários a arrancarem os armários, a trocá-los por outros mais modernos, Jake não queria que trocasse o velho forno eléctrico pelo forno a gás que ela preferia, protestou por causa da desordem, de não conseguir encontrar nada, de não conseguir pensar com aquela barafunda.

Meu Deus... Jake. Aquela manhã no tribunal. A sua exposição final. A gargalhada dela, tão inesperada, tão despropositada. A cara de Jake. A juíza a bater com o martelo, o som desagradável sobrepunha-se ao martelar da máquina de raios X. Tão alto. Será que tinha de ser tão alto? E aquela vibração nos ouvidos, como um enxame de abelhas incómodas, só que ainda pior, porque tinha a sensação de que as abelhas estavam dentro dela, que zumbiam freneticamente dentro da sua cabeça, desesperadas, à procura de uma saída.

- Já acabou? - perguntou Mattie quando os cavalos se afastaram e as vibrações pararam.

- Já fizemos os três. Faltam duas. Está a ir muito bem.

Só mais alguns minutos, Mattie, ouviu o pai a dizer. Está a ir muito bem.

Quando é que posso ver?, perguntou a sua voz de criança, impaciente.

Agora. O pai afastou-se do cavalete improvisado no meio da cave,

espiando de longe, orgulhoso, enquanto ela corria para o seu lado.

Mattie olhou durante muito tempo e com atenção para o retrato que o pai estava a pintar havia semanas, tentando desesperadamente não parecer decepcionada. O retrato não se parecia nada com ela.

O que achas?

Acho que devias limitar-te a vender apólices de seguro, anunciou a voz da mãe sabia-se lá de onde. Mattie nem tinha ouvido a mãe descer para a cave.

Acho que está lindo, disse Mattie, defendendo o pai.

O que tinha acontecido com aquele quadro? interrogava-se agora Mattie. Seria que o pai o levara com ele quando subitamente deixara o emprego e saíra da cidade? Quase deu um grito, mas parou a tempo, antes de estragar o raio X e ter de começar tudo de novo, desde o princípio. Era o que eu gostava de fazer com a minha vida, pensou Mattie. Começar de novo, desde o início. Fazer tudo certo desta vez. Encontrar um pai que não se fosse embora. Encontrar uma mãe que preferisse as pessoas aos animais de estimação. Escolher um marido que a preferisse a ela entre todas as mulheres. Descobrir alguma coisa nela que alguém pudesse amar.

- Lá vamos nós. Número quatro.

Está quase a acabar, pensou Mattie, enquanto as vibrações cada vez mais intensas da quarta série de raios X começavam. Era como se estivesse a prender a respiração debaixo de água, como se os seus pulmões fossem explodir. Imaginou-se encolhida na beira da piscina do pátio da sua casa, à espera que o formigueiro do pé passasse. Que dia estranho, pensou, lembrando-se da queda no tapete porque o pé esquerdo não encontrava o chão. Começara o dia com ideias de matar o marido e acabara quase a matar-se a si própria. Para não mencionar aquele pequeno episódio no tribunal.

Mattie gostaria de saber se Jake estaria à sua espera quando saísse do hospital, ou se já tinha feito as malas e partido. Como o seu pai, que partira à procura de locais mais agradáveis. De lugares desconhecidos. Pois ele é um bom companheiro. Deus me ajude. Preciso de sair daqui, pensou Mattie, antes de perder totalmente o juízo.

- A última.

Mattie respirou bem fundo, mas o seu corpo continuou rígido. Rigor mortis prematuro, pensou, muito adequado ao acto de ser enterrada viva. Preparou-se para a chegada da manada galopante, já antecipando as batidas em cima e dos lados da cabeça, temendo as vibrações, que viriam. Jake estaria no hospital?, interrogou-se. Teriam conseguido avisá-lo? Como teria ele reagido à notícia do acidente? Teria ficado preocupado? Teria ficado aliviado, ou desapontado, ao descobrir que ela estava viva?

As vibrações encheram-lhe a boca, invadindo-lhe os dentes, como a broca do dentista. A seguir a broca ia despedaçar-lhos e atacar as raízes, abrindo um buraco nas gengivas, directo ao cérebro. Falavam eles em hematomas escondidos. Não podia deixar que isso acontecesse. Tinha de sair dali. Precisava sair dali agora. Tanto fazia se a tortura estava quase a acabar, se ia estragar os raios X. Precisava sair daquela maldita máquina. Sair já.

- Pronto. Acabou - anunciou Noreen Aliwallia, e Mattie sentiu o corpo a ser cuspido da máquina e a tampa do caixão a ser-lhe tirada da cabeça.

Mattie engoliu o ar com a ânsia e a ferocidade de um bebé recém-nascido amamentando-se.

- Portou-se lindamente - disse Noreen Aliwallia.

- Então conta-me exactamente o que aconteceu - disse Lisa Katzman, em voz profunda e forte, num surpreendente contraste com a sua estatura minúscula como a de um passarinho.

O cabelo castanho e curto emoldurava-lhe o rosto fino e oval, cheio de sardas, o nariz era bem arrebitado na ponta, a boca tinha os cantos caídos formando uma expressão natural de reprovação, de modo que apenas os olhos revelavam os seus sorrisos. Estava sentada na beira da cama de Mattie, com uma bata branca por cima de uma camisola e calças compridas pretas, estas enfiadas nas curtas botas de cabedal da mesma cor. Fazia a sua melhor cara de médica, mas Mattie percebeu as marcas de preocupação nos doces olhos castanhos da amiga.

- Quem me dera saber.

Mattie ajeitou as almofadas nas costas e olhou para as gravuras decorativas com flores na parede verde-clara, atrás da cabeça de Lisa.

- Disseste ao neurologista que o teu pé ficou dormente?

- Disse. Foi uma coisa estranhíssima. Não consegui sentir o pedal do travão. Bati onde achava que ele devia estar, mas não senti nada. Foi assustador.

- Já te tinha acontecido antes?

- Aconteceu esta manhã. Deixei de sentir o chão e caí. O Jake está aqui?

- Já esteve. Precisou de voltar para o trabalho.

- Como é que ele estava?

- Jake? Bem. Preocupado contigo, é evidente.

- Eu sei, pensou Mattie.

- Então, esta tarde e esta manhã. Foram as únicas vezes em que coisas como essas te aconteceram?

- Bem, não. Já tinham acontecido antes. Sabes que às vezes os nossos pés ficam dormentes - a voz de Mattie foi-se sumindo. Porque estava Lisa a fazer estas perguntas? - Onde queres chegar?

- Quantas vezes? - perguntou Lisa, ignorando a pergunta de Mattie, torcendo a boca, ainda a sorrir com os olhos, procurando agir como se aquelas perguntas fossem apenas rotina. - Uma vez por semana? Todos os dias?

- Talvez algumas vezes por semana.

- E há quanto tempo vem isso a acontecer?

- Não sei. Há uns dois meses, talvez.

- Porque é que não me falaste nisso antes?

- Pensei que não fosse nada sério. Não posso estar sempre a telefonar por ninharias.

Lisa olhou para ela como se perguntasse, "desde quando"?

- Não estou a entender qual é o problema - continuou Mattie. - Não é costume as pessoas ficarem de vez em quando com os pés dormentes?

- Foi hoje a primeira vez que caíste?

Mattie assentiu fortemente com a cabeça. Estava a ficar cada vez mais aflita com aquela conversa e não tinha interesse nenhum em continuar. Onde estava Lisa Katzman, a sua amiga? Lisa Katzman, a médica, estava a começar a enervá-la.

- Já alguém falou com a Kim?

- Jake telefonou-lhe. Vai trazê-la mais tarde para a veres. Ele acha que ela deve ficar com a tua mãe até poderes voltar para casa. - com a minha mãe? Pobre miúda. Nunca me vai perdoar.

- Não vais ficar aqui tempo suficiente para ela nutrir um ódio muito sério. Jake disse-me que te riste alto no meio da sua alegação ao júri - disse Lisa, como se uma ideia se seguisse naturalmente à outra.

- Ele contou-te isso? Meu Deus, estava muito aborrecido?

- Pensei que tinhas resolvido não ir ao tribunal.

A expressão de Lisa dizia: para que pedes o meu conselho, se não o vais seguir?

Não pude evitar, respondeu Mattie com os olhos, e a conversa continuou silenciosa por uns segundos, sem necessidade de palavras.

- Porque te riste? - perguntou Lisa de repente.

- Não sei - respondeu Mattie sinceramente. - Aconteceu pura e simplesmente.

- Estavas a pensar nalguma coisa engraçada?

- Que me lembre, não.

- Começaste simplesmente a rir?

- Foi - concordou Mattie. - Porquê? O que é que isso tem a ver com esta situação?

- Já te tinha acontecido alguma vez?

- O que é que já me tinha acontecido alguma vez?

- Rires sem motivo. Ou chorar. Qualquer reacção que não combine com a situação.

- Aconteceu algumas vezes - respondeu Mattie, pensando no choro nos degraus do Instituto de Arte, na sensação de estar à deriva, mole, como um balão a perder ar lentamente.

- Nos últimos meses?

- Sim.

- E as tuas mãos? Alguma sensação nelas?

- Não - parou por um pouco. - Bem, de vez em quando atrapalho-me com as chaves.

- Como assim?

- Nem sempre entram na fechadura.

Lisa parecia alarmada e tentou disfarçar, tossiu com a mão em frente à boca.

- Algum problema para engolir?

- Não.

- Há alguma coisa que não me estejas a contar?

- Como o quê? - perguntou Mattie. - Sabes que te conto tudo - fez uma pausa e afastou alguns fios imaginários de cabelo da testa. Tinha contado a Lisa o último caso de Jake. - Achas que isto pode estar relacionado com o cansaço?

- Pode ser - Lisa chegou-se para a frente, segurou as mãos de Mattie e tentou forçar os lábios a formarem um sorriso.

- Vamos esperar pelos resultados da ressonância magnética.

- E depois, o que vai acontecer?

Lisa endireitou os ombros, assumiu a sua postura mais profissional.

- Vamos enfrentar uma coisa de cada vez, um dia depois do outro, está bem?

Mas o sorriso nos olhos de Lisa desapareceu e ficou apenas a preocupação.

 

DOIS DIAS DEPOIS JAKE FOI BUSCAR MATTIE AO HOSPITAL. Parecia perdida dentro dos jeans e da camisola que pedira para ele lhe levar de casa - muito magra, dorida, com uma delicadeza de movimentos tão grande que ele teve medo que ela se fosse abaixo antes de chegar ao carro. Sentiu-se pouco à vontade ao vê-la daquela forma, não por sentir a dor dela. Uma parte de si ainda sentia muita raiva e ficou contente por a ver sofrer, mas aquele tipo de fragilidade era uma espécie de dependência, e ele não queria Mattie dependente. Dele não. Já não queria.

Jake estremeceu sentindo o egoísmo daqueles pensamentos enquanto esperava que o auxiliar ajudasse Mattie a levantar-se da cadeira de rodas que o regulamento do hospital exigia que os doentes usassem até à saída. Mattie sorriu, um gesto experimental e simbólico que só acentuava o seu desconforto evidente, e arrastou os pés para perto dele, com manchas roxas esmaecidas no rosto, grandes círculos amarelos à volta dos olhos, como monóculos antiquados. Jake sabia que era ele que devia estar a ajudar Mattie, murmurando-lhe palavras suaves ao ouvido para a tranquilizar, mas a única coisa que conseguira articular fora um sorriso cansado e dizer algumas palavras distraídas, que ela estava muito bem para uma mulher cujo carro ficara feito num harmónio com ela lá dentro.

Jake segurou solicitamente o cotovelo de Mattie, acertando o passo com o dela, guiando-a lentamente até à porta da frente do hospital. Nesse mesmo momento Mattie levou a mão trémula aos olhos, protegendo-os da luz forte do sol do meio-dia.

- Espera aqui - Jake disse para ela no topo dos degraus da saída do prédio. - vou buscar o carro.

- Eu posso ir contigo - ofereceu-se ela, com a voz fraca.

- Não. Assim será mais rápido. Volto num instante. O carro não está muito longe, - e apontou vagamente para o estacionamento. - Venho já.

Dirigiu-se rapidamente para o estacionamento, com a cabeça baixa para se proteger do vento frio do Outono e localizou o BMW verde-escuro. Entrou para o carro já com o dinheiro na mão para pagar ao funcionário. Quando chegou, dois minutos depois, no máximo, Mattie já tinha descido as escadas e esperava por ele já na rua. Estava a afirmar a sua independência, dizendo-lhe que conseguia cuidar-se sozinha. bom, pensou ele. É exactamente o que queremos.

Por que é que tinha tanta compaixão por um assassino como Douglas Bryant e, curiosamente, nenhuma pela própria mulher? Não conseguiria superar a raiva que sentia pelo seu comportamento bizarro e demonstrar uma preocupação genuína pelo seu bem-estar? Obviamente Mattie estava tão confusa como ele quanto ao que tinha acontecido, apesar de não terem falado sobre o assunto. Além do mais, de que serviria agora conversar sobre tudo aquilo? Estava tudo acabado.

Como o casamento deles, ao fim do dia.

Já levara a maior parte das suas roupas para o apartamento de Honey, transferido os seus produtos de toilette para a casa de banho de baixo. Kim continuava em casa da mãe de Mattie. Quando voltasse no dia seguinte, já ele se teria ido embora. Claro que esperaria alguns dias para sair de vez, até Mattie ficar mais forte, até ter certeza de que podia

arranjar-se sozinha. Mais tarde, teria uma conversa com Kim, a explicar os motivos que o levavam a ir embora, tentando convencê-la das suas razões. Jake riu e parou o carro junto ao passeio, diante de Mattie, dando rapidamente a volta ao carro para lhe abrir a porta. Seria muito mais difícil convencer Kim do que qualquer júri. Ela era milimetricamente igual à mãe. Jake duvidava que tivesse alguma hipótese.

- Cuidado com a cabeça - avisou, ajudando Mattie a entrar no carro.

- Estou bem - disse ela.

Estava bem, repetiu Jake, aliviado. Não tinha nenhum osso partido, nenhum ferimento debilitante, nenhum hematoma que não desaparecesse até ao fim do mês seguinte. A ressonância magnética não acusara nenhuma hemorragia interna, nenhum tumor, nenhuma anormalidade de qualquer natureza.

- Não tenho nada na cabeça - tinha dito Mattie a rir ao telefone, obviamente aliviada, e o som do riso dela foi uma recordação amarga do escândalo que provocara.

- Estás cansada? - perguntou-lhe ele, pondo o carro em andamento e seguindo em direcção a Lakeshore Drive.

- Um pouco.

- Talvez durmas um pouco quando chegares a casa.

- Talvez.

Não disseram mais nada até chegarem a Sheraton Road, em Evanston. Como se teria deixado convencer a ir morar para aquele fim do mundo? pensou Jake, passando os olhos pelas imponentes mansões à esquerda e pela água gelada do lago Michigan, à direita. Distraído, olhou para o relógio e ficou surpreendido ao ver que eram quase duas horas. Imaginou o que estaria Honey a fazer, se também estaria a pensar nele.

- Achas que ela sabe? - Tinha-lhe perguntado de novo Honey naquela noite. - De mim - acrescentara desnecessariamente, ao ver que Jake não respondia. - Achas que foi por isso que fez aquele escândalo? Por despeito?

Ele abanou a cabeça. Quem podia saber porque é que as mulheres faziam aqueles escândalos?

- Ela é muito bonita.

- Acho que sim - dissera ele.

- O que vai acontecer quando sair do hospital? - perguntou Honey, deitada a seu lado na cama.

- O que é que vai acontecer agora? - estava Mattie a perguntar, sentada ao seu lado no banco da frente do carro.

- O quê?

Jake percebeu que segurava o volante com tanta força que ficara com cãibras nos dedos. Na verdade Mattie era capaz de ler os pensamentos. Conseguia penetrar-lhe o cérebro sempre que queria e extrair de lá qualquer pensamento perdido que ele queria deixar fugir da sua mente. Teria de ser mais cuidadoso. Nem os seus pensamentos estavam seguros.

- Vais voltar para o escritório depois de me deixares em casa?

- Não. Não era o que eu planeava fazer.

- Ainda bem - disse ela simplesmente.

Nada de "Por favor, não fiques em casa por minha causa". Nada de "Não é necessário". Nada de falsos sentimentos. Nenhuma palavra que achasse que ele gostaria de ouvir.

Não lhe ia facilitar as coisas.

- Parabéns, mais uma vez - disse Mattie em voz baixa, a olhar fixamente para o colo.

Tinha telefonado do hospital para o escritório dele logo depois de terem anunciado o veredicto. Apenas vinte e sete horas depois de o júri se retirar para deliberar, Douglas Bryant era um homem livre, e Jake Hart tinha sido um advogado brilhante.

- Eu soube da boa notícia - disse Mattie em voz baixa. - Quero dar-te os parabéns.

Jake evitara na altura as felicitações e, já ia fazer a mesma coisa no presente.

- Sinto muito... - começou ela a dizer.

- Não - interrompeu ele.

- por ter causado aquele escândalo.

- Já acabou.

- Não sei o que me deu.

- Agora já não importa.

- A Lisa acha que pode haver uma explicação médica.

- Uma explicação médica? - Jake sentiu a bílis a subir-lhe pela garganta, envolvendo-lhe a voz em escárnio. Como é que Mattie ousava tentar encontrar uma desculpa médica para o seu comportamento inadequado? - Essa é boa.

- Ainda estás com muita raiva - disse Mattie, afirmando o óbvio.

- Não. Não estou. Esquece.

- Acho que devemos conversar sobre isto.

- O que é que há para dizer? - perguntou ele.

O espaçoso BMW começou a parecer uma pequena cela. Será que ela sempre inventava as coisas nos lugares impróprios onde ele não podia simplesmente levantar-se e ir-se embora? Seria por isso que muitas vezes esperava até estarem dentro do carro para ter aquele tipo de discussões? Porque assim ele não se podia ir embora?

- Deves saber que eu jamais te envergonharia daquela maneira de propósito.

- Devo? - perguntou ele, sentindo que estava a ser sugado, apesar das suas melhores intenções. - Porque é que foste ao tribunal?

- Porque é que me pediste para não ir? - contrapôs.

- Protesto - disse ele. - Irrelevante e discutível.

- Desculpa - disse Mattie depressa. - Não estava a tentar aborrecer-te.

Não precisas de tentar, pensou Jake, mas não o disse, resolvendo que o melhor a fazer era não dizer nada até chegarem a casa. Estendeu a mão, aumentou o volume do rádio, e viu com o canto do olho a cara que Mattie fez. Uma causa médica para o atrapalhar no tribunal, pensou espantado. Já devia ter saído de casa.

Depois de ter dormido a sesta Mattie notou que as roupas do marido já não estavam no quarto.

Jake ouviu-a lá em cima a andar de um lado para outro, abrindo e fechando as portas dos armários, puxando as gavetas da cómoda. Imaginou a expressão de espanto a deformar-lhe as suas feições bem feitas, a criar rugas na testa, a entortar a curva suave dos seus lábios.

- Jake? - ouviu Mattie chamar e os passos dela na escada. Estava sentado no mais pequeno dos dois sofás de couro cor de vinho, no que fora originalmente uma sala íntima mas agora era o escritório dele, diante de uma lareira elegante, com lados de mármore e estantes embutidas dos dois lados, os livros muito bem arrumados por ordem alfabética, de um lado a ficção, do outro biografias e livros de Direito. Havia vários diplomas universitários pendurados nas paredes forradas a madeira, um tapete bordado com um motivo floral em tons de azul e cor-de-rosa sobre o soalho de madeira. A secretária, de carvalho, feita à mão, por encomenda, com um computador que ficava no canto oposto do escritório, de frente para uma parede de janelas com vista para a rua larga e toda arborizada. Levando tudo em conta, era um escritório ao mesmo tempo prático e agradável de se ver, uma sala que servia para trabalhar, ou para descansar. Mattie tinha feito um óptimo trabalho. Devia tê-lo usado mais, pensou, lutando contra a sensação indesejada de culpa.

Inocente!, apetecia-lhe pular e gritar. Sou inocente. Inocente. Inocente.

- O que está a acontecer, Jake? - perguntou Mattie ao pé da porta.

com certa relutância, ele virou a cabeça para ela e um tremor involuntário perturbou a sua postura sempre plácida, uma postura que estava a praticar desde o momento em que Mattie tinha ido descansar, havia apenas algumas horas. Ela precisaria de parecer tão vulnerável?, ficou a pensar, a olhar para mais do que o inchaço sob os olhos dela. O sono escurecera os hematomas, aprofundara os pequenos cortes no rosto e no pescoço. Agora provavelmente não era a hora certa para falar. Talvez devesse esperar até ela estar completamente recuperada, pelo menos até os hematomas desaparecerem.

Acontece que nessa altura teria passado mais um mês terá passado com a sensação de culpa, de solidão, de prisão, de ressentimento, e até lá outra coisa qualquer aconteceria para o prender ali. E não podia correr esse risco. Se ficasse, sufocaria. Se não saísse, se não saísse agora, morreria. Era muito simples.

De certa forma a estranha manifestação de Mattie no tribunal tinha sido uma bênção disfarçada. Por fim tinha-lhe dado coragem para fazer o que tinha de ser feito. Não devia estar a sentir-se culpado. Só ia dar voz ao que os dois já pensavam havia anos.

Jake ficou de pé e fez sinal para Mattie sentar num dos sofás, mas ela abanou a cabeça dizendo que não, que preferia ficar de pé. Teimosa como sempre, pensou Jake. E dura. Mais dura do que ele. Ela ficaria muito bem.

- Onde estão as tuas coisas? - perguntou ela.

Jake afundou-se de novo no sofá e ouviu o barulho do couro enquanto procurava uma posição confortável. Talvez Mattie não precisasse de se sentar, mas ele certamente precisava.

- Penso que é melhor sair de casa.

Toda a cor se esvaiu do rosto dela, acentuando ainda mais as manchas em tons contrastantes que lhe marcavam a pele, de tal forma que Mattie parecia um retrato pintado por um daqueles pintores expressionistas alemães dos quais ela tanto gostava.

- Se é por causa do que aconteceu no tribunal...

- Isto não tem nada a ver com o que aconteceu no tribunal.

- Eu já pedi desculpa...

- Não é nada disso.

- Então o que é? - perguntou ela, os lábios mal se moviam, com a voz monótona.

- A culpa não é tua. Não é de ninguém - disse ele, tentando encontrar o seu lugar no guião que vinha a ensaiar havia semanas.

- Então o que é? - repetiu ela.

Jake viu o corpo de Mattie a curvar-se para a parede, como se servisse de apoio. Iria desmaiar?

- Não achas melhor sentares-te?

- Eu não me quero sentar - disse Mattie, cuspindo cada palavra no espaço entre os dois. - Não acredito que tenhas resolvido fazer isto agora.

- Não me vou embora agora. Ficarei alguns dias - ele recuou enquanto ela afastava as palavras dele com um movimento da mão, abanando a cabeça.

- Acabei de sair do hospital, pelo amor de Deus. Sofri um acidente de carro, se é que te esqueceste. Dói-me quando respiro.

Dói-me também quando respiro, queria Jake gritar. Em vez disso, disse:

- Sinto muito.

- Sentes muito?

- Gostaria que tudo fosse diferente.

- Isso é óbvio - disse Mattie, em tom zombeteiro, enquanto puxava o cabelo com a mão ferida com tanta força que Jake pensou que ia arrancá-lo da cabeça. - Então vamos ver se entendi bem - começou ela sem lhe dar hipótese de protestar. - Estás a deixar-me, mas não tem nada a ver com o escândalo que armei no tribunal. Isso provavelmente foi apenas o catalisador. Não é culpa de ninguém, não se trata de culpa. Certo? E sentes muito ter de dizer isto quando eu regresso do hospital, sabes que o momento é péssimo, mas nunca haverá uma boa altura para este tipo de argumentos. Como é que estou a ir até aqui? Ah, é, não temos sido felizes há anos, para começo de conversa, só nos casamos por causa da Kim, fizemos o melhor possível, quinze anos não é nada mau. Devíamos

- orgulhar-nos, não sentir tristeza. Certo? Isto vai funcionar muito bem para nós os dois. Na verdade, provavelmente até me estás a fazer um favor - parou um pouco e levantou uma sobrancelha. - O que dizes? Achas que estou no caminho certo?

Jake libertou dos pulmões uma profunda rajada de ar e não disse nada. Tinha sido uma patetice pensar que podia sair daquela discussão ileso. Mattie tinha de arrancar a sua libra de carne. Quando saísse pela porta da frente estaria tão debilitado e magoado quanto ela. Mattie foi até a lareira e encostou-se, de costas para ele.

- Vais morar com a tua amiga?

- Jake sentiu o corpo gelado.

- O quê?

- Acho que ouviste o que eu disse.

Ele olhou para a janela, sem saber muito bem como responder. O que estava a acontecer? Até o acesso de riso de Mattie era, de certa forma, esperado. Mas não aquilo. Não estava no guião. O que é que deveria dizer? Até onde deveria contar-lhe? O que é que ela quereria realmente saber? O que é que ela sabia?

- Não sei bem se entendi - disse ele, a tentar ganhar tempo.

- Mattie deu meia volta, os olhos em fogo, preparada para a

batalha.

- Ora, por favor. Não insultes a minha inteligência. Achas que não sei sobre a tua última namorada?

Como é que ela podia saber?, pensou Jake, a imaginar como tinha entrado tão mal preparado naquele confronto. Um bom advogado não deveria manter sempre em dia o seu trabalho de casa? Não teria chegado à mesa com todos os factos pertinentes à mão, de modo a não ter surpresas desagradáveis? Mesmo assim, como é que Mattie poderia saber? Estaria apenas a fazer conjecturas? E ele? Deveria continuar a fingir ignorância? Acusá-la de estar a fazer bluff?

- Como é que foi que descobriste? - perguntou, optando pela franqueza total.

- Da mesma maneira que sempre descubro - abanou a cabeça num gesto repleto de desprezo. - Para um advogado tão inteligente és incrivelmente estúpido.

Jake sentiu as costas tensas.

- Esperava que não levássemos isto para o lado pessoal - disse

- Não levar para o lado pessoal? Vais deixar-me por outra mulher, e pensas que isto não é pessoal?

- Eu esperava que não chegássemos ao ponto de trocar insultos. Que ainda pudéssemos ser amigos - declarou ele sem muita convicção.

- Queres que sejamos amigos?

- Se for possível.

- E quando é que fomos amigos? - perguntou ela incrédula.

Ele olhou para o chão, concentrado nos arcos e reviravoltas dos

nós da madeira escura.

- Isto não te diz nada?

- Não. O que é que me devia dizer?

- Mattie - Jake começou a falar e parou. O que é que ia dizer? Ela tinha razão. Jamais foram amigos. Porque diabo iam começar agora?

- Há quanto tempo é que sabes?

- Desta última? Há pouco tempo - encolheu os ombros, fez uma careta, andou até à janela e ficou a olhar fixamente para a rua. - Por falar nisso, como era o quarto no Ritz-Carlton? Sempre foi um dos meus hotéis preferidos.

- Mandaste alguém seguir-me?

Mattie riu-se, um som rouco e furioso que arranhou o ar como as garras de um felino, deixando marcas quase visíveis.

- Irrelevante e discutível - disse ela asperamente, usando como armas as próprias palavras dele.

- O que é que planeavas fazer quanto a isto?

- Ainda não tinha resolvido.

Houve uma longa pausa e nenhum dos dois falava. Então ela sabia do romance. Jake ficou a imaginar se Mattie tinha visto Honey no tribunal, se fora isso que lhe tinha provocado o acesso de riso. Seria assim tão vingativa? Ou a gargalhada teria sido espontânea como Mattie dizia, tão perturbadora para ela quanto para ele? Jake descobriu que não sabia e fez uma careta sentindo a sua própria dor visível. Não conhecia bem a mulher com quem estava casado havia

quinze anos.

- Talvez o teu subconsciente tenha inventado tudo - disse Jake simplesmente.

- Talvez - concordou ela calmamente, virando-se devagar para ele, recortada contra a luz do fim do dia.

Mesmo com aquela luz, Jake conseguiu ver que a raiva tinha desaparecido dos olhos dela. E aquele desaparecimento repentino suavizara a sua postura, abrandara o arco rígido dos seus ombros. Parecia mais pequena, mais conformada e vulnerável do que em qualquer outro momento de que Jake se pudesse lembrar.

- Então acabou - foi tudo o que ela disse.

Jake não tinha certeza do que provocara aquela mudança súbita na atitude de Mattie, se tinha reconhecido que ele tinha razão, ou que não ganharia nada a discutir, ou se simplesmente não tinha forças para continuar a protestar. Talvez estivesse aliviada, como ele, pelo facto de finalmente estar tudo claro, para poderem seguir as suas vidas. Ela ainda era jovem. E indiscutivelmente adorável, mesmo coberta de hematomas. Ele virou-se para o outro lado, desanimado com o despertar inesperado das suas partes íntimas. Pelo amor de Deus, o que se passaria com ele? Não fora exactamente aquilo que gerara toda a confusão em que estavam metidos?

- Penso que seja agora a melhor altura para saíres - disse Mattie.

- O quê?

Jake ficou confuso com a repentina reviravolta nos acontecimentos, a sua mente rodopiava e girava como um veleiro apanhado por um remoinho inesperado. Ele já tinha dito que ia ficar mais uns dias em casa, até ela se sentir mais forte? Não tinha demonstrado que apesar de tudo ainda estava disposto a ser responsável, cuidadoso e generoso? Como podia ela repudiá-lo daquela maneira?

- Não há motivo algum para ficares - disse Mattie calmamente. - Eu estou bem.

- E se eu ficar até amanhã... - assentiu ele.

- Prefiro que não fiques. É verdade, não é preciso.

Jake continuou sentado, completamente imóvel, por alguns minutos, depois levantou-se do sofá e ficou parado no meio da sala, sem saber o que devia fazer naquele momento, se devia continuar o seu plano, insistir para ficar, se devia dizer adeus e sair porta fora ou se lhe devia dar um beijo de despedida.

- Adeus, Jake - disse Mattie com voz firme, adivinhando-lhe mais uma vez os pensamentos, tomando a decisão por ele. - Estás a fazer o que é certo - disse ela, deixando-o estupefacto de surpresa. - Talvez não seja pelo motivo certo. Mas é aquilo que é certo.

Jake sorriu, dividido entre os impulsos antagónicos de a tomar nos braços, ou dar pulos de alegria. Estava tudo acabado, estava livre e, exceptuando alguns momentos de tensão, tinha sido relativamente indolor, até fácil. Claro que aquilo era apenas o princípio. Ainda não tinham começado a falar de dinheiro, de divisão de bens. Quem sabe o que poderia acontecer quando houvesse advogados pelo meio?

Advogados, pensou ele, saindo do escritório e cruzando o grande vestíbulo central direito à porta da frente. Não há dúvida que são de uma raça diferente.

- Ligo-te amanhã - disse, enquanto Mattie, mesmo atrás dele, saltou para a frente para abrir a porta, como se Jake fosse uma visita na casa dela, e, por sinal, uma visita indesejada. Antes mesmo de chegar perto do carro, Jake ouviu a porta da frente a fechar-se atrás de si.

 

- COMO É ISSO? DEIXASTE-O SIMPLESMENTE IR EMBORA? ESTÁS louca?

- Estou óptima, Lisa. Não havia motivo nenhum para ele ficar.

- Nenhum motivo para ele ficar? - Lisa afastou da testa uma madeixa de cabelo solto. Mattie sabia que o gesto nascia da frustração, mais em relação a Mattie do que ao cabelo, que estava sempre perfeito.

- Que tal o facto de teres sido vítima de um grave acidente de automóvel, de teres sofrido um traumatismo, de acabares de chegar hoje mesmo do hospital?

- Eu cá me arranjo.

- Tu arranjas-te - repetiu Lisa, confusa, levantando-se da cadeira da mesa da cozinha para servir mais uma chávena de café.

Assim que terminara as consultas, Lisa tinha ido a Evanston ver como Mattie estava, pelo que ainda tinha a bata branca vestida por cima da camisola e das calças azul-marinho. Mattie fez café, descongelou uns queques de banana e arando, e calmamente comunicou à sua amiga horrorizada que Jake e ela tinham resolvido separar-se.

- E se tu caíres? - perguntou Lisa, pergunta essa que não era irracional, tendo em consideração que Mattie já havia tropeçado depois de Jake ter saído, apesar de não ter contado isso a Lisa.

- Levanto-me - respondeu Mattie.

- Não sejas tão independente.

- Não fiques tão preocupada.

- Não sejas parva.

Mattie sentiu a inesperada repreensão com a força de uma palmada na mão. Doeu e encheram-se-lhe os olhos de lágrimas de raiva. Lisa Katzman podia parecer um pequeno pardal, pensou Mattie, mas tinha garras de águia.

- Tem muito jeito para tratar de doentes, doutora. É assim tão feia com eles?

Lisa cruzou os braços magros sobre o peito liso, apertou os lábios e respirou fundo.

- Estou a falar-te como amiga.

- Tens a certeza?

Lisa Katzman voltou para a mesa sem o café. Sentou-se e pegou nas mãos de Mattie.

- Está bem, admito que a minha preocupação não é só a nível pessoal.

- É por isso que eu não estou a perceber - disse Mattie, sem saber se realmente queria saber qual era o assunto, especialmente agora. - O neurologista disse que a ressonância magnética não acusou nada. Não havia nada de errado.

- O exame de RM não acusou nada - concordou Lisa.

- Não há nada de errado comigo - repetiu Mattie, à espera do eco da amiga.

- Há um outro exame que quero que faças.

- O quê? Porquê?

- É só para eu juntar umas pontas soltas.

- Que pontas soltas? Que tipo de exame?

- Chama-se electromiografia.

- O que é isso?

- A electromiografia testa a actividade eléctrica dos músculos começou Lisa. - E, infelizmente, para fazer isso, é preciso inserir agulhas com eléctrodos directamente nos músculos, o que pode ser um pouco desagradável.

- Um pouco desagradável?

- Quando as agulhas entram nos músculos parece que eles estalam, parecem pipocas a estalar - explicou Lisa. - Pode ser pouco confortável.

- Ah, é? Pensas que sim? - perguntou Mattie, sem se preocupar em disfarçar o sarcasmo.

- Eu penso que não vais ter problemas - disse Lisa.

- Penso que vou dispensar esse exame.

- Eu penso que devias pensar nisso.

Mattie esfregou a parte de cima do nariz, procurando manter afastada a dor de cabeça que aumentava atrás dos olhos. Não estava a gostar mais da conversa do que da que já tinha tido com Jake. Desejava cada vez mais estar de volta aos degraus do Instituto de Arte com Roy Crawford e a sua enorme cabeça lasciva.

- O que está a acontecer, Lisa? Que terrível doença pensas que tenho?

- Eu não penso que tenhas - disse Lisa, com a voz calma, sem deixar transparecer nada. - Só estou a ser mais cautelosa porque és minha amiga.

- Só estás a ser mais cautelosa - repetiu Mattie.

- Quero eliminar alguns possíveis problemas musculares. Gostava de tentar marcar as coisas para a semana que vem, está bem?

Mattie sentiu uma gigantesca onda de cansaço a percorrer-lhe o corpo. Não queria discutir. Nem com o marido, nem com a sua melhor amiga- Só queria arrastar-se para a cama e pôr fim àquele dia horrível.

- Quanto tempo leva esse exame?

- Cerca de uma hora. Às vezes mais.

- Quanto tempo mais? - perguntou Mattie.

- Pode levar duas, de vez em quando até três horas.

- Duas ou três horas? Queres que eu vá ao consultório e deixe um médico sádico enfiar-me agulhas com eléctrodos nos músculos durante duas ou três horas?

- Normalmente só dura uma hora - repetiu Lisa, procurando parecer mais calma mas falhando redondamente.

- Isso deve ser alguma piada de mau gosto, não?

- Não é piada nenhuma, Mattie. Eu não te pediria para o fazeres se não achasse que é muito importante.

- vou pensar nisto - disse Mattie depois de uma longa pausa na qual, de propósito, não pensou em absolutamente nada.

- Prometes?

- Eu não sou nenhuma criança, Lisa. Já te disse que vou pensar. É exactamente o que estou a fazer.

- Afligi-te - disse Lisa suavemente. - Sinto muito. Não te queria fazer isso.

Mattie assentiu com a cabeça, sentindo-se tão indefesa como nos segundos antes do acidente, como se ainda estivesse presa dentro do carro em velocidade, sem conseguir encontrar o travão. Não conseguir parar; não poder abrandar. Não importava o que fizesse, por mais que tentasse, ia bater.

Light my fire. Light my fire. Light my fire.

- Queres que eu fale com o Jake? - perguntou Lisa.

- Não quero que fales com o Jake coisa nenhuma - disse Mattie Asperamente, uma nova raiva a dar ao impulso às palavras. - Por que é que queres falar com o Jake?

- Só para o manter preso.

- Foi ele que optou por se soltar, lembras-te?

- Filho da mãe - murmurou Lisa.

- Não - protestou Mattie. - Bem, sim.

Ela riu e ficou agradecida quando Lisa se riu com ela. Se Lisa estava a rir, então as coisas não eram assim tão más como a sua atitude indicava. Não havia nada de grave com ela. Não teria de fazer aquele exame horrível e agressivo, em que enfiavam directamente agulhas nos músculos e os músculos estalavam, como pipocas, e mesmo se o fizesse, o exame não revelaria nada, tal como a RM.

- Tive uma ideia - anunciou Lisa. - O que achas se eu dormir cá esta noite?

- O quê? É uma péssima ideia.

- Ora, vamos. O Fred pode tomar conta das crianças por uma noite. Será como nas festas de pijama que dávamos quando éramos adolescentes. Podemos pedir uma pizza, ver televisão, fazer penteados uma à outra. Será uma óptima ideia.

Mattie sorriu com a generosidade da amiga.

- Eu estou bem, Lisa. É verdade. Não precisas de passar aqui a noite comigo. Mas obrigada. Agradeço a oferta.

- Só não estou a gostar da ideia de ficares sozinha na tua primeira noite depois de saíres do hospital, é só isso.

- E se eu quiser ficar sozinha?

- Queres?

Mattie pensou seriamente na pergunta.

- Quero - disse por fim, com o corpo todo a gemer de cansaço. - Sim, quero mesmo.

A casa nunca lhe parecera tão grande, tão vazia, tão silenciosa.

Depois de Lisa se ter ido embora, Mattie andou de um lado para outro como se estivesse em transe, alisando as paredes amarelo claro, a admirar a decoração como se estivesse a vê-la pela primeira vez. Aqui temos a sala de jantar, com espaço suficiente para acomodar confortavelmente doze pessoas a jantar, algo que qualquer mulher novamente solteira precisava desesperadamente. E aqui a espaçosa sala de estar, completa, com um sofá bastante grande de camurça bege claro, perfeito para o homem que trabalha em casa, só que, é evidente, o homem da casa já não estava em casa.

Onde é que estás, Jake Hart? ficou Mattie a imaginar, sabendo a resposta, sabendo que ele estava com ela, com o seu novo amor, no apartamento dela, ou talvez até num romântico quarto do Ritz-Carlton, celebrar a liberdade redescoberta e a fazer amor, a beber champanhe a divertir-se, enquanto Mattie vagueava sem destino pela casa grande vazia nos arredores, preocupada com um qualquer exame idiota que faria com que os seus músculos estalassem.

Mattie deu a volta no grande vestíbulo central uma vez, duas, a seguir um círculo menor, depois menor ainda. Estreitando os meus horizontes, pensou. Tropeçou e interrogou-se sobre se ficaria com a casa, ou se os seus horizontes iriam encolher até ficarem do tamanho

de um apartamento pequeno, de dois quartos.

Girou o pé dormente e foi aos pulos para a escada que ficava logo à direita do escritório de Jake, sentou-se no primeiro degrau e massajou o pé até o formigueiro passar.

- Má circulação, é só isso. É de família.

Seria? Dirigiu-se à cozinha, sem saber o que fazer a seguir.

- Posso fazer tudo o que quiser - anunciou para a casa vazia. - Posso comprar um forno a gás novo. Posso ver televisão até às três da manhã. Posso ficar a falar ao telefone toda a noite. Posso ler o jornal e deixá-lo espalhado em cima do tapete branco no quarto dos donos da casa, agora que o dono não já cá não mora. Posso até ver televisão, ler o jornal e falar ao telefone ao mesmo tempo - continuou em voz alta, a rir. - E ninguém me pode impedir. Ninguém pode abanar a cabeça em sinal de reprovação. Ninguém me pode julgar, nem achar que sou carente.

Carente, repetiu Mattie em pensamento. Quais seriam, exactamente, as suas carências?

O que necessitaria da vida, agora que Jake já não fazia parte dela?

Compreendera quais eram os planos dele no momento em que abrira o armário do quarto e vira que a maior parte da roupa dele já não estava no devido lugar. Mesmo assim, desprezara a prova que tinha diante dos próprios olhos, como havia anos vinha a desprezar esse tipo de provas, a vasculhar a mente à procura de outras explicações... ele tinha mandado tudo para a lavandaria, tinha resolvido remodelar todo o guarda-roupa, tinha mudado as coisas para o quarto de hóspedes, para deixar mais espaço para ela, enquanto recuperava. A lista de desculpas improváveis descera a escada com ela e entrara no escritório de Jake, onde ele estava à sua espera. "Que se passa, Jake?" perguntara da porta. "Onde estão as tuas coisas?" "Acho que é melhor eu sair de casa", respondera-lhe ele.

Só isso. Simples. Objectivo.

E depois os enfeites desnecessários, que não era culpa de ninguém e que a situação também não era culpa de ninguém, que sentia muito, que esperava que ainda pudessem ser amigos.

Mattie agarrou-se ao corrimão de madeira e ficou de pé, pondo um pé à frente do outro com o maior cuidado, subindo as escadas até ao quarto. Talvez decorasse a casa, pensou, ao chegar ao grande hall do segundo andar, que era um reflexo do outro, lá em baixo. Pintasse as paredes de cor de laranja berrante, a cor de que Jake menos gostava, Substituísse todo aquele couro masculino por chintz florido, bem feminino. Deitasse fora as persianas brancas e lisas das janelas e pendurasse em vez delas metros e metros de renda, apesar de detestar chintz e renda. Mas isso não vinha ao caso. O facto era que Jake detestava essas coisas, e a casa agora era dela, para fazer o que bem entendesse. Ninguém mais lhe poderia dizer o que estava a fazer, nem como o ia fazer. E muito menos Jake. Não precisava de segundas opiniões. Não tinha de consultar, nem de se comprometer com mais ninguém.

Pelo menos por enquanto. Não, até Jake voltar com a sua lista de exigências. Ela ia ver no que ia dar toda aquela conversa amável sobre amizade, quando tentassem entrar num acordo. Pensou na amiga Terry, no inferno que o ex-marido a fizera passar, recusando-se a sair de casa até ela concordar em desistir do direito de receber uma parte da pensão dele, arrancando cada centavo, sempre atrasado nos pagamentos da pensão dos filhos. Será que seria assim com ela depois da consciência culpada de Jake sossegar?

Mattie ganhava bem como marchand, estava habituada a comprar o que queria, tinha até conseguido economizar algum dinheiro. Sempre tivera a esperança de usar esse dinheiro indo com Jake a Paris, fazer a viagem adiada de lua-de-mel mas parecia que já não ia haver lua-de-mel. Gostaria de saber até onde chegaria com aquele dinheiro. Quanto tempo iria durar? O dinheiro nunca tinha sido problema durante o seu casamento com Jake. Seria que isso tudo ia mudar quando ele fosse sócio da firma? Quereria ele ficar com tudo para a nova mulher, para a sua nova vida?

Mattie entrou no quarto e ligou a televisão, ouvindo o som de tiros seguidos a encher o ar, obliterando estes desagradáveis pensamentos. Olhou para a enorme cama, com o edredão azul-claro, enrolado da sesta que ali tinha dormido, como se ainda houvesse alguém lá debaixo.

- Posso dormir em qualquer lado da cama - observou, sentando-se de propósito no lado de Jake, sentindo o cheiro dele, que insistia em permanecer na almofada. Atirou a almofada para o chão e depois pisou-a ao levantar-se da cama.

- Posso fechar a maldita janela.

Depois de mais de quinze anos a congelar até à morte todas as noites, porque Jake insistia em dormir com a janela aberta, encaminhou-se para lá e fechou-a com toda a força e autoridade.

Mattie encontrou o comando da televisão no sofá estofado de bombazina azul ao lado da cama.

- É todo meu - sussurrou, apertando o botão com o polegar para sintonizar os canais ficando a vê-los passar e a desaparecerem antes de qualquer imagem ficar registrada no seu cérebro. Largou o comando e foi para a casa de banho, tirou os jeans e a camisola larga e encarou o seu reflexo na parede de espelhos que rodeava o lavatório de porcelana branca. A primeira coisa que tenciono fazer é livrar-me de todos estes espelhos.

Tirou o soutien e as cuecas e ficou a olhar com tristeza para o seu corpo nu, todo coberto de hematomas.

- Ah sim, vão ficar todos em volta do quarteirão - começou a encher a banheira. - vou usar toda a água quente, - anunciou em voz alta, e o som ricocheteou pelo revestimento de mármore cor de amêndoa das paredes, ecoando com força nos seus ouvidos. vou usar toda a água quente e depois inscrever-me num manicómio, pensou, e o que agora era já um formigueiro muito familiar voltou-lhe à sola do pé direito.

Mattie foi a coxear até à sanita, baixou o assento e sentou-se a massajar o pé. Só que desta vez o formigueiro não passava, nem passados alguns minutos, e teve que ir de gatas pelo chão frio para fechar a água da banheira antes que transbordasse. Teve uma visão de si própria a gatinhar numa pequena nesga do espelho que não estava embaciado e desviou os olhos nesse preciso momento.

- É má circulação, é só isso - disse ela, entrando com todo o cuidado na água quente, vendo a pele a ficar vermelha.

Vermelha, roxa, amarela e castanha, pensou Mattie, contando as cores, o seu corpo parecia uma tela. Fechou os olhos, apoiou a cabeça na beira da banheira, com a água a lamber-lhe os arranhões do queixo, como se lembrava que os cães lambiam o rosto da mãe.

Era estranho estar em casa sem Jake.

Não é que não estivesse habituada à ausência dele. Jake trabalhava a horas impossíveis, na verdade nunca estava ali, nem quando se sentava mesmo ao lado dela. De vez em quando viajava em trabalho e ela passava a noite sozinha na cama de casal. Mas agora era diferente. Desta vez não ia voltar.

Logo quando ele anunciara que se ia embora, Mattie teve a sensação de levar um murro no estômago, de um punho invisível. Precisara de toda a sua energia, de toda a sua força de vontade para não se curvar para a frente e gritar. Porquê? Não era um alívio ter tudo finalmente a limpo, não passar todos os dias à espera que a guilhotina caísse? Sim, ficaria solitária. Mas os últimos quinze anos tinham-lhe ensinado que não havia maior solidão do que um casamento infeliz.

O telefone tocou.

Mattie não sabia se deveria atender, acabou por ceder, pegou na toalha e foi a coxear até ao telefone, que ficava ao lado da cama de Jake. Talvez fosse Lisa, a ligar novamente para verificar como ela estava. Ou Kim. Ou Jake, pensou ela, pondo o telefone ao ouvido.

- Está?

- Martha?

O nome cortou-lhe a respiração, como um assaltante armado com uma faca. Mattie afundou-se na cama, ferida antes mesmo da conversa começar.

- Mãe - disse ela, com medo de pronunciar o seu nome.

- Não vou ocupar-te por muito tempo - disse a mãe. Mattie traduziu rapidamente e percebeu que a mãe não queria ficar muito tempo ao telefone. - Só estou a telefonar para saber como é que estás.

- Estou bem, obrigada - disse Mattie, por cima do barulho dos cães a latir em fundo. - E tu?

- Bem, como sabes, envelhecer não é muito agradável.

Mal acabaste de fazer sessenta anos, pensou Mattie, mas não o disse. Para quê?

- Desculpa não ter ido ver-te ao hospital. Sabes como eu sou com os hospitais.

- Não precisas de te desculpar.

- Jake disse-me que ainda estás muito em baixo.

- Quando é que falaste com Jake? - perguntou Mattie.

- Ele veio buscar a Kim para jantar fora.

- Ah, sim?

- Há mais ou menos uma hora.

- Ele disse-te alguma coisa?

- O quê, por exemplo?

- Como vai a Kim? - quis Mattie saber, mudando de assunto.

- É uma rapariga adorável - disse a mãe, com o tipo de emoção que normalmente dedicava aos cães. - Ajudou-me muito quando a LUCy teve a ninhada.

Mattie quase deu uma gargalhada. É certo que tinha de haver uma ligação/ pensou, girando o pé direito, pois o formigueiro insistente recusava ir-se embora.

- Olha, mãe, apanhaste-me na banheira. Estou aqui de pé, toda molhada.

- Bem, então é melhor desligar - Mattie sentiu o alívio na voz da mãe. - Telefonei-te só para saber como estavas.

Eu estava bem, pensou Mattie.

- Claro que estou bem. Até logo, mãe. Obrigada por me teres telefonado.

- Até logo, Martha.

Mattie desligou o telefone e transferiu todo o seu peso para o pé direito dormente, suspirando de alívio quando sentiu o tapete sob os dedos.

- Claro que estou bem - repetiu, voltando para a casa de banho e entrando de novo na banheira, com a água menos quente, embora boa como antes. - Claro que estou bem.

 

- ESTÁS BEM? - KIM ACLAROU A GARGANTA NUMA TENTATIVA vã de fazer com que a voz parasse de lhe tremer. Porque estava a fazer aquela pergunta?

A resposta não era óbvia? Nunca tinha visto a mãe tão mal. A pele estava quase transparente por baixo da paleta de manchas roxas esmaecidas. Os seus olhos azuis, normalmente vibrantes, estavam cobertos por uma névoa de medo e dor. O fantasma de antigas lágrimas deixara riscos tortuosos na maquilhagem que tinha aplicado com tanto cuidado poucas horas antes. As mãos tremiam, os passos eram curtos e inseguros. Kim nunca tinha visto a mãe tão indefesa. Precisou de toda a sua força para não começar a chorar.

- Mãe, estás bem?

Diz que estás, diz que estás, diz que estás.

- A tua mãe precisa de descansar uns minutos - ouviu alguém dizer.

Só então notou a mulher corpulenta ao lado da mãe. Teria de parecer tão saudável?, pensou Kim, zangada, interpretando a pele brilhante cor de azeitona e os cintilantes olhos negros da mulher como uma espécie de afronta, como se, com toda aquela saúde tão óbvia, de alguma forma estivesse a roubar a saúde da sua mãe.

- Quem é a senhora? - perguntou Kim.

- Rosie Mendoza - respondeu a mulher, apontando para o cartão de identificação do hospital que usava pendurado ao pescoço e conduzindo Mattie para uma cadeira das cerca de doze que estavam alinhadas junto à parede do corredor do quarto andar do hospital. - Assistente do Dr. Vance.

- A minha mãe está bem?

- Estou bem, querida - sussurrou Mattie, apesar de não parecer nada bem. Parecia fraca, assustada e com muitas dores.

- Só preciso de me sentar um pouco.

- Ela precisa de ir para casa, e meter-se na cama a descansar - aconselhou Rosie Mendoza.

- E depois fica boa, não é? - Kim sentou-se na cadeira ao lado de Mattie, segurando-lhe com força na mão.

- O médico deve receber o resultado dos exames dentro de um dois dias - disse Rosie Mendoza. - Entrará em contacto com a Dra. Katzman assim que souber alguma coisa.

- Obrigada - disse Mattie imóvel com os olhos pregados nas botas castanhas e curtas que despontavam sob a bainha das calças castanhas.

- Doeu? - perguntou Kim a Mattie depois de Rosie Mendoza se afastar.

Diz que não, diz que não, diz que não.

- Doeu - respondeu Mattie. - Doeu muito.

- Onde é que te enfiaram as agulhas? Não digas.

Mattie apontou ao de leve para os ombros, para as coxas e abriu as mãos, com as palmas para cima. Só então Kim notou os adesivos colados na palma da mão esquerda da mãe.

- Quantas?

- Muitas.

- Ainda te dói?

Diz que não, diz que não, diz que não.

- Não muito - disse Mattie, mas Kim percebeu que estava a mentir.

Porque é que estava a fazer todas aquelas perguntas à mãe, se não queria ouvir as respostas? Já não bastava saber o que a mãe tinha passado na última hora e meia, sendo a ser submetida a um exame desagradável e, garantira a mãe, completamente desnecessário, que servia para demonstrar o padrão da actividade neurológica no seu corpo, um exame que ela só concordou em fazer para que Lisa Katzman a deixasse em paz? Kim sentiu uma onda de raiva a percorrer-lhe o corpo. Porque é que a melhor amiga da mãe a tinha feito passar por algo tão horrível, se era desnecessário?

- Queres um café, ou outra coisa qualquer? - perguntou Kim à mãe, recusando-se a pensar na possibilidade de Lisa ter uma opinião diferente em relação aos méritos do exame.

Mattie abanou com a cabeça, indicando que não. - vou ficar aqui sentada só alguns minutos. Depois podemos ir.

- Como é que vamos para casa? - perguntou Kim de repente.

A mãe tinha insistido em conduzir até à cidade, apesar de Lisa a ter avisado de que deveria pedir a alguém para a levar, porque depois do exame poderia sentir-se fraca e atordoada, principalmente porque ainda estava a recuperar do acidente que tinha sofrido. Mas, teimosa Mattie, recusou-se a sobrecarregar qualquer amigo, e não deixou Kim chamar a avó Viv, afirmando que ela era inútil em qualquer tipo de emergência, pelo menos se envolvesse seres humanos. Quanto a Jake Mattie nem se dignou a pensar em pedir tal coisa, e Kim acabou por concordar com a mãe. Não precisava de Jake. O que é que iam querer de um homem que deixara bem claro que preferia estar com outra mulher? Mattie não precisava da ajuda do seu recente ex-marido, e Kim também não precisava da ajuda do seu recente ex-pai.

- Estarei sempre a teu lado - tentara ele dizer-lhe naquela noite horrível, exactamente uma semana atrás, quando a fora buscar à pequena casa da avó no Old Town, um bairro outrora degradado mas agora elegante. - Continuo a ser o teu pai. Nada vai mudar isso.

- Estás a mudar isso - protestou Kim.

- Vou sair de casa - argumentou Jake. - Não da tua vida.

- Longe da vista - disse Kim friamente -, longe do coração.

- Entende que tudo isto não tem nada a ver contigo.

- Tem tudo a ver comigo - contra-argumentou Kim, interpretando deliberadamente as palavras dele de forma errada.

- Por vezes estas coisas acontecem.

- Ah, sim? Estas coisas acontecem? Sozinhas? Acontecem simplesmente? - Kim percebeu que estava a levantar a voz. Gostou do som do seu tom ofensivo, pois fazia com que o homem sentado à sua frente no pequeno restaurante italiano se encolhesse. - Estás a tentar dizer-me que foi uma coisa fora do teu controle?

- Estou a tentar dizer que te adoro, que estarei sempre aqui para ti.

- Só que vais estar noutro sítio.

- Estarei a morar noutro sítio.

- Então estarás lá, para mim - disse Kim, orgulhosa da sua esperteza.

Sentia-se forte, e isso evitava que o coração lhe saltasse do peito, rebentasse no chão duro de cerâmica e ficasse reduzido a milhares de minúsculos estilhaços.

- Adoro-te, Kim - dissera-lhe o pai outra vez.

- Agora eu sou igual aos outros - argumentou Kim.

Por isso, quando Lisa telefonou para dizer a Mattie que tinha conseguido marcar o electromiografia para quinta-feira da semana seguinte, Kim ofereceu-se imediatamente para acompanhar a mãe ao hospital/ mesmo tendo que faltar às aulas da tarde. E foi uma surpresa total quando a mãe concordou.

- Nós, as mulheres, temos de nos unir - disse Kim para a mãe, deitando-se a seu lado naquela noite, como fazia desde o dia em que Jake se foi embora, passando o seu braço protector por cima da anca de Mattie, respirando mais devagar para acompanhar o ritmo da mãe, fazendo com que o corpo das duas subisse e descesse ao mesmo tempo, respirando como se fossem uma só pessoa.

- Consegues conduzir o carro até casa? - perguntou Kim à mãe.

- Dá-me uns minutos - disse Mattie.

Mas vinte minutos depois Mattie continuava a olhar fixamente para os seus pés, com medo, ou incapaz, de se mexer. A pele continuava com aquele branco fantasmagórico por baixo do amarelo mostarda e do azul alfazema dos hematomas. As mãos ainda lhe tremiam.

- É melhor chamares o teu pai - disse Mattie, e as lágrimas começaram a correr-lhe pelo rosto.

- Podemos apanhar um táxi - protestou Kim.

- Telefona para o teu pai - insistiu Mattie.

- Mas...

- Não discutas. Por favor. Telefona-lhe.

A contragosto, Kim fez o que a mãe lhe pediu. Localizou um telefone público ao lado dos elevadores no extremo do longo corredor, marcou os algarismos do número particular do pai, esperando que ele estivesse no tribunal, com clientes e portanto indisponível.

- Não entendo por que não podemos simplesmente apanhar um táxi - resmungou baixinho, observando um senhor idoso com a bata azul manchada do hospital que caminhava na sua direcção, arrastando o suporte do soro a seu lado.

Agora compreendia porque é que a avó tinha tanta aversão a hospitais. Eram lugares sombrios, nocivos, cheios de corpos feridos e almas perdidas. Mesmo as pessoas saudáveis como a sua mãe quando lá entravam, saíam a coxear, cheias de dores, frágeis ecos do que eram antes. Kim sentiu um certo enjoo e ficou a imaginar se tinha apanhado algum vírus mortal só de ficar sentada do lado de fora do gabinete do médico. Quantas mãos tinham manuseado aquelas mesmas revistas velhas? A quantos micróbios teria ficado exposta nos minutos intermináveis em que esperara pela mãe? Kim esfregou as mãos nos jeans como se tentasse livrar-se de qualquer bactéria perdida. Sentiu-se tonta e afogueada, como se estivesse a desmaiar.

- Jake Hart - ouviu a voz do pai anunciar e sentiu como que um balde de gelo lançado de encontro ao seu rosto.

Kim ficou vigilante, os ombros tensos, os joelhos trémulos. Afastou da testa uma imaginária madeixa de cabelo, olhou fixamente para as portas dos elevadores que tinham parado naquele preciso momento. O que lhe deveria dizer? Está, paizinho? Está, pai? Olá Jake?

- É a Kim - disse finalmente, enquanto o velho que se arrastava com o soro subitamente deu meia volta e iniciou o seu caminho de volta pelo corredor. Kim notou lampejos de nádegas brancas e nuas entre as duas partes da bata azul-clara do hospital. Que exames horríveis teria ele tido de fazer?, imaginou Kim.

- Kim, querida...

- Estou no Michael Reese County General com a mãe - disse Kim, sem rodeios.

- Aconteceu alguma coisa?

Kim, afundou o queixo na gola na gola alta da camisola rosa-acinzentada, apertou os lábios e deixou escapar um suspiro de impaciência, em busca de ânimo.

- Precisamos da tua ajuda – disse.

Quarenta minutos mais tarde Jake foi ter com a mulher e a filha à entrada do hospital, no centro da cidade.

- Desculpem por ter demorado tanto tempo a chegar - disse e Kim - lançou-lhe um olhar de reprovação. - Demoraram-me no corredor quando saía do escritório.

- És um homem muito ocupado - zombou Kim.

- Obrigada por teres vindo - disse-lhe Mattie.

- O carro está no parque?

Mattie deu-lhe as chaves do carro de aluguer. O seu Intrepid, praticamente destruído no acidente, tinha sido considerado perda total.

- É um Oldsmobile branco.

- Eu encontro-o. Estás bem?

- Ela está bem - disse Kim, dando o braço à mãe.

- E como é que tu estás, querida? - perguntou Jake à filha, estendendo a mão como se lhe fosse acariciar o cabelo.

- Óptima - respondeu Kim tensa, fugindo ao seu alcance, gostando de ver o olhar magoado do pai. - Será que podes ir buscar o carro? A mãe já devia estar na cama.

- Já venho.

Minutos depois o pai de Kim parou o Oldsmobile branco junto ao passeio, saiu do carro para ajudar Mattie a entrar para a parte da frente, empurrando Kim para o banco de trás.

Kim fez uma exibição exagerada, tentando encontrar uma posição mais confortável, passando de um lado para o outro no banco de trás, deliberadamente descuidada com os seus saltos grossos das botas de couro preto, espetando repetidamente na parte de trás do banco do pai de cada vez que cruzava e descruzava as pernas. A propósito, quem desenharia aqueles carros? Seria que pensavam que os passageiros que viajavam no banco de trás do carro tinham todos menos de dez anos de idade? Seria que não sabiam que os adultos precisavam de mais espaço para as pernas? Que poderiam querer sentar-se sem ficar com um joelho de cada lado do queixo? Kim deu-se conta de que estava a passar muito tempo no banco de trás dos carros nos últimos tempos, lembrando-se da última noite de sábado, a ouvir os pedidos sussurrados de Teddy a aquecer a sua orelha. Vamos lá, Kim. Tu sabes o que queres.

- Estás bem aí atrás, querida? - perguntou o pai, afastando-lhe o pensamento de Teddy.

Quem pensas tu que és?, perguntou Kim mentalmente, o olhar furioso a cavar buracos profundos na cabeça do pai. O cavaleiro branco, montado no seu cavalo branco para salvar a pátria? É assim que te imaginas? bom, tenho novidades para ti, Jake Hart, famoso advogado de merda. Isto não é um cavalo branco. É um Oldsmobile branco. E não precisamos da tua ajuda. Na verdade, não precisamos de ti para nada. Estamos a viver muito bem sem ti. De facto, mal notámos que te foste embora.

- Desculpa ter de te incomodar - ouviu a mãe dizer, com a voz mais forte do que antes, apesar de não possuir a ressonância habitual.

Porque é que ela não estava mais zangada? Por que é que tinha de ser tão educada?

- Deviam ter-me avisado antes - disse Jake. - Não havia necessidade de vires a conduzir para a cidade.

- A mãe não é uma inválida - disse Kim.

- Não, mas sofreu um acidente há menos de dez dias, e ainda não está completamente recuperada.

- Estás a falar como a Lisa.

- É uma questão de bom senso.

- Eu estou bem - disse Mattie.

- Ela está bem - ecoou Kim.

Como é que ele se atrevia a criticar a mãe! O que Mattie fazia o que as duas faziam, já não era da conta dele. Ele não tinha o direito de criticar ou de julgar. Abdicara desse direito no dia em que saíra de casa. Kim esticou o braço para o banco da frente e pôs a mão no ombro da mãe. Não lhe devia ter telefonado. Podia ter falado com a avó, ou com Lisa, ou com qualquer uma das amigas da mãe. Qualquer pessoa menos Jake. Não precisavam de Jake.

O facto era que o pai jamais tinha tomado parte na sua vida diária. Kim não conseguia lembrar-se dele como sendo a pessoa que lhe acenava todos os dias de manhã quando saía para o trabalho, e que lhe dava um beijo de boa-noite quando chegava a casa a tempo de a aconchegar quando ia para a cama. Era a mãe que a levava à escola, ao médico e ao dentista, às aulas de piano e ao ballet, que comparecia a todas as reuniões de pais e professores, às peças de teatro da escola, aos acontecimentos desportivos depois das aulas, que ficava com ela em casa quando estava doente. Não queria dizer que o pai não lhe ligasse importância. Apenas tinha de estar sempre noutros lugares. Outros lugares em que preferia estar.

Quando Kim entrou na adolescência passou a vê-lo ainda menos, os horários dos compromissos dos dois nunca combinavam. E desde a mudança para Evanston, mal o via. Agora Jake Hart era mais um fantasma do que um homem, assombrando os corredores que já não ocupava, a sua presença definida, talvez até acentuada, pela sua ausência.

A princípio Kim ficara preocupada, achava que a mãe iria ficar abatida. Mas ela, apesar dos ferimentos, estava a enfrentar a deserção de Jake surpreendentemente bem. Todas as preocupações de Mattie eram em relação a Kim.

- Parece muito pior do que realmente é - quis desde logo tranquilizar a filha, que quase desmaiou ao ver o belo rosto da mãe coberto de manchas com mau aspecto.

E, mais tarde.

- Como estás, querida? Queres falar acerca disso? - Ela até tentou ficar do lado de Jake.

- Não sejas muito severa com ele, querida. Ele é o teu pai, e ama-te. Palermices, pensou Kim. O pai não a amava. Nunca quis a filha. Ela já não o queria.

Depois disto, raramente mencionavam o nome de Jake. Os ferimentos da mãe mudaram de cor com a mesma facilidade das folhas das árvores lá fora, cada vez mais pálidos. Os golpes fecharam. A rigidez abandonou as articulações. Ela tratava das suas tarefas diárias, alugava um carro, fazia as compras da casa, até contactava com alguns clientes, marcava reuniões para as semanas seguintes. Exceptuando o problema ocasional com o pé dormente, a sua mãe estava a ir muito bem.

Estavam as duas.

Não precisavam dele.

- Como é que vais aí atrás, Kim? - perguntou Jake, tentando uma segunda vez.

Viu que ele a espiava pelo espelho retrovisor e os seus olhos reflectiam preocupação e esperança ao mesmo tempo.

Kim sussurrou e não disse nada. Se a mãe queria ser educada e cortês em relação à separação, era problema dela. Não significava que Kim tinha de o fazer também. Alguém tinha de fazer o papel da esposa ultrajada.

- Parece que me vão oferecer sociedade num futuro próximo disse Jake. - Foi por isso que demorei um pouco mais para cá chegar. Toda a gente me queria felicitar no corredor.

- Isso é maravilhoso - Kim ouviu Mattie dizer. - Trabalhaste muito para chegar onde chegaste. Bem o mereces.

Mereces é apodrecer no inferno, pensou Kim.

- Como é que vais voltar para a cidade? - perguntou Mattie, quando Jake virou a esquina da Walmit Drive.

- Já pedi a uma pessoa que me viesse buscar daqui a meia hora.

- À tua namorada? - a voz de Kim soou aguda, cortando o ar como uma navalha. - E não olhes dessa maneira para a mãe - disse, quase antes de Jake virar para Mattie. - Ela não disse nada.

- Precisamos de conversar, Kimmy! - disse o pai.

- Não me trates por Kimmy. Odeio esse nome.

Kim lembrou-se de que o pai a tratava por Kimmy quando era pequena, vagas lembranças que faziam com que os olhos se lhe enchessem de lágrimas inesperadas.

- Por favor, Kim - disse ele. - Acho que é importante.

- Quem é que se importa com o que dizes?

- O que é que se passa? - perguntou a mãe, e, por instantes, Kim pensou que Mattie estava a falar com ela, que a mãe estava zangada, que estava do lado do pai, contra ela.

Então viu o carro da polícia parado em frente à casa e os dois polícias de pé diante da porta da frente. O que estava a acontecer?

- Provavelmente é por causa do acidente - disse Jake.

- Já falei com a polícia - disse Mattie enquanto Jake estacionava na entrada da casa e descia do carro.

- Há algum problema? - perguntou.

Kim ajudou a mãe a descer do banco da frente, olhando sempre para o homem e para a mulher de uniformes limpos e azuis. O homem que se identificou como sendo o agente Peter Slezak, tinha cerca de um metro e oitenta de altura, braços do tamanho de troncos de árvore e usava o cabelo muito curto, de cor indefinida. A mulher, que o agente Slezak apresentou como sua parceira, a agente Judy Taggart, tinha mais ou menos um metro e setenta e aproximadamente a mesma largura de uma das coxas do guarda Slezak. Usava o cabelo castanho apanhado num rabo-de-cavalo, e tinha uma enorme borbulha no queixo que tentava esconder com a maquilhagem. Kim passou a mão no queixo, distraída, à procura das suas próprias borbulhas.

- Esta casa é sua? - perguntou o agente Slezak.

- É - respondeu Jake.

Não, Kim quase gritou. Não é a casa dele.

- Há algum problema? - adiantou-se Mattie, assumindo o controle.

- A senhora está bem? - a agente Taggart olhava espantada para as marcas no rosto de Mattie.

- Isto é por causa do acidente? - perguntou Jake.

- Não foi exactamente um acidente - disse o agente Slezak.

- Perdão? - disse Mattie, como se já estivesse a pedir desculpas adiantadas.

- Talvez o senhor pudesse dizer-nos do que se trata - disse Jake, retomando o controle.

- Estamos à procura de Kim Hart.

- Kim? - perguntou a mãe meio sufocada.

Kim deu um passo em frente e uma dor surda avolumou-se-lhe na boca do estômago.

- Sou Kim Hart.

- Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas.

- Sobre o quê? - interrompeu Jake.

- Por que não vamos lá para dentro? - sugeriu Mattie, subindo os degraus para a porta da frente.

Kim notou que a mãe estava a ter dificuldades com a chave, tirou-lha suavemente da mão, enfiou-a na ranhura da fechadura abrindo a porta.

Segundos depois estavam todos em volta da mesa da cozinha e os polícias recusaram o café que Mattie ofereceu.

- O que nos pode dizer sobre a festa em casa de Sabrina Hollander, na noite de sábado passado? - começou o agente Slezak, olhando directamente para o peito de Kim enquanto a agente Taggart retirava o bloco e a caneta do bolso de trás das calças bem passadas.

- Foi uma festa - Kim encolheu os ombros, consciente do coração a bater descompassado sob os seus seios, a imaginar se era para eles que o guarda Slezak tanto olhava.

- Esteve lá?

- Fiquei pelo menos uma hora, talvez.

- Que horas eram?

- Por volta das nove.

- Então saiu da casa dos Hollander mais ou menos às dez?

- Não deviam ser dez horas - disse Kim.

- O que é que aconteceu na festa?

- Pouca coisa. As pessoas dançavam, bebiam cerveja, fumavam um charro de vez em quando.

- Teddy convencera-a a dar umas passas antes de irem para o banco de trás do carro dele. Seria que alguém a tinha visto e fora fazer queixa, acusando-a de estar a consumir drogas? Seria por isso que a polícia estava ali? Para a prender?

- Onde é que os senhores querem chegar? - perguntou Jake Hart.

- Sabrina Hollander deu uma festa enquanto os pais estavam fora da cidade. Apareceram duzentos adolescentes.

- Duzentos adolescentes - Kim repetiu sem ar, concluindo que devia ter adormecido no carro, e que tudo aquilo não passava de um sonho desagradável.

- Alguém resolveu que seria divertido vandalizar a casa continuou o guarda Slezak. - Cortaram as telas dos quadros, rasgaram os tapetes, defecaram nos móveis, furaram as paredes. No total provocaram um prejuízo de quase cem mil dólares.

- Oh, meu Deus - disse Mattie, cobrindo os lábios feridos com a mão ligada.

- Não sei de nada disso - disse Kim, sentindo-se apática.

- Não viu nada enquanto estava lá, não ouviu ninguém a comentar?

- Não. Nada.

- Mas as pessoas estavam a beber, e a usar drogas afirmou a agente Taggart, como se fosse um facto indiscutível.

- As pessoas estavam a beber cerveja - explicou Kim, com voz fraca e desviando os olhos para a piscina do pátio, desejando poder desaparecer sem deixar qualquer vestígio por baixo da superfície lisa e azul.

- Disse que saiu da festa às dez horas?

- Ela já respondeu a essa pergunta - contestou Jake.

Não havia melhor advogado do que um pai, pensou Kim, com uma gratidão relutante, misturada com ressentimento.

- Mas soube do incidente - disse o agente Slezak.

- Ouvi alguns comentários na escola - concordou Kim, procurando ignorar o ar de surpresa que cobria como um véu o rosto da mãe.

- O que lhe disseram?

- Só soube que as coisas escaparam do controle normal. Que o local tinha ficado destruído.

- Disseram-lhe quem foram os responsáveis?

- Parece que um grupo invadiu a festa. Ninguém os conhecia.

- Tem a certeza?

- Ela já respondeu à pergunta - a voz de Jake ressoou com autoridade tranquila. - E devo explicar que além de ser o pai de Kim, também sou advogado.

Para não mencionar adúltero, acrescentou Kim em silêncio.

- Penso que o estava a reconhecer - disse o guarda Slezak, sem emoção na voz, decididamente nada impressionado. - É o advogado que defendeu aquele rapaz que assassinou a mãe e saiu impune.

É assim mesmo, pai, pensou Kim. Terei muita sorte se não me enforcarem.

Minutos depois o agente Slezak pôs as mãos nas ancas gigantescas, indicando que a reunião tinha acabado. A agente Taggart dobrou rapidamente o bloco e guardou-o no bolso de trás das calças. Kim foi com eles até à porta da frente e, depois de a fechar, encostou a testa nos veios duros de carvalho.

- Aconteceu mais alguma coisa que não nos tenhas contado? Perguntou o pai, aproximando-se dela.

- Em poucos meses terei a minha carta de condução, e não vamos mais precisar de te chamar - disse Kim em tom de desafio, passando por ele e desaparecendo pelas escadas acima.

Minutos mais tarde observou pela janela do quarto o pai a descer até à rua pelo caminho em frente à casa. Olhou para cima como se soubesse que ela o estava a observar, e acenou.

Ela não lhe retribuiu o aceno.

 

NA SEGUNDA-FEIRA SEGUINTE, MATTIE ESTAVA AO telefone com Roy Crawford quando ouviu o sinal de uma chamada em espera.

- Pode esperar um minuto, Roy? Desculpe. Não vou demorar.

- Mattie perguntou a si própria por que não teria simplesmente

ignorado o sinal, como costumava fazer quando falava com clientes importantes. Já tinha o voice mail para gravar os recados. Para que é que precisava do sinal de chamada em espera? Só que Kim tinha sido muito categórica em manter esse serviço e, ultimamente, a maior parte das ligações eram para ela. Talvez fosse altura da filha ter uma linha só para si, apesar de parecer uma despesa desnecessária perante a partida de Jake. E mais cedo ou mais tarde teria de começar a pensar seriamente na sua situação financeira.

- Está - disse Mattie ao telefone, espantada com a quantidade de ideias irrelevantes que se podiam amontoar no espaço de um segundo.

- Mattie, é a Lisa.

Mattie olhou distraída para as portas de vidro de correr da cozinha, notando o sol a brilhar incoerente através do céu pesado e cinzento. Não queria falar com Lisa. Ia apenas dizer-lhe mais coisas que não queria ouvir.

- Lisa, posso ligar-te daqui a uns minutos? Estou com outra chamada em linha.

- Isto não pode esperar.

Mattie sentiu o corpo todo a ficar insensível.

- Porque é que será que não gosto desse tom?

- Preciso que venhas ao meu consultório.

- Não vou fazer mais nenhum exame.

- Nada de exames. Olha, já falei com o Jake. Ele vai buscar-te daqui a meia hora.

- O quê? - Mattie deu um grito estridente. - O que é que queres dizer, falaste com Jake? Não podes fazer isso.

- Já fiz.

- Não tens esse direito. Olha, isto é uma palermice. Espera um minuto.

Mattie digitou o botão de espera, retomou a conversa com Roy Crawford, sem fôlego, arfando.

- Roy, posso ligar-lhe mais tarde?

- Que tal eu passar aí para irmos almoçar, por volta do meio-dia?

- Está bem - disse Mattie, e voltou imediatamente para a outra linha, rosnando para Lisa. - O que é isso de teres falado com o Jake? Eu não te dei autorização para discutires o meu caso com ele.

- Não discuti nada com ele.

- Então por que é que me vem buscar daqui a meia hora?

- Porque lhe disse que era muito importante.

- Se é tão importante assim, por que é que não posso ir no meu carro para o teu consultório neste momento?

- Porque acho que não deves vir a conduzir.

- Sou perfeitamente capaz de conduzir - argumentou Mattie, tentando ter algum controle sobre a conversa, sobre os acontecimentos que se estavam a desenrolar, sobre a sua vida.

- Mattie - disse Lisa, com a voz meio embargada. - O Dr. Vance acabou de me dar os resultados do teu exame.

Mattie suspendeu a respiração.

- E...? - A palavra escapou-lhe dos lábios antes de poder evitar.

- Lisa fez uma longa pausa antes de continuar.

- É um pouco complicado. Prefiro discutir o assunto contigo pessoalmente.

- Por que é que ligaste para o Jake?

- Ele é o teu marido, Mattie. Tem de saber o que está a acontecer.

- Estamos separados.

- Ele deve estar presente.

- Mas não está, não é?

Mattie pôs a mão ligada na cabeça e ouviu o desagradável eco do músculo a estalar.

- Olha - disse Lisa, recuperando o controle da sua voz e adoptando o mesmo tom que Mattie em geral usava com Kim quando tentava convencer a filha a fazer alguma coisa que ela não queria fazer.

- Deixa que o Jake te traga até aqui. Só isso. Se não quiseres que ele participe na conversa, pode-se resolver isso quando cá chegar. Mas, mesmo assim, pelo menos terás alguém aqui para te levar a casa. Por favor, Mattie. Faz isso por mim.

- Jake é um homem muito ocupado - disse Mattie, traduzindo os seus pensamentos por palavras. - Ele não pode simplesmente largar tudo numa segunda-feira de manhã. O que é que lhe disseste, Lisa?

- Apenas que achava que era muito importante ele estar aqui.

- Uma questão de vida ou morte? - Surpreendeu-se Mattie a dizer.

- Lisa não respondeu.

- Estou a morrer? - perguntou Mattie.

- É complicado - disse Lisa após uma pausa que durou alguns segundos para além do que devia, e, pela primeira vez, Mattie ouviu as lágrimas na cadência estudada da voz de Lisa. - Por favor, Mattie. Deixa o Jake ir buscar-te. Conversamos quando cá chegares.

Mattie concordou com a cabeça e desligou o telefone sem dizer mais nada, procurando afastar o pânico crescente. É complicado, pensou. Por que é que as coisas tinham de ser tão complicadas? Comparou o seu relógio de pulso com os relógios da cozinha e descobriu que estava cinco minutos adiantado em relação aos outros dois.

- O que significa que tenho menos tempo ainda do que pensava

- disse, lutando contra as lágrimas, grata pelo facto de Kim estar na escola e não ali, a ter de enfrentar aquilo.

Kim já tinha preocupações demais, pensou Mattie, saindo da cozinha e subindo a escada, completamente atordoada. Entrou no quarto, abriu o edredão azul e enfiou-se na cama recém feita, com roupa e tudo.

Continuava lá deitada trinta minutos depois, com o edredão puxado até ao queixo, quando ouviu a campainha, logo seguida pelo som de uma chave a girar na fechadura e alguém a abrir a porta.

- Mattie? - gritou Jake do hall. - Mattie, sou eu. Estás pronta? Temos que ir.

Mattie apoiou a mão na almofada para se levantar, ajeitou o cabelo louro escuro que estava achatado do lado esquerdo do rosto, pôs a blusa verde de seda para dentro das calças pretas e respirou bem fundo. Teria de pedir a Jake para lhe devolver a chave, pensou.

- Já vou - disse.

Cinco minutos depois, sentada na beira da cama, ouviu os passos de Jake a subir a escada, e percebeu que não se tinha mexido.

- Tens uma coisa chamada esclerose lateral amiotrófica - explicou Lisa, com a voz entrecortada.

Mattie estava muito tensa, sentada ao lado de Jake numa das pequenas salas de exame do consultório de Lisa.

- Parece muito grave - disse Mattie, não querendo olhar para a amiga, e fitando o cartaz para o exame oftalmológico por trás da cabeça desta.

- E é - murmurou Lisa.

- Porque é que eu nunca ouvi falar disso? - perguntou Mattie, como se o facto fizesse alguma diferença, como se, sabendo alguma coisa a respeito da doença, pudesse evitar que a contraísse.

- Provavelmente conhece-la pelo nome mais comum, doença de Lou Gehrig.

- Oh, meu Deus - gemeu Mattie, sentindo Jake afundar-se na cadeira ao lado dela.

- Sentes-te bem? Queres um copo de água?

Mattie abanou com a cabeça. O que queria era sair dali. O que queria era estar a dormir na sua cama. O que queria era a sua vida de volta.

- O que é que isso quer dizer, exactamente? Isto é, eu sei que Lou Gehrig foi um famoso jogador de basebol. Sei que morreu de uma doença terrível. E agora estás a dizer-me o quê? Que eu tenho essa mesma doença? Como é que sabes?

- Logo de manhã, o Dr. Vance enviou-me por fax os resultados da electromiografia. São bastante conclusivos - Lisa entregou a Mattie uma pasta clara contendo o resultado. Jake tirou a pasta da mão trémula de Lisa quando viu que Mattie não se mexia. - Perguntou-me se te queria revelar os exames...

Não reveles, pensou Mattie.

- Então diz - disse ela, mais alto do que o zumbido nos seus ouvidos.

- O exame mostrou uma degeneração neurológica muito extensa...

- Fala na nossa língua - disse Mattie asperamente.

- Houve um dano irreversível nos neurónios motores da espinal medula e do tronco cerebral.

- E isso o que quer dizer?

- Que as tuas células nervosas estão a morrer - explicou Lisa baixinho.

- As minhas células nervosas estão a morrer - repetiu Mattie, procurando compreender o sentido das palavras. - As minhas células nervosas estão a morrer. O que é que isso quer dizer? Isso quer dizer que eu estou a morrer?

Silêncio absoluto. Ninguém se mexeu. Ninguém respirou.

- Sim - disse Lisa finalmente, e mal dava para ouvir a sua voz. - Meu Deus, Mattie, sinto muitíssimo - os seus olhos encheram-se de lágrimas que ameaçavam transbordar pelas faces.

- Então espera aí - disse Mattie, pondo-se de pé de um salto, andando de um lado para o outro no espaço exíguo entre a marquesa e a porta. - Não estou a perceber. Se eu tenho esta esclerose amiotrófica seja lá o que isso for, como é que não apareceu na ressonância magnética? A RM indicou que eu estava bem - lembrou-se ela.

- A RM examina outras coisas.

- Examina a esclerose múltipla - argumentou Mattie. - Mostrou que eu não tinha, e é uma esclerose.

- E. L. A. é diferente - explicou Lisa pacientemente, pronunciando separadamente cada letra.

- E. L. A. - perguntou Mattie.

- É a sigla de...

- Eu sei de que é essa sigla - replicou Mattie irritada. - Não sou nenhuma idiota. Os meus neurónios ainda não morreram.

- Mattie... - ia Jake a dizer, mas deteve-se.

- A doença não vai afectar as tuas faculdades mentais - explicou Lisa.

- Não? - Mattie parou de andar de um lado para outro. - Então o que é que vai afectar, exactamente?

- Talvez te devas sentar.

- Talvez eu não me queira sentar, Lisa. Talvez só queira que me digas o que vai acontecer comigo, para eu poder sair daqui e tratar do resto da minha vida. - Mattie quase soltou uma gargalhada. O resto da sua vida, pensou. Essa era boa. - Quanto tempo tenho ainda?

- Não se pode saber exactamente. É raro alguém da tua idade ter esclerose amiotrófica...

- Quanto tempo, Lisa? - insistiu Mattie.

- Um ano - as lágrimas ameaçadoras começaram a descer pela face de Lisa. - Talvez dois - acrescentou rapidamente. - Possivelmente até três.

- Oh, meu Deus.

Mattie sentiu os joelhos a dobrar, o corpo a desaparecer, de forma que a cabeça parecia um balão gigante a rodopiar num céu tempestuoso, prestes a partir-se no solo lá em baixo. Lisa e Jake saltaram das cadeiras e seguraram Mattie antes que esta caísse.

- Respira fundo - pediu Lisa, segurando Mattie na cadeira com mãos nervosas.

Mattie ouviu o som de água a correr, sentiu a pressão de um copo nos lábios.

- Bebe bastante devagar - instruiu Lisa, e Mattie sentiu a água fria na ponta da língua, misturada com o calor salgado das lágrimas

- Sentes-te bem? - perguntou Lisa passados uns segundos.

- Não - disse Mattie baixinho. - Estou a morrer. Não te disseram?

- Sinto muito - Lisa chorou, segurando com força as mãos de Mattie. Mattie notou que Jake estava encostado à porta, e parecia que tinha

levado um pontapé, daqueles que tiram por completo o fôlego. Qual é o teu problema?, queria Mattie perguntar. Aborrecido porque não consegues que a tua magia funcione aqui? Aborrecido porque não me podes salvar da sentença de morte que um Supremo Tribunal acabou de determinar?

- Um ano - repetiu Mattie.

- Talvez dois, ou três - disse Lisa esperançosa.

- E o que é que vai acontecer comigo durante esse ano, ou dois, ou três?

- É impossível prever o curso exacto da doença - disse Lisa. - Afecta cada pessoa de um modo diferente, e mesmo numa base individual, não existe uma evolução simétrica.

- Por favor, Lisa. Eu não tenho muito tempo - Mattie sorriu e Lisa riu tristemente.

- Está bem - disse Lisa. - Está bem. Queres que seja mesmo franca? Então aqui vai - fez uma pausa, engoliu, respirou fundo uma vez mais, depois outra. - A E. L. A. é uma doença debilitante que acaba por ser fatal e que deixa as vítimas mentalmente lúcidas, mas cada vez menos capazes de controlar o corpo - recitou mecanicamente, lavada em lágrimas. - À medida que vai progredindo, vais perder a capacidade de andar. Já começaste a sentir o formigueiro nas pernas. Já caíste algumas vezes. Isso vai piorar cada vez mais. com o tempo, não poderás andar de maneira nenhuma. Terás de usar uma cadeira de rodas - respirou fundo de novo, como se inalasse o fumo de um cigarro. - Disseste-me que às vezes tens dificuldade em meter as chaves nas fechaduras. Esse é um sintoma inicial da E. L. A. As tuas mãos ficarão incapacitadas. O teu corpo vai começar a ficar torcido, encolhido, enquanto a tua mente continuará perfeita e lúcida.

- Serei prisioneira do meu próprio corpo - reconheceu Mattie com calma.

Lisa concordou com a cabeça e não fez nada para enxugar as

lágrimas.

- A tua fala ficará arrastada, difícil. Terás dificuldade em engolir. A determinada altura, provavelmente, precisarás de ser entubada para te alimentares.

- Como é que eu vou morrer?

- Mattie, por favor...

- Diz-me, Lisa. Como é que vou morrer?

- Começarás a ficar sem ar, a engasgares-te. No fim acabas por sufocar.

- Meu Deus - Mattie lembrou-se do pânico que sentira dentro do aparelho de ressonância magnética.

Quarenta e cinco minutos com a sensação de estar a ser enterrada viva. E agora esperavam que ela suportasse três anos com essa mesma sensação. Não, não podia ser. Sentia-se perfeitamente bem. Não podia estar a morrer. Tinha de haver um engano qualquer.

- Quero uma segunda opinião.

- É evidente.

- Mas nada de exames. Eu estava bem até começar a fazer todos

esses exames.

- Nada de exames - concordou Lisa, enxugando as lágrimas dos olhos. - vou falar com o Dr. Vance para ver quem recomenda.

- Porque deve ser um engano qualquer - continuou Mattie. - Só porque às vezes o meu pé fica dormente e tenho alguma dificuldade em abrir a porta com as chaves...

- A crise de Mattie no tribunal... - Jake ia a dizer e parou, perante o olhar furioso de Mattie.

- Faz parte do que está a acontecer - disse Lisa para ele. - Ninguém sabe efectivamente porquê mas o facto é que essas crises repentinas e inexplicáveis, de riso ou de choro sem qualquer motivo aparente, são, nalguns casos, outro sinal da doença.

- Eu não quero falar mais sobre este assunto - disse Mattie,

- levantando-se da cadeira.

- O Dr. Vance quer que comeces a tomar um remédio chamado riluzole - disse Lisa apressadamente. - É um produto neuro protector que evita a morte prematura das células. Começa a tomar um comprimido por dia e não tem qualquer efeito colateral. É caro, mas vale muito a pena.

- E qual é a utilidade de tomar esta droga? - Perguntou Mattie, Sentindo a raiva inicial a regressar.

Já não tinha dito a Lisa que queria uma segunda opinião? Por que estavam a discutir a medicação como se quaisquer opiniões novas fossem conclusões passadas?

- Oferece alguns meses a mais.

- Meses com impossibilidade de movimento, meses a sufocar, meses com a mente lúcida enquanto o meu corpo fica todo torcido? Muito obrigada, Lisa, mas acho que não.

- O Riluzole desacelera o progresso da doença.

- Por outras palavras, adia o inevitável.

- A ciência está a descobrir novas formas de tratamento a todo o momento - Começou Lisa por dizer.

Mattie interrompeu.

- Ah, pelo amor de Deus, Lisa, não me venhas com esse discurso de "maravilhas da ciência médica, milagres acontecem". Não fica bem em ti.

- Por favor, Mattie - disse Lisa, escrevendo uma receita e oferecendo-a a Mattie, que a recusou.

- Eu disse que quero uma segunda opinião.

Jake agarrou a receita da mão de Lisa, guardou-a no bolso do casaco cinzento com riscas finas.

Junto ao recibo de um quarto no Ritz-Carlton, pensou Mattie com amargura.

- Porque é que lhe estás a dar a receita? - perguntou Mattie.

- Só pensei que nós devíamos ficar com ela - disse Jake em voz baixa.

- Nós? Que nós é esse?

- Mattie...

- Não. Tu não tens direitos aqui. Abdicaste desses direitos, lembras-te? Só viestes como meu motorista.

- Mattie...

- Não. Isto não é da tua conta. Eu não sou da tua conta.

- Tu és a mãe da minha filha - disse Jake simplesmente.

Oh, meu Deus, Kim, pensou Mattie, apertando o estômago e dobrando o corpo para a frente, como se estivesse a levar um soco. Como havia de dizer a Kim? Que não estaria para ver a sua cerimónia do final do curso da escola secundária. Que não estaria para ver a sua partida para a universidade. Que não poderia dançar no seu casamento, nem segurar o seu primeiro neto nos braços. Que sufocaria lentamente até à morte diante dos lindos olhos apavorados da filha.

- A mãe da tua filha - repetiu Mattie.

Claro. Nada mais fora para ele. Mãe da filha dele. Estou a ser patética, pensou Mattie, endireitando as costas, pondo os ombros para trás e o queixo para cima.

- Quero ir para casa já - disse, olhando para o relógio e vendo que eram quase onze e meia. - Tenho um encontro.

- O quê?

A expressão de Jake quase valia a angústia daquela manhã, pensou Mattie.

- Posso fazer sexo? - perguntou subitamente a Lisa.

- O quê? - Exclamou Jake outra vez.

- Posso? - repetiu Mattie, ignorando o marido, concentrando-se na amiga.

- Desde que te sintas bem - disse Lisa.

- Óptimo - afirmou Mattie. - Porque quero fazer sexo.

- Mattie... - Jake ia começar a falar, parou e deixou as mãos caírem ao lado do corpo, sem vida.

- Não é contigo - disse Mattie para o marido. - Não é um alívio? Os teus serviços já não são necessários nesse departamento. Escapaste bem a tempo. Agora ninguém te pode acusar de ser um filho da mãe imprestável, que abandonou a mulher ao descobrir que ela estava a morrer. A tua noção de tempo foi impecável.

- E o que vamos nós fazer agora? - perguntou Jake, desesperado.

- É muito simples - disse Mattie. - Tu vives. Eu morro. Agora, achas que me podes levar para casa? Tenho mesmo um compromisso.

Jake não disse nada. Estendeu a mão, abriu a porta do pequeno gabinete e respirou fundo.

- Telefono-te assim que tiver tomado as providências - disse Lisa.

- Não é pressa - respondeu Mattie e saiu da sala.

 

NÃO TROCARAM UMA SÓ PALAVRA NO REGRESSO DO Consultório de Lisa, Mattie atordoada demais, furiosa demais, Jake atordoado demais com a raiva dela, para dizerem qualquer coisa. Em vez disso, ficaram a ouvir o rádio, mais alto do que Jake costumava ouvir, mais alto do que Mattie gostava, mas no volume perfeito para aquele dia. O rock invadiu o BMW como a água invade um carro que se afunda num rio, entrando por todas as aberturas possíveis, preenchendo rapidamente todos os espaços vazios, afogando tudo pelo caminho. O barulho da música bloqueou os ouvidos e fechou a boca dos dois, apesar de Mattie não ter a menor ideia do que os cantores estavam a berrar. Tudo bem, pensou, concentrando a atenção na estrada em frente. Não precisava de saber o que estavam a berrar. Bastava estarem a berrar.

Jake conduzia bastante devagar para sul, pela Edens Expressway a partir da Old Orchard Road, onde ficava o consultório de Lisa, estrangulando o volante com as mãos, como se temesse perder por completo o controle se abrandasse o aperto. Mattie viu a pele esticada e branca nas articulações dos dedos dele, distorcendo os limites em relevo e desiguais da cicatriz que cobria três daquelas articulações, resultado de um acidente na infância que sempre se recusava a comentar. Seria que estava tenso por causa da notícia chocante que Mattie acabara de receber, ou porque estava a levar Mattie para um possível encontro amoroso com outro homem? Seria que ele se importava realmente com alguma dessas coisas?

Mattie ligou o telefone do carro para verificar se tinha recados e soube que Roy se ia atrasar uma hora. Este sugeria que se encontrassem numa steakhouse chamada Black Ram, que ficava na Oakton Road, ali perto, em Dês Plains. Não havia problema, pensou Mattie, a não ser por Jake, que insistia em levá-la de carro.

- Podes deixar-me aqui - disse Mattie de repente, apontando para o Old Orchard Shopping Center, numa saída da via rápida Golf Road.

Jake desligou o rádio nesse mesmo momento e o silêncio foi tão ensurdecedor quanto a gritaria que o substituiu.

- Porquê aqui?

- Tenho de esperar mais de uma hora - Mattie quase deu uma gargalhada com as palavras que escolheu. - Por isso vou ficar a passear pelo centro comercial.

- Como é que vais para o restaurante?

Mattie pensou que se ele se preocupasse assim tanto com ela antes de ter saído de casa, ainda poderiam continuar juntos.

- Jake, eu estou bem.

- Tu não estás bem - insistiu ele, e a confusão vincou-lhe o rosto com uma série de novas rugas, nada simpáticas.

- bom, ainda devo ter mais ou menos um ano, por isso não precisas de te preocupar comigo.

- Pelo amor de Deus, Mattie, a questão não é essa.

- Não. A questão é que já sou bastante crescida. E já não sou responsabilidade tua. Acho que não preciso da tua autorização para ir ao centro comercial.

- Jake suspirou frustrado, abanou a cabeça, entrou na Golf Road e ligou os piscas à entrada do enorme centro comercial.

- Que tal tomarmos um café em qualquer lado? - sugeriu ele, obviamente para tentar uma abordagem diferente.

- Tenho um almoço marcado para daqui a uma hora - refrescou-lhe a memória.

- Precisamos de conversar.

- Eu não quero conversar.

- Mattie - começou Jake a dizer, parando no primeiro lugar livre do estacionamento, entre um Dodge e um Toyota prateado, e desligando o motor. - Acabaste de sofrer um choque terrível. Sofremo-lo nós os dois.

- Eu já disse que não quero falar sobre isso - insistiu Mattie. - No que me diz respeito, esta situação toda é um engano monumental. Ponto final.

- Temos de resolver o que vamos fazer, como vamos contar a Kim, que medidas devemos tomar...

- Porque é que quando não queres falar sobre alguma coisa, não falamos, e quando eu digo que a conversa acabou, isso não te faz a Mínima diferença? - Perguntou Mattie zangada.

- Só te estou a querer ajudar - disse Jake com a voz embargada, quase sumida.

Mattie virou-se para o outro lado, para não ter a percepção do sofrimento de Jake. Se testemunhasse a dor dele, teria de a sentir, e não podia

dar-se a esse luxo.

- Anima-te Jake - disse Mattie, abrindo a porta do carro. - Não precisas de te preocupar. É tudo um tremendo erro. Estou perfeitamente bem.

Jake encostou a cabeça ao apoio de couro escuro do banco, olhando vagamente para o tecto de abrir colorido.

- Posso telefonar-te mais tarde?

- O que é que a tua namorada vai pensar disso? - Perguntou Mattie, saindo do carro, sem esperar pela resposta.

- Mattie...

- Como arranjaste essa cicatriz nas articulações dos dedos? - Perguntou ela, surpreendendo ambos, depois ficou à espera, apoiada na porta do carro, a observar como o resto da cor desaparecia do rosto preocupado de Jake, e o azul dos olhos passar de sombrio a opaco.

Os holofotes estão agora sobre ti, Jake, pensou ela, sabendo como era desagradável para ele falar sobre o passado. Iria alegar perda de memória, ficar mal-humorado e evasivo? Ou inventaria qualquer coisa, contaria uma história qualquer só para ela parar de o aborrecer?

Jake massajou a cicatriz, distraído.

- Quando eu tinha mais ou menos quatro anos, a minha mãe pôs-me o ferro quente em cima da mão - disse em voz baixa.

- Meu Deus - os olhos de Mattie ficaram imediatamente marejados de lágrimas. - Porque é que nunca me contaste?

Ele encolheu os ombros.

- Para quê?

- Porque eu era a tua mulher.

- E o que poderias fazer?

- Não sei. Talvez pudesse ajudar.

- É só isso que eu quero agora, Mattie - disse Jake, conseguindo mudar o tema da conversa mais uma vez para o caso dela, para escapar à luz inclemente dos holofotes. - Ajudar como puder.

Mattie endireitou o corpo, olhou para o centro comercial e, de novo, para Jake.

- Eu não me esqueço - a voz dela soou fria, contida. - Conduz com cuidado - disse, fechando a porta do carro e afastando-se, sem olhar para trás.

Meia hora depois, Mattie entrou numa pequena agência de viagens chamada Gulliver's Travei, situada no extremo oeste do Old Orchard chopping Center e pousou os dois sacos grandes que levava em frente da primeira mesa desocupada.

- Gostaria de reservar uma passagem para Paris - disse, sentando-se antes de ser convidada e a sorrir para uma mulher gordinha de meia-idade, cuja identificação indicava chamar-se Vicki Reynolds.

Mattie concluiu nesse mesmo instante que Vicki Reynolds era uma daquelas pessoas que tinham o hábito de parecerem sempre mais ocupadas do que realmente estavam, as mãos em constante agitação, o rosto enrugado, a fingir concentração. Naquele momento estava a meio de uma grande encenação de introduzir informações no computador.

- Só um segundo, por favor - disse Vicki Reynolds, sem olhar para Mattie.

- Não tenho muito tempo - disse-lhe Mattie, e riu.

A funcionária olhou para as duas mesas atrás dela, mas os outros dois colegas estavam a atender clientes. - vou já atendê-la.

Mattie recostou-se na cadeira, grata pela oportunidade de se sentar em qualquer lado. Andara a correr de um lado para outro como uma lunática desde que saíra do carro de Jake, andara de loja em loja, a ver isto, a experimentar aquilo, e acabara por comprar três camisolas novas, inclusivamente uma de angora cor-de-rosa, dois pares de calças pretas, porque calças pretas nunca estavam a mais, um par de sapatos Robert Clergerie de camurça verde-floresta que a vendedora lhe garantira combinarem com tudo, e um casaco Calvin Klein alucinante, de couro vermelho-sangue. O casaco custara uma pequena fortuna, mas a vendedora afirmara que, como era clássico jamais sairia de moda. Teria um casaco para sempre, dissera a mulher. Para sempre, repetiu Mattie, admirando o seu reflexo no espelho de corpo inteiro. Só mais tarde se preocuparia com o pagamento.

Também devia começar a pensar em comprar um carro novo, decidiu. Não podia continuar a guiar um Oldsmobile alugado. Mais cedo ou mais tarde teria de comprar um carro só para ela, e podia ser mais cedo, apesar de nunca ter comprado um carro sozinha. Seria uma experiência completamente nova, o que era bom, pensou Mattie. Já era altura de experimentar coisas novas. Talvez comprasse um carro desportivo, um daqueles importados vistosos, vermelho tomate. Ou talvez algum nacional, como um Corvette. Sempre quisera ter um Corvette. Jake desencorajara-a, dizendo que não era nada prático ter um carro com dois lugares, principalmente porque tinha de transportar Kim e as amigas pelos arredores. Mas Jake já não fazia parte das suas tomadas de decisão, e a maioria dos amigos de Kim tinha carro próprio. Portanto, se havia um bom momento para ter um carro desportivo vermelho brilhante era naquele momento, e que as finanças fossem para o inferno. Amanhã de manhã ia vestir a sua camisola angora cor-de-rosa, as calças pretas, os sapatos de camurça verde, o casaco de couro Calvin Klein e ia sair para comprar um Corvette novinho em folha. Talvez pedisse a Roy Crawford para a acompanhar.

- Pronto, em que lhe posso ser útil? - perguntou Vicki Reynolds, tirando finalmente os olhos do computador e cumprimentando Mattie com uma expressão surpreendentemente leve, sem rugas, a pele tão esticada e lisa que parecia estar de frente para um furacão.

- Gostaria de reservar uma passagem de primeira classe para Paris - disse Mattie, procurando não olhar fixamente para a mulher.

- Parece-me muito bem - disse a agente, abanando as mãos e com os lábios a formar um esboço de sorriso. - Quando quer viajar?

Mattie analisou mentalmente uma série de opções. Já estavam em Outubro e não queria que a sua primeira vez em Paris acontecesse no Inverno, quando a cor predominante da paisagem seria o cinzento. O Verão era tumultuoso demais, cheio de estudantes e turistas e, além do mais, o que faria com Kim? Por mais que amasse a filha, Paris era uma cidade que se associava ao romance, não a adolescentes. Queria que a primeira vez fosse livre e romântica. Talvez até pudesse convencer Roy Crawford a ir com ela.

- Abril - anunciou Mattie, decidida. - Abril em Paris. O que poderia ser mais perfeito?

- Então é Abril em Paris - concordou Vicki Reynolds, com o seu sorriso em linha recta que subiu só um pouco aos cantos, enquanto Mattie se recostava na cadeira e esboçava um sorriso largo, de orelha a orelha.

- Por que é que as mulheres fazem coisas tão terríveis ao rosto? perguntou Roy Crawford, bebendo o seu segundo cálice de Burgundy tinto caríssimo.

Estavam sentados num canto íntimo do pequeno restaurante com a decoração típica da maioria das steakhouses, madeira nas paredes, masculina, escura até mesmo no meio do dia, e comiam bifes grossos suculentos com batatas assadas cobertas com creme, indulgência a que Mattie não se permitia havia anos.

- Por que é que as mulheres fazem estas coisas? - repetiu Mattie, incrédula. - Como é que, logo você pode fazer uma pergunta dessas?

- Que história é essa de logo você? - Roy Crawford passou a mão pelo cabelo farto e grisalho, e alisou um vinco inexistente na gravata de seda azul-claro.

- É porque você vive a trocar as mulheres, por modelos cada vez mais jovens. Vive com uma rapariguinha, por amor de Deus.

- Tem menos a ver com a aparência dela do que com a sua postura diante da vida. Aliás você está muito bonita - continuou, sem se deter.

- Obrigada, mas...

- Se não me tivesses contado o caso do acidente, eu nunca adivinharia.

- Obrigada - disse Mattie mais uma vez, sem saber ao certo por que razão estava a agradecer a Roy Crawford o facto de ele ser tão pouco observador. - Mas não pode estar a falar a sério quando diz que a aparência não tem nada a ver com o facto de os homens procurarem mulheres mais novas.

- Não disse que a aparência não tem nada a ver. Disse que a aparência é menos importante do que a atitude.

- Então, se uma mulher de meia-idade com uma atitude fantástica entrasse aqui, ao lado de uma jovem loura com seios maravilhosos, escolheria a idade e não a beleza?

- Não escolheria nenhuma das duas, já que estou a almoçar com uma das mulheres mais atraentes de Chicago.

Mattie sorriu sem querer.

- Acho que as mulheres, como a agente de viagens de que lhe estava a falar, sentem a necessidade de ir à faca porque pensam que não têm escolha. Precisam de competir com mulheres que têm metade da sua idade, num mercado cada vez mais escasso de homens disponíveis.

- Talvez não estejam a competir com outras mulheres - disse Roy Crawford. - Talvez não estejam a fazê-lo por um homem.

- Como assim?

- Talvez estejam a competir com elas próprias, com a imagem de quem eram. Talvez não queiram simplesmente envelhecer.

- Há coisas piores do que envelhecer - disse Mattie.

- Por exemplo... - Roy deu uma gargalhada e levou à boca um enorme pedaço de bife.

- Morrer jovem - disse Mattie, pousando o garfo no prato e sentindo o apetite

- evaporar-se-lhe de repente.

Abanou a cabeça e prendeu o cabelo atrás da orelha.

- Viva intensamente, morra jovem e seja um belo cadáver - recitou Roy Crawford. - Não é isto que dizem?

- É assim que quer morrer?

- Eu? Morrer? De modo nenhum. vou viver para sempre.

- É por isso que anda atrás de mulheres cada vez mais jovens? Será uma maneira de adiar a morte?

Roy Crawford olhou para o outro lado da pequena mesa e os seus dedos tiraram migalhas invisíveis da toalha branca de linho.

- Está a começar a falar como as minhas ex-mulheres - sussurrou.

- Porque é que os maridos enganam as mulheres? - perguntou Mattie, mudando de repente de assunto.

Roy Crawford recostou-se na cadeira e respirou fundo.

- Isto é algum tipo de teste? - perguntou.

- Teste?

- Ganho algum prémio se der a resposta certa?

- Sabe qual é a resposta certa?

- Tenho resposta para tudo.

- Foi por isso que lhe perguntei.

Roy Crawford bebeu mais um gole de vinho e inclinou o corpo por cima da mesa.

- Tem algum gravador escondido dentro dessa linda blusa de seda?

- Quer revistar-me? - perguntou Mattie, deliberadamente provocante.

- Pois bem, é uma ideia interessante.

- Primeiro tem de responder à pergunta.

- Esqueci-me - disse Roy com ar tímido, e ambos riram.

- Porque é que os homens enganam as mulheres?

Roy Crawford encolheu os ombros, riu e desviou o olhar.

- Conheces aquela velha piada, por que é que o cão lambe as partes íntimas?

- Não - disse Mattie, a imaginar qual seria a associação.

- Porque pode - respondeu Roy, e riu-se mais uma vez.

- Está a dizer-me que os homens enganam as mulheres porque podem? É isso?

- Os homens são basicamente criaturas simples - disse Roy.

- É por isso que agora está aqui comigo? - perguntou Mattie.

- Estou aqui porque me convidou para almoçar e para conversar sobre a compra de um quadro novo para o meu apartamento - lembrou ele.

- O que divide com a Miss América Adolescente.

- Ela é muito madura - disse Roy, com um piscar de olho malicioso.

- Mattie sorriu.

- Tenho a certeza de que tem uma atitude espectacular.

Roy Crawford lançou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, revelando os dentes perfeitos.

- Exactamente.

- Então, repito, o que está a fazer aqui comigo?

- Talvez a pergunta deva ser feita de outra forma, o que é que você está aqui a fazer comigo?

- O meu marido anda metido com uma outra mulher disse simplesmente Mattie.

Roy Crawford abanou a cabeça, as peças do quebra-cabeças foram-se encaixando por trás dos seus olhos.

- Está a querer retribuir-lhe o favor?

- Isso é só uma parte.

- E o resto?

Mattie olhou em volta da sala escura sem um alvo determinado, procurando não ver a amiga Lisa a espreitar por trás dos rostos das outras mulheres no restaurante, esforçando-se por não ouvir a sua mensagem agoirenta no tom sussurrado das vozes das mulheres.

- Talvez não o resto não exista.

Roy Crawford soltou outra gargalhada.

- Ora, pelo menos agradeço a sua franqueza.

- Está aborrecido.

- Pelo contrário, sinto-me lisonjeado. Isto é, acho que poderia ficar ainda mais lisonjeado se me dissesses que sou bonito, que me acha irresistível, mas a vingança está bem. Fico com a vingança. Já resolveu quando será?

Mattie examinou-lhe a expressão do olhar em busca de um sinal de que pudesse estar a troçar dela, mas foi em vão.

- Estou livre esta tarde - respondeu.

- Então que tal tratarmos do assunto agora mesmo? - Roy tirou o guardanapo do colo, pô-lo em cima do que restava do seu bife e acenou ao empregado para pedir a conta. - Para onde vamos?

Mattie ficou um pouco atordoada com a velocidade das coisas. Era isto que querias, lembras-te, pensou no soutien e nas cuecas de seda que acabara de comprar à saída do centro comercial.

- Podemos ir para a minha casa - sugeriu ela, sabendo que Kim planeava assistir a um jogo de futebol depois das aulas e que não voltaria para casa antes da hora de jantar.

- Não é boa ideia - disse Roy. - Os maridos ultrajados costumam aparecer quando menos se espera.

- Não há qualquer possibilidade de isso acontecer - afirmou Mattie.

- Está fora da cidade?

- Está fora, ponto final - explicou Mattie. - Saiu de casa há duas semanas.

- Estão separados? - Roy Crawford parecia admirado, como se acabasse de esbarrar contra um muro de pedra.

- Há algum problema?

- É complicado - reconheceu Roy, esforçando-se por sorrir.

- Complicado? Imaginava que fosse exactamente o contrário.

- Como é que te posso explicar? - Roy Crawford abanou a enorme cabeça. - Deixei de estudar aos dezasseis anos, nem cheguei a acabar a escola secundária. Mas tenho tido sucesso na vida. Porquê? Por dois motivos. O primeiro, porque aproveitei as oportunidades, e o segundo, porque mantenho as coisas o mais simples possível. Agora, se ainda estivesses a viver com o teu marido, o nosso encontro seria uma daquelas grandes oportunidades, simples questão de duas pessoas adultas que desejam um pouco de diversão. A única coisa que poderias esperar de mim seria divertires-te. Uma oportunidade sem obrigações - fez uma pausa, dispensou com um gesto o empregado de mesa que se aproximou com a conta. - O facto de já não estares com o teu marido complica as coisas. Significa que o teu nível de expectativa mudou.

- Não espero nada de si - protestou Mattie.

- Neste momento não. Mas vai esperar. Acredite, falo por experiência própria - fez uma pausa, olhou em volta e chegou-se mais para ela, como se fosse revelar algum segredo profundo e sombrio. - No mínimo, vai esperar um relacionamento. Merece ter um relacionamento. Mas eu já não quero relacionamentos. Não quero ter de me lembrar do seu aniversário, nem de ir consigo escolher um carro novo.

Mattie soltou um ruído sufocado.

- Ofendi-a. Sinto muito. Não era isso que pretendia.

- Não - disse Mattie com a cabeça a andar à roda, efeito da combinação da velocidade da rejeição com a perfeição da previsão que acabara de fazer. - Não me ofendeu. Está absolutamente certo.

- Estou? - Roy soltou uma gargalhada. - Acho que é a primeira mulher que me diz isso.

- Eu também tenho uma atitude bastante aceitável - disse Mattie. Uma mulher de cabelo curto ondulado passou perto da mesa deles e por um segundo, Mattie pensou que Lisa talvez a tivesse seguido até ali e fosse revelar o seu diagnóstico para todos ouvirem.

- Acho que não lhe faz diferença nenhuma se eu disser que posso não estar cá muito tempo.

- Vai mudar-se?

Mattie encolheu os ombros e sorriu com tristeza.

- Estou a pensar nisso.

- Pois bem, não vá para muito longe - Roy acenou mais uma vez ao empregado, pedindo a conta. - As minhas paredes perder-se-iam sem si.

Vive intensamente, morre jovem, pensou Mattie enquanto Roy Crawford entregava o cartão de crédito ao empregado. Sê um belo cadáver.

 

- Porque nunca DIZES QUE ESTOU BONITA?

Jake gemeu, virou-se de costas, depois para o lado esquerdo e puxou o áspero cobertor de lã cor-de-rosa até às orelhas, tentando abafar a voz da mãe.

- Porque nunca dizes que estou bonita?

- Digo-te sempre. Tu é que não ouves - disse o pai de Jake, em tom grosseiro e desinteressado.

Jake ouviu o restolhar distante do jornal nas mãos do pai. Gemeu ainda mais alto, num esforço inútil para não ouvir o que sabia que vinha a seguir. Já tinha ouvido aquilo antes, não o queria ouvir de novo.

- Porque é que não vamos a qualquer lado? Vamos dançar insistiu a mãe, a dançar no primeiro plano do sonho de Jake, preenchendo tudo com o seu cabelo louro e olhos escuros, a saia rodada e florida tentando afastar todas as outras imagens.

Jake viu a mãe balançando-se sugestivamente diante do pai, que continuou sentado a ler o seu jornal, recusando-se a notar a presença dela.

- Ouviste? Disse-te, para irmos dançar.

- Andaste a beber.

- Não andei a beber.

- Sinto o cheiro do teu hálito.

A expressão do rosto da mãe encheu o ecrã gigante do inconsciente de Jake.

- Se não queres ir dançar, tudo bem. Por que é que não vamos ao cinema? Não vamos ao cinema há meses.

- Não quero ir ao cinema. Liga para uma das tuas amigas, se queres ir ao cinema.

- Não tenho nenhuma amiga - ripostou Eva Hart. - Tu é que tens amigas.

Jake virou-lhe de novo as costas, ainda a dormir, resmungando com desagrado. São horas de acordar, sussurrava uma voz dentro da sua cabeça. Gemeu. Não queres ouvir isto.

- Fala mais baixo - avisou o pai. - Vais acordar os miúdos.

- Aposto que não dizes às tuas amigas que falem mais baixo. Quando estão a gritar, a pedir mais, não dizes para falarem mais baixo.

- Pelo amor de Deus, Eva...

- Pelo amor de Deus, Warren - disse ela em tom de troça. Jake viu o rosto da mãe contorcido de raiva.

Warren Hart não disse nada, voltou a prestar atenção ao jornal que levantou em frente da cara, conseguindo tirar a mulher do seu campo de visão. Não, pensou Jake. É a pior coisa que podes fazer. Não deves ignorá-la. Ela não vai simplesmente desaparecer. A mãe era como uma tempestade tropical, a fúria a crescer e ganhar força, varrendo tudo pelo caminho, sem se importar com quem magoava, totalmente obcecada pela necessidade de espalhar o caos, a destruição. Era uma força da natureza e não podia ser ignorada. O pai não saberia disso? Ainda não o teria percebido?

- Achas que eu não sei das tuas amiguinhas? - perguntou Eva Hart. - Achas que eu não sei para onde vais à noite, quando dizes que vais voltar para o escritório? Pensas que eu não sei tudo sobre ti, seu miserável filho da mãe?

Não faças isso, não faças isso, não faças isso.

Eva Hart deu um soco no meio do jornal que o marido estava a ler.

A recordação fez a mão esquerda de Jake subir pelo ar e cair com força na cama, com um ruído seco.

O pai deu um salto da cadeira perto da lareira da sala de estar, atirou o que restava do jornal para o tapete bege. A pequena sala parecia encolher com a sua fúria crescente.

- Estás louca - berrou, andando de um lado para outro atrás do sofá de veludo castanho. - Estás completamente louca.

- Tu é que estás louco - a mãe de Jake avançou para ele, perdeu o equilíbrio e quase fez cair um candeeiro.

- Estou louco porque continuo a viver com uma mulher maluca.

- Então por que é que não te vais embora, meu filho da mãe?

- Talvez vá. Talvez faça exactamente isso.

Jake viu o pai tirar o casaco do armário do vestíbulo e encaminhar-se para a porta da frente.

Não podes ir. Não podes deixar-nos sozinhos com ela. Por favor, volta. Não te podes ir embora.

- Não penses que não sei para onde vais! Não penses que não sei que estás a usar isto como desculpa! Onde é que pensas que vais? Não podes sair assim. Maldito! Não podes

- deixar-me aqui sozinha!

Não vás. Não vás. Não vás.

- Não!

Jake ouviu a mãe a gritar, batendo com a porta que o pai lhe tinha fechado na cara. Os seus gritos angustiados ouviam-se pela sala de estar, pelo corredor da pequena casa enquanto abria a porta do quarto de Jake, o quarto para onde os seus irmãos tinham corrido ao primeiro sinal de zanga, para empilharem os três uma montanha de livros e brinquedos contra a porta, a inútil barricada improvisada perante a força da histeria crescente da mãe.

Jake observou os três irmãos, por trás das pálpebras fechadas, com três, cinco e sete anos de idade, amontoados no espaço seguro que haviam criado no fundo do armário dele, o irmão mais velho, Luke, a olhar para a frente sem o ver, o irmão mais novo, Nicholas, a tremer de medo nos seus braços.

- Vai ficar tudo bem - sussurrou Jake. - Temos água e um kit de primeiros socorros - apontou para as coisas que tinha guardado para o caso de ocorrer exactamente uma emergência como aquela. - Não vai haver problema, se ficarmos quietos.

- Onde diabos estão vocês, desgraçados? - Berrava Eva Hart. - Também me abandonaram?

- Não - gemeu Jake, balançando-se para um lado e para outro na enorme cama. O Jake menino pôs o dedo nos lábios. - Shh - pediu.

- Como puderam abandonar-me? - gritou a mãe na escuridão do minúsculo quarto. - Há alguém nesta casa miserável que goste de mim?

Jake sentiu a pressão nos pulmões das crianças que sustinham a respiração. Gemeu de dor e virou-se para o lado direito.

- Já não posso viver mais assim - gritou Eva Hart. - Estão a ouvir-me? Não posso viver mais assim. Ninguém gosta de mim. Ninguém se importa com o que se passa comigo. Para vocês tanto faz que esteja viva ou morta.

Nicholas começou a chorar. Jake pôs a mão delicadamente sobre a boca do irmão e

beijou-lhe o cabelo, cortado à pajem.

- Então é aí que vocês estão - disse a mãe ao chegar perto da porta do armário, com passos pesados sobre o tapete.

Luke deu um salto, agarrou na maçaneta da porta do armário já trancada e segurou-a com força, enquanto ela rodava nas suas mãos.

- Malditos - berrou a mãe, dando um pontapé na porta antes de desistir. - Não importa. Nada importa - ouviram um barulho. O meu avião de aeromodelismo, pensou Jake, o que passara horas a montar com todo o cuidado. Mordeu o lábio, para não chorar. - Sabem para onde eu vou agora? Sabem o que vou fazer? - A mãe esperou. - Não precisam de responder. Eu sei que estão a ouvir. Por isso, vou dizer o que vou fazer, porque ninguém gosta de mim e ninguém se importa se eu viver ou morrer. vou para a cozinha, vou ligar o gás e amanhã, quando o vosso pai voltar para casa depois de dormir com a namorada, vai encontrar-nos todos mortos nas nossas camas.

- Não - soluçou Nicholas nos braços de Jake.

- Não - disse Jake, tirou o cobertor das costas e deu-lhe um pontapé para longe dos pés.

- Estou a fazer-vos um favor - disse a mãe, tropeçando nos livros e nos brinquedos que havia derrubado. Caiu no chão, levantou-se de novo e atirou com um sapato à porta trancada do armário. - Vocês nem saberão o que está a acontecer. Vão morrer em paz, enquanto dormem - resmungava ela, saindo aos encontrões do quarto, deixando que uma risada maníaca pairasse no ar atrás dela.

- Não! - gritou o Jake menino, agarrando os irmãos com toda a força.

- Não! - gritou Jake, agitando os braços em todas as direcções, batendo na almofada, no outro lado da cama.

Ouviu um grito sufocado, sentiu carne e osso sob a palma da mão aberta, abriu os olhos e ouviu os gritos apavorados de Honey.

- Meu Deus, Jason, o que está a acontecer?

Foram necessários alguns segundos para o menino crescer e voltar a ser homem, para os olhos do homem conseguirem focar, para o seu cérebro registar onde estava.

- Desculpa - murmurou ele, a testa encharcada em transpiração que lhe pingava para os olhos, misturada com as lágrimas. - Meu Deus, Honey, desculpa. Magoei-te?

Honey puxou o nariz de um lado para outro com os dedos.

- Acho que não está partido - respondeu ela, estendendo a mão Para lhe acariciar o braço. - O que foi? Aquele sonho outra vez?

Jake baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos, o corpo todo Pegajoso e frio.

- Não sei o que se passa comigo.

- Andas muito preocupado - Honey acendeu a luz ao lado da cama.

Nesse momento as cores distantes da infância de Jake foram substituídas pelo aconchego do tom de pêssego do quarto onde estava Honey afastou as madeixas ruivas do rosto e sorriu, sem saber o que fazer, quando elas voltaram ao mesmo sítio.

- Queres falar sobre o sonho?

Ele abanou a cabeça, com o cabelo molhado colado à testa.

- Não me lembro nem de metade.

Era mentira. Lembrava-se de cada movimento, de cada arrepio, de cada palavra. Mesmo agora, com os olhos bem abertos, podia ver-se, um miúdo de cinco anos de idade, a sair de gatas do seu esconderijo para abrir a janela ao lado da cama, conseguindo uma fresta de apenas alguns centímetros mas que seriam suficientes, garantiu repetidamente para tranquilizar os irmãos, sentados, acordados e abraçados a noite inteira, para garantir a própria segurança. O gás já não lhes poderia fazer mal.

- Acho que ainda não me habituei a dormir com a janela fechada disse Jake, timidamente.

- Achas que a janela tem relação com os teus pesadelos? - Honey parecia confusa, o que era bastante compreensível.

Jake encolheu os ombros, abanou a cabeça e evitou a preocupação dela com um gesto da mão. Era um homem feito, pelo amor de Deus. A mãe tinha morrido havia anos. Podia certamente habituar-se a dormir com a janela fechada.

- Sinto muito, Jason. É por causa dos gatos. Uma vez alguém deixou a janela um bocado aberta, e o Kanga fugiu. Só voltou a aparecer dias depois.

Como se ouvissem a deixa, os dois gatos pularam para cima da cama. Kanga era um gato amarelo às riscas de oito anos, Roo tinha quatro, e era todo preto. Eram os dois machos e não gostaram da ideia de ter de dividir a atenção da dona com aquele rival retardatário de duas pernas. Jake correspondia-lhes da mesma forma. Nunca fora apreciador de gatos, preferia os cães, apesar de Mattie nunca ter querido um cão. Mattie, pensou, empurrando Kanga para longe das suas pernas, saindo da cama e enfiando um roupão azul-escuro sobre o corpo nu. Porque estaria agora a pensar nela?

Viu Honey a desaparecer na casa de banho, as nádegas despidas a balançar, provocantes sobre umas pernas muito magras, o cabelo num amontoado caótico e vermelho. Segundos depois saiu da casa de banho com um roupão turco branco, o cabelo preso com um elástico no alto da cabeça, num esforço consciente para impor a ordem, embora várias madeixas já se tivessem soltado, caindo-lhe pelo pescoço.

- Que tal se fizer um café para nós? - sugeriu Honey, espreitando o relógio da mesa-de-cabeceira. - De qualquer modo já são horas de nos levantarmos.

- Boa ideia.

- O que dizes a ovos com bacon? - propôs.

- Só café está bem.

- Então é café.

Estás a ver?, pensou Jake. Era essa a grande diferença entre Mattie e Honey. Mattie teria insistido nos ovos com bacon.

- Tens a certeza? - teria Mattie perguntado. - Devias comer alguma coisa, Jake. Sabes que o pequeno-almoço é a refeição mais importante do dia.

E ele acabava por ceder, comia o bacon e os ovos que não queria, ficava pesado e mole o resto da manhã. Honey aceitava o que ele dizia. Não havia interpretações. Nada de tentar adivinhar o que ele realmente queria dizer. Ele dizia que só queria café, e só tinha café.

Honey abraçou Jake e deu-lhe um beijo na boca. Sentiu o gosto a pasta de dentes, o perfume de lilases na sua pele.

- Acho que toucinho com ovos seria bom - disse ele. Ela sorriu.

- Estás nervoso com a reunião de hoje?

- Talvez um pouco.

Jake tinha uma reunião importante com um potencial cliente, um empresário, dono de uma fortuna e de influência consideráveis, que estava a ser acusado de ter estuprado algumas mulheres mais de vinte anos atrás, o que negava terminantemente. Prometia ser o tipo de caso picante e sensacionalista que Jake adorava. Mas não estava nervoso pelo encontro com esse cliente. Estava nervoso com o encontro com Mattie, marcado para mais tarde.

Tinham passado quase duas semanas desde o diagnóstico arrasador de Lisa. Durante esse tempo Mattie havia conseguido uma segunda opinião, e depois uma terceira. Os médicos, um, o chefe do serviço de neurologia do Hospital Geral Northwest, o outro, o neurologista de uma clínica particular em Lake Forest, concordaram em tudo. Esclerose lateral amiotrófica. E. L. A. Doença de Lou Gehrig. Uma doença neuromuscular, de progressão rápida, que atacava os neurónios motores que levavam as mensagens aos músculos, resultando em fraqueza e desgaste dos braços, pernas, boca, garganta e outras partes do corpo, culminando numa paralisia completa, enquanto a mente continuava lúcida.

E como tinha reagido Mattie a cada nova opinião? Tinha saído e comprado um novo Corvette, por amor de Deus, e para ela era perigozo conduzir qualquer automóvel. Gastara quase vinte mil dólares em compras com o seu cartão de crédito. Marcara uma viagem a Paris para a Primavera. E, além disso, continuava a recusar a medicação apesar de Jake lhe ter comprado o remédio. Para quê tomar o remédio insistia, se estava a sentir-se perfeitamente bem? O formigueiro nos pés tinha desaparecido, as mãos estavam a funcionar esplendidamente, e não tinha problemas em engolir, falar ou respirar, graças a Deus. Os médicos estavam enganados. Se tinha de facto esclerose lateral amiotrófica, obviamente estava em remissão.

Jake compreendia que Mattie estava a passar por uma fase de negação, e ficava a imaginar qual seria a sua reacção se recebesse uma notícia dessas. Mattie era uma mulher jovem e bela, a começar uma vida nova, e, de repente, bum! Fraqueza, paralisia, morte. Não admirava que não quisesse acreditar. E talvez, apenas talvez, estivesse certa, e os outros errados. Não seria a primeira vez. Mattie era forte, era obstinada, era indestrutível. Sobreviveria a todos eles.

- No que é que estás a pensar? - perguntou Honey, mas Jake percebeu pelos olhos dela que já sabia. - Ela vai ficar bem, Jason.

- Ela não vai ficar bem - disse ele baixinho.

- Desculpa. Não se trata de conversa fiada. Só quis dizer que ela vai saber enfrentar o que está a acontecer. Vai começar a tomar os remédios, vais ver. Não tens de te preocupar tanto. A Mattie sabe que vais tratar para que tenha a melhor assistência médica e que te encarregarás da Kim. Não podes fazer mais nada - beijou-lhe o canto dos lábios, entrelaçou os dedos nos dedos dele. - Vem. Vamos arranjar qualquer coisa para comer. Hoje é um dia importante para ti.

- Já vou. Só quero tomar um duche e lavar os dentes...

- Está bem. Grita quando estiveres pronto.

Jake seguiu Honey com os olhos até esta sair do quarto. Mesmo por baixo do grosso roupão turco conseguia perceber os contornos daquele traseiro maravilhoso. Devia ter tido relações com ela a noite passada, pensou, em vez de dizer que estava exausto, deixando que a preocupação com Mattie lhe sugasse as energias. Ia compensá-la naquela noite. Ou talvez até mesmo naquela manhã.

Olhou para a desordem que tinha causado na cama, o cobertor no chão, os lençóis com flores cor-de-rosa enrolados, as almofadas de penas todas amachucadas. Na verdade a cama combinava com o resto do quarto, incrivelmente desarrumado. Honey era uma daquelas pessoas que não conseguia deitar nada fora. Era uma coleccionadora, de revistas velhas, de bijutarias fora de moda, de canetas diferentes, de tudo aquilo que atraísse a sua curiosidade. E o resultado era que cada centímetro quadrado do espaço do apartamento estava ocupado por alguma coisa. Moedas e lenços delicados de seda cobriam a antiga cómoda de pinho; um monte de jornais numa pequena cadeira de madeira espreitava por baixo de uma colecção de blusas de seda que ela raramente se dava ao trabalho de pendurar no armário, que estava a abarrotar de vestidos mais formais e conjuntos que Honey nunca usava. Bonecas antigas, com roupas de renda branca requintada, amontoadas perto da janela, ao lado de uma colecção de animais de peluche da sua infância. Havia cestos por toda a parte. Percebia-se porque razão quase não havia lugar para as coisas dele. Já tinham falado a respeito de se mudarem para uma casa maior.

Jake sabia que as coisas não estavam a ser fáceis para Honey. Entrou na casa de banho e atirou com o roupão para cima dos dois gatos que lhe arranhavam os dedos dos pés. Protestaram ambos ruidosamente e saíram a toda a pressa da minúscula casa de banho quando Jake entrou para o duche e abriu a água no máximo. Nesse mesmo instante a água quente jorrou e bateu-lhe na cara, como se estivesse a ser picado por centenas de insectos malignos. Jason menino mau, sibilava a água.

 

         Jasonmeninomau.

         Jasonmeninomau.

         Jasonmeninomau.

 

Honey não tinha pedido nada daquilo, pensou Jake, pondo a cabeça directamente por baixo do largo bocal do chuveiro, para que a torrente de água a ferver lavasse o som da voz da mãe enquanto a água lhe escorria do alto da cabeça e lhe descia como uma cascata pela testa, entrando-lhe nos olhos. Honey tinha-se apaixonado por um homem com um casamento infeliz. Podia ter tido esperança de que ele deixasse a mulher. Podia ter sugerido que um dia fossem morar juntos. Duvidava que pudesse ter previsto que ele se mudasse para o apartamento dela tão depressa. Duvidava que estivesse preparada para enfrentar o peso da doença demorada e da morte prematura da mulher dele, que estivesse pronta para ser mãe de uma adolescente revoltada e perplexa.

As últimas semanas tinham sido uma montanha-russa para todos. Ainda estavam a derrapar, sem equilíbrio, com medo de morrer. Honey e ele, contudo, escapariam com vida. Mattie não teria tanta sorte.

Tinha pesquisado muito nessas semanas, depois de Lisa Katzman ter chamado os dois ao seu consultório. Nem todos os doentes morriam tão depressa como Lisa a princípio sugerira. Alguns viviam até cinco anos, e vinte por cento dos pacientes com E. L. A. atingiam um estágio da doença em que, sem qualquer motivo compreensível, o quadro estacionava. Pessoas como Stephen Hawking, o famoso físico inglês que viveu mais de vinte e cinco anos com a doença, e funcionava suficientemente bem para abandonar a mulher que estivera a seu lado a maior parte desses anos, trocando-a por outra.

Homens, pensou Jake, fechando a torneira com um movimento forte do pulso. Somos mesmo uns canalhas.

Saiu do duche, enxugou o corpo com uma das toalhas cor-de-rosa de Honey e imaginou se algum dia se iria habituar a tanto cor-de-rosa? Seria possível Mattie viver mais vinte e cinco anos, a ser consumida lentamente, prisioneira do seu próprio corpo? Seria que ela o desejava?

- Jason? - chamou Honey.

Jake imaginou Honey de pé no meio da pequena cozinha, rodeada pela sua colecção de jarras antigas e de louça cor-de-rosa.

- Estás pronto?

- Dois minutos - respondeu ele, usando a ponta da toalha para secar o vapor do espelho por cima do lavatório e vendo a sua imagem embaciada e distorcida, aparecendo e desaparecendo na fina névoa.

Como podia abandoná-la sem mais nem menos? pensou quando o rosto de Mattie se sobrepôs ao dele. Ela compartilhara a sua vida durante quase dezasseis anos. Como podia deixá-la, se Mattie só tinha mais um ou dois anos de vida? Ou três. Ou cinco.

Como podia deixá-la desgastar-se até ao fim?

Já desperdiçaste mais de quinze anos da tua vida.

Como podia deixar Mattie morrer sozinha?

Todos morremos sozinhos. Pensa no teu irmão. Pensa em Luke!

Como podia deixá-la indefesa, a sufocar no seu próprio medo?

Sufoquei lentamente até à morte toda a minha vida.

E então, o que é mais um ano, talvez dois?

Ou três. Ou cinco.

Como podia voltar para ela se não a amava, se finalmente tivera coragem de a deixar?

Não precisas de a amar. Só precisas de ficar a seu lado.

Que tipo de homem a abandonaria agora? Que tipo de homem seria, fazendo uma coisa assim?

Jason, menino mau. Jason, menino mau. Jason, menino mau.

 

         Jasonmeninomau

         Jasonmeninomau

         Jasonmeninomau

 

Mattie prendera Jake dezasseis anos antes e estava a aprisioná-lo de novo. Não importava que estivesse a morrer, que não tivesse o controle da situação, que não quisesse que aquilo acontecesse, tal como ele não queria. O resultado final era o mesmo. Estava preso. Estava enterrado vivo, junto a ela.

- Merda, filho da mãe, merda! - gritou, dando socos no espelho e deixando a impressão nítida do seu punho no vidro embaciado.

- Jason, estás bem? - Honey estava parada à porta da casa de banho cheia de vapor.

Parecia tão distante, pensou Jake, com medo de desviar os olhos e Honey desaparecer por completo. Quanto tempo iria esperar?

- Honey...

- Ai, ai. Acho que não gosto desse tom.

Jake estendeu a mão, segurou a dela, levou-a de volta para o quarto e sentaram-se os dois na beira da cama.

- Temos de conversar - disse ele.

 

- EU NÃO QUERO CONVERSAR - PROTESTOU MATTIE Levantando a voz, enquanto saía da cozinha furiosa e a resfolegar. - Já te disse isso. Pensei que já tinhas percebido.

- Não temos escolha, Mattie - disse Jake, seguindo-a até à sala de estar. - Não podemos limitar-nos a ignorar o que está a acontecer.

- Não está a acontecer nada.

Mattie começou a andar em círculos pela sala, como um cão a tentar morder a própria cauda, estendendo os braços compridos e mantendo o marido a uma distância confortável. Estava de jeans e com uma velha camisola vermelha, e calçava chinelos gastos de xadrez. Ele estava com o seu uniforme de advogado - fato conservador de flanela de lã cinzenta, camisa azul-claro, gravata azul mais escuro. Não combinavam bem os dois, reflectiu Mattie, pensando que deveria usar pelo menos uns sapatos decentes. Mas andava a ter problemas com os sapatos nos últimos dias. Prendia as biqueiras no chão e tropeçava nos próprios pés. Os chinelos eram mais fáceis.

Olhou para as janelas que ocupavam a maior parte da parede sul da sala de estar, a pensar na piscina recém-despejada lá fora, sob a capa protectora de Inverno, uma coisa feia, de plástico, que parecia um enorme saco de lixo verde. Mattie sofria sempre de uma espécie de abstinência de nadador naquelas primeiras semanas após a piscina ser desactivada. Esse ano estava a ser pior do que os outros. Talvez no ano seguinte pudesse cobrir a piscina. Seria dispendioso, sabia, mas valeria a pena, Assim poderia nadar todos os dias, durante o ano inteiro. Jake podia torcer o nariz mas, que diabos, que torcesse.

Mattie estava também a pensar em estofar novamente as duas poltronas que ficavam em frente da janela, trocando as riscas de algodão douradas e cor-de-rosa por algo mais suave, talvez veludo, mas iria manter a cadeira estampada de bege e dourado e o tapete bordado. Jake podia levar o piano de cauda que ficava no canto sudoeste da sala, sem uso e ignorado desde que Kim desistira das aulas alguns anos atrás, mas ia lutar com unhas e dentes para ficar com a pequena estatueta Trova, de bronze, que estava ao lado do piano, as duas fotografias de piane Arbus na parede logo atrás, o quadro de Ken Davis que forçava um ângulo recto com ela, e a litografia de Rothenberg que ocupava grande parte da parede em frente, por cima do sofá.

Não era por isso que Jake lá estava? Para dividir o espólio?

Fora isso que tinha imaginado quando ele telefonara na véspera e dissera que ia lá às duas da tarde, que tinham algumas coisas a discutir. Mas quando chegou ao degrau da porta, da porta dela, com um sorriso triste, o tipo de sorriso que lhe fazia ter vontade de dar um pontapé naqueles dentes perfeitos, e uma expressão de velhaco que anunciava a seriedade das suas intenções antes mesmo de abrir a boca, ela soube que a discussão não seria sobre dar andamento ao divórcio, nem para decidir quem iria ficar com o quê. Ia ser uma repetição das últimas semanas, mais uma daquelas pressões subtis que podia funcionar bem com os jurados, mas que não a impressionava de modo nenhum, os pedidos gentis para fazer-com-que-ela-visse-as-coisas-do-seu-modo, as tentativas para a forçar a encarar a verdade que ela não queria reconhecer ou aceitar.

Nas últimas duas semanas Jake tinha telefonado pelo menos uma vez por dia. Insistira em acompanhá-la às consultas médicas no Hospital Geral Northwest e na clínica em Lake Forest. Correra para a farmácia e comprara o medicamento que ela não fazia a mínima intenção de tomar. Estava sempre à disposição dela. Resumindo, subitamente transformara-se em alguém que nunca existira nos quase dezasseis anos de casamento: um marido.

- Volta para o teu escritório - disse-lhe Mattie. - És um homem muito ocupado.

- Já terminei por hoje.

Mattie não fez qualquer esforço para esconder o seu espanto.

- Meu Deus, devo estar mesmo doente - disse.

- Mattie...

- Foi só uma piada, Jake. Aquilo a que chamam humor negro. De qualquer modo - continuou antes que Jake a pudesse interromper -, se já terminaste por hoje, por que não passas o resto do dia com a tua namorada? Tenho a certeza de que ela ficará encantada por te ver em casa tão cedo.

- Não vou voltar para lá - disse Jake tão baixo que Mattie ficou sem saber se tinha ouvido bem.

- O quê? - perguntou ela sem querer.

- Não posso voltar para lá - disse, mudando de repente as pálpebras, sem explicar mais nada.

- Ela pôs-te na rua? - perguntou Mattie, incrédula.

Jake abandonara-a depois de quase dezasseis anos por uma mulher que o mandava embora em menos de três semanas? E agora ele esperava que ela pura e simplesmente esquecesse aquela traição, que enterrasse toda a raiva e a mágoa, e o recebesse de volta de braços abertos? A minha casa é a tua casa? Nada disso, meu amigo. Não é assim que as coisas funcionam.

- Foi uma decisão mútua - explicou Jake.

- Decidiram exactamente o quê?

- Que eu devia voltar para casa.

- Para casa - repetiu Mattie. - Estás a dizer que esperas voltar para cá?

- Estou a dizer que quero voltar para cá.

- E porquê?

O aperto na boca do estômago dizia a Mattie que ela já conhecia a resposta. Ele queria voltar para casa, não porque a amasse, não por ter descoberto que tinha cometido um erro terrível, não porque quisesse ser o seu marido, nem mesmo porque a namorada lhe tivesse dado um pontapé no traseiro, mas porque achava que ela estava a morrer.

- Este casamento não precisa de uma segunda oportunidade, Jake disse-lhe Mattie zangada. - Está acabado, terminado, morto e enterrado. Nada mudou desde que te foste embora.

- Mudou tudo.

- Ah, é? Tu amas-me?

- Mattie...

- Sabias que durante mais de quinze anos de casamento nunca disseste que me amavas? Estás a tentar dizer-me que isso mudou?

Jake não disse nada. O que podia dizer?

- vou tornar isto mais fácil para ti, Jake. Tu não me amas.

- Tu é que não me amas - respondeu ele.

- Então por que é que estamos a discutir? Concordamos um com o outro. Não há motivo para voltares.

- É a decisão certa - disse Jake simplesmente.

- Quem te disse?

- Ambos sabemos que é a decisão certa.

- E tomaste essa decisão exactamente quando?

- Ando a pensar sobre isto há já alguns dias. Esta manhã resolvi por fim!

- Pois. E a tua namorada? O que foi que resolveste para ela?

Jake passou os dedos pelo cabelo escuro e afundou-se nas almofadas macias do sofá.

- Mattie, nada disso é relevante.

- Agora não estás no tribunal, doutor. Aqui a juíza sou eu, e acho isso muito relevante. Ordeno que respondas à minha pergunta.

Jake olhou para o outro lado, fingiu examinar a pintura impressionista de Ken Davis, que mostrava a tranquila esquina de uma rua, com o sol de Verão a brilhar rosado através das árvores.

- Falámos sobre isso esta manhã. Ela concordou comigo.

- Concorda com o quê?

- Que eu devo ficar aqui, contigo e com a Kim.

- A tua namorada acha que deves ficar em casa com a tua mulher e a tua filha. Ela é brilhante. E o que é que ela vai ficar a fazer enquanto estás aqui com a tua mulher e a tua filha?

Jake abanou a cabeça, ergueu a mão no ar, como se quisesse dizer que não sabia, como se sugerisse que já não era problema seu.

- O que lhe disseste, Jake? Acho que tenho o direito de saber continuou Mattie ao ver que ele não respondia.

- Ela conhece a situação - disse Jake finalmente.

- Ela acha que eu estou a morrer - Mattie recomeçou a andar de um lado para o outro em frente ao marido, como um tigre enjaulado, zangada e pronta para atacar. - Então o que ela pretende é esperar que eu morra, não é verdade? Acha que pode aguentar durante um ano ou dois, desde que eu não dure muito mais tempo?

- Ela pensa que devo ficar aqui.

- E é muito compreensiva. Vê-se bem. E então? Vais continuar a encontrar-te com ela? É esse o teu plano? Assim pode ser nobre, esclarecida, compreensiva e uma vadia, tudo ao mesmo tempo?

- Por amor de Deus, Mattie...

- Aliás, como é que ela se chama?

Mattie viu um brilho fraco nos olhos de Jake e achou que era um sinal de indecisão. Devia dizer-lhe, ou não? Valeria a pena? Iria beneficiar a sua causa? O que faria com essa informação? Poderia usá-la contra ele?

- Honey - respondeu ele baixinho.

 

1 Honey significa mel, mas é também um nome carinhoso: queridinha, amor. [N.T.]

 

Por um segundo Mattie achou que ele estava a falar com ela. Sentiu o seu corpo a aproximar-se para perto dele, o coração acelerado, as defesas a dissolverem-se.

- Honey Novak.

- O quê?

- O nome dela é Honey Novak - repetiu, o corpo de Mattie abrandou e deteve-se.

- Honey. Que doce. Perdoa o trocadilho - acrescentou Mattie e a seguir riu-se, numa breve explosão maníaca de energia. Era tão parva Num simples momento de ternura imaginada já estava pronta a ceder a entregar-se, a desistir, a concordar com qualquer coisa. - É esse o seu verdadeiro nome?

- Parece que foi uma alcunha de infância que pegou - disse Jake.

- É muito apropriado. Honey pegou porque o mel é pegajoso mais uma vez Mattie deu uma gargalhada com o som mais agudo, fora do normal. - o mel é pegajoso - repetiu, tentando evitar que o riso aumentasse, alastrasse, espalhasse o seu veneno. Mas era como se a gargalhada tivesse uma existência independente de si, como se alguma forma de vida alienígena assumisse o controle do seu corpo e usasse os seus pulmões e a sua boca para enviar uma mensagem maligna. Não conseguia parar. Não conseguia livrar-se dela. - Oh, meu Deus - gemeu. - Meu Deus, meu Deus, meu Deus.

Então começou a engasgar-se, ficou com falta de ar, arfando, mas não havia ar, não conseguia respirar. Uma força estranha dava gargalhadas, engasgava-se e tossia, expelindo a vida para fora do seu corpo.

Jake levantou-se de imediato e rodeou-a com os seus braços, segurou-a até ela sentir aqueles sons horríveis começarem a morrer-lhe na garganta, a tosse a parar e a respiração a voltar a pouco e pouco ao normal. Desenvencilhou-se de imediato do abraço do marido, respirou fundo uma vez, depois outra, secou as lágrimas dos olhos e passou as costas da mão pelo nariz. Quanto tempo levariam as mãos a deixar de funcionar?, pensou, e o pânico cresceu-lhe na boca do estômago. Quanto tempo faltaria para já não ser capaz de secar as suas próprias lágrimas? Mattie foi até ao piano no outro canto da sala e bateu com a mão nas teclas. Um punhado dissonante de sustenidos e bemóis explodiu no ar/ berrando o seu protesto, como um lobo na noite.

- Bolas! - Gritou Mattie. - Que inferno!

Por momentos ninguém se mexeu, ninguém disse nada.

- Precisas de alguma coisa? - perguntou Jake, com voz firme, apesar de toda a cor se lhe ter esvaído da cara.

Mattie negou com a cabeça, com medo de falar. Se falasse teria de reconhecer o que ambos já sabiam: que os resultados dos exames eram conclusivos, que ela estava a morrer, que Jake tinha razão... tinha mudado tudo.

- vou a Paris em Abril - disse ela finalmente.

- Que bom - a calma na voz de Jake foi traída pelo espanto nos seus olhos. - vou contigo.

- Vais comigo?

- Nunca estive em Paris.

- Nunca quiseste. Nunca tinhas tempo - relembrou-lhe Mattie.

- vou arranjar tempo.

- Porque eu estou a morrer - disse ela calmamente, uma afirmação, não uma pergunta.

- Por favor, deixa-me ajudar-te, Mattie.

- Como é que me podes ajudar? - Olhou para o marido de quase dezasseis anos. - Como é que qualquer pessoa me pode ajudar?

- Deixa-me voltar para casa - disse ele.

Mattie estava sentada sozinha no sofá da sala de estar, no mesmo espaço que Jake havia ocupado, procurando entender aquela tarde, as últimas semanas, os últimos dezasseis anos. Que diabos, podia aproveitar para rever os últimos trinta e seis anos. Afastou o cabelo da cara e secou o que parecia ser uma fonte inesgotável de lágrimas.

Os olhos vaguearam até à rua ensolarada do grande quadro a óleo de Ken Davis, na parede à direita do piano. Apercebeu-se que era uma rua bastante parecida com a rua onde tinha morado em criança, mas aquela era a primeira vez que fazia conscientemente a associação. Nesse mesmo instante viu uma criança muito loura de oito anos a saltitar por aquela rua ensolarada, voltando da casa de Lisa, louca para chegar a casa e almoçar. O pai ia levá-la ao Art Institute. Havia uma exposição de pintores impressionistas que ele lhe queria mostrar. Havia semanas que não falava de outra coisa. Aquele era o seu grande dia.

Mas onde estava o carro dele? O carro dele já não se encontrava em frente de casa, e estava lá quando ela saíra de manhã, para ir ali Perto, a menos de meio quarteirão, visitar Lisa. E agora o carro do pai Já lá não estava, mas talvez ele tivesse saído por uns minutos, para comprar alguma coisa para o almoço, e voltaria em seguida. Não precisava de se preocupar. O pai voltaria daí a breves instantes.

É evidente que ele não voltara. Nunca mais voltara. A mãe explicara-lhe que o pai tinha fugido com alguma prostituta do escritório dele, e apesar de Mattie não entender o que era aquilo que a mãe chamava "prostituta", sabia que queria dizer que o pai não ia voltar a tempo de a levar ao Art Institute.

Nas semanas imediatamente após a deserção do pai, Mattie ficava sentada ao lado da mãe enquanto esta apagava sistematicamente qualquer rasto de Richard Gill da casa. Metera as suas roupas em caixas que enviou para o Exército da Salvação, queimara todos os papéis e documentos que ele deixara para trás, recortara o rosto dele de todas as fotografias da família, de forma que, passado algum tempo, era como se ele nunca tivesse existido. E então Mattie reparou que a mãe também tinha deixado de olhar para ela.

- Sempre que olho para ti, vejo o teu pai - explicara-lhe a mãe irritada, mandando embora Mattie, enquanto estava ocupada com o seu novo cãozinho.

E assim, sempre que voltava da escola, Mattie corria para os álbuns de fotografias para se certificar de que não tinha sido decapitada, que continuava lá com o seu sorriso de criança, uma certeza de que com o tempo tudo acabaria em bem.

Mas não acabou. Por mais que tentasse, por mais que rezasse desesperada, nada lhe trazia o pai de volta, nada fazia com que a mãe a amasse. Nem as notas que tinha na escola, nem as bolsas que conseguia. Nenhuma conquista sua conquistava nada.

E o que é que Mattie realmente conquistara? Pensou no presente, libertando-se da pintura na parede do outro lado da sala. Levantou-se do sofá, arrastando os pés até à cozinha, com os chinelos gastos de xadrez. Tinha trocado um lar sem amor por outro, tinha dedicado dezasseis anos a um homem que a deixara por uma prostituta.

No fim de contas, a sua vida resumia-se a três palavrinhas... estava a morrer. Deu uma gargalhada e de repente sentiu medo. Medo do som da minha própria gargalhada, compreendeu Mattie com tristeza. Uma coisa que acontecia com cada vez mais frequência.

É evidente que ainda havia uma hipótese mínima de os médicos estarem enganados. Talvez, se consultasse outro especialista, se concordasse em fazer mais exames, se fosse para o México em busca de cura, encontrasse alguém que lhe pudesse dar um prognóstico diferente, encontrasse o final feliz que procurara toda a vida. Mas não havia final feliz. Não existia cura. Apenas havia uma droga chamada Riluzole. E apenas oferecia alguns meses a mais. Mattie andou pela cozinha a arrastar os pés e pegou no frasco do medicamento que estava sobre o aparador.

- Se resolver Tomá-lo - disse em voz alta, repondo o frasco de comprimidos no tampo do aparador, sem o abrir.

Como é que a mãe reagiria à notícia?, imaginou Mattie, tentada a pegar no telefone e a ligar-lhe naquele momento. Seria que a mãe lhe ia começar a cortar o rosto nas fotografias da família, ou começaria lentamente pelos pés, subiria pelos braços e mais tarde até ao tronco, imitando o curso da doença, de modo que, passado algum tempo, só restasse a cabeça de Mattie?

Um pai sem rosto. Uma filha sem corpo. Uma mãe sem perceber nada de nada. Que família!

E agora Jake queria voltar para casa, fazer parte da sua vida, pelo tempo que lhe restasse. Tinha dito que era porque queria fazer o que estava certo. Mas seria aquilo que estava certo? E para quem?

- Vais precisar de alguém para te levar de carro aos sítios onde tens de ir - argumentou ele, apelando ao sentido prático de Mattie quando todos os outros argumentos falharam.

- Posso conduzir.

- Tu não podes conduzir. E se sofreres outro acidente? E se matares alguém? Por amor de Deus!

- A Kim vai tirar a carta de condução daqui a uns meses. Pode conduzir em meu lugar.

- Não achas que a Kim já terá de enfrentar muita coisa?

Foi aquela pergunta, espantosamente simples, que obrigou Mattie a render-se. Como podia pedir que Kim fosse o seu único apoio emocional, que a levantasse quando caísse, que cuidasse dela quando já não fosse capaz de cuidar de si própria, para recolher os pedaços das suas vidas desfeitas sem ter de se desfazer? A sua linda menina, pensou Mattie, a sua querida Miss Grundy. Como iria a filha sobreviver sem ela?

- Como vou ser capaz de te contar que vais ficar sem mim? perguntou em voz alta, ouvindo a chave rodar na fechadura.

- Mãe? - chamou Kim da entrada. A porta abriu-se e fechou-se num arco contínuo. - Que se passa? - perguntou quando Mattie apareceu à porta da cozinha. - Parece que estiveste a chorar.

Mattie abriu a boca para falar mas foi interrompida pelo barulho de um carro a chegar.

Kim deu meia volta e espreitou pelo vidro no da porta da frente.

- É o pai - disse Kim, claramente confusa, voltando-se para a mãe. - O que está ele a fazer aqui?

 

- JURA DIZER A VERDADE, SÓ A VERDADE E NADA MAIS QUE A verdade?

- Juro.

- Por favor, diga o seu nome e morada.

- Leo Butler. State Street, cento e quarenta e sete, Chicago.

- Pode sentar-se.

Do lugar da defesa Jake observou Leo Butler, um homem meio calvo e bem vestido de sessenta e dois anos, retirar a mão de cima da Bíblia e sentar-se lentamente na cadeira. Mesmo sentado continuava uma figura imponente, com um metro e noventa e sete de altura apertado e pouco à vontade, no pequeno banco das testemunhas, os ombros largos por baixo do casaco castanho de caxemira, o pescoço grosso, as mãos grandes e ásperas apesar das unhas bem tratadas. Podia-se tirar um homem à sua equipa de futebol, pensou Jake com os seus botões, mas não era tão fácil retirar o futebol do homem. Não quando o homem em questão era Leo Butler, que jogara à defesa na equipa da universidade. Herdara do pai o imenso império de vestuário aos vinte e cinco anos e praticamente levara-o à falência dez anos depois. Fora salvo pela mulher, Nora, que o livrara da bancarrota logo após o casamento, havia já trinta e um anos, e lhe dera um tiro nas costas nas vésperas do divórcio.

Jake sorriu para a mulher pequena, bonita e de cabelos brancos sentada a seu lado, no lugar da defesa, com as mãos unidas sobre o vestido de seda cinzenta, as veias azuis pronunciadas competindo nos seus dedos com a ofuscante colecção de diamantes.

- Fui eu que os paguei - dissera a Jake na primeira entrevista. - Porque não haveria de os usar?

Jake compreendeu então, e sabia agora, que obviamente ela não era tão delicada como parecia. Dura por dentro, delicada por fora - a perfeita combinação para uma ré num julgamento de tentativa de homicídio em que a força era tão importante como a aparência, e a aparência geral, era tão importante como as provas. Jake sabia que o júri, muitas vezes ignorava o que ouvia, favorecendo aquilo que via. A aparência de que a justiça estava a ser feita era, no mínimo, tão importante quanto a própria justiça. Não seria essa uma das primeiras coisas que lhe tinham ensinado na faculdade de direito?

Naquele caso o júri ouviria tudo sobre uma mulher amarga e frustrada, furiosa por ter sido abandonada pelo marido por causa de uma mulher mais jovem que a filha de ambos, ofendida pelo descaramento cada vez maior daquela relação, e desesperada por manter a sua posição social na comunidade. A acusação iria mostrar que havia pouco mais de um ano, na véspera do Ano Novo, ela atraíra o marido ausente a voltar para a casa de ambos, e implorara-lhe que voltasse para ela. Discutiram. Ele quis ir-se embora. Ela disparara-lhe seis tiros pelas costas. A namorada, que o esperava lá fora no carro, ouvira os tiros e chamara a polícia. Nora Butler entregara-se, sem resistir.

Não havia nada que enganar, declarara a polícia. Culpada, opinaram os jornais. Calma, dissera Jake Hart ao assumir a defesa.

A assistente do promotor público, Eileen Rogers, uma morena agressiva e atraente que vestia uma saia-casaco às riscas azul-marinho, estava de pé diante do júri, pedindo à testemunha para descrever os seus negócios e o padrão social actual, guiando-a, rápida e habilidosamente, através dos anos do casamento, pormenorizando as amargas discussões do casal, o facto de beberem muito, o completo desespero, até ao dia em que ele pedira o divórcio à mulher. Eileen Rogers fez então uma pausa, respirou fundo, baixou a voz, e perguntou, num sussurro dramático:

- Senhor Butler, pode contar-nos o que aconteceu na noite de 31 de Dezembro de 1997?

Jake girou na cadeira e procurou rapidamente por entre as filas de espectadores até encontrar quem queria. Ao contrário do resto da assistência, Kim estava displicentemente sentada, no meio da quarta fila e parecia cansada e desinteressada. Até quem não a conhecia saberia, pela postura da jovem, que ela não desejava estar ali. O cabelo louro-escuro estava enrolado num pequeno carrapito apertado no alto da cabeça, e os lábios torcidos igualmente apertados, praticamente" gritavam o seu desagrado. Apesar dos seus olhos azuis entediados olharem fixamente em frente, Jake sabia que ela sentira o olhar dele. Toma atenção, Kim, apetecia-lhe gritar. Podes achar interessante o que eu faço. Podes aprender alguma coisa sobre o teu pai.

Não que ela estivesse remotamente interessada em qualquer coisa que lhe dissesse respeito a ele; Jake sabia-o. Kim deixara-o bem claro nos três meses que se tinham passado desde a sua volta para casa, Falava com ele apenas quando ele lhe dirigia directamente a palavra olhava para ele só quando ele estava em frente dela, dando pela sua' existência com olhos que lhe desejavam a morte. Protegia a mãe da mesma maneira que o descartava, como se uma postura ditasse a outra, era óbvio que se Jake queria ter um relacionamento com a filha teria de trabalhar afincadamente por ele. Por isso, quando descobriu que a escola dedicara aquele dia ao desenvolvimento profissional, aproveitou a oportunidade e pediu a Kim que o acompanhasse ao tribunal.

- Acho que vais gostar - dissera. - É um caso que vai ser muito falado, muito dramático. Vamos almoçar juntos. Será um programa completo.

- Não estou interessada - fora a resposta imediata.

- Tens de estar pronta às oito - insistiu ele, ouvindo ainda o eco do sonoro gemido de Kim.

Algo no tom da voz do pai devia ter convencido Kim a não dificultar mais as coisas daquela vez, ou talvez Mattie tivesse convencido a filha. Mas qualquer que fosse o motivo, Kim estava arranjada, embora vestisse uns jeans velhos e uma camisola de algodão, e pronta para sair, à hora marcada. Fingiu adormecer no carro a caminho do tribunal, mas Jake não se importou, porque pôde aproveitar o tempo para rever mentalmente a sua estratégia para o interrogatório que se seguiria.

- Chegámos - disse, entrando no parque de estacionamento ao lado do tribunal e batendo ao de leve no braço de Kim.

Ela afastou-lhe abruptamente a mão e Jake sentiu como se lhe estivessem a arrancar-lhe o braço. Dá-me uma oportunidade, Kimmy, queria dizer, correndo atrás dela enquanto a filha avançava determinada, a passos largos, para os elevadores.

- Kim... - disse, já dentro do tribunal.

- Tenho de ir à casa de banho.

Kim desapareceu atrás da porta da casa de banho das senhoras e não voltou senão quinze minutos depois, quando Jake já pensava que a filha tinha intenções de lá ficar para sempre.

E agora lá estava ela, na quarta fila, na quinta cadeira a partir da coxia, e parecia que tinha sido atropelada por um rolo compressor, a ponto de escorregar do assento e desaparecer sob os pés dos dois homens de meia-idade sentados, erectos como paus de vassoura, um de cada lado. Não devia ter insistido para ela vir, pensou Jake, interrogando-se sobre o que pretendera com aquilo.

- A Nora ligou para o meu apartamento mais ou menos às sete horas naquela noite - declarou Leo Butler, com a sua voz profunda, barítona, muito firme e forte. - Disse-me que precisava ver-me imediatamente, que era um problema com Sheena, a nossa filha. Recusou explicar-se melhor.

- Então o senhor foi de carro para Lake Forest?

- Fui.

- E o que aconteceu quando chegou lá?

- A Nora estava à minha espera à porta da rua. Eu disse à Kelly para esperar no carro...

- Kelly?

- Kelly Myerson, a minha noiva.

- Continue.

Leo Butler tossicou e cobriu a boca com a mão.

- Entrei em casa com a Nora, que chorava e não parava de falar, mas nada que fizesse sentido. Percebi que tinha bebido.

- Protesto - disse Jake.

- Excelência - disse a promotora logo de seguida. - Leo e Nora Butler estiveram casados mais de trinta anos. Penso que ele poderá ter a certeza de quando ela bebia.

- vou aceitar - disse o juiz Pearlman.

- Continue, Sr. Butler - instruiu Eileen Rogers.

- A Nora admitiu que a nossa filha estava bem, que tinha sido apenas um pretexto para fazer com que eu fosse até lá a casa, que estava perturbada por ter recebido do meu advogado os papéis do divórcio, que estava infeliz com a minha oferta, que não queria o divórcio, que queria que eu voltasse para casa, que não queria que eu fosse à festa com a Kelly, e por aí adiante. Estava a ficar cada vez mais histérica. Tentei fazê-la perceber as coisas. Recordei-lhe que o nosso casamento já não funcionava havia muito tempo, que só nos estávamos a fazer sofrer um ao outro.

Que não era culpa de ninguém, que ela ficaria melhor sem ele, continuou Jake mentalmente, sentado pouco à vontade na sua cadeira.

- De repente a Nora parou de chorar - continuou Leo Butler, - e o seu olhar ainda reflectia a sua confusão naquele momento. - Ficou muito calma e com uma expressão estranha.

- Disse-me que já que eu lá estava, poderia dar uma olhadela à lâmpada fluorescente da cozinha, que andava a fazer um barulho esquisito. Eu disse-lhe que, provavelmente, seria suficiente mudar a lâmpada, e ela perguntou-me se eu lho poderia fazer. Pensei, que diabo, muda já a maldita lâmpada e vai-te embora. Entrei na cozinha e, de repente, ouvi um estampido e senti uma pancada no ombro, como se alguém me tivesse empurrado. Depois outro estampido, e mais outro. Quando me dei conta estava deitado no chão, a Nora de pé, a meu lado, com a arma na mão e uma expressão estranha no rosto. Foi nesse momento que percebi que tinha levado um tiro. Disse qualquer coisa como "Meu Deus Nora, o que foi que fizeste?", mas ela não disse nada. Limitou-se a ficar sentada no chão a meu lado. Foi estranho. Pedi-lhe que ligasse para o cento e doze, e ela assim fez. Descobri mais tarde que a Kelly também já tinha ligado. Desmaiei na ambulância, a caminho do hospital.

- Exactamente quantos tiros levou, Sr. Butler?

- Ao todo seis, mas, surpreendentemente, nenhum deles me acertou na coluna ou nos órgãos vitais. Só estou vivo porque a minha ex-mulher tem muito má pontaria.

Risos no tribunal. Jake tentou ouvir o som da gargalhada da filha e ficou aliviado por tal não acontecer.

- Obrigada - disse a promotora. - Não tenho mais perguntas.

Jake pôs-se imediatamente de pé. Dirigiu-se ao júri, que era formado por quatro homens, oito mulheres e dois suplentes, também mulheres.

- Senhor Butler, o senhor disse que a sua mulher lhe telefonou aproximadamente às sete horas da noite.

- Sim, a minha ex-mulher - corrigiu Leo Butler.

- Ex-mulher, sim - repetiu Jake. - Aquela que o senhor deixou depois de trinta e um anos de casamento.

- Protesto.

- Senhor advogado - o juiz chamou a atenção de Jake.

- Perdão - disse Jake imediatamente. - Então, a sua ex-mulher telefonou-lhe às sete, disse que era uma emergência com a sua filha e o senhor correu logo para lá. Está correcto?

- bom, não exactamente. A Kelly e eu estávamos a vestir-nos para uma festa de Ano Novo, e resolvemos acabar de nos arranjar e passar por casa da Nora a caminho da festa.

- Então a que horas chegaram ao número duzentos e sessenta e cinco da Sunset Drive em Lake Forest? Sete e meia? Oito horas?

- Julgo que já passava das nove horas.

- Nove horas? Duas horas inteiras depois da sua mulher lhe ter telefonado a dizer que era uma emergência que dizia respeito à sua filha? - Jake abanou a cabeça fingindo a consternação.

- A Nora já tinha inventado este tipo de coisa - foi a resposta de Leo Butler, sem conseguir disfarçar a irritação na voz. - Estava convencido de que a emergência não era a sério.

- Isso é óbvio - Jake sorriu para uma das mulheres mais velhas

do júri, O seu marido já alguma vez a tratou com tanta delicadeza? perguntava o sorriso.

- E eu tinha razão - Leo Butler tossiu mais uma vez para a palma

da mão.

- Julgo que o senhor disse que ia a uma festa de Ano Novo ali perto - disse Jake, mudando subitamente de assunto.

A festa era em Lake Forest, sim.

- Uma festa em casa de amigos?

- Protesto, excelência. É irrelevante - a impaciência surgia nas sobrancelhas finas da advogada de acusação, que subiam e desciam.

- Creio poder em breve mostrar que é relevante - disse Jake.

- Prossiga - ordenou o juiz.

- A festa era em casa de amigos? - repetiu Jake.

- Era - respondeu Leo Butler. - Rod e Anne Turnberry.

- Percebo. Os Turnberry eram conhecidos recentes?

- Não. Conheço-os há muitos anos.

- Há quantos?

- Como assim?

- Há quantos anos conhece os Turnberry? Cinco? Dez? Vinte anos?

- Há pelo menos vinte anos - o pescoço de Leo Butler ficou vermelho por cima do colarinho da camisa amarelo-claro.

- Então será correcto supor que os Turnberry também eram amigos da sua mulher?

- Sim, eram amigos da Nora.

- Mas a Nora não foi convidada para a festa de Ano Novo dos Turnberry, não é verdade?

- O Rod achou que seria constrangedor convidar-nos aos dois, Naquelas circunstâncias.

- E as circunstâncias eram que o senhor ia levar a sua nova namorada?

- As circunstâncias eram que Nora e eu nos estávamos a divorciar e que eu estava a começar uma nova vida.

- Uma nova vida que não incluía a Nora, mas que incluía praticamente todos os antigos amigos dela - afirmou Jake.

- Protesto, excelência - a promotora pôs-se imediatamente de pé, - Ainda estou a aguardar a relevância.

- Trata-se do estado de espírito da ré, excelência - explicou Jake

- Era véspera de Ano Novo, a ré ia passá-la sozinha, enquanto o marido ia para uma festa com todos os seus antigos amigos. Ela sentia-se só, abandonada, rejeitada.

- Protesto - repetiu Eileen Rogers. - Francamente, excelência o senhor Hart está a fazer um discurso.

- Poupe-se para a alegação final - o juiz repreendeu Jake e ordenou ao júri que não levasse em consideração os últimos comentários do advogado, enquanto deferia a objecção da promotoria.

- Então, senhor Butler - continuou Jake, olhando novamente para os espectadores, tentando atrair o olhar da filha - o senhor afirmou que quando finalmente chegou à sua antiga casa, encontrou a sua mulher muito agitada.

- Não tinha nada a ver com a nossa filha - Leo Butler procurou não dar a impressão de estar na defensiva.

- Não - concordou Jake. - O senhor disse que a sua mulher estava aborrecida por ter recebido os papéis do divórcio. Que não estava satisfeita com a sua oferta de acordo. É isso?

- Sim.

- Qual foi a sua oferta?

- Como assim?

- O que foi que o senhor ofereceu à sua esposa de sessenta anos, depois de mais de trinta de casamento?

- Uma oferta muito generosa - os olhos de Leo Butler apelaram para a promotora pedindo ajuda, mas Eileen Rogers deixou a pergunta passar. (Jake quase que podia ouvir a promotora a pensar: "Ele está a fazer o trabalho por mim e a estabelecer um motivo para os tiros. Não vale a pena protestar. - Ia ficar com a casa, o carro dela, as jóias, os casacos de pele e também uma pensão muito generosa - disse Leo Butler.

- E a empresa?

- Herdei-a do meu pai - explicou Leo Butler. - Achei que a Nora não tinha direito a ela.

- Apesar de a empresa estar falida quando o senhor se casou com ela? Apesar da sua mulher o ter literalmente livrado da bancarrota?

- - Acho que isso é um exagero...

- O senhor nega que ela usou praticamente toda a sua própria herança para lhe pagar as dívidas?

- Não conheço os números exactos. Tenho a certeza de que poderemos averiguar.

- A Nora apoiou-me muito - concordou Leo Butler com relutância. - Mas ultimamente o que fez ela por si?

- Protesto.

- Retiro a pergunta. Disse que a sua mulher tinha estado a beber antes do senhor chegar?

- - Certo.

- Também afirmou que ela bebia demais durante todo o seu tempo de casado. Quando foi exactamente que ela começou a beber?

- Não sei responder.

- Poderia ter começado mais ou menos quando o senhor começou a bater-lhe?

A assistente do promotor público quase caiu da cadeira na pressa de protestar.

- Francamente, excelência. Quando foi que deixou de bater na sua mulher?

- Acho que a pergunta foi quando o senhor começou a bater na sua mulher - disse Jake, e os espectadores soltaram uma gargalhada.

- Mas aceito reformular a frase - respirou fundo. - Senhor Butler com que frequência, diria o senhor, que espancava a sua mulher durante o tempo que durou o vosso casamento?

- Protesto, excelência.

- O senhor nega que batia na sua esposa? - insistiu Jake.

- Protesto.

- Negado - declarou o juiz, e Eileen Rogers sentou-se na cadeira com um sonoro baque. - A testemunha deve responder à pergunta.

- Eu não espancava a minha mulher - declarou Leo Butler pondo as enormes mãos no colo como se quisesse escondê-las dos jurados.

- Está a tentar dizer-me que nunca bateu na sua mulher?

- Posso ter-lhe dado umas bofetadas uma ou duas vezes quando discutíamos.

- Uma ou duas vezes por mês, por semana, por dia? - perguntou Jake, a olhar para Nora Butler, cuja tentativa orgulhosa de endireitar os ombros só fez com que parecesse ainda mais vulnerável.

- Protesto.

- Aceite.

- Não é verdade, senhor Butler, que uma vez lhe bateu com tanta força que lhe rebentou um tímpano?

- Foi um acidente.

- com certeza que foi - Jake deu meia volta, atraindo com facilidade os jurados para a sua órbita.

Passou os olhos pelas filas de espectadores, detendo-se nos olhos azuis da filha, que eram iguais aos seus. Kim estava inclinada para a frente. Chegou-se para trás assim que percebeu que Jake olhava para ela e assumiu novamente a anterior posição displicente. Jake quase sorriu.

- Não é verdade que praticamente todas as vossas discussões terminavam com o senhor a espancar a sua mulher?

- Protesto, excelência. Não é o senhor Butler que está a ser julgado aqui.

- Aceite. Prossiga, senhor advogado.

- O senhor zangou-se com a sua ex-mulher na noite em questão, correcto? - perguntou Jake.

- Não lhe bati - foi a resposta imediata.

- Mas ela teve motivos para pensar que o poderia fazer - afirmou Jake, já aguardando a inevitável objecção que não se fez esperar. - O senhor declarou que a sua mulher ficou então muito calma e lhe pediu para mudar uma lâmpada da cozinha.

- Sim - Leo Butler respirou fundo, visivelmente aliviado com a mudança de assunto.

- Como é que ela estava?

- Como assim?

- A sua mulher. Ex-mulher - corrigiu Jake, sorrindo mais uma vez para algumas mulheres de meia-idade que faziam parte do júri. - Como descreveria o comportamento dela?

Leo Butler encolheu os ombros como se nunca tivesse pensado em como haveria de descrever a mulher com quem estivera casado durante mais de trinta anos.

- Limitou-se a ficar imóvel - disse ele finalmente. - com os olhos mais ou menos vidrados.

- Vidrados? O senhor quer dizer, como se estivesse numa espécie de transe?

- Protesto - exclamou Eileen Rogers. - O senhor Hart está a pôr as palavras na boca da testemunha.

- Pelo contrário, desejo apenas um esclarecimento.

- Negado.

- Nora Butler parecia estar numa espécie de transe? - repetiu Jake.

- E, Leo Butler exibiu o seu repertório crescente de grunhidos, tosses e trejeitos diversos.

- Sim - admitiu por fim.

- E depois de atirar sobre o senhor, como ficou ela?

- Da mesma maneira.

- Como se estivesse numa espécie de transe? - repetiu Jake pela terceira vez.

- Sim.

- Quando o senhor lhe pediu para ligar para o cento e doze, como foi que ela reagiu?

- Ligou.

- Sem discutir? Sem resistência?

- Sim.

- Como descreveria o senhor os movimentos dela? Animados? Arrastados? Correu para o telefone?

- Movia-se lentamente.

- Como se estivesse numa espécie de transe?

- Sim - concordou Leo Butler.

- Não tenho mais perguntas, senhor Butler. Pode retirar-se.

- Jake observou a testemunha a sair do banco com passo apressado,

levemente inclinada para a frente como se quisesse disfarçar o tamanho avantajado, e sentar-se ao lado da assistente da promotoria. Um ponto para os bons, pensou Jake, dando mais uma espreitadela para a galeria dos espectadores, esperando vislumbrar um sorriso de felicitações da filha. Mas quando os seus olhos chegaram à quarta fila só viu o lugar vazio onde Kim deveria estar. Ouviu um movimento atrás de si e deu meia volta a tempo de a ver passar rapidamente pelas pesadas portas de madeira nas traseiras do tribunal, e desaparecer.

 

- ENTÃO, O QUE ACHASTE?

- Kim encolheu os ombros e examinou a tasca suja e gordurosa, na esquina da Califórnia Avenue com a Twenty-Eight Street. O pai já várias vezes lhe tinha pedido desculpas pela falta de bons restaurantes na área, apesar de garantir que Fredos tinha um hambúrguer do outro mundo.

Do outro mundo, pensou Kim, achando uma escolha interessante de palavras.

- Não como carne - disse-lhe ela.

- Desde quando?

- Desde que é nojento, cruel e engorda - respondeu ela.

- Mas comes frango?

- Não como carne vermelha - explicou ela. - Estou no banco das testemunhas?

- Claro que não. Só estava curioso. E não sabia que não comias carne vermelha.

Kim fez uma careta para demonstrar o seu supremo desinteresse por aquele assunto. Havia muitas coisas que o pai não sabia, pensou ela, imaginando se conseguiria escapar-se a voltar para o tribunal depois do almoço. Foi então que ele lhe perguntou o que achara do processo daquela manhã, mas Kim sabia que, o que o seu pai realmente queria saber era o que tinha achado do desempenho dele.

- Foi bom - disse ela encolhendo novamente os ombros desta vez, com um gesto menor, menos definido do que o anterior.

- Só bom?

- O que é que queres que eu diga? - perguntou ela.

- Só estou interessado no que tu achaste.

- Achei bem - Kim nem se deu ao trabalho de encolher os ombros. - Já podemos pedir?

Jake fez sinal ao empregado de mesa que se aproximou do pequeno cubículo, à direita do bar que se enchera rapidamente, com a caneta riste para anotar o pedido dos dois.

- Têm salada de frango tailandesa? - perguntou Kim ignorando o menu. O empregado de mesa, que tinha cabelo escuro e ondulado quase cor da própria pele, pareceu confuso.

- Temos umas sanduíches de salada de frango - respondeu, com Um forte sotaque espanhol.

- Não quero sanduíches de salada de frango - disse Kim teimosa. - Estão cheias de maionese. É a mesma coisa que comer meio quilo de manteiga.

- Uma sanduíche de salada de frango parece-me bem - disse Jake, fechando o menu e a sorrir para o empregado de mesa.

Kim ficou a pensar se o pai não estaria deliberadamente a tentar desafiá-la.

- Duas sanduíches de salada de frango? - perguntou o empregado de mesa.

- Não! - exclamou Kim. - Pronto, está bem. Mas pode pedir a minha com maionese light?

- Batata frita ou salada? - perguntou o empregado de mesa a Jake, ignorando totalmente Kim.

- Batata frita - respondeu Jake.

- Salada - disse Kim apesar de as batatas fritas que alguém comia no cubículo ao lado terem um cheiro delicioso. - E podia trazer o molho separado?

- Alguma coisa para beber? - perguntou o empregado para Jake.

- Café - disse ele.

- Coca-Cola diet - disse Kim bem alto.

- Li num lado qualquer que os refrigerantes dietéticos não fazem bem - disse Jake quando o empregado de mesa se afastou, abanando a cabeça.

- Será que não li a mesma coisa sobre o café? - perguntou Kim. Jake sorriu, e Kim achou irritante. Por que estaria ele a sorrir? Ela não tinha dito nada de engraçado, nem de encantador, nem mesmo de vagamente positivo. Estaria a tentar provocá-la de propósito? Primeiro arrastava-a até ao tribunal para o ver intimidar um pobre coitado no banco das testemunhas, até o idiota ter de sair sorrateiramente com o rabo entre as pernas, apesar de ter sido ele a levar os tiros. Francamente. Seis vezes, nada menos. E nas costas! Depois dizia-lhe para escolher entre a cafetaria do tribunal e aquele restaurantezinho esquisito para almoçar. Quem já ouvira falar de uma tasca engordurada com um superlotado, onde os advogados competiam com os bêbados locais pela atenção do barman e apenas se diferenciavam pela roupa que usavam?

- Onde foste esta manhã quando desapareceste durante tanto tempo? - perguntou Jake.

- Não foi durante muito tempo.

- Meia hora - disse Jake.

Kim soltou um suspiro e olhou para a porta.

- Precisava de respirar ar puro.

- Respirar ar puro, ou fumar um cigarro? Os olhos de Kim encontraram os dele.

- Quem te disse que fumei um cigarro?

- Não foi preciso ninguém dizer-me nada. Sinto o cheiro no teu cabelo.

Kim pensou em protestar e resolveu que não.

- E depois? - perguntou ela, como se quisesse desafiar o pai a fazer alguma coisa.

- E depois ainda nem sequer tens dezasseis anos. Sabes que fumar é muito perigoso.

- vou morrer por causa disso, não é verdade?

- É bem provável - concordou Jake.

- A mãe nunca fumou.

- Pois não.

- E está a morrer - afirmou Kim calmamente apesar das palavras lhe custarem a sair da boca.

- Kim...

- Não quero falar sobre isso.

- Mas acho que devemos falar sobre isso.

- Agora não - disse Kim categórica.

- Quando?

Kim encolheu os ombros, assoprou devagar e ouviu o pai fazer a mesma coisa.

- Será que perdi alguma coisa de interessante enquanto estive fora? - perguntou. - Deste cabo de mais algum desgraçado incauto?

O pai pareceu genuinamente surpreendido.

- É isso que pensas que faço?

- E não é?

- Gosto de pensar que procuro a verdade.

- A verdade é que a tua cliente deu seis tiros no marido, pelas costas.

- A verdade é que a minha cliente estava na altura num estado dissociativo histérico.

- A verdade é que a tua cliente planeou tudo.

- Foi insanidade temporária.

- Foi um acto premeditado, a sangue-frio. Surpreendentemente Jake sorriu.

- Darias uma óptima advogada.

Kim apercebeu-se do orgulho espontâneo na voz dele.

- Não me interessa - ripostou ela, vendo o pai fazer má cara. - O que eu quero dizer, é como podes defender essas pessoas? Sabes que são culpadas.

- Achas que todas as pessoas acusadas de um crime são culpadas?

- A maioria.

Seria que acreditava mesmo?, pensou Kim. Seria isso que pensava?

- Mesmo se fosse verdade - argumentou Jake -, o nosso sistema judicial baseia-se na premissa de que todos têm direito à melhor defesa possível. Se os advogados começassem a agir como juizes e jurados, sem querer defender qualquer pessoa que considerassem culpada, todo o sistema ruiria.

- Parece-me que já está a ruir. Olha para ti. Inocentas quase sempre as pessoas culpadas. Chamas a isso de justiça?

- Citando Oliver Wendell Holmes, a minha função não é fazer justiça. A minha função é jogar de acordo com as regras.

- Então para ti isto não passa de um jogo?

- Não foi isso que eu disse.

- Desculpa. Pensei que sim.

- Estás a dizer-me que no teu mundo não há lugar para circunstâncias atenuantes? - perguntou Jake.

Kim fingiu que rosnava. De que estaria ele agora a falar?

- O que é isso?

- Circunstâncias atenuantes - repetiu Jake. - Circunstâncias que diminuem a gravidade de um acto, que servem de justificação...

- Para disparar seis vezes sobre as costas do marido? Ainda bem que a mãe não tem uma arma.

Jake empalideceu, inclinando o peito para diante como se tivesse mesmo levado um tiro.

- Só estou a dizer que as coisas nem sempre são tão objectivas. Às vezes há motivos válidos...

- Para tirar uma vida? Eu não penso assim. Acho nojento pensares dessa maneira.

Kim preparou-se para a fúria do pai. Em vez disso, viu-lhe um sorriso a brincar nos cantos da boca.

- Também é cruel e engorda? - perguntou ele.

- O quê?

- Desculpe. Só estava a tentar ser engraçado.

- Estavas a gozar comigo?

- Desculpa - disse Jake de novo.

Kim resistiu à repentina ameaça de lágrimas indesejadas. Era a fúria do pai que esperava, não a sua.

- Francamente, Kimmy, não queria ferir os teus sentimentos.

- Quem disse que os meus sentimentos estão feridos? Achas que me importo com o que tu pensas?

- Eu importo-me com o que tu pensas - disse Jake.

Kim soltou uma exclamação de desprezo, desviou os olhos e concentrou a sua atenção no rapaz que trabalhava atrás do bar. Observou-o enquanto servia um whisky a um de seus clientes e continuou a olhar para ele enquanto limpava o balcão e servia a outra pessoa uma dose de vodka. Segundos depois ele percebeu o olhar de Kim e sorriu. Kim fez uma coisa com os lábios que esperava ser sensual e provocante.

- Que se passa? - perguntou o pai. - Tens alguma coisa presa nos dentes?

- O quê? Estás a falar de quê?

O empregado de mesa apareceu com as bebidas.

- As sanduíches ficarão prontas num instante.

- Mal posso esperar - disse Kim passando os olhos pelo pequeno grupo de homens e mulheres em volta do bar. - Quem é aquela? - perguntou, referindo-se a uma mulher atraente, que lhes acenava da outra ponta do bar. - Uma das tuas namoradas?

- É Jess Koster - disse Jake sem emoção, mas Kim notou-lhe um leve tremor nos músculos das têmporas. Correspondeu ao aceno. - É assistente do promotor público.

- É muito bonita.

Jake concordou com a cabeça.

- Já foste para a cama com ela?

- O quê?

Kim viu a chávena de café quase a escorregar da mão do pai.

- Se já dormiste com ela? - repetiu, imaginando o pai a saltar sobre a mesa laminada arranhada e estreita que separava os dois, as mãos rodeando-lhe rapidamente o pescoço para a estrangular. Como responderia à acusação do assassinato da única filha? Imaginou ela. Insanidade temporária? Homicídio justificado? Circunstâncias atenuantes?

- Não sejas ridícula - disse o pai, com palavras mais dolorosas do que quaisquer mãos imaginárias em torno do seu pescoço.

Kim sentiu os olhos encherem-se-lhe de lágrimas. Baixou a cabeça antes que o pai notasse e deslizou para fora do cubículo. Pegou na sua grande bolsa de couro preto, ficou de pé, olhando desesperada em volta do restaurante, recusando-se a focar fosse o que fosse.

- O que estás a fazer? Para onde vais? - perguntou o pai.

- Onde é a casa de banho? - perguntou Kim ao empregado de mesa quando ele chegou com as sanduíches.

O empregado apontou com o queixo para o fundo da sala.

- Desça a escada - avisou, já depois de Kim se ter afastado. Kim dirigiu-se rapidamente para o fundo do restaurante, vendo a sala embaciada por causa das lágrimas. Bolas, pensou. Como é que o pai tinha a coragem de ser tão despreocupado? A pergunta podia até ter sido despropositada, mas não lhe dava o direito de, troçar dela e de lhe chamar ridícula. Não era ridícula. Ele é que era, com o seu fato azul perfeito e cabelo preto e penteado para trás, com aquele sorriso de superioridade e atitude de quem tudo sabe, fazendo-lhe um sermão sobre o sistema de justiça, quando toda a gente sabia que não existia essa palavra. Se existisse, a mãe, tão linda, que nunca na vida prejudicara fosse quem fosse, não estaria a morrer de uma doença idiota que ninguém conseguia nem pronunciar o nome, e muito menos o pai, que mentira e enganara, dedicando a maior parte da vida a manter assassinos e outros malfeitores fora da prisão, estaria vivo e de saúde. Onde é que estava a justiça em tudo aquilo?

Kim encontrou a escada íngreme no fundo da sala mal iluminada e desceu devagar, com a mala a bater-lhe na anca e a mão apoiada na parede. Ao fundo, John Denver cantava as glórias da natureza. Claro, pensou Kim, empurrando a porta da minúscula casa de banho junto à escada, O pobre passa a vida toda a cantar músicas que falam de montanhas, do sol, e das alegrias simples da vida comum, e o que foi que lhe aconteceu? O avião experimental que estava a testar ficou sem combustível, caiu no mar e ele morreu nesse mesmo momento. Podia-se lá falar em justiça!

Kim empurrou a porta da única casa de banho, baixou a tampa da sanita e sentou-se em cima. Não precisava de urinar. O que precisava era de um cigarro. E também não era qualquer porcaria de cigarro, mas sim daqueles especiais, que Teddy lhe enrolara no fim-de-semana.

- Salta cá para fora onde quer que estejas - ordenou ela, vasculhando a carteira de couro. Encontrou alguns charros soltos lá no fundo e meteu um na boca. - "O que estás a fazer? Tens alguma coisa presa nos dentes?" - perguntou, imitando o pai enquanto acendia o cigarro mal enrolado, soltando uma gargalhadinha ainda antes de tragar o fumo.

Inalou profundamente e sentiu logo o fumo acre a queimar-lhe os pulmões, enquanto prendia a respiração durante cinco segundos, tal como Teddy lhe tinha ensinado.

- Todos os meus problemas desfeitos em fumo - disse, soltando o ar lentamente, com o gosto doce da marijuana na língua.

Inalou de novo o fumo, encostou-se à canalização exposta na parede verde-hospital e procurou descontrair-se. Teddy tinha razão. Bastavam duas passas e as palavras do pai perdiam parte do veneno. O senhor Imaculado. O senhor Circunstâncias Atenuantes. Mais uma passa e nada do que ele tinha dito a ia magoar mais algumas e, quem sabe, até a justiça podia voltar a existir. A minha função não é fazer justiça, tinha dito ele, citando Sherlock Holmes, ou fosse lá quem fosse. A função dele era jogar de acordo com as regras.

Só que não era assim que jogava, pois não? As regras do casamento ditavam fidelidade, lealdade, amor. Neste caso, Jake Hart não jogava de acordo com as regras.

Kim fechou os olhos, saboreando o ardor no peito. Por que razão teria a mãe deixado o pai voltar para casa? Não precisavam dele. Ela podia cuidar da mãe até ela melhorar. E ela ia melhorar, apesar do que Kim tinha dito anteriormente. O remédio que ela estava a tomar parecia dar resultado. Não sentia dores. Estava com uma aparência óptima. De vez em quando sentia o pé dormente e perdia o equilíbrio, ou então deixava cair alguma coisa, mas isso podia acontecer a qualquer pessoa. A mãe não ia deixar de andar, nem de se mexer, de falar, de engolir, como todos os médicos tinham dito. Além do mais, os cientistas estavam quase a descobrir a cura, dissera-lhe a mãe. Certamente as duas poderiam tomar conta uma da outra sem Jake até que isso acontecesse.

Kim sentiu passos na escada ao lado da minúscula casa de banho e ouviu-os deterem-se diante da porta. Um segundo depois a porta abriu-se e fechou-se e ao baixar-se viu um par de sapatos pretos de salto alto e pernas bem torneadas enchendo o espaço estreito entre a sanita e o lavatório. Kim pôs-se de pé de um salto, levantou a tampa da sanita e atirou o que restava do cigarro lá para dentro. Puxou o autoclismo e viu-o desaparecer. Então ficou a abanar o ar freneticamente, para afastar a fumarada da pequena cabine. Só quando ficou satisfeita, achando que o ar estava limpo, Kim se aventurou a sair da casa de banho.

Reconheceu imediatamente a mulher parada diante do lavatório. Era a assistente do promotor público que acenara ao pai. Jess Cousins, Ou Costner. Qualquer coisa assim. Kim sorriu para a mulher que olhou fixamente para ela, sem retribuir o sorriso. Cabra, pensou Kim, lavando as mãos apesar de não precisar, e saiu da casa de banho sem olhar para trás.

- Sentes-te bem? - perguntou o pai quando Kim se voltou a sentar no seu lugar no banco do restaurante.

Kim assentiu com a cabeça, tentando concentrar-se na sanduíche de salada de frango dentro do prato à sua frente. Mas esta entrava-lhe e saia-lhe do campo de visão sem que conseguisse fazê-la parar.

- Guardei-te umas batatas fritas - disse Jake.

Kim abanou a cabeça e imediatamente desejou não o ter feito pois ficou tonta com o movimento. Levou a sanduíche à boca e deu-lhe uma grande dentada.

- Está boa - ouviu-se dizer, como se a sua voz pertencesse a outra pessoa.

- Olha, Kimmy - disse-lhe o pai. - Sei que estás a passar por um momento muito difícil. Sei que tens muita coisa para digerir.

- Estou a comer o mais depressa que posso - Kim disse, soltando uma risadinha.

- Sabes muito bem o que quero dizer. Estou aqui se quiseres falar sobre o assunto.

- Já te disse que não quero falar disso.

- Mas eu quero - disse Jake, e Kim soltou uma gargalhada.

- Então o que queres realmente dizer é que eu estou aqui se tu quiseres falar sobre o assunto - soltou nova risada, muito satisfeita com a sua esperteza.

- Kim, sentes-te bem?

- Óptima - Kim deu uma enorme dentada na sanduíche e sentiu um pouco da salada de frango a escorrer-lhe pelo queixo. - Isso está muito bom - disse. - O Fredos faz umas sanduíches espectaculares.

- Sei que ficaste aborrecida por eu ter voltado para casa - insistiu Jake.

- Por que foi que voltaste? - perguntou Kim, surpreendida com veemência da pergunta que nem pretendera fazer. - E por favor, não insultes a minha inteligência dizendo que o fizeste por mim.

Uma longa pausa.

- Sabes ao menos por que voltaste para casa? - perguntou Kim depois disse: - Deixa estar. Já não tem importância. Já voltaste. É uma questão sem significado legal. Não é essa a expressão que vocês advogados, usam?

Terminou a primeira metade da sanduíche e começou a comer a outra.

- Estás muito revoltada, Kim. Eu entendo.

- Tu não entendes nada. Nunca entendeste.

- Talvez se me desses uma oportunidade...

- Olha - interrompeu Kim, atirando para o prato o resto da sanduíche que se desmanchou -, se a minha mãe te aceitou de volta depois de tudo o que fizeste, o problema é dela. Eu disse-lhe o que achava dessa ideia, mas obviamente ela não concordou comigo, por isso, que alternativa tenho? Nenhuma. Tudo o que Jake Hart quer, Jake Hart consegue. Quer andar a divertir-se por aí, diverte-se. Quer ir-se embora, vai. Quer voltar, volta. Acho que a única coisa que eu quero saber é até quando pretendes ficar por perto depois de a mãe começar a melhorar - Kim estava a esforçar-se para comer o resto da sanduíche, tentando encaixar os pedaços de frango entre as duas finas fatias de pão.

- Kim, minha querida, ela não vai melhorar.

- Isso tu não sabes.

Kim não quis olhar para o pai. Se olhasse podia atirar-lhe à cara com o que restava da sanduíche.

- Ela vai piorar.

- Então agora és médico, não?

- É importante unirmos esforços...

- Não estou a ouvir nada.

- fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para dar conforto e felicidade à tua mãe.

- Para aliviar a tua consciência? - retorquiu Kim. - Para que te sintas melhor?

- Pode ser - concordou Jake. - Talvez também seja por isso.

- É só por isso, sabes muito bem.

Jake esfregou a testa, abanou a cabeça e, finalmente, apoiou o queixo na palma da mão.

- Detestas-me, não é verdade? - perguntou ele, embora se tratasse mais de uma constatação dos factos.

Kim encolheu os ombros.

- Os filhos não devem detestar os pais? - perguntou. - Não detestavas os teus?

- Realmente detestava - concordou.

Kim esperou que o pai se defendesse, apontando as diferenças óbvias entre as situações dos dois, mas ele não disse nada. O pai raramente falava sobre a sua infância. Kim sabia que o pai e os irmãos dele tinham sido maltratados. Muitas vezes quisera perguntar-lhe, e agora ele estava a dar-lhe a oportunidade perfeita, mas ela não lhe daria a satisfação de ceder à sua curiosidade. O pai parecia exausto, pensou Kim quase com pena dele.

- Não temos de voltar para o tribunal? - perguntou.

Jake olhou para o relógio e fez sinal ao empregado para que trouxesse a conta. Segundos depois, tendo deixado o dinheiro sobre a mesa, Jake empurrou a filha até à entrada do restaurante.

- Jake - chamou uma mulher algures atrás deles.

Kim voltou-se e viu Jess Cousins, ou Koster, ou qualquer coisa assim, aproximar-se. O pai apresentou rapidamente as duas.

- Como estás? - perguntou Jake.

- Bem - disse Jess Koster, olhando primeiro para Jake depois para Kim e novamente para Jake. - Será que posso falar contigo só um minuto.

- Claro.

- Espero lá fora - sugeriu Kim.

- Passa-se alguma coisa? - Kim ouviu o pai perguntar quando abriu a porta e saiu para a rua, o som das palavras dele imediatamente capturadas pelo vento lá fora. Passa-se alguma coisa? Ecoou o vento. Passa-se alguma coisa? Passa-se alguma coisa?

Passa-se alguma coisa? Passa-se alguma coisa? Passa-se alguma coisa?

 

Mattie ESTAVA PARADA À PORTA DO QUARTO DE Hóspedes, vendo a cama de Jake desarrumada. Como era seu costume, Jake atirara a colcha de riscas brancas e amarelas, por cima da enorme cama de modo que esta parecesse ter sido feita, mas Mattie sabia pelas pontas visíveis dos lençóis quadriculados que, lá por baixo, estava tudo em desalinho. Como poderia alguém ter uma boa noite de sono numa cama por fazer?, perguntou a si própria, aproximando-se lentamente. Estendeu a mão para endireitar as almofadas e viu uma delas voar-lhe da mão e cair na mesa-de-cabeceira, quase deslocando o delicado abajour pregueado da base de porcelana branca.

- Este foi giro - disse Mattie em voz alta, deixando-se cair, sentada na cama. - E agora o meu próximo truque.

Pegou na almofada, colocou-a por trás da cabeça na cabeceira da cama e deitou-se, olhando para o relógio. Quase cinco horas. Jake e Kim voltariam em breve do tribunal. Provavelmente deveria começar a preparar o jantar, mas sentia-se muito apática. Talvez pudessem encomendar alguma coisa pelo telefone.

Mattie fechou os olhos e aspirou o cheiro de Jake na almofada que tinha atrás da cabeça que lhe fazia cócegas no pescoço, como o beijo de um amante. Mattie reconheceu que sempre adorara o cheiro de Jake enquanto imaginava os lábios dele no lóbulo da sua orelha, a língua dele na sua nuca, enquanto mergulhava o rosto no seu cabelo. Suspirou e abriu os olhos.

- Isso não - disse, sem conseguir evitar que as mãos de Jake aflorassem do seu subconsciente para deslizarem pelos seus seios e lhe acariciarem o ventre. Mattie fechou de novo os olhos e deixou o corpo escorregar na cama até ficar completamente estendida. De repente Jake estava em todo o lado - junto a ela, por cima dela, por baixo dela e em cima dela. Sentiu o peso do corpo do marido apertando o seu, sentiu as pernas dele abrindo suavemente as suas.

- Nem pensar - disse Mattie, sentando-se de repente, e atirando ao chão a imagem de Jake. - Não vou fazer isto.

Claro que não, pensou Mattie. Nos três meses desde a volta de Jake para casa, os dois praticamente não haviam tido qualquer contacto físico. Ele mudara simplesmente as suas coisas para o quarto de hóspedes sem discussão, como se achasse que era aquilo que Mattie queria ou, o que era mais provável, porque era o que ele queria. Para todos os efeitos, ainda estavam separados. O lar de Jake consistia no escritório e no quarto de hóspedes, enquanto Mattie dividia o resto da casa com Kim. De vez em quando Jake ia visitá-las, mas na maior parte do tempo continuava a ser o estranho que sempre fora, tentando ser útil e, ao mesmo tempo, mantendo uma distância segura.

Nem mesmo a sua rotina tinha mudado muito. Continuava a trabalhar uma média de dez horas por dia. Supondo que estivesse a trabalhar, e não com a sua amiga, a sua querida, a sua Honey, pensou Mattie, sabendo que mesmo quando Jake estava em casa, a cabeça dele estava a um milhão de quilómetros de distância. No tribunal. Em casa dela. Que nas raras ocasiões em que o corpo dele ficava sentado ao lado do seu uma noite inteira, o seu espírito estava decididamente algures.

Mattie pensou novamente no corpo dele, vendo-o nu, deitado a seu lado na cama, passando a mão pelos pêlos macios e escuros do peito dele, acariciando-lhe o abdómen invejável, a barriga lisa, as coxas musculosas. Chupou inquieta a ponta dos dedos e ouviu um gemido escapar-se dos seus próprios lábios.

O telefone tocou algures perto da sua cabeça. Mattie tirou os dedos da boca, ainda de olhos fechados, deixou a mão cair em cima do aparelho que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira.

- Sim?

- É a Stephanie. Acordei-te?

Mattie esforçou-se por abrir os olhos, por se sentar e pôr os pés no chão.

- Não, claro que não. Como estás?

Imaginou a amiga, de cabelo curto grisalho, olhos castanhos, faces gorduchas que combinavam perfeitamente com a sua constituição arredondada.

- E tu? Pareces cansada.

- Estou bem, Steph - disse Mattie, com um leve tom de impaciência. Desde que contara às amigas qual era o seu estado, estas tinham começado a cobri-la de recomendações e mostravam a sua disposição para a ajudar: ofereciam-lhe boleia para a levar onde quisesse, para lhe fazer as compras, para irem buscar alguma coisa à cidade, qualquer coisa que ela precisasse, elas estavam a postos, dispostas e cheias de boa vontade para a auxiliar.

Mas não ajudavam, pensou Mattie, passando o telefone de uma orelha para outra. Pairavam sobre ela, como helicópteros, prontos para voar para longe.

- O que posso fazer por ti? - perguntou Mattie.

- O Enoch e eu estávamos a pensar se tu e o Jake não gostariam de ir jantar connosco amanhã. Vamos ao Fellini's, na East Hubbard Street. Teve uma crítica óptima no jornal da semana passada - Stephanie soltou uma gargalhada, espantosamente semelhante às das suas filhas gémeas de dez anos.

Enoch Por ter entrara na vida de Stephanie havia seis meses, quase três anos depois de o seu ex-marido ter esgotado a conta conjunta que ambos tinham no banco e fugido para o Taiti com a babysitter. Enoch era a vingança de Stephanie, dez anos mais novo que ela, alto, lindo, e tão negro que brilhava.

- Parece-me óptimo - disse-lhe Mattie. - Se quiserem ir ter connosco, estaremos na Pende Fine Arts ao fim da tarde.

- Acho que as galerias de arte não são o forte de Enoch - disse Stephanie, e soltou outra gargalhada. - Não estás a fazer coisas demais?

- A que horas nos encontramos? - perguntou Mattie, fingindo não perceber a preocupação da amiga.

- Sete horas está bem para vocês?

- Sete horas está perfeito. Encontramo-nos lá.

Talvez devesse falar primeiro com Jake, pensou Mattie, desligando o telefone. Talvez ele tivesse outros planos.

- Que se lixem os outros planos - disse ela, pensando em Honey, tentando imaginar como era a outra mulher.

Logo a seguir voltou a encostar o telefone à orelha. Mattie ligou para o 411 e esperou enquanto a voz gravada atendia e lhe dava as boas-vindas.

- Que cidade, por favor? - perguntou a gravação.

- Chicago - disse Mattie simplesmente. Mas o que estava ela a fazer?

- Quer o número de uma residência? - continuou a gravação. Quereria?

- Sim - gaguejou Mattie.

- O nome, por favor?

- Novak - disse Mattie, pigarreando. Estaria louca? Que diabo estava a fazer? - Honey Novak. Não sei a rua. Por que teria dito isto? Faria alguma diferença para a gravação? O que pretenderia fazer com o número da Honey? Seria que pensava mesmo ligar para aquela mulher? Por quê? O que pretendia dizer?

- Honey Novak não consta da lista - anunciou uma voz humana de repente, apanhando Mattie desprevenida.

Mattie acenou com a cabeça agradecida, pronta para desligar. Era óbvio que havia alguém a tomar conta dela. O que ia fazer era um disparate.

- Mas há três H. Novak na lista - continuou a telefonista e o auscultador quase escorregou da mão de Mattie. - A senhora sabe a morada?

- Não, não sei - respondeu Mattie à mulher. - Mas se puder dar-me os três números...

- Cada um será cobrado separadamente - explicou a telefonista.

- Mattie retirou uma esferográfica da gaveta da mesa-de-cabeceira e procurou em vão um pedaço de papel. Acabou por rabiscar os números na palma da mão esquerda.

Sem perder tempo a pensar, Mattie marcou o primeiro número. O telefone tocou três vezes antes de alguém atender. Sem querer, Mattie susteve a respiração. O que estava a fazer? Qual seria o seu objectivo?, diria Jake. O que estava a tentar provar?

- Está - era uma voz de homem.

Mattie desligou rapidamente com a respiração curta, ofegante. No mesmo instante o telefone tocou.

Apreensiva, Mattie ficou a olhar para o telefone cor de marfim e atendeu-o com todo cuidado.

- Está?

- com quem estou a falar? - quis saber a voz de homem.

- Quem é o senhor? - perguntou Mattie.

- Harry Novak - respondeu o homem. - A senhora acabou de ligar para a minha casa.

O voice mail! compreendeu Mattie com um terror crescente. Ou mais um daqueles cada vez mais numerosos horrores electrónicos que invadiam a vida moderna. Não tinha pensado naquilo. Não tinha pensado em nada, meu Deus. O que é que estava a fazer?

- Foi engano - explicou Mattie. - Peço desculpa se o incomodei.

- O homem desligou antes que Mattie ficasse ainda mais envergonhada.

- Bem feito - sussurrou Mattie, notando que a mão lhe tremia enquanto punha o telefone no descanso, só que, enquanto dizia essas palavras, lembrava-se de que havia um número para anular o sistema.

Levou de novo o telefone ao ouvido outra vez e marcou *67 antes do segundo número.

Dessa vez atenderam quase que imediatamente, como se a pessoa do outro lado estivesse sentada ao lado do telefone, à espera de o ouvir tocar. Era típico numa mulher envolvida com um homem casado pensou Mattie.

- Está - respondeu uma voz de mulher, num tom baixo e um pouco rouco. Uma bela voz, pensou Mattie. Um pouco maliciosa. Seria ela?, interrogou-se Mattie.

- Está? - repetiu a voz. - Est-á-á-á?

Não, concluiu Mattie. A voz era animada de mais, segura de mais. Não era a voz de uma mulher que morava sozinha, que não sabia a identidade de quem estava do outro lado da linha. Mattie ia desligar e passar para o terceiro e último número.

- Jason? - perguntou subitamente a voz do outro lado, e o ar gelou nos pulmões de Mattie. - Jason, és tu?

Mattie deixou o telefone cair na direcção do descanso, viu que não acertou e que caíra no tapete branco. Pegou-lhe rapidamente e tentou pô-lo de novo no lugar, mas o telefone contorceu-se nas suas mãos como se estivesse vivo, e caiu mais uma vez. Só conseguiu acertar à terceira tentativa.

- Raios - murmurou ela com a respiração cada vez mais acelerada, quase dolorosa. - Raios.

Sentou-se na beira da cama e ali ficou alguns minutos imóvel, com o nome do marido na boca da outra mulher ecoando-lhe nos ouvidos.

- Jason - repetiu Mattie em voz alta.

Mas ele não detestava aquele nome? Mattie lançou a cabeça para trás, tentando recuperar o controlo da respiração, apertando as mãos trémulas.

- Isto foi uma estupidez - recriminou-se, levantando-se apoiando as mãos na cama e saindo rapidamente do quarto.

Era altura de se controlar. Lavar a cara, maquilhar-se um pouco, dar ao marido uma visão agradável, um motivo para ficar em casa.

Segundos depois Mattie olhou para o seu reflexo no espelho da casa de banho, enquanto estendia a mão para o blush que estava sobre a bancada de cerejeira. Imaginou como seria Honey: alta ou baixa, loura ou morena, com um pouco de peso a mais ou esguia como um salgueiro.

- Estou a imaginar a Julia Roberts - disse, empoando habilmente as maçãs do rosto com a escova de cabo cor-de-rosa. - Assim está melhor. Eu precisava realmente de um pouco de cor.

E também de uma generosa aplicação de rímel, concluiu Mattie, pegando o longo tubo prateado e aproximando a escova do rímel das pestanas. Mas a escovinha ignorou-as e entrou-lhe directamente num olho.

- Bolas! - exclamou Mattie, e a escova escapou-lhe da mão trémula e caiu dentro do lavatório.

Pestanejou furiosamente, e o rímel saltou-lhe dos olhos para o rosto rosado do blush que acabara de aplicar, deixando uma série de riscos pretos, semelhantes a minúsculos arranhões.

- Ah, que maravilha - suspirou Mattie. - Estou fantástica. A anti-Honey - disse e, contendo as lágrimas, pegou num lenço de papel e tentou limpar os riscos pretos do rosto. - Agora parece que andei à pancada. E que perdi.

Perdeste, acusou a imagem no espelho, usando uma toalha molhada para limpar o rosto, vendo os vestígios das marcas finas e pretas a reaparecer, como uma série fantasmagórica de vírgulas.

- Que parvoíce. Só agora comecei a lutar - disse Mattie, aplicando mais uma vez no rosto o blush cor-de-rosa claro.

Mas a sua mão não queria cooperar, os dedos recusavam-se a segurar no cabo da escova. Deixou-a cair na bancada e viu os dedos a tremer como que açoitados por ventos invisíveis.

- Oh, meu Deus! Isto não está a acontecer. Não está a acontecer. Só estás deprimida porque fizeste uma asneira. Só isso. Respira fundo. Outra vez. Mantém-te calma. Vai correr tudo bem. Não tens de ficar perturbada por isto. Estás a tomar o medicamento. Não vais morrer. Vais para Paris em Abril. com o teu marido.

- Não vais morrer.

Mattie precisou das duas mãos para retirar o tubo de rímel de dentro do lavatório. Lentamente, passou o rímel pelas pestanas, com o maior cuidado.

- Assim é melhor - disse ela, e o tremor foi desaparecendo aos poucos. - Só estás cansada e deprimida... e excitada - admitiu Mattie, soltando uma gargalhada. - As tuas mãos tremem sempre quando estás muito excitada.

Agora as coisas vão mudar, resolveu. A começar por esta noite. A começar por um pouco de rímel. Continuaremos com um pouco de vinho ao jantar. Talvez uma visita ao quarto de hóspedes à meia-noite.

Nunca antes tivera problemas para seduzir Jake Hart. Claro que era Jake, não Jason. Não conhecia esse Jason de lado nenhum. Mattie ouviu o ruído da porta da garagem.

- Já chegaram - declarou em direcção à sua imagem no espelho satisfeita com a sua aparência.

Estava mais que bem, concluiu, erguendo as mãos diante do rosto e vendo que o tremor tinha passado. Ajeitou o cabelo, endireitou os ombros da camisola vermelha, respirou fundo e dirigiu-se à escada.

Já estava quase no último degrau quando a porta se abriu com o som ruidoso da deslocação do ar e o marido e a filha explodiram no hall.

- Chega! - gritava Kim. - Não quero ouvir mais nada.

- Ainda não acabei, menina - berrou Jake.

- Ah, não? Pois eu sim.

- Acho que não.

- Que se passa? - Mattie chegou ao fundo da escada e o marido e a filha entraram no seu campo de visão. Têm uma expressão horrível, pensou Mattie, os olhos soltavam faíscas quando se fitavam, tinham os rostos vermelhos de raiva. - Qual é o problema? O que aconteceu?

- O pai passou-se de vez - Kim ergueu as mãos e foi para a cozinha.

- Onde pensas que vais? - perguntou Jake.

- Vou buscar um copo de água, se não te importas.

Kim nem tentou disfarçar o desprezo na voz. Que diabos tinha acontecido? Mattie queria saber e implorava com os olhos que Jake lhe desse uma resposta.

- Levou marijuana para dentro do tribunal! Acreditas? - a expressão magoada do rosto de Jake reflectia a incredulidade ofendida da voz dele.

- O quê? Não! É impossível.

- É a estupidez mais completa que eu já vi - vociferou Jake.

- Já disseste isso pelo menos cem vezes desde a hora em que entrámos no carro - berrou Kim da cozinha.

- Não entendo - disse Mattie. - Deve haver algum engano.

- O engano foi tratarmos a nossa filha como um ser humano responsável.

- Responsável? - gritou Kim abafando o barulho da água a correr. - Queres dizer como tu?

- Por favor, Jake, conta-me o que aconteceu.

- Podes imaginar o que teria acontecido se descobrissem?

- Pensa na vergonha - disse Kim da porta da cozinha, erguendo copo de água, como se fizesse um brinde.

- Podias ter sido presa. Podias ter sido processada e acusada e mandada para um centro de detenção juvenil.

- Por favor, alguém me pode dizer o que aconteceu? - Mattie estava quase a chorar.

- Não aconteceu nada - disse Kim com simplicidade. - O pai está a criar uma tempestade num copo de água.

- Fumaste marijuana no tribunal? - perguntou Mattie, incrédula.

Kim riu-se.

- Nem por isso.

- Não - disse Jake. - Guardou essa proeza para o restaurante - Jake começou a andar de um lado para outro diante de Mattie. - Levei-a ao Fredos...

- Boa porcaria - exclamou Kim.

- Age como uma criança mimada...

- Olha, para começar, eu não queria ir. Todo este dia idiota foi ideia tua.

- O lugar é frequentado por advogados e polícias, e ela vai para a casa de banho e fuma marijuana. Ainda bem que foi uma amiga minha que a viu.

- Sim. Foi uma sorte - disse Kim. - Ela devia era meter-se na vida dela, isso sim.

- Por amor de Deus, ela é assistente do promotor público! Podia mandar-te prender.

- Mas não mandou, pois não? Então qual é o problema? Cometi um erro. Já disse que sinto muito. Não volto a fazer. Caso encerrado. Ganhaste. Mais um pobre coitado que vai morder o pó.

- Kim, eu não entendo - disse Mattie, procurando compreender o sentido do que estava a ouvir.

- O que é que tu não entendes, mãe? - perguntou Kim irritada.

- Mattie sentiu a palavra mãe como uma bofetada no rosto. Os seus olhos

- encheram-se de lágrimas que lhe correram pelas faces.

- Olha como falas com a tua mãe - disse Jake.

- A minha mãe é perfeitamente capaz de falar por ela mesma. Ainda não está morta!

- Oh, Deus - Mattie suspirou e o ar saiu-lhe do seu corpo como se tivesse sido furada por um objecto pontiagudo.

O rosto de Jake ficou vermelho como um tomate, parecia que alguém lhe tinha passado um pincel de tinta pela pele, começando pelo pescoço e subindo até à raiz dos cabelos. Parecia que ia explodir!

- Como podes dizer uma coisa tão terrível? - perguntou-lhe o pai.

- Foi sem querer - protestou Kim. - Mãe, sabes que eu não queria dizer isto assim.

- Metes nojo - disse Jake à filha.

- Tu é que me metes nojo - foi a resposta imediata.

- Chega! Vocês dois! - exclamou Mattie, sentindo um formigueiro horrível nas solas dos pés. - Vamos para a sala e conversar com calma!

- Eu vou lá para cima para o meu quarto - Kim deu alguns passos em direcção à escada.

- Não vais a lado nenhum - disse Mattie, agarrando no braço da filha.

- O quê? Tu estás do lado dele?

- Não me deixas outra alternativa.

Kim puxou o braço com tanta força que Mattie perdeu o equilíbrio. Oscilou por alguns segundos nos pés que quase não sentia e depois caiu no chão, com as mãos trémulas para a frente, num esforço inútil de aparar a queda.

Kim ajoelhou-se imediatamente ao lado dela, tentando ajudá-la a levantar.

- Mãe, desculpa - não parava ela de repetir. - Foi um acidente. Sabes que foi um acidente.

- Deixa a tua mãe em paz - ordenou Jake, aproximando-se das duas e erguendo Mattie nos braços. - Sai daqui.

- Desculpa. Desculpa - continuou Kim a dizer, sem largar o braço de Mattie, enquanto esta lutava para ficar de pé.

- Não achas que já causaste bastantes estragos num só dia? - perguntou Jake, empurrando Kim, e foi a vez desta perder o equilíbrio.

As mãos de Kim subiram no ar, o copo que segurava voou para o tecto, a água subiu como um geiser, depois o copo bateu no chão, rebolou no tapete e acabou por se partir contra a parede.

- Vê o que fizeste agora - berrou Jake.

- O que eu fiz? - berrou Kim ainda mais alto.

- Por favor, será que já podem parar com isso? - implorou Mattie.

- Limpa esta porcaria - disse Jake à filha.

- Foste tu que a fizeste. Limpa-a tu.

- Que raio! - berrou Jake, com a mão levantada, pronto para a agredir.

- Queres bater-me? - gritou Kim. - Então bate, pai. Bate. Podes bater!

Mattie suspendeu a respiração vendo Jake erguer o braço no ar, por cima da cabeça dele, pelo que lhe pareceu uma eternidade, antes de o deixar cair ao lado do corpo. Atrás dela ouviu os passos de Kim a subir a escada a correr e a bater com a porta do quarto. Mattie viu Jake encostar-se à parede, com as mãos sobre os olhos fechados e a pele cor de cinza.

- Sentes-te bem? - perguntou ela.

- Quase lhe bati.

- Mas não bateste.

- Mas queria. Estive quase.

- Mas não bateste - repetiu Mattie.

Ela estendeu-lhe a mão mas retirou-a ao ver que estava a tremer. Sabia que Jake devia estar muito desapontado, sabia o quanto ele queria que a filha sentisse orgulho dele. Eu orgulho-me de ti, queria ela dizer, mas ficou calada, de pé, ao lado dele, até deixar de sentir as solas dos pés.

- Acho que preciso de me sentar.

Jake levou Mattie para a sala, secou-lhe as lágrimas dos olhos e do nariz e instalou-a no confortável sofá bege, tudo sem dizer nada.

- Porque não te sentas? - perguntou ela.

Ele ficou a oscilar ora num pé ora noutro, como se pesasse fisicamente as suas alternativas.

- Olha, achas que ficas bem se eu sair por uns minutos? Preciso de apanhar ar fresco.

Mattie engoliu a decepção. Por que é que não me deixas consolar-te?, interrogou-se.

- Fico bem - disse ela em voz alta.

- Eu limpo tudo quando voltar.

- Queres que vá contigo?

Pergunta estúpida, compreendeu Mattie quando Jake abanou a cabeça. É evidente que ele não queria que ela fosse com ele. Que tipo de homem leva a mulher quando vai visitar a namorada?

- Tens a certeza de que ficas bem?

- Eu estou bem, Jake - repetiu Mattie.

- Já volto - disse ele. Mattie seguiu-o com os olhos.

- Conduz com cuidado - disse ela.

 

- JAKE, ESTÁS PRONTO? Mattie deu uma última olhadela no espelho da casa de banho e notou satisfeita que tudo parecia estar no lugar, sem riscos pretos indesejáveis por baixo dos olhos, sem madeixas rebeldes a escaparem-lhe do brilhante travessão que lhe apanhava o cabelo na nuca. A dama de cor-de-rosa, pensou, ajeitando a gola de cetim da camisola de caxemira, vendo se os brincos de cristal antigo estavam bem fechados. A única coisa que destoava nela eram os três números de telefone rabiscados na palma da mão esquerda, lembrança quase apagada da loucura da véspera. Os números não tinham querido desaparecer apesar de Mattie os ter esfregado repetidamente, e agarrando-se-lhe à pele com a teimosia de uma tatuagem. Espero que Jake não repare, pensou Mattie, resolvendo não se preocupar. Não era muito provável que Jake se aproximasse tanto dela, a ponto de notar. Sentiu um leve tremor nos dedos. Enfiou as mãos nos bolsos das calças cinzentas e saiu do quarto.

- Jake, estás quase pronto?

- Não houve resposta.

- Jake?

Mattie saiu para o corredor, chegou ao quarto dos hóspedes e espreitou pela porta aberta.

- Jake?

Mas não havia ninguém no quarto, a colcha de riscas amarelas e brancas estava atirada para cima da cama, exactamente como no dia anterior. Seria que ele tinha dormido naquela cama? pensou Mattie, dando meia volta.

A porta fechada do quarto de Kim estava diante dela como uma repreensão implacável e silenciosa. Na noite anterior a filha tinha-se metido no quarto e não saíra mais de lá. Recusara o jantar e não aparecera nem para o pequeno-almoço nem para o almoço. Devia estar cheia de fome, pensou Mattie, sabendo como ela era orgulhosa e muito teimosa. Igual ao pai, pensou. Bateu cautelosamente à porta do quarto e abriu-a com cuidado quando não obteve resposta.

O quarto estava às escuras, as persianas fechadas e nenhuma luz acesa. Mattie precisou de algum tempo para habituar os olhos, e para diferenciar a cama na parede oposta da cómoda que se encontrava ao lado, a mesa à direita e a cadeira de espaldar direito que ficava em frente. Havia peças de roupa abandonadas por cima de todas as superfícies existentes. Mattie avançou pé ante pé, bateu com a ponta do sapato preto numa cassete que estava no chão e esta voou até à porta do armário. A figura na cama mexeu-se, sentou-se, afastou uma madeixa de cabelo do rosto e ficou a olhar para Mattie, sem dizer nada.

- Kim? Sentes-te bem?

- Que horas são? - perguntou Kim com a voz rouca do sono.

Mattie olhou para o relógio da parede na semi-obscuridade. O relógio tinha o tamanho e a forma de uma pequena melancia, o mostrador cor-de-rosa vivo cercado por uma moldura verde-escuro, os minutos representados por uma série de caroços pretos.

- São quase quatro horas - disse Mattie. - Dormiste o dia todo?

- Kim encolheu os ombros.

- Dormia e acordava. Como está o tempo lá fora?

- Está sol e faz frio. Janeiro - disse Mattie. - Sentes-te bem? perguntou ela de novo.

- Estou óptima.

Kim afastou o cabelo da testa, um gesto que herdara do pai, e que queria dizer que já estava a ficar impaciente com aquela conversa, e olhou para as janelas.

- Vais sair?

- vou a uma exposição de fotografias, e depois vamos ter com a Stephanie Slopen e com um amigo dela para jantar. Queres vir connosco?

Mesmo no escuro, Mattie não teve dificuldade para ver o sorriso trocista da filha.

- Estou de castigo até ao dia em que fizer quarenta anos, lembras-te?

- O que fizeste foi muito mau - lembrou-lhe Mattie.

- Foi para me dizeres isso que vieste aqui?

- Não.

- Então para que foi?

- Estou preocupada contigo.

- Não tens preocupações suficientes para ainda teres de te aborrecer comigo?

Mattie começou a arrumar mentalmente o quarto, com os olhos apanhou do chão as roupas da filha e pôs cada coisa no seu devido lugar. Kim fora sempre tão organizada, tão precisa. Quando se transformara numa desleixada?

- Mas eu preocupo-me contigo, sim. Sei que deves estar a passar por um momento muito confuso.

- Eu estou bem, mãe - disse Kim.

- Estava a pensar que talvez fosse bom conversares com alguém...

- Alguém? Queres dizer com um psiquiatra?

- Talvez.

- Achas que estou maluca?

- Não, é claro que não - disse Mattie imediatamente. - Só pensei que te ajudaria teres alguém com quem conversar.

- Tenho-te a ti - os grandes olhos de Kim correram para a mãe na escuridão. - Não tenho?

- Claro que tens. Mas eu faço parte do problema, Kim. ;

- Não és tu o problema. É ele.

Não havia necessidade de especificar quem era ele.

- O teu pai adora-te. Sabes disso.

- Claro que sim. Diverte-te no jantar - Kim caiu de novo na cama e cobriu a cabeça com o cobertor, sinal evidente de que a conversa tinha acabado.

Mattie hesitou um pouco, depois saiu lentamente do quarto e fechou a porta. Ainda tinha muita coisa para dizer, mas faltava-lhe energia. Ou tempo, pensou ela, olhando para o relógio de pulso. Onde estaria Jake? Eram horas de sair.

- Jake? - chamou novamente Mattie, descendo a escada. Percebeu que ele estava ao telefone, antes mesmo de ver a porta do escritório fechada, soube que falava com Honey, antes mesmo de pegar no auscultador da extensão na cozinha e sabia o que ia ouvir antes mesmo de Jake falar.

- Desculpa - dizia ele.

- Pára de te desculpar - respondeu Honey, com a voz rouca que Mattie já conhecia.

- Ela combinou tudo sem eu saber. Não posso dizer que não.

- Eu é que devia pedir desculpas. Devia ter estado ontem à tua espera.

- Não podias adivinhar.

- Não sei por que foi logo ontem, que me decidi, a ir ao ginásio tão cedo.

- Amanhã à noite - interrompeu Jake enérgico. - Amanhã à noite, aconteça o que acontecer.

- Está bem. Onde é que vamos?

- Esperava que ficássemos em casa.

- Melhor ainda. Às sete?

- Estou desejando ver-te - disse Jake.

- Amo-te.

Mattie desligou o telefone antes de ouvir a resposta do marido.

- O que é que achas? - perguntou Mattie.

A conversa ouvida na extensão ainda lhe ecoava aos ouvidos quando estava de pé ao lado de Jake no centro da pequena galeria na Erie Street, perto da Magnificent Mile. O chão da galeria era feito de tábuas de madeira não envernizada, a iluminação muito alta e indirecta. Uma enorme janela ocupava quase toda a parede norte, de frente para a rua. As outras paredes estavam cobertas por uma colecção surpreendente de grandes fotografias coloridas: uma jovem mexicana com um vestido florido de cores vivas, com flores no cabelo e um crucifixo ao pescoço, posando diante de um pano de fundo pintado com a Virgem Maria a flutuar num céu cheio de nuvens, as flores pintadas por baixo dos pés da Virgem misturando-se com as flores da barra do vestido da jovem; um grupo de anjos pintados à mão numa parede rachada azul-turquesa, protegendo uma pequena fotografia a preto e branco de um rapaz; um grande aparelho de televisão estranhamente colocado sobre uma mesa, diante de um cenário pintado, com uma paisagem antiquada; uma mulher latino-americana gorda, de expressão amarga, envergando um vestido azul com bolas douradas a olhar zangada para a câmara, mais assustadora do que o conjunto de generais uniformizados sentados atrás dela.

- Eu gosto - disse Jake. (Amo-te, sussurrou Honey.)

- Por quê? - perguntou Mattie. (Porque estás aqui?)

- Jake riu-se, pouco à vontade.

- Sou advogado, Mattie. O que sei eu sobre arte? Tu gostas?

- Adorei - disse Mattie e depois mordeu a língua. (Amo-te, sussurrou Honey.)

- Por quê?

Por que é que estou aqui? pensou Mattie, procurando esquecer a outra conversa.

- É a utilização da cor e a composição - explicou ela, usando o som da própria voz para banir os ecos indesejados. - A maneira como o fotógrafo combina a realidade com o artificial, como usa uma coisa para complementar e acentuar a outra, como de vez em quando mistura os limites das duas. A maneira como ele usa objectos inanimados para afirmar a auto-imagem de uma cultura. A forma como estas imagens se combinam, a linguagem visual com a compreensão pessoal.

- Consegues ver tudo isso?

- Mattie sorriu sem querer.

- Li o catálogo antes de vir para cá.

Jake soltou outra gargalhada. Mattie descobriu que gostava muito do som do riso dele, e como o tinha ouvido pouco nos últimos anos. Será que ele ri assim com a Honey? pensou. (Estou desejando ver-te, tinha ele dito.) Concentrou a sua atenção na fotografia de um jovem a posar de modo provocante na frente de uma parede cheia de imagens da guerra - soldados, tanques, canhões, explosões. O rapaz estava de costas para a câmara, com a t-shirt vermelha puxada para cima, fora dos jeans desbotados, expondo uma enorme ligadura branca que lhe atravessava as costas como uma cicatriz irregular.

- Esta é forte - afirmou Jake. - Quem é o fotógrafo?

- Raphael Goldchain. Nasceu no Chile, em 1956. Os seus avós judeus imigraram da Alemanha para a Argentina na década de 30. Os pais foram viver para o Chile, onde Raphael nasceu, depois estabeleceram-se no México no início dos anos 70. Raphael foi para Israel onde estudou na Universidade Hebraica de Jerusalém e depois, em 1976, imigrou para Toronto, no Canadá, onde mora até hoje.

- Que confusão de homem.

Não é o único, pensou Mattie, olhando para a brochura que segurava.

- Diz que quando está a fotografar na América Latina se sente envolvido num processo significativo e cheio de expressão de autoconhecimento - leu ela em voz alta. - Ao criar dentro dessa cultura, acentua a sensação de pertencer a alguma coisa.

- Está então a usar a profissão como uma maneira de resolver os seus problemas - declarou Jake.

Acho que todos nós o fazemos até certo ponto, pensou Mattie.

- E agora depois de veres a exposição - continuou Jake -, como é que fazes?

Ele está a perguntar o que estive eu a fazer nos últimos dezasseis anos, pensou Mattie atónita, sem saber se havia de ficar zangada ou satisfeita. Talvez, se tivesses dedicado mais tempo para me conheceres, pensou, o mesmo tipo de tempo que desperdiçaste em todos estes anos com mulheres como Honey Novak, não terias de me perguntar.

(Amanhã à noite, ouvira Jake dizer. Amanhã à noite, aconteça o que acontecer.)

- Vejo se tenho um cliente que possa gostar de alguma destas imagens - disse-lhe ela, apontando para uma fotografia na parede mais distante.

Nessa havia uma antiga máquina de discos ao canto de uma sala azul-esverdeada, praticamente engolida por cartazes de mulheres seminuas pregados nas paredes, realçando-se um deles, onde aparecia uma mulher de corpete cor-de-rosa e meias de nylon pretas, com os dedos enfiados nos lados das calcinhas, pronta para as puxar para baixo, pelo traseiro arredondado.

- Acho que esta aqui ficava muito bem por cima do sofá do teu escritório.

Jake soltou uma gargalhada, sem saber se ela estava a falar a sério.

- Não sei bem se os meus sócios iriam gostar. Ainda não se recuperaram da batata assada.

Mattie entendeu que ele se referia à litografia de Claes Oldenburg que ela o convencera a pendurar na parede por detrás da secretária.

- Estava a pensar no teu escritório lá em casa.

Jake concordou com a cabeça e um rubor de remorso subiu-lhe de repente ao rosto.

- Desculpa, Mattie - gaguejou. - Eu pretendia passar mais tempo em casa.

Mattie levou alguns segundos a associar uma ideia à outra.

- Jake, eu não quis dizer que...

- Só que está tudo tão confuso...

- Eu só quis dizer...

- com o julgamento...

- Francamente, Jake, eu não estava a insinuar...

- Logo que este julgamento termine...

- Não te desculpes mais - disse Mattie. (Não te desculpes mais, ecoou Honey.)

Mattie deu um grito sufocado e levou a mão à boca. Seria que o marido passava a vida toda a pedir desculpa às mulheres? A pedir desculpas e a procurar a absolvição?

- O que é isso? - perguntou Jake.

- Isso o quê? - Mattie olhou para um jovem casal que gesticulava exageradamente diante da fotografia da mulher de cara zangada com o vestido azul de bolas douradas.

- Na tua mão.

Jake segurou a mão esquerda de Mattie e virou-a com a palma para cima antes que ela o pudesse evitar.

Mattie resmungou alguma coisa sobre precisar de um número de telefone e de não encontrar um pedaço de papel. Não era exactamente uma mentira. Mas não era verdade. Jake pareceu aceitar. E porque não aceitaria? pensou Mattie, metendo a mão no bolso. Havia anos que ela aceitava aquele tipo de resmungos.

- Achas mesmo que ficaria bem por cima do sofá no meu escritório? - perguntou Jake, voltando-se de novo para a fotografia.

Agora era a vez de Mattie perguntar a si própria se ele falava a sério.

- O que achas? - perguntou ela.

- Acho perfeito - disse ele, e riu.

- Vendido para o cavalheiro que dá belas gargalhadas - Mattie deu por si também a rir.

- Obrigado por me teres trazido hoje contigo - disse Jake, depois de acertarem a compra da fotografia. - Diverti-me muito.

- Obrigada eu. Tenho certeza de que preferias estar noutros lugares. - (Ela combinou tudo sem eu saber. Não posso dizer que não.)

- Não me lembro de nenhum - disse Jake, conseguindo parecer sincero e olhando para o relógio. - Olha, está a ficar tarde. Estás com fome?

Mattie fez que sim com a cabeça e deixou que Jake lhe desse o braço.

- Estou a morrer de fome.

O restaurante já estava cheio quando Mattie e Jake entraram pela porta de vidro logo depois das sete horas. Um enorme número de clientes semelhantes a salsichas bem vestidas, aguardavam numa pequena área de espera, acotovelando-se para conseguir uma posição perto do enfatuado gerente. Vários perfumes delicados travavam uma batalha perdida contra uma variedade conflituosa de odores mais opressivos, que incluíam o do fumo de um charuto que uma jovem de rabo-de-cavalo fumava no bar.

- Com licença, nós fizemos uma reserva - Mattie ouviu alguém dizer.

- Todos aqui fizeram reserva - foi a resposta gelada do gerente. - Devem estar aqui metade dos habitantes de Chicago - disse aos gritos Para ser ouvido sobre o rugir da multidão impaciente.

- É o que acontece quando aparece uma crítica favorável no jornal - disse Mattie, e o marido fez um gesto a indicar que não conseguia ouvir o que ela dizia.

Jake baixou a cabeça e pôs a orelha perto da boca de Mattie para ela repetir o que tinha dito. Mattie inclinou o corpo para a frente, com o nariz encostado ao pescoço dele. O cheiro dele é tão maravilhoso, pensou ela, e perdeu o equilíbrio quando foi empurrada por uma mulher de vestido preto decotado nas costas. Mattie tropeçou e os seus lábios passaram de raspão pela orelha de Jake.

- Estás bem? - perguntou ele, segurando-a antes que caísse.

- Mattie assentiu com a cabeça e olhou para o salão principal por cima da multidão. Notou que não era diferente da maioria dos outros restaurantes elegantes da cidade - uma enorme sala quadrada com muitas mesas, metidas entre espelhos em número exagerado, com uma fileira de assentos de um lado, um bar super abastecido do outro.

- Lá está a Stephanie! - Mattie apontou para os últimos assentos onde uma mulher branca de meia-idade e cabelo grisalho, abraçava apaixonadamente um jovem negro.

Mattie e Jake foram andando em ziguezague por entre as mesas até ao cubículo do outro lado do salão.

- Mattie?

Mattie sentiu uma mão no ombro.

Roy Crawford saltou da cadeira e inclinou o corpo para a frente Para beijar o rosto de Mattie.

- Estou a ver que não sou o único a ler as críticas dos restaurantes- Como está? Está maravilhosa.

- Obrigada. Você também.

Ele estava de facto maravilhoso, pensou Mattie, notando-lhe os olhos maliciosos cintilando sob a vasta cabeleira prateada.

- Deixe-me apresentar-lhe a Tracey - Roy Crawford indicou a jovem que estava sentada ao seu lado direito.

- com ey - disse Tracey.

Mattie digeriu essa informação desnecessária e apresentou Roy ao Marido.

- Muito prazer - os dois cumprimentaram-se.

- Roy é meu cliente.

- Muito bem - disse Jake tranquilamente, como se jamais tivesse imaginado outra possibilidade. - A Mattie tem de lhe contar a exposição fabulosa que acabamos de ver.

- Pois tem - disse Roy Crawford, piscando o olho.

- Parece simpático - disse Jake a caminho da mesa. - A filha é muito bonita.

Mattie sorriu e não se deu ao trabalho de o corrigir. Tracey com ey, pensou quando chegaram aos assentos em que Stephanie e Enoch olhavam embevecidos um para o outro, ignorando tudo, o resto Mattie pigarreou.

- Desculpem. Detesto interromper-vos - disse, descobrindo que era verdade.

Stephanie pôs-se imediatamente de pé.

- Ah, já chegaram. Estava a começar a ficar preocupada.

- Eu reparei.

- Deixem que vos apresente o meu amorzinho - disse Stephanie entusiasmada, e Mattie e Jake ficaram a olhar para o chão, pouco à vontade.

Toda a gente deveria ter um amor assim, pensou Mattie.

Enoch Porter inclinou o corpo para a frente e beijou o rosto de Mattie, quase no mesmo lugar em que Roy Crawford o tinha feito segundos antes.

- Não é a coisa mais deliciosa deste mundo? - murmurou Stephanie.

- É muito delicioso - concordou Mattie enquanto Enoch e Jake se cumprimentavam.

- Tem uma pele de veludo - continuou Stephanie no mesmo tom.

- Parece simpático.

- Que importa a simpatia - confidenciou Stephanie, cobrindo a boca com a mão. - Tem uma língua que não pára.

Mattie fez um sorriso amarelo. Aquela informação era tão desnecessária, como a de que o nome de Tracey se escrevia com ey.

- Olha, dá-me licença, tenho de ir à casa de banho - disse ela, pondo-se de pé.

- Sentes-te bem? - Mattie ouviu Stephanie dizer. - Acabaste de te sentar.

- Já venho.

- Queres que vá contigo?

Mattie recusou a oferta da amiga com um aceno da mão. Ma Stephanie já voltara toda a sua atenção para Enoch, passando-lhe o braço pelos ombros, e achatando os seios grandes contra o corpo dele. Toda a gente faz sexo, menos eu, pensou Mattie, localizando a casa de banho ao lado do bar movimentado.

O que estaria a acontecer com Stephanie? Como podia ser tão descarada, tão despudorada, tão óbvia? Tinha duas filhas pequenas, meu Deus! Como se iriam elas sentir se soubessem que a mãe estava a fazer figuras tristes, atirando-se a um homem dez anos mais jovem, pendurando-se nele, deixando que ele a apalpasse na frente de toda a gente, a gritar as suas proezas sexuais para quem quisesse ouvir? Teria perdido o brio? Não se quereria dar ao respeito? Não teria sentido de decência? Não saberia que aquela relação mal combinada não ia funcionar?

Que importa?, pensou Mattie. Jake e ela eram da mesma geração, da mesma cor, do mesmo tudo. E funcionara?

- O que tu tens é inveja - disse Mattie para a sua imagem no espelho, que imediatamente baixou a cabeça, envergonhada.

O que não daria pela oportunidade de se encostar a um jovem amante, de sentir a sua pele aveludada como um cobertor por cima de si, de deixar que ele a apalpasse à vontade diante das amigas invejosas.

Toda a gente deveria ter um amor assim, pensou de novo, retocando o batom, apesar de não precisar. Mas os seus dedos soltaram o tubo fino e o batom deslizou-lhe pelo rosto, desenhando uma linha que mais parecia um fio de sangue pálido.

- Oh, Deus - murmurou Mattie. Quis apanhar um lenço de papel de dentro da carteira mas viu, desesperada, que esta caía no chão, espalhando tudo o que tinha dentro sobre os mosaicos pretos e brancos.

Mattie ajoelhou-se muito devagar e começou a juntar várias canetas de feltro, um pacote de lenços de papel, os seus óculos escuros, a sua carteira, o livro de cheques, as chaves de casa. E que mais?, pensou ela, notando um par de saltos de agulha dentro de um dos cubículos, percebendo, pela primeira vez, que não estava sozinha na casa de banho. Como é que alguém conseguiria andar em cima de uma coisa daquelas? pensou Mattie, apoiando as mãos no chão para se pôr de pé, oscilando um pouco sobre as pernas que não queriam sustentá-la.

- Por favor - murmurou ela para dentro da gola da sua camisola cor-de-rosa, agarrando-se à bancada do lavatório para não cair.

Por favor, repetiu mentalmente, sem se preocupar em terminar a oração silenciosa.

Mattie ouviu o autoclismo e sorriu para a jovem que saiu da casa de banho, o cabelo preto tão alto como os saltos agulha, saltos com os quais, observou Mattie, ela andava sem problema algum. A mulher examinou a sua imagem no espelho enquanto lavava as mãos e pareceu satisfeita com o que viu. E realmente devia estar mesmo, pensou Mattie, seguindo-a com os olhos até à porta da casa de banho, jovem e bela. Tudo funcionava perfeitamente. Sem dúvida iria ter com um namorado que a adorava.

É a minha vez, pensou Mattie, respirando fundo, endireitando os ombros e saindo da casa de banho.

Roy Crawford estava mesmo do lado de fora da porta.

- Ficou muito tempo lá dentro - disse ele.

- Deixei cair a carteira - que palermice ter dito aquilo, pensou Ele estaria à sua espera?

- O que é que tem na cara? - sem esperar pela resposta, Roy Crawford esfregou suavemente a pele ao lado da boca de Mattie. - Parece batom - pôs o indicador na boca, lambeu a ponta de forma provocante e passou-lho no rosto, sem tirar os olhos dela. Mattie sentiu o frescor da saliva dele molhando-lhe a pele e ficou sufocada. - Pronto. Assim está melhor.

- Obrigada - murmurou Mattie, ofegante.

- Então aquele é o seu marido? - disse Roy, como se fosse a coisa mais normal a dizer naquelas circunstâncias.

Mattie fez que sim com a cabeça, não confiando na própria voz.

- Pensei que estavam separados.

- Ele voltou.

Roy Crawford esboçou um lento sorriso.

- Telefone-me.

 

ESTAVAM DEITADOS NA CAMA DELA, ENROLADOS NOS RECÉM-comprados lençóis de algodão cor-de-rosa.

- Especiais para a ocasião - dissera Honey divertida enquanto se despiam um ao outro e saltavam para a cama, segundos depois de Jake chegar.

Meia hora depois estavam deitados lado a lado, nus, abraçados, suados e insatisfeitos, confusos e conciliadores, com os gatos a brincarem-lhe com os dedos dos pés, ao fundo da cama.

- Desculpa, Honey - disse Jake, tentando afastar os gatos. - Não sei qual é o problema.

- Não há problema, Jason. Estas coisas acontecem. Não precisas de te desculpar.

- Só Deus sabe como eu quero - Jake esfregou os olhos impaciente.

- Bem sei.

- Andei a pensar nisto o dia inteiro.

- Talvez seja esse o problema... pensares demais.

Honey sentou-se na cama e o lençol escorregou-lhe até à cintura, expondo-lhe os seios grandes, pendulares. Espantou os gatos para longe dos pés de Jake. Um saltou para o chão, miando em sinal de protesto, o outro ficou silencioso ao pé da cama, fixando em Jake os olhos amarelos e acusatórios.

- Acho que só estou cansado.

- Estas últimas semanas foram duras.

Honey deitou-se de novo na almofada, aninhou-se na curva do braço de Jake e

acariciou-lhe suavemente os pêlos do peito.

- Como é que vai o julgamento?

- Muito bem. Acho que temos boas possibilidades de conseguir a absolvição.

Jake riu. Tinha passado o dia inteiro à espera das sete horas. Praticamente só pensava nisso desde a hora em que acordara naquela manhã, já excitado. Tinha conversado um pouco com Mattie durante o pequeno-almoço, ao mesmo tempo que imaginava o corpo de Honey e planeava minuciosamente as várias coisas que ia fazer com ela assim que chegasse ao apartamento. Em nenhum momento do seu elaborado cenário de acrobacias sexuais os dois tinham perdido tempo a falar de negócios. E as acrobacias nunca haviam falhado antes.

- Na verdade - Jake ouviu dizer a sua própria voz - são as próprias testemunhas de acusação que estão a conseguir que eu ganhe o caso!

- Como assim?

Seria imaginação dele, ou Honey parecia realmente tão confusa quanto ele com aquela repentina loquacidade?

- A própria vítima e o polícia que efectuou a prisão admitiram que a minha cliente mais parecia um zombi no momento em que deu os tiros. Até o psiquiatra indicado pelo tribunal foi forçado a admitir a probabilidade de insanidade temporária.

- Forçado por quem?

- Jake riu-se.

- Ora, por mim, acho eu.

- Então foste muito bom, não é verdade?

- Fui muito bom - sentiu um leve tremor no baixo-ventre.

- Aposto que sim.

Honey fez deslizar a sua mão entre as pernas dele, segurou-lhe o pénis e acariciou-o suavemente com os dedos.

Jake gemeu, como se o som pudesse estimular mais o corpo a ter a reacção apropriada.

- Isto é bom - um certo incentivo verbal, pensou, olhando para o órgão obstinadamente mole. O que estaria a acontecer? Porque se manteria assim? Merda! Nunca antes lhe tinha acontecido tal coisa. Olhou furioso para as virilhas, como se pudesse obrigar o pénis a reagir.

- Procura descontrair-te - Honey tentou animá-lo, dando-lhe uma série de beijos suaves no peito.

Ele sentiu o calor dos seios de Honey, o leve toque dos lábios dela quando encontraram os seus, a língua que explorava devagar a sua boca aberta.

- Já está melhor - disse Honey com um sorriso na voz, enquanto continuava a massajar com a mão o pénis de Jake.

Jake fechou os olhos e meteu as mãos na cabeleira ruiva de Honey quando a cabeça dela desapareceu por entre as suas pernas, rodeando seu pénis com os lábios, sugando-o lentamente com a boca, até ele começar a responder. Ela era uma amante maravilhosa, pensou Jake, intrépida, tão expressiva, tão disposta a fazer qualquer coisa para o deixar feliz. Estava a ser muito paciente, muito compreensiva com aquela complicação a respeito de Mattie. Quantas mulheres deixaram a vida assim suspensa por ele? Da mesma forma que Mattie o tinha feito durante quase dezasseis anos, concluiu estremecendo.

- Jason, que se passa?

- O que foi? - Jake olhou para os olhos confusos de Honey e depois para seu órgão, de novo flácido.

- Pensei que já estava a acontecer alguma coisa.

- Sinto muito.

- Em que estavas a pensar?

- Em nada.

Respirou fundo, deixou sair o ar, olhou para o gato que o encarava aos pés da cama. Pensou mais uma vez em Mattie. Esta parecera demasiado alegre o dia todo. Cantara acompanhando o rádio, sintonizado numa daquelas estações especializadas em músicas antigas, enquanto ele trabalhava no escritório, e Jake ainda lhe conseguia ver o sorriso de Mona Lisa quando ele dissera que tinha de sair naquela noite e que talvez voltasse tarde. Nem lhe tinha perguntado para onde ia, apesar de ter toda uma explicação preparada.

- Também vou sair - dissera-lhe simplesmente.

- Estás a pensar na Mattie, não estás?

- Mattie? Não - seria assim tão óbvio?

- Como está ela? - continuou Honey, claramente nada convencida.

- Mais ou menos na mesma.

- Espero que ela entenda que tu és um homem maravilhoso.

- Jake esboçou um sorriso forçado. Mattie sabe exactamente que tipo de homem sou, pensou com tristeza. Era aí que estava a diferença entre as duas mulheres: uma conhecia-o bem demais; a outra não o conhecia. Seria por isso que ele estava ali?

- Amo-te, Jason Hart - murmurou Honey, chegando o rosto ao dele.

- Desculpa - disse Jake -, o que foi que disseste?

- Disse que te amo.

- Porquê? - perguntou Jake surpreendido. - Porque é que me amas?

Porque estaria ele a perguntar aquilo? Detestava quando as mulheres faziam aquelas perguntas, como se os sentimentos precisassem de motivos. E agora está a fazer a mesma coisa. Porquê? Perguntou para consigo e quase soltou uma gargalhada.

- Porque razão te amo? - repetiu Honey. - Não sei. Porque é que uma pessoa ama outra?

Aquela resposta que seria a sua se Honey lhe tivesse feito a mesma pergunta, foi estranhamente, quase que irritante e insatisfatória. Há momentos para a verdade, pensou ele, e momentos em que só a verdade não basta.

- Vejamos - recuou Honey, como se sentisse o desagrado - Eu Amo-te porque és inteligente, sensível, sensual...

- Esta noite não estou muito sensual - reconheceu ele.

- Ah, mas a noite é ainda uma criança - lembrou Honey. Soltou uma gargalhada, mas uma gargalhada oca, como Mattie fazia às vezes, quando estava infeliz. Jake abanou a cabeça, tentando deixar de pensar em Mattie. Não foste convidada para aqui, pensou ele. Vai para casa.

Só que ela não estava em casa. Tinha saído. Para onde? Provavelmente estava no cinema com Lisa, ou Stephanie, ou qualquer outra das suas amigas. Mattie tinha muitas amigas, pensou Jake, descobrindo que, exceptuando as amizades que fizera por intermédio de Mattie, não tinha nenhum amigo de verdade.

- Como vai o teu livro? - perguntou Jake enquanto Honey lhe passava a língua sobre os mamilos.

- O meu livro? Queres falar sobre o meu livro?

Era um assunto como qualquer outro, pensou Jake. Pelo menos até conseguir tirar Mattie da ideia. Era ela que lhe pesava entre o cérebro e o pénis. Precisava de a deslocar para que o seu sangue fluísse livremente.

- Só queria saber se tens feito progressos.

Honey sentou-se, cruzou as pernas como se estivesse a fazer ioga, ajeitou o lençol de algodão branco e cor-de-rosa modestamente sobre o colo. Parecia prestes a chorar, pensou Jake, tentando nem reparar.

- O meu livro vai muito bem.

- Que bom.

- Esta tarde terminei o terceiro capítulo.

- Isso é muito bom.

- Estou muito satisfeita.

- Ainda bem.

- Ainda bem - repetiu ela.

- Óptimo.

- Óptimo.

Houve uma longa pausa. O que lhe estaria a acontecer?, pensou Jake. Toda aquela conversa enquanto podia estar a fazer amor?

- Sobre o que é? - perguntou ele, sabendo que Honey nunca quisera falar sobre esse assunto.

- Uma mulher envolvida com um homem casado - disse Honey com a voz levemente trémula e sorrindo pouco à vontade. - Dizem que devemos escrever sobre aquilo que conhecemos. - E começou subitamente a chorar.

- Honey...

- Tudo bem. Estou bem. Que diabos. Estou bem - zangada, limpou rapidamente as lágrimas com a mão. - Prometi a mim mesma que nunca faria isto, e não o vou fazer. Não vou - repetiu, como se se quisesse convencer. - Detesto mulheres tolas e choronas.

- És tudo menos uma mulher tola e chorona - Jake abraçou-a e beijou-a na testa. Só estás confusa, pensou. Quase tão confusa como eu. - Tens todo o direito de estar aborrecida.

- Sei que tudo isto não é culpa tua. Compreendo, compreendo mesmo. Sei que concordámos que voltar para a tua mulher era o que devias fazer, e não estou a tentar impor-te nada. Sei que uma amante exigente é a última coisa que precisas neste momento. Mas não é fácil para mim, Jason. Que diabos, acho que eu tinha muitas expectativas para esta noite.

De novo os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, que de novo lhe caíram pelo rosto.

- Por favor, Honey, não chores.

- É que às vezes sinto que te estás a afastar.

- Eu não fujo.

- Não te quero perder.

- Não me vais perder.

- Não sou uma lutadora, Jason. Foi sempre parte do meu problema. Nunca me comprometi realmente com coisa alguma. Foi assim o meu casamento, e é assim no romance que estou a escrever. É como se estivesse sempre de pé atrás. Não corro riscos e desisto com muita facilidade. bom, agora já não - declarou, endireitando os ombros com a sua nova decisão. - Pela primeira vez na minha vida, estou a arriscar-me. Estou a avisar-te, Jason. Pretendo lutar por ti. Farei tudo o que for preciso para ficar contigo.

Jake beijou as lágrimas que caíam dos olhos de Honey. Era a primeira vez que via Honey chorar, pensou lambendo-lhe as lágrimas junto da boca e abrindo-lhe suavemente os lábios com a língua. Honey gemeu, passou-lhe os braços em volta do pescoço, as pernas em volta das coxas. Jake sentiu um agradável movimento no pénis e puxou rapidamente Honey para si penetrando-a com força. Honey deu um grito sufocado e enfiou-lhe as unhas no ombro.

- Vai ficar tudo bem - murmurou Jake. - Vai ficar tudo bem! - Ele continuou dentro dela enquanto as palavras se mantinham no seu cérebro, até quase acreditar nelas.

 

- Champanhe? - perguntou Roy Crawford.

- Como é que eu sabia que terias champanhe? - Mattie sorria-lhe da beira da enorme cama onde estava sentada.

- Porque sou irremediavelmente previsível?

- O sorriso de Mattie alargou-se.

- Porque és irremediavelmente romântico.

- E tu não és?

- Eu? Não. Sou prática demais para ser romântica.

- Foi a vez de Roy Crawford sorrir.

- Quem sabe se não podemos fazer alguma coisa para tratar disso?

- É para isso que estou aqui.

Aqui era um quarto lindo, azul marfim, no vigésimo oitavo andar do Ritz-Carlton Hotel no centro de Chicago, onde Mattie tinha sugerido que se encontrassem quando ele lhe telefonara logo de manhã. Aqui era uma cama enorme, uma garrafa de champanhe, e um homem perto dela com um brilho no olhar e duas taças de Dom Perignon na mão. Aqui era no que Mattie tinha pensado o dia inteiro.

Roy Crawford sentou-se ao lado dela sobre a colcha de cetim azul já aberta na cama, com os joelhos a tocar os dela quando lhe ofereceu a taça de champanhe e propôs um brinde.

- A esta noite.

- A esta noite - repetiu Mattie, levando a taça aos lábios, tomando um gole lentamente, e deixando que as bolhas do champanhe lhe fizessem cócegas no nariz. - Muito bom - declarou.

- É verdade - disse Roy Crawford, apesar de ainda não ter bebido.

- Mattie sentiu o pulso acelerado. Quanto tempo havia já desde que alguém a olhara com tanta volúpia?

- Imagino que não deves ter tido problemas para sair esta noite - ouviu a própria voz mais alta do que o bater do seu coração.

- Problema nenhum. A Tracey sabe que tenho um horário errático.

- Tracey com "ey"?

- Roy sorriu.

- Ela é muito precisa - bebeu um gole de champanhe e acenou com a cabeça, satisfeito. - E tu? Há algum problema?

- O meu marido também tem um horário errático.

- Mattie soltou uma gargalhada, porém a ideia do que Jake poderia estar a fazer naquele exacto momento fez com que uma das bolhas do champanhe lhe explodisse na garganta e teve dificuldade para recuperar o fôlego.

- Sentes-te bem?

- Estou óptima - respondeu Mattie, engasgada.

- Olha para cima - aconselhou Roy. - Levanta os braços.

- O quê? Para quê?

- Não sei - Roy Crawford parecia envergonhado. - A minha mãe dizia sempre que quando nos engasgamos devemos olhar para cima e levantar os braços.

- Não estou engasgada - insistiu Mattie. Não obstante olhou para cima e levantou os braços.

- Estás melhor?

Mattie fez que sim com a cabeça, tendo o cuidado de não falar.

- Então, as coisas vão bem, contigo e com o teu marido? - Um novo ar de preocupação surgiu nos olhos cinzentos de Roy Crawford.

- Está tudo bem - confirmou Mattie e o aperto na garganta fez com que a voz lhe saísse rouca e sensual.

- E isto é o quê... vais pagar-lhe na mesma moeda?

Mattie levantou-se, caminhou até à janela e bebeu lentamente um gole de champanhe.

- Não, acho que não - disse sinceramente. - Não creio que esteja a fazer isto para me vingar do Jake. Agora já não - fez uma pausa, respirou fundo e sentiu a garganta desobstruída. - Estou a fazer isto por mim.

Roy estava atrás dela e encostou-lhe os lábios à nuca.

- Acho que me sinto lisonjeado.

Mattie sentiu eriçarem-se-lhe os cabelos do pescoço que ondularam sob a respiração quente de Roy.

- Acho que me apetece outra taça de champanhe.

Roy encheu-lhe imediatamente a taça e ficou a olhá-la enquanto ela bebia tudo de uma só vez.

- Tens a certeza de que é isto que queres?

- Absoluta.

Mattie poisou a taça na mesa, acariciou o rosto de Roy e beijou-o na boca. Os seus lábios eram macios e carnudos, mais carnudos que os de Jake, pensou, enquanto ele retribuía o beijo com toda a eficiência, a boca aberta, expondo só a ponta da língua. A pressão correcta concluiu Mattie. Era óbvio que se tratava de um homem que gostava de beijar e que tinha aperfeiçoado a arte.

- Beijas muito bem - disse ela, sentindo um formigueiro nas pernas enquanto ele a conduzia lentamente para a cama.

- Tenho quatro irmãs. Costumávamos praticar muito quando éramos pequenos.

Pararam diante da cama e ele beijou-a mais uma vez. Dessa vez o beijo foi mais profundo, mas a língua dele continuou a ser apenas uma suave provocação. Na verdade tinha treinado bastante, pensou Mattie. Não que Jake não beijasse bem. Beijava. Mas havia muito tempo que não a beijava daquela maneira. Tê-la-ia ele realmente beijado assim alguma vez? Tentou recordar-se, sentindo os tornozelos encostados ao lado da cama. Vai-te embora, Jake, pensou Mattie, abrindo os olhos e vendo por cima dela a imagem indefinida da grande cabeça de Roy Crawford.

Roy chegou-se um pouco para trás mas continuou com os lábios colados aos dela. As mãos dele encontraram a frente da blusa de seda verde de Mattie e formaram círculos cada vez menores sobre os seios dela. Até aqui, tudo bem, pensou Mattie, e as mãos dele começaram a desabotoar-lhe os botões brancos. Sentiu o habitual formigueiro na planta do pé direito. Não devia preocupar-se com aquilo, pensou, tentando acalmar-se. Sentia o formigueiro percorrer-lhe todo o corpo. Não precisava de se preocupar.

- Está tudo bem contigo? - murmurou Roy.

- Tudo óptimo - respondeu ela.

- Óptimo - repetiu ele, fazendo com que a blusa lhe deslizasse dos ombros e os seus dedos regressaram imediatamente à frente do soutien de renda preta.

- És linda - disse, acariciando-lhe as ancas.

Ele não tinha pressa; despiu-lhe cada peça de roupa com todo o cuidado, maravilhado com a maciez da pele dela, com as delicadas curvas do seu corpo, com o seu cheiro, com o modo que ela reagia a cada carícia.

- Olha para ti - disse, deitando-se ao lado de Mattie sobre os lençóis brancos. - Tens ideia de como és bonita?

- Repete isso - disse ela, com os olhos marejados de lágrimas. E ele repetiu. Outra vez. E mais uma vez. Passando-lhe as mãos

nos seios, no cabelo, entre as pernas, os lábios seguindo o caminho das mãos, a língua seguindo o caminho dos lábios. Mattie fechou os olhos, mas abriu-os de novo ao ver Jake escondido atrás das pálpebras - Vai para casa, Jake, disse-lhe. Nesta cama não há lugar para todos nós.

- Estás pronta? - perguntava Roy Crawford.

- Ainda não - Mattie sentou-se e empurrou Roy maliciosamente. - É a minha vez - disse, observando-lhe o corpo nu.

Da última vez que tinha traído o marido, fechara os olhos e olhara para o outro lado. Não tivera intenção de o fazer de novo. Não, dessa vez iria saborear cada segundo. Teria os olhos bem abertos.

Roy Crawford estava em óptima forma para a idade, pensou Mattie, passando-lhe os dedos pelo peito macio. Magro, firme, musculoso. Era óbvio que se devia tratar muito bem. Provavelmente faz ginástica alguns dias por semana. Como Jake, pensou Mattie. No ginásio... onde Jake conhecera Honey. Honey Novak, pensou.

Sentiu Roy Crawford a estremecer sob os seus dedos.

- Desculpa - disse Mattie imediatamente. - Magoei-te?

- Vamos com calma - disse Roy Crawford.

- Acho que não estou em forma.

- Estás óptima - disse ele, quando Mattie substituiu os dedos pela boca.

Logo a seguir Mattie passou para cima de Roy e encaixou o seu corpo no dele. Deu um grito quando foi penetrada, Roy levantou os braços e segurou-a enquanto se movia dentro dela. A seguir mudaram de posição, ele por cima, e a seguir, ele ao lado dela, e depois, Mattie por cima, mais uma vez.

- És tão bela - dizia ele sem parar. - Bela. Bela.

Deitou-a, puxou-lhe as pernas para os seus ombros, ficou de joelhos e penetrou-a ainda mais fundo. Mattie curvou as costas para o receber melhor, segurando-lhe as nádegas, puxando-o mais para dentro de si, como se quisesse que todo ele mergulhasse dentro dela. Estava tonta e eufórica, o seu corpo vibrava como se fosse explodir. Era mágica, pensou, estremecendo e atingindo o clímax.

Mattie descobriu que sentira a falta daquela magia. Que precisava daquilo para a sua vida.

- Sentes-te bem? - perguntou Roy, algures perto dela.

- Lindamente - disse Mattie, sorrindo agradecida. - E tu?

- Ele virou-se para ela e beijou-lhe o ombro.

- Lindamente. Silêncio.

A magia terminara.

Desaparecera sem deixar pistas como um truque bem feito. Fora óptimo enquanto durava, merecedor das aclamações recebidas, mas logo desaparecera antes de se poderem examinar as pistas, a prestidigitação subtil, os fios reveladores. Apesar de todos os gritos e gemidos... no fim, nada mais restava.

Seria mesmo aquilo que ela queria? Seria assim que quereria passar o último ano da sua vida?

Uma das coisas que apreciava na arte, concluiu Mattie. era o facto de ser precisa, permanente, meticulosa, limitada por linhas. Mesmo o mais escandaloso rabisco era em geral o resultado de muito raciocínio. Por outro lado, a vida era transitória, fugaz, desalinhada. Não tinha importância se escapasse das linhas. Que diabo, esmagava as pessoas como um cilindro.

Olhou para Roy, milionário à custa do seu trabalho, o eterno adolescente, nu, deitado na cama a seu lado, sem qualquer falsa pretensão aparente. Sou o que sou o que sou. Popeye ou Platão. A simplicidade em pessoa. Exactamente aquilo que se via. Fechou os olhos. Se havia nele mais alguma coisa, Mattie preferia ignorar.

A magia terminara.

Alguns minutos depois, Mattie olhou para o relógio ao lado da cama. Já eram nove e doze.

- Acho que tenho de voltar para casa - disse, pensando na longa viagem de táxi.

Roy Crawford passou a mão pelo forte cabelo grisalho.

- Pois. Também tenho de ir andando.

Eram dois estranhos a despertar de uma noite de bebedeira e deparando-se um com o outro nus, suados e vagamente temerosos da pessoa que tinham ao lado, pensou Mattie, enquanto Roy entrava na casa de banho.

Segundos depois ouviu a água do chuveiro. Pegou na roupa, puxou as calças até à cintura, enfiou os braços nas mangas da blusa. Concluiu que teria muito tempo para tomar um banho quando chegasse a casa. Era pouco provável que Jake voltasse antes da meia-noite. Ainda estava atrapalhada com os botões da blusa de seda verde quando Roy saiu do chuveiro com um toalhão branco em volta da cintura.

- Há algum problema? - perguntou.

- Parece-me que os botões não querem cooperar - Mattie escondeu as mãos trémulas nas costas.

- com licença - as mãos de Roy Crawford voltaram hesitantes para a frente da blusa dela. Os seus dedos pairaram sobre os seios de Mattie. - É melhor não - disse por fim, abotoando um botão de cada vez.

- Obrigada - disse Mattie sinceramente.

- Sempre às ordens - Roy beijou Mattie suavemente no canto da boca.

- Obrigada - repetiu Mattie.

Roy Crawford pareceu surpreendido.

- Porquê?

- Por me teres feito sentir um objecto sexual. Os dois soltaram uma gargalhada.

- O prazer foi todo meu - disse ele, pegando nas meias. - Sabes, gostaria realmente de ver aquela exposição que o teu marido mencionou na outra noite - vestiu as calças pretas e enfiou a camisola azul.

- Acho que devias - concordou Mattie, ajeitando o cabelo ao espelho em frente à cama. - Acho que há várias fotografias de que vais gostar muito.

- Eu telefono-te. Podemos combinar alguma coisa.

- Parece-me óptimo.

- Óptimo - repetiu ele.

- Óptimo - disse ela.

 

- ENTRA. DEPRESSA. Kim puxou rapidamente Teddy Cranston para dentro da casa, olhando furtivamente para a rua escura e tranquila, atenta a possíveis olhares curiosos das casas vizinhas. Não estava a fazer nada de mal, pensou. Pelo menos tecnicamente. Estava de castigo. O que significava que não podia sair. Não queria dizer que não pudesse convidar alguém para a visitar. Além do mais, os pais tinham saído naquela noite, por isso, que diferença faria? Quem não sabe é como quem não vê. Sem dúvida mais tarde ou mais cedo, a mãe ou o pai, possivelmente até os dois, iriam ligar para casa para terem a certeza de que ela não tinha saído, e ela estaria preparada. Assim como estava preparada para Teddy. É esta noite, dissera-lhe ao telefone. Vem já para cá em menos de meia hora, ou não há nada para ninguém. Exactamente vinte minutos depois ele aparecia-lhe à porta de casa.

- O meu quarto é lá em cima - disse Kim, subindo a escada à frente dele.

Para quê perder tempo com preliminares? Os dois tinham passado meses em preliminares. Agora só tinham cerca de duas horas para terminar o serviço.

- Bonita casa - observou Teddy, tirando o pesado casaco de couro castanho e pendurando-o no corrimão enquanto seguia Kim escada acima.

- Não está mal.

Não disseram mais nada até chegarem à porta do quarto dela. Kim olhou rapidamente para ver se estava apresentável. Depois de telefonar para Teddy tinha atirado tudo que não era importante para dentro do armário. Até fez a cama. A mãe dizia sempre que era muito desconfortável dormir numa cama por fazer. Os dois não iam dormir, pensou Kim dando uma gargalhada silenciosa e expulsando a mãe do quarto com um movimento brusco do cabelo louro.

- Fixe - disse vagamente Teddy, pisando no tapete cor de trigo e olhando em volta. - Que edredão tão porreiro - notou, enquanto admirava a enorme cama.

Kim concordou com a cabeça. Na verdade, a colcha era uma imitação de patchwork acolchoado, feito com uma série de retalhos muito coloridos, cada retalho diferente e único, listas vermelhas e brancas ao lado de uma chita azul e branca, flores amarelas e grandes bolas verdes. A mãe tinha escolhido a colcha, assim como escolhera tudo que havia no quarto, apesar de aparentemente a decisão ter sido de Kim.

- O que tu quiseres - tinha dito a mãe dela assim que se mudaram. - Já és uma mulherzinha. Vamos decorar o teu quarto exactamente como tu quiseres.

Mas Kim nem sabia o que queria. Tinha apenas onze anos quando se mudaram para aquela casa. Nem sequer tinha tido tempo de desenvolver o gosto por alguma coisa, ou por um estilo. Por isso aceitou todas as sugestões da mãe. Até as paredes eram um reflexo da personalidade da mãe. A maioria das raparigas da sua idade cobria as paredes com cartazes e fotografias dos mais recentes galãs de Hollywood, super modelos ou bandas de música, e as paredes cor de areia do quarto de Kim estavam cheias de posters emoldurados do Instituto de Arte, gravuras assinadas e numeradas de Juan Miro e Jim Dine e até uma maravilhosa fotografia a preto e branco de uma mãe a abraçar a filha, da autoria da famosa fotógrafa Annie Leibowitz.

O que iria fazer quando a mãe não estivesse ali, pensou Kim desamparada, quando não tivesse ninguém para lhe dizer o que gostava ou deixava de gostar, quando não tivesse ninguém com quem contar para sentir a sua individualidade?

- Isso é muito fixe - observou Teddy, chegando-se mais perto de um número quatro em amarelo vivo flutuando sobre um fundo vermelho e preto. - Foste tu que fizeste?

Kim examinou o rosto de Teddy para ver se ele estava a brincar.

- Nem penses. É do Robert Indiana.

Kim mordeu imediatamente o lábio. Teria exagerado ao corrigilo? Teria ele ficado envergonhado? Iria resmungar alguma desculpa, dizendo que tinha outro compromisso e deixar a sua monótona virgindade intacta?

- Ah - Teddy encolheu os ombros. - Fixe.

- É uma gravura.

Como é que ele podia confundir uma gravura com uma pintura original? Como é que ela podia entregar-se para alguém que não era capaz de notar a diferença?

- Fixe - repetiu, atirando-se para o meio da cama.

Será que ele só saberia dizer aquilo?, perguntou Kim a si própria, de pé no meio do quarto. Na verdade Teddy não era a pessoa mais inteligente da escola, mas também não era o mais burro. Pensamento positivo, disse Kim para consigo. Nada de ideias negativas. Pensa em todas as coisas que aprecias no Teddy - os seus olhos cor de chocolate, as covinhas nas faces quando sorri, o corpo firme e magro,, os dedos longos e finos, a sua maneira de beijar, a sensação das mãos dele nos teus seios. Deixa que outra pessoa o ame pelo cérebro que tem, pensou Kim, e Teddy deu umas palmadinhas na cama, convidando-a a sentar-se. Não bastaria ele ser mais velho, mais experiente, tê-la escolhido entre todas as raparigas que poderia ter? Não bastaria ela ser alvo da inveja de todas as suas amigas?

Só que não eram suas amigas. Nada mesmo. Caroline Smith, Annie Turofsky, Jodi Bates só gostavam dela porque Teddy gostava dela. Iam largá-la como uma batata quente assim que Teddy a deixasse. Não, a verdade era que não tinha nenhuma amiga íntima. És tu e eu contra o mundo, costumava a mãe cantar-lhe quando era pequena. O que lhe iria acontecer quando a mãe a abandonasse? Em quem iria confiar? No pai?

- O teu pai é um borracho - Jodi quase desmaiou quando um dia ele fora buscar Kim à escola.

- Não me importava nada de dar umas voltinhas com ele sugeriu Caroline, soltando uma gargalhada vulgar.

À vontade, pensou Kim, mas conteve-se e nada disse. Caroline costumava conseguir o que queria, e a última coisa que Kim precisava era de Caroline Smith como madrasta. Kim soltou um gemido. Não haveria limites para os seus pensamentos vulgares? A mãe ainda nem tinha morrido e já ela estava a pensar numa substituta.

- Não vens para o pé de mim? - perguntou Teddy, olhando-a ansioso.

Esquecendo a mãe, Kim aproximou-se da cama, foi tirando a camisola branca de gola alta e deixou-a cair no chão.

- Uau - disse Teddy quando ela desapertou o soutien simples e branco e o despiu.

Kim sentiu o corpo ruborizando de vergonha. O que estava a fazer? Ia mesmo deixar que Teddy a visse nua?

- Espera por mim - disse ele, pondo-se de pé de um salto, tirando a camisa e os jeans, descalçando os sapatos e as meias com um único movimento, como se cada peça de roupa fizesse parte de um todo, preso a ele como um velcro. Despiu-se com o mesmo à vontade que teria se arrancasse restos de pele de uma antiga queimadura de sol. Ficou nu diante dela, o pénis erecto quase a dançar entre os dois.

- Oh - disse Kim.

- Não vais tirar isso? - Teddy apontou para os jeans e para as pesadas botas pretas de Kim.

Kim sentou-se na beira da cama tentando ignorar o órgão bailarino de Teddy enquanto descalçava as botas e se contorcia para tirar as calças.

- Trouxeste preservativos?

- Estão no bolso - apontou vagamente com o queixo para o chão.

- Não achas que devias pôr um?

Teddy moveu-se como um autómato, pegou nos jeans, localizou rapidamente a pequena caixa que procurava e abriu-a. Kim puxou a colcha para os pés da cama e deitou-se sob o cobertor, com o lençol amarelo-claro até ao queixo, enquanto Teddy se empenhava em pôr o preservativo.

- Vestido para o sucesso - disse ele por fim, com um sorriso triunfante no rosto bonito.

- Tens a certeza de que essa coisa vai funcionar?

- Não deixo que nada aconteça - garantiu Teddy, deitando-se na cama ao lado dela. - Prometo.

- E se se furar?

- Não se vai furar. Estas coisas são como o aço. Teddy pôs a mão no seio dela. Kim retirou-a.

- Podes apagar a luz?

Sem dizer palavra, Teddy levantou-se e apagou o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Já estava de novo ao lado de Kim antes mesmo que o cérebro dela tivesse registado a ausência dele.

- Talvez não devêssemos fazer isto - gaguejou Kim, recusando-se a soltar o cobertor que puxara para o queixo.

- O quê? Que se passa, Kim? Andas a provocar-me há meses.

- Eu não te provoquei.

- Deixas-me louco. É isso que fazes - a língua dele começou a

- explorar-lhe a parte de dentro da orelha.

Só pensas em sexo? Kim teve vontade de lhe perguntar, mas não perguntou, porque já sabia a resposta. É evidente que ele só pensava em sexo. Todos os rapazes só pensavam em sexo, e não de vez em quando, como as raparigas, mas a toda a hora. Literalmente todos os minutos de todos os dias. Não admirava que mal conseguissem articular duas frases para descrever um pensamento coerente. Não admirava que não conseguissem distinguir uma pintura da porcaria de uma gravura.

Além do mais, aquela noite fora ideia dela, não dele. Fora ela que lhe telefonara para casa e praticamente lhe ordenara que lá fosse. Fora ela que o convidara a subir ao seu quarto. Fora ela que começara, tirando a camisola. Estava deitada na cama, nua, ao lado de um homem nu. Meu Deus! Como poderia desistir de tudo naquela altura?

- Vais ter cuidado? - perguntou.

- Não deixo que nada aconteça - disse ele, repetindo o que já havia dito momentos antes. - Prometo.

Quando Kim se deu conta, Teddy já estava a abrir o caminho para dentro dela, ou pelo menos a tentar.

- Tens de te descontrair - sussurrou ele entre grunhidos. - Descontrai-te e deixa as coisas acontecerem.

- Estás no lugar errado - disse ela, com impaciência.

- O que é que queres dizer com isso de que estou no lugar errado?

- Acho que esse não é o lugar certo - disse Kim, tentando mudar de posição, sair debaixo dele, mas os seus movimentos fizeram com que Teddy forçasse a penetração ainda com maior sofreguidão.

Por acidente ou destino, resvalou finalmente para o orifício certo e começou imediatamente a penetrá-la, cada vez mais fundo. Kim deu um grito sufocado quando uma dor aguda se lhe espalhou pelo corpo e sentiu que as suas entranhas se dilataram para o acomodar. A divisão do Mar Vermelho, pensou ela, sentindo uma substância pegajosa na parte interior das coxas, imaginando se seria sangue nos lençóis, e como o ia explicar à mãe.

Digo-lhe que me apareceu o período, resolveu Kim, segurando as nádegas de Teddy e esforçando-se para que ele abrandasse. Mas ele entendeu mal as suas intenções, ou decidiu ignorá-las. De qualquer forma, Teddy fez exactamente o contrário, acelerou o ritmo que já era frenético até soltar um grito, um som curto e assustador, como se se estivesse a magoar, e ela sentiu o corpo dele estremecer e ficar imóvel sobre o dela. Segundos depois o rapaz deslizou para o lado e deitou-se de costas, com a mão esquerda esticada sobre a cabeça, numa pose de triunfo ou de completa exaustão. É só isto?, pensou Kim. Para quê tanto mistério? Esticou o braço e puxou a colcha até ao queixo.

- Estás bem? - perguntou Teddy, como se se lembrasse de repente que ela estava ali.

- Estou bem. E tu?

- Óptimo. Foste óptima - virou-se para o lado e beijou o rosto molhado de Kim. - Estás a chorar?

- Não - respondeu Kim indignada, secando o rosto. O que era aquilo?

- Será melhor da próxima vez.

- Foi óptimo desta vez - mentiu ela, olhando para o tronco nu de Teddy, vendo o órgão que antes investia potente agora flácido e vulnerável no meio do emaranhado macio dos seus pêlos púbicos. Onde estará o preservativo? pensou.

- Onde está o preservativo? - perguntou ela.

O preservativo, é claro, ainda estava dentro dela, percebeu Kim, nauseada.

- Oh meu Deus, o que vamos fazer? - gemeu.

- Tira-o para fora - disse Teddy.

- Tiro-o daí como?

- Enfia o dedo e apanha-o.

- Não posso fazer isso.

- Por que não?

- Porque não posso - o que se passava com ele? - Prometeste que terias cuidado. Prometeste que não deixarias nada acontecer.

- Mas eu tive cuidado.

- Então porque é que esta coisa idiota está dentro de mim?

- Deve ter escorregado quando eu saí.

- Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus.

- O que tens de fazer é...

- Eu não vou fazer nada. Tu é que vais. Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus - repetiu ela, cobrindo o rosto com as mãos enquanto Teddy desaparecia sob a colcha e começava a tocá-la com os dedos.

- Apanhei-o - anunciou alguns segundos depois, exibindo triunfante o preservativo usado. - Repara, estás a ver? Está inteiro. Não se furou. Está tudo aqui dentro.

- Oh meu Deus, que nojo - exclamou Kim enjoada, e Teddy atirou com o preservativo para o cesto de papéis. - Como é que sabes que não se derramou nada lá dentro?

- Não se derramou nada - disse ele, como se a sua palavra bastasse para atenuar o pânico crescente que Kim sentia.

- Como é que sabes?

- Porque sei.

- Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus.

- Vai tudo correr bem.

- Oh, Deus.

- Será que podes parar de dizer isso? Estás a deixar-me um bocado nervoso.

- E se eu ficar grávida? - perguntou Kim.

- Oh, Deus - foi a resposta imediata de Teddy.

Não entres em pânico, pensou Kim. Não tens nada com que te preocupar. Ele usou preservativo. O preservativo não se furou. Não fugiu nenhum espermatozóide idiota. Além do mais, o teu período terminou há apenas dois dias. Não poderias engravidar de maneira nenhuma. De maneira nenhuma. De maneira nenhuma. De maneira nenhuma.

Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus.

Teria sido assim que a mãe se sentira dezasseis anos atrás?, imaginou Kim. E teria sido por isso que ela correra aquele risco estúpido? Para conhecer melhor a mãe?

- Kim? Estás bem? Ficaste tão calada de repente...

- Estou óptima - disse Kim, sentindo uma calma estranha.

- Kim?

- O que é? - Kim sentiu o corpo dele mexer-se a seu lado.

- Queres fazer outra vez?

 

Mattie estava sentada no banco traseiro do táxi, procurando ignorar o formigueiro que sentia entre as pernas, no lugar onde Roy Crawford havia estado. Sentiu o eco agora distante do corpo dele penetrando o dela, como se sente um braço ou uma perna amputados, a sensação ainda presente apesar da ausência do membro. A sensação de ausência, pensou Mattie. Sem dúvida preferível à ausência de sensação...

O que é que diziam sobre o sexo? Quando era bom, era óptimo, e quando não prestava, continuava a ser bom. Era isso mesmo.

- Vire aqui - pediu ao motorista do táxi. - É a quinta casa a partir da esquina.

O motorista, um homem de meia-idade e cabelo branco cortado rente, cuja identificação dizia chamar-se Yuri Popovitch, parou diante da casa de Mattie. Mattie reparou que as luzes do hall estavam acesas, mas que o resto da casa estava às escuras. Olhou para o relógio. Quase dez horas. Era possível que Kim já estivesse a dormir. Mattie não se tinha preocupado em telefonar para ver se ela estava em casa. Se Jake quisesse ficar a vigiar a filha, que ficasse. Mattie resolvera confiar nela.

- Obrigada - disse Mattie para o motorista, pagando o preço do taxímetro e também uma generosa gorjeta.

Abriu a porta e rodou as pernas para fora do táxi. Mas os seus pés recusaram-se a encontrar o chão, os joelhos dobraram-se-lhe e ela caiu de frente na fina camada de neve junto à entrada da casa.

O motorista socorreu-a em seguida, ajudando Mattie a levantar-se e limpando-lhe a neve da roupa.

- A senhora está bem? O que lhe aconteceu?

- Desculpe - disse Mattie, incapaz de se manter de pé sem a ajuda dele. Oh meu Deus, o que lhe estava a acontecer? Devo ter bebido demais, disse para consigo. Champanhe demais. Champanhe e sexo... uma combinação fatal. Especialmente quando não estamos acostumados.

- Ainda bem que a senhora não vomitou no meu carro. - Yuri Popovitch ajudou Mattie a subir os degraus até à porta da rua e ficou à espera enquanto ela pegava nas chaves da mala.

- Por favor... - entregou as chaves para o motorista.

Yuri abriu a porta e devolveu as chaves pondo-as na mão estendida de Mattie.

- A senhora está bem? Ainda precisa de ajuda?

- Eu fico bem. Muito obrigada.

Mattie agarrou-se à maçaneta da porta quando ele a soltou. Viu o homem correr para o táxi e partir sem olhar para trás. Fico bem, repetiu mentalmente.

- Mas não estou nada bem - reconheceu Mattie em voz alta, caindo novamente no chão. - Jake! - chamou ela e não obteve resposta. A quem estava a tentar enganar? O marido não estava em casa. - Kim! - gritou, e a resposta foi a mesma.

Kim deve ter ido para a cama cedo, pensou Mattie, sendo forçada a arrastar-se de barriga para baixo pelo tapete bordado, até à cozinha.

- Merda! - gritou ela, deslizando sobre os azulejos até à mesa do pequeno-almoço, tirando o casaco e largando-o todo amarrotado no chão. Depois usou o espaldar de uma das cadeiras para se levantar. Soluçando e praguejando, exausta por causa do esforço, acabou por cair de novo sobre a cadeira.

- Raios. O que me estará a acontecer?

Sabes exactamente o que te está a acontecer, disse, lavada em lágrimas para o seu reflexo no vidro da porta de correr.

- Não - insistiu Mattie. - Agora não. Ainda não.

Tens uma coisa chamada esclerose lateral amiotrófica, ouviu Lisa dizer e a imagem da amiga apareceu no vidro ao seu lado.

- Parece grave. E é.

- Quanto tempo tenho? Um ano. Talvez dois, até três.

Mattie fechou os olhos, apagando a imagem de Lisa da sua mente. Mas as vozes continuaram, como uma televisão que se avaria de repente e o ecrã se apaga mas o som continua, alto e claro.

- E o que é que vai acontecer comigo dentro de um ano, dois, ou três? - Mattie ouviu a sua própria voz, mesmo cobrindo as orelhas com as mãos. - com o progresso da doença vais perder a capacidade de andar. Terás de usar uma cadeira de rodas. As tuas mãos ficarão inutilizadas. O teu corpo vai começar a ficar contorcido.

- Serei prisioneira do meu próprio corpo - reconheceu Mattie, tirando as mãos das orelhas e abrindo os olhos, para os fixar na escuridão do quintal, com o coração a bater-lhe acelerado no peito, como se quisesse saltar para fora enquanto era tempo.

- Estou a morrer - disse ela, esforçando-se por ficar de pé, empurrando as pernas para a porta de vidro, destrancando-a e fazendo-a deslizar nas calhas, saindo devagar e com todo o cuidado para a varanda. O ar frio da noite envolveu-lhe rapidamente os ombros como uma velha camisola, e Mattie ficou a olhar para a piscina, escondida sobre a sua coberta protectora de Inverno. Poderia algum dia voltar a nadar? É pouco provável, pensou.

- Estou a morrer - repetiu Mattie e as palavras não ficaram mais fáceis de digerir ou de compreender, apesar da repetição. - Mas ainda não. Não antes de conhecer Paris.

Mattie riu e forçou as pernas para diante até ficar apoiada na balaustrada. Paris era dali a três meses. Talvez pudesse funcionar bem até lá. Já antes tivera aqueles episódios. Apareciam e desapareciam, só que cada um durava mais que o anterior e ela ficava mais fraca. Mas e depois de Paris, o que iria acontecer? Quando voltasse teriam já passado seis meses do dia em que Lisa lhe dera o diagnóstico arrasador. Já teriam passado seis meses do pouco tempo que lhe restava. E os seis meses seguintes? Conseguiria ficar sentada, indefesa, vendo as suas células nervosas a destruírem-se, até já não poder falar, comer, respirar, sem sufocar? Poderia fazer isso?

E teria escolha?

Temos sempre escolha, pensou Mattie. Não precisava de ficar à espera até que a destruição da doença a atingisse. Poderia tomar providências com as suas próprias mãos enquanto estas ainda funcionavam. Não tinha uma arma, de modo que matar-se com um tiro estava fora de questão, e duvidava que, até mesmo naquele momento, tivesse a força e a destreza que uma faca exigia. Enforcar-se era complicado demais, e atirar-se pela escada abaixo nada lhe garantia.

- Podia afogar-me - ela disse simplesmente, a mente flutuando sob a coberta verde e feia.

Abrir a piscina alguns meses antes. Esperar que todos saíssem de casa e resolver dar um mergulho, desaparecer rapidamente debaixo da água, em silêncio, com um mínimo de confusão.

Mas Kim poderia encontrá-la, lembrou-se Mattie horrorizada. Não podia correr esse risco. Kim tinha de ser poupada a qualquer custo.

Teria de descobrir outra maneira.

Mattie afastou-se da balaustrada, oscilando precariamente sobre as pernas que só agora começavam a recuperar a força. Voltou para a cozinha e atravessou-a lentamente.

- Vou morrer - repetiu atónita, atravessando o hall e chegando à escada. - Tenho um ano. Talvez mais.

Estendeu a mão para se apoiar ao corrimão e tocou num casaco de couro castanho, desconhecido.

Mattie examinou o casaco. Percebeu imediatamente que se tratava de um casaco de homem, mas que não se parecia com coisa alguma que Jake pudesse usar. Seria de Kim? Tê-lo-ia pedido emprestado a algum dos rapazes da escola?

O casaco ficou pesado demais para as mãos de Mattie e escorregou-lhe dos dedos, caindo no chão.

- Talvez menos de um ano - murmurou Mattie, e os olhos encheram-se de lágrimas quando começou a subir as escadas.

Menos de um ano.

Mattie chegou ao cimo das escadas e ficou a descansar alguns segundos. A porta do quarto de Jake estava aberta, e a do quarto de Kim também. Não era normal, pensou Mattie, sabendo que Kim gostava de dormir com a porta fechada. Seria possível que Kim afinal tivesse mesmo desobedecido e saído de casa?

- Kim? - chamou Mattie em voz baixa, aproximando-se mais e espreitando pela porta do quarto de Kim.

O quarto estava escuro, mas mesmo no escuro Mattie viu que Kim tinha feito uma grande arrumação. Pobrezinha, pensou Mattie. Deve estar exausta. Por isso é que foi para a cama tão cedo. Por isso não me ouviu chamar. Por isso se esqueceu de fechar a porta.

Mattie entrou pé ante pé no quarto. Queria dar à filha um beijo de

boa-noite, como costumava fazer quando ela era pequena. O seu bebé doce e lindo, pensou Mattie, chegando junto ao vulto escondido sob a pesada colcha. Puxou-a e já ia beijar a testa da filha quando algo ao lado de Kim se mexeu de repente.

E então foi um pandemónio.

Mattie aos berros. Kim aos berros. O rapaz, quem quer que fosse, corria feito louco pelo quarto, pegando nas suas roupas, berrando com pedidos de desculpa e saindo do quarto, escada abaixo.

- Como pudeste fazer uma coisa destas? - gritou Mattie, ouvindo a porta da frente bater.

- Achas que adormecemos de propósito? - berrou Kim.

- Como me pudeste envergonhar desta maneira?

Mattie olhou fixamente para a filha que a desafiava, faltando ainda um mês para completar dezasseis anos. O meu bebé, pensou atónita, abanando a cabeça. Mattie queria apanhar Kim e sacudi-la, mas poderia realmente berrar com a filha por fazer a mesma coisa que ela havia feito? com certeza o facto de Kim ter apenas quinze anos fora precipitado pelo adultério da mãe.

- Não posso enfrentar isto agora - disse Mattie, recuando para a segurança do seu próprio quarto, ouvindo a porta do quarto de Kim bater com força.

Mattie sentou-se na beira da cama, olhando atordoada para o vazio. Que noite, pensou ela, caindo para trás. E ainda não terminou.

Estendeu a mão, pegou o telefone, marcou os números que sabia de cor e ficou a ouvir o telefone tocar uma, duas, três vezes, antes que alguém atendesse.

- Está? - a voz rouca era-lhe familiar.

- É Honey Novak? - perguntou Mattie, sabendo a resposta.

- Sou sim. Quem está a falar?

- Mattie Hart - disse Mattie calmamente, tentando visualizar o rosto da mulher e ouvindo-a engolir em seco. - Quero falar com o meu marido.

 

Menos DE UMA HORA DEPOIS, MATTIE OUVIU O RUÍDO surdo da porta da garagem a abrir e fechar. Levantou-se lentamente da poltrona da sala de estar, colocando um pé diante do outro com uma precisão calculada, o coração a bater tão descompassado que ficou com medo de que ele explodisse. Como aquela criatura do Alien, pensou, resolvendo que era uma descrição tão boa quanto qualquer outra. O seu corpo estava a ser possuído por uma força misteriosa, fora do seu controle e para além da sua compreensão. Fazia com que se comportasse de uma maneira completamente estranha à sua personalidade. O que era ela, senão uma estranha criatura, alienígena até para si mesma?

- Fica calma - recomendou baixinho, avançando milímetro a milímetro até à porta da rua, passando pelo cabelo a mão que ainda lhe tremia e que acabara de lavar antes de a enfiar no fundo do bolso do roupão azul-claro. - Não é altura para melodramas desnecessários.

- Ah, não?, - perguntava uma vozinha. - Estás a enganar o teu marido; o teu marido anda a enganar-te; descobriste a tua filha de quinze anos na cama com um rapaz que não conheces. Sem mencionar o facto de que estás a morrer. Haverá melhor altura para um melodrama'?

Mattie chegou ao hall no mesmo instante em que a chave de Jake dava a volta na fechadura. Respirou fundo duas vezes, Jake abriu a porta, o vento uivou dramaticamente atrás dele, enquanto as rajadas de neve lhe rodopiavam em volta da cabeça. Uma entrada magistral e apropriada, pensou Mattie, olhando-o.

A princípio Jake não a viu. Estava de cabeça baixa, como se ainda enfrentasse os elementos, e preocupado em limpar das botas a neve que se acumulara entre o carro e o vestíbulo. Só depois de se livrar delas e de tirar o casaco, percebeu que ela estava ali, de pé, na sua frente.

- Está a formar-se uma enorme tempestade - disse ele, pendurando o casaco no armário e abanando a cabeça para sacudir a neve do cabelo. - Ainda bem que as botas estavam no carro - parou, e pela primeira vez desde que entrou olhou Mattie nos olhos. Chega de conversa fiada, dizia a sua expressão. - Estás bem? Aconteceu alguma coisa?

- Estou bem - disse Mattie.

A confusão fez as sobrancelhas de Jake unirem-se sobre o nariz.

- Não estou a entender. Ao telefone disseste que eu tinha de vir para casa imediatamente. Parecia muito urgente. Algum problema?

- Queres dizer além do facto de eu estar a morrer e de tu estares a ter relações com outras mulheres?

Um segundo de silêncio.

Estava a ir longe demais, pensou Mattie, prendendo a respiração.

- Além disso - disse Jake.

E de repente os dois começaram a rir. Pequenas gargalhadas nervosas que cresceram e se transformaram em gargalhadas de alegria, alimentadas pelo choque, motivadas pela tensão, compensando sem esforço a distância entre eles. Riram com um abandono completo, até a barriga lhes doer e as entranhas ameaçarem explodir, até quase ficarem sem ar. Riram tanto que por um momento esqueceram que ela estava a morrer e que ele tinha relações com outras mulheres.

Então lembraram-se e as gargalhadas acabaram.

- Desculpa - disse Mattie.

- Estás a pedir desculpa de quê?

- De ter telefonado para casa da tua namorada. De ter estragado a tua noite.

Jake teve a delicadeza de parecer envergonhado. Ficou a apoiar-se ora num pé ora noutro e olhou em seu redor.

- Como sabias onde eu estava?

- Não era exactamente o mistério do século - Mattie sorriu. Será que os homens eram realmente tão simples como dizia Roy Crawford?

- Pensavas mesmo que eu não sabia onde tinhas ido?

- Acho que estava a tentar não pensar - admitiu Jake algum tempo depois. - Parece que sou eu que devo pedir desculpas.

- Para quê pedir desculpas se não estás arrependido?

Jake concordou abanando a cabeça e uma súbita frieza surgiu nos seus olhos, como se acabasse de compreender que tinha sido chamado ao apartamento da amante no meio de uma tempestade de neve sem motivo aparente.

- O que aconteceu, Mattie? - perguntou ele, voltando ao assunto em questão, trocando a preocupação pela impaciência na voz, apagando qualquer vestígio de riso.

- Acho que é melhor sentares-te - Mattie apontou para a sala de estar.

- Não podes falar já? Estou muito cansado. Se não for nada urgente...

- A Kim já tem relações sexuais - desabafou Mattie. Seria exactamente sobre aquilo que queria conversar com ele?

- O quê? - Jake olhou imediatamente para a escada.

- Neste momento, não - explicou Mattie, com medo que Jake subisse para confrontar a filha sem mais nem menos. - Foi antes.

- Antes? Antes quando?

- Quando eu cheguei em casa. - Porque estava a falar agora daquilo? Não tinha chamado Jake para conversar sobre esse assunto. - Apanhei-a em flagrante.

- Apanhaste-a em flagrante a ter relações?

- Não, graças a Deus, não - tarde demais para recuar, pensou. - Já tinham terminado. Estavam a dormir.

Observou Jake a tentar digerir aquela última informação, a descobrir o sentido do que estava a ouvir.

- Quem?

- Kim e... sei lá quem - Mattie visualizou um rapaz alto, bonito e indiscutivelmente nu, pulando num pé só, tentando vestir as calças.

- Não sei o nome dele. Não fomos formalmente apresentados.

Jake começou a andar de um lado para o outro diante de Mattie e a sua frustração ocupou todo o pequeno hall.

- Não entendo. O que é que está a acontecer com ela? Fuma marijuana num lugar público. Faz sexo praticamente nas nossas barbas. O que é que ela está a pensar, pelo amor de Deus?

- Não sei bem se, neste momento, ela está a pensar com clareza sobre alguma coisa.

- Ela quer apanhar a SIDA? Quer engravidar? Ela quer... - calou-se de repente.

- Acabar como nós? - perguntou Mattie, terminando a frase por ele.

- Não era isso que eu ia dizer.

- Porque não? É verdade.

- É só que ela é tão jovem... Ainda tem tanto tempo...

- Não necessariamente - lembrou Mattie, com a voz suave, quase inaudível.

Jake empalideceu.

- Oh meu Deus, Mattie, sinto muito. Jesus, que palermice que eu fui dizer - pôs a mão na cabeça, esfregou a testa e fechou os olhos. - Sabes que não tive intenção de...

- Eu sei. Tudo bem.

- Não está tudo bem.

- Está tudo bem, Jake - repetiu Mattie. - Tens razão... ela é jovem, tem tempo.

- O que lhe disseste?

- O que é que eu poderia dizer? Que tudo bem, o pai e a mãe podem ter casos, mas ela não? - Mattie susteve a respiração. Meu Deus o que tinha dito? Não pretendia contar a Jake a própria infidelidade Ou pretendia? Teria sido aquele o verdadeiro motivo para ter pedido a Jake que saísse do apartamento da amante e voltasse para casa?

- Não é a mesma coisa.

- Lentamente Mattie soltou a respiração.

- Não, acho que não é.

Obviamente o que ela tinha dito havia passado despercebido. Um momento de pausa. Mattie viu os olhos de Jake a piscar, confusos, indecisos, incrédulos.

- Que história é essa de o pai e a mãe também terem casos? - perguntou Jake, como se só naquele momento tivesse ouvido o que Mattie tinha dito. - O que estás a tentar dizer-me?

- Jake, eu...

- Tens uma relação com outra pessoa?

Tarde demais para negar. Além do mais, para quê?

- bom, acho que não lhe chamaria exactamente uma relação.

- Foi isso que foste fazer esta noite? Estiveste com outro homem?

- Isso incomoda-te?

- Não sei - Jake parecia atordoado, como se tivesse recebido um golpe na cabeça com um objecto contundente e estivesse prestes a perder a consciência.

Mattie sentiu-se impaciente com a reacção de Jake.

- Achas que és o único com direito a uma vida sexual?

- Eu sei que não.

- Acho que não tens o direito de ficar aborrecido.

- Acho que fiquei mais surpreendido do que qualquer outra coisa.

Mattie sentiu-se realmente zangada.

- Porquê essa surpresa toda? Não achas que um homem se pode sentir atraído por mim?

- Não foi isso que eu quis dizer.

- Como a tua filha afirmou com tanta eloquência no outro dia, eu ainda não estou morta!

Jake cambaleou como se alguém o tivesse empurrado.

- Mattie, espera. Tens de me dar um minuto para recuperar o fôlego - Acabo de saber que a minha filha e a minha mulher têm relacionamentos por aí.

- Todos nós temos relacionamentos por aí - interrompeu-o Mattie, ainda furiosa.

- Todos nós temos relacionamentos - repetiu Jake entorpecido. - Sabes uma coisa, acho que é mesmo melhor sentar-me um pouco.

Mattie foi para a sala e deixou-se cair no sofá de camurça bege. A fadiga envolveu-a de imediato, cobrindo-a por completo, pendurando-se-lhe no pescoço e nos ombros como um bebé inquieto. Porque teria contado o seu caso a Jake? Teria sido acidental, saíra sem querer na emoção do momento? Ou as forças mais sinistras estariam a operar? Desejaria chocá-lo deliberadamente? Magoá-lo? Se era isso, porque teria ficado tão furiosa com a reacção dele? O que esperava conseguir? Porque teria pedido a Jake para voltar do apartamento de Honey? O que lhe quereria realmente dizer?

Mattie viu Jake dobrar o corpo numa das poltronas de riscas cor-de-rosa e douradas diante do sofá em que ela se encontrava, com as pernas estendidas. Jake olhou-a ansioso.

- Eu conheço-o? - perguntou.

Por um segundo Mattie não percebeu de quem Jake estava a falar.

- O quê? Ah. Não - disse ela, lembrando-se do marido a apertar a mão a Roy Crawford. - Não é ninguém que conheças.

- Como se conheceram?

- Isso tem alguma importância?

- Jake abanou a cabeça.

- Não, acho que não - olhou em volta, um pouco perdido. - Estás apaixonada por ele?

Mattie quase soltou uma gargalhada.

- Não.

Houve uma longa pausa enquanto Mattie tentava impor alguma ordem no caos dos seus pensamentos. Dentro da sua cabeça havia uma selva de particípios pendentes e frases desconexas, de tal forma que precisaria de um machado para abrir caminho por entre eles. Por que teria pedido a Jake que voltasse do apartamento de Honey? O que lhe quereria dizer?

- Porque voltaste, Jake? - perguntou por fim.

- Porque tu me telefonaste - respondeu ele, - Disseste que eu precisava de voltar para casa o mais depressa possível.

- Não queria dizer esta noite.

- Jake fechou os olhos.

- Não sei se te estou a entender.

- Foste-te embora. Estavas a começar uma vida nova. Então Lisa pediu para irmos ao consultório dela e anunciou que eu estava - Mattie gaguejou mas recompôs-se rapidamente. - A morrer - disse fazendo força para que as palavras lhe saíssem da boca. - Estou a morrer - repetiu e continuou à espera que a palavra fizesse sentido.

Jake abriu os olhos e ficou à espera que Mattie continuasse.

- Não é fácil para mim, dizer isto - disse Mattie. - É mais difícil ainda acreditar. Quero dizer, fico sempre a pensar que não é possível. Como posso estar a morrer se só tenho trinta e seis anos? Ainda estou muito bem. Sinto-me muito bem. Só porque caio de vez em quando, e as minhas mãos tremem quase sempre...

- Tremem sempre? - Jake endireitou-se na poltrona. - Já disseste à Lisa?

- Estou a dizer-te a ti - disse Mattie em voz baixa.

- Mas pode ser que a Lisa receite qualquer coisa para isso.

- Não é nada que eu não possa enfrentar, Jake. Além do mais, a questão não é essa.

- A questão é que estás com dificuldades...

- A questão é que estou a morrer - reafirmou Mattie, e apesar da repetição, as palavras não ficaram mais compreensíveis. - E não posso continuar a negá-lo, por mais que tente. Simplesmente, o meu corpo não coopera. Todos os dias, quando acordo, sinto uma diferença subtil. Fico a pensar para mim mesma que é a minha imaginação, mas sei que não é. Nunca tive tanta imaginação - tentou rir-se mas o som ameaçava transformar-se em lágrimas. - Não posso continuar a fingir que vou melhorar, que tudo isto vai simplesmente desaparecer - disse. - Dá muito trabalho. Não tenho assim tanta força.

- Ninguém está a pedir para fingires.

- Tu pedes-me que finja, sempre que sais por aquela porta - disse Mattie, e os seus pensamentos tornaram-se subitamente muito claros.

- Todas as vezes que telefonas para dizer que vais ficar a trabalhar até mais tarde no escritório, ou que vais jantar com um cliente, ou que vais trabalhar algumas horas ao sábado à tarde. Pediste-me que fingisse esta noite, meu Deus! - disse Mattie, elevando a voz. - Não posso mais, Jake. Não consigo fingir mais. Foi por isso que telefonei para casa da Honey. Foi por isso que pedi para vires para casa.

Jake ficou vários segundos sem dizer nada.

- Diz o que queres que eu faça - pediu-lhe por fim. - Eu não sei O que queres que eu faça.

- Por que é que voltaste, Jake? - perguntou Mattie de novo. - O quê que pensaste que ia acontecer? Qual era o teu objectivo? - frase de advogado, pensou Mattie. Frase de Jake.

- Achei que devia estar aqui - respondeu ele, como já tinha dito antes. - Por ti, pela Kim. Já conversamos sobre isso. Tu concordaste.

- Mudei de ideias.

- Como assim?

- Isso não basta - Mattie disse simplesmente. - Preciso de mais - pensou em Roy Crawford, sentiu os dedos dele nos seus seios, entre as suas pernas. - E não estou a falar só de sexo - afastou a mão de Roy. - Preciso de mais - repetiu.

Jake abriu a boca para falar e fechou-a porque não tinha palavras. Abanou a cabeça e olhou desesperado para o colo.

- Viste como a Stephanie parecia feliz a noite passada? - perguntou Mattie.

- O que é que a Stephanie tem a ver com isto?

- Parecia radiante - disse Mattie, ignorando a pergunta, falando mais para si mesma do que para Jake. - Fiquei a olhar para ela e a pensar: Quero sentir-me assim. Por favor, meu Deus, dai-me apenas mais uma hipótese de o sentir. Entendes o que estou a tentar dizer-te?

Jake abanou com a cabeça.

- Não tenho a certeza.

Mattie endireitou os ombros e chegou-se para a beira do sofá.

- vou simplificar as coisas, Jake. O médico diz-te que tens um ano de vida. O que vais fazer durante esse ano?

- Mattie, isso é irrelevante.

- É muito relevante. Responde à pergunta, advogado. Um ano, o que é que vais fazer?

- Não sei.

- Passarias esse ano a morar com uma mulher que não amas?

- Não é assim tão simples - argumentou ele.

- Pelo contrário, é muito simples. Casaste-te comigo porque eu estava grávida, porque és basicamente um homem decente e querias fazer as coisas como devia ser, e foi pelo mesmo motivo que voltaste quando soubeste que eu estava a morrer. E isso é bom, é admirável e eu aprecio muito, de verdade. Mas já cumpriste a tua pena. Conseguiste liberdade condicional por bom comportamento. Não precisas mais de ficar aqui.

- Vais precisar de alguém para cuidar de ti, Mattie.

- Não preciso de uma ama - insistiu Mattie. - O que preciso é estar com alguém que me ame. O que eu não preciso é de alguém que ama outra pessoa.

- O que queres que faça? Diz o que queres que eu faça, e eu farei.

- Quero que descubras porque é que voltaste - repetiu Mattie -! Foi por mim, ou foi por ti? Porque se foi por ti, para te sentires bem, então não me interessa. Não vou deixar que te sintas bem contigo mesmo à minha custa. Sou eu que tenho um tempo limitado para me sentir bem e não quero passar este tempo com alguém que faz com que eu me sinta mal.

- Oh meu Deus, Mattie, nunca tive intenções de te desiludir.

- Eu não quero saber das tuas intenções! - exclamou Mattie. - O que eu quero é a tua paixão. O que eu quero é a tua lealdade. O que eu quero é o teu amor. E se não posso ter essas coisas, se não consegues nem fingir que me amas - disse ela, repetindo aquela palavra - por um ano ou dois, ou pelo tempo que me resta, então não te quero aqui.

E não disseram mais nada. Ficaram a olhar em frente, Mattie para as janelas, por detrás da cabeça de Jake, e Jake para a litogravura de Rothenberg, por cima do ombro de Mattie. Era tão irónico, pensou Mattie. Ela, que já não podia fingir, insistia para que o marido fizesse exactamente isso. Por um ano, ou dois, ou três, ou cinco. Seria pedir muito? Seria assim tão difícil amá-la?

Obviamente fora essa a opinião do pai. Saíra da sua vida sem sequer olhar para trás. Anos mais tarde Mattie conseguiu localizá-lo numa colónia de artistas em Santa Fé, fez uma ligação interurbana e perguntou por que é que ele nunca tentara entrar em contacto com ela. O pai limitou-se a resmungar uma desculpa sem nexo, dizendo que era melhor assim, que não deviam acordar os cães adormecidos, uma expressão que a mãe certamente teria apreciado se Mattie tivesse confiado nela. Mas a mãe também a abandonara havia muito tempo, se não fisicamente, pelo menos no plano emocional. E Jake só tinha casado com ela porque estava grávida. Exactamente, havia uma fila de gente à espera para a poder amar.

O que iria ela fazer se Jake se levantasse naquele momento do sofá e saísse porta fora? Telefonar a Lisa? Perguntar-lhe se ela lhe emprestava o marido? Ou para Stephanie? Perguntar se Enoch tinha algum amigo? Ou para Roy Crawford? Como reagiria ele a uma coisa complicada como uma cadeira de rodas, pensou Mattie, cansada demais para rir. Amedrontada demais.

Era só uma questão de tempo para que ela estivesse exactamente numa cadeira de rodas. E depois o quê? Os cuidados de saúde eram caros. Só os poderia pagar durante algum tempo. E o próximo passo? Internar-se numa instituição? Num hospital público? Num lugar em que seria abandonada e finalmente esquecida. Ninguém queria conviver com uma mulher cuja respiração ofegante lembrasse que todos eram mortais. Pelo menos Jake estava disposto a ficar ali por perto. Que diferença fariam os seus motivos? Quem pensava ela que era para ser tão orgulhosa, tão tola?

- Podes fazê-lo, Jake? - perguntou Mattie, em voz fraca mas surpreendentemente obstinada. - Podes fingir que me amas?

Jake olhou fixamente para Mattie durante o que pareceu uma eternidade, e era impossível decifrar o seu rosto, geralmente expressivo. Levantou-se lentamente e atravessou a sala, parou diante de Mattie e estendeu-lhe a mão.

- Vamos para a cama - disse. Não fizeram amor.

Ambos concordaram que já tinha havido sexo suficiente naquela noite.

Mattie tirou o roupão, deixou-o cair no chão e foi para a cama, enquanto Jake caminhava até à janela.

- Por favor, deixa-a ficar fechada - disse Mattie. - Está muito frio lá fora.

Jake hesitou e ficou de pé diante da janela durante vários segundos, como se estivesse paralisado, o corpo oscilando-lhe precariamente.

- Passa-se alguma coisa?

Jake abanou a cabeça. Então afastou-se da janela e despiu-se rapidamente, ficou só de boxers, e deitou-se na cama ao lado dela. Mattie sentiu o colchão afundar-se sob o seu peso inesperado. Observou Jake cair sobre a almofada de olhos bem abertos, olhando para o tecto.

Está a tentar entender o que está a fazer aqui, pensou Mattie, observando o marido. Está a tentar compreender como acabou por voltar para o meio daquela confusão, a confusão da qual pensava ter-se finalmente livrado, a confusão na qual estava de novo mergulhado, sem entender o que tinha acontecido. Ajudar-to-ia saber que eu não compreendo melhor do que tu? queria Mattie perguntar, dominada subitamente pela fadiga. Consegues realmente fingir, Jake? imaginou. Consegues fingir que me amas?

Como se ouvisse os pensamentos de Mattie, Jake virou-se de lado e ficou de frente para ela. Beijou-lhe suavemente os lábios.

- Volta-te - ele disse baixinho. - Quero abraçar-te.

No início Mattie pensou que os sons faziam parte do seu sonho, Estava a ser perseguida pelas ruas de Evanston por um jovem negro, a sua longa língua de serpente esticada em direcção a ela, ameaçando estrangulá-la. Esforçava-se para correr mais do que ele, com a respiração cada vez mais ofegante e dolorosa, tão ruidosa como os passos dele no asfalto duro.

- Não! - gritava sem fôlego, mas os seus lábios não se moviam. - Não! - Uma multidão surgiu de repente e Mattie descobriu que estava nua. O homem negro que a perseguia também estava nu, as suas pernas compridas e musculosas ganhando terreno, as mãos estendidas para a segurar pelos quadris. Sentiu um soco nas costas e ficou completamente sem ar. Mattie tropeçou e caiu para a frente.

- Cuidado com o gás - avisou um espectador. - Cuidado com o gás.

- Não! - gritou outra pessoa, dando-lhe uma pancada no braço. - Não!

Mattie fez força para abrir os olhos e percebeu subitamente que Jake estava a gemer a seu lado. Levou um minuto para entender o que estava a acontecer, que Jake estava ao seu lado na cama, que os seus sonhos estavam misturados, que tinha incorporado partes do pesadelo dele no seu.

- Gás não - repetia ele sem parar, mexendo os braços, cada vez mais apavorado, de forma que Mattie teve de saltar para trás para evitar outro soco.

- Não. Gás não. Não faças isso. Não faças isso.

- Jake - disse Mattie carinhosamente, tocando-lhe no ombro, sentindo-lhe a pele fria e suada. - Jake, acorda. Está tudo bem.

Jake abriu os olhos, olhou para Mattie e não deu qualquer sinal de a ter reconhecido.

- Tiveste um pesadelo - explicou ela, observando-lhe o rosto a absorver a realidade do ambiente. Parece satisfeito por estar aqui, pensou Mattie, sorrindo no escuro para o marido. - Parece que estavas a tentar impedir alguém de ligar o gás. Lembras-te?

Jake fez que sim com a cabeça.

- A minha mãe - disse ele, sentando-se na cama e afastando o cabelo escuro da testa.

- A tua mãe?

Olhou para a janela. Mattie esperou que Jake afastasse a preocupação como tinha feito com o cabelo, como costumava fazer, dizendo-lhe que voltasse a dormir, que não era nada.

- Quando eu era pequeno - começou ele a contar, surpreendendo Mattie - a minha mãe embebedava-se e ameaçava ligar o gás do forno para nos matar a todos enquanto dormíamos.

- Meu Deus!

- Foi há muito tempo. Eu já devia ter superado tudo isto - tentou rir-se mas a gargalhada morreu-lhe na garganta. - Desculpa se te acordei.

Mattie estendeu o braço e limpou o suor na testa de Jake com a palma da mão. Havia tanta coisa que não sabia sobre o marido, tanta coisa que ele nunca lhe contara...

- É por isso que... - ia ela dizer mas deteve-se. Tantas coisas que, de repente, estavam a ficar claras.

Lentamente Mattie afastou-se de Jake, saiu da cama e foi até à janela. Num gesto largo, afastou as pesadas cortinas cor de marfim e abriu a janela. O ar frio da noite entrou bruscamente no quarto como um gato faminto. Sem dizer nada, Mattie voltou para a cama e deitou-se ao lado do marido.

- Volta-te - murmurou. - Quero abraçar-te.

 

- ENTÃO, O QUE ACHOU DO ARTIGO NA REVISTA CHICAGO?

- Jake olhou rapidamente para a revista que se encontrava sobre a secretária, depois de novo para a bela mulher sentada à sua frente. O nome dela era Alana Isbister.

- Wízsbister - brincou ela quando foram apresentados. - Sou divorciada. Decididamente tratava-se de um convite, reconheceu Jake, sorrindo ao indicar à repórter da revista Now as duas cadeiras azul-escuras diante da sua mesa. Um ano antes teria feito um comentário igualmente espirituoso e sedutor, uma frase desconcertante e natural que teria literalmente deixado a rapariga pasmada. Até mesmo seis meses antes, no auge do seu relacionamento com Honey, ter-se-ia sentido tentado a responder. Hoje não tinha energia para isso, não tinha força nem desejava conquistar nada mais complicado do que a entrevista preliminar que ela lhe solicitara, por isso limitou-se a sorrir e a responder à pergunta.

- Achei o artigo muito lisonjeiro.

- A fotografia não lhe faz justiça - os lábios carnudos cor de café de Alana Isbister formaram um trejeito provocante.

Jake empurrou a revista para fora do seu campo de visão. Nunca ficava à vontade nas suas fotografias. Eram uma enorme mentira. Sempre que olhava para uma como aquela em que aparecia muito elegante com o fato cinzento de lã, próprio de um advogado para a capa da revista Chicago, cada fio de cabelo no seu lugar, incluindo as madeixas artisticamente penteadas sobre a testa, o seu sorriso atraente que era um estudo cuidadoso de modesta confiança, o azul dos olhos acentuado pelo azul da gravata, sentia uma onda da mais completa e pura repulsa. "Jake Hart, o grande defensor", proclamava a notícia. "O grande pretensioso" estaria mais de acordo.

- O seu editor disse que a senhora tinha em mente uma ideia diferente - comentou Jake, lançando uma olhadela ao pequeno relógio digital poisado sobre a sua enorme secretária de carvalho. Já eram duas e um quarto. Dentro de menos de uma hora teria de ir buscar Kim à escola e levá-la à consulta com a terapeuta. Depois iria buscar Mattie a casa, e os dois encontrar-se-iam com Kim quando esta terminasse a consulta, para fazerem os três uma visita à mãe de Mattie, visita essa que Jake temia, quase tanto como Mattie. Sabia que a mulher ficaria perturbada, e quando tal acontecia, o seu estado parecia piorar. Precisaria mais do que nunca do apoio dele, e ele precisava de algum tempo sozinho para se preparar para o que seria, sem dúvida, uma tarde muito difícil. A última coisa que necessitava era perder um tempo precioso a conversar com a repórter de uma revista ultramoderna e idiota, por mais popular que fosse, mesmo que a repórter em questão fosse indiscutivelmente bonita.

Jake só tinha concordado em ter aquela reunião preliminar com a mulher da revista Now porque os altos poderes da firma, os mesmos que estavam a avaliar Jake para lhe darem sociedade, tinham manifestado enfaticamente o seu desejo de que ele continuasse a cooperar com a imprensa. Não havia dinheiro que pagasse aquele tipo de publicidade, disseram-lhe. Não importa o que digam de si, desde que escrevam correctamente o nome da firma.

- Achamos que os nossos leitores gostariam de o conhecer mais pessoalmente - dizia Alana Isbister, puxando o cabelo comprido, liso e castanho para trás da orelha, e piscando os olhos cheios de rímel. - Já se escreveu tanto sobre Jake Hart, o advogado... a propósito, parabéns pela vitória no caso Butler... mas não se escreveu quase nada sobre Jake Hart, o homem.

- Miss Isbister...

- Wibister - disse ela a rir, exibindo o anelar sem aliança.

- Wibister - repetiu ele.

- Por que não me trata simplesmente por Alana?

Jake concordou. Aquele tipo de conversa seria sempre assim tão cansativo? Talvez só precisasse de uma boa noite de sono. Desde que, seis semanas antes voltara para a cama de Mattie, raramente dormia a noite sem interrupção. Mattie estava sempre a mexer-se ou a tossir, saltando na cama com falta de ar, caindo por vezes a caminho da casa de banho a meio da noite. Ele acordava, amparava-a, dizendo que já estava acordado, para a tranquilizar. Conversavam alguns minutos e ele tentava novamente adormecer. No início tinha sido difícil fingir estar alerta, acordado no meio da noite. Mas depois passou a contar a Mattie como eram os seus dias, a sua frustração crescente com a política da firma, presenteando-a de vez em quando com histórias de antigas proezas no tribunal. Por vezes algum problema no trabalho perturbava-lhe o sono, e ele ficava deitado, à espera que Mattie acordasse para poderem conversar. Algumas noites, quando nenhum dos dois conseguia voltar a adormecer, acabavam por fazer amor. Depois ele ficava a imaginar o outro homem com quem ela estivera envolvida, se pensava nele, se estaria com ele se as coisas fossem diferentes. Seria aquele o tipo de informação pessoal que a revista Now imaginava obter?

- Não sou assim tão interessante fora do tribunal - contestou Jake. - Os meus casos são fascinantes, mas eu não.

Alana Isbister examinou a sala incrédula.

- Não sei porquê, mas tenho as minhas dúvidas quanto a isto. Qualquer homem que pendura o quadro de uma batata assada na parede por detrás da sua secretária, deve ser levado em conta.

- Foi a minha mulher que escolheu todas as peças de arte desta sala. - Jake surpreendeu-se ao notar o tom de orgulho na sua voz.

- Há quanto tempo está casado?

- Há dezasseis anos.

Casaste-te comigo porque eu estava grávida, ouviu Mattie interromper. Já cumpriste a tua pena. Conseguiste a liberdade condicional por bom comportamento. Já não precisas de ficar aqui.

- Incrível - disse Alana Isbister, mexendo no pequeno gravador que tinha no colo. - Importa-se que eu ligue isto?

Jake encolheu os ombros e bateu com os dedos sobre o auscultador do telefone cinzento-escuro que se encontrava sobre a secretária. Tinha prometido ligar para Honey antes das três horas.

Não preciso de uma ama, continuou Mattie, sem ser chamada. O que eu preciso é de estar com alguém que me ame. O que não preciso é estar com alguém que ama outra pessoa.

Ele sabia que Honey estava a tentar ser compreensiva quanto à sua decisão de não se verem durante dois meses, mas que achava difícil aquela separação forçada. E ele também, dizia Jake para a tranquilizar, apesar de não sentir falta alguma daqueles malditos gatos.

Se não consegues ao menos fingir que me amas, então não quero que fiques aqui, insistira Mattie. Será que podes fazê-lo, Jake? Será que consegues fingir que me amas?

Ele não tinha respondido. Em vez disso, afastara os seus temores e dúvidas e acompanhara Mattie em silêncio escada acima até ao quarto dos dois, deixando o instinto prevalecer sobre a razão, sem querer pensar mais no assunto.

- Desculpe. Disse alguma coisa? - perguntou Jake, observando A lana Isbister cruzar e descruzar as pernas longas e bem feitas sob a curta saia preta.

- Estava a perguntar se há mais alguém assim na sua família.

- Jake levou alguns segundos para entender a pergunta.

- O meu irmão mais velho já morreu - respondeu friamente.

O que teria a história da sua família a ver com a entrevista? Aquilo era mais invasivo do que as perguntas sobre o seu casamento. Se era a isso que ela se referia quando falara em conhecê-lo mais pessoalmente, não lho iria permitir.

- Não vejo o meu irmão mais novo há quase vinte anos.

- Alana Isbister inclinou o corpo para a frente, exibindo um colo

formidável.

- Ora bem, que coisa fascinante. Conte-me mais.

- Não há mais nada para contar - Jake fez o melhor possível para não parecer tão pouco à vontade como se estava a sentir. - Desde que escrevessem o nome da firma correctamente, - lembrou. - O meu irmão mais velho morreu num acidente de barco quando tinha dezoito anos. O meu irmão mais novo e eu simplesmente perdemos contacto um com o outro desde que eu saí de casa.

- E quantos anos tinha quando saiu de casa?

- Dezassete.

- Mais fascinante ainda.

- Não é não - Jake levantou-se, foi até à estante ao lado da secretária e fingiu procurar qualquer coisa.

- Para onde é que foi depois de ter saído de casa?

- Aluguei um apartamento numa cave da Carpenter Street por uns dois anos. Era horrível, mas eu adorava-o.

- Como se sustentava?

- Tinha três empregos - explicou Jake, retirando da estante o livro do Código Penal. - Fui ardina de manhã, trabalhei numa loja de ferragens depois das aulas e fazia telemarketing nos fins-de-semana.

- E os seus pais? O que achavam eles de tudo isso?

- Isso teria de lhes perguntar - respondeu Jake furioso, dando a volta à secretária, com o colarinho da camisa azul-claro a cortar-lhe a maçã-de-adão, ameaçando estrangulá-lo. - Miss Isbister...

- Alana.

- Miss Isbister - repetiu ele, tossindo com a mão fechada na frente da boca - acho que esta entrevista não vai funcionar - apontou vagamente para a porta.

Alana Isbister pôs-se imediatamente de pé, tentando equilibrar o gravador enquanto ao mesmo tempo alisava a saia curta sobre as coxas elegantes.

- Não estou a compreender. Será que eu disse alguma coisa que o ofendeu?

- Não se trata da senhora. Sou eu. Não fico muito à vontade a conversar sobre a minha vida pessoal.

- Jake... - disse ela.

- Senhor Hart - corrigiu ele, vendo-lhe os olhos verdes pestanejarem, atónitos. - Realmente, insisto.

Caminhou até à porta, abriu-a e ficou parado, à espera.

- Está a expulsar-me?

- Tenho a certeza de que há muitos outros advogados na firma que vai achar igualmente fascinantes.

Esperou que Alana Isbister guardasse o gravador na grande mala preta e pegasse no seu longo casaco verde de tweed. Depois ela dirigiu-se à porta, parou diante dele e entregou-lhe o cartão.

- Por que não pensa mais um pouco sobre o assunto e me telefona se mudar de ideias?

Jake tirou o cartão da mão estendida de Alana. Logo que ela desapareceu atirou-o para o cesto dos papéis junto à sua secretária.

- A entrevista foi quase tão curta como a saia dela - observou a secretária, piscando-lhe maliciosamente o olho sobre uma franja loura.

- Chega de repórteres, chega de entrevistas - disse Jake friamente, voltando para o seu gabinete e pronto a fechar a porta. Mas a sua mão ficou imobilizada ao ouvir a voz imediatamente reconhecível de Owen Harris, um dos sócios maioritários da firma.

- Jake. Ainda bem que está aqui. Ultimamente tem sido um homem difícil de encontrar. Preciso falar um minuto consigo. Quero que conheça Thomas Maclean, e Eddy, o filho dele.

Owen Harris era um homem compacto em todos os aspectos. Era baixo, magro, tão preciso na sua dicção como nos fatos azuis-escuros feitos por medida, um homem que usava apenas as palavras absolutamente necessárias. Costumava engolir as vogais, descartava verbos e parecia não aprovar as conjunções de um modo geral. Mesmo assim, era um especialista em fazer-se entender.

Jake. Ainda bem que está aqui. Ultimamente tem sido um homem difícil de encontrar. Era impossível deixar de entender aquela pequena farpa. Estaria mesmo a passar assim tanto tempo fora do escritório?

Jake apertou as mãos da imponente dupla pai e filho, observando que o pai era de longe o mais bem parecido dos dois, apesar do filho ser bastante mais alto. Levou os três homens para a sua sala e indicou-lhes o sofá verde e azul ao canto. Só Eddy Maclean se sentou, cruzando Distraído as longas pernas, e encostando a cabeça às costas do sofá como se estivesse entediado com a conversa, antes mesmo dela começar.

- Quadro interessante - disse o Maclean mais velho, continuando de pé, mesmo depois de Jake puxar uma das cadeiras que ficavam na frente da sua secretária.

- O Jake é o independente da firma - declarou Owen Harris, num tom ao mesmo tempo de estima e consternação.

- São necessários em todas as empresas - Jake esboçou um sorriso forçado, a imaginar o que achariam eles da fotografia de Raphael Goldchain que agora estava pendurada em casa, na parede do seu escritório. Deu uma olhadela furtiva ao relógio de pulso. Quase duas e meia. Esperava que aquela reunião não demorasse. Naquele ritmo duvidava ter tempo para telefonar a Honey.

- Conhece a cadeia de lojas Maclean? - perguntou Owen Harris.

- Sempre comprei nelas - disse Jake. - Houve algum problema?

- vou deixar que o tom lhe explique - disse Owen Harris, já à porta, acenando com a cabeça quase completamente calva. - Não precisam de mim - fechou a porta ao sair.

Jake deu outra olhadela rápida ao relógio.

- Estamos a atrapalhar os seus horários? - perguntou Thomas Maclean.

Obviamente um homem a quem não escapava nada percebeu Jake, resolvendo ter mais cuidado.

- Temos tempo. O que posso fazer pelos senhores?

O pai Maclean olhou para Jake e para o filho, que era a imagem da indiferença.

- Senta-te direito - rosnou Thomas Maclean, e o corpo musculoso do jovem ficou nesse mesmo instante em posição de alerta, apesar da expressão continuar entediada, desinteressada. - Parece que o meu filho se envolveu num incidente muito infeliz, a noite passada.

- Que tipo de incidente?

- Envolvendo uma jovem.

- Ela é uma cabra. Toda a gente sabe - troçou Eddy Maclean, revirando os olhos

Castanhos claros nas órbitas e passando uma mão preguiçosa no cabelo castanho, que usava até aos ombros.

- Que tipo de incidente? - repetiu Jake.

- Parece que houve uma festa em casa de alguém. Os pais tinham ido de férias. O meu filho conheceu a rapariga...

- Por que não deixa o seu filho contar o que aconteceu? - interrompeu Jake.

Thomas Maclean endireitou os ombros largos e quadrados, coçou a asa do longo nariz e sentou-se na cadeira azul de espaldar direito que Jake lhe tinha oferecido, acenando com a mão para indicar que o filho tinha a palavra.

- Ela atirou-se a mim - disse imediatamente Eddy Maclean. - É uma gaja horrorosa, meu. Nunca me teria metido com ela se ela não se tivesse oferecido.

- Então meteu-se com ela - disse Jake, ciente do resto da história.

- Não foi como ela disse. Não fiz nada que ela não quisesse.

- E o que é que fez exactamente?

- Eddy Maclean encolheu os ombros.

- O senhor sabe.

- Parece - interrompeu o pai - que tiveram relações sexuais.

- Quantos anos tem, Eddy? - perguntou Jake.

- Dezanove.

- E a rapariga?

- Quinze.

- Ele não sabia a idade dela, só soube depois - esclareceu Thomas Maclean. - A rapariga parece muito mais madura do que realmente é.

- A rapariga tem nome? - perguntou Jake, tentando não imaginar a sua filha, nua, na cama com Eddy Maclean.

- Sarah qualquer coisa.

- Sarah qualquer coisa - repetiu Jake, lutando contra a vontade de atirar o rapaz ao chão e de o deixar inconsciente de tanta pancada. Seria assim que o ex-namorado da filha se referia a ela? Kim qualquer coisa?

- Gaja horrorosa. Nunca lhe teríamos tocado se ela não tivesse começado.

- Teríamos?

- Parece que havia outros dois rapazes - explicou Thomas Maclean.

- Jake caminhou até à secretária e apoiou-se nela. Pelo menos, o facto

de terem encontrado Kim com aquele rapaz tinha servido como argumento para ela fazer terapia pois a filha estava a enfrentar uma série de problemas. Precisava de conversar com alguém.

- Acho que vamos ter de começar pelo princípio.

- Parece que sim... - começou Thomas Maclean.

- Pelas palavras do Eddy - interrompeu Jake. - Se não se importam.

Thomas Maclean deu sua permissão acenando a cabeça. Eddy Maclean pigarreou. Jake esperou, consciente do pequeno relógio que tinha sobre a secretária atrás de si.

- Fomos a uma festa.

- Quem?

- Eu, o Me Hansen e o Neil Pilcher.

- E o que aconteceu na festa?

- Nada. Estava muito chata. Um grupo de miúdas dançava ao som das Spice Girls. Resolvemos ir embora. Então apareceu essa rapariga e pediu para que ficássemos, que a festa estava só a começar.

- Essa rapariga era a Sarah?

- Era. Disse que já me tinha visto por aí e que me achava engraçado. O senhor sabe, essas palermices. O que queria que eu pensasse?

- O que é que você pensou?

- A mesma coisa que qualquer rapaz pensaria. Já sabe... que ela estava interessada.

- E então, o que aconteceu?

- Eu disse que ficaríamos se ela nos mostrasse que valia a pena. Ela respondeu, que tudo bem. Então subimos para um dos quartos.

- E depois?

- Ele sorriu.

- Fizemos sexo.

- E os seus amigos, o Neil e o Mike, onde estavam eles enquanto tudo isso estava a acontecer?

- A princípio ficaram do lado de fora do quarto. O senhor sabe... de guarda.

- De guarda porquê?

O rapaz encolheu os ombros.

- Não queríamos ser interrompidos.

Jake esfregou a testa, tentando conter uma dor de cabeça que começava a invadi-lo.

- Disse a princípio. Imagino que o Neil e o Mike se aborreceram de ficarem de guarda e resolveram entrar no quarto.

- Queriam participar da acção.

- A acção era a rapariga de quinze anos.

- Espere um minuto - exclamou Thomas Maclean.

- Pensei que ela fosse mais velha - ripostou o filho.

- O que foi que ela achou quando os dois entraram também? perguntou Jake, tentando não demonstrar a revolta que sentia, tirando a imagem da filha da cabeça.

- Ela não se opôs.

- Ela não disse que não, nem pediu para vocês pararem em momento nenhum?

- Ela disse muitas coisas. E nós não estávamos a prestar muita atenção a tudo o que ela dizia.

- Então pode ter dito não - afirmou Jake.

- Ela queria. Só está a dizer que foi violada porque descobriu quem é o meu pai, e quer um pedaço do bolo.

- Ela afirma que você a violou?

- Grande surpresa - disse o rapaz com desprezo.

- Tenho um amigo no escritório do promotor público - Thomas Maclean esclareceu. - Telefonou-me e disse-me que a rapariga e a família dela estavam na polícia, e que provavelmente iriam emitir um mandado de prisão contra o meu filho. Viemos para cá imediatamente.

Jake deu a volta à secretária, sentou-se e olhou abertamente para o relógio. Duas e quarenta e oito.

- Que mais? - perguntou Jake.

- Como assim, que mais? - pouco faltou para a voz de Thomas Maclean indicar a indignação.

Jake apontou o queixo para Eddy Maclean.

- Ele sabe o que eu quero dizer - Jake sabia que havia sempre mais, e ficou à espera.

- Ela afirma que era virgem.

- E você duvida?

- É difícil dizer. Isto é, quando se entra por trás, às vezes sangra.

- Jake levou um minuto para descobrir exactamente o que o rapaz estava a querer dizer.

- Está a dizer-me que sodomizaram a rapariga?

- Eu não. Não é a minha prática. Mas o Neil sempre gostou da porta das traseiras.

- Isso é relevante? - quis saber Thomas Maclean, usando a lógica distorcida dos ricos e poderosos que conseguem sempre tudo o que querem. - Se a rapariga consentiu, que diferença faz o que ela aceitou?

- Não gosto de surpresas - respondeu Jake calmamente. - Se vou representar o seu filho, e suponho que é para isso que estão aqui, então preciso de conhecer todos os factos.

- É evidente - disse Thomas Maclean, recuando. - E o que acontece agora?

- Aconselho-os a irem à polícia para o seu filho se entregar. Chamarei um dos meus assistentes e ele vai acompanhá-los...

- Um dos seus assistentes, como? E o senhor?

- Eu já tinha marcado outro compromisso...

- Cancele-o.

- Não posso - disse Jake com firmeza e apertou o botão do intercomunicador. - Natasha, localize o Ronald Becker e peça para ele vir imediatamente ao meu gabinete. Obrigado - disse ele, desligando antes que a secretária tivesse possibilidades de responder. - Ronald Becker é um jovem advogado muito competente, e este é um procedimento muito básico.

- Owen Harris garantiu que o senhor trataria de tudo.

- Estou a tratar de tudo. Pessoalmente.

Pessoalmente, disse Jake para consigo. Aquela palavra de novo.

Poderia fazer aquilo? Poderia mesmo passar um cliente muito importante a um assistente, por mais básico que fosse o procedimento, para levar a sua filha à consulta da terapeuta? Para levar a mulher a casa da mãe?

Alguém bateu à porta e Ronald Becker, um jovem de cabelo grisalho encaracolado e uma barriguinha já proeminente sobre a qual apertava os botões do fato castanho às riscas, entrou na sala; abanava a cabeça para cima e para baixo, como um pombo, pensou Jake, fazendo as devidas apresentações.

- Preciso que o colega acompanhe os Maclean à polícia - disse. - O Eddy vai entregar-se, mas não fará nenhuma outra concessão. O colega acompanha-o ao tribunal, onde ele alegará estar inocente de qualquer acusação que houver contra ele, e depositará a fiança necessária...

- virou-se para o pai e para o filho, que já estavam de pé e olhavam para ele boquiabertos. - O meu colega Becker responder-vos-á a quaisquer perguntas que tiverem a caminho da esquadra. Confiem em mim, não há nada de complicado nisto. Estarão em casa à hora do jantar. Entretanto pedirei à minha secretária para marcar uma outra reunião convosco para o início da próxima semana.

- Da próxima semana?

- vou estudar o assunto este fim-de-semana e resolver qual será a melhor forma de agir neste caso. Agora tenho mesmo de ir - disse Jake, com um pé já fora da sala. - O Dr. Becker cuidará bem de vós.

Só quando estava no elevador Jake percebeu o real significado do que tinha acabado de fazer. Atirou a cabeça para trás e soltou uma ruidosa gargalhada. Quando o elevador chegou ao rés-do-chão, ainda estava a rir-se.

 

- ENTÃO, COMO FOI A CONSULTA com A ROSEMARY? - perguntou Mattie, virando-se no banco do carro e olhando para Kim cheia de esperanças.

Kim encolheu os ombros, encostou o nariz à janela do carro, sentindo o frio na pele e embaciando o vidro com a sua respiração. com o dedo indicador Fez no vidro o desenho de uma mulher de cabelo aos caracóis.

- Boa - disse Kim, apagando imediatamente o desenho com a manga do casaco.

- Ela parece ser muito simpática.

- Acho que é.

Kim fechou os olhos e esperou até ouvir a mãe virar-se para a frente para os abrir de novo. Recostou-se no estofo de couro macio do carro do pai e ficou a olhar, obstinada para os montes de neve, através das janelas laterais. Aquele Inverno não acabaria nunca? Já estavam no início de Março e ainda havia quase trinta centímetros de neve no chão. É claro que quanto mais depressa o tempo passasse, menos tempo haveria. Pelo menos no que dizia respeito à mãe. Kim chegou o corpo para a frente e estendeu a mão para lhe tocar no ombro. Mas a mãe e o pai estavam a segredar um com o outro e Kim tirou rapidamente a mão.

- O que é, querida? - perguntou a mãe, como se tivesse olhos nas costas. - Querias dizer alguma coisa?

Kim resmungou, vendo um carro desportivo vermelho ultrapassá-los pela faixa da direita. O pai tinha conseguido de alguma forma convencer o vendedor de automóveis a aceitar a devolução do Corvette vermelho que a mãe tinha comprado assim que soubera da doença. Porque haveria de se surpreender com isso?, pensou Kim, contando Distraidamente o número de carros vermelhos na estrada, como costumava fazer quando era pequena. Se o pai conseguia convencer pessoas aparentemente sensatas a deixarem livres assassinos, certamente não precisava fazer esforço algum para convencer vendedores de automóveis a receberem de volta os seus Corvettes vermelhos. Afinal de contas, ele era Jake Hart, o Grande Defensor, uma celebridade, quase canonizado no último número da revista Chicago. Podia convencer qualquer pessoa de qualquer coisa.

- Alguém na escola comentou o artigo sobre o teu pai? - perguntou Mattie, como se pudesse ler todos os pensamentos da filha.

- Não - respondeu Kim, apesar de vários professores terem falado no assunto.

- E tu o que achaste, Kimmy? - perguntou-lhe o pai.

- Eu não o li - mentiu Kim.

A verdade era que o tinha lido tantas vezes que podia até recitar o artigo de cor.

- Achei-o muito lisonjeiro - disse Mattie, e Kim ouviu a gargalhada do pai. - Qual é a graça? - perguntou a mãe.

- Foram as mesmas palavras que usei esta tarde - disse Jake, e Kim contorceu-se no banco.

De repente tinham ficado tão compatíveis, pensou ela. Nunca mais discutiram. Nunca gritavam, nem levantavam a voz. Desde que o pai voltara para o quarto da mãe davam-se como Deus com os anjos. Às vezes ela acordava a meio da noite e ficava deitada na cama à espera do som dos outrora reconfortantes sussurros tensos de ambos, aos quais se tinha habituado desde criança, e eram sinal para saltar da cama e correr para lá em defesa da mãe. Mas os únicos sussurros que Kim ouvia ultimamente em geral eram seguidos por uma série abafada de risos e, uma vez, quando foi pé ante pé até ao quarto dos pais para se certificar de que estava tudo bem, viu o corpo do pai a revirar-se sobre as cobertas e a ficar em cima da mãe e percebeu, revoltada, que os pais estavam a fazer amor.

Ultimamente as coisas funcionavam assim no lar dos Hart. Os pais concordavam sempre um com o outro, rindo de piadas patetas, resolvendo juntos a melhor forma de tratar das situações difíceis. Como a insistência dos dois para que ela fizesse terapia depois que a encontraram com Teddy, pensou ela, engolindo um gemido. Não que a experiência sexual fosse sinónimo de doença mental, explicaram-lhe eles imediatamente. Sem quererem parecer hipócritas demais, acentuaram que era natural que os adolescentes quisessem experimentar o sexo. Só que, aliado ao seu recente comportamento, e a separação e reconciliação deles, para não mencionar a doença de Mattie, Kim tinha obviamente uma pesada carga sobre os ombros. Precisava de alguém com quem conversar,

para a ajudar a ordenar os seus sentimentos durante aquela fase tão difícil.

Conversar sobre o quê?, imaginou Kim, ficando obstinadamente calada durante quase toda a primeira consulta com a terapeuta. Teddy nem lhe tinha telefonado após a sua saída apressada do quarto naquela noite. Fugia sempre que a encontrava nos corredores da escola. era certo que todos os colegas sabiam da história de que o preservativo ficara preso, de que Kim tivera de gritar para que ele o tirasse de lá, de que a sua mãe apanhara os dois em flagrante a dormir, de que ele tivera de apanhar a roupa e sair a correr para salvar a pele. Desflorada e abandonada, pensou Kim, permitindo-se uma gargalhadinha. Uma primeira vez memorável.

- Como foi que te sentiste quando viste a tua mãe? - perguntou Rosemary Colicos na primeira sessão que Kim teve com a terapeuta quase agressivamente feia.

- Embaraçada - respondeu Kim com certa relutância. - Zangada.

- Ficaste aliviada? - perguntou Rosemary.

Que pergunta idiota, pensou Kim naquele momento. Por que é que ficaria aliviada por a mãe a ter descoberto na cama com Teddy Cranston? No entanto, quanto mais sessões Kim tinha com aquela mulher de meia-idade, cujo cabelo louro manchado parecia ter sido enfiado directamente numa tomada eléctrica, menos idiota lhe parecia a pergunta.

Acontecia a mesma coisa com quase todas as perguntas que Rosemary fazia. O que é que achas que te motivou a quereres fazer sexo com o Teddy dentro da casa dos teus pais? Estavas com raiva da tua mãe por ela estar doente? O que estarias a perder se perdoasses ao teu pai?

Vontade. Claro que não. Nada. Estas tinham sido as respostas imediatas de Kim. Mas no decorrer das últimas seis semanas, Rosemary tinha subtilmente forçado Kim a repensá-las. Talvez estivesse mesmo aliviada por ter sido descoberta. Talvez ser descoberta fosse exactamente o que tinha em mente ao convidar Teddy para sua casa. E se não estava com raiva da mãe, então por que é que tudo o que a mãe fazia e dizia naqueles dias a aborrecia tanto? E quanto ao que estaria a perder se perdoasse o pai, bem, Kim podia resumir tudo numa única palavra: poder.

- Porque é que vamos a casa da avó Viv? - perguntou Kim, com um tom deliberadamente rebelde na voz. - Pensei que não gostasses de lá ir.

- Há muito tempo que lá não vou - admitiu Mattie.

- E porquê agora? Qual é a ocasião especial? - Kim viu os ombros da mãe ficarem tensos, notou a expressão aflita nos olhos do pai pelo espelho retrovisor. Naquele instante percebeu que iam falar à avó da doença de Mattie. Iam contar à avó que a filha estava a morrer.

- Não estou a sentir-me bem - Kim gritou de repente. - Pára o carro. Acho que vou vomitar.

Nesse mesmo instante o pai parou o carro. Kim abriu a porta, saltou lá para fora, curvou-se no meio do passeio e uma série de espasmos secos sacudiram-lhe o corpo magro. Sentiu a mãe de cócoras ao lado dela, com o braço protector sobre os seus ombros.

- Respira fundo, querida - dizia a mãe, afastando-lhe o cabelo do rosto. - Respira bem fundo.

Seria aquilo que a mãe iria sentir? imaginou Kim, tentando recuperar a respiração. Morreria assim sufocada?

Não era a primeira vez que aquilo lhe acontecia. Fora o mesmo no outro dia na escola, quando se dirigia à cantina. Aquela falta de ar horrível, a boca congelada como se tivesse um pedaço de gelo a obstruir-lhe a garganta. Correra para a casa de banho mais próxima, trancara-se num dos cubículos, ficando às voltas no espaço minúsculo em redor da sanita como um tigre enjaulado no jardim zoológico, abanando as mãos diante do rosto, esforçando-se para meter ar nos pulmões. Estava a morrer, compreendeu Kim naquele momento. Tinha herdado a terrível doença da mãe.

Esclerose lateral amiotrófica.

Angústia vulgar.

Pelo menos era o que Rosemary Colicos dizia.

- Isso não significa que os ataques não sejam assustadores e terríveis - dissera-lhe a terapeuta. - Só que não são fatais.

- E o facto de os meus pés estarem sempre a ficar dormentes? - perguntara Kim na sessão daquele dia.

- Talvez seja boa ideia deixares de usar essas botas pesadas de vez em quando - sugerira Rosemary, apontando para as botas de couro preto compridas e apertadas que Kim usava. - Se ficares sentada durante todo o dia com botas como essas, é evidente que os teus pés ficam dormentes de vez em quando. Não estás a morrer, Kim - garantiu ela. - Vais ficar bem.

Iria mesmo? Se era verdade, o que estava a fazer de gatas, vomitando bílis para um passeio gelado, no meio de Chicago, numa sexta-feira de Inverno? Depois do que pareceu uma eternidade, os espasmos pararam e Kim sentiu o peito encher-se de ar. Secou as lágrimas dos olhos, encostou a cabeça no ombro da mãe e sentiu o sol frio surpreendentemente quente no rosto.

Então foi coberta pela sombra do pai que bloqueou o sol.

- Sentes-te bem? - perguntou ele.

Kim fez que sim com a cabeça, levantou-se muito devagar e voltou-se para ajudar a mãe. Mas Jake já estava ao lado de Mattie, com uma mão por baixo do braço dela, a outra na cintura, e Mattie apoiou todo o seu peso nele. Não precisava da ajuda de Kim.

- Estás bem, querida? - perguntou Mattie quando voltaram para o carro.

- Estou bem - disse Kim. - Deve ter sido aquele cachorro quente que comi ao almoço.

- Pensava que não comias carne vermelha - disse o pai.

E ninguém disse mais nada até o carro parar diante da casa da avó.

- Podes escolher um para ti - a mãe apontou entusiasmada para a ninhada de oito cães que tropeçavam uns por cima dos outros dentro de uma enorme caixa de papelão no chão da cozinha da avó Viv.

Mattie tinha um sorriso enorme no rosto, e lágrimas nos olhos, aquelas lágrimas que surgem quando se faz uma coisa que se sabe que vai deixar alguém muito feliz. Até o pai dela estava com aquele sorriso idiota. E Kim sentia que a mesma expressão aparvalhada lhe repuxava os seus lábios. A avó, sorria discretamente ao lado do velho fogão cor de abacate, no canto da pequena cozinha verde e branca, com pelo menos seis outros cães rodeando os seus tornozelos grossos. Era a única pessoa ali que ainda parecia um ser humano, e não um extraterrestre apatetado.

- Isto é alguma partida? - perguntou Kim, desconfiada, com medo de se aproximar da caixa de papelão que se mexia.

- Qual deles queres? - perguntou a mãe.

- Não acredito. Vão deixar-me ter um cãozinho?

- Feliz aniversário, Kimmy - disse o pai.

- Feliz aniversário - repetiu a mãe.

- O meu aniversário é só para a semana que vem. - Kim afastou-se da caixa.

Haveria algum motivo para estarem a comemorar o seu aniversário uma semana antes? A mãe teria algum outro problema?

- Está tudo bem, Kim - disse-lhe a mãe, invadindo mais uma vez os recessos mais profundos da mente da filha sem a sua permissão. - Só queríamos que fosse uma surpresa. Tivemos medo de esperar até à semana que vem e...

- Não sei qual hei-de escolher - gritou Kim, avançando para a caixa antes de a mãe poder terminar a explicação e pegando nas bolinhas brancas uma a uma. - São todos tão lindos! Não são as coisinhas mais lindas que já se viram? - pegou um filhote com os braços esticados/ observou as perninhas penduradas entre os seus dedos, os pequenos olhos redondos cor de chocolate escuro. Os olhos de Teddy, pensou Kim, devolvendo o cachorro à caixa e escolhendo outro, cujos olhos ainda estavam meio fechados.

- De que raça são? - perguntou Mattie.

Kim notou que Mattie tinha o cuidado de evitar qualquer contacto visual com a mãe.

- Peekapoos - anunciou a avó Viv, endireitando os ombros que já eram rectos e alisando o cabelo castanho curto a ficar grisalho. - Metade poodle, metade pequinês. Mais espertos do que as duas raças juntas.

- Quero este - disse Kim, beijando várias vezes o pêlo branco do cãozinho. Este levantou a minúscula cabeça e lambeu o queixo de Kim.

- Não deixes que ele te lamba a boca - avisou Mattie.

Kim ignorou a mãe e continuou a deixar que o minúsculo cãozinho lhe lambesse a boca, sentindo a língua dele, agitada e molhada, a enfiar-se-lhe por entre os lábios.

- Kim... - disse-lhe o pai.

- Por amor de Deus, vocês dois, não faz mal. A boca deles é mais limpa que a nossa - avó Viv afastou-lhes as preocupações com um aceno da mão. - Que nome lhe vais dar, Kim?

- Não sei. Sugiram-me um que seja bom.

Os olhos de Kim passaram rapidamente pela avó, pelo pai e pela mãe, com medo de se deter demasiado tempo em cada um deles. Iam, por fim, deixá-la ter um cão. Por quê? A mãe sempre detestara cães. Chegara ao ponto de fingir que era alérgica no Verão em que Kim levara para casa um rafeiro do canil municipal, insistindo que deveriam dar o cão à avó Viv. Kim tinha ido visitá-lo todas as semanas, mas não era a mesma coisa que ter um cão na sua própria casa, um cão que a seguisse para todo o lado e se aninhasse sobre os seus pés em cima da cama. Porquê a súbita mudança de ideias? Porquê agora, quando a última coisa que a mãe precisava era de um cachorrinho destreinado no meio do caminho?

Naquele momento Kim compreendeu que era oficial e lutou contra uma súbita falta de ar. A mãe estava a morrer.

- Que nome achas que eu lhe devia pôr, mãe? - Kim esforçou-se para que as palavras lhe saíssem detrás do bloqueio da garganta.

- É o teu menino - disse Mattie. - Escolhe tu.

- É uma decisão importante.

- Pois é - concordou a mãe.

- Que tal George?

- George? - perguntaram Mattie e Jake ao mesmo tempo.

- Adoro - declarou a avó Viv. - George é o nome perfeito.

- George e Martha - disse Kim, sorrindo para a mãe. - Combinam muito bem.

- Nunca entendi porque é que a tua mãe sempre detestou o nome de Martha - resmungou a avó Viv. - Sempre achei um nome adorável A Martha Stewart2 nunca diria que se chamava Mattie. Quem quer chá? - perguntou sem parar para respirar.

- Chá parece-me óptimo - disse Jake.

- Um chá seria bom - concordou Mattie.

Kim observou a mãe que observava a mãe dela pelo canto do olho, procurando ver a avó Viv como a mãe a via. Não eram nada parecidas. A avó era mais baixa e atarracada do que a mãe, e o cabelo castanho curto era encaracolado e estava cada vez mais grisalho. As suas feições eram mais duras do que as da única filha, o nariz mais largo e mais achatado, o queixo mais quadrado, os olhos verdes e não azuis. Mattie insistia sempre que era igualzinha ao pai, apesar de não haver fotografias dele em lugar nenhum para confirmar a afirmação. Ao contrário da mãe, a avó nunca usava maquilhagem, mas as maçãs do rosto ficavam sempre vermelhas quando estava zangada ou aborrecida, com manchas que raramente marcavam a pele perfeita de Mattie. Mesmo assim, Kim via traços da avó na postura orgulhosa dos ombros da mãe, na maneira das duas manterem a cabeça erguida, no modo como as duas usavam as mãos para exprimir as suas ideias complicadas demais, que não seriam convincentes sozinhas.

- O que aconteceu entre ti e a avó Viv? - perguntava Kim muitas vezes.

- Não aconteceu nada - respondia a mãe.

- Então por que é que nunca vais visitá-la? Por que é que ela nunca vem jantar cá a casa?

- É uma longa história, Kim. Não são respostas fáceis. Porque não perguntas à tua avó?

- Já perguntei.

 

1 Série de desenhos animados, baseada na amizade de dois hipopótamos. [N.T.]

2 Mulher muito conhecida nos meios de comunicação americanos, já por duas vezes considerada a mulher mais rica da América. [N.T.]

 

- E o que disse ela?

Disse que te perguntasse a ti.

A mãe tinha uma expressão estranha no olhar, pensou Kim, como se estivesse a entrar na casa errada e não soubesse como sair educadamente, e parecia-lhe que era exactamente assim que ela se deveria estar a sentir. De qualquer forma, havia quanto tempo que não punha os pés em casa da avó Viv? Quantos anos teria da última vez que saíra por aquela porta? Provavelmente não deveria ser muito mais velha do que o pai, quando saíra de casa, concluiu Kim. Era estranho, pensou, beijando a cabeça macia do seu novo cachorrinho. Os pais eram mais parecidos do que ela imaginara.

- Viste o artigo sobre o Jake na revista Chicago? - perguntou Mattie à mãe, numa tentativa óbvia de reatar a conversa.

- Não, não vi - a avó Viv caminhou até ao lava-loiças e começou a pôr água fria na chaleira. - Trouxeste a revista?

- Nem de propósito, tenho uma na minha mala - Mattie estendeu a mão para a mala de couro castanho que se encontrava sobre a mesa da cozinha.

- Não me digas que trouxeste - espantou-se Jake. Seria possível que ele tivesse ficado vermelho? Kim revirou os olhos para o tecto da cozinha.

- Sim - disse Mattie soltando uma risadinha de orgulho e abrindo a mala, para tirar de lá a revista e ia-a entregar à mãe quando ela se lhe escapou da mão e voou pela cozinha, fazendo com que os cães corressem para os pés de Viv procurando protecção, ladrando bem alto o seu terror.

- Ora esta, não era preciso que a atirasses para cima de mim disse a avó Viv irritada. - Pronto, meus queridos - disse ela para os inúmeros cães que já se espalhavam pela cozinha.

Kim viu o rosto da mãe empalidecer, e os seus olhos ficarem vidrados de horror.

- Desculpem. Não sei o que aconteceu.

- Estás bem? - perguntou Jake.

- Claro que está bem - a avó Viv baixou-se para apanhar a revista do chão. - Ela sempre foi desajeitada. Bela fotografia, Jake. E logo na capa.

- Parece que o artigo é muito lisonjeiro - disse Kim vendo a cor voltar ao rosto da mãe, e usando as palavras desta de propósito, a mesma palavra que o pai tinha dito que usara antes. Todos da mesma família, pensou, combatendo a vontade de vomitar, respirando fundo várias vezes.

- Sentes-te bem, querida? - perguntou a mãe.

Não lhe escapa nada, pensou Kim, observando a avó a pôr a chaleira ao lume e tirar um grande bolo branco de aniversário de uma caixa que se encontrava sobre a bancada da cozinha, tudo num único movimento contínuo.

- Porque é que todos perguntam se todos estão bem? - perguntou a avó Viv, depositando o bolo no meio da mesa da cozinha. - reparei que ninguém pergunta como é que eu estou.

- Estás bem, avó Viv?

- Estou óptima querida. Obrigada por perguntares. E então, quem quer uma rosa?

- Quero eu - responderam juntas Kim e a mãe. Sentaram-se todos em redor da mesa de fórmica, com o minúsculo filhote a dormir no colo de Kim, a avó Viv a puxar um terrier preto para o seu, tentando fazê-lo ficar quieto.

- Não podias afastar mais o cão do bolo? - perguntou Mattie à mãe, mas era claramente mais uma exigência do que um pedido.

- Ele não está perto do bolo - magicamente apareceram pequenas manchas vermelhas no rosto da avó Viv enquanto punha o cão no chão e ficava de pé. - Acho que me esqueci das velas. - A avó começou a abrir e fechar ruidosamente as gavetas da cozinha. - Sei que as tenho num sítio qualquer.

- Não faz mal, avó Viv. Não preciso de velas.

- Como é que não faz mal? É claro que precisas de velas. Bolo de aniversário sem velas não é bolo de aniversário.

- Kimmy - pediu o pai - será que podes pôr o George no chão enquanto comemos?

- O George vai ficar no meu colo - retorquiu Kim. - E não me chames Kimmy

- Já encontrei - proclamou a avó triunfante, voltando para a mesa e dispondo as velas sobre o bolo, em quatro filas muito direitas.

- Dezasseis velas - disse a sorrir para a única neta, colocando mais uma vela no meio de uma suave rosa cor-de-rosa. - E uma para dar sorte.

 

- MÃE, PODEMOS CONVERSAR POR UM BOCADINHO?

- Claro, Martha.

- Mattie respirou fundo e deixou o ar sair lentamente, fazendo um esforço para sorrir. Toda a vida ela lhe chamara Martha, lembrou-se Mattie. Era tarde de mais para mudar.

Ficou a olhar para a mãe: estava sentada à mesa da cozinha, com dois cães pequenos no colo e cinco maiores aos pés. A seu lado Jake lia o Chicago Sun-Times, olhando de vez em quando para Mattie, sorrindo para demonstrar o seu apoio. Kim estava sentada no chão de pernas cruzadas ao lado da caixa de papelão com os cãezinhos minúsculos, aninhando George nos braços, embalando-o como um bebé recém-nascido. O único neto que verei na vida, pensou Mattie com tristeza, passando pela porta entre a cozinha e a sala de estar em forma de L.

- Vamos para a sala, se não te importas - Mattie viu o olhar intrigado da mãe quando esta poisou no chão os cães que tinha no colo e se levantou da cadeira.

- Queres que vá contigo? - perguntou Jake, como já antes havia perguntado diversas vezes.

A última coisa que Mattie viu antes de sair da cozinha foram os olhos de Kim a seguir-lhe os passos. Cuidado, dizia aquele olhar. Mattie concordou com a cabeça, apesar de não ter certeza para quem seria o aviso, e afastou-se da porta.

A sala de estar parecia essencialmente a mesma de sempre: paredes verde-claras e um tapete a combinar, a mobília sem imaginação que era decididamente mais utilitária do que decorativa, uma série de gravuras apagadas de Audubon nas paredes. Mattie escolheu um ponto relativamente limpo no meio do sofá verde hortelã de costas direitas perto da janela da frente e fingiu não reparar na fina camada de pêlo de cão que cobria a superfície de veludo como um cobertor. Mattie sentou-se com as mãos no colo, cruzou os tornozelos, as costas arqueadas e rígidas, procurando ter o mínimo possível de contacto com o sofá.

- Passei o aspirador logo depois de teres telefonado - disse a mãe, deixando-se cair sobre a poltrona forrada a bombazina de listas verdes e brancas à esquerda de Mattie e voltando a cabeça para o lado como um dos seus cães, à espera que a filha falasse.

- A casa está bonita - disse Mattie, e um pequeno cão castanho com orelhas incoerentemente grandes e alvoroçadas saltou para o seu lado no sofá. Mattie nem conseguia imaginar que raça de cão seria aquela. Provavelmente a mãe também não saberia, pensou ela, pondo rapidamente o cão no chão, espantando-o para bem longe com a ponta do pé. Desde que se recordava, vivia a lutar com os cães para conseguir a atenção da mãe. Os cães venciam sempre.

- Vem cá, Dumpling - disse a mãe ao cão, colocando-o no colo como se fosse um guardanapo. - A Martha não gosta de cães - explicou, beijando o animal, e retirando-lhe habilmente uma remela do olho.

Nessa mesma altura vários cães amontoaram-se ao lado dela, dispostos em volta dos seus pés, como se fossem chinelos. Todos olhavam para Mattie, acusando-a.

- Não é que eu não goste deles - começou Mattie a dizer mas deteve-se, desviando os olhos dos seus acusadores caninos e fitando, sem ver, a parede que tinha em frente. Não preciso de me defender de uns quantos cães, pensou. - De qualquer forma, o que eu gosto não importa. O que é importante é que a Kim gosta, e ela está muito animada com o George, mesmo sendo ele tão pequeno e não podendo ainda ser levado para casa. E obrigada por isso.

A mãe encolheu os ombros, remexeu-se na cadeira, com o rosto de repente meio avermelhado.

- Devias era agradecer à Duisy por ter dado à luz numa data tão próxima do aniversário da Kim.

- vou mandar-lhe um cartão de agradecimento - disse Mattie, e depois desejou não o ter dito. Para quê ser irónica? Especialmente agora. Além do mais, a mãe era simples demais para sarcasmos. - Já encontraste quem queira ficar com os outros cãezinhos? - perguntou ela imediatamente, lembrando-se de como a mãe tinha ficado surpreendida quando ela lhe telefonara semanas atrás para saber se tinha algum cachorro para dar.

- Ainda não. Queria que a Kim fosse a primeira a escolher. Mas nunca há problema em encontrar quem queira. Posso até ficar com um ou dois para mim.

- Não existe nenhuma espécie de postura municipal contra quem tem tantos cães?

- Foi para isso que me chamaste aqui? - perguntou a mãe, sem se preocupar em disfarçar a irritação. Voltou mais uma vez a cabeça para o lado, à espera.

- Não, é claro que não - disse Mattie e parou, sem poder continuar. Como é que se diz à mãe que se está a morrer? Perguntou a si própria... mesmo uma mãe que mal lhe reconhecera a existência enquanto ela estava viva? - Preciso de te dizer uma coisa.

- bom, pronto, então diz. Não costumas ser tímida.

- Como sabes? pensou Mattie, mas não perguntou.

- Lembras-te daquele actor de uma novela que costumas ver, The Guiding Light, acho eu...

- Nunca vejo a Guiding Light - corrigiu-a a mãe. - Só o General Hospital e Days of Our Lives. Ah, e às vezes The Young and the Restless, mas não suporto a maneira que eles arrastam a história por uma eternidade.

- Havia um actor numa das novelas... morreu há pouco tempo de uma doença chamada esclerose lateral amiotrófica - disse Mattie, sem esperar que a mãe terminasse a frase. - A doença de Lou Gehrig - explicou.

Os olhos da mãe continuavam irritantemente inexpressivos, e Mattie não tinha a certeza se a mãe fazia alguma ideia de onde ela quereria chegar com aquela conversa.

- Ah, sim, lembro-me dele. Roger Zaslow, não, Michael Zaslow, julgo que era o nome dele. E tens razão, trabalhava em Guiding Light. Costumava ser The Guiding Light, mas mudaram o nome. Nunca entendi exactamente o porquê. Disseram que queriam tornar o programa mais moderno, actualizá-lo. Não vejo como, tirando um artigo...

- Mãe...

- Li sobre ele na revista People - continuou a mãe, metendo as palavras umas nas outras. - Despediram-no. De acordo com a revista People, diziam que um actor que não conseguia dizer as suas falas não lhes servia para nada. Segundo o que li, ficou muito amargurado. Não o censuro. É uma doença terrível - resmungou, desviando os olhos e mordendo o lábio, recusando-se a fazer o óbvio: perguntar por que é que estavam a falar daquilo.

- Estou doente, mãe - disse Mattie, respondendo à pergunta que não tinha sido feita, nem desejada. Viu os músculos da mãe ficarem tensos, os olhos vidrados, como sempre acontecia quando tinha de enfrentar notícias desagradáveis. Mal tinha começado, e a mãe já recuava, percebeu Mattie, inclinando o corpo para a frente, forçando a mãe a olhar para ela. - Lembras-te quando eu estive no hospital depois do acidente de automóvel?

A mãe reagiu com um movimento quase imperceptível da cabeça.

- bom, fizeram-me alguns exames no hospital e descobriram QU eu tenho a mesma doença desse actor da Guiding Light.

Mattie ouviu um grito sufocado na garganta da mãe, mas o seu rosto continuou impassível.

- Os médicos dizem que em breve descobrirão a cura e estão esperançosos... - Mattie

- calou-se, pigarreou e começou novamente. - para ser realista - disse ela - tenho uns dois anos. Cá entre nós - acrescentou, baixando a voz para um murmúrio - acho que não será tanto tempo. Acontecem-me coisas novas todos os dias. É como se a doença começasse a acelerar.

- Não compreendo - disse a mãe, a olhar para a janela que ficava por detrás da filha, e que dava para a rua, acariciando metodicamente com os seus dedos longos o cão que tinha no colo. - Pareces estar perfeitamente bem.

- Por enquanto ainda funciono. Os meus braços e as minhas pernas estão bem, a maior parte do tempo, mas em breve não será assim. A revista que há bocado voou da minha mão na cozinha... e coisas assim, têm acontecido com muita frequência. Depois deixarei de poder andar e não poderei fazer nada com as mãos. Não vou poder falar. bom, já sabes o resto. - Mattie procurou entender o olhar da mãe, mas a expressão pouco mudara desde o momento em que se tinham sentado. - Sentes-te bem?

- É evidente que não me sinto bem - disse a mãe, em voz baixa. - A minha filha acabou de me informar de que está a morrer. Achava mesmo que eu me sentiria bem?

- Não quis dizer...

- Bem sabia eu que havia alguma coisa - disse a mãe, olhando teimosamente para o espaço. - Porquê a súbita mudança de ideias quanto à Kim ter um cão? E quando foi a última vez que telefonaste a dizer que me querias vir visitar? Nunca. Por isso eu sabia que havia alguma coisa. Pensei que talvez fosse para me dizeres que te ias mudar para Nova Iorque ou para a Califórnia agora que o Jake se tornou tão famoso, ou que ele te ia deixar por outra mulher. Como sempre. Bem sabes. Uma coisa qualquer. Outra coisa. Isto não. Isto não.

- Mãe, olha para mim!

- Nunca é o que se pensa que vai ser - continuou a mãe, como se Mattie não tivesse dito nada. - Dizem-nos que têm uma coisa para nos contar, e tentamos adivinhar o que é, considerando todas as possibilidades, mas escolhem sempre aquilo que nem imaginávamos, a única coisa em que nos esquecemos de pensar. É sempre assim, não achas?

- Mãe - repetiu Mattie -, preciso que olhes para mim.

- Não é justo fazeres isto comigo.

- Isto não é contigo, mãe - disse Mattie simplesmente, chegando-se para a frente e segurando o queixo quadrado da mãe na palma da mão, forçando-a a olhá-la nos olhos. O cão que tinha no colo começou a rosnar. - Preciso que me escutes com atenção. Pelo menos uma vez na vida preciso da tua atenção exclusiva, completa. Posso?

Sem dizer uma palavra, a mãe de Mattie pôs no chão o cão que continuava a rosnar.

- Neste momento estou na fase inicial da doença. Estou a enfrentála muito bem. Ainda posso trabalhar e fazer a maior parte das coisas que fazia antes. Deixei de conduzir, claro, por isso ando muito de táxi e o Jake e eu começamos a fazer juntos as compras de casa. A Kim ajuda sempre no que pode...

- A Kim sabe?

Mattie fez que sim com a cabeça.

- Está a ser muito difícil para ela. Finge-se forte mas sei que está a ter problemas.

- Por isso resolveste dar-lhe um cão.

- Esperamos que alivie um pouco a dor, que tenha alguma Coisa na qual se possa concentrar.

- É uma boa menina.

- Bem sei que é - disse Mattie, tentando evitar as lágrimas. Era importante fazer o discurso todo sem chorar.

- O que queres que eu faça? Ficaria muito feliz em poder ficar com ela durante algumas semanas. A Kim disse-me que tu e o Jake estão a planear uma viagem a Paris em Abril. Gostaria de ficar com a Kim durante esse tempo - disse a mãe, ignorando deliberadamente

o quadro geral, que era o seu método habitual de enfrentar as coisas. Concentrava-se num qualquer ponto irrelevante e ampliava-o até apagar todo o resto.

- Podemos falar sobre isto depois - disse Mattie. - Eu é que preciso já de ti, mãe. Não a Kim.

- Não entendo - mais uma vez os olhos da mãe se viraram para a janela. - Queres que eu te faça as compras, que pague as contas?

Mattie abanou a cabeça. Como poderia fazer a mãe entender o que lhe ia pedir? Um cão preto de tamanho médio saltou para cima do sofá e acomodou-se na almofada ao lado de Mattie, olhando-a desconfiado e sonolento.

- Lembras-te quando eu tinha uns cinco anos e tínhamos uma cadela? - perguntou Mattie. - Chamava-se Queenie. Lembras-te da Queenie?

- Claro que me lembro da Queenie. Costumavas pô-la ao ombro e pendurá-la de cabeça para baixo, e ela nunca resmungava. Deixava que lhe fizesses tudo.

- E depois a cadela ficou doente e tu disseste-me que tínhamos de a pôr a dormir, e eu chorei e implorei para que não o fizesses.

- Já se passou muito tempo, Martha. É evidente que não podes estar ainda zangada comigo por isso, depois de todos esses anos. Ela estava muito doente. Estava a sofrer.

- Ela olhava-te com "aqueles olhos", foi o que tu disseste, aqueles olhos que queriam dizer que tinha chegado a hora de acabar com aquele sofrimento, que seria uma crueldade mantê-la viva.

A mãe de Mattie agitou-se inquieta na cadeira.

- Como será que a Kim se está a dar com o George?

- Ouve o que eu te estou a dizer, mãe - disse Mattie. - Vai chegar a altura em que eu vou olhar para ti com "aqueles olhos".

- Devíamos voltar para junto deles. Não está certo...

- vou ficar praticamente imobilizada - insistiu Mattie, recusando-se a deixar a mãe

- levantar-se da cadeira. - Não vou poder mexer, nem as pernas, nem as mãos. Não vou poder fazer nada para acabar com o meu sofrimento. vou ficar indefesa. Não poderei tomar qualquer iniciativa. O que acontece com esta doença - Mattie recuou um pouco - é que os músculos do peito vão ficar cada vez mais fracos, a respiração cada vez mais curta e acabarei sem ar.

- Não quero ouvir isso.

- Tens de ouvir. Por favor, mãe. A Lisa receitou-me morfina para quando isso começar a acontecer.

- Morfina? - a palavra tremeu na boca da mãe e ficou a oscilar no espaço entre as duas.

- Parece que a morfina alivia o desconforto da falta de ar. Age sobre o aparelho respiratório e desacelera a respiração. A Lisa diz que a sua capacidade é fantástica para acabar com a ansiedade, controlar o pânico e recuperar a calma. Mas chegará o momento em que a morfina estará na minha mesa-de-cabeceira e eu não poderei alcançá-la. Não serei capaz de medir a dose certa para acabar com o meu sofrimento.

Não poderei fazer o que tem de ser feito. Estás a perceber, mãe? Estás a perceber o que eu quero dizer?

- Não quero falar sobre esse assunto.

- Vinte comprimidos, mãe. Só preciso disso. Tens de os esmagar, misturá-los com água e dar-mos na boca. Em poucos minutos adormeço. Dez ou quinze minutos depois, entro em coma e não acordo mais. Em poucas horas, tudo estará terminado. Fácil. Sem dor. O meu sofrimento acaba.

- Não me peças para fazer isso.

- A quem mais posso pedir?

- Pede à Lisa. Pede ao Jake.

- Não posso pedir ao Jake porque é contra a lei. A lei é a vida dele. E não posso pedir à Lisa para arriscar a sua carreira. E com certeza que não vou pedir à Kim.

- Mas podes pedir à tua mãe.

- Não é fácil para mim, mãe. Quando foi a última vez que te pedi uma coisa?

- Sei que pensas que fui uma péssima mãe. Sei que pensas...

- Nada disso importa agora. Mãe, por favor, és a única pessoa a quem posso pedir isto. Fiquei semanas a pensar no assunto. E estou a pedir-te agora porque é muito provável que não o possa fazer quando chegar a hora. Só vou poder olhar para ti com "aqueles olhos".

- Isto não é justo. Não é justo.

- Não, não é. Nada disto é justo - concordou Mattie, segurando ainda os braços da cadeira da mãe, impedindo a sua fuga, apesar da mãe ter ficado imóvel. - Mas é assim. Por isso preciso que me jures que o farás por mim, mãe - disse Mattie. - Vais saber quando chegar a hora de eu partir. Vais saber quando será cruel manter-me viva e vais ajudar-me, mãe.

- Não posso.

- Por favor - insistiu Mattie, levantando a voz. - Se alguma vez gostaste de mim, promete que me vais ajudar.

Mattie olhou a mãe de frente, sem deixar que ela desviasse o seu olhar para o lado e se escondesse da escolha que tinha sido feita por ela. Em torno das duas os cães arfavam em uníssono, como se também aguardassem a decisão.

- Não sei se vou conseguir.

- Tens de conseguir.

Mattie viu os ombros da mãe baixarem, os olhos fitando o colo, numa aceitação silenciosa.

- Jura - insistiu Mattie. - Tens de me prometer.

- A mãe acenou com a cabeça.

- Prometo.

- E não podes contar nada disto ao Jake. Não podes contar.

- O que se passa? - perguntou Kim à porta.

Mattie voltou-se no sofá, desequilibrando-se e quase caiu no chão, Apoiou-se numa das mãos antes de se levantar.

- Há quanto tempo estavas aí?

- Ouvi-te gritar com a avó Viv.

- Eu não estava a gritar.

- Pareceu-me que sim - Kim entrou devagar na sala, com o cãozinho adormecido nos braços.

- Sabes que a tua mãe se entusiasma com as coisas - disse avó Viv.

- Entusiasmou-se com o quê?

- com o teu novo cãozinho, claro - respondeu Mattie, indo para perto de Kim. - Posso pegar-lhe ao colo?

- Tens de ter muito cuidado - avisou Kim, olhando apreensiva para a mãe e para a avó enquanto depositava o cãozito nas mãos trémulas de Mattie.

Surpreendida, Mattie descobriu que o cãozinho era muito macio e muito quente e

levantou-o até junto do rosto, passando-o suavemente pela sua pele, com as mãos a tremer visivelmente.

- Não vais deixar cair o cão, pois não? - perguntou Kim.

- Acho que é melhor pegares-lhe - Mattie devolveu o cãozinho às mãos aflitas da filha. Esta olhou para a mãe, viu-lhe as faces vermelhas no rosto pálido, como se tivesse levado uma bofetada. - Penso que devemos ir embora.

- Eu não vou - anunciou Kim.

- Como assim?

- Quem não vai onde? - quis saber Jake quando entrou na sala e olhou para Mattie e para a mãe, e depois de novo para Mattie, perguntando-lhe com os olhos se estava tudo bem.

Mattie disse que sim com a cabeça e tentou sorrir.

- vou ficar aqui esta noite - anunciou Kim. - Não quero sair de perto do George. Posso ficar contigo, avó Viv?

- Se os teus pais deixarem - foi o que Mattie ouviu a mãe dizer, numa voz monótona e estranha.

- É claro que deixamos - respondeu Mattie, admirando subitamente a sua filha única. - És uma menina amorosa - disse-lhe quando saiu minutos depois, dando-lhe um beijo no rosto desconfiado. Compreendia que a sua decisão de ficar era também por não querer deixar a avó sozinha, além de não se afastar do seu novo cãozinho.

- Já sou uma menina de dezasseis anos - disse Kim, fazendo uma mesura estudada.

- Toma cuidado onde pões os pés - avisou Viv quando Jake segurou o braço de Mattie e a guiou até ao carro. - Ainda há muito gelo por aí.

- Eu depois telefono-te, mãe - disse Mattie.

A mãe acenou-lhe com a cabeça, com um bando de cães a ladrarem-lhe aos pés. Depois fechou a porta.

- Então, que tal foi?

- Pior do que eu pensava - disse Mattie a Jake.

- É tua mãe, Mattie. Gosta de ti.

Mattie tocou na mão de Jake, sabendo como era difícil ele dizer aquilo. Os dois sabiam que nem sempre as mães amavam os filhos.

- À sua maneira, claro que gosta - reconheceu Mattie, encostando-se no banco e fechando os olhos, enquanto Jake fazia marcha-atrás para a Hudson Avenue.

Mattie tentava recordar a expressão petrificada da mãe enquanto lhe revelava a sua doença. Iria mesmo ajudá-la? Seria razoável esperar que ela estivesse a seu lado na morte, como jamais estivera na vida? Teria sido razoável fazer-lhe um tal pedido? Mattie abanou com a cabeça, determinada a não insistir numa coisa que estava fora do seu controlo.

- Apetece-te ir ao cinema? - perguntou Jake.

- Eu estou um pouco cansada. Importavas-te se fôssemos para casa?

- Não, tudo bem. Como quiseres.

Mattie sorriu, ainda de olhos fechados. Como quiseres. Quantas vezes tinha ouvido o marido dizer-lhe aquilo naquelas últimas seis semanas? Está a esforçar-se muito, pensou. Todas as noites chegava a casa à hora do jantar, trabalhava no escritório sempre que possível, saía com ela para fazer as compras e tratar de outras coisas aos fins-de-semana, via televisão a seu lado, na cama e até lhe entregava o comando. Quando não estava a trabalhar, estava ao lado dela. Quando estava ao lado dela, estava a segurar-lhe na mão, tocava-lhe nas coxas, e quando faziam amor, o que acontecia várias vezes por semana, era tão bom como sempre fora. Seria que ele imaginava Honey quando lhe acariciava a cabeça?, interrogou-se Mattie. Seria que eram os seios de Honey que ele chupava, as pernas de Honey que ele separava quando a penetrava? Mattie afastou rapidamente a imagem indesejada. Tanto ? quanto sabia, Jake não tinha visto Honey. Afinal de contas, o dia ? tinha vinte e quatro horas. A energia das pessoas também era limitada. Mesmo assim, querer é poder. Não era isso que dizia o velho ditado? Querer é poder, repetiu Mattie mentalmente, perguntando a si própria porque razão as pessoas criticariam as frases feitas. Estas proporcionavam uma tranquilidade enorme. Falavam de previsibilidade, de familiaridade, de permanência. Quanto mais ténue a sua saúde, mais Mattie apreciava as verdades fáceis e as generalidades abrangentes. O amor faz girar o mundo; o amor tudo conquista; o amor é melhor na segunda vez.

Só que nunca houvera uma primeira vez.

- E se fôssemos ao supermercado comprar dois bifes? - perguntou Jake. - Deves lembrar-te que faço uns bifes maravilhosos.

- Seria óptimo - Mattie ficou maravilhada com o entusiasmo na voz do marido.

Jake teria dado um excelente actor, pensou ela, logo concluindo que provocar emoções num tribunal provavelmente não era tão diferente de provocar emoções num palco. Ou provocar emoções num quarto.

O carro parou de repente, Mattie abriu os olhos e viu que estavam diante de um supermercado na North Avenue.

- Volto imediatamente - disse Jake, já fora do carro.

- vou contigo.

Nessa mesma altura já ele estava junto a ela, a abrir a porta, ajudando-a a sair do carro, acompanhando-a até dentro da loja bem iluminada.

- Por aqui - disse Jake, guiando Mattie pela secção de verduras e frutas, passando pelos corredores cheios de enlatados e caixas de cereais, sumos de frutas e toalhas de papel, indo na direcção da enorme secção de carnes ao fundo da loja. Os movimentos decididos e os passos seguros de Jake indicaram a Mattie que ele já ali tinha estado. com Honey?, interrogou-se, procurando esconder a súbita tristeza com um sorriso.

- Parece que conheces bem o lugar - comentou ela, apesar de se esforçar ao máximo para ficar calada.

- Todos os supermercados são iguais, não são? - disse ele tranquilamente, pegando nalguns bifes, examinando-os mais de perto através do invólucro de plástico bem esticado, devolvendo-os à prateleira e escolhendo outros.

- Que tal estes? - Mattie pegou em dois bifes. - Parecem-me bastante bons. - Ia oferecer os bifes para Jake examinar quando um tremor repentino, como um pequeno terramoto, se apossou do seu braço, lançando-o no ar como se não pesasse, como se já não estivesse ligado ao seu corpo. Os bifes saltaram-lhe da mão e atravessaram o corredor, quase atingindo outra pessoa e fazendo cair um expositor de queijos exóticos num contentor que estava perto.

- Mas que...? - exclamou a senhora, olhando furiosa para Mattie.

- Oh, meu Deus - gritou Mattie, escondendo as mãos sob as axilas, sentindo-se mal disposta e prestes a desmaiar, com o pânico a crescer-lhe dentro das entranhas, ameaçando explodir. Estava a acontecer de novo. Como tinha acontecido na cozinha em casa da mãe. Só que já não estava na cozinha da casa da mãe. Estava num lugar público. Como podia fazer aquilo a Jake? Como podia embaraçá-lo mais uma vez, provocando uma cena em público? Não tinha coragem de olhar para ele. Não suportaria o olhar horrorizado e de desprezo que sabia ir encontrar no seu rosto.

Então outro bife saiu a voar pelo corredor. E mais um.

Mattie olhou imediatamente para o marido, inclinado sobre a secção de carnes, a juntar mais pacotes, com um sorriso diabólico de orelha a orelha.

- Oh, meu Deus, o que é que estás a fazer? - perguntou Mattie, sem saber se havia de rir ou de chorar, vendo Jake lançar mais bifes pelo corredor do supermercado.

- Isto é divertido - disse ele, atirando mais dois. - Vá. Agora é a tua vez.

A mulher correu para se proteger, quando Jake entregou outro bife a Mattie.

Antes de ter tempo para pensar, Mattie lançou o pacote de carne por cima do ombro e ouviu o barulho que ele fez quando aterrou atrás dela. Jake fez a mesma coisa com uma rajada de costeletas de carneiro. Quando o gerente chegou com o segurança, toda a secção de carnes estava espalhada pelo chão e Mattie e Jake estavam demasiado fracos de tanto rir para dar explicações ou pedir desculpas.

 

- PENSO QUE QUERO OUTRA BEBIDA - JAKE OLHOU EM VOLTA do antigo restaurante italiano conhecido como Great Impasta, fazendo sinal ao atarefado empregado de mesa para que lhe trouxesse mais uma taça de vinho tinto. O concorrido restaurante ficava na East Chestnut Street, a norte da Water Tower Place e a poucos quarteirões do escritório dele, e era o lugar preferido de muitos advogados da firma, dois dos quais, reparou Jake, jantavam com as respectivas esposas num canto menos iluminado do salão. Até aquele momento não o tinham visto, e Jake dava graças a Deus por isso. Eram duas pessoas de quem não gostava - em privado chamava-lhes TweedleDumb e Tweedle-Dumber - e além do mais já tinha tido emoções suficientes naquele dia. Reflectiu de novo sobre que estranha força se apoderara dele no supermercado, resolvendo não analisar demais o que fora simplesmente um acto espontâneo. Só que Jake Hart era tudo menos uma pessoa espontânea. Honey dizia que até os seus improvisos eram cuidadosamente pesquisados e ensaiados de antemão. Honey, pensou, fechando os olhos, consternado, lembrando-se que não lhe tinha telefonado durante todo o dia, sabendo que ela ficaria desiludida com a situação, com o rumo que as coisas tomavam, com ele. (Já estava a ouvi-la dizer: "Só precisas de um minuto para pegares um telefone. Olha, Jason, não acho que estou a pedir muito.")

Jason menino mau, Jason menino mau, Jason menino mau!

Jason menino mau, Jason menino mau, Jason menino mau.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou Mattie.

Jake abriu os olhos e viu a mulher com quem estava casado havia dezasseis anos, do outro lado da toalha de quadrados vermelhos e brancos. Não parecia muito mais velha do que no dia em que se tinham casado, pensou, observando que a vela no meio da mesa criava

 

1 Personagens de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll [N.T.]

 

um brilho quente na pele pálida de Mattie. Tinha o cabelo um pouco mais comprido do que quando se conheceram, e perdera um pouco de peso nos últimos meses, o que lhe tornara mais fino o rosto naturalmente oval, mas continuava uma linda mulher, provavelmente uma das mais lindas que Jake já vira.

- Acabei de me lembrar de que me esqueci do nosso aniversário de casamento - disse ele, descobrindo que era verdade. - Doze de Janeiro não foi?

Mattie sorriu.

- Mais ou menos. Ele riu-se.

- Desculpa.

- Não faz mal. Hoje já me compensaste - esboçou um largo sorriso. - Foi a primeira vez que fui expulsa de um supermercado.

- Tenho de admitir que foi muito divertido.

Riram-se os dois e uma gargalhada fez eco na outra, os dois sons sobrepondo-se, misturando-se, criando uma certa harmonia.

- Esse restaurante é bom - disse Mattie, olhando em volta. - Adoro as uvas de plástico e as velhas garrafas de vinho. É uma mudança agradável do visual de alta tecnologia que, hoje em dia, se vê por toda parte.

- Este lugar existe há séculos - disse Jake. - A comida é maravilhosa.

- Pois bem, estou louca para experimentar. De repente descobri que estou cheia de fome.

Jake olhou para o relógio de pulso. Quase sete e meia. O serviço estava muito lento naquela noite. Havia quase quarenta minutos que tinham feito o pedido - massa cabelo de anjo com molho de marisco para Mattie, ravioli de beterraba e salada Caprese para Jake. Jake já tinha bebido duas taças de vinho. Devia ter pedido uma garrafa, pensou, apesar de ser pouco próprio pedir uma garrafa inteira de vinho quando só ele bebia. Mattie estava a beber água mineral, o que seria provavelmente boa ideia. Tinha sido um dia cansativo para ela. Estendeu o braço, segurou-lhe a mão e sentiu o tremor já seu conhecido.

- Estou bem, Jake - disse ela procurando tranquilizá-lo. Ele sorriu. Não seria ele que deveria tranquilizá-la?

- Não me contaste como foi a entrevista com a Noa; - disse Mattie.

- Meu Deus, aquilo - Jake abanou com a cabeça. - Foi uma desgraça.

- Uma desgraça? Como assim?

Jake agitou as mãos diante do rosto como se quisesse espantar uma lembrança desagradável.

- A Miss Isbister...

- Quem?

- Wisbister.

- Como?

De repente os dois desataram a rir, mas Jake percebeu, pelo olhar confuso de Mattie, que ela não sabia de quê.

- A jornalista em questão - explicou Jake dando uma gargalhada ao recordar-se da imagem da repórter atónita, toda atrapalhada com o seu gravador, enquanto ele a expulsava da sala - estava interessada num ângulo mais pessoal do que o que eu estava disposto a oferecer.

Mattie inclinou a cabeça para um lado.

- Pessoal como?

- Fez-me perguntas sobre os meus pais, os meus irmãos - disse Jake, e a imagem de Alana Isbister deu lugar aos rostos tristes dos seus irmãos, Luke e Nicholas. Tentou afastá-los, mas não conseguiu.

O empregado de mesa aproximou-se com o copo de vinho de Jake.

- Este é por conta da casa - disse, quando Jake estendeu a mão para pegar no copo - com as nossas sinceras desculpas pelo atraso. Estamos a ter algumas dificuldades na cozinha, mas já se estão a resolver, e os pedidos dos senhores não demoram.

- Não há problema - disse Jake, erguendo o copo num brinde brincalhão, vendo o reflexo dos irmãos no líquido vermelho-escuro. - Obrigado.

- Pás de problème - repetiu Mattie baixinho em francês. - Mera.

- Não é justo. Estiveste a estudar.

- Estudo sempre que posso. Nem acredito que nós vamos mesmo.

- Pode acreditar, minha senhora. Está tudo confirmado. Tudo pago adiantado. Dentro de cinco semanas estaremos a caminho de Paris, França.

- Pareces-me animado.

- Claro que estou animado - disse Jake, percebendo que era verdade. Havia tanto tempo que fingia querer fazer a viagem que o desejo se tinha tornado realidade. E ninguém ficara mais surpreendido do que ele próprio com esse facto inesperado. - O meu irmão Luke falava sempre em ir para a Europa - disse, sem saber porquê.

- Para algum lugar especial? - perguntou Mattie.

- Que me lembre, não. Costumava falar em viajar à boleia de uma ponta à outra do continente.

O que se estaria a passar com ele? Não teria já conseguido esquecer o passado? Porque estaria então a voltar a ele? Era claro que os acontecimentos daquela tarde tinham sido perturbadores, e o incidente no supermercado, associado a uns copos de bom vinho tinto, tinham abalado o seu equilíbrio normal, soltando-lhe a língua. Jake levou o copo à boca e bebeu um longo gole. Podia muito bem soltar-se um pouco mais, pensou, enquanto Luke lhe piscava o olho do fundo do copo.

- Fala comigo, Jake - encorajou-o Mattie suavemente. - Conta-me do Luke.

Jake sentiu um aperto imediato no coração, como se este estivesse preso num anzol e alguém o fosse puxar, debatendo-se num protesto inútil, para fora do peito. Olhou para o canto do restaurante, onde Tweedle Dum e Tweedle Dumber riam despreocupados com as esposas. Uma das mulheres dos Tweedle viu Jake a olhar para eles e segredou qualquer coisa ao marido, que se voltou, reconheceu Jake e rapidamente segredou ao parceiro. Logo a seguir os quatro Tweedles sorriram e acenaram-lhe do outro lado da sala. Jake retribuiu educadamente os sorrisos e imitou a vivacidade exagerada dos acenos.

- A primeira lembrança que tenho é do meu irmão Luke a gritar - disse por entredentes, voltando a prestar atenção só a Mattie. - Raios, fora ele a enveredar por aquele caminho. Podia muito bem ir até ao fim.

- Por que é que ele estava a gritar?

- A minha mãe batia-lhe - Jake encolheu os ombros. A vulgar maneira de proceder, dizia o movimento.

O rosto de Mattie entristeceu-se.

- Que idade tinha ele?

- Quatro... cinco... seis... sete... dezassete - recitou Jake. - Os gritos misturaram-se algum tempo. Ela estava sempre a bater-lhe.

- Isso é terrível - os olhos de Mattie estavam rasos de lágrimas. - Ele nunca se voltou contra ela?

- Nunca - repetiu Jake. - Nem mesmo quando já era maior que ela. Nem mesmo quando um bom safanão poderia ter mandado a bruxa malvada para o outro mundo.

- E o teu pai?

Jake viu o pai na poltrona castanha diante da lareira na sala de estar, o rosto escondido atrás do jornal omnipresente que segurava, o papel fino tão protector, tão repelente, como o escudo de uma armadura pesada.

- Nunca fez nada. Ficava sentado a ler a porcaria do jornal, Quando as coisas pioravam muito ele largava o jornal e saía de casa.

- Nunca tentou impedi-la?

- Tinha coisas mais importantes a fazer do que ser um pai para seus filhos - Jake fez uma pausa e olhou directamente para Mattie - Como eu.

- Tu não és como ele, Jake.

- Ah, não? Onde é que eu estava enquanto a Kim estava a crescer?

- Estavas lá.

Jake fez um gesto de aborrecimento.

- Eu saía de manhã, antes da Kim acordar, e normalmente quando regressava já ela estava a dormir. Quando é que eu estive lá para a ver?

- Estás agora.

- Agora é tarde de mais.

- Não é tarde de mais.

- Ela odeia-me.

- Ela gosta de ti - Mattie estendeu o braço por cima da mesa e pegou na mão de Jake. - Não desistas dela, Jake. Vai precisar muito de ti daqui para a frente. Vai precisar do pai. Uma rapariga precisa sempre do pai - sussurrou Mattie, lembrando-se da tarde em que telefonara para Santa Fé para comunicar ao pai que ele tinha uma neta, e a informaram de que Richard Gill tinha morrido de um súbito ataque do coração três meses antes. - Tu és um bom pai, Jake - disse Mattie. - Tenho-te visto com ela. És um pai maravilhoso.

Jake tentava sorrir, repuxando os lábios, mas o sorriso esmorecia-se-lhe de tanto esforço, e desapareceu, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe assomavam aos olhos. Sentiu o braço a tremer e já não sabia se o tremor era de Mattie ou dele mesmo.

- Sou uma decepção, Mattie. Fui uma decepção a minha vida inteira. A minha mãe sabia disso. Reconheceu-o desde o primeiro dia. Se estivesse aqui agora, tenho certeza de que ela to diria.

- Por que é que eu daria ouvidos a qualquer coisa que essa mulher horrível pudesse dizer? - perguntou Mattie com veemência. - E tu também, porquê?

- Não conheces a história toda.

- Eu sei que adoravas o teu irmão.

Jake bebeu outro longo gole de vinho e esvaziou o copo. Um leve zumbido instalou-se-lhe no cimo da espinha, separando-lhe um pouco o pescoço dos ombros, de forma que parecia que a cabeça estava suspensa, a flutuar. Imaginou Luke a flutuar com ele, um rapaz alto e magro, nunca muito à vontade consigo mesmo. Sempre muito calado. Muito sensível.

- Por vários motivos era como se eu fosse o primogénito, não Luke - disse Jake, traduzindo os pensamentos em palavras que lhe deslizavam com uma facilidade surpreendente. - Era eu que instigava, organizava, sabia tudo, e que cuidava de tudo. Ele era o sonhador, o que falava de viajar à boleia pela Europa, de fazer parte de uma banda de rock and roll...

Mattie acenou com a cabeça, atenta, vendo a alma de Jake através do azul deliberadamente opaco dos seus olhos. Ele tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Não queria que ninguém visse a sua alma. Era um lugar escuro e maligno que não compartilhava com ninguém. Por isso surpreendeu-se com o som da sua voz que continuava a falar, como se possuísse vontade própria.

- Quando eu tinha a idade da Kim - ouviu-se Jake dizer, com a voz sobrepondo-se ao zumbido que agora lhe rodeava os ouvidos - os meus pais alugaram uma cabana no lago Michigan por duas semanas. Era um lugar muito isolado, havia apenas algumas cabanas na área. Luke tinha acabado de fazer dezoito anos. Nicholas tinha catorze. Nick era muito solitário, mesmo naquela época, e desaparecia logo, de manhã cedo. Só o víamos de novo antes do anoitecer. Por isso Luke e eu estávamos sempre juntos.

"No início correu tudo bem. O tempo estava bom, íamos nadar, passeávamos de canoa, jogávamos basebol. O meu pai sentava-se no cais e lia o seu jornal. A minha mãe ficava a tomar banhos de sol. Mas depois começou a chover, e acho que choveu três dias seguidos. Não nos perturbou, mas a minha mãe ficou louca. Ainda lhe consigo ouvir os gritos. Não gastámos este dinheiro todo para ficar sentados dentro da porcaria de uma cabana durante todo o dia! Então esbofeteava quem estivesse mais perto. Normalmente era Luke. Larga esse livro! Pareces um maricas!

Jake abanou a cabeça, tentando apagar aquela lembrança desagradável.

- De qualquer modo, num daqueles dias chuvosos Luke e eu estávamos sentados na cozinha, a jogar Monopólio, e a minha mãe que estava aborrecida e irritada, começou a implicar com o Luke, a gracejar porque ele não conseguia vencer o irmão mais novo num simples jogo, com as palavras mais horríveis que sempre lhe saíam da boca. E, como sempre, Luke ficava sentado a ouvir tudo, à espera que a tempestade passasse. Em geral ela perdia a força algum tempo depois, mas estivera a beber, e estava zangada porque o meu pai tinha ido à cidade. Ao ver que Luke não reagia, agarrou nos montinhos das notas que estavam em cima da mesa e atirou-os ao ar. Luke não se mexeu, deixou-se ficar sentado a olhar para mim, estagnado, com aquela expressão que fazíamos um ao outro quando as coisas não corriam bem. Era como que um sinal nosso que indicava que tínhamos tudo sob controlo. Coisa que, na verdade, não tínhamos.

- O que é que aconteceu?

- Ela começou a chamar maricas ao Luke bem como todos os outros insultos horríveis de que se conseguiu lembrar. Eu disse-lhe que se calasse, o que normalmente teria desviado para mim a sua raiva, pelo menos por alguns minutos, mas dessa vez ela ignorou o que eu lhe disse. Isto é, a sua raiva crescia. Espalhou os cartões, os dados e as notas do jogo por toda a parte. Finalmente agarrou no tabuleiro e bateu com ele na cabeça do Luke.

"Nenhuma reacção. Nem sequer levantou a mão para se proteger da pancada. Limitou-se a olhar para mim da mesma maneira. E a minha mãe viu, e é evidente que ficou ainda mais furiosa. Então agarrou numa garrafa de ketchup que estava em cima da bacia e atirou-lha à cabeça.

- Meu Deus.

Jake continuava com os seus pensamentos como se estivesse a assistir a um filme na televisão, narrando à medida que as sequências iam passando.

- A garrafa bateu nele e caiu no chão. Havia ketchup por toda a parte. A minha mãe berrava com Luke, dizendo para ele limpar. E Luke levantou-se da mesa muito lentamente, e eu pensei, é agora, que ele vai matá-la. Ele vai matá-la.

"Mas, em vez disso, agarrou simplesmente numas toalhas de papel e começou a limpar a imundície. E só terminou quando acabou de apanhar todos os pedacinhos de vidro, e todas as gotinhas de ketchup do chão, da mesa e das paredes. A minha mãe ria-se sempre a chamar-lhe maricas. E ele continuava a olhar para mim com aquela cara, e eu sabia que esperava que eu retribuísse, mas não pude. Estava tão desgostoso com ele, tinha tanta vergonha dele, sentia tanta raiva dele, por não a ter matado, que pensei que ia explodir. Queres saber o que fiz?

Mattie não disse nada, ficou a olhar para Jake com aqueles maravilhosos olhos azuis, olhos que diziam que estava tudo bem, que compreendia. Mesmo que ele não compreendesse.

- Chamei-lhe maricas e saí a correr da cozinha.

Mattie não pestanejou uma só vez, nem quando as lágrimas lhe começaram a escorrer pelo rosto.

- A minha mãe lançou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, - Jake continuava a ouvir o horrível som da sua traição ecoando através da gargalhada vitoriosa da mãe. - Saí a correr no meio daquela chuva terrível, e continuei a correr até as minhas pernas não aguentarem mais. Então escondi-me na floresta até deixar de chover e ser de noite. Quando cheguei à cabana, todos dormiam. Entrei no quarto do Luke para lhe pedir desculpas, para dizer que não era dele que eu sentia raiva, não era dele que eu sentia desprezo, nem vergonha. Era de mim. Por não a ter matado eu mesmo.

- Mas ele não estava lá.

Sentei-me à espera dele, mas ele não voltou.

Jake susteve a respiração e soprou o ar com um som dorido.

- No dia seguinte descobrimos que ele tinha apanhado uma boleia até à cidade, que se tinha embriagado, que tinha roubado um barco e que chocara contra um pontão. Morreu nesse mesmo dia. Nunca soubemos se foi um acidente ou não.

- Oh, meu Deus, Jake, sinto muito.

- Casaste-te com uma boa pessoa, não achas?

- Só tinhas dezasseis anos, Jake.

- Já tinha idade suficiente para saber que não podia ter feito aquilo.

- Não podias prever.

- Ele está morto - disse Jake simplesmente. - Isso sei eu.

- Mattie secou as lágrimas dos olhos.

- E o Nicholas?

Jake lembrou-se do adolescente de olhar triste e com borbulhas que só tinha quinze anos.

- Nick reagiu começando a beber, a drogar-se, abandonou os estudos. Teve alguns problemas com a polícia, passou algum tempo preso, saiu da cidade e desapareceu da face da terra há dez anos. Não faço a mínima ideia onde possa estar agora.

- Alguma vez o tentaste encontrar?

- Jake abanou a cabeça.

- Para quê?

- Paz de espírito - disse ela simplesmente.

- Achas que mereço paz de espírito?

- Acho que mereces - respondeu ela.

Jake sentiu uma nova onda de lágrimas a marejarem-lhe os olhos. Mattie teria sido sempre tão compreensiva? ficou a pensar, olhando em volta à procura do empregado de mesa. Ele não tinha dito que a comida iria chegar em breve? Que diabos estava a acontecer? Que dificuldade podiam ter para preparar dois pratos de massa?

- O meu pai mudou-se para a casa de uma das suas namoradas pouco tempo depois da morte de Luke - continuou Jake espontaneamente. - Morreu de cancro uns anos mais tarde. A minha mãe afirmou que lhe tinha rogado uma praga, e não duvido nada, mas ele também lhe deve ter rogado uma, porque ela morreu com o mesmo cancro, no meu primeiro ano da faculdade de direito - Jake fez uma pausa e riu-se alto. É melhor do que chorar, pensou. - Pronto. Aí está - disse, com a sua melhor voz de advogado. - Toda a história sórdida.

- E andas a carregar com essa culpa todos estes anos...

- Culpa que eu mereço, não achas?

- Mattie abanou com a cabeça.

- Penso que a culpa é a perda de um tempo precioso.

Jake sentiu um vago princípio de raiva, mas não sabia de quê.

- O que sugeres que eu faça?

- Que esqueças a culpa - disse Mattie.

- Sem mais nem menos?

- A não ser que gostes de te torturar.

Jake sentiu a raiva abrir caminho até ao centro do seu cérebro, a perturbar o zumbido agradável que havia em torno dele, espalhando-o em todas as direcções.

- Pensas que gosto de sentir esta culpa?

- Mattie hesitou um pouco e abaixou os olhos.

- É possível que andes a usar essa sensação de culpa como forma de te agarrares ao Luke? - sugeriu ela em voz baixa.

- Isso é uma palermice - exclamou Jake, assustado, não apenas com Mattie, mas com a inesperada ferocidade das suas palavras. O que é que Mattie estaria a pensar? Que tipo de discurso simplista tipo New Age lhe estava a pregar? Que audácia! Morrer, ou não, não lhe dava esse direito? Quem pensava que era, um eminente psicólogo? Francamente. Quem pensava ela que era?

- Sinto muito - desculpou-se Mattie. - Não queria ofender-te. Só estava a tentar ajudar-te.

Jake viu a boca de Mattie contorcer-se em torno daquela estranha sequência de sons. Nesse mesmo momento esqueceu-se da sua raiva.

- Mattie, que se passa? Estás bem?

- F... foi... fO...

Jake percebeu o pânico crescente no olhar da esposa. Que diabos estava a acontecer? Não deveria ter gritado com ela. Merda. Aquilo era culpa sua.

- Queres beber água?

Mattie assentiu com a cabeça, pegando no copo de água que Jake lhe estendia, com uma mão que tremia tanto que Jake não soltava o copo. Bebeu um gole pequeno, devagar, e engoliu com todo o cuidado.

- Estou bem - disse, lentamente, depois do que pareceu uma eternidade.

Mas a aparência dela não estava nada boa, Jake pensou. Tinha o rosto afogueado e parecia assustada, os olhos eram de uma mulher apavorada, enfrentando um assaltante.

- Queres ir-te embora?

Ela fez que sim com a cabeça, sem falar.

O empregado de mesa aproximou-se com o jantar deles.

- Sinto muito, mas não podemos ficar.

Jake pôs uma nota de cem dólares em cima do prato de ravioli fumegante, depois ajudou Mattie a levantar-se da cadeira e rapidamente conduziu-a até à porta do restaurante. O empregado ficou a observar os dois, atordoado, e em silêncio.

- Jake ... Jake!

Jake reconheceu as vozes dos sócios a chamarem o seu nome em uníssono, ouviu os seus passos atrás de si enquanto entregava ao gerente o cartão dos casacos.

- Certamente que não se ia embora sem dizer nada.

Jake virou-se de frente para os Tweedles, cujos nomes eram Dave Corber e Alan Peters.

- Desculpem. A minha mulher não está a sentir-se muito bem.

Os dois homens olharam desconfiados para Mattie. Certamente estavam a lembrar-se do seu escândalo infame no tribunal no Outono passado, concluiu Jake, e pensou nos boatos que circularam na firma desde aquela época sobre o estado do seu casamento.

- Não creio que já tivéssemos o prazer - Dave Corber segurou na mão de Mattie apesar desta estar a tentar enfiar o braço na manga do casaco.

Mattie esboçou um sorriso tímido.

- Ma... Mor... Mana...

- Desculpe, não ouvi bem.

- Temos de ir - disse Jake, passando o braço pelos ombros de Mattie, sentindo que ela tremia sobre o pesado casaco de lã, enquanto a levava para a porta.

- Então, a mulher tem problemas com a bebida - ouviu Jake sussurrar Alan Peters, num tom suficientemente alto para ser ouvido.

Antes de se poder controlar, antes mesmo de compreender o que estava a fazer, Jake deu meia volta e agarrou o atónito colega pelo pescoço, erguendo-lhe do chão as pernas curtas, levantando-o no ar, vendo os olhos claros do homem ficarem esbugalhados de terror, o rosto redondo vermelho com a súbita falta de oxigénio.

- O que foi que disse? - perguntou Jake, e todos à sua volta engoliram em seco e se levantaram das cadeiras. - Você é um imbecil? Vou matá-lo, seu filho-da-mãe!

- Socorro! Socorro! - gritava Alan Peters, e sua voz mais parecia um coaxar apavorado.

- Jake, o que está a fazer? Pelo amor de Deus, ponha o homem no chão - berrou Dave Corber.

- Chamem a polícia.

Jake sentiu as mãos nas suas costas, do lado do corpo, nos braços, todas a tentar fazer com que afrouxasse o aperto no pescoço curto e gordo de Alan Peters.

- Jake, ele não consegue respirar. Ponha-o no chão. O que está a tentar fazer? - disse Dave Corber, com o rosto quase tão vermelho quanto o do colega.

E então ouviu, a voz baixa, trémula, depois mais clara, mais forte, flutuando acima do caos.

- Jake - implorava Mattie. - Jake, larga-o. Por favor, põe-o no chão.

Jake soltou o pescoço do homem nesse mesmo instante, deixando-o cair no chão de madeira. Ignorando os gritos ininterruptos das mulheres dos Tweedle e as exclamações de espanto das outras pessoas, Jake deu meia volta, tomou Mattie nos braços e saiu a correr com ela pela porta do restaurante.

 

- JAKE, PODE DISPOR DE ALGUNS MINUTOS?- Era mais uma ordem do que um pedido, e Jake sabia-o.

- Certamente.

- No meu gabinete - disse Frank Richardson, desligando o telefone antes de Jake ter tempo de perguntar qual era o motivo da reunião.

Não que não soubesse do que se tratava. Na firma todos o sabiam. Todos no edifício o sabiam. Raios, naquela altura todos os profissionais de direito teriam sem dúvida conhecimento do incidente ocorrido no Great Impasta na última sexta-feira. Um advogado a atacar outro no meio de um restaurante italiano muito popular - estava no topo da lista, juntamente com o maior tiroteio da história dos estados Unidos. Especialmente porque um dos advogados era Jake Hart, o Grande Defensor em pessoa.

Corriam boatos de que a esposa dele também estava envolvida. Estava tão embriagada que tinha a fala arrastada, diziam. Sim senhor, completamente ininteligível, nem conseguia pronunciar o próprio nome. Não era para admirar. Não tinha sido ela a responsável por aquela explosão de riso no tribunal no Outono passado? E também não se tinha embebedado, provocando um acidente de automóvel e ido parar ao hospital? Alguma coisa desse género. E Jake não abandonara a esposa logo depois disso? Não fora morar com uma namorada? Não tinha sempre traído a mulher? Talvez por isso tivessem discutido no Great Impasta. Talvez por isso ela bebesse tanto. Pobre Alan Peters, que só queria cumprimentar Jake. Não sabem? Podiam até ver-se as marcas dos dedos de Jake no pescoço dele. O pobre homem ficara completamente coberto de hematomas. Nem conseguira falar durante uma semana inteira.

Jake largou o folheto que estava a ler sobre o Hotel Danielle, que ficava no coração do Quartier Latin em Paris, sobre a pequena pilha de brochuras de turismo que vinha acumulando havia semanas, e afastou a cadeira da secretária. Levantou-se, abotoou o casaco do fato verde -azeitona, alisou as inexistentes rugas da gravata estampada amarelo e verde e respirou fundo, antes de abrir a porta da sua sala e sair para o corredor.

- vou estar no gabinete do Frank Richardson se precisar de falar comigo - informou à secretária.

- Tem uma cliente marcada para daqui a vinte minutos. Cynthia Broome - lembrou ela, respondendo ao ponto de interrogação no rosto de Jake.

- Eu conheço-a? - porque seria que não se conseguia lembrar de nada? De certo já teriam tido aquela conversa pelo menos uma vez naquele dia.

- É a primeira vez.

Jake fez que sim com a cabeça, num misto de alívio e agitação, e foi andando pelo longo corredor, ignorando as suaves paisagens e naturezas mortas floridas penduradas nas paredes, abanando a cabeça. Desde que começara a acompanhar Mattie nas missões às várias galerias, aprendera a distinguir a arte verdadeira da arte meramente decorativa. Dantes não pensava muito em arte. A falar verdade, sempre considerara esse estudo uma perda de tempo, uma distracção das coisas que eram realmente importantes. Que diferença havia entre o impressionismo e o expressionismo, o classicismo e o cubismo, entre Monet e Mondrian, Dali e Degas?

Jake soltou uma gargalhada. Uma enorme diferença, acabara por descobrir, consciente de que os seus movimentos estavam a ser monitorizados por, pelo menos, uma dúzia de pares de olhos. "Para onde estão a olhar?", sentiu-se tentado a berrar para as secretárias que via à sua passagem. "Trabalhem que é para isso que são pagas." Mas não disse nada, ignorando os seus sorrisos maliciosos e murmúrios pouco discretos e, desaparecendo da vista, caminhando até ao fim do corredor creme.

- Cynthia Broome - repetiu ele em voz alta diversas vezes, tentando voltar ao caminho da lei, perguntando a si próprio quem seria ela e porque desejava vê-lo. Mas era melhor que não fosse jornalista, pensou, esperando que o seu caso fosse simples, qualquer coisa que não exigisse muita concentração da sua parte. Durante toda aquela semana tivera problemas para se concentrar. Provavelmente porque estava à espera que a polícia invadisse o seu gabinete a qualquer momento, lhe lesse os seus direitos, e lhe desse voz de prisão por atacar um colega da sua estimada profissão.

- Devias ligar-lhe para lhe pedires desculpa - insistira Mattie durante toda a semana, com a sua voz já normal.

- De maneira nenhuma - insistia Jake obstinadamente.

De maneira nenhuma pediria desculpas àquele boçal com cabeça de ovo que lhe insultara a esposa. O idiota tinha sido muito esperto em ficar toda a semana longe dele. Se o encontrasse por acaso no corredor, Jake não sabia bem o que seria capaz de lhe fazer. A sensação daquele pescoço gordo nas suas mãos coléricas tinha sido muito boa.

Não que Jake não se tivesse desculpado bastante naqueles últimos dias.

- Desculpa ter sido tão idiota - repetira ele a Mattie inúmeras vezes.

- Sei que exagerei - respondera ela logo de seguida. - Não devia ter agido como uma psicóloga amadora.

- Disseste que eu estava a usar a minha sensação de culpa para me agarrar ao Luke. É isso mesmo que pensas?

- Não sei - admitiu Mattie.

O que quereria ela dizer com aquele "não sei"? Jake deteve-se. Como é que Mattie lhe podia fazer aquilo? Abrir uma enorme lata de vermes e depois largá-la simplesmente, deixando-os sair da confortável escuridão para o perigo da luz do dia.

Jake desviou-se rapidamente e escondeu-se na casa de banho dos homens ali perto, satisfeito por a encontrar vazia. As mulheres estavam sempre à procura de significados mais profundos onde não havia nenhum, pensou ele, olhando furioso para a sua imagem no grande espelho por cima do lavatório de mármore cor-de-rosa, surpreendido por ver que parecia muito composto, muito tranquilo. Pergunte-se a alguém por que é que gosta de desporto, e ele responderá que é porque gosta de desporto. Aprofunda-se mais o assunto e encontrar-se-á alguém que realmente goste de desporto. Mas as mulheres não aceitam isso. Era por isso, segundo Mattie, que não bastava ele ter aquela sensação de culpa por ter abandonado o irmão, e aquele abandono ter contribuído para a morte dele. Não, o verdadeiro motivo de ter guardado aquela culpa todos aqueles anos era por ser uma forma de não deixar o facto no passado, por ser a sua maneira de manter todas as outras emoções à distância. Desde que se sentisse culpado, não precisava de sentir mais nada. Afinal, não havia assim tanto espaço. E a sensação de culpa ocupava muito espaço.

Jake salpicou o rosto com água fria. Mattie não tinha dito nada a respeito de ele usar a culpa como forma de evitar outras emoções.

Agora quem é que estava a agir como psicólogo amador?, perguntou-se, raivoso, abrindo a porta da casa de banho com mais força do que pretendia. A porta bateu na parede do corredor e, por pouco, não atingiu um especialista em impostos que ia a entrar.

- Desculpe - disse Jake para o assustado advogado, que recuou rapidamente para lhe sair do caminho.

Estou a ficar muito bom em pedidos de desculpas, pensou Jake.

O gabinete de Frank Richardson ocupava o canto sudeste do trigésimo segundo andar, e era sem dúvida a sala maior e mais desejada da firma, o que era apropriado, considerando que ele fora, um dos fundadores. A sua secretária, Myra King, que com sessenta e sete anos tinha quase a mesma idade do patrão, já estava de pé na frente da porta, à espera de Jake para o fazer entrar.

- Myra - disse Jake, passando por ela e entrando no gabinete de Frank Richardson.

- Senhor Hart - respondeu Myra, fechando a porta depois de ele entrar e voltando para a segurança da sua mesa.

Frank Richardson, de pé, perto da janela, fingia estar interessado na rua lá em baixo. Era um homem de estatura e peso médio, com cabelo ralo e grisalho precariamente preso às têmporas. O perfil não era marcante, a testa demasiado pronunciada, o queixo demasiado fraco, o nariz demasiado achatado. No entanto, tudo aquilo mudava quando virava o rosto para quem falava com ele. Era nesse momento que se sentia toda a força da inteligência quase opressiva que havia por trás daqueles olhos castanhos escuros, olhos que transformavam o resto das suas feições em pormenores desnecessários.

- Jake - disse Frank Richardson calorosamente, apontando para uma das três enormes poltronas vermelhas que se agrupavam em torno de uma pequena mesa de vidro num canto da sala. No outro canto, ficava uma grande mesa, em forma de quarto crescente, com o tampo cheio de fotografias dos filhos e netos de Frank. A parede atrás da secretária estava cheia de diplomas e homenagens emolduradas. Lembrando-se da exposição que tinha visto com Mattie na semana anterior, Jake pensou surpreendido que naquele espaço teria ficado melhor um quadro muito grande, ousado e dramático, de um artista como Tony Shermari. Ou talvez uma das fotografias exóticas de Raphael Goldchain, uma coisa que desse colorido e ousadia à parede monótona. Jake sentou-se numa das poltronas e não se surpreendeu por esta não ser nada confortável. Sente-se, mas não demore muito, diziam as cadeiras. Frank Richardson instalou-se a seu lado.

- Soube que recusou o caso Maclean - disse Frank, sem perder tempo com preliminares.

Obviamente um homem que não acreditava em preliminares, pensou Jake, lembrando-se da noite passada na cama, a língua de Mattie deslizar em volta do seu pénis. Mattie dizia-lhe que queria experimentar tudo.

- Não vou ficar debilitada - dissera ela. - Não me trates como se eu fosse uma boneca de porcelana.

- Jake - disse Frank, perfurando o cérebro de Jake com os olhos. - O caso Maclean - repetiu. - Importa-se de me dizer por que é que recusou?

Jake empurrou a língua de Mattie para o recesso da sua mente, para bem longe do olhar penetrante de Frank.

- O rapaz é culpado.

Frank Richardson parecia atónito.

- E depois?

- Penso que não lhe posso oferecer a melhor defesa possível, à qual tem direito, por lei - disse Jake secamente.

- Permita-me lembrar que o pai do rapaz é o Thomas Maclean, fundador e director executivo das Lojas de Desconto Maclean, uma das cadeias que mais crescem no estado. Ele vale milhões para esta firma, sem mencionar que este caso é bem da sua área. Será notícia de primeira página durante meses.

- Eddy Maclean e dois dos seus selvagens amigos violaram uma rapariga de quinze anos.

- De acordo com o pai do rapaz, a rapariga parece ter vinte anos e consentiu em participar...

- Está a dizer-me que ela consentiu em ser violada por um bando e sodomizada? Frank, eu tenho uma filha de quinze anos.

- A sua filha não convidou um rapaz que tinha acabado de conhecer numa festa para o quarto mais próximo - Frank Richardson pôs as mãos longas e elegantes no colo. - Qual é a graça? - quis ele saber quando Jake tentou conter um sorriso.

- Nenhuma, não senhor - Jake quase soltou uma gargalhada. Quando fora a última vez que chamara senhor a alguém? E por que é que estava a sorrir, meu Deus? Procurou não pensar na descrição que Mattie fizera de um rapaz magro a sair nu do quarto da filha.

- Olhe, Jake, eu posso compreender a sua sensibilidade nesta área, mas sabe que este caso está feito à sua medida. Pode vencê-lo a dormir.

- Já passei o caso ao Taupin.

- Maclean quer que seja você.

- Não estou interessado.

Frank Richardson levantou-se, voltou para perto da janela fingiu mais uma vez

concentrar-se na rua lá em baixo.

- Como é que vão as coisas lá em casa, Jake?

Então o preâmbulo Maclean era afinal um preliminar, maravilhou-se Jake.

- Muito bem - disse Jake novamente, perfilando-se como se se tivesse alistado no exército.

- A sua mulher...

Jake sentiu contraírem-se-lhe os músculos da garganta.

- Muito bem - repetiu novamente embora precisasse forçar as palavras entre as suas renitentes cordas vocais.

- Naturalmente fui informado do infeliz episódio da noite de sexta-feira.

- Tenho a certeza de que o Alan Peters mal pode esperar para lhe dar todos os pormenores escabrosos.

- Na verdade não foi ele - disse Frank Richardson, deixando Jake surpreendido. - Foi Dave Corber que me contou o que aconteceu. Alan não disse nada. Soube que ele resolveu não dar importância ao facto.

Sem querer, Jake deu um suspiro de alívio.

- Parece que ele pensa que você anda sob uma considerável tensão, que tem problemas em sua casa, que obviamente nós desconhecemos.

Jake pôs-se de pé.

- Gosto de privacidade quanto à minha vida pessoal, se não se importa. Realmente ninguém tem nada a ver com isso...

- Tudo tem a ver comigo quando afecta esta firma - Frank Richardson apontou para as cadeiras. - Por favor, sente-se. Ainda não terminei.

- com todo o respeito... - disse Jake.

- Poupe o seu respeito - interrompeu Frank. - Aprendi que sempre que alguém diz "com todo o respeito" não demonstra respeito algum.

- Olhe, Frank - disse Jake, baixando a voz e suavizando a sua posição. - Fiz um disparate na sexta-feira passada, perdi a cabeça, reagi mal. Garanto que não vai acontecer de novo.

Deveria contar a Frank a verdade sobre a doença de Mattie?, interrogou-se, indeciso. Mattie tinha contado a todas as amigas, à maioria das pessoas ligadas ao seu trabalho, a alguns clientes. Até àquele momento não tinha revelado nada a ninguém. Havia meses que suportava aquele peso enorme e estava a começar a fraquejar com tanto esforço. Aquilo afectava-lhe a capacidade de julgamento, o trabalho, provavelmente até a carreira. Talvez o ajudasse desabafar com Frank.

- Jan Stephens contou-me que você recusou a oferta dela para participar no Comité de Desenvolvimento Associado - continuou Frank Richardson, sem tomar conhecimento do monólogo interior de Jake.

- Realmente, Frank, agora não tenho tempo.

- Ah, não? Pois eu achava que você tinha bastante tempo livre, pois nos últimos seis meses as suas horas extraordinárias diminuíram consideravelmente, raramente está aqui antes das nove da manhã, e muitas vezes vai-se embora antes das quatro, sem mencionar que há meses que ninguém o vê no escritório aos fins-de-semana. Será que estou enganado?

- Tenho trabalhado no meu escritório, em casa.

- Também soube que está a pensar tirar umas férias em Abril continuou Frank Richardson, ignorando a explicação de Jake e franzindo a testa. - Gostaria que as adiasse.

- Adiasse? Porquê?

- Sem dúvida já sabe que em Abril haverá uma convenção internacional de advogados na cidade e que a Richardson, Buckley & Lang concordou em servir como uma das anfitriãs. Todos os associados deverão desempenhar papéis muito activos.

- Mas eu nunca me envolvi...

- Penso que seja esta a altura certa, não acha?

- com todo o respeito... - começou Jake por dizer, parou e recomeçou. - Temo que não possa mudar os meus planos, Frank.

- Pode dizer-me por quê?

- Não tiro férias desde que entrei para a firma - disse Jake, na esperança de que isso bastasse para satisfazer o sócio mais velho, mas sabendo que não ia ser assim. - Prometi, Frank. Não me peça para quebrar essa promessa.

- Temo que seja exactamente o que lhe estou a pedir que faça.

- Está a colocar-me numa posição impossível.

- Você é muito bom em posições impossíveis - lembrou Frank, caminhando até à porta da sala, pronto a abri-la. - Estamos prestes a aceitá-lo como sócio proprietário, Jake. Tenho certeza de que não vai querer comprometer isso. Converse outra vez com o Maclean. Sei que ele está ansioso para o ter ao lado do filho.

- Frank... - dizia Jake, enquanto Frank abria a porta. - Preciso de ter uma conversa consigo.

Frank Richardson fechou a porta imediatamente e inclinou a cabeça meio desconfiado, indicando que estava a ouvir.

- Trata-se da minha mulher - Jake fez uma pausa e deu um suspiro. - Está muito doente.

- Já me constou - admitiu Frank, corando de constrangimento, com rugas profundas sobre os seus penetrantes olhos castanhos. - O alcoolismo é uma doença insidiosa. A sua mulher merece a sua simpatia e o seu apoio. Mas não deve deixar que ela lhe arruine a carreira Há clínicas muito boas onde ela se pode tratar.

- Ela está a morrer, Frank - Jake obrigou raivosamente as palavras a saírem-lhe pela garganta.

- Não estou a perceber.

- Ela não tem problemas com o álcool. Tem uma doença chamada esclerose lateral amiotrófica. A doença de Lou Gehrig.

- Oh, meu Deus!

- Não sabemos quanto tempo tem... - Jake sentiu a voz embargada, como um gatilho a ser puxado, ouviu as palavras a explodir, voando-lhe da boca como estilhaços, ao mesmo tempo que uma represa de lágrimas, como gotas de sangue, lhe deslizava pelo rosto. O que é que estava a acontecer com ele, meu Deus? - Desculpe-me - disse Jake a chorar, vendo o olhar de horror de Frank Richardson enquanto tentava estancar o rio de lágrimas inconvenientes. Mas as lágrimas continuaram a deslizar, não queriam parar, por mais que ele se esforçasse para as estancar. - Não sei o que está a acontecer comigo... - Estaria mesmo a desmoronar-se diante do sócio mais antigo da firma? O que estava a acontecer com ele? O que teria acontecido ao seu autocontrole? Porque estaria tão perturbado?

Era verdade que Mattie e ele estavam mais unidos naqueles últimos meses, desde que ele concordara em ficar com ela. Mas era só isso... uma encenação. Estava apenas a tentar tornar mais agradáveis os últimos meses de uma mulher condenada à morte. Não amava verdadeiramente Mattie, Deus do céu. O que lhe estaria a acontecer? Como poderia descontrolar-se daquela maneira em público? Como poderia pôr em risco toda a sua carreira?

- Olhe, quanto à conferência em Abril... - continuou Jake a dizer.

- Tenho a certeza de que poderemos tratar das coisas de outra maneira Jake, mesmo se tivermos de deixar a sociedade para o ano que vem.

- Sei que posso reformular os meus planos - pigarreou Jake e tossiu. - Mattie e eu podemos fazer a nossa viagem em Maio ou Junho.

- Claro, isso seria maravilhoso - concordou Frank, relaxando os músculos do rosto, mas sempre com os olhos alerta para qualquer recaída de Jake.

- E falarei com Thomas Maclean. Tenho a certeza de que podemos chegar a uma solução.

- Ele está à espera que você o procure - disse Frank, como se nunca tivesse duvidado disso.

Jake respirou fundo e esboçou um sorriso forçado.

- Obrigado - disse Jake, mas não sabia ao certo o que estava a agradecer. Provavelmente por Frank lhe ter dado a perspectiva correcta das coisas, pensou, saindo da sala.

- Obrigado por ter vindo aqui - disse Frank. - Por favor, diga à sua esposa que desejamos que tudo lhe corra pelo melhor.

 

- Merda, maldito filho da mãe, merda! - resmungou Jake depois de passar pela secretária.

Que diabos ia fazer agora? Como iria dizer a Mattie que a viagem estava cancelada, mesmo temporariamente? Haveria alguma coisa que lhe pudesse dizer para atenuar o golpe, para diminuir a sua decepção? O que lhe poderia dizer? Que estava fora do seu controle? Que havia circunstâncias atenuantes? Que nada os impediria de viajar em Maio? Certamente um mês não faria tanta diferença. Certamente Mattie iria compreender a situação desagradável que ele enfrentava por causa dela. Não que tivesse sido intenção de Mattie prejudicar a sua carreira. Mas era exactamente isso que estava a acontecer. E só por ele ter concordado em participar naquela farsa de casamento não queria dizer que tivesse concordado em desistir da sua carreira pois tinha trabalhado muito durante aqueles anos. Já era tempo de recuperar a perspectiva das coisas, tempo de pôr de novo a sua vida no caminho certo. A brincadeira tinha limites. com o tempo era preciso dar-se conta da realidade. Mattie teria simplesmente de entender.

- Cynthia Broome está à sua espera... - disse a secretária dele, seguindo Jake - no seu gabinete - continuou, enquanto uma mulher sorria para Jake, sentada na cadeira diante da mesa.

Jake sentiu o ar preso nos pulmões.

- Deseja mais uma chávena de café, Miss Broome? - perguntou a secretária.

- Não, obrigada.

- Estou aqui na sala ao lado se mudar de ideias - a secretária de Jake saiu imediatamente fechando a porta da sala atrás de si.

Jake olhou para a mulher pequena que tinha na frente da enorme secretária e ela

levantou-se da cadeira, a cabeleira ruiva de caracóis envolvendo-lhe o rosto redondo, a gola da blusa de seda branca metade para dentro, metade para fora do casaco azul-escuro. O que estaria ela a fazer ali?

- A planear uma viagem? - perguntou Honey, apontando para os folhetos sobre a mesa de Jake. - Ouvi falar do Danielle Hotel. Dizem que é sensacional.

- Honey, que diabo se passa? O que estás aqui a fazer?

O rosto de Honey revelou rapidamente doses iguais de constrangimento, vergonha, atrevimento e esperança.

- Queria ver-te. Não me consegui lembrar de nenhuma outra maneira.

- Quem é a Cynthia Broome?

- É a heroína do meu livro.

Jake sorriu, aproximou-se dela, parou e ficou a oscilar no espaço entre os dois.

- Desculpa não te ter ligado a semana toda.

- Não tem importância.

- Isto aqui está uma loucura.

- Entendo. Sei que estás muito ocupado.

- E tu como é que estás? - perguntou Jake.

- Bem. E tu?

- Bem.

Honey riu, um pouco envergonhada.

- Olha para isto. Daqui a pouco estamos a falar sobre o tempo.

- Honey...

- Jason - disse Honey a sorrir, um pouco inibida. Jake fez uma careta quando ouviu o seu nome.

- Tu estás óptima.

- Tenho ido ao ginásio todos os dias, na esperança de te encontrar.

- Não vou ao ginásio há muito tempo. Lamento muito.

- Não lamentes nada. Acho que perdi uns quilos - Honey tentou rir-se, mas o som fraco mais pareceu um grito abafado. - Tenho sentido a tua falta, Jason.

- Também senti a tua falta.

- De verdade?

Teria sentido? Perguntou Jake a si mesmo. A verdade era que tinha legado Honey para um canto tão distante da sua mente que mal pensara nela durante toda a semana.

Honey afastou do rosto o rebelde cabelo ruivo.

- Estou a pensar em cortá-lo - disse Honey.

- Não faças isso.

- Não sei. Acho que é altura de mudar alguma coisa.

- Adoro o teu cabelo.

- E eu adoro-te - disse Honey, com os olhos cheios de lágrimas. - Bolas, jurei a mim mesma que não ia fazer isto - secou as lágrimas, respirou fundo, esboçou o seu sorriso malicioso e enfiou um dedo atrevido no nariz. - Que tal assim? - perguntou.

- Muito melhor.

Os dois riram baixinho.

- Sabia-me bem um abraço - disse ela.

- Honey...

- Um pequenino. Só para ter certeza de que não és um produto da minha imaginação, como a Cynthia Broome.

Que mal podia fazer? pensou Jake, tomando-a nos braços.

- Oh, meu Deus, senti tanto a falta disto - sussurrou Honey, erguendo o rosto para ele, enquanto os seus lábios imploravam para ser beijados.

Jake descobriu que Honey não se encaixava bem nos seus braços. Era baixa, e Mattie era alta. Redonda onde Mattie era firme. Gorducha onde Mattie era magra. Tinha perdido o hábito de a abraçar. Já não estava habituado a ter de entortar o corpo para se adaptar ao dela. Mattie era uma combinação muito mais natural, pensou, puxando Honey para mais perto, como se quisesse espantar Mattie da sua mente.

- Amo-te - repetiu Honey.

Jake sabia que ela estava à espera de ouvir a mesma coisa, que aquela declaração de amor era, na verdade, um pedido para ouvir outra da sua parte. Por que é que não dizia? Amava Honey, não amava? Não tinha deixado a mulher e a filha por ela? Só tinha voltado para casa porque Mattie estava gravemente doente. Só tinha concordado em deixar de ver Honey para fazer Mattie feliz, porque não vendo uma podia concentrar-se na outra. Tinha intenções de voltar para Honey assim que aquela terrível confusão terminasse. Não tinha?

Não tinha? O que estava a acontecer com ele? Além de quase arruinar a sua carreira, se não tomasse cuidado ia também acabar por perder Honey, e tudo porque perigosamente quase tinha deixado que uma brincadeira lhe escapasse ao controle. Assim como a conversa com Frank tinha sido uma espécie de aviso, também a vinda inesperada de Honey como Cynthia Broome era uma lembrança de tudo o que poderia perder se se deixasse dominar pela longa encenação.

Olhou para Honey, que olhava para ele aflita, com os olhos castanhos salpicados de dourado, ainda molhados de lágrimas. Ela fora tão paciente, tão compreensiva. E era tão encantadora, pensou ele, beijando com força os lábios dela, apertando-lhe as nádegas e imaginando a carne macia sob o tecido resistente dos jeans.

- Oh, Jason. Jason - gemia ela, enfiando-lhe as mãos dentro do casaco, puxando-lhe a camisa. - Fecha a porta à chave - pediu Honey, tirando a blusa de dentro das calças, pondo as mãos dele nos seus seios, beijando-o sem parar, a boca faminta ameaçando engoli-lo por inteiro. - Fecha a porta, Jason - pediu ela, levando-o para o sofá no canto da sala.

Seria tão fácil, pensou Jake. Fechar a porta, dizer à secretária que não queria ser incomodado. Que não estava para ninguém. Para os seus sócios, para os seus clientes, para a sua mulher.

A sua mulher, pensou Jake enquanto a língua de Honey deslizava entre os seus lábios entreabertos. Poderia mesmo fazer aquilo a Mattie? Já não bastava estar prestes a romper a sua promessa em relação à viagem a Paris? Seria que também tinha de lhe magoar o coração?

Meu Deus, Mattie, nunca tive a intenção de te decepcionar.

Não me importo para as tuas intenções! O que quero é a tua paixão. O que quero é a tua lealdade. O que eu quero é o teu amor.

Como é que ela iria descobrir? ficou Jake a pensar, beijando as lágrimas dos olhos de Honey, chegando-se depois para trás e vendo os olhos de Mattie olhando-o do rosto de Honey.

Mattie saberia, apercebeu-se ele. Ela saberia, como sempre soube.

- Não posso - disse Jake, deixando os braços penderem-lhe impotentes do lado do corpo.

- Jason, por favor...

- Não posso. Sinto muito.

Honey não disse nada. Os seus lábios tremiam quando olhou em redor da sala.

Jake inclinou o corpo para a frente e afundou o rosto na cabeleira ruiva e macia de Honey, na textura do seu cabelo forte, tão diferente do cabelo de Mattie, que era mais fino e mais sedoso. O cheiro inconfundível de cinzeiro cheio de cigarros encheu-lhe as narinas.

- Pensei que tinhas deixado de fumar - disse Jake em voz baixa.

- Só consigo desistir de algumas coisas - disse Honey, a sua voz "uma mistura aflita de resignação e lágrimas. - Além do mais, li um relatório De duzentas pessoas, cem eram fumadores e cem não fumadores. E sabes que mais? Morreram todas.

Jake sorriu. Era bom vê-la. Tinha realmente sentido a falta dela.

- Por falar em mortos, como está a Mattie? - Honey soltou um grito sufocado, fechou os olhos, abanou a cabeça e ergueu as mãos no ar, frustrada. - Não acredito que tenha dito uma coisa destas. Por favor, perdoa-me, Jason. Não queria dizer isto. Não sei o que me deu. Sinto muito. Meu Deus, que coisa horrível. Como é que pude dizer uma coisa tão horrível?

- Não há problema - Jake tentou acalmá-la, mas a sua cabeça estava a rodopiar. Como pudera ela dizer uma coisa tão insensível? - Sei que não tinhas intenção.

- Sabes?

- Sei.

- Óptimo. Porque para ser franca - admitiu Honey, com os grandes olhos castanhos cheios de lágrimas - não tenho assim tanta certeza.

- O quê?

- Estou assustada, Jason. Alguma coisa horrível está a acontecer comigo.

- Não estou a entender.

- Nem eu. E é isso que me assusta.

- Sentes-te bem?

- Isto não tem nada a ver com a minha saúde - explicou Honey, irritada. - Nem toda a gente sofre de uma doença fatal, Jason. Meu Deus, lá vou eu de novo. Ouve o que te estou a dizer. Estou a transformar-me numa espécie de monstro.

- Não és um monstro.

- Ah, não? E o que é que eu sou? Passo o tempo todo à espera da morte de uma pessoa, a rezar para que alguém morra.

Jake não disse nada. O que poderia dizer?

- Tens ideia do que é ir para a cama todas as noites, à espera que tu me telefones de manhã para dizer que a Mattie morreu? Meu Deus, às vezes odeio-me.

- Sinto muito.

- Tenho tanto medo de te perder.

- Não me vais perder - disse Jake, surpreendido com a falta de convicção das suas palavras.

- Já te estou a perder - Honey voltou para junto da secretária e pegou nos folhetos de Paris. - Abril em Paris. Que ideia tão romântica. Quando é que estavas a pensar contar-me? Ou ias simplesmente enviar-me um postal?

- Era apenas uma ideia. E afinal, parece que já nem vamos.

- Honey deixou os folhetos caírem sobre a mesa.

- Estou com ciúmes, Jason. Na verdade estou com ciúmes de uma mulher que está a morrer.

- Não há motivo para teres ciúmes. Sabes por que é que voltei para casa. Tu concordaste.

- Concordei em ficar em segundo plano. Nunca concordei em desaparecer - Honey abanou a cabeça, e os caracóis ruivos voaram em volta do seu rosto. - Penso que já não posso fazê-lo.

- Por favor, Honey. Aguenta só um pouco mais.

- Dormes com ela?

- O quê?

- Se dormes com a tua mulher?

Jake olhou em seu redor, indefeso e uma súbita dor de cabeça começou a nascer-lhe nas têmporas. Aquilo era pior que a discussão no restaurante, pior do que o encontro com Frank.

- Não posso abandoná-la, Honey. Sabes disso.

- Não é isso que estou a perguntar, Jason.

- Bem sei.

Jake ficou à espera que Honey voltasse a perguntar, mas ela não disse nada. Em vez disso, lançou-lhe aquele seu sorriso maroto, secou as lágrimas dos olhos e enfiou a blusa dentro das calças. Endireitou os ombros, respirou fundo e foi para a porta.

- Honey... - chamou ele.

Mas ela já se tinha ido embora.

 

MATTIE ESTAVA SENTADA À MESA DA COZINHA, com UM livro de francês aberto na sua frente, olhando fixamente para a porta de vidro de correr que dava para o quintal. Percebeu que já estava sentada assim havia mais de meia hora, a olhar para os dois relógios do outro lado da cozinha. Era incrível o tempo que conseguia ficar sem fazer absolutamente nada - sem se mover, sem falar, quase sem respirar. Não era assim tão mau, concluiu, tentando projectar-se num futuro em que essa imobilidade já não seria voluntária, quando fosse forçada a passar horas, dias, semanas, meses, possivelmente até anos, incapaz de se mexer, incapaz de falar, quase incapaz de respirar.

- Oh, meu Deus - suspirou, com o pânico a crescer dentro do peito.

Jamais deixaria que isso acontecesse.

Mas facto inevitável era que cada dia ficava mais fraca, como se os seus músculos sofressem um lento esvaziar, como pneus cheios de minúsculos pregos, e cada dia perdia mais energia ao longo da estrada. Quando andava, arrastava as pernas como se carregasse pesadas vigas de aço. Quanto aos dedos, havia dias em que Mattie parecia não ter força nem para cerrar os punhos. Às vezes tinha dificuldade em engolir e em recuperar o fôlego. Cada vez mais as panelas lhe caíam das mãos que não cooperavam, os botões ficavam abertos, as frases inacabadas, a comida intacta.

Procurava manter-se optimista, sempre a lembrar-se dos recentes milagres da medicina. com a manipulação genética, um cientista em Montreal afirmara ser capaz de retardar o progresso da doença de Lou Gehrig em sessenta e cinco por cento dos ratos de laboratório. Agora que tinham os genes alvo, os cientistas estavam a investigar drogas capazes de activar esses genes, para que eles produzissem mais proteína necessária para retardar a doença. Mas Mattie sabia que por mais depressa que os cientistas trabalhassem, chegariam tarde de mais, pelo menos para ela.

- Deixem-me ir apenas a Paris - disse baixinho, voltando a prestar atenção ao livro de francês sobre a mesa.

Como é que se iria arranjar em Paris? Perguntou a si própria e as páginas escaparam-lhe dos dedos para voltar à página um. Seria capaz de passear pelas encantadoras ruas empedradas do Quartier Latin? Como subiria os inúmeros degraus de Montmartre? Teria energia suficiente para os magníficos tesouros do Louvre, do Grand Palais, do Quai d'Orsay?

Afectá-la-iam os fusos horários? Seria vítima do desequilíbrio dos diferentes horários? E quanto à longa viagem de avião para lá? Lisa já tinha avisado que a mudança dos níveis de oxigenação dentro do avião poderia causar mais desconforto. Conseguiria aguentar?

Ia correr tudo bem, Mattie procurava tranquilizar-se. Jake tinha-lhe comprado uma bengala, e concordara em usar uma cadeira de rodas nos aeroportos, tanto em Chicago como em França. Tinha soníferos e Riluzole, e o seu leal frasco de morfina. Trataria de descansar quando estivesse cansada. Não ia ceder ao orgulho, deter-se-ia quando não pudesse mais. Talvez até arranjasse um daqueles triciclos motorizados dos quais Lisa tinha falado e utilizaria um para percorrer as ruas de Paris.

O telefone tocou.

Mattie ficou a pensar se deixaria o atendedor de chamadas encarregar-se mas resolveu que era melhor não, caso fosse Kim ou Jake. Ultimamente Mattie raramente via a filha. Quando Kim não estava na escola, estava em casa da avó, a cuidar do novo cãozinho até ele ter idade suficiente para ficar longe da mãe. Quanto a Jake... Mattie sabia que alguma coisa o perturbava nas últimas semanas, e ficava a imaginar se e quando ele lhe contaria o que se passava.

- É melhor atender - disse Mattie em voz alta, esforçando-se por ficar de pé e arrastando-se lentamente pela cozinha até ao telefone- ~ Está?

- Senhora Hart?

- Exactamente - a voz da mulher era-lhe desconhecida.

- Fala Ruth Kertzer, do gabinete de Tony Graham da Richardson, Buckley & Lang.

Mattie esforçou-se por alinhar na cabeça todos os nomes. Porque lhe telefonariam da firma do marido? Teria acontecido alguma coisa a Jake?

- O senhor Graham está encarregado de coordenar os jantares que alguns sócios oferecerão durante a convenção internacional de advogados em Chicago no mês que vem, e pediu-me para verificar algumas datas com a senhora.

- Desculpe? - de que diabos estava aquela mulher a falar? - Desculpe, mas não estou a entender.

- O senhor Graham achou que seria um gesto simpático oferecermos alguns jantares para doze ou catorze pessoas em casa dos sócios, em vez de uma reunião maior e mais formal num restaurante ou num hotel. Temos o nome do seu marido na lista de anfitriões de um desses jantares. É evidente que a firma cobrirá todas as despesas. O seu marido esqueceu-se de lhe falar do assunto?

Parece que sim, pensou Mattie, a imaginar se era por causa disto que Jake estava perturbado. Como é que ela iria arranjar-se com doze ou catorze pessoas estranhas dentro da sua casa? bom, desde que não tivesse de cozinhar, arranjaria maneira. Para falar verdade, sentia-se um pouco lisonjeada. No passado Jake sempre evitara levá-la a eventos da firma. O facto de ele achar que ela era capaz de lidar com um daquele porte naquele momento específico deixava Mattie contente, e até optimista.

- Exactamente quando vai tudo isso ter lugar?

- A convenção vai de catorze a vinte de Abril. As noites em questão são...

- Impossível. Estaremos de viagem desde o dia dez de Abril até ao dia vinte e um.

- Vão viajar? Mas o senhor Hart vai coordenar um dos seminários.

- O quê? - Mattie mordeu o lábio. - Não, isso é impossível.

- Falei com ele pessoalmente outro dia - disse Ruth Kertzer.

- bom, olhe, sei que deve haver algum mal entendido. Posso-lhe telefonar daqui a uns instantes?

- com certeza.

Mattie desligou o telefone sem se despedir. O que estaria a acontecer? Jake não tinha mencionado nada sobre a convenção em Abril, e estavam a planear activamente a viagem para Paris havia meses. Devia ser um engano. Não te preocupes, pensou ela, sentindo o coração acelerado. A estúpida da mulher provavelmente confundiu as datas. Decerto a convenção era só em Maio, ou talvez até em Abril do próximo ano. Não costumavam planear aquelas coisas com anos de antecedência? Jake não ia de maneira nenhuma quebrar a promessa de a acompanhar a Paris, especialmente agora que faltavam apenas algumas semanas. Não, Jake jamais lhe faria uma coisa daquelas.

O antigo Jake, talvez. O Jake que era frio, distante e fechado dava mais valor ao trabalho do que à família, que dava mais valor ao trabalho do que a qualquer outra coisa. Aquele Jake não daria qualquer importância a cancelar a viagem no último minuto. O antigo Jake nem pensaria duas vezes antes de a magoar ou de lhe estragar as férias. Mas aquele Jake tinha partido meses atrás. O Jake que ocupara o lugar dele era carinhoso, bom e sensível, um homem que prestava atenção ao que ela dizia, confiava nela, conversava e ria com ela. Jake Hart transformara-se num homem a quem Mattie podia confiar os seus sentimentos, um homem com quem podia contar, que estaria a seu lado quando precisasse dele. Um homem que ela podia amar.

Um homem que, segundo achava, era capaz de retribuir esse amor.

- Isto não pode ser - disse Mattie, pegando no telefone e usando as duas mãos para marcar os números da linha particular de Jake.

- Mattie, o que há? - respondeu Jake, sem dizer está.

Ela ouviu-lhe um sinal da antiga impaciência na voz e ficou a pensar se se estaria a deixar imaginar pela imaginação. Provavelmente tinha interrompido alguma coisa importante.

- Recebi um telefonema desconcertante - disse ela, resolvendo atirar-se de cabeça.

- Que tipo de telefonema? Da Lisa?

- Não, nada disso.

- Alguma coisa com a Kim? Um engano? O quê?

- Da Ruth Kertzer. - Silêncio.

- Ruth Kertzer, do gabinete do Tony Graham - esclareceu Mattie, apesar do silêncio insistente deixar bem claro que ele sabia exactamente quem ela era. O silêncio ficou tão pesado que Mattie sentiu que o podia segurar com as mãos.

- O que é que ela queria? - perguntou finalmente Jake.

- Pretendia acertar umas datas comigo.

- Datas? Para quê?

Ele parecia realmente confuso. Seria possível que afinal não soubesse de nada? Que tudo fosse mesmo um mal-entendido? Que Ruth Kertzer tivesse confundido as datas, os advogados?

- Parece que haverá uma grande convenção na cidade em Abril disse Mattie, preparada para soltar uma gargalhada com o marido por causa da incompetência da secretária. Mas enquanto falava, pôde sentir o rosto do marido perder a cor, e soube que Ruth Kertzer não tinha confundido nem as datas, nem os advogados. - Pelo que entendi vamos promover um dos jantares - adiantou Mattie em voz baixa, prendendo a respiração.

- Nada disso foi decidido ainda - foi a resposta nada satisfatória.

- A Ruth Kertzer acha que foi. Queres dizer-me o que está a acontecer, Jake?

- Olha, Mattie, é um pouco complicado. Podemos conversar sobre isto quando eu chegar a casa?

- Ela disse-me que tu vais orientar um dos seminários. - Silêncio.

- Vieram falar comigo.

- E tu aceitaste?

- Jake pigarreou.

- Não significa que vamos cancelar a tua viagem, adiamo-la só por umas duas semanas. Mattie, por favor, já estou atrasado para uma reunião. Podemos falar sobre isto quando eu chegar em casa? Prometo que vou esclarecer tudo.

Mattie mordeu o lábio com força.

- Claro. Conversamos quando chegares.

Esperou até a linha ficar muda antes de atirar com o telefone para o descanso, e viu horrorizada o plástico quebrar-se e o telefone a desmanchar-se, desfazendo-se em pedaços no chão.

- Maldito, filho da mãe! Não vou adiar a minha viagem. Nem por algumas semanas. Nem por alguns dias. vou para Paris na data marcada, com ou sem ti. Estás a entender? - Mattie verteu um rio de lágrimas amargas, de fúria. - Como podes fazer-me isto? - gemeu ela, com a respiração presa, subindo-lhe pelo peito numa série de espasmos curtos e doridos.

Mattie agarrou-se à bancada e tentou equilibrar-se. Não era bem não conseguir respirar, lembrou-se. Mas os músculos do seu peito estavam a ficar mais fracos, resultando numa respiração mais superficial, o que levava à falta de ar, e resultava em pânico. Mas tu estás bem. Está tudo bem.

- Fica calma - disse sufocada, com os olhos a tentarem ver a cozinha, observando as diversas superfícies como as bolas de um jogo de flippers.

Mattie pensou no pequeno frasco de morfina que estava guardado na casa de banho do andar de cima. Um comprimido pequeno, de cinco miligramas, era o que bastava para acabar com a ansiedade, controlar o pânico, recuperar a calma.

Vinte comprimidos seriam suficientes para lhe acabar com a respiração de uma vez por todas.

O que estava à espera? Paris? Que graça!

- Quem estou a querer enganar? - perguntou ela em voz alta com a respiração a voltar-lhe ao normal e o rosto molhado de suor.

Como poderia ir a qualquer lugar sozinha? Era uma fantasia estúpida, um jogo de faz-de-conta que tinha ido longe de mais. Jake certamente entrara no jogo porque imaginara que ela estaria fraca de mais ou já incapacitada nessa altura para sequer pensar em continuar com aquela ideia. Como poderia ter-se enganado a pensar que ele alguma vez tivera a intenção de cumprir a promessa? Tinha a própria vida para se preocupar, a namorada, a carreira, a porcaria dos jantares e dos seminários.

E Mattie tinha o quê? Uma vida de cadeira de rodas, tubos e estrangulamento lento.

O que é que estava à espera? Poderia realmente contar com a mãe para pôr fim ao seu sofrimento quando chegasse a hora? Quem sabe se a hora não seria exactamente aquela? Deixaria um bilhete a Kim, caso ela chegasse a casa antes de Jake, a dizer que estava a dormir, instruindo a filha para que não a perturbasse. Não deixaria um bilhete a Jake. Para quê?

- The time for hesitating's through, - cantarolou Mattie, caminhando lentamente para a escada. - Come on baby light my fire. Come on baby light my fire. Come on baby light my fire. Come on baby light my fire.

Mattie ainda estava a cantarolar quando chegou à casa de banho e abriu o armário de remédios. Continuou a cantarolar quando agarrou o pequeno frasco de morfina com as suas mãos trémulas. Encheu um copo de água, esvaziou o frasco na palma da mão, contou vinte comprimidos e enfiou-os a todos na boca de uma só vez.

 

- Bom-dia meus senhores, Miss Fontana - disse Jake, cumprimentando os três rapazes, os pais deles e os seus advogados, reunidos em volta da imponente mesa oval de reuniões que ocupava a maior parte da sala da direcção. De cada lado da mesa havia doze cadeiras com braços, de espaldar alto, de couro cor de ferrugem. Jake examinou os ocupantes das cadeiras de um lado da mesa: violador, pai, advogado, enumerou mentalmente. Depois fez a mesma coisa do outro lado: advogado, pai, violador. Havia uma certa simetria naquilo, pensou Jake, observando que só os Maclean se distanciaram dos outros presentes, o jovem Maclean sentado sozinho no extremo mais distante da mesa comprida e o pai de pé, na frente das imponentes janelas que davam para a Michigan Avenue. O dia estava lindo, ensolarado e claro. Um dia bonito demais para desperdiçar dentro de casa, pensou Jake inquieto, à imaginar como estaria o tempo em Paris. Sentou-se à cabeceira da mesa e fez um sinal para Thomas Maclean se juntar ao grupo.

- O senhor está atrasado - afirmou o Maclean pai, recusando o convite.

- Desculpe. Tive de atender um telefonema de última hora. Não tive possibilidades de o evitar - Jake esboçou um sorriso forçado. Porque estaria a desculpar-se? Não devia nenhuma explicação àquele homem. Estava lá, não estava? Não lhe bastaria? - Perdi alguma coisa?

- A festa só começa quando você aparece, Jake - disse Angela Fontana.

Era uma mulher impecavelmente vestida, de cabelo escuro puxado para trás e apanhado num rabo-de-cavalo, a boca larga que parecia rasgar o rosto estreito de um lado ao outro, mesmo em repouso. Jake imaginava que devia ter quarenta e tantos anos, assim como Keith Peacock, o outro advogado presente. Apesar do apelido, Keith tinha uma aparência pouco expressiva e um temperamento sério, embora aparentasse estar sempre a sorrir. Os dois advogados vinham de grandes firmas e tinham uma reputação exemplar. Normalmente Jake teria considerado interessante, até divertido, estar a trabalhar com eles, mas hoje estava mais do que levemente irritado com a presença dos dois. Como é que três dos melhores advogados da cidade podiam ser os representantes de rapazes tão inexperientes e desprezíveis?

Jake transferiu a atenção dos advogados para os clientes. Mike Hansen era um rapaz bonito, alto e magro como o seu advogado, só que o rosto dele, ao contrário do de Keith Peacock, parecia congelado com um permanente ar trocista. O cabelo castanho-escuro estava bem aparado, e vestia camisa e gravata por baixo do casaco de couro vermelho e branco. O casaco não combinava com as cadeiras, pensou Jake, desviando o olhar para Neil Pilcher, mais baixo e atarracado, apesar de também poder ser considerado bonito em circunstâncias mais amenas. Roía as unhas, nervoso, e de vez em quando olhava para Eddy Maclean, que fitava o espaço, preguiçoso, com um cigarro apagado pendurado nos dedos entediados.

 

1 Peacock significa pavão. [N.T.]

 

- Guarda essa porcaria - disse Thomas Maclean para o filho.

- Jake viu o rapaz esmagar naturalmente o cigarro na palma da mão, o tabaco escapando-se-lhe por entre os dedos e caindo no tampo de carvalho da mesa como pedaços secos de esterco.

- Este é Neil Pilcher - disse Angela Fontana, apresentando Jake ao seu cliente. - E este é o pai dele, Larry Pilcher.

Jake baixou a cabeça para o homem pálido, cujos olhos pareciam puxados pelo peso das bolsas por baixo deles. Jake gostaria de saber se as bolsas já existiam antes de o filho ter violado e sodomizado uma rapariga de quinze anos? Tentou não pensar em Kim, em como se sentiria se um dia fosse vítima de uma escória como aquela, em como desprezaria o seu pai por ficar com aquele caso.

- O meu trabalho não é fazer justiça - dissera-lhe Jake no dia em que ela fora assistir a um julgamento no tribunal. - A minha função é jogar de acordo com as regras.

Só que ultimamente havia momentos em que Jake já não tinha a certeza de quais eram as regras.

- Jake... - dizia Keith Peacock.

- Desculpe, o que foi?

- Estava a apresentar-lhe o pai de Mike, Lyle Hansen.

- Desculpe - disse Jake, olhando para o homem careca, com cara de bulldog, inclinado para a frente com os braços musculosos cruzados. - Penso que devemos começar.

Todos olharam para ele. Mostra-nos como és brilhante, gritavam todos os olhares.

Mostra-nos como inocentar três violadores culpados e nada arrependidos. Dá-nos uma estratégia e mostra-nos o caminho. Não importa se a rapariga que eles violaram tem a mesma idade da tua filha, ou que a tua filha te passe a odiar por defender os três. De qualquer maneira, vai odiar-te depois de desiludires a mãe dela. Quando faltares à tua promessa e partires o coração de Mattie. Merda, que diferença faz?, pensou Jake, soltando uma risada. Ela já te odeia.

- - Está a achar graça a alguma coisa? - perguntou Thomas Maclean.

- Jake pigarreou.

- Desculpe. Estava apenas a pensar numa coisa.

- Não quer partilhar os seus pensamentos connosco?

- Não, não quero - Jake voltou-se para Angela Fontana. - Angela, como vê o progresso deste caso?

- Acho que é bastante directo. A palavra de uma rapariga com um passado questionável contra a palavra de três rapazes honestos, cujas raízes se estendem até às primeiras famílias chegadas à América.

Pensei que você podia fazer as exposições inicial e final para o júri, eu podia ficar com o testemunho dos polícias e dos médicos, Keith poderia interrogar o especialista em medicina forense, e todos passaríamos pela rapariga.

- Mais ou menos como os rapazes fizeram - disse Jake.

- Como disse? - perguntou Thomas Maclean.

- Apenas humor de porta de cadeia - Jake observou os olhos arregalados de espanto de Angela, e o sorriso desaparecer de repente no rosto de Keith Peacock.

- Penso que não vejo nada engraçado, nem na observação, nem na situação.

Que filho da mãe pomposo e hipócrita, pensou Jake. Thomas Maclean não queria saber da pobre rapariga. Ele também não dava a importância ao seu próprio filho, a não ser até quando o comportamento dele pudesse provocar algum impacto na sua preciosa reputação. Na verdade, a única pessoa que realmente importava a Thomas Maclean era ele mesmo. Não se parece com alguém que conheces, Jake?

- Será que podemos marcar algumas datas? - perguntou Keith Peacock.

Ruth Kertzer telefonou, Jake ouvira Mattie dizer. Ela queria acertar comigo algumas datas.

Datas para quê?

- Tenho as tardes das próximas segunda e quarta livres disse Angela Fontana, verificando a sua agenda.

- Segunda-feira, não posso - disse Lyle Hansen.

Queres dizer-me o que está a acontecer, Jake? perguntara Mattie.

É um pouco complicado. Podemos conversar quando eu chegar em casa? Só que iriam conversar sobre o quê? Ele já tinha tomado a decisão. Não podia ir para Paris. Agora não. Não, se Frank Richardson tinha deixado perfeitamente claro que fazer aquela viagem significava adiar a sua escolha como sócio da firma, para não falar de toda a sua carreira. Não podia fazer isso. Mattie não tinha o direito de lhe pedir uma coisa daquelas.

Só que ela não tinha pedido. Ele oferecera-se, praticamente implorara para ir também. Ela concordara de má vontade, e ele tivera de batalhar para a convencer. Ele sabia como Mattie estava entusiasmada com a viagem, como a simples menção dela lhe mantinha o ânimo e lhe elevava as esperanças. Ele também sabia o quanto ela passara a depender dele nesses últimos meses, e compreendia que qualquer adiamento, por mais breve que fosse, seria tempo demais. Sabia que se não fossem em Abril, já não iriam, que mesmo que Mattie concordasse em adiar, jamais voltaria a confiar nele e ele não confiaria nele mesmo. Se uma coisa surgisse daquela vez, surgiria outra no futuro, Surgia sempre alguma coisa para os homens que punham os seus interesses diante dos interesses de qualquer outra pessoa. Para homens como Thomas Maclean. Para homens como Jason Hart.

Jason menino mau. Jason menino mau. Jason menino mau.

Jason menino mau, Jason menino mau, Jason menino mau.

Mas agora as coisas eram diferentes. Ele já não era o menino que a mãe programara. As suas prioridades tinham mudado. Jake tinha-se tornado um bom marido e um bom pai, fingindo sê-lo, e ficou surpreendido ao descobrir que gostava do homem que pretendia ser. Sentia-se bem nessa pele, seguro da sua decência. No fim, Jake compreendeu que a pessoa que mostramos ao mundo lá fora é, em geral, mais verdadeira do que a que vemos ao espelho todas as manhãs.

Nós somos o que fingimos ser.

E que merda, ele estava louco para acompanhar Mattie a Paris. Nem sabia quando, nesses últimos meses, no meio de tantos planos e livros de turismo, o fingimento tinha dado lugar ao entusiasmo genuíno. Estava então a preparar-se para abandonar os seus planos, abandonar tudo em que se tinha transformado, pelo prazer duvidoso de se tornar sócio de uma mera firma de advogados? Estava realmente a planear deixar Paris de lado para poder estar presente numa convenção de advogados mentalmente castrante em Chicago? Estaria disposto a perder o respeito da mulher e da filha para poder ganhar uma defesa imerecida no tribunal? Estaria disposto a correr o risco de perder tudo, inclusivamente ele mesmo?

- Jake...? - Angela Fontana olhava para ele, à espera de uma reacção. Obviamente tinha pedido a sua opinião e que esperava uma resposta.

- Desculpe - disse Jake outra vez.

Quantas vezes tinha dito aquilo depois de entrar naquela sala?

- Estamos a aborrecê-lo? - perguntou Eddy Maclean.

Jake olhou para Eddy Maclean, depois para o pai dele, para os outros rapazes, para os pais deles, para os respectivos advogados, depois de novo para Eddy Maclean.

- Para falar a verdade, estão sim - disse Jake, levantando-se da cadeira e indo para a porta.

- O quê? - ouviu Keith Peacock engasgar-se e a gargalhada atónita de Angela Fontana.

- Que diabos está a acontecer aqui? - quis saber Thomas Maclean, correndo em volta da mesa para se confrontar com Jake perto da porta. - Aonde pensa que você vai?

- vou para Paris - disse Jake, abrindo a porta e saindo para o corredor. - E o senhor - disse ele a sorrir - pode agarrar nesse miserável do seu filho e ir para o inferno.

- Mattie? - chamou Jake do hall. - Mattie? Mattie, onde estás? Mattie!

Mattie ouviu a voz como se fizesse parte de um sonho. Tentou ignorá-la, mandar a voz embora. Estava a dormir tão bem. Não queria ser incomodada por sonhos, lembranças, fantasmas e falsas imagens. Vai-te embora, balbuciou, e o único som que lhe escapou dos lábios foi um leve murmúrio.

- Mattie - ouviu ela novamente e a porta do quarto abriu-se. - Mattie?

- Mattie imaginou-se de pé diante do lavatório da casa de banho, a entornar os vinte comprimidos na palma da mão, como se fosse sal. Espreitou por entre os olhos semicerrados e viu o belo rosto de Jake a pairar sobre ela.

- Jake? O que fazes em casa tão cedo?

- Terminei por hoje - soltou uma gargalhada. - Na verdade, há uma boa hipótese de eu ter terminado de vez - outra gargalhada num som curto e meio alucinado.

Ela sentiu o gosto amargo dos comprimidos amontoados dos lados da boca, espalhados na língua, incomodando-a em baixo da língua, e levou o copo com água aos lábios.

- Jake, estás bem? - Mattie esforçou-se por se sentar.

- Nunca me senti melhor - foi a resposta imediata.

Ele inclinou o corpo e beijou Mattie suavemente na testa.

- Não estou a entender.

- Pois bem, vejamos. Há cerca de uma hora, disse a um cliente que fosse passear, disse à Jan Stephens que afinal de contas não ia poder participar no Comité de Desenvolvimento Associado, e informei a Ruth Kertzer que não ia fazer seminário nenhum, nem dar nenhum jantar, porque ia para Paris com a minha mulher.

Mattie ficou sem fala. Estava a ver-se na casa de banho com a boca cheia de comprimidos. Jake não ia decepcioná-la, disse ela para o rosto assustado no espelho. Não ia desapontá-la. E mesmo se isso acontecesse, descobriu naquele momento, endireitando os ombros decidida, não se ia simplesmente deitar e morrer. Pelo menos ainda não. Mattie viu a sua imagem cuspir os comprimidos no lavatório, observou enquanto serpenteavam pela taça de porcelana e desapareciam pelo ralo.

- Como é que se vão arranjar com o seminário e com o jantar? - perguntou Mattie. - Será que arranjam outra pessoa?

- Há sempre outra pessoa, Mattie.

- Como tu, não - sussurrou Mattie, tocando no rosto de Jake.

- Jake apertou-a nos braços, encostou-a na cabeceira da cama e fechou os olhos.

- Fala-me de Paris - pediu ele.

Mattie aconchegou-se ao lado do marido.

- bom, sabias que a maioria dos parisienses adora animais? - perguntou ela, e Jake começou a secar com beijos as lágrimas que rolavam livres pelo rosto de Mattie. - Que eles permitem a entrada de cães e gatos nos restaurantes, e às vezes até lhes arranjam cadeiras para que se sentem à mesa? Tenta imaginar estar sentado ao lado de um gato num restaurante de luxo? - Mattie riu e chorou ao mesmo tempo, as palavras colidindo com as lágrimas. - Mas por mais que amem os animais, não são tão loucos por turistas, especialmente os que não falam francês. O que não nos vai impedir de fazer todas as coisas turísticas - insistiu ela. - Quero subir à Torre Eiffel e ao Arco do Triunfo. Quero andar pelas ruas de Pigalle, passear de barco no Sena, todas estas coisas, Jake. E o Louvre, e o Quai d'Orsay. E os jardins do Luxemburgo. E a Notre Dame e o túmulo de Napoleão. Quero ver tudo - Mattie afastou-se um pouco para poder olhar Jake nos olhos. - E fiquei tão assustada, quando me disseste que não podias ir, porque descobri que por mais que eu quisesse conhecer Paris, não queria ir sem ti - fez uma pausa, a imaginar se teria falado de mais, e sem conseguir deixar de continuar a falar. - Não podia imaginar ver aquilo tudo sem ti.

Os olhos de Jake encheram-se de lágrimas.

- Eu nunca deixaria que fosses sem mim - disse ele simplesmente.

- Eu amo-te - disse Mattie, aconchegando-se outra vez nos braços dele.

Eu amo-te, ecoaram as paredes. Eu amo-te, eu amo-te. Eu amo-te. Eu amo-te, eu amo-te, eu amo-te.

 

POUCO DEPOIS DAS NOVE HORAS DA MANHÃ DO DIA 11 DE Abril, o táxi parou diante do hotel Danielle, na Rue Jacob, no coração da Rive Gaúche de Paris.

- Não é a cidade mais linda que já viste? - exclamou Mattie. Quantas vezes tinha perguntado aquilo desde que haviam saído do aeroporto?

- É certamente a cidade mais linda que já vi em toda a minha vida - concordou Jake.

Mattie soltou uma gargalhada. Mal acreditava que estava realmente em Paris. Meses a planear e a sonhar e, de repente, era realidade. E não tinha importância que estivesse exausta da viagem e cheia de fome porque tivera dificuldade para engolir o pedaço de carne passada de mais que lhe haviam dito ser um steak Diane.

- Ninguém consegue engolir comida de avião - garantiu Jake, devolvendo à hospedeira a bandeja intacta.

- Vamos? - perguntou Jake, ajudando Mattie a descer do apertado banco traseiro do pequeno carro francês, enquanto o motorista do táxi transportava as malas para o átrio art déco estilizado do encantador hotel antigo.

- Oh, Jake. É lindo. C'est magnifique - disse Mattie para a mulher exótica que estava atrás do balcão da recepção.

A mulher, cuja identificação dizia chamar-se Chloe Dorleac, tinha olhos cor de violeta, cabelo pesado e preto, e uma postura impecável. Olhou para Mattie como se olha para uma criança prestes a comportar-se mal, com cuidado e cepticismo, como se tivesse medo que esta começasse a dar saltos mortais pela sala. Não há perigo, pensou Mattie, apoiada na bengala.

- Bonjour, madame, monsieur. Posso ajudá-los?

- Como sabia que falamos inglês? - perguntou Mattie.

Chloe Dorleac sorriu pacientemente e não disse nada. Mattie notou que a sua boca, um risco fino, vermelho, sofria apenas ajustes mínimos quando ela mudava de expressão.

- Temos uma reserva - Jake tirou o papel do bolso e fê-lo deslizar sobre o alto balcão de ébano. - Hart, Jake e Mattie - entregou os passaportes à recepcionista.

- Hart - repetiu Chloe Dorleac, examinou os passaportes dos dois com um certo cuidado ainda maior do que o do guarda da alfândega no aeroporto, escreveu os números dos documentos no livro do hotel Jason e Martha.

Quem são eles? Pensou Mattie, examinando o pequeno átrio à procura de um lugar para sentar, vendo a sua imagem repetidamente reflectida nos enormes espelhos dourados que cobriam as paredes. Nem se tinha dado conta de que estava muito cansada.

- Viemos de Chicago.

- Acho que temos outro hóspede de Chicago aqui no nosso hotel disse a mulher.

- Chicago é uma cidade grande.

- Tudo na América é grande, não é? - Chloe, Dorleac esboçou outro dos seus indulgentes sorrisos franceses, apesar de deixar bem claro que estava entediada com aquela conversa, e colocou um impresso em branco sobre o balcão. - Por favor, importam-se de preencher?

Mattie deu vários passos cuidadosos até um sofá de dois lugares de veludo verde-escuro que ficava numa pequena alcova diante da janela que dava para a Rue Jacob. Estou em Paris, pensou, sentindo a almofada erguer-se à sua volta quando se sentou.

- Estou aqui, de verdade - sussurrou baixinho, olhando para trás para a rua estreita e movimentada que era como ela imaginava, e mais ainda. - Consegui. Nós conseguimos.

Iria conseguir passear por aquela rua, sempre cheia de peões, carros e motocicletas, sem precisar da bengala? Provavelmente não. Mas pelo menos a bengala era melhor do que uma cadeira de rodas. Tinha usado cadeiras de rodas nos dois aeroportos e descobrira que as odiava. Criavam barreiras, por mais úteis que pudessem ser. Toda a perspectiva se modificava. Viam-se sempre as pessoas de baixo para cima. Elas olhavam-na sempre de cima para baixo. Se é que reparavam. Até o guarda da alfândega no aeroporto Charles de Gaulle ignorara praticamente Mattie, fazendo todas as perguntas a Jake, até as que lhe diziam respeito a ela, como se fosse uma criança incapaz de dar respostas inteligentes, como se não tivesse voz própria.

Perderia a voz em pouco tempo. Não pretendia de modo algum abdicar dela prematuramente.

Mattie sentiu um movimento junto a si, voltou-se e viu Jake aproximar-se, com uma expressão preocupada no rosto cansado.

- Algum problema?

- Parece que o nosso quarto só fica disponível daqui a uma hora.

- Ah.

Mattie tentou afastar a preocupação da voz. Tentou sorrir sem mover a boca, como Chloe Dorleac, mas o resultado foi uma expressão de tristeza, mais do que de indulgência. A verdade era que, apesar de se sentir encantada por ali estar, por mais ansiosa que estivesse para Ir ver cada centímetro da cidade, Mattie precisava desesperadamente de se deitar, pelo menos por algumas horas. A sensação nas pernas era a de ter atravessado o Atlântico a nado, nos braços era como se tivesse vindo voando por conta própria. Mal tinha fechado os olhos a noite toda, sem conseguir encontrar uma posição confortável apesar das poltronas de primeira classe. Adormecera por uns instantes, mas logo acordava assustada. O que precisava agora era de uma hipótese de recarregar as baterias. O que precisava era de umas horas de sono.

- Acho que podemos ir a um sítio qualquer tomar um café.

- Acho que devemos ficar aqui - disse Jake. - Parece que há um adorável pátio interior no meio do hotel, com algumas cadeiras de estender muito confortáveis, onde te podes recostar e talvez dormir um pouco, até o quarto ficar pronto.

- Parece-me bem.

Jake ajudou Mattie a pôr-se de pé e conduziu-a através do átrio até ao minúsculo pátio interior, um quadradinho com algumas cadeiras de madeira que pareciam desconfortáveis e uma cadeira de estender já muito gasta.

- bom, não é exactamente o Ritz - disse Jake.

Não, realmente não é, pensou Mattie, mas não o disse. O Ritz Carlton foi há séculos atrás Para os dois.

- É encantador. Muito francês. C'est très bon - disse Mattie, e Jake ajudou-a a sentar-se na frágil cadeira de estender. - É muito confortável - disse, surpreendida por ver que era verdade. - Mas e tu?

Jake sentou-se junto dela na beira de uma das cadeiras de madeira.

- Perfeito - comentou, mas o seu rosto aflito dizia a Mattie o contrário.

Ela sorriu e o sono já lhe pesava nas pálpebras. Ele está tão cansado como eu, pensou Mattie. As últimas semanas não devem ter sido fáceis para ele, independente do que me possa ter dito. Tirar uma licença na firma, pôr a carreira em risco, a vida em compasso de espera. Quantos homens seriam capazes de o fazer? Especialmente por uma mulher que não amassem. Jake já falara sobre o lugar para onde iriam na próxima viagem. Havai, sugerira. Ou talvez um cruzeiro pelo Mediterrâneo Mattie sentiu-se uma mulher com muita sorte. Deixou que os seus olhos se fixassem nele, sorrindo com a ironia daqueles pensamentos. Ela estava a morrer, o marido não a amava e era a mulher mais feliz do mundo.

Acordou assustada e quase caiu da cadeira. Mattie levou algum tempo a lembrar-se de onde estava, que se encontrava realmente em Paris, no pátio de um encantador hotelzinho francês, à espera que lhe arranjassem o quarto. Quanto tempo tinha dormido? Olhou em seu redor, com o sol caindo-lhe nas pálpebras como um lenço diáfano. Mattie semicerrou os olhos para ver Jake, mas havia uma senhora com um chapéu creme e mole sentada na cadeira que ele tinha ocupado. Mattie sorriu, mas a senhora estava entretida com o guia turístico que tinha no colo, e não reparou. Mattie ouviu vozes, viu um homem e uma mulher encostados a uma parede, a conversarem fluentemente em francês. Tentou identificar uma palavra, ou expressão, mas o casal falava depressa demais e Mattie desistiu de entender. Onde estaria Jake?

- Excusez-moi - disse Mattie para uma das pessoas. - Mon mari...

- não, não era aquilo. - Qui a vu...? - o que estaria exactamente a tentar dizer? - Raios! Isto não vai dar resultado.

A senhora do chapéu creme olhou para ela.

- Tudo bem. Pode falar em inglês - a voz dela era bem disposta, uma voz estranhamente familiar, talvez por ser tão confortavelmente americana.

- Queria saber se alguém viu o meu marido. Parece que desapareceu.

- É o que eles costumam fazer. Mas não, sinto muito, não posso ajudá-la. Estava sozinha quando cheguei aqui, há mais ou menos cinco minutos - completou ela antes de voltar a prestar atenção ao livro que tinha no colo.

Mattie tentou ficar numa posição mais erecta, mas as suas mãos não queriam cooperar e foi forçada a deitar-se, fingindo estar confortável. Um suspiro escapou-lhe dos lábios.

- Sente-se bem? - perguntou a senhora americana.

- Sim. Só um pouco cansada - Mattie fez um esforço para enxergar as feições da mulher, o que lhe foi muito difícil, com a combinação do sol nos seus olhos e o chapéu mole da mulher.

- Acabou de chegar?

Mattie olhou para o relógio de pulso.

- Há cerca de uma hora. E a senhora?

- Já estou aqui há alguns dias.

- Recomenda alguma coisa?

- Só andei a passear por aí, procurando reconhecer as coisas apontou para o guia turístico no colo. - Não venho cá desde que andava na universidade.

- Esta é a primeira vez que venho a Paris.

- Bem, a primeira vez é sempre especial.

- Mattie sorriu, e concordou.

- É até mais lindo do que eu imaginava.

- Tivemos sorte com o tempo. Nem sempre é assim em Abril.

- Veio com o seu marido? - perguntou Mattie, olhando para o átrio. Onde se poderia ter Jake metido?

- Não. Viajo sozinha.

- Não me diga. É muito corajosa.

- A senhora riu-se.

- Desesperada, será provavelmente a melhor palavra.

- Desesperada?

- Às vezes queremos tanto uma coisa, que temos de tratar do assunto por nós próprias - disse.

- Conheço essa sensação - Mattie sorriu. - Por falar nisso, chamo-me Mattie Hart.

Houve um momento de hesitação. O sol brilhou no rosto da mulher e deixou-o branco como um fantasma.

- Cynthia - disse a mulher, tirando o chapéu e deixando cair uma cascata de caracóis ruivos. - Cynthia Broome.

- Onde é que estavas? - Mattie esforçou-se por ficar de pé, quando Jake entrou no pequeno pátio e se aproximou dela, com um grande saco de papel pardo nas mãos.

- Resolvi ir fazer umas compras - Jake indicava o conteúdo do saco inclinando a cabeça. - Água mineral, bolachas, fruta fresca - beijou a testa de Mattie. - Estavas a dormir tão profundamente, que não quis

- incomodar-te. Quando é que acordaste?

- Mattie olhou para o relógio.

- Há uns vinte minutos. Conheci uma senhora simpática. É a hóspede de Chicago de que falou a mulher dragão.

- Mulher dragão?

- É assim que a Cynthia se refere a ela. Cynthia... Meu Deus, não consigo lembrar-me do apelido dela. É o nome de uma coisa útil. - Mattie encolheu os ombros. - Deixa. Daqui a pouco lembro-me. Está aqui sozinha.

- Muito corajosa.

- Mattie sorriu.

- Foi isso que eu lhe disse. Estava a pensar que talvez pudéssemos convidá-la para sair connosco um dia.

- Claro, se tu quiseres.

- bom, talvez, se a voltar a encontrar... - Mattie olhou para o átrio. - Achas que o nosso quarto já está pronto?

- Estamos no terceiro andar - disse Jake, conduzindo Mattie até ao pequeno elevador que ficava por detrás da escada de caracol ao fundo do átrio. - As malas já estão no quarto.

- Parece uma gaiola - reparou Mattie, encantada quando os dois se apertaram dentro do espaço minúsculo, e Jake puxou a porta de ferro forjado.

Alguns segundos depois, o elevador começou a subir e parou no terceiro andar, onde meia dúzia de quartos se agrupavam em torno de um pequeno hall com um tapete azul-escuro desbotado e puído. Jake usou a chave grande e antiga para abrir a pesada porta, que empurrou para revelar um quarto pequeno mas bem decorado, com vista para a rua.

- É lindo - disse Mattie, vendo o grosso edredão de pique de algodão cobrindo toda a cama de casal de ferro forjado no meio do quarto. Gravuras impressionistas enfeitavam as paredes. Havia um pequeno armário ao lado da janela. A casa de banho tinha um mosaico no chão que reproduzia A Rapariga do Baloiço de Renoir. - Que maravilha.

- Estou a ver que os franceses não são muito de grandes espaços abertos - observou Jake, caminhando até à janela e tentando abri-la.

- Qual é o problema?

- Parece que está emperrada.

- E então? Qual é o mal? - Mattie mordeu a língua com força. E claro que havia ali um problema. Como podia ser tão insensível? - Desculpa, Jake. Vamos mudar de quarto.

- Não, não sejas tonta. Este está óptimo.

- Não está óptimo. Tenho certeza de que têm outros quartos.

- Não tinham. Jake ligou para Chloe Dorleac, e ela informou que o hotel estava cheio e que só teriam outro quarto dali a vários dias.

- A mulher dragão diz que os americanos estão sempre a reclamar que o quarto é barulhento de mais com a janela aberta, de modo que nem se deram ao trabalho de a consertar - disse Jake a Mattie, deitando-se ao lado dela sobre o volumoso edredão branco, que os envolveu como um pára-quedas. - Não faz mal, Mattie. Eu fico bem.

- Tens a certeza?

- Absoluta - olhou para o tecto. - A minha mãe nem sequer sabe que estou aqui.

- A Torre Eiffel foi construída num tempo recorde de dois anos, para a Exposição Mundial de 1889 - disse Mattie, lendo o guia, enquanto ela e Jake estavam sentados num banco próximo, com vista para a magnífica estrutura de ferro forjado. A temperatura estava agradável, 22 graus, e os dois tinham trocado a roupa de viagem por outras que inadvertidamente combinavam: calças caqui, camisas brancas e casacos leves. - A torre não era para ser um monumento permanente na cidade, e só o seu uso potencial como antena de rádio evitou que fosse desmontada - continuou Mattie, encantada. - Mas em

1910 foi finalmente salva para a posteridade, e todos os anos atrai mais de quatro milhões de visitantes.

- E todos eles resolveram visitá-la esta tarde - disse Jake. Mattie sorriu.

- A torre pesa mais de 7700 toneladas e tem 332 metros de altura. É feita com 15 000 pedaços de ferro e foram precisas 55 toneladas de tinta para a pintar. Chamam-lhe a "escada para a eternidade", e oscila apenas dez centímetros com ventos muito fortes. Suicidaram-se aqui trezentas e setenta pessoas, saltando da plataforma mais alta, que fica a 280 metros do chão.

- Bolas.

- É linda, não é? Quero dizer, isto parece uma frase feita, mas é verdade.

- É linda - concordou ele.

Mattie olhou com inveja para o número aparentemente interminável de pessoas à espera na fila para subir nos lentos elevadores. Ela e Jake tinham calculado que levariam pelo menos uma hora para chegar ao princípio da fila. Obviamente que estava fora de questão, Mattie ficar ali de pé aquele tempo todo, e subir as centenas de degraus até ao topo, por isso Jake e ela retiraram-se para um banco vazio até que a multidão diminuísse. Até àquele momento não havia sinal de que isso fosse acontecer, mas Mattie estava feliz só de ficar ali sentada ao lado de Jake, à espera.

Não havia nada que se comparasse a ficar a olhar as pessoas, pensou ela, e um casal de adolescentes que se beijavam com abandono sob uma magnífica cerejeira chamou a sua atenção. O outro casal abraçava-se apaixonadamente ao lado de um pequeno quiosque, e ainda viu mais outro enquanto caminhava com Jake pelo passeio cheio de gente diante da torre. Ignoravam tudo, menos um ao outro, como na famosa fotografia de Robert Doisneau. A cidade do amor, pensou Mattie, olhando fixamente para Jake.

- Diz aqui que podemos evitar as longas filas do elevador visitando a torre à noite - disse Jake, ao ler um folheto que tinha apanhado ali perto.

- Não me digas?

- Parece que é até mais romântica à noite - disse Jake. - Fica toda iluminada.

- Podemos fazê-lo? Voltar mais tarde?

- Porque não voltamos depois do nosso passeio de barco pelo Sena?

- Mattie começou a chorar.

- O que foi, Mattie? Se estiveres muito cansada, podemos ficar aqui à espera. Não quis sobrecarregar-te. Podemos dar o passeio de barco noutra noite qualquer.

- Não estou cansada - tranquilizou-o ela ainda a chorar. - Estou muito feliz. Meu Deus, por falar em clichés...

Jake secou as lágrimas passando os dedos, ao de leve, no rosto de Mattie.

- E tu? Deves estar exausto. Eu pelo menos dormi algumas horas no hotel - Mattie sabia que Jake não tinha pregado olho.

- Dormi no avião - afirmou Jake. - Qual é o problema? Pensas que não te consigo acompanhar? - Jake ficou imediatamente de pé e ajudou Mattie a levantar-se. - Só um minuto - disse, abordando um turista japonês e pondo a máquina fotográfica nas mãos dele. - Pode tirar-nos uma fotografia? Un photo? Carregue aqui neste botão - acrescentou, e colocou-se rapidamente ao lado de Mattie diante da magnífica torre, passando-lhe pelo ombro o braço protector. - Mais uma - pediu Jake, instruindo o jovem com as mãos para ele virar a câmara na posição vertical. - Óptimo. Obrigado. Esta fotografia vai ficar óptima - disse, depois de receber a máquina e voltar para o lado de Mattie. - Estás pronta?

Mattie apoiou-se no braço de Jake e ele conduziu-a lentamente para o meio da multidão. Ela viu de relance uma senhora com um chapéu creme e mole, e já ia chamá-la, mas observou-a e apercebeu-se de que a mulher não era sequer parecida com Cynthia Broome. Broome. Era esse era o nome dela. Cynthia Broome. De Chicago.

- Pronta ou não, lá vou eu - disse Mattie.

 

O PESADELO COMEÇOU DA MESMA FORMA DE SEMPRE. A mãe de Jake dançava na sala onde predominavam as cores creme e castanho da sua infância, fazendo esvoaçar o cabelo louro, levantando a saia rodada e florida para revelar vislumbres provocantes das coxas, tentando chamar a atenção do marido para que ele saísse detrás do jornal.

- Nunca dizes que sou bonita - dizia ela. - Porque é que nunca dizes que eu sou bonita?

- Digo-to muitas vezes - foi a resposta. - Tu é que nunca me ouves.

- Por que é que não vamos sair? Vamos dançar. Ouviste o que eu disse? Vamos dançar.

- Andaste a beber.

- Não andei a beber.

- Daqui o teu hálito cheira a álcool.

Jake gemeu e tentou abafar o som das vozes deles como sempre fazia, apesar de saber que o esforço era inútil.

- Porque é que não vamos a um cinema? Não vamos ao cinema há séculos.

- Telefona a uma das tuas amigas, se queres ir ao cinema.

- Tu é que tens amigas - Jake ouviu a mãe responder.

- Fala em voz baixa. Vais acordar os meninos.

Sim, acorda, sussurrava uma vozinha dentro da cabeça de Jake. Acorda. Já não és uma criança. Não precisas de ouvir isto. Acorda. Já não estás em casa dos teus pais. Estás do outro lado do mundo. E já és um adulto. Ela já não te pode magoar. Acorda. Acorda.

Mas enquanto Jake se recriminava e tentava ignorar a voz dentro da sua cabeça, a sua atenção foi atraída pela visão de três meninos pequenos de pijama, unindo forças, construindo uma barreira fútil de livros e brinquedos na parte de baixo da porta do seu quarto.

- Pensas que não sei das tuas amiguinhas? Pensas que não sei para onde vais à noite? Pensas que não sei tudo sobre ti, meu miserável filho da mãe? - berrava Eva Hart, aumentando a ameaça e a voz era já tão forte que furava as paredes sólidas, viajava décadas, atravessava oceanos.

Jake viu a mãe dar um soco no meio do jornal que o pai lia e sentiu no ventre o impacto daquele punho. Pôs as mãos no estômago e encolheu-se na cama, como se tivesse ficado sem ar.

O pai levantou-se da cadeira e atirou com o jornal para o chão.

- Estás louca - gritou ele, dirigindo-se para a porta. - És uma maluca. Devias estar internada num hospício.

Os três meninos correram para o armário e trancaram a porta, amontoando-se no fundo do cubículo escuro. Luke a tremer nos braços de Jake, Nicholas sozinho, olhava para a frente, sem ver.

Jake viu a mãe avançar para cima do pai como se quisesse saltar-lhe para as costas e cavalgá-lo. Mas perdeu o equilíbrio e caiu sobre o esguio candeeiro de pé que ficava ao lado da porta. Balançou de um lado para o outro como o ponteiro de um metrónomo, contando os segundos que faltavam para o adeus furioso do pai.

- Sou louco por ficar com uma mulher louca.

- Ah, sim? Então porque não te vais embora, grande porcaria de homem, miserável?

Não te vás embora, gritou Jake para consigo. Por favor, pai. Não te vás embora. Não nos podes deixar aqui sozinhos com ela. Não sabes o que ela vai fazer.

- Vai ficar tudo bem - murmurou Jake para os irmãos, lembrando-se da água e da caixa de primeiros socorros que tinha escondido num lugar seguro. - Ficaremos bem se não fizermos barulho.

Não precisas de ver isto, murmurou a vozinha ao ouvido de Jake. Essa pode ter sido um dia a tua realidade, mas já não o é. Agora é só um pesadelo. Acorda. Não precisas de continuar aqui.

Mas era tarde de mais. A mãe já dava socos na porta do armário de Jake, exigindo que eles abrissem, exigindo lealdade, exigindo-lhes a alma. Ele viu-a tropeçar pelo quarto numa fúria embriagada, aos pontapés aos seus sapatos, esvaziando as gavetas e atirando com as roupas para o chão. Depois, agarrou no avião, que passara semanas a montar, e que pensava mostrar à professora e aos colegas de turma na apresentação da semana seguinte na escola.

Acorda antes que ela o faça em pedacinhos, avisou a vozinha, pondo as mãos invisíveis nos ombros adormecidos de Jake, tentando fazê-lo acordar, como se ele estivesse fora do próprio corpo. Acorda. Acorda.

Jake ficou alguns segundos dividido na periferia do sonho, um dentro e outro fora.

- Acorda - repetiu Jake em voz alta e o som da sua voz empurrou-o para fora daquele limite, por cima da fronteira invisível que separava o presente do passado.

Jake abriu os olhos e ouviu a sua respiração ofegante embater nas paredes do pequeno quarto de hotel. Levou um minuto para se concentrar em tudo e entender onde estava, saber quem era. És Jake Hart disse para consigo mesmo. Um adulto. Advogado. Marido. Pai. Já não és um menino apavorado. Cresceste. E ainda tens medo, ainda foges assustado, reconheceu Jake, secando o suor da testa, soltando o ar dos pulmões. Há quanto tempo estaria a prender a respiração?, interrogou-se.

Toda a tua vida, disse a voz.

Jake olhou para Mattie, que dormia a seu lado na antiga cama de casal, mais estreita do que as habituais camas de casal. Mattie tinha-lhe dito que quando os franceses descreviam uma coisa como encantadora e antiga, ele podia traduzir como pequena e simplesmente velha. Jake sorriu, sentindo o calor das pernas da mulher encostadas às dele. Mas havia uma certa vantagem na intimidade forçada das camas de casal antigas, mais estreita do que as vulgares camas de casal.

- Que dia! - disse Jake em voz alta, com cuidado para não perturbar o sono de Mattie. Levantou-se da cama e foi até à janela que dava para a rua. Paris era mesmo uma cidade incrível. Quanto a isso, Mattie tinha razão, como tinha razão em muitas coisas. Devia

- ter-lhe dado atenção da primeira vez que ela sugerira que fizessem aquela viagem, quando os seus passos eram tão perfeitos como o seu entusiasmo. Não teria tido de esperar pelo elevador cheio e lento que a levasse ao cimo da Torre Eiffel. Teria feito uma aposta com ele para ver quem chegava mais depressa lá a cima. E teria vencido.

- Não comeces a sentir-te culpado - dissera-lhe Mattie, lendo-lhe os pensamentos, quando estavam na plataforma superior da torre, vendo o cenário de cortar a respiração que era Paris à noite. - Estou a adorar. Não há nada melhor do que isto.

- Melhor do que o passeio de barco? - perguntou Jake a brincar, e os dois riram, como ultimamente faziam.

(Por que é que lhes chamam Bateaux Mouches?, perguntara ele, consultando o seu dicionário de bolso quando tinham entrado no grande barco, para um passeio de uma hora pelo Sena. - Não quer dizer Insectos do Barco?

Dez minutos depois, acabaram por entender, quando Mattie e ele tentavam afastar irritantes hordas de insectos voadores.

Mattie parecia incansável, apesar de evidentemente estar a ter uma certa dificuldade para caminhar. Por vezes arrastava um pé. Mesmo assim, recusara-se a dar a noite por terminada. Jantaram num bistrô cheio de gente na Rue Jacob, chamado Lê Petit Zinc, onde havia um casal de jovens a namorar, sentados, numa mesa próxima. Finalmente foi Jake que declarou estar exausto. Mattie imediatamente lhe deu o braço e atravessaram a rua movimentada para se dirigirem ao hotel.

Mesmo às quatro da manhã a rua não estava deserta, observou Jake espantado, vendo um rapaz numa lambreta que parava por baixo da sua janela. O jovem, que usava um casaco de couro e um capacete roxo, olhou para cima, como se soubesse que estava a ser observado, e acenou quando viu Jake. Jake sorriu e acenou para ele também, mas logo a seguir um grupo de adolescentes que saltitavam no meio da rua, com os braços em volta da cintura uns dos outros e as bocas abertas, rindo despreocupados, chamou a sua atenção. Na esquina reparou num casal de meia-idade a namorar sob o toldo de um café que estava fechado. Os parisienses não dormiriam?

Talvez tivessem medo, como ele.

Jake voltou para a cama e ficou sentado durante alguns minutos, observando a respiração regular de Mattie. Seria provavelmente o resultado da morfina que ele insistira para ela tomar. Mattie tinha resistido.

- Precisas de dormir, Mattie - dissera Jake. - Temos uma maratona diante de nós. Vais precisar de todas as tuas forças.

- Só preciso de ti - respondera Mattie, puxando-o para os seus braços e guiando-o suavemente para dentro dela.

No entanto, no momento do clímax, ela tivera problemas para recuperar o fôlego, o seu corpo ficara rígido nos braços dele enquanto se esforçava por respirar, agitando os braços num abandono inútil, como se se tivesse engasgado com um bocado de bife. Ficara com o rosto vermelho, os olhos arregalados de terror, tentando prender o ar em seu redor com as palmas das mãos, para literalmente empurrar o oxigénio para dentro dos pulmões. Acabou caindo ao lado dele, tossindo e chorando, com o corpo molhado de suor. Jake secou-lhe a testa com uma toalha branca e macia, depois apertara-a com força contra o peito, tentando regular a sua respiração com a dele, respirar pelos dois, se fosse preciso.

Foi então que Mattie concordou em tomar a morfina. Logo a seguir adormeceu, encolhida nos braços de Jake.

Ao olhar para o seu braço delicado, apoiado no edredão branco e fofo, como uma linha quebrada, Jake, estremecendo de preocupação, percebeu que Mattie tinha perdido muito peso. Pelo menos cinco quilos, talvez mais. Procurava escondê-lo, usando roupa larga e volumosa durante o dia e vestidos direitos à noite. Mas assim deitada como estava, sob o luar parisiense que entrava pela janela, era impossível negar ou ignorar a extensão da sua perda de peso. Parecia ter mais ossos do que carne. Até o cabelo parecia mais ralo. Jake afastou-lhe algumas madeixas muito finas das salientes maçãs do rosto, deixando os dedos encostados à pele pálida, como se não a quisesse deixar. Está a desaparecer diante dos meus olhos, pensou ele, chegando-se mais acariciando-lhe a testa com os lábios, com a suavidade de uma pena.

- És tão linda - murmurou Jake, subitamente arrasado por uma tristeza tão grande que doía quando respirava. Seria aquilo que Mattie sentia, quando lutava para respirar?

- Amo-te - dissera-lhe Mattie no dia em que ele chegara a casa mais cedo para lhe contar que, afinal, iam mesmo para Paris na data marcada. Oferecera-lhe aquelas palavras sem mais nem menos, sem esperar nem precisar que ele as dissesse também. E ele não dissera. Não naquele momento. Nunca, desde então. Como poderia?, pensou, sem confiar na própria voz. Sem confiar nele mesmo. E assim as palavras tinham ficado a pairar provocantes na ponta da sua língua, quando estavam juntos, brincavam com os seus lábios, procurando abrigo na sua boca fechada. Era irónico, pensou Jake deitando-se de novo sob o edredão, acomodando o seu corpo junto ao corpo de Mattie, que no fim da vida da mulher ele não conseguisse imaginar a existência sem ela.

Mattie mexeu-se a dormir, encaixando a curva convexa das costas na curva côncava do estômago dele, como se fossem dois pedaços do mesmo puzzle, uma boa maneira de os descrever, pensou Jake. Beijou-lhe o ombro, sentindo um resto do perfume a lilases, prendendo de propósito o cheiro nos pulmões, como se ao fazê-lo a pudesse manter a salvo. Então soltou lentamente o ar, com relutância, deixando a cabeça cair no travesseiro, com o sono já a pesar-lhe nas pálpebras.

Sentiu o pesadelo à espreita, pronto a entrar em acção, como um vídeo que ele tivesse parado a meio, avançando e recuando, tentando encontrar o ponto certo, o rosto do pai, o punho da mãe, o monte patético de livros e de brinquedos no chão do quarto, a mãe saqueando o quarto, lançando as suas cruéis ameaças contra a porta do armário.

- Já não posso viver assim - berrava Eva Hart. - Estão a ouvir-me? Já não posso viver assim. Ninguém me ama. Ninguém se importa se estou viva ou morta.

Ainda acordado, Jake ouviu Nicholas choramingar, viu Luke segurar com força o puxador da porta do armário, o estômago às voltas a cada movimento da maçaneta. Tremendo, Jake tirou o braço debaixo de Mattie e tapou as orelhas, ouvindo o som horrível do seu aviãozinho a espatifar-se no meio do chão.

- Malditos - berrou a mãe, dando um pontapé na porta. - Malditos todos, suas pestes mimadas. Sabem o que eu vou fazer? Sabem o que eu vou fazer agora? vou até à cozinha, vou abrir o gás, e amanhã de manhã, quando o vosso pai voltar depois de dormir com a namorada, vai encontrar-nos mortos nas nossas camas.

- Não! - gritou Nicholas, cobrindo a cabeça com as mãos.

- Estou a fazer-vos um favor - gritou Eva Hart, tropeçando nos livros e brinquedos que agora estavam espalhados pelo chão e atirando um sapato contra a porta do armário. - Vão morrer a dormir. Não sofrerão de maneira nenhuma o que eu sofri. Nem saberão o que está a acontecer.

- Não! - exclamou Jake abrindo os olhos, extraindo força da respiração regular de Mattie. - Já não quero ser intimidado. Já não há gás. - Não precisava de ter medo de nada. Tinha uma mulher que o amava, que o conhecia melhor do que ninguém, e que mesmo assim o amava. Porque ele merecia ser amado. Porque merecia amor, compreendeu Jake pela primeira vez.

Se Mattie era capaz de enfrentar um futuro tão cruel e injusto com tanta coragem, certamente ele poderia suportar um passado ao qual se submetia havia demasiado tempo, um passado que o sufocava lentamente até à morte.

Olhou para Mattie. Não fazia sentido os dois sufocarem até à morte, Jake ouviu Mattie dizer, num tom de voz que até lhe parecia malicioso.

E, de repente, Jake de pé no meio do minúsculo quarto, um adulto no meio do caos e dos entulhos da sua infância, soltou uma gargalhada. A mãe estava perto da porta, de costas para ele. A sua gargalhada preenchia cada cantinho, assumindo vida própria, bloqueando a saída da mãe. Fora a força do seu riso que agarrara a mãe pelos ombros e a fizera voltar-se.

Se Eva Hart se espantou ao vê-lo, não o demonstrou. Olhou fixamente para o filho crescido com o ar de desafio próprio de quem está embriagado.

- Estás a rir-te de quê? - rosnou ela. - Quem pensas que és, a rir-te de mim dessa forma?

- Sou o teu filho - disse Jake, simplesmente.

Eva Hart fez um ruído de desprezo, sem se mostrar minimamente impressionada. - Deixa-me em paz - disse, voltando-se para a porta.

- Não vais a sítio nenhum - replicou Jake.

- Farei o que bem entender.

- Não vais a sítio nenhum - repetiu Jake, mantendo a sua posição. - Ninguém vai sair deste quarto. Ninguém vai abrir o gás.

Foi então a vez da mãe soltar uma gargalhada.

- Não me digas que levaste a sério aquela maldita ameaça. Sabes que nunca faria uma coisa dessas.

- Tenho cinco anos de idade, mãe - respondeu o Jake adulto. - É evidente que levo a sério as tuas ameaças idiotas.

- Pois então, não devias - disse a mãe com um sorriso, quase meigo. - Sabes que nada faria para te magoar. Foste sempre o meu filho preferido.

- Tens alguma ideia do quanto te odeio? - perguntou Jake. - Do quanto sempre te odiei?

- Ora, Jason. Que maneira é essa de falares com a tua mãe? És um menino muito mau, Jason.

Jason menino mau. Jason menino mau. Jason menino mau. Jason menino mau, Jason menino mau, Jason menino mau.

- Não sou um menino mau - contestou Jake.

- Tu é que levas as coisas a sério de mais. Sempre foi assim. Vá lá, Jason. Não sejas chorão. Estás a começar a parecer-te com os teus irmãos.

- O que não está certo com os meus irmãos é a mãe deles.

- Ora, ora, isso não é muito bonito de se dizer, pois não? Afinal, não fui uma mãe assim tão má. Olha para ti. Tu saíste-te bem - piscou-Lhe o olho. - Devo ter feito alguma coisa bem feita.

- Morrer foi a única coisa bem feita que fizeste.

- Oh, valha-me Deus! Estás a ficar melodramático? Talvez afinal eu deva mesmo abrir o gás.

- Já não nos podes aterrorizar. Entendes? - Jake apertou o braço da mãe com tanta força que lhe sentiu os dedos através da pele dela.

- Larga-me - protestou a mãe. - Bolas, sou tua mãe. Como te atreves a falar assim comigo?

- Não passas de uma bêbada violenta. Já não me podes fazer mal.

- - Larga-me o braço. Sai do meu caminho - disse Eva Hart, mas a sua voz estava a ficar mais fraca, e a sua imagem perdia a nitidez, ficando imprecisa nos contornos, como um desenho feito a giz, mais fraca a cada palavra.

- Já não tens poder sobre mim - disse Jake, com a sua voz muito clara e forte.

Um olhar confuso passou pelos olhos castanhos e atrevidos da mãe que logo a seguir desapareceu.

Jake ficou alguns segundos completamente imóvel, a ouvir o silêncio, depois voltou para a cama e deitou-se ao lado de Mattie, acariciando, distraído, a suave curva de seus quadris, enquanto a sua mente começava a recolher os livros e os brinquedos espalhados pelo chão, pondo cada coisa no seu devido lugar. com todo o cuidado, pegou nos pedaços do avião quebrado e colocou-os em cima da pequena mesa sobre a qual costumava ficar. Então Jake viu-se a andar até ao armário, a abrir a porta e a olhar para os três meninos encolhidos do outro lado.

- Podem sair agora - disse ele mentalmente. - Ela já se foi embora. Nesse preciso momento, Nicholas saiu de repente do armário e do quarto.

- Nick - chamou Jake, vendo o irmão desaparecer no ar. - Depois apanho-te, - disse baixinho, dando novamente atenção aos dois meninos ainda encolhidos dentro do armário. Luke estava sentado mais perto da porta, com os olhos fixos no espaço, mas sem ver. - Lamento muito Luke - disse Jake, forçando o seu corpo enorme a entrar no espaço exíguo, ajoelhando-se ao lado do menino que era o seu irmão mais velho. - Perdoas-me, por favor?

Luke nada disse. Em vez disso, encostou o seu corpo de menino ao corpo de Jake e deixou que este o abraçasse, embalando-o suavemente até ele desaparecer.

Então só restou o menino Jake.

- És um bom menino - disse-lhe Jake simplesmente, sem palavras, vendo o seu próprio rosto reflectido nos olhos. - Um menino muito bom, Jason. Um menino muito bom.

- Jake - chamava-o Mattie, sentada ao lado dele, e a voz da mulher arrancou Jake ao passado e levou-o para o nascer de um novo dia. - Sentes-te bem?

- Muito bem. Mas não conseguia dormir.

- Sonhei que estavas a rir...

- Parece-me um bom sonho.

- E tu? - perguntou Mattie, de novo com a preocupação na voz. - Tiveste outro pesadelo?

Jake abanou com a cabeça.

- Não - respondeu ele, abraçando-a, deitando-se ao lado dela e fechando os olhos. - Os pesadelos acabaram.

 

Kim ESTAVA DE NOVO A SONHAR ACORDADA. Sentada ao fundo da sala de aula, com o livro de matemática aberto na página certa, os olhos fixos no professor barrigudo e mal vestido, que se encontrava de pé, junto ao quadro, parecia prestar-lhe muita atenção. O professor Wilkes dizia, qualquer coisa a respeito de o X representar o problema, como se algo pudesse ser resolvido deixando que uma coisa fingisse ser outra - mas na verdade o seu espírito estava a milhares de quilómetros de distância, do outro lado do oceano, em Paris, passeando de braço dado com a mãe pelos famosos Campos Elíseos.

A mãe telefonara na noite anterior para saber como Kim se estava a dar na escola, com a avó Viv, com o novo cãozinho e com a terapeuta.

Bem, bem, bem, bem, respondeu Kim a cada pergunta. E tu?

Estava tudo óptimo foi a resposta entusiasmada. Já tinham visto a Torre Eiffel, o Louvre, Montmartre, Notre Dame, o Quai d'Orsay. Hoje iam passear pelos Campos Elíseos e visitar o Arco do Triunfo. O tempo estava maravilhoso. Jake estava maravilhoso. Ela estava maravilhosa.

Mas, nesse ponto, a mãe começou a tossir e ficou engasgada, sem ar, e Jake teve de pegar no telefone para, terminar a conversa com Kim.

Como estava? perguntou o pai. Como ia a escola? A avó? O novo cãozinho? As consultas com a Rosemary Colicos?

Bem, bem, bem, bem, dissera Kim. Chama a mãe ao telefone outra vez.

Era difícil para a mãe falar muito tempo, explicou o pai, mas de um modo geral estava muito bem, tratou ele de a tranquilizar. Voltariam a telefonar dali a alguns dias. Paris era sensacional, disse. No próximo ano iria com eles.

Claro, pensou Kim, mexendo no pequeno carrapito no alto da cabeça, soltando alguns ganchos e sentindo que eles lhe caíam do cabelo, ouvindo o ping quando lhe batiam primeiro no ombro e depois no chão. Baixou-se para os apanhar, vendo a estranha combinação de sandálias de Verão abertas e pesadas botas de neve que adornavam os pés das suas colegas de turma. Bastava um dia bonito, com sol, e a temperatura ficar alguns graus acima do ponto de congelação, para que metade do corpo discente logo desnudasse os pés e abolisse as mangas das camisas. Não aguentavam esperar pelo Verão, pensou Kim, endireitando-se na cadeira e enfiando na cabeça os ganchos errantes. Não podiam esperar que o tempo os levasse para uma estação mais perto da morte.

- Kim?

O som do seu nome embateu-lhe nos ouvidos, como uma colisão de címbalos. Acordou-lhe o cérebro, ecoando e reverberando, entoando dentro do crânio, como se procurasse desesperadamente uma saída.

- Desculpe? - disse Kim ao professor Wilkes, que olhava para ela como se esperasse uma resposta mais pertinente.

- Fiz-te uma pergunta.

- Acho que não ouvi - respondeu Kim, antes de se dar tempo para pensar numa resposta mais delicada.

Os brilhantes olhos verdes do professor Wilkes denotaram desagrado.

- E porque é que não ouviste, Kim? Não estavas a prestar atenção?

- É óbvio - respondeu Kim, estupefacta com a sua própria indelicadeza, mas adorando os vários gritinhos sufocados e risadinhas dos seus colegas. Era a maior reacção que obtinha deles havia semanas.

Soou o toque de saída. Os vinte e sete adolescentes sonâmbulos que estavam quase deitados nas suas cadeiras acordaram imediatamente para a vida, levantaram-se todos juntos e dirigiram-se ruidosamente para a porta.

- Kim? - chamou o professor quando Kim já ia a sair. Kim virou-se relutante para o professor Wilkes.

- Eu sei da situação na tua casa. O teu pai informou a escola sobre a doença da tua mãe - continuou o professor, já que Kim nada dissera. - Só queria que soubesses que estou à tua disposição, se precisares de alguém para conversar.

- Eu estou bem, professor - disse Kim, apertando os livros contra o peito.

Bem. Bem. Bem. Bem.

Como é que o pai tivera a audácia de telefonar para a escola? Como é que tivera coragem de falar aos professores sobre a doença da mãe? Que direito tinha de fazer uma coisa daquelas?

- Já posso ir agora? - perguntou ela.

- É claro.

Kim correu pelos corredores até ao seu cacifo. O que mais teria o pai andado a dizer? Jake Hart, o Grande Defensor, pensou com desprezo. O Grande Aldrabão seria o mais adequado, concluiu, atrapalhada com o cadeado de segredo, enganando-se nos números e tendo de repetir tudo. À terceira tentativa, o cadeado abriu-se e Kim atirou com os livros para dentro do cacifo, agarrou em seguida na lancheira e foi para a cantina.

Encontrou uma mesa vazia num canto, sentou-se de frente para a parede, de costas para o resto dos colegas. Abriu a lancheira e fez uma careta diante da sanduíche de manteiga de amendoim e geleia que a avó lhe tinha feito.

- Não quero que a tua mãe me venha dizer que não te alimentei explicara a avó Viv. - Se estiveres pele e osso quando eles voltarem da França, de quem achas que será a culpa?

Seria bem feito para eles, pensou Kim naquele momento, atirando com a sanduíche para o caixote do lixo aberto num canto. A sanduíche bateu na parte de cima da enorme lata e desfez-se, caindo no chão, com os lados peganhentos para baixo.

- Bolas - disse Kim. Pegou na sanduíche e atirou novamente as duas metades para o caixote do lixo, deixando os restos de manteiga de amendoim e geleia no chão de linóleo. Sim senhor, seria bem feito para os pais se ela estivesse só pele e osso quando eles voltassem da viagem a Paris da França. Aprenderiam a não a abandonar. Não que ela não compreendesse o desejo de viajarem, mas o simples facto de compreender não tornava as coisas mais fáceis, não diminuía a sua solidão.

O estômago de Kim fez barulho, em parte por causa da fome, em parte como protesto. Examinou o resto da lancheira. Um pacote de leite com dois por cento de gordura e uma tablete de Snickers. Kim sentiu a boca começar a salivar. Pegou imediatamente no chocolate e atirou-o para o caixote do lixo, encestando directamente, fazendo a guloseima desaparecer lá dentro. Tinha deixado de comer chocolate. Não fazia bem. Gordura a mais. Açúcar a mais. Era importante vigiar a sua dieta, exercer algum controlo sobre as coisas que metia na boca. Provavelmente, se a mãe tivesse sido mais cuidadosa com a alimentação, se tivesse evitado todas aquelas sobremesas doces e aqueles ridículos morangos com marshmallow de que tanto gostava, agora estaria bem. Não, esse cuidado nunca era de mais. Tantos produtos químicos, tantos aditivos e corantes em tudo o que comemos. Temos praticamente a vida nas mãos de cada vez que abrimos a boca.

Até o leite, pensou Kim, abrindo a ponta errada do pequeno pacote de papelão, vendo o leite morno borbulhar e escorrer-lhe por entre os dedos. Quem sabe o que a indústria de lacticínios estava a acrescentar ao leite para disfarçar os venenos que as vacas ingeriam todos os dias? Bastava ver o número de pessoas que hoje em dia sofriam de intolerância à lactose. Tinha de haver uma razão para as pessoas estarem a ficar mais vulneráveis a todos os tipos de doenças terríveis.

Kim levou o pequeno recipiente à boca, cheirou o líquido tépido, sentiu a nata na ponta da língua. Sem mais nem menos, o leite foi juntar-se ao resto do seu almoço no caixote do lixo. Levantou-se e foi para o ginásio. Já que não ia comer, podia muito bem começar o seu programa de exercícios mais cedo.

Tinha começado a fazer exercícios regularmente depois da discussão com Teddy. No início fazia só dez minutos por dia, algumas contracções, alguns alongamentos suaves, algumas voltas à pista. Mas, todos os dias, acrescentava uns exercícios ao conjunto, de forma que agora praticava quase duas horas por dia. Primeiro fora uma série de alongamentos simples, depois meia hora de aeróbica de baixo impacto, depois mais alongamentos, e mais aeróbica, desta vez de alto impacto, durante pelo menos trinta minutos, depois duzentos abdominais e cem flexões, depois mais alongamentos, além de corrida, saltos e pulos, e mais alguns alongamentos para dar sorte. Mesmo quando tinha George ao colo, o seu diafragma contraía-se e relaxava-se, porque nunca era de mais estar em forma. A saúde nunca era demais.

Kim atou os atacadores dos seus ténis de corrida, olhou para o relógio. Tinha mais de quarenta minutos antes da próxima aula. Tempo suficiente para dar uma boa corrida, concluiu, começando a primeira volta ao ginásio. Dali a um mês poderia acrescentar natação à sua lista. Kim visualizou a mãe na piscina do quintal da casa deles. Para lá e para cá, para lá e para cá, cem vezes o comprimento da piscina, todos os dias, de Maio a meados de Outubro. E que bem lhe fizera? Pensou Kim parando de correr de repente. Todo aquele cloro na água. Se era horrível para o cabelo, o que não seria capaz de fazer por dentro do corpo. Sempre se engole um pouco. É inevitável. Kim recomeçou a corrida e concluiu que nadar talvez não fosse assim uma ideia tão boa.

- Ei, Kim - gritou alguém. - Porquê tanta pressa?

Kim olhou para a porta dupla do ginásio, viu Caroline Smith ladeada pelos seus clones, Annie Turofsky e Jodi Bates, resplandecentes nas suas camisolas encarnadas iguais.

- Onde vais? - perguntou Jodi.

- Anda alguém a perseguir-te? - perguntou Annie.

Kim tentou ignorá-las. Mal falavam com ela havia meses. Só estavam novamente interessadas nela porque tinha sido indelicada com o professor Wilkes na aula, o que significava que era potencialmente interessante, potencialmente perigosa. Por que é que deveria submeter-se aos seus caprichos cruéis? Por que é que teria de se sentir obrigada a responder? Só que não sentia obrigação nenhuma, percebeu reduzindo a velocidade. E estava contente.

- E então? - perguntou ela, como se os últimos meses não tivessem existido.

- O que é que o velho Wilkes te disse depois da aula? - perguntou Caroline. - Apostámos que levavas uma suspensão.

- Não tive tanta sorte.

- Quem é a velha que te tem trazido à escola a semana toda? quis saber Annie.

- A minha avó. E ela não é velha.

Caroline encolheu os ombros e as outras duas imitaram-na imediatamente. Nada de interessante aqui, diziam os ombros.

- Estou em casa da minha avó enquanto os meus pais estão em França - explicou Kim.

- Os teus pais foram viajar? - perguntou Caroline.

- Porque não nos contaste? - perguntou Annie Turofsky, num tom de voz agudo que mais parecia uma acusação.

- Quando foi que partiram? - perguntou Jodi Bates.

- Mais importante ainda - disse Caroline. - Quanto tempo vão ficar fora?

- Foram na semana passada - respondeu Kim, aproveitando a atenção renovada das três. - Voltarão na quarta-feira.

- Então deixa-me ver se entendi correctamente - disse Caroline. - Estás em casa da tua avó enquanto a tua casa maravilhosamente espaçosa está sem ninguém?

- É uma pena, não é verdade? - disse Kim.

- Um verdadeiro desperdício - concordou Caroline.

- Vocês estão a pensar no mesmo que eu estou a pensar? perguntou Jodi Bates.

- Que é uma pena uma casa tão grande e maravilhosa como aquela ficar vazia todo o

- fim-de-semana? - foi a vez de Kim perguntar.

- Especialmente quando há uma festa em busca de um lugar para ter lugar.

- Tu forneces as instalações - sugeriu Caroline. - Nós fornecemos os convidados. E todos nós levamos as bebidas. Que tal?

- Parece-me óptimo.

- Posso divulgar a notícia antes da próxima aula? - perguntou Annie.

Kim respirou fundo. Que mal faria? A avó não questionaria o facto de ela sair algumas horas sábado à noite. Os pais estavam do outro lado do mundo. Não descobririam de forma alguma. Teria cuidado. Insistiria para que todos se portassem bem. Nada de drogas. Nada de bebidas fortes.

- Nada de pessoas que não tenham sido convidadas - disse ela em voz alta.

- Não há problema - disse Jodi.

- Só os melhores - disse Caroline.

- Não sei - Kim hesitou. - Talvez não seja uma boa ideia.

- Mas Annie já estava no meio do corredor e começou a gritar para

todos que passavam.

- Há uma festa em casa da Kim Hart. Amanhã à noite. Nove horas. Há uma festa em casa da Kim, - ecoava o aviso. - Amanhã à noite. Nove horas. Há uma festa em casa da Kim. Há uma festa em casa da Kim. Há uma festa em casa da Kim.

 

- Que hipóteses pensas que tenho de convencer o empregado a trocar um desses pãezinhos por outro croissant? - perguntou Jake, sorrindo para Mattie enquanto ela batia com o pãozinho duro como pedra na borda da mesa. Estavam sentados na pequena sala de pequenos-almoços, cheia de janelas e flores, que ficava por trás do elevador, nas traseiras do hotel. Eram nove horas da manhã. Lá fora a chuva caía com tanta fúria que praticamente escondia a fila, agora já bem conhecida, de pequenas lojas e cafés.

Estava a chover havia quatro horas, calculou Mattie, evitando um bocejo. Chovia desde as cinco horas da manhã quando ela se levantara para ir à casa de banho, chovia quando tentara atravessar o quarto sem acordar Jake, que ressonava satisfeito, chovia mais ainda quando se deixou cair sentada na sanita uns cinco minutos depois, já completamente acordada. A chuva açoitava a janela da casa de banho por detrás da sua cabeça, como se tentasse entrar, enquanto ela se atrapalhava com o papel higiénico, querendo cortar o pedaço necessário para encostar ao seu corpo. Quanto tempo iria passar até que a mais íntima das funções, lhe fugisse ao controlo, quando uma coisa tão básica como limpar-se lhe seria, literalmente, retirado das mãos? A chuva acompanhou-a de volta para a cama. Deitou-se ao lado do marido e ficou horas, acordada, até que Jake despertou com o barulho da chuva a bater furiosamente na janela do quarto do hotel. Era mais fácil não pensar quando estava a chover, pensou Mattie, estranhamente embalada pela fúria crescente da tempestade.

- Conheces as leis do país - disse Mattie a Jake. - Um croissant mole e um pãozinho duro.

Encostou a chávena de café aos lábios, esperando que uma dose de cafeína lhe desse a energia necessária para o dia. Na verdade, tudo o que queria fazer era voltar para o quarto e deitar-se na cama. Não tinha prometido a Jake que não ia exagerar, que lhe diria quando estivesse cansada? Só mais umas horas de sono... era só isso que precisava. Talvez dali a algum tempo a chuva parasse.

- Estou muito entusiasmado esta manhã - comentou Jake fazendo com que um guia da cidade lhe aparecesse milagrosamente na mão. - Ouve só: "Mais do que um mero ponto de referência da extensa reforma cosmética que Paris sofreu nos últimos vinte anos" - leu ele - "o Centro Georges Pompidou de alta tecnologia é uma colmeia de actividades culturais em constante transformação. Arte, arquitectura, design, fotografia, teatro, cinema e dança contemporâneos estão todos representados, enquanto a própria estrutura grandiosa oferece vistas excepcionais sobre o centro de Paris."

Os ombros de Mattie descaíram, antecipando a exaustão. - Arte, arquitectura, design, fotografia, teatro, cinema, dança - as palavras ecoavam-lhe na cabeça com a precisão espontânea da chuva lá fora a bater nas janelas.

- "Apanhe um dos elevadores panorâmico para ter uma esplêndida visão da praça" - continuava Jake a ler - "onde músicos, artistas de rua e retratistas oferecem as suas obras às multidões."

Elevadores panorâmicos, esplêndida visão, artistas de rua, multidões, repetia Mattie mentalmente, ficando cada vez mais tonta a cada nova imagem.

- Já que está a chover - continuou Jake - podemos muito bem ir de táxi até à galeria e conhecer primeiro o seu interior. Quem sabe, talvez quando a visita acabar, a chuva já tenha diminuído, e possamos sair para que nos desenhem o retrato - parou de falar e os seus olhos azuis-escuros arregalaram-se assustados. - Que se passa, Mattie?

- Que se passa? - Mattie sentiu que a chávena de café lhe ia escorregar dos dedos.

Mattie tentou segurá-la pela delicada asa de porcelana, mas os dedos dela recusavam-se a manter a pressão. Mattie imaginou a chávena a escapar-lhe da mão e a cair no chão de mármore, ficando à espera, impotente, até que a imagem se tornasse realidade. Subitamente as mãos de Jake estavam sobre as suas, agarrando a chávena antes da queda, devolvendo-a ao pires e evitando que uma gota do líquido escuro manchasse a grossa toalha branca, sem tirar os olhos dos olhos de Mattie.

- Estás pálida como um fantasma.

- Estou bem.

- Não, não estás bem. Que se passa, Mattie? Porque não me queres contar?

Mattie abanou a cabeça, obstinada.

- Francamente, Jake, estou bem. Só um pouco cansada - admitiu Mattie com uma certa relutância, percebendo que era inútil continuar a protestar.

- Quando dizes que estás um pouco cansada quer dizer que estás exausta - comentou Jake. - Os franceses não são os únicos que dominam a arte do eufemismo.

Mattie indicou com um sorriso a sua rendição.

- Não dormi bem a noite passada. Talvez não seja má ideia eu descansar.

- Óptimo. Voltamos lá para cima e ficamos na cama até esta chuva passar. Eu também não dormi bem.

- Dormiste como um bebé.

- Então fico a ver-te dormir.

Mattie estendeu os braços por cima da mesa e acariciou o rosto do marido com os dedos cada vez mais inúteis. Quanto tempo faltaria para já não poder tocar nele daquela maneira? Quanto tempo faltaria até os menores actos de ternura lhe serem negados?

- Quero que vás ao Centro Pompidou - disse a Jake.

- Sem ti, não - foi a resposta imediata.

- Jake, é uma parvoíce perdermos os dois uma coisa dessas.

- Vamos amanhã.

- Não. Tu vais hoje - insistiu Mattie. - Se for bom, iremos juntos no ano que vem. com a Kim - acrescentou Mattie, lembrando-se da conversa que ele tivera ao telefone com a filha.

Jake encostou à boca os dedos de Mattie e beijou cada um deles.

- Acho que ela ia adorar isto - disse.

- Então não deixes de a trazer - pediu Mattie em voz suave.

- vou trazê-la - concordou Jake, num sussurro. Ficaram sentados alguns minutos em silêncio.

- Vai já - disse Mattie, por fim.

- Primeiro, vou levar-te lá para cima.

- Não é preciso.

- Mattie, não vou a parte nenhuma sem saber se estás bem e em segurança, na cama.

- Não sou uma inválida, Jake - disse Mattie irritada, e a súbita dureza da sua voz surpreendeu os dois. - Por favor, não me trates como se o fosse - disse Mattie, já em tom normal.

- Oh meu Deus, Mattie. Desculpa. Eu não quis...

- Bem sei - Mattie procurou tranquilizá-lo rapidamente. - Eu é que devia pedir desculpas. Não tinha o direito de te responder assim.

- Tens todo o direito.

- Acho que não estou num bom dia.

- O que é que eu posso fazer? - perguntou ele desesperado.

- Podes ir ao Centro Georges Pompidou e aproveitar, é isso mesmo que podes fazer.

- É isso que queres?

- É isso que quero.

Jake assentiu com a cabeça e levantou-se da cadeira.

- Acho que quanto mais depressa for, mais depressa volto.

- Mattie sorriu-lhe.

- Não te apresses. Não vou sair daqui. Agora vai. desaparece.

Ele baixou-se, beijou Mattie, e o toque dos seus lábios permaneceu nos dela muito tempo depois de Jake sair da sala. Mattie ficou sozinha alguns minutos, observando os outros hóspedes. Um casal jovem a conversar baixinho em espanhol numa mesa de canto, duas mulheres idosas a tagarelarem animadas em alemão, um casal de americanos tentando sem sucesso fazer com que os dois filhos pequenos ficassem sentados quietos. Gostaria de saber o que teria acontecido à mulher que conhecera no pátio? Cynthia qualquer coisa. Broome. Cynthia Broome. Era isso mesmo. Não a via desde o primeiro dia.

Mattie fez um esforço para se pôr de pé e notou com um sorriso que todos os croissants tinham desaparecido das cestas no centro das mesas, e que a maioria dos pães duros lá continuava. Quem teria força para mastigar aquelas coisas? Interrogou-se, atravessando lentamente a sala. Ela certamente que não, pensou, quando um dos rapazinhos americanos saiu da cadeira e veio chocar contra as suas pernas. Mattie sentiu os joelhos dobrarem-se. Tropeçou, agarrou-se a uma cadeira ali perto e conseguiu, graças unicamente à sua força de vontade, continuar de pé.

- Queres sentar-te imediatamente? - sibilou a mãe do rapaz, puxando a criança teimosa e empurrando a cadeira para o mais perto da mesa possível. - Sinto muito - disse a mulher quando Mattie passou por ela em direcção ao átrio, o sotaque da Nova Inglaterra chocando contra o eco da chuva lá fora.

Chloe Dorleac, com uma resplandecente blusa de seda roxa e batom cor de vinho, meneou friamente a cabeça na direcção de Mattie quando esta se dirigiu ao minúsculo elevador. A mulher dragão, pensou Mattie soltando uma risadinha. Subitamente deu meia volta e dirigiu-se à recepção.

- Posso ajudá-la? - perguntou Chloe Dorleac, sem levantar a cabeça.

- Queria uma informação sobre uma das hóspedes - disse Mattie, e continuou a falar ao ver que não haveria mais perguntas. - Cynthia Broome, americana.

- Cynthia Broome - repetiu a mulher dragão. - Não conheço esse nome.

- Estava aqui no dia em que cheguei. Disse que ia ficar umas semanas.

Chloe Dorleac verificou o livro de registros com gestos teatrais.

- Não. Não tivemos aqui ninguém com esse nome.

- Ora, não pode ser - insistiu Mattie, desejosa de provar que a mulher dragão estava enganada, sem saber bem por quê. Estava exausta, e as pernas começavam a doer-lhe. Precisava de ir para o quarto e deitar-se antes que caísse. - Não é muito alta. Bonita. Cabelo ruivo aos caracóis.

- Ah, sim - os olhos da mulher dragão brilharam, reconhecendo a descrição. - Já sei de quem a senhora está a falar. Mas o nome dela não é Cynthia Broome - o telefone tocou e Chloe Dorleac pediu licença para atender. - Um minuto - disse, com o dedo indicador em riste. - Une minute.

Tudo bem, pensou Mattie, ouvindo Mademoiselle Dorleac falar animada em francês com outra pessoa ao telefone. Então tinha entendido mal o apelido. Não era Broome. Era outra coisa útil, mas estava cansada demais para se lembrar. E que diferença fazia? Cynthia Não-Broome obviamente estava ocupada de mais a apreciar as vistas de Paris e feliz por o fazer sozinha. Porque razão haveria Mattie de pensar nela?

- Deixe estar - disse Mattie a Chloe Dorleac, fazendo-lhe um fraco aceno.

A mulher dragão ignorou Mattie, rindo ao telefone, apesar de quase não mexer a boca. O som da sua gargalhada seguiu Mattie até à minúscula gaiola de ferro-forjado e subiu pelo poço aberto do elevador até ao terceiro andar. Perseguiu Mattie até ao quarto, até à cama, competindo com a chuva enquanto ela fechava os olhos e entregava ao sono o seu corpo cansado.

 

NO SONHO, MATTIE CORRIA PARA SE ENCONTRAR com JAKE no cimo do Arco do Triunfo. Jake avisara-a para que não se atrasasse. Mattie viu as horas no relógio de pulso e apanhou um táxi que estava parado no meio do congestionamento de trânsito na Place de la Concorde.

- Vite! Vite! - Mattie pediu ao motorista.

- Chop! Chop! - foi a resposta do banco da frente. - A senhora sabia que o rei Luís XVI e Maria Antonieta foram guilhotinados nesta praça durante a Revolução Francesa? Na verdade, entre 1793 e 1795, um total de mil e trezentas pessoas perderam a cabeça neste preciso lugar.

- O meu pai perdeu a cabeça quando eu tinha oito anos - disse Mattie. - A minha mãe cortou-lha.

De repente Mattie já saíra do táxi e corria pelo movimentado passeio dos Campos Elíseos. Olhou mais uma vez para o relógio e viu que só tinha dois minutos para chegar ao fim da avenida ladeada de árvores, que naquele momento abrigava um número enorme de restaurantes de fast-food, vendedores de automóveis e escritórios de companhias aéreas.

- Desculpe - disse Mattie, esbarrando numa mulher com um chapéu creme e mole.

- Para quê tanta pressa? - perguntou a mulher, enquanto Mattie passava a correr.

- O Arco do Triunfo foi encomendado por Napoleão em 1806, mas a obra só terminou trinta anos mais tarde - Mattie ouviu um guia turístico a berrar em inglês para a multidão que se acotovelava por ali, quando iniciou a árdua escalada até ao topo da imponente estrutura.

- Alguém viu o meu marido? - perguntou Mattie a um grupo de turistas que descia a correr a escada de pedra em espiral.

- Acabou de sair - disse uma mulher de cabelo ruivo e encaracolado. - Foi para o Centro Georges Pompidou.

Um grupo de estudantes barulhentos ergueu Mattie aos ombros, levaram-na de volta para o princípio da escada e desapareceram, deixando Mattie sozinha num pequeno quarto sem janelas.

- Que alguém me ajude! - gritou Mattie, batendo inutilmente com o corpo contra a pesada porta de metal.

Mas a sua voz foi ficando cada vez mais fraca à medida que ia fazendo mais força, e nada mais podia ouvir que o eco do seu corpo a bater nas paredes frias de pedra.

Toc, toc.

Quem está aí?

Toc. Toc.

- Qui est lá?

Toc. Toc.

Mattie abriu os olhos, respirando com dificuldade, a testa coberta de gotículas de suor. Meu Deus, detestava sonhos como aquele. Sentou-se na cama e olhou para a janela. Continuava a chover, pensou Mattie, reparando que tinha dormido menos de uma hora. Talvez fosse melhor deitar-se de novo, tentar dormir mais uma hora, para ter certeza de estar descansada quando Jake voltasse.

Toc. Toc.

Não era sonho, percebeu Mattie. Alguém estava mesmo a bater à porta.

- Sim? Oui? Quem é? Qui est lá?

Provavelmente a empregada dos quartos, pensou Mattie, a imaginar por que é que a mulher não usaria simplesmente a chave. Também podia ser Jake... talvez se tivesse esquecido da dele. Mattie fez rodar as pernas para fora da cama.

- Mattie? - chamava a voz e a mão de Mattie ficou paralisada na maçaneta.

Mattie abriu a porta e viu uma cabeleira ruiva toda molhada.

- Que manhã horrível - disse a mulher, sacudindo a chuva dos ombros do casaco azul-escuro e olhando para Mattie com os olhos castanhos, salpicados de dourado. - Bem tentei sair, mas tive de voltar. Está horrível lá fora. Sou a Cynthia - disse, quase como se fizesse uma pergunta. - A mulher dragão disse-me que andava à minha procura.

Mattie recuou e deixou a mulher entrar no pequeno quarto, apontando com um movimento de cabeça para uma cadeira de madeira pouco firme perto da janela.

- Sim, perguntei por si. - Mattie sentou-se devagar na beira da cama, e Cynthia instalou o seu amplo traseiro na cadeira, despindo o casaco molhado. - Madame Dorleac disse que não estava cá ninguém com o nome de Cynthia Broome.

A outra mulher deu a impressão de ter sido apanhada desprevenida. Puxou uma madeixa dos seus caracóis ruivos com a mão direita e sacudiu-a, molhando os jeans com as gotas de água.

- Já sei. O meu passaporte ainda está com o nome de casada. Acho que tenho de o substituir. Estou divorciada há quase quatro anos Cynthia olhou desconfiada para o quarto. - Queria ver-me por algum motivo especial?

Mattie abanou a cabeça.

- Não, não era nada. Só fiquei curiosa, queria saber o que lhe tinha acontecido. Não a via desde aquela manhã no pátio.

- Quando andava à procura do seu marido.

- E encontrei-o.

Cynthia olhou para a casa de banho.

- Onde é que o meteu?

- Mattie soltou uma gargalhada.

- Foi ao Centro Georges Pompidou. Estava um pouco cansada, por isso voltei para o quarto para descansar.

- E eu acordei-a? - A preocupação cobriu o rosto de Cynthia como um pesado cobertor.

- Não há problema - Mattie quis tranquilizá-la. - A sério. Estou bem.

- Tem a certeza?

- De qualquer modo, estava a ter um sonho horrível. Salvou-me.

- Cynthia sorriu, mas a preocupação não lhe desapareceu do rosto.

- O sonho era sobre o quê?

- Era um daqueles sonhos idiotas em que se tenta chegar a um lugar e não se consegue.

- Ah, detesto-os - concordou Cynthia. - São frustrantes.

- Posso oferecer-lhe alguma coisa? Bolachas, água de Evian, bombons?

- Não, nada. Que tipo de bombons? - perguntou Cynthia, quase sem respirar.

- Umas coisas cheias de creme, peganhentas, meladas. Absolutamente pecaminosas - Mattie estendeu a mão para a caixa de trufas aberta sobre uma minúscula mesinha ao lado da sua almofada. Mas a caixa parecia de chumbo e caiu-lhe da mão, espalhando os chocolates no chão. - Oh, não.

- Não faz mal. Eu apanho - ofereceu-se rapidamente Cynthia, ajoelhando-se no chão e recolhendo os chocolates com dedos ávidos, Em segundos, as trufas estavam a salvo nos seus invólucros de papel castanho. - Pronto. Está tudo em ordem.

- Sinto muito.

Cynthia pegou de novo na caixa, escolheu a trufa maior e meteu-a inteira na boca.

- Hummmn, hummm. Recheio de champanhe. O meu preferido.

- Mesmo cheio de pó?

- Sim, mas não se esqueça que é pó francês. Faz uma diferença enorme.

Mattie soltou de novo uma gargalhada, concluindo que gostava de Cynthia Broome, e perguntando a si própria que homem teria sido tão tolo para a deixar escapar.

- Onde é que as comprou?

- Não sei. Jake comprou-as numa loja qualquer da Rive Droite.

- Há quanto tempo estão casados? - perguntou Cynthia, examinando os bombons que restavam na caixa.

- Há dezasseis anos.

- Tanto tempo! Deve ter-se casado ainda menina.

- Para falar verdade, quando me casei já levava uma menina explicou Mattie, surpreendida por estar a revelar, espontaneamente, uma informação pessoal a uma mulher que era praticamente uma estranha.

- Mas continuam juntos dezasseis anos depois - disse Cynthia, com um toque de inveja na voz. - Podem ter-se casado por obrigação, mas não precisavam de continuar juntos.

Mattie concordou com a cabeça.

- Penso que isso é verdade - riu-se. Mas a gargalhada entalou-se-lhe na garganta, agarrada à laringe como um pedaço de chocolate, impedindo o ar de chegar aos pulmões. Mattie saiu da cama e a caixa de bombons caiu-lhe do colo enquanto ela sacudia os braços, freneticamente, diante do rosto.

- Oh, meu Deus, o que é que eu posso fazer? - perguntou Cynthia, pondo-se imediatamente de pé, e abanando os braços inutilmente no espaço entre as duas.

Mattie abanou a cabeça. Ninguém podia fazer nada, pensou, procurando acalmar-se. Iniciando a ladainha familiar procurou convencer-se de que não estava realmente a sufocar de verdade. Os músculos do peito estavam apenas mais fracos, resultando numa respiração mais superficial, que lhe dava a sensação de estar a sufocar, mas estava a respirar bem. Calma. Calma.

Como é que poderia ficar calma se se engasgava com o pouco ar que conseguia absorver para dentro dos pulmões? Ia morrer ali mesmo, se não saísse imediatamente daquele quarto. Tinha de sair, ir lá para fora, onde havia ar puro. E as gotas de chuva do tamanho de melões para afogar os seus medos. Melhor afogar-se do que sufocar, concluiu Mattie, lançando-se para a porta, tropeçando nos seus próprios pés, perdendo o equilíbrio, caindo, as mãos incapazes de amparar a queda, batendo com o queixo no soalho duro de madeira escura, cortando o lábio, o sangue entrando-lhe na boca aberta, e ela ali deitada, a ver os montinhos de poeira em baixo da cama, lutando para respirar. Como um peixe a debater-se inutilmente no fundo do barco de um pescador, pensou Mattie, sentindo as mãos de Cynthia Broome nos seus ombros, segurando-a nos braços e apertando-a contra a seda branca da blusa, embalando-a devagar, como se ela fosse um bebé, até que a respiração de Mattie voltou ao normal.

- Está tudo bem - repetia Cynthia. - Está tudo bem. Não aconteceu nada.

- Cuidado para não manchar a sua blusa de sangue - avisou Mattie depois de alguns minutos, secando as lágrimas dos olhos e o sangue da boca.

- Não tem importância.

- É muito boa.

- Nem por isso - respondeu misteriosamente Cynthia. - Sente-se bem?

- Não - disse Mattie e depois, em voz muito baixa. - Estou a morrer.

Cynthia Broome não disse nada, mas Mattie sentiu o corpo dela ficar tenso, a respiração parar sob os seus grandes seios.

- Tenho uma doença chamada esclerose lateral amiotrófica. A doença de Lou Gehrig - acrescentou Mattie, quase de cor.

- Sinto muito - afirmou Cynthia.

- Tenho morfina na minha mala - Mattie apontou para o saco de lona castanho, no chão, perto do armário. - Podia fazer-me o favor de me dar um comprimido e um copo de água de Evian?

Cynthia ergueu-se nesse mesmo instante, desviou os chocolates no chão caminhando com todo o cuidado na ponta dos pés, vasculhou a mala de Mattie e encontrou o pequeno frasco de comprimidos.

- Um só?

Mattie esboçou um sorriso triste.

- Por enquanto. - Nesse mesmo instante Mattie sentiu o comprimido na ponta da língua, o copo de água nos lábios e a Evian transportando-lhe o comprimido suavemente pela garganta. - Obrigada.

- Cynthia sentou-se outra vez ao lado de Mattie no chão, as duas encostadas aos pés da cama.

- - Não precisa de ficar - disse-lhe Mattie. - Agora já estou bem. O meu marido não deve demorar.

- Fale-me dele - pediu Cynthia, instalando-se já que obviamente não sairia dali.

Mattie visualizou os olhos azuis-escuros de Jake e o seu rosto bonito, as mãos fortes e a sua boca suave.

- É um homem maravilhoso - disse Mattie. - Generoso. bom. Carinhoso.

- E aposto que também é bonito.

- Lindo.

As duas mulheres riram baixinho.

- Então calhou-lhe um dos bons - disse Cynthia.

- Sim, é verdade - concordou Mattie.

- Também já tive um desses.

- O que é que lhe aconteceu?

- Circunstâncias - disse Cynthia vagamente.

- As circunstâncias mudam.

Cynthia assentiu com a cabeça e olhou para o chão.

- Sim, mudam mesmo.

- Estamos a falar do seu ex-marido? - perguntou Mattie.

- Oh, meu Deus, não - Cynthia soltou uma risada. - Mas, quem sabe? Ele não ficou comigo o tempo suficiente para eu descobrir.

- Parece que não perdeu nada.

- Não sei. Sempre pensei que talvez me pudesse ter esforçado mais, sabe? - Cynthia bateu na cabeça. - Nunca fui muito inteligente no que se refere a homens - olhou para Mattie. - Há algum motivo para estarmos sentadas no chão?

- A queda é menor - disse simplesmente Mattie, enquanto Cynthia a ajudava a voltar para a cama, ajeitando-lhe as almofadas atrás da cabeça e esticando-lhe as pernas por cima da colcha branca.

- Não vamos deixá-la cair - disse Cynthia, examinando o rosto de Mattie com atenção. - Sabe, julgo que devemos pôr água fria nesse rosto. Está a começar a inchar um pouco - Cynthia foi até à casa de banho. - Oh, mas quem diria - gritou Cynthia para se fazer ouvir com o barulho da água a correr. - Tem um Renoir no seu chão. Eu tenho um Toulouse-Lautrec no meu. Jane Avril a dançar o can-can no Moulin Rouge. Engraçado, não é?

com a chuva a bater na janela, a água a correr na casa de banho e o som da voz de Cynthia, Mattie não ouviu a chave dar a volta na fechadura. Não viu a maçaneta a girar e não percebeu que Jake tinha voltado, até ele entrar e fechar a porta.

- A porcaria da galeria estava fechada para obras - disse Jake, quase em câmara lenta, tirando o casaco e, voltando-se para a cama, sorriu, mas o sorriso desapareceu imediatamente. E então, subitamente, tudo começou a acontecer com grande rapidez, como se toda a acção estivesse a ser gravada antes e depois. Mesmo depois, quando Mattie tentou lembrar-se da ordem exacta dos factos, achou difícil separar um do outro, uma frase da outra. - Meu Deus, o que te aconteceu?

- Já estou bem, Jake - Mattie quis tranquilizá-lo. - Só sofri uma pequena queda.

Nesse mesmo instante Jake ajoelhou-se ao lado da cama.

- Bolas, bem sabia eu que não devia deixar-te sozinha.

- Está tudo bem, Jake. Não fiquei sozinha.

- O que é que estás a dizer? - Jake olhou para a casa de banho. - A torneira está aberta?

- A Cynthia está aqui - disse Mattie. - Está a preparar-me uma compressa fria.

- A Cynthia?

- A senhora de Chicago que conheci no pátio, quando chegamos. Lembras-te. Falei-te nela. Cynthia Broome.

A cor desapareceu do rosto de Jake, como água a jorrar de uma torneira. Primeiro das faces, depois até os olhos empalideceram.

- A Cynthia Broome?

- Alguém me chamou? - Cynthia saiu da casa de banho e aproximou-se da cama, enquanto Jake se erguia pouco à vontade. - Você deve ser o Jake - disse Cynthia, passando a toalha molhada para a mão esquerda e estendendo-lhe a direita.

- Não estou a entender - disse Jake, com as mãos crispadas dos lados do corpo. - O que é que está aqui a fazer?

- Jake! - exclamou Mattie. - Não estarás a ser um pouco indelicado?

- Desculpe - gaguejou Jake, tentando rir-se. - Apanharam-me desprevenido, acho eu - pigarreou ele e ergueu a mão no ar. - Saio por uma hora, volto e encontro a minha esposa coberta de hematomas e uma desconhecida na minha casa de banho.

Seria imaginação, pensou Mattie, ou Cynthia estremecera como se tivesse levado uma bofetada ao ouvir Jake pronunciar a palavra "desconhecida"? E o que estaria a acontecer a Jake? Não era próprio dele ficar assim tão perplexo, em qualquer situação.

- Foi uma manhã frustrante para ti - disse Mattie, e Cynthia deu a volta à cama para se sentar ao lado dela e lhe aplicar a compressa suavemente no rosto.

Jake ficou paralisado.

- Alguém me pode dizer o que está a acontecer?

- Tive um ataque - explicou Mattie. - Não conseguia respirar. E caí. Por sorte, a Cynthia estava aqui. E ajudou-me.

- Mas o que estava ela a fazer aqui? - perguntou Jake, falando sobre Cynthia como se ela não estivesse no quarto.

- Disseram-me que a sua mulher tinha estado à minha procura a voz de Cynthia ficou subitamente fria como a compressa. - Passei por aqui por cortesia.

- Cortesia?

A raiva na voz de Jake era muito clara. Que se passaria com ele? Pensou Mattie. Nunca reagia daquela forma. Mas sempre fora impaciente com as pessoas de quem não gostava. Lembrou-se do incidente no Great Impasta, a fúria dele quando os colegas se precipitaram e concluíram erradamente o motivo do comportamento dela. Mas o que é que ele tinha contra Cynthia Broome? Por que teria raiva dela? Certamente não considerava que ela tivesse sido responsável pelo ataque de Mattie.

- Que se passa Jake? Estás bem? - perguntou Mattie.

Jake passou a mão trémula pelo cabelo preto e respirou fundo, muito devagar.

- Desculpa - disse Jake mais uma vez. - Acho que esta manhã me deixou um pouco tenso. Fiz todo o caminho à chuva até à galeria, que depois estava fechada, e em seguida estive meia hora à espera para conseguir um táxi e finalmente estou de volta e encontro...

- A sua mulher coberta de hematomas e uma desconhecida na sua casa de banho - disse Cynthia, completando-lhe a frase.

- Obrigado por ter ajudado a minha mulher - disse Jake.

- Cynthia abanou com a cabeça.

- O prazer foi todo meu. Fico muito contente de ter sido útil. De qualquer modo - continuou Cynthia quase no mesmo fôlego, estendendo a compressa a Jake - já é tempo de tomar o meu lugar. Este quarto realmente não tem espaço para três pessoas - Cynthia levantou-se da cama, pegou no casaco e deixou a compressa na mão de Jake, quando passou ao lado dele. - Cuidado com os bombons - avisou Cynthia.

- Quem sabe podemos almoçar juntas mais tarde - disse Mattie quando Cynthia estava a abrir a porta.

Cynthia olhou para o relógio.

- Na verdade, esta tarde vou fazer um passeio mistério pela cidade. O mistério é se poderemos ver alguma coisa com esta chuva toda.

- Que tal amanhã? - insistiu Mattie, apesar de não saber bem porquê.

Era óbvio que a mulher estava aflita para se ir embora, e Jake estava também aflito para que ela fosse. Mattie fora forçada a admitir que, por vezes, acontecia uma química negativa natural entre duas pessoas. A sua mãe dizia que aquilo acontecia com os cães. Não via motivo para não poder acontecer com seres humanos também. Por que é que estava a insistir numa coisa que ninguém queria?

- vou estar ocupada até ao final da viagem - respondeu Cynthia, equilibrando-se ora num pé ora noutro.

- Entendo - disse Mattie, apesar de não entender nada. - Talvez quando voltarmos para Chicago. Tem de me dar a sua morada e o seu número de telefone.

- vou deixá-los com a mulher dragão - Cynthia olhou para o relógio pela segunda vez, mas tão depressa que Mattie achou que não tinha tido tempo para ver as horas. - Tenha cuidado consigo - disse ela. - Prazer em conhecê-lo, Jason.

- vou acompanhá-la até lá abaixo - ofereceu-se subitamente Jake. - Volto num minuto - disse para Mattie, que ficou calada quando ele seguiu Cynthia para o corredor e fechou a porta.

- Oh, meu Deus - murmurou Mattie logo que eles saíram, e as palavras caíram-lhe dos lábios quando se levantou e começou a andar de um lado para outro, arrastando as pernas no espaço estreito entre a cama e a parede. - Oh, meu Deus. Oh, meu Deus.

Não podia ser verdade. Não podia.

- Oh, meu Deus. Oh, meu Deus. Prazer em conhecê-lo, Jason. Jason. Jason. Jason. Jason.

O que significava isto? O que poderia significar? Não admirava que Chloe Dorleac nunca tivesse ouvido falar de Cynthia Broome. Não havia nenhuma Cynthia Broome.

- Oh, meu Deus, oh, meu Deus, oh, meu Deus.

Não admirava a voz dela ter-lhe parecido familiar. Mattie tinha ouvido aquela mesma voz ao telefone mais de uma vez. Amo-te, Jason.

Jason. Jason. Jason. Jason.

Estivera lá o tempo todo, provavelmente encontrando-se com Jake sempre que era possível. Bem à francesa, pensou Mattie. Viajar para Paris com a mulher e a amante.

- Oh, meu Deus, oh, meu Deus, oh, meu Deus. Também já tive um desses.

O que aconteceu? Circunstâncias.

- Preciso de sair daqui - murmurou Mattie, remexendo na gaveta da mesinha ao lado da cama, onde encontrou o seu passaporte ao lado da passagem de regresso para Chicago. Tropeçou e caiu novamente, esmagando alguns chocolates com os pés; apanhou a sua mala do chão e guardou o passaporte e a passagem. - Preciso de sair daqui.

Abriu a porta e espreitou. Não havia ninguém no corredor, mas ouviu vozes que subiam pelo poço do elevador, vindas do átrio. Ficou a imaginar para onde é que Jake teria ido com Cynthia.

Não, Cynthia não.

Honey. Honey Novak.

Honey com ey, pensou Mattie com amargura, arrastando-se para o elevador, percebendo que se tinha esquecido da bengala, carregando no botão diversas vezes com as costas da mão direita. Não tinha tempo para voltar. Precisava de sair daquele maldito hotel naquele instante. Antes de Jake voltar. Precisava de chegar ao aeroporto. Apanhar um voo mais cedo. E esperar que quando Jake descobrisse, já ela estivesse num avião, de regresso a Chicago.

Podia arranjar-se sozinha, mesmo sem a bengala. Não tinha bagagem. Não seria muito difícil trocar a passagem. Tomaria um comprimido a mais de morfina, e dormiria todo o caminho de volta para casa. A primeira coisa que iria fazer quando chegasse era trocar todas as fechaduras.

- Onde está a porcaria do elevador? - Mattie batia com a palma da mão no botão e deu um suspiro de alívio quando o ouviu começar a subir. E se Jake estivesse lá dentro?, pensou ela, dando um passo para trás e espremendo-se contra o papel de parede azul aveludado, sustendo a respiração.

Segundos depois o elevador chegou, vazio e esperançoso. Lentamente Mattie abriu a porta de ferro e entrou. Os seus dedos atrapalharam-se com os botões e, acidentalmente, apertou dois ao mesmo tempo, de forma que o elevador fez uma paragem extra e indesejada antes de finalmente chegar ao átrio. Quando ele parou Mattie ficou imóvel, espreitando através das grades da porta de ferro, como uma prisioneira, sem saber ao certo se tinha forças para prosseguir.

- Não vai sair? - perguntou uma vozinha.

Mattie assentiu com a cabeça para o menino louro que estava do outro lado das grades, a mesma criança indisciplinada que tinha visto na sala do pequeno-almoço naquele dia. Teriam passado apenas algumas horas?, perguntou a si própria, saindo do elevador. Parecia muito mais tempo. Uma vida inteira, ela pensou.

- Afasta-te e deixa passar a senhora - ordenou a mãe do menino.

- Ela anda de uma forma engraçada - Mattie ouviu o menino gritar enquanto coxeava o mais depressa que podia para a porta dupla do hotel.

- Caluda! - disse a mãe da criança.

- Por que é que ela estava a chorar? - perguntou o menino quando a porta do hotel fechou atrás de Mattie.

Mattie estava na rua e a chuva encharcou-lhe imediatamente a roupa, colando-lhe o cabelo ao rosto. Segundos depois, um táxi parou e ela entrou.

- Aeroporto Charles de Gaulle - disse Mattie, limpando a mistura de chuva e lágrimas no rosto ferido. - Vite. - E de novo se lembrou do seu sonho. - Vite.

 

- Podes EXPLICAR-ME o QUE DIABO SE PASSA? - EXIGIU JAKE, furioso, com a mão apertando o cotovelo de Honey, empurrando-a para a escada. Falava num murmúrio, mas era impossível não notar a raiva na voz dele.

- Jason, acalma-te. Não é o que estás a pensar.

- Ah, não? E o que é que, eu estou exactamente a pensar?

- Nunca quis que isto acontecesse.

Chegaram ao topo da estreita escada em espiral. Jason hesitou, não tinha a certeza da direcção que queria tomar, os seus dedos apertavam com muita força o braço de Honey. Sabia que a estava a magoar, mas não se importava. Na verdade, tinha vontade de a matar. Precisava de toda a sua força para não a atirar pelos três andares, até ao átrio. Que raio estaria ela a fazer em Paris? Naquele hotel? O que tinha feito com Mattie? O que lhe teria dito?

Como se lhe tivesse lido os pensamentos, Honey disse:

- O meu quarto fica no quinto andar. Vamos lá para cima, Jason. Podemos conversar. vou explicar tudo.

Sem lhe dar tempo para pensar, Jake empurrou Honey pelos dois lances de escadas, até ao quinto andar. O que estava a fazer no seu quarto? O que tinha dito a Mattie para precipitar o ataque? Se Honey tinha dito qualquer coisa para aborrecer Mattie, ele iria estrangulá-la naquele momento.

Mas Mattie não parecera perturbada, lembrou-se ele. Parecia até grata pela presença de Honey, desapontada com a sua partida, e chocada com a indelicadeza de Jake. Como explicaria a Mattie o seu estranho comportamento?

- A minha chave está no bolso do casaco - disse Honey. - Não consigo apanhá-la se não me largares o braço.

Jake largou o braço de Honey e ficou a olhá-la enquanto abria a porta do quarto. Depois deu uma espreitadela furtiva em volta e empurrou-a para dentro do quarto que era praticamente idêntico ao seu.

- O que é que está a acontecer? - insistiu ele, batendo com a porta.

Honey atirou o casaco para cima da cama desarrumada, perturbando a imobilidade dos lençóis revoltos, fazendo pairar o seu perfume marcante, que penetrou nas narinas de Jake, trazendo-lhe a lembrança dos meses que haviam passado juntos, os dias e as noites em que ele passara na desordem extravagante do quarto dela em Chicago. Por uns instantes sentiu que a raiva diminuía, que o seu corpo ficava menos tenso, e então visualizou Mattie sentada, magoada e vulnerável, na mesma cama dois andares abaixo, e a raiva voltou, os seus punhos crisparam-se ao lado do corpo. Afastou os olhos da cama e viu embrulhos sobre todas as superfícies disponíveis - cadeira, mesa-de-cabeceira, até sobre a tampa da mala que estava no chão perto da janela.

- Comecei a coleccionar bonecas francesas - disse-lhe Honey, seguindo a direcção do olhar de Jake. - Não sei como as vou levar a todas no avião...

- Não estou interessado na porcaria das bonecas - exclamou Jake irritado. - Quero saber o que é que estás aqui a fazer.

- Sempre quis conhecer Paris - respondeu Honey, endireitando os ombros, numa atitude muda e inconfundível de desafio.

- Deixa-te de parvoíces, Honey. Porque estás aqui?

A dureza da repreensão atingiu Honey com uma força quase visível. Os ombros

descaíram-lhe nesse mesmo instante, como se tivesse levado uma punhalada. Dobrou o corpo para a frente. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

- Acho que é bem óbvio - respondeu Honey depois de uma breve pausa, virando-se de costas para ele.

- Então esclarece-me.

Honey dirigiu-se à janela e ficou a observar a rua molhada da chuva.

- Fiquei muito confusa depois do que aconteceu no teu escritório começou Honey, engolindo as lágrimas, recusando-se a olhar para ele.

- Confusa e zangada. E com medo.

- Com medo?

Do que é que ela estava a falar?

- Sabia que estava a perder-te. Que já te tinha perdido - corrigiu imediatamente. - Tu negaste, e eu tentei negar também, mesmo quando não me procuraste durante semanas. Depois daquela tarde no teu escritório, de me ter ido embora daquela maneira, não podia deixar ficar as coisas assim. Não podia deixar que acabasse tudo sem tentar pelo menos mais uma vez. Por isso telefonei para o teu escritório, descobri quando ias viajar, reservei uma passagem não reembolsável para não poder desistir, paguei o quarto do hotel adiantado, cheguei aqui alguns dias antes de vocês. Não tinha qualquer plano. Certamente não ia revelar a Mattie quem sou. Só queria estar aqui para ti, para alguma eventualidade.

- Que eventualidade?

- Se precisasses de mim. Se tu me quisesses - acrescentou ela num murmúrio.

- A questão não é o que eu quero - disse Jake. - Achei que tinhas entendido isso.

- Entendo muita coisa, Jason. Mais do que tu pensas. Mais do que eu penso que tu entendes.

- De que é que estás a falar?

- Entendo que o homem que eu amo, ama outra pessoa.

- A questão aqui não é amor - protestou Jake. - É a necessidade.

- É amor, sim - disse Honey com firmeza. - Por que é que tens tanta dificuldade em entender esse conceito? Tu amas a tua mulher, Jason. É simplesmente isso.

Jake abanou a cabeça como se quisesse evitar que as palavras de Honey lhe penetrassem no cérebro.

Tu amas a tua mulher, Jason. É simplesmente isso. Tu amas a tua mulher, Jason. Jason. Jason. Jason. Jason.

- Oh, meu Deus - gemeu Jake em voz alta.

- O que foi?

- Ela sabe.

- O quê? O que estás a dizer?

- A Mattie sabe.

- Não estou a entender. Como poderia...?

- Chamaste-me Jason.

- O quê?

- Lá em baixo. Quando ias a sair, disseste: "Muito prazer, Jason."

- Não, eu... oh, meu Deus, disse sim. Achas que ela percebeu...?

- Ele não respondeu. Num segundo Jake já tinha saído do quarto e descia a correr os dois andares para o terceiro, com Honey no seu encalço.

- Fica aqui - ordenou Jake quando chegou ao terceiro andar e começou a bater à porta do quarto. - Mattie! Mattie, deixa-me entrar. Esqueci-me da minha chave aí dentro. Mattie! - gritou novamente, sentindo a ausência dela, sabendo que o quarto estava vazio, que ela já tinha partido. - Mattie! - berrava Jake, até que a porta do quarto vizinho se abriu e uma mulher volumosa com um roupão amarelo de algodão pôs a cabeça para fora.

- Americanos - resmungou baixinho antes de entrar no quarto outra vez e fechar a porta.

- Desculpe - ouviu Jake Honey dizer a alguém no andar de cima.

- Pode-nos abrir a porta?

com quem é que ela estava a falar? Pensou Jake, e viu uma empregada de quartos a descer a escada atrás de Honey.

- Esqueci-me da minha chave - disse ele, mas era certo que a empregada não estava interessada nas explicações de Jake. Abriu a porta com uma das chaves do seu grande chaveiro e voltou para a escada sem dizer palavra. - Mattie! - chamou Jake, entrando no quarto vazio, verificando a casa de banho antes de abrir o armário e ver que as roupas dela ainda lá estavam. E a mala também, pensou aliviado, apesar de saber que ela não teria tempo, força, nem disposição para fazer as malas. Onde é que ela se meteu? Para onde poderia ter ido?

- A bengala dela ainda está aqui - disse Honey esperançosa. - Não pode ter ido muito longe.

Mas Jake já estava no corredor, desceu as escadas aos saltos, de dois em dois degraus, voando por cima dos últimos três e aproximou-se do balcão da recepção, onde Chloe Dorleac estudava um mapa da cidade com dois turistas alemães.

- Viram a minha mulher? - perguntou Jake. - Ma femme? - disse Jake quando Chloe Dorleac ignorou a presença dele. - Que diabos! - Gritou, batendo no balcão. - É uma emergência!

- Não sei onde a sua esposa possa estar, monsieur - disse a mulher dragão friamente, sem tirar os olhos do mapa.

- Não viu quando ela saiu? Não pode ter sido há mais de dez minutos.

- Não posso ajudá-lo, monsieur - foi a resposta.

- Não está na sala do pequeno-almoço - disse Honey, aparecendo ao lado dele.

Jake examinou freneticamente o átrio. O seu comportamento tinha atraído a atenção de vários turistas que esperavam que a chuva passasse.

- Alguém viu a minha mulher? - perguntou ele para alguns pares de olhos inexpressivos. - Alguém aqui fala inglês? - Jake fez uma pausa e olhou para a rua. - Alguém a viu? Alta, magra, cabelo louro, pelos ombros. Tem problemas para andar...

- Eu vi - disse uma vozinha atrás de um grande vaso no canto mais afastado do átrio.

Jake ajoelhou-se no chão nesse mesmo instante, tentando convencer um menino louro a sair detrás do grande vaso.

- Viste-a?

- Estou a brincar às escondidas com o meu irmão - disse o menino.

- Viste a minha mulher...

- O andar dela é muito esquisito - disse o menino, e soltou uma gargalhada.

- Para onde é que ela foi?

O menino encolheu os ombros.

- Tenho de me esconder para o meu irmão não me apanhar.

- Não viste para onde ela foi?

- Apanhou um táxi - explicou o menino. - Não sei para onde foi.

- Um táxi? - repetiu Jake.

Para onde iria? Especialmente com aquele dilúvio. O menino desatou a correr e desapareceu no preciso instante em que a mãe apareceu.

- Lance, onde estás? - gritou a mulher preocupada. - Que diabos, já aguentei palermices que cheguem. Acabou a brincadeira.

- Será que devemos chamar a polícia? - Jake ouviu Honey perguntar ao tropeçar nela. Correu novamente para a escada e subiu até ao terceiro andar, aliviado por encontrar aberta a porta do quarto. Correu para a mesa-de-cabeceira do lado de Mattie, abriu a gaveta, pegou no seu passaporte e na sua passagem de avião, e percebeu que os papéis de Mattie tinham desaparecido antes mesmo de ir verificar.

- Oh, meu Deus - disse Jake, caindo de cansaço, ofegante, o corpo todo a tremer.

- Afundou-se na cama com as mãos na cabeça. - Ela foi-se embora - disse quando Honey entrou no quarto. - Levou o passaporte e a passagem, e nesta altura já deve estar a meio caminho do aeroporto.

- Então sugiro que levantes daí o traseiro e trates de te mexer disse Honey com voz suave e directa.

O aeroporto Roissy-Charles de Gaulle é um complexo gigantesco que fica trinta quilómetros a norte de Paris. Possui dois terminais principais, o segundo dos quais está situado a vários quilómetros do primeiro e é formado por dois edifícios ligados, divididos em quatro partes. Há também um terminal separado para voos charter. Ao todo, o aeroporto é servido por pelo menos quarenta companhias aéreas regulares e dezasseis de voos charter. Jake tivera bastante dificuldade em se orientar quando ele e Mattie chegaram. Como se iria ela arranjar sozinha? Perguntou a si próprio, pedindo ao motorista do táxi que se apressasse nas ruas congestionadas de Paris. Apesar do aeroporto ser próximo da cidade, recomendavam aos passageiros que calculassem uma hora para lá chegar, e Jake entendia porquê, especialmente em condições difíceis como aquela.

- Não podemos ir um pouco mais depressa? - pediu Jake. - Plus vite - disse, e o motorista do táxi abanava a cabeça juntamente com os pára-brisas do carro. - É muito importante que eu chegue ao aeroporto o mais depressa possível.

- O mais importante é chegar vivo - disse o motorista num inglês de sotaque carregado.

Jake recostou-se nos estofos de plástico verde do velho táxi. Pelo menos o aeroporto Charles de Gaulle era bem equipado para atender os deficientes físicos. Havia telefones especiais, salas de espera, elevadores e passadeiras, cadeiras de rodas e ajuda com a bagagem. Os agentes usavam uniformes especiais e ficavam à disposição para auxiliar os passageiros. Conseguiria Mattie encontrá-los? Conseguiria explicar-se?

Jake quase sorriu. Por maior que fosse a dificuldade, Mattie nunca tivera problema para se fazer entender.

Iria encontrá-la? Chegaria a tempo? Seria possível que ela nem se preocupasse em trocar a passagem. Poderia simplesmente ir ao primeiro balcão que encontrasse e embarcar no primeiro voo disponível. Tinha cartões de crédito. Não havia nenhuma lei a dizer que precisava de voar directamente para Chicago. Podia escolher Nova Iorque ou Los Angeles, e preocupar-se em apanhar depois um voo de ligação. Jake soltou um ruidoso suspiro e calcou o invisível acelerador sob o seu pé. Mattie estava perturbada. Estava com raiva. Não dava para prever o que ela poderia fazer. Precisava encontrá-la.

O táxi parou no terminal e Jake atirou com umas centenas de francos para o banco da frente, sem esperar pelo troco. Correu para o terminal, examinando os grandes monitores à procura dos voos que saíam naquele momento.

- Por favor - disse Jake a uma das agentes. - De onde saem os voos para Chicago?

Ele saiu a correr antes mesmo de a jovem espantada acabar de lhe indicar o caminho.

- Desculpe - disse Jake a um cavalheiro idoso depois de dar um encontrão. - Excusez-moi - desculpou-se com a jovem cuja mala fez deslizar pelo chão do aeroporto. - Desculpe. Excusez-moi. Excusez-moi - repetia Jake sem parar, e o que realmente queria dizer a toda a gente era "Saiam do meu caminho". Corria às cegas, sem saber aonde se dirigia, sem perceber nada além do seu destino final. - Desculpe. Desculpe. Excusez-moi.

Por fim, viu-a. Estava sentada numa cadeira de rodas no fim de uma fila de cadeiras de plástico cor-de-laranja, com a cabeça baixa. Tinha conseguido. Sozinha. Apanhara um táxi no meio daquele dilúvio e contornara todos os meandros daquele aeroporto movimentado, sem a ajuda dele. Encontrara o balcão certo, conseguira uma cadeira de rodas e, sem dúvida, reservara o lugar num voo mais cedo. Meu Deus, era incrível, pensou Jake, parando para recuperar o fôlego.

E ela cortava-lhe o fôlego.

E agora? pensou ele, reflectindo sobre todas as coisas que tinha imaginado dizer a Mattie na interminável viagem da cidade para o aeroporto. Tinha preparado algumas palavras cuidadosamente escolhidas em defesa própria, tinha ensaiado em silêncio algumas frases chave. Seria a argumentação final mais importante da sua vida, compreendeu Jake, encaminhando-se para ela. Era importante dizer as coisas apropriadas.

De repente Jake sentiu o corpo ser violentamente lançado para a frente. Lutou para manter o equilíbrio e um homem de meia-idade, com o rosto vermelho, chocou com ele no sentido contrário.

- Excusez-moi - resmungou o homem, sem parar, sem se voltar para trás para ver se Jake continuava de pé.

- Tshh - Jake ouviu alguém murmurar.

- Ca vá? - perguntou alguém. - Está tudo bem?

- Obrigado, estou bem - disse Jake, endireitando os ombros, firmando os pés. - Merci. Mera - disse ele olhando para Mattie.

Mattie tinha os olhos fixos em Jake e, por uns instantes, os olhos dos dois encontraram-se. De repente Mattie começou a tentar fugir, manobrar a cadeira de rodas para sair do espaço no qual a tinham confinado, as rodas viravam-se para lá e para cá, a cadeira parada, e as mãos de Mattie a lutarem para soltar o travão.

- Mattie! Mattie, por favor! - Jake correu para ela e as palavras cuidadosamente ensaiadas desapareciam a cada passo que dava.

As mãos de Mattie encontraram o travão, conseguiram soltá-lo e a cadeira de rodas disparou para a frente, quase atropelando os sapatos de Jake.

- Sai do meu caminho, Jake! - gritou Mattie.

- Por favor, Mattie. Tens de me ouvir.

- Não quero ouvir-te.

- Há algum problema? - perguntou alguém.

Jake virou-se para o lado e viu um rapaz musculoso com uma bandeira americana na mochila levantando-se da cadeira.

- Nenhum problema - disse Jake. - Mattie...

- Parece que a senhora não quer conversar consigo - disse o jovem.

- Olhe, isto não é da sua conta - Jake impediu os esforços continuados que Mattie fazia para escapar.

- O senhor não é Jake Hart, o advogado? - perguntou uma mulher. - Vi há tempos a sua fotografia na capa da revista Chicago.

- Sim? - perguntou o acompanhante da mulher.

- Tenho certeza de que é ele. Aquela mulher na cadeira de rodas chamou-lhe Jake.

- Aquela mulher é a minha mulher - replicou Jake, dando meia volta, furioso, e vendo os passageiros que estavam à espera do voo para Chicago afundarem-se de novo nas cadeiras. - Preciso de conversar com ela.

- Volta para o hotel, Jake - gritou Mattie. - A tua namorada está lá à tua espera.

- Valha-me Deus... - disse alguém.

- Por favor, Mattie, não é o que tu pensas.

- Não me venhas dizer que aquela não era a Honey Novak - disse Mattie. - Não te atrevas a insultar a minha inteligência dessa forma.

- Não vou negar.

- Então o que podes me dizer que eu possa estar interessada?

- Não fazia ideia de que ela estava em Paris - começou Jake a explicar, e a verdade pareceu mais idiota do que qualquer desculpa que pudesse ter inventado. E desde quando a verdade era alguma defesa?, reconheceu ele. Todos aqueles anos de prática de advocacia não te ensinaram nada? - Por favor, acredita em mim, Mattie. Eu já tinha terminado tudo com ela. Já não a via há alguns meses.

- Então como é que ela sabia que íamos viajar? Como é que ela sabia onde íamos ficar?

- Apareceu no meu escritório...

- Acabaste de me dizer que não a vias há meses.

Jake olhou aflito para a enorme sala de espera, sentindo-se como uma testemunha relutante num tribunal.

- Foram apenas uns minutos. Ela apareceu sem avisar.

- Ela faz muito isso.

- Eu não tinha ideia de que ela estava em Paris até a encontrar no nosso quarto do hotel.

Mattie abanou a cabeça, chorando lágrimas amargas.

- Não podias esperar, pois não? Não podias perder uma viagem romântica a Paris. Não podias desperdiçá-la com a tua mulher doente.

- Isso não é verdade, Mattie. Sabes que não é verdade.

- Qual é o teu problema, Jake? - gritou Mattie, com uma angústia palpável. - Estou a demorar muito tempo a morrer?

Gritos sufocados escaparam dos lábios de várias pessoas.

- Mattie...

- Queres saber uma coisa engraçada? - continuou Mattie. - Gosto dela. Gosto mesmo dela. Parabéns. Jake Hart tem um excelente gosto para mulheres.

- Bem te disse que era ele - disse alguém em voz alta.

- Volta para ela, Jake - disse Mattie, substituindo a indignação pela resignação. - Ela

- ama-te.

- Eu não a amo.

- Então, és parvo.

- Deus sabe que isso é verdade - concordou Jake.

Por uns breves instantes, Jake teve a impressão de que Mattie iria ceder, como se afinal resolvesse acreditar nele. De repente, uma cortina de renovada determinação caiu sobre os seus olhos e mais uma vez ela tentou recuar no pequeno espaço mas as mãos

escorregavam-lhe impotentes nas partes laterais da cadeira de rodas.

- Mexe-te, raios - instintivamente, Jake estendeu as mãos para a ajudar. - Vai-te embora, Jake! - berrou ela. - Vai-te embora. Não preciso de ti.

- Podes não precisar de mim, mas, que diabo, eu preciso de ti gritou Jake, surpreendendo-se até a si mesmo. - Amo-te, Mattie - disse. - Amo-te.

- Não - disse Mattie. - Por favor, não digas isso.

- Amo-te - repetiu Jake, caindo de joelhos à frente da cadeira de rodas.

- Levanta-te daí, Jake. Por favor. Já não precisas fingir.

- Não estou a fingir, Mattie, amo-te. Por favor, acredita em mim. Amo-te. Amo-te.

Fez-se um longo silêncio. Parecia que todos em volta estavam a suster a respiração. Jake sentiu o próprio fôlego deter-se dentro do seu peito. Descobriu que não podia respirar sem ela. O que faria se ela o deixasse agora?

- Amo-te - repetiu ele, olhando Mattie nos olhos até ficar cego com as lágrimas. Não fez nada para as secar. - Amo-te - disse Jake novamente. Que mais haveria para dizer?

Outro silêncio. Mais longo que o primeiro. Interminável.

- Amo-te - murmurou Mattie.

- Oh, meu Deus - gritou Jake. - Amo-te tanto!

- Amo-te tanto - repetiu Mattie, chorando com ele. - Amo-te, amo-te, amo-te, amo-te.

- Vamos voltar para a cidade e procuramos um outro hotel - começou Jake a dizer.

- Não - interrompeu Mattie, passando desajeitadamente a mão no rosto de Jake. Este segurou a mão de Mattie, com força e deu-lhe um beijo. - Está na hora, Jake - disse Mattie, e Jake assentiu com a cabeça, triste e conscientemente. - Está na hora de voltar para casa.

 

CHEGARAM A CHICAGO ÀS QUATRO HORAS DA TARDE, DOIS dias antes do previsto.

- Alguma coisa não está bem - disse Mattie quando a limusine parou diante da casa deles.

Havia uma carrinha branca, desconhecida, estacionada à porta, ao lado do velho e dilapidado Plymotith verde da mãe dela. O que é que a mãe dela estaria a fazer ali? Interrogou-se Mattie, lendo o complicado logotipo inscrito na parte lateral do carro que anunciava em letras vermelhas e sinuosas tratar-se do Serviço de Limpeza Capiletti's.

- Não tires nenhuma conclusão precipitada - aconselhou Jake, pagando ao motorista e ajudando Mattie a descer do banco detrás da limusine.

- Achas que houve um arrombamento? Ou um incêndio? - Mattie observou a fachada da casa em busca de danos provocados pelo fogo.

- Parece que está tudo em ordem.

- Está alguém em casa? - gritou Mattie quando Jake abriu a porta. - Está alguém em casa? Mãe? - Mattie entrou nervosa no hall. Uma mulher de jeans, camisa velha e com um lenço a cobrir-lhe o cabelo castanho atravessou o hall dirigindo-se à cozinha, carregando um enorme saco verde de lixo. Sorriu.

- Quem é a senhora? - perguntou Mattie. - O que se passa?

- Martha? - chamou a mãe dela do segundo andar e a mulher desconhecida desapareceu na cozinha. - És tu?

- Mãe? Que se passa?

- Procura não te aborreceres - pediu Jake.

- Chegaram cedo demais - disse a mãe dela, em vez de os cumprimentar e desceu a escada a correr para se deter repentinamente no hall. Como a mulher que estava na cozinha, a mãe de Mattie usava jeans e uma velha camisola de algodão. O cabelo grisalho estava preso num carrapito mal feito, com mais cabelo de fora do travessão roxo do que lá dentro. - Esperávamos que só voltassem daqui a dois

dias.

- O que é isto? - perguntou de novo Mattie, sem se dar ao trabalho de explicar.

- Não é tão mau como parece - começou a mãe dela. - Talvez seja

melhor sentares-te.

- O que se passa? - repetiu Mattie.

- Houve uma festa. Acho que as coisas se descontrolaram um pouco. Eu estava à espera de ter tudo limpo antes de vocês chegarem.

- Deste uma festa? - perguntou Mattie incrédula. Quando fora que a mãe recebera alguém, para além dos seus cães?

- Vamos sentar-nos - pediu a mãe dela.

Um rapaz corpulento de camisa branca e calças pretas saiu do escritório de Jake, transportando a fotografia de Raphael Goldchain, que Jake tinha comprado recentemente, com a moldura rachada, o vidro estilhaçado, a foto da modelo praticamente nua cortada em duas metades perfeitas, acima das nádegas.

- O que é que a senhora quer que eu faça com isto? - perguntou o rapaz, balançando a parte debaixo da fotografia, fazendo a anca da modelo seminua ondular provocante.

Jake aproximou-se do jovem nesse mesmo instante e retirou-lhe a fotografia das mãos calejadas.

- Oh, meu Deus, o que aconteceu? Quem fez isto?

- A polícia está a tentar descobrir - explicou a mãe de Mattie. - Por favor, vamos sentar-nos lá na sala. Devem estar exaustos da viagem.

- Mattie viu Jake deixar a fotografia rasgada cair no chão, reflectindo

no rosto a incredulidade dela. O que era aquilo? O que estava a acontecer? De repente ficou tonta, sentiu que ia desmaiar e caiu nos braços de Jake. Ele levou-a para a sala de estar e sentou-a no sofá de camurça cuja superfície, que um dia havia sido macia, estava toda manchada de cerveja e cinzas.

- Parece que este é um tecido milagroso - continuava a mãe de Mattie. - O senhor Capiletti afirmou que pode limpar o sofá e que este vai ficar novinho em folha.

- Aquele era o senhor Capiletti? - perguntou Jake, acenando com a cabeça para o hall.

- É o filho. É uma empresa familiar. Devem ter visto a senhora Capiletti quando entraram.

- O que é que todos estes Capiletti estão a fazer na minha casa? perguntou Mattie, imaginando que talvez estivesse no meio de um dos seus sonhos mais ridículos. É isso, concluiu, descontraindo o corpo com aquela ideia. Ainda estava algures sobre o Atlântico, com a cabeça aninhada no peito de Jake, o som das palavras dele a dizer que a amavam, ecoando-lhe nos ouvidos. Despertaria a qualquer instante, pensou, e ele ainda estaria a seu lado, a sussurrar as palavras que toda a vida esperara ouvir.

Mas, ao mesmo tempo que se tentava convencer de que aquilo não passava de mais um produto idiota e sem sentido da sua hiperactiva imaginação, sabia que estava bem acordada, que estava de facto sentada no seu sofá coberto de cinzas e manchado de cerveja, no meio do que parecia uma zona de guerra, e que era, na verdade, a sua sala de estar.

- Houve aqui uma festa? - perguntou ela mais uma vez, absorvendo com os olhos as duas poltronas cor-de-rosa e douradas, cujo tecido estava cortado ao longo das riscas verticais, o piano, cujas pernas pretas e elegantes estavam esburacadas e mutiladas, o tapete bordado à mão, cuja superfície estava cheia de migalhas e outro lixo não tão identificável, a pintura de Ken Davis com uma mancha que parecia ser de ovos crus.

- Tive receio de pôr a mão naquilo - disse a mãe dela, seguindo o olhar de Mattie. - Tive receio de tentar limpar e de a tinta sair.

- Quando foi que isto aconteceu?

- Sábado à noite.

E de repente o que tinha acontecido ficou muito claro. Mattie deu um suspiro, fechou os olhos e recostou-se no sofá com o cheiro de cigarros velhos a entrar-lhe pelas narinas, sentindo na língua o gosto amargo de cerveja derramada.

- A Kim - disse Mattie, em voz inexpressiva.

- A culpa não foi dela - apressou-se a explicar a mãe de Mattie.

- Ela tentou impedir. Foi a Kim que chamou a polícia.

- Deste autorização para que a Kim desse uma festa? - Jake apertava com força a mão de Mattie.

- Não - admitiu Viv, depois de uma pausa. - Ela disse-me que ia a uma festa. Não disse onde era.

- Esqueceu-se de dizer que seria a anfitriã desta pequena confusão - disse Jake.

- Deviam ser só alguns colegas da escola, mas parece que apareceram pessoas que não tinham sido convidadas. A Kim pediu que se fossem embora, mas elas recusaram-se e as coisas pioraram muito depressa. A Kim chamou a polícia, mas os vadios fugiram antes de esta chegar. Infelizmente só depois de causarem uma desordem assim. Os Capiletti estão aqui desde manhã cedo. A maior parte do estrago foi aqui em baixo. Terão de verificar se falta alguma coisa.

- O Homem Caído - disse Mattie, referindo-se à pequena escultura de bronze de Ernest Trova que estivera sobre o piano. - Desapareceu.

- Aquele careca esquisito, que parece um Oscar? - perguntou a mãe de Mattie, e ela assentiu com a cabeça. - A polícia encontrou-a lá fora, no relvado da frente. Pensei que fosse um moinho de pimenta complicado, por isso Pu-lo na cozinha.

- Pensaste que era um moinho de pimenta? - perguntou Mattie incrédula.

- Bem sei que não sou nenhuma autoridade em arte - respondeu a mãe, na defensiva.

- Aonde está a Kim? - perguntou Jake.

- Vai para a consulta com a Rosemary Colicos depois da escola - disse Viv. - Por favor, não seja muito duro com ela, Jake. Eu sei que não está certo o que ela fez, mas é uma boa menina. É mesmo. Ficou terrivelmente aborrecida com o que aconteceu, e sei que está a pensar compensar-vos por isto. Vai arranjar um emprego no Verão e pagar tudo o que não estiver coberto pelo seguro.

- Não é uma questão de dinheiro.

- Bem sei - Viv sentou-se com todo o cuidado numa das poltronas de riscas cor-de-rosa e douradas. - Ela também sabe.

Mattie viu uma tira de tecido cair em cima do colo da mãe. Já havia muito tempo que queria estofar aquelas poltronas, pensou Mattie distraída.

- E então, como foi a viagem? - perguntou a mãe de Mattie, como se fosse perfeitamente normal perguntá-lo naquelas circunstâncias, como se não houvesse nada de estranho ou invulgar naquela situação, como se fosse normal quando alguém volta para casa de uma viagem ao estrangeiro antes da data prevista encontrar a casa em ruínas.

- A viagem? - repetiu Mattie sem entender. - A viagem foi maravilhosa.

- Como estava o tempo em Paris?

- O tempo estava maravilhoso.

- Menos ontem - Mattie ouviu Jake dizer. - Ontem choveu muito.

- Sim, choveu - concordou Mattie.

- E viram tudo que queriam ver?

- Não perdemos muita coisa - respondeu Jake.

- Tiveste dificuldade em andar?

- Não houve problemas - disse Jake olhando fixamente Mattie que olhava em frente, para o espaço vazio onde costumava ficar a estatueta de Trova. - Mattie, sentes-te bem?

- A minha mãe pensou que era um moinho de pimenta - comentou Mattie, e o absurdo da sua volta a casa atingiu-a tão fortemente pelo que mal conseguiu respirar.

De repente, começou a rir, gargalhadas tão soltas que sentiu que a barriga lhe ia arrebentar. E Jake riu juntamente com ela. E até a avó Viv, que parecia incompleta sem pelo menos um dos seus cães junto aos pés, deu uma gargalhada, apesar do olhar desconfiado indicar a Mattie que ela não tinha a certeza do que pudesse ser assim tão engraçado.

- Talvez devesses subir para te deitares um pouco - disse a mãe dela. - Não fizeram estragos lá em cima, mas mesmo assim mudei os lençóis da tua cama. Julgo que precisas de descansar - prosseguiu ela, por cima das gargalhadas de Mattie e Jake. - Os Capiletti e eu cuidaremos de tudo aqui em baixo. Podes chamar o agente de seguros amanhã de manhã. Fico com a Kim esta noite.

- Obrigada - disse Mattie entre risos.

- Diga à Kim que a vou buscar amanhã, depois das aulas - disse Jake, quando as gargalhadas diminuíram. - E diga que gostamos muito dela - acrescentou em voz baixa, ajudando Mattie a levantar-se.

Viv assentiu com a cabeça, e também se levantou apoiando as mãos na poltrona.

- Mãe? - a voz de Mattie obrigou a mãe a deter-se antes de chegar ao hall.

- O que se passa, Martha?

- Obrigada - disse Mattie. - Significa muito para mim saber que posso contar contigo.

Mattie viu os ombros da mãe ficarem tensos. Viv abanou a cabeça sem dizer nada, e saiu da sala.

Mattie estava no quarto a descansar, estendida em cima da cama, quando ouviu a porta da frente abrir e fechar-se, depois passos na escada e viu Kim à porta. Kim vestia um blusão amarelo com fecho e jeans desbotados e, como sempre, a simples visão da sua beleza imaculada, alegrou o coração de Mattie. A doce Miss Grundy, pensou Mattie. Será que faz ideia de como é bonita?

- Olá - disse Mattie, simplesmente.

Tinha ensaiado aquele momento desde a hora em que Jake saíra do seu lado para ir buscar Kim à escola, ajustando e reajustando a sua posição na cama, tentando encontrar um meio-termo entre a formalidade e a informalidade, procurando um equilíbrio na sua voz entre a rigidez e o carinho, experimentando várias abordagens do confronto com a filha, ouvindo todos os seus esforços a evaporarem-se com uma única palavra: "olá".

- Como estás? - a voz de Kim estremeceu no espaço entre as duas. Ela prendeu algumas madeixas imaginárias de cabelo por detrás das orelhas e olhou para o chão.

- Estou bem. A Lisa vem cá esta noite para me examinar. E tu?

- Kim encolheu os ombros e Jake entrou no quarto.

- Está tudo bem.

Mattie bateu com a mão na cama, a seu lado.

- Porque não te sentas aqui?

Kim olhou para Mattie e para o pai, como se não soubesse para quem era o convite, depois olhou de novo para Mattie e abanou com a cabeça, com o lábio inferior a tremer perigosamente.

- Conta-me o que se passou - pediu Mattie baixinho.

- Estraguei tudo - disse Kim, defendendo-se. - Convidei uns amigos. Achei que podia controlá-los, mas...

- Já sei o que aconteceu na festa - interrompeu Mattie. - Só quero saber o que está a acontecer contigo.

- Não estou a entender - Kim olhou para o pai pedindo socorro.

- O que é que sentes, Kimmy? - perguntou Jake.

Kim encolheu os ombros, riu, um som breve e frágil que ameaçava quebrar-se em contacto com o ar.

- Vocês parecem a minha terapeuta.

- Fala connosco, querida.

- Não há nada para falar. Vocês foram de viagem. Eu dei uma festa. Foi um erro e estou arrependida.

- Ficaste com raiva porque fomos de viagem? - perguntou Mattie.

- com raiva? Claro que não. Porque haveria de ficar com raiva?

- Porque não te levámos connosco.

- Isso é uma palermice. Já não sou um bebé - Kim equilibrava o peso do corpo ora num pé, ora noutro, inquieta. - Além do mais, como poderia ir com vocês? Tenho aulas e, de qualquer modo, o passeio era vosso. Compreendo isso.

- Compreender uma coisa nem sempre significa torná-la mais fácil de enfrentar - disse Jake.

- De que estão a falar? Acham que fiz isto de propósito?

- Ninguém disse que fizeste as coisas de propósito - disse Mattie.

- Porque fiquei com raiva por terem ido de viagem? É isso que me estão a dizer?

- E ficaste? - perguntou Jake.

Os olhos de Kim faiscaram em redor do quarto, como se procurassem uma saída.

- Não. É evidente que não.

- Não ficaste zangada comigo por eu ter levado a tua mãe para longe de ti?

- És o marido dela, não és?

- Um marido não muito bom, como tu comentaste em mais de uma ocasião - a voz de Jake mantinha um tom constante, suave até.

- Se houve aqui algum casamento - afirmou - foi entre ti e a tua mãe. Deus sabe que eu nunca estive presente - fez uma pausa, pedindo perdão à mãe e à filha com o olhar. - Durante quase dezasseis anos tiveste a tua mãe só para ti, Kimmy. E, de repente, tudo mudou. A tua mãe adoeceu. Eu voltei para casa. Pensaste que estavas a ficar em segundo plano. Levei a tua mãe para Paris, deixando-te em casa.

- E... então? Sou uma espécie de esposa rejeitada? É isso que estás a tentar dizer-me?

- Acho que é exactamente isso que estou a dizer - concordou Jake. - E sentiste-te abandonada, traída, e assustada porque pensaste que estavas a perder a tua mãe. Eu sou a outra mulher, Kimmy - reconheceu ele com um sorriso triste. - E não te censuro, nem um pouco, por ficares com raiva.

Kim olhou indefesa para a janela, torcendo continuamente os lábios, como se tentasse literalmente digerir as palavras que ouvira de Jake.

- Então, resumindo, o que estás a tentar dizer-me é que eu fiquei zangada contigo por me deixares, por teres levado a minha mãe, e que convidei uns vadios cá para casa, sabendo que eles iam partir tudo? É isso?

- Será?

- Não! Sim! Sei lá! - gritou Kim, sem parar para respirar. - Não sei. Não sei - começou a andar de um lado para o outro, em círculos cada vez menores entre a cama e a janela. - Talvez eu estivesse mesmo com raiva por terem ido de viagem, deixando-me aqui sozinha. Talvez eu tenha convidado aqueles vadios sabendo que alguma coisa iria provavelmente acontecer. Talvez realmente eu quisesse que acontecesse.

Não sei. Não sei mais nada. Só sei que sinto muito - disse a chorar. - Sinto mesmo muito. Mesmo muito.

- Não há problema, meu amor - disse Mattie, cheia de vontade de abraçar e embalar a filha.

- vou arranjar um emprego. Pagarei tudo.

- Depois logo combinamos as coisas - disse Jake.

Os ombros de Kim começaram a tremer, o seu rosto derreteu-se como cera quente em volta da boca aberta.

- vou viver com a avó Viv. Sei que ela me deixa ficar lá em casa.

- É isso que tu queres?

- Não é o que vocês querem?

- Nós queremos que tu fiques aqui - as lágrimas rolaram pelo rosto de Mattie.

- Mas porquê? Eu sou uma pessoa horrível. Porque é que hão-de querer viver comigo?

- Não és uma pessoa horrível.

- Olhem o que eu fiz! - chorou Kim. - Deixei que destruíssem a casa. Deixei que destruíssem tudo aquilo de que gostam.

- Eu gosto de ti - disse Mattie, batendo mais uma vez ao de leve com a mão na cama. - Por favor, Kim senta-te aqui. Deixa-me abraçar-te, por favor.

Lentamente Kim sentou-se na cama e encostou-se ao peito da mãe.

- És só uma menina que cometeu um grande erro - disse Mattie, beijando a testa da filha, puxando os ganchos com os dedos fracos até lhe soltar os cabelos. - És o meu amor querida. Amo-te muito.

- Também te amo. Desculpa, mãe. Sinto muito.

- Bem sei, querida.

- Todas as tuas coisas...

- São só isso mesmo. Coisas - disse Mattie, e um sorriso inesperado surgiu-lhe nos lábios. - Moinhos de pimenta complicados.

- Como assim?

- As coisas podem ser substituídas, Kimmy - disse Jake, sentando-se com as duas na cama.

- E se não puderem?

- Continuam a ser apenas coisas - disse ele.

- Vocês não me odeiam?

- Como poderíamos odiar-te? - perguntou Mattie.

- Nós amamos-te - disse Jake, arranjando lugar para ele na cama. - Só porque não estamos contentes com o que tu fizeste, não quer dizer que não te amamos, que deixámos de te amar um segundo sequer.

Mattie observou Jake a estender a mão e a retirar os ganchos que ainda estavam pendurados no cabelo da filha, alisando-lhe ao de leve as madeixas sedosas.

Um segundo depois Kim estava a chorar nos braços do pai. Jake abraçou-a por uns instantes e, em seguida, sem dizer uma única palavra, sem perturbar a filha, estendeu o braço e tocou nos dedos de Mattie. Os três ficaram assim sentados, naquele círculo muito unido, até escurecer.

 

MATTIE ESTAVA SENTADA NA CADEIRA DE RODAS, NA varanda diante da cozinha, vendo a filha nadar. Estava frio, mais frio do que de costume nos últimos dias do mês de Setembro, e as nuvens de vapor subiam da piscina demasiado aquecida. Os olhos de Mattie seguiam os arcos graciosos dos braços da filha cortando a água, o seu corpo comprido e esguio impulsionado pelas pancadas ritmadas dos pés, o cabelo louro escuro a boiar solto atrás da cabeça. Como uma bela e jovem sereia, pensou Mattie, imaginando-se ela mesma a nadar ao lado da filha. Depois estremeceu.

- Está com frio, senhora Hart? - perguntou uma voz algures, atrás dela.

- Um pouco - conseguiu Mattie dizer com muito esforço e nesse preciso momento sentiu um xaile sobre os ombros. - Obrigada, Aurora - murmurou, sem saber se a pequena mexicana que Jake tinha contratado como empregada doméstica no início do Verão, a tinha ouvido. A sua voz andava tão baixa ultimamente, tão fraca. Cada palavra era uma luta, Da parte de todos. Ela esforçava-se por falar, por não se engasgar com os seus pensamentos, as pessoas à sua volta lutavam para ouvir, entenderem o que ela tentava dizer.

- Anda cá, George - Kim chamou o cão, que corria aos saltos para cá e para lá ao lado da piscina enquanto ela nadava. - A água está bem quente.

George latiu a sua recusa e subiu os degraus da varanda, para saltar para o colo de Mattie e lamber-lhe o rosto. Não havia nenhum problema em entender o que ele dizia, pensou Mattie, saboreando a sensação da língua molhada do animal nos lábios, enquanto Kim acenava alegremente da piscina e recomeçava a nadar.

- Não, não - disse Aurora, tirando o cãozinho do colo de Mattie e pondo-o nas tábuas de cedro do chão. - Não deves lamber a boca da senhora Hart.

- Não faz mal, Aurora - tentou Mattie dizer, mas em vez de falar, tossiu e a tosse transformou-se num grito sufocado em busca de ar.

Meses atrás, as mãos de Mattie estariam a abanar-se na luta para fazer o oxigénio chegar aos pulmões, mas, agora, os seus braços estavam muito magros e pendiam inertes dos lados do corpo, os dedos retorcidos postos cuidadosamente no colo. Apenas a cabeça mexia, balançando violentamente sobre os ombros de cada vez que tentava respirar.

- Está tudo bem. A senhora está bem - dizia repetidamente Aurora, já sem entrar em pânico em tais ocasiões, fixando os olhos nos de Mattie até o espasmo terminar. - Está tudo bem - repetia, secando-lhe as lágrimas dos olhos com um lenço de papel, puxando-lhe o cabelo para trás, batendo-lhe ao de leve nas mãos inúteis, apoiadas sobre as pernas igualmente inúteis. - Quer beber alguma coisa? Um pouco de água ou sumo?

- Água - disse Mattie, pronunciando apenas a primeira sílaba com clareza, e ouvindo a segunda desaparecendo, como o vapor da piscina, no ar frio.

Assim que Aurora foi para a cozinha, George saltou de novo para o colo de Mattie, lambendo-lhe duas vezes a boca antes de fazer a língua desaparecer dentro da sua narina esquerda. Mattie riu e o cão instalou-se confortavelmente no seu colo, aquecendo-lhe as mãos frias com o corpo peludo, como se de um par de luvas acolchoadas se tratasse. O que dizia o velho ditado? A felicidade era um cãozinho morno? Era isso mesmo, pensou Mattie maravilhada, observando o cachorro fechar os olhos e adormecer imediatamente. A única coisa que ela precisava era de lhe arranjar um lugar confortável para ele se aninhar, e ele correspondia com o seu amor incondicional.

Ela também o adorava, percebeu Mattie bastante espantada. Depois de todos aqueles anos a recusar-se sequer pensar em ter um cão em casa, sentia-se totalmente cativada, completamente apaixonada. Coisinha amorosa, pensou, lamentando não lhe poder fazer festas.

- Ah, não, vamos sair daí - disse Aurora, espantando George do colo de Mattie antes que a patroa pudesse protestar. Aurora encostou o copo de água aos lábios de Mattie que sorveu um pequeno gole e sentiu o líquido escorrer com certa dificuldade pela garganta. - Beba mais um pouco - instruiu Aurora.

Mattie abanou com a cabeça, apesar de ainda estar com sede. Mas quanto mais bebia, mais urinava, e Mattie tinha aprendido a ter pavor da ideia desta função da natureza. De todas as coisas que detestava naquela doença, o que mais odiava era o facto de lhe furtar tudo que nunca pensamos perder - a mobilidade, a liberdade, a privacidade e, finalmente, a coisa mais cruel, a dignidade. Já nem podia ir à casa de banho sozinha. Precisava de alguém que a levasse até lá, que a levantasse da cadeira de rodas, lhe tirasse a roupa, a sentasse na sanita e a secasse quando terminasse. Aurora era uma bênção de Deus. Fazia tudo isso sem reclamar. Assim como Kim, e Jake, depois de Aurora se ir embora todos os dias. Mas Mattie não queria a filha a fazer de enfermeira, nem o marido a limpar-lhe o traseiro.

- Precisas de comer e de beber líquidos - diziam-lhe todos. - Tens de manter as forças.

Mas Mattie estava cansada de ser forte. Para quê ser forte se ainda tinha de ser alimentada, transportada e se precisava de alguém que a limpasse? Já estava cansada daquela infantilização forçada. Aquilo poderia arrastar-se durante anos, e não era assim que queria ser recordada. Não aguentava mais. Queria morrer pelo menos com uma aparência de dignidade.

Estava na hora.

- Brrr - guinchou Kim, saindo da piscina e enrolando-se em várias camadas de toalhas vermelho-púrpura. - Está muito frio quando se sai da água. - George apareceu-lhe imediatamente aos pés, lambendo a água entre os dedos de Kim. - E tu o que achas? - perguntou Kim, subindo os degraus a correr, com George nos seus calcanhares. - Cinquenta vezes. É bom, não é verdade?

- Não exageres - disse Mattie lentamente e baixinho.

- Não vou exagerar. Se começar a ficar novamente obcecada, paro. Prometo.

Mattie sorriu. Felizmente tinham acabado os dias de duas horas de exaustivos exercícios e de controlar tudo o que comia. Kim estava numa nova escola e esse começo parecia ser promissor. Continuava a consultar Rosemary Colicos uma vez por semana, e Jake também. Por vezes iam juntos. Kim e o pai estavam a ficar cada dia mais próximos.

Está na hora.

- A que horas é o jogo? - perguntou Mattie e Kim inclinou o corpo para a frente para poder ouvir.

- Acho que o pai disse às sete horas - olhou para o relógio. - vou começar a vestir-me. Já são quase cinco horas. Quero lavar o cabelo antes de ir.

Mattie assentiu com a cabeça.

- Isso mesmo. Vai arranjar-te.

Kim inclinou-se e beijou o rosto macio da mãe, Mattie sentiu a suavidade do rosto da filha no seu.

- Sabes como gosto de ti, não sabes? - perguntou Mattie.

- Eu também gosto muito de ti - disse Kim, pegando no cachorro e correndo para dentro da casa antes de Mattie poder dizer qualquer outra coisa.

- Vamos também para dentro - disse Aurora, fazendo girar a cadeira de rodas de Mattie e empurrando-a para a cozinha.

E se eu não quiser entrar? pensou Mattie, entendendo que era inútil protestar. Os seus poderes de decisão tinham sido usurpados, os últimos numa erosão gradual dos seus direitos básicos. Para que serviam as suas decisões se não podia agir em relação a elas? Mattie não culpava Aurora. Não culpava ninguém. Já não se surpreendia com a insensibilidade bem intencionada dos outros. Já não sentia raiva. De que adiantava ficar com raiva?

O que estava a acontecer com ela não era culpa de ninguém, nem da mãe, nem de si própria, nem de Deus. Se havia um Deus, concluiu Mattie, Ele não lhe teria desejado aquela doença. E Ele também não podia fazer nada para lhe minorar o problema. Depois de ficar meses a observar impotente o seu corpo perder peso e curvar-se sobre si mesmo, sentindo a carne cada vez mais flácida e as feições do seu rosto esticadas e distorcidas como se estivesse presa dentro do espelho de uma casa de diversões, rendera-se finalmente ao que Thomas Hardy havia descrito como "a indiferença benigna do universo". Seria Hardy ou Camus? Interrogou-se Mattie, cansada de mais para se lembrar.

Estava muito cansada.

Já era tempo.

Era o melhor de todos os tempos. Era o pior de todos os tempos, recitou Mattie em silêncio. Charles Dickens. Sem dúvida nenhuma.

O pior ano da sua vida.

O melhor ano da sua vida.

O último ano da sua vida.

Já era tempo.

- Olá, querida, como estás? - Jake entrou na cozinha, enquanto Aurora fechava a porta de correr envidraçada.

Mattie sorriu como sempre fazia quando olhava para o marido. Jake perdera uns quilos naqueles últimos meses, e adquirira uns cabelos grisalhos, efeitos secundários da sua doença insidiosa, mas continuava lindo como sempre, mais distinto ainda, se possível fosse. Afirmava que a perda de peso e os cabelos brancos eram o preço que tinha de pagar por ter voltado ao trabalho. Não tinha voltado para a Richardson, Buckley & Lang, mas no Verão tinha sido convidado como consultor em vários casos difíceis, e fora contratado por alguns outros advogados jovens e independentes que pensavam abrir a própria firma no início do ano. Não estou interessado, dissera-lhes Jake, afirmando sentir-se satisfeito a trabalhar no seu escritório em casa. Mas Mattie não pôde deixar de lhe notar o brilho nos olhos sempre que falava com eles, e sabia que ele sentia falta da excitação do combate diário. Quanto tempo mais o poderia continuar a prender?

Que mais poderia ele fazer por ela, que já não tivesse feito? Ela nem lhe podia tocar, pensou, quando Jake se baixou e lhe beijou os lábios.

Já era tempo.

Estava tudo a encaixar-se. O detective particular que Jake contratara para encontrar o seu irmão descobrira várias pistas promissoras. Aparentemente havia três Nicholas Hart que tinham a idade certa e combinavam com a descrição geral que Jake lhe tinha dado - um na Flórida, um em Wisconsin, outro no Havai. Era possível que um desses homens fosse o irmão de Jake, e mesmo se não fosse, pelo menos os primeiros passos tinham sido dados. Mattie não precisava de ficar para ver Jake cruzar a linha de chegada. Ele já tinha vencido, pensou, saboreando a sensação dos lábios dele que pairavam suavemente sobre os seus.

- Há uma nova exposição de fotografias que começa na Pende Fine Arts na semana que vem - disse-lhe Jake, sentando-se na cadeira da cozinha para ficar à mesma altura que Mattie. - Acho que podemos lá ir no próximo sábado e levar a Kim.

Mattie concordou com a cabeça. Jake tinha substituído a fotografia de Raphael Goldchain, e Kim estava a pagar dez dólares por semana da sua mesada. Como resultado começara a assumir um ar de proprietária do quadro, e a desenvolver um interesse autêntico por fotografia.

- Estava a pensar que podíamos comprar à Kim uma nova máquina fotográfica - disse Jake, como se lesse os pensamentos de Mattie. - A que ela tem é muito limitada.

Mattie acenou com a cabeça, concordando de novo.

- Valha-me Deus, quase que não há leite - declarou Aurora, tirando o pacote de dentro do frigorífico e agitando-o.

- Eu depois compro - ofereceu-se Jake.

- E também sumo de maçã - disse Aurora.

- Compro tudo depois do jogo.

Ele fazia tanta coisa, pensou Mattie. Tinha abdicado de tanta coisa. De Honey. Da sua carreira. Do último ano da sua vida. Tudo por ela. Não podia pedir-lhe que desistisse de mais nada.

Já era tempo.

- Fazes ideia de quanto te amo? - perguntou Mattie. - Da felicidade que me proporcionaste?

- Tens ideia da felicidade que proporcionaste à minha vida? - perguntou ele.

A campainha tocou.

- É a Lisa - disse Mattie e Aurora foi atender. O cão saltou escada abaixo e ladrava-lhe aos pés.

- Como estás hoje Mattie? - ouviu Lisa perguntar e Jake foi até ao hall para a receber.

- Parece um pouco deprimida - ouviu Jake dizer. - Talvez eu não deva sair.

- Que disparate - Mattie cuspiu e o esforço resultou numa terrível série de espasmos que só diminuíram depois de Jake ter prometido não alterar os seus planos. - Estás óptima - disse Mattie a Lisa, admirando o novo corte de cabelo da amiga, imaginando como ficaria com aquele tipo de corte geométrico, tentando lembrar-se da última vez que fora a um cabeleireiro.

- Obrigada - disse Lisa, metendo a mão na sua maleta preta de médico e tirando o aparelho para medir a pressão a Mattie, enrolando-lho no braço como se aquilo fosse tão normal como apertar-lhe a mão. - Tu também estás muito bem.

- Obrigada - disse Mattie.

Não adiantava discutir. Estava a pesar menos de cinquenta quilos, tinha a pele quase transparente de tão fina, e o corpo todo retorcido para dentro como uma trança. Mesmo assim todos insistiam em dizer que era bonita, como se a doença a privasse da capacidade de julgar por ela mesma, de discriminar o que era a realidade e o que as pessoas queriam que fosse.

- Obrigada - repetiu Mattie. Por que não acreditar que continuava bonita? Que mal havia em fingir?

- Estive a conversar com a Stephanie e a Pam, e pensámos em organizar uma festa para o mês que vem. Que tal doze de Outubro?

- Parece-me óptimo - respondeu Jake por ela.

- Óptimo - disse Lisa, ouvindo o pulsar do sangue nas veias de Mattie. - vou avisar as outras. Depois informo-vos da hora e do lugar - deixou o estetoscópio cair no colo e afrouxou a tira apertada no braço de Mattie. - Está tudo bem aqui - disse, embora os seus olhos dissessem o contrário. - Já ouviste a última sobre o ex da Stephanie?

- Mattie abanou a cabeça.

- - Sabes que ele começou a dizer que queria a custódia das filhas quando descobriu a existência do Enoch.

- Acho que vos vou deixar sozinhas e terminar umas coisas no meu escritório - disse Jake, beijando a testa de Mattie antes de sair.

Lisa continuou sem pestanejar.

- bom, a Stephanie mandou seguir o imbecil. Descobriu que o palerma estava a levar uma vida dupla.

Durante quarenta e cinco minutos, Mattie ficou a ouvir Lisa que a pôs a par de todos os sórdidos e obscenos pormenores, actualizando-a a respeito de todos os últimos mexericos envolvendo pessoas que Mattie conhecia e as que não conhecia também. Ficou a saber quem saía com quem no mundo das celebridades, os filmes que tinham correspondido às expectativas e os que haviam sido um terrível falhanço, que actrizes tinham feito implantes, e quem, da elite mais velha de Hollywood, se submeteu recentemente a cirurgia plástica.

- Podes crer - disse Lisa como quem sabia das coisas. - Qualquer mulher com mais de quarenta que não tenha rugas é porque fez plástica.

Mattie sorriu, sabendo que não viveria para ter o luxo de se preocupar com coisas tão banais. O que não daria para ter algumas rugas! O que não daria para se transformar numa ameixa velha e encarquilhada.

- Saiu a gravação de um livro excelente. Esqueci-me do nome disse Lisa - mas escrevi-o algures, e vou trazê-lo na minha próxima visita. Há mais alguma coisa de que precises? - perguntou ela, consultando o relógio, e Mattie olhou para os relógios na outra parede. Seis e cinco ou seis e sete. Escolhe.

De qualquer forma, já era tempo, pensou Mattie.

- Preciso que telefones à minha mãe - disse Mattie, e as palavras surgiram-lhe lentamente, mas com clareza. - Quero que lhe peças para cá vir. Esta noite.

Lisa localizou imediatamente o livro de moradas de Mattie na gaveta da mesa do telefone e ligou para a mãe dela.

- Estará cá dentro de uma hora - disse Lisa, desligando o telefone.

- Quem estará cá daqui a uma hora? - perguntou Kim, entrando na cozinha, de banho tomado e vestida, o cabelo comprido solto sob o boné dos Chicago Cubs.

- De partida para o Wrigley Field? - perguntou Lisa.

- Este ano é que vai ser o nosso - respondeu Kim, soltando uma gargalhada. - Quem vai chegar daqui a uma hora? - repetiu.

- A tua avó.

- A avó Viv? Para quê? - Os olhos azuis de Kim revelaram preocupação.

- Estás pronta? - perguntou Jake, juntando-se às mulheres na cozinha.

- Talvez seja melhor não irmos - disse Kim.

- Há algum problema? - perguntou Jake.

- A mãe da Mattie vem cá - disse Lisa.

- Isso é óptimo. Qual é o problema, Kimmy?

- Mãe? Há algum problema?

Mattie levantou o rosto para o marido e para a filha, os seus olhos como lentes famintas de uma câmara, a tirar várias fotografias seguidas, a mente a voar-lhe para trás no tempo, descobrindo várias lembranças - a primeira vez que vira Jake, a primeira vez que tinham feito amor, a primeira vez que segurara nos braços o seu lindo bebé.

- Amo-vos tanto - declarou Mattie em voz clara. - Por favor, lembrem-se sempre de que vos amo muito.

- Nós também te amamos muito - disse Jake baixinho, beijando Mattie suavemente nos lábios. - Não voltaremos tarde.

- És um homem maravilhoso, Jake Hart - murmurou Mattie ao ouvido de Jake,

- saboreando-lhe o gosto, o cheiro, o toque.

Kim aproximou-se, inclinou-se e abraçou Mattie, como se fosse mãe dela e não sua filha.

- Tem paciência com o pai - disse Mattie antes que a filha tivesse possibilidades de falar. - Por favor, tenta aceitar aquilo que o faz feliz.

Kim olhou a mãe directamente nos olhos. Como se compreendesse. Como se soubesse.

- És a melhor mãe do mundo - disse Kim muito baixinho, de modo que só Mattie ouvisse.

- O meu bebé lindo - Mattie encostou o rosto ao cabelo da filha, memorizando-lhe a textura, a sensação da pele. - Vai então, querida pediu ela delicadamente. - São horas.

- Adoro-te - disse Kim.

- Adoro-te - repetiu Jake.

E eu a vocês, pensou Mattie a olhar para eles, vendo-os desaparecer, as suas imagens gravadas para sempre na sua alma. - Cuidem bem um do outro.

- Disse alguma coisa, senhora Hart? - perguntou Aurora.

Mattie abanou a cabeça e Aurora aproximou-se com um prato de sopa recém-feita.

- Canja de galinha com massinha. Muito boa para a senhora Aurora avançou para Mattie com uma colher de sopa.

- Eu faço isso - disse Lisa, tirando o prato fundo das mãos de Aurora. - Porque não vai para casa? Eu fico com a Mattie até a mãe dela chegar.

- Tem a certeza? - Aurora hesitou e olhou para Mattie.

- Pode ir - disse-lhe Mattie. - E obrigada, Aurora. Obrigada por tudo.

- Então, até amanhã.

- Adeus - disse Mattie, vendo a mulher ir-se embora. Mais uma imagem para o álbum da sua alma.

- A sopa está na mesa - disse Lisa quando ficaram sozinhas, levando a colher aos lábios de Mattie. - O cheiro está óptimo.

- Obrigada - disse Mattie, abrindo a boca como um passarinho, sentindo o líquido

- descer-lhe quente pela garganta. - Obrigada por tudo.

- Não fales. Come.

Mattie deixou Lisa dar-lhe à colher o resto da sopa sem dizer nada, até não restar nem mais uma gota.

- Estavas com fome - observou Lisa, fazendo um corajoso esforço para sorrir.

- És uma boa amiga - disse Mattie.

- Tenho muita prática - recordou Lisa a Mattie. - Somos amigas há muito tempo... há mais de trinta anos!

- Trinta e três - corrigiu Mattie. E depois de pensar alguns segundos. - Lembras-te de quando nos conhecemos?

Lisa também parou um pouco para pensar.

- Não - Lisa abanou a cabeça com remorsos. - Tu lembras-te?

- Mattie sorriu.

- Não.

Desataram as duas a rir.

- Só me lembro que estavas sempre lá - disse Mattie com simplicidade.

- Adoro-te - disse Lisa. - Sabes disso, não sabes?

- Mattie sabia.

- Também te adoro - disse Mattie.

 

- Obrigada por teres vindo - disse Mattie à mãe.

Era óbvio que Viv tinha feito um esforço considerável para melhorar a sua aparência. Trazia uma blusa cor de alfazema, calças compridas cinzentas, e pintara o seu sorriso pouco à vontade com um batom discreto.

- Como te sentes? - perguntou-lhe a mãe, olhando inquieta em redor do quarto de Mattie antes de ver o cão deitado na cama sobre os pés da filha. - Está com bom aspecto.

- Obrigada. Tu também.

A mãe alisou o cabelo um pouco envergonhada.

- O George parece que encontrou uma amiga.

- Acho que ele gosta de estar aqui.

A mãe estendeu a mão e acariciou as costas do animal. Nesse mesmo instante o cãozinho enrolou-se e ficou de barriga para cima, formando pequenos arcos no ar com as patas dianteiras, pedindo para que ela se chegasse mais, pedindo mais. com que facilidade se fazia entender, pensou Mattie, observando a mãe a coçar delicadamente a barriga do cão. Não faz qualquer esforço para tornar claros os seus desejos.

- Foi bom ver a Lisa outra vez - dizia Viv. - É incrível. Tem a mesma cara que tinha aos dez anos de idade.

- Não mudou muito - concordou Mattie, percebendo como aquilo era reconfortante.

- É difícil vê-la como uma médica de sucesso.

- Sempre o quis ser - disse Mattie, lembrando-se. - Quando a Lisa brincava aos médicos, era de verdade.

A mãe de Mattie riu-se.

- Pareces muito melhor - disse ela, nitidamente aliviada. - A tua voz parece bem e forte.

- Vem e vai - explicou Mattie.

- Então, é importante não desistires, não perderes a esperança.

- Não há esperança, mãe - disse Mattie, com a maior suavidade possível.

A mãe de Mattie ficou tensa, afastou-se da cama e recuou para a janela. Olhou, sem ver, a escuridão crescente.

- Os dias estão a ficar mais curtos.

- Estão.

- Imagino que em breve tenham de cobrir a piscina.

- Mais umas semanas.

- A Kim disse-me que se está a tornar uma boa nadadora.

- A Kim pode sair-se bem em tudo o que resolve fazer.

- Sim, claro que sim - concordou a mãe de Mattie.

- Tomas conta dela, não tomas? Vais ter sempre a certeza de que ela está bem?

Silêncio.

- Mãe...

- Claro que tomarei conta dela.

- Ela adora-te.

A mãe de Mattie olhou para o tecto, com o queixo a tremer, o lábio inferior a cobrir o superior.

- Viste a fotografia que ela me tirou com os cães?

- É uma fotografia muito boa - comentou Mattie.

- Acho que ela tem mesmo talento. Acho que é uma coisa que devia pensar seguir.

Mattie esboçou um sorriso triste.

- Acho que agora preciso que me oiças.

- E se dormisses um pouco - insistiu a mãe. - Estás cansada. Uma sesta ia fazer-te muito bem.

- Mãe, por favor, ouve. Chegou a altura.

- Não entendi.

- Acho que entendeste, sim.

- Não.

- Por favor, mãe? Prometeste.

- Silêncio.

- O que queres que eu faça?

- Mattie fechou os olhos.

- Obrigada - murmurou ela, respirando fundo. Abriu os olhos e dirigiu-os à casa de banho. - O frasco de morfina está no armário dos remédios. Tens de esmagar vinte comprimidos e misturá-los com água, metermos na boca, aos poucos, até eu engolir tudo.

A mãe de Mattie soltou um grito sufocado, susteve a respiração e não disse nada.

- E, depois talvez possas sentar-te aqui ao meu lado até eu adormecer. Fazes-me isso?

A mãe assentiu com a cabeça, devagar, a bater o dente, como se estivesse com frio.

- No armário dos remédios?

- Há uma colher ao lado do lavatório. E um copo - avisou Mattie quando a mãe foi para a casa de banho, apesar de ter a voz sumida. Rezou em silêncio, embora nenhuma palavra se lhe formasse, na mente. Estava a fazer tudo como devia ser.

The time for hesitating's through... Chegara o momento.

E, de repente, a mãe estava ao pé da cama, com o frasco de morfina numa mão e o copo de água na outra.

- A colher - lembrou Mattie.

- Ah, sim.

Viv pôs o copo com água e o frasco de comprimidos sobre a mesa-de-cabeceira perto de Mattie. Depois voltou para a casa de banho, com movimentos lentos e sincopados, como um autómato. Pegou na colher e voltou ainda mais devagar para junto da cama, como um brinquedo de corda dando os seus últimos passos desajeitados.

- Está tudo bem - disse Mattie a Viv. - Bastam uns minutos para voltares a pôr tudo no sítio onde estava. Ninguém vai saber.

- E o que é que eu lhes vou dizer? O que é que vou dizer ao Jake e à Kim quando eles voltarem para casa?

- A verdade... que eu estou bem, que estou a dormir.

- Penso que não vou conseguir fazer isso - as mãos de Viv tremiam tanto que teve de firmar a colher com as duas para não deixar cair o frasco.

A mãe parecia estar a rezar, pensou Mattie.

- Consegues sim - insistia Mattie. - Tens de o fazer.

- Não sei. Creio que não posso.

- Que disparate, mãe. Fazia-lo com os teus cães. Entendias que não podias deixá-los sofrer.

- Isso é diferente - implorou a mãe. - Tu és o meu sangue. Não posso fazê-lo.

- Podes, sim - insistia Mattie, forçando, com os olhos, a mãe a olhar para ela, orientando-a para a mesa-de-cabeceira ao lado da cama, guiando-lhe as mãos para largar a colher e abrir o frasco de comprimidos de morfina.

- Sei que não fui uma mãe muito boa, Martha - disse-lhe a mãe, as manchas

- vermelho-escuras que marcavam o seu rosto acentuadas pelas lágrimas. - Sei que sempre te decepcionei.

- Não me decepciones agora.

- Por favor, perdoa-me.

- Está tudo bem, mãe. Está tudo bem.

- Perdoa-me - repetia a mãe, afastando-se de Mattie, saindo de perto da cama. - Mas eu não posso fazer isto. Não posso. Não posso.

- Mãe?

- Não posso. Sinto muito, Martha. Simplesmente não posso.

- Não! - gritou Mattie quando a mãe fugiu do quarto. - Não, não podes abandonar-me. Não podes fazer-me isso. Por favor. Por favor, volta. Volta. Tens de me ajudar. Preciso que me ajudes. Por favor, mãe, volta. Volta!

Mattie ouviu a porta da rua abrir e fechar-se com uma finalidade terrível.

A mãe tinha-se ido embora.

- Não! - berrou Mattie. - Não! Não podes ir. Não podes ir-te embora. Tens de me ajudar. Tens de me ajudar.

Começou então a tossir e a engasgar-se, sem ar, debatendo-se na cama como um peixe espapaçado no fundo de um barco de pesca, o seu corpo numa série de contorções inúteis e o cão ladrava, cada vez mais assustado a seu lado.

- Que alguém me ajude! - gritou Mattie para a casa vazia. - Por favor, que alguém me ajude.

Mattie atirou-se contra a mesa-de-cabeceira, derrubou o copo com água e o frasco com os comprimidos, viu tudo cair no chão, o próprio corpo tombando atrás deles, batendo com toda a força com o ombro esquerdo, o gosto do tapete enchendo-lhe a boca e o nariz, e o cão a gemer a seu lado.

Mattie ficou assim deitada por uma eternidade, até o ar lhe voltar lentamente aos pulmões. O cão ficou deitado ao lado do seu ombro latejante, lambendo-lhe o rosto de vez em quando. A morfina estava a menos de meio metro do seu nariz, mas ela não conseguia alcançá-la. E mesmo se conseguisse, de que adiantaria, se não podia abrir o frasco dos comprimidos? Mattie olhou para a janela, para a escuridão lá fora, desejando tê-la dentro do quarto e rezou para que ela a cobrisse e acabasse com o seu sofrimento de uma vez por todas. Então ouviu o som de passos na escada, subindo, chegando cada vez mais perto.

Abriu os olhos.

- Oh, meu Deus, Martha - gritou a mãe, tomando Mattie nos braços e embalando-a para trás e para a frente, como se fosse um bebé. - Sinto muito. Sinto muito.

- Voltaste - murmurou Mattie. - Não me abandonaste.

- Bem queria.

- Mas não o fizeste.

- Abri a porta da rua. Ouvi-te chorar. Queria ir-me embora, mas não pude - disse a mãe, e a sua respiração trémula pairava entre as duas. - Vamos voltar para a cama - disse ela, conseguindo levantar Mattie do chão, e estendendo-a na cama.

Ajeitou as almofadas sob a cabeça de Mattie, puxou o cobertor para a cobrir e então, lentamente, sem dizer nada, ergueu do chão o copo vazio e levou-o para a casa de banho. Mattie ouviu a água a correr da torneira, viu a mãe voltar devagar para o quarto, com o copo de água na mão.

Viv poisou o copo na mesa-de-cabeceira, depois abaixou-se, pegou no frasco dos comprimidos, abriu-o e, rapidamente, esmagou vinte dentro da colher, dissolvendo-os na água. Depois aninhou a cabeça de Mattie num braço e encostou o copo aos lábios de Mattie, conduzindo suavemente a solução para a boca da filha.

O sabor era amargo e Mattie teve de fazer um esforço para não vomitar. O sabor da escuridão, pensou, desejando-a. Lentamente e com determinação, observou o líquido desaparecer do copo até não restar mais nada.

- Obrigada - murmurou, quando a mãe poisou o copo sobre a mesa-de-cabeceira e depois a deitou quase desajeitadamente, apoiando-lhe a cabeça sobre as batidas ensurdecedoras do seu coração.

- Amo-te muito, Mattie - disse a mãe.

Mattie fechou os olhos, sentindo-se segura por saber que a mãe ficaria a seu lado até ela adormecer.

- É a primeira vez que me chamas Mattie.

Durante algum tempo Mattie ficou imóvel nos braços da mãe, mas, aos poucos começou a sentir o ar à sua volta rodopiar, os braços e as pernas a soltarem-se, desdobrando-se e endireitando-se. Os dedos das mãos e dos pés esticavam-se e flexionavam e logo as mãos puxavam braçadas e as pernas batiam para trás. Estava a nadar, pensou Mattie, rindo mentalmente. Nadava da escuridão para a luz, sob a protecção da mãe, o que garantia a segurança da travessia.

Mattie pensou em Jake e em Kim, em como eram belos, no quanto os amava. Enviou-lhes beijos silenciosos, deslizou tranquilamente para trás de uma nuvem e desapareceu.

 

MATTIE ESTAVA A SORRIR. Jake olhou com carinho a fotografia, desenhando com os dedos a curva dos lábios de Mattie, a sorrir para ele da sua cadeira de rodas na frente do Jardim das Tulherias. "Cest magnifique, n'est-ce pás?", ouviu Mattie dizer, passando à fotografia seguinte, esta de Mattie feliz, encostada a uma estátua de bronze, um nu de Maillol.

- Magnifique - concordou ele baixinho, olhando para a janela do seu escritório, para as folhas ainda verdes das árvores lá fora a dançarem ao vento surpreendentemente quente de Outubro.

Olhou de novo para o monte de fotografias que tinha nas mãos. Já teriam passado seis meses desde a viagem para Paris? Seria possível?

Seria possível que já tivessem passado quase três semanas desde a morte de Mattie?

Jake fechou os olhos, revivendo a última noite da vida de Mattie. Ele e Kim tinham saído do jogo de basebol, antes deste terminar, compraram leite e sumo de maçã numa loja 7-Eleven ali perto e voltaram para casa um pouco mais cedo do que esperavam. O carro de Viv ainda lá estava e ele ouvira a sogra a andar e a mexer nas coisas lá em cima, alguns segundos antes de aparecer.

- Como é que ela está? - perguntara ele.

- A dormir tranquilamente - respondera Viv.

- Dormia tranquilamente, - repetiu Jake no presente, lembrando-se que quando chegara junto da cama, estendera a mão para afastar alguns fios de cabelo do rosto de Mattie, tomando cuidado para não a incomodar. Ela estava quente, a respiração lenta e constante. Ele despiu-se e deitou-se na cama, pondo o braço ao de leve por cima da anca de Mattie.

- Amo-te - murmurou ele no presente, como murmurara repetidamente enquanto estivera deitado ao lado dela, esforçando-se por manter os olhos abertos, para a vigiar, para a conduzir em segurança até à luz do dia. Devia ter adormecido sem se aperceber. E então, subitamente, despertou às três horas da madrugada, como se alguma coisa, ou alguém, lhe tivesse dado uma pancada no ombro, sacudindo-o suavemente até ele abrir os olhos.

A primeira coisa que pensara foi que havia sido Mattie, que, de alguma forma conseguira recuperar o movimento dos braços, e que lhe tocava com os cotovelos para brincar com ele, mas apercebera-se então de que ela continuava deitada na mesma posição; instintivamente prendera a respiração. Só então que ouvira o silêncio profundo e completo no quarto, e percebera que fora a horrível imobilidade que o fizera despertar. Sentara-se, inclinara o corpo para a frente e encostara os lábios à testa de Mattie. Estava estranhamente fria, e nesse mesmo momento puxara o cobertor para lhe cobrir os ombros, numa esperança obstinada em ver de novo o subir e o descer do corpo dela com a respiração. Mas tal não acontecera e, naquele instante, compreendera, que ela estava morta.

Jake olhou de novo para as fotografias de Mattie em Paris, com a visão baça por causa das lágrimas, e recordou-se de segurar a mulher nos braços e ficar deitado ao lado dela até ao amanhecer.

- O que estás a fazer? - perguntou Kim à porta, com a voz indecisa, como se tivesse medo de o incomodar.

- A ver umas fotografias da mãe - respondeu Jake, secando as lágrimas, sem tentar

- disfarçá-las. Sorriu ao ver o cão a agarrar-se ao calcanhar esquerdo de Kim. - Estava a pensar qual destas fotografias vou mandar emoldurar.

Kim sentou-se ao lado dele no sofá, encostou a cabeça ao braço do pai e George subiu nesse exacto momento, enrolando-se como uma bola no colo dela.

- Está muito bonita em todas.

- Sim, é verdade. Acho que é por isso que é tão difícil de escolher.

- bom, vamos lá ver - Kim tirou-lhe as fotografias da mão e examinou-as com cuidado. - Esta não - disse Kim, esforçando-se por parecer objectiva, apesar de Jake lhe notar um certo tremor na voz. - Está desfocada. E esta não a enquadraste correctamente. Tem chão a mais. Mas esta está boa - disse ela, olhando para uma fotografia de Mattie diante da catedral de Notre Dame, o cabelo encantadoramente despenteado, os olhos mais azuis do que o céu limpo de Paris.

- Sim - concordou Jake. - Eu também gosto dela.

- E esta - Kim mostrou a fotografia de Jake e Mattie diante da Torre Eiffel, tirada pelo turista japonês que Jake apanhara desprevenido.

- Apesar de não estar bem centrada?

- É uma fotografia bonita. - disse Kim ao pai. - Parecem os dois muito felizes.

Jake esboçou um sorriso triste e abraçou a filha com força, sem deixar de notar o olhar ciumento de George.

- Como te sentes hoje? - perguntou ele.

- Acho que bem. E tu?

- Acho que estou bem.

- Sinto muita falta dela.

- Eu também.

O sol entrava pelas janelas, batia nas costas dos dois, e espalhava-se pela sala, como poeira. Um som, semelhante a um trovão distante pairou no ar.

- Parece um carro a chegar à porta - disse Kim, pondo George no chão com cuidado e soltando-se do braço do pai. Espreitou à janela. - É a avó Viv.

Jake sorriu. A mãe de Mattie ia sempre visitá-los desde a morte de Mattie, aparecia de improviso para tomar um café ou para lhes dar um abraço surpreendentemente carinhoso.

- Parece que traz uma coisa - Kim esticou-se para ver o que era. Jake foi para junto da filha e viu, pela janela, Viv a fazer força para retirar qualquer coisa do banco de trás do carro.

- O que é? - perguntou Kim.

O que quer que fosse era grande, rectangular e estava completamente embrulhado em papel pardo.

- Acho que pode ser um quadro - disse Jake.

A mãe de Mattie viu os dois a espreitar à janela e quase deixou cair o embrulho quando ergueu o braço para lhes acenar.

- O que é que tens aí, avó? - perguntou Kim, abrindo a porta, George saltava entusiasmado em volta dos pés de Viv.

- Está tudo bem, George, sai da frente. Sai da frente - Viv encostou o embrulho à parede, abraçou Kim e olhou carinhosamente para Jake. - Deixa-me tirar o casaco. Isso mesmo, George.

Jake pendurou o casaco de Viv no armário ao lado do de Mattie, a manga de um ao lado da manga do outro. Ainda não tinha tratado das roupas da mulher, mas sabia que iria ter de o fazer em breve. Já era tempo. Hora de voltar a trabalhar, de Kim voltar às aulas, de todos retomarem as suas vidas. The time for hesitating's through, cantarolou distraído para consigo, interrogando-se porque razão lhe teria vindo à ideia aquela velha canção.

- O que é, avó? - repetiu Kim.

- Uma coisa que achei que vocês gostariam de ter.

Viv levou o embrulho para a sala e sentou-se no sofá, à espera que Jake e Kim se acomodassem nas duas poltronas diante dela. Rasgou então o papel pardo e revelou a pintura de uma menina loura, de olhos azuis, apenas com a insinuação de um sorriso. A pintura era amadora, a técnica limitada, a execução grosseira, uma série de pinceladas fortes e coloridas que não chegavam a ter ligação umas às outras, uma curiosa amálgama de estilos que nunca se aglutinavam. No entanto, o tema do quadro era inconfundível.

- É a Mattie - disse Jake, levantando-se da cadeira para examinar a pintura mais de perto, encostando-a à mesinha no centro da sala.

- É a mãe?

- Quando tinha quatro ou cinco anos - comentou a avó Viv. - Foi o pai dela que a pintou.

Kim e Jake olharam espantados para Viv, à espera da história. A avó Viv continuou.

- Certamente guardei o quadro no sótão depois de ele se ter ido embora. Esqueci-me completamente até esta manhã. Não sei porquê, acordei a pensar no quadro. Devo ter sonhado - a voz da avó Viv foi ficando cada vez mais baixa e ela fez uma pausa. - Seja como for, fui lá para cima, o que não foi nada fácil, e comecei a remexer nas coisas, e lá estava o quadro, ainda em bom estado, e muito melhor do que eu lembrava de ele ser. Então pensei que talvez gostassem de o ter aqui.

Jake afastou alguns fios de cabelo invisíveis da testa da menina pintada. Mattie foi uma menina linda, pensou. E ficou mais linda ainda com o passar do tempo.

- Obrigado - disse Jake.

- Obrigada, avó - Kim levantou-se da poltrona e abraçou a avó.

- Nunca entendi como ele pôde ir-se embora daquela forma - disse a avó Viv. - Como pôde simplesmente abandonar a filha. Foram sempre muito apegados um ao outro - abanou a cabeça. - Eu sentia muitos ciúmes da ligação que havia entre os dois. Costumava pensar, por que todo este Mattie isto e pai aquilo? Por que nunca sou eu? Que estupidez - continuou a avó Viv antes que alguém a pudesse interromper. - Que estupidez ficar ressentida com quem é do nosso próprio sangue, voltar as costas a uma filha que precisa de nós.

- Não lhe voltaste as costas - disse Kim.

- Voltei sim. Durante todos aqueles anos, enquanto ela crescia...

- Estavas aqui quando ela mais precisou de ti. Cumpriste a tua promessa, avó - murmurou Kim, e a mãe de Mattie cobriu a boca com a mão para sufocar o choro. - Não lhe voltaste as costas.

Jake observou o carinho entre Kim e a avó com um arrepio a percorrer-lhe a espinha, confirmando o que já suspeitava desde o início. Fechou os olhos e respirou fundo, lentamente. Então afundou-se no sofá, puxando as duas mulheres para perto de si.

Ficaram abraçados alguns minutos em silêncio, o cão a saltar inquieto de um colo para o outro, à procura de um lugar confortável para se instalar.

- O que é que vamos fazer sem ela? - perguntou a avó Viv.

- Jake sabia que a pergunta era retórica, mas mesmo assim respondeu.

- Não tenho a certeza. Seguir em frente, penso eu. Cuidar uns dos outros, como Mattie queria que fizéssemos.

- Achas que um dia seremos felizes de novo? - perguntou Kim.

- Acho que sim, um dia - respondeu Jake, beijando a testa da filha, olhando para o quadro encostado à mesinha, vendo o sorriso de Mattie adulta a brilhar através do rosto da menina tímida. - Entretanto - disse Jake baixinho - precisamos apenas de fingir.

 

                                                                                Joy Fielding  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"